A Conquista do Brasil (Parte II)

Dando continuidade à série de artigos sobre a História dos nativos do Brasil, hoje vamos tratar dos primeiros povos que habitaram estas terras.

O Brasil pré-cabralino

A história pré-cabralina do Brasil é o período da História do Brasil que se inicia com o primeiro povoamento do território brasileiro e termina no ano do Descobrimento: 1500. Este território já havia sido “descoberto” e colonizado por numerosas e diversas etnias. No entanto, nem os americanos nem os portugueses de 1500 concebiam o “Brasil” da forma como o concebemos hoje.

A Pré-história tradicional geralmente se divide em Paleolítico, Mesolítico e Neolítico. No Brasil, prefere-se trabalhar com as categorias geológicas Pleistoceno e Holoceno. A periodização se divide em:

  • Pleistoceno – caçadores-coletores com pelo menos 12 mil anos
  • Holoceno – de 12 mil a.C. a 1500 d.C.

Este último se divide em:

  • Arcaico Antigo – 12 mil a 9 mil anos atrás
  • Arcaico Médio – 9 mil a 4500 anos atrás
  • Arcaico Recente – a partir de 4 mil anos atrás, normalmente relacionado à agricultura e ao desenvolvimento da cerâmica.
Linha do tempo da história do Brasil desde as primeiras ocupações humanas (as datas são controversas) até o fim do Período Colonial.

I. Pleistoceno
Achados em Minas Gerais e na Bahia foram datados entre 25.000 e 12.000 anos A.P. No sítio arqueológico Alice Böer, em São Paulo, foram encontradas peças datadas de 14.200 A.P. Em São Raimundo Nonato, no Piauí, arqueólogos defendem a idade de 50.000 anos para um abrigo ocupado por paleoíndios. Neste mesmo sítio, os arqueólogos encontraram artefatos humanos que remontam a mais de 48 mil anos A.P.

Descobertas no Brasil tem abalado a teoria tradicional da ocupação da América. Passou-se a defender outras teorias, como a de que o homem teria chegado à América entre cerca de 150 mil e 100 mil anos atrás, sendo de origem malásio-polinésia ou australiana. Pode-se admitir hoje que o Brasil foi ocupado há 60 mil anos atrás, no que diz respeito ao Piauí. As correntes migratórias teriam atingido Minas Gerais há 30 mil anos e o Rio Grande do Sul há 15 mil anos. Todo o país estava ocupado há 12 mil anos.

Luzia e o sitio de Lagoa Santa
Luzia é o nome do fóssil humano mais antigo encontrado nas Américas. Encontrado na década de 1970 em Lapa Vermelha, no sítio arqueológico de Lagoa Santa (Minas Gerais), o fóssil contribuiu para reacender um antigo debate em torno das origens do homem americano. A morfologia do crânio de Luzia a aproximaria dos atuais aborígenes da Austrália e nativos da África.

Estudos realizados na região do sitio de Lagoa Santa demonstram que os paleoíndios desta cultura desconheciam a cerâmica, e que sua indústria lítica era relativamente simples. Pesquisas recentes, contudo, afirmam que esses homens eram sedentários. Achados como enterros numerosos e uso de matérias-primas existentes apenas neste local reforçam estas idéias.

II. Holoceno

2.1. Nordeste e centro
A idade paleolítica brasileira é normalmente situada entre 12 mil e 4-2 mil anos A.P., quando surge e se difunde a prática agricultora na região. Antes disso, os homens viviam de caça, pesca e coleta. Nesta época, os arqueólogos constataram a existência de diferentes tipos de indústria lítica por todo o Brasil. No nordeste, vários sítios arqueológicos indicam o desenvolvimento da pedra lascada, contendo raspadores, lascas, furadores e fogões para assar caça.

A Pedra do Ingá, no Estado da Paraíba, é hoje um dos mais conhecidos monumentos arqueológicos doBrasil. Suas grafias têm fascinado estudiosos do mundo todo.

Na região nordeste, as técnicas de trabalho com o material lítico se tornam cada vez mais diversificadas e complexas com o passar do tempo. O número de fogões, por exemplo, aumenta conforme as datações se aproximam do ano 8 mil antes do presente. Fogueiras também são encontradas.

2.2. Sul
As datas mais antigas no Sul (tradição Ibicuí) ficam entre 13.000 e 8.500 A.P., período rico em artefatos simples, encontrados na Bacia do Uruguai. A fase Uruguai, de 11.555 a 8.640 A.P. apresenta muitos raspadores, facas bifaciais e pontas de projéteis. Em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul foram localizados artefatos (facas, raspadores, pontas de flecha) de 8.500 a 6.500 anos atrás, estabelecidos como tradição Vinitu. A tradição Humaitá, mais recente (entre 6.500 e 2.000 anos atrás) se estende de São Paulo ao Rio Grande do Sul. Os homens dessa tradição produziram raspadores, furadores e zoólitos (estátuas de pedra assumindo formas animais). Outra tradição identificada no sul foi chamada de Umbu; esta teria sido responsável pela confecção de fogões e pontas de projéteis.

2.3. Litoral
Os principais sítios arqueológicos do litoral são os sambaquis, montes de conchas de moluscos formados por ação humana. Normalmente são encontrados junto dos sambaquis esqueletos humanos, peças líticas, restos de alimentos, etc. Grande parte dos sambaquis se encontram cobertos pelo mar, devido às mudanças climáticas ocorridas durante o pleistoceno tardio e o holoceno. Os sambaquis existem em quase todo o litoral brasileiro. Os sambaquis são associados à tradição Itaipu. Os povos que habitavam o litoral são normalmente definidos como pescadores semi-nômades.

III. As Tradições
Por tradição, os arqueólogos entendem as práticas e técnicas padrão dos antigos para a confecção, por exemplo, da indústria lítica e da pintura rupestre.

Ao longo de toda a pré-história e história do Brasil, diversas tradições coexistiram e algumas persistiram após a colonização e resistem até hoje. Algumas das tradições mais importantes são:

3.1. Tradição Nordeste
Localizada nos estados de Minas Gerais, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Piauí. Nesta tradição são enquadradas as pinturas encontradas no principal sítio arqueológico do Brasil, o Sítio Boqueirão da Pedra Furada (PI). Dada a complexidade destas representações, pesquisadoras como Anne Marie Pessis e Gabriela Martin, além da própria Niéde Guidon, estabeleceram subtradições nessa área.

É caracterizada pela presença de grafismos reconhecíveis como figuras humanas, animais, plantas e objetos, e de grafismos puros, os quais não podem ser identificados. Estas figuras são muitas vezes dispostas de modo a representar ações, cujo tema é às vezes reconhecível. Os grafismos puros são nítidamente minoritários. As figuras humanas e animais aparecem em proporções iguais e são mais numerosas que as representações de objetos e de figuras fitomorfas (que assemelha-se à plantas). Algumas representações humanas são revestidas de atributos culturais como enfeites de cabeça, objetos cerimoniais nas mãos, etc. As composições de grafismos representando ações ligadas ao quotidiano e ao cerimonial são abundantes e constituem a especificidade da tradição Nordeste. Quatro temas principais aparecem durante os seis mil anos atestados de existência desta tradição: dança, práticas sexuais, caça e manifestações rituais em torno de uma árvore.

3.2. Tradição Agreste
Localizada nos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Possui pinturas geométricas e antropóides, além de representações da fauna.

Supõe-se que os grafismos denominados de Tradição Agreste surgiram na região Agreste do estado de Pernambuco e também da Paraíba. São registros rupestres mais toscos, rudes, e em dimensões maiores que a Tradição Nordeste. Na maioria das vezes representam seres estáticos, sem movimento, ou sugerindo pouco movimento.

Bonecões típicos da Tradição Agreste. Sítio Toca da Entrada do Baixão da Vaca. PI.

Nesta classificação, os antropomorfos apresentam-se de forma isolada, de difícil compreensão, não tão bem elaborados como na Tradição Nordeste. Existem também muitas representações de sáurios (lagartos e répteis) que são animais muito comuns no ambiente semi-árido coberto pela caatinga.

Na sua versão mais característica, as figuras da Tradição Agreste aparecem isoladas ou formando pequenos conjuntos dominados por uma ou duas grandes figuras antropomorfas (ditas “bonecões”).

3.3. Tradição Itacoatiara
Integrada por gravuras representando figuras que não permitem nenhum reconhecimento. Raramente alguma figura reconhecível é representada de maneira isolada.

As itacoatiaras (pedra pintada, na língua Tupi) estariam espalhadas por várias regiões do país. Seriam petroglifos de tamanhos e feituras diferentes que teriam em comum a sua profunda ligação com a água, e são portanto grafadas sobretudo em margens de rios.

3.4. Tradição Litorânea Catarinense
Seus vestígios vão do litoral até ilhas a quinze quilômetros de distância da costa. É caracterizada por inscrições em rocha, com quatorze temas estudados que vão de antropomorfos a geométricos.

Os painéis gravados da Tradição Litorânea Catarinense estão situados em ilhas, em locais de difícil acesso e até mesmo perigosos, longe da costa e orientados para o alto-mar. As gravações foram feitas em granito, através da técnica do polimento.

3.5. Tradição Geométrica
Presente desde o planalto sul, atravessa Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Goiás e Mato Grosso até o nordeste. Dada sua extensão, Prous a subdivide em Meridional e Setentrional. Caracterizada por pinturas que representam uma maioria de grafismos puros, figuras humanas e algumas mãos, pés e répteis extremamente simples e esquematizados.

Inscrições na Pedra de Ingá: figuras estilizadas ou escrita não decifrada?

3.6. Tradição Meridional
Ocorre no sul do Brasil e em outros países da fronteira. Os sítios do Rio Grande do Sul se apresentam alinhados nas escarpas do planalto, sendo também encontrados em blocos isolados e em abrigos e grutas. As gravuras foram feitas no arenito, através da técnica de incisão ou de polimento. Em alguns sítios foram encontrados vestígios de pigmentos de diferentes cores (preto, branco, marrom e roxo) que formam gravuras geométricas lineares.

Tradição Planalto
Passa pelo Planalto Central, pelos estados de Minas Gerais, Paraná e Bahia. Gravuras principalmente de animais em vermelho, preto, amarelo e raramente em branco. Nesta região, encontra-se o famoso sítio arqueológico de Lagoa Santa (MG), local de origem do fóssil humano mais antigo do Brasil.

A Tradição Planalto foi definida a partir dos sítios de pinturas rupestres do Planalto Cárstico de Lagoa Santa, daí seu nome. Seus elementos definidores são os grafismos zoomorfos, sobretudo cervídeos e peixes, de composição monocrômica, acompanhados de outros zoomorfos (sobretudo fquadrúpedes, menores que os cervídeos) e de antropomorfos muito esquematizados.

3.7. Tradição Aratu
A Tradição Aratu foi a primeira grande ocupação do Planalto Central e caracterizava-se por ser bastante propensa a influências externas e, em contrapartida, certa homogeneidade interna. Há indícios da Tradição Aratu nos estados do Piauí, Maranhão, Bahia, Minas Gerais e São Paulo.

Urna funerária da tradição Aratu.

Os grupos indígenas que confeccionaram a cerâmica da Tradição Aratu tiveram diversas fases, possivelmente por ocuparem uma grande área e por sofrerem influências de outras tradições.

O povo da tradição Aratu provavelmente foi expulso do litoral por povos
da tradição Tupiguarani, antes da chegada dos portugueses à costa brasileira.

3.7. Tradição São Francisco
Apresenta-se nos estados de Minas Gerais, Bahia e Sergipe, principalmente no vale do Rio São Francisco.

Nos grafismos predominam os motivos geométricos, mas verificam-se também desenhos que representam formas humanas e animais (peixes, pássaros, cobras, sáurios e algo parecido com tartaruga). Não existe nenhuma cena e, na maioria dos casos, as figuras são feitas em duas cores. Como outras tradições, também apresenta variedades regionais que contam com representações de pés humanos, armas e instrumentos.

3.8. Tradição Amazônica
Antropomorfos simétricos e geometrizados caracterizam esta tradição ainda pouco estudada. Nas margens dos rios Cuminá, Puri e Negro, as cabeças de figuras humanas gravadas geralmente são radiadas, enquanto nas proximidades de Monte Alegre são pintadas. Há também em outras localidades painéis compostos por bastões e gravações curvilineares.

Tradição Tupiguarani
A cerâmica da tradição Tupiguarani, no momento dos primeiros contatos com os europeus, foi encontrada exclusivamente entre grupos indígenas da família linguística Tupi-guarani, apesar de que nem todos os que falavam Tupi ou Guarani posuíssem cerâmica. Continuou depois sendo produzida e utilizada por alguns destes grupos desde o século XVI até o início do século XX. A designação Tupiguarani, escrita sem hífen, distingue a tradição ceramista da família linguística, que se se escreve com hífen: Tupi-guarani.

Vasilhame cerâmico da tradição Tupiguarani. Usado para armazenar grãos e fermentar bebidas, como para sepultar os mortos. Recuperado no munícipio de Capanema – PR

No Brasil Central, dados arqueológicos demonstram a presença de vestígios cerâmicos com características da tradição Tupiguarani entre os séculos XIV e XV.

Alguns autores perceberam as variações existentes nas características dessa tradição cerâmica, como o fundo cônico que reproduz a forma da cuia utilizada para tomar o mate, hábito típico e exclusivo dos índios da bacia platina. Na tentativa de adotar procedimentos classificatórios mais precisos, foi dividida em duas subtradições: a Tupinambá e a Guarani.

Carimbos cerâmicos Guarani. Usados para pintura corporal ou de tecidos, redução jesuítica do Guairá, século XVII, vale do rio Ivaí.

A divisão da tradição Policrômica Amazônica em subtradições Guarani e Tupinambá foi elaborada por Brochado (1984), na qual os sítios guaranis apresentam a predominância de recipientes de cerâmica com a superfície externa corrugada, com vasilhas (tigelas de beber, tigelas, panelas e talhas) com fundo predominantemente cônico; por outro lado, entre as vasilhas tupinambás, predominam as com formato esférico ou em meia calota, sendo raras as com fundo cônico.

Urna funerária Tupiguarani.

As tigelas para beber, encontradas nos sítios guaranis e tupinambás, se diferenciam ainda, respectivamente, por possuírem pintura externa, boca redonda e fundo cônico ou pintura interna, boca quadrangulóide e fundo semi-esférico.

Fragmentos de cerâmica com pintura policrômica.

Cabe observar que as vasilhas guaranis possuíam como funções principais preparar ou servir alimentos, podendo também ser empregadas como urnas funerárias: yapepó (panelas), cambuchí (talha para fermentar bebidas alcoólicas, armazenar e servir), cambuchí caguaba (copo para cauim), iisé e õeembé (pratos). As vasilhas com tratamento de superfície digital eram levadas ao fogo, o que não acontecia com as peças com pintura na superfície externa.

3.9. Tradição Itararé
Os vasos cerâmicos ligados a Tradição Itararé são geralmente utilitários e de pequeno tamanho. As paredes são finas (de 4 a 8 milímetros), se compararmos com a cerâmica da Tradição Tupiguarani.

As vasilhas apresentam corpo cônico, semi-elípticas, em meia-calota ou meia-esfera. As peças com formas cônicas de abertura constrita ou levemente ampliada são denominadas kruku, no Rio Grande do Sul e korã, em São Paulo. As formas semi-elípticas, também denominadas tigelas rasas ou fundas, que possuem contorno simples e abertura ampliada, são conhecidas como pentky no Rio Grande do Sul e em São Paulo.

De forma geral, a decoração ou o tratamento de superfície é representado pelo tipo liso com brunidura (processo mecânico de polimento por abrasão, empregado no acabamento de peças). As decorações são diversas, mas o tipo liso com brunidura é a característica mais marcante no Estado de São Paulo. Quanto à forma, o tipo cônico é o mais comum.

IV. O Arcaico Recente
O aparecimento de plantas cultivadas em Minas Gerais data de 4 mil anos atrás. Em São Raimundo Nonato, a agricultura parece ter sido praticada desde a pelo menos 2.090 anos. Embora a cerâmica amazônica seja mais antiga que a agricultura, o mesmo fenômeno não ocorre no resto do país, onde a cerâmica mais antiga data de 3 mil anos atrás. Os arqueólogos consideram que o surgimento da cerâmica está ligado ao sedentarismo e à agricultura, pois a cerâmica é de difícil transporte e, normalmente, tem a função de armazenar víveres. A tradição Taquara-Itararé é talvez a mais estudada tradição de cerâmica do país.

V. Amazônia
5.1. Período Pré-Cerâmico
As datações mais antigas da região amazônica situam os primeiros habitantes da região em 12.500 AP. É provável que o território houvesse sido colonizado anteriormente. Arqueólogos identificam um desenvolvimento da técnica de lascar, começando pelo lascamento por percussão e seguindo para o lascamento por pressão. As mudanças nas técnicas de lascamento são associadas a diferentes modalidades de caça: uma voltada para os animais de grande porte, e outra para os animais de pequeno porte. Mas nada é certo sobre o estilo de caça dos antigos povos amazônicos. Acredita-se que esses povos se alimentavam de moluscos, pequenos animais e frutos. Os sambaquis continuam sendo os principais sítios arqueológicos desse período na Amazônia.

Foto de um sambaqui. Os sedimentos que podem ser identificados na parede mostram sucessivas camadas de restos de conchas dos moluscos consumidos.

5.2. Período Cerâmico Incipiente
Durante essa época os povos amazônicos adotaram um estilo de vida similar aquele de muitas tribos do território atualmente. Os indígenas teriam vivido em estado de relativa fixação, realizando a horticultura de raízes. Esses grupos desenvolveram a primeira cerâmica elaborada da América, com temas geométricos e zoomórficos, pinturas em tinta branca e vermelha. Os vasos assumiram formatos ovais e circulares.

Cerâmica do estilo hachurado zonado.

Os grupos de estilos cerâmicos mais conhecidos são chamados de Hachurado Zonado e Saladóide-Barrancóide. Cerâmicas do estilo Saladóide, encontradas no baixo e médio Orenoco, parecem ter sido criadas entre 2.800 a 800 a.C. Os estilos Hachurados Zonados de Tutoshcainyo e Ananatuba datam, respectivamente, de cerca de 2.000-800 a.C. e 1.500-500 a.C.

Cerâmica Barrancóide.

Essas sociedades praticavam, além da horticultura, caça e pesca. O consumo de mariscos foi reduzido e esses povos passaram a se instalar nas várzeas e margens dos rios. Assadeiras de cerâmica grossa foram identificadas, de forma que levanta-se a hipótese da presença da mandioca. Sítios desses complexos culturais foram encontrados na bacia do Ucayali, na ilha de Marajós, no Orenoco e no Amazonas.

5.3. Cacicados Complexos: 1000 a.C. – 1500 d.C
Sociedades que habitavam regiões da bacia amazônica organizaram-se de forma cada vez mais elaborada entre o ano 1000 a.C. e o ano 1000 d.C.. Possuíam domínios culturais até mesmo maiores que os de muitos Estados do Velho Mundo, como as civilizações minóica e micênica e os Estados africanos de Ashanti e Benim. Essas sociedades tornaram-se mais hierarquizadas, constituíram chefias centralizadas na figura do cacique, e adotaram posturas expansionistas. O cacique, além de dominar amplos territórios, organizava continuamente seus guerreiros visando conquistar novos territórios.

Uma destas civilizações, a marajoara, protagonizou quase mil anos de história, tendo desaparecido antes da chegada dos europeus. Seu apogeu parece ter ocorrido ao redor do ano 1000. Esculturas de pedra eram esculpidas na foz do rio Trombetas, onde havia também centros de produção de muiraquitãs, pequenas esculturas lapidadas em pedra polida em forma de animais ou seres humanos.

Arte Marajoara

Dados arqueológicos e etno-históricos revelam indícios da presença dessas sociedades ao longo das várzeas dos rios Amazonas e Orenoco, nos contrafortes orientais dos Andes, e na região costeira do Caribe. Na Amazônia, por volta de 1000 a.C., desenvolvem-se as culturas dos construtores de tesos (aterros artificiais construídos em áreas inundáveis), sucedidas por sociedades complexas e hierarquizadas, associadas a uma indústria de cerâmica muito refinada. Tais sociedades seriam exemplificadas pela Marajoara, na ilha do Marajó, e pela Tapajônica, na região de Santarém.

Muiraquitã em formato de sapo, o mais comum.

A cerâmica dessas sociedades era altamente elaborada, com técnicas complexas de produção. Havia urnas funerárias elaboradas, comércio e uma densidade demográfica de escala urbana. Acredita-se que a monocultura era praticada, além da caça e da pesca intensivas, a produção intensiva de raízes e o armazenamento de alimentos.

Crônicas do início do período colonial são empregadas na reconstrução das antigas civilizações brasileiras. Muitos cronistas descreveram elementos indígenas desse período. A dissolução dessas organizações sociais normalmente é relacionada à conquista, que teria abalado sua estrutura demográfica.

Arte Tapajônica

A cerâmica produzida por estas civilizações é classificada em dois grupos principais: o Horizonte Policrômico e o Horizonte Inciso Ponteado. São exemplos do Horizonte Policrômico os Marajoaras (foz do Amazonas) e os Guarita (Médio Amazonas), entre outros localizados fora da Amazônia brasileira. Exemplos do Horizonte Inciso Ponteado são Santarém (Baixo Amazonas) e Itacoatiara (Médio Amazonas). Acredita-se que o Horizonte Inciso Ponteado estivesse associado aos antepassados dos povos de língua Caribe, enquanto o Horizonte Policrômico teria sido produzido pelos antepassados dos povos de língua Tupi.

Grandes sítios amazônicos da época dos cacicados complexos parecem ter tido regiões especializadas para o enterro, o culto, o trabalho e a guerra. A ocupação pré-histórica tardia do território era sedentarizada. A entrada do milho e de outras sementes na região, assim como sua popularização entre os americanos, data do primeiro milênio antes de Cristo.

VI.  Kuhikugu e Monte de Teso dos Bichos

6.1. Kuhikugu
No alto Xingu, grandes aldeias circulares eram construídas com urbanismo sofisticado e inovador. O sítio arqueológico de Kuhikugu, localizado no parque Nacional do Xingu, foi um grande complexo urbano e pode ter abrigado até 50.000 habitantes, antepassados dos atuais kuikuros. O sítio abriga construções complexas como estradas, fortificações e trincheiras para proteção.

À esquerda, reconstrução de Kuhikugu. À direita, uma aldeia kuikuro moderna.

Para alimentar a grande população, havia campos cultivados e pomares na cidade. Talvez a mais incrível descoberta seja a de barragens para a criação de peixes. Como a descoberta é recente, estudos sobre as formas de vida dessas populações ainda são necessários. Os estudiosos acreditam que esse povo cultivava a mandioca.

Kuikuros: prováveis descendentes dos habitantes de cacicados complexos como o Kuhikugu.

O desaparecimento dessa civilização, assim como de outras grandes civilizações amazônicas, é relacionado à entrada de doenças europeias no continente. As características naturais da floresta Amazônica explicariam porque os antigos europeus não travaram contato com esta civilização brasileira.

6.2. Monte de Teso dos Bichos
O Monte de Teso dos Bichos, localizado na Ilha de Marajós, é o local onde floresceu uma das mais elaboradas civilizações da Amazônia pré-cabralina, ocupando 2,5 hectares. Ali, entre 400 a.C e 1300 d.C, existiu uma população, estimada entre quinhentas e mil pessoas, que fazia parte de um complexo de povoados pertencentes a uma sociedade de tuxauas. Essa sociedade apresentava um alto desenvolvimento tecnológico e uma ordem social bem definida. As mulheres encarregavam-se dos trabalhos agrícolas, cuidavam do preparo da alimentação e habitavam casas coletivas. Os homens cuidavam da caça, da guerra, das práticas religiosas e e viviam em habitações masculinas próximas ao centro cerimonial, constituído de uma plataforma de barro.

Uma das características marcantes das sociedades complexas da Ilha de Marajós são os “tesos”, aterros artificias de grande porte construídos para a colocação de habitações, provavelmente para evitar inundações. Os tesos marajoaras são considerados estruturas monumentais e, por esse motivo, são essenciais para a interpretação do passado marajoara.

VII. Período Pré-Cabralino Recente
A história do Brasil pré-cabralino recente costuma ser estudada através das línguas nativas. O estudo sobre as línguas nativas permite compreender aspectos dessas culturas, seus parentescos históricos e suas migrações. Quando cronistas europeus descreveram os antigos povos brasileiros, utilizaram sobretudo denominações linguísticas e, graças ao trabalho missionário de alguns jesuítas, temos hoje conhecimento das antigas línguas brasílicas.

Família de um chefe Camacã se prepara para uma festa. Obra de Jean-Baptiste Debret. O original é em preto e branco.

Resta a tarefa de associar os achados antigos aos povos recentes, que conhecemos a partir de grupos linguísticos. Apenas um grande grupo pré-cabralino recente foi associado aos achados antigos: os grupos da família linguística Tupi-Guarani. Estes dominavam o atual litoral brasileiro, conhecido por Pindorama. Outra fonte para a reconstrução da história recente dos povos pré-cabralinos é a mitologia indígena. É possível estabelecer relações entre os elementos dos mitos e acontecimentos que consideramos históricos. As fontes mitológicas tem sido empregadas para estudar movimentos migratórios e as relações estabelecidas entre os povos brasileiros e o Império Inca, por exemplo.

Quando os europeus passaram a ocupar a costa oriental da América do Sul, encontraram etnias vinculadas a quatro principais grupos linguísticos: arawak,  tupi-guarani, jê e karib. Dentro de um mesmo grupo linguístico havia diferentes unidades identitárias possuindo dialetos, práticas culturais e filosofias próprias.

Múmia de um chefe de Coroados. Obra de Jean-Baptiste Debret. O corpo está dentro de uma urna funerária.

7.1 Macro-Tupi
Um dos grandes grupos linguísticos do Brasil, que parece ter se expandido imensamente sobre o território brasileiro antes de 1500. Devem ter primeiramente habitado a região das cabeceiras dos rios Madeira, Tapajós e Xingu. A expansão Tupi-Guarani aconteceu há 3~2 mil anos, pouco depois desse grupo ter se diferenciado de outros na região entre o Xingu e o Madeira, formando novos subgrupos linguísticos que expandiram por toda a América: os Kokama e os Omágua até o rio Amazonas, os Guaiaki até o Paraguai, os Xirinó à Bolívia, Tapirapés e Teneteharas se deslocaram em direção ao nordeste, os Pauserna, Kajabi e Kamayurá até o extremo sul do Brasil, os Oyampi até a região das Guianas. A última fase de dispersão dos Tupi-Guarani ocorreu por volta do ano 1000. Os falantes de línguas associadas ao Tupi-Guarani estariam já instalados no sul do Brasil, na bacia amazônica e também no litoral do país (potiguaras, tupinambás, tupiniquins). A maior parte dos artefatos arqueológicos desses povos são datados entre o ano 500 e o ano 1500. A extensão para o litoral é constatada pela maior concentração de artefatos nessa região entre os séculos XI e XIII.

Cunhambebe, chefe tupinambá historicamente conhecido por liderar a Confederação dos Tamoios numa negociação de paz com os portugueses, representados pelos jesuítas Nobrega e Anchieta.

Dados linguísticos permitem avaliar essas sociedades como expansivas e em constante movimento. Graças a uma impressionante rede hidroviária fluvial, os povos desse grupo linguístico puderam se difundir e, ao mesmo tempo, manter contato uns com os outros. O uso de canoas (ygara em tupi antigo) para navegar rios permitia o envio de missões militares e diplomáticas de uma região para outra. Muitos artefatos arqueológicos do período cerâmico são filiados a esses povos. Os sítios arqueológicos associados a essas populações constituíam-se em aldeias extensas, normalmente localizadas em regiões de planalto ou em terraços. Nesses sítios arqueológicos a cerâmica é abundante, as unidades habitacionais são cabanas de até 60 m² de diâmetro e as áreas dos sítios são definidas em espaço cerimonial, público e residencial. O espaço dos vivos é separado daquele dos mortos. A arqueologia identificou sepultamentos em urnas e outros em terra. Artefatos líticos são encontrados junto dos sepultamentos.

7.2 Macro-Jê
As línguas associadas à matriz linguística Macro-Jê devem ter sofrido diferenciação por volta de 6 mil anos atrás. Sua expansão inicia-se há 3 mil anos, pela Região Centro-Oeste do Brasil. O grupo Jê propriamente dito é possivelmente originário das regiões das nascentes dos rios São Francisco e Araguaia. Grande parte dos povos de língua Jê se afastaram dos Kaingang e Xokleng, seguindo para o sul da região central brasileira. Alguns grupos devem ter se separado destes últimos e seguido até a região amazônica há pelo menos mil anos atrás. Os povos Jês preferiam se instalar em regiões de Planalto, como nos permite constatar o estudo de suas línguas. Alguns grupos jês são Kayapós, Xerentes e Timbiras.

Índia Xerente.

7.3 Karib
Os povos de língua Karib também passaram por um processo de expansão há 3 mil anos. Essa família linguística é talvez originária da região das guianas e do extremo norte do Brasil. Os Yupka e os Karijona, remificações dessa família linguística, teriam se diferenciado e migrado para a Colômbia, enquanto os Bakairi teriam seguido para o centro do Brasil. O empréstimo de termos Tupi nas línguas Karib (e vice-versa) aponta para a existência de redes complexas de comércio e tráfico de pessoas entre tais povos.

Índios Bakairi em dança ritual.

7.4 Arawak e outros
As línguas de matriz Arawak concentram-se hoje na região sudoeste da Bacia amazônica. A principal família linguística associada a esse grupo é a Maipure, dividida em quatro subgrupos regionais.

Taínos, povos de língua arawak que habitam certas regiões do Caribe.

Existe grande polêmica em relação às origens, às migrações e aos descendentes desses povos, além de suas relações com outros grupos linguísticos do Brasil Antigo.

Outros grupos linguísticos menores, sem parentescos com os outros maiores, são os Mura, Chapkura, Pano, Yanomani, etc.

VIII. Pindorama
Segundo Luís da Câmara Cascudo, os tupis foram o primeiro agrupamento indígena que teve contacto com os portugueses. A influência tupi se deu na alimentação, no idioma, nos processos agrícolas, de caça e pesca, nas superstições, costumes, folclore, etc. Os povos do grupo Tupi-Guarani habitavam a região chamada por eles de Pindorama (terra das palmeiras). Sabemos os nomes de alguns dos principais grupos que habitavam Pindorama na véspera da chegada europeia: os potiguaras, os tremembés, os tabajaras, os caetés, os tupiniquins, os tupinambás, os aimorés, os goitacás, os tamoios, os carijós e os temiminós.

Os potiguaras habitavam a região entre o Rio Acaraú e o Rio Paraíba e controlavam a navegação fluvial. Durante a conquista, aliaram-se aos franceses, sendo que alguns relatos falam de casamentos entre potiguaras e franceses, envolvendo acordos bélicos anti-portugueses. Os Tabajaras habitavam a margem meridional do rio Paraíba, na região atual do litoral pernambucano. Foram importantes aliados dos portugueses durante a conquista. Os Caetés habitavam a região de Pernambuco desde Olinda, até onde encontra-se hoje o estado de Alagoas. Tornaram-se célebres na História do Brasil por terem devorado o Bispo Sardinha. Os Tremembés habitavam a margem ocidental do rio Acaraú. Os tamoios habitavam a Baía da Guanabara; seus líderes, Cunhambebe e Aimberê, aliaram-se com os franceses no combate aos portugueses. Os carijós habitavam o litoral sul do país. Os tupiniquins habitavam a atual região do Estado de São Paulo, e os Tupinambá a região sudeste do Brasil. Nosso conhecimento do tupi antigo é principalmente baseado na língua dos Tupinambás.

Os povos tupis viviam em aldeias que reuniam de 600 a 700 habitantes. Algumas aldeias eram fortificadas em razão das guerras inter-tribais. Nenhuma autoridade aparecia com força absoluta ou consideravelmente forte sobre os outros integrantes da sociedade, embora houvesse hierarquias em função do gênero, do mérito guerreiro e dos poderes xamânicos. Os Pajés (Paye em tupi antigo) e os Caciques (morubixaba em tupi antigo) ocupavam  o papel de autoridades das tribos. A subsistência baseava-se na caça e na horticultura. Os homens acreditavam em bons e maus espíritos (tupã, anhang, etc.) que influenciavam os acontecimentos no cosmos. Cada homem trazia um maracá, no qual acreditavam habitar um espírito protetor de cada indivíduo. Acredita-se que apenas os filhos dos homens mais importantes da tribo fossem enterrados nas urnas funerárias. Os acontecimentos religiosos tinham alcance amplo, e reuniam diferentes etnias. Os antigos indígenas foram responsáveis por inúmeras manifestações artísticas, como peças de cerâmica, danças, canções, poesias (registradas por Léry) e a plumária extremamente sofisticada e rica. A Literatura Tupi aparece com a chegada da escrita europeia, quando missionários passam a escrever em tupi para converter os nativos, e as crônicas transcrevem canções indígenas.

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FONTES E REFERÊNCIAS:

Web

Livros, revistas, artigos e entrevistas

A Conquista do Brasil (Parte I)

As estimativas referentes à população indígena do território brasileiro em 1500 variam entre 1 e 10 milhões de habitantes. Estima-se que na costa viviam entre 2 e 6 milhões. As estimativas para todo o continente americano são igualmente controversas, variando de 30 milhões à 60 milhões, ou até 100 milhões em alguns casos. Mas como será que toda essa gente chegou aqui? Bom, antes de investigarmos como o Brasil foi povoado, precisamos entender como o homem chegou às Américas.

Migrações humanas: o povoamento das Américas

Do ponto de vista da teoria do povoamento tardio, os paleoamericanos entraram no continente durante a última glaciação, que permitiu a passagem para o Novo Mundo através da Beríngia. Este evento ocorreu entre 14 mil e 13 mil anos antes do presente (AP). A teoria do povoamento primitivo diz que os humanos chegaram à América muito antes, baseando-se no descobrimento de restos cuja datação por carbono 14 dão uma antiguidade maior que 14 mil anos antes do presente (AP). A pesquisa paleoantropológica se soma à informação produzida pela genética, que serviu para reforçar algumas conjecturas sobre a origem dos americanos.

A Ponte da Beríngia, hoje submersa no Estreito de Bering, teria sido o que permitiu a migração dos humanos da Ásia para as Américas. As pesquisas genéticas comprovam uma ancestralidade comum entre mongóis e índios norteamericanos.

Depois que os paleoamericanos entraram no continente, a passagem da Beríngia foi coberta novamente pelo mar, de modo que ficaram praticamente isolados do resto da humanidade.

I. Teoria do povoamento pela Ponte de Bering, o corredor livre de gelo e o Consenso Clovis

Se encontra  provado que durante a última glaciação, a Glaciação de Würm ou Wisconsin, a concentração de gelo nos continentes fez baixar o nível dos oceanos em uns 120 metros. Esta baixa faz com que em vários pontos do planeta se criassem conexões terrestres, como por exemplo Austrália-Tasmânia com Nova Guiné; Filipinas e Indonésia; Japão e Coréia.

Um destes lugares foi Beríngia, nome que recebe a região que compartilham Ásia e América, na zona em que ambos os continentes estão em contato.

Existia então uma ponte terrestre entre a Ásia e o Alasca, que apareceu quando as geleiras do último período glacial estavam em seu máximo. A falta desta água reduziu o nível do mar de Bering em mais de 90 metros, bastantes para converter o estreito em uma ponte de terra que unia os dois continentes.

Surge então a teoria do “corredor livre de gelo”. Segundo esta teoria, nos instantes finais da última glaciação, começaram a derreter-se partes das duas grandes placas de gelo (Placa Laurentina e Placa da Cordilheira) que cobriam o Canadá, abrindo um corredor livre de gelo de uns 25 km de largura. Uma vez aberto o corredor, os seres humanos que estavam em Beríngia poderiam avançar até o interior da América e dirigir-se ao sul. A teoria foi amplamente aceita como parte integrante do Consenso de Clovis.

Esta teoria se articulou com os descobrimentos da Cultura Clovis que datavam do ano 13.500 AP e da qual teriam descendido todas as demais culturas americanas. Esta explicação, conhecida atualmente como teoria do povoamento tardio ou Consenso Clovis, foi aceita de forma generalizada durante a maior parte da segunda metade do século XX.

Mais recentemente tem se fortalecido a possibilidade de que os povoadores da América provenientes da Beríngia tenham utilizado uma rota alternativa até o sul contornando a costa.

II. A crise do Consenso Clovis

A partir das últimas décadas do século XX, as teorias combinadas que constituem o consenso Clovis entraram em crise e tem se questionado a antiguidade da chegada do homem à América.

Cada vez existe mais evidência incontestável de presença humana na América anterior a 14.000 anos AP. A evidência descoberta em Monte Verde (Chile) por Tom Dillehay é incontestável, e foi datada em 12.500 anos AP (Monte Verde I) e 33.000 anos AP (Monte Verde II).  Por sua antiguidade próxima ao ano máximo do consenso Clovis, sua localização no outro extremo do continente, e a ausência de similitudes com a cultura Clovis, o reconhecimento generalizado de Monte Verde supõe o fim da teoria do povoamento tardio como teoria hegemônica na arqueologia do povoamento da América.

Ilustrações das três principais teorias sobre o povoamento das Américas: via Beríngia, via Austrália e via Malásia-Polinésia.

III.  Novas teorias, novos achados e novos estudos

O atual debate sobre a chegada do homem à América se caracteriza pela variedade de teorias e subteorias, os resultados contraditórios, a quantidade de estudos e contraestudos.

Desde a década de 1980, a pesquisa genética tem ocupado um lugar cada vez mais destacado. Os geneticistas utilizam o DNA mitocontrial (DNAmt) para seguir a linhagem feminina e o cromossomo Y (DNA-Y) para seguir a linhagem masculina.

Em 1981, se estabeleceu o mapa do DNA mitocondrial e, em 1990, Douglas C. Wallace determinou que 96,9% dos indígenas da América estavam agrupados em quatro haplogrupos mitocondriais (A, B, C, e D), o que significa uma notável homogeneidade genética.

Em 1994, James Neel e Douglas C. Wallace estabeleceram um método para calcular a velocidade em que muda o DNA mitocondrial. Este método permitiu datar a origem do Homo sapiens entre 100.000 e 200.000 anos AP e a saída da África entre 75.000 e 85.000 anos atrás. Aplicando este método, Neel e Wallace estimaram em 1994 que o primeiro grupo humano a ingressar na América o fez entre 22.414 e 29.545 anos atrás.

O mapa da migração humana, de acordo com os haplogrupos identificados pela genética.

O geneticista argentino Néstor Oscar Bianchi analizou a herança genética paterna em comunidades indígenas sulamericanas e concluiu que até 90% dos ameríndios atuais derivam de uma única linhagem paterna fundadora que denominou DYS199T e que colonizou a América desde a Ásia através da Beríngia há uns 22.000 anos.

Mais recentemente, o geneticista estadunidense Andrew Merriwether sustentou que a evidência genética sugere que a América foi povoada por uma só população proveniente da Mongólia, como sustentava Aleš Hrdlička. A razão disto é que na Sibéria os haplogrupos A e B quase não se encontram presentes, enquanto na Mongólia se encontram os quatro principais haplogrupos indoamericanos (A, B, C e D), salvo o X.

Merriwether destaca que os 4 haplogrupos se encontram presentes em toda a América, mas que dentro deles podem localizar-se mutações genéticas diferentes, segundo se trate de indígenas da América do Sul ou do Norte. Isto sugeriria que, uma vez entrando na América, alguns grupos migraram rapidamente até a América do Sul, enquanto outros povoaram a América do Norte e a América Central. Por sua vez, as mutações genéticas mostram migrações entre a América do Sul e a América Central (Panamá e Costa Rica), mas não mais além.

Em 2007, um grupo de geneticistas estimou que a saída da Beríngia deve ter-se produzido seguindo a rota costeira do Pacífico, em um período que inicia há mais ou menos 19–18 mil anos e termina até mais ou menos 16–15 mil anos.

IV. A antiguidade
A antiguidade do homem na América está sujeita à grande controvérsia científica. A data mais tardia é a que sustentam os defensores da teoria do povoamento tardio e está relacionada com a Cultura Clovis, que estabeleceu sem dúvidas uma presença humana há 13.500 anos. Os defensores desta teoria sustentam que a data de entrada ao continente não pode ser posterior a 14.000 AP. Porém diversas investigações científicas tem proposto datas muito diferentes e bem mais antigas, de 60.000 AP (Pedra Furada – Brasil) à 33.000 AP (Monte Verde II – Chile).

Pintura rupestre na Toca do Boqueirão da Pedra Furada.

A data mais antiga proposta até o momento foi publicada pelos cientistas brasileiros Maria da Conceição de M. C. Beltrão, Jacques Abulafia Danon e Francisco Antônio de Moraes Accioli Doria, que sustentam ter encontrado algumas ferramentas de quartzito no sítio de Toca da Esperança, que foram datadas em 295.000 a 204.000 anos de antiguidade, o que indicaria presença humana anterior ao Homo sapiens. Para Maria Beltrão e Rhoneds Aldora Perez, foi possível um povoamento humano na América anterior ao Homo sapiens, há mais de 300 mil anos durante a glaciação illinoiense, realizada por alguma variante do Homo erectus, com uma indústria lítica de bordas e lascas. De qualquer forma, não foram encontrados fósseis humanos nem apresentadas outras provas que confirmem isto.

V. América do Sul primeiro?
Um dos elementos que tem chamado a atenção de alguns pesquisadores é a presença de sítios de grande antiguidade na América do Sul e a escassa quantidade dos mesmos na América do Norte. O dado é chamativo porque, se a América foi povoada desde a Sibéria, os sítios mais antigos deveriam achar-se no norte.

Alguns estudos tem detectado entre os paleoíndios sulamericanos e norteamericanos diferenças em matéria de genes e fenótipos: os do sul com traços mais australóides e os do norte mais mongolóides. Estes elementos tem causado uma crescente adesão de alguns investigadores à hipóteses de um povoamento autônomo da América do Sul, não proveniente da América do Norte. Esta hipótese se relaciona estreitamente com a teoria da entrada pela Antártida desde a Austrália.

VI. Outras teorias, outras rotas possíveis propostas

Península de Kamchatka-ilhas Aleutas-Península de Alasca-Arquipélago Alexander-Ilha de Vancouver. Procedência asiática. Teriam utilizado embarcações muito primitivas para o transporte e viagem.

Oceania-Antártida-América do Sul. Também teriam utilizado balsas. O antropólogo português A. Mendes Correia, que sustentou esta hipótese em 1928, descartou outras rotas de migração.

Melanésia-Polinésia-América. Também teriam utilizado balsas primitivas. O antropólogo francês Paul Rivet, que desenvolveu esta teoria em 1943, disse que o homem americano é de origem multirracial, e portanto não negava outra rota de imigração. Isto foi contrário aos desenvolvimentos de Aleš Hrdlička e Mendes Correia, que sustentaram que a procedência era de uma só raça.

Europa-Oceano Atlântico-América. Remy Cottevieille-Giraudet documentou entre 1928 e 1931 a hipótese da origem européia (Cro-Magnon) dos “peles vermelhas” (algonquinos). Em 1963, Emerson Greenman desenvolveu a rota hipotética da migração européia à América durante o paleolítico superior e a origem européia dos beotucos (beothuks) de Terranova. Bruce Bradley e Dennis Stanford repensaram em 1999 a existência desta migração baseados nas similitudes entre a indústria lítica solutrense e a Cultura Clovis, endossados pelas pesquisas de DNA mitocondrial realizadas por Michael Brown. A teoria, conhecida como Solução solutrense, supõe que antigos habitantes da Europa Ocidental navegaram pelo Atlântico da era glacial, deslocando-se entre os gelos flutuantes, de maneira parecida com a dos esquimós, até alcançar a costa ocidental da América do Norte.

Em 1950, o espanhol radicado na Argentina Salvador Canals Frau propôs a hipótese de quatro grandes correntes migratórias: a pé pela Beríngia, navegando em canoas pelas Ilhas Aleutas, navegando através do Oceano Pacífico para desembarcar na América Central e navegando através do oceano Pacífico para desembarcar na América do Sul.

Migração seguida de extinção. Também pode ter ocorrido uma ou várias migrações há 40.000 anos ou ainda mais antigas, que tenham deixado traços isolados desta presença, mas com o resultado de que estes grupos tenham logo sido extintos antes ou contemporaneamente a ondas migratórias humanas posteriores. A respeito desta razoável hipótese não existem confirmacões conclusivas, ainda que certamente ela permitiria compatibilizar a diversidade de teorias.

VII. Algumas conclusões provisórias
Apesar dos debates em curso e a grande quantidade de perguntas e contradições que se apresentam no debate científico atual é possível realizar algumas conclusões precárias:

  1. É altamente provável que o homem americano primitivo proceda do continente asiático, especialmente das estepes siberianas ou da região do Sudeste asiático.
  2. As culturas pré-históricas e as civilizações da América se desenvolveram de maneira isolada do resto do planeta.
  3. A Revolução Neolítica americana é original e não tem qualquer relação com a que se produziu na Mesopotâmia asiática.
  4. Não existem provas sérias da chegada à América do Norte de seres humanos logo depois do fechamento da Ponte da Beríngia há 11 mil anos (Scott A. Elias). Em 982 os vikings começaram a exploração da Groenlândia e do Canadá, mas sua penetração no continente não foi significativa.

OUTRAS PARTES DA SÉRIE:

FONTES E REFERÊNCIAS:

Web

Livros, revistas, artigos e entrevistas

  • Peopling the New World: a mitochondrial view. D. Andrew Merriwether entrevistado por Sheri Fink, Academy Briefings, New York Academy of Sciences, 1º de dezembro de 2004
  • Fagundes et al. Mitochondrial Population Genomics Supports a Single Pre-Clovis Origin with a Coastal Route for the Peopling of the Americas, The American Journal of Human Genetics (2008)
  • Bischoff, J.L., R.J. Shlemon, T.L. Ku, R.D. Simpson, R.J. Rosenbauer, & F.E. Budinger, Jr., 1981 Uranium-series and Soils-geomorphic Dating of the Calico Archaeological Site, California, Geology V9 (12)
  • Simpson, Ruth D.; L. Paterson & C. Singer (1986). Lithic Technology of the Calico Mountains Site, Southern California; A. Bryan (ed.) New Evidence of the Pleistocene People of Americas: 89-105. Orono (Maine): center of Study of the Early Man.
  • Payen, L. (1982). Artifacts or geofacts at Calico: Application of the Barnes test; J. Ericson; R. Taylor & R. Berger (eds.) Peopling of the New World: 193–201. Los Altos, California: Ballena Press.
  • Irving, W.L. A. Jopling & B.F. Beebe (1986). Stratigraphic, sedimentological and faunal evidence for the ocurrence of Pre-Sangamonian artefacts in Northern Yukon; Artic 34 (1): 3-33.
  • Beltrão, Maria da Conceição de M. C.; Jacques Abulafia Danon e Francisco Antônio de Moraes A. Doria (1987). Datação absoluta a mais antiga para a presença humana na América, Editora UFRJ.
  • Beltrão, M.C. de M.C. e Rh. A. R. Perez (2007). O Homem nas Americas; XX Congresso Brasileiro de Paleontologia, Rio de Janeiro.
  • Mann, Charles C. (2006). 1491: una nueva historia de las Américas antes de Colón. Madrid:Taurus, pag. 232-234.
  • Canals Frau, Salvador (1950). Prehistoria de América. Buenos Aires: Sudamericana.