Trilha sonora imperial: música na corte carioca

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Mario Trilha, Músico e musicólogo

Vice-reinado

Antes da chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 8 de março de 1808, a vida musical da então capital da América portuguesa já possuía uma certa vitalidade, contando com um teatro de ópera desde, pelo menos, a primeira metade do século XVIII, o Ópera Velha, teatro dirigido pelo padre Ventura, e que já existia em 1748, quando foi descrito em uma carta de um tripulante do navio francês L’Arc en Ciel, que esteve no Rio de Janeiro entre 22 de abril a 10 de maio de 1748. O prédio possuía as mesmas dimensões do Teatro do Bairro Alto em Lisboa. O repertório era constituído por óperas com libretos de António José da Silva Coutinho (1705-1739), mais conhecido pelo epíteto de “O Judeu”, e música de compositores portugueses como António Teixeira (1707-1769). A partir de 1754, o músico profissional Salvador de Brito arrendou o teatro, agora chamado de Ópera dos Vivos, com todas as partituras, vestes e cenários e “tudo que pertence à dita ópera”. O edifício ficava na Rua do Marisco da Alfandêga, atual Rua da Alfândega. (BUDASZ, 2008, p.32-33). Em 1776, o prédio foi devorado por um incêndio durante uma encenação de “Os Encantos de Medeia, de António José da Silva, o que tornou o teatro Ópera Nova, que já deveria estar em atividades desde a década de 1760, e se situava próximo ao palácio do Vice-Rei, atual Paço Imperial, na praça carioca mais importante da época. “A partir de documentos do Arquivo Nacional, Nireu Cavalcanti demonstra que, de 1766 a 1772 o Ópera Nova foi dirigido por Luís Marques Fernandes […] Finalmente, de 1775 a 1812, a casa foi dirigida por Manuel Luiz Ferreira” (BUDASZ, 2008, p.37). A longevidade do último administrador do teatro passou até mesmo a ser sinônimo do estabelecimento, por muitos referido como “teatro de Manuel Luiz”.

O repertório musical era constituído majoritariamente por obras de compositores italianos como Giovanni Paisiello (1740-1816), Niccolò Jomelli (1714-1774), David Perez (1711-1778) e portugueses como António Teixeira, Bernardo de Sousa Queiroz (1765-1837) e Marcos Portugal (1762-1830), adaptado para os hábitos e vicissitudes locais, muitas vezes traduzido para o português. Vale ressalvar que a quase totalidade dos músicos da colônia era constituída por negros ou mulatos alforriados, os músicos profissionais brancos eram pouquíssimos, sendo mestres de capela ou monges portugueses transferidos para o Brasil. Para a elite branca colonial, a música e as demais artes poderiam contribuir para a civilidade e elevação espiritual, mas não eram consideradas como formas dignas de se obter o pão quotidiano. Além da associação, feita pela elite da época, dos músicos e atores como seres desprovidos de modéstia, afeitos ao ócio e à vida dissoluta. Pior ainda era a situação das mulheres atrizes e cantoras, que eram tidas como “mulheres públicas”. Não deixa de ser surpreendente que a primeira estrela internacional do canto lírico brasileiro tenha sido uma mulher negra, revelada no teatro de Manuel Luiz, a extraordinária Joaquina Maria da Conceição (fl. 1790-1813), mais conhecida como Lapinha, que saiu do Rio de Janeiro para brilhar nos palcos do São Carlos de Lisboa e São João do Porto, a partir de 1795, permanecendo em Portugal por uma década, coroada de sucessos. Na Casa da Ópera de Manuel Luiz também se executava música puramente instrumental: sinfonias ou overturas, para abrir os espetáculos, quer fossem óperas ou dramas. Os inventários de renomados músicos da época permitem vislumbrar a riqueza do repertório. Salvador José Faria (1732-1799) deixou, no seu espólio, nada menos que 52 sinfonias. Florentino de Aragão Espanha (f. 1808), deixou para os seus herdeiros 12 sinfonias. O maior compositor brasileiro do período, o padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), compôs, ao menos, duas obras nessa época: a “Sinfonia Fúnebre”, de 1790, e a ouverture “Zemira. (CARDOSO, 2011, p.162).

A igreja católica representava o outro grande polo musical carioca no período colonial. A mais antiga referência à prática musical no Rio foi uma carta jesuítica, publicada na Itália, em 1627, escrita em 1621, pelo padre português Miguel de Araújo, relata que as vésperas foram “cantadas solenemente” com “decoração preciosa, música em demasia e vários instrumentos, terminando-se tudo com uma belíssima procissão”. (LEITE, 1953, p.62). São muito escassas as referências à música sacra carioca dos séculos XVII e XVIII que chegaram até nós. Em relação aos músicos que atuaram na Catedral, restam apenas cópias de provisões régias e algumas partituras, de obras do final do século XVIII e de autoria do padre José Maurício Nunes Garcia. Infelizmente não chegaram até nós obras de outros compositores nascidos ou radicados na Guanabara, durante a primeira metade do século XVIII (CARDOSO, 2011, p.94). Embora a música sacra tivesse considerável aparato e importância na vida setecentista carioca, a música profana no teatro público e na ópera tinha a primazia no desenvolvimento cultural da capital do Vice-Reino.

Quando a família real portuguesa deixou Portugal, escapando das tropas do marechal Jean-Andoche Junot (1771-1813), em 29 de novembro de 1807, trouxe, na comitiva, oficialmente apenas dois músicos: o organista José do Rosário Nunes e o padre Francisco de Paula Pereira (CARDOSO, 2005, p.55). Assim, e até o final de 1809, a Catedral manteve-se, sobretudo, com os músicos nativos. Embora ainda no mesmo ano, por ordem do príncipe regente, chegam de Lisboa alguns músicos da Real Câmara, como João Mazzioti (1786-1850), Giuseppe Capranica (fl. 1785-1818) e Nicolau Heredia (fl. 1810). No ano seguinte, em setembro de 1810, os castratti Giuseppe Gori (fl. 1810-1819) e Antonio Cicconi (1781-1870). Em 1811, a Capela Real já contava com 32 integrantes (CARDOSO, 2011, p.186). Em 7 de janeiro do mesmo ano o príncipe regente convoca individualmente, e com a máxima urgência, o mais conceituado compositor português da época, Marcos António da Fonseca Portugal, a partir de 11 de junho de 1811. Esse célebre maestro e compositor, com carreira internacional, assume os prestigiosos cargos de Mestre de Suas Altezas Reais e Diretor de Música da Corte.

No ano de 1811, isso se resumia ao Real Teatro, que era a antiga Casa da Ópera de Manuel Luiz, junto ao Largo do Paço. No momento em que Marcos Portugal começou a sua função de supervisão dos espetáculos, as dimensões do Real Teatro já eram insuficientes para a grande demanda de público e produções. Assim, mesmo antes da chegada de Marcos Portugal, já em 28 de maio de 1810, D. João publicou um decreto tendo em vista a construção do Real Teatro de São João, que deveria ser construído, sem nenhum encargo para o erário, no então Largo do Rocio, posteriormente Praça da Constituição e atual Praça Tiradentes, onde hoje se encontra o teatro João Caetano. O empreendimento foi financiado por capital particular, com o fomento do Estado, através de seis loterias, isenções alfandegárias para o material importado utilizado na construção do edifício e com o reaproveitamento das pedras destinadas à nova Sé, que estava na altura, com as obras interrompidas há décadas, no Largo de São Francisco de Paula. O novo teatro foi inaugurado em 12 de outubro de 1813, no dia do aniversário de 15 anos do então príncipe da Beira, o futuro D. Pedro I (1798-1832), com a obra “O Juramento dos Numes”, libreto de Gastão Coutinho e música de Bernardo de Sousa Queiroz (BUDASZ, 2008, p.205). O Real Teatro de São João, com os seus quase 1.800 lugares, era a maior casa de ópera das Américas. Não havia nessa época nenhum teatro no continente que se equiparasse a ele em dimensões. A título de comparação, o Park Theatre de Nova York tinha cerca de 1.400 lugares, o Théâtre d’Orléans de Nova Orleans não abrigava mais de 1.300 espectadores e, em Buenos Aires, o Coliseu Provisional era um teatro de dimensões muito modestas.

No âmbito da música instrumental doméstica, a instalação da corte na Versalhes tropical promoveu um boom na importação de pianofortes para o Rio de Janeiro. Entre 1816 e 1818, o Ministério dos Negócios Estrangeiros redigiu o “Mapa do comércio entre os estados de Sua Majestade Fidelíssima El Rey Meu Senhor e os portos de Trieste”, no qual constavam as relações das manufaturas exportadas diretamente da Áustria para o Rio de Janeiro, nele, foi declarada a entrada de 900 pianofortes no triênio registrado (PEREIRA, 2014, p.258). Tamanha profusão de instrumentos, bastante caros para os padrões de consumo do Rio de Janeiro da época, atestam a popularidade dos encontros musicais realizados nas residências da aristocracia carioca, como na casa do baiano José Egídio Álvares de Almeida, barão de Santo Amaro (1767-1832) e na chácara do cônsul-geral da Rússia, barão Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852).

A residência dos Santo Amaro e a dos Langsdorff eram espaços onde se reuniam habitualmente vários músicos e amadores da música. O célebre discípulo de Franz-
Joseph Haydn (1732-1810), Sigsmund von Neukomm (1777-1857), que viveu no Rio de Janeiro entre 1816 e 1821, desempenhando relevante papel artístico e social na corte carioca, frequentava a casa dos Langsdorff e do barão de Santo de Amaro, onde, segundo Manuel Araújo Porto-
Alegre, testemunhou as notáveis capacidades musicais do padre José Maurício Nunes Garcia, relatando um episódio na casa dos Santo Amaro, em que o padre José Maurício acompanhou em uma barcarolao castrado napolitano Giovanni Francesco Fasciotti (fl.1816-1843), e em seguida demonstrou suas habilidades de improvisação ao piano, variando sobre o motivo da referida peça. Neukomm, ao relatar o episódio, referiu-se ao padre músico como o “maior improvisador do mundo” (PORTO-ALEGRE, 1856, p.36). O piano estava muito presente também no quotidiano dos infantes Maria Isabel (1797-1818), Pedro (1798-1834), Maria Francisca (1800-1834) e Isabel Maria (1801-1876). A infanta Isabel Maria, futura regente de Portugal, entre 1826-1828, foi exímia pianista, e D. Pedro, primeiro imperador do Brasil e rei de Portugal, seja atualmente lembrado pela maioria dos brasileiros como músico somente pelo “Hino da Independência”: “Já podeis da pátria filhos, Ver contente a mãe gentil”. O príncipe não apenas cantava bem, como compunha e tocava piano, violino, baixo, trombone, harpa e violão, sendo ainda capaz de reger a própria música. Segundo D. Leopoldina (1797-1817), primeira esposa de D. Pedro, em carta, datada de 21/01/1818, dirigida a sua tia, Marie Amelie, grã-duquesa da Toscana, nos conta que o príncipe tocava muito bem “a maioria dos instrumentos” (CARDOSO, 2011, p. 287). A princesa Leopoldina era uma jovem adulta quando chegou ao Rio, e já havia tido a sua instrução musical consolidada, sob a orientação do compositor Leopold Kozeluch (1747-1818), em Viena (OBERACKER, 1973, p.18). A futura imperatriz do Brasil acompanhava ao piano, com regularidade e gosto, D. Pedro, tocando obras como o “Théme de Kozeluch varié pour le pianoforte et violoncello” (1817), composta no Rio de Janeiro, pelo seu talentoso conterrâneo Neukomm. No mesmo sentido, uma carta do mesmo ano, escrita pelo diplomata prussiano conde Von Flemming, corrobora a capacidade de D. Pedro de “conhecer a amplitude de todos os instrumentos”. No ano anterior, D. Pedro atuou como cantor nos festejos do seu próprio casamento, o que dá uma boa ideia das qualidades vocais de D. Pedro, já que a presença das personagens mais importantes do reino, e de todo o corpo diplomático, implicavam uma perfomance de alta qualidade. D. Pedro compôs hinos, música sacra, aberturas de orquestra e peças de salão, e não interrompeu as suas atividades musicais após se tornar o primeiro imperador do Brasil.

Fora do ambiente estritamente palaciano ou aristocrático, o Rio de Janeiro começou a ter concertos públicos regulares, que na época eram nomeados “academias”. A Gazeta do Rio de Janeiro (11/10/1809) informava que a cantora Carlotta D’Aunay, recém-chegada de Londres, faria um concerto de música vocal e instrumental, a ser realizado no dia 14 de outubro de 1809, na casa nº 28 na Praia de Dom Manuel. Participaram do concerto a famosa cantora brasileira Lapinha, virtuoses de violino e uma grande orquestra que executou as “melhores aberturas” de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). No entanto, como atestam os poucos anúncios nos jornais cariocas até o período da regência, as “academias” não foram muito frequentes, e não tiveram a popularidade dos espetáculos realizados no teatro (CARDOSO, 2011, p.275). A possível razão da pouca adesão da sociedade carioca aos concertos públicos era possivelmente a própria ausência do monarca, pois Sua Alteza ia ao teatro e à igreja, mas não aos concertos: “E porque haveria de Sua Alteza de ir a concertos se os tinha a domicílio, executados pelos músicos de sua Real Câmara, à hora que lhe conviesse?” (ANDRADE, 1967, p.128).

A música sacra na Capela Real congregou valores nativos e estrangeiros, com resultados de alta qualidade, tanto instrumental quanto vocal, que não passou despercebido à observação do célebre artista plástico francês Jean-Baptiste Debret; “Le corps de musique de la chapelle est composé de très-bons artistes en tous genres, virtuoses castrats, et autre chanteurs italiens. La partie instrumental est très-forte”1 (DEBRET, 1839. p.5). Outros viajantes, como o francês Louis de Freycinet ressaltam a predominância de músicos negros na Capela Real: “Nous avons entendu souvent avec admiration la musique de la chapelle royale, dont presque tous les artistes étaient négres”2 (FREYCINET, Louis de, 1825, p.216). Vale ressalvar que logo após a chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, o padre José Maurício Nunes Garcia foi nomeado, pelo príncipe-regente D. João, “Mestre de Sua Real Capela”, instalada na capela da Ordem do Carmo, no Largo do Paço, (atual praça XV), o que corrobora os testemunhos da predominância de músicos locais negros ao serviço da Real Câmara, embora a partir de 1º de abril de 1816, um músico português, Fortunato Mazziotti (1782-1855) passaria, concomitantemente com o mestre carioca, a ocupar, por nomeação régia, o mesmo cargo. Em um artigo anônimo, provavelmente redigido por Sigismund Neukomm, para o Allgemeine Musikalische Zeitung, publicado em 19 de julho de 1820, relatando a estreia brasileira do “Requiem” de Mozart, ocorrida na Igreja de Nossa Senhora do Parto, em dezembro de 1819, a cargo da Irmandade da Gloriosa Virgem e Mártir Santa Cecília, o relator teceu loas aos músicos participantes, especialmente ao padre José Maurício Nunes Garcia, que levou o gênio de Mozart a ser dignamente recebido no Novo Mundo. Curiosamente, a notícia da estreia do “Requiem” de Mozart já tinha sido publicada no mesmo jornal um mês antes, na edição de 7 de junho, e no relato, de autor apenas identificado como “um correspondente”, também informa que Neukomm e José Maurício estão preparando a estreia brasileira do oratório “A Criação”de Haydn, embora o primeiro mestre de capela local, Marcos Portugal, não apreciasse que outro repertório, além do seu, fosse apresentado. (TRILHA, 2021, p.33). Como podemos observar, a partir dos programas de concertos das academias e dos artigos publicados no Allgemeine Musikalische Zeitung, as obras de Haydn, o então mais célebre e respeitado compositor do mundo ocidental, e Mozart já estavam no repertório sacro e profano dos músicos em atividade no Rio de Janeiro. As óperas encenadas durante o período joanino no Rio, entre 1808 e 1821, eram de compositores portugueses, Marcos Portugal e Bernardo de Sousa Queiroz, mas principalmente de compositores italianos, tais como Domenico Cimarosa, Antonio Salieri (1750-1825) e, a partir de 1819, Gioachino Rossini (1792-1868), que se tornaria onipresente em todas as temporadas desde o final do período do Reino Unido até a abdicação de D. Pedro, em 1831. Destaca-se a estreia brasileira, em 1821, no Real Teatro de São João, do “Don Giovanni” de Mozart (KUHL, 2003, p.8). A ópera era o mais relevante local de divertimento no Rio de Janeiro joanino, pois propiciava às elites econômicas e a pequena burguesia, por meio de pagamento de ingressos, uma oportunidade de fazer a corte ao soberano, que estava reservada apenas aos grandes do reino nos bailes e saraus palacianos.

A extrema dedicação de D. Pedro à música sofreria um forçado arrefecimento com a volta de D. João VI, em 1821, para Portugal. Obrigado a ocupar-se da Regência, o jovem príncipe teria que priorizar os negócios de Estado e colocar à música em segundo plano, sobretudo após a Independência, em 1822, quando assumiria definitivamente o poder como primeiro imperador do Brasil. Lino Cardoso, em seu “O Social” (2011), demonstrou, através de vasta documentação de época, que, ao contrário do persistente lugar comum na história da música brasileira, o período do Primeiro Reinado não significou uma era de penúria para a prática musical no Rio de Janeiro. D. Pedro não se desinteressou do fazer musical, como músico, apreciador e protetor, nunca deixou de participar em eventos musicais como instrumentista ou compositor, reunindo com frequência, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, os melhores músicos da Capela Imperial e do Imperial Teatro. A música da Câmara e da Capela imperiais eram despesas compreendidas como necessárias ao aparato monárquico, verba que, com ou sem anuência do Legislativo, só aumentou durante o Primeiro Reinado. A década de 1821-1831 foi um período ainda bastante propício à música, talvez até mais favorável que o período joanino anterior. A documentação coeva reunida por Lino Cardoso foi “desmontando tese contrária, unanimemente defendida até hoje pela historiografia especializada, de que os abalos políticos e econômicos da Independência teriam enfraquecido o movimento cultural e, por consequência, a atividade musical na capital do Brasil” (CARDOSO, 2011, p.289). Vale ressaltar que o teatro, e sobretudo a ópera (teatro em música) continuaram seguindo a tradição da corte portuguesa, a ser um indicador de civilização e elemento formador da civilidade. Obras como “Ulisseia, Triunfo da América” e o “Juramento dos Numes”, fazem alusão às epopeias de Ulisses, que cruzou os mares para fundar Lisboa (Ulissipo), e remete a D. João VI, que foi o primeiro monarca europeu a atravessar o oceano para fundar um novo império. Dom Pedro e Dona Leopoldina são os protagonistas da serenata dramática (drama alegórico) “Augurio di Felicitá”,de Marcos Portugal, composta para o matrimônio real em 1817, apresentada no Paço da Real Quinta da Boa Vista para o corpo diplomático, grandes do reino, alta oficialidade, camareiras mores, damas etc. (Gazeta do Rio de Janeiro, 12/11/1817). O monarca representava nos divertimentos artísticos a si próprio, a ópera era terreno político. Dois séculos antes, Luís XVI atuou como bailarino, Dom Pedro ampliou o seu papel no espetáculo, sendo o compositor da música ocasional: em 1821, compôs o “Hino à Constituição” e, no ano seguinte, o já referido “Hino da Independência”. (BUDASZ, 2008, p.182). A ópera no Primeiro Reinado viveu um período de intensa movimentação, com temporadas regulares, muito superiores às apresentações dispersas do período Joanino, excetuando-se o período de reconstrução do Imperial Teatro (1824-1826), reconstruído após um incêndio. A partir de 1822, o São João se tornou um verdadeiro centro operístico, favorecido pelo paternalismo do imperador. Um dos primeiros decretos de D. Pedro I, após a coroação – datado de 26 de dezembro de 1826 – concedeu ao proprietário do agora Imperial Teatro de São João, Fernando José de Almeida, uma loteria para que ele saldasse as suas dívidas com o Banco do Brasil. Em 26 de agosto de 1824, outro decreto imperial concedeu o produto antecipado de três loterias, para a reedificação do edifício, destruído por um incêndio no dia 25 de março de 1825. Entre 1824 e 1831, a ópera, agora batizada em homenagem ao seu protetor-mor, como Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara, teve a concessão, segundo notícia publicada no Jornal do Comércio, de 7 de setembro de 1831, de nada menos que vinte loterias! O repertório operístico do Primeiro Reinado atesta um triunfo avassalador das óperas de Rossini no Rio de Janeiro. Na “Cronologia da Ópera no Brasil no século XIX”, feita por Paulo Kuhl, a partir dos anúncios coevos, publicados nos jornais Gazeta do Rio de Janeiro,Jornal do Comércio, Astrea e Spectador Brasileiro, houve, entre 1822 e 1827, mais de 60 récitas com óperas de Rossini; apenas duas de Marcos Portugal; uma do compositor alemão Giacomo Meyerbeer (1791-1864); e pouco mais de uma dúzia de outros compositores italianos atualmente menos referidos: Pietro Generali (1773-1832), Filippo Celli (1782-1856), Vittorio Trento (1761-1833), Vincenzo Pucitta (1778-1861) e Ferdinando Paer (1771-1839). Nosso primeiro imperador frequentou, durante todo o seu período de monarca, assiduamente o camarote central do Imperial Teatro. Seu interesse na ópera, bailados e demais espetáculos era tão sério que o levou a advertir por carta, Miguel Calmon du Pin e Almeida, seu então ministro dos Negócios Estrangeiros datada de 23 de setembro de 1830, que não lhe molestasse com questão de Estado enquanto estivesse no teatro: “vou ao teatro só para ouvir ópera, e que, para me serem comunicadas notícias, e tão interessantes como estas que acabam de chegar, estou no meu palácio” (CARTAS Apud VIANA, p.71). O camarote imperial era concorrido como um salão palaciano. A presença do imperador determinava o início e o encerramento do espetáculo. Se D. Pedro deixasse o teatro antes do final do espetáculo, as luzes do palco eram apagadas, indicando ao público que deveria deixar o teatro. D. Pedro continuava a praticar na intimidade possível do palácio. Marcos Portugal, que deu sequência as suas atribuições régias de Mestre de Suas Altezas, instruindo musicalmente as filhas de D. Pedro, também participava do ciclo musical mais íntimo, como atesta uma carta do imperador a sua amante, Domitila de Castro (1797-1867), a marquesa de Santos: “O Marcos (Portugal) cá vem esta noite […] convida o Carlos (Maria Oliva, cunhado de Domitila) para vir ouvir. Aceite o coração deste seu constante fiel e desvelado amante. O Demonão” (CARTAS do Imperador, 1896, p.82). A qualidade da música da Capela Imperial não decaiu, quando comparada ao período Joanino. Vários depoimentos de viajantes estrangeiros atestam o nível de excelência musical da capela durante todo o Primeiro Reinado. A escritora britânica Maria Graham (1785-1842) registrou em 1822: “The choir is served in a manner that would not disgrace Italy. I attend at vespers, and have seldom been more gratified with the music of the evening service”3 (GRAHAM, p.68). O barão de Bougainville (1781-1846), ao assistir, em 1826, um “Te Deum”, anotou que: “la musique était excellente”(BOUGAINVILLE, p.623). Em 1829, William Tudor, encarregado de Negócios dos Estados Unidos no Brasil, ao descrever o casamento de D. Pedro com Dona Amélia de Leuchtenberg (1812-1873), afirmou que: “The music of the Royal chapel is very fine”4 (NAVAL MAGAZINE, 11/1837 Apud Cardoso, 2011, p.302). A abdicação de D. Pedro, em 7 de abril de 1831, e sua quase imediata partida para a Europa, iria provocar, entre muitas outras mudanças, um drástico empobrecimento da vida musical carioca. O Rio de Janeiro passaria 13 longos anos sem temporada operística, e a qualidade da música na Capela Imperial se tornaria sofrível. A ligação de D. Pedro com a música permaneceu até o final da sua aventurosa vida. O fenômeno não passou desapercebido ao Diário do Rio de Janeiro (15/12/1834), em artigo que descrevia o solene ofício fúnebre realizado em 12 de dezembro de 1834, na Igreja da Nossa Senhora do Parto, pela Irmandade de Santa Cecília dos Professores de Música, que concluía o texto pedindo “orações ao céu suplicando a graça da bem-aventurança eterna ao Príncipe Filarmônico”.

A primeira cerimônia pública de Dom Pedro II (1825-1891) ocorreu no paço, em 9 de abril de 1831, apenas dois dias decorridos do ato de abdicação de seu pai. O pequenino monarca, de pé sobre uma cadeira, acenava ao público, acompanhado de suas irmãs. Do outro lado da rua, na Catedral, a Capela Imperial ainda em pleno funcionamento executou um solene “Te Deum” (ANAIS do Parlamento Brasileiro, 1878, t. 1, p.2). Foi o canto do cisne da Capela Imperial, pois a partir de junho de 1831, as atividades da orquestra seriam interrompidas. No entanto, o coro não deixaria de funcionar durante todo o período regencial. A situação precária das finanças do Império e o sentimento antilusitano conspiraram para que o Rio de Janeiro quase se esquecesse da excelência do seu serviço musical sacro, comparável aos grandes centros de referência canônica. Os teatros também conheceram um fenômeno semelhante, pois a última temporada de ópera se encerrou em 13 de fevereiro de 1831, e somente voltaria a ocorrer em 1843. Diante do enfraquecimento da música sacra e do teatro, os músicos cariocas, ou instalados no Rio, organizaram concertos ou “academias”, em salões de casas particulares ou no “Teatrinho da Rua dos Arcos”. Os concertos eram feitos em benefício dos mais renomados músicos do Rio. Em 1832, o Teatrinho foi reformado, o que convinha aos novos interesses da elite carioca, que agora já não orbitava em torno do imperador, e priorizava espaços sociais menores e de frequência mais seleta (CARDOSO, 2011, p.428). O agravamento da instabilidade laboral dos músicos na corte carioca inspirou a categoria a criar, em 18 de novembro de 1833, uma congregação profissional, as bases para uma associação intitulada Sociedade Beneficência Musical, que atuou como um sindicato, zelando e até aumentando as tarifas dos serviços musicais prestados. A Sociedade Beneficência Musical congregou os melhores músicos do Rio, oferecendo novo repertório, nacional e estrangeiro, menos voltado à ópera italiana e mais à música instrumental em voga na França e Inglaterra. Assim, nos anos da Regência, obras de compositores franceses, ingleses e alemães, como por exemplo, Daniel Auber (1792-1871), Joahann-Baptist Cramer (1771-1858) e Friederich Kalkbrenner (1784-1749), e brasileiros, nomeadamente, Cândido Inácio da Silva (1800-1838), Januário da Silva Arvelos (c.1790-c.1844) e Francisco Manuel da Silva (1795-1865)5 dividiram os programas de concerto com as indefectíveis composições de Rossini. (CARDOSO, 2011, p.435). Antevendo o advento do Segundo Reinado, a Regência, ainda que oficiosamente, renomeou o Teatro Constitucional Fluminense, em junho de 1838, em homenagem ao santo nome do imperador, como na época de D. Pedro I, que voltou a ser chamar Imperial Teatro São Pedro de Alcântara.

O conjunto instrumental da Capela Imperial foi restaurado, ainda que não oficialmente, para as festividades da aclamação da maioridade de D. Pedro II. Contando com um efetivo de 28 instrumentistas para a execução de um “Te Deum”comemorativo no dia 26 de julho de 1840, repetido em 7 de setembro, 19 de outubro e a 2 de dezembro, no aniversário do imperador. Graças ao relato do próprio D. Pedro II, o “Te Deum” era composição de seu pai: “Chegando ao paço, descansei um pouco, depois fui para o ‘Te Deum’, grandezinho, mas suportável, por ser composto por meu pai” (VIANA, Hélio. P.116). A situação do Teatro de São Pedro de Alcântara não conheceu a mesma bonança da restauração experimentada na Capela Imperial. Embora a presença da família imperial tenha sido frequente a partir da metade da década de 1840, D. Pedro II preferia assistir peças francesas no Teatro de São Januário, não tendo particular apetência para a ópera italiana (CARDOSO, 2002, p.352). Curiosamente, a coroação de D. Pedro II foi comemorada, no Teatro São Pedro de Alcântara, com o primeiro ato da “Italiana em Argel”, de Rossini, atestando, que ainda em 1841, o drama italiano cantado era considerado o espetáculo de máxima dignidade na corte carioca.

A restauração das temporadas operísticas no Rio de Janeiro ocorreu em fins de 1843, quando desembarcou na corte carioca uma companhia de cantores italianos, que promoveram no Teatro São Pedro de Alcântara, uma temporada de quatro meses, com 24 récitas e cinco títulos. A chegada de Dona Teresa Cristina (1822-1889), ao Brasil, em 3 de setembro de 1843, para se tornar a terceira imperatriz consorte, representou mais um importante estímulo à volta das temporadas regulares de ópera. A imperatriz era napolitana, cantora amadora e entusiasta da música de Rossini. Vale recordar que Nápoles foi a capital da ópera italiana no século XVIII, e primeiras décadas do século XIX. O sucesso da Companhia Italiana levou a corte carioca de volta ao teatro de ópera; somente em 1844, houve 74 récitas. Sem dúvida, contribuiu muito, a presença constante do casal imperial na tribuna. A reconquista do público carioca foi determinante para criar novas demandas na produção musical nacional durante a segunda metade do século XIX. O nome que se tornou mais célebre, entre os membros da Companhia Italiana, comandada pelo capitão sardo Pedro Pittaluga, foi o da soprano Augusta Candiani (1820-1890). A cantora italiana debutou nos palcos cariocas em 1844, interpretando a sacerdotisa gaulesa Norma, na ópera homônima, do compositor siciliano Vincenzo Bellini (1801-1835). A impressão deixada por Candiani, na estreia brasileira de “Norma”, foi tão intensa que marcou o nosso maior escritor, Machado de Assis (1839-1908), que em uma crônica datada de 1877, ainda se recordava vivamente do poder expressivo da soprano: “A Candiani não cantava, punha o céu na boca, e a boca no mundo. Quando ela suspirava Norma era de pôr a gente fora de si. O público fluminense que morre por melodia como macaco por banana, estava então nas suas auroras líricas. Ouvia a Candiani e perdia a noção da realidade” (MACHADO DE ASSIS, 2013).

Nesse caldo de cultura surgiu o nosso maior compositor do período, Antônio Carlos Gomes (1836-1896). É importante ressalvar que o então promissor compositor brasileiro aprofundou os seus estudos musicais na Itália, a partir de 1863, o que lhe propiciou estabelecer uma notável carreira internacional, compondo as suas óperas mais conhecidas a partir de libretos em italiano. A ideia inicial de Dom Pedro II era mandar Carlos Gomes à Alemanha, mas Dona Teresa Cristina interferiu para que o destino do futuro compositor do mundialmente célebreIl Guarany” fosse a Itália, o que ressalta o papel fulcral da soberana no processo de consolidação da reestruturação da produção operística no Rio de Janeiro.

Durante o Segundo Reinado, a música na corte, como atividade doméstica e pública, criou condições para o desenvolvimento de um grande mercado de vendas de partituras, instrumentos, luthiers e para professores. O Conservatório de Música do Rio de Janeiro, também conhecido como Imperial Conservatório de Música, instituído em 27 de novembro e regulamentado em 21 de janeiro de 1847, com atividades iniciadas em 13 de agosto de 1848, foi a primeira instituição do gênero no país. Surgiram, no período, outras instituições particulares de ensino de música: o Liceu Musical, fundado por um grupo de professores em 1841; o Conservatório de Música e Dança, em 1846; o Liceu Musical e Copisteria, em 1854; e o Conservatório Vocal e Instrumental, em 1855.

Além da presença de virtuoses de canto, o Rio de Janeiro recebeu renomados instrumentistas, sobretudo pianistas, ao longo do Segundo Reinado: em 1855, o austríaco Sigismond Thalberg (1812-1871); em 1857,6 o português Arthur Napoleão (1843-1925); e em 1869, o norte-americano Louis Moreau Gottschalk (1829-1869).

O grande teórico musical belga, François-Joseph Fétis (1784–1871) defendia ardentemente Thalberg como compositor e pianista na Revue et Gazette Musicale. O pianista austríaco foi apontado como rival de Ferenc Liszt (1811-1886). especialmente em Paris, que era um dos principais centros culturais da época. (MENEZES, 2023, p.57). Thalberg tocou em cinco concertos na capital carioca, o último teve a presença da família Imperial e foi um concerto dividido com a sociedade coral alemã de amadores Saengerbund, que foi a beneficiada com a receita.

Artur Napoleão se tornou uma figura incontornável no cenário musical carioca, privou da companhia do imperador e da imperatriz, e de vários homens de letras e artes da corte. Em 1868, se fixou em definitivo no Rio de Janeiro, atuando intensamente como pianista, compositor e editor de música. Foi também grande divulgador e entusiasta da compositora carioca Francisca Gonzaga (1847-1935), mais conhecida como Chiquinha Gonzaga, nossa primeira pianista chorona (musicista de choro), autora da mais célebre marcha carnavalesca brasileira:Ó Abre Alas”, e primeira mulher maestrina de orquestra popular brasileira.

Louis Moreau Gottschalk teve uma aparição meteórica, inesquecível e trágica no cenário artístico carioca. Gottschalk foi um dos maiores virtuoses do piano de seu tempo, com sólida formação iniciada nos Estados Unidos e concluída em Paris. Foi um dos primeiros músicos das Américas a incorporar elementos nacionalistas nas suas composições, adicionando elementos norte e latino-americanos em suas obras. Em 3 de maio de 1869, Gottschalk chegou ao Rio de Janeiro, onde viveu até seu falecimento, em dezembro. Escreveu “Variações sobre o Hino Nacional”, estudou a língua portuguesa, colaborou generosamente com instituições de caridade e fez parte do meio musical carioca, tendo sido visto como um grande virtuose no Brasil. Um artigo do Jornal do Commercio de 23 de maio, assinado por “um diletante», relatou a chegada de Gottschalk à corte alguns dias após o ocorrido, quando o pianista foi ao imperador Dom Pedro II no Paço de São Cristóvão. O compositor norte-americano participou em vários concertos na corte carioca, os dois últimos foram apodados como “concertos monstro”, alguns com 16 pianos e 31 pianistas! Além de vários instrumentistas e cantores. O último concerto da vida do músico norte-americano, em 24 de novembro de 1869, foi uma grandiosa realização de Gottschalk no Rio de Janeiro, em que atuou como produtor, orquestrador e maestro. Foi um festival monumental, com a participação de 650 músicos no palco, oriundos de 18 grupos musicais. Feito inédito na corte. O espetáculo foi anunciado, pelo menos, desde outubro, e necessitou do trabalho constante do pianista na sua preparação. Ao final do festival, após o frenético aplauso de toda a audiência, o compositor e pianista napolitano, estabelecido no Rio de Janeiro, Achille Arnaud (1832-1894) ofertou a Gottschalk “uma coroa de ouro e esmalte, fingindo louro”. A pièce de résistance foi a “Grande Marcha Solemne Brasileira”, dedicada a D. Pedro II. O músico norte-americano veio a falecer em 18 de dezembro do mesmo ano. O corpo foi velado na Sociedade Philarmonica Fluminense, localizada na Rua da Constituição. O féretro foi carregado à mão até a Lapa, e de lá até o cemitério, em um enorme cortejo formado por amigos e simpatizantes. (MENEZES, 2022, p.111). A “Grande Marcha SolemneBrasileira”,composta como paráfrase de concerto do “Hino Nacional Brasileiro”, permaneceu na memória estética e política nacional, tendo feito parte do repertório de grandes virtuoses do piano brasileiro, como Guiomar Novaes (1895-1979), Artur Moreira Lima (1940-), Nelson Freire (1944-2021), entre outros, e foi utilizada por Leonel Brizola (1922-2004), como chamada dos pronunciamentos radiofônicos e televisivos do PDT em cadeia nacional. Durante o Segundo Reinado, o nacionalismo musical começou a surgir, ainda que de forma embrionária e lenta. Se na ópera o nacionalismo se restringia à temática, como no caso do “Il Guarany”, com libreto em italiano, escrito por Antonio Scalvini e Carlo D’Orneville, baseado no romance de José de Alencar (1829-1877), as composições instrumentais já apresentavam elementos rítmicos e modais, característicos da diversidade étnica brasileira, em peças como: “A cayumba, dança dos negros” (1857) de Antônio Carlos Gomes; “A Sertaneja” (1869) de Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913); o “Tango Brasileiro”(1890) de Alexandre Levy (1864-1892); aDança de Negros” (1887); e a “Série Brasileira” (1891) de Alberto Nepomuceno (1864-1920), a última obra, já composta no início da República. Nepomuceno era republicano e foi recebido, durante um chá no Paço, com bastante frieza pela princesa Isabel (1846-1921).

Conclusão

A corte carioca, durante século e meio, que vai do Vice-
Reinado até a queda da Monarquia, vivenciou uma intensa atividade musical, quer no teatro, igreja, palácio ou esfera privada. Assistiu a um deslocamento de gostos e repertórios notáveis, que vão da música italiana e portuguesa, na segunda metade do século XVIII; a produção brasileira a partir das últimas décadas do século XVIII; o triunfo avassalador de Rossini na década de 1820; o aggiornamento do gosto instrumental europeu no período da Regência; e a inclusão do Brasil no cânone ocidental ao longo do Segundo Reinado, como atesta o extraordinário conto de Machado de Assis, publicado em 1896, “Um Homem Célebre”, ao nos dar a conhecer os compositores santificados pelo protagonista do conto, o infeliz e talentoso Pestana:
“Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns, gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven”.  

O autor é pesquisador do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical – Lisboa.
mariotrilha@gmail.com

NOTAS DE RODAPÉ

1. O efetivo musical da Capela é composto por excelentes artistas, de todos os gêneros, castrados virtuosos e outros cantores italianos. A parte instrumental é muito forte. (Tradução do autor).

2. Ouvimos com frequência e admiração a música da Capela Real, onde quase todos os artistas eram negros (Tradução do autor).

3. O serviço do coro não envergonharia na Itália. Assisti as vésperas, e raramente fiquei tão satisfeita com a música do serviço noturno. (Tradução do autor).

4. A música da Capeal Real (sic) é muito refinada. (Tradução do Autor).

5. Compositor do “Hino Nacional do Brasil”.

6. Arthur Napoleão fez quatro tournées no Rio de Janeiro antes de se fixar definitivamente na cidade.

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