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CRONOLOGIA

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118 - 4 AD HOC

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117 - AI AMOR SEM PÉS NEM CABEÇA

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116c - O NOME DE DEUS - O ESTADO DO BOSQUE

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116b - O NOME DE DEUS - Leitura DUAS CARTAS

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116a - O NOME DE DEUS - Leitura GENNARIELLO

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115 - Os Desastres do Amor

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114 - O SONHO DA RAZÃO

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113 - FINGIDO E VERDADEIRO

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112 - A Varanda

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111 - "ELA"

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110 - Morte de Judas

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109 - A Cacatua Verde

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108 - Fim de Citação

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107 - DANÇA DA MORTE / DANÇA DE LA MUERTE

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106 - Olá e Adeusinho

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105 - MISERERE

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104 - A Cidade

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103 - Ifigénia na Táurida

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102 - Menina Else

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101 - A Tempestade

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100 - Os Gigantes da Montanha

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99a - Leôncio e Lena

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99 - Don Carlos, Infante de Espanha

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98 - A Floresta

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97 - O Construtor Solness

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96 - A Tragédia de Júlio César

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95 - Filoctetes

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94 - Ensaios para "O Ginjal"

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93 - A Gaivota

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92 - Sangue no Pescoço do Gato

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91 - A Cadeira

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90 - Um Homem é um Homem

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89 - Esopaida

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88 - A Família Schroffenstein

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87 - Filodemo

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86 - Anatomia Tito Fall of Rome

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85 - Tito Andrónico

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84 - A Vida é Sonho

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83 - Tiestes

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82 - História do Soldado

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81 - O Colar

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80 - O Novo Menoza ou A História do Príncipe Tandi

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79 - Dom João e Fausto

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78 - A Morte de Empédocles

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77 - Hamlet

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76 - The English Cat

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75 - Cimbelino

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74 - AMOR/ENGANOS

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73 - Afabulação

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72 - A Sombra de Mart

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71 - Trilogia Monocromática

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70 - O Casamento de Fígaro

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69 - O Lírio

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68 - Quando Passarem Cinco Anos

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67 - Um Sonho

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66 - Máquina Hamlet

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65 - Sertório

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64 - Os Sete Infantes

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63 - Demónios

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62 - A List

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61 - Barba Azul

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60 - A Margem da Alegria

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59 - Dor

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58 - Um Auto de Gil Vicente

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57 - Splendid's

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56 - A Prisão

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55 - Vai Ver Se Chove

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54 - O Dia de Marte

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53 - O Triunfo do Inverno

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52 - O Jogo das Perguntas

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51 - O Conto de Inverno

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50 - Diálogos Sobre a Pintura na Cidade de Roma

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49 - A Mula, O Clérigo, O Alfaiate e Mais Lamentações

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48 - Sete Portas

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47 - Primavera Negra

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46 - Apanhados no Divã

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45 - Mauser

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44a - Antes que a Noite Venha

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44 - A Missão

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43 - Até Que Como O Quê Quase

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42 - Comédia de Rubena

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41 - Muito Barulho Por Nada

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40a - Façade e The Bear

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40 - Um Poeta Afinado

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39 - Salada

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38 - Céu de Papel

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37 - O Público

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36 - Vida e Morte de Bamba

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35 - Auto da Feira

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34 - Três Irmãs

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33 - Grande Paz

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32 - Vermelhos, Negros e Ignorantes e As Pessoas das Latas de Conserva

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31 - A Mulher do Campo

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30 - A Sonata dos Espectros

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29 - Pai

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28 - A Ilha dos Mortos e Páscoa

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27 - Ricardo III

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26 - O Parque

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25 - Simpatia

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24 - A Missão

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23 - Novas Perspectivas

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22 - Mariana Espera Casamento

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21 - Oratória

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20 - O Labirinto de Creta

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19 - Dou-che-lo Vivo, Dou-che-lo Morto

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18 - Não Se Paga! Não Se Paga!

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17 - Capitão Schelle, Capitão Eçço

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16 - Zuca, Truca, Bazaruca e Artur

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15 - Paragens Mais Remotas Que Estas Terras

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14 - E Não Se Pode Exterminá-lo?

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13 - Woyzeck

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12 - Música Para Si

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11 - Auto da Família

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10 - Casimiro e Carolina

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9 - O Treino do Campeão Antes da Corrida

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8 - Alta Áustria

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7 - Tambores na Noite

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6 - As Músicas Mágicas

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5 - Ah Q

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4 - Pequenos Burgueses

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3 - O Terror e a Miséria no III Reich

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2 - A Ilha dos Escravos e A Herança

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1 - O Misantropo

109 - A Cacatua Verde

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      fotografias de Luís Santos ©

 

 

A CACATUA VERDE de Arthur Schnitzler

 

Tradução Frederico Lourenço

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Desenho de luz Daniel Worm D’Assumpção

Colaboração para a dramaturgia e encenação Christine Laurent

Assistente de encenação Manuel Romano

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Director de cena Pedro Leite(Teatro Nacional D. Maria II)

Ponto João Coelho (Teatro Nacional D. Maria II)

Acompanhamento vocal Luís Madureira

Director técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo, Abel Fernando com Tomás Caldeira

Montagem e Operação de luz Rui Seabra

Guarda-roupa Emília Lima e Maria do Sameiro Vilela

Costureiras Maria do Sameiro Vilela com Teresa Balbi

Assistente de produção Tânia Trigueiros

Secretária da companhia Amália Barriga

 

Interpretação

Émile, duque de Cadignan João Grosso (Teatro Nacional D. Maria II)

François, visconde de Nogeant Duarte Guimarães

Albin, cavaleiro de laTremouille Vítor D’Andrade

Marquês de Lansac José Manuel Mendes

Rollin, poeta Dinis Gomes

Prospère, taberneiro, antigo director de teatro Luis Miguel Cintra

Henri Ricardo Aibéo

Baltasar/Guillaume Tiago Matias

JulesJoão Villas-Boas (estagiário)

Scaevola Gonçalo Amorim  

Maurice Miguel Melo  

Grasset, filósofo António Fonseca

Grain, vagabundo Miguel Loureiro  

O Comissário Luís Lima Barreto

Séverine, a mulher do Marquês Rita Blanco

Georgette Sofia Marques

Michette Catarina Lacerda       

Flipotte Cleia Almeida              

Léocadie, actriz, mulher de Henri Rita Loureiro

Lebret, alfaiate Miguel Melo

Étienne Tiago Manaia (estagiário)

Dois jovens nobres Tobias Monteiro (estagiário mestrado ESTC) e Nuno Casanovas (estagiário)

Três mulheres populares Alice Medeiros (estagiária), Neusa Dias (estagiária mestrado ESTC) e Joana Verona (estagiária ESTC)

 

Música

Le Temps des Cerises (Bertrand Cantat e Noir Désir)

 

Lisboa: Teatro Nacional D. Maria II. 17 de Fevereiro a 27 de Março 2011

29 representações

 

Co-produção do Teatro Nacional D. Maria II/Teatro da Cornucópia

Estrutura financiada pelo Ministério da Cultura/Direcção Geral das Artes

 

 

ESTE ESPECTÁCULO

A Cacatua Verde é uma pequena obra-prima do repertório e, no entanto, condenada ao esquecimento. Não há já lugar nos teatros dos dias de hoje para uma pequena peça em um acto que pressupõe a existência de grandes companhias fixas, um guarda-roupa de época, 25 actores pelo menos, que não é ópera mas exige um orçamento pesado que, hoje em dia e aos olhos dos gestores, dificilmente justifica um espectáculo com tão pouco tempo de duração. Ainda por cima, tratando-se de um autor mal conhecido do chamado público médio, o consumidor tipo. Um Shakespeare ou um grande Brecht passariam por programação mais sensata, por melhor governo, mesmo que depois as peças sejam truncadas até às duas horas de duração de espectáculo, que parecem ser o limite estimado para a paciência de um espectador de hábitos culturais pré-formatados. E no entanto, que peça!

 

Por um milagre de ousadia ou de muita vontade, menos insensata que corajosa aposta do Teatro Nacional D. Maria II que vem já do tempo anterior à declarada crise económica, aliada ao entusiasmo de uma equipa que inclui muita gente a trabalhar em condições de remuneração mínimas, vem tornar possível este já muito antigo projecto da Cornucópia. Já em 1989, no ano do 2º centenário da Revolução Francesa, e à custa da efeméride, Madalena Perdigão chegara a interessar-se pela proposta da Cornucópia, e propunha-se levar a peça à cena nas garagens da Fundação Gulbenkian em produção do Acarte. Aos que os chegaram a conhecer, e queiram imaginar o que teria sido o resultado, conto que Ruy Furtado faria Prospère, Zita Duarte a Marquesa Séverine, e há 22 anos eu teria sido “o famoso Henri Baston”. Não tinha então a Cornucópia a experiência que hoje tem e por certo seria então menos capaz de, com soluções de baixo custo, inventar as soluções cénicas que hoje lhe passam pela cabeça. Lembro-me, por exemplo, de passarmos muito tempo a deitarmos contas ao preço das cabeleiras de época que então nos pareciam indispensáveis e de Madalena Perdigão levar as mãos à sua cabeça. Por razões dessas, até compreensíveis, mesmo tratando-se de uma entidade como a Gulbenkian, e sendo ainda jovem a companhia, o projecto não se chegou a realizar. Mas 22 anos depois continuamos a gostar muito deste texto independentemente de qualquer efeméride que justifique a sua encenação, e o mesmo texto aqui está para outro espectáculo, já nascido noutro contexto.

 

Tem ainda o sabor de uma descoberta, (apesar da tão cuidada e tão espectacular montagem de Ricardo Pais do Anatol, há já uns bons anos, no Teatro Nacional, ou de algumas encenações da Dança de Roda, como a de Antonino Solmer com Eduarda Dionísio na Caixa Económica Operária) encontrar nas peças de Arthur Schnitzler um autor de importância tão grande para a História do espectáculo como Tchekov, seu contemporâneo. Não só em Tchekov, em ambos se assiste ao nascimento de uma nova escrita dramática em que o texto, as palavras que as pessoas proferem em cena, deixa de ser a própria personagem para passar a ser o sintoma de personagens que, como na vida, vivem antes de falarem e que existem tanto quando calam como quando falam e falam coisas que não querem dizer, ou dizem contradições que desconhecem. Ou seja, em ambos se trata de uma escrita dramática que conta com um novo conhecimento da linguagem, e uma nova descoberta dos diferentes níveis da consciência humana, uma escrita que, em suma, conhece por dentro a cabeça das pessoas e das personagens que inventa e põe em cena. Uma escrita paralela às descobertas da psicologia nesse fim do século XIX e princípio do século XX. E, como que por acaso, ambos os autores são médicos. Só que Tchekov é Russo, mais dramático, mais generoso, mais lírico, e com uma revolução à porta, e Schnitzler é Austríaco, judeu, muito mais aristocrático e cínico, mais leve, mais sofisticado e muito mais metido numa sociedade mais hipócrita e claustrofóbica, e terá os seus livros banidos pelo nazismo. Mas reconhecemos a mesma época, até na dificuldade que as simplificadas e normalizadas cabeças de hoje têm para entender a escrita quer de um quer de outro, e para dar corpo a essas figuras, tanto quanto têm dificuldade em conhecer os meandros de si próprios, formados como estão a ser, numa sociedade que tenta programar com clichés o pensamento, o sentimento e as sensações. Se em Tchekov, apesar de tudo, a emotividade portuguesa nos aproxima dos grandes traços da chamada “alma russa”, em Schnitzler estranhamos a leveza, a sua economia, o seu subtil humor, e sobretudo a distância a que se coloca das personagens que retrata. As personagens de Tchekov são únicas, o seu autor ama-as como irmãos, é com elas solidário, e dir-se-ia que as personagens de Schnitzler são casos, são “exemplares” de uma natureza humana que tem comportamentos que se podem e têm de analisar e classificar, como Freud então estava a fazer, co-habitando com Schnitzler a mesma Viena de Áustria. E sobretudo Tchekov escreve para nos pôr a conhecer essas pessoas, as suas personagens, e escreve as suas cenas para amorosamente as ir revelando ao espectador, apaixonado pela imperfeição humana. Schnitzler já conhece as personagens de antemão, sabe a história e a psicologia de cada um, ele só as põe em acção, ou em situação, e compete ao espectador reconhecê-las, se for capaz de as conhecer como Schnitzler. Se também tiver cabeça de analista. Se um conto como A Menina Else (que Christine Laurent já transformou em espectáculo para o Teatro da Cornucópia, com Rita Durão em Else) se entretem a analisá-la e com ela a sociedade sinistra a que pertence, nas peças em um acto de que Schnitzler tanto gostou, há o gosto do retrato, de um instantâneo flash de muitas personagens dessas a viver em sociedade. São retratos da Cidade. Da cidade podre, em crise. Não creio que a ideia de um teatro de marionetas, que Schnitzler explicitamente inclui na sua obra com peças para marionetas, e com um texto que se chama justamente O Marionetista, fosse ideia que pudesse agradar a Tchekov. E reconhecemos em Schnitzler um fantástico “métier” de “dialoguista”, como o provam o aproveitamento que das suas peças fez o cinema (com o caso mais notável do La Ronde de Max Ophuls) e a influência que julgo que terá tido no desenvolvimento da escrita para cinema.

 

A ideia genial de situar A Cacatua Verde na noite da tomada da Bastilha, em que o povo de Paris entrou por essa prisão dentro, libertou os presos e cortou a cabeça ao seu director, a noite de 13 para 14 de Julho de 1789, emblemática da Revolução Francesa, que se diz que mudou o mundo, e de a fazer desenrolar-se num local à margem da sociedade, um estranho “palco”, uma cave, uma caverna de Platão, torna a peça particularmente interessante no conjunto das muitas peças de Arthur Schnitzler. Trata-se afinal de representar o mundo num teatro de marionetas regidas por um maestro, um Magister Ludi, que se julga igual a Deus mas que é tão falível como todos os mortais e ultrapassado pela História que tem leis que o próprio homem, que a faz, não vai mudar. É afinal um processo dramático parecido com o de outras obras que usam o processo do “teatro dentro do teatro” e que não pode deixar de lembrar-nos O Grande Teatro do Mundo de Calderón, em que o Magister Ludi, o Autor, é Deus, e lembrar sobretudo A Tempestade de Shakespeare. O jogo a que Prospère, a personagem eixo desta peça de Schnitzler, submete os seus clientes e os seus actores naquele laboratório que é a taberna chamada “A Cacatua Verde”, é paralelo àquele a que Próspero em A Tempestade submete os nobres naufragados na ilha para onde o deportaram (e não foi Prospère “deportado” também de um teatro na cidade para uma cave/taberna?). Com essas duas encenações, cada um dos “magos” joga com as regras sociais, e em ambos os casos o processo, que começa por ser revelador da verdade dos comportamentos, acaba por condenar o seu autor a uma lucidez que é sinónimo de solidão, e ao fim dos seus jogos. O casamento sonhado de Miranda e Ferdinand, desejo de instauração de uma nova ordem purificada, revela-se a restauração de uma ordem igual à anterior e resulta numa nova solidão do seu autor, e na conquista de uma nova sabedoria na sua renúncia ao poder, tanto como o processo de transformação da ilusão em realidade na Cacatua, se torna no fim da própria taberna, e na destruição da felicidade sonhada de Henri e Léocadie. E em ambos os casos é a marcha da História quem vence, na sua contradição com o processo de ilusão (pelo “teatro”, pelo jogo) usado por ambos os protagonistas. N’A Tempestade, para em vão corrigir essa realidade, e n’A Cacatua Verde para a ela fugir. Em ambos os casos a História é entendida como processo cíclico em resistência a qualquer desejo de mudança, de correcção das injustiças. Mas a grande e triste diferença reside nisto: à esperança de Próspero corresponde o posterior desesperado desejo de Prospère. Prospère é artista, e, adiando a Esperança, na Arte se refugia, enquanto Próspero é um sábio que, para mudar o mundo, faz Magia. O desencanto do próprio autor, ou do seu tempo (tempo de grandes mudanças e progressos, lembremo-lo, essa transição do século XIX para o XX), vinga-se na inteligência, na lucidez, no humor com que vê o Mundo ao ponto de banalizar o nome do shakespeareano Duque de Milão e chamar “prospere/próspero” a quem vive agora de um miserável comércio em época de fome, ou da generosidade da classe em vias de extinção na pessoa do Duque de Cadignan, e da degradação da sua Arte de Talma.

 

É exactamente neste ponto que A Cacatua Verde mais me interessa e julgo que pode falar também ao nosso tempo. No ponto em que fala das relações da arte com a realidade, da crença na transformação do Mundo, das Revoluções, e da perda da Esperança. A Cacatua Verde fala da Utopia e da Traição, sem nunca a nomear. Traição a si mesmo e traição à Revolução. E fala da tensão entre existência individual e marcha colectiva do mundo. É ainda reflexão sobre a Morte. E no centro do assunto, em ambos os casos, está a Máscara = o Teatro (entenda-se, o espaço da arte, zona de ilusão, cave de Platão também, onde por um instante que seja, o Homem se transfigura ao representar a Vida). E em última análise faz sentir a necessidade de uma reconstrução da Esperança. Afinal o mesmo tema de sempre (e haverá outro para quem quiser pensar-se, ou para quem amar a vida esse mínimo que seja para se obrigar a dar-lhe um sentido?). Correndo o risco de passarmos por duplos retardados do Astrov do Tio Vânia de Tchekov, é nisso que ficamos a pensar quando cai o pano sobre aquele pequeno “grotesco”, como Schnitzler lhe chamou. Com dois ou três traços, em “raccourci”, e como quem apenas se entreteve a fazer humor, Schnitzler pôs na peça, representados por aquelas sombras na caverna, o entusiasmo do dia da vitória daquela e de todas as revoluções, o terror que se lhe seguiu, e a mediocridade de uma tomada de poder pretensamente equilibrada e normalizadora da vida. É por esta mal disfarçada temática que a peça nos integra mais uma vez na coerência de um trabalho que há 34 anos desenvolvemos e que passa quer pelos textos de Heiner Müller que levámos à cena, quer pelos Gigantes da Montanha de Pirandello, pelo Miserere, há um ano aqui no Teatro Nacional de Lisboa, e que recentemente desemboca no mal entendido espectáculo que quisemos que fosse o prólogo da programação com que queremos prosseguir levando à cena textos de Jean Genet: o espectáculo Fim de Citação, espectáculo que, ao contrário do que se disse, mais falava sobre a Vida que sobre o Teatro ou sobre a biografia da Cornucópia.

 

E se Schnitzler no fim da peça mata o Duque, sublime representante da classe decadente, e cala Prospère, o artista, sem nos dizer que lhe vai acontecer, perante o evidente fim da taberna Cacatua, daquele teatro, depois das vítimas que fez, sentimo-nos na liberdade ou no dever de acrescentar a nossa parte de responsabilidade ao texto do Austríaco com a decisão nossa de o fazer sair para a realidade, sem culpa e fechando a porta sobre as vítimas, e outras acções cénicas não previstas, e, correndo o risco de nos acusarem de repetirmos uma ideia do encenador Langoff que juntou as duas peças num espectáculo, lhe acrescentar duas citações de A Missão de Heiner Müller: A REVOLUÇÂO É A MÁSCARA DA MORTE/A MORTE É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO, e a belíssima frase final: “Então a traição caiu sobre ele como um céu a alegria de uma vagina aberta uma aurora.” Prospère, no nosso início do nosso espectáculo já antecipa, com La Carmagnole, os dias que vai viver, e no nosso final cantarola a canção de outra revolução, a de 1871, a da Comuna, uma canção que todos os da minha geração cantaram, que hoje em dia já poucos conhecem, mas que Bertrand Cantat e o grupo Noir Désir ressuscitaram para o rock, ao gosto de novas gerações: Le temps des cerises.

E assim termina:

 

J'aimerai toujours le temps des cerises.                  Sempre amarei o tempo das cerejas.

C'est de ce temps-là que je garde au cœur              É desse tempo que guardo

Une plaie ouverte!                                                     uma chaga aberta no coração.

Et Dame Fortune, en m'étant offerte                       E quando a Dona Sorte se me vier oferecer

Ne pourra jamais calmer (fermer) ma douleur…       nunca porá fim à minha dor.

J'aimerai toujours le temps des cerises                   Sempre amarei o tempo das cerejas

Et le souvenir que je garde au cœur !                      e a lembrança que guardo no meu coração.

 

Saltamos no fim do nosso espectáculo para outro registo, sentimental, metafórico, nosso, e posterior ao da escrita da peça. Schnitzler é mais desencantado do que nós. Como bom analista dos comportamentos humanos, Schnitzler não pode deixar de ser ambíguo. Sabe que a realidade de cada um não tem verdade nem mentira. É mestre da ambiguidade. Tudo o que é pode ser também o seu contrário. É aliás divertido verificar como o tema da verdade e da mentira despista qualquer leitor ou espectador de A Cacatua Verde, habituados como estamos a criar dicotomias para arrumar o que nos custa deixar que seja caos, para não nos deixarmos enlouquecer. Todos nós, perante este texto, caímos na armadilha de nos pormos a perguntar, como as suas personagens: “Mas afinal o que é que aconteceu?” Um pouco à toa, perguntamos: Léocadie traiu ou não Henri? Prospère é um cínico ou apenas um fraco? Henri é bom actor ou apenas ciumento? Os actores da Cacatua são ladrões ou inventam que são? A liga de diamantes é verdadeira ou pechisbeque de teatro? Henri sabia ou não que o Duque era o seu rival? Só à medida que fomos ensaiando nos livrámos destas perguntas. E percebemos que não interessa. Não há diferença entre ser e parecer, tudo é apenas (ou tanto!) o que cada ponto de vista, cada pessoa, quiser que seja. Pena que o princípio de realidade, neste caso a Revolução lá fora, negue a existência da dúvida ou da contradição. Isso sim que é mentira. A marcha da História trai a realidade simplificando-a para além da existência de cada um. E neste pequeno conto filosófico, torna um crime que nasce da paixão amorosa, do ciúme, (ou do orgulho?), em gesto heróico, politicamente correcto.

 

Concordamos com parte da crítica, que a peça é uma falsa peça histórica sobre a Revolução Francesa, mas também concordamos com outros que, pelo contrário, é uma peça política sobre a própria História, sobre a Revolução, sobre todas as revoluções, e sobre a subjectividade da História. A revolução de 1789 é apenas um caso. Na peça está desenhada uma consciência superior à data: já se antecipa “o terror”, a tomada de poder de Napoleão, o seu fim. A peça já sabe que depois de 1789 houve 1871, a Comuna, e nós que a vemos hoje sabemos que houve a Spartaquista e a Soviética, e que depois de muitos terem perdido a vida para salvar o Mundo, muitos mais a terão de continuar a perder para que tudo continue sempre a mudar. Ou só a renascer como o ciclo natural das estações? Queimar a erva para que volte a crescer? E África?E o Islão? E a América Latina? Alguns se lembrarão que alguma coisa a nossa pequena “revolução dos cravos” veio transformar. Mas sabemos que muito mais do que previmos que viesse a acontecer, muito mais muitos outros terão ainda de fazer. E acredito na “redenção dos pecados”. Indo além do que está escrito acreditei que a personagem de Séverine aprendeu com a noite de “diversão”, e que o seu “Viva a Liberdade!” lhe libertou o corpo. E acredito que há gente generosa. Mais do que o texto diz, salvámos a actriz/puta Léocadie, e de Flipotte fizemos uma inocente.

 

A minha coincidência no papel de Próspero de A Tempestade e no de Prospère da Cacatua, e no de Cotrone de Os Gigantes da Montanha, essa não é evidentemente inocente. Como não é inocente a utilização da estrutura do cenário de Miserere para o cenário deste espectáculo na mesma sala. É uma sobre-impressão. E não é inocente a colocação do balcão da taberna no lugar do maestro da ópera, aí onde no Miserere estava a estátua azul do organista desconhecido. Nós, artistas todos, pensamos a fazer. E não devemos furtar-nos à nossa responsabilidade pública. Prefiro expô-la em carne e osso. De discurso estamos todos fartos. As palavras mentem. A gente do teatro é com os materiais com que vamos trabalhando que pensa, com as cenografias, o trabalho dos actores, a dramaturgia, a iluminação, os guarda-roupas. Com outros materiais pensaram os artistas de outras artes. Ninguém negará, por exemplo, que Manoel de Oliveira pensa e age a filmar. E reparo que na minha geração não sou o único que, perante a banalização da Arte que a prepotência do mercado tem provocado, sente necessidade e creio que ainda bem, de expor os valores por que sempre se regeu e que a essa prepotência se opõem. (Que faz Eduardo Batarda se não isso com a sua última exposição?) Ao fazer coincidir a minha função de Director da Cornucópia com o papel destes inventores de jogos que a literatura dramática traz para a cena, estou a querer pôr-me em cheque (mate?), a continuar o que sempre quis que fosse uma leal relação com o espectador. Expôr-se é intrínseco ao trabalho do teatro. A máscara é a nossa pele. Não posso gostar de me esconder.

 

Há poucos dias, em jeito de homenagem a uma grande amiga actriz que já morreu, a Glicínia Quartin, dei comigo a dizer que os actores, e vale para todos os que trabalham em espectáculos, se dividem em dois: os que, metidos na mais efémera das artes, através dela se pretendem imortalizar, e os que a praticam justamente pelo que nela há de mais natural, a sua efemeridade. Estes segundos são os que amam a vida, a passagem do tempo, a transformação de cada vida na vida dos que vão continuar a nascer. Estarei, sem falsa modéstia, desse lado, do lado da Esperança, tentando expôr que cada traição ou cada morte é uma aurora.

 

Luis Miguel Cintra

 

 

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