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Published on Sep 15,2021
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Published on Sep 15,2021
Revista IPSIS VERBIS
Revista IPSIS VERBIS
Title proper: Ipsis verbis.

Abbreviated key-title: Ipsis verbis (Luanda)

Other variant title: Revista ipsis verbis

Original alphabet of title: Extended roman

Subject: UDC : 81

Subject: Linguistics and languages

Corporate contributor: CaLP_UCAN

Corporate contributor: Universidade Catolica de Angola (ISNI: 0000000122231772)

Corporate contributor: Cátedra de Língua Portuguesa da Universidade Católica de Angola

Corporate contributor: UCAN (ISNI: 0000000122231772)

Publisher: Luanda: Universidade Catolica de Angola

Dates of publication: 2021- 9999

Frequency: Annual

Type of resource: Periodical

Language: Portuguese

Country: Angola

Medium: Online

Indexed by: ROAD
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Língua portuguesa: ciências da linguagem, ensino e literatura Revista 1

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Revista N.º 1 UCAN 2021 3

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Comissão Editorial António Fernandes da Costa Maria Helena R. P. Santos Miguel Ana Bela Pereira Loureiro Artur Osvaldo dos Santos Afonso Miguel Conceição Garcia Neto Comissão Científica António Fernandes da Costa Afonso Miguel Comissão de revisão António Fernandes da Costa Afonso Miguel Endereço Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ISSN: 2788-8207 Data de registro: 27/05/2021 Centro ISSN Original: CIEPS - ISSN Patrono – D. José Manuel Imbamba, Magno Chanceler da UCAN. Editor UCAN Capa Periodicidade: anual 4

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ÍNDICE 3 Apresentação I. A escrita como prática sociocultural e tecnológica Aperfeiçoamento da escrita dos futuros professores: uma experiência 9 com os graduandos no Instituto Superior de Ciências da Educação de An- gola. Manuel Mwanza 19 Mitos culturais acerca da ortografia e seu impacto social. Marcos Bagno II. O Acordo Ortográfico de 1990 e as novas grafias 35 A Unificação Ortográfica do Português como Exercício de Soberania Par- tilhada sobre a Língua. João Veloso III. Questões controversas das novas grafias. Soluções pontuais 53 A Negação do Acordo Ortográfico de 1990: Leituras e Alternativas António Fernandes da Costa 69 Sobre o uso do hífen em derivados prefixais e compostos Maria do Céu Caetano 5

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IV. Os sistemas de escrita das línguas bantu e da língua portuguesa: convergências e divergências 81 As línguas bantu também se escrevem: suas especificidades em relação à língua portuguesa Peres Sasuku 101 Princípios de integração ortográfica de empréstimos lexicais das línguas bantu de Angola no português Afonso Miguel V. O imperativo de contextualização (coexistência língua portu- guesa / línguas bantu) do ensino do português em Angola 131 Glotopolítica e ensino bilingue em Angola: subsídios para uma política lin- guística consequente Mª Helena Santos Miguel, Artur Osvaldo dos Santos 158 A língua portuguesa em Angola. Factor de coesão social: glotofágica e ban- tuófona entre falantes lusófilos e lusófobos Paulino Soma Adriano VI. A política educativa, as autarquias e o ensino das línguas: manutenção ou mudança? 173 Moçambique: o Papel das Línguas, a Educação e o Processo da Descentralização Samaria Tovela 187 O Ensino das Línguas e a Institucionalização do Poder Local em Angola: perspectivas, desafios e oportunidades Gildo Matias José VII. O papel da Literatura na difusão da língua portu- guesa 203 A Dialéctica da Literatura: da Proficiência Linguística à Distensão Humanista da Consciência José Luís Mendonça 6

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Apresentação Ipsis Verbis representa uma revista de periodicidade anual da Cátedra de Lín- gua Portuguesa da Universidade Católica de Angola (CaLP_UCAN), criada em 2020, em suporte virtual, sem prejuízo de vir a ser publicado em suporte físico, em qualquer ocasião. Trata-se de um órgão académico de divulgação científica, ligado à promoção e difusão da Língua e Literatura Portuguesas, de cariz internacional. Existe, na UCAN, um veículo de comunicação científica pluridisciplinar, a revista Lucere, e, mais recentemente, foi lançado um órgão mais específico de análise científica, a revista Juris, ligada aos Estudos Jurídicos. Contudo, não existe nenhum veículo de comunicação técnica e científica ligado à Linguística Portuguesa, aos pro- blemas do ensino da Língua Portuguesa, aos Estudos Literários, apesar da transver- salidade e da importância do Português, enquanto instrumento de trabalho indispen- sável ao ensino e aprendizagem em geral e à actividade social, política e económica do país. A revista Ipsis Verbis vem preencher esta lacuna, não obstante a sua natureza, um veículo de comunicação virtual, por enquanto. Constitui uma revista aberta ao público em geral, pelo que não se restringe a um grupo de docentes de Língua e Literatura Portuguesas. Estes têm certamente a principal responsabilidade em manter a revista viva, mas qualquer indivíduo poderá participar não só como leitor, mas também como interventor. O Director da CaLP_UCAN António Fernandes da Costa Professor Catedrático 7

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A escrita como prática sociocultural e tecnológica 8

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Aperfeiçoamento da escrita dos futuros professores: uma expe- riência com os graduandos no Instituto Superior de Ciências da Educação de Angola. Manuel Muanza (ISCED-Luanda) https://orcid.org/0000-0002-8270-0996; [email protected] RESUMO O presente trabalho tenciona responder à questão que se prende com os instrumentos didácticos adequados à construção das competências e das habilidades dos estudantes da graduação, tendo em perspectiva a inserção dos futuros docentes em actividades profissio- nais que exigem a produção de textos em português. Descreve-se a experiência de uma prática pedagógica que visou buscar soluções a um problema de expressão escrita deficiente detectado nos textos dos estudantes inscritos no terceiro ano da graduação, curso de ensino da língua portuguesa (no Departamento de Lín- gua Portuguesa adstrito ao Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda), cadeira de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Os resultados parciais (do estudo iniciado em 2018 e ainda em andamento em 2019 e 2020) demonstram que a prática de textualização estruturada em leitura e redacção livre de textos concorre para, no plano psicopedagógico, estimular a sensibilidade dos estudantes para a absorção dos esquemas de coesão e dos requisitos de coerência. Palavras-chave: Competência redaccional. Estratégia pedagógica. Coesão. Coerên- cia. Escrita. No terceiro ano da graduação, penúltima etapa do curso na área de ensino da língua portuguesa, observamos um problema de competência redaccional nos textos produzidos pelos futuros professores integrados em duas turmas e inscritos no Departamento de Língua Portuguesa, no ano lectivo de 2018, no Instituto Superior de Ciências da Educação de Lu- anda (ISCED). Em relação ao problema detectado, registamos incompatibilidades entre os elementos constitutivos dos enunciados, expressos na falta de clareza, o que denuncia ausência de 9

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coesão. Outro aspecto do problema refere-se à organização dos termos na frase, mais con- cretamente à ordem dos elementos constitutivos dos enunciados, o que se reporta ao campo da incoerência. O registo de todos os domínios em que os estudantes revelaram fraquezas ocorreu ao longo das sessões lectivas dedicadas à avaliação diagnóstica. O propósito desta avaliação, como se sabe, é o de produzir informação destinada a orientar a busca de indícios conducentes ao alargamento da compreensão do problema. O conhecimento assim adqui- rido permitiu concretizar a outra função do diagnóstico: a de concorrer para melhorar a prática do sujeito observado, decidindo que tipo de instrumentos e técnicas a utilizar para actuar sobre o fenómeno. A informação recolhida congregou elementos que permitiram saber de que conhecimento prévio dispunha o estudante sobre, no caso em estudo, os vários domínios da construção do texto; ilustrou, também, o grau de motivação de cada estudante. Tomando a falta de coesão e a incoerência textual como pontos de partida para a busca de estratégias com vista a mediar a prática da textualização com estudantes, não concentramos a nossa atenção no teor do discurso académico que os estudantes estariam obrigados a dominar, conceito visto na perspectiva de “um saber determinado e organizado de maneira particular”. (BRITTO, 1988, p. 20). Privilegiamos a verificação das competên- cias e habilidades no domínio da expressão escrita, sendo a primeira categoria encarada como habilidade no sentido geral e a habilidade seria a competência de ordem específica, na acepção de Macedo (2005, p. 71). A estratégia a que se alude aqui tem a ver com a ”forma como se articulam diversos recursos (destrezas, habilidades, técnicas, materiais, etc.) para se obter um comportamento eficaz face a uma dada situação” (PINTO: 2007, 9) Consideramos que a textualização geraria duas componentes da acção cuja operaci- onalização proporcionaria aos estudantes uma oportunidade para adquirirem competência textual. A leitura seria a primeira componente da acção. A prática da redacção seria a se- gunda. Esta última traduzir-se-ia em utilizar os conteúdos lidos como bases para grupos de discussão temática e para, no final da discussão, cada estudante dedicar-se a elaborar livre- mente textos (relatórios, resenhas, pequenos ensaios ou sínteses dos estudos lidos). O nosso propósito foi o de conseguir que os estudantes, influenciados pela clareza e qualidade de escrita da bibliografia lida, e motivados pela liberdade de expressão oral nas discussões, produzissem textos aceitáveis no plano da coesão e coerência. Por se situarem na etapa final da graduação, estando, teoricamente, disponíveis para ingressar na carreira e exercer a função de ensinar (educar e instruir) língua portuguesa, é evidente que a principal exi- gência (prévia) imposta aos futuros docentes tem a ver com o uso prático da língua, pois o português e o conhecimento dos mecanismos do seu funcionamento constituem a ferra- menta diária do profissional no caso que estamos a estudar. 10

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Os resultados das actividades executadas pelos estudantes representam uma recusa ao alinhamento no caminho da culpabilização que visa tão-somente elencar as causas das dificuldades dos estudantes no domínio da expressão escrita. Fizemos o percurso inverso: elaboramos estratégias para a busca da solução (hipotética), a qual consistiu em elevar o nível do discurso escrito. De facto, o uso do português na universidade e a consequente falta de capacidade verbal escrita por parte dos estudantes da graduação suscita várias abordagens. Em Angola, é lugar-comum relacionar o fenómeno com a baixa qualidade de formação daqueles que se dedicam à preparação dos aprendentes na escola primária, onde se fornecem as bases para a competência comunicativa. Esta visão veicula um contra-senso, pois a preparação dos docentes em serviço na instrução primária processa-se nas instituições de ensino superior. Por outras palavras, se nas classes iniciais do sistema de educação e instrução estão identi- ficados os agentes menos preparados na modalidade escrita da língua, a Universidade só pode atribuir responsabilidades a si própria, visto ser ela a entidade construtora do conhe- cimento e de soluções inovadoras destinadas a melhorar processos sociais, além de assu- mir-se, no caso em alusão, como lugar de formação dos docentes, os quais tende a censurar. Esta refutação da tentativa de explicação do insucesso do exercício da escrita na escola primária vale também para os níveis subsequentes do sistema de ensino. No contexto de Angola, mau grado o desemprego acentuado entre os graduados da área da educação, a acumulação da carga horária em duas, três e até mais instituições de ensino (médio e supe- rior) por um só docente, nas zonas urbanas, está enraizada e tolerada de facto, se bem que interdita de jure, à luz dos textos reitores. A expansão dos estabelecimentos de ensino uni- versitário de iniciativa privada cujos termos de contratos de trabalho excluem encargos sociais, além de caucionar a precariedade da profissão, reduz a missão do docente a um prestador de serviço remunerado à hora, o que corrói a essência da sua missão do docente. Parece-nos, por isso, pertinente questionar a seriedade da prática pedagógica de quem as- sim se reparte, uma vez considerados os factores que limitam a capacidade humana. O primeiro factor tem a ver com a mobilidade nas principais cidades do país, desprovidas de redes de transporte colectivo e sem veículos à alta velocidade susceptíveis de favorecer uma melhor gestão do tempo, outro facto a ter em conta. O desperdício do tempo na des- locação do docente confina a actividade lectiva a alguns escassos minutos que este investe fugazmente na transmissão de informações em vez de instruir o estudante por via do exer- cício do seu papel mediador entre o estudante e o conhecimento. Nessas condições, o estu- dante assume a função de mero consumidor amorfo dos enxertos injectados pelo docente. A planificação dos conteúdos, a organização, verificação e correcção das estratégias de 11

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ensino acabam por ser, obviamente, prejudicadas. Nas circunstâncias acima descritas, a avaliação da aprendizagem, entendida como sistema de procedimentos conducentes à iden- tificação das competências e habilidades dos estudantes em relação ao uso da escrita em português, cede o lugar à medição, resumindo-se num único instrumento: a prova e o re- gistro dos resultados. Quanto a nós, a prova pertence ao rol dos instrumentos de avaliação, porém, por si só constitui “apenas um instrumento”, como ressalta Antunes (2010, p. 152). Tal como aludimos na parte introdutória deste trabalho, a falta de competência reda- cional dos futuros professores foi verificada por nós entre os estudantes integrantes de duas turmas. Ao todo, os candidatos a professor totalizam 67 estudantes inscritos no 3º Ano do curso de língua portuguesa assim repartidos: uma turma funcionou em regime regular (com 41 estudantes) e a segunda operou em regime pós-laboral (à noite, com 26 estudantes). Com a finalidade de propor soluções ao problema identificado, recorremos à prática de textualização, estruturada em dois campos: a leitura de estudos críticos (ensaios, rese- nhas, recensões) e a redacção de textos. Este modelo de organização do processo de ensino- aprendizagem não foi caracterizado pela presença absoluta do estudante na sala de aula. Repartimo-lo, por isso, em dois momentos de aprendizagem: o de contacto com o docente e o de trabalho independente do estudante. O primeiro consistiu em sessão lectiva semanal única na sala de aula. Nessa sessão procedeu-se à abordagem dos conteúdos referentes a uma temática e à identificação da bibliografia de apoio para o estudo. Daí cada estudante partiu para o trabalho independente que consumiu três semanas lectivas. A discussão te- mática (elaboração conjunta) realizou-se sempre na quinta semana a contar da sessão lec- tiva na sala de aula. No tempo intervalar entre esta e a discussão (elaboração conjunta) temática, os estudantes dispunham de aconselhamento ou tutoria. Por aconselhamento en- tende-se o contacto do estudante com o doente no intuito de buscar esclarecimento em relação aos conteúdos ou a outro tipo de questões. Tutoria tem a ver com o auxílio baseado na indicação do suporte bibliográfico e ligado a outras preocupações concernentes à orga- nização da busca da informação ou à preparação do relatório de leituras. Em síntese, a opção pelo modelo descrito aqui deveu-se ao facto de termos fixado como parte da estra- tégia a recusa do modelo dito “tradicional” de organização do processo de ensino-aprendi- zagem que se estrutura comummente pelo papel dirigente do professor e pelas acções cen- tradas, também, no próprio professor. No caso em análise, procurou-se desenhar uma lec- cionação em função do problema detectado e da hipótese de solução desejada, das circuns- tâncias em que o estudante realiza o processo de aprendizagem (mobilidade, custos, dispo- nibilidade de recursos pedagógicos, entre outras) e das características individuais de cada estudante. Teve-se, também, em conta a diversidade de recursos pedagógicos de que dispõe 12

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um estudante nas circunstâncias actuais da globalização, tais como a internet (por intermé- dio de aparelhos como computador, telemóvel, mediatecas e outros). Tais recursos não existem exclusivamente na instituição de ensino. Considerou-se, ainda, a possibilidade de acesso dos estudantes às bibliotecas públicas e às existentes noutros estabelecimentos de ensino superior. Partiu-se da perspectiva didáctica que almeja desenvolver no estudante a autonomia da acção mediada pelo professor e o espírito crítico. Em relação ao resultado final esperado, o de que o estudante seja capaz de produzir textos com coesão e coerência, partiu-se da perspectiva didáctica de que o caminho para a aquisição da competência tex- tual seria o que valoriza a “ressignificação” do erro como ponto de partida para a prática da textualidade apoiada pelo método combinado de elaboração conjunta, auto-aprendiza- gem, auto-análise e auto-avaliação. Vista assim a prática pedagógica, percebe-se que pro- curamos realizar estratégias, técnicas e utilizar meios de ensino com a finalidade de colocar o estudante no centro do processo. Os resultados do segundo momento de aprendizagem (o de trabalho independente do estudante), fundado na leitura de estudos críticos e textos literários, deram lugar à série de discussões temáticas por grupos e, ao final, à escrita de uma primeira versão de texto como actividade individual. A primeira versão de texto seria objecto de apresentação individual aos grupos de discussão, os quais se encarregavam de emitir críticas e contribuições. A versão final do texto de cada estudante seria entregue ao docente para a verificação, emi- tindo este, conforme os casos, recomendações no domínio de semântica e de sintaxe (coe- são) e no da organização do enunciado (coerência). No concreto, a estratégia pedagógica consistiu em organizar a prática da redacção por via da escolha livre por cada estudante de uma temática inserida num dos quatro tópicos para a elaboração de trabalhos de compilação de estudos críticos de obras literárias. A li- berdade de decidir visou proporcionar ao estudante oportunidade de assumir o protago- nismo quer na construção do conhecimento (conteúdos), quer na busca da informação com- plementar e na formulação de estratégias para redigir textos com coesão e coerência, ca- bendo ao próprio elaborar a “ressignificação da noção de erro” (Antunes, 2010: 22) nos casos em que, além da pobreza lexical, se revelaram problemas do domínio da sintaxe. As actividades estavam inseridas na cadeira de Literaturas Africanas em Língua Por- tuguesa e os quatro tópicos referidos no parágrafo anterior correspondiam, respectiva- mente, aos estudos críticos de textos literários de Cabo Verde (tópico 1), Moçambique (tó- pico 2), Guiné Bissau (tópico 3) e São Tomé e Príncipe (tópico 4). Os textos angolanos constituem matéria exclusiva de uma cadeira designada “Literatura Angolana”, razão por 13

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que os estudos críticos, embora sejam parte da área em questão, não figuravam na lista das opções das actividades. Pode colocar-se a questão sobre a razão por que se exercita a textualidade numa ca- deira relacionada com o estudo das literaturas da África de língua portuguesa, lugar que seria, à partida, exclusiva para problematizar a origem, evolução da produção literária e reflectir a propósito da dimensão social, cultural, histórica e política do facto literário. A resposta a este questionamento pode ser encontrada na abordagem interdisciplinar requerida nas tendências actuais da prática pedagógica. Aliás, estando o texto literário (como objecto de estudo da disciplina em causa) lavrado em português, faz sentido que as reflexões em torno da produção literária encontrem aí campo fértil para interligar a apren- dizagem do produto estético à aprendizagem da língua veicular, que é, ao mesmo tempo, o principal instrumento nas mãos do futuro professor de língua portuguesa. A resposta pode, ainda, advir da visão que explica os fundamentos de um dos chamados “quatro pilares da educação”. No que concerne ao “aprender a conhecer” (ou “ensinar a conhecer”), formula- se a perspectiva segundo a qual no processo de ensino-aprendizagem deve-se evitar centrar o conhecimento apenas nos conteúdos que dizem respeito a uma disciplina em leccionação, enveredando para caminho inverso, isto é, convocando outros saberes (Antunes, 2010: 99). Como resultado da prática assim invertida, espera-se obter uma aprendizagem significativa dos formandos que se traduza na interligação dos conhecimentos e na transformação destes por aquele que deles se apropriou como via para a realização das actividades que, por sua vez, operem transformações na sociedade. No caso concreto da prática da textualidade em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, estabeleceu-se como objectivo de ensino- aprendizagem a alcançar o de conseguir que os estudantes fossem capazes de redigir textos com coesão e coerência, visto o nível académico em que se situavam. Procurou-se, igual- mente, que ao longo das actividades e não apenas no final do estudo dos conteúdos plani- ficados o estudante procedesse à auto-avaliação da aprendizagem. Avaliando a aprendizagem Recorremos a diferentes fontes de informação para permitir que a avaliação das com- petências e das habilidades dos estudantes representasse vários momentos que, no con- junto, tivessem por finalidade a produção textual. Assim, o processo de avaliação incluiu anotações prévias do nível de conhecimento teórico e prático (“avaliação diagnóstica”) que propicia a interpretação de textos literários, a qualidade da expressão escrita e oral de cada 14

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estudante e o domínio sobre o acervo bibliográfico da especialidade disponível na biblio- teca da instituição. Outro momento da avaliação teve a ver com a verificação do progresso de cada estudante em relação a cada tipo de actividade atrás mencionada. As outras fontes de informação elencadas por nós foram, nomeadamente, os traba- lhos independentes (individuais) do estudante e as sessões em grupo. No ano académico de 2018, as actividades realizadas pelos estudantes em relação à prática da textualidade de- correram ao longo do 2º semestre lectivo (Agosto-Novembro). Já no de 2019, dados os resultados da leccionação no ano anterior, a prática da textualidade iniciou no 1º semestre. As actividades relatadas abaixo (ver quadro ilustrativo em apêndice), embora pareçam iso- ladas em ilhas, pela enumeração aqui feita por tópicos, representam apenas etapas do pro- cesso de ensino-aprendizagem (em relação à literatura de cabo-verdiana), não sendo com- partimentos estanques. Do ponto de vista metodológico, devem ser vistas como um todo. A planificação dos conteúdos em 2018, cujos resultados se descrevem neste trabalho, permitiu estruturar as actividades da seguinte maneira:  Organização de fichas de leitura, elaboração de uma lista das referências bibliográ- ficas do material (livros) lido na biblioteca (individual).  Em relação a esta actividade atendeu-se ao princípio da liberdade de escolha do local onde conviesse ao estudante, pelo facto de a biblioteca da instituição em que frequenta não ser a única apetrechada com os recursos pedagógicos desejados. Isto contribuiu para infundir um estado psicológico favorável à tomada de iniciativas por parte do estudante, contribuindo para criar nele a sensação de confiança e a responsabilidade no cumprimento dos prazos para a apresentação dos resultados colhidos.  Discussão em grupos temáticos (incluindo o contraditório e a correcção das pers- pectivas de interpretação dos conteúdos lidos). A discussão constituiu o momento em que se evidenciou a mediação exercida pelo docente entre os estudantes e os conhecimentos aprendidos e construídos por estes ao longo das actividades independentes. Embora cada estudante tenha delimitado o tema para a elaboração do texto apresen- tado à discussão (cuja versão final viria a submeter à avaliação do docente), a obrigatorie- dade de criar fichas de leitura buscando conteúdos relacionados com os quatro tópicos, organizá-los em função de cada um dos tópicos a fim de auxiliar na discussão, permitiu que os estudantes executassem actividades individuais a fim de dominarem as várias pers- pectivas críticas, elevando, assim, a capacidade de reflexão em torno dos textos críticos. A opção pela dinâmica da discussão em grupo, além de propiciar a partilha da informação 15

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com a finalidade de (com ela) realizar uma aprendizagem significativa, visou fomentar no estudante a cultura de falar a fim de melhorar a capacidade de observação (ouvindo), aná- lise (emitindo visão crítica) e argumentação (fundamentando abordagens). - Redação de textos por cada estudante em função dos trabalhos independentes e das contribuições recebidas durante as discussões. O procedimento que consistiu em permitir ao estudante decidir que modalidades de texto apresentar à discussão, entre as quais relatório ou notas de leitura, recensão ou outros, teve como resultado prático a percepção de que a prática da escrita se insere no conjunto de ocupações susceptíveis de serem do domínio de qualquer humano sem dotes especiais. - Sessões de apresentação da versão final do texto por cada estudante. Durante as discussões pediu-se que cada estudante anotasse as críticas e contribui- ções e realimentasse o respectivo texto (por ele redigido) com a finalidade de obter uma versão final a submeter ao docente. Numa derradeira discussão designada “sessão final de balanço do processo de ensino-aprendizagem”, cada estudante foi chamado para que ava- liasse o nível de correção linguística da escrita que produziu e o comparasse com textos por ele redigidos no semestre anterior à prática da textualidade e com outros textos que tenha produzido nos anos anteriores. Ao registrar os depoimentos dos estudantes, deu-se conta que as revisões ao texto cultivaram a clareza e a correção linguística, não tendo por motivação revelar a falta de competência textual dos seus autores. A estas conclusões parcelares relacionadas com os diferentes momentos da realiza- ção da estratégia adoptada para a busca de soluções ao problema de expressão escrita nos textos dos estudantes acrescem-se algumas conclusões finais como resultado da elaboração conjunta em duas últimas “sessões finais (separadas) de balanço do processo de ensino- aprendizagem”, sendo uma para cada turma. Em relação à estratégia utilizada, os estudantes consideraram que o trabalho inde- pendente (individual) realizado nas bibliotecas para a busca dos conteúdos, libertando-os da sala de aulas concebidas para aulas tradicionais, fomentou o interesse pela leitura livre. No domínio da textualização, segundo os estudantes, o contacto com estudos críticos levou a que os respectivos textos redigidos para apresentação à discussão sofressem influ- ência do ponto de vista da clareza e da arrumação dos termos na frase. Os resultados obtidos da aprendizagem neste domínio permitem aos estudantes recorrerem, no futuro, à expres- são escrita da língua em várias situações de comunicação impostas pela profissão de ensi- nar. 16

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No plano do conhecimento teórico-prático, os estudantes descobriram haver diferen- tes abordagens das mesmas temáticas nos estudos compilados, facto que lhes permitiu or- ganizar pensamentos, estruturar uma perspectiva de estudo e fundamentá-la com suportes teóricos. Na vertente psicopedagógica, o princípio de escolha livre afastou a inibição natural sentida pelos estudantes quando se confrontaram com o momento em que o docente e os colegas se prestaram a corrigir o que escreveram ou disseram. Notas finais As estratégias adoptadas para a realização da experiência em ensino-aprendizagem da textualidade com os estudantes e os resultados obtidos estão alinhados ao apelo, várias vezes reiterado, para a redução da carga lectiva e para a organização do processo de for- mação no ensino superior numa perspectiva que repense o uso da sala de aula, não a de- vendo tomar como único espaço de aquisição do conhecimento, já que este deve ser “apre- endido” com atitude crítica a fim de conduzir à construção de novo conhecimento. No caso concreto das disciplinas de literatura, se tomado o conceito de literatura como fenómeno integrante do património cultural, podemos concluir, sem esforço, que “há, nos programas, demasiadas matérias para que fique um lugar suficiente para a leitura das obras” (Bon, 2001: 255). Inverter a situação exige o abandono da ideia errada mas enraizada na comu- nidade académica angolana que vê na docência como um “mero exercício de gestão de uma sala de aula ou de um laboratório” (Azancot, 2010: 113). Em relação à aprendizagem signi- ficativa da língua, na sua modalidade escrita (objecto deste trabalho), o rumo desejável será o de empenhar os docentes de todas as disciplinas a relacionar a aprendizagem e a constru- ção permanente do conhecimento com a produção escrita do pensamento. Aqui, também, levanta-se a necessidade de se evitar uma excessiva divisão artificial dos campos discipli- nares, pois qualquer área científica recorre à escrita para veicular o saber. O alcance desta meta depende da visão que se cultiva em relação à reforma curricular permanente. Esta pressupõe, à partida, uma “actualização permanente dos planos de estudo”, o que implica a “revisão dos conteúdos das disciplinas e a inovação curricular que potencie desenhos curriculares mais adequados aos estudantes e aos interesses da sociedade” (Azancot, 2010: 111-112). As mudanças que se esperam no ensino superior deverão tender a reatribuir ao estu- dante o estatuto de protagonista do processo de ensino-aprendizagem. A génese desse es- tatuto remonta da Idade Média. Em Bolonha, uma das cidades (além de Paris e Oxford) onde surgiu a universidade, “quem dirigia a vida académica, com as suas normas e regras, 17

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eram os estudantes”, de tal modo que “os primeiros reitores de Bolonha foram dois alunos, que receberam apoio do papa” (Rodrigues, 2013: 29). Tendo o estudante como protagonista do processo de ensino-aprendizagem, a avali- ação jamais se concentrará no que se aprendeu; focar-se-á, seguindo a perspectiva acertada de Rodrigues e Ferrão (2006: 219), na “manifestação (comportamento) controlada (porque construída através dos mecanismos de recolha de informação – o referido) que se associa (quem define e como define essa associação) à aprendizagem realizada”. Deste modo, “o comportamento avaliativo consiste em comparar essa manifestação externa com o compor- tamento futuro esperado – o referente)”. Em relação a esta abordagem do sistema avalia- tivo, o paradigma adoptado para a realização da nossa experiência procurou executar o que Rodrigues e Ferrão consideram “integrar a avaliação no próprio processo de aprendizagem, tornando-a pedagógica, mas simultaneamente, explicitar desde o início do processo (dentro dos limites do seu poder face aos outros intervenientes do processo), as regras avaliativas nos vários contextos em que a avaliação se pode processar”. REFERÊNCIAS ANTUNES, Celso (Coord.). Língua portuguesa e didática. São Paulo: Vozes, 2010. BON, François. Transmitir a Literatura: Reflexões a partir das práticas de escrita criativa, in MORIN, Edgar. O Desafio do Século XXI – religar os conhecimentos. Lisboa: Piaget, 2001, p. 245-262. BRITTO, Percival Leme. O Português na universidade. In: Revista de Letras, PUCCAMP, Campinas, 7(1/2): 19-24, dez., 1988. MACEDO, Lino. Ensaios pedagógicos. Porto Alegre: Artmed, 2005. MENEZES, M. Azancot. Reflexões sobre Educação. Luanda: Mayamba, 2010. PINTO, Rogério. Educação – Meios e Educação. Porto: Porto Editora, 2007 RODRIGUES, Anegleyce Teodoro. A universidade brasileira – instituição formadora e organização administrativa. Goiás: Ed. UFG, 2011 RODRIGUES, Manuela e FERRÃO, Luís. Formação Pedagógica de Formadores. Lis- boa: Lidel. 2006. 18

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Mitos culturais acerca da ortografia e seu impacto social Marcos Bagno Universidade de Brasília Brasília Resumo Vivemos imersos numa cultura grafocêntrica, isto é, centrada na escrita (e na leitura), e damos tamanha importância a isso que em nosso imaginário circula toda uma série de crenças e mitos em torno da ortografia. Para as pessoas letradas, a palavra escrita tem ta- manho peso que é quase um sinônimo de “língua”, como se as línguas não fossem, antes de mais nada, realizações faladas, orais, sonoras. Nunca é demais lembrar, aliás, que três quartos das línguas do mundo não têm sistema de escrita. Nas sociedades de matriz euro- peia, ocidental, as questões ortográficas acabam por adquirir mais importância do que re- almente merecem. Tudo isso fez surgir uma série de mitos infundados sobre a escrita e, mais particularmente, sobre a ortografia. No caso do português, as diversas alterações pro- movidas na ortografia oficial durante o século 20 fazem dessa a língua românica que mais interferências sofreu em sua forma escrita nos últimos cem anos. Tudo isso gera uma série de problemas de ordem cultural, social, pedagógica e até mesmo subjetiva. É preciso iden- tificar esses mitos e dissipá-los para que as concepções sobre língua e linguagem adquiram um caráter menos dogmático e mais democrático. Palavras-chave: ortografia; mitos culturais; língua portuguesa; cultura letrada. ABSTRACT: Spelling has a strong cultural impact on so-called graphocentric societies, i.e., those that organize themselves around writing. This leads to the emergence and propagation of various myths surrounding ortography: its equation with language itself, its supposed pre- cedence over speech, its illusory neutrality in the face of the diversity of languages. In the specific case of Portuguese, ortography is linked to the colonial past and to the political and educational situation of each country that has it as its official language. In this regard, the Orthographic Agreement of 1990 is criticized as unjustified in view of the need to pre- serve phonetic traits that distinguish European Portuguese from Brazilian Portuguese. Keywords: orthography; Portuguese language; cultural myths; Orthographic Agre- ement. 19

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Para as pessoas que vivem em culturas grafocêntricas, isto é, em culturas em que a escrita desempenha um papel central nas relações sociais de toda natureza, a ortografia assume uma proeminência que tem muito mais a ver com construções ideológicas do que propriamente com a real importância da ortografia no funcionamento da sociedade. Podemos dizer que existe uma fetichização da ortografia, como se ela não fosse o que de fato é — um sistema artificial criado pelo entrecruzamento de forças culturais, so- ciais e históricas as mais variadas —, e como se fosse algo que não é: uma espécie de lei transcendental, promulgada por algum tipo de entidade dotada de um saber inalcançável para os meros mortais. Nesse aspecto, a ortografia anda de mãos dadas com a gramática, mais especifica- mente com a gramática normativa. Não por acaso, na história das línguas, esses dois cons- trutos culturais foram elaborados simultaneamente. No caso da língua portuguesa, por exemplo, foi no século 16 que se produziram as primeiras obras gramaticais que, além de tratarem da fonética e da morfossintaxe, também se ocuparam de temas relacionados à grafia da língua — até mesmo porque, naquela época, como até hoje para a maioria das pessoas, não se fazia distinção entre letra e som, visto que se acreditava na possibilidade de transcrever de maneira fiel a pronúncia por meio da escrita. O que as pessoas que vivem em sociedades grafocêntricas muitas vezes ignoram é que existem milhares de línguas no mundo que simplesmente não têm sistema de escrita, não têm ortografia, são as chamadas línguas ágrafas. Só no Brasil, por exemplo, são mais de duzentas. A grande maioria dos falantes dessas línguas, evidentemente, vivem em terri- tórios que compõem Estados politicamente organizados nos quais existe pelo menos uma língua oficial, quando não mais de uma, que é sempre uma língua que dispõe de uma orto- grafia convencional. O que difere radicalmente, de país para país, é o acesso que as pessoas falantes de outras línguas que não a oficial têm a essa mesma língua oficial por meio do ensino formal. Na maioria das nações africanas que emergiram depois do fim do longo período colonial, a língua do antigo colonizador foi adotada como oficial, língua da administração, da juris- prudência, da educação institucionalizada, mas a proporção das cidadãs e dos cidadãos que têm acesso a esse idioma oficializado é sempre minoritária, sobretudo porque muitas dessas novas nações, infelizmente, não conhecem regimes políticos merecedores do rótulo de de- mocracia, o que tem como consequência a reserva da maior parte dos bens sociais e dos direitos civis a uma reduzida elite. E o acesso à língua oficial se torna uma espécie de muro 20

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que separa essa elite do resto da população. Os graves índices de analfabetismo existentes durante o período colonial pouco se alteraram depois das independências. Desse modo, é importante enfatizar que a presença da escrita na vida de muitas co- munidades humanas é restrita ou quase nula, e isso depende do grau de desenvolvimento social e econômico de cada país, bem como, repetimos, da natureza do regime político que o governa. O Brasil, por exemplo, que é uma das nações mais desiguais do planeta, apre- senta verdadeiros abismos sociais: algumas restritas camadas urbanas, essencialmente brancas, têm acesso aos bens culturais prestigiados, entre eles o acesso à cultura letrada, enquanto a grande maioria da população, majoritariamente negra e mestiça, é totalmente analfabeta ou com domínio muito escasso e rudimentar das tecnologias da leitura e da es- crita. A manutenção dessa maioria populacional no analfabetismo pleno ou funcional se revela, de fato, como um projeto das elites para preservar seus privilégios de toda ordem. O acesso à leitura e à escrita é um direito de toda cidadã e de todo cidadão, e um dever do Estado, se o Estado for de fato democrático e comprometido com o bem maior de toda a sua população. Mas isso não significa de modo algum que as comunidades despro- vidas de escrita sejam por alguma razão inferiores ou não disponham de meios e métodos eficientes de manutenção e transmissão de sua cultura. No que diz respeito especificamente ao ensino, seria fundamental que as pessoas im- plicadas na educação linguística se conscientizassem de que saber ortografia não é saber a língua. São dois tipos diferentes de conhecimento, controlados, aliás, por partes diferen- tes do cérebro. Saber ortografia é como tocar piano, dançar balé, dirigir um automóvel, manejar um programa de computador — são atividades que exigem treinamento, prática constante, memorização consciente, automatização dos gestos. Saber a língua é outra coisa. Afinal, milhões de pessoas nascem, crescem, vivem e morrem sem jamais aprender a ler/es- crever sendo, no entanto, conhecedoras perfeitas da gramática de sua língua, isto é, do funcionamento de sua língua como sistema, capazes de distinguir com clareza uma cons- trução agramatical de uma gramatical. É comum os linguistas se referirem aos idiomas humanos como línguas naturais. Podemos então, em contraposição a isso, afirmar que a ortografia é artificial, depende da vontade das pessoas e, principalmente, das pessoas que legislam sobre ela. Com muita fre- quência, a ortografia fica sujeita aos gostos pessoais ou às interpretações dos fenômenos linguísticos por parte dos filólogos que ajudam a estabelecê-la. Por exemplo: por que es- crevemos um <m> no final das palavras em português, se esse <m> nunca foi uma conso- ante bilabial, nem mesmo em períodos mais antigos da língua? Por que, quando a vogal 21

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nasal é [ã], como em maçã, manhã, irmã, escrevemos com <a> e til, mas quando é [ĩ] [õ] e [ũ], não se usa til, mas <m>, como em fim, som, algum? Por que escrevemos mobília, família, exílio com <li>, e não com <lh> como em maravilha, filho, gatilho, se a pronúncia é a mesma? Por que o nome próprio Júlio se escreve com <li> e o nome do mês julho, com <lh>, se ambos têm o mesmo étimo, o latim Juliu-? No que diz respeito às sociedades em que a escrita ocupa um lugar central, algo que também escapa à percepção dos falantes comuns é que a ortografia convencional é uma tentativa de “resolver” um suposto “problema” que é, de fato, insolúvel: a variação e a mudança linguísticas. Não existe absolutamente nenhuma língua humana, por menor que seja o número de seus falantes, que não apresente variação, isto é, que seja falada exata- mente do mesmo modo por todas as pessoas que se servem dela: a heterogeneidade é in- trínseca a própria natureza das línguas humanas, porque as línguas são faladas em socie- dade, e não existe sociedade homogênea. Nem existe língua parada no tempo, que não sofra mudanças, a menos que deixe de ter falantes vivos. Se não existem sociedades homogêneas, tampouco existirão línguas homogêneas. E se uma língua é falada em mais de um Estado independente, em diversos continentes, por centenas de milhões de pessoas que vivem em condições sociais, ecológicas e políticas totalmente diversas, é no mínimo irracional esperar que essa língua seja invariável e uni- forme. Mas ao longo da história tem sido precisamente essa invariabilidade e essa uniformi- dade o objetivo buscado pelos empreendimentos culturais e políticos que presidiram a ela- boração das gramáticas normativas e das ortografias oficiais. E no caso de línguas que serviram de instrumento ideológico do imperialismo, como o português, não surpreende que a elaboração de gramáticas e sistemas ortográficos tenha ocorrido precisamente no mesmo período em que Portugal iniciou seu processo de expansão colonial, de invasão de terras que não lhe pertenciam, de destruição sistemática de outros povos e outras culturas, além de escravização de milhões de seres humanos. Na primeira obra gramatical produzida em português, a de Fernão de Oliveira, publi- cada em 1536, lemos as seguintes palavras: “tornemos sobre nós agora que é tempo e somos senhores, porque melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma” – isto é, não existe mais razão para que o português permaneça marginalizado politicamente e que o latim continue sendo a única língua de cultura. Agora que Portugal começa a criar um império comparável ao império de Roma, é preciso que tenha uma língua imperial, tanto quanto Roma teve o seu latim. Não por acaso, Luís de Camões, em seu poema épico 22

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que é, de fato, uma propaganda ideológica em defesa do imperialismo português, escreve que a deusa Vênus, protetora dos navegantes lusos, ao ouvi-los falar sua língua, “com pouca corrupção crê que é a latina” (Os Lusíadas, 1, 33), numa tentativa de igualar por- tugueses e romanos não só por seus empreendimentos de conquista como também pela língua. Ainda a esse respeito, cabe sempre lembrar uma notável coincidência de datas, desta vez no que se refere à língua espanhola: o mesmo ano de 1492 em que Colombo chega ao continente americano a serviço da coroa de Castela é também o ano da vitória definitiva dessa coroa sobre as últimas possessões mouras em território ibérico, e é também o ano da publicação da Gramática da língua castelhana, de Antonio de Nebrija, a primeira gramá- tica de uma língua moderna. Nesta obra, Nebrija escreveu a famosa frase: “Siempre fue la lengua compañera del Imperio”. E assim como Portugal não havia de submeter os povos conquistados usando o latim, também a Espanha precisava de um instrumento de domina- ção cultural e espiritual: a língua espanhola. A fixação de uma norma gramatical e, por extensão, de uma norma ortográfica é resultante da convergência de diversos fatores sociais, culturais, políticos. Uma vez que toda e qualquer língua é variável e mutante, sempre tem sido necessário definir critérios para a seleção do que vai e do que não vai entrar na gramática e na ortografia. Esses critérios variam muito de lugar para lugar, de língua para língua. Em geral, é a variedade falada no centro do poder político e/ou cultural aquela que vai servir de base para a elaboração das normas gramaticais e ortográficas. Mas essa elaboração é complexa. A ortografia oficial, ao servir de sistema único para representar todas as variedades da língua, exibe uma falsa aparência de “neutralidade” que está longe de ser o que real- mente determina sua elaboração e instituição. Mesmo as ortografias mais próximas do “ideal” — aquelas em que a relação letra/som é mais racional — estão sujeitas aos diversos critérios que se confundem no momento de determinar as formas oficiais de escrever. No caso da ortografia, e especificamente da do português, entram em jogo, entre ou- tros, os seguintes critérios:  o critério fonético → as letras <f>, <p> e <v> representam sempre o mesmo som, havendo portanto uma corres-pondência um-a-um entre letra e som;  o critério fonêmico → a letra <l> representa uma abstração, um fonema, que se realiza concretamente, por exemplo, no português brasileiro, de diversas maneiras, de acordo com sua posição na palavra e/ou com a origem regional do falante; temos assim [falta], [fawta], [faƚta], [faɹta] etc., para o que se escreve oficialmente <falta>; 23

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 o critério morfofonêmico → o morfema -s de plural é um [s] em meus cães, mas é um [z] em meus gatos, podendo também ser um [ʃ] ou um [ʒ] nas variedades que apresentam o chamado “S chiado” (como a do Rio de Janeiro e a de Lisboa, entre outras); apesar dessa diferença, sempre se escreve <s>;  o critério etimológico → escrevemos mau, com <u>, porque provém de malu, com síncope do [l] intervocálico; mas escrevemos mal com <l> porque provém de male, com apócope do [e], morfema latino formador de advérbios — no entanto, as duas palavras, na grande maioria das variedades linguísticas brasileiras, têm pronúncia idêntica [maw]; o emprego do <h> inicial só atende ao critério etimológico; as grafias sessão, seção, cessão também se devem exclusivamente à etimologia, assim como cesta e sexta;  o critério anacronístico → apesar das reformas ocorridas ao longo do século 20, ainda escrevemos as vogais finais <e> e <o>, tal como eram pronunciadas antes do século 18; ainda escrevemos o falso ditongo <ou>, que também desapareceu da norma-padrão portuguesa e de todo o português brasileiro no mesmo período, e também escrevemos o <ch> que nas palavras escritas até o século 15 apresentavam a consoante [ʧ] e que hoje poderiam tranquilamente ser escritas com <x>;  o critério sociolinguístico → a ortografia oficial se baseia em determinada(s) variedade(s) liguística(s) e não em outras; por isso não existe, no caso do português brasileiro, uma grafia para o “R retroflexo” [ɹ], (porta, garfo, arma) para as vogais pretônicas abertas das variedades nordestinas ([tɛlɛˈfõni], telefone), para o [ʧ] da região de Cuiabá (Mato Grosso) de [ˈʧuva] (chuva), para o “S chiado” presente em diversas variedades, para o [ʤ] amplamente generalizado no português brasileiro ([ˈʤia], dia) e assim por diante. Esse último critério, o sociolinguístico, é ainda mais evidente no caso das línguas transplantadas durante o processo colonial-imperial. A ortografia do português tem por base a pronúncia do centro de Portugal, mais especificamente a de Lisboa, que se tornou o centro do poder político no século 14. Com isso, à medida que o tempo foi passando, as normas gramatical e ortográfica foram adquirindo feições lisboetas e, nesse processo, mar- ginalizando as características morfossintáticas e fonéticas das outras regiões de Portugal, especialmente do Norte. A discrepância se torna ainda mais radical no caso das ex-colônias, que tiveram de adotar essa norma lisboeta mesmo depois de se terem desenvolvido normas locais nos diferentes países. No caso do Brasil, sofremos até hoje com a imposição, já não 24

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de uma pronúncia lisboeta, mas de uma norma gramatical ainda muito arraigada aos usos característicos da fala culta urbana da capital portuguesa. Todos esses critérios variam de caso para caso, de palavra para palavra, e também se confundem: continuamos a escrever caçar e cassar por causa da etimologia latina de cada verbo (captiare e cassare, respectivamente), porque a grafia diferente equivalia a uma opo- sição fonética que desapareceu no século XVI e porque essa oposição, ainda que minoritá- ria e ausente da norma-padrão do português europeu, ainda se preserva em alguns dialetos do noroeste de Portugal — uma mescla dos critérios etimológico, anacronístico e sociolin- guístico. A “neutralidade” da ortografia, portanto, é mais um mito (assim como a ilusão de que é possível “falar sem sotaque”), pois o que seu exame revela é, muitas vezes, uma clara arbitrariedade nas decisões tomadas para oficializá-la. Nada justifica, por exemplo, que se escreva extravagante, extrovertido, extraordinário com <x>, mas estranho e estrangeiro com <s>, se na etimologia dessas palavras todas está o elemento extra- do latim. Nem que se escreva estender com <s> e extensão com <x>, se são palavras da mesma família, assim como exprimir e espremer que são meras formas divergentes do latim exprimere. O mesmo vale para espraiar, escarrar, esmurrar, escavar, esfiapar, escusar que, pelo rigor etimoló- gico, deveriam ser escritas com <ex>. Por isso, no processo de alfabetização, o agente alfabetizador precisa ter plena cons- ciência de que nem tudo o que se escreve se pronuncia, nem tudo o que se pronuncia se escreve, e que a ortografia é um conjunto de símbolos, em boa medida arbitrariamente escolhidos, empregados para escrever, os quais, como todo símbolo, exigem um conheci- mento prévio para sua interpretação, uma iniciação, uma vez que seu significado não pode ser deduzido apenas de sua figura. Nem tudo que parece um <s> soa como [s]. Por isso, a ortografia nunca deve ser considerada como um “retrato fiel” da língua falada, embora circule na sociedade o mito de que “é preciso falar como se escreve”. Também é preciso estar ciente de que não é a escrita que determina a fala, mas exatamente o contrário: para tentar registrar a língua falada é que surgiu a escrita. E não há nada na escrita que faça dela uma entidade supostamente mais importante e mais organi- zada do que a língua falada. Essa suposta importância é fruto exclusivo de fenômenos so- cioculturais e político-ideológicos relacionados à natureza grafocêntrica das sociedades ocidentais. No entanto, repita-se, os critérios de elaboração da ortografia são complexos. Por mais reformas que se façam, o aspecto gráfico de uma língua tende sempre a ser con- servador. Por exemplo, existem até hoje em algumas áreas do Norte de Portugal pequenas 25

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comunidades de falantes que ainda distinguem na fala palavras como cozer, escrita com <z>, e coser, escrita com <s>, ou paço, com <ç>, e passo com <ss>. Essa diferença fonética prevaleceu em toda a língua até mais ou menos o século 17, mas acabou desaparecendo: as quatro sibiliantes se reduziram a duas. Apesar disso, a ortografia ainda tenta representar essa diferença. Se no que diz respeito a Portugal já é um anacronismo, mais complicado ainda se torna para nós, que desconhecemos por completo essa distinção fonética, que ja- mais existiu no Brasil nem nas outras ex-colônias. As nações surgidas de processos coloniais que acabam adotando como língua oficial a língua da antiga metrópole – o que é o caso mais frequente – adotam, portanto, não só uma língua exógena como também uma norma gramatical exógena e uma ortografia exó- gena. A norma gramatical exógena pode e deve ser revisada, reformulada, para se aproxi- mar dos usos autênticos dos falantes de cada país ou ao menos da maior parte deles. Mas a ortografia, a esta altura da história, não precisa ser alterada. E temos a sorte de que a orto- grafia do português, mesmo com suas contradições internas, apresenta uma relação le- tra/som muito menos irracional do que, por exemplo, a do francês e a do inglês. Justamente porque nenhum sistema ortográfico jamais será capaz de dar conta de toda a variação presente numa língua, o mais importante é promover um ensino de quali- dade, que favoreça a formação de sujeitos bons leitores e bons escreventes. Por tudo isso é que sou da opinião de que o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) não se justificava nem se justifica. As pequenas diferenças que havia nas grafias do português de cada lado do Atlân- tico nunca perturbaram a comunicação por meio da escrita. Até hoje não ouvi nenhum argumento de fato convincente que justique essa iniciativa. Existem diferenças gráficas também entre o inglês americano e o inglês britânico (center/centre, realize/realise, jail/gaol etc.), mas nem por isso se cogitou de uma unificação das grafias nessa língua. A adoção do AO90 no Brasil, em 1º de janeiro de 2009, suscitou, na opinião pública brasileira, uma série de mal-entendidos devidos, como na maioria das vezes, à falta de informação no seio da sociedade acerca dos fenômenos linguísticos, principalmente da parte dos meios de comunicação. O primeiro grande equívoco se expressou na forma de uma suposta “unificação da língua portuguesa”. Existe no senso comum a equiparação entre língua e ortografia, quando, de fato, não custa repetir, a ortografia não faz parte da língua. Só essa concepção distorcida é capaz de explicar o equívoco tantas vezes repetido acerca da “unificação da língua portuguesa”. O que se buscou unificar com o AO90 foi pura e simplesmente a ortografia, o modo de 26

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escrever a língua, de representá-la por meio de sinais gráficos, e não de pronunciá-la, muito menos de empregá-la — ninguém jamais pensou numa “unificação fonética” nem numa “unificação morfossintática” da língua, porque essa tarefa é simplesmente impossível: a heterogeneidade é da natureza de qualquer língua humana, de modo que a variação é inevitável. A única possibilidade de unificação se dá, portanto, no modo de escrever, justamente porque a ortografia... não faz parte da língua. Outro equívoco recorrente foi a denominação de “reforma” para as alterações estipu- ladas pelo AO90. Não é possível chamar de reforma um conjunto de modificações que afetam tão somente 0,5% das palavras escritas do portugês brasileiro e 1% das palavras do português europeu. As verdadeiras reformas foram as de 1911 e 1945, que modificaram profundamente a aparência escrita da língua. O AO90 apenas tentou aparar algumas poucas divergências que ainda vigoravam entre as grafias portuguesa e brasileira, como o uso do trema e do acento nos ditongos <ei> e <oi>, ambos eliminados. Justamente por ser tão pouco é que, repito, o AO90 me parece desnecessário. Além disso, pelos depoimentos que nos chegam de Portugal, as alterações ocorridas na grafia têm provocado alterações na pronúncia da língua, o que é uma consequência um tanto grave. Como se sabe, as chamadas “letras mudas” tinham a função, no português europeu, de simbolizar a abertura da vogal imediatamente anterior a elas: director, acção, adoptar etc. A escrita dessas letras (que no português brasileiro nunca foram “mudas”, mas, ao contrário, nitidamente pronunciadas) servia de sinalização contra a forte tendência, no por- tuguês europeu, ao alçamento quase categórico das vogais átonas. No caso, por exemplo, de adoptar, o <p> não se pronunciava, mas indicava a pronúncia aberta, [ɔ], da letra <o>. Pessoas mais jovens, no entanto, levadas por aquela tendência ao alçamento das vogais átonas, já começam a pronunciar o que se passou a escrever adotar como [adutar], com [u] no lugar de [ɔ]. Esse impacto da escrita sobre a pronúncia gera alterações que não corres- pondem aos fatores articulatórios e cognitivos normais que promovem as mudanças foné- ticas. As pessoas que, em Portugal, se opõem ao AO90 muitas vezes o fazem movidas por sentimentos nacionalistas ou por uma recusa ideológica ao que consideram um “abrasilei- ramento” da língua, mas a oposição de linguistas e intelectuais, baseada em outros critérios, me parece plenamente justificada. No caso de alguns pesquisadores, entre os quais me in- cluo, o que está em jogo é a opinião de que o português europeu e o português brasileiro já constituem duas línguas diferentes, dois sistemas linguísticos que compartilham muitas semelhanças, é verdade, mas que também já apresentam características muito próprias, além de exclusivas. No plano fonético isso é óbvio, mas também na morfossintaxe, como 27

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têm demonstrado várias investigações sobre essas diferenças. Isso seria motivo suficiente para conservar as distinções gráficas que havia até recentemente entre as duas línguas. É notória, por exemplo, a dificuldade que muitos brasileiros experimentamos quanto à compreensão da totalidade daquilo que ouvimos proferido em português europeu. Essas barreiras à compreensão se devem a fenômenos de natureza articulatória que não existem em nenhuma das variedades do português brasileiro, sejam elas rurais ou urbanas, “cultas” ou “populares”. Não se trata das diferenças abrigadas sob o rótulo um tanto folclórico de “sotaque”, mas de elementos constitutivos do sistema sonoro da língua. Algumas dessas características fonéticas do português europeu têm caráter regional ou dialetal, mas o que importa aqui é demonstrar sua total inexistência no português brasileiro, em qualquer de suas variedades sociais e/ou geográficas. Entre esses fenômenos exclusivos do português europeu destacamos os seguintes: 1. É uma língua de ritmo marcadamente acentual, em que as vogais átonas pretôni- cas e postônicas sofrem redução sistemática ou mesmo apagamento total: interesse [ĩˈtɾes(ɨ)]; pessoa [pˈsoɐ]; pequeno [pˈkẽnu]; aparece [ɐˈpɾɛs(ɨ)]; felicidade [flɨsˈðað(ɨ)]; isso chega mesmo a criar eventuais consoantes duplas, como em memória [ˈmmɔɾıɐ], de- dicar [ddiˈkaʀɨ] etc.; embora ocorra esporadicamente em variedades do português brasi- leiro, essa redução não apresenta a mesma regularidade e sistematicidade que tem em por- tuguês europeu; além disso, a redução nunca resulta em [ɐ] e [ɨ], vogais inexistentes em português brasileiro; 2. a redução das pretônicas não atinge as vogais resultantes de crase histórica (fusão de vogais semelhantes), que são pronunciadas com timbre aberto: corado [kɔˈɾaðu] (e não [kuˈɾaðu]), esquecido [ʃkɛˈsiðu] (e não [ʃkɨˈsiðu]), pegada (‘marca deixada pelo pé’) [pɛˈɣaðɐ] (e não [pˈɣaðɐ] ou [pɨˈɣaðɐ]; 3. a vogal átona [ɨ] (chamada schwa) ocorre quando há redução de [e] em sílabas átonas, sejam elas pretônicas ou postônicas: gente [ˈʒẽtɨ], verdade [vɨɾˈðaðɨ], reforço [ʀɨˈfoɾsu] etc.; também ocorre epenteticamente em grupos consonantais ditos “cultos” como em afta [ˈafɨtɐ], magma [ˈmagɨmɐ] ou ritmo [ˈRitɨmu]; 4. quando, na mesma palavra, ocorrem duas sílabas contíguas cuja vogal é [i], o primeiro [i] é produzido, por dissimilação, como [ɨ]: ministro [mɨˈniʃtɾu]; dividir [dɨvɨˈðiɾᵊ]; militar [mɨliˈtaɾᵊ]; 5. a mesma vogal [ɨ] ocorre quando [i] antecede uma consoante palatal: filhote [fɨˈʎɔtɨ], tijolo [tɨˈʒolu], bichano [bɨˈʃãnu]; 28

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6. os dígrafos -sc- e -xc- se pronunciam [ʃ]: nascer [nɐˈʃeɾɨ]; fascinante [fɐʃiˈnãtɨ]; exceto [iˈʃɛtu]; 7. nas palavras grafadas com duplas de consoantes como cc, cç, ct, pç, pc, pt a primeira consoante não é pronunciada, e a vogal que a antecede é aberta, mesmo quando átona: director [diɾɛˈtoɾɨ], recepção [xɨsɛˈsãʊ̃], optimista [ɔtɨˈmiʃtɐ] (ibid., p. 315); essas duplas de consoantes sofreram alterações em sua forma escrita devido ao Acordo Ortográ- fico de 1990, mas as consequências dessas mudanças na grafia sobre a pronúncia das pala- vras ainda não podem ser sistematizadas, sobretudo pela resistência que a ortografia refor- mada encontra em Portugal da parte de muitos profissionais da escrita, incluindo os escri- tores; 8. o ditongo escrito ei é pronunciado, por dissimilação, [ɐɪ̯ ]: peixe [ˈpɐɪ̯ ʃɨ], cheiro [ˈʃɐɪ̯ ɾu], sei [sɐɪ̯ ]; esse mesmo ditongo ocorre nas palavras escritas com o grupo inicial ex- seguido de consoante: exprimir [ɐɪ̯ ʃprɨmiɾ(ɨ)]; 9. a vogal [e], quando diante de uma consoante palatal, se pronuncia [ɐ]: vejo [ˈvɐʒu], telha [ˈtɐʎɐ], fecho [ˈfɐʃu]; 10.o hiato que se forma entre uma palavra terminada em -a e outra iniciada em a- é comumente eliminado pela inserção de um iode [ɪ̯ ]: na água [nɐɪ̯ ˈaɣʊɐ], é ele [ɛɪ̯ eƚ]; 11.as consoantes [b], [d] e [g] sofrem lenização (abrandamento) quando entre vo- gais ou diante da líquida [ɾ] e se realizam como as fricativas [β], [ð] e [ɣ] respectivamente: acabado [ɐkɐˈβaðu], idade [iˈðaðɨ], agrado [ɐˈɣɾaðu]; 12.quando uma palavra termina em [s] e a palavra seguinte se inicia por [s], essas duas consoantes se fundem numa palatal [ʃ]: os cintos [uˈʃĩtuʃ], dos santos [duˈʃãtuʃ], às sete horas [aʃɛˈtɔɾɐʃ]; 13.em palavras terminadas pelas líquida [ɾ] e [l] ocorre a paragoge de uma vogal [ɨ], isto é, um schwa ainda mais débil que o átono [ɨ], sobretudo em infinitivos verbais: falar [fɐˈlaɾɨ], mar [ˈmaɾɨ], cal [ˈkalɨ]. Como já dito, nenhum desses fenômenos de natureza fonética ocorre no português brasileiro. Eles dificultam a compreensão da fala portuguesa da parte de falantes brasilei- ros. No entanto, dadas as características fonéticas do português brasileiro — ritmo silábico, em que praticamente cada sílaba é pronunciada, e clareza na emissão das vogais —, é mais fácil para os falantes do português europeu compreender o que falamos, o que tem servido de argumento a muitos deles, incluindo linguistas, para rejeitar a tese de que se trata de línguas distintas. 29

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A existência de uma ortografia comum, aliada à ilusão cultural de que a escrita é a língua, leva muita gente a se apoiar na forma escrita para defender a suposta identidade de português europeu e português brasileiro. Se nos compreendemos tão bem na escrita, como é possível dizer que são duas línguas diferentes? No entanto, a linguística moderna se fir- mou sobre o postulado fundamental de que a fala é a língua propriamente dita, por ser a manifestação natural da faculdade de linguagem, enquanto a escrita é secundária, artificial — além disso, conforme já dito, milhares de línguas humanas não dispõem de escrita e nem por isso deixam de ser línguas como quaisquer outras. Outra ideia sem fundamento — ou seja, mais um mito — é a de que uma ortografia “simplificada” facilita a aprendizagem da leitura e da escrita. Ora, se fosse assim, as línguas mais faladas e escritas internacionalmente — o francês e, ainda mais, o inglês —, com suas ortografias ilógicas e complicadíssimas, jamais teriam alcançado a difusão que alcançaram. A realidade nos mostra que é preciso inverter esse mito: é a educação de qualidade que leva um povo a se apoderar de seu patrimônio letrado e a ser capaz de ler e de escrever bem, independentemente do tipo de sistema de escrita empregado. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha apresentam índices de alfabetização de 99% da população, apesar da ortografia caótica do inglês, e o mesmo vale para Austrália e Nova Zelândia. A França exibe o mesmo índice, assim como o Canadá, país que tem no inglês e no francês suas línguas oficiais e de ensino. O Japão tem um índice de alfabetização que beira os 100% — no entanto, escrever em japonês é um aprendizado constante: um cidadão japonês letrado está regularmente aprendendo ideogramas novos; e a escrita japonesa se vale de nada menos do que três sistemas de escrita diferentes: os ideogramas de origem chinesa (kanji) e dois silabários (katakana e hiragana). A China também se destaca como um país onde 96% de seus um bilhão e meio de habitantes são alfabetizados e dominam algo entre 3.000 e 4.000 ideogramas diferentes para poderem ler e escrever a contento. Por outro lado, diversos países que têm o português como língua oficial e de ensino, isto é, uma língua com uma ortografia mais simples e mais regrada que a das línguas citadas acima, apresentam baixos índices de alfabetização: Angola, Guiné-Bissau, Moçambique. No Timor-Leste, pouco mais da metade da população é alfabetizada, sendo que no final do período colonial português, em 1975, o analfabetismo chegava aos 90%, mostrando bem a política colonial portuguesa que, ao contrário de outras potências imperiais, nunca se im- portou com a educação de seus súditos de além-mar. A Guatemala, país onde o espanhol — que tem um dos sistemas ortográficos mais próximos do “ideal” — é a língua oficial, apenas 70% da população é alfabetizada (13 30

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milhões de habitantes). Em contrapartida, Cuba, com população semelhante (11 milhões) ocupa o primeiro lugar na lista de todos os países do mundo em qualidade de educação, e seu modelo de alfabetização popular tem sido adotado por outros países latino-americanos. De acordo com os resultados obtidos nos testes de avaliação de estudantes latino-america- nos, conduzidos pela Unesco, Cuba lidera, por ampla margem de diferença, nos resultados obtidos pelas 3as. e 4as. séries em matemática e compreensão de linguagem. Os índices mais baixos obtidos pelos estudantes cubanos superaram de longe os mais altos de outros países do continente latino-americano, incluindo o Brasil. Como se vê, é perfeitamente possível alfabetizar todo um povo, desde que haja in- vestimentos consistentes em educação — se eles existirem, a ortografia pode ser de qual- quer tipo. BIBLIOGRAFIA 1. AVELAR, J.; GALVES, Ch. O papel das línguas africanas na emergência da gramá- tica do português brasileiro. Lingüística [online]. 2014, vol.30, n.2, pp.241-288. 2. BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2011. 3. BONVINI, E.; PETTER, M. M. T. Portugais du Brésil et langues africaines. Langages, Paris, Larousse, 130: 68-83, 1998. 4. COULMAS, F. Escrita e sociedade. São Paulo: Parábola, 2014. 5. FARACO, C. A.. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola, 2016. 6. FIORIN, J. L.; PETTER, M. (orgs.). África no Brasil: a formação da língua portu- guesa. São Paulo: Contexto, 2008. 7. LOPES, L. P. M. (org.). O português no século XXI: cenário glotopolítico e sociolin- guístico. 8. OLIVEIRA, F. Grammatica da lingoagem portuguesa. Lisboa, 1536. 9. OLIVEIRA, M. S. D.; ARAUJO, G. A. (orgs.). O português na África atlântica. São Paulo: FFLCH, 2019. 10. PINTO, P. F.; MELO-PFEIFER, S. (orgs.). Políticas linguísticas em português. Lis- boa: Lidel, 2018. 31

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O Acordo Ortográfico de 1990 e as novas grafias. 32

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A Unificação Ortográfica do Português como Exercício de Soberania Partilhada sobre a Língua. João Veloso Universidade do Porto, Portugal [email protected] 1 – CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS: LÍNGUA, LINGUA- GEM, ORALIDADE E CÓDIGO ESCRITO Acerca da linguagem como faculdade humana – e até, em algumas interpretações, acerca das próprias línguas naturais –, podemos adotar uma de duas posições teóricas extremas: (i) a perspetiva biologista, que concebe esse(s) objeto(s), à partida, como uma componente da cognição humana fortemente condicionada por fatores inatos genetica- mente determinados (Chomsky 1986; Pinker 1994); (ii) a perspetiva culturalista, que vê a linguagem/as línguas como instituições culturais que regulam a vida em sociedade (ao mesmo tempo que são também formatadas por condicionantes relacionadas com o seu uso social), integradas num património coletivo partilhado e transmitido de geração em geração por via da socialização e da experiência cultural (Martinet 1960). Estas perspeti- vas – aparentemente incompatíveis entre si (apesar de tentativas de conciliar aspetos de uma e de outra, como a que, ao nível da discussão acerca da importância da biologia e da construção do conhecimento para as capacidades linguísticas, foi testada no célebre de- bate entre Noam Chomsky e Jean Piaget num dos Encontros de Royaumont (1975) – cf. Piattelli-Palmarini (Org.) 1979) – apresentam-nos, de facto, duas visões muito distantes da linguagem. Contudo, independentemente da perspetiva adotada, existem alguns pon- tos essenciais acerca da natureza profunda da linguagem e das línguas que se apresentam como transversais a essas duas visões opostas e que se torna importante mencionar neste ponto da exposição. O primado do oral O primeiro desses pontos de partida fundamentais consiste naquilo a que podemos chamar “o primado da oralidade” para uma definição essencialista e intrínseca da lingua- 33

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gem. Em síntese, esta posição prescreve que a natureza central das línguas deve ser iden- tificada, principalmente, na sua realização oral, e não na sua representação escrita. Ainda que, em certos contextos culturais, a escrita seja detentora de um elevado valor simbólico (Coulmas 2003; Veloso 2007; 2019) e apesar de tradições gramaticográficas (como as orientais, nomeadamente) que não apartam de forma tão rígida a dimensão oral da di- mensão escrita na própria definição intrínseca de língua (Coulmas 2003: 10; Daniels 2010), é certo que: 1) ontogenética e filogeneticamente, a oralidade precede a escrita; 2) a existência de línguas sem escrita é amplamente documentada em múltiplos con- textos sócio-históricos; e 3) em todas as comunidades, mesmo naquelas em que são faladas línguas dotadas de sistemas de escrita, todos os sujeitos têm acesso “natural” à língua oral (exceto nos casos de perturbações patológicas específicas), mas nem todos acedem à ver- tente escrita (como é o caso das crianças em idade pré-escolar ou dos adultos iletrados, p. ex.). No seu conjunto, estes dados constituem um forte argumento em favor da defesa do já citado primado “essencial” do oral sobre o escrito, por demonstrarem que a existên- cia de línguas sem escrita é possível (e, até, muito corrente em certas épocas históricas e em certos contextos culturais), sendo a escrita, consequentemente, uma manifestação aci- dental, não essencial, da linguagem. Convenções humanas e linguagem (oral e escrita) Um outro aspeto em que todas as visões teóricas sobre a linguagem coincidem é o seguinte: a linguagem, na sua modalidade essencial (que é basicamente, conforme ten- támos demonstrar na secção anterior, a modalidade oral) e nas suas propriedades essen- ciais, é um objeto dificilmente sujeitável à convenção humana. Mesmo adotando uma visão mais compatível com o paradigma culturalista referido no início deste texto, é difi- cilmente concebível que uma determinação arbitrária fixada politicamente ou adminis- trativamente possa formatar rigidamente as estruturas mais profundas da língua. Ten- tando demonstrar este argumento com um exemplo propositadamente absurdo, imagine- mos que uma entidade humana (um órgão governamental, uma universidade, etc.) decre- 34

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taria que, a partir de uma certa data e hora, todas as frases do português fossem constru- ídas sem poderem recorrer nunca ao uso do pretérito imperfeito simples do indicativo – obrigatoriamente substituído, sem qualquer outra possibilidade de escolha, pelo futuro perfeito (composto) do conjuntivo – e com as palavras exprimindo o sujeito sintático devendo ocorrer sempre como as últimas palavras da frase. A partir do momento em que esta “ordem” entrasse em vigor, frases como “O Pedro e a família viajavam para Luanda todos os anos.” tornar-se-iam ilegais; em seu lugar, só poderiam ser produzidas, obriga- toriamente, frases como “*Tiverem viajado para Luanda todos os anos o Pedro e a famí- lia.” para se exprimir exatamente o que queremos dizer quando dizemos “O Pedro e a família viajavam para Luanda todos os anos.”. Tal medida, hipotética, estaria à partida condenada ao fracasso total, visto as construções gramaticais serem, nas suas proprieda- des verdadeiramente essenciais, quase totalmente imunes a qualquer intenção delibera- tiva, arbitrária, puramente convencional e normativa que procure regular categoricamente as propriedades estruturais e formais nucleares das construções linguísticas1. O mesmo não se pode dizer, com este grau de exatidão, acerca da regulação con- vencional da escrita. Mesmo sabendo que, nos seus primórdios, os utilizadores da escrita usavam o código escrito com grandes discrepâncias entre si, a determinação de uma gra- fia canónica para cada palavra da língua corresponde à situação mais corrente, nos nossos dias, nas sociedades onde são faladas línguas não ágrafas. Ao contrário da impossibili- dade de “proibir” o uso de certos tempos verbais ou de “obrigar por decreto” qual a ordem de palavras a que a frase deve obedecer, estatuir que, em português, “filosofia” se escreva desta forma ou como “philosophia” é algo que está ao alcance da convenção humana no sentido mais estrito. A comprovação desta possibilidade encontra-se no facto de, em por- tuguês, as duas formas terem sido consignadas em épocas históricas diferentes por dife- rentes documentos oficiais com força normativa. 1 É certo que determinados aspetos das próprias construções gramaticais podem ser sujeitos à influência de instâncias convencionais, como, designadamente, a exposição à escolaridade. No caso do português euro- peu, a flexão verbal mesoclítica (“dar-lhe-ei” em vez de “darei-lhe”, p. ex.) ou a preferência pela concor- dância sintática em vez da concordância semântica (“uma grande quantidade de carros irrompeu pela rua” em vez de “uma grande quantidade de carros irromperam pela rua”) constituem exemplos de como certas formulações gramaticais também podem ser objeto da atitude normativa/prescritiva. No entanto, ressalve- se que este tipo de restrições normalmente não abrange aspetos verdadeiramente nucleares da própria gra- mática, não consegue apagar totalmente os usos considerados “menos adequados” e não tem um carácter objetivamente “legislativo”. Indicações escolares normativas deste tipo tendem, sobretudo, a sensibilizar os alunos para a existência e a conveniência social de formas tradicionalmente mais prestigiadas e social- mente mais aceitáveis, mais expectáveis e mais adaptadas em determinadas circunstâncias, incentivando o seu uso, nessas circunstâncias, como marca do domínio da norma mais valorizada em contextos formais, profissionais, sociais ou outros. 35

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Assim, é-nos possível concluir que na realização oral das línguas (que é a sua realização primordial) parece ser relativamente difícil estatuir uma uniformidade absoluta de usos através de mecanismos de decisão/fixação convencional; por contraste, a realiza- ção escrita das línguas é frequentemente – porventura, desejavelmente – objeto do esforço normativo que fixa e impõe formas obrigatórias na escrita das palavras, com a necessária e decorrente exclusão, em princípio, de todas as restantes formas. Conforme sublinhado pelos estudos reunidos em Hult & Johnson (Eds. 2015), p. ex., a fixação ortográfica é mesmo um dos poucos domínios da política linguística amplamente suscetíveis de nor- malização convencional. 2 – DOCUMENTOS REGULADORES DA NORMA GRÁFICA Aceite, nos termos atrás expostos, a possibilidade de se regular convencional- mente (e normativamente) a forma escrita das unidades e construções linguísticas, con- vém observar de que modo esse esforço regularizador se concretiza relativamente a di- versas línguas e em diversos contextos a nível internacional. Num trabalho anterior (Veloso 2020), tentámos caracterizar e confrontar, em tra- ços gerais, a forma como é determinada a convenção ortográfica de duas línguas com uma história externa comparável à do português (i. é, línguas de origem europeia que, fruto de circunstancialismos históricos conhecidos, acabaram por ser adotadas como ve- ículos de expressão linguística fora dos seus espaços territoriais originais, tendo-se tor- nado línguas oficiais de diversos estados soberanos): o espanhol e o francês. Regressando à informação reunida nesse trabalho, é-nos possível referir a existência de organismos para-oficiais, como as Academias da Língua Espanhola existentes em Espanha e nos pa- íses de língua oficial espanhola, federadas por sua vez na ASALE (Associação das Aca- demias de Língua Espanhola), e a Académie Française, nas quais o poder administrativo e escolar dos países abrangidos delegam a competência de decidirem sobre a ortografia (Veloso 2020). No caso do português, a normalização ortográfica resulta de atos legislativos de assinalável estatuto jurídico. No caso concreto de Portugal, a ortografia é objeto de lei parlamentar associada à assinatura de um tratado internacional, cabendo às autoridades políticas de mais alta instância (parlamento, governo e chefia do Estado) a aprovação e a 36

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assinatura dos documentos legalmente vinculativos elaborados com base no trabalho efe- tuado por técnicos especialistas na matéria. Nos restantes países que contam com o por- tuguês como a sua língua oficial ou como uma das suas línguas oficiais, os procedimentos de fixação ortográfica requerem também, com as necessárias adaptações jurídicas decor- rentes do contexto constitucional e legístico de cada estado, a ratificação legislativa dos órgãos de soberania nacional. Concentrando-nos de novo na situação portuguesa, que é a que o autor melhor conhece, as normas ortográficas oficialmente em vigor neste momento em Portugal são as que resultam de um decreto do Presidente da República Portuguesa publicado no bo- letim oficial das leis do país (Diário da República [de Portugal]) no dia 23 de agosto de 1991 promulgando uma resolução parlamentar2. Tal decreto, que aprova, no território português, as regras ortográficas em vigor – dando força de lei ao Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), com aplicação regulamentada por legislação posterior –, demonstra bem, por um lado, de que forma a ortografia (ao contrário do que seria possível com a oralidade) é passível de regulação normativa e, por outro lado, que, no caso do país referido, essa regulação é da competência das mais altas instâncias políticas do país. Se a ratificação deste normativo legal, por parte de Portugal, resulta do exercício político de órgãos de soberania e da mais alta administração do Estado, o Acordo Orto- gráfico de 1990 em si mesmo – resultante do trabalho técnico-científico de comissões nacionais que trabalharam na sua elaboração e redação – assenta também num ato admi- nistrativo e político do mais alto nível que envolveu as autoridades estatais responsáveis pela administração pública, pelos setores da educação, da ciência e da cultura e pela re- presentação diplomática dos outros estados soberanos participantes. Com efeito – e este facto é, muitas vezes, estranhamente omitido dos debates públicos em torno desta questão –, o Acordo Ortográfico de 1990 foi aprovado numa cimeira intergovernamental de alto nível realizada em Lisboa, tendo sido assinado em 16 de dezembro de 1990 pelos repre- sentantes oficiais de todos os estados independentes (à data) que haviam então adotado o português como língua oficial, a saber:  em representação de Angola: pelo Secretário de Estado da Cultura, José Mateus de Adelino Peixoto; 2 Diário da República [Portuguesa], I Série-A, nº 193, de 23-08-1991, pp. 4370 e ss.: Decreto do Presidente da República nº 43/91; Resolução da Assembleia da República nº 26/91. 37

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 em representação do Brasil: pelo Ministro da Educação, Carlos Alberto Gomes Chiarelli;  em representação de Cabo Verde: pelo Ministro da Informação, Cultura e Des- portos, David Hopffer Almada;  em representação da Guiné-Bissau: pelo Secretário de Estado da Cultura, Alexan- dre Brito Ribeiro Furtado;  em representação de Moçambique: pelo Ministro da Cultura, Luís Bernardo Honwana;  em representação de Portugal: pelo Secretário de Estado da Cultura, Pedro Miguel Santana Lopes;  em representação de São Tomé e Príncipe: pela Ministra da Educação e Cultura, Lígia Silva Graça do Espírito Santo Costa. 3 – O ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990: UM EXEMPLO DE SO- BERANIA PARTILHADA Vimos, nas secções precedentes, de que forma, em geral, a ortografia de uma lín- gua pode ser normativamente regulada; num plano mais específico, vimos como, no caso da língua portuguesa, essa regulação normativa tem mesmo envolvido os mais altos de- graus da hierarquia do Estado, envolvendo titulares dos principais órgãos de soberania dos países em que o português é língua oficial. Em nosso entender, este facto põe em evidência, de forma muito esclarecedora, duas características importantes para uma avaliação mais completa de toda a questão: 1) Em primeiro lugar, a consignação da ortografia com força de lei e envolvendo diretamente a ratificação de titulares de altos cargos públicos é um sinal da extrema im- portância concedida às questões de língua a nível social, político e administrativo. A lín- gua – no seu plano escrito, pelo menos – surge assim como um objeto de soberania de primeira importância: ao contrário do que se passa com outras línguas, como algumas já referidas neste estudo, a fixação ortográfica não fica dependente de meros documentos técnicos aprovados por entidades que, embora dependentes da Administração Pública em graus diferentes, não são órgãos de soberania. No caso do português, essa vinculação é da competência dos próprios titulares das soberanias nacionais envolvidas. 38

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2) Seguidamente, tenhamos em consideração que a circunstância de o português ser língua oficial de diversos estados independentes e soberanos – realcemos novamente aqui a questão da soberania – potenciaria, relativamente às decisões sobre a língua, dois caminhos diversos (e divergentes): (i) poder-se-ia deixar, de forma inteiramente legítima, às autoridades de cada país a responsabilidade de decidir cada um por si e isoladamente todas as medidas relativas à ortografia da língua, com validade apenas para os seus terri- tórios nacionais e respetivos sistemas administrativos, escolares e culturais; (ii) ou, em alternativa (e de forma igualmente legítima), poder-se-ia procurar plataformas de enten- dimento em que as decisões sobre um objeto de soberania partilhada (como, no caso ver- tente, a língua oficial comum a todos os países da CPLP) fossem tomadas em conjunto, de forma concertada – ou seja, justamente como um exercício de soberania partilhada. A assinatura do Acordo Ortográfico por representantes dos governos de todos os países de língua oficial portuguesa no âmbito de um processo internacional multilateral e a ratificação desse documento pelas instâncias políticas e administrativas desses mes- mos estados demonstram que o caminho escolhido foi o do envolvimento conjunto e so- lidário de vários países em pé de igualdade que, abdicando de visões unilaterais sobre a língua comum, preferiram – a nosso ver, com potenciais vantagens ainda não exploradas em toda a sua extensão e riqueza – a segunda solução acima enunciada (vd. (ii) no pará- grafo anterior). Assim, parece-nos digno de nota neste momento – após termos tentado deixar claro que o AO90 resulta daquilo a que aqui queremos vivamente chamar exercício de soberania partilhada – que o AO90 é o primeiro instrumento oficial de fixação ortográ- fica do português em cuja elaboração e aprovação participaram, em total soberania e equidade, os países africanos que conquistaram as suas independências nacionais na década de 1970. Graças ao feito histórico de terem abandonado finalmente o estatuto de nações governadas por uma potência colonial externa e de terem ascendido ao seu reco- nhecimento internacional como países soberanos e independentes de facto et de jure, es- tas nações alcançaram, entre muitas outras vitórias históricas, o estatuto pleno de utiliza- dores autónomos e de decisores da língua portuguesa. Recorde-se, para que esta realidade fique aqui mais nitidamente explicitada, que, no mesmo século em que os sete países subscritores do AO90 referendaram entre si um conjunto de regras para a fixação das 39

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normas ortográficas da língua portuguesa, dois outros instrumentos com objetivos seme- lhantes haviam sido proclamados, sem que os países africanos envolvidos no AO90 ti- vessem sido sequer ouvidos:  em 1911, Portugal, unilateralmente, decidiu simplificar a ortografia do portu- guês, adotando um conjunto de medidas que não foram seguidas no Brasil, o que levou a que a mesma língua fosse escrita com substanciais diferenças. En- quanto colónias sob domínio português, as nações africanas mais tarde subs- critoras do AO90 não foram consultadas; investidas do seu poder colonial que haveria de perdurar ainda mais de meio século, as autoridades portuguesas im- puseram aos territórios africanos sujeitos à sua administração (e onde o portu- guês não era falado, muito menos escrito, pela maioria da população residente) um corpus de regras ortográficas decididas isoladamente em Lisboa e à mar- gem de qualquer concertação internacional;  em 1945, em parte para reparar as consequências do unilateralismo português de 1911, Portugal e o Brasil – então os únicos países internacionalmente reco- nhecidos como os únicos estados independentes e soberanos que tinham o por- tuguês como língua oficial – assinaram um novo acordo, que tentou e em grande medida conseguiu reaproximar as ortografias vigentes. As medidas pre- conizadas pelo Acordo de 1945 foram, novamente, impostas nos territórios africanos sob administração portuguesa (assim como em Macau e em Timor- Leste) por decisão unilateral da potência colonial. Na presença destes dados, conviria então não desvalorizar um mérito do AO90 que, uma vez mais, lamentamos não ver devidamente reconhecido em muitos debates sobre o assunto: é com a revisão ortográfica de 1990 que pela primeira vez na História as autoridades nacionais dos estados independentes e soberanos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe são coproponentes, obreiras e signa- tárias do documento que fixa a ortografia do português. O AO90 fez com que, pela pri- meira vez na história da língua portuguesa, a norma ortográfica não tenha sido imposta aos países africanos por uma potência colonial. O documento internacional de 1990, pelo contrário, resultou de um intercâmbio colaborativo em que participaram os países envol- vidos. Mais ainda: o AO90 assim subscrito pelos estados independentes que são cossig- natários do documento passa a aplicar-se já não à língua que funciona, como sucedera em 1911 e em 1945, como língua colonial; num contexto histórico-político completamente 40

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novo e diferente, os signatários do AO90 subscrevem um documento relativo a uma lín- gua livremente escolhida como língua oficial após as independências nacionais e que, com as conquistas sociais e culturais decorrentes, em cada país, dessas independências – de entre as quais avulta um maior acesso da população à escolaridade –, se vai tornando uma língua própria (em convivência com outras), uma língua da escola também livre e independente e dos meios de comunicação social próprios de cada país, a que um número cada vez maior de cidadãos emancipados e escolarizados tem maior e melhor acesso. 4 – O ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990 É PERFEITO? Uma pergunta relativamente frequente em todos os momentos e contextos em que são discutidos aspetos relacionados com a fixação ortográfica, com a ortografia do por- tuguês e com o AO90 é, em termos simplificados, a seguinte: este acordo, o AO90, é o acordo perfeito? Tendo sido convertido em diversos países, conforme dissemos acima, num texto normativo com força de lei, o Acordo de 1990 é, como qualquer instrumento legislativo- administrativo, um conjunto de disposições permanentemente disponíveis para questio- namento, avaliação crítica, revisão e melhoramento. A esse nível, o AO90, enquanto do- cumento legal, não difere de outros instrumentos legislativos igualmente estruturantes de outros aspetos da vida dos países que o adotam, como a Constituição, o Código Admi- nistrativo, o Código Civil, o Código Penal e todo o corpus legístico de cada país. A mu- tabilidade das regras ortográficas – que nem sequer constitui novidade na história da or- tografia do português (recordemos novamente as reformas ortográficas de 1911 e 1945) – decorre necessariamente da própria natureza convencional das normas ortográficas em línguas como o português, como vimos na primeira parte. Portanto, numa primeira tentativa de resposta à questão em análise e com base na premissa de que não há leis perfeitas nem leis imutáveis, aplicando-se às leis que regulam a ortografia os mesmos princípios que se aplicam às restantes leis de um dado país, dire- mos, como qualquer constitucionalista diria a propósito da Constituição de qualquer país ou qualquer penalista diria do Código Penal de qualquer país, que este Acordo, como qualquer outro normativo ortográfico, tem aspetos positivos e aspetos que podem ser me- lhorados. 41

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Para melhor se avaliar a dimensão desta questão, que encerra implicações de di- versa ordem, devemos situar minimamente o AO90 no quadro geral dos seus objetivos e das suas potencialidades. Nesse sentido, torna-se importante realçar, neste ponto da ex- posição, que o AO90:  constitui um instrumento participado e negociado por entidades oficiais dos diversos países de língua oficial portuguesa, com todas as vantagens que tentámos identificar nas secções precedentes e que devem ser vistas como um exemplo de soberania partilhada sobre uma língua comum;  responde a um objetivo de simplificação que torne mais fácil a aprendiza- gem da escrita do português;  procura, simultaneamente, alcançar um grau substancial de compatibili- dade da norma ortográfica com a variação linguística que, hoje, é um fator de riqueza da própria língua. Sobre o primeiro objetivo, não aprofundaremos mais argumentos e mais informa- ção, uma vez que ele constituiu o principal tópico de reflexão das secções anteriores deste artigo. Desenvolveremos alguns tópicos relativos aos outros dois objetivos no desenvol- vimento destas notas. AO90, simplificação da ortografia e ensino/aprendizagem da escrita Relativamente ao objetivo de simplificação ortográfica do AO90, multilateral- mente protocolado entre sete países soberanos em pé de igualdade, torna-se necessário reunir alguma informação acerca dos princípios a que pode obedecer um sistema ortográ- fico e da relação entre a ortografia de qualquer língua e o seu ensino. No que diz respeito ao primeiro destes dois aspetos – os princípios que regem as ortografias nas várias línguas do mundo dotadas de escrita oficial –, tenhamos em mente, de forma muito sintética, que os sistemas de escrita alfabética se dividem, basicamente, em dois tipos principais (Sgall 1987: 1; Aaron 1989: 379 ss.; Reitsma 1989: 51 ss.; Luelsdorff 1991: 1; Leong & Malatesha Joshi 1997: 1 ss.; Wimmer & Landerl 1997; Pinto 1998: 140-142; Alcock & Ngorosho 2003: 635 ss.; Goswami et al. 2003; Veloso 2005; 2019): convenções de escrita fonemicamente transparentes vs. convenções de es- 42

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crita fonemicamente opacas. Os primeiros sistemas (“sistemas transparentes”) são aque- les em que as relações fonema-grafema e grafema-fonema são maximamente regulares e biunívocas, estáveis e predizíveis. Os segundos (“sistemas opacos”) são representados por aqueles em que essas mesmas relações entre o plano gráfico e o plano fónico são irregulares, multívocas e pouco predizíveis. Um exemplo de uma relação transparente entre os planos fónico e gráfico é o que encontramos na relação entre o grafema <p> e o fonema /p/ em português, de acordo com as atuais convenções ortográficas: nesta língua, o som correspondente a /p/ não pode ser grafado de forma diferente de <p> e, sempre que um <p> é encontrado na escrita, ele corresponde ao som de /p/. Identificamos relações opacas entre os planos fónico e gráfico, p. ex., na relação, em inglês, entre a sequência gráfica <gh> e as correspondentes realizações fonéticas. Em inglês, de facto, <gh>, de forma que os locutores só podem corretamente respeitar se recorrerem às representações idiossincráticas memorizadas no seu léxico mental, pode ter o valor fonético de /f/ (em palavras como laugh ‘rir’), de /gh/ (ghost ‘fantasma’), ou mesmo não ter qualquer valor fonético (como ocorre em daughter ‘filha’ ou though ‘porém’). As línguas com sistemas de escrita predominantemente opacos – como o inglês e o francês – privilegiam, nas suas convenções ortográficas, a etimologia e relações morfofonémicas muito abstratas entre as palavras da língua (a razão pela qual a ortografia atual do inglês insiste em manter <gh> nas palavras acima exemplificadas reside unicamente no facto de, em estádios pas- sados da língua, <gh> ter tido em todas elas o mesmo valor fonético, entretanto perdido – informação que não se torna imediatamente acessível a quem aprende a ler e a escrever nesta língua). Já as línguas que privilegiam, nas suas normas ortográficas, a transparência das relações fonema-grafema e grafema-fonema (como sucede no finlandês (Korkeamäki 1997), no italiano (Perfetti 1997: 25; Cossu 1999) e, em grande parte, no português – Veloso 2005), tendem a aproximar as realizações escritas das representações fonológicas e das formas fonéticas das palavras, mais diretamente acessíveis aos falantes, escreventes e aprendentes da língua. Conforme posto em destaque por muitas investigações no âmbito da psicolinguís- tica e da didática das línguas, a aprendizagem de sistemas transparentes de escrita pro- cessa-se de forma muito mais rápida e menos problemática do que a aprendizagem de sistemas opacos (O’Neil 1972: 113; Aaron 1989: 379; Korkeamäki 1997: 331; Alcock & Ngorosho 2003: 635 ss.; Goswami et al. 2003: 235 ss.). 43

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Foi com base, justamente, na intuição destas premissas (antes de elas serem cien- tificamente comprovadas) que a reforma ortográfica portuguesa de 1911 – decidida no contexto da implantação da República em Portugal (1910), que elegeu como desígnio prioritário da nova ordem social aumentar a percentagem de cidadãos alfabetizados no país – optou por um conjunto de simplificações que tinha por objetivo facilitar o incre- mento dos graus de literacia nacionais. No AO90, a eliminação de consoantes não pronunciadas em palavras como <a(c)tuação> ou <ó(p)timo>, p. ex., serve este mesmo objetivo – o mesmo louvável obje- tivo, à luz da premissa da alfabetização facilitada do maior número possível de falantes – de eliminar opacidades gráficas do plano escrito. A única razão para explicar coerente- mente a uma criança de qualquer nacionalidade que o <c> ou o <p> daquelas palavras deveriam ser mantidos tem a ver com uma causa histórica longínqua: porque, na língua falada em Roma há dois milénios, os falantes supostamente pronunciariam um /k/ ou um /p/ em palavras latinas como actum e optimum. Compare-se objetivamente esta explica- ção com a explicação de um sistema mais simples de alinhamento entre sons e letras e retirem-se as respetivas conclusões pedagógicas. A simplificação ortográfica – aproximando a escrita de aspetos fonéticos e fono- lógicos do português falado pelos falantes e aprendentes atuais e facilitando, com base em evidência científica, o seu processo de ensino e aprendizagem, promovendo-se assim melhores níveis de alfabetização – apresenta-se-nos, deste modo, como um dos desígnios do AO90 que merece ser devidamente valorizado. AO90 e unificação da ortografia Um outro propósito do AO90 – que encontra motivação parcial nos precedentes abertos pelos normativos ortográficos de 1911 e de 1945 que originaram discrepâncias ortográficas no espaço da língua portuguesa e/ou partiram de atitudes isolacionistas que não levaram suficientemente em linha de conta a realidade de todos os países onde o português é língua oficial – consiste na procura, na medida do possível, de opções orto- gráficas comuns a todos os países signatários do Acordo e simultaneamente compatíveis com a variação fonética atestada quando comparamos as diversas variedades da língua. Não é fácil conciliar o princípio da transparência ortográfica – cujas característi- cas e principais vantagens tentámos sintetizar na secção anterior, destacando novamente 44

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a maior proximidade entre as representações escritas e as propriedades fonético-fonoló- gicas da língua – com a postulação de opções ortográficas únicas equivalentes em todos os países onde se fala o português diversificado através de normas nacionais que apre- sentam pequenas diferenças (de ordem fonética ou outra) entre si. Hoje, o português, como propriedade de 250 milhões de falantes espalhados por quase uma dezena de países e territórios em todo o mundo e estudado por uma quantidade crescente de falantes nati- vos de outras línguas, apresenta, inevitavelmente, um grau de variação (sobretudo lexical e fonética) que permite reconhecer esta língua como uma língua de todos e com espaço para todos. Esta língua de todos é, necessariamente, uma língua mais rica, uma língua viva, uma língua de comunicação e de criação cultural, literária, filosófica e científica – e é nesta abrangência e nesta diversidade que encontramos a sua riqueza plural e inclu- siva. A afirmação global da língua, em setores como o seu ensino, a circulação de produ- tos culturais em português e a sua adoção por organismos internacionais – com evidentes ganhos económicos, sociais e culturais para todos os falantes e utentes do português – sai reforçada com a redução de discrepâncias ortográficas. Na impossibilidade de, perante casos muito pontuais que representam uma quan- tidade ínfima de formas gráficas, se encontrar uma forma pacificamente satisfatória para todos os falantes de todas as variedades do português, aquilo que o AO90 propõe, num espírito de abertura e de não imposição de uma norma em favor ou desfavor de outra(s), é consagrar explicitamente essa mesma diversidade. Esta consagração assenta na não es- tigmatização (e, por conseguinte, na não glorificação também) de nenhuma opção face a opções alternativas. Assim, uma grafia como <género> deixa de ser considerada erro or- tográfico no Brasil e <gênero> deixa de ser considerado erro ortográfico em Portugal; ficará ao critério de cada falante, independentemente do país em que residir, optar pela solução gráfica com a qual se sinta mais identificado. Este esforço conciliador do Acordo, que adota perante uma língua pluricêntrica como o português um grau de abertura e de aceitação da diversidade não encontrado noutras línguas (o espanhol ou o francês, com usos fonéticos muito diferentes na Europa, na América e em África, são escritos da mesma forma em todos os países, tomando sempre a antiga norma colonial como a norma preferencial), parece-nos muitas vezes ignorado ou equivocadamente desvalorizado em muitos debates sobre este assunto. 45

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Seja-nos permitida a insistência: por comparação com anteriores instrumentos normativos da ortografia do português, e tendo sempre presente que um acordo ortográ- fico, como qualquer outro documento legal, está permanentemente aberto à possibilidade de revisão e melhoria, o AO90 tenta abrigar todas as normas de todos os países que es- colheram o português como sua língua oficial. Assim, o AO90 não segue a via, nos pou- cos casos de divergências mais difíceis de resolver, de impor a todos os escreventes uma opção gráfica única, mais próxima de uma determinada variedade da língua e proibindo opções alternativas mais próximas das variedades predominantes em determinados espa- ços nacionais. Pelo contrário, em tais casos – e só num número relativamente limitado de formas – o que o AO90 propõe é que os falantes de determinada variedade da língua possam seguir uma opção ortográfica e que os falantes de outra variedade possam optar por outra forma gráfica que seja fonética e fonologicamente mais próxima da sua própria variedade. Ainda a respeito deste assunto, diga-se que se tornam muitas vezes incompreen- síveis os argumentos que defendem a manutenção das chamadas “consoantes mudas” na escrita da maior parte das variedades africanas do português. É ouvido com frequência que tais consoantes devem ser mantidas nas grafias adotadas nos países africanos com base no argumento discutível de que tais consoantes possuem “valor diacrítico”, nomea- damente assinalando um maior grau de abertura de vogais átonas que, na escrita, as pre- cedem. De acordo com esse ponto de vista, em palavras como <re(c)tificar> ou <a(c)ci- onar>, nas variedades africanas o <c> facultativo serviria para indicar ao falante que a vogal anterior não sofre redução átona. Ignorando que muitas destas consoantes nunca tiveram qualquer “valor diacrítico” em nenhuma variedade da língua (vejam-se os exem- plos de <elé(c)trico> ou de <condu(c)ção>, esta última anterior ao próprio Acordo de 1945) e que, mesmo antes do AO90, muitas átonas abertas e semiabertas dispensavam tal “consoante diacrítica” (exºs: <inflação>, <invasor>, <ferrovia>, <fotocópia>, etc.), sub- linhemos que, sendo a redução do vocalismo átono praticamente inexistente nas varieda- des extraeuropeias do português, este argumento constitui um exemplo de como a dis- cussão deste assunto é muitas vezes feita sem o rigor argumentativo que a questão indu- bitavelmente merece. Repetimos: a única e verdadeira razão para a manutenção de grafias como <rectificar> ou <accionar> tem a ver com uma herança histórica da língua falada no Lácio há dois mil anos, sem que se vislumbrem claramente as vantagens didáticas da sua manutenção. 46

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Não nos parece desmesurado lembrar uma vez mais que, em conjunto com todas as outras vantagens educacionais do AO90 que já foram citadas, este acordo consiste num documento verdadeiramente plural que, sem hegemonismos de nenhuma parte, se adapta à pluralidade sobre a qual hoje se edificam a língua portuguesa e a sua presença no mundo. Além das duplas grafias que procuram respeitar e tornar equivalentes, sem a es- tigmatização de nenhuma, opções ortográficas divergentes (num número muito escasso de casos!), o AO90, no seu propósito de ser um instrumento de soberania partilhada, abre-se à realidade, profundamente ignorada até 1990, do português como uma língua que no Brasil, em África e na Ásia convive e coexiste com outras línguas. Ao integrar as letras <k>, <w> e <y> no “alfabeto português”, p. ex., apresentando como motivo explí- cito para tal a integração, no léxico português, de palavras importadas de línguas nas quais se incluem as línguas africanas, o AO90 mostra-se, uma vez mais, como exemplo de abertura do português às línguas com as quais convive em vários pontos do mundo. Na verdade, logo na Base I, nº 2, alínea c), do Acordo assinado por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe, é dito, expli- citamente: “2º As letras k, w e y usam-se nos seguintes casos especiais: (………) b) em topónimos/topônimos originários de outras línguas e seus derivados: Kwanza, Kuwait, kuwaitiano; Malawi, malawiano; (…………………..)” 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Daremos por findas estas notas tentando pôr novamente em evidência que o AO90, enquanto documento normativo permanentemente aberto e sujeito a melhoramen- tos e aperfeiçoamentos, traduz, na história da ortografia do português, um avanço signi- ficativo no que diz respeito à abrangência equitativa de todos os falantes de todas as nor- mas nacionais desta língua. Quer no seu conteúdo, quer nos procedimentos que conduzi- ram à sua elaboração e aprovação, o Acordo é um documento multilateral, subscrito pelos países que continuam a adotar o português como língua oficial, satisfatoriamente capaz de responder a divergências fonéticas sem considerar que a norma de um ou de outro país 47

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seja mais ou menos justificável do que a de outro ou outros países. Trata-se, por fim, de um instrumento que, optando por privilegiar a transparência fonémico-ortográfica, apre- senta soluções que a investigação científica sobre a aprendizagem das línguas e da escrita das línguas tem identificado como muito benéficas do ponto de vista didático. O mundo atravessa presentemente vários desafios cujo desfecho não é facilmente descortinável. A reafirmação de blocos de solidariedade internacional variados e que pos- sam propor alternativas a ameaças oriundas de hegemonias instaladas ou emergentes que poderiam, no limite, voltar a pôr em causa importantes conquistas históricas pode ser uma forma de cimentar alianças e de incrementar forças no plano das relações entre povos e entre países capazes de resistir a novas tentativas de submissão cultural. Substituir as soberanias egoístas do passado por soberanias partilhadas como a que o AO90 possibili- tou e possibilita será certamente um passo linguístico mas também um passo político no caminho para a paz, para o entendimento, para a cooperação e para a construção de espa- ços partilhados de riqueza e de oportunidades igualmente partilhadas. REFERÊNCIAS 1. Aaron, P. G. 1989. Orthographic Systems and Developmental Dyslexia: A Reformu- lation of the Syndrome. In: P. G. Aaron, R. Malatesha Joshi (Eds.). Reading and Writ- ing Disorders in Different Orthographic Systems. Dordrecht: Kluwer, pp. 379-400. 2. Alcock, K. J.; Ngorosho, D. 2003. Learning to spell a regularly spelled language is not a trivial task: patterns of errors in Kiswahili. Reading and Writing: An Interdiscipli- nary Journal. 16(7): 635-666. 3. Chomsky, N. 1986. Knowledge of Language. Its Nature, Origin and Use. New York, Praeger. Trad. port. de A. Gonçalves, A. T. Alves. O Conhecimento da Língua. Sua Natureza, Origem e Uso. Lisboa: Caminho, 1994. 4. Cossu, G. 1999. The acquisition of Italian orthography. In: M. Harris, G. Hatano (Eds.). Learning to Read and Write. A Cross-Linguistic Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 10-33. 5. Coulmas, F. 2003. Writing Systems. An introduction to their linguistic analysis. Cam- bridge: Cambridge University Press. 6. Daniels, P. 2010. Writing in the World and Linguistics. Papers of the Berkeley Lin- guistics Society. 36: 61-90. 7. Goswami, U.; Ziegler, J. C.; Dalton, L.; Schneider,W. 2003. Nonword reading across orthographies: How flexible is the choice of reading units?. Applied Psycholinguistics. 24(2): 235-247. 8. Hult, F. M.; Johnson, D. C. (Eds.). 2015. Research Methods in Language Policy and Planning. A Practical Guide. Oxford: Wiley-Blackwell. 48

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Questões controversas das novas grafias. Soluções pontuais 50

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A Negação do Acordo Ortográfico de 1990: Leitu- ras e Alternativas António Fernandes da Costa Docente da Faculdade de Ciência Humanas da Universidade Católica de Angola INTRODUÇÃO Há países, instituições, personalidades que não aderiram ao Acordo Ortográfico de 1990. As razões da discordância são múltiplas. Se, a este propósito se pode aplicar o aforismo popular “cada cabeça sua sentença”, há razões que estão entre as mais glosadas. A oposição à eliminação das consoantes mudas, uma proposta inserida na Base IV do tratado internacional, figura certamente entre as razões mais determinantes da discordân- cia. Em Angola, o mote mais em foco da discordância do tratado reside no não reconhe- cimento das consoantes pré-nasais que entram na formação da fronteira inicial de nomes próprios, como topónimos e antropónimos, oriundos das línguas bantu. Nesta conformidade, o presente trabalho será constituído por duas partes. Uma pri- meira parte será relacionada com a questão da eliminação das consoantes mudas e uma segunda parte focada na problemática do não reconhecimento das consoantes pré-nasais, por parte das entidades que arquitectaram o tratado internacional. 1. O ACENTO EM PORTUGUÊS 1.1. O ACENTO PRINCIPAL EM PORTUGUÊS Num trabalho publicado na revista Lucere, órgão pluridisciplinar de divulgação ci- entífica da Universidade Católica de Angola, relacionámos o estudo da eliminação das consoantes mudas com o timbre das vogais que precedem essas consoantes. Nos termos da regulação da gramática tradicional, essas consoantes têm a finalidade de legitimar a abertura das vogais precedentes. No presente trabalho, vamos relacionar o mesmo estudo com o acento em português, embora cheguemos à mesma conclusão. Na língua portuguesa, prevalece o acento de intensidade. A sílaba acentuada em Português distingue-se das outras sílabas por um conjunto de propriedades acústicas. 51

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Contrasta com outras sílabas por ser produzida com maior ênfase articulatória, isto é, maior intensidade, sendo acompanhada de maior duração, altura e amplitude sonoras. A ênfase articulatória corresponde à pressão de ar com que se realiza a sílaba, a duração depende do tempo de produção, a altura da frequência e a amplitude da distância de ex- pansão sonora. Estas propriedades são directamente proporcionais. Quanto maior for a a ênfase articulatória, ou seja, a intensidade, na realização fonética de uma sílaba, maiores também serão a duração, a altura e a amplitude. Na análise do acento, em Português, há três tendências em confronto. A primeira ten- dência, considerada como fonológica é a que reparte as palavras, quanto à proeminência acentual, em três grupos, em oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas, conforme são acen- tuadas na última, na penúltima ou na antepenúltima sílaba, como se ilustra: 1. a) chapéu [ꭍɐ´pεw]; b) professor [pɾufɨ´soɾ]; c) escola [ɨꭍ´kͻlɐ]; d) madeira [mɐ´dεjɾɐ]; e) matemática [mɐtɨ´matikɐ]; f) parábola [pɐ´ɾabulɐ]. Esta traduz a primeira versão teórica sobre o acento em Português, devidamente exemplificada, não apenas com palavras ortograficamente representadas, como também foneticamente transcritas. Em 1(ab), temos exemplificações de palavras oxítonas, cha- péu e professor, em 1(cd) exemplificações de palavras paroxítonas, escola e madeira, e de palavras proparoxítonas, em 1(ef), matemática e parábola. A segunda e a terceira concepções sobre o acento têm sido consideradas morfológi- cas, por se apresentarem baseadas na forma das palavras, na língua portuguesa. Assim, a segunda versão consiste na tendência dos que defendem a teoria de que o acento, em português, recai sobre a penúltima sílaba da palavra, de acordo com os exemplos: cadeira [kɐ´dεϳɾɐ]; cabelo [kɐ´belu]; caderno [kɐ´dεɾnu]; sentimento [sẽti´mẽtu]; trabalho [tɾɐ´baλu]; falava [fɐ´lavɐ]; percebes [pɨɾ´sεbɨꭍ]; partimos [pɐ´timuꭍ]. A concepção desta corrente baseia-se nos pressupostos acentuais da maior parte das palavras, em português, que são paroxítonas. Esta concepção tem as suas consequên- cias: a primeira consequência reside na caracterização do acento, em Português, que é concebido como acento fixo, inscrito no acervo lexical tradicional, como acontece, por exemplo, em Francês, uma língua em que o acento dominante recai sobre a última sílaba; 52

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a segunda consequência consiste na exclusão desta regra acentual das palavras oxítonas e proparoxítonas que passam a ser consideradas excepções, uma vez que se concebe que o acento dominante recai sobre a penúltima sílaba. Assim, formam uma excepção à regra do acento palavras proparoxítonas e oxítonas como: abóbora [ɐ´bͻbuɾɐ]; mármore [´maɾmuɾɨ]; política [pu´litikɐ]; dramático [dɾɐ´matiku]; café [kɐ´fε]; amar [ɐ´maɾ]; falar [fɐ´laɾ]; papel [pɐ´pεꬷ]. Uma crítica que se levanta a esta corrente reside na exclusão das palavras oxítonas que, no léxico do português, não são tão reduzidas, que mereçam constituir uma excepção à regra do acento. Na verdade, são numerosas, fazendo pouco sentido situá-las no campo das excepções. A terceira tendência é a dos que defendem o conceito de que o acento, em Portu- guês, ocorre na vogal da última sílaba do radical, nos nomes e adjectivos e na vogal da última sílaba do tema, nos verbos (Mateus, 2003: 1038- 1047). Esta definição, opõe-se à versão anterior. Exemplifica-se: cadeira [kɐ´dεϳɾɐ]; cabelo [kɐ´belu]; famoso [fɐ´mozu]; notável [nu´tavεꬷ]; falava [fɐ´lavɐ]; percebes [pɨɾ´sεbɨꭍ]; partimos [pɐɾ´timuꭍ]. Como se observa dos lexemas transcritos, o acento recai na vogal da última sílaba do radical nos nomes e adjectivos, em dei, em cadeira, em be, em cabelo, em mo, em famoso, e na sílaba tá, em notável, na vogal da última sílaba do tema nas estruturas verbais representadas em la, em falava, em ce, em percebes, em ti, em partimos. Esta concepção do acento tem também as suas consequências: a primeira consequência reside no facto de o acento deixar de ser concebido como fixo, lexical e passar a ser definido como um sinal livre; a segunda consequência sobressai do facto de esta atribuição do acento envolver também as palavras oxítonas, que deixam de figurar entre as excepções, passando a seguir a regra acentual geral. Exemplifica-se: lençol [lẽ´sͻꬷ]; café [kɐ´fε]; falar [fɐ´laɾ]; papel [pɐ´pεꬷ] De facto, não faz nenhum sentido que um acervo tão numeroso de lexemas, como os oxítonos, no interior da língua portuguesa, não seja incluído na regra acentual geral e figure entre as exepções. Neste caso concreto, não seguem a regra geral do acento apenas as palavras proparoxítonas que passam a englobar as excepções, como: 53

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abóbora [ɐ´bͻbuɾɐ]; máscara [´maꭍkɐɾɐ]; mármore [´maɾmuɾɨ]; política [pu´litikɐ]; dramático [dɾɐ´matiku]. Como se pode observar, as proparoxítonas são todas marcadas com acentos grá- ficos, por serem justamente excepções. O acento das palavras é graficamente marcado, em Português, quando elas não sequem a regra geral. 2.2. O ACENTO SECUNDÁRIO EM PORTUGUÊS O que ficou dito é respeitante ao acento principal. Além deste acento, podem surgir outras zonas de palavras pronunciadas com ênfase acentual e que constituem o acento secundário. Para melhor clarificação da diferenciação entre as duas particularidades acentuais, consideremos as seguintes palavras e, mais uma vez, as respectivas transcrições fonéti- cas: perplexidade [pɨrplεksi´dadɨ]; efectivo [ɨfε´tivu]; perplexo [pɨr´plεksu] selecto [sɨ´lεtu]; acto ´[atu;] óptimo [´ͻtimu] Na lista de exemplos, figuram palavras com acento principal e acento secundário e palavras apenas com acento principal. São palavras com acento principal e acento secun- dário, perplexidade, efectivo; são palavras apenas com acento principal perplexo, se- lecto, acto, óptimo. Em perplexidade, o acento secundário é atribuído ao segmento si- lábico ple, enquanto a sílaba da contém o acento principal; em efectivo, o acento secun- dário recai sobre a sílaba fec, contendo o segmento silábico ti o acento principal. As restantes palavras, como perplexo, selecto, acto, óptimo são definidas como portadoras de acento principal apenas, respectivamente, nas sílabas complexas ple, lec e sílabas vocálicas simples ac, op. De acordo com o que ficou especificado, a consoante muda figura em posição de coda da sílaba (cf. Duarte, 2000: 245)3, sem constituir nenhuma coda, uma vez que não tem realização fonética. Ela aparece caraterizada por uma representação gráfica, mas não 3 Inês Duarte fornece-nos uma noção de coda e de ataque de uma sílaba, mas não relaciona estes traços linguísticos com o funcionamento da consoante muda. 54

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é pronunciada foneticamente. Nesta conformidade, os núcleos das sílabas ac, e op, são vazios, já o núcleo da sílaba fec não é vazio, só porque é marcado pelo segmento conso- nântico f no início que constitui o ataque da sílaba (cf. Duarte, 2000: 245), se recorrermos à designação mais comum, na terminologia fonética. Muitos termos derivados exibem um acento secundário, já que o termo subjacente, o derivante, conserva o acento na nova estrutura. Como se verifica, em perplexidade, a sílaba ple conserva a ênfase acentual que já provém de perplexo, que não só contém o acento principal, como o núcleo silábico é aberto. Este pormenor evidencia-se pela trans- crição fonética dos termos que levamos a cabo. Têm também servido de ilustração desta concepção de acento secundário os deri- vados marcados pelos sufixos inho e z-avaliativo. Por exemplo, escolinha [ɨꭍkͻ´liռɐ], cafezinho [kɐfε´ziռu]. Pela transcrição fonética, que acompanha estes derivados, podemos verificar que os exemplos dados se distinguem, por serem portadores de acentos secundários, além do acento principal. Os acentos secundários figuram nas sílabas co e fe, enquanto os acentos principais nas sílabas li e zi, respectivamente. Na língua portuguesa, ocorre ainda um leque de derivados com mais de um acento secundário, na sua estrutura. Podem servir de exemplo deste leque alguns derivados em mente, estruturados por termos subjacentes que já contêm um acento secundário, antes da formação da estrutura derivada. Em efectivamente e agradavelmente, temos dois acentos secundários, em cada derivado, além do acento principal. As sílabas fec e ti, no primeiro derivado, e as sílabas da e vel, na segunda expressão derivada, respectivamente, são marcadas pelo acento secundário, enquanto na sílaba men prevalece o acento princi- pal, por configurar o segmento silábico tónico. 3.O ACENTO E AS CONSOANTES MUDAS Tivemos a oportunidade de observar, através de ilustrações desenvolvidas que as con- soantes mudas tanto ocorrem em sílabas com acento principal, como em sílabas com acento secundário. Nesta conformidade, se nos debruçarmos sobre a posição e o funcionamento das con- soantes mudas e tendo em conta o que ficou explícito, podemos resumidamente dizer o seguinte: 55

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• as consoantes mudas figuram em sílabas com proeminência acentual, isto é, em sílabas com os núcleos acentuados; • não figuram em sílabas sem proeminência acentual, ou seja, em sílabas sem acen- tuação dos núcleos, sílabas consideradas átonas; • as consoantes mudas não figuram em sílabas com acento principal de palavras oxítonas, mas apenas em sílabas com acento principal de palavras paroxítonas e proparoxítonas; a palavra actual é oxítona e carrega uma consoante muda, mas não na sílaba que tem o acento principal; • as consoantes mudas figuram na posição de coda da sílaba, mas elas não consti- tuem nenhuma coda, por não terem realização fonética; • como já ficou explícito, às consoantes mudas é reservado o papel de legitimação da abertura dos núcleos silábicos. • assim, as sílabas que contêm as consoantes mudas não só são pronunciadas com ênfase acentual, como os respectivos núcleos são também constituídos por vogais abertas. Exercendo as consoantes mudas por tradição a função de garantir a abertura das vo- gais que formam os núcleos silábicos, não só das sílabas com acento principal, como também das sílabas com acento secundário, quando essas consoantes surgem, a sua eli- minação tem merecido a condenação dos opositores do Acordo Ortográfico. A deduzir- se dos termos da condenação, essa eliminação põe em causa a identidade da língua por- tuguesa. É o que se depreende deste comentário, da responsabilidade de uma personali- dade que se opõe ao Acordo, no qual se invoca um “dramático empobrecimento” da lín- gua portuguesa, a propósito das modificações propostas pela Base IV: Basta ler-se a citação que, na Introdução a este trabalho, fazemos a um insus- peito texto de Antônio Houaiss, Celso Cunha e outros (autores, todos eles, bra- sileiros), para se verificar como, também nestes casos estamos perante um mito. E, no Anexo à BASE IV, exemplificado a propósito de “acção”, julgamos ter deixado claro que, em vez de simplificação, podemos estar, sim, perante um dramático empobrecimento (Gomes, 2010: 188). Na Introdução ao seu trabalho, o autor do comentário, acabado de ser transcrito, diz o que vem a seguir, citando autores brasileiros, a propósito da Base IV do Acordo Ortográfico, que consagra a eliminação das consoantes mudas: Lembramos, aqui e agora, que até mesmo uma insuspeita equipa de distintíssi- mos investigadores brasileiros, como eram António Houaiss, Celso Cunha, Celso Pedro Luft, Fábio Lucas, dentre outros…, designada pelo Governo Brasi- 56

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leiro para elaborarem as “Directrizes para o aperfeiçoamento do ensino/apren- dizagem da língua portuguesa”, escreveu no respectivo Relatório: […] Deste modo, reconheça-se que um sem-número de projectos “simplificadores” devem ser rejeitados[…] Atente-se também que as “dificuldades” de um sistema orto- gráfico podem fazer-se virtualidades para o bom domínio da língua de cultura: é que não se “facilita” o aprendizado de uma língua de cultura pela mera simpli- ficação ortográfica (Gomes, 2010: 11). Achamos que o autor deste comentário talvez fosse mais feliz e a sua contra-ar- gumentação mais mobilizadora e com maior representatividade, se citasse outros autores. Pois, ao citar os autores brasileiros, passou a julgar o mesmo fenómeno com uma duali- dade de critérios. O que questionamos não é a citação dos brasileiros, não são os autores citados. O nosso questionamento decorre do facto de serem citados estes autores, a pro- pósito da condenação da eliminação das consoantes mudas, quando os brasileiros foram os primeiros. Ao eliminar as consoantes mudas, o que fizeram os brasileiros? Não facili- taram a aprendizagem da língua? Para uma melhor explicitação da contra-argumentação das vozes discordantes, se na palavra efectivo, o fonema vocálico [e], que precede a consoante [c], se realiza com um timbre definido por um traço fónico [+BAIXO], ou seja, soa como uma vogal aberta, esta vogal deixará de exibir o valor fonológico que se lhe atribui, caso se observe a queda ortográfica do fonema consonântico. Isto levaria a que a palavra fosse representada orto- graficamente efetivo, acabando a vogal [e] por se transformar num fonema vocálico de- finido pelo traço fónico [+ALTO] (Faria, 1996:183) 4. Reconvertendo-se numa vogal átona, perderia, de igual modo, o acento secundário. Apresentamos apenas um caso ilus- trativo. Poderíamos desdobrar os exemplos. Achamos que os receios sobre o enfraquecimento dos núcleos silábicos ladeados por consoantes mudas, na sequência da eliminação destas não têm razão de ser, quer em segmentos silábicos marcados por acento principal, quer em fragmentos silábicos defini- dos por acento secundário. Existem, na língua portuguesa, quer em posição tónica, quer em posição pré-tónica sílabas com ênfase acentual e com os respectivos núcleos consti- tuídos por vogais abertas, sem legitimação de consoantes mudas e palavras assim carac- terizadas não são poucas, na língua portuguesa. O acento destas sílabas e a abertura dos núcleos não enfraquecem. Exemplifica-se: escola [ɨꭍ´kͻlɐ]; caderno [kɐ´dεɾnu]; 4 Seguimos aqui os parâmetros classificatórios da matriz fonológica de Chomsky e Halle. 57

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papel [pɐ´pεꬷ]; esquecer [ɨꭍkε´seɾ]; esquecimento [ɨꭍkεsɨ´mẽtu]; aquecer [ɐkε´seɾ]; aquecimento [ɐkεsɨ´mẽtu]; economia [ɨkͻnu´miɐ]; normal [nͻ´maꬷ]; normalmente [nͻmaꬷ´mẽtɨ]. Como se observa, deste elenco de palavras sobressaem fragmentos silábicos com núcleos definidos por vogais abertas, sem que esta abertura seja legitimada por consoan- tes mudas, de acordo com a transcrição fonética desenhada de cada expressão. Podería- mos multiplicar os exemplos. Verificamos a ocorrência de fragmentos silábicos com o timbre aberto dos núcleos em sílabas tónicas, marcadas pelo acento principal, sem que as mesmas sejam ladeadas de consoantes mudas, como se ilustra, em: ]escola [ɨꭍ´kͻlɐ]; caderno [kɐ´dεɾnu]; papel [pɐ´pεꬷ]. Mas também o mesmo fenómeno se verifica em segmentos silábicos com acento secundário: sílabas com o timbre dos núcleos aberto, como se transcreve foneticamente, sem que elas sejam ladeadas por consoantes mudas, com se mostra. esquecer [ɨꭍkε´seɾ]; aquecer [ɐkε´seɾ]; normal [nͻɾ´maꬷ]; esquecimento [ɨꭍkεsɨ´mẽtu]; aquecimento [ɐkεsɨ´mẽtu] economia [ɨkͻnu´miɐ]; normalmente [nͻmaꬷ´mẽtɨ]. Se o acento destas sílabas e o timbre aberto dos respectivos núcleos não enfraque- cem, não serão certamente as sílabas ladeadas por consoantes mudas que irão enfraque- cer, na sequência da eliminação destas. Achamos que há um certo exagero no proteccionismo concedido às consoantes mudas. Consideremos, por exemplo, outro grupo de palavras: óptimo; sintáctico; dialéctico; didáctico; reflicto; reflicta Não compreendemos a razão por que estas palavras continuam a manter as con- soantes mudas. Se, conforme a tradição, a finalidade das consoantes mudas é a legitima- ção do timbre dos núcleos silábicos das sílabas que ladeiam, qual a função destas conso- antes mudas nas três primeiras palavras, se estas são proparoxítonas e obrigatoriamente 58

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marcadas por acento gráfico que abre o timbre das vogais? Há aqui uma redundância no exercício da mesma função. Relativamente às duas últimas palavras, voltamos a interrogar-nos qual a função das consoantes mudas se os núcleos silábicos das sílabas que ladeiam são preenchidos pelo segmento vocálico i, sendo este tradicionalmente fechado? 4. AS CONSOANTES PRÉ-NASAIS E O ACORDO ORTOGRÁ- FICO Conforme ficou explícito na introdução do presente trabalho, Angola figura entre os países que não abraçaram de maneira favorável o Acordo Ortográfico de 1990. Uma das causas mais focadas (provavelmente a única) reside no não reconhecimento das con- soantes pré-nasais que entram na formação de nomes próprios provenientes das línguas bantu. O reconhecimento destas consoantes implicará/implicaria a sua introdução no sis- tema consonântico português, tal como foram introduzidos os símbolos k, designado capa, w, conhecido por dáblio, y, conhecido sob a designação ípsilon ou i grego. De acordo com os mentores do tratado internacional, a introdução destas letras ajusta-se à necessidade de representação de: a) nomes próprios e seus derivados; b) unidades monetárias; c) símbolos de uso internacional; d) topónimos e derivados; e) desportos e desportistas. As funções reservadas às consoantes pré-nasais não são estranhas aos objectivos que cumprem os símbolos que acabamos de referir. Essas funções estão previstas nas alíneas a) e d), ou seja, representação de nomes próprios e seus derivados e topónimos e derivados. Em Julho de 2009, realizou-se, no Museu de História Natural uma Oficina de Trabalho sobre o Acordo Ortográfico, uma actividade organizada sob a direcção do Mi- nistério da Educação e que abarcou variadas áreas associadas ao tema central e diversos especialistas. Na sequência do evento, o Ministério da Educação da República de Angola 59

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solicitou parecer sobre o Acordo Ortográfico a uma personalidade portuguesa também presente no encontro e que foi a única voz discordante deste tratado internacional. Na opinião desta personalidade a quem o Ministério da Educação solicitou pare- cer, havia necessidade de um Acordo Ortográfico, mas não este, como se lê: Na obra – O Acordo Ortográfico (2008) -, pronunciámo-nos favoravelmente pela neces- sidade de um acordo ortográfico. E, aí, desmontámos os principais argumentos daqueles que se opõem a tal necessidade. Isso não nos impediu, todavia, de manifestarmos, em vários segmentos da mesma, claras reservas relativamente a algumas das decisões consagradas na “versão de 1990”. É que, a nosso ver, esta versão estrutura-se, na sua filosofia geral, a partir de três mitos que, neste “Parecer”, julgamos ter demonstrado. São eles: 1. o mito da uni(ci)dade; 2. o mito simplificação pedagógica e 3. o mito da parcimónia. lê (Gomes, 2010: 187) O parecer foi elaborado e entregue ao Ministério da Educação da República de Angola, em Abril de 2010. Trata-se de um trabalho estruturado por cento e oitenta e cinco páginas. Relativamente ao caso concreto de Angola, o autor insere apenas três parágrafos, no parecer: um parágrafo, na introdução, e dois parágrafos, na conclusão. O restante trabalho consubstancia a análise das bases, como afirma ele próprio, “aqui e agora anali- samos BASE a BASE” (Gomes, 2010: 14). Assim, na introdução, lança o seguinte reparo: Com efeito, se, por um lado, há nele [no Acordo Ortográfico de 1990] segmentos muito bem conseguidos, há outros, lacunares – lembre-se as ausências de referências nor- mativas a propósito da influência das línguas bantu (como o umbundu, o quimbundo (ou kimdundu?), o quicongo (ou kikongo?), o tchokwe (ou cokwe?), o ngangela…) – ou das línguas malaio-polinésias ( como o tetum ou o mambae…) – e há, por outro, decisões (cf. em especial, as Bases IV, VIII, IX, X, XV, XVI, XVII, e XIX) que nos parece pode- rem beneficiar de maior ponderação. O autor do parecer, inteligentemente (?), não desce ao pormenor da descrição das “referências normativas a propósito da influência das línguas bantu”, limitando-se a um circunlóquio genérico, para não caminhar em terreno desconhecido e escorregadio. Uma vez que o mesmo autor se opõe ao tratado, propõe a Angola, pela lógica dos factos, a não aprovação do Acordo, como nos mostram os últimos dois parágrafos reser- vados à concretização deste parecer (Gomes, 2010: 191): Angola tem una rara oportunidade (HISTÓRICA, POLÍTICA, ESTRATÉGICA…) de escrever o futuro da língua portuguesa, travando uma deriva acaso arriscada, sem o concurso de estudos mais substantivos e iluminantes. Este “Parecer” é, pois, mais um estudo, que aqui dei- xamos como nosso empenhado contributo. 60

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É verdade que, até à presente data, em que escrevemos este texto, Angola não aprovou o Acordo. Conforme ficou explícito, uma das razões mais destacadas do desa- cordo está na não legitimação das consoantes pré-nasais, que asseguram a base da fron- teira inicial dos nomes próprios, topónimos e antropónimos, não havendo, a este propó- sito, quaisquer referências no corpo concebido do documento. Em Agosto de 2019, o Jornal de Angola, num Editorial intitulado “O processo de adesão ao Acordo Ortográfico”, escrevia o seguinte (Jornal de Angola, 28/8/19: 6): A adequação de especificidades do português escrito e falado em Angola, decorrente da influência das línguas nacionais, deve ser definida e preservada antes que a ratificação do Acordo Ortográfico, de forma apressada e aparentemente incon- dicional como provavelmente muitos esperam, torne irreversíveis situações que se pretende evitar. Na verdade, ao longo de várias décadas, numerosos vocábulos de in- fluência linguística africana acabaram indevida e desnecessariamente aportuguesados, chegando em muitos casos, a provocar formas curiosas na diferença entre a pronúncia e a escrita. Contrariamente à eventual percepção de que recusa, oposição ou resistência, a República de Angola apenas pretende ver salvaguardados os aspectos importantes da língua, tal como falada e escrita nom país. Ratificar o acordo ortográfico sem assegurar que, por exemplo, a pronúncia e grafia “Ngola” se mantenha na língua portuguesa tal como ela existiu na língua nacional kimbundu é um retrocesso, completamente evitável. Não se pode aceitar que as expressões derivadas das lín- guas nacionais, particularmente nomes próprios com a grafia bantu, estejam de fora ou, na pior das hipóteses, conheçam uma grafia e pronúncia diferentes da original5. O que acabou de ser transcrito corresponde ipsis verbis ao que referimos. Entra na estruturação da palavra “Ngola” um fragmento equivalente a um fonema consonântico pré-nasal, /ng/. Trata-se de uma preocupação legítima de quem quer ver os seus valores reconhecidos e enaltecidos. Contudo, no segmento discursivo transcrito, através da pala- vra “Ngola”, temos apenas uma ilustração equivalente às consoantes pré-nasais,. O sis- tema fonológico das línguas bantu não é configurado por uma consoante pré-nasal ape- nas, nem por duas, mas por várias. Nos quadros seguintes, podemos colher uma informa- ção e ter uma percepção das diferentes consoantes pré-nasais que entram na formação de nomes próprios oriundos das línguas bantu, de topónimos a antropónimos. Quadro ilustrativo 1 - Consoante pré-nasal /mb/ Nome Campo semântico Consoante do português Consoante pré-nasal próprio Mbanza Topónimo Alofone Alofone Antropónimo b mb 5 O carregado é nosso. 61

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Quadro ilustrativo 2 – Consoante pré-nasal /nd/ Nome próprio Campo semântico Consoante do português Consoante pré-nasal Alofone Alofone Ndalatando Topónimo d nd Ndalo Antropónimo Quadro ilustrativo 3 – Consoante pré-nasal /ng/ Nome próprio Campo semântico Consoante do português Consoante pré-nasal Ngola Alofone Alofone Topónimo g ng Antropónimo Acidente geográfico Quadro ilustrativo 4 – Consoante pré-nasal /nj/ Nome próprio Campo semântico Consoante do por- Consoante pré-nasal Njolela Antropónimo tuguês Alofone Alofone j nj Quadro ilustrativo 5 – Consoante pré-nasal /nl/ Nome pró- Campo semântico Consoante do português Consoante pré-nasal prio Antropónimo Alofone Alofone l nl Nlando Quadro ilustrativo 6 – Consoante pré-nasal /nk/ Nome próprio Campo semântico Consoante do portu- Consoante pré-nasal Nkonde Alofone Nome próprio guês nk Mpanzo Alofone Consoante pré-nasal Alofone Antropónimo k mp Topónimo Quadro ilustrativo 7 – Consoante pré-nasal /mp/ Campo semântico Consoante do por- Antropónimo tuguês Alofone p Quadro ilustrativo 8 – Consoante pré-nasal /nt/ Nome próprio Campo semântico Consoante do por- Consoante pré-nasal Ntondo Antropónimo tuguês Alofone Alofone t nt 62

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Quadro ilustrativo 9 – Consoante pré-nasal /nv/ Nome próprio Campo semântico Consoante do por- Consoante pré-nasal tuguês Alofone  Nvunda  Antropónimo (apesar Alofone de ser nome comum) nv  Nvwanvwala v  Nvango  Topónimo  Nvunje  Acidente Geográfico  Antropónimo Quadro ilustrativo 10 - Consoante pré-nasal /nz/. Nome próprio Campo semântico Consoante do por- Consoante pré-nasal tuguês Alofone Nzeto Topónimo Alofone Nzamba Antropónimo (apesar de z nz ser nome comum) Uma breve interpretação destes segmentos consonânticos combinados com a série de consoantes do Português induz-nos a constatar que estabelecem entre eles uma relação de alofonia híbrida ou hibridismo alofónico. O segmento consonântico /mb/ será um alo- fone de /b/ e, por sua vez, a consoante /b/, será um alofone da consoante /mb/; a conso- ante /nd/ será um alofone de /d/ e, por sua vez, o segmento consonântico /d/ será um alofone de /nd/ e assim por diante. Como vemos, temos representadas, nestes quadros, dez consoantes pré-nasais, nomeadamente, mb, nd, ng, nj, nl, nk, mp, nt, nv, nz, sendo todas estruturantes da fronteira inicial de nomes próprios. No final, o alfabeto do português deixará de ser constituído por vinte e seis sím- bolos, nos termos do Acordo Ortográfico de 1990, e passará a ser constituído por trinta e seis símbolos: ap b mp mb q cr ds nd t e nt 63

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fu v g nv ng w hx iy jz nj nz k nk l nl m n o Uma introdução destas unidades fonológicas no sistema consonântico português não poderá limitar-se à selecção de umas e à exclusão de outras. Pois, não será legítimo admitir umas consoantes e excluir outras. Caso o processo vá avante, terão de ser selec- cionadas todas as consoantes com essa particularidade, a de fazerem parte da fronteira inicial de topónimos e antropónimos incorporados na linguagem verbal do nosso dia-a- dia. Pensamos que a questão que se coloca circunscreve-se hoje a um dilema: a aceitação ou não da solução a propor por outros signatários do Acordo Ortográfico. Quanto aos outros signatários deste tratado internacional, Moçambique deve ter o mesmo problema que Angola, uma vez que nesse território também avultam sistemas de comunicação de origem bantu. É possível que os outros países se coloquem ao lado de Angola, por uma questão de solidariedade. Contudo, temos muitas dúvidas que Portugal e Brasil aceitem introduzir esta alofonia híbrida no sistema consonântico da língua por- tuguesa. 64

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Conclusão Julgamos não existirem razões para, em nome da identidade da Língua Portu- guesa, se condenar o processo de eliminação das consoantes mudas que a Base IV do Acordo Ortográfico de 1990 consagra. Pois, ocorrem na Língua Portuguesa inúmeras pa- lavras portadoras de vogais abertas, quer em posição de acento principal, quer em posição de acento secundário, conforme ficou ilustrativamente comprovado, sem que esta proe- minência acentual seja legitimada por consoantes mudas. O timbre de vogais assim ca- racterizadas está muito longe de enfraquecer. Não seria apenas o timbre de algumas vo- gais que enfraqueceria, na sequência da eliminação das consoantes mudas. Torna-se justo reconhecer a legitimidade da pretensão angolana. Mas onde encon- trar alguém com uma argumentação tão mobilizadora e tão catalisadora que seja capaz de convencer os outros signatários do Acordo a aceitar a introdução desta alofonia hí- brida, no sistema consonântico do Português? No caso de não encontrarmos ninguém capaz de dar o salto a uma fasquia colocada num ponto tão alto, o que vai acontecer depois? No caso de não encontrarmos ninguém capaz de convencer os outros signatários do Acordo a aceitar este hibridismo alofónico, no sistema consonântico do Português, continuaremos “orgulhosamente sós” a praticar de forma indefinida as regras da ortogra- fia antiga? Bibliografia 1. CASTELEIRO, João Malaca e Pedro Dinis Correia, Actual – Novo Acordo Or- tográfico, Texto Editores, Lisboa, 2008. 2. DUARTE, Inês, Língua Portuguesa – Instrumentos de Análise, Universidade Aberta, Lisboa, 2000. 3. FARIA, Isabel Hub (Org.) et alii, Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, Caminho, Lisboa, 1996. 4. GOMES, Álvaro, Parecer sobre o Acordo Ortográfico de 1990 (Redigido por solicitação do Ministério da Educação da República de Angola), H&I Edições, Luanda, 2010. 5. JORNAL DE ANGOLA, 28 de Agosto de 2019, p. 6. 6. MATEUS, Maria Mira, Gramática da Língua Portuguesa, Caminho 65

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Sobre o uso do hífen em derivados prefixais e com- postos Maria do Céu Caetano Universidade Nova de Lisboa (FCSH / CLUNL) Resumo Após uma breve introdução, em que se fará referência a distintos sistemas de es- crita e a algumas diferenças entre a oralidade e a escrita, nesta apresentação procurar-se- á mostrar como, apesar de ser muito mais conservadora do que a oralidade, a(s) escrita(s) do português foram mudando de época para época, desde a adaptação da escrita latina a novas realidades fonéticas, passando pelas várias tentativas de acordos ortográficos desde 1924, até chegarmos ao Acordo Ortográfico mais recente (1990)6. A propósito deste e tendo por base o tópico em que se insere este trabalho, procederemos ao seu enquadra- mento e de seguida serão descritas algumas das principais mudanças, nomeadamente o alargamento do alfabeto, o uso de minúsculas e maiúsculas, a acentuação, as consoantes mudas e o uso do hífen, incidindo a análise sobre este último aspeto. Interessar-nos-á sobretudo discutir as regras de utilização do hífen no que diz res- peito às palavras formadas por prefixação e por composição, ou daquelas do mesmo tipo oriundas de outros sistemas linguísticos que são posteriormente adaptadas à(s) grafia(s) do português, ou seja, determinar em que medida existe ou não consistência nas soluções preconizadas. Espera-se, pois, que este trabalho possa de alguma forma contribuir para esclare- cer algumas questões mais controversas que envolvem a utilização do hífen nalguns pro- dutos resultantes de processos regulares de formação de palavras. Abstract After a brief introduction, in which reference will be made to different writing sys- tems and to some differences between speaking and writing, this paper aims at showing that despite being much more conservative than speaking, the Portuguese writing has been changing from time to time, since the adaptation of Latin writing to new phonetic 6 Para consulta do texto do Acordo e dos vários documentos com ele relacionados, aceda-se ao Portal da Língua Portuguesa, disponível em http://www.portaldalinguaportuguesa.org/. 66

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realities, going through the various attempts at orthographic agreements since 1924, until we reach the most recent Acordo Ortográfico (1990). After a brief outline of the several orthographic reforms attempts, the main changes, namely the enlargement of the alpha- bet, the use of lower case and uppercase, the word stress, the mute consonants and the use of the hyphen will be appointed, focusing the work on the latter topic. It will be of particular interest to discuss the rules for the use of the hyphen with regard to words formed by prefixation and compounding, or those of the same type de- rived from other linguistic systems that are subsequently adapted to the Portuguese graphy(ies), that is, to determine to what extent there is or is not consistency in the rec- ommended solutions. Therefore it will be expected that this work may in some way help to clarify some more controversial issues involving the use of hyphen in some products resulting from regular word-forming processes. 1. Introdução Um dos aspetos que me parece merecer alguma atenção em função de uma pos- sível revisão do texto do Novo Acordo Ortográfico de 1990 são alguns dos pontos dedi- cados à utilização (ou não utilização) do hífen em palavras complexas derivadas e com- postas, sendo, por isso, importante discutir em que medida existe ou não consistência nalgumas soluções preconizadas. Na introdução deste artigo, farei uma breve referência a distintos sistemas de escrita e a algumas diferenças entre a oralidade e a escrita, nomeadamente o carácter convencional e regulamentável da segunda, procurando mostrar, de seguida, como a es- crita do português foi mudando de época para época, desde a primitiva produção textual até à atualidade, apontando as várias tentativas de reformas ortográficas que ocorreram no século XX. Tendo por base o tópico em que se insere este trabalho, limitar-me-ei a indicar algumas das principais mudanças consignadas no Acordo Ortográfico de 1990 (alarga- mento do alfabeto, uso de minúsculas e maiúsculas, acentuação, consoantes mudas), in- cidindo, naturalmente, a análise sobre o uso do hífen. De acordo com Halliday (1989), o aparecimento da oralidade, enquanto sistema de expressão, é muito antigo e relaciona-se com outras características da espécie humana, tais como o andar ereto e o uso dos instrumentos. A vida em sociedade implicou um 67

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sistema eficiente de comunicação e foi a linguagem que promoveu a socialização, como é tantas vezes apontado. Ao falar-se em linguagem, importa sublinhar as diferenças entre as suas duas formas de produção, a oralidade e a escrita, nomeadamente o facto de a oralidade ser um sistema primário, dinâmico e não regulamentável e a escrita um sistema secundário, estático e sujeito a regulamentação. Tanto assim é que nenhum ser humano precisa de ser ensinado a falar, esta é uma capacidade biológica inerente a todos os indi- víduos, ao passo que a escrita resulta de um longo processo de apreendizagem formal, sendo uma atividade que vem consolidar a representação dos fonogramas que intervêm na descodificação das palavras. Embora por norma ao referir-nos à escrita pensemos nos sistemas alfabéticos, convém ter presente a existência de diferentes sistemas de representação escrita, nomea- damente os pictográficos e os logográficos (ou ideográficos)7, em que um símbolo repre- senta um conceito, e os silábicos, em que um símbolo representa uma sílaba. Como é sabido, o primeiro alfabeto foi criado pelos fenícios, que o vulgarizaram ao longo de todo o Mediterrâneo, ao mesmo tempo que desenvolviam as suas trocas co- merciais, e serviu de base à escrita de diversos povos semitas (além dos fenícios, dos hebreus, assírios, aramaicos e árabes). Mais tarde, este alfabeto viria a ser adaptado pelos gregos e, na sequência dessa modificação, surgiu um novo alfabeto, constituído por 16 caracteres. Apesar de em termos de história da humanidade a escrita ser uma invenção recente, se pensarmos que o alfabeto latino foi criado a partir do grego e que este remonta ao fenício, ficamos com a ideia do quão arcaico é um dos alfabetos que melhor conhece- mos e que utilizamos atualmente. Nos sistemas alfabéticos só idealmente um símbolo representa um segmento so- noro, isto é, a maioria dos sistemas de escrita alfabéticos são “imperfeitos”, pois, apesar de tendencialmente cada símbolo gráfico representar um fonema, isso nem sempre acon- tece. Veja-se o caso do grafema <e>, em português, que, ao invés de um, corresponde a cinco sons: [Ε] (terra), [ε] (dedo), [] (bebida), [ι] (estrear) e, no português europeu pa- drão, [ ] (igreja). Por outro lado, nem todos os sons são representados por um único grafema (por exemplo, [Σ] é representado na grafia por <ch> (chuva), <x> (enxoval) e <s> (pescar, sapatos), havendo também sons que são representados por dígrafos (por 7 Na opinião de Kato (2001: 13), os logogramas, característicos de uma fase posterior aos pictogramas, surgiram \"para facilitar o traçado, e cujo uso é gradativamente convencionalizado”. 68

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exemplo [], em ganhar, e [×], em falhar), ou até mesmo grafemas que não correspondem a som nenhum (por exemplo, <h> em homem). Assim, não é de admirar que seja o oral (e não o escrito) que nos fornece a in- formação necessária para a descrição gramatical. 2. A escrita do português no tempo e as mudanças a que esteve sujeita: alguns exemplos Nas palavras avisadas de Said Ali (1964: 20), \"De boa mente cremos que a pro- nuncia dos lusitanos da era de D. Duarte diversificava bastante do falar dos tempos de D. Affonso Henriques, e que, proferidas por Filinto Elysio, as palavras já não soavam exa- tamente como em bôca de Camões ou Vieira. Mas as palavras de todos estes tempos voaram e desappareceram; ficaram sómente os escriptos. E nestes ha mais semelhança que disparidade, pela sabidissima razão de ser a tradição escripta muito mais conserva- dora que a oral.\" Ainda segundo o mesmo autor, de destacar os escritores quinhentistas \"por terem ousado romper com a velha tradição, pondo a linguagem escripta mais de accordo com o falar corrente, que nessa epoca se achava bastante differenciado do falar de dous ou tres seculos atraz.\" (Said Ali 1964: 3-4). Podemos, deste modo, observar que, na perspetiva do autor, em sucessivos períodos, a escrita do português foi sofrendo mo- dificações. Na época do Testamento de D. Afonso II, um dos primeiros textos escritos em português8, temos aquilo que, segundo Castro (2004: 114), se caracteriza pelo \"polimor- fismo gráfico\", havendo \"um feixe privativo de procedimentos gráficos constantes\", na tentativa de se encontrar novas soluções gráficas. A seguir ao período ‘fonético’, que, para Williams (1975: 33-41), se situa entre o século XIII até ao século XV, desde o início do século XVI, são três as tendências que, de acordo com Teyssier (1994: 148), caracterizam a ortografia portuguesa: a tradição gráfica, o modelo greco-latino e a realidade fonética, tendências que, por vezes, se equi- libram e, noutros casos, entram em confronto, o que desencadeia vários problemas. 8 Cf. texto enviado ao arcebispo de Braga, de 1214, em Castro (2004: 126-130). 69

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De 19919, ano em que o governo português nomeou uma comissão para tratar das questões da ortografia oficial, várias foram as tentativas de acordos ortográficos, nomeadamente o de 1945, em que a unidade ortográfica só se consegue sacrificando, de algum modo, o registo das tendências fonéticas. Na fase preliminar do Novo Acordo Ortográfico, em 1975, foi elaborado um Projeto de Acordo entre Portugal e o Brasil, em 1986 houve a preparação de Memorando sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, com a colaboração dos então sete países de língua oficial portuguesa e em 1990 foram elaboradas as bases do Acordo Or- tográfico, prevendo-se a entrada em vigor em janeiro de 1994. Em 1996 deu-se a ratifi- cação por parte de Portugal, Brasil e Cabo Verde, em 1998, aquando do Protocolo Mo- dificativo, retira-se a data de implementação, mas mantém-se a condição de que todos os membros da CPLP ratifiquem o acordo e, em 2004, o Segundo Protocolo Modificativo prevê a ratificação apenas por três membros (já incluindo Timor). Depois disso, em 2006 há a ratificação por parte do Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, em 2008 a aprovação por estes três países e por Portugal, para implementação no início de 2010. Quando entra em vigor em 2009 no Brasil (a partir de janeiro) e em Portugal (a partir de maio), falta a ratificação por Angola e Moçambique e a implementação nos restantes países (São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Timor-Leste e Guiné-Bissau). No ano letivo de 2011/2012, o Novo Acordo Ortográfico entra em vigor nas escolas portuguesas (en- sino básico e secundário) e em janeiro de 2012 ele é aplicado ao Governo e a todos os serviços, organismos e entidades na dependência do Governo. Finalmente, até 2014, o Novo Acordo deveria estar implementado obrigatoriamente em Portugal, mas, como se sabe, isso não aconteceu na totalidade dos casos. 3. Principais mudanças no Novo Acordo Ortográfico 3.1 Antes de passar ao ponto sobre a utilização ou não utilização do hífen, referirei a seguir muito brevemente as principais mudanças: 9 Aquando desta primeira tentativa, foram várias as vozes que se levantaram contra a possibilidade de uma reforma ortográfica, de entre elas a de Teixeira de Pascoaes (1911: 7-8), para quem \"Na palavra lagryma, (...) a forma da y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.\" 70

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• ao alfabeto somam-se as letras <k>, <w> e <y>, passando assim de 23 para 26 letras; • o uso de minúsculas e maiúsculas também sofre alterações (por exemplo, os dias, meses e estações do ano escrevem-se com minúscula); • no que diz respeito à acentuação, de destacar a supressão do acento gráfico em algumas palavras homógrafas, mantendo a heterofonia, como em para (forma do verbo parar) e para (preposição), cuja distinção será efetuada a partir do contexto, uma vez que se considera que este será suficiente para as interpretar10; • as chamadas consoantes mudas, quando não pronunciadas, são eliminadas, como em redacção, que passou a redação. 3.2 Uso do hífen No Novo Acordo Ortográfico, o uso do hífen é tratado nas Bases XV (\"Do hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares\"), XVI (\"Do hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação\") e XVII (\"Do hífen na ênclise, na tmese e com o verbo haver\"). Relativamente aos compostos, especificam-se cinco situações em que se em- prega o hífen: 1.º \"nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso de o primeiro elemento estar reduzido\" (exemplos: médico-cirurgião, guarda-noturno, pri- meiro-ministro e guarda-chuva). 2.º \"nos topónimos/topônimos compostos iniciados pelos adjetivos grã, grão ou por forma verbal ou cujos elementos estejam ligados por artigo\" (exemplos: Grã-Breta- nha, Quebra-Costas, Trás-os-Montes). Em nota, acrescenta-se que \"O topó- nimo/topônimo Guiné-Bissau é, contudo, uma exceção consagrada pelo uso.\" 3.º \"nas palavras compostas que designam espécies botânicas e zoológicas, es- tejam ou não ligadas por preposição ou qualquer outro elemento\" (exemplos: couve-flor, cobra-capelo). 10 Por exemplo, \"A Ana para para descansar\". 71

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4.º \"nos compostos com os advérbios bem e mal, quando estes formam com o elemento que se lhes segue uma unidade sintagmática e semântica e tal elemento começa por vogal ou h. No entanto, o advérbio bem, ao contrário de mal, pode não se aglutinar com palavras começadas por consoante.\" (exemplos: bem-aventurado, mal-humorado, bem-visto, mas malvisto). 5.º \"nos compostos com os elementos além, aquém, recém e sem\" (exemplos: além-mar, aquém-Pirenéus, recém-nascido, sem-vergonha). Para os derivados prefixais em que ocorrem os prefixos \"ante-, anti-, circum-, co-, contra-, entre-, extra-, hiper-, infra-, intra-, pós-, pré-, pró-, sobre-, sub-, super-, supra-, ultra-, etc.\" e para as formações resultantes de \"recomposição\"11 o hífen só se emprega: \"a) Nas formações em que o segundo elemento começa por h\" (exemplos: co- herdeiro, super-homem); \"b) Nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina na mesma vogal com que se inicia o segundo elemento\" (exemplos: infra-axilar, auto-observação); \"c) Nas formações com os prefixos circum- e pan-, quando o segundo elemento começa por vogal, m ou n [além de h, caso já considerado atrás na alínea a)]\" (exemplos: circum-escolar, circum-murado, circum-navegação, pan-africano); \"d) Nas formações com os prefixos hiper-, inter- e super-, quando combinados com elementos iniciados por r\" (exemplos: hiper-requintado, inter-resistente, super-re- vista); \"e) Nas formações com os prefixos ex- (com o sentido de estado anterior ou cessamento), sota-, soto-, vice- e vizo-\" (exemplos: ex-diretor, sota-piloto, vice-presi- dente, vizo-rei); \"f) Nas formações com os prefixos tónicos/tônicos acentuados graficamente pós-, pré- e pró-, quando o segundo elemento tem vida à parte\" (exemplos: pós-gradua- ção, pré-natal, pró-europeu). Assim, não se emprega o hífen em adjetivos e nomes do tipo de antirreligioso, contrassenha, minissaia, etc., em que o segundo elemento se inicia por r, ou s, nem quando o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por uma vogal dife- rente, como em autoaprendizagem e agroindustrial, por exemplo. 11 Entenda-se formações em que ocorrem \"elementos não autónomos ou falsos prefixos, de origem grega e latina (tais como: aero-, agro-, arqui-, auto-, bio-, eletro-, geo-, hidro-, inter-, macro-, maxi-, micro-, mini- , multi-, neo-, pan-, pluri-, proto-, pseudo-, retro-, semi-, tele-, etc.)\". 72

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Se nas formações por sufixação os vocábulos terminam em \"sufixos de origem tupi-guarani que representam formas adjetivas, como açu, guaçu e mirim\" e \"o primeiro elemento acaba em vogal acentuada graficamente ou quando a pronúncia exige a distin- ção gráfica dos dois elementos\" também se usa hífen (exemplos: capim-açu, amoré- guaçu, anajá-mirim). Na Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), re- conhece-se que existem muitas oscilações quanto ao emprego ou não emprego do hífen em palavras complexas, \"sobretudo nas formações por prefixação e na chamada recom- posição\", como, por exemplo, em co-educação e coeducação, aero-espacial e aeroespa- cial, apontando-se que isso se deve a \"uma certa ambiguidade e falta de sistematização das regras que sobre esta matéria foram consagradas no texto de 1945\". Se relativamente aos compostos não são propostas alterações quanto ao emprego ou não emprego do hífen, o mesmo não acontece no que diz respeito aos derivados, havendo necessidade de uma clarificação e preconizando-se, por isso, que \"algumas regras são formuladas em termos contextuais, como sucede nos seguintes casos: a) Emprega-se o hífen quando o segundo elemento da formação começa por h ou pela mesma vogal ou consoante com que termina o prefixo ou pseudoprefixo (por exemplo: anti-higiénico, contra-almirante, hiper-resis- tente); b) Emprega-se o hífen quando o prefixo ou falso prefixo termina em m e o segundo elemento começa por vogal, m ou n (por exemplo: circum-murado, pan-africano).\" Con- tinua-se, portanto, a não utilizar o hífen se \"o prefixo ou o pseudoprefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por r ou s, estas consoantes dobram-se\" (por exem- plo: antirreligioso, microssistema)\" e também se \"o prefixo ou o pseudoprefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por vogal diferente daquela (...) (por exemplo: antiaéreo, aeroespacial).\" Do que vimos anteriormente, podemos, então, concluir que quanto ao emprego do hífen em derivados prefixais e compostos: • em geral, não se usa hífen nos compostos e locuções (exemplos: fim de se- mana, chapéu de chuva), sendo exceções os nomes de espécies de animais ou plantas (exemplos: bicho-da-madeira, erva-de-santiago) e algumas pala- vras assim “consagradas pelo uso” (exemplos: cor-de-rosa, mais-que-per- feito). Deste modo, verifica-se que não há ortografia uniforme para as pala- vras compostas. De acordo com as convenções, umas escrevem-se reunindo 73

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os elementos num só vocábulo (exemplo: vaivem), outras representam-se in- terpondo um hífen (exemplo: arco-íris), noutras, ainda, os termos escrevem- se separadamente (exemplo: mestre de obras); • em muitos casos, deixa de se usar hífen em palavras prefixadas (exemplos: contraindicação, geoestratégico); • se o segundo elemento começar por r- ou s-, dobra-se a consoante (exem- plos: biorritmo, antissistémico); • nunca se usa o hífen com os prefixos átonos co- e re- (exemplos: coautor, reeleito); • mantém-se o hífen quando a vogal final do primeiro elemento é idêntica à vogal inicial do segundo elemento (exemplos: anti-incêndio, auto-observa- ção), quando o segundo elemento começa por <h> (exceto nos casos de aglu- tinação com os prefixos des- e in-) (exemplos: anti-herói, super-herói), com os prefixos ex- e vice- (exemplos: ex-ministro, vice-presidente), quando o prefixo é acentuado (exemplos: pré-aviso, pós-doutoramento), quando o prefixo termina em –r e o segundo elemento começa com –r (exemplos: hi- per-resistente, super-real) e com os prefixos circum- e pan- com segundo elemento começado por vogal, <m>, <n> ou <h> (exemplos: circum-nave- gação, pan-americano). Após dar conta do emprego do hífen, a primeira crítica negativa é a propósito daquilo que na composição permanece, por estar \"consagrado pelo uso\". A segunda razão prende-se com o facto de por vezes se misturarem aspetos de convenção gráfica com questões supostamente linguísticas e de âmbito lexicográfico12. Numa perspetiva inerentemente linguística, o que faria mais sentido seria reco- nhecer que, convencionalmente, a solução adotada para a grafia dos compostos deveria ser única, ou seja, grafá-los sem recorrer à utilização do hífen. Isto porque não é o hífen que serve para dar coesão semântica e sintática a dois elementos que, em conjunto, fun- cionam como uma unidade, independentemente de graficamente existir um espaço entre eles, um hífen, ou se escreverem amalgamados. Um composto só adquire esse estatuto após um longo período que serve para \"solidificar\" a relação entre os elementos que o 12 Por exemplo, na Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em 6.1, argu- menta-se que \"formações vocabulares com grafia dupla, ou seja, com hífen e sem hífen, [...] aumenta des- mesurada e desnecessariamente as entradas lexicais dos dicionários.\" 74

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formam, não admitindo a inserção de nenhum material estranho a essa sequência de pa- lavras, nem a comutação de nenhum dos elementos por outros pertencentes à mesma classe gramatical e com algumas semelhanças semânticas. O culminar desse processo leva frequentemente a uma grafia unificada, mas, enquanto isso não acontece, nada pa- rece justificar a utilização do hífen entre, por exemplo, couve e flor, dois nomes que ser- vem para formar um outro nome, cada um portador de marcas prosódicas e que, além disso, ocorrem cada um por si na língua portuguesa, em diferentes contextos. No seguimento do raciocínio anterior, também não fará sentido a utilização do hífen quando os advérbios bem e mal ocorrem em posição prefixal (exemplos: bem estar, mal humorado). Quando se trata de uma palavra complexa cujo elemento termina em vogal (exemplos: anti-, auto-, bio-, geo-, etc. e a base se inicia por vogal (idêntica ou não) deveria utilizar-se o hífen, destinado a servir de delimitador e tendo como objetivo manter a integridade prosódica e também etimológica (exemplos: anti-institucional, auto-apren- dizagem, bio-degradável, geo-estratético). Além das formas complexas derivadas em que o segmento inicial da base é vo- cálico e independentemente da terminação do elemento inicial, o hífen deveria ser em- pregue quando a base se inicia por <h>, <r> e <s> (exemplos: super-homem, bio-ritmo, anti-semita), o que, entre outros aspetos, resolveria os problemas que atualmente se co- locam à translineação. 4. Considerações finais Todas as reformas geram controvérsia e, por isso, a última levada a cabo (ou pelo menos tentativa de levá-la a cabo) não é exceção. Em cada reforma ortográfica houve sempre contestação, uma vez que mudar hábitos de escrita implica um processo de de- sautomatização e uma reaprendizagem. É preciso não esquecer, contudo, que um acordo ortográfico apenas regula a forma como se escreve, o que significa que não se altera a pronúncia das palavras, não vão usar-se palavras que não usávamos e, sobretudo, não se altera a gramática. Considerando que não é o hífen que serve para delimitar unidades linguísticas, como pudemos observar no caso dos compostos em que ocorrem dois (ou mais) elemen- tos com autonomia de ocorrência individualizada, abolir o hífen, sempre que tal não se 75

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justifica, contribuiria para dar mais consistência às soluções preconizadas no Novo Acordo Ortográfico. 5. Referências bibliográficas 1. Castro, Ivo. 2004. Introdução à História do Português. Geografia da Língua. Português Antigo. Lisboa: Colibri. 2. Cornbleet, S. & R. Carter. 2001. The Language of Speech and Writing. Londres / Nova Iorque: Routledge. 3. Coulmas, Florian. 1989. The writings systems of the world. Oxford: Blackwell. 4. Duarte, Inês. 2000. “O uso da língua” e “O oral e o escrito”. In Língua Portu- guesa. Instrumentos de Análise. Lisboa: Universidade Aberta, pp. 345-371 e 373- 419. 5. Halliday, Michael. 1989. Spoken and written language. Oxford: Oxford Univer- sity Press. 6. Kato, Mary. 2001. O mundo da escrita. São Paulo: Ática, 7ª ed. 7. Said Ali, Manuel. 1964. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. São Paulo: Edições Melhoramentos, 3ª ed. (1ª ed. de 1931). 8. Teixeira de Pascoaes. 1911. “A fisionomia das palavras”. In A Águia, ano 1, I.ª série, n.º 5 (fevereiro), pp. 7-8. 9. Teyssier, Paul. 1994. História da Língua Portuguesa. Lisboa: Livraria Sá da Costa (trad. de Celso Cunha, do original fr. Histoire de la langue portugaise. Pa- ris: PUF, Que sais-je?, 1980), 6ª ed.. 10. Williams, Edwin. 1975. Do Latim ao Português. Fonologia e Morfologia Histó- ricas da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro (trad. bras. de Antônio Houaiss, do original ingl. From Latin to Portuguese. Historical Phonol- ogy and Morphology of the Portuguese Language 1938). 76

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Os sistemas de escrita das línguas bantu e da língua por- tuguesa: convergências e di- vergências 77

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As línguas bantu também se escrevem: suas espe- cificidades em relação à língua portuguesa Daniel Peres Sassuco Professor Auxiliar na Faculdade de Letras da UAN. Universidade Agostinho Neto Luanda Resumo As línguas bantu de Angola também se escrevem: suas especificidades com relação à língua portuguesa é a nossa abordagem para esta comunicação. Angola é um país pluri- lingue e multicultural. Pluralidade linguística pelo facto de, nele, existirem variadas lín- guas geneticamente diferentes. Mormente, português e línguas Bantu do Indo-europeu e do Níger-Cordofano, respetivamente. O epicentro da conversa é o contraste ortográfico. O sistema de língua portuguesa é reconhecido, divulgado, sistematizado e harmonizado, pois é a língua oficial e de escolarização. As línguas bantu de Angola não têm o sistema, rigorosamente, consolidado. Uma das razões consiste na não inserção destas nos sistemas de ensino para o reconhecimento e consolidação. Verifica-se, por um lado, o facto de ambas as línguas terem os seus símbolos derivados do latim. Por outro, convergem ainda nos sinais simples, apesar da pronúncia diferente: /c/, [s] em português e [ʧ] em bantu. A letra /h/ não lida em português, mas é lida em línguas bantu, em todos os contextos fono- lógicos. Entre as principais divergências, destacamos as consoantes prenasais e aspiradas, existentes apenas nas línguas Bantu e as vogais, que, em bantu, são todas orais, abertas e lidas tal qual se escrevem em qualquer contexto fonológico, ao passo que, em português, essas são orais, nasais, médias, altas, baixas e variáveis em função de contextos fonoló- gicos. Neste sentido, aperfeiçoar distintamente os sistemas escritos destas línguas é ex- tremamente sensato para a escrita. Palavras-chave: Sistema ortográfico, contraste, língua portuguesa, línguas bantu. Notas introdutivas Reflectindo sobre “As línguas bantu também se escrevem: suas especificidades com/em relação à língua portuguesa” é uma possibilidade de encontrar um ponto de con- senso quanto à utilização dos sistemas escritos das línguas presentes ao espaço angolano. Com certeza, sem querer afirmar que é chegado o momento para revolucionarmos as 78

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mentes e ultrapassarmos os preconceitos linguísticos, herdados, de algum modo, as polí- ticas linguísticas coloniais. Essas que consistiam em querer obliterar as línguas bantu do país. Esquecia-se que Angola é um país pluriétnico, multicultural e multilingue. A pre- sença clara de várias etnias supõe a diversidade de línguas e culturas. Assim, Angola é, desde sempre, o país inerentemente plurilingue. Reconhecendo esse facto, o Estado an- golano, através da Constituição da República de Angola, doravante CRA, no seu 19º ar- tigo, menciona que o Português é a língua oficial de Angola, por outro lado, os instru- mentos legais que regem as práticas pedagógicas no país, isto é, a Lei de Base do Sistema de Educação assim como os Estatutos Orgânicos dela decorrentes estabelecem que o Por- tuguês é a língua de escolaridade, mas sem prejuízo de o processo poder decorrer numa língua de Angola de origem africana, sobretudo na alfabetização de cidadãos adultos, caso tal recurso se justifique. O facto de o Português ser a única língua de escolaridade, apesar de a CRA ter declarado não haver prejuízo para tal contexto, entendemos ser prejudicial, uma vez que as línguas Bantu não constam dos curricula dos distintos sistemas de ensino, violando, assim, o princípio social do direito à educação na língua da sua cultura, inviabilizando o reconhecimento e a consolidação do sistema ortográfico destas línguas. Este pensamento remonta a vários séculos e faz morada na política colonial, a de não ver os indígenas desenvolver as suas línguas, perpetuando a hegemonia do português. De acordo com Mingas (2000:48), considerando a política de ensino vigente na época: A política portuguesa de ensino teve como objectivo a imposição da língua portuguesa em detrimento das línguas locais. Apostado na eliminação das línguas autóctones, por um lado, e na promoção do português, por outro lado, lembrando Norton de Matos, no Decreto nº 77 de 9 de dezembro de 1921. Este Decreto determina o seguinte: “Não é permitido ensinar, nas escolas das missões, línguas indígenas”, Artigo 2º: O mais agravante acontece com o Artigo 3º. Esse surge na intenção de eliminar definitivamente qualquer tentativa de uso das línguas locais, quando ordena, na sua pri- meira alínea, as seguintes palavras: “É vedado, na catequese das missões, nas suas escolas e em quaisquer relações com os indígenas, o emprego das línguas indígenas por escrito”. Lá se foi o tempo para julgarmos essas línguas, consideradas inúteis para a vida socio-humana e para o desenvolvimento mental dos detentores dessas línguas. Aliás, para 79

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o desenvolvimento sustentável de qualquer país, no mundo, o ensino das línguas dos au- tóctones é indispensável. Grós, Ana Pita (2020:30) lembra-nos, com nostalgia, que, no período anterior à colonização, as Línguas Nacionais constituíram os instrumentos mais importantes de co- municação e de identificação no seio de cada reino. Até à década de 1960, principalmente nas zonas rurais, mais de metade da população angolana não possuía qualquer conheci- mento da língua portuguesa e nunca tinha falado português. Por razões de comodidade, existem várias línguas Bantu ao lado da língua portu- guesa. As mais mediáticas são Umbundu, Kimbundu, Kikongo, Cokwe, Oshikwanyama, Ngangela, Olunyaneka, Oshihelelo, Oshiwambo, Luvale, Lunda-Ndembo, etc. Desse modo, a grande motivação nasce do facto de que as línguas Bantu devam serem inseridas nos respectivos sistemas de ensino nacional, isto é, para a sistematização da escrita como o português. Aliás, seria cumprimento legal, segundo a CRA de 2010, quando refere, no seu Artigo 19º, 1. A língua oficial da República de Angola é o Português. 2. O Estado valoriza e promove o estudo, o ensino e a utilização das de- mais línguas de Angola, bem como, das principais línguas de comuni- cação internacional. Se entendermos “as demais línguas de Angola” que são as línguas Bantu, por que razão não têm sua efetivação no ensino e o que se espera até hoje, na véspera da celebra- ção do 45º aniversário da Independência de Angola? Do que consta sobre esse facto, não é a existência de tratamento linguístico desse conjunto de línguas, nem a inexistência de recursos humanos especializados, mas, sim, de uma Política Linguística gizada sobre esta questão. Sustentamos esta nossa visão com os seguintes documentos: a) 1978: Criação do Instituto de Línguas Nacionais A instituição foi criada com objectivo de realizar estudos científicos sobre as línguas nacionais, contribuir para a normalização e ampla utilização das línguas nacionais em todos os sectores da vida nacional, entre outros objectivos. b) 1980: Instituto de Línguas Nacionais, Histórico sobre a criação dos alfabetos em Línguas Nacionais. INALD, Luanda. 80

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Constituição dos Alfabetos de seis línguas mais abrangente no mosaico nacional, depois de um estudo de levantamento fonético-fonológico, instrumento para a utilização escrita dessas línguas. 1985: Instituto de Línguas Nacionais, Esboço Fonológico. Alfabeto. (Trabalho não pu- blicado sobre fonologia e alfabeto das línguas: Kikongo, Kimbundu, Cokwe, Umbundu, Mbunda e Oshikwanyama), existente no Instituto de Línguas Nacionais para a consulta e divulgação quanto ao uso dos alfabetos. c) 1987: Instituto de Línguas Nacionais; Boletim nº 1 (Divulgação dos alfabetos das línguas Kikongo, Kimbundu, Cokwe, Umbundu, Mbunda e Oshikwanyama) e as respectivas regras de transcrição, aprovados a título experimental, pela Resolução nº 3/87, de 23 de Maio de 1987, do Conselho de Ministros, da República de An- gola, documento legal, até agora não revogável, que viabiliza o uso dos alfabetos dessas línguas. d) 2013: CASAS MONOGRAPH nº 251 & Instituto de Línguas Nacionais, Harmo- nização ortográfica das Línguas Bantu de Angola. (Kikongo, Kimbundu, Um- bundu, Cokwe, Mbunda, Oshikwanyama), Cape Town, South Africa, uma obra simples e concisa para (re) ver os diferentes alfabetos de cada língua e as regras de transcrição. Depois desse panorama, impõe-se esclarecer os conceitos fundamentais desta co- municação. 0.1. Noção sobre o sistema de escrita O sistema de escrita das línguas remonta há mais de vinte (20) mil anos cujo início era com as figuras desenhadas: pinturas rupestres, a que se designou de escrita pictográ- fica (Costa, M. & Rothes, A. E., 2015: 48). Mais além, foram as etapas de desenvolvimento da escrita de ideogramas, passando por um sistema de escrita por palavras, seguindo a fase da escrita por sílabas até ao sis- tema de escrita alfabética. Importa aqui realçar que existem diferentes tipos de alfabeto, tais como o alfabeto latino, o grego e o cirílico. Costa e Rothes (2015: 49) dizem que muitas línguas europeias (o Português, o Cas- telhano, o Inglês, o Francês…) e outras como o Turco, o Indonésio, o Suaíli e o Vietna- mitano utilizam o alfabeto latino. 81

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No exposto acima, salta-nos a vista a língua Suaíli, do grupo Bantu, que utiliza o sistema escrito do latim como as línguas europeias. Isto reforça a ideia de se evitar o cepticismo, segundo o qual as línguas Bantu não podiam utilizar o sistema latino13. To- davia, a representação gráfica vai diferenciando-se de uma língua a outra, mesmo sendo elas da mesma família. Assim, a ortografia é conhecida, de acordo com Jorge, Noémia (2015: 46) como conjunto de normas que regula a utilização dos vários sinais (letras, acentos e outros si- nais gráficos). Na perspectiva de Ngunga, A. (2014:54), podemos dizer que, para reproduzirmos na escrita as palavras de qualquer língua, empregamos um certo número de sinais gráficos chamados letras. O conjunto ordenado das letras de que nos servimos para transcrever os sons da língua falada denomina-se alfabeto. 0.2. Divulgação dos sistemas de escrita das línguas Portuguesa e Bantu Desde o tempo colonial, parece-nos que, muitos angolanos, depois da indepen- dência e com a consagração da língua portuguesa como língua oficial, se esqueceram de que Angola é um país plurilingue. Isto não era para dar à língua portuguesa todas as funções sociais como a de comunicação massiva no dia-a-dia; como a de identificação que deveria colocar cada indivíduo no seu espaço de origem, etc. O papel exclusivo de ensinar apenas em língua portuguesa tem várias repercussões negativas, exclusão, injus- tiça de integração social, atraso mental, etc. Grós, Ana Pita (2020:34) confirma que muitos angolanos não reconhecem o va- lor funcional das línguas angolanas e, por isso, não manifestam interesse em as aprender. Assim, a língua portuguesa, em Angola, instituída como oficial e de escolaridade reforça a sua posição de o seu sistema da escrita ser divulgado, conhecido e utilizado. Ao contrário das línguas Bantu, ou seja, locais que não usufruem de nenhuma legislação concreta para a sua utilização no país. Esse factor está na base da degradação, desmoti- vação, desinteresse e da não-divulgação do sistema da escrita dessas línguas, porém, estas 13 Isto dependeu em grande medida com o princípio da colonização, isto é, são os diferentes colonos que implementaram os primeiros passos da escrita. Por isso, faziam recurso, segundo as origens dos coloniza- dores, do sistema ortográfico da língua de sua proveniência. As escritas encontradas em África, eram de pinturas rupestres sobre as pedras e nas areias como é o caso de “sona” dos Tucokwe e as pituras rupestres de Citunduhulu no Namibe. Realçar que a escrita africana mais antiga e banalizada pelo movimento de colonização foi a hieróglifo dos egípcios. (Grifo nosso). 82

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línguas, se as escritas forem reconhecidas, desempenharão o papel comparativo de estu- dos das influências notadas no português. Aliás, se a sociedade em geral não nota a im- portância delas, a ciência sente a maior necessidade delas. 1. Sistema da escrita das línguas Bantu Eis o sistema alfabético das Línguas Bantu de Angola de modo geral. Portanto, a sua representação gráfica é igual, ficando apenas caracterizar algumas regras de escrita por cada língua tendo em conta à sua natureza. 1.1. As letras Quadro 1. Alfabetos em Bantu Escreve-se Transcrição foné- Lê-se tica a bê a [a] bhê mbê b [b] tchê ndê bh [bh] e fê mb [mb] fhê jê c [ʧ] njê ngê nd [nd] ñgê hê e [e] i ndjê f [f] fh [fh] j [ʒ] nj [nʒ] ng [ng] ñg [ŋ] h [h] i [i] ndj [ndӡ] 83

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k [k] kê kh [kh] khê l [l] lê m [m] mê mp [mp] mpê n [n] nê ny [ɲ] nyê o [o] o p [p] pê ph [ph] phê s [s] sê sh [ʃ] shê ns [ns] nsê t [t] tê nt [nt] ntê u [u] u v [v] vê mv [mv] mvê w [w] wê y [j] yê z [z] zê nz [nz] nzê Fonte: CASAS e ILN (2013) e NOSSA ADAPTAÇÃO 1.1.1. As vogais e suas regras de transcrição As línguas Bantu, em geral, contam com cinco (5) vogais, pertencendo a três graus: fechadas, semiabertas e aberta e três pontos de articulação: Anterior, Central e Posterior. 84

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Precisamos de notar que todas as vogais devem ser pronunciadas tal como se escre- vem em todas as posições considerando o nível fonológico. Vejamos alguns exemplos: a [a] ovava “água” Umbundu: kwenda “ir” Kimbundu: mana “inteligência” Cokwe: finga “injuriar” Kikongo: ekaya “tabaco” e [e] temo “enxada” Umbundu: ditemu “enxada” Cokwe: kyelo “porta” Kimbundu: Kikongo: owima “azar” kujimba “inflamar” i [i] kujiba “matar” Umbundu: mika “pêlos” Cokwe: Kimbundu: omoko “faca” Kikongo: moko “mãos” mbolo “pão” o [o] moko “conversa” Umbundu: Cokwe: elundu “montanha” Kimbundu: kuzula “despir” Kikongo: kuvunda “escurecer” bulu “animal” u[u] Umbundu: Cokwe: Kimbundu: Kikongo: É impresdível notar que a vogal /o/ é sempre [o] em todos os contextos. Em nenhum contexto é lido [u] sobretudo em posição final. Evite, isto é uma influência das regras do português. 85

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As regras decorrentes no uso das vogais são de contacto das vogais. Sempre que a vogal inicial em contacto é /i/ ou /u/, é preciso a semiconsonantização para evitar a sequência de vogais, isto é, em todas as línguas: a) A vogal /i/ diante de outras vogais, também transforma-se em semiconsoante «y», como nos seguintes casos: i+a i+e i+i y+o i+u ya ye Yi yo yu Kimbundu: ki + ala = kyala “unha” Kikongo: mi + enze = myenze “virgens” Cokwe: li + embe = lyembe “pomba ou rola” Umbundu: ovi + ongo =ovyongo “rins” b) A vogal /u/ diante de outras vogais transforma-se em semiconsoante «w», como nos seguintes casos: u+a u+e u+i u+o u+u wa we Wi wo wu Kikongo: mu + ana = mwana “criança” Kimbundu: u + iki = wiki “mel” Cokwe: mu + ono = mwono “vida”, mu-ongo= mwongo “medo” Umbundu: omu + enge = omwenge “cana de açucar”, omu+enyo = omwenyo “vida”. 1.1.2. As consoantes e suas regras de transcrição a) Consoantes simples: b [b] Kikongo: baka “tomar”, betama “ser batido” Kimbundu: kubwa “tombar”, kubatula “cortar” d [d] Kikongo: disa “milho”, diya “esquecimento” Kimbundu: dibhitu “porta”, ditadi “pedra” f [f] 86

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Umbundu: kafunda “julgar” Cokwe: mufu “cadáver” Kimbundu: kufwa “morrer” Kikongo: finga “injuriar” h [h] Umbundu: ohanga “galinha do mato”, ohombo “cabra” Cokwe: kuseha “rir” Kimbundu: hombo “cabra”, uhashi “doença” k [k] Umbundu: okulu “perna” Cokwe: kumona “ver” Kimbundu: kiba “pele” Kikongo: moko “conversar” l [l] Umbundu: okulu “perna” Cokwe: lamba “sofrimento” Kimbundu: yala “unhas” Kikongo: longoka “aprender” m [m] omoma “gibóia” Umbundu: muthu “pessoa” Cokwe: kinama “perna” Kimbundu: moko “conversar” Kikongo: ona “piolho”, onaka “horta” n [n] cimenemene “manhã” Umbundu: kukuna “semear” Cokwe: mona “ver” Kimbundu: Kikongo: opeka “planta”, ocipa “pele” p [p] Umbundu: 87

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Cokwe: kupathula “cortar” Kimbundu: polo “face” Kikongo: peka “peneira” s [s] Umbundu: osanjo “vómito”, esanju “alegria” Cokwe: kusoneka “escrever”, kusemuka “ser nascido” Kimbundu: kusanga “encontrar” Kikongo: sola “capinar” t [t] Umbundu: okutala “olhar” Cokwe: kutalatala “vigiar” Kimbundu: kututa “transportar” Kikongo: tadi “pedra” v [v] Umbundu: okuveta “bater” w [w] Cokwe: kuvuma “impedir” y [j] Kimbundu: kuvunda “escurecer” z [z] Kikongo: vila “perder” Umbundu: owisi “fumo”, owalende “aguardente” Cokwe: wino “dança”, woma “medo” Kimbundu: mwenyu “vida”, wemba “mel” Kikongo: wivi “roubo”, wisa “autoridade” Umbundu: okuya “ir”, okuyeva “escutar” Cokwe: kwiya “roubar”, yambu “capim” Kimbundu: yangu “capim”, yami “meu” Kikongo: yola “tomar banho”, yandi “ele” Cokwe: kuzanga “amar, gostar” Kimbundu: kuzanga “estragar” 88

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Kikongo: zola “amar” As consoantes simples nas línguas Bantu são semelhantes as do português, porém, a pronúncia de cada consoante não tem a mesma repercussão funcional. No entanto, de- vemos perceber isto com as regras de escrita. Lembramos algumas delas mais além. b) Consoantes específicas em Bantu Tal como acontece com algumas línguas de outros grupos linguísticos, em línguas Bantu os dígrafos são sempre indissociáveis: mb [mb] Kikongo: mbevo “doença” Kimbundu: mulembu “dedo” Cokwe: mbalu “coelho” Umbundu: ombya “panela” mf [mf] mfumu “senhor/ chefe”, mfinda “floresta” Kikongo: mv [mv] mvuma “flores” Kikongo: mvula “chuva” Kimbundu: mp [mp] sompika “emprestar”, mpasi “dor, sofrimento” Kikongo: ndozi “sonho” nd [nd] ndenge “miúdo” Kikongo: ndando “preço”, ndongo “agulha” Kimbundu: ndenda “fui” , ondonge “aluno” Cokwe: Umbundu: nt [nt] ntalu “preço”, ntulu “peito” Kikongo: 89

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nz [nz] nzalu “colher” Kikongo: nzala “fome” Kimbundu: ng [ng] ngana “senhor”, jingandu “jacarés” Kimbundu: ongunga “sino”, ongulu “porco” Umbundu: ungulu “porquice”, ngàji “juíz” Cokwe: ngunga “sino” bakongo “falantes do kikongo” Kikongo: oñgoma “batuque”, oñgañga “recém-nascido” ñg [ŋ] Umbundu: ny [ɲ] nyoka “cobra” Kimbundu: onya “inveja”, enyulu “nariz” Umbundu: nyali “cunhado”, manyonga “pensamentos” Cokwe: nyoka “serpente” Kikongo: nl [nl] `nlonga “ano”, `nlongi “professor” Kikongo: ns [ns] nsambu “sorte”, nsuki “cabelo” Kikongo nj [nʒ] onjamba “elefante” Umbundu: njimi “camponês”, njize “fronteira” Cokwe: sh [ʃ] shitu “carne” Kimbundu: shima “funje”, kushikisa “confessar” Cokwe: 90

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kh [kh] khakha “avô”, khota “pescoço” Cokwe: ph [ph] phanga “ovelha”, phoko “faca” Cokwe: phonda “cinto”, phange “irmão” Kimbundu: bh [bh] Kimbundu: bhwilo “por chão” fh [fh] mulongefhi “professor ou educador” Olukuvale: Okukulifha “crescer” th [th] thenda “munições”, cithwamo “assento” Cokwe: Outro caso a ter em conta, no sistema ortográfico das línguas bantu, consiste na grafia do som “tchê”, representado pelo símbolo fonético [ʧ], graficamente representado pelo grafema /c/, como nos ilustram os exemplos abaixo: c [ʧ] Umbundu: ocala “esteira”, ocisola “amor”, ocina “objeto, algo” Cokwe: cala “unha”, cisoka “cesto”, cifuci “país” 1.1.3. Sílabas e translineação Estrutura silábica Sílaba é uma unidade fonética maior que o fonema. É cada emissão de voz neces- sária para se pronunciar uma palavra. Uma sílaba pode ser constituída por apenas um fonema ou por um conjunto deles. - V: /a-thu/; /o-ma-nu/, etc. 91

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- CV: /ci-so-ka/; /mu-zu-nu/, etc. - NCV: /mbo-ngo/; /ndu-ngu/, etc. - SCV: /we-vu/; /wa-nda/; /ya-ngu/; /yo-mbo/, etc. As sílabas, agrupadas, formam vocábulos. De acordo com o número de sílabas que os formam, os vocábulos podem ser: • Monossílabos - formados por uma única sílaba: Kikongo: mbu \"mosquito\" Kimbundu: he “guerra” Umbundu: pa “tire” Cokwe: mba “mas” • Dissílabos - apresentam duas sílabas: Kikongo: /ku-ku/ = kutu “orelha” Umbundu: /mo-ko/ = moko “faca” Kimbundu: /mu-ngu/ = mungu “amanhã” Cokwe: /nja-mba/ = njamba “elefante” • Trissílabos - apresentam três sílabas: Kikongo: /ma-ko-ndo/ = makondo “bananas” Kimbundu: /di-zu-nu/ = dizunu “nariz” Umbundu: /o-te-ke/ = oteke “dia” Cokwe: /ku-nyi-ka/ = kunyika “mover” • Polissílabos - apresenta quatro ou mais sílabas (tetrassílabos, pentassílabos, he- xassílabos, etc): Kikongo: /lu-su-ku-la/ = lusukula! \"lavais\" Kimbundu: /ku-ba-tu-la/ = kubatula “cortar” Umbundu: /o-ku-so-ki-sa/ = okusokisa “comparar” Cokwe: /ku-pha-ku-la/ = kuphakula “derrubar árvores” 92

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A divisão silábica obedece a algumas regras básicas. O conhecimento das regras de divisão silábica é útil para a translineação das palavras, ou seja, para separá-las no final das linhas. Caso das consoantes prenasais: Kudisanga /ku-di-sa-nga/ Kulumbununa /ku-lu-mbu-nu-na/ Kinamvwidi /ki-na-mvwi-di/ Kimfwentete /ki-mfwe-nte-te/ Cimbwandangunda /ci-mbwa-nda-ngu-nda/ Nambwangongo /na-mbwa-ngo-ngo/ 2. Observações contrastivas 2.1. Alfabetos de Línguas Bantu de Angola e da Língua Portuguesa: LB. - a, b, bh, mb, c, d, nd, e, f, fh, mf, j, nj, ng, ñg, h, i, nj, k, kh, nk, l, nl, m, mp, n, ny, o, p, ph, s, sh, ns, t, th, nt, u, v, mv, w, y, z, nz. LP. – a, b, c, d, e, f, g, h, i, j, k, l, m, n, o, p, q, r, s, t, u, v, w, x, z. 2.2. Vogais Quadro 2. Observações sobre as vogais LB LP 5 vogais sem contextos fonológicos. 5 vogais dependendo de contextos fono- lógicos, foneticamente são 14. Todas são orais e inexistência de vogais 9 orais das quais baixas, médias e altas e nasais. 5 nasais. Existência apenas de 3 graus de abertura. Existência de 4 graus de abertura. Não admite, em geral, os ditongos Admite os ditongos (orais e nasais) Existência de tons (marcados em estudos Existência de vários acentos gráficos e mais técnicos). diacríticos. 93

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Todas as vogais são realizadas em todos As vogais são sujeitas às regras fonológi- os contextos como se escrevem. cas. As sequências de prenasais, seguindo Essas sequências em português são vo- uma vogal nunca se pronuncia como na- gais nasais. sal, mas é oral Constatações do autor 2.3. Consoantes Quadro 3. Observações sobre as consoantes LB LP Há grafemas simples lidos tal como se escre- Há grafemas simples dependendo de contextos vem. fonológicos. O grafema h é aspirado ou lido em todos O h é aparente, não lido (mudo) contextos. O grafema c lê-se tchê [ʧ]. Aqui, lê-se sê. Nenhum som é representado por mais do que Há sons que são representados por mais do que uma letra. uma letra./x-ch-s-ks-z/ Nenhuma letra que representa mais do que Há letras que representam mais do que um som. um som. Existência de sons que, na escrita, são repre- Há sons que, na escrita são representados por sentados por duas letras (dígrafos prenasais duas letras (dígrafos) ou aspirados) K, w, y são usados para todas as palavras, K, w, y, usados em nomes próprios de pessoas e são letras comuns. lugares de origem estrangeira e palavras de em- préstimos e símbolos internacionais. Nenhuma letra é duplicada. Existência de letras duplicadas (rr, ss) O som [ɲ] grafa-se em Bantu /ny/ O som [ɲ] escreve-se /nh/ O grafema /s/ nunca é duplicado O /s/ pode ser duplicado 94

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Escrever sempre /k/ e não /q/ porque é parte Dependerá do contexto e origem. de prefixo nominal na morfologia: quim- bundo diferente de Kimbundu. Não confundir /c/ e /k/ pois, os dois grafemas Tremenda confusão para diferenciar o significado são partes de prefixos nominais de classes e sobretudo quando não se sabe a origem da pala- diferentes: vra. Ex.1: Citula/kitula (ci-/ki-) todos são prefixos de classe 7 mas de duas línguas diferentes, Um- bundu e Kimbundu. O termo significa “po- sador”. Ex.2. Não há maca/maka. (o primeiro reme- teria para a espécie de cama portátil nas uni- dades hospitalares; o segundo e com sua es- crita remete para o que é problema (origem Kimbundu) segundo a escrita. Constatações do autor Considerações finais O sistema de escrita de uma língua é um instrumento importantíssimo para a sua divulgação e promoção, permitindo a leitura de literatura e de redacção. Constatamos que, até aos nossos dias, o sistema da escrita das Línguas Bantu de Angola não é conhe- cido, não dominado, não promovido, não só pelos jovens escolarizados e interessados a escrever, mas também por aqueles que consideramos ter um nível de escolaridade avan- çado. Isso remete-nos a pensar que a falta da inserção dessas línguas locais nos sistemas de ensino e a própria falta de vontade das autoridades do país, passando pela ausência da legitimação funcional dessas línguas, são alguns factores de atraso da divulgação do sis- tema da escrita das línguas Bantu locais. Desde as primeiras experimentações e dos grandes esforços empreendidos pelos estudos específicos nesse domínio, parece-nos não ser eficiente aproveitar a diferença 95

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ortográfica com relação à língua Portuguesa para identificar as influências, a todos os níveis, que elas introduzem nesta língua. Assim, constatamos que as línguas Bantu e a Língua Portuguesa tiram seu sistema ortográfico no Latim, sendo a língua Suaíli a primeira entre as Bantu a ser destacada nessa escrita. No entanto, as Línguas Bantu de Angola partilham muitas representações gráficas semelhantes, sobretudo as letras simples. Porém, a língua portuguesa tem várias letras condicionadas pelos contextos fonológicos, por quanto as línguas Bantu mantêm as letras com a sua pronúncia. É preciso dizer, também, que existem em ambas línguas as letras digráficas, mas as das Bantu são mais complexas. Portanto, é indispensável, a nosso ver, dominar os diferentes sistemas de escrita, em simultâneo, das Línguas Bantu e da Língua Portuguesa, assim como se faz e se dife- rencia entre outras línguas, nomeadamente Francês, Italiano, Castelhano, apesar destas partilharem a mesma origem com o Português. São necessárias a consciência e a cultura académica despidas de preconceitos linguísticos, para valorizar, divulgar e promover o sistema ortográfico das Línguas Bantu que, por sinal, é menos exigente quanto às suas regras de representação. Definitivamente, as línguas são de grande importância em todas as comunidades. Em linguística, todas as línguas são alvo de estudo aprofundados a todos os níveis. Se por ventura um Estado não reconheça o valor das diferentes línguas congregadas no seu território, a linguística considera-as de uma valia para promover os estudos científicos e procura-las valorizar para não perder seus vestígios existenciais antes de se extinguirem. No contexto da pluralidade linguística e na procura da justiça linguística e social são necessárias a instrução e inclusão das línguas de hábito Bantu nos curricula para que seus sistemas da escrita sejam dominados e utilizados para permitir a identificação de variados léxicos de contribuição entre as línguas em contacto, vulgo, a língua portuguesa e as línguas Bantu de Angola. Referências Bibliográficas 1. CASAS MONOGRAPH & INSTITUTO DE LÍNGUAS NACIONAIS. (2013). Harmonização Ortográfica das Línguas Bantu de Angola (Kikongo, Kimbundu, Umbundu, Cokwe, Mbunda, Oshikwanyama). First Published, Cape Town, South Africa. 96

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2. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA. (2010), Luanda: Imprensa Nacional. 3. COSTA, Márcia & ROTHES, Eva Areal, (2015). A nossa Gramática de Língua Portuguesa. Ensino secundário. Plural Editores, Portugal. 4. GALLISSON, R. & COSTE, D. (1983). Dicionário de didáctica das línguas. Li- vraria-Almedina, Coimbra. 5. GRÓS, Ana Pita, (2020). Lexicografia Bilingue de Especialidade E-Dicionário Português-Kimbundu no domínio da saúde. 1ª edição, Mayamba Editora, Luanda. 6. GUTHRIE, M. (1948). Classification of Bantu Languages. London. 7. INSTITUTO DE LÍNGUAS NACIONAIS. (1980). Histórico sobre a Criação dos Alfabetos em Línguas Nacionais. INALD, Luanda. 8. ___________________________________. (1985). Esboço Fonológico. Alfa- beto. (Trabalho não publicado sobre fonologia e alfabeto das línguas Kikongo, Kimbundu, Cokwe, Umbundu, Mbunda e Oshikwanyama. 9. ____________________________________. (1987). Boletim nº1 (Divulgação dos alfabetos das línguas Kikongo, Kimbundu, Cokwe, Umbundu, Mbunda e Oshikwanyama)e as respectivas regras de transcrição, aprovados e título experi- mental, pela Resolução nº 3/87, de 23 de maio de 1987, do Conselho de Ministros, da República de Angola. 10. JORGE, Noémia, (2015). Gramática de Português 3º ciclo/7º, 8º e 9º anos. Porto Editora, Portugal. 11. MINGAS, A. A., (2000). Interferência do Kimbundu no Português falado em Lwanda. Luanda. Edições Chá de Caxinde. 12. NGUNGA, A. & OSVALDO, G. Facquir. (2011). Padronização da Ortografia de Línguas Moçambicanas. Colecção “As nossas línguas”. Centro de Estudos Africanos, UEM. Maputo. 13. NGUNGA, A. (2004). Introdução à Linguística Bantu. Maputo: Imprensa Uni- versitária. 14. SASSUCO, Daniel Peres. (2015). Introdução à Linguística Bantu. Texto de apoio aos Estudantes de 2º ano de Língua Portuguesa e Literaturas em Língua Portu- guesa. Faculdade de Letras, Universidade Agostinho Neto. 97

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Princípios de integração ortográfica de emprésti- mos lexicais das línguas bantu de Angola no por- tuguês Afonso João Miguel Docente do Departamento de Língua Portuguesa Instituto Superior de Ciências de Educação (ISCED) de Luanda. [email protected] Resumo A presença de empréstimos Bantu no português é resultado do contacto entre esta língua e as línguas nacionais, mas a integração ortográfica deste tipo de palavras constitui uma questão complexa e divergente. A presente comunicação, inserida no 3.º painel do FoLP1, tem como objectivo propor alguns princípios de integração de tais unidades lexicais no sistema ortográfico do português. Em Linguística de contacto defende-se basicamente que as regras da língua de acolhimento determinam a integração dos novos elementos. Assim, em termos ortográficos, proponho que os empréstimos em análise sejam escritos de acordo com as normas do português (e.g., candando < KANDANDU; cupapata < KUPA- PATA; muamba < MWAMBA; quilápi < KILAPI), mas salvaguardando determinadas excep- ções, sobretudo os de cunho etimológico. O tratamento da questão no contexto angolano é quase nulo, pois não se conhecem trabalhos ou investigações sobre o assunto, excepto a Lei 8/16, de 15 de Julho. Esta é uma oportunidade para o início de uma discussão es- truturada, aprofundada e multidisciplinar. É um trabalho descritivo que privilegia a abor- dagem qualitativa e assenta na pesquisa bibliográfica e em dados empíricos (emprésti- mos), extraídos principalmente dos trabalhos de Mudiambo (2013), sobre o Kikongo; Miguel (2019), acerca do Kimbundu; Costa (2016), sobre Umbundu. Trata-se, portanto, de uma comunicação que traz a debate uma questão inadiável cujos resultados podem contribuir para debelar a deriva da grafia do léxico Bantu em português. Espera-se que o mesmo constitua um apoio científico na fixação das regras ortográficas, que auxiliem a elaboração do vocabulário ortográfico nacional e a sua consequente inclusão no vocabu- lário ortográfico comum. Palavras-chave: ortografia, integração ortográfica, empréstimo lexical. 98

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Abstract The presence of Bantu borrowing in Portuguese is the result of a contact between this language and the national languages, but the orthographic integration of these types of words is a complex and divergent issue. This communication, inserted in the third panel of FoLP1, aims to propose some principles of integration of such lexical units in the Portuguese orthographic system. In Contact Linguistics it is argued that the rules of the host language determine the integration of the new elements. Thus, in orthographic terms, I propose that the lexical borrowing under analysis are written in accordance with Portu- guese rules (candando < KANDANDU; cupapata < KUPAPATA; muamba < MWAMBA; quilápi < KILAPI)), but safeguarding certain exceptions, especially those of an etymolog- ical nature. The studies in this field of enquiry are quite scant in the Angolan context and there are no known works or investigations on the subject, except for Law 8/16, of July 15. This is, indeed, an opportunity to start a structured, in-depth and multidisciplinary discussion. This is a descriptive work that privileges the qualitative approach and is based on bibliographic research and empirical data (lexical borrowing), extracted mainly from Mudiambo’s (2013) work on Kikongo; Miguel’s (2019) on Kimbundu; and Costa’s (2016) on Umbundu. It is, therefore, a reflection that brings to debate an urgent issue which results may contribute to quell the drift of the spelling of the Bantu lexicon in Portuguese. It is hoped that the debate will constitute a scientific support in the setting of orthographic rules, which will assist in the elaboration of the national orthographic vo- cabulary and its consequent inclusion in the common orthographic vocabulary. Keywords: orthography, orthographic integration, lexical borrowing. 1- Introdução Este artigo aborda a questão da integração ortográfica de empréstimos lexicais das línguas Bantu de Angola em Português, mais concretamente na variedade falada em Angola, na perspectiva do contacto linguístico, com o objectivo de propor princípios aos quais deve estar subjacente o referido processo. Uma vez entendido que a presença do português neste país resulta do contacto entre esta língua e as línguas locais, o tratamento de questões em interface entre estes sistemas linguísticos deve ter sempre em conta os aspectos deste domínio sociolinguístico. Apesar da grande repercursão e interesse que o tema desperta na sociedade, a jul- gar pelas discussões que se assistem, quer em contextos informais quer em contextos 99

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formais (sobretudo, académicos), não se conhecem trabalhos ou investigações sobre o assunto, pelo menos, considerando a bibliografia que consultei. Sem adoptar qualquer teoria linguística ou sociolinguística específica, o tratamento de várias questões que o tema levanta tem em conta estudos de autores que se debruçam globalmente sobre ques- tões de contacto e variação linguística, com ênfase para a problemática de empréstimos lexicais, como produto do contacto entre línguas ou da criação neológica (ver, p.e., Wein- reich 1953; Haugen 1953; Winford 2005; Correia 1998; Correia & Lemos 2005; Matras 2009; Miguel 2019). A análise e descrição de aspectos linguísticos inerentes aos emprés- timos que servem de exemplo baseiam-se em Miguel (2019) e na bibliografia especiali- zada do português e das línguas Bantu. Em termos metodológicos, trata-se de um estudo descritivo no qual privilegio a abordagem qualitativa, procurando analisar e reflectir sobre questões linguísticas diver- sas, que conduziram a uma concepção clara dos princípios ortográficos propostos. A re- colha do material teórico apoiou-se nas pesquisas bibliográfica (em suportes físico e vir- tual) e documental (que visou compulsar alguns diplomas legais) e o material que serve de base empírica é constituído por empréstimos Bantu, retirados de alguns trabalhos an- teriores: Kikongo (cf. Mudiambo 2013), Kimbundu (cf. Miguel 2019) e Umbundu (Costa 2015), além de alguns poucos empréstimos de Cokwe, retomados de páginas da Internet. O artigo apresenta a seguinte estrutura. Além, da “Introdução, a secção 2 constitui um breve enquadramento do tema, permitindo colocar a sua problematização e a conse- quente questão inicial; a secção 3 é também um breve olhar sobre a ortografia, entendida como um dos aspectos da escrita alfabética; partindo da noção geral de “integração lin- guística”, a secção 4 focaliza as questões da integração morfológica e fonológica, no âm- bito do contacto linguístico, que suportam os aspectos da integração ortográfica, cujos princípios são propostos na secção 5, a parte central do artigo. 2- Enquadramento e problematização Como referido em Miguel (2019), o processo de integração dos empréstimos Bantu no sistema ortográfico português constitui uma questão bastante complexa, pois foi sempre motivo de acesos debates, divergindo entre uns que tendem para a grafia do alfabeto das línguas Bantu (cf. 1a) e outros que defendem o uso da grafia latina, assente em critérios da ortografia portuguesa (cf.1b); e há, também, aqueles que optam por uma 100

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grafia híbrida, “bantu-portuguesa” (cf. 1c). Como consequência, verifica-se muita confu- são ortográfica, provocando muitas dúvidas, incertezas e certa deriva na escrita destes empréstimos, resultando em formas diversas. Para ilustrar a situação, tomo como exemplo o termo KANDANDU (que resulta da expressão de Kimbundu KA-U-NDANDU > KAWNDANDU, etimologicamente, ‘familiari- dade, entre família, extensivo a amigos’, que passou depois para saudação de Ano Novo, equivalente à expressão “Bom Ano”, típica em Português. Integrado como empréstimo em Português, pode apresentar, pelo menos, três formas gráficas: (1) a. Kandandu, que significa (1) ‘expressão de saudação (inicial ou de despedida), equiva- lente ao termo “abraço” (e.g., Um forte Kandandu a todos os amigos da nossa página); (2) “Abraço, ritual trocado como saudação na passagem do ano”14; e (3) programa da TPA – Televisão Pública de Angola, que era emitido a partir de Portugal, como abraço fraterno de saudades entre a diáspora angolana e outros que vivem no País (e.g., Os pro- gramas nacionais \"Kandandu\", \"Conversas no Quintal\"..., serão emitidos, a partir do próximo mês)15. b. Candando ‘rede de hipermercados em Luanda/Angola (e.g., Junta-te à equipa Can- dando e faz parte do futuro da marca de excelência na distribuição em Angola)16. c. Kandando ‘significa o mesmo que a primeira acepção do exemplo (1a); (e.g., Um grande Kandando a Belmiro Carlos)17. Estes exemplos traduzem uma situação clara de instabilidade, deriva ou confusão ortográfica, em face do qual nem sempre é fácil optar por uma das formas. Assim, pode questionar-se: perante este cenário, quais os princípios ou critérios devem presidir a op- ção por uma das formas gráficas na escrita dos empréstimos Bantu em Português? A resposta a esta questão passa por propor um conjunto de princípios que contribuam para a normatização ortográfica do tipo de palavras em análise, a partir de uma reflexão lin- guística e sociolinguística, que este artigo procura tratar. 14 In: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/candando (acessado a 29.10.2020). 15 In: http://cdn1.portalangop.co.ao/angola/pt_pt/noticias/educacao/2007/11/51/,3af9e108-dd49-494b- 96a8-c2eeff956556.html (acessado a 29.10.20). 16 In: http://www.candando.com/recrutamento/22 (acessado a 29.10.2020). 17 Cf. https://www.novafrica.co.ao/mais/cultura/um-grande-kandando-a-belmiro-carlos/ (acessado a 29.10.2020). 101

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Apesar de se ter consciência da situação, ela permanece indefinida, pois, até hoje, não se conhece qualquer orientação oficial para a escrita dos empréstimos Bantu adopta- dos em português. Ressalve-se, aqui, a iniciativa pontual do Ministério da Administração do Território, que, para evitar confusão na escrita dos nomes oficiais das diferentes loca- lidades do País, decidiu manter ou recuperar, através de uma lei, a grafia portuguesa de algumas circunscrições territoriais, vigente até à altura da independência (cf. Lei 8/16, de 15 de Julho, “Lei da Codificação das Circunscrições Territoriais”). Mesmo assim, esta iniciativa suscitou reacções negativas em alguns segmentos da sociedade (ver, p.e., o ar- tigo de Domingos & Bernardo (2016), que reflecte bem essa dissonância). Provavel- mente, é uma questão que pode ser resolvida com o trabalho em curso, no âmbito do “Acordo Ortográfico de 1990”, com vista à inserção de palavras locais no “Vocabulário Ortográfico Comum (VOC)”, sob a coordenação do IILP – Instituto Internacional de lín- gua portuguesa.18 3- A ortografia como sistema de escrita O termo “ortografia”, definido etimologicamente como “escrita correcta” (da pala- vra do grego orthographía e desta para a forma latina orthographia), estabelece as nor- mas da escrita, através de um código ortográfico, que constitui um conjunto de regras ou princípios ortográficos que regulam o processo da representação gráfica (escrita); é tam- bém entendida, pelo menos, desde as gramáticas renascentistas, como a disciplina gra- matical que fixa as regras de representação escrita de uma língua – por outras palavras, como disciplina, visa normalizar a representação escrita de uma língua (Duarte 2000). A ortografia é um instrumento da padronização e/ou estandardização linguística, no plano da escrita, obviamente, garantindo a unidade e a uniformização da língua, pelo menos, em contexto do uso formal. Neste caso, particular, segundo Santos (2010: 237), a ortografia impõe-se, então, aos utilizadores, como um conjunto de formas e regras de utilização que, de algum modo, garante a unidade e a intercompreensão aos que dominam esse sistema comunicativo. A sua regulamentação assume, então, valores (simbólicos e práticos) muito particulares quando em causa está um idioma geograficamente disseminado por diferentes espaços e nações. 18 São os seguintes VON que já fazem parte do VOC: Brasil – Vocabulário Ortográfico da Língua portu- guesa (VOLP); Cabo Verde – Vocabulário Cabo-Verdiano da Língua portuguesa (VOCALP); Moçambi- que – Vocabulário Ortográfico Moçambicano da Língua portuguesa (VOMOLP); Portugal – Vocabulário Ortográfico do Português (VOP); e Timor-Leste – Vocabulário Ortográfico de Timor-Leste (VOTL) (cf. https://voc.cplp.org/; clicar sobre a bandeira de cada país membro; acesso: 24.05.2020). 102

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A ortografia é um dos aspectos dos sistemas de escrita (inventados há milhares de anos), que permitiram a fixação gráfica organizada das palavras, procurando pôr termo na deriva ou oscilações que antes existiram sem normas próprias. Tanto as línguas Bantu como o português usam particular e basicamente o sistema de escrita alfabética, herdada da escrita latina, através de adopção de caracteres do alfabeto desta língua.19 Para além de outros elementos, como por exemplo, os que servem para marcar os traços prosódicos (sobretudo, os sinais de pontuação), a escrita alfabética é representada fundamentalmente por sinais convencionais, designados por letras ou grafemas. Como ilustrado no quadro seguinte, os alfabetos das línguas em estudo apresentam aspectos convergentes e divergentes, traduzidos na semelhança e dissemelhança de algu- mas letras. Os alfabetos das línguas Bantu (Kikongo, Kimbundu e Umbundu, as três lín- guas de maior expressão no país) baseiam-se na descrição feita na obra Histórico sobre a criação dos alfabetos em Línguas Nacionais, do INALD, 1980. Tanto o alfabeto das línguas Bantu como do português incluem os dígrafos. Quadro 1. Alfabetos das Línguas Bantu e da Língua Portuguesa Língua Alfabeto Kikongo a, aa, b, mb, d, nd, e, ee, f, nf, ng, i, ii, k, l, m, n, o, oo, ph, s, t, nt, u, uu, v, w, y, z. Kimbundu a, b, bh, mb, d, nd, e, f, ng, h, i, j, nj, k, l, m, n, ny, o, ph, s, t, th, u, v, nv, w, x, y, z, nz. Umbundu a, mb, c, nd, nj, e, f, ng, h, i, k, l, m, n, ny, ŋ, o, p, s, t, u, v, w, y. L. Portuguesa a, b, c, ch, d, e, f, g, h, i, j, k, l, lh, m, n, nh, o, p, qu, r, s, t, u, v, x, y, w, z. Fonte. Elaboração do autor. Neste quadro, destacam-se as diferenças, negritadas em cada alfabeto específico, destacando-se as vogais longas (duplicadas), em Kikongo, e as consoantes complexas nas três línguas Bantu. São as diferenças de letras que constituem o cerne da presente abor- dagem, pois a grafia dos empréstimos Bantu em Português só é questionada, quando é representada com letras diferentes das de origem. Mas as semelhanças também são im- portantes, porque concorrem para a convergência de escrita em ambos os sistemas orto- gráficos, evitando conflitos. 19 Alfabeto ou abecedário é “o conjunto de grafemas que compõem o sistema gráfico de uma língua. O alfabeto (...) é então composto por símbolos ou figuras gráficas que têm um carácter representativo (Gon- çalves 1992: 61; o grifo é do autor citado). 103

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A normalização ortográfica não é uma questão meramente linguística, mas é tam- bém, “um produto cultural e uma convenção social, ou seja, é elaborada por pessoas es- pecializadas na área, atendendo às necessidades da sociedade ou comunidade linguística em que é praticada” (https://www.coladaweb.com/portugues/ortografia; acessado a 24.10.2020). É objecto de uma legislação própria assegurada por instituições vocaciona- das para o efeito, como por exemplo, a Academia de Ciências de Lisboa e Academia Brasileira de Letras, no caso específico da Língua Portuguesa. A respeito disso, Duarte (2000: 377), destacando o contraste entre os sistemas orais e os sistemas escritos, assinala a “natureza não regulamentável dos sistemas orais vs. natureza regulamentável dos siste- mas escritos”. Como se sabe, em Português, já houve várias reformas ortográficas. Desde a ela- boração das primeiras ortografias quinhentistas e seiscentistas, destacam-se a Primeira Reforma Ortográfica, de 1911 (unilateral, de Portugal), o Acordo Bilateral Luso-Brasi- leiro, de 1945, por sinal, usado actualmente em Angola, e o Novo Acordo Ortográfico, de 1990, em vigor em alguns países da CPLP (Brasil, Cabo Verde, Portugal, São Tomé e Principe e Timor-Leste). O princípio básico da normalização dos sistemas ortográficos, tanto das línguas Bantu como do Português (nesta língua, concretamente o AO90) privilegia o critério fonético, assente na relevância da pronúncia sobre a etimologia. Para as línguas Bantu, este critério assenta principalmente na natureza simplificada dos seus sistemas fonético e ortográfico, caracterizados por uma relação directa ou biunívoca entre sons e grafemas (uma letra só representa um som e um som só pode ser representado por uma única letra). Em relação ao Português, a opção por este critério, em detrimento do critério etimológico, que vigorou nos acordos anteriores, fundamenta-se em factores “políticos e económicos”, pois visou-se a uniformização das ortografias, inicialmente, do Brasil e Portugal, e depois de outros países da CPLP, por formas a facilitar a publicação e circulação de livros no espaço comunitário, bem como a divulgação da língua em espaços internacionais, sobre- tudo em instituições de decisão política e ambientes de negócios. Mas, na prática, não tem sido fácil concretizar este propósito, daí, por exemplo, persistirem grafias duplas, na tentativa de acomodar a variação de pronúncias diversas, além de outros “desacordos”.20 20 Mateus (2006) defende a natureza fonológica da ortografia portuguesa, através do qual se uniformizam graficamente as variedades de pronúncias (fonéticas) dialectais ou idiolectais (individuais). Por exemplo, oralmente, pode assumir-se a variação de [b] e [v], na palavra vinho, mas na escrita prevalece o grafema <b>, que é representativo do fonema /b/. 104

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4- A questão da integração dos empréstimos lexicais A abordagem desta secção constitui um breve enquadramento geral sobre a inte- gração linguística de empréstimos lexicais, uma questão que se situa no âmbito do con- tacto linguístico, que é a interacção entre línguas diferentes em presença ou não e condi- cionada por factores linguísticos e extralinguísticos. O desenvolvimento deste tópico re- quer a apresentação prévia de algumas considerações sobre os termos “empréstimo lexi- cal” e integração linguística. • Empréstimo lexical Empréstimo lexical (de Inglês, lexical borrowing)”, em Linguística, é um termo controverso e talvez ambíguo, que remete para conceitos diversos. Mas, aqui, considero apenas duas acepções básicas: o processo ou o produto de criação neológica (criação ou adopção de novas palavras numa língua). Ou seja, consiste no “processo de transferência de uma unidade lexical de um registo linguístico para outro dentro da mesma língua (“em- préstimo interno”), ou de uma língua para outra (“empréstimo externo”)” e para “[u]ni- dade que resulta do processo de transferência anteriormente descrito” (Correia & Lemos 2005: 53; Correia & Almeida 2012: 70). No âmbito deste texto, empréstimo é usado na segunda acepção e deve ser enten- dido como a unidade lexical exógena integrada numa dada língua de acolhimento/ de adopção (LA); isto é, trata-se concretamente das palavras das línguas Bantu faladas em Angola integradas em Português. O emprego do termo empréstimo em estudos linguísticos, particularmente no do- mínio do contacto linguístico, deve ser entendido como uma metáfora, para explicar a presença de palavras de uma língua noutra. Não se trata de “tomar emprestada” uma pa- lavra, sem retorno ou devolução, ganhando o sentido de “usurpação”. O empréstimo, uma vez integrado, i.e., adaptado à gramática e à ortografia da LA, passa a fazer parte do acervo desta, enriquecendo-o; caberá à etimologia a tarefa de explicar a sua origem. • Integração linguística Linguisticamente, o termo integração é definido como o processo de inserção de elementos linguísticos exógenos, quer lexicais (palavras/expressões) quer estruturais (so- bretudo, morfofonológicos), numa determinada língua. Para o caso particular de elemen- tos lexicais, trata-se de um processo que consiste na inserção de unidades lexicais não vernáculas no léxico da LA, quer na sua forma original, isto é, palavras que não sofreram 105

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quaisquer adaptações ao serem incorporadas na língua de acolhimento (empréstimos for- mais), quer sob uma forma adaptada à estrutura da nova língua, de acordo com as carac- terísticas fonológicas, morfológicas e ortográficas dessa mesma língua (empréstimos adaptados) (Miguel 2019). Neste caso, verifica-se a integração ortográfica/formal e gramatical das palavras estrangeiras numa língua de acolhimento. Normalmente, quando um termo emprestado já assume as formas gráfica, fonológica, morfológica e sintáctica típicas da LA, então pode ser considerado um empréstimo plenamente integrado no sistema desta língua. As- sim, a palavra adapta-se à ortografia da LA, adquire traços fonológicos e morfológicos e funciona como constituinte sintáctico, tal como as palavras vernáculas. De acordo com a explicação de Sengo (2010; apud Miguel 2019: 231), são basica- mente três os processos ou vias de integração dos empréstimos lexicais: (i) mudança se- mântica, da qual resultam “decalques ou empréstimos semânticos” (e.g., paper money/pa- pel moeda, hot dog / cachorro quente); (ii) adaptações, que dão lugar aos chamados “em- préstimos adaptados”, (e.g., teste/test”, sanduíche/sandwich, futebol/football); e (iii) in- corporações, que têm a ver com os ditos “empréstimos incorporados” (e.g., diet, light, online). Destes três processos, destaca-se a relevância da “adaptação” como processo de integração plena de empréstimos lexicais, conforme o interesse do elevado número de estudiosos sobre o assunto (Miguel 2019: 231; nota 192). Por isso, “a nativização ou adaptação da palavra de origem estrangeira é regida por padrões linguísticos da língua receptora” (Araújo & Agostinho 2009: 306). 4.1- Adaptação morfofonológica como integração de empréstimos lexi- cais Para uma melhor percepção do que foi explicado anteriormente, passo a abordar alguns casos de integração estrutural (morfológica e fonológica) de empréstimos lexicais, que constitui a primeira fase, muitas vezes, crucial, neste processo, antes mesmo da inte- gração ortográfica. Assim, tomo como exemplos casos que ocorrem em ambos os siste- mas linguísticos, numa perspectiva de influências recíprocas: por um lado, as línguas Bantu e, por outro, a Língua Portuguesa. 106

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I. Critérios morfológicos e fonológicos de integração de empréstimos lexicais das línguas Bantu em Português As línguas Bantu, à semelhança de outras línguas naturais, também acolhem no seu léxico palavras de outras línguas com as quais estão em contacto directo ou não, uma situação que é propiciada por diversos factores que não cabe aqui explicar. Trata-se de um dos mecanismos de enriquecimento dos sistemas lexicais destas línguas. Por questão da delimitação do texto, esta abordagem restringe-se ao Kimbundu como LA. De acordo com Andrade (2007), para este processo, recorre-se a três critérios fun- damentais, com vista a integrar as palavras novas nas respectivas classes nominais, como se descreve, a seguir: i. Critério do significado: que permite integrar os empréstimos por razões semânticas; se uma palavra emprestada não tem nenhum som (ou sílaba) inicial idêntico aos prefixos Bantu, é integrada numa classe correspondente ao seu significado, atribuindo-lhe o res- pectivo prefixo nominal (PN) ou verbal (PV), como aconteceu nos exemplos seguintes: (1) a. di-kalu (sg) / ma-kalu (pl) < CARRO / CARROS (N) b. di-kulusu (sg) / ma-kulusu (pl) < CRUZ / CRUZES (N) c. ku-belesela < OBEDECER (V) d. ku-kondala < contar (V) ii. Critério da semelhança fonética: sob este critério, integram-se as palavras cujos sons iniciais apresentam semelhanças fonéticas com prefixos nominais do Kimbundu; ou seja, a primeira sílaba dessas palavras comporta-se como um prefixo natural do singular, que varia na formação do plural. (2) a. di-jimu (sg) / ma-(di)jimu (pl) < DÍZIMO / DÍZIMOS (N) c. ka-balu (sg) / tu-balu (pl) < CAVALO / CAVALOS (N) iii. Critério da classe sem prefixo: através deste critério, são integrados na classe nominal 9, cujo plural é feito com o prefixo da classe 10, todos os empréstimos do Por- tuguês que, em Kimbundu, não exibem um prefixo aparente. (3) a. Ø-mbinza (sg) / ji-mbinza (pl) < CAMISA / CAMISAS (N) b. Ø-mbolu (sg) / ji-mbolu (pl) < DOR / DORES (N) c. Øxikola (sg) / ji-xikola (pl) < ESCOLA / ESCOLAS (N) Como se depreende destes casos, qualquer falante Bantu é capaz de adaptar, qual- quer empréstimo com certa facilidade, sem recorrer a estratégias complexas. Quer dizer 107

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que, nestas línguas, as novas palavras conformam-se naturalmente aos sistemas gramati- cal e ortográfico da LA. II. Critérios morfológicos e fonológicos de integração de empréstimos da Língua Portuguesa nas línguas Bantu (Kimbundu, como referência): O Português, como língua viva e dinâmica, manteve sempre contacto com várias línguas do qual resultaram influências notáveis, com destaque para a adopção de novas palavras, como aquelas que provieram das línguas Bantu faladas em Angola. Tal como no ponto anterior, a análise que se segue tem como referência das línguas Bantu o Kim- bundu, procurando mostrar a integração morfológica e fonológica dos empréstimos desta língua em Português. Embora haja outros casos, o destaque vai para a presença de prefixos Bantu na estrutura da nova forma integrada em Português e cuja ortografia em Português tem sido objecto de discórdia, naqueles casos divergentes. Nos exemplos seguintes, os emprésti- mos foram integrados com os respectivos prefixos de classe nominal e verbal: i. Prefixos nominais do singular: calundu < KA-(KI)LUNDU; dicanza < DI-KANZA; quitanda < KI-TANDA; mulemba < MU-LEMBA). ii. Prefixos nominais do plural: imbamba < I-MBAMBA; jindungo < JI-NDUNGU; ma- rimbondo < MA-DIBWENDE ~ MA-DINBONDO; missanga < M-ISANGA; iii. Prefixo verbal: cunanga < KU-NANGA; cupapata < KU-PAPATA. As formas finais destes empréstimos assemelham-se aparentemente à das de par- tida, sem grandes transformações (excluindo os aspectos ortográficos e semânticos), mas estruturalmente evidenciam outra realidade, como se pode depreender das estruturas in- ternas que se seguem, das quais a primeira e a segunda são representativas das estruturas nominais (singular e plural) (cf. 4 e 5) e a terceira representa a estrutura verbal (cf. 6). Em cada exemplo, a alínea a corresponde à estrutura de origem (étimo do Kimbundu) e a b, à estrutura final do empréstimo em Português. (4) a. mu]PN MULEMB]RN a]VF → mulemba b. MULEMB]RN a]IT → mulemba (5) a. ji]PN NDUNG]RN a]VF → jindungo b. JINDUNG]RN a]IT → jindungo (6) a. ku]PV RIBOT]RV a]VT → kudibota b. CURIBOT]RV a]VT → curibota Analisando estas estruturas, interessa realçar as seguintes transformações morfoló- gicas. Para o caso dos nomes, verifica-se: i) transposição da estrutura nominal do Kim- bundu em Português; (ii) incorporação do prefixo nominal (PN) Bantu no radical nominal (RN) da nova palavra, uma vez despojado das suas funções gramaticais de base; e (iii) 108

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reanálise da vogal final (VF) da base em índice temático (IT) da nova palavra em Português, que fica disponível para adjungir os morfemas flexionais ou derivacionais. Para os verbos, ocorre o seguinte: (i) transposição da estrutura verbal de base (prefixo verbal (PV) e radical verbal (RV)) da língua de origem em radical nominal em Português (ocorre mudança/reanálise categorial de verbo para nome); e (ii) reanálise da vogal final (VF) de Kimbundu em vogal temática (VT) em Português. Os prefixos Bantu, uma vez integrados no radical do empréstimo como uma sílaba apenas, perdem as suas funções morfossintácticas de marcador das categorias de número e género gramatical, assim como de concordância frásica (no caso particular dos nomes). Estes prefixos também são despojados do seu valor léxico-semântico, pois que a sua pre- sença não altera a categoria lexical do empréstimo e não lhe acrescenta qualquer valor semântico evidente e já não contribui para a definição da respectiva classe nominal ou verbal da palavra aportuguesada. No entanto, como resquício do étimo Bantu pode ser identificado através de estudos etimológicos. Ainda no âmbito da integração morfológica dos empréstimos, convém considerar, particularmente, as palavras derivadas de bases de empréstimos Bantu já plenamente in- tegradas em Português, de acordo com os critérios de formação de palavras desta língua, com destaque para os casos de sufixação: (7) a. sanzaleiro < SANZALA b. xinguilamento < XINGUILAR c. cunangar < KUNANGA d. zungar < ZUNGA Este facto mostra que os empréstimos deixam de ser palavras estranhas ao sistema da língua de acolhimento e passam a comportar-se semelhantemente às palavras verná- culas, ao ponto de apresentarem um grau de produtividade morfológica como as demais. Este aspecto evidencia e reforça a ideia de adopção do código ortográfico da Língua Por- tuguesa nas formas de base, evitando-se recorrer ao uso desnecessário de formas gráficas híbridas kimbundu-português, naqueles casos de divergência ortográfica entre as duas línguas (e.g., kunangar, kassulinha, kandengue). Fonologicamente, neste processo, realçam-se simplesmente três aspectos: (i) substituição (reanálise) e inserção dos fonemas do Kimbundu ao sistema do Português, (ii) adaptação da pronúncia Bantu à do Português e (iii) a restruturação silábica, que se ajusta à estrutura da sílaba do Português. 109

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4.2- Perspectiva comparativa e histórica Esta perspectiva não é linguística, no domínio histórico-comparativo, mas sim uma tentativa de buscar alguma experiência de outras realidades sociais e históricas sobre o assunto. Comparativamente, centro-me apenas na experiência de Moçambique, um país cuja realidade sociolinguística é próxima da de Angola, sobre a elaboração do seu voca- bulário ortográfico nacional, o Vocabulário Ortográfico Moçambicano da Língua Portu- guesa (VOMOLP), já integrado no Vocabulário Ortográfico Comum da Línga Portu- guesa (VOC). Constata-se que os moçambicanos adoptaram a ortografia da Língua Por- tuguesa na grafia dos empréstimos Bantu, pelo menos, no léxico comum, mesmo naque- les casos divergentes, com realce para a letra <k> vs. <c>, conforme os exemplos seguin- tes: capulana <KAPULANA (de Tsonga), ‘pano ou tecido de algodão usada por mulheres moçambicanas’; machamba <MASHAMBA (pl. de SHAMBA, em Swahili, e depois passou para as línguas daquele país), ‘quinta, plantação, campo cultivado, lavra’ – da palavra aportuguesada derivaram os termos machambar ‘cultivar terreno agrícola’; e macham- beiro, ‘proprietário ou trabalhador da machamba’; e canimambo < KANIMAMBO (de Changana), ‘expressão usada para agradecimento’.21 Ainda sobre Moçambique, vale enfatizar, aqui, o pensamento de Madalena Sitoe, linguista moçambicana e participante do processo de elaboração do VOMOLP, a respeito do do Acordo Ortográfico de 1990 com nexo ao assunto aqui focalizado: Se tomarmos em conta que em Moçambique há uma situação de contacto de línguas (Português e línguas Bantu), a partir da qual há integração de elementos linguísticos de uma língua noutra, podemos considerar que este acordo trará al- gumas vantagens para Moçambique no que diz respeito aos empréstimos lexi- cais das línguas Bantu no ortuguês. Uma vez que a ortografia desses emprésti- mos é estranha ao português, eles têm de passar por um processo de adaptação ortográfica para que efectivamente figurem no VOP como palavras da Língua Portuguesa. A principal vantagem disso, a meu ver, reside no facto de esses empréstimos, muitas vezes usados para designar realidades culturais típi- cas, passarem a adquirir um estatuto “global”, ou seja, tendo a sua ortogra- fia adaptada à língua portuguesa, eles passam a integrar o acervo lexical desta língua, podendo ser escritas e lidas sem muitas dificuldades por todos os seus usuários (o gripo, é meu).22 A integração de empréstimos lexicais Bantu no Português, através do processo de adaptação, deve também ser explicada e compreendida a partir da perspectiva histórica. Desde os primórdios da interacção entre portugueses e angolanos, muitas palavras das 21 In: https://voc.iilp.cplp.org/index.php?action=lemma&id=28276; (acessado a 24.10.2020). 22 In: Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/acordo/marta- sitoe-o-novo-acordo-ortografico-e-uma-simplificacao-da-ortografia-da-lingua-portuguesa/4171 (acessado a 25-10-2020). 110

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línguas Bantu foram adoptadas em Português, assim como as do Português nestas línguas. Destaca-se aqui o papel do Brasil neste processo, através de escravos que para lá foram levados e cujas línguas (em particular o Kimbundu) também contribuíram decisivamente na formação do Português brasileiro, sobretudo no domínio lexical, conforme abordam muitos trabalhos de descrição sociolinguística.23 Esta constatação remete para a historiografia, que mostra que o Português é uma língua que se enriqueceu, lexicalmente, com o contributo de outras línguas em contacto, das quais estão as línguas Bantu faladas em Angola. Assim, o que seria das centenas de palavras há muito acomodadas e legitimadas através da sua dicionarização em Língua Portuguesa, se um dia se consumasse a reversão ortográfica das mesmas para a grafia Bantu? Haja consciência da história comum, para se evitar certo caos ou deriva colectiva, pois muitos empréstimos e respectivos derivados já fazem parte do léxico geral do Poru- guês, e parece ser uma simples birra procurar reivindicar a sua origem. Parece não existir tanto valor procurar resgatar palavras que já se fixaram na língua de acolhimento, constando mesmo em dicionários brasileiros e portugueses, ao ponto de gerarem outras palavras, como, por exemplo, carimbo (< KIRIMBU ~ KIDIMBU): carimba- dor, carimbagem, carimbar, carimbaço, carimbeta; funge (< FUNJI): funjada, fungismo; moleque (< MULEKE); molecada, molecagem, molequear, pé-de-moleque; mucama (< N’KAMA), quezília (< KIJILA): quizelar, quizelento, quezilentamente. Por outro lado, mui- tas destas palavras até já se encontram registadas no VOC, quer como palavras do VOLP (e.g., bunda, cafundó, caçula, mocotó, mulambo)24 quer como palavras do VOP (e.g., bassula, cacimba, comba, quijila, quissânguua)25. Nesta mesma senda, pode questionar-se também se o que seria de palavras, como por exemplo, andebol, bife, futebol, líder, iogurte, item e tantos outros anglicismos adop- tados em Português, se fossem reivindicados pelos ingleses, no que tange às transforma- ções ortográficas ocorridas. 23 Ver, por exemplo, os trabalhos de Pessoa de Castro (2001), Naro & Scherre (2007), Fiorin & Petter (2008) e Lucchesi, Baxter & Ribeiro (2009). 24 Cf. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa | Academia Brasileira de Letras; acessado a 09.12.2020. 25 Cf. https://www.portaldalinguaportuguesa.org. Vocabulário Ortográfico do Português - Portal da Língua Portuguesa; acessado a 09.12.2020. 111

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5- Princípios ortográficos de empréstimos Bantu em Português Baseando-me na abordagem do contacto linguístico, parto do princípio básico de que as regras da LA determinam a adaptação fonológica, morfológica, sintáctica, semâ- ntica e ortográfica dos empréstimos, uma vez considerados os factores linguísticos e ex- tralinguísticos. As palavras emprestadas são manipuladas, de modo a que estejam em conformidade com à gramática e, neste caso, também à ortografia da LA. Quer dizer que o novo material recebe traços da LA, a fim de se conformar ao seu sistema, permitindo a sua integração plena e evitando que as novas palavras permaneçam estranhas. Contudo, há sempre a possibilidade de algum traço da LO transitar para a LA, já que, em situações de contacto linguístico, as línguas envolvidas podem influenciar-se mutuamente (Win- ford 2005:49-50; Matras 2014: 2). Vejam-se, por exemplo, os casos de adopção de fone- mas estranhas ao Português ou a articulação de elementos de línguas diferentes em estru- turas híbridas, com consequências ortográficas evidentes (e.g., Ngola, ngongoenha, ndengue). Com base neste princípio geral, proponho que os empréstimos em análise sejam es- critos de acordo com as normas da orttografia portuguesa, mas salvaguardando determi- nadas excepções, sobretudo as de cunho etimológico, principalmente aqueles aspectos que deturpem o valor semântico original da nova palavra, quer na língua de partida quer na língua de acolhimento. Por isso, neste artigo, só discuto a questão ortográfica de em- préstimos representativos do léxico comum, ficando de fora o léxico toponímico, antro- ponímico e terminológico (especificamente, termos técnicos e científicos), que penso de- vem merecer um tratamento especializado. Nos pontos subsequentes, descrevo os sete princípios que constituem a proposta para a integração ortográfica dos empréstimos Bantu em Português: (i) princípio de con- vergência ortográfica e fonética (5.1), (ii) princípio de reanálise ortográfica (5.2), (iii) princípio de relevância etimológica (5.3), (iv) princípio de reversão ortográfica (5.4), (v) princípio de adopção de grafemas Bantu (5.5), (vi) princípio de reanálise prosódica do acento (5.6) e (vii) princípio de hibridismo ortográfico (5.7). Para o aspecto ilustrativo dos princípios, apresento elementos descritivos em qua- dros, nos quais os grafemas específicos são destacados com sublinhado, no étimo, e a negrito, nos nos exemplos dos empréstimos. A estrutura dos quadros apresenta basica- mente quatro colunas: (i) escrita, que mostra a letra das LB e a possível correspondente 112

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em Português; (ii) pronúncia, que evidencia o som (representado pelo respectivo sím- bolo fonético) correspondente ao grafema, tanto em LO como em LA; (iii) proposta gráfica, que traduz o grafema a adoptar em Português, tendo em conta o sistema ortográ- fico desta língua; e (iv) exemplos, quer do étimo (forma da LO) quer do empréstimo já integrado na LA; e (v) significado da forma final, em Português. 5.1- Princípio de convergência ortográfica e fonética Este princípio consiste na coincidência gráfica e fonética de determinadas letras e sons das LB e do Português, o que permite e facilita a ortografia dos empréstimos. Con- forme os elementos da tabela seguinte, sempre que se regista este tipo de coincidência, considerando os sistemas ortográficos das línguas envolvidas e o critério fonético adop- tado na concepção dos mesmos, a integração ortográfica realiza-se com a simples trans- posição da palavra na nova língua, mantendo-se a sua forma de origem, sem prejuízo das transformações morfológicas necessárias. Quadro 2. Casos de convergência ortográfica e fonética Escrita (le- Pronúncia Proposta Exemplos tra) (som) de grafia LO LA LO LA Étimo 26 Empréstimo Significado V <a> <a> [a] [a/ɐ] <a> MABANGA (Kd) mabanga espécie de marisco. <e> [e] [e] <e> MABELE (Kg) mabelé espécie de lodo... O <i> [i] [i] <i> MUXIMA (Kd) muxima coração, bondade G <e> <o> [o] [o] <o> MUKOTO (Kd) mocotó pé de boi... A <i> I S <o> <u> <u> [u] [u] <u> MUTETA (Kd) muteta pevides <b> <b> [b] [b] <b> JINGUBA (Kd) jinguba amendoim [d] [d] <d> C <d> <d> [f] [f] <f> DIKULU (Kd) diculo problema, desgraça <f> [l] [l] <l> O <l> [m] [m] <m> NSAFU (Kg) safu fruto longo e roxo N <f> <m> [n] [n] <n> <n> [p] [p] <p> KULUNDULA (Kd) lundular herdar S <l> <p> [t] [t] <t> O <t> MAMBU (Kg) mambo problema, conflito A <m> MONA-A-NGAMBA monangamba servente, assalariado (Kd) cupapata mototáxi, mototaxista N cambuta baixo, curto T <n> KUPAPATA (Ud) E <p> S <t> 26 Abreviaturas das designações das LB usadas em todos os quadros: Kg – Kikongo; Kd – Kimbundu; Ud – Umbundu; Ck – Cokwe; Nk – Nyaneka; Osh – Oshiwambo/Oshikwanyiama. 113

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<x> <x> [ʃ] [ʃ] <x> KAMBUTA (Kd) xingar ofender, disparatar <z> <z> [z] [z] <z> KUXINGA (Kd) quizaca esparregado da folha de KIZAKA (Kd) mandioqueira Fonte. Elaboração do autor. Esta tabela, subdividida em casos de vogais e consoantes, apresenta apenas exem- plos de empréstimos nos quais a coincidência gráfica é possível, como se pode notar na ausência de algumas consoantes que são divergentes nas línguas em contraste. Verifica- se uma correspondência directa entre alguns grafemas das línguas Bantu e as do Portu- guês, mais concretamente nas consoantes. 5.2- Princípio de reanálise ortográfica O princípio de reanálise ou reinterpretação ortográfica tem a ver com a mudança dos grafemas Bantu não atestados em Português, substituindo-os pelos desta língua. Ou seja, este processo, adoptado da análise gramatical, consiste na substituição das letras do alfabeto Bantu por letras do alfabeto português, em casos da não coincidência das mes- mas. Em situações de divergência de elementos dos alfabetos das LO e da LA, a integra- ção ortográfica de um dado empréstimo deve conformar-se ao sistema do Português, con- vertendo-se os grafemas Bantu, tal como ilustra o quadro seguinte. Quadro 3. Casos de reanálise ortográfica Escrita (letra) Pronúncia Pro- Exemplos (som) LA LA posta <c> <x>/ LO LA de LB (étimo) Empréstimo Significado <ch> grafia música/dança cokwe planta medicinal [tʃ] [ʃ] <ch>/ CIYANDA (CK) chianda/xianda <x> chandala/xandala O-CANDALA (Ud) CANDENGE (Kd) candengue criança, menino, petiz <ng- <gu-e; [ŋ] [ɡ] <gu> JINGINGA (Kd) jinguinga dobrada de cabrito quínguila cambista informal e;i> i> KU-KINGILA (Kd) KASULE (Kd) cassule último filho/irmão <c> <c> MAKA (Kd) maca problema, conflito MAKAYABO (Kg) prato à base de peixe [k] macaiabo corvina seco <k> KITANDA ((Kd)) quitanda mercado, feira <qu> MAKESO (Kd) maquesso cola-castanha <qu> MUPEKE (Nk) mupeque 114

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ANYALA (Ud) anhara árvore de se extrai espé- cie de óleo <ny> <nh> [ɲ] <nh> KABWENYA (Kd) cabuenha planície arenosa... NGWENGWENYA (Kd) ngongoenha peixe miúdo guloseima à base de fa- BASULA (Kd) bassula rinha de mandioca e quissanje açúcar <s> <ss> [s] <ss> KI-SANJI (Kd) pacassa queda, luta tradicional /V-V PHAKASA (Kd) instrumento musical subespécie de búfalo MBURUTUTU (Kd) burututo africano <u> <o> [u] <o> MAMBU (Kg) mambo planta medicinal assunto, problema MUJIMBU (Kd) mujimbo boato, fofoca LUNGWILA (Kg) lunguila bebida alcoólica caseira prato típico de Luanda <w> <u> [w] <u> MWAMBA (Kd) muamba fruto de imbondeiro MUKWA (Kd) múcua amigo, camarada <y> <i> [j] <i> MWADYE (Kd) madié Fonte: Elaboração do autor. Os casos de reanálise ortográfica constituem o grande pomo da discórdia a res- peito da ortografia dos empréstimos Bantu em Português, levantando outras preocupa- ções particulares, como as seguintes cujos argumentos procuro rebater. (i) Substituição do k pelo c ou qu, em Português, acompanhados respectivamente das vogais <a, e, i, o, u>, por razões etimológicas, já que está em causa a conservação do valor de prefixos de origem iniciados por aquela letra. Aqui vale lembrar o que já ficou explicado acima, em 4.1, os prefixos Bantu pre- sentes nos radicais de empréstimos integrados em Português perderam a sua função gramatical, comportando-se apenas como sílaba da nova palavra, tendo em conta as transformações morfológicas e fonológicas ocorridas. (ii) Procura-se justificar a manutenção deste grafema com base na sua presença no alfabeto do Português, juntamente com w e y, usados em “casos especiais” para grafar “antropónimos e topónimos originários de outras línguas e seus derivados”, assim como “siglas, símbolos e mesmo em palavras adotadas como unidades de medida de curso internacional”, conforme disposto no 2.º 115

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ponto da Base I do AO90.27 Fica claro que o uso dos referidos grafemas deve ser válido para os casos anteriormente mencionados (daí legitimação, p.e., da grafia da palavra kwanza/kwanzas” com k e w) e não para o léxico comum. (iii) A opção pelo c em detrimento do k provoca situações de confusão ortográfica e mesmo semântica, como por exemplo, os casos de cota (< Kd., KOTA), ‘adullto, mais velho’, e cota (< Lat., QUOTA, feminino de QUOTUS), ‘nota de referência, nota de classificação de livros ou publicações’; e maca (< Kd., MAKA), ‘problema, conflito’, e maca (< Esp. HAMAKA), ‘cama hospitalar por- tátil’28. Este facto traduz simplesmente uma situação de identidade homoní- mica, ou seja, relação de homonímia (relação entre palavras com mesma gra- fia e som, mas significado diferente) entre empréstimos Bantu e palavras por- tuguesas vernáculas. Também podem fazer parte do grupo das chamadas pa- lavras convergentes, que têm origem em étimos diferentes, mas cujas formas finais convergem, à semelhança de muitas existentes em Português, proveni- entes do Latim: canto (< Lat., CANTHUM), ‘aresta’, e canto (< Lat. CANTUUM), ‘canto do pássaro; rio (<Lat., RIVUS), ‘curso de água e rio (Lat., RIDEO), ‘3.ª pes. do verbo ser). Podem admitir-se também casos de paronímia, como os que ocorrem entre os empréstimos quijila (< Kd. KIJILA), ‘regra, norma, pre- ceito’, e quezília (< kd. KIJILA,), ‘contrariedade, zanga, embirração’, que apre- sentam formas gráfica e fonética próximas, mas com significados diferentes. Por fim, resta-me considerar, nesta subsecção, que o princípio de reanálise visa apenas a conformação ortográfica dos empréstimos ao sistema do Português, naqueles casos de divergência entre os alfabetos das línguas em análise. Assumindo consciente- mente o processo, creio que as questões explicadas nos quatro pontos anteriores demons- tram tão-somente o contributo das línguas Bantu no sistema do Português. Sendo assim, a adopção dos grafemas do alfabeto português facilitam a integração dos empréstimos e a sua consequente difusão no espaço geral da Língua Portuguesa, traduzindo-se numa presença, não só linguística mas também cultural Bantu. 27 Cf. https://www.portoeditora.pt/assets/acordoortográfico/ao-1990.pdf; acessado a 01.12.2020. 28 É interessante que, das palavras maca (port.) e maca (empréstimo), formam-se derivados que também podem atestar situação de homonímia: maqueiro, ‘condutor de maca (hospitalar, por exemplo) e maqueiro, ‘pessoa causadora de problemas (macas), conflituoso’. Este facto demonstra, por si só, que o empréstimo Bantu já está plenamente integrada na nova língua. 116

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5.3- Princípio de relevância etimológica Este princípio tem a ver com aqueles casos de divergência fonética e gráfica em Por- tuguês, quando um som desta língua é possível de ser representado por uma das duas letras diferentes, das quais uma existe também no alfabeto das LB. No entanto, na escrita do empréstimo em Português, opta-se por aquela que não se atesta em LB, conforme se vê nos exemplos do quadro seguinte. Nestes casos, propõe-se a opção pelo grafema de origem, i.e., escrever-se a nova palavra mantendo a letra do alfabeto Bantu. Quadro 4. Casos de relevância etimológica Escrita (letra) Pronúncia Proposta Exemplos (som) de grafia LA LA LO LA LB (étimo) Empréstimo Significado JINGUINGA (Kd) jinguinga (*ginguing) dobrada de cabrito <j> <j> / <g> [ʒ] [ʒ] <j> MALANJE (Kd) malanje (*malange) topónimo norma, lei, preceito KIJILA Kd) quijila (*quigila) <x> <x>; [ʃ] [ʃ] <x> KUXINGILA (Kd) xinguilar(*chinguilar) entrar em transe <ch> KUXINDA (Kd) xindar (*chindar) escrever KIZANGU (Kd) quizango (*quisango) problema, desgraça <z> <z>/<s> [z] [z] <z> KIZAKA quizaca (*quisaca) esparregado da folha de mandioqueira Fonte: Elaboração do autor O princípio de relevância etimológica pretende conservar as marcas das LO, um mecanismo desejável, caso ocorresse em outros casos, o que facilitaria, talvez, o processo de integração ortográfica em questão, diluindo possivelmente a querela existente. Aliás, sempre que possível, é necessário garantir a partilha de traços linguísticos de diferentes línguas em contacto (ver Matra 2013; Miguel 2029). Às vezes, verifica-se oscilação na opção por uma das letras e a palavra “Malanje ~ Malange” é bem o exemplo mais para- digmático desta facto, razão por que aparece aqui, apesar de ser um topónimo (o símbolo *, anteposto à palavra, significa que a mesma representa a forma ortográfica não aceitá- vel, possível de ocorrer e provocar confusão na escrita do empréstimo em causa). 5.4- Princípio de reversão ortográfica A reversão como princípio ortográfico, no quadro deste artigo e olhando para a sua acepção geral, consiste na possibilidade de se recuperar algum elemento do alfabeto 117

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Bantu substituído pelo grafema do alfabeto português, na grafia de um empréstimo. Este facto pode ser possível sempre que houver coincidência entre grafemas afectados nas línguas em questão. Para a análise, considerem-se os exemplos da tabela seguinte: Quadro 5. Casos de reversão ortográfica Escrita (le- Pronúncia Proposta Exemplos tra) (som) de grafia LA LA LO LA LB (étimo) Empréstimo Significado <j> <j>; [ʒ] [ʒ] <j> KU-JINGA-LA (Kd) *gingar > jingar andar bamboleado <g> *funge > funje pasta comestível a base de fa- FUNJI (Kd) rinha de mandioca... <x> <ch>; [ʃ] [ʃ] <x> KU-XINGA (Kd) *chingar > xingar disparatar <x> XIDI (Kd) *chídi > xídi azar; desgraça <s> <ss>; [s] [s] <ss> PHAKASA (Kd) *pacaça > pacassa subespécie de búfalo africano <ç> KASULE (Kd/Ud) *caçule > cassule filho/irmão mais novo/último Fonte: Elaboração do autor. Tal como nos casos descritos anteriormente, os elementos desta tabela demons- tram que há situações em que um determinado grafema Bantu representa um som que pode ser grafado através de dois grafemas diferentes em Português, dos quais um coincide com o do alfabeto Bantu. Mas, na integração do empréstimo, opta-se pela forma portu- guesa em detrimento da daquelas línguas. Tomo como exemplo o empréstimo funge, no qual se opta pela letra <g>, em vez de <j>, que existe tanto nas línguas Bantu como em Português, para representar o som /ʒ/. Noutros casos, verifica-se também alguma oscila- ção ortográfica de empréstimos que têm na sua origem <j>, que se mantém em Português, como por exemplo, em jindungo, jinguba, quijila, como a possibilidade de serem grafa- dos como *gindungo, *ginguba, *quigila. Considerando os princípios de convergência ortográfica e fonética (I) e relevân- cia etimológica (II), nos casos aqui discutidos, parece mais aconselhável optar-se pela consoante <j>, representativa do /ʒ/, em ambos os sistemas linguísticos, pois, por um lado evita confusão ortográfica, por outro lado, uniformiza a grafia de todos os empréstimos, evitando oscilações. O princípio de reversão ortográfica pretende predizer, portanto, que os casos em apreço já grafados com <g>, em Português, devem reverter-se ao grafema <j>, marca 118

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etimológica do empréstimo mas também existente em Português. Trata-se de um princí- pio que deve ser extensível a outros casos similarmente possíveis cujos exemplos não foram apresentados no presente texto. 5.5- Princípio de adopção de grafemas Bantu Trata-se do princípio que assegura a inserção de grafemas das línguas Bantu em caso da manutenção de elementos do alfabeto destas línguas em Português, mantendo-se também a respectiva pronúncia de origem. Neste caso, além do aspecto ortográfico, ve- rifica-se igualmente implicações fonético-fonológicas, já que a LA (a variedade do Por- tuguês angolano) acolhe também segmentos estranhos ao seu sistema. Conforme a tabela que se segue, este facto dá-se naqueles casos em que um de- terminado som atestado em LB é grafado com um grafema destas línguas, por não existir um equivalente em Português. Quadro 6. Casos de adopção de grafemas Bantu Escrita (letra) Pronúncia Proposta Exemplos (som) de grafia LA LA LO LA LB (étimo) Empréstimo Significado <h> <h> [h] [Ø] MAHINI (Nk/Osh) mahíni leite fermentado (azedo); <h> honga espécie de iogutre caseiro HONGA (Kd) horta; nome de bairro de Luanda [mb] [Ø] <mb> MBIKA (Kg) mbica o.m.q. que quizaca [nd] [Ø] <nd> NDENGE (Kd) <NC> <Ø> [ŋ] [Ø] <ng> NGWENGWENYA (Kd) ndengue criança, garoto, miúdo, petiz ngongoenha <nh> NYANGA (Kd) guloseima à base de farinha NYAREYA (Ud) de mandioca e açúcar <ny> <nh> [ɲ] [ɲ] Nhanga antropónimo Nhareia topónimo <c> <Ø> [tʃ] [tʃ] <tch> CIYANDA (Ck) tchianda ~ dança/estilo musical cokwe O-CINGANJE (Ud) chianda tchinganje ~ chinganje palhaço (dançarino) Fonte: Elaboração do autor. Considerando os casos apresentados na tabela, constata-se que ocorre a adopção de: (i) fonema consonântico Bantu /h/ (fricativa glotal), inexistente em Português, mas mantém-se o respectivo grafema <h> que, consequentemente, tem realização fonética 119

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neste caso particular, já que, em Português, é tipicamente mudo (e.g., lohengo; mahini); (ii) grafema representativo das consoantes pré-nasalizadas (segmentos complexos) em posição inicial absoluta, não atestadas em Português, mas que passam a figurar no inven- tário fonológico da variedade do PA (e.g., ndengue; ngongoenha); (iii) grafema represen- tativo da consoante oclusiva palatal nasal (/ɲ/) em posição inicial absoluta (essencial- mente na grafia de topónimos e antropónimos), aspecto não verificado em Português, no qual ocorre apenas em posição intervocálica (e.g., Nhareia; Nhanga); e (iv) adaptação do dígrafo <tch>, correspondente ao segmento consonântico complexo /tʃ/, adoptado da le- tra <c>, de Cokwe e Umbundu, com base na sua pronúncia em Português (e.g., tchianda). Aqui, verificando-se certa oscilação, pode admitir-se também a pronúncia como conso- ante simples (/ʃ/), grafando-se as palavras em causa com <ch>, também existente em Português (e.g., chianda). 5.6- Princípio de reanálise prosódica do acento No âmbito da presente abordagem, o princípio de reanálise prosódica do acento cobre os casos da marcação da posição do acento tónico (acentuação), como elemento prosódico, em empréstimos Bantu integrados em Português, com realce para situações particulares de acentuação gráfica, um aspecto específico do Português. Como se pode aferir dos exemplos da tabela seguinte, em algumas palavras, aquando da sua passagem para Português, adquiriram o acento desta língua em detrimento daquele da origem. Quadro 7. Casos de reanálise prosódica do acento Localização do Localização Proposta de Exemplos Significado acento tónico do acento classificação LB (étimo) Empréstimo toníco em LA em LO Penúltima sílaba oxítona MUZONGI (Kd) muzongué caldo; actividade recreativa (sublinhada) MUKOTO (Kd) mocotó mão-de-vaca (prato culin.) KAZUMBI (Kd) cazumbi espírito mau; alma penada Última sílaba NSAFU (Kd) safu fruto longo e roxo escuro (negritada) Penúltima sílaba Penúltima úl- KILAPI (Kd) quilápi dívida, fiado, empréstimo MAHINI (Osh) mahíni (sublinhada) tima sílaba paroxítona leite fermentado (azedo); espécie de iogutre caseiro (negritada) Penúltima sílaba Antenúltima proparoxítona MUKWA (Kd) múcua fruto de imbondeiro KUKINGILA (Kd) quínguila cambista informal (sublinhada) última sílaba (negritada) Fonte: Elaboração do autor. 120

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Inexistente em LB, a acentuação gráfica constitui um dos aspectos da ortografia portuguesa cuja marcação se reveste de importância na identificação formal (pronúncia correcta) e semântica de determinadas palavras. Sendo assim, as novas unidades lexicais adoptadas estão também sujeitas às regras do Português neste quesito particular. Assim, maioritariamente os empréstimos entram como palavras paroxítonas, tal como a maioria das palavras do Português. Nas línguas de origem, as tais palavras são caracterizadas pela marcação de tom, aspecto pouco relevante em Português. Os exemplos que a tabela acima apresenta referem-se apenas a casos especiais que requerem o uso do acento gráfico (execepto cazumbi e safu, cuja presença serve para mostrar que também há empréstimos oxítonos com “i” e “u” tónicos) e traduzem o mo- delo de muitas outras palavras afectadas pelo fenómento: oxítonas (e.g., muzongué, mo- cotó), paroxítonas (e.g., mahíni, quilápi) e proparoxítonas (e.g. múcua, quínguila). 5.7- Princípio de híbridação ortográfica A hibridação ortográfica é aqui entendida como o processo de uso de grafemas das línguas Bantu e do Português na forma gráfica de um mesmo empréstimo integrado ortograficamente em Português. As formas linguísticas híbridas ou simplesmente hibri- dismos, à semelhança dos empréstimos, são um facto em muitas línguas, por razões so- bretudo denominativas de novas realidades inventivas. Estas unidades lexicais resultam tipicamente da combinação de elementos de línguas diferentes, quer fonético-fonológi- cos, morfológicos, sintácticos, semânticos e ortográficos. No caso particular do aspecto ortográfico, âmbito desta abordagem, trata-se, na essência, de palavras formadas por ele- mentos dos alfabetos Bantu e do Português. Quadro 8. Casos de híbridação ortográfica Forma da LB Forma do PT Exemplos Significado kwanz-a -a-Ø/-s kwanza/kwanzas unidade monetária de Angola lwey - Ø- Ø/-s lwei/lweis antiga moeda divisionária angolana cor- respondente a centésima parte do Kwanza kixi- credit-o/-s kixicrédito/kixicréditos programa de crédito bancário em Angola Fonte: Elaboração do autor. Analisando os elementos desta tabela, constata-se que são palavras formadas por material Bantu (radical ou parte do radical que conserva a forma original) e do Português 121

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(palavras plenas, índice temático resultante da transformação da vogal final Bantu e ge- ralmente sufixos flexionais: marcas de número e género gramatical). O elemento -Ø in- dica determinado constituinte morfológico não realizável, no caso, a marca do singular, na primeira linha; na segunda linha, também a ausência do marcador do índice temático, já que lwei é um nome atemático, em Português. Estes empréstimos podem ser assim aceites ortograficamente em Português por constituírem palavras que indicam termos de áreas específicas, por exemplo, notação mo- netária (kwanza, lwei) e financeira (kixicrédito), aspecto que pode estender-se a nomes que constituem marcas empresariais diversas, um domínio em que se admite alguma to- lerância ou liberdade gráfica, a julgar pela criatividade comunicacional do mundo empre- sarial ou de negócios. Por outro lado, estes casos podem enquadrar-se também no âmbito do 2.º ponto da Base I do AO90, já atrás referido. Por último, enquadrando, por extensão, nesta abrodagem, os casos das palavras kuduru, ‘tipo de música e dança típicas de Angola’, da expressão de Português cu duro (em alusão ao estilo de dança que envolve esta parte do corpo), e kubico, ‘casa pequena, casebre, no contexto angolano e moçambicano; forma contraída da palavra portuguesa cubículo, de acordo com o Dicionário Infopédia online.29 Como se compreende dos exemplos, as referidas palavras são grafadas, conscientemente ou não, com o <k> inicial, como se de palavras de origem Bantu se tratassem, quando, na verdade, são do Português. Para alguns defensores desta forma gráfica, pelo menos, no primeiro exemplo, a presença do referido grafema visa conferir ao termo a sua origem e tipicidade angolana, caracteri- zando-se como uma das marcas identitárias, à semelhança de muitos outros termos Bantu em Português. 7- Nota final Sob condições sócio-históricas diversas, o contacto entre povos e culturas diferentes ditou o surgimento de novas realidades. No domínio linguístico, esse contacto traduz-se em influências recíprocas entre as línguas afectadas a todos os níveis, sem que isso implicasse necessariamente mudança ou empobrecimento dos respectivos sistemas linguísticos. No caso do tema abordado, a adaptação ortográfica dos empréstimos Bantu ao sistema do Português não constitui alguma espoliação ou belisco ao valor da 29 Cf. https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/cubico (acessado: 22.11.2020). 122

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identidade e das línguas autóctones, mas, pelo contrário, é um dos meios de penetração e presença de traços culturais africanos noutras culturas. O que está em causa não é a ortografia das línguas Bantu, mas sim a do Português, a língua afectada. Todo o esforço empreendido até aqui visou mostrar e justificar que, em Angola, particularmente, naqueles casos divergentes, os empréstimos de origem Bantu, que cons- tituem o léxico comum, devem ser grafados de acordo com as normas ortográficas da Língua Portuguesa, salvaguardando, sempre que necessário, o aspecto etimológico das línguas de partida. Reitero que estas palavras, uma vez integradas no sistema da LA, depois de adaptações morfológicas e fonológicas, passam a fazer parte do seu sistema lexical. Sendo assim, esta integração passa também a ser ortográfica. A efectivação desse postulado requer obviamente a definição de normas ortográficas específicas, num exer- cício multidisciplinar, que não cabe neste artigo. Em face disso, interessa-me apresentar, por conseguinte, duas sugestões: (i) tendo como base os empréstimos já dicionarizados (mas sem descurar a possível reversão orto- gráfica de alguns casos) e valendo-se do carácter normativo rigoroso dos dicionários, deve-se elaborar um glossário, o mais exaustivo possível, dos empréstimos Bantu, cujo objectivo principal seja a fixação da grafia específica de cada palavra em Português; e (ii) sendo o sistema ortográfico de uma língua produto da convenção social, em resultado de consensos, e veiculando uma das marcas simbólicas da identidade de um povo, é pre- ciso envidar esforços, para uma solução equilibrada, traduzida numa ortografia que re- flicta as múltiplas realidades culturais da qual a Língua Portuguesa é representativa. Referências bibliográficas 1. Andrade, Ernesto d’ (2007). Línguas Africanas: breve introdução à Fonologia e Mor- fologia. Lisboa: A. Santos. 2. Araújo, Gabriel A. de & Agostinho, Ana L. dos S. (2010). Nativização e manutenção de acento oxítono em Português. Signótica, 21(2), 305-340 (https://doaj.org/arti- cle/b498b793216247699625a66aefb7e6b2; acesso: 24.09.2020). 3. Correia, Margarita & Lemos, Luísa S. P. (2005). Inovação lexical em Português. Lis- boa: Colibri. 4. Correia, Margarida & Almeida, Gladis de B. (2012). Neologia em Português. São Paulo: Parábola Editorial. 5. Correia, Margarita (1998). Neologia e Terminologia. In Terminologia: questões teó- ricas, métodos e projectos. Lisboa: Publicações Europa-América, 59-74. 123

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O imperativo de contextuali- zação (coexistência língua portuguesa / línguas bantu) do ensino do português em Angola 126

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Glotopolítica e ensino bilingue em Angola: subsí- dios para uma política linguística consequente Maria Helena R. P. Santos Miguel Artur Osvaldo dos Santos Universidade Católica de Angola [email protected] [email protected] Resumo O português, língua da administração e de escolaridade em Angola, detinha, antes da independência, um número insignificante de falantes. Porém, nos últimos quarenta anos, conheceu uma subida exponencial em expansão territorial e em número de falantes: o Censo Populacional de 2014 apresenta-o com uma extraordinária supremacia (71% de falantes) em relação às demais línguas angolanas. A segunda língua mais falada é o um- bundo, com 23% de falantes. Esta realidade evidencia uma language shift, tendo o por- tuguês uma multifuncionalidade hegemónica. Não obstante essa expansão, muitas crian- ças, sobretudo do meio rural, ainda acedem à escola sem conhecerem a língua de escola- ridade, e o ensino processa-se nessa condição. A isso se deve, em grande parte, o insu- cesso do ensino. O Estado angolano, ciente da heterogeneidade linguística nas escolas, frequentemente caracterizada por um bi/multinguismo, accionou medidas de utilização das línguas africanas como veículos de ensino, a par do português. Porém, a inconsistên- cia da concretização das soluções, mesmo em relação ao português, para o qual nunca se estabeleceu uma política de ensino adequada à sua condição de língua segunda de muitas crianças, resultou num impacto negativo no ensino e é visível a subalternização das lín- guas africanas que se apresentam em retrocesso relativamente ao número de falantes. Urge, portanto, reverter este quadro, implementando medidas oportunas. A nível escolar, essas medidas exigem soluções pedagógico-didáctico-metodológicas no ensino das lín- guas e ênfase na formação linguística e pedagógica dos professores. Enquanto línguas de ensino e unidades curriculares (o português incluído), é fundamental que haja professores competentes para gerirem o ensino das e nas línguas em questão, de acordo com o perfil funcional da escola. Palavras-chave: multilinguismo, glotopolítica, ensino mono/bilingue/multilingue 127

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1. Multilinguismo: do passado de rejeição ao presente de promoção e defesa Graças à globalização, hoje, promovem-se os contextos multiculturais e multilin- gues, redimensionam-se actuações com vista ao desenvolvimento do multilinguismo e dos direitos linguísticos, num espírito de partilha e de comunicação, como defendia, em 2007, o então Secretário-Geral da ONU, Ban Ki Moon30. Para a linguística, emergiu um novo período, com o incremento e a valorização do multilinguismo, facto resultante, em grande parte, do surgimento de instituições transnacionais, como a União Europeia (UE), o Mercosul, etc., e a intensificação das relações entre Estados, a vários níveis. Por seu lado, a investigação trouxe uma nova concepção relativa ao conhecimento de línguas, rejeitando o conceito eurocêntrico de “uma nação, um estado, uma língua” no qual a língua constituía um dos principais atributos de definição da nação, resultando daí políticas linguísticas tendencialmente glotofágicas de uma(s) língua(s) sobre outra(s). Portugal é o exemplo de um Estado que ultrapassou esse preconceito e, hoje, assume-se com três línguas: o português (língua nacional e oficial), o mirandês (língua regional) e a língua gestual portuguesa. O Brasil é outro país que hoje se reconhece como multilingue: detém duas línguas oficiais ̶ o português e a libras31 _ e mais de duas centenas de línguas indígenas, até há poucos anos ignoradas, a maior parte delas minoritárias. A UE estabeleceu uma política linguística exemplar, centrada no multilinguismo, que ganhou força em 1990, a partir do Programa Língua. Em 2002, a meta é ensinar pelo menos duas línguas estrangeiras desde a idade mais precoce. Na esteira da promoção do multilinguismo, a UE estimula os estados-membros a realizarem acções alinhadas a esse desígnio: a formação de professores, a aprendizagem através de uma língua estrangeira, a criação do QECR32, o incentivo à mobilidade dos cidadãos, em particular dos jovens em contextos educativos formais e informais, etc. Tudo isto, num quadro de planeamento em que a investigação detém um papel determinante. A valorização do multilinguismo tem subjacente a defesa das línguas para evitar a sua extinção. Em 2018, a directora-geral da UNESCO, no Dia Internacional da Língua 30 Relatório sobre o multilinguismo, 2007 31 Língua Brasileira de Sinais, reconhecida como língua oficial em 2002. 32 QECR _ Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas um padrão internacionalmente reconhe- cido para descrever a proficiência numa língua. 128

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Materna33 , referiu que a data era “…uma oportunidade para relembrar o compromisso da Organização com a defesa e a promoção das línguas” e que “Com o objectivo de preservar e revitalizar esse componente essencial do património imaterial da humani- dade, durante muitos anos, a UNESCO tem-se envolvido activamente na defesa da di- versidade linguística e na promoção da educação multilíngue.” Hoje, no panorama linguístico mundial, a ameaça de desaparecimento de línguas e o consequente empobrecimento do património cultural é uma preocupação, face à ten- dência monopolizadora de umas poucas línguas dominantes, como o inglês, o chinês, o espanhol, em detrimento de outras menos conhecidas. Na esteira desta preocupação, a UNESCO estabeleceu, ‘2019: Ano Internacional das Línguas Indígenas’, dada a propen- são de muitas línguas, sobretudo as dos povos indígenas, desaparecerem. O site Ethnologue apresenta um cenário alarmante para as línguas minoritárias: 50 a 90 por cento das cerca de sete mil línguas existentes no Mundo poderão desaparecer34 se, até ao fim do século, não houver medidas pertinentes. Esse risco resulta de políticas linguísticas inconsistentes (ou da sua ausência): sem um status sociocultural e político relevante, essas línguas vão perdendo prestígio e vão sendo preteridas a favor de línguas dominantes que se vão/estão a tornar hegemónicas. 2. O Multilinguismo em África: do passado colonial às realidades pós-independên- cia África é um continente visivelmente marcado por uma diversidade em vários do- mínios, nomeadamente, étnico, cultural, geográfico, etc., e com uma diversidade linguís- tica impressionante. Das cerca de 7000 línguas existentes no mundo, um terço é falado neste continente. Nos finais do séc. XIX, as potências europeias fizeram a partilha de África, na Conferência de Berlim (1885-1896), definindo arbitrariamente fronteiras, sem conside- rarem a história, as estruturas políticas, sociais e económicas das sociedades africanas e, naturalmente, as línguas. Nos anos sessenta, as colónias africanas começaram a ascender à independência. Na altura, os políticos africanos ponderaram na reorganização geopolítica do Continente, 33 Proclamado pela UNESCO em 1999, celebra-se a 21 de Fevereiro. 34 https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2019-01/papa-francisco-onu-linguas-indigenas.html (Acesso: 09.07.19) 129

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porém, com a criação da Organização da União Africana, em 1963, a opção foi manter as fronteiras estabelecidas. Esta herança geopolítica, carregou consigo a herança linguís- tica, pouco abonatória para os países africanos, pois a colonização menosprezou as lín- guas africanas, embora a maior parte tenha resistido e mantido o seu vigor. Quer dizer que a colonização em África foi, também, linguística, dada a imposição de línguas euro- peias, nomeadamente o inglês, o francês, o árabe, o espanhol e o português, facto que, como aponta Silva (2010), promoveu profundas transformações linguísticas em África. É com este quadro que as colónias africanas, ao ascenderem à independência, se depararam. Conquistada a independência, impôs-se a necessidade de se criar a identidade nacional, isenta de qualquer distinção étnica, racial, religiosa, etc. A(s) língua(s) consti- tui(em), como se sabe, um elemento se união ou de separação dos povos. Portanto, para formar a nação, impunha-se uma opção linguística que congregasse se não a Nação in- teira, pelo menos a maioria a qual clamava por uma língua oficial. A condição linguística da África subsaariana, na qual Angola se situa, ditou a escolha da língua oficial. Duas alternativas se apresentavam: ou uma política exoglótica, adoptando a língua europeia como oficial, quando as línguas nativas atingiam percenta- gem abaixo dos 50% da população, ou uma política endoglótica, em razão da existência de um grupo étnico maioritário, possibilitando a promoção de uma língua nativa como língua oficial. Países como o Botswana, (o tswana era língua materna de 80% da popula- ção), o Madagáscar (o malgaxe era língua materna de 98% da população), etc., são exem- plos da opção endoglótica. No cômputo geral, a situação linguística de África está assim caracterizada: 27 (50%) dos países têm apenas línguas europeias como oficiais; dos res- tantes países, 18 apresentam, pelo menos, uma língua europeia como oficial e apenas nove (9) não apresentam nenhuma língua europeia como oficial (Silva, 2010). Estes últi- mos são, sobretudo, os países do Norte de África: Marrocos, a Argélia, o Egipto, etc. No caso de Angola, não existia nenhuma língua maioritária, na altura da inde- pendência. Em 1973, segundo José Redinha, as três línguas mais faladas eram o umbundu abrangendo 37% da população, seguido do kimbundu com 25% e do kicongo com 15%. Poucos meses antes da data aprazada para a ascensão à independência, desencadeou-se um conflito armado entre os três movimentos envolvidos na luta contra o colonialismo (MPLA, UNITA e FNLA). Coincidentemente, a nível do território angolano, a zona de influência de cada um desses movimentos coincidia com as regiões de cada uma dessas três línguas mais faladas. Se se concretizasse o desígnio de um governo de coligação, um 130

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governo com representação dos três movimentos, talvez se promovessem as três línguas mais faladas, que poderiam ser co-oficializadas, juntamente com a Lp com carácter naci- onal e as africanas com carácter regional. Porém, tendo a independência sido proclamada, unilateralmente pelo MPLA, em Luanda, e pela UNITA, no Huambo, na nossa opinião, seria impossível que, tanto um como outro movimento promovesse as três línguas, ou apenas a de maior representatividade, neste caso, o umbundu. Esta língua seria facilmente uma opção da UNITA, pois era a sua língua regional, mas dificilmente o seria pelo MPLA, em razão de ser a língua do seu opositor. A República proclamada pelo MPLA, com a Lp como língua oficial, teve o reconhecimento internacional. Vilela (2001) observa que as potências colonizadoras criaram políticas linguísti- cas propícias à expansão das suas próprias línguas e, em muitos casos, essas línguas man- tiveram o estatuto nas ex-colónias, facto que, como aponta o autor, permitiu aos novos estados maiores aberturas para o mundo, o que, talvez não acontecesse, pelo menos tão cedo, com as línguas africanas. O autor (2001:34) assegura que “a utilização dessas lín- guas oficiais pelos países africanos teve como consequências a adesão destes às diferentes organizações que têm como base a partilha em comum das línguas supracitadas, nomea- damente Commonwealth, Organization Internationale de la Francophonie (AIF), Comu- nidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).” Alcançada a independência, impunha-se aos países africanos, em razão da sua diversidade linguística, o estabelecimento de políticas linguísticas. Todavia, não houve soluções consistentes, nem de planeamento, nem de políticas linguísticas e, do ponto vista político, as línguas europeias instituídas como oficiais alcançaram muitas vantagens. Na perspectiva de Silva (2010:5), tais vantagens devem-se ao facto de essas línguas deterem um valor simbólico, por possuírem instrumentos linguísticos definidos, como a escrita, gramáticas, dicionários, além da vasta literatura e história documentada, ao contrário de muitas línguas africanas; exerciam o papel de língua de contacto internacional e evitariam problemas que a escolha de uma língua africana como oficial poderia causar, por um lado, e impediria a valorização e ascensão de um grupo étnico perante os demais. Por conse- guinte, a língua do colonizador afigurou-se como a melhor opção, pela sua neutralidade. Mas há um outro aspecto a considerar: a necessidade de um investimento incalculável para a promoção das línguas africanas, situação a que alguns países, como Angola, não 131

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conseguiram dar resposta, porquanto, mergulhada numa guerra interna entre movimen- tos, a questão linguística não constituía prioridade. A opção exoglótica de alguns países africanos, ao promoverem as línguas euro- peias como línguas oficiais, dotando-as de uma multifuncionalidade quase absoluta, é vista como uma forma de continuidade da colonização. Mas, se por um lado, durante as guerras de libertação nacional, a Lp foi usada para o contato entre guerrilheiros de dife- rentes etnias, por outro, depois da independência, ela “ganha um novo sentido, uma nova memória, passando a representar a identidade, memória e história do povo que a fala” como defende Silva (2010: 21). Hoje, em Angola, a Lp desenvolve-se numa variedade com traços, características e realizações formais e contextuais específicos de Angola. Está a angolanizar-se, a adquirir feições que a distinguem do português falado noutras para- gens, o que lhe confere um carácter nacional no sentido em que se constitui como o “por- tuguês de Angola”, uma variante distinta da de Portugal, do Brasil, de Moçambique, etc. Mas subsiste uma preocupação: sobre as línguas africanas, paira a ameaça de retracção quanto ao número de falantes, dada a sua subalternização, perigando a sua so- brevivência. Para acautelar esta situação, urge o estabelecimento de políticas linguísticas sólidas que, de outro modo, como observa Okoundawa (s/d, 11) “seria uma perda tanto para a linguística geral, quanto para a própria humanidade, pois as línguas africanas fa- zem parte do patrimônio da humanidade e merecem ser preservadas.” A assunção de medidas que concorrem para valorizar e promover as línguas afri- canas é possível: citamos o exemplo da Tanzânia, o único país africano que definiu polí- ticas linguísticas de umas das suas línguas, o kisuaili, constituído língua oficial desde 1964. Esta língua está presente na escola e na administração, coabitando com o inglês. O mérito coube a Julius Nyerere, primeiro presidente da Tanzânia que, de acordo com Okoudowa (s/d), era professor de inglês e de kisuaili e traduziu, para esta língua, alguns clássicos da literatura inglesa, como Otthello e Hamlet, de Shakespeare. 3. Angola: manutenção ou mudança da política linguística colonial? 3.1. Política linguística colonial Como era apanágio da política dos conquistadores, a administração colonial impôs, nas, colónias a sua língua − o português – e restringiu o uso das línguas locais. A partir 132

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de 1921, as missões religiosas,35 que colaboravam no ensino das populações, sobretudo as do meio rural, foram proibidas de ensinar línguas indígenas36, tendo-lhes sido permi- tido usá-las, somente, como suporte do ensino37. No âmbito da difusão da língua portuguesa (Lp), as medidas relativas ao seu papel visavam a diferenciação e a supremacia dos colonizadores sobre os colonizados: o Esta- tuto do Indigenato exigia aos africanos o domínio da Lp para ascender à categoria de cidadão português (Art. 56.º). A administração colonial, ao inculcar a cultura europeia aos africanos, impôs restrições às línguas africanas pretendendo apagá-las. Porém, elas resistiram ao assimilacionismo colonial, para o que concorreram dois factores: a diminuta rede escolar38 e a fraca penetração da Lp no território angolano, sobretudo nas zonas rurais. Gonçalves (2013:157) elucida-nos sobre essa limitação: Ainda que a chegada dos portugueses nos diversos territórios africanos tenha decorrido quase integralmente na segunda metade do séc. XV (…), a colonização desses territórios só teve início muito mais tarde, já no séc. XIX. Por essa razão, na altura da independência destas colónias (1975), o português era usado por uma baixa percentagem de falantes, tipicamente como língua segunda. O território angolano, tal como se configura hoje, foi definido nos finais do séc. XIX, com a Conferência de Berlim (1885-1886). Até aí, a administração colonial limi- tava-se a áreas estratégicas, sobretudo ao longo da costa. Zau (2011: 96) confirma que o séc. XIX foi o momento crucial da dominação colonial efectiva, com o alargamento para o interior das possessões. Esta é a razão da baixa frequência de falantes de Lp, até à independência. Em 1973, o etnólogo José Redinha apontava o panorama linguístico de Angola, em termos da percentagem de falantes, em que a língua mais falada era o umbundo (Ovi- mbundu), seguindo-se o kimbundo (Mbundu), depois o kicongo (Bakongo)39. Adiante, veremos se esta tendência se mantém. 35 As missões católicas e protestantes desenvolviam actividades de ensino, sobretudo nas zonas rurais. 36 Art. 2º do Decreto nº 77 do então Governador de Angola, Norton de Matos, publicado pelo Boletim Oficial, nº 5, 1ª série (9 de Dezembro de 1921). 37 Estatuto dos indígenas portugueses das províncias da Guiné, Angola e Moçambique, aprovado por De- creto Lei nº 39 666, de 20 de Maio de 1964. 38, “Na essência, o ensino colonial era discriminatório para os angolanos, pois a política educativa colonial não permitia o acesso democrático das populações aos serviços educativos, o que explica os elevados índi- ces de subescolarização geral da população.” Victorino (2012:10). Em 1975, o analfabetismo em Angola situava-se nos 85% da população. 39 Hesitações na grafia de empréstimos das línguas de origem africana são frequentes, mesmo em textos oficiais. As seis principais línguas africanas de Angola _ Kikongo, Kimbundu, Umbundu, Cokwe, 133

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Gráfico 1. Percentagem da população em Angola segundo a língua materna, de acordo com J. Re- dinha (1973)40 8% 6% 3% 15% 37% Ovimbundu 25% Mbundu Bakongo Lunda-Cokwe Ngangela Nyaneka-Humbe 3.2. Vitalidade das línguas angolanas nativas: em progressão ou em regressão? O Director-geral do Instituto de Línguas Nacionais afirmou que A política do Go- verno é de equilíbrio linguístico e de complementaridade entre a língua portuguesa e as línguas nacionais, para que todas sirvam de instrumento de comunicação na sociedade.41 Esse equilíbrio, a nosso ver, nunca se evidenciou, conforme vamos apreciar na evolução linguística de Angola a seguir à independência. Quando Angola se tornou um país soberano, em 1975, a opção, em termos linguísti- cos foi, por lado, atribuir às línguas africanas o estatuto de línguas nacionais e, por outro lado, manter a Lp com o mesmo estatuto que detinha no período colonial. Banza (2014:32) refere que a opção pelo português como língua oficial de Angola colocou o interesse nacional à frente de qualquer preconceito nacionalista eneste sentido, segundo refere, foi um primeiro e decisivo acto de política linguística assumido pelo governo do novo Estado. Importa destacar que, durante a luta pela conquista da independência, a Oxikwanyama e Mbunda _ possuem os seus alfabetos e regras de transcrição (Resolução no 3/78, do Con- selho de Ministros), mas são pouco conhecidos, por isso, sobretudo os topónimos e glotónimos aparecem com grafias diferentes. A Lei nº 14/16, de 12 de Setembro (Lei de Bases da Toponímia), estabelece, no Artigo nº 7 (Regra da Grafia dos Topónimos): “Os topónimos são escritos em língua portuguesa, seguindo a grafia latina”. Nessa perspectiva, escreve-se Cuanza (excepto o nome da moeda angolana, que continua a grafar-se “Kwanza”), Cabinda, Cunene, Cuando Cubango, etc. 40 Fernando (2019). 41 Na abertura de um ciclo de palestras, realizadas no âmbito do Dia Internacional da Língua Materna, em 21/02/2017. 134

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‘língua do colono’ foi usada pelos movimentos nacionalistas como esteio da expansão da consciência nacional: de instrumento de dominação e clivagem social entre o colonizador e o colonizado, esta língua adquiriu um carácter unificador entre os diferentes povos de Angola, segundo Fernandes et all (2002). Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola, na criação da União dos Escritores de Angola, em 1977, reconheceu que o uso exclusivo da Lp, como língua oficial, não resolveria os problemas do país e que, no ensino primário e, talvez, no médio, seria ne- cessário recorrer às línguas nacionais. Se, a partir dessa altura, se encetassem acções para concretizar este desígnio, é provável que não se assistisse ao actual cenário de, podemos dizer, depreciação das línguas africanas de Angola. Para estas, a única decisão relevante no sentido da sua valorização e resgate de um passado no qual eram depreciativamente designadas como “dialectos”, foi a atribuição do estatuto de “línguas nacionais42”. No dizer de Ismael Mateus,43 esse estatuto é oco e indefinido, pois não obriga a nenhum compromisso. Na mesma senda, João Melo44 considera que além de desvalorizar politi- camente a Lp, esse estatuto é ilusório. Melo acrescenta que a prova disso é que, trinta e seis anos depois da independência, se fala mais português em Angola do que no perí- odo colonial. João Melo, para o entendimento o termo “nacional” atribuído às línguas africanas, perspectiva-o em quatro planos: origem, dimensão, alcance e pertença. E, nessa óptica, conclui que a Lp é, dentre as línguas angolanas, a que detém maior proximidade desses requisitos perdendo apenas pela origem: é a mais falada, é a de maior abrangência territorial e é património (pertença) dos angolanos, ainda que alguns lusófobos relutem em assumi-la como tal. Em 2006, o Presidente dos Santos45 dizia que devíamos ter a coragem de assumir que a Lp se afirma tendencialmente como língua nacional. Essa per- tença está igualmente implícita na Constituição: o Art. 19º refere que “A língua oficial da República de Angola é o português” e que “O Estado valoriza e promove o estudo e utilização das demais línguas angolanas…”. Falta a assunção explícita desse estatuto. No cômputo geral, temos de concluir: a questão das línguas, em geral, nunca cons- tituiu prioridade para o Estado angolano que nunca investiu seriamente na sua promoção, 42 As então ‘línguas nacionais’ são hoje designadas por ‘línguas angolanas de origem africana’ como es- tabelecido no ‘Estatuto das Línguas Angolanas de Origem Africana’ (2011), e na Constituição angolana (Artigo 21º, alinea e.). 43 Artigo de opinião publicado no Jornal de Angola, em 23 de Dezembro de 2009. 44 No artigo de opinião, em 18/11/2011. In http://www.buala.org/pt/a-ler/a-proposito-das-linguas-nacion- ais. 45 Discurso de abertura do 3º Simpósio sobre a Cultura Nacional, em Setembro de 2006 135

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nem das línguas africanas, nem da Lp: (metodologias de ensino desajustadas do perfil linguístico dos alunos; o uso como veículo de ensino com crianças cuja Lmt não era o português; o fraco investimento na formação de professores, etc.). A promoção consequente das línguas angolanas deveria ter tido início a seguir à independência, havia essa sensibilidade, como patenteiam os discursos ao mais alto nível. Severo (2011:30) dá-nos conta de que a UNESCO reconheceu o esforço dos governantes e intelectuais [angolanos] em formalizar as línguas locais, em consonância com as práti- cas e discursos internacionais de valorização da diversidade cultural. No entanto, o ba- lanço desse esforço evidencia a sua insignificância. A conjuntura política e sociolinguística do país propiciou a rápida expansão da Lp e, em contrapartida, limitou o uso das línguas nativas, resultando numa quase exclusividade funcional da Lp, resultando, como refere Zau (2011:114), na sua territorialização. As outras línguas de Angola foram banidas dos domínios formais. Vários factores potenciaram essa exclusividade da lingua oficial: • A afluência de populações rurais para as cidades durante o conflito armado. De diferentes origens etnicolinguísticas, essas populações adoptaram a Lp na sua in- tercomunicação; • A extensão da estrutura administrativa pelo país; • A massificação do ensino: construíram-se escolas em lugares recônditos do país; • Os media: os canais de televisão portugueses e brasileiros muito populares; os canais internacionais transmitem em português, reforçando e ampliando o uso da Lp; • A literatura, quase exclusivamente produzida em português46; • A música (embora este seja o domínio muito forte de uso das línguas autóctones). Estes factores garantiram à Lp a pujança de um prestígio em desfavor das demais línguas de Angola, cuja tendência de se confinarem, cada vez mais, a contextos de comu- nicação informais se acentua, não obstante as incipientes medidas para a sua promoção. 46 Em 1977, Agostinho Neto, num discurso na UEA, dia que “…já não é aceitável a ideia de fazer entrar na categoria de escritores apenas aqueles que manejam com perfeição a lingua portuguesa”. Esta exortação não viria a ter nenhum eco, dada a condição de estagnação ou de retrocesso dessas línguas. Pode imaginar- se o impacto de uma obra literária escrita em língua africana, comparativamente à sua escrita em português. Os escritores, cientes dessa realidade, fazem a sua opção que lhes garante maior projecção… 136

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Segundo o Ethnologue, os dois factores que indiciam o perigo de extinção das línguas são: o número de falantes e o número e natureza de domínios de uso da língua: quanto mais baixos os números desses factores, maior a tendência de as línguas desaparecerem. Chicumba (2017:248) referindo-se à tendência glotofágica da Lp sobre as demais lín- guas angolanas, enumera os factores que potenciam o retrocesso e a desvalorização das línguas africanas de Angola em relação à Lp, com uma nítida desvantagem para as pri- meiras. Quadro 1. Tabela comparativa do estatuto das línguas africanas de Angola e da Lp Línguas africanas de Angola Língua Portuguesa 1. Língua materna 1. Língua materna e oficial 2. Comunicação regional / étnica 2. Comunicação nacional e internacional 3. Aquisição informal47 e aprendizagem for- 3. Aquisição informal e aprendizagem mal incipiente formal extensiva 4. Tradição oral 4.Tradição escrita 5. Nação 5. Estado ˗ burguesia 6. Herança cultural 6. Dominação cultural 7. Camadas baixas da sociedade 7. Camadas privilegiadas da sociedade 8. Tradição 8. Progresso e modernidade 9. Domínio de funcionamento: informal 9. Domínio de funcionamento: formal e informal Fonte: Chicumba (2017:248) (com adaptações) A supremacia atribuída à Lp potenciou a sua rápida propagação e alterou, subs- tancialmente, a dinâmica de uso das línguas em Angola, como a seguir se documenta. 47 Nos anos 70, Krashen distingue aquisição como o começo do uso da linguagem oral, referindo-se, por- tanto, à língua materna que ocorre de forma inconsciente, espontânea e sem instrução formal, sem esforço, sendo o foco da comunicação a mensagem e não a gramática; a aprendizagem da língua é um processo consciente que implica instrução formal e explícita da língua. O foco é mais a forma e a gramática que o conteúdo das mensagens. 137

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Gráfico 2. Distribuição da população segundo a língua materna, de de acordo com Hodges (2002) 30% 26% 16% 14% 6% 8% Umbundu Português Kimbundu Kikongo Cokwe Outros Nos dados de Hodge, é visível o retrocesso das línguas africanas, comparativa- mente aos dados de Redinha de 1973. Em menos de trinta anos, a Lp a ganha vantagem e as demais línguas perderem terreno. Em 2014, o Censo Populacional demonstra que a situação se agravou, como espelha o gráfico. Gráfico 3. Percentagem de falantes das línguas angolanas, em 2014 80% 71% 3% 3% 2% 2% 70% 60% 23% Nyaneca Ngangela Fiote Kwanyama 50% 8% 8% 7% 40% 30% Português Umbundu Kicongo Kimbundo Cokue 20% 10% 0% Fonte: Resultados definitivos do Recenseamento geral da população 2014 Os Resultados Definitivos do Recenseamento (2016:51) referem que, nas áreas urbanas, o número de falantes da Lp é de 85% e nas zonas rurais 49%. 138

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Gráfico 4. Quadro da evolução do número de falantes48 de 1973 a 2014 Evolução da percentagem de falantes das principais línguas angolanas 80% 71% 70% 60% Português 50% 37% 30% 23% Umbundo 40% 23% Kimbundo 30% 25% 7,80% 8,20% Kicongo 20% 15% 16% 6,50% Cokue 10% 8% 8% 6% 0% 2002 2014 1973 O gráfico espelha a evolução de falantes de 1973 a 2014, evidenciando-se a subida astronómica de falantes de Lp. O kicongo e o cokue apresentam níveis mais ou menos estáveis, o kimbundo baixou para menos de um terço e o kicongo para pouco mais de metade da percentagem de falantes. Não é demais justificar a baixa vitalidade das línguas africanas de Angola: por um lado o seu baixo estatuto; por outro lado, a restrição das suas funções, que se limitam a contextos informais. Esta situação, restringe a oportunidade de serem modernizadas para o mundo tecnológico actual. Empreendemos um levantamento sobre a situação linguística de falantes, sobretudo relativa à(s) língua(s) de interacção quotidiana e à herança linguística que passam aos filhos. A amostra foi de 97 falantes, entre os 20 e os 76 anos, sendo 82 de Luanda (centro e periferia) e 15 do interior de Angola. A exiguidade da amostra não permite generaliza- ções, constitui, apenas, um pequeno indício do que se passa. Os resultados foram os seguintes: Quadro 1: Língua materna dos inquiridos, por idade 20 a 30 anos 31 a 40 anos 41 a 50 anos 51 a 60 anos Mais de 60 Total anos Lp Outra Lp Outra Lp Outra Lp Outra Lp Outra Lp Outra 10 10 15 19 11 16 28 40 57 15 (41%) (59%) Quanto mais novos, maior é a tendência de a Lp ser a sua Lmt. Esta tendência con- firmou-a Zau (2011:149): a faixa etária que mais usa a Lp é dos 0 aos 5 anos: 79%; mais de 55 anos: 2% de falantes. 48 Limitámo-nos, neste gráfico, às línguas com maior expressividade em termos do número de falantes. 139

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Quadro 2: Língua materna dos falantes por género Total Línguas Total Mulheres49 Homens50 97 20 (43,5%) Lp 39 (40%) 19 (37,2%) 26 (56,5%) Outras línguas 58 (60%) 32 (62,8%) 46 Total 97 51 No cômputo geral, 40% dos falantes têm a Lp como língua materna e 60% outra língua angolana; por género, há mais homens com a Lp como língua materna (homens: 43,5%; mulheres: 37,2%). Sobre a Lmt dos filhos, fizemos o apuramento com os falantes bilingues de baixa ou nula instrução e com os detêm mais alta instrução51, totalizaram 151 filhos. Quadro 3: Língua materna dos filhos dos inquiridos Língua materna dos Filhos de pais iletrados Filhos de pais universi- Total filhos tários 52 82 134 (88,7%) Lp 10 7 17 (11,3%) Outras línguas 62 89 151 Total Ao mais alto nível de instrução dos pais corresponde a mais alta frequência de trans- missão geracional da Lp como Lmt: 88,7%. Notámos, por vezes, um certo orgulho em afirmar que não ensinam línguas africanas aos filhos, evidenciando o desprestígio das línguas africanas. Zau (2011:91) reparou que o indivíduo do musseque se esforça em falar a Lp, para revelar o seu nível de literacia, marcar a sua posição socioeducativa perante o interlocutor, solucionar um problema e minimizar o “mussequismo”. Esta será a razão do desinteresse dos estudantes pela aprendizagem das línguas africanas, já que a Lp é tida como garantia de ascensão social. Sobre as línguas que os 97 inquiridos usam nos diversos contextos de interacção social, a Lp aparece, igualmente, com uma acentuada vantagem de preferência, como mostra o quadro abaixo: Quadro 4: Língua que usa nos vários contextos de interacção social Em casa com adul- Em casa com os fi- No trabalho Com amigos tos lhos Lp: 76 (82%) 90 (93%) 97 (100%) Só Lp: Lp e outras: 16 Outras: 19 (18%) Outras: 7 (7%) Outras: 81(83,5%) (16,5%) 0% 49 Percentagem em relação ao número de falantes femininos. 50 Idem. 51 Optámos por analisar os falantes dos dois extremos do nível instrucional: os iletrados e os com nível universitário. 140

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Os sete filhos pertencem a, apenas, dois falantes, portanto, dos 97 inquiridos, 95 (98%) utilizam a Lp na interacção doméstica com os filhos; apenas 2 (2%) utilizam outra língua. Nos quadros 3 e 4, sobressai a preocupação do ‘Atlas das Línguas do Mundo sob Perigo de Desaparecimento’ da UNESCO, sobre as línguas em risco quando os falantes deixam de o usar e de transmiti-lo às futuras gerações52. Bento Sitoe, ao lançar o livro ‘Estão as línguas nacionais em perigo?’ do qual é co-autor, afirmou que “Os riscos que elas correm não é de extinção, mas sim de permanecerem numa situação subalterna se nós não tivermos o cuidado de criar condições de as manter desenvolvidas da mesma maneira como as línguas oficiais têm sido”. É a subalternização que reduz o número de falantes e coloca as línguas em risco, sobretudo quando a transmissão geracional das lín- guas baixa. Estes dados contestam o pretenso “equilíbrio linguístico e de complementari- dade”53 entre as línguas angolanas e evidenciam a hegemonia da Lp sobre as outras lín- guas que, por essa razão, apresentam um quadro de regressão progressiva em termos de falantes. Evidencia-se a ameaça sobre as línguas africanas, preteridas a favor da Lp que detém uma plurifuncionalidade nos vários domínios da vida sociopolítica, económica, escolar e cultural no país. A Lp está associada ao acesso ao ensino superior, ao mercado de trabalho e aos bens materiais e simbólicos que as outras línguas não garantem. Esta realidade contradiz o pretenso equilíbrio linguístico e de complementaridade entre as lín- guas angolanas previsto na política do Governo. A exemplo do que acontece noutras latitudes, a coexistência pacífica e profícua de línguas é possível, aliás, é esse convívio que configura o multilinguismo que deverá ser gerido de forma que nenhuma(s) língua(s) se sobreponha(m) a outra(s), e não se hie- rarquize ou privilegie uma(s) em detrimento de outra(s). A solução é a que o Director- geral do Instituto de Línguas Nacionais54 de que as línguas sirvam de instrumento de comunicação na sociedade, para o que se deverá fazer uma gestão cuidada a fim de se acautelarem eventuais conflitos linguísticos. 3.3. Intenção de ensino bilingue em Angola 52 In https://news.un.org/pt/story/2009/02/1295051-unesco-atualiza-lista-de-linguas-sob-risco-de-extin- cao-portugues-para-o-brasil 53 Afirmação do Director-geral do Instituto de Línguas Nacionais, referida na pág. 2 deste trabalho. 54 Idem nota 14. 141

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O reconhecido insucesso escolar resulta, em grande parte, de um ensino monolin- gue. Num país caracterizado por um plurilinguismo, a escola não pode ignorar o plura- lismo cultural, sob pena de promover um ensino excludente para com aquelas crianças, sobretudo as do meio rural, que acedem à escola sem conhecerem a língua de escolari- dade. Ciente desta realidade, o Estado angolano lançou o projecto designado “Ensino Bilingue”, já previsto na “Reforma Educativa” baseada na Lei 13/2001, da Lei de Bases do novo Sistema de Ensino. Para esse efeito, editaram-se materiais didácticos em línguas nacionais, realizou-se a formação de formadores e formaram-se professores experimen- tadores. Com sete línguas no designado “sistema bilingue” (kimbundu, kikongo, cokwe, ngangela, oxhiwambo, umbundu e olunyaneka) foram definidas as zonas de experimen- tação (Cuanza Norte, Mbanza Congo, Saurimo, Menongue, Njiva, cidade do Huambo e Lubango). O projecto arrancou em 2007, com 105 professores e 5 250 de 21 escolas de áreas rural, periurbana e urbana. Ao que tudo indica, o projecto estagnou na sua fase piloto. Em 2014, o então Se- cretário de Estado para a Formação e o Ensino Técnico Profissional do Ministério da Educação de Angola55, referiu que estava em execução o Projecto-piloto de utilização das línguas nacionais como vectores de saber e como disciplina de estudo. Bernardo (2018:79) cita o Coordenador do Projecto que informou que, em 2009, se preparava a expansão do programa a nível nacional, mas a indisponibilidade de material didáctico inviabilizou o processo. Sobre a “inoperância desse modelo” aquele autor faz aluzão à opinião do linguista Sassuco que, em 2017, mostrava a sua incredulidade para com esse projecto que, em dez anos, não se efectiva, questionando as razões dessa não efectivação. Importa, entretanto, referir que, na verdade, com este projecto não se consubstan- ciou na implementação do ensino bilingue. Na verdade, tratou-se de incluir as referidas no sistema de ensino como unidades curriculares, não como ensino bilingue, concebido como refere García 2010:5) Bilingual education refers to education in more than one language, often encom- passing more than two languages (…), bilingual education programs provide a ge- neral education, teach in two or more languages, develop multiple understandings about languages and cultures, and foster appreciation for human diversity. (GAR- CÍA, 2010, 5) 4. Subsídios para uma política linguística consequente 55 Conferência Internacional do CIEP, sobre “O sucesso da educação em África: o desafio das línguas”, Março de 2014 142

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Uma política linguística consequente implica o conhecimento profundo e actuali- zado da realidade linguística do país, que passará, fundamentalmente, por dois processos: a. Recenseamento linguístico de todo o território nacional com vista a aprimo- rar e actualizar o mapeamento das línguas; b. Realização de pesquisas demolinguísticas para ajudarem a sustentabilidade das decisões. Sem esse trabalho prévio, será difícil realizar um planeamento linguístico realista e consequente. A definição de uma política linguística em Angola passa, a nosso ver, por três so- luções fundamentais nos quais deverão incidir as decisões relativas à promoção do mul- tilinguismo e, consequentemente, à defesa e valorização das línguas angolanas: • a co-oficialização regional de línguas africanas de Angola; • a instauração do ensino bi/multilingue; e • a inserção de línguas africanas na grelha curricular do ensino, como uni- dades curriculares, a par do ensino da Lp e das línguas estrangeiras. Importa destacar a importância de que as tomadas de decisão relativas às opções e medidas linguísticas impliquem sempre uma participação plural e democrática. 4.1. Co-oficialização regional de línguas Para François Perret, director do CIEP56, a questão das línguas deve ser conside- rada como um meio de desenvolvimento, como um factor não apenas de melhoria da aprendizagem, mas também de integração e de coesão social. Nesta óptica, a promoção e valorização das línguas africanas passará, necessariamente, pela atribuição de funcio- nalidade a essas línguas africanas. Em Angola, essas línguas ganharam o estatuto de ‘línguas nacionais’. Numa pertinente observação, João Melo e Ismael Mateus consideram oco e indefinido esse estatuto, pois não conduziu a nada, no sentido da sua valorização. Com efeito, a situação actual das línguas confirma esse vazio. Impunham-se outras me- didas mais firmes, como a atribuição uma funcionalidade e utilidade formal, como acon- tece com a Lp. 56 O CIEP (Centre International D'Études Pédagogiques,1945), criado em , é um estabelecimento público reconhecido internacionalmente pelas suas competências em matéria de especialização, formação, avalia- ção e gestão de projetos internacionais. Constitui um espaço de informação e de reflexão, palco de semi- nários e de conferências internacionais. 143

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A co-oficialização regional de línguas, solução de muitos países africanos57, é um requisito incontornável na promoção das línguas sem o qual medida nenhuma resultará. Por exemplo, apenas a inclusão das línguas africanas no ensino não terá o condão de reconhecimento do valor e importâncias das línguas, se se continuarem a limitar a con- textos de comunicação informal, como acontece até agora. Numa perspectiva equilinguística, diligenciando a diversidade linguística e a de- fesa do multilinguismo, o procedimento de base passará pela oficialização de línguas localmente, coexistindo, nessa função com a Lp. Por exemplo, o kikongo poderia ser oficializado em Cabinda, Zaire, Uíge, sudoeste do Bengo (Ambriz) e norte do Bengo (Kibaxi); o Kimbundo, nas províncias de Luanda, Bengo, Malange, Kuanza-Norte, norte do Kuanza-Sul, etc., na perspectiva que Ismael Mateus58 defende: “A administração pú- blica local, provincial e nacional deve usar pelo menos duas línguas oficiais, tendo em conta o uso, praticidade, despesa e o equilíbrio das necessidades e preferências da popu- lação de cada localidade do país.” Este procedimento evitaria o preconceito linguístico de falantes em relação às suas línguas de origem, promovendo a inclusão, a justiça social, demarcando-se do modelo colonial caracterizado pela tentativa de apagamento das lín- guas africanas e concorrendo para a sua extinção. 4.2. Instauração do ensino bi/plurilingue em Angola A Declaração de Salzburgo para um Mundo Multilingue (2017) defende um ensino justo, assente em políticas linguísticas sólidas, fundamental para um progresso social in- clusivo. A solidez no planeamento de políticas públicas de impacto, como o ensino bilin- gue em contextos plurilíngues, exige o estudo da situação das línguas do país para se ter o inventário real da diversidade linguística nacional na base do qual se definirá a política linguística e se fará o respectivo planeamento. Estudos do passado apresentavam uma localização geográfica das línguas mais ou menos definida. Porém, o conflito armado, provocando deslocações massivas da popula- ção, poderá ter abalado essa distribuição e ‘desterritorializado’ as línguas. Portanto, antes de qualquer decisão de âmbito linguístico, impõe-se o estudo da realidade linguística do país, na base do qual se estabelecerão as políticas e planeamentos linguísticos, incluindo as línguas a serem utilizadas no ensino. 57 A África do Sul, por exemplo, possui 11 línguas africanas oficializadas. 58 Artigo de opinião publicado no Jornal de Angola em 23 de Dezembro de 2009. 144

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Os subsídios que aqui trazemos para a implementação do ensino bi/multilingue em Angola baseiam-se em experiências de políticas linguísticas bem sucedidas de países afri- canos. Adaptamos os desafios que Hassana Alidou Directora do Gabinete da UNESCO em Abuja 59 considera fundamentais estabelecer e cuja omissão poderá desencorajar a aprendizagem das línguas: • Desafio político: a funcionalidade das línguas deverá legalmente definida, para o seu devido reconhecimento e valorização a fim de que as populações se convençam da pertinência da sua aprendizagem. Por outras palavras: atri- buir-se um estatuto de língua oficial às línguas, ainda que regional; • Desafio linguístico-didáctico: os professores deverão ter competências para ensinar a(s) língua(s), nas duas perpectivas: como veículo de ensino e como matéria de ensino. Em Angola, há graduações para professores de Português, de Inglês, de Francês. A graduação de professores de línguas africanas deverá ser, urgentemente, incluída nos planos de formação de professores; • Desafio pedagógico: além da codificação e da transcrição das línguas, elas deve estar instrumentalizadas com material pedagógico: programas, manuais para o ensino. Outro elemento é essencial para os projectos de implementação das línguas no en- sino são os programas de acompanhamento e de avaliação dos projectos, que permi- tem ir introduzindo melhorias oportunamente. Antecipadamente, deverão preparar-se fer- ramentas de avaliação da competência linguística dos alunos a serem aplicadas ao longo da formação. O QECR constitui um exemplo valioso, na ausência de outro mais eficaz. Jacques Malpel60 afirma que as ferramentas de avaliação padronizadas e elaboradas se- gundo normas internacionais são verdadeiros instrumentos de monitorização dos siste- mas educativos. Além destes desafios, para antes da introdução das línguas nacionais no ensino, Boureima Jacques KI, Secretário-Geral da CONFEMEN61, levanta algumas reflexões62 obrigatórias: 59 Idem 60 Intervenção na Conferência Internacional do CIEP, de 2014. 61 La Conférence des ministres de l'Éducation des États et gouvernements de la Francophonie) 62 In Conferência Internacional do CIEP, sobre “O sucesso da educação em África: o desafio das lín- guas”, em 2014 145

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a. Como promover o ensino formal das línguas nacionais sem exacerbar o regio- nalismo? b. Haverá recursos (humanos e financeiros) para implementar as reformas linguís- ticas? c. Quais as estratégias para garantir a adesão das comunidades ao uso das línguas nacionais no sistema educativo formal? d. Sendo a língua um dos meios de acesso a empregos dignos a nível nacional e internacional, as línguas africanas conseguirão cumprir esta função e prepararão os jovens para um emprego digno no contexto da globalização? Se a introdução das línguas autóctones nos sistemas educativos diz respeito a uma vontade dos países e à necessidade de melhorar a qualidade do ensino e da empregabili- dade, reiteramos a imprescindibilidade de as políticas linguísticas serem cuidadosa e su- ficientemente planificadas na base de estudos sobre a realidade linguística do país, en- volvendo as sociedades e depois acompanhadas e avaliadas para garantir a sua eficácia e sucesso. A participação da sociedade é fundamental: essas políticas, visam a melhoria das condições de vida das populações e deve contar com elas, não só para garantir a sua adesão, porque partícipes no processo, mas também para facilitar a consciencialização do seu papel como sujeitos da história. 4.2.1. Ensino bi ou plurilingue Dominar a língua de ensino é um factor fundamental na aprendizagem. Se os alu- nos não dominam a língua de escolaridade, terão dificuldade em compreender a matéria e a expor o que sabem. A língua é, assim, um factor essencial, embora não exclusivo, para o sucesso do ensino. Em 2007 foi lançado o projecto-piloto sobre o ensino bilingue. A leitura que fa- zemos sobre a escolha da língua de cada localidade é que essa escolha teve por base a língua local dominante. Esta opção, em linhas gerais, pode considerar-se acertada, sobre- tudo na fase piloto. Porém, na generalização do sistema a nível do país, tendo em conta a grande mobilidade das populações, há que ter em conta que, nos meios urbanos, a possi- 146

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bilidade de haver escolas com uma população multilingue é grande e uma opção de en- sino bilingue baseando a escolha das línguas pelas regiões onde tradicionalmente elas estão localizadas poderá ser um elemento de exclusão. O recenseamento linguístico do território nacional para se actualizar o mapea- mento das línguas, tendo em conta a desterritorialização das línguas dará referências para o estabelecimento das línguas de ensino em cada região. A planificação da educação bi/plurilingue deverá ter por base a realidade de cada contexto. Uma escola limitada ao ensino bilingue, poderá excluir os alunos cuja língua materna não seja a que a escola adoptou. A solução, para uma política inclusiva, poderá passar pela implementação ensino multilingue em algumas escolas das localidades de maior influência de uma determinada língua, sendo que a maior parte das escolas poderá oferecer ensino bilingue. Por exemplo, no Huambo, a maior parte das escolas oferecerá ensino bilingue com o português e o umbundo, como línguas de ensino, haverá duas, três ou mais escolas, em funções da realidade contextual, que poderão oferecer um ensino multilingue, garantindo, assim, a inclusão63. 4.3. Inserção de línguas africanas na grelha curricular do ensino A gestão do ensino das línguas de ensino e no ensino como unidades curriculares não deve ser descurada como até agora. Partimos dos seguintes pressupostos que estarão previstos no planeamento linguístico nacional: a. Confirmação das línguas de ensino. Actualmente, incluindo a Lp são, no total, oito; b. Integração das línguas africanas de Angola nas grelhas curriculares do ensino, a par da Lp como unidades curriculares, definindo o seu estatuto: como veí- culo de ensino ou como unidade curricular, como acontece na maior parte dos países africanos, nestes termos: • o aluno que cuja língua materna seja africana será escolarizado nessa lín- gua, até terminar o ensino primário tendo, paralelamente, enquanto faz os estudos primários, a disciplina de Lp como curricular, aprendendo-a com 63 Por exemplo, na África do Sul, as escolas utilizam várias línguas de ensino e os alunos, no acto de admissão, escolhem a sua língua em que querem ser escolarizados. 147

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metodologia de língua segunda. Ao terminar o ensino primário, estará apto para prosseguir a escolaridade em Lp64. • o aluno com o português como língua materna será escolarizado em por- tuguês e terá a disciplina de Lp, ensinada com metodologia de língua ma- terna; c. Definição da classe em que, sendo o ensino inicial em português, será incluído o ensino da língua africana como unidade curricular e que será ensinada com metodologia de língua segunda; d. Definição e concepção de metodologias de ensino das linguas angolanas no ensino: como línguas maternas ou como línguas segundas (o português inclu- ído). A par desses pressupostos, o ensino das línguas angolanas deve merecer uma profunda atenção e um esforço adequado para a sua escolarização, com vista a garantir a sua eficácia e promover a proficiência linguística dos alunos nas línguas em estudo. Para garantir essa proficiência, é incontornável a criação de modelos com os níveis de proficiências estabelecidos. O modelo europeu (o QECR) que já referimos, é um bom exemplo, adoptado em vários países fora da Europa. O QECR define seis níveis de referência com as várias subcompetências. Um aprendente de línguas só é bem sucedido se se torna proficiente na língua. Dentre as medidas mais prementes no ensino de línguas destaca-se a capacitação linguística e pedagógica dos docentes e a concepção de metodologias e de estratégias de ensino inclusivo e inovador, que respeite as diferenças etnolinguísticas dos alunos e ga- ranta o sucesso do ensino. Na Conferência Internacional do CIEP, sobre “O sucesso da educação em África: o desafio das línguas”, em 2014, Manuela Ferreira Pinto65 defendeu um argumento fundamental: “O sucesso das políticas linguísticas de escolarização pas- sará, inevitavelmente, pela formação pedagógica e linguística dos docentes (…) para 64 Na maior parte dos países africanos, a mudança da língua de escolaridade faz-se quando termina o ensino primário. A Namíbia e a África do Sul utilizam várias línguas africanas e ainda o inglês e o africânder, no ensino primário. A partir daí, o ensino é feito em inglês e africânder; no Lesotho, o sesotho só é língua de escolaridade na primária, depois, passa a utilizar-se o inglês. Outros países como o Chade, o Madagáscar, a Nigéria, as Seicheles, o Uganda, o Zimbábue, oferecem o ensino secundário numa língua europeia. O Palop e ainda a RDC, Benim, Camarões, Côte d’Ivoire, Gabão, Congo, etc, fazem parte dos países que, desde a primária, todo o ensino é feito nas respectivas línguas oficiais, portanto, europeias. Alguns países como a Eritreia, a Somália, a Etiópia, Ruanda, mantêm no ensino secundário, além da língua europeia, uma língua africana, pelo menos. (Fonte: Revista África e Africanidades, Ano 3, nº 10, 2010) 65 Responsável do Departamento de Língua Francesa, CIEP. 148

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responder a uma “exigência de qualidade, reforçar o desempenho dos alunos, mas tam- bém contribuir para a diversidade linguística e cultural do mundo e para um melhor en- tendimento entre todos” Temos de reconhecer que nunca existiu um esforço efectivo no ensino das línguas em Angola, e nem o prestígio da Lp lhe granjeou o direito de um investimento para um ensino de qualidade. Daí as debilidades linguísticas dos alunos que chegam ao ensino superior com sérias dificuldades no domínio da língua que ao longo dos doze anos de escolaridade, tiveram a Lp como língua e como matéria de ensino. O Presidente João Lourenço destacou essa realidade, a 12 de Junho de 2019, ao referir que os estudantes concluem o ensino superior sem saberem escrever nem falar, cenário este, dizia, tem de ser afastado da nossa realidade. Para reverter o quadro que o Presidente aponta, o investimento é imenso. Implica a implementação do ensino bi/plurilingue, a melhoria da qualidade da educação em geral. Reportando-nos, apenas, à solução da problemática linguística, continuamos a necessitar de altos investimentos. O Estado angolano, economicamente esgotado, devido, por um lado, à grave crise financeira que o afecta desde 2014, agravada, em 2019, pela pandemia da Covid 19 que, à escala global, tem produzido efeitos devastadores na economia, terá condições de, a curto prazo, disponibilizar recursos para os projectos linguísticos, quando há prioridades imediatas? E “…não podemos ignorar que falar em planejamento de línguas em regiões que estão em guerra ou dizimadas pela fome pode parecer um luxo irrelevante e que ao sucesso de uma política linguística precede uma série de políticas públicas no âmbito do combate a fome e a miséria, além de investimentos nas áreas de edu- cação, saúde e saneamento básico.” Silva (2010). Uma vez mais, a execução de políticas linguísticas em Angola não estará na linha das prioridades. Mas o tempo urge e o adiamento na implementação de políticas linguistas para reverter a situação de regressão das línguas africanas de Angola pode tornar o pro- cesso irreversível... 5. Considerações Finais A maior parte dos países africanos, Angola incluída, optou por uma política exo- glóssica em que a escolha da língua oficial recaiu sobre a língua da potência colonizadora o que, segundo Banza (2014:32) representou uma continuidade, ao invés de uma ruptura, que poderia ter sucedido se a escolha tivesse recaído sobre uma das línguas autóctones. 149

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A decisão pela Lp como língua oficial trouxe subjacente o seu papel como língua de escolaridade e de comunicação e a exclusão das demais línguas. Também o ensino bilingue foi excluído, decisão que compromete a vitalidade das línguas autóctones dada a sua marginalização; por outro lado, teve um impacto negativo no sistema educativo que, sendo monolingue num país com diversidade linguística, se confronta com altas taxas de reprovação a par da baixa qualidade do ensino. Resulta daí a importância e o imperativo de se implementar uma política endoglós- sica, assumindo a perspectiva de Estado multilingue, com políticas linguísticas que en- volvam as demais línguas angolanas. Tal assunção envolve a institucionalização da edu- cação bi/multilingue, um processo cuja tomada de decisões no âmbito da política linguís- tica nacional e do planeamento linguístico deve, por um lado, envolver especialistas para o estudo da realidade linguística do país. Por outro lado, deve, igualmente, incluir a par- ticipação da sociedade. Sem estes pressupostos, qualquer projecto de ensino bi/plurilin- gue será irrealista e, à partida, condenado ao fracasso. Em suma a promoção do multilinguismo numa perspectiva ‘equilinguística’ im- plica: 1. Co-oficialização regional de línguas, coexistindo, nessa função com a Lp; 2. Investimento no estudo científico das línguas, na elaboração dos conteúdos programáticos, manuais de ensino e instrumentos de apoio ao ensino (manu- ais, gramáticas pedagógicas, dicionários); 3. O requisito primário: formação inicial e contínua dos professores, linguística e pedagógicamente; 4. A institucionalização do ensino das línguas ajustado ao contexto sociocultural e ao perfil dos alunos: como veículos de ensino e como matéria de ensino, definindo as classes, as metodologias de ensino e a transição do veículo de ensino da língua africana para a LP; 5. Ampliação do uso das línguas angolanas de origem africana nos media. Sobretudo, que a problemática linguística passe por um debate público a nível regional e nacional, envolvendo as universidades para que as grandes decisões recolham e se baseiem em consensos. Concluímos com este mote de João Melo pela sua importân- 150

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cia e pertinência: “Diante disso, só por distracção é possível ignorar a premente necessi- dade de uma política linguística abrangente e articulada.”66. Mas há um longo percurso a percorrer para satisfazer a questão da política linguística e, sobretudo, um grande inves- timento material e humano. Referências 1. Angola, (2016). Diário da República, Lei de bases do sistema de educação e ensino. Luanda: Imprensa. 2. Banza, Ana Paula (2014), O Português em Angola: uma questão de política linguística. In Fiéis, Alexandra, Maria Lobo & Ana Madeira, orgs. O Universal e o Particular. Uma vida a comparar. Homenagem a Maria Francisca Xavier. Lisboa: Edições Coli- bri; pp. 29-38. [ISBN 978-989-689-477-1]. 3. Bernardo, Ezequiel Pedro José, (2018). Política Linguística para o Ensino Bilingue em Angola, Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Lin- guística. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/ 123456789/ 194395/PLLG0730-D.pdf?sequence=-1&isAllowed=y Acesso 12.09.2020. 4. Calvet, Louis-Jean (2014). Um olhar sobre a situação linguística de África. In CIEP, 27-28 de Março. 5. Chicumba, Mateus, (2017), A educação bilingue em Angola e o lugar das línguas nacionais. Disponível em: https://silo.tips/download/a-educaao-bilingue-em-angola- e-o-lugar-das-linguas-nacionais-mateus-chicumba-not. Acesso em: 07/8/2020 6. CIEP, (2014), O sucesso da educação em África: o desafio das línguas, Síntese da Conferência Internacional. 7. Declaração de Salzburgo para um Mundo Multilingue, (2017). Seminário Mundial de Salzburgo (12 a 17 de dez. de 2017). Disponível em https://www.salzburgglobal.org/ fileadmin/user_upload/Documents/2010-2019/2017/Session_586/PT_SalzburgGlo- bal_Statement_586_-_Multilingual_World_Portuguese.pdf. Acesso: 23.08. 2020. 8. Ethnologue, Disponível em http://www.ethnologue.com/19/region/EAF/. Acesso: 26.04.2019 9. Fernandes, J. e Ntondo, Z. (2002). Angola: Povos e Línguas. Luanda. Editora Nzila 10. Governo de Angola, Instituto Nacional de Estatística, (2016), Censo 2014, Resultados Definitivos do Recenseamento Geral da População e da Habitação de Angola 2014. 11. Martinho, Ana Maria, (1995). A Língua Portuguesa em África: Educação, Ensino, Formação., Pendor Editorial, Lda. 66 Idem nota 11 151

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12. Morelo, Rosângela (2016). Censos nacionais e perspectivas políticas para as línguas brasileiras, Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística , Flo- rianópolis-SC, Brasil, disponível em https://www.scielo.br/pdf/rbepop/ 2016nahead /0102-3098-rbepop-2016a0041.pdf. Acesso: 27/08/2020 13. Okoudowa, Bruno (s.d.). O continente africano e suas línguas no século XXI: alguns exemplos. 14. Revista África e Africanidades, (2010). Ano 3, Silva, Diego Barbosa da, Política Lin- guística em África: do passado colonial ao futuro global. 15. Pereira, Flora (s/d). A Diversidade Linguística Africana e suas heranças na formação do português brasileiro. Afreaka. 16. Silva, Diego (2010). Política linguística na África: do passado colonial ao futuro glo- bal. In Revista África e Africanidades – Ano 3, n.º 10. Agosto, 2010-ISSN 1983-2354. 17. UNESCO. (1996). Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. Barcelona: UNESCO. 18. Victorino, Samuel Carlos, 2012. O papel da educação na reconstrução nacional da República de Angola, Revista Dialogos. IV Congresso Internacional de Pedagogia Social (Brasília, v.17). Disponível em https://bdtd.ucb.br/index.php/RDL/arti- cle/viewFile /3821/2305. Acesso: 10.09.2020 19. Vilela, Mário (2001). Reflexões sobre a política linguística nos PALOP. ÁFRICA STUDIA, N.º 4. 20. Zau, Domingos Gabriel Dele, (2011), A Língua Portuguesa em Angola Um Contri- buto para o Estudo da sua Nacionalização, Tese para obtenção do Grau de Doutor em Letras, Tese para obtenção do Grau de Doutor em Letras, Universidade da Beira In- terior. Disponível em https://ubibliorum.ubi.pt/bitstream/10400.6/1844/5/ Domin- gos.Angola.pdf. Acesso: 07.07.2019. Documentos oficiais 1. Constituição da República de Angola. 2010. Imprensa Nacional. 2. INE (2016). Resultados Definitivos do Recenseamento Geral da População e da Ha- bitação de Angola 2014. 3. Lei n.º 13/01 (de 31 de Dezembro de 2001). Diário da República n.º 65, 1.ª série. Luanda. 4. Lei n.º 17/16 (de 7 de Outubro de 2016). Diário da República n.º 170, 1.ª série. Luanda. 5. Projecto de Lei sobre o Estatuto das Línguas Nacionais (2011). Ministério da Cultura. 152

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A língua portuguesa em Angola. Factor de coesão social: glotofágica e bantuófona entre falantes lu- sófilos e lusófobos Paulino Soma Adriano Instituto Superior de Ciências da Educação da Huíla RESUMO Este artigo encerra reflexões sobre a situação da língua portuguesa no contexto de An- gola, descrevendo o seu papel unificador na diversidade sociolinguística e sociocultural do país. Não obstante a inequívoca importância que lhe é reconhecida, a referida Língua, em Angola, pela ductilidade que caracteriza todas as línguas naturais, adaptou-se a essa realidade, cuja sociedade é eminentemente bantu. Todavia, a escola é sofrivelmente “lu- sófila”, pois promove a variedade lusa, no sentido etimológico deste termo. É esta dis- cussão que, também no âmbito linguístico, tem originado argumentos lusófobos, cujos autores compreendem que, na generalidade, o português que falam não é o dos lusos, “de onde se vê o mar” e se canta o fado, mas o dos bantu, de onde se vê o bosque e se canta a kizomba. Questiona-se, assim, a (in)adequação do português europeu como norma-pa- drão no contexto de Angola, considerando a inevitabilidade da variação das línguas na- turais, sobretudo quando utilizadas em contextos geográficos descontínuos e diferentes do ponto de vista sociolinguístico. Defende-se, porém, a necessidade da intercompreen- são entre os falantes das diferentes variedades da língua portuguesa, o que pressupõe assumir certa ponderação relativamente à força centrífuga da variação, tendo em conta que à escola caberá sempre promover o acesso a unidades linguísticas consideradas apro- priadas em situações formais de comunicação. E é aqui que surge alguma discussão, pois o apropriado em Portugal nem sempre o é, ou deve sê-lo, em Angola. Além disso, a vita- lidade da língua portuguesa, em Angola, concorre para o desaparecimento gradual, quase subtil, das línguas locais, essencialmente bantu. Nesta perspectiva, vários desafios se co- locam, sobretudo os ligados à implementação de uma política linguística funcional e à necessidade de normalização da variedade do português de Angola. Palavras-chave: linguística, variação linguística, norma linguística, política linguística 153

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ABSTRACT This article contains reflections about the situation of the Portuguese language in the context of Angola, describing its unifying role in the sociolinguistic and sociocultural diversity of the country. Despite the unambiguous importance that is recognized to it, this language, in Angola, due to the ductility that caracterizes all natural languages, has adap- ted to this reality, whose society is eminently bantu. However, with great difficulty, the school teaches and promotes the European standard. It is this discussion that, also in the linguistic sphere, has given rise to lusophobic arguments, whose authors understand that, in general, the Portuguese they speak is not that of the Portugal, from where the sea is seen and the fado is sung, but that of the bantu, from where we can see the forest and sing the kizomba. Thus, the (in)adequacy of the European Portuguese as the standard norm in the context of Angola is questioned, considering the inevitability of the variation of na- tural languages, especially when used in discontinuous geographical contexts and diffe- rent from the sociolinguistic point of view. However, the need for intercomprehension between speakers of the different varieties of the Portuguese language is defended, which presupposes taking some weight in relation to the centrifugal force of that language, ta- king into account that the school will always have to promote access to language units considered appropriate in formal communication situations. And this is where some dis- cussion arises, because the appropriate in Portugal is not always, or should be, in Angola. Moreover, the vitality of the Portuguese language in Angola contributes to the gradual, almost subtle disappearance of local languages, essentially bantu. In this perspective, se- veral challenges arise, especially those linked to the implementation of a functional lin- guistic policy and the need to standardise the variety of Angola Portuguese. Keywords: linguistics, linguistic variation, linguistic norm, linguistic policy. 154

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0. Introdução Em Angola, país multiétnico e multilingue, o português afigura-se, cada vez mais, como o mais utilizado instrumento de comunicação entre os seus falantes. É, por isso, também, o instrumento político de agregação e coesão dos distintos grupos socioculturais que constituem o seu complexo mosaico populacional. Contudo, o português, em Angola, anda a “metamorfosear-se”, não apenas pela dinâ- mica e variação inerente a todas as línguas naturais, mas também pelo contexto geográ- fico, étnico-cultural e sociolinguístico no qual ela serve os seus diversos papéis: oficial, veicular e de discurso pedagógico. Apesar disso, há falantes que defendem o ensino e a difusão da norma-padrão do português de Portugal – “lusófilos” tenazes do ponto de vista do amor que carregam pelo Português tal como o falam e o escrevem os portugueses. Por outro lado, há também quem defenda o estudo e a sistematização da variedade do português em Angola com vista ao seu ensino e difusão, em detrimento da normapadrão europeia – “lusófobos” que, do ponto de vista linguístico, receiam o ensino do português de Portugal e julgam que tal seria inglório para os objectivos programáticos das escolas, promovendo um abismo enorme entre a língua ensinada e a língua efectivamente reali- zada. Adicionalmente, mesmo que se observe, às vezes, clara relutância, há evidências de que o português em Angola anda a bantuizar-se e, à medida que se bantuiza, vai, subtil- mente, coarctando o espaço das línguas bantu, que, a longo prazo, se não se fizer mais em termos de política para a sua manutenção e promoção, estarão condenadas ao desapa- recimento. É tendo em conta todo este panorama que pensamos em apresentar, neste importante fórum, o tema “A língua portuguesa em angola. Factor de coesão social: glotofágica e bantuófona entre falantes lusófilos e lusófobos”, trazendo, para o efeito, as seguintes bre- ves reflexões: (i) a garantia da coesão social e da integração socioprofissional pela língua portuguesa; (ii) angolanização do português: língua glotofágica e bantuófona; (iii) a ter- túlia entre lusófilos e lusófobos em relação ao estabelecimento da norma do português de Angola. 155

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1. A garantia da coesão social e da integração socioprofissional pela língua portuguesa em Angola Considerando que Angola é um país multilingue e multicultural, e tendo em conta que as línguas endógenas, chamadas nacionais, bem como as referidas culturas, não abrangem todo o território angolano, então a língua portuguesa, que é falada em todo o país, traduz-se num ponto de convergência para a construção e consolidação da nação angolana. Esse ponto de convergência é, também, um ponto de atracção. Se a língua por- tuguesa é a língua do Estado angolano, oficial e veicular, o seu domínio por parte de quem vive ou pretende viver em Angola pode concorrer para a sua maior integração e projecção socioprofissional. De facto, seria muito difícil, talvez mesmo impossível, hoje, chamar nação ao país – Angola – sem o português. Na sua estrutura transversal e imediatamente visível, Angola faz nação por meio do português. Na sua estrutura mais profunda, porém, Angola não deixa de ser um conjunto de pequenas nações quantos os grupos étnico-culturais que o compõem, com línguas próprias. Em Angola, é, indubitavelmente, o português que esbate os limites regionais, garan- tindo um maior grau de cooperação entre os seus falantes, o que concorre para a sua coesão, contribuindo decisivamente para a sua integração socioprofissional. As pequenas comunidades de falantes de línguas endógenas constituem uma comunidade de falantes ainda maior por intermédio da língua portuguesa. Em conformidade com o Observatório da Língua Portuguesa, Angola tem mais de 25,7 milhões de habitantes, e cada angolano pode falar mais do que uma língua nacional em casa, sendo o português falado por 71,15% de angolanos. Neste caso “com maior predominância nas áreas urbanas”, onde 85% da população fala a língua portuguesa, con- tra os 49% na área rural. Dado esse prestígio do português, no país, «todo o angolano tem de aprender a falar português, pois, como cidadão, deve inscrever o seu dizer na língua do Estado. Nesta acepção, poderemos mesmo afirmar-nos como um Estado monolingue, com população bilingue» (Miguel, 2000, p. 39). Assim, como língua de prestígio, é a que mais se deseja aprender e falar com correc- ção. Há, inclusivamente, relatos de pequenos grupos com línguas endógenas próprias que optam por um sobrenome português em determinados contextos para se integrarem em grupos social e economicamente “superiores”. 156

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A título de exemplo, na província da Huíla, em trabalhos de campo, constatou-se que, por razões de poder cultural e económico, entre outras, o povo san opta, amiúde, por falar, na maior parte de circunstâncias formais, as línguas dos bantu (nyaneka, humbi, handa) e a língua novilatina (português) em detrimento da sua (!xung). Adopta dois no- mes: um nome na língua !xung, para a preservação da sua identidade; e um nome na língua bantu ou novilatina, para se integrar nas elites dos bantu. De facto, apesar da situação de multilinguismo que caracteriza o país, os falantes es- tão mais interessados na aprendizagem do português. Assim, por exemplo, se um falante tiver como língua primeira uma língua bantu, tem uma premente necessidade de aprender o português para se integrar plenamente na escola e na vida socioprofissional. Porém, se já tiver a língua portuguesa como língua primeira, não vê, na generalidade, necessidade alguma de aprender uma língua local. Nestes termos, podemos concluir que o português, em Angola, é uma língua de di- mensão nacional. A sua abrangência territorial não é, de facto, suplantada por nenhuma outra língua local. Nesta perspectiva, a língua portuguesa dilui as barreiras linguístico- culturais e concorre para a consolidação da nação angolana, daí ser uma língua de con- vergências, um factor de coesão social. 2. Angolanização do português: língua glotofágica e bantuófona A variação das línguas é o seu modo de vida. As línguas variam porque estão vivas. «Fenómeno pelo qual uma determinada língua nunca é, numa dada época, lugar e grupo social, igual ao que era numa época, num outro lugar e num outro grupo social» (Mar- ques, 1995, p. 40). A variação não pode dissociar-se da língua. Em relação à variação do português, há notas até do primeiro gramático da referida língua. Fernão de Oliveira observa, em 1536, variação no vocabulário, dando conta de falas diferentes, por exemplo, entre os da Beira e os do Alentejo. E a língua portuguesa não ficou por Portugal. “Viajou” por vários meandros e teve, por isso, de tomar novos matizes, novas características. Ao longo do tempo, fragmentou- se em tantas variedades quantas são as comunidades que dela se apropriaram. Por isso, é esperável que o português realizado em Angola não seja exactamente o mesmo que se realiza em Portugal. Está a angolanizar-se continuamente, como o confirmam vários es- tudos. 157

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É língua hegemónica e, pelo seu prestígio, na qualidade de língua do Estado, arreigou o seu poderio que se revela na intensidade demográfica dos seus falantes e na extensão geográfica em que é falada, coarctando de forma bastante evidente o espaço das línguas locais, essencialmente bantu. Todavia, considerando o contacto linguístico, essas línguas bantu, tendencialmente substratos do português, vão deixando os seus vestígios na língua que se lhes sobrepõe. Tais vestígios são notáveis quer nos sons, quer no léxico, quer ainda na construção frásica, com implicações, em alguns casos, no sentido veiculado pela frase construída. É tendo em conta este panorama que concluímos haver, no contexto em des- crição, o fenómeno de glotofagia, por um lado e, por outro, o de variação do português, que se vai “despindo” da fonia lusa e se vai “vestindo” da fonia bantu, ou seja, de um português tendencialmente mais bantuófono do que lusófono. De facto, na generalidade, o português hoje falado em Angola não é mais aquele de onde se vê o mar e se canta o fado; mas é aquele de onde se vê o bosque e se canta a kizomba, com a devida batucada e o devido folclore. Com efeito, são evidentes e bem descritos fenómenos como a não redução das vogais, a omissão da marca de plural, a inserção de vogais epentéticas em certos grupos conso- nânticos, a inserção de nasalizações em vários sons não nasalizados no portuguêsEuro- peu, a colocação dos clíticos pronominais, a recorrência a lexias de línguas bantu, entre outros. Voltando à hegemonia do português sobre as línguas bantu, alguns estudos demons- tram que a língua novilatina já é língua materna de muitos falantes angolanos, sendo que alguns deles só falam mesmo esta língua, sobretudo as gerações mais novas. É nesta pers- pectiva que Cabral afirma o seguinte: Quantos falam exclusivamente uma língua africana ou também o Português é a questão para a qual não temos respostas. Sabemos, no entanto, que actualmente nem todos os angolanos falam uma língua en- dógena, sobretudo os mais jovens (com aproximadamente 30 anos de idade) que habitam os centros urbanos (Cabral, 2005, p. 22). Nesta senda, e considerando a possibilidade de desaparecimento das línguas nacio- nais claramente pressionadas pela língua portuguesa, surgiram reflexões tendentes à sua inclusão no ensino. Embora isso tenha sido relevante, entendemos que há, ainda, uma premente necessidade de alargar a funcionalidade das referidas línguas. Caso contrário, não obstante reconhecermos a extrema importância de que se revestem como veículos de cultura e de identidade, estarão condenadas a um gradual e subtil desaparecimento, à 158

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medida que forem passando as gerações, uma vez que, cada vez mais, os falantes se con- centrarão na aprendizagem de línguas que lhes conferem integração social, prestígio e projecção profissional, funções que a língua portuguesa está a cumprir perfeitamente no contexto de Angola. Com efeito, “quando grupos de pessoas entram em contacto estreito, a língua do grupo maior tende a dominar […] e a língua vencedora tende a ser aquela que traz van- tagens aos seus falantes” (Janson, 2018, p. 95). Afirma-se, às vezes, em estudos linguísticos, que uma língua só resiste se for falada por mais de 100 mil pessoas e está em perigo quando mais de 30 por cento das crianças não a usa. E quando se extingue uma língua, acontece uma tragédia cultural, pois morre toda uma mundividência que é a identidade de toda uma comunidade linguística. Neste sentido, é importante haver uma vontade colectiva do Estado angolano e de todos nós para a aposta num bilinguismo ou mesmo num multilinguismo generalizado. A inserção das nossas línguas endógenas nos currículos escolares é um passo decisivo, mas não bastante. É necessário que se alargue o uso dessas línguas nos meios de comu- nicação social, nos tribunais e em vários outros serviços que o Estado presta ao cidadão. Outro passo importante para a manutenção das línguas endógenas é dotá-las de escrita e, portanto, de escritores e de autores. As nossas línguas nacionais precisam de poetas e romancistas nacionais, bem como de gente que saiba lê-las e escrevê-las. Precisam de cientistas que definam as suas normas, as regras de ortografia e gramática. Precisam de lexicógrafos que elaborem os respectivos dicionários. Contudo, observando a nossa situação sob um prisma realista, não nos parece que a nossa política linguística ambicione tais investimentos. Desde a nossa independência, o Estado angolano viu no português a solução de vários problemas, sobretudo pelo facto de esta língua ser conducente à unificação dos diferentes grupos socioculturais, ou seja, à coesão nacional, em detrimento das línguas endógenas. Fez-se, a si mesmo, um Estado monolingue. E um Estado monolingue pode não ter interesse em promover uma comuni- dade multilingue. É, contudo, urgente uma mudança de paradigma, na medida em que o multilinguismo não só enriquece a nossa paisagem linguística, mas promove a dignidade, o conhecimento cumulativo, as tradições e as culturas dos falantes das nossas línguas endógenas. 159

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3. A tertúlia entre lusófilos e lusófobos em relação ao estabeleci- mento da norma do português de Angola Conscientes da polémica de que se reveste o termo “luso”, empregamo-lo, no pre- sente texto, não tanto com referência a Portugal ou aos portugueses, mas, essencialmente, com referência ao português europeu. Tachamos de lusófilos os apologistas do ensino da norma-padrão europeia e de lusófobos os que receiam tal norma, defendendo, antes, o ensino de uma norma mais adaptada à realidade sociolinguística e sociocultural de An- gola, ou seja, uma norma que se extraia da variedade do português de Angola. Tendo em conta o reconhecimento que até mesmo portugueses observam relativa- mente à actual diversidade linguística do português, sempre considerando a possibilidade da sua unidade, Elia (1989, pp. 16-17) substitui o termo România por Lusitânia, numa tentativa de explicar todos quantos falam português. Este autor via cinco faces da Lusi- tânia actual, isto é (i) a Lusitânia Antiga, que compreende Portugal, Madeira e Açores; (ii) a Lusitânia Nova, que corresponde ao Brasil; (iii) a Lusitânia Novíssima, que são os países africanos de língua oficial portuguesa, isto é, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe; (iv) a Lusitânia Perdida, que são as regiões da Ásia ou de Oceânia, nas quais já não há esperança da sobrevivência da língua portuguesa e, por último (v) a Lusitânia Dispersa, que são as comunidades de fala portuguesa espalhadas pelo mundo não lusófono. (cf. Elia, 1989, pp. 16-17). A abrangência do termo “Lusitânia” para todas as comunidades acima mencionadas destaca a unidade na diversidade das várias comunidades linguísticas que falam o portu- guês. Mas, sendo indiscutível que as línguas naturais variam e, por isso, não são realiza- das exactamente do mesmo modo em contextos geográficos, sociais e culturais diferen- tes, em Angola, conforme já fizemos notar, o português vai sendo mais bantu do que luso, não obstante haver, no país, defensores irredutíveis da Lusitânia Antiga; falantes que “so- nham” que o português devia ser ensinado (e falado) tal qual se ensina (e se fala) em Portugal. Efectivamente, em Angola, falar e escrever bem português é falar e escrever em con- formidade com a norma-padrão europeia, isto é, em conformidade com a Lusitânia An- tiga. Contudo, dentro da comunidade, a prática da língua é quase sempre divergente da- quilo que é comunicado em aula como sendo a forma “correcta” de se falar ou de se escrever. 160

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Para Lucchesi, baseando-se em Alain Rey (1972), o termo norma comporta dois con- ceitos distintos, expressos pela língua através de duas derivações possíveis do substantivo norma, que resultam nos adjectivos «normal» e «normativo». O normal será, assim, o habitual, o costumeiro, o tradicional dentro de uma comunidade. O normativo, por seu turno, remete para o sistema ideal de valores que, não raro, é imposto dentro de uma comunidade (cf. Lucchesi 1994, p. 18). À luz da reflexão acima, a ser o normativo a norma-padrão europeia, considerando que o contexto angolano é diferente do de Portugal, poucos têm sido, em Angola, os falantes que atingem o normativo. Neste contexto, muitas formas consideradas desviantes pelo normativo são tidas como normais e até “correctas” por pessoas cultas. Tais formas, embora sejam severamente condenadas pela escola quando esta demonstra capacidade para reconhecê-las, continuam a ser fluidamente manifestas no discurso de muitos falan- tes escolarizados. Miguel afirma que “muitos dos usos desviantes estão já com forte in- filtração na fala de angolanos cultos que, mesmo em situação de comunicação formal, recorrem a usos da língua com desvios do padrão ibérico” (Miguel, 2008, p. 44). No estudo de Adriano, confirma-se o seguinte: Há, efectivamente, em Angola, momentos de revisão e até de mera correcção de provas em que o próprio professor fica indeciso entre corrigir, riscar, «matar» o erro que é corrente e sentido como normal na sua realidade ou deixá-lo «viver» […]. Para funda- mentar esta nossa afirmação, basta avançar que dos 85 professores questionados, há aque- les que corrigem todos os desvios que encontram, punindo-os com subtracção de valores (27,1%); aqueles que corrigem todos os desvios que encontram, mas já não os punem com subtracção de valores (30,5%); e aqueles que toleram alguns desvios considerados menos grosseiros no contexto angolano (42,4%) (Adriano, 2015, p. 115). Mediante o exposto, cabe aqui a previsão de Gonçalves, quando tenta assemelhar Moçambique a Angola no que respeita ao facto de nos primeiros anos que se seguiram à independência não ter havido uma consciência clara de que, entre outros factores adian- tados pela autora, o português, sendo falado como língua não materna nas duas realidades em referência, iria registar múltiplas alterações nas suas propriedades e regras, reque- rendo decisões, políticas, sobre a sua legitimidade (cf. Gonçalves, 2009, p. 232). Parece-nos que, ainda nos dias de hoje, esta consciência continua a faltar a muitos lusófilos angolanos. Para ilustrarmos esta afirmação, note-se que no estudo de Adriano há uma questão que indaga se os professores de Língua Portuguesa, cerca de 85, acredi- tavam que, com a escolarização, os angolanos chegariam a empregar o português como o fazem os Portugueses escolarizados. Registaram-se 37 (43,5%) respostas positivas e 47 161

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(55,3%) respostas negativas, sendo que um professor licenciado não respondeu a esta questão (cf. Adriano, 2015, p. 120). Como se pode observar, as opiniões ainda divergem. Um número expressivo de pro- fessores acredita que, com a escolarização, os Angolanos podem chegar a empregar a língua portuguesa como o fazem os Portugueses escolarizados, embora a maior parte dos professores tenha discordado. Esses dados revelam, assim, que a norma-padrão europeia ainda tem muitos adeptos, ou seja, muitos lusófilos. Questões de mudança linguística e, assim também, de mudança de política linguís- tica sempre foram polémicas. Sempre houve forças conservadoras e forças inovadoras. É, presumivelmente, o que se vai passar em Angola. Não será, como se pode prever, completamente pacífica uma eventual transição da norma-padrão europeia para uma norma mais adaptada à realidade de Angola. No estudo aludido, alguns professores, embora escassos, chegaram mesmo a fazer comentários em defesa da norma-padrão europeia. Apesar disso, entendemos que uma das soluções para se resolver parte dos problemas evocados em relação à proficiência linguística em português de angolanos, além de um maior investimento no sistema de ensino, é a normalização do português em Angola. Isto passa, como é óbvio, por estudos linguísticos descritivo-explicativos devidamente sistematizados, que, como defendemos, devem ir para além do mero prescritivismo, a fim de, deste modo, darem suporte às de- cisões que possam vir a ser tomadas no que respeita ao português em Angola. É preciso continuar a dar passos nesse sentido. Por muito que, por razões históricas, amemos a norma de fora, nunca seremos tão fiéis a ela como o são os seus verdadeiros «donos». É tempo de começar a acolher uma norma interna e reconhecer-lhe, pouco a pouco, a «elegância» que também encerra. Esta opção não pressupõe a assunção de todos os desvios que acontecem em Angola, tampouco a exclusão da norma da qual evoluiu a nossa. Mesmo que se aposte na diversidade, é de todo necessário que tal diversidade seja ainda convergente. Quanto mais próximos forem os subcódigos, mais próximos serão os que os usam, mercê da inteligibilidade que entre eles existirá. Enquanto não se institucionaliza a norma do português angolano, na escola, sirvam os chamados “erros” ou “desvios” como instrumentos de trabalho e de informação que possam nortear a acção didáctica dos professores junto de seus alunos. 162

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Necessário se torna, após estudos aprofundados e metódicos, delimitar o que, no nosso português de Angola deve ou não ser normativo, o que é desvio em relação, tam- bém, ao nosso normativo, sem deixarmos de ter em conta que, sociologicamente, o nosso normativo pode ser considerado, em algumas situações, desviante em relação ao norma- tivo de outras latitudes, mas seguros de que, linguisticamente, o nosso normativo cumpre o seu papel e resolve os nossos problemas na nossa comunidade, podendo ser perfeita- mente percebido pelas comunidades de outras margens. A partir daí, levar o nosso normativo também para a nossa escola, sem, no entanto, marginalizar o normativo referencial do qual evoluiu a variedade do português de Angola. Afinal, ao promovermos a competência comunicativa na escola, estaremos a validar a possibilidade de os nossos alunos conhecerem e aplicarem mais de uma variante, conso- ante as situações que a vida lhes proporciona. Neste aspecto, concordamos com Callou (2007, p. 17) nos seguintes termos: «A norma lingüística deve ser vista, assim, no quadro mais amplo dos comportamentos sociais, sem desconsiderar o papel do prestígio e da correcção linguística e as condições históricas que antecedem a constituição de uma norma explícita.» Num mundo cada vez mais aberto, marcado pela globalização e pelo diálogo multi- cultural, é prudente que Angola, ao normalizar o português na sua realidade, o faça não só para reforçar a sua identidade a nível interno, mas também para fazer com que tal identidade se integre facilmente em outras identidades. Referimo-nos aos Países Africa- nos de Língua Oficial Portuguesa e a toda a lusofonia, onde cabem igualmente Portugal e Brasil. E aqui é preciso não fazer confusão entre integracionismo e assimilacionismo. Não é possível falar em integração se a comunidade integradora não for tolerante nem valorizar a diversidade. O que aqui se defende é precisamente acautelar a integração de Angola na comunidade internacional através da língua portuguesa, mas não, natural- mente, a assimilação da sua cultura, o que já aconteceu na época em que o quinto império, através de viagens marítimas, chegou a terras angolanas impondo a sua cultura em detri- mento da nossa. Assim, a normalização linguística, que passa também por uma planificação e política linguística, não deve ser guiada por emoções dispostas a romper com as identidades de outras realidades. Daí a necessidade de, também, se investir na formação de docentes qualificados, na edição de materiais didácticos adequados para o ensino do português, 163

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observando, mesmo que alguns linguistas não concordem, alguma pluralidade da norma no sentido de se preservar o critério da inteligibilidade mútua. Se o multiculturalismo exige agora o multilinguismo (cf. Cristóvão, 2008, p. 52), a multiplicidade de variedades, no caso do português, exige a pluralidade da norma. Esta situação é ainda mais crítica numa realidade, como a de Angola, em que a norma ensinada é atópica e, por isso, utópica para a maior parte dos falantes. De facto, «(…) para a geração actual de brasileiros, de cabo-verdianos, de angolanos, o português é uma língua tão própria como para os portugueses.» (cf. Cristóvão, 2008, pp. 29-30). Cristóvão afirma mesmo que nenhuma nação do mundo que compreende a lusofonia pode ter a pretensão pueril de querer ditar normas e usos linguísticos aos de- mais. No caso, o que todas as nações devem fazer é proceder ao conhecimento das dife- renças, sempre em busca de uma unidade superior (cf. Cristóvão, 2008, p. 31). Curiosamente, mesmo não havendo nenhuma nação do mundo lusófono a querer di- tar normas e usos linguísticos aos angolanos, nós, os angolanos, apegamo-nos sofrivel- mente à norma-padrão europeia. Procuramos difundi-la nas nossas escolas, mas rara- mente a praticamos. O português que se vai afirmando em Angola apresenta, indubita- velmente, diferenças que nós próprios produzimos e não queremos reconhecer. Contudo, é perfeitamente certo que «todas as nações do mundo lusofónico falam a mesma língua, mas cada um a seu modo» (Cristóvão, 2008, p. 31). Nós não reconhecemos, ainda, o nosso modo como um modo possível entre os vários existentes na lusofonia. Apegamo-nos afectuosamente à norma europeia. Porém, esta foge-nos claramente de algum modo e abraça mais naturalmente os portugueses. Portanto, importa que não sejamos tão lusófilos a ponto de esquecer a nossa própria realidade sociolinguística e sociocultural; mas, por outro lado, não sejamos tão lusófobos a ponto de chamar “angolano” à língua portuguesa, como alguns já o fizeram. Considerações finais Discutir a situação do português em Angola pressupõe considerar essencialmente duas vertentes: a vertente extralinguística, que deve dar conta de factores como as ques- tões históricas, sociolinguísticas, socioculturais e geográficas do público falante do por- tuguês no país, e a vertente intralinguística, que deve dar conta de estruturas desta língua, com particular atenção às que divergem, em certa medida, de outras normas. 164

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Do ponto de vista extralinguístico, o português convive, em Angola, com distintas línguas endógenas, essencialmente do grupo bantu, o que favorece a sua variação. Mas é, também, língua hegemónica, que reduz significativamente o espaço das línguas com as quais convive, concorrendo para o desaparecimento destas, a longo prazo, caso não se tenha em conta uma política linguística mais incisiva no que à promoção do multilin- guismo diz respeito. Dado o fenómeno da variação linguística, há, claramente, algum distanciamento en- tre o português ideal, que é o europeu, e o português real, que é a variedade angolana. Esta situação gera alguma polémica entre lusófilos, que defendem aquele primeiro, e lu- sófobos, que o receiam e defendem um português mais adaptado à realidade sociolinguís- tica do país. Mesmo conscientes da referida polémica, parece-nos utópico que o ideal linguístico em Angola seja a norma-padrão europeia, uma vez que os dois povos moldam a língua de modo diferente. Urge a necessidade de se efectuar um longo caminho que é o do esta- belecimento de uma norma-padrão de Angola, o que pressupõe, necessariamente, uma nova política linguística. Estas alusões não devem dar azos a pensamentos tão lusófobos que pretendam romper liminarmente com a norma-padrão europeia, julgando que tudo quanto seja desviante se possa traduzir na norma do português de Angola. Uma escala de aceitabilidade torna-se necessária. Por outro lado, apostar mais intensamente no âmbito da linguística educacional torna-se igualmente necessário, pois uma possível normalização deve acautelar que o nosso subcódigo seja facilmente inteligível em relação aos outros subcódigos da mesma língua. Assim, devem prevalecer as forças da variação linguística, mas também as da conservação, pois uma e outra concorrem para que a língua portuguesa continue a ser enriquecida e prevaleça como um património que pertence a diferentes comunidades lin- guísticas. O português é, ainda, o nosso caminho para a nossa integração no espaço internaci- onal. Como tal, mesmo que incorpore características fonético-fonológicas, lexicais, mor- fossintácticas e semântico-pragmáticas próprias da realidade angolana, com a possibili- dade de aceitabilidade de algumas delas nesta realidade por meio de uma possível nor- malização linguística, é importante evitar que tal força inovadora seja tão desestruturante a ponto de originar uma língua cada vez mais incompreensível noutras latitudes em que é falada, particularmente em contextos formais de comunicação. 165

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A política educativa, as au- tarquias e o ensino das lín- guas: manutenção ou mu- dança? 167

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Moçambique: o Papel das Línguas, a Educação e o Processo da Descentralização Samaria Tovela Ministério da Educação de Moçambique Maputo Resumo Moçambique é um país multilingue onde o Português, língua Oficial e de Unidade Na- cional, coexiste com cerca de 24 línguas Bantu, línguas maternas da maior parte da po- pulação moçambicana. Depois da independência nacional contra o colonialismo Portu- guês em 1975, a gestão político-administrativa do território nacional continuou centrali- zada. No campo da educação, o principal objectivo era a expansão, o combate ao analfa- betismo, o desenvolvimento da capacidade técnico-científica e a consolidação da Uni- dade Nacional. Em 1983, através da Lei n.° 4/83, de 23 de Março, é criado o Sistema Nacional de Edu- cação (SNE) que determina, à luz da Constituição da República, que a educação constitui um direito e dever de todos os cidadãos e que as Línguas Bantu devem ser estudadas e valorizadas no âmbito da preservação e desenvolvimento do património cultural da Na- ção. Em 1990, é aprovada uma nova Constituição da República que introduz o Estado de Direito Democrático, o que dita a revisão da Lei 4/83, de 23 de Março, Lei do SNE, através da Lei 6/92, de 6 de Maio, de 1992 que, entre outros aspectos, refere à promoção das Línguas Bantu através da sua introdução progressiva na educação. Em Maio de 1996, o Parlamento procedeu à revisão da Constituição da República intro- duzindo matérias sobre a descentralização do poder no país, cujo quadro-jurídico foi aprovado em 27 de Dezembro de 1996. Nesta apresentação, procuramos mostrar que, embora a descentralização do poder seja um marco fundamental na consolidação do processo democrático em Moçambique, há constrangimentos que devem ser ultrapassados para o sucesso da sua implementação. Palavras-chave: educação, descentralizacão, línguas Bantu. 168

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Introdução Moçambique é um país multilingue e multicultural que se situa na costa oriental da África Austral. O País está dividido em 11 (onze) províncias, possui cerca de 28.65 mi- lhões de habitantes67, tem como língua Oficial e língua da Unidade Nacional a Língua Portuguesa, que coexiste com cerca de 24 línguas de origem Bantu, faladas como línguas maternas pela maior parte da população. A capital de Moçambique é a cidade de Maputo, existindo em cada província uma capital provincial, com dimensões variáveis e diferentes níveis de desenvolvimento sócio- económico, sendo as que se evidenciam economicamente, as cidades de Maputo, Beira, Nampula e Matola. O país alcançou a independência do regime colonial Português, a 25 de Junho de 1975, ano em que foi aprovada a primeira Constituição da República Popular de Moçam- bique. O processo da descentralização do poder no país, embora não fosse de forma signi- ficativa, começou com a independência nacional, institucionalizado através da Constitui- ção da República Popular de Moçambique de 1975, que no seu artigo n.° 2 alude que a “República Popular de Moçambique é um Estado de democracia popular em que todas as camadas patrióticas se engajam na construção de uma nova sociedade, livre da exploração do homem pelo homem”. E acrescenta que na “República Popular de Moçambique o poder pertence aos operários e camponeses unidos e dirigidos pela FRELIMO, e é exercido pelos órgãos do poder popular”. Embora houvesse uma participação popular no exercício do poder, havia ainda predominância de uma gestão centralizada do terrítorio, alcercada no poder político, conforme se pode conferir no artigo 3, da mesma Constituição, em que se realça que a “República Popular de Moçambique é orientada pela linha política definida pela FRELIMO, Frente de Libertação de Moçambique, que é a força dirigente do Estado e da Sociedade” e acrescenta que a “FRELIMO traça a orientação política básica do Estado e dirige e supervisa a acção dos órgãos estatais, a fim de assegurar a conformidade da política do Estado com os interesses do povo”. Na altura da independência, em 1975, Moçambique apresentava uma taxa de analfa- betismo de 93%, o que fez com que o Governo massificasse acções para a redução da taxa 67 Dados do INE, VI Recenseamento Geral da População e Habitação 2017. Maputo. 169

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do analfabetismo, entre as quais, a construção de infraestruturas escolares para a expansão do ensino formal e a transformação de todos os locais de concentração de pessoas, nome- adamente, fábricas, mercados, cooperativas agrícolas, sede do grupo dinamizador, entre outros, em centros de alfabetização. A língua instituída para o ensino formal, bem como para a alfabetização (ensino in- formal) era a Língua Portuguesa, assumida como uma arma fundamental para o combate ao tribalismo e ao regionalismo e promoção da Unidade Nacional. No presente artigo, procuramos discutir, a partir da pesquisa bibliográfica, a experi- ência de Moçambique na Educação, particularmente no ensino das línguas e demostrar que, embora a descentralização do poder seja um marco fundamental na consolidação do pro- cesso democrático em Moçambique, há constrangimentos que devem ser ultrapassados para o sucesso da sua implementação. 1. Contextualização: A Educação em Moçambique Depois da independência, em 1975, o Governo de Mocambique assumiu a Edu- cação como ferramenta indispensável para uma formação científica, técnica e ideológica do Homem com vista a sua plena contribuição para o desenvolvimento do país. O artigo 31 da Constituição da República Popular de Moçambique refere que “Na República Popu- lar de Moçambique o trabalho e a educação constituem direitos e deveres de cada cidadão. Combatendo a situação de atraso criada pelo colonialismo, o Estado promove as condições necessárias para a extensão do gozo destes direitos a todos os cidadãos”. À Luz deste di- reito, o Governo promoveu três pilares essenciais na educação, especificamente, a massi- ficação do acesso, a formação massiva de professores e a intensificação de campanhas de alfabetização e educação de adultos. A massificação do acesso era conduzida (e continua sendo), através da construção de escolas nas comunidades para expansão do ensino. No âmbito da formação massiva de professores, vários jovens a concluir o ensino médio foram conduzidos aos cursos de for- mação de professores para garantirem a educação de milhares de moçambicanos. E a in- tensificação de campanhas de alfabetização foi concretizada através da promoção da alfa- betização nas empresas, mercados, cooperativas, empresas agropecuárias e outros lugares de concentração de jovens e de adultos. 170

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Em 1983, através da Lei n.° 4/83, de 23 de Março, foi aprovado o primeiro Sis- tema Nacional de Educação (SNE) que determina, à luz da Constituição da República Po- pular de Moçambique de 1975, que “a educação é um direito e um dever de cada cidadão, o que se traduz na igualdade de oportunidades de acesso a todos os níveis de ensino e na educação permanente e sistemática de todo o povo.” A Lei n.° 4/83, de 23 de Março, Lei do Sistema Nacional de Educação define como principais objectivos: “- a erradicação do analfabetismo; - a introdução da escolaridade obrigatória; - a formação de quadros para as necessidades do desenvolvimento económico e social e de integração científica, tecnológica e cultural.” E realça na alínea e) do artigo1, relativo aos princípios gerais, que “a educação é dirigida, planificada e controlada pelo Estado, que garante a sua universalidade e laicidade no quadro da realização dos objectivos fundamentais consagrados na Constituição da Re- pública.” No que concerne à língua de ensino, a primeira Lei do Sistema Nacional de Edu- cação (SNE) de Moçambique independente, salienta na alínea g) do artigo 2 sobre os prin- cípios que regem a estrutura do SNE o seguinte “difundir, através do ensino, a utilização da língua Portuguesa, contribuindo para a consolidação da Unidade Nacional.” E no artigo 5 realça que o SNE deve, no quadro dos princípios difundidos pela mesma Lei, “(…) con- tribuir para o estudo e valorização das línguas, cultura e história moçambicana, com o objectivo de preservar e desenvolver o património cultural da nação.” Portanto, embora não se tenha institucionalizado o uso das línguas maternas de origem Bantu como meios de ensino, se reconhece o seu papel sócio-cultural e patrimonial. A década 90 é marcada pela introdução do multipartidarismo em Moçambique, institucionalizado através da aprovação da Constituição da República de Moçambique de 1990, que no seu Artigo 3 refere que “A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do Homem”. Com vista a adequar o Sistema Nacional de Educação à nova Constituição da República, foi revista a Lei n.⁰ 4/83, de 23 de Março, Lei do Sistema Nacional de Educa- ção, através da Lei 6/92, de 6 de Maio, Lei do Sistema Nacional de Educação. 171

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A Lei 6/92, de 6 de Maio, Lei do Sistema Nacional de Educação, entre outras matérias, abre a possibilidade da liberalização da economia, marcada na educação pela comparticipação comunitária e privada no desenvolvimento da educação. Quanto ao papel das Línguas Bantu faladas em Moçambique, a Lei 6/92, de 6 de Maio, do SNE, no seu artigo 4 realça que o SNE “deve, no quadro dos pricípios definidos (...) valorizar e desenvolver as línguas nacionais, promovendo a sua introdução progres- siva na educação”. No quadro desta Lei, o Ministério da Educação implementa de 1993- 1997 uma experiência de ensino bilingue no país, designada Programa de Educação Bilin- gue em Moçambique (PEBIMO), cujo objectivo era promover a aprendizagem e a retenção dos alunos no Sistema Educativo, até a conclusão do nível. Entenda-se por Ensino Bilingue, o ensino em duas línguas, uma materna do grupo-alvo e outra que pode ser Língua Oficial e ou língua segunda do país. A fase experimental de Ensino Bilingue em Moçambique abrangeu escolas pri- márias de duas províncias, Gaza e Tete, tendo sido envolvidas no ensino, a língua materna dos alunos, especificamente, uma Língua Moçambicana de origem Bantu, e a Língua Por- tuguesa. O modelo adoptado foi de transição com características de manutenção. Portanto, os alunos iniciaram a escolarização usando a respectiva língua materna, como meio de ensino e tendo a Língua Portuguesa como disciplina. Na 3ª classe os alunos passaram a ter o Português como meio de ensino e a língua materna como disciplina. No fim da 5ª classe, ou 5º ano de escolaridade, os alunos do Ensino Bilingue realizaram o mesmo tipo de avaliação final que os alunos que passaram pelo ensino mo- nolingue em Português. Isto é, alunos que iniciaram a escolarização na Língua Portuguesa. Os resultados dos exames dos alunos submetido à experiência de Ensino Bilingue foram bastante positivos, o que contribuiu para a implementação no ensino primário em Moçambique, do Ensino Bilingue desde o ano lectivo de 2003, depois de uma reforma curricular profunda, passando a existir duas modalidades de ensino no nível primário, es- pecificamente, a Modalidade de Ensino Monolingue em Português e a Modalidade de En- sino Bilingue (uma Língua Bantu Moçambicana e a Língua Portuguesa). A Modalidade de Ensino Bilingue é implementada em zonas linguisticamente homogéneas, sendo maiorita- riamente, nas zonas rurais. 172

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Importa referir que, o principal objectivo da implementação da Modalidade de Ensino Bilingue no ensino primário, em Moçambique é a inclusão, a melhoria da quali- dade no nível primário, a valorização das línguas e cultura moçambicanas e o respeito pelo direito à educação na língua materna. Neste momento, das 24 línguas moçambicanas, 19 estão padronizadas, nomeada- mente: Emakhuwa, Shimakonde, Kimwani, Ciyawo, Ekoti, Cinyanja, Echuwabo, Elómwè, Cinyungwe, Cisena, Cindau, Ciwutee, Cibalke, Cimanyika, Citshwa, Gitonga, Cicopi, Xichangana e Xirhonga, sendo estas línguas que estão sendo implementadas na modalidade de ensino bilingue. Dados estatísticos de 2020 do Ministério da Educação e Desenvolvimento Hu- mano (MINEDH) de 2020 indicam que o Ensino Bilingue está a ser implementado em e 2.924 escolas primárias públicas, de um total de 12,410, beneficiando a um universo de 532.204 alunos, dos 5.975.402 alunos do ensino primário público. Em 2004, para além de Moçambique ter introduzido o Ensino Bilingue no Sis- tema de Educação, disponibilizou no quadro dos Curricula do Ensino Geral, 20% de tempo para a abordagem de conteúdos locais relevantes, designado currículo local. Este tempo, está aberto a integração de qualquer conteúdo local, incluindo o ensino de línguas locais. Esta perspectva marca a descentralização de uma parte do currículo, assumindo que só assim, poderá haver a transferências dos saberes relevantes das comunidades, de geração para geração. 2. A Educação e a Descentralização Os órgãos de gestão da Educação em Moçambique compreendem: o Ministério que superintende a área da educação, que tem o pepel de definir e promover as políticas educativas no quadro da Constituição da República de Moçambique e do Sistema Nacional da Educação, garantir a unicidade na implementação das políticas educativas, nomeada- mente, promoção nacional do acesso a educação, planificação, desenvolvimento e imple- mentação universal do currículo escolar, monitoria, supervisão e inspecção. No nível subsequente, encontram-se as Direcções Provinciais de Educação cujo papel é fazer a gestão da implementação das directrizes definidas a nível central (pelo Mi- nistério), garantir a implementação da educação geral através da planificação, formação, monitoria, supervisão e inspeção. 173

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Sequencialmente, ao nível de cada província, estão os Serviços Distritais de Educação, um órgão da jurisdição da Escola, cujo papel é a planificação, coordenação e gestão da implementação das actividades do sector, garantindo a unicidade da implementação das políticas educativas. Em Maio de 1996, o Parlamento procedeu à revisão da Constituição da República de 1990, introduzindo matérias sobre a descentralização do poder, cujo quadro Lei foi apro- vado em 27 de Dezembro de 1996. Para uma melhor compreensão da política de descentralização, iremos repassar de forma breve, o conceito de descentralização. Guinmarães (s/d) no seu artigo sobre “O Debate Sobre a Descentralização de Po- líticas Públicas: Um Balanço Bibliográfico”, alcerca-se em Penfold-Becerra,1998, para dissertar sobre a transversalidade do termo descentralização, realçando que está presente em vários campos disciplinares. No campo das ciências políticas, a descentralização é entendida como mecanismo democrático, que permite a autonomia política dos níveis locais e regionais, com vista ao aprofundamento da democratização. No campo das ciências económicas como transnfe- rência de responsabilidades no quadro das políticas económicas públicas para o sector pri- vado. No campo da sociologia, a descentralização é concebida como um mecanismo para o empoderamento da sociedade civil e, no campo da Administração Pública, é a transfe- rência de responsabilidade administrativa sobre os serviços básicos públicos do nível naci- onal para os governos regional e local. Guinmarães (s/d), acrescenta ainda que a descen- tralização se fundamenta em dois planos: jurídico e político. No plano jurídico “(...) con- cebida como um processo de transferência de competências e de poderes entre órgãos ou dentro do órgão, vinculada na ideia de desconcentração ou delegação de funções (…)” e no plano político, a descentralização é vista como “desagregação do poder público...que vai de uma simples desconcentração de actividades até a descentralização de poder decisó- rio, ou seja, da transferência de competência ou poderes do centro para periferia”. Guinmarães (s/d) realça que no plano político, a descentralização agrega três di- mensões complementares, nomeadamente, a administrativa, a social e a política, por com- preender a delegação ou transferência de competências e de funções entre órgãos, a parti- cipação social na gestão pública e a redistribuição do poder político do Estado, do nível central para os periféricos. (Cf. p.2-4) 174

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Nesta perspectiva, podemos afirmar que a descentralização das autarquias muni- cipais em Moçambique é política. Esta envolve a eleição, a transferência de competências e funções, visando facilitar a comunicação entre a população circunscrita e o Governo lo- cal, bem como a resolução atempada dos problemas que a fectam e do alcance das suas expectativas. 3. O Processo de Descentralização da Educação e o Ensino de Línguas 3.1 O Processo de Descentralização da Educação Em 1997, através da Lei 2/97, de 18 de Fevereiro, é aprovado pela Assembleia da República de Moçambique, o quadro jurídico-legal que cria as autarquias locais, ao abrigo do n°.1 do artigo 135 da Constituição da República, prevendo, desta forma, na organização democrática do Estado o poder local. No ano seguinte, em 1998 realizam-se as primeiras eleições municipais em 23 cidades e 10 vilas, tendo sido criadas 33 autarquias municipais. Em 2004, após a revisão da Constituição da Republica de Mocambique com o objectivo de consolidar o Estado Democrático, foram criadas mais 10 autarquias munici- pais, através da Lei 3/2008, de 3 de Agosto, totalizado 43 municípios e, em 2013, foram criadas mais 10 autarquias monicipais, totalizando 53 autarquias municipais, destas 23 são cidades e 10 são vilas, conforme ilustra o Quadro. Quadro: Total de municípios de Moçambique (cidades e vilas) Província Capital Pro- Autarquias Municipais Total: Mu- vincial nicípios (Ci- dades e Vi- Cidades1 Vilas las) Cabo Del- Pemba - Pemba (cidade) - Mocímboa da 5 gado - Montepuez Praia - Mueda - Chiúre Niassa Lichinga - Lichinga (cidade) - Metangula 5 - Cuamba - Marrupa - Mandimba Nampula Nampula - Nampula (cidade) - Monapo 7 - Angoche - Ribáuè 175

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- Ilha de Moçambique - Malema - Nacala (Porto) Zambézia Quelimane - Quelimane (cidade) - Milange 6 - Gúrué - Alto Molócuè - Mocuba - Maganja da 5 Costa 5 4 Manica Chimoio - Chimoio (cidade) - Catandica 5 - Manica - Gondola - Sassundenga 6 4 Sofala Beira - Beira (capital) - Marromeu 1 - Dondo - Gorongosa 53 - Nhamatanda Tete Tete - Tete (capital) - Moatize - Ulógué - Nhamayábuè Inhambane Inhambane - Inhambane - Vilankulo - Maxixe (cidade) - Massinga - Quissico (Za- vala). Gaza Xai-Xai - Xai-Xai - Mandlakazi - Chibuto - Macia -Chókwè - Praia do Bilene Maputo Maputo Matola (cidade) - Manhiça - Namaacha - Boane Cidade de Cidade de Maputo (cidade-capi- Maputo Maputo tal do país) Total de Municípios Com vista à consolidação da reforma democrática do Estado, ao aprofundamento da democracia participativa e à garantia da paz, reiterando o respeito aos valores e princí- pios da soberania e da unicidade do Estado, em 2018 procedeu-se a revisão pontual da Constituição da República através da Lei 1/2018, de 12 de Junho. 176

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A Lei 1/2018, de 12 de Junho, Lei da Revisão da Constituição da República de Moçambique refere no artigo 8, que: “1. A República de Moçambique é um Estado Unitário; 3. O Estado orienta-se pelos princípios da descentralização e de subsidiariedade; 4. O Estado respeita na sua organização e funcionamento, a autonomia dos órgãos de governação provincial, distrital e das autarquias locais.” Na sequência desta revisão pontual da Constituição da República, foi alterada a Lei 2/97, de 18 de Fevereiro, através da Lei Lei 6/2018, de 3 de Agosto, que estabelece o quadro jurídico-legal para a implantação das autarquias locais. O artigo 1 relativo às Autarquias Locais refere que: “1. Na organização democrática do Estado, o poder Local compreende a existên- cia de autarquias locais. 2. As autarquias locais são pessoas colectivas públicas dotadas de órgãos próprios que visam a prossecução dos interesses nacionais e da participação do Estado. 3. As autarquias locais desenvolvem as suas actividades no quadro da unicidade do Estado e organizam-se com pleno respeito da unidade do poder político e do ordenamento jurídico nacional”. 3.1.1Atribuições das Autarquias Locais: O Caso da Educação Antes de nos referirmos as atribuições, importa referir que as autarquias locais gozam de autonomia administrativa, financeira e patrimonial. No que se refere às atribuições das Autarquias Locais, a Lei 6/2018, de 3 de Agosto, que aprova o quadro jurídico-legal para a sua implantação, no número 1 do artigo 8 refere que “as atribuições das autarquias locais respeitam os interesses próprios, comuns e específicos das populações respectivas, designadamente: a) desenvolvimento económico e social local; b) meio ambiente, saneamento básico e qualidade de vida; c) abastecimento público; d) saúde; e) educação; 177

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f) cultura, tempos livres e desporto; g) polícia da autarquia; h) urbanização, construção e habitação”. E ainda acrescenta no n.° 2 que a “prossecução das atribuições locais “é feita de acordo com os recursos financeiros ao seu alcance e respeite a distribuição de competências entre os órgãos autárquicos e os de outras pessoas colectivas de direito público, nomeada- mente o Estado, as determinadas pela presente Lei e por legislação complementar”. Na área da educação, são descritas como competências das autarquias locais as seguintes: a) A criação, o apetrechamento e a administração das escolas do ensino primário e centros internatos, de acordo com as normas definidas pelo órgão que superintende a área da educação; b) A abertura de concursos para a construção de escolas do ensino primário e centros internatos; c) A gestão do pessoal administrativo das escolas do ensino primário e centros internatos; d) A aquisição e a gestão de transportes escolares; e) A criação, o apetrechamento e a administração de centros de educação de adultos; f) A participação na definição de currículum local; g) A gestão do ensino privado no nível primário; h) A realização de outras actividades complementares da acção educativa, designadamente, nos domínios da acção social escolar e da ocupação de tempos livres. 3.1.2 Transferência das Competências para as Autarquias Municipais O Decreto n.° 33/2006 de 30 de Agosto, estabelece o quadro de transferência de funções e competência dos órgãos do Estado para as autarquias locais, concretizando os princípios da descentralização administrativa e da autonomia do poder local. Por exemplo, no seu artigo 3, refere que “a iniciativa da transferência de funções compete aos órgãos do Estado ou da autarquia local...” e ressalva no artigo 4, relativo a transferência de funções e competências, que “1. A Autarquia local deve indicar as suas capacidades técnicas para 178

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assumir as funções e compteências a serem transferidas” e no n.º 2. acrescenta que “a trans- ferência de funções efectua-se sem prejuízo da respectiva articulação com a intervenção complementar dos órgãos centrais e locais do Estado”. Este Decreto constituiu uma limitante para a materialização da descentralização de alguns serviços para os municípios, incluindo a Educação, na medida em que esta de- manda níveis complexos de gestão, especificamente:  A gestão de recursos didácticos, visto que o ensino primário, é gratuito;  A gestão administrativa;  Gestão de recursos humanos;  A manutenção das infraestruturas escolas;  A formação em exercício de professores;  O fortalecimento da gestão democrática da escola, através de uma gestão inclusiva que envolva os pais e encarregados e a comunidade, de um modo geral. Assume-se que o desenvolvimento desta actividades requere dos municípios, uma robusteza, em termos de recursos humanos, financeiros e materiais. A Lei 6/2018, de 18 de Fevereiro, da implantação das autarquias locais, veio acla- rar o exercício da transferência de competências, visto que no seu artigo 23, refere que “a transferência de competências de órgãos do Estado para órgãos autárquicos é sempre acompanhada pela correspondente transferência dos recursos financeiros e, se necessário, humanos e patrimoniais”. Entretanto, enquanto, não são efectivamente, transferidas as competências do órgão Central para os municípios, o Estado Moçambicano para garantir a prossecução dos objetivos das autarquias municipais, estes vão executando algumas actividades em coordenação com o órgão Central, nomeadamente: a) Construção e apetrechamento de escolas do ensino primário e centros internatos e centros de educação de adultos, de acordo com as normas definidas pelo órgão que superintende a área da educação; b) Promoção de acções de educação cívica; c) A participação na definição de currículo local. 179

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Conclusões O processo de descentralização do poder local embora tenha iniciado desde 1997, com a aprovação da Lei n.°2/97, de 18 de Fevereiro, que estabelece o quadro jurídico-legal para a implementação das autarquias locais e revista a através da Lei n.°6/2018, de 3 de Agosto, é um processo ainda novo, constituindo um desafio na sua implementação, algu- mas vazes por falta de clareza de algumas diretrizes e outras, por falta de recursos humanos, financeira e materiais para a gestão eficiente e eficaz das competências atribuídas aos mu- nicípios no campo da Educação. Um aspecto positivo é que o Estado moçambicano está empenhado neste grande exercício de massificação da participação do povo na tomada de decisões para desenvolvi- mento social e económico das suas comunidades, através da descentralização do poder, assumindo que este processo irá acelerar a resolução dos problemas que afectam as comu- nidades e perscpectivar o desenvolvimento. No campo da educação, parece-nos existir uma grande ponderação, pois embora haja uma abertura para a integração das línguas locais e de outros conteúdos locais na aprendizagem, há necessidade de garantir, ao mesmo tempo, a unicidade na implementação do Sistema Nacional de Educação, para não criar disparidades no acesso e nas condições de aprendizagem. Desta forma, há necessidade de o Governo Central dotar as autarquias locais de competências técnicas para um exercício eficiente e eficaz das suas competências, respondendo, desta forma, aos anseios dos seus munícipes, particularmente, no campo da educação. De um modo geral, o processo de descentralização tem sido uma aprendizagem diária para todos nós, implicando um aprender fazendo. Referência Bibliográfica Constituição da República Popular de Moçambique (1975) Republica Popular de Moçam- bique, de 20 de Junho de 1975. Decreto n.° 33/2006. Estabelece o quadro de transferência de funções e competências dos órgãos do Estado para as autarquias locais. Guinmarães, M.C.L. (s/d) O Debate sobre a Descentralização de Políticas Públicas: Um Balanço Bibliográfico. In www.scielo.br. 180

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Instituto Nacional de Estatistica (2019) Resultados Definitivos do VI Recenseamento Ge- ral da População e Habitação 2017. Maputo. Lei n.° 18/2018, de 28 de Dezembro, Lei do Sistema Nacional da Educação. Boletim da República n.°254, (Série 1), 28 de Dezembro de 2018. Lei n.° 1/2018, de 12 de Junho, Lei de Revisão Pontual de Constituição de República de Moçambique. Boletim da República n.°115, (Série 1), 12 de Junho de 2018. Lei n.° 6/2018, de 3 de Agosto, Altera a Lei n.° 2/97, de 19 de Fevereiro, que estabelece o quadro jurídico-legal para implantação das autarquias locais. Lei n.° 2/97, de 18 de Fevereiro, Aprova o quadro juridico-legal para implementação das autarquias locais. Boletim da República n.°7, (Série 1), 18 de Fevereiro de 1997. Lei n.° 6/92, de 06 de Maio, Lei do Sistema Nacional da Educação. Boletim da República n.°19, (Série 1), 6 de Maio de 1992. Lei n.° 4/83, de 23 de Março, Aprova a Lei do Sistema Nacional da Educação e Define os Princípios Fundamentais na sua aplicação. Boletim da República n.°12, (Série 1), 23 de Março de 1983. Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (2019) Estratégia de Expansão do Ensino Bilingue 2020-2029. MINEDH, Maputo. 181

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O Ensino das Línguas e a Institucionalização do Poder Local em Angola: perspectivas, desafios e oportunidades Gildo Matias José [email protected] Ministério da Educação Luanda Resumo Angola tem uma realidade multilingue e aberta, levantando desafios no ensino das línguas. Nessa conformidade, há a necessidade de se discutir até que ponto a política lin- guística e a planificação linguística angolana evidenciam a preocupação com, e abrem ca- minho para a institucionalização do poder local. O presente artigo realiza uma revisão bi- bliográfica e reflecte em torno da política linguística nacional à luz da legislação vigente, da planificação linguística em curso, e dos diplomas legais na forja, no que ao ensino das línguas e a institucionalização do poder local diz respeito. Metodologicamente, o presente estudo é de revisão bibliográfica, onde foram utilizados os diplomas legais vigentes, legis- lação na forja, bem como diferentes artigos científicos das áreas de Políticas Públicas e Sociolinguística, analisando realidades multilingues semelhantes à nossa. A pesquisa aferiu que, apesar de se terem consolidado as fases da planificação linguística no que se refere às Línguas Angolanas, a preocupação com a institucionalização do poder local por esta via é ainda tácita, necessitando de instrumentos legais mais claros e esclarecedores, algo em que a Proposta de Lei sobre as Línguas de Angola é promissora. Conclui-se então que esta proposta de lei apresenta perspectivas interessantes no binómio ensino das línguas – insti- tucionalização do poder local, e que a comparação com países com circunstâncias linguís- ticas similares às de Angola ajuda a antecipar os desafios e explorar as oportunidades. Palavras-chave: Planificação Linguística; Política Linguística; Institucionaliza- ção; Poder Local Abstract Angola has a multilingual open context, raising challenges in the language teach- ing. Therefore, there is a need to discuss to which extent the Angolan language policy and language planning show any concern with, and path the way for the institutionalization of local government. This paper reviews the literature and reflects on the national language 182

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policy in the light of the current legislation, of the ongoing language planning, and of the current bills regarding language teaching and local government institutionalization. Meth- odologically, this study is a literature review through which current legislation and bills were used, as well as scholarly articles on Public Policies and Sociolinguistics that analyze multilingual contexts similar to ours. It was found that, despite the consolidation of the language planning stages regarding the Angolan Languages, the concern with the local government institutionalization is still tacit, requiring clearer and more clarifying legisla- tion, in which the Angolan Languages Bill is promising. It can be concluded that this bill presents interesting perspectives between language teaching and the local government in- stitutionalization, and that the comparison with countries having similar linguistic contexts to Angola helps anticipate the challenges and explore the opportunities. Key-words: Language Planning; Language Policy; Institutionalization; Local Government. Introdução A planificação linguística é uma expressão utilizada por sociolinguistas para se referirem às acções que os governos e/ou organizações afins realizam na mobilização de sinergias, visando a selecção e/ou promoção de línguas ao estatuto de nacionais, oficiais ou simplesmente comunitárias, bem como os meios de as divulgarem (Richards & Schmidt, 2002). Em termos simples, a planificação linguística é “qualquer esforço para modificar a forma ou o uso de uma língua” (Spolsky, 1998, p. 66), uma “mudança deliberada de uma língua” (Holmes, 2008), ou a escolha e desenvolvimento de uma língua ou línguas para o estatuto de oficiais, tornando-as como instrumentos administrativos e educativos (Yule, 2006). A expressão ‘política linguística’ é várias vezes utilizada em vez da ‘planificação linguística’. Spolsky (1998), por exemplo, entende que muitos sociolinguistas preferem a anterior por denotar neutralidade. Para este investigador, ambas são sinónimas. Por outro lado, Richards e Schmidt (2002) e Holmes (2008) integram a expressão política linguística dentro da planificação linguística. Para estes estudiosos, a política linguística apenas é de- finida depois da planificação ser feita. Independentemente do que os diversos investigado- res da área entendem, para o presente texto, ambas expressões serão usadas intercambial- velmente para significar todos esforços e iniciativas feitas por autoridades governamentais, tendentes ao reconhecimento e/ou mudança de estatuto de uma língua, na perspectiva de Yule (2006). 183

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A planificação linguística obedece quatro fases principais, nomeadamente, selec- ção, codificação, elaboração e garantia de aceitação (Holmes, 2008, p. 105). Na fase de selecção, escolhe-se a variante ou o código a ser desenvolvido. Durante a fase de codifica- ção, padronizam-se as formas da língua. Esta fase também denomina-se ‘planificação do corpus da língua’. Na elaboração, procuraram-se os recursos linguísticos necessários para a incorporação de novos conceitos, bem como expandir o uso da mesma em outros contex- tos. Por isso, Ngcobo (2007, p. 1) argumenta que a codificação ou planificação do corpus tem de “estar também associada com a modernização [ou elaboração] da língua a fim de ser utilizada em todos os domínios, incluindo ciência e tecnologia”. Na última fase também conhecida de ‘planifi- cação de prestígio ou estatuto’, procura-se convencer as pessoas a aceitarem a língua assim como desenvolver um sentimento de orgulho por elas. Estas etapas são fundamentais quando se analisa qualquer processo de planificação linguística bem como o consequente sucesso ou insucesso de ensino e aprendizagem de línguas que advêm dele. Importa igualmente salientar, nesta nota introdutória, a expressão ‘línguas nacio- nais’. A legislação aprovada antes de 2010 utilizou esta expressão para se referir às línguas locais de Angola. É apenas a partir da Constituição da República de Angola de 2010 que aparece a expressão ‘línguas de Angola’ para designar as referidas línguas. Portanto, usa- remos a expressão da Constituição, embora alguns achem que o Português seja também língua de Angola. O presente texto é composto por cinco subtítulos. O primeiro sintetiza o actual panorama linguístico de Angola. O segundo debruça-se sobre a planificação linguística na Angola pré-independente, onde o poder colonial esforçou-se em implementar uma estraté- gia de substituir as línguas de Angola pelo Português, tendo-o instituído como a única lín- gua oficial e de administração. O terceiro fala da planificação linguística na Angola pós- independente, em que se realçam os principais diplomas legais sobre a matéria. O quarto destaca os possíveis efeitos de se implementar o ensino das e nas línguas de Angola, en- quanto o quinto traz notas conclusivas sobre a temática discutida. Mosaico Linguístico Angolano Angola é um país multilingue, com mais de 40 idiomas de origem africana. Deste conjunto, cerca de 80,5% é de origem Bantu, enquanto 19,5% provem de raízes não Bantu (Augusto 2011). Segundo os dados do Censo de 2014 retomados por Nag (2017), o Um- bundu, o Kikongo, o Kimbundu e o Cokwe são as mais faladas no seio familiar, tendo 184

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22,9%, 8,2%, 7,8% e 6,5% de falantes, respectivamente (INE, 2016). Por outro lado, se- gundo a mesma fonte, cerca de 71% de angolanos fala a Língua Portuguesa em casa, con- forme ilustra o gráfico abaixo. Gráfico: Línguas mais faladas em casa (INE, 2016, p. 51).0 Outra língua 3,6 Luvale 1,04 Muhumbi 2,12 Kwanyama 2,26 Fiote 2,39 Nganguela 3,11 Nhaneca 3,42 Chokwe 6,54 Kimbundo 7,82 Kicongo 8,24 Umbundo 22,96 Português 71,15 0 10 20 30 40 50 60 70 80 Não obstante haver numerosas línguas angolanas, a figura acima mostra que a Língua Portuguesa, a língua imposta pelo poder colonial (Ferreira, 1974, p. 85), é ainda a hegemónica, em termos de falantes, e a única com estatuto oficial (Angusto, 2011; Nag,2017), ao contrário de alguns países africanos. A África do Sul, por exemplo, manteve a língua do poder colonial e promoveu algumas línguas locais para o estatuto de línguas oficiais, ao passo que a Tanzânia foi mais radical ao rejeitar a língua do colonizador como sendo a língua oficial do país (Augusto, 2011). Porém, para se perceber o contexto em que o Português predomina o mosaico linguístico angolano, importa debruçarmo-nos sobre a planificação linguística em Angola antes e pós-independência. Planificação Linguística na Angola Pré-Independente Para se perceber melhor a política linguística em vigor antes da independência, precisa-se previamente entender a visão daqueles que administravam Angola. Segundo Ba- 185

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sil Davidson ao introduzir o livro de Ferreira (1974), as autoridades coloniais viam os an- golanos como sendo seres úteis68, desde que estivessem sob organização e controlo dos brancos, não como humanos a respeitar, mas naturalmente inferiores perante a humanidade branca, por um lado. Por outro lado, havia a necessidade de se incrementar a visão de uma dita unidade nacional que passaria por “inculcar valores portugueses, e desenvolver nos alunos uma consciência de identificação com Portugal” (Ferreira, 1974, p. 80). Diante desta visão e pretensão controladora, dominadora e diluidora dos valores africanos na cultura portuguesa, as autoridades coloniais, na época, tomaram medidas lin- guísticas que garantissem a obtenção e manutenção dos seus desideratos, mesmo depois da eclosão da luta de libertação. Uma dessas medidas foi a institucionalização do Português como sendo a única língua de instrução, conforme se pode depreender das afirmações atri- buídas a um dignitário do poder colonial, em meados de 1966, “Devemos ser obstinados, intran- sigentes e insaciáveis na intensificação do uso da língua Portuguesa” (Ferreira, 1974, p. 85). No en- tanto, as línguas angolanas de origem africana foram chamadas de dialectos, termo pejora- tivo para reduzir o seu valor (Augusto, 2011). Essa visão das autoridades coloniais influenciou grandemente a política linguís- tica da época, que se consubstanciou na intensificação da indoctrinação e aculturação atra- vés da educação, em todos os níveis (Ferreira, 1974, p. 85). Esta política obrigou muitos angolanos a assimilarem-se para garantirem educação e o consequente estatuto social pro- porcionado pelo colono para aqueles que absorvessem os valores portugueses (Augusto, 2011). Foi basicamente com essa política linguística que Angola chegou à independência. Planificação Linguística na Angola Pós-Independente Depois de ter ascendido à independência, a elite que assumiu o poder, apesar dos reconhecidos esforços legislativos, continuara a estratégia colonial no que à planificação linguística diz respeito. Isto é notado por Augusto (2011) ao afirmar que isto pode ter acon- tecido devido ao facto da maioria dos angolanos que substituíram o colono não terem tido grandes repertórios das línguas angolanas de origem africana. Assim, o Português foi então considerado como a língua veicular, ou seja, “a língua utilizada como veículo da cultura angolana”, bem como a “língua da unidade nacional” (p. 36), conforme pensara o poder colonial. 68 A aludida utilidade era simplesmente devido ao facto dos angolanos terem sido mão-de-obra barata e por isso fundamentais para o funcionamento da economia colonial. 186

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Não obstante o entendimento de Augusto (2011), no campo legislativo e adminis- trativo, os esforços foram e continuam notáveis. Apesar da Lei Constitucional aprovada pelo Movimento Popular para Libertação de Angola –MPLA em 1975 ter sido omissa quanto ao estatuto das línguas em Angola, o Governo de então criou o Instituto Nacional de Línguas, através do Decreto n.º 62/78, de 6 de Abril, no qual se evidenciou o propósito de “estudar as línguas nacionais, codificando a sua escrita e estimulando o seu desenvolvi- mento a diversos níveis e matérias de ciência, programar cursos do seu ensino e promover por todos os meios a sua preservação e valorização” (art. 1.º do Decreto n.º 62/78, de 6 de Abril). Esta iniciativa, tomada dois anos e meio após a independência, enquadra-se objec- tivamente em processos de planificação ou política linguística conceituada previamente por vários autores. Seguiram-se várias iniciativas legislativas e administrativas, conforme mostra a tabela mais adiante. Seis anos após a criação do Instituto Nacional de Línguas, a Comissão Permanente da Assembleia do Povo aprovou a adesão da República Popular de Angola à Carta Cultural de África, através da Resolução n.º 8/84, de 18 de Julho. O documento ade- rido contém disposições relevantes e interessantes, das quais destacamos os princípios fun- damentais duma política cultural nacional. Desses princípios, a carta é peremptória ao es- tabelecer como uma das prioridades a “transcrição, o ensino e o desenvolvimento da utilização das línguas nacionais de modo que elas passem para línguas de difusão e de desenvolvimento das ciências e da técnica” e como um dos meios a “introdução e intensificação do ensino nas línguas nacionais a fim de acelerar o processo de desenvolvimento económico, social, político e cultural dos nossos Estados”69. Pa- rece-nos, portanto, que a Carta ratificada lançara bases consistentes para que estados como o nosso fossem encorajados a promoverem algumas línguas locais para o estatuto de lín- guas oficiais, em vez de, simplesmente, serem introduzidas como disciplinas a serem leci- onadas em algumas escolas, classes e cursos. Tabela: Algumas iniciativas legislativas e administravas de planificação linguística desde 1975 Tipo de acto Descrição Observação 1. Decreto n.º 62/78, Criação do Instituto Nacional de Lín- de 6 de Abril guas 2. Resolução n.o 8/84, Aprovação da adesão de Angola à Substituída pela Carta de 18 de Julho Carta Cultural de África do Renascimento Cul- tural de África 69Alínea a) do n.º 1 e b) do n.º 2 ambos do artigo 6.º da Carta Cultural de África, aprovada durante a 13ª Sessão Ordinária da Organização da Unidade Africana, em 1976, nas Ilhas Maurícias. 187

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3. Decreto n.o 40/85, Criação do Instituto de Línguas Nacio- de 18 de Novembro nais 4. Resolução n.o3/87, Aprovação, a título experimental, dos de 23 de Maio alfabetos de 6 línguas nacionais 5. Lei n.º 13/01, de 31 Aprovação da Lei de Bases do Sistema Substituída pela Lei n.º de Dezembro de Educação e Ensino 17/16, de 7 de Outubro 6. Lei n.o 14/05, de 7 Aprovação da Lei do Património Cul- de Outubro tural 7. Decreto n.o 55/09, Aprovação do Estatuto Orgânico do de 28 de Setembro Instituto de Línguas Nacionais 8. Constituição da Aprovação da Constituição da Repú- Substitui a Lei Consti- República de 2010 blica tucional de 1992 9. Decreto Presiden- Aprovação da Política Cultural de An- cial n.º 15/11, de 11 gola de Janeiro 10.Ante Projecto de Lei sobre as Línguas de Angola 11.Lei n.º 32/20, de 12 Alteração da Lei de Bases do Sistema Altera a Lei n.º 17/16, de Agosto de Educação e Ensino de 7 de Outubro Um ano após o Estado Angolano ter aderido à Carta Cultural de África, foi criado o Instituto de Línguas Nacionais, através do Decreto n.º 40/85, de 18 de Novembro, cujas atribuições, entre outras, realçamos duas: a) Estudar todas as línguas nacionais, iniciando pelas que têm maior representatividade nu- mérica; b) Estimular a preservação das línguas nacionais, a sua promoção e consequente valorização, no quadro da sua competência;70 Similarmente ao diploma legislativo anterior, não se depreende qualquer intenção de instituir alguma língua nacional a nível de oficial ou de instrução escolar. Em 1987, foram aprovados, a título experimental, os alfabetos de seis línguas na- cionais, nomeadamente, Kikongo, Kimbundu, Cokwe, Umbundu, Mbunda e Oxikwan- yama, através da Resolução n.o3/87, de 23 de Maio. Na sua fundamentação, o Governo 70Alíneas a) e b) do artigo 3.º do Decreto n.º 40/85, de 18 de Novembro, que aprova o Instituto de Línguas Nacionais. 188

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considerava que as Línguas Nacionais eram “suporte e veículo das heranças culturais e exigiam, por isso, um tratamento privilegiado por constituírem um dos alicerces primor- diais da “Identidade Cultural do Povo Angolano”. Uma indicação relevante e digna de realce surge na Lei n.º 13/01, de 31 de De- zembro, que aprovou as Bases do Sistema de Educação e Ensino. O n.º 2 do artigo 9.º desta lei dispõe a promoção e o asseguramento de todas as condições para a “expansão e a generali- zação da utilização e do ensino de línguas nacionais”, enquanto o n.º 3 do mesmo artigo permite o uso de línguas nacionais como meios de ensino na Educação de Adultos. Todavia, nos restantes subsistemas a única língua de ensino continuou a ser a Língua Portuguesa, con- forme estabelece o n.º 1 deste artigo. Em 2005, foi aprovada a Lei do Património Cultural, através da Lei n.o 14/05, de 7 de Outubro. Esta lei, segundo a sua fundamentação, surge da necessidade de classifica- rem, protegerem e concederem necessários apoios às “entidades públicas e privadas que possuam ou cuidam de bens materiais e imateriais, móveis e imóveis, integrantes do Património Cultural”. Dos bens identificados como sendo partes deste património constam as línguas nacionais, cujo en- sino, valorização e política remetia-se a uma legislação própria, de acordo com o artigo 3.º desta lei. Quatro anos após a aprovação da Lei do Património Cultural, foi aprovado o Es- tatuto Orgânico do Instituto de Línguas Nacionais pelo Decreto n.o 55/09, de 28 de Setem- bro. Este instituto, superintendido pelo Ministério da Cultura, absorveu algumas compe- tências do então Instituto Nacional de Línguas e tinha como finalidade “estudar cientificamente as línguas nacionais, contribuindo para a sua normalização e ampla utilização em todos os sectores da vida nacional (…)”, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 1.º do ora mencionado decreto. Em 2010, foi aprovada a Constituição da República de Angola que substituiu a Lei Constitucional de 1992. Diferente das anteriores (de 1975 e 1992), esta dedica um ar- tigo às línguas, o 19.º. Estabelece o Português como língua oficial e diz-se valorizar e pro- mover o ensino das línguas nacionais e das principais línguas de comunicação internacio- nal. Nota-se igualmente a alteração da denominação de ‘línguas nacionais’ para ‘línguas de Angola’. Um ano após a aprovação da nova Constituição, foi aprovada a Política Cultural de Angola, através do Decreto Presidencial n.º 15/11, de 11 de Janeiro. Dos distintos ele- mentos relevantes que ela contém, destaquemos os seus objectivos específicos relativa- mente às línguas de Angola: 189

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1. Promover o acesso ao ensino e ao uso das línguas de Angola, corrigindo o défice provocado pela política de assimilação colonial e pela situação de guerra que o país viveu. 2. Utilizar de forma mais assídua e extensa as línguas de Angola na divulga- ção de programas económicos e sociais, quer de instituições públicas, quer de instituições privadas e promover o uso das mesmas em todas as esferas da vida nacional. 3. Prosseguir o estudo científico das línguas de Angola, conferindo-lhes dig- nidade institucional. 4. Fomentar e apoiar a criação literária e artística nos diferentes domínios, em todas as línguas faladas em Angola71. Dos objectivos citados, realçamos algumas observações. A primeira, é alinhada a expressão ‘línguas de Angola’ à Constituição da República, em detrimento da expressão ‘línguas nacionais’ utilizada nos diplomas anteriores. Segunda, é objectivamente reconhe- cida a influência tremendamente negativa da política de assimilação do poder colonial, bem como a da situação de guerra sobre as línguas de Angola. Terceira, é incentivada a (i) di- vulgação de programas económicos e sociais em línguas de Angola, o (ii) uso das mesmas em todas as esferas e o (iii) prosseguimento de estudos sobre as mesmas, bem como (iv) o uso das mesmas na criação literária e artística. Todavia, não fica esclarecido o tipo de dig- nidade institucional que elas devam merecer, visto que não são oficiais nem línguas de ensino, salvo raras excepções na Educação de Adultos, conforme perviamente notado. Inovações importantes foram introduzidas no Ante Projecto de Lei sobre as Lín- guas de Angola que tivemos acesso. Essa proposta de lei foi elaborada em 2019 e tem como objecto “estabelecer os princípios e regras relativos ao uso das Línguas de Angola, a serem observadas pelo Estado Angolano, em todo o território nacional”, de acordo com o seu artigo 1.º. Apesar de continuar a estabelecer o Português como a língua oficial72, (i) deter- mina as línguas de Angola como “veículo cultural e de ensino, língua de comunicação e instrumento de relações comerciais e sociais” (n.º 1 do artigo 9.º do Ante Projecto), (ii) 71Números 2, 3, 4 e 18 dos objectivos específicos da Política Cultural de Angola aprovada pelo Decreto Presidencial n.º 15/11, de 11 de Janeiro. 72 Percebe-se por conformar-se à Constituição da República. 190

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institui dever do Estado e das Autarquias a criação das “condições para que os actos, pro- cedimentos e regulamentos, sempre que necessário, sejam traduzidos da língua portuguesa para as línguas angolanas de origem africana bem como na língua gestual” (n.º 2 do artigo 9.º), bem como (iii) possibilita as línguas de Angola serem “utilizadas nos debates da As- sembleia Nacional, pelo Executivo, pelas Autarquias Locais e nas audiências dos Tribu- nais” (artigo 11.º). Esses são avanços notáveis no que a planificação linguística diz respeito. Se esta proposta for aprovada nos termos em que ela se encontra, há-de reforçar as disposições na Lei n.º 32/20, de 12 de Agosto, que altera a Lei n.º 17/16, de 7 de Outubro, Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino. O n.º 2 do artigo 16.º, por exemplo, esta- belece que o “Estado promove e assegura as condições humanas, científico-técnicas, ma- teriais e financeiras para a expansão e generalização da utilização no ensino, das línguas de Angola, bem como da língua gestual para os indivíduos com deficiência auditiva”. Esta secção do presente texto foi dedicada à revisão das principais iniciativas, com pendor de planificação linguística, aprovadas em decretos e resoluções pelo Governo, desde 1975. A próxima debruçar-se-á sobre o efeito do não ensino das línguas de Angola e suas consequências. Ensino das Línguas de Angola e seus Efeitos A secção anterior a esta debruçou-se exaustivamente sobre os principais actos re- alizados pelo Governo relativamente à política linguística do País. Entre os diplomas legis- lativos vistos, destacamos a Constituição da República de Angola, a Lei n.º 32/20, de 12 de Agosto, e o Ante Projecto sobre as Línguas de Angola, nos quais se estabelecem a pro- moção do ensino das línguas de Angola e as principais línguas de comunicação internaci- onal nas escolas. Esta secção tratará resumidamente de alguns efeitos não apenas da inser- ção das línguas de Angola nos currículos escolares mas também a implementação das mes- mas como línguas de ensino. O n.º 1 do artigo 19.º do Ante Projecto sobre as Línguas de Angola estabelece que “As línguas de Angola devem integrar o sistema de ensino obrigatório, em especial o subsistema de ensino elementar e de alfabetização de adultos, nos termos da lei”. Caso essa norma se efective, poderá haver muitas vantagens, designadamente, o aumento da inclusão, socialização e sucesso escolar, bem como a promoção das identidades e culturas locais. Relativamente à inclusão e socialização, inúmeros estudiosos consideram ser dis- criminatório e inibidor não ensinar as crianças, durante os primeiros anos de escolaridade, 191

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nas suas línguas maternas73 ou primeiras. Draper e Draper (1979) consideram a socializa- ção como um processo de desenvolvimento através do qual as crianças adaptam-se ao meio envolvente durante a aprendizagem. Sendo a língua um dos elementos primordiais da cul- tura, o seu desconhecimento pode dificultar o processo de integração da criança no ambi- ente escolar. Por isso, estes psicólogos de desenvolvimento infantil consideram inibidor o processo de aprendizagem promovido fora do contexto cultural da criança. Os resultados de um processo de socialização desarmonioso entre a escola e a família podem ser mais severos. Garcia (2002, p. 72), citando um estudo realizado nos Estados Unidos com famílias minoritárias, evidenciou rupturas no relacionamento familiar entre pais e crianças quando começaram a frequentar a escola onde a língua de ensino era apenas o Inglês, idioma não utilizado em casa. Por outro lado, muitos pais participantes daquele estudo revelaram apreensão pela perda da língua materna dos seus filhos e a con- sequente perda do património cultural da família. Caso esse estudo seja replicado em mui- tas regiões de Angola, os resultados podem ser idênticos. Incorporar as línguas maternas ou primeiras no sistema de ensino e aprendizagem implica preservar o património cultural previamente mensionado ao longo do presente texto. Isto foi amplamente defendido pelos participantes de um fórum atinente à educação sobre o Renascimento Cultural Africano e os Ideais do Pan-Africanismo realizado em Lu- anda, em 2016. Uma das conclusões deste evento foi instar os Estados Africanos a garan- tirem a inclusão das línguas locais nos currículos escolares para que fossem assegurados os valores culturais e sociais africanos, bem como a promoção do multiculturalismo, mul- tilinguismo e aceitação do outro. Deve ter sido com este sentimento que mais de 73% dos inquiridos pelo INIDE (2019), no âmbito do INACUA74 tenha defendido a inserção de línguas angolanas no novo currículo escolar, devido aos seus efeitos positivos (quando ti- das em conta) ou negativos (quando não consideradas). Por outro lado, é necessário agir agora para que seja evitado o que Smith et al. (2006, p. 339) denominam de ‘bilinguismo subtractivo’, aquele que se manifesta quando uma criança começa a perder proficiência da sua ‘desvalorizada’ primeira língua fruto de uma segunda língua imposta pelo sistema de educação e ensino. A não institucionalização do ensino em línguas Angolanas também pode aumentar o insucesso escolar, conforme muitos especialistas nestas matérias afirmam. Diarra (2003, 73Para o presente texto, utilizamos a expressão ‘língua materna’ para nos referirmos à primeira língua que uma criança começa a falar no seio familiar (Gass, Behney & Plonsky, 2013; Richards & Schmidt, 2002). 74 Inquérito Nacional de Adequação Curricular em Angola. 192

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p. 340-341, citado em UNICEF Angola, 2016, p. 2) atribui os fracos resultados da apren- dizagem da Língua Portuguesa a um dos seguintes factores, “a fraca competência linguística de muitos professores e alunos, ou a confusão entre as línguas nacionais e o Português a nível da fonética, sintática e semântica. Esta confusão tende a reduzir o nível de aprendizagem e notavelmente a qualidade de ensino”. Na mesma perspectiva mas holisticamente, Garcia (2002, p. 39) afirma categorica- mente que um sistema que conduz o processo de ensino-aprendizagem numa língua estra- nha para o aluno, constitui um “cenário montado para o insucesso [escolar do mesmo] independente- mente das aptidões intelectuais que esses alunos possam possuir”. Por isso, as afirmações da ex-Mi- nistra da Educação, Ana Paula Tuavanje Elias, conforme apresentadas pelo INIDE (2020, p. 17-18), têm razão de ser: “O sucesso do ensino e da aprendizagem do alfabeto, na nossa realidade educativa, depende, em grande, medida, do atendimento às especificidades soci- oantropológicas da população, isto é, a valorização dos saberes e das práticas locais (…)”. Considerações Finais Ao longo do presente texto, verificamos que Angola apresenta um mosaico mul- tilingue, com mais de 40 idiomas (Augusto 2011), no qual a maioria (71%) dos angolanos fala o Português em casa (INE, 2016; Nag, 2017). A hegemonia do Português resultou, em grande medida, da política linguística implementada pelo poder colonial que procurou di- luir o capital cultural africano dos angolanos nos valores portugueses, começando pela des- valorização das línguas de Angola (Ferreira, 1974, p. 85). Segundo Augusto (2011) o poder que sucedeu o colonial herdou a mesma ideo- logia ao manter o Português como a única língua hegemónica e de instrução. Entretanto, o Governo Angolano mostrou preocupação com as línguas de Angola, desde cedo, através de vários actos, nomeadamente, (i) criação do Instituto Nacional de Línguas em 1978, (ii) a aprovação da adesão de Angola à Carta Cultural de África em 1984, (iii) a criação do Instituto de Línguas Nacionais em 1985, (iv) a aprovação, a título experimental, dos alfa- betos de 6 línguas nacionais em 1987, (v) a aprovação da Lei de Bases do Sistema de Edu- cação e Ensino em 2001, (vi) a aprovação da Lei do Património Cultural em 2005, (vii) a aprovação da Constituição da República de Angola em 2010, (viii) a aprovação da Política Cultural de Angola em 2011, bem como (ix) a elaboração do Ante Projecto de Lei sobre as Línguas de Angola, entre outros, são indicadores evidentes desta preocupação. Apesar de todas estas medidas legislativas, não existe alguma língua de Angola que ascendeu à categoria de oficial ou de instrução, excepto a possibilidade de serem utili- zadas na Educação de Adultos, de acordo com a Constituição da República. Entretanto, o 193

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Ante Projecto de Lei sobre as Línguas de Angola abre alguma perspectiva. Caso esta pro- posta de lei seja aprovada, permitirá a inserção destas línguas nos currículos escolares não só como línguas a ensinar, mas também como línguas de ensino, e de uso na administração autárquica e nos tribunais. Se a aprovação do ante projecto de lei que referimos constitui uma boa perspec- tiva, ela, em si, acarreta muitos desafios. Um destes desafios está relacionado com as fases da planificação para que uma determinada língua atinja, com sucesso, o estatuto de oficial ou nacional75 (Holmes, 2008; Ngcobo, 2007). As questões desafiantes que colocamos são: (i) Num mosaico linguístico com mais de 40 idiomas (Augusto 2011), quais línguas ou variantes selecionar? (ii) Quais variantes a padronizar e com que argumentos de razão? (iii) como constituir o corpus linguístico dessas variantes e (iv) como encorajar as pessoas a se orgulharem desta variante padronizada e oficializada de modo que elas a possam ensinar e aprender efectivamente? Portanto, o pertinente desafio da “inserção, a partir do Ensino Primário, das disciplinas de Línguas de Angola de origem africana (…) no currículo nacional a implementar-se no ano lectivo de 2023”, de acordo com Santos (2020, p. 24), não deve ignorar as questões acima colocadas. Caso contrário, concordaremos com Augusto (2011) segundo o qual tem havido incoerência en- tre a vontade de se inserir as línguas de Angola no currículo escolar e as acções práticas de sua implementação. Referências Bibliográficas: 1. Angola. Constituição da República, (2010). 2. Angola. Decreto n.o 40/85, de 18 de Novembro, (1985). 3. Angola. Decreto n.o 55/09, de 28 de Setembro, (2009). 4. Angola. Decreto n.º 62/78, de 6 de Abril, (1978). 5. Angola. Decreto Presidencial n.º 15/11, de 11 de Janeiro, (2011). 6. Angola. Lei n.º 13/01, de 31 de Dezembro, (2001). 7. Angola. Lei n.o 14/05, de 7 de Outubro, (2005). 8. Angola. Lei n.º 32/20, de 12 de Agosto, (2020). 9. Angola. Resolução n.o 3/87, de 23 de Maio, (1987). 10. Angola. Resolução n.o 8/84, de 18 de Julho, (1984). 11. Ante Projecto de Lei sobre as Línguas de Angola, (2019). 75 Para o presente texto, a expressão ‘nacional’ é utilizada para designar transversalidade ou além de um ou mais gruposetno-linguísticos (Richards& Schmidt, 2002). 194

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12. Augusto, A. F. (2011). Assessing the insertion of the Angolan indigenous langua- ges into the education system: A language policy perspective [Avaliando a inserção das línguas indíginas angolanas no sistema de educação: Uma perspectiva da polí- tica linguística]. Kulonga: Revista de Ciências da Educação e Estudos Multidisci- plinares (31-42). Luanda: ISCED. 13. Draper, M. W., & Draper, H. E. (1979). Caring for Children [Cuidando de crian- ças]. (Ed. rev.). Califórnia: Glencoe Publishing Company. 14. Elias, A. P. T. (2020). Introdução. Em INIDE-MED, Jango de Saberes Curricula- res: Um olhar sobre o ensino e a aprendizagem do alfabeto em Angola (17-20). Luanda: Mensagem Editora. 15. Ferreira, E. S. (1974). Portuguese Colonialismo in Africa: The End of an Era [Co- lonialismo português em África: o fim de uma era]. Recoperado Recuperado a partir de https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000011345 16. Garcia, E. (2002). Student Cultural Identity: Understanding and Meeting the Chal- lenge [ Identidade cultural do estudante: Compreendendo e encarando o desafio]. (3.ª ed.). Boston: Houghton Mifflin Company. 17. Homes, J. (2008). An Introduction to Sociolinguistics [Introdução à Sociolin- guística] (3.ª ed.). Longman: Pearson Education Limited 18. Instituto Nacional de Estatística. (2016). Recenseamento Geral da População e Ha- bitação -2014: Resultados Definitivos. Luanda: Autor. 19. Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento da Educação –MED. (2019). Programa de Adequação Curricular 2018-2015: Resultados do Inquérito Nacional de Adequação Currilar em Angola. Luanda: Autor 20. Nag, S. O. (2017, Agosto). What languages are spoken in Angola? [Que línguas são faladas em Angola?]. Society. Recuperado de https://www.worldatlas.com/articles/what-langua- ges-are-spoken-in-angola.html 21. Ngcobo, M. (2007). Language Planning, Policy and Implementation in South Africa [Planificação linguistic, política e implementação na África do Sul]. Re- searchGate, 1-23. Recuperado a partir de https://www.researchgate.net/publica- tion/215896353 22. Richards, J. & Schmidt, R. (2002). Longman Dictionary of Language Teaching and Applied Linguistics [Dicionário Longman do ensino de lingual linguas e Linguística Aplicada]. (3.ª ed.). Londres: Pearson Education Ltd. 23. Santos, H. P. F. (2020). Estratégias metodológicas do ensino e da aprendizagem do alfabeto: Uma perspectiva histórica e de mudança. Em INIDE-MED, Jango de Sa- beres Curriculares: Um olhar sobre o ensino e a aprendizagem do alfabeto em Angola (24-46). Luanda: Mensagem Editora. 195

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24. Smith, T. E. C., Polloway, E. A., Patton, J. R., & Dowdy, C. A. (2006). Teaching Students with Special Needs in Inclusive Settings [Ensinando estudantes com ne- cessidades especiais em contextos inclusivos]. (3.ª ed.). Nova Jersey: Pearson Edu- cation Inc. 25. Spolsky, B. (1998). Sociolinguistics [Sociolinguística]. Oxford: Oxford University Press. 26. UNICEF ANGOLA. (2016). The Impact of Language Policy and Practice on Chil- dren´s Learning: Evidence from Eastern and Southern Africa [O impacto da polí- tica linguística e prática na aprendizagem das crianças: Evidência da África oriental e ocidental]. Recuperado a partir de https://www.unicef.org/esaro/ 27. Yule, G. (2006). The Study of Language [O estudo da línguagem]. (3.ª ed.). Cam- bridge: Cambridge Univerty Press. 196

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O papel da Literatura na difusão da língua portuguesa 197

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A Dialéctica da Literatura: da Proficiência Lin- guística à Distensão Humanista da Consciência José Luís Mendonça O escritor é também “aquele que é capaz de engravidar os outros de sentimento e encantamento” Mia Couto RESUMO O processo de comunicação oficial do Estado angolano, nos seus actos administra- tivos públicos, tem revelado, ao longo dos últimos 30 anos, um processo gradativo de de- generescência linguística com um acento tónico impositivo, adverso à afectividade mesmo nos órgãos mais próximos do utente. Visto que a Língua é o principal denominador comum da Cultura de um povo, podemos classificar esse processo de comunicação oral e escrito como um problema eminentemente cultural, que restringe certos direitos do utente e con- funde pela resignação as expectativas da maioria da população. O nível de progresso cultural e socio-económico de uma nação é passível de ser medido, também, através da variável cultural “proficiência linguística”, na sua abrangência polissémica de clareza e eticidade, cuja fonte primeira é o sistema de Educação e Ensino. Tendo em vista que a recepção da Literatura pela mente humana recria uma cátedra de raciocínio auto e hetero-dialógico com uma dupla sequência pedagógica – de ferramenta de afinação linguística a distensor de consciência humanista – apontam-se caminhos para o efectivo fomento da Literatura como factor criativo da Arte de Bem Falar e Bem Fazer Angola. Palavras-chave: comunicação oficial; proficiência linguística; modelo de Ensino; fomento da Literatura; consciência humanista. ABSTRACT The official communication process of the Angolan State, in its public administra- tive acts, has revealed, over the last 30 years, a gradual process of linguistic degeneration with an imposing tonic accent, adverse to affectivity even in the bodies closest to the user. Since Language is the main common denominator of the Culture of a people, we can clas- sify this process of oral and written communication as an eminently cultural problem, which restricts certain rights of the user and confuses the expectations of the majority of 198

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the population with resignation. A nation's level of cultural and socio-economic progress can be measured, also, through the cultural variable “linguistic proficiency”, in its poly- semic scope of clarity and ethics, whose primary source is the Education and Teaching system. Bearing in mind that the reception of Literature by the human mind recreates a chair of self and hetero-dialogical reasoning with a double pedagogical sequence - from a linguistic tuning tool to a humanist awareness spreader - ways are pointed out for the ef- fective promotion of Literature as a factor design of the Art of Well Talking and Well Doing Angola. Keywords: official communication; language proficiency; Teaching model; promo- tion of Literature; humanist conscience. INTRODUÇÃO Quem desce a estrada do Hospital Maria Pia em direcção ao Benfica, depara-se com o Morro da Samba. E o espectáculo mais curioso é o contraste entre as moradias precárias de blocos sem reboque e chapas de zinco e a floresta de antenas parabólicas que enfeitam a pequena comunidade lá no alto, como se fossem copas de árvores de alumínio. O subde- senvolvimento deixou-se possuir pelo espectro da intrusão digital. Se alguém fizer um es- tudo da comunidade do Morro da Samba, encontrará um nível de vida precário como as moradias, crianças sem o domínio da língua oficial, mas um aparelho de televisão em cada lar. O entretenimento dominante é o apego às novelas. A televisão não transmite, de forma regular e com efeitos práticos de normalidade, nenhum programa de ensino à distância, que aproveite as potencialidades deste meio universalmente aceite como uma espécie de altar familiar, em torno do qual as famílias sacralizam o moderno deus chamado novela. As moradias estão tão apertadas umas às outras pelo processo desordenado do “tunga ngó” (constrói só), que nem espaços existem para as crianças e jovens jogarem futebol. Para este grupo etário, principalmente os rapazes, há a música altíssima no fim de semana. Se visi- tarem o interior das casas à procura da fonte do saber universal, os livros, encontrá-los-ão no quarto de dormir, arrumados com a roupa. O livro, símbolo da escola, o mestre-mudo, não faz parte das preocupações ou ocupações da maioria das crianças e jovens. A infância e a juventude angolana apresentam o sintoma da aversão à leitura e à escrita, ao estudo ligado ao desenvolvimento humano. Esta é a doença infantil do Ensino em Angola, carac- terizada pelo síndrome da deficiência de literacia. Em decorrência do espectro acima decomposto, a transmissão oral e escrita da lín- gua portuguesa em Angola, na geografia humana da Administração Pública, manifesta-se 199

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num estado de desordem e pobreza estrutural, que até mesmo alguns dirigentes e adminis- tradores de instituições púbicas apresentam um nível de deficiência morfo-sintáctica in- compatível com a posição que ocupam e com o nível de estudos exibidos nas suas biogra- fias. Porém, o aspecto mais grave é o grau de mimese do português da rua que se revela a nível das instituições do Ensino e dos órgãos da Comunicação Social pública. Uma coisa é a mutação natural que qualquer língua sofre, no decurso da sua função de principal meio de comunicação numa dada comunidade de falantes: qualquer língua deste Mundo apresenta diversos desvios de propagação oral e escrita, conforme as eloquên- cias do meio social. Outra, totalmente diferente, é a comunicação oficial do Estado, em todos as esferas da Administração Pública, incluindo a Escola: neste amplo espaço público os servidores têm necessariamente de permutar discursos no nível padronizado da língua consagrada pela Constituição como língua oficial. Ora, o discurso oral e escrito emanado da Administração Pública revela, salvo raras excepções, um nível de deficiência fonética e morfo-sintáctica inconsistente com o precei- tuado no Artigo 19.º da Constituição da República de Angola, que determina: “1. A língua oficial da República de Angola é o português. 2. O Estado valoriza e promove o estudo, o ensino e a utilização das demais línguas de Angola, bem como das principais línguas de comunicação internacional.” A expressão “o Estado valoriza e promove o estudo e o ensino das demais línguas” contém implícita a incumbência de o Estado valorizar e promover o estudo e o ensino da língua oficial: o português. Angola é um país com cerca de meio século de independência. As circunstâncias derivadas da geopolítica global, da histórica formatação residual multi-cultural e étnica do Estado, e da conflitualidade inerente à sociedade humana redundaram num ambiente esco- lar de sub-aproveitamento do livro, associada a uma incipiente indústria gráfica. Esta realidade transitória reflecte-se nos baixos índices de literacia dos utentes do serviço nacional de Educação, com diversas gradações, do ensino de base ao superior. O português falado e escrito em Angola acumulou cerca de 40 anos de omissão pedagó- gica no ensino da língua veicular (e por arrasto, das línguas bantu), a começar pelo nível do ensino de base. Um aspecto muito peculiar desse estado de expressão do português é o facto de haver, na esfera da Administração Pública (escolas, meios de comunicação estatais, repar- tições oficiais) tantos modos de escrever a língua veicular, quantos os níveis de aquisição de (in)competência linguística pelos utentes. A fala também absorve esta fenomenologia 200

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do discurso, porém a plurimorfose linguística na oralidade é universal, esmaltada no tempo e perfeitamente inócua. MUDANÇA CULTURAL A variável cultural “proficiência linguística”, na sua abrangência polissémica de clareza e eticidade, permite-nos aferir sobre o nível de progresso cultural e socio-econó- mico do país. Notícia publicada no jornal Vanguarda, a 28 de Novembro de 2019, cita o representante residente do Banco Mundial em Angola, Olivier Lambert, dizendo que o potencial médio de um quadro nascido em Angola é de 30%. Lambert explicou que a qualidade do Ensino em Angola é tão baixo que “um aluno que frequenta a escola durante 8 anos, em termos práticos, é como só estivesse frequentado dois ou três anos e os outros 5 anos contam apenas como presença”. O final da referida notícia insere um conselho do economista-chefe do Standard Bank para Angola e Moçambique. Segundo ele, a melhoria da qualidade do ensino não depende só de investimentos, mas também de uma mudança cultural. “É preciso cavar mais fundo”, disse Fausio Mussa76. A independência de Angola, forjada através de uma prolongada guerra civil, criou fissuras no tecido social e económico, a mais grave das quais é a indelicadeza do Estado no trato com os utentes dos serviços públicos. Muitas vezes, o discurso que transpira para fora do pulmão administrativo é demasiado autoritário e até agressivo. Outras vezes, o utente do serviço é bafejado pelo silêncio tumular. Certas entidades do nosso Estado, quase não têm soluções discursivas para atender um simples pedido de um cidadão, de viva voz (via telefone) ou por ofício. Muitos antro- pónimos de raiz bantu e até de origem portuguesa são avassaladoramente deturpados atri- buindo ao cidadão um nome que não tem qualquer significado cultural ou correspondência lexical. Esta indelicadeza a que o Executivo submete o cidadão constitui uma aberração histórico-cultural. A proposta de mudança cultural avançada pelo economista-chefe do Standard Bank é pertinente e acertada. A linguagem do servidor do Estado, na atmosfera do seu munus publicum, é reflexo do próprio sistema de Ensino que o país tem. Por isso, o ponto de partida para a mudança 76 “Um aluno em Angola estuda 8, mas só aprende o equivalente a 3 anos”, Quingila Hebo /Vanguarda /28 Nov. 2019. 201

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cultural é o sistema de Educação e Ensino. Estamos a falar daquele mínimo razoável de saberes e conhecimentos que o cidadão deve adquirir na instituição púbica chamada escola. Esse mínimo razoável que lhe permitirá atender bem o público no futuro emprego começa com a competência linguística basilar ensinada na escola primária. O cidadão saído do primeiro nível do ensino de base terá de ser capaz de ler uma notícia de jornal e de realizar cálculos aritméticos simples, bem como ter uma noção sumária da história de Angola. Este conjunto de saberes constitui a primeiro degrau da Cultura Geral. É este primeiro degrau – com realce para a proficiência linguística – que irá facilitar o aumento da aquisição de outros saberes e competências noutros níveis de ensino. A DIMENSÃO DA LITERATURA Neste primeiro degrau, terá a chamada literatura criativa alguma função e importância? Eline Fernandes de Castro concorda que “Hoje a dimensão de literatura infantil é muito mais ampla e importante. Ela proporciona à criança um desenvolvimento emocional, social e cognitivo indiscutíveis. Segundo Abramovich (1997) quando as crianças ouvem histórias, passam a visualizar de forma mais clara, sentimentos que têm em relação ao mundo. (...) É através de uma história que se pode descobrir outros lugares, outros tempos, ou- tros jeitos de agir e de ser, outras regras, outra ética, outra óptica... É ficar sabendo história, filosofia, direito, política, sociologia, antropologia, etc. sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem cara de aula”. A autora brasileira admite, no entanto, que “O que se percebe é que a literatura, bem como toda a cultura criadora e questionadora, não está sendo explorada como deve nas escolas e isto ocorre em grande parte, pela pouca informação dos professores. A formação académica, infelizmente não dá ênfase à leitura e esta é uma situação contra- ditória, pois segundo comentário de Machado “não se contrata um instrutor de natação que não sabe nadar, no entanto, as salas de aula brasileira estão repletas de pessoas que apesar de não ler, tentam ensinar”. (CASTRO, 2005) A nosso ver, a problemática do fenómeno da desleitura literária em Angola começa no ensino primário. Ao contrário do que muita gente - escritores incluídos - supõe, a obra literária escrita por um autor para ser lida por crianças, essa obra em si mesma, integra o segundo grau da Literatura Infantil. Na prática educativa, o manual de leitura escolar (Língua Portuguesa) representa o primeiro grau e é esse que formata o conceito prático e 202

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utilitário de Literatura infantil. A obra literária constitui apenas um agregado, um elemento colateral à iniciação na literacia e aquisição de competência linguística da criança. Se o professor ou educador não estiverem habilitados, pela formação académica, ou pela auto- didáctica, a esmiuçar de forma exaustiva o manual de Leitura (livro de Língua Portuguesa), não adianta agregar a obra literária completa de um escritor. Não resulta. Não estamos a negar a importância de um cidadão ler estórias infantis desde tenra idade. Apenas, estamos a situar esse processo de leitura no seu devido lugar. O caminho para se chegar ao ponto óptimo da literacia no seio dos alunos do I nível do Ensino de Base passa, incontornavelmente, pela literacia literária (parece redundância, mas não é!) dos professores desse e dos níveis subsequentes. Um professor de língua por- tuguesa que não lê é um zero à esquerda em pedagogia. É um equívoco de todo o tamanho continuar a pugnar pela criação de hábitos de leitura no seio da camada infantil e infanto-juvenil, como se esse hábito resultasse do sim- ples esforço de colocar livros e mais livros nas bibliotecas escolares e municipais. Algum adulto, algum educador terá de ler esses livros, em primeira mão. Portanto, o Plano Nacional de Leitura deverá contemplar, como prioridade, a leitura por parte dos adultos: professores e encarregados de educação. Talvez esta franja seja mais difícil de arregimentar para o hábito da leitura, porém, a leitura por parte dos professores é inadiável e bem possí- vel: é da responsabilidade directa do Ministério da Educação. Faz parte da sua missão ad- quirir obras literárias de diversos géneros e pôr os professores a lê-las, ao menos no Ma- gistério. Cabe à escola promover momentos de leitura em que o aluno crie laços com o texto e aprecie as suas características em si mesmas. É esta leitura estética do texto literário, a leitura por prazer, que criará leitores para a vida. (OLIVEIRA, 2016) A LEITURA NO CONTEXTO ESCOLAR Quais as ferramentas pedagógicas que permitem à escola promover a leitura estética do texto literário, a leitura por prazer, que criará leitores para a vida? A estratégia de leitura no contexto escolar compreende a prática de leitura do texto na sala, como parte integrante do plano de aula. Segundo Paulo Freire, “a leitura em sala de aula é de extrema importância, pois este passo é determinante para a formação de leito- res.” (GAMA, 201) Na unidade B (Leitura na Escola) do manual brasileiro de Metodologia do Ensino 203

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de Língua Portuguesa e Literatura, lemos que “o leitor proficiente é aquele que (...) conse- gue fazer uso dos “dez direitos imprescritíveis” que lhe cabem: “O direito de não ler. O direito de pular as páginas. O direito de não terminar de ler o livro. O direito de reler. O direito de ler não importa o quê. O direito ao “bovarysmo” (doença textualmente transmissível). O direito de ler não importa onde. O direito de “colher aqui e acolá”. O direito de ler em voz alta. O direito de se calar.” Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Brasil apresentam algumas sugestões para que a escola favoreça o trabalho com a leitura: 1. A escola deve dispor de uma biblioteca em que sejam colocados à disposição dos alunos, inclusive para empréstimo, textos de géneros variados, materiais de consulta nas diversas áreas do conhecimento, almanaques, revistas, entre outros. 2. É desejável que as salas de aula disponham de um acervo de livros e de outros materiais de leitura. Mais do que a quantidade, nesse caso, o importante é a variedade que permitirá a diversificação de situações de leitura por parte dos alunos. 3. O professor deve organizar momentos de leitura livre em que também ele próprio leia, criando um circuito de leitura em que se fala sobre o que se leu, trocam-se sugestões, aprende-se com a experiência do outro. (...) 4. O professor deve permitir que também os alunos escolham as suas leituras. Fora da escola, os leitores escolhem o que lêem. É preciso trabalhar o componente livre da lei- tura, caso contrário, ao sair da escola, os livros ficarão para trás. Mais do que a mobilização para aquisição e preservação do acervo, é funda- mental um projecto coerente de todo o trabalho escolar em torno da leitura. Todo o professor, não apenas o de Língua Portuguesa, é também professor de leitura. Uma das sugestões apontadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais ressalta a questão da avaliação da actividade de leitura: “Ler por si só já é um trabalho, não é 204

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preciso que a cada texto lido se siga um conjunto de tarefas a serem realizadas”. As- sim, o professor terá em mente que a actividade de leitura não deve ser realizada com in- tuito único de avaliar o aluno, seja através de fichas, seja através de resumos, resenhas, o que transformará a actividade que poderia ser prazerosa e eficiente no sentido de formar leitores em uma tarefa desinteressante e desmotivadora. De acordo com Kleiman (2008, p. 23), “[...] a insistência no controle diminui a semelhança entre a leitura espontânea, do quotidiano, e a leitura escolar, ajudando na construção de associações desta última com o dever e não com o prazer”. (BRASIL, 2010). Quando a leitura do texto ficcional é abordada como tarefa coerciva, vincada pelo autoritarismo do professor, destroem-se aí as possibilidades de fruição do texto literário e o gosto pela leitura. Para o efeito, sugere-se externalizar o plano de aula para além das fronteiras da sala, com visitas a livrarias, bibliotecas, associações culturais, encontros com escritores e outras estratégias criativas que levem o aluno ao fetiche pelo livro e pela fonte da leitura e à escolha individual do título que lhe dê mais prazer de ler. Devemos admitir que os seres humanos são únicos e diferentes entre si e o livro que agrada a uma pessoa não agrada necessariamente a outra. Por outro lado, muitas obras, mesmo consideradas clássicas, nem sempre atraem o estudante que não herdou o hábito de ler por prazer. O VÁCUO NA OFERTA DO LIVRO Em Agosto de 2018, o Presidente João Lourenço criou, através do Despacho Presi- dencial n.º 123/18, de 11 de Setembro, uma comissão coordenada pela então ministra da Cultura, com a tarefa de “propor e implementar o Plano Nacional de Leitura (que já tinha uma longa história de letargia de sete anos do Decreto Presidencial n.º 105/11 de 24 de Maio), com o envolvimento dos departamentos ministeriais competentes, assim como apoiar iniciativas que visam conferir ao livro infantil prioridade na política livreira, desde o processo de criação ao de distribuição”. O Decreto Presidencial n.º 105/11 aprovou a Política Nacional do Livro e da Pro- moção da Leitura pois que “o Executivo Angolano reconhece a imperiosa necessidade de implementação de mecanismos para o fomento da expansão do livro e da leitura, a nível nacional, de forma coordenada. Segundo o documento presidencial, “A Política Nacional do Livro e da Leitura visa a mobilização de recursos e a articulação de experiências e esforços do Executivo e da 205

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sociedade civil visando estabelecer prioridades e desenvolver programas que favoreçam a expansão do livro e da leitura, estruturar o mercado editorial e livreiro e fomentar as activi- dades comerciais e industriais relacionadas com o livro.” Lê-se ainda que “a Leitura é uma responsabilidade de todos. O Executivo e a soci- edade civil, articulando-se, devem viabilizar as condições para que os cidadãos, através do livro e da leitura, usufruam do património cultural e social e alcancem o conhecimento científico-técnico que favoreça o desenvolvimento económico, político e social (e que) o livro deve ser um bem a todos acessível e deve constituir um vector fundamental na luta contra o analfabetismo e na promoção do conhecimento, em particular nas zonas rurais. Quanto à implementação da Política Nacional do Livro e da Leitura, diz o referido diploma que o primeiro actor social é a Escola. “A escola, além de ser um centro de aqui- sição de conhecimentos, deve constituir um meio privilegiado de contacto do aluno com o livro e de criação do gosto pela leitura. Nestes termos, deve-se: a) Revalorizar o livro e a leitura como elementos básicos de transformação social, pelo que, todas as escolas devem possuir uma biblioteca devidamente apetrechada e com pessoal designado, devidamente capacitado; b) Introduzir inovações nos currículos de formação dos docentes que lhes permitam transformar a sua prática pedagógica em relação ao livro, à leitura e à escrita; c) Desenvolver programas de aprendizagem, actualização e aperfeiçoamento diri- gidos a professores e bibliotecários escolares sobre a natureza e desenvolvimento dos pro- cessos de leitura e escrita em crianças e jovens; d) Desenvolver em salas de leitura e bibliotecas escolares acções de estímulo à lei- tura e à escrita.” Para o acompanhamento da implementação da Política Nacional do Livro e da Lei- tura foi criada uma Comissão Nacional Multi-Sectorial, através do Despacho Presidencial n.º 123/18, de 11 de Setembro, sob tutela do ministério da Cultura, “tendo em conta que a implementação da Política do Livro e da Promoção da Leitura constituem um compromisso e uma prioridade do Estado para com os cidadãos”. A Comissão criada integra sete ministérios, dois secretários de Estado e 12 outros representantes do Estado e da Sociedade Civil. E tem um mandato com a duração de cinco (5) anos contados a partir da data da sua entrada em vigor. Todas essas estratégias são muito bonitas no papel. Porém, na prática docente em Angola, afigura-se dificílimo realizar o plano de ensino – assente na dissecação mínima de 206

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um autor por cada turma – simplesmente por escassez de livros à venda no mercado. É desta constatação que devemos partir. Ninguém pode pretender pôr um automóvel a circu- lar na estrada sem combustível à disposição nas bombas. Por isso é que até à data, nada se implementou com base nos referidos diplomas presidenciais. Ninguém pode preten- der um Ensino de qualidade sem livros em abundância nas livrarias, quiosques e papelarias do centro às periferias, e nos supermercados que agora tomaram o lugar das livrarias. A maior decepção, o maior constrangimento, na experiência de qualquer professor de Língua Portuguesa em Angola, acontece quando não consegue realizar o plano de ensino – ainda que assente na dissecação de um único autor por cada turma – simplesmente por escassez de livros no mercado. Provavelmente, é devido à baixa oferta que os livros cus- tam os olhos da cara. É desta constatação que qualquer acção concertada pelo Governo deve partir. Ninguém pode pretender ter um Ensino de qualidade sem livros em abundância nas livrarias, quiosques e papelarias do centro às periferias, e nos supermercados que agora tomaram o lugar das livrarias. Angola tem escassez de livros no mercado e uma irrisória rede de livrarias e locais de venda a retalho do livro nas periferias. É no serviço de Educação pública onde se localiza o público-alvo por excelência do produto chamado livro, com uma estimativa de 10 milhões de potenciais leitores de litera- tura diversificada (livro didáctico, antologias de textos, e a literatura artística), o que perfaz numa previsão por defeito de 50 milhões de livros-ano, repartidos pelas disciplinas do cur- rículo escolar. Deste número, se considerarmos apenas 1 milhão de obras literárias para o universo estudantil, ensino primário, médio e universitário, teremos uma dinâmica editorial só relativa ao livro de ficção e poesia e um rendimento comercial e editorial vantajoso tanto para os autores como para os produtores, bem como uma alavanca a agregar ao desenvol- vimento económico. Não se esqueça, porém, que um factor que provoca a queda do preço do livro, para além da oferta massiva, é o renascimento da indústria do papel que já existia no passado colonial (Fábrica de Papel e Celulose do Alto-Catumbela). O mais dramático é que o ministério da Cultura disponibilizou atempadamente 142 milhões de kwanzas para a elaboração do hino dos 45 anos de independência, valor esse que daria para imprimir mais de 140 mil exemplares de obras literárias, com retorno finan- ceiro para o promotor editorial. Essa especificidade angolana – o vácuo de literatura impressa e de políticas disse- minadoras e promotoras do livro – é agravada pelo contexto global dominado pela hiper- mídia digital, com novos suportes de leitura, para além do papel impresso e do seu fruto 207

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civilizacional, o Homo Zappiens77. Todo esse conjunto de condicionalismos histórico-culturais e económicos situam o público leitor angolano, num cálculo a priori, à volta dos 0,04% da população. É lícito, pois, perguntarmo-nos em que medida o Mundo da cultura, na qual se insere a literatura angolana, exerce uma influência de realce sobre o Mundo da auto-consciência dos angola- nos. Segundo a Market Research World, o país que mais lê no mundo é a Índia, que ocupa essa distinção desde 2005. Os indianos dedicam, em média, 10 horas e 42 minutos semanais para ler. Os seguintes três postos também são ocupados por países da Ásia: Tai- lândia, China e Filipinas. Quanto à América Latina, o país mais leitor é a Venezuela, no 14º lugar. Depois vem Argentina (18º), México (25º) e Brasil (27º) com médias de leitura que rondam menos da metade de tempo que dedicam na Índia. Os franceses lêem 21 livros por ano, cinco vezes mais que brasileiros. O livro lidera a lista de presentes preferidos dos franceses. No pólo oposto, está a sociedade angolana. A população angolana está a tornar-se ágrafa: há uma cada vez maior rejeição inconsciente do livro em geral, e do livro artístico- literário. A nossa experiência da docência universitária, mostrou-nos que a maioria dos nossos estudantes apresentam profundas debilidades na estrutura e projecção verbal do pensamento. Os estudantes carecem de técnicas de Organização do Pensamento e de um Método eficaz de Estudo. O estado da transmissão oral e escrita da língua portuguesa em Angola é de tal desordem e pobreza estrutural, que justifica a introdução temporária e urgente de um ano propedêutico no Ensino Superior e a revisão do currículo escolar nos níveis abaixo dele. Estamos a propor ao ministério do Ensino Superior que aceite a nossa proposta de criação de um ano propedêutico, porque o estado da língua, que a nossa Constituição con- sagrou no artigo 19º como língua oficial, encontra-se numa situação lastimável de coma didáctico a todos os níveis. Os estudantes universitários não conseguem elaborar as suas teses de licenciatura com qualidade, devido a esta deficiência linguística. Os jovens que saem da universidade e pretendem ser escritores não sabem sequer a diferença entre língua corrente e língua literária. 77 Nome proposto por Wim Veen e Bem Vrakking (2009) para aqueles que nasceram a partir do início da década de 1990 – “primeiros seres digitais”. 208

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Os estudantes entram para a universidade já “aleijados” mentalmente no que toca à língua portuguesa. Portanto, entre perder um ano com o ensino exclusivo do português a ter de entregar ao Estado um cidadão deficiente, melhor é perder esse ano e ganhá- lo para a qualidade da Administração Pública e Privada e ter gente melhor preparada para a elaboração de um discurso angolano eficiente, com a introdução de um Ano Prope- dêutico exclusivamente dedicado à Língua Portuguesa. A ARTE DE BEM FALAR E BEM FAZER ANGOLA Durante os 27 anos de guerra, o Estado deu muito pouca atenção e dinheiro para o sector da Cultura, no geral, e para a Literatura, em particular, aqui incluída a promoção das línguas nacionais. Esta realidade histórica foi constatada pelo Mais Alto Mandatário, José Eduardo Dos Santos, aos 11 de Setembro de 2006, na sessão de abertura do III Simpósio sobre Cultura Nacional, subordinado ao lema \"Forja da Angolanidade \", quando disse: “Pronunciei-me poucas vezes sobre este tema. A minha principal atenção foi dedicada às inúmeras prioridades que, no plano político, militar, económico e social, todos tivemos de assumir para defender a Pátria angolana das agressões externas e para manter a integridade do nosso território dentro das fronteiras estabelecidas. (...) Conquistada a paz, garantido o regresso organizado das populações dispersas pelo país ou refugiadas no exterior aos seus locais de origem, feita a reconciliação nacional entre todos os angolanos, lançadas as bases da reconstrução, da estabilização e do cresci- mento económico do país, estamos hoje em condições de trabalhar com maior dina- mismo para o desenvolvimento da Cultura nacional.” Só que, “conquistada a paz, garantido o regresso organizado das populações disper- sas pelo país ou refugiadas no exterior aos seus locais de origem, feita a reconciliação na- cional entre todos os angolanos, lançadas as bases da reconstrução, da estabilização e do crescimento económico do país”, não se vislumbra nenhum passo verdadeiramente só- lido que tenha criado, nestes 17 anos de paz, “condições de trabalhar com maior di- namismo para o desenvolvimento da Cultura nacional”, principalmente na criação dos hábitos de leitura nas escolas, nem da constituição e execução de um tão propa- lado Plano Nacional de Leitura, devidamente legislado há anos, mas que nunca foi apli- cado. 209

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Quem dá aulas de língua portuguesa na academia fica abruptamente desesperado, com 99,9% de alunos que nunca leram uma obra de Wanhenga Xitu, ou de Óscar Ribas, nem de qualquer outro clássico da literatura angolana. É a maior vergonha do nosso Ensino! Fernando Fraga de Azevedo, professor e pesquisador do ensino da língua materna em Portugal, refere que o texto literário partilha com os leitores, independentemente da idade, valores de natureza social, cultural, histórica e/ou ideológica, por ser uma rea- lização da cultura e estar integrado num processo comunicativo. (AZEVEDO, 2006, p. 19). A sensibilidade estética representa a principal função do texto literário: desenvolver no indivíduo um olhar atento e sensível ao que nos rodeia. Isso é, enfim, reconhecer o papel humanizador da literatura, como destacam as palavras de António Cândido (2006, p. 62): “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”. No que diz respeito ao papel da escola na formação do leitor literário, Tânia Rösing (2009, p. 136) destaca que [...] o esforço deve direccionar-se para o convencimento dos docentes acerca dos benefícios da leitura literária: os textos literários passam a constituir cenários com os quais se pode reflectir sobre o que somos, sobre o que são os outros, como podemos melhorar o nosso vir-a-ser no mundo, como podemos transformar o mundo a partir de mudanças no nosso entorno. No século XXI, as marcas do homem continuam a ser escritas nos muros dos mu- seus (as cavernas da modernidade) mas, também e necessariamente, nos muros leves e portáteis das páginas de papel dos livros, revistas, cartazes, cartas e jornais ou nas páginas electrónicas da escrita virtual. Todo este conjunto de ideogramas de múltiplas dimensões constituem suportes da leitura do Mundo, base do conhecimento científico-cultural. Daí que o fenómeno cultural da Leitura associe os olhares lançados sobre a Natureza e sobre os suportes portáteis. Este é o modelo recomendado da didáctica do Ensino. A recepção dessas marcas passam por um processo de ulterior registo ou redesenho no muro íntimo de quem as lê. Cada ideograma se fixa na parede mental como uma tatuagem. O ensino da língua tem uma enorme repercussão na vida social e cultural nacional. Esta questão que aqui levantamos é de importância capital. Para nós, ela insere-se na ques- tão da segurança nacional, pois não podemos substituir os técnicos angolanos nos diferen- tes sectores da indústria e dos serviços, por técnicos mais abalizados em termos linguísticos imigrantes de Portugal. A leitura é o indicador mais relevante de um país civilizado. 210

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PROPOSTAS DA SOCIEDADE CIVIL No dia 3 de Dezembro de 2019, realizou-se, no Centro Cultural Brasil Angola (CCBA), uma mesa redonda sobre “A Problemática do Livro e da Leitura em An- gola”, promovida pela Sociedade Civil, ali representada pelas associações Chá de Ca- xinde, Kalu e Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA). Do conclave, extraíram-se as seguintes conclusões: 1. Hoje há a operar no nosso país um número razoável de casas editoras. Mas a verdade é que este conjunto de empresas, entidades ligadas ao livro, não se- guem uma política uniforme e abrangente que garanta a regulação da edição e da comercialização do livro e de todas as componentes que lhe estão agregadas. 2. A despeito de ter sido criada, anos atrás, a AELA, a Associação dos Editores e Livreiros de Angola, que teria como missão fundamental, aquela que andamos anos e anos à procura, ou seja, a organização da política do livro no nosso país, é caracterizada apenas por um vazio enorme neste domínio, demonstrativo de que nada de concreto foi realizado nesta matéria. 3. O livro é o assunto, senão o mais importante, um dos mais importantes que o governo tem entre mãos. Não é difícil chegarmos a esta conclusão, se tivermos em conta o elevado grau de analfabetismo da nossa população e dos baixos índices de hábitos de leitura existentes. Para a sociedade civil, este assunto do livro é fundamental, é prioritário e por isso entende perfeitamente as medidas que foram tomadas já pelo Executivo do presidente João Lourenço, nomeada- mente a nomeação de uma comissão que integra funcionários dos Ministérios da Cultura e da Educação, para atender às preocupações que lhe são implícitas. 4. Foi nesse âmbito e com o pensamento voltado essencialmente para esta ideia que se realizou em 2007 o primeiro encontro de escritores angolanos, na cidade do Lubango. Nessa altura, cerca de uma centena de escritores e outros interes- sados no negócio do livro, trabalharam na discussão de uma série de temas relacionados com o livro, tendo saído desse conclave um conjunto de docu- mentos contendo ideias conclusivas, sobre o trabalho realizado e no qual se apontavam caminhos bem definidos a seguir no futuro. Tais documentos foram remetidos para o Ministério da Cultura e para a Assembleia Nacional. Infeliz- mente, nunca recebemos nenhuma resposta, nenhum comentário. Mas, volvi- dos uns tempos, longos meses, foi divulgado o diploma que regula a política 211

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das bibliotecas e dos hábitos de leitura (uma das várias decisões e recomenda- ções saídas do encontro de escritores) que, como vimos constatando não tem resultados práticos nem abrangentes. 5. No dia 1 de Setembro de 2018, o Governo angolano criou Comissão de Imple- mentação da Política do Livro e da Leitura, coordenada pelo ministério da Cul- tura, com o objectivo de implementar a estratégia relativa ao livro e à leitura pública. 6. A criança cria hábitos através do fenómeno da imitação, quando vê um adulto a ler, e quando este lhes desperta a curiosidade, contando-lhes essas estórias. Portanto, o Plano Nacional de Leitura deverá contemplar, como prioridade, a leitura por parte dos adultos: professores e encarregados de educação. 7. A criação dos hábitos de leitura, com génese na leitura por parte dos profes- sores é inadiável e bem possível: é da responsabilidade directa do Ministé- rio da Educação. O MED tem esta obrigação de adquirir obras literárias de diversos géneros e pôr os professores a lê-las, ao menos no Magistério. 8. Deve ser o ministério da Educação, o órgão do Executivo a coordenar a Co- missão Nacional do Livro e da Leitura e não o ministério da Cultura. 9. Num país como Angola, a procurar sair da longa crise pós-independência e partir para o desenvolvimento sustentável, o principal investimento tem de pas- sar pelo Homem, isto é, a CRIANÇA de hoje que é o futuro da Nação. Só assim, teremos as mentes brilhantes que, em diversos domínios, produzirão o combus- tível do desenvolvimento, que não é o petróleo que vendemos ao barril, mas o combustível chamado massa cinzenta, o know-how dos fabricantes e constru- tores. CONCLUSÃO Existe um nexo causal profundo entre o sistema de Ensino e o sistema Literário, e um nexo vital entre aqueles dois sistemas e o Económico. A difusão da Literatura no Ensino enriquece este. Por sua vez, o Ensino rico, de qualidade, abastece o sistema económico de excelentes reprodutores e criadores de riqueza nacional, bem como de Pensamento Inova- dor, nos diversos domínios da necessidade humana de se revelar livre, independente e evo- lutivo. 212

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Ao não valorizar nem promover o estudo e o ensino da língua oficial, cujas conse- quências redundaram no Ensino deficitário e o subsequente epifenómeno da ineficácia e indelicadeza do Estado, o Poder Executivo incorreu numa inconstitucionalidade por omissão, que vai de encontro ao estipulado no Artigo 19.º da Constituição da República de Angola. Ler está indissociavelmente ligado ao suporte chamado livro. Contudo, a abertura para a recepção do discurso literário só terá êxitos se começar pela formação dos docentes dos diversos níveis do ensino, que terão, obviamente, de concluir, no seu currículo forma- tivo, um volume substancial de leitura e hermenêutica dos textos que constarão do Plano de Leitura. Só assim, os professores estarão à altura de propor leituras aos alunos e analisar com eles as referidas obras. Para além de ferramenta de afinação linguística, a literatura criativa possui o dom de distensor da consciência humanista. Alguém poderá questionar-se porque é que certos homens de Letras angolanos, imbuídos do poder político, cometeram actos contrários a essa consciência humanista. Isto aconteceu e acontece porque esses líderes com uma grande bagagem académica ignoraram a essência da sequência pedagógica da leitura para toda a vida. Ler é um acto civilizacional de toda a vida. A recepção da Literatura pela mente humana transforma-se numa cátedra de racio- cínio auto e hetero-dialógico com uma dupla sequência pedagógica: é uma ferramenta de afinação linguística e um distensor da consciência para uma visão mais humanista do mundo. Não se pode separar uma da outra: dessa sequência resultou a civilização dos di- reitos humanos e do progresso técnico-científico. BIBLIOGRAFIA 1. AZEVEDO, Fernando. Literatura infantil: recepção leitora e competência literária. 2. ______. Língua materna e Literatura Infantil. Elementos nucleares para professores do Ensino Básico. Lisboa: Lidel, 2006. 3. BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Directrizes e Bases da Educação 4. Nacional – Lei nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996. Estabelece as directrizes e bases da educação nacional. Brasília: MEC/SED, 1996. 5. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf>. Acesso em: 10 Nov. 2010. (METODOLOGIA, 2011) 6. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 213

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2006. 7. CASTRO, Eline Fernandes de, A Importância da Leitura Infantil para o Desenvol- vimento da Criança, 2005. 8. GAMA, Ana Maziles de Souza, A Importância Da Produção Textual No Ensino Supe- rior, publicado em 10 de Maio de 2011. 9. METODOLOGIA do ensino de língua portuguesa e literatura / Nilcéa Lemos Pe- landré ...[et al.]. - Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2011. 10. NONATO, Sandoval, METODOLOGIA de Ensino de Língua Portuguesa na For- mação Docente: Incursão em um Corpus de Manuais Pedagógicos, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. 11. RÖSING, Tânia. Do currículo por disciplina à era da educação-cultura-tecnologia sintonizadas: o processo de formação de mediadores de leitura. In: SANTOS, Fa- biano dos; NETO, José Castilho; ROSING, Tânia M. K. (Org.). Mediação de lei- tura: discussão e alternativas para a formação de leitores 214

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Notas biográficas dos autores (Pela ordem de apresentação dos artigos) 215

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Angola Manuel Muanza Manuel Muanza, doutor em Literatura pela Universidade de Évora (Portugal), publicou, pela Mayamba Editora, entre outros, Mayombe: a saga dos guerrilheiros ou fic- ção narrativa da guerra (estudo da historicidade do ro- mance de Pepetela), Como se lê o texto literário?, Ca- derno de Estudos Literários e Linguísticos. É Professor Associado no ISCED de Luanda, lecciona na área dos estudos literários. Brasil Marcos Bagno Marcos Bagno (nascido em 1961), é Doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), título obtido em 2000. É pro- fessor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), desde 2002. Atua sobretudo na área de descrição do português brasileiro, socio- logia da linguagem, política linguística e ensino de tradução. Como escritor, recebeu alguns dos mais importantes prêmios literários brasileiros. Sua obra ficcional compreende contos, poesia e livros dedicados ao público infantil e juvenil. Seu livro Preconceito linguístico, publicado em 1999, tem sido constante- mente reimpresso e já atingiu a marca dos 350 mil exemplares vendidos. Entre seus outros títulos se destacam a Gramática pedagógica do português brasi- leiro (2012), com mais de mil páginas, a mais exaustiva descrição do português brasileiro até o momento e o Dicionário crítico de sociolinguística (2017). Como 216

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tradutor (do inglês, do francês, do espanhol e do italiano), já verteu para o portu- guês mais de 150 obras dos mais diferentes gêneros. Em breve se publicará sua nova tradução do Curso de linguística geral, de F. de Saussure. Também traduziu pela primeira vez em português a obra de William Labov. Portugal João Veloso João Manuel Pires da Silva e Almeida Veloso é doutor (2004) e agregado (2010) em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal), onde leciona presentemente diversas disciplinas de licenciatura, mestrado e doutora- mento nas áreas da linguística geral e portuguesa, com a categoria de professor associado com agrega- ção. É coordenador do Centro de Linguística da Universidade do Porto (desde 2008) e diretor do Curso de Licenciatura em Ciências da Linguagem da Faculdade de Le- tras da Universidade do Porto (desde 2019). Desde 2016, integra a Comissão Nacional de Portugal junto do Conselho Científico do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (CPLP), como representante do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Governo Português. Entre 2012 e 2016, foi presidente da Associação Portuguesa de Linguística. Exerce desde 2018 o cargo de pró-reitor da Universidade do Porto, sendo respon- sável pelos pelouros da Promoção da Língua Portuguesa e da Inovação Pedagógica e Tecnologias Educativas. Os seus principais domínios de investigação centram-se na fonética, fonologia e morfologia do português, nos processos de variação e mudança em português, na tipologia linguística, na política linguística, na aquisição e aprendizagem do portu- guês e no ensino da língua portuguesa. 217

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É autor de mais de uma centena de trabalhos nacionais e internacionais sobre estes temas, tendo proferido palestras e colaborado com várias universidades e institui- ções de Portugal e de outros países e territórios (Angola, Áustria, Brasil, Croácia, Espanha, Estados Unidos da América, Finlândia, França, Hungria, Islândia, Ma- cau, Noruega, Polónia, Porto Rico, República Checa, República Popular da China, São Tomé e Príncipe, Suécia, Suíça, Tailândia e Timor-Leste). Angola António Fernandes da Costa António Fernades da Costa é Professor Catedrá- tico da Universidade Católica de Angola, em Linguís- tica Portuguesa. Doutorou-se na Universidade do Mi- nho, mediante a apresentação da dissertação “Ruptu- ras Estruturais do Português e Línguas Bantu em An- gola – Para uma análise diferencial”. Possui uma vasta experiência profissional no âmbito da docência, tendo lecionado em várias escolas do ensino médio. Trabalhou como professor da Universidade Agostinho Neto, quer em cursos de li- cenciatura, quer de mestrado. A partir de 1999, integrou o quadro de docentes da Universidade Católica de An- gola como professor de Língua Portuguesa, Fonética e Fonologia do Português e Sintaxe e Semântica do Português. Desepenhou, nesta Universidade, os cargos de Director do Propedêutico e de Director da Faculdade de Ciências Humanas, acu- mulando com a docência. Foi consultor do Ministério da Cultura e membro do Júri do Prémio Nacional da Cultura, para a área de Literatura. Possui várias livros editados e artigos publicados sobretudo no Jornal de Angola. Participou em vários congressos internacionais. Actualmente, é o Director da Cátedra de Língua Portuguesa da Universidade Cató- lica de Angola, a CaLP_UCAN. 218

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Portugal Maria do Céu Caetano Maria do Céu Caetano, é professora no Departa- mento de Linguística da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 2003, em Morfologia, com a tese “A Formação de Palavras dm Gramáticas Históricas do Português. Análise de algumas correlações sufixais”. Desde agosto de 2016, coordena a licenciatura em Ci- ências da Linguagem da FCSH. É investigadora do Cen- tro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa, no grupo Gramática & Texto, sendo responsável pela base de dados BILP - Bibliografia de Linguística Portu- guesa. Tem publicados trabalhos sobre formação de palavras, em particular sobre questões relacionadas com a produtividade, a composicionalidade e a lexicaliza- ção, entre outros tópicos. Desde que se doutorou, tem orientado teses, disserta- ções, bolsas e relatórios de estágio no âmbito dos ciclos de estudos que leciona. Angola Afonso João Miguel Afonso João Miguel, Doutorado em Linguística, na opção de Sociolinguística, pela Universidade de Lisboa; nesta instituição também fez os cursos de Mestrado em Linguística Portuguesa e Licenciatura em Língua e Cultura Portuguesa – Português Língua Estrangeira. Actualmente, é Professor Auxiliar do ISCED de Luanda, no Curso de licenciatura em en- sino de Língua Portuguesa, e colaborador na Facul- dade de Ciências Huamanas da Universidade Cató- lica de Angola, no curso de licenciatura em Línguas e Administração. 219

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Áreas de interesse e actuação: descrição linguística, contacto linguístico, variação linguística e multilinguismo; fonética e fonologia, morfologia e semântica da LP; estudos contrastivos na interface entre as Línguas Africanas e a Língua Portu- guesa; e ensino das línguas. Participa em várias actividades científicas nacionais e internacionais, na área dos estudos linguísticos e ensino das línguas, quer no País quer no Estrangeiro. Membro do projecto de investigação PALMA - Posse e Localização: Microvariação em variedades africanas do português do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL); membro do Cátedra de Língua Portuguesa da Universidade Cató- lica de Angola (CaLP-UCAN). Tem uma obra publicada sobre a “Referência inde- terminada de sujeito e agente da passiva do português europeu”, Luanda, Editora Mayamba, 2013. Participa com o texto “Integração morfológica de empréstimos lexicais bantos no português luandenses” no livro O português na África atlântica – Contatos no eixo afro-americano, organizado por Carlos Filipe Guimarães Figueiredo, Tjerk Hage- meijer e Márcia Santos Duarte de Oliveira, 2020 (no prelo). Angola Peres Sasuco Daniel Peres Sassuco, de 48 anos de idade, é Pro- fessor Auxiliar pela Faculdade de Letras da Universi- dade Agostinho Neto. É doutorado em Linguística Ge- ral, especialidade de Linguística Africana pela Univer- sidade Atlântica Internacional dos Estados Unidos da América. Mestre em Tratamento da Informação e Comunicação Multilingue, especialidade de Formalização linguística pela Universidade Autó- noma de Barcelona de Espanha. Licenciado e Bacharel em Pedagogia Aplicada em Francês-Linguística Africana pelo Instituto Superior Pedagógico (ISP) de Lubum- bashi na República Democrática do Congo. Docente encarregue de cadeiras de: Sociolinguística, Introdução à Linguística Bantu, Morfologia das Línguas Bantu, Linguística Contrastiva, Língua Nacional I 220

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e II. Interessa-se pelas pesquisas de Descrição linguística, Estudos contrastivos, Políticas linguísticas, Tradução sentido-texto e lexicografia, Recolha de dados orais (provérbios, contos, canções, adivinhas). Participa em várias ocasiões, com comu- nicações, das conferências-debates, palestras, jornadas científicas, workshop e no- táveis entrevistas radio-televisivas nacionais e internacionais. Várias intervenções online com universidades brasileiras sobre as políticas de promoção das línguas nacionais. Angola Maria Helena R. P. Santos Miguel Maria Helena Ramos Pereira dos Santos Mi- guel, é natural da Gabela, Kuanza-Sul. Fez o Magis- tério Primário, no Bié, em 1975 e licenciou-se em Linguística/Português, no ISCED-Luanda, após um complemento curricular de dois anos na Universi- dade do Minho, Portugal. Em 2009, concluiu o Mes- trado em Ensino da Língua Portuguesa. Integrou o quadro do Programa de Superação de Professores, após um estágio de três meses no Brasil, sobre Ensino à Distância e Formação de Adultos. Foi directora do Instituto Médio Normal e do Pré-Universitário no Bié, onde começou a sua carreira como profes- sora de Português. Em Luanda, leccinou no INE Garcia Neto e no ISCED. Em 1999, ingressou na Universidade Católica de Angola, onde se mantém até à data. Orien- tou diversos seminários sobre Ensino da Língua Portuguesa para formadores do Ensino Geral. Possui várias obras didácticas publicadas, artigos e um livro de contos. Desde 2013, é Vice-Reitora para Área Académica da Universidade Católica de Angola, cargo que ocupa até à data, acumulando com as funções de docente. É doutoranda em Didática do Português, Multilinguismo e Educação para a Cidadania Global, nas Universidade Nova de Lisboa e UAb. 221

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Angola Artur Osvaldo dos Santos Artur Osvaldo dos Santos é doutorando em Didática das Línguas - Multilinguismo e Educação para a Cida- dania Global, especialidade em Ensino do Português Língua Estrangeira (LE/L2), estando já no 2.º ano. É mestre em Ciências da Linguagem pela Universidade Nova de Lisboa, possui pós-graduação profissional em Agregação Pedagógica feita na Universidade Católica de Angola (UCAN) onde também se licenciou em Línguas e Administração. É quadro efectivo da UCAN com o cargo de Vice-decano da Faculdade de Ciên- cias Humanas, sendo, igualmente, Professor Auxiliar, leccionando as cadeiras de Língua Portuguesa e de Técnicas de Expressão do Português I e II. É co-fundador da Cátedra de Língua Portuguesa da Universidade Católica de Angola (CaLP_UCAN). Integra os seguintes grupos de investigação: Centro de Linguística da Univer- sidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (CLUNL-FCSH) – Grupo Gramática e Texto (GRATO) – (Colaborador); Centro de Humanidades (CHAM) – Colaborador; Cátedra de Língua Portuguesa da UCAN – Investigador; Áreas de investigação: formação de palavras, léxico, neologia, norma e variação, didáctica do Português Língua Segunda/Estrangeira (L2/LE) e ensino do portu- guês. Angola Paulino Soma Adriano Paulino Soma Adriano nasceu em 8 de Março de 1982, na Huíla. É doutor em Linguística pela Universi- dade de Évora; mestre em Consultoria e Revisão Lin- guística pela Universidade Nova de Lisboa e licenciado em Educação, opção Linguística Portuguesa, pelo IS- CED – Huíla. É coordenador científico do Mestrado em Ensino da Língua Portuguesa do ISCED-Huíla, onde é igualmente docente neste grau e no de licenciatura. Foi, 222

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na mesma Instituição, Chefe da Repartição de Ensino e Investigação do Português. Foi professor visitante na Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto, em Luanda. É membro colaborador da Cátedra de Língua Portuguesa da Universi- dade Católica de Angola. É, também, Director da Escola Superior Pedagógica do Cunene. Tem artigos e obras publicadas entre as quais se destaca “A crise norma- tiva do português em Angola: cliticização e regência verbal – que atitude normativa para o professor e o revisor?”, edição 2015. Moçambique Samaria Tovela Samaria Tovela é especialista em Educação, Douto- rada em Linguística Aplicada pela Universidade Edu- ardo Mondlane e Mestre em Didáctica de Línguas pela Universidade de Aveiro. Tem formação em Desenvolvi- mento Curricular pela International Training and Edu- cation Center – University Of Washington. Seattle, USA, Curso de Educação inclusiva 1ª Edição 2018-19, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa-Portugal. Actualmente é Directora Nacional do Ensino Secundário, Mem- bro Não Executivo do Conselho Nacional de Avaliação da Qualidade do Ensino Su- perior (CNAQ) e Membro da Comissão Nacional para o Instituto Internacional de Língua Portuguesa em Moçambique. Foi Directora do Instituto Nacional de De- senvolvimento da Educação (2014-2015); Docente de Metodologia do Ensino Su- perior na Universidade Pedagógica; Reitora do Instituto Superior de Tecnologias e Gestão (2011-2014) e Assessora no Departamento de Formação do Ministério da Saúde (2008-2011). A sua área de interesse em pesquisa é a educação. Tem artigos publicados em revistas nacionais e internacionais. 223

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Angola Gildo Matias Gildo Matias José é licenciado em Filosofia pela Univer- sidade Agostinho, mestre em Ciência Política Instituto Uni- versitário de Lisboa (ISCTE-IUL), onde também é douto- rando em Políticas Públicas. É Professor na Faculdade de Ci- ências Sociais da Universidade Agostinho Neto e na Facul- dade de Direito da Universidade Metodista de Angola. Tra- balha em áreas disciplinares como: Representação Política, Sociologia Política, Sociologia do Direito, Movimentos Sociais e Acção Política, Po- líticas Públicas. É autor de trabalhos académicos como: O Processo de Construção da Nação Angolana (2009); Congruência Ideológica e Política em Angola (2012); O Sistema de Protecção Social e o Desenvolvimento da Protecção Social Obrigató- ria em Angola (2013); Political Representation in a Non-consolidated Democracy (2015). Trabalhou no Secretariado Executivo da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa em Lisboa) entre 2011-2013. Foi Director do Jornal Vanguarda (semanário de política e sociedade). Já exerceu o cargo de Coordenador-Adjunto da Unidade Técnica de Gestão do Plano Nacional de Formação de Quadros da Casa Civil do Presidente da República e exerce actualmente a função de Secretário de Estado para o Ensino Secundário do Ministério da Educação. Angola José Luís Mendonça José Luís Mendonça é docente e escritor, ganhou o Prémio Nacional de Cultura e Artes 2015, na categoria de Literatura. Foi um dos refundadores do Movimento dos Novos In- telectuais de Angola, de 1948, pelo resgate do legado dos precursores da Literatura angolana. Reparte a sua vida pública entre a oraliratura, o jornalismo, o ensino da língua portuguesa e o activismo cultural pelo fomento do livro e da leitura. 224

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