VI Encontro de Escritores 2016

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ANAIS DO VI ENCONTRO DE ESCRITORES DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA E LUSOFONIA 2016

Abraão Vicente Alice Goretti Pina Carmelinda Gonçalves Dai Varela Germano Almeida HÉlder Fortes João de Melo João Lopes Filho João Paulo Cuenca José Fanha José Luís Mendonça José Luís Peixoto Luís Cardoso de Noronha “Takas” Luís Carlos Patraquim Miguel Real Nuno Rebocho Ondina Ferreira Ricardo Pinto Vera Duarte Yao Jingming Zeca Medeiros




Ficha Técnica Título

LITERATURA E LUSOFONIA ANAIS DO VI ENCONTRO DE ESCRITORES DE LÍNGUA PORTUGUESA 2016 Edição

UCCLA Coordenação

Rui D’Ávila Lourido Editor

Maria do Rosário Rosinha Fotografia

Anabela Carvalho | UCCLA Design e paginação

Catarina Amaro da Costa | UCCLA ISBN

978-989-96607-7-9 Impressão

Imprensa Municipal Tiragem

300 exemplares Apoio

Agosto 2017

Os textos incluídos nesta obra, Literatura e Lusofonia 2016, são da responsabilidade exclusiva dos seus autores. A presente edição segue a grafia do Acordo Ortográfico de 1990, exceto quando os autores optam por manter a grafia anterior.


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CIDADE DA PRAIA CABO VERDE



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ÍNDICE

§ Texto de Apresentação

VI EELP (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa)

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§ Introdução

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§ Tema Geral | LITERATURA E DIÁSPORA 1º Tema | A Literatura e a Diáspora CASA DA VIDA, CAIS DA SAUDADE Alice Goretti Pina AGOSTINHO NETO E A CIDADANIA POÉTICA DO HOMEM NEGRO José Luís Mendonça

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33

A CONTESTAÇÃO DO LUSO­‑TROPICALISMO PORTUGUÊS DE GILBERTO FREYRE: EDUARDO LOURENÇO E BALTAZAR LOPES Miguel Real ROTA DAS LETRAS: EM DEFESA DA IDENTIDADE DE MACAU Ricardo Pinto SODAD E MEMÓRIAS NA LITERATURA CABO­‑VERDIANA DA DIÁSPORA Vera Duarte

42

49

54

ENTRE A REALIDADE E O IMAGINÁRIO: UM OLHAR SOBRE A LITERATURA CHINESA E MACAENSE DA ATUALIDADE Yao Jingming

61

2º Tema | A Literatura e a Insularidade INSULARIDADE E LITERATURA – A ATUAL PROBLEMÁTICA DA INSULARIDADE Germano Almeida

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AÇORES – UM LUGAR DE TODO O MUNDO João de Melo

82

HOMEM­‑ILHA João Paulo Cuenca

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ATAÚRO: DESTERRO E ABRIGO Luís Cardoso “Takas”

97

ILHA DE MOÇAMBIQUE – COMO SE FOSSE O ALEPH Luís Carlos Patraquim

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3º Tema | A Poesia e a Música CABO VERDE: QUANDO A MÚSICA É TODA A LITERATURA Abraão Vicente

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NA PONTA DO PÉ, NA BOCA DO POVO José Fanha

119

A MÚSICA É O TEMPO DA LITERATURA José Luís Peixoto

127

CRÓNICA DE UM FADO INSULANO Zeca Medeiros

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Painel Novos escritores ESCRITA E INSULARIDADE Carmelinda Gonçalves

135

O LIVRO INFANTO­‑JUVENIL COMO INTERCÂMBIO DE EMOÇÕES Dai Varela

137

DIÁSPORA, INSULARIDADE, POESIA E MÚSICA! Hélder Fortes

142

§ Iniciativas complementares

. Homenagens CORSINO FORTES, por Germano Almeida

147

ARMÉNIO VIEIRA, por Ondina Ferreira e Jorge Carlos Fonseca . O VI EELP visita a Cidade Velha LITERATURA CABO­‑VERDIANA: FINCAR OS PÉS NO CHÃO DAS ILHAS Nuno Rebocho

153

O VERSO E O ANVERSO DA LITERATURA CABO­‑VERDIANA ASPECTOS SOCIOCULTURAIS NA LITERATURA CABO­ ‑VERDIANA João Lopes Filho

163

166

§ Fotografias do VI EELP

174

§ Programa do VI EELP

189

§ Referências Biobibliográficas

195

012


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VI EELP

O

VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa (VI EELP), refletiu a sensibilidade e o saber de Cabo Verde e a cor da Cidade da Praia. Foi um abraço com o Oceano que abre as fronteiras do Mundo. Este Encontro de Escritores, tal como os que o precederam, teve como principais objetivos, a valorização da cultura como fator de desenvolvimento, a difusão e promoção das literaturas dos países que falam Português, o diálogo e a troca de experiências entre os escritores das literaturas dos diferentes países e a sua partilha com a população, em coordenação e parceria com a Câmara Municipal da Praia. Sob o tema geral – A Diáspora –, foram analisados três subtemas: A LITERATURA E A DIÁSPORA, A LITERATURA E A INSULARIDADE e A POESIA e A MÚSICA. Entre os 34 escritores participantes, contámos com 18 escritores de Cabo Verde e 16 escritores de outros 6 países Lusófonos, mais Macau. Nas atividades complementares ao VI EELP realizaram­‑se ainda duas sessões literárias, uma na Cidade Velha, e outra no Tarrafal. A cultura, e em especial a literatura dos Povos que se exprimem em Português, constituíram e continuam a forjar o nosso espírito universalista e tolerante, como uma chave do Mundo Global de Hoje. Vítor Ramalho Secretário­‑Geral da UCCLA 015



Introdução VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa

A

Diáspora é o tema comum aos três subtemas do presente livro, que divulga os textos que nos foram enviados pelos escritores que participaram do VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa (EELP), realizado na cidade da Praia nos dias 1 a 3 de fevereiro de 2016. Este encontro literário preocupou­‑se em refletir sobre três dos elementos essenciais à realidade da sociedade de Cabo Verde: a Diáspora, como resposta secular de sobrevivência às crises sociais, regularmente provocadas pelas longas secas e pela severa carência de alimentos; a Insularidade, como fenómeno complexo e integrador de múltiplos elementos, entre os quais o geográfico e os seus reflexos sociais e culturais, que caraterizam o Cabo­‑Verdiano; e a Poesia e a Música, como traços fundamentais da Cultura de Cabo Verde. No primeiro Tema – A LITERATURA E A DIÁSPORA – contamos com reflexões de escritores de São Tomé e Príncipe (Alice Goretti Pina), de Angola (José Luís Mendonça), de Portugal (Miguel Real), de Macau/ China (Ricardo Pinto e Yao Jingming) e, naturalmente, de Cabo Verde (Vera Duarte). No segundo Tema – A LITERATURA E A INSULARIDADE –, apresentamos textos de cinco escritores, três deles naturais de arquipélagos (Germano Almeida, de Cabo Verde, João de Melo, dos Açores, e Luís Cardoso, de Timor) e dois originários de continentes (João Paulo Cuenca, do Brasil, América do Sul, e Luís Carlos Patraquim, de Moçambique, África). 017


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O terceiro Tema – A POESIA E A MÚSICA –, é constituído por quatro textos cuja musicalidade vibra ao sabor do ritmo frásico de escritores de Cabo Verde (Abraão Vicente) e de Portugal (José Fanha, José Luís Peixoto e Zeca Medeiros). O encontro e diálogo entre diferentes gerações de escritores jovens e seniores sempre foi um dos objetivos da UCCLA para os Encontros de Literatura que promove, pelo que chamámos a debate, num painel específico, oito jovens escritores cabo­‑verdianos, cujo convite foi da responsabilidade da Vereação da Cultura da Praia e da Academia Cabo­‑Verdiana de Letras. Destes jovens escritores enviaram textos a Carmelinda Alves, o Dai Varela e o Hélder Fortes, que integram a quarta secção deste livro, intitulada “PAINEL – NOVOS ESCRITORES”. No seu primeiro Encontro de Escritores a realizar em Cabo Verde, em parceria com a Cidade da Praia, a UCCLA não podia deixar de Homenagear a Literatura de Cabo Verde, nas pessoas de dois dos seus principais escritores: o já falecido e saudoso Corsino Fortes, um dos fundadores da Academia Cabo­‑Verdiana de Letras, e Arménio Vieira, Prémio Camões. Por isso, incluímos no presente livro uma quinta secção, que intitulámos de “HOMENAGEM À LITERATURA CABO­ ‑VERDIANA”, com os textos que nos foram enviados e que foram apresentados como Oração de Homenagem respetivamente a Corsino Fortes e a Arménio Vieira. Germano Almeida, o consagrado escritor cabo­‑verdiano, foi o autor e orador da Homenagem ao Poeta Corsino Fortes, tendo destacado Corsino como o escritor por excelência da luta heroica do Povo de Cabo Verde pela sobrevivência, incorporando “elementos simbólicos do Universo Insular” com o “objetivo de constituir uma memória coletiva”. Para a análise à obra e Homenagem a Arménio Vieira, o VI EELP contou com duas intervenções: a de Jorge Carlos Fonseca, na sua qualidade de escritor e poeta e não como Presidente da República (esta intervenção não chegou a ser vertida em texto pelo autor); e a de Ondina Ferreira, onde a escritora destaca a cultura clássica do poeta Arménio Vieira e a “intertextualidade pessoana transfigurada” de muitos dos seus textos adaptados à realidade insular. Sublinha a escritora que “a poesia de Arménio Vieira corporiza­‑se numa tal subtileza imagística que a plurissignificação das palavras escolhidas, a linguagem metafórica, culta, multifacetada, a beleza rítmica, a musicalidade versatória … são tidas em plena valorização”. Nas atividades complementares do VI EELP tivemos o prazer de ser convidados pela Câmara Municipal da Ribeira Grande, popularmente conhecida por Cidade Velha, por ter sido a primeira cidade construída pelos europeus a sul dos Trópicos e, naturalmente, de Cabo Verde, para uma visita e encontro com dois dos seus escritores. 018


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Assim, inserimos neste livro uma sexta e última secção intitulada – “SOBRE A LITERATURA DE CABO VERDE – O VI EELP VISITA A CIDADE VELHA”. Nesta secção, o escritor Nuno Rebocho oferece­‑nos um texto cujo título é uma clara referência aos clássicos escritores “Claridosos” de Cabo Verde – “Fincar os pés no chão das ilhas: o verso e o anverso da Literatura Cabo­‑Verdiana” –, onde o autor, português, nascido em Moçambique, reflete num preâmbulo sobre a sua própria plasticidade na adaptação à diáspora Lusófona e muito em especial ao “Chão” de Cabo Verde. O autor faz a defesa de uma perspetiva inclusiva/ globalizante dos autores claridosos: “É a realidade cabo­‑verdiana uma encruzilhada de mundos – espelhada no seu crioulismo –, que nos autores de Claridade transparece, e não uma visão apátrida”. Rebocho defende o “aspeto dual – a um tempo «nacionalista» e a um tempo «evasionista» (ao cabo e ao resto, a realidade crioula) ”. O texto literário do historiador João Lopes Filho – “Aspectos Socioculturais na Literatura Cabo­‑Verdiana” refere que, “no «corpus literário» cabo­‑verdiano, se detetam aspetos socioculturais baseados em estruturas mentais ou conceptuais elaboradas através de uma rede categorial – a visão do mundo insular –, como sejam o arquipélago, o mar, a chuva, a estiagem, a seca, a fome, a evasão, a viagem, a emigração e a liberdade…”. O autor analisa a eterna interdependência dos Ilhéus entre a terra e o mar, e a evolução literária de Cabo Verde através de felizes binómios como “O Homem e a Terra”, “O Homem e a Água”, “Querer partir e ter de ficar”, “Querer ficar e ter de partir”, “Ter de partir para regressar”. 1.º Tema – A LITERATURA E A DIÁSPORA O primeiro tema começa com o texto de Alice Goretti Pina, intitulado Casa da Vida, Cais de Saudade. Para a autora são­‑tomense, a saudade é um sentimento que penetra os interstícios das casas e das vidas dos que foram obrigados a abandonar os campos, aldeias ou cidades dos seus países de origem, para trabalhar e sobreviver em terras longínquas. A autora diz­‑nos que “Casa da vida é esse lugar comum, a reunião de todos os lugares em nós, nós na permanência ou na passagem mais ou menos duradoura, mais ou menos voluntária, pelos lugares que a vida permite”. Goretti refere ainda que “A saudade é mais intensa, mais dilacerante, mais rebelde, por isso geradora de uma inspiração que facilmente se coloca ao serviço da literatura, da música, da poesia. … E todo esse caldo cultural, tradicional, consolida um sentimento de pertença, seja pela sua negação, seja pela sua afirmação, que é em regra reivindicativa”. 019


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O texto – Agostinho Neto e a cidadania poética do Homem Negro –, da autoria do escritor angolano José Luís Mendonça, analisa a poesia do líder Africano e o contexto histórico da época em que foi produzida. Afirma o autor que a poesia de Agostinho Neto se enquadra num discurso épico de desmitificação racial, considerando­‑a “poesia negra de expressão portuguesa, dada a sua posição de rejeição e condenação da opressão e estigmatização do homem negro”. José Luís Mendonça conclui que os valores transmitidos pela poesia de Agostinho Neto não só recuperam o direito à cidadania integral do Homem Negro, como defendem explicitamente que essa cidadania é “de toda a Humanidade”. Miguel Real apresenta­‑nos o texto A contestação do luso­‑tropicalismo português de Gilberto Freyre: Eduardo Lourenço e Baltazar Lopes, no qual desenvolve uma análise crítica destas teses com base nos argumentos de Eduardo Lourenço e de Baltazar Lopes. Miguel Real destaca o contexto histórico de justificação da situação colonial que o regime fascista em Portugal fez das teses luso­‑tropicalistas de Gilberto Freyre. O autor de Casa Grande e Sanzala não se demarcou desse aproveitamento político retrógrado do Estado Novo, e antes se aproveitou dele em seu benefício nas suas visitas às colónias sob domínio português. Aproveitamento serôdio que revestiu de roupagem pseudocientífica a tentar justificar um regime colonial que se pretendia apresentar como exemplar, por ser pretensamente menos violento e mais miscigenado que os restantes colonialismos. Miguel Real destaca a denúncia de Eduardo Lourenço da pretensa “superioridade do colonizador português nos trópicos” como “exemplo da confraternização racial e de sucesso, únicos, da civilização europeia nos trópicos”, ou ainda a denúncia de que Gilberto Freyre deforma e eleva “a valor universal o que não passa de um «complexo de inferioridade cultural transfigurado em apologia delirante»”. Ricardo Pinto, em Rota das Letras: em defesa da identidade de Macau, refere o contributo do Festival Literário de Macau para a defesa do património intangível, para o desenvolvimento cultural de uma Macau em acelerado processo de transformação e de erosão da sua identidade pelo domínio da economia de casino. O autor destaca a importância de preservar as raízes culturais tradicionais luso­ ‑chinesas contra a “descaracterização da identidade de Macau e, por vezes mesmo, de banalização do absurdo”, o que é feito igualmente através de edição de um livro de contos da autoria dos escritores convidados em cada Festival. Vera Duarte, presidente da Academia Cabo­‑Verdiana de Letras, reflete sobre Sodad e memórias na Literatura Cabo­‑Verdiana da Diáspora. Considera a autora que o facto de “O país ter nascido de fora para dentro, …, poderá ter deixado no cabo­‑verdiano 020


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uma caraterística idiossincrática e identitária que reflete uma saudade da terra longe, que terá motivado o caráter diaspórico do nosso povo”. Vera Duarte recorre a uma multiplicidade de autores para descrever as circunstâncias da emigração, nomeadamente, Luís Silva, “no sentido de ir buscar valores económicos, sociais e culturais para enriquecer a cabo­‑verdianidade”. A autora defende que “a emigração também serve para dar vazão à própria pulsão anímica daquele que emigra”, para além de ter sido uma forma de resistência ao regime colonial, onde se destacou a voz de Amílcar Cabral, como líder africano e como poeta, com o seu célebre poema “Mamãe Velha”. O poeta, tradutor e professor de português Yao Jingming, em Entre a realidade e o imaginário: um olhar sobre a literatura chinesa e macaense da atualidade, sintetiza as principais tendências destes dois mundos literários. Com uma maior abertura da China à criatividade literária e ao exterior, a literatura chinesa revigorou­ ‑se e alcançou um notável reconhecimento internacional, nomeadamente com a atribuição de Prémios Nobel, como ocorreu com o escritor Mo Yan, em 2012. Yao Jingming apresenta­‑nos alguns escritores chineses e fala­‑nos das suas obras de maior destaque, que utilizam a realidade chinesa atual como preciosa e inesgotável fonte de criatividade literária. Com a internet floresceram inúmeros meios de divulgação inovadores (sites, blogues, webchat …), o que igualmente permite uma enorme capacidade de expressão literária sem as tradicionais restrições oficiais. A realidade multicultural de Macau e os desafios do seu veloz e descaracterizado crescimento urbano são igualmente fonte de inspiração de bons escritores que se acolheram em Macau e a utilizam como encruzilhada marítima de culturas e fonte de inspiração. 2.º Tema – A LITERATURA E A INSULARIDADE Germano Almeida, no texto intitulado A atual problemática da insularidade, discorre sobre a noção de ilha e sobre as dificuldades dos meios de comunicação, de natureza diversa, numa espécie de retrospetiva à ilha onde nasceu, a Boa Vista da sua infância. O autor alude às compensações decorrentes da insularidade que permitiam o florescimento de contadores de histórias, compositores e tocadores de diferentes instrumentos e sobretudo à existência de cantigas de escárnio e mal dizer. O autor refere que se considera que, em geral, o ilhéu não receia o mar em si mas o que pode vir dele, e interroga­‑se sobre se se é diferente pelo facto de se ter nascido numa ilha ou num continente? A resposta a esta questão afigura­‑se­‑lhe irrespondível, o tempo que se leva a percorrer a ilha pode fazer dela um “continente” e o ser­‑se diferente tem mais a ver com o contexto, a vivência e com as pessoas que nos educam. 021


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Segundo o escritor, um certo alargamento do mundo vem com os livros e com a compreensão da emigração, tão impiedosa que fazia amontoar “viúvas de maridos vivos”. Elas, gastas pela labuta árdua do campo, eles, regressados da América velhos e trôpegos do trabalho penoso das fábricas. A emigração e a desertificação, fenómenos marcantes da insularidade, não foram o principal tema da literatura insular. Segundo Germano Almeida, para apreender a realidade da emigração um escritor terá de ler a comunicação epistolar – as cartas das “mulheres viúvas de maridos vivos”. Ironicamente o escritor admite que a insularidade, o ócio, pode ter criado condições para o desenvolvimento da cultura literária, desproporcional ao número de habitantes do arquipélago, o que mostra que a insularidade pode ter virtualidades. João de Melo, em Açores – Um lugar de todo o mundo, começa por descrever fragmentos da sua infância, no nordeste da ilha de São Miguel, revelando­‑nos o imaginário da sua meninice com o conhecimento e vivência de hoje. Esta incursão pela infância é marcada pelo poder e presença constantes da religião (Deus, Igreja e Anjos), cuja competência é soberana quer na cura e remédio da alma quer na penalização face ao pecado (ciclones, temporais, sismos…). Com o tempo vem o questionamento sobre a igreja, os silêncios e a abertura ao mar e ao mundo. Segundo o autor, afigura­‑se difícil explicar os Açores enquanto lugar de partida para o mundo porque “A linguagem das literaturas insulares não se confina a uma geografia … (a) criação literária não se cinge … a um cânone estritamente insular. … A literatura é o sexto continente da terra. … esse tal lugar de todo o mundo que afinal nasce connosco,…e só assim se faz único, à medida de cada homem de cada livro, de cada escritor”. João Paulo Cuenca apresenta­‑nos À guisa de prólogo e Homem­‑Ilha, um texto em duas partes, em que o primeiro – À guisa de prólogo –, dá conta ao leitor da sua mundividência… do desejo de ficar e de partir e de como se sente razoavelmente feliz no “resto do mundo”. Esta ambivalência do autor leva­‑o a reconhecer que “parece que sempre serei feliz onde não estou”. Refere­‑se ainda à incapacidade de transformar o seu nomadismo em emigração, no receio de ser esquecido, de precisar de fazer falta na sua cidade, o Rio de Janeiro. Em Homem­‑Ilha, o autor critica as transformações urbanas do Rio de Janeiro motivadas por respostas imediatistas, nomeadamente as realizadas para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. A pretexto da revitalização, o Rio sofre todo o tipo de atrocidades, como desalojamentos arbitrários dos habitantes mais desfavorecidos, bem como a descaracterização do seu património histórico, isolando em novas ilhas comunidades marginalizadas. 022


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O escritor Luís Cardoso “Takas” descreve em Ataúro: Desterro e abrigo, na primeira pessoa, a ilha de Ataúro enquanto destino de desterrados (indesejados, presos políticos ou de delito comum). Conta­‑nos que o pai, enfermeiro, é colocado na ilha, terra inóspita, e é aí que o autor conhece Mário Lopes, preso pela PIDE na Guiné­‑Bissau e desterrado para a ilha de Ataúro. Mário Lopes, homem vivido, torna­‑se na personalidade da ilha e é através dele, da sua ligação ao mundo e das suas histórias que Luís Cardoso inicia a sua incursão planetária e o seu interesse acerca do mundo que ficava do outro lado do mar. Luís Carlos Patraquim, em Ilha de Moçambique­ – Como se fosse o Aleph, descreve a Ilha fazendo referência ao seu papel histórico nos Descobrimentos, ilustrando/legitimando, com excertos de obras poéticas de uma ilustre galeria de autores, que a ilha é um lugar de poetas e o mais que se queira. Relembra que Luís de Camões “canta­‑a” nos Lusíadas e nela vive cerca de 2 anos, no regresso de Goa. Jorge Luís Borges descreveu o mítico Aleph como “um dos pontos do espaço que contém todos os pontos”, atrevendo­‑se o autor a considerar a Ilha como um desses pontos paradigmáticos. A esta perceção de Ilha também não resistiram muitos outros “de Nelson Saúte a Mia Couto, de José Craveirinha a João Paulo Borges Coelho ou Calane da Silva. E Okapi, os mais novos todos, presos ao cordão de ouro, umbilical”. 3.º Tema – A POESIA E A MÚSICA Abraão Vicente, em Quando a música é toda a literatura, refere­‑se às memórias da sua infância onde, no dia­‑a­‑dia, “tudo era música e som. Tudo era poesia… a música (era) toda a literatura e o contrário também”. Abraão Vicente faz uma “viagem” pelas várias ilhas cabo­‑verdianas identificando seus escritores e cantores, e afirma que “não há literatura e poesia cabo­‑verdiana que não tenha bebido da sua música”. Independentemente de receberem novos sons, oriundos de outras origens, é no funaná, na coladeira, na morna… que o povo das ilhas continuará a recriar a sua essência. “É nestes ritmos que toda a literatura cabo­‑verdiana constituída música e toda a música feita literatura (continuarão a alimentar­‑se) da mesma fonte: as ilhas, o arquipélago, Cabo Verde”. O poeta e cantor José Fanha, em Na ponta do pé, na boca do povo, pergunta­‑se como nasce uma canção e ensaia possíveis respostas na escrita dos ritmos que “vem da terra, do corpo, do coração”. Referindo a evolução da língua portuguesa, com 800 anos de história, o autor assinala a sua plasticidade na capacidade de adaptação às várias geografias, continentes e mares onde se implantou, de África ao Brasil e à 023


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Ásia, e onde foi desenvolvendo singularidades que espelham a riqueza da vivência dos diferentes povos. Quer em ditadura, quer em democracia, a palavra­‑canção assume­‑se como uma arma contra as injustiças e as desigualdades sociais. Ainda segundo o autor, a poesia erudita dialoga fecundamente com a música popular divulgando grandes poetas clássicos e contemporâneos (da poesia trovadoresca, dos cantautores, ao fado…). A música, através de expressões urbanas internacionais (rap e hip­‑hop) continua a ser um meio de expressar a “denúncia da situação de abandono a que a juventude é muitas vezes votada”. O ser humano continua a criar espaços de diálogo, “onde a canção viaje da voz do povo à ponta do pé”. José Luís Peixoto apresenta A música é o tempo da literatura, onde defende que a “poesia é uma síntese de toda a literatura. Se a poesia aspira a ser música é porque a literatura, toda ela, também aspira a ser música”. Peixoto sustenta que o som está sempre presente na literatura e é relevante mesmo quando lemos em silêncio. “Quando medida pelo humano, a literatura não é infinita. É …em cada um dos seus fins que se constrói a música…nas suas pausas. Há sons que começam e acabam,…palavras que começam e acabam. É assim no samba e no semba, na morna e no fado …saibamos aproveitar cada pausa, cada passo, para inscrevermos ritmo, porque é o fim que permite o tempo, porque é o tempo que permite a música, a literatura e a vida”. Na Crónica de um fado insulano, texto de inspiração poética de Zeca Medeiros, é feita a ponte entre os mundos insulares dos Açores e de Cabo Verde. “Insulano será meu fado. Na voz e no rosto desta gente feliz com lágrimas, irei partilhar suas dispersas latitudes, seus amores desencontrados, suas feridas coloniais. Irei navegar suas errâncias, seus regressos, seu pranto feliz derramado à flor da terra, à flor do mar.” PAINEL – NOVOS ESCRITORES A jovem autora Carmelinda Gonçalves adverte, em Escrita e insularidade, para um contexto cabo­‑verdiano pouco promissor para os jovens escritores, referindo­ ‑se à necessidade de uma aposta real na literatura que comece desde os primeiros anos de escola e à importância de facilitar o acesso ao livro pela multiplicação de bibliotecas e pelo reforço do incentivo à leitura e à escrita. A autora alerta ainda para a existência de um corpo docente pouco motivado para a leitura, e para a urgência de se darem a conhecer os autores nacionais, promovendo as suas obras. 024


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Dai Varela apresenta o texto O livro infanto­‑juvenil como intercâmbio de emoções, onde refere a importância do contar estórias para fecundar o imaginário das crianças, o que não substitui mas antes complementa a literatura infanto­‑juvenil publicada em formato de livro. O autor apresenta várias propostas de melhoria do panorama da literatura infanto­‑juvenil, realçando o papel fulcral de pais, professores, autores e do Estado no desenvolvimento de hábitos de leitura, na facilitação da circulação e embaratecimento do livro. O jovem escritor defende que “é preciso olhar­‑se para o livro infantil com um intercâmbio de emoções e sentimentos que precisa de espaço económico para produção de saberes e arte”. Hélder Fortes enaltece em Diáspora, insularidade, poesia e música, as raízes culturais do povo cabo­‑verdiano para a representação poética e musical que, da sua insularidade, se estendem em diásporas aos vários continentes onde o cabo­ ‑verdiano, a sua música e dança se fixaram. Como nota final a esta introdução, parece­‑nos importante referir que muitos dos presentes textos confirmam que as literaturas da Diáspora em língua portuguesa refletem elementos comuns às geografias da emigração onde se desenvolvem. Quer sob o manto da “invisibilidade” e da surpresa deslumbrada em relação às realidades sociais e culturais desconhecidas dos países de acolhimento; quer sob um “limbo identitário” que leva ao questionamento permanente de si próprio, associado ao sentimento de saudade latente face aos países de origem. Assim, afigura­‑se pertinente repensar as literaturas nacionais num contexto das novas sociedades multiculturais, e as relações que estabelecem entre elas. Os respetivos cânones nacionais estão, desta forma, confrontados com o desafio de serem alargados, para abranger e incluir os diferentes textos e os vários autores das respetivas diásporas. Como João de Melo, direi que a Literatura é um Sexto Continente, o lugar paradigmático onde o individual e o local se transmutam ou elevam à dimensão Universal.

Rui d’Ávila Lourido Coordenador Cultural 025



1º TEMA

A LITERATURA E A DIÁSPORA

1. ALICE GORETTI PINA | Casa da vida, cais da saudade 2. JOSÉ LUÍS MENDONÇA | Agostinho Neto e a cidadania poética do homem negro 3. MIGUEL REAL | A contestação do luso­‑tropicalismo português de Gilberto Freyre: Eduardo Lourenço e Baltazar Lopes 4. RICARDO PINTO | Rota das Letras: em defesa da identidade de Macau 5. VERA DUARTE | Sodad e memórias na literatura cabo­ ‑verdiana da diáspora 6. YAO JINGMING | Entre a realidade e o imaginário: um olhar sobre a literatura chinesa e macaense da atualidade


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Conferencistas do 1º tema, A LITERATURA E A DIÁSPORA EM CIMA:

Da esquerda para a direita, Alice Goretti Pina, José Luís Mendonça e Miguel Real EM BAIXO:

Da esquerda para a direita, Ricardo Pinto, Vera Duarte e Yao Jingming


CASA DA VIDA, CAIS DE SAUDADE* ALICE GORETTI PINA

D

iáspora – no dicionário, entre outras definições, tem o significado de emigração, ou saída forçada da pátria. Se pudesse ser um lugar físico, a esse lugar eu chamaria: Casa da Vida, Cais de Saudade. Francisco José Tenreiro, poeta santomense, mostra­‑nos (o que é a diáspora) no longo poema “Coração em África”1: “Caminhos trilhados na Europa de coração em África Saudades longas de palmeiras vermelhas, verdes, amarelas tons fortes da paleta cubista que o sol sensual pintou na paisagem; saudade sentida de coração em África ao atravessar estes campos do trigo sem bocas das ruas sem alegrias com casas cariadas pela metralha míope da Europa e da América da Europa trilhada por mim Negro de coração em África.” (“Coração em África”, excerto)

1

Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, 1951­‑1963, Angola/S. Tomé e Príncipe, I Volume, UCCLA. Lisboa, 2014

*Sem Acordo Ortográfico

029


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São tão variados os motivos que podem forçar­‑nos a sair da “nossa casa” e colocar­‑nos numa situação transnacional como fortes são as bagagens que trazemos e as novas raízes que imperiosamente criamos na “nova casa”, onde a saudade passa a instalar­‑se, ou a surgir em visitas geralmente carregadas de nostalgia. Diria que, na diáspora, o olhar sobre o cais de partida tem outro alcance. Seja no que toca ao ambiente familiar, social ou político. A emoção está mais à flor da pele nas abordagens que se fazem. Quando há revolta, esta é mais explosiva. A saudade é mais intensa, mais dilacerante, mais rebelde, por isso geradora de uma inspiração que facilmente se coloca ao serviço da literatura, da música, da poesia. Ou da união das mesmas numa única manifestação, como se pode apreciar (embora sem outro instrumento musical além da voz, que é aliás o instrumento a partir do qual foram criados todos os outros) noutro texto de Francisco José Tenreiro: “Teu rosto de fruto olhos oblíquos de safú boca fresca de framboesa silvestre és tu. És tu minha ilha e minha África forte e desdenhosa dos que te falam à volta.” ou neste retalho do poema do também santomense Marcelo da Veiga, na morte do poeta Caetano Costa Alegre: “Alegre o chamaram; Para a glória o fadaram, P´ra triunfador nasceu, Mas como a ave que pelo espaço corre E, após primeiro trilho cai e morre, Costa Alegre morreu!” E ainda na velha canção levada mundo fora pela diva cabo­‑verdiana Cesária Évora: “Quem mostrabo ês caminho longe quem mostrabo ês caminho longe ês caminho pa São Tomé…”

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O sentimento gerado por se estar longe tem, portanto, força galvanizadora de expressões e de acções que se afirmam não só no domínio da literatura, da poesia, da música, mas de outras manifestações humanas, consideradas artísticas ou não. É na diáspora, na literatura diaspórica, sobretudo africana, que se recorda vividamente o cheiro da terra, a canção da chuva no telhado de zinco, a melodia do cantar do galo pela manhã, a luz intensa do sol, o sabor das frutas e mais coisas do quotidiano, que passam a revestir­‑se de magia, a aproximar­‑se da ideia de autenticidade, de perfeição até, porque a distância, quer física, quer temporal, aperfeiçoa (ou distorce) as perspectivas, favorecendo diferentes formas de se sentir e de se posicionar perante o presente, mas sobretudo na relação com o passado. As origens, as influências, o viver o presente no espaço e no tempo sem a possibilidade (porque não existe essa possibilidade) de desligamento com tudo o que ficou do outro lado da fronteira, no outro cais, de onde se partiu mas onde para sempre se ficou, propicia e potencia o resgatar de vivências, convicções, impressões e ilusões. A escrita de Olinda Beja, escritora santomense arrancada de São Tomé, da família materna, ainda criança, e levada para Portugal, onde cresceu, é marcada por essa impossibilidade de desligamento, pela necessidade de regresso, pela procura de tudo o que teria vivido e lhe foi negado. Assim testemunha o seu romance Quinze dias de regresso, inspirado nessa sua história de vida, com a personagem Xininha, como mostra este excerto de um poema do seu recente livro de poesia À sombra do Oká: “passa o vento. Leva a voz da palaiê 2 amantizada de seu quali 3 bem prenhe de iguarias solta o grito por dentro das nossas lembranças canção transparente como fogo d’jambi 4 é de Blu­‑Blu que vem teu regresso em cada estória serpenteias a cidade e desaguas sempre na canoa de tuas vidas.” E de O Cruzeiro do Sul, do poema intitulado “Lembranças para Aveiro”, diz Olinda Beja:

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Palaiê – peixeira que vende o peixe porta a porta. Quali – cesta de palha em forma de alguidar que as vendedoras ambulantes levam à cabeça com os seus produtos. Em Angola, tem o nome de quinda. D´jambi – ritual de comunicação com os mortos, com vários momentos e puita, uma dança com ritmo muito acelerado. 031


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“nesta lonjura de pranto onde o sol amareleja a pele dos homens onde o sorriso toma contornos de distância no azul esverdeado das palmeiras onde o silêncio é lume em fins de dia e o mar se debruça nos cadernos das crianças onde vislumbro da janela do meu chão o vulto das gaivotas que voam nos teus sapais e cheiram a sal a maresia a navios de partida e de chegada.” Casa da vida é esse lugar­‑comum, a reunião de todos os lugares em nós, nós na permanência ou na passagem mais ou menos duradoura, mais ou menos voluntária, pelos lugares que a vida permite. O diferente na diferença encontrada fora da casa­‑berço é geralmente tomado por uma consciência mais nítida de si enquanto indivíduo em permanente formação. Mas, a par dessa consciência de si, o reconhecimento e maior valorização dos elementos que formaram e caracterizam a sua identidade, tal como a percebe. E todo esse caldo cultural, tradicional, consolida um sentimento de pertença, seja pela sua negação, seja pela sua afirmação, que é em regra reivindicativa.

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AGOSTINHO NETO E A CIDADANIA POÉTICA DO HOMEM NEGRO* JOSÉ LUÍS MENDONÇA

Si fike pamwe n’olutu, kasili dule (No que respeita à essência da natureza humana, todos nós somos iguais: nenhum difere do outro.) Provérbio da filosofia Ovambo.

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o colóquio sobre Poesia Angolana organizado em Luanda, em 1958, pelo poeta e ensaísta angolano Mário António, procedeu­‑se à divisão da poesia criada em Angola em 5 categorias: – A que espelhava o nacionalismo colonialista que só reconhece como válidos os [poemas] de matriz lusa. – Poesia tradicional dos povos de Angola (socialmente enquadrada e servindo fins sociais). – Poesia de Angola – manifestação poética de indivíduos europeus ou europeizados (Tomaz Vieira da Cruz e Geraldo Bessa Victor) – aspectos exteriores, paisagísticos ou preconceito psicológico. – Poesia Angolana – Produto cultural do homem angolano, tal como ele é (António Jacinto, Aires de Almeida Santos, Viriato da Cruz). – Poesia Negra de expressão portuguesa (Agostinho Neto) – “a afirmação de uma posição em face de um problema”. *Sem Acordo Ortográfico

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Este singular destaque da poesia de Agostinho Neto na categoria de Poesia Negra como sendo “a afirmação de uma posição em face de um problema” impõe­ ‑nos uma reflexão: pode uma poesia ser considerada Negra pela mera afirmação de uma posição em face de um problema? A resposta é clara. Há, portanto, nesta análise saída do colóquio de 1958, um sentido inconcluso, um certo hermetismo que tolhe o seu perfeito entendimento. Só uma consideração do momento histórico em que esta conclusão foi elaborada (era colonial) nos permite dilucidar­‑lhe o enigma implícito. O laconismo foi premeditado. Mário António não podia, sob o regime colonial, alongar­‑se e esclarecer que a poesia de Agostinho Neto é poesia Negra de expressão portuguesa dada a sua afirmação de uma posição (de rejeição e condenação) em face de um problema (de opressão colonial do homem negro). O outro aspecto que ilustra esta classificação de poesia Negra é aferido do carácter identitário da obra de Agostinho Neto, sobretudo os recursos estético­‑formais e o hibridismo linguístico inaugurado pelo Poeta, com inserções de versos inteiros em língua Kimbundu e a utilização reiterada dos referentes culturais africanos e angolanos (quissange, marimba, batuque, tambor africano, sanzala, musseque, soba, carregadores bailundos, kiocos contratados, escravatura, Cuanza, Talamungongo, Cunene, Mayombe, Madagáscar, Zaire, Lunda, Congo, quitandeira, mulemba, etc.). O poeta introduz na sua obra os mais variados géneros da escrita poética, tanto os colhidos do Ocidente (lírico, épico, dramático), quanto os bebidos na sua cultura Bantu (mimbu). Este é o caso muito particular dos poemas “Havemos de Voltar” e “Caminho do Mato”. Criar poesia significava, para Agostinho Neto, afirmar o africanismo, a identidade cultural de uma Nação representada nos seus versos, e essa afirmação constituía um esforço de negar, pela arte da palavra, os dogmas civilizacionais do colonialismo. Por isso, ele canta “As terras sentidas de África/ (...) fervilham­‑nos em sonhos/ ornados de danças de imbondeiros sobre equilíbrios/ de antílope/ na aliança perpétua de tudo quanto vive”. Feitas estas considerações de ordem formal, centramos agora o nosso pensamento na questão ideológica colocada no início: o problema particular da despersonalização do homem africano e do seu descendente e a posição do poeta. O mito semiológico da etno­‑história A produção poética de Agostinho Neto, reunida nas obras Sagrada Esperança, Renúncia Impossível e Amanhecer, encontra­‑se historicamente localizada entre os anos de 1945 a 1960. 034


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Este período de quase duas décadas é balizado pelo término da II Grande Guerra e pelo início da emancipação dos povos das ex­‑colónias africanas. O fim da hecatombe social provocada pela Guerra Mundial trouxe uma evolução na reafirmação mais abrangente dos direitos universais do Homem, segundo o princípio da igualdade que negava a distinção de raça e de cor. Este princípio era o corolário de uma longa luta dos povos colonizados e oprimidos de todo o mundo. Era o corolário da grande revolução de Santo Domingo, de 23 de agosto de 1791, determinante para a abolição do tráfico de escravos transatlântico e a emancipação dos povos da América Latina e das Caraíbas. Era o reafirmar dos ideais de liberdade e igualdade da pessoa humana, proclamados pelas revoluções americana e francesa do século XVIII. Também estava já ampliado o conceito de cidadania substantiva com a obra clássica de T. H. Marshall – Citizenship and Social Class, de 1950, como “um referencial de conquista da humanidade” (José Murilo, 2001). Contudo, apesar dessa evolução histórica que teve na precisão conceptual de Kant o grande contributo filosófico para a determinação da dignidade da pessoa humana, o Poeta lamenta, em “Aspiração”, um poema que soa como um blue pela boca do trompete: “Ainda o meu canto dolente/ e a minha tristeza/ no Congo na Geórgia no Amazonas // ... onde os negros murmuram: ainda”. De onde partia este canto dolente, esta tristeza repartida por três continentes? No Congo (África), o quadro era composto de “crianças nuas das sanzalas do mato/ os garotos sem escola/ ... os contratados a queimar vidas nos cafezais/ os homens negros ignorantes/ que devem respeitar o branco/ e temer o rico/ ... bairros de pretos/ além onde não chega a luz eléctrica/ ... com fome/ com sede/ com vergonha/ ... com medo dos homens” (“Adeus à hora da largada”); “a alma/ amarfanhada pelo sofrimento...” (“Partida para o contrato”); “Longa fila de carregadores// ... Cheios de injustiças/ caladas no imo das suas almas...” (“Contratados”); “servos de pais também servos” (“Kinaxixi”)”; “África de calças de fantasia/ ... onde milhões se irmanam na mesma miséria/ atrás de fachadas de democracia de cristianismo de igualdade/ ... nossa África/ onde temos um pedaço da nossa carne calcado sob as botas dos magalas/ ... ombros encurvados do povo que desce a calçada/ negro negro de miséria negro de frustração negro de ânsia/ ... prostituição das cubatas esfuracadas/ ... chanfalhadas dos sipaios/ através dos muros das prisões” (“À reconquista”); “Nós/ da África imensa/ ... da África/ debaixo da garra/ sangrantes de dor e esperança de mágoa e força/ ... sangrando fome ignorância, desesperos morte/ nas feridas no dorso negro da criança da mãe da honestidade” (“Sangrantes e germinantes”); “em europas sorridentes de farturas e turismos/ sobre a fertilização do suor negro/ nas 035


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áfricas envelhecidas pela vergonha de serem áfricas” (“Na pele do tambor”); “... quando o Atlântico/ pela força das horas/ devolveu cadáveres/ envolvidos em flores brancas de espuma” (“Massacre de S. Tomé”); “há uma cela de chumbo sobre os ombros do nosso irmão// .. Ao lado/ alguém geme/ com os dedos debruados de sangue/ que escorre das unhas rebentadas pela palmatória” (“Noites de cárcere”); “No mundo/ ... o apartheid na África/ ... eles espancando­‑nos/ e pregando o terror” (“Um aniversário”). Na Geórgia e no Amazonas (e no resto do Mundo), os versos de Agostinho Neto fazem uma invocação: “A ti, negro qualquer/ meu irmão do mesmo sangue/ Eu saúdo!// Esta mensagem/ seja o elo que me ligue ao teu sofrer” (“Saudação”); “Ó negro esfarrapado/ do Harlem/ ó dançarino de Chicago/ ó negro servidor do South// ... negros de todo o mundo” (“Voz do sangue”); e apresentam quadros sociais em que aparece um ser humano “Vendido/ e transportado nas galeras/ vergastado pelos homens/ linchado nas grandes cidades/ esbulhado até o último tostão/ humilhado até o pó/ sempre sempre vencido/ ... Perdeu a pátria/ e a noção de ser// Reduzido a farrapo/ macaquearam os seus gestos e a sua alma/... Velho farrapo/ negro/ perdido no tempo/ e dividido no espaço” (“Velho Negro”); “o homem/ com os olhos no chão./ Vê­ ‑se­‑lhe o dorso sob a camisa rota/ e carrega o pesado fardo/ da ignorância e do temor/ ... Contudo/ já foi senhor/ foi sábio/ antes das leis de Kepler/ foi destemido/ antes dos motores de explosão.// Esse mesmo homem/ essa miséria.../ ... tenho saudade/ ... De ti meu irmão/ de mim/ em busca de todas as Áfricas do mundo.” (“Sombras”); “Os homens/ cuja voz descansou sob a condição e sob o ódio/ e construíram os impérios do Ocidente/ as riquezas e as oportunidades da velha Europa// ... Povo negro/ homens anónimos no espírito da triste vaidade branca” (“A voz igual”); “os letreiros medrosos/ que às portas de bares, hotéis e recintos públicos/ gritam o vosso egoísmo/ nas frases: “SÓ PARA BRANCOS” ou “ONLY TO COLOURED MEN”/ Negros aqui. Brancos acolá.// ... membros do Ku­‑Klux­‑Klan/ .. Não há negros para linchar!/ ... Nunca houve negros! A África foi construída só por vós/ A América foi colonizada só por vós/ A Europa não conhece civilizações africanas/ Nunca um negro beijou uma branca/ nem um negro foi linchado/ nunca mataram pretos a golpes de cavalo­‑marinho/ para lhes possuírem as mulheres/ nunca extorquiram propriedades a pretos/ não tendes, nunca tivestes filhos com sangue negro/ ó racistas de desbragada lubricidade// ... em New­‑York ... em Cape­‑Town/ gritam pelas ruas/ a foguetear alegria nos ares:/ não há negros nas ruas!// ... Viva a civilização dos homens superiores/ sem manchas negróides/ a perturbar­‑lhe a estética!” (“A renúncia impossível”). Como é que se tornou possível este impressionante quadro de violações dos direitos humanos, no período referenciado da produção da poesia de Agostinho Neto? 036


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O professor brasileiro de Sociologia Elimar Pinheiro do Nascimento explica que “negro e branco não são qualidades definidoras do género humano, mas antes criações históricas, culturais. E, por serem culturais, políticas e económicas. (..) O negro é uma história, uma conspiração, uma gesta, um poema de dor. (...) O negro não é homem, é uma invenção da civilização branca. Uma de suas obras fantásticas, como o nazismo, o computador, o satélite, o rock...”. No mesmo diapasão tange o violino de René Depestre: “A ideologia escravista codificou as categorias raciais (fetiches e categorias da produção mercante) como produtos da natureza, embora pertencessem essencialmente à sociedade e à sua história político­‑económica. Os caracteres genéticos, as expressões da maravilhosa dissemelhança da espécie humana, eram integrados, nas necessidades de comércio, a um mito semiológico que hierarquizou e regulou o valor dos homens a partir da sua cor. Esta semiologia somática deu lugar a uma dupla simplificação. Membros das diferentes nações europeias: espanhóis, ingleses, franceses, holandeses, portugueses, dinamarqueses, etc., de diversas condições sociais: comerciantes, financistas, camponeses, artistas, sacerdotes, militares, marinheiros, clérigos, prostitutas, plebeus ou nobres, foram feitos brancos por um mito racial que valorizou e idealizou ao extremo a cor da pele, seus traços físicos, sua história, suas crenças e sua cultura. Representantes de diferentes etnias africanas: yorubas, ibos, bambaras, angolanos, guineenses, sudaneses, bantos, daomeanos, senegaleses, e outros de diversas condições sociais: agricultores, caçadores, pescadores, artistas, bruxos, guerreiros, griots, chefes e notáveis das tribos, foram feitos negros por um dogma racial que os desvalorizava, rebaixando ao extremo a cor da pele, suas culturas, seus cultos religiosos e o conjunto de sua história pré­‑colonial. Por essa operação, o capitalismo estruturava em um todo orgânico as clivagens de classes e de ‘raças’”. Inaugurava nas Américas o tempo de uma etno­‑história determinada por etno­‑estruturas sócio­ ‑económicas. Estavam criadas as condições para que conflitos fundamentalmente sociais assumissem a forma e a aparência de conflitos raciais.” Esta constatação vem reflectida nos versos do poema “Na pele do tambor”: “Nunca me pensei tão pervertido/ ó impureza criminosa dos séculos coloniais”. O discurso épico da desmitificação racial Como afirmámos na introdução, a poesia de Agostinho Neto considera­‑se poesia Negra de expressão portuguesa, dada a sua posição de rejeição e condenação da opressão e estigmatização do homem negro. 037


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Colocado o problema no capítulo precedente, vamos agora passar à análise da posição defendida no discurso poético de Agostinho Neto. Como no início afirmámos, e assim corrobora o escritor Henrique Guerra: “Não se podia encarar muito directamente esses problemas, só de uma maneira mais cautelosa.” Daí o carácter lacónico da classificação da poesia Negra de Neto. Diz o professor Pires Laranjeira que “Neto retoma (...) versos (...) sobre o trabalho dos africanos e afro­‑descendentes que ajudaram a construir (alicerces d)a humanidade, afirmando, pois, a existência do negro enquanto ser com consciência social e protagonista da história, contribuindo para a mudança radical de perspectiva da «questão negra»”. Temos aqui, pois, vigente, um conceito novo de cidadania, com o qual operaremos a seguir: o conceito de cidadania poética, expresso nos poemas que afirmam “a existência do negro enquanto ser com consciência social e protagonista da história”. Se esta qualidade do homem (negro) era negada na sua existência terrena, pelos quatro cantos do planeta, Neto afirma­‑a nos seus versos, que ele define como “o cântico inaugural da Nova África” (“Pausa”). Trata­‑se, portanto, de uma cidadania virtual, verificada apenas no verbo, como utopia em longo processo de maturação histórica. Trata­‑se da epopeia do Homem (supostamente) Negro na sua travessia da História e na sua relação vital com o Cosmos “seguindo/ o caminho das estrelas/ pela curva ágil do pescoço da gazela”. Em termos de cidadania formal, que aponta para a nacionalidade, a pertença a um Estado­‑Nação, no âmbito da sociologia moderna (T. H. Marshall), lemos em “O Içar da Bandeira”: “Os braços dos homens/ a coragem dos soldados/ os suspiros dos poetas/ Tudo todos tentavam erguer bem alto/ acima das lembranças dos heróis/ Ngola Kiluanji/ Rainha Ginga/ todos tentavam erguer bem alto/ a bandeira da independência”. E no poema “Depressa”, a nação é um facto: “e cantemos numa luta viva e heróica/ desde já/ a independência real da nossa pátria.” Mas a consciência de Neto traslada para os versos o sentido mais amplo de cidadania substantiva que engloba a posse de direitos civis, políticos e sociais. No poema “Sangrantes e germinantes”, o Autor faz uma oferenda: “Nós/ da África Imensa/ debaixo da garra/ ... – Eis as nossas mãos/ abertas para a fraternidade do mundo/ pelo futuro do mundo/ unidas na certeza/ pelo direito pela concórdia pela Paz.” Estes versos incorporam o direito à liberdade de expressão e de pensamento e o direito à justiça pelo homem negro. Quando assegura, no poema “Afirmação” (Renúncia Impossível): “Seguirei com os homens livres/ o meu caminho/ para a liberdade e para a Vida”, pensamos no direito inerente à liberdade individual. 038


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Quanto aos direitos políticos, estes são exercidos na pátria da poesia, como se lê em “A voz igual”: “Os homens saídos dos cemitérios da ignorância/ das ossadas insepultas dos arrabaldes das cidades/ nas sanzalas e nas terras estéreis/ são os eleitos/ os participantes efectivos no festim da nova vida/ e das suas vicissitudes.” Existe já um processo de “construção da pátria libertada/ conscientemente na construção da pátria/ sem que o germe da exploração lhe penetre/ sem que a voz nauseabunda do capataz/ anuncie o cair do chicote.” Para isso, o poema convida­‑nos a “Reencontrar a África no sorriso/ no choque diário com os fantasmas da vida/ na consagração da sabedoria e da paz/ livres do constrangimento livres da opressão livres” numa perspectiva prática da cidadania, enquanto participação activa na vida da comunidade. No que tange aos direitos civis, o homem que aqui se postula afirma: “As minhas mãos colocaram pedras/ nos alicerces do mundo/ mereço o meu pedaço de pão.” (“Confiança”) O direito à expressão cultural mostra a imagem dos cidadãos que “Cantam nas praças e nos templos da sabedoria/ as raparigas os poetas o brilho das estrelas/ mergulhadas as raízes no húmus ancestral da África.” Assim “caminha o povo infatigável para o reencontro/ para de novo se descobrir e fazer/ nas melodias e nos cheiros ancestrais/ ... no respeito dos vivos/ nas orgíacas práticas do nascimento e da morte/ na iniciação da vida e do amor/ no milagroso pacto entre o homem e o cosmos/ ... nas explosões humanas do dia a dia/ na marimba no chingufo no quissange no tambor/ no movimento dos braços e corpos/ nos sonhos melodiosos da música.” A formulação da cidadania na poesia de Neto adopta a forma de antítese histórica universal, no poema “Antigamente era”: “Antigamente era o eu­‑proscrito/ antigamente era a pele escura­‑noite do mundo// ... Mas dei um passo/ ergui os olhos e soltei um grito/ que foi ecoar nas mais distantes terras do mundo/ Harlem/ Pekim1/ Barcelona/ Paris/ Nas florestas escondidas do Novo Mundo// E a pele/ o espírito/ o canto/ o choro/ brilham como gumes prateados.” A nível global, o negro deixa de ser conotado pela sua condição natural da cor, para ser um “Povo genial heroicamente vivo/ onde outros pereceram/ de vitalidade inultrapassada na História/ alimentou continentes e deu ritmos à América/ deuses e agilidade nos estádios/ centelhas luminosas na ciência e na arte.”

Como grafado no original de A. Neto.

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Conclusão De acordo com Depestre, “Os fatos sociais disfarçados em fatos raciais inseriram nos antagonismos de classe graves conflitos de identidade cujos nefastos efeitos, décadas após a abolição da escravatura, actuam ainda, em graus diferentes, na vida dos descendentes de escravos das nossas sociedades.”2 Porém, esse “mito semiológico que hierarquizou e regulou o valor dos homens a partir da sua cor” é desfeito na narrativa épica de Neto: “Ó pretos submissos, humildes ou tímidos/ sem lugar nas cidades/ ... atingistes o Zero/ sois Nada/ e salvastes o Homem // Acabou­‑se o ódio de raças/ e trabalho de civilização/ e a náusea de ver meninos negros/ sentados na escola/ ao lado de meninos de olhos azuis/ e as extorsões e as compulsões/ e as palmatoadas e torturas/ para obrigar inocentes a confessar crimes/ e os medos de revolta e as complicadas démarches políticas/ para iludir as almas simples.” (A Renúncia Impossível – “I Negação”). O homem negro volta a assumir plenamente o seu lugar na civitas, e nos versos do Poeta adquire a dignidade de pessoa humana “pelo direito/ de viver pensando viver agindo/ livremente humanamente.” (“Dois anos de distância”). A tese da cidadania poética é de tal ordem humanista – “Sou um valor positivo/ da Humanidade” – que a sua formulação só poderia ser compreendida “pelo carácter íntegro dos homens”, pois, como se lê em “A voz igual”, a arte da palavra propõe­‑se “Ressuscitar o homem”. As palavras criam um “amanhecer vital” em que “caminhamos já vitoriosos/ sobre a condição moribunda”. O humanismo é categórico. Apela à fraternidade em que há um “desejo incontido de ser homem/ de encontrar o calor supremo na superfície carnal do outro/ a voz amiga na laringe longínqua do outro.” E quando o Poeta diz “simplesmente/ que o colosso de certeza na humanidade do Universo/ é inapagável/ como o brilho das estrelas”, entoa o paradigma poético de ressurreição da natureza humana (nem negro, nem branco). Seguindo o raciocínio de Elimar Pinheiro de que “negro e branco não são qualidades definidoras do género humano, mas antes criações históricas, culturais (políticas e económicas),” e se, como ele afirma, “o negro não é homem, é uma invenção da civilização branca”, a cidadania que a poesia de Neto alavanca não é apenas apanágio do homem negro, mas de toda a Humanidade.

Citação a partir da tradução brasileira da obra de René Depestre. V. Bibliografia no final do texto.

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Bibliografia Camargo, Orson. Colaborador Brasil Escola.
Graduado em Sociologia e Política pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP,
Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP Carvalho, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pp. 219­‑29

Laranjeira, Pires. A poesia de Agostinho Neto como documento histórico: premonição da liderança, projecto de libertação nacional e organização do movimento popular, em 1945­ ‑1956, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras – Centro de Literatura Portuguesa Nascimento, Elimar Pinheiro do, em “A Liberdade, como a Paz, não é Branca” (Educ. E Filos., Uberândia, 5(9): 69­‑78, Jul./ Dez. 1990)

Depestre, René. Bom dia e adeus à negritude, tradução brasileira de Maria Nazareth Fonseca e Neto, Agostinho – Trilogia Poética: Sagrada Ivan Cupertino, da obra original francesa Bonjour Esperança, Renúncia Impossível, Amanhecer, et adieu à la negritude. Paris: Robert Laffont, 1980 Luanda, União dos Escritores Angolanos, coleção Clássicos, 2009 Guerra, Henrique. (A sociedade cultural de Angola e o Boletim Cultura)

Neto, Agostinho – Fogo e Ritmo (24 poemas), Nóssomos, 2011 041


A CONTESTAÇÃO DO LUSO­‑TROPICALISMO PORTUGUÊS DE GILBERTO FREYRE: EDUARDO LOURENÇO E BALTAZAR LOPES* MIGUEL REAL

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eferida pela primeira vez no artigo “Brasil – caução do colonialismo português”, (1960), inserido em O Fascismo Nunca Existiu 1, a questão colonial vai sofrer da parte de Eduardo Lourenço uma longa reflexão de cerca de meia centena de páginas, escrita entre 1961 e 1963, embora, devido à censura política então vigente, só publicadas em 1976, em Situação Africana e Consciência Nacional 2, cuja leitura deve ser acompanhada pelo artigo “A Propósito de Freyre (Gilberto)”, escrito no mesmo período e publicado no jornal Comércio do Porto, em 11 de julho de 19613, no qual Eduardo Lourenço critica o conceito de “luso­‑tropicalismo” apresentado por este autor. Já em 1960, no artigo acima referido, escrito para o Portugal Livre, de S. Paulo, Eduardo Lourenço tivera palavras fortemente críticas para com a obra de Gilberto Freyre: “...nenhum intelectual safado género Gilberto Freyre e suas

Eduardo Lourenço, “Brasil – caução do colonialismo português”, [1960], in O Fascismo Nunca Existiu, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1976. 2 Eduardo Lourenço, Situação Africana e Consciência Nacional, Amadora, Ed. Génese, 1976, “Cadernos Critério – 2”; de notar que o número 1 destes “Cadernos Critério” é constituído pelo livro de Vitorino Magalhães Godinho, A Democracia Socialista. Um Mundo Novo e um Novo Portugal, também editado em 1976. 3 Eduardo Lourenço, “A Propósito de Freyre (Gilberto)”, mais tarde inserido em Ocasionais I – 1950 – 1965, Lisboa, Edições Regra do Jogo, s/data (1984). 1

*Com Acordo Ortográfico

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burlescas invenções de erotismo serôdio (...) podem tirar dos ombros do português, tranquilamente paternalista e fanfarrão, o dever de despertar para os seus deveres e seus atrasos [relativamente à questão colonial]”4. Estas palavras amargas de Eduardo Lourenço referem­‑se tanto à obra de Gilberto Freyre5 como à atitude de manipulação propagandística que o Estado Novo fazia da sua teoria luso­‑tropicalista. Gilberto Freyre tinha estado em Lisboa, em 1951, a convite do Governo Português, tendo realizado uma longa viagem de estudo “a Cabo Verde e Guiné, depois Goa, e finalmente a Moçambique, Angola e S. Tomé. Dessa viagem nos deram logo a seguir conta, (…), os dois livros Aventura e Rotina e Um Brasileiro em Terras Portuguesas”6. Gilberto Freyre defende na sua obra que, devido à singular mistura de raças de que o português se originou e ao clima quente da Península Ibérica, como que existiria uma dupla vocação portuguesa para uma adaptação universal ao clima tropical, da Ásia ao Brasil, com forte apetência de miscigenação regional sem subjugação do “outro”, numa particular combinação rácica entre branco, negro e ameríndio em torno da “Casa Grande” (centro de poder económico, social e religioso) e da “Senzala” (centro de práticas ancestrais pagãs), cuja síntese civilizacional estaria na base da formação do Brasil moderno e da totalidade dos territórios ultramarinos habitados pelos portugueses. Deste modo, a colonização portuguesa não deveria ser confundida com outros tipos históricos de colonização, como a castelhana, que violentou e chacinou povos e culturas, ou como a inglesa, na Índia, que reinou e subjugou, mas não se misturou, ou como a francesa e holandesa, de profundo carácter económico. Diferentemente, o português instalou­‑se nos Trópicos, multiplicou­‑se unindo­‑se a indígenas, sedentarizou­‑se definitivamente, promovendo novas formas organizativas de produção (o “engenho”), disseminando pelos Trópicos novas espécies agrícolas e novas formas de comércio. Tendo as duas principais obras de Gilberto Freyre sido publicadas ao longo da década de 30 (Casa Grande & Senzala, em 1933, e Sobrados e Mucambos, em 1936), e consideradas hoje estudos pioneiros da sociologia brasileira, as críticas de Eduardo Lourenço devem ser contextualizadas segundo o aproveitamento político que o Estado Novo fazia da obra daquele autor para efeitos de propaganda internacional, Eduardo Lourenço, “Brasil – caução do colonialismo português”, ed. cit, p.49. Eduardo Lourenço refere­‑se nomeadamente aos monumentais estudos de Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), mas também a Uma Cultura Ameaçada: A Luso­‑Brasileira (1940), O Mundo que o Português Criou (1940), Um Brasileiro em Terras Portuguesas (1953), Aventura e Rotina (1953), Integração Portuguesa nos Tró‑ picos (1958) e o livro então recentemente publicado, O Luso e o Trópico (1961). 6 Cf. M. M. Sarmento Rodrigues, Gilberto Freyre, Lisboa, Edição do Autor, 1972, p. 18. 4 5

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evidenciando a legitimidade da perpetuidade da presença de Portugal em África e na Ásia devido à especificidade da colonização portuguesa. Por outro lado, o luso­‑tropicalismo de Gilberto Freyre estabeleceria a base científico­‑ideológica da alteração da designação de “Colónias” para “Províncias Ultramarinas”, promovida pelo “Acto Adicional” de 1951 à Constituição Portuguesa, legitimando esta alteração a filosofia integracionista dos povos colonizados no universo cultural, administrativo e religioso português 7. Existe, assim, uma cumplicidade ou afinidade tácita entre as teses luso­ ‑tropicalistas de Gilberto Freyre e os interesses ultramarinos do regime de Salazar, sendo esta cumplicidade abundantemente explorada pelo Governo de Portugal que, para além do convite, aceite e cumprido, como vimos, para uma prolongada estadia nos territórios do então Império Português na década de 1950, formula o convite para que Gilberto Freyre proferisse a conferência inaugural do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, no âmbito das Comemorações Henriquinas, em 1960, e agracia Gilberto Freyre com o doutoramento Honoris Causa por Coimbra, em 19628. Este regressa a Portugal em 1967 para receber a homenagem da Academia Internacional de Cultura Portuguesa9, bem como em 1970, para proferir a conferência “O Homem Brasileiro e a sua Modernidade”, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 29 de maio de 1970. Após o inevitável desencontro político, emergido com a revolução do 25 de Abril de 1974, entre a nova política governamental de descolonização e as ideias contidas na obra de Gilberto Freyre, foi­‑se gradualmente assistindo a uma pacificação entre o regime democrático liberal português e as ideias freyrianas, consideradas agora já de carácter histórico. Concorreram para esta pacificação a homenagem prestada pela Academia das Ciências de Lisboa, em 1983, aquando do cinquentenário da publicação do livro Casa Grande & Senzala 10, e a publicação, neste mesmo ano de 1983, de um artigo de 1981 de David Mourão­‑Ferreira, intelectual insuspeito

Cf. Adriano Moreira, Estudos de Ciências Políticas e Sociais I, Política Ultramarina, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1956, por exemplo, cap. III, & 4, pp. 295­‑324. 8 Cf. A. Miranda Barbosa, Elogio de Gilberto de Mello Freyre, Coimbra, Edição da Universidade de Coimbra, 1962. 9 Cf. José Júlio Gonçalves, Gilberto Freyre, o Sociólogo e o Teorizador do Luso­‑Tropicalismo, Lisboa, separata do Boletim da Academia Internacional de Cultura Portuguesa, 1967, pp.49­‑72. 10 Cf. José Pinto Peixoto, Pedro Soares Martínez, Britaldo Rodrigues, Francisco da Gama Caeiro, Gilberto Freyre, Sessão de Homenagem a Gilberto Freyre, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1983. 7

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de adesão a doutrinas colonialistas11. Como se constata, desde a década de 1950 até ao ano de 1970, Gilberto Freyre foi assídua visita não inocente do Governo e de prestigiadas instituições portuguesas, pretendendo estes, principalmente na década de 1960, retirar dividendos das teses de Gilberto Freyre face à nova realidade mundial fortemente anticolonialista. Eduardo Lourenço condena a doutrina sociológica e antropológica de Gilberto Freyre como expressão de uma visão limitada do “branco” sobre a realidade colonial e como uma perspetiva anacrónica da qual, mesmo admitindo a sua correção teórica explicativa para a formação do Brasil moderno, não se poderiam extrair conclusões universais que, prolongadas no tempo, surgiriam no século XX como justificações ideológicas de regimes fascistas e de situações de profunda desigualdade entre o povo colonizador e o colonizado. Porém, o que Eduardo Lourenço mais condena neste artigo sobre a obra de Gilberto Freyre reside na exploração acrítica e deformante das próprias teses do Luso­‑Tropicalismo por parte de funcionários públicos e outros seguidores do Estado Novo. Tentando compreender a violenta crítica de Eduardo Lourenço e continuando a contextualizá­‑la no seu tempo histórico (passagem entre as décadas de 1950 e 60), constate­‑se o exemplo do registo da passagem de Gilberto Freyre por Goa, em 1956, cujo discurso de saudação no Instituto Vasco da Gama, nesta cidade, coube ao desembargador da Relação de Goa, António de Miranda. Deformando o espírito da obra de Gilberto Freyre e banalizando­‑o mais como ideologia de propaganda que como resultado científico, escreve António de Miranda: “Das três raças, a portuguesa, negra e índia que contribuíram (sic) para a constituição do núcleo populacional do Brasil, desempenhou a raça negra mais do que a ameríndia um papel importante no auxílio que prestou ao colono português”12. Note­‑se a veiculação da ideia histórica concordista e passivista da expressão “auxílio que prestou ao colono”, como se entre negro escravo e colono se tratasse de uma relação de “auxílio”. Logo a seguir, ridicularizando os estudos de Gilberto Freyre sobre o “erotismo” do português nos Trópicos, escreve António de Miranda: “Demonstra Gilberto Freire [sic] no seu livro como o português cumpriu à letra o preceito bíblico: «crescei e multiplicai­‑vos» e contribuiu para a povoação de terras desertas, levando

Cf. David Mourão­‑Ferreira, Gilberto Freyre, Criador Literário, Comunicação Apresentada à Classe de Letras na Sessão de 5 de Fevereiro de 1981, Lisboa, Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, 1983. 12 Cf. António de Miranda, Gilberto Freire, Bastora­‑Goa, Ed. do Autor (?), Tipografia Rangel, 1956, p. 3. 11

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todas as mulheres brancas, negras, índias [sic], negras­‑minas13, mulatas, cabrochas14, quadraronas15 e oitavonas16 a pagarem com filhos o seu tributo para a colonização do Brasil, corrigindo assim o tremendo lapso do Criador de ter deixado despovoado esse imenso território...”17. Continua António de Miranda: “Foi misturando­‑se gostosamente com mulheres de côr logo ao primeiro contacto e multiplicando­‑se em filhos mestiços que uns milhares de machos atrevidos conseguiram firmar­‑se na posse de terras vastíssimas...”18 – note­‑se a utilização de expressões infelizes, como “machos atrevidos”, para caracterizar as conclusões sociológicas de Gilberto Freyre. Embora menos propagandístico, é no entanto como reflexo do mesmo espírito de defesa de um Império Colonial ameaçado, e não como reflexo de uma mentalidade científica de investigação, que se deve ler o louvor de Miranda Barbosa na Universidade de Coimbra, em 1962, aquando do doutoramento Honoris Causa de Gilberto Freyre. Porém, a crítica à filosofia do luso­‑tropicalismo não provinha exclusivamente dos meios oposicionistas ao Estado Novo: já em 1956, aos microfones da Rádio Barlavento, o romancista cabo­‑verdiano Baltazar Lopes tinha criticado fortemente a visita de Gilberto Freyre a Cabo Verde, evidenciando como as conclusões a que este chegara careciam de comprovação científica, nomeadamente a sua tese sobre a influência predominantemente africana no homem cabo­‑verdiano, minimizando a influência europeia. Considerando que a visita de Gilberto Freyre “apenas arranhou o litoral de três das nossas ilhas”19, Baltazar Lopes critica a análise superficial do sociólogo brasileiro, cuja visita se ativera mais a efeitos de propaganda que a efeitos de investigação séria. Ao longo de quatro programas da Rádio Barlavento, registadas posteriormente em 52 páginas do livro Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre, circunscrevendo­‑se unicamente às teses deste autor sobre Cabo Verde, Baltazar Lopes critica­‑as fortemente, evidenciando­‑as como baseadas em fontes e observações muito limitadas. Se, em 1960, Eduardo Lourenço classificara Gilberto Freyre como “intelectual safado”, em 1961, no artigo publicado em Comércio do Porto, intitulado “A

Possivelmente, referência às mulheres africanas oriundas da costa ocidental de África (Costa da Mina) levadas para o Brasil. 14 Mulata jovem. 15 Mulher com um quarto de sangue negro. 16 Mulher com um oitavo de sangue negro. 17 Idem, ibidem, p. 4. 18 Idem, ibidem, p. 5. 19 Cf. Baltazar Lopes, Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre, Praia, Imprensa Nacional, Divisão de Propaganda, 1956, p. 7. 13

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Propósito de Freyre (Gilberto)”, critica severamente toda a obra deste autor, mesmo a que sociologicamente fora considerada como a aplicação de métodos científicos à realidade brasileira, como os seus livros da década de 1930. De um ano para outro, as palavras de Eduardo Lourenço permanecem duras: “... a sua [de Freyre] pouca ou nenhuma seriedade objectiva e o falso brilho de fórmulas feitas, tematizadas de livro em livro com fatigante ênfase. (...) Um nefasto aventureirismo intelectual, incoerente e falacioso, desmascarando ao mesmo tempo o falso liberalismo deste amador de estéticas imperialistas ....20” Esta linguagem ríspida, não habitual em Eduardo Lourenço, revela­‑nos que, sob o ataque crítico à obra de Gilberto Freyre, mas englobando esta, se esconde o ataque crítico de Eduardo Lourenço ao regime político português de então que, como vimos, beneficiava da teoria luso­‑tropicalista de Freyre21. Acusando a metodologia freyriana de não ser mais do que um “puzzle” de “notas de leitura” e “observações históricas”, servindo­‑se de “dados ou exemplos fora dos contextos próprios, pondo no mesmo plano factos separados por séculos”, Eduardo Lourenço considera que o sucesso universitário e extrauniversitário de Gilberto Freyre se deve à “reiterada insistência em dois ou três tópicos”22, um dos quais é justamente o do luso­‑tropicalismo, alargado, no livro de Gilberto Freyre que Eduardo Lourenço recenseia no Comércio do Porto23, para um inédito “hispano­ ‑tropicalismo”24, reunindo assim num único conceito científico (os “Trópicos”), realidade geográficas e históricas tão diferentes entre si como “a Índia de Garcia da Orta, o México de Sahagun, o Peru de Acosta e o Brasil de frei Vicente do Salvador”25. Assim, não causa admiração que Eduardo Lourenço proponha para este novo conceito freyriano e este novo livro de Gilberto Freyre, não a designação rigorosa de ciência, mas a irónica de “romance de Gilberto”, evidenciando quanto deste modo considera a obra de Freyre afastada da sociologia, justamente o contrário do conteúdo das teses laudatórias que, na mesma década, os professores

Eduardo Lourenço, “A Propósito de Freyre (Gilberto)”, ed. cit., p. 105. Sobre a teoria luso­‑tropicalista de Gilberto Freyre, cf., para além da bibliografia já citada, Maria Isabel João, op. cit., II vol., pp. 754 – 762. 22 Eduardo Lourenço, art. cit., p. 106. 23 Gilberto Freyre, A Propósito de Frades, Salvador, Edição da Universidade Federal da Bahia, 1960. 24 Eduardo Lourenço, art. cit., p. 107. 25 Idem, ibidem, pp. 108­‑109. 20 21

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universitários de Lisboa e de Coimbra, Miranda Barbosa e José Júlio Gonçalves, testemunhavam em livros por nós acima citados. Existe aqui um implícito empenhamento político de Eduardo Lourenço pela democracia e pelo anticolonialismo que não encontra eco na obra de Gilberto Freyre. De facto, ainda que analisando a obra de Gilberto Freyre, o alvo visado por Eduardo Lourenço parece­‑nos ser o carácter propagandístico que esta obra assumia de defesa imutável do Império Português no ambiente político nacional e internacional da década de 1960. É assim que Eduardo Lourenço caracteriza a obra de Gilberto Freyre como “o lugar­‑comum da autointerpretação ibérica da sua [da Ibéria] aventura tropical”, que nesta encontraria a exaltação da “superioridade do colonizador português nos Trópicos” como “exemplo da confraternização racial e de sucesso, únicos, da civilização europeia nos Trópicos”26. Eduardo Lourenço acusa Gilberto Freyre de promover a “inversão patológica da consciência brasileira em si mesma”, ou seja, de a deformar, elevando a valor de nível universal o que não passa de um “complexo de inferioridade cultural transfigurado em apologia delirante”27.

Idem, ibidem, p. 107. Idem, ibidem, p. 110.

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ROTA DAS LETRAS: EM DEFESA DA IDENTIDADE DE MACAU * RICARDO PINTO

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hegou a Macau há pouco mais de dois anos, para dar aulas na Universidade, e em pouco tempo apaixonou­‑se pela história desta terra. (Algo que é muito comum, acreditem). Kevin Maher é um jovem norte­‑americano, professor de língua inglesa. Quando soube que o Festival Literário de Macau – Rota das Letras promove todos os anos um concurso de contos, lançou mãos à obra. O que mais o impressiona em Macau é o modo como o território se desdobra em muitos mundos diferentes, quase sempre envoltos em mistério mesmo para quem aí vive. E foi sobre isso que escreveu. Passo a citar um excerto do seu conto, “O Familiar de Macau”: “Jonas entrou no pequeno escritório numa viela da Taipa. Tinha tabuletas penduradas na parede, sobretudo em chinês, algumas em inglês e umas quantas em português. Uma tabuleta dizia ‘Terapia de Vidas Passadas’ juntamente com uma série de outras opções relacionadas com hipnotismo. O jovem chinês estava vestido com roupa simples. Não era o sábio chinês com longas barbas cinzentas que ele esperava ver. Era alto e magricela, cabeça totalmente rapada, e falava num tom monótono mas hipnotizante. Jonas estava hipnotizado e a sessão já tinha começado. – ‘Quero que olhe para o seu corpo’, disse o hipnotizador chinês, enquanto bebia chá. ‘O que vê?’ *Sem Acordo Ortográfico

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– ‘Vejo as minhas mãos e braços. São negras. A minha pele é negra. Eu sou negro’. – ‘Sabe dizer­‑me em que ano estamos?’ O hipnotizador cruzou as pernas enquanto fazia a pergunta. – ‘Não sei. Mas vejo uma placa onde se lê São Paulo. A data diz 1626. Já me lembro, estou em 1635’. – ‘Onde está a placa?’ – ‘Eu estou parado à entrada da Fortaleza do Monte. Estou em Macau. (...) Protejo a fortaleza’. – ‘Nasceu em Macau?’ – ‘Não, nasci em Cantão. Pareço negro, mas também sou meio chinês. O meu pai veio como escravo de Moçambique, com o comércio de escravos dos portugueses. Fugiu de Macau e foi para Cantão, onde me teve com a minha mãe cantonesa. (...) Os portugueses trouxeram­‑me de Cantão para Macau, quando eu era um homem mais novo. Muitos negros fugiram de Macau para Cantão naquela altura. O meu pai foi um deles’. ... Jonas saiu do estado de hipnose. O hipnotizador perguntou­‑lhe: – ‘Apercebeu­‑se de que tinha vivido aqui em Macau antes?’ – ‘Desde que me lembro, sempre senti uma ligação a esta cidade. (...) Estava a ensinar inglês no Japão e, depois de minha filha nascer, senti uma grande necessidade de me mudar para Macau. Era como se estivesse escrito que tinha de o fazer’.” Fim de citação. Com este conto, em que Macau surge como encruzilhada de diferentes povos e culturas, nas mais diversas circunstâncias e ao longo de vários séculos, Kevin Maher venceu a versão inglesa do mais recente concurso de contos promovido pelo Festival Rota das Letras e disse sentir­‑se agora mais seguro para continuar a escrever, e até para apresentar directamente os seus textos a editoras de Macau ou de Hong Kong. Mas curiosa, mesmo, é uma das razões que adianta para o fazer: diz que a quebra da ligação de Macau a Portugal em 1999 é um mito que gostaria de desfazer aos olhos do público anglo­‑saxónico. Algumas das pessoas com quem fala dizem­‑lhe que não há mais portugueses em Macau e que todos se foram embora, mas não é verdade. E responde­‑lhes que eles não sabem é como encontrá­‑los. 050


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(Só acrescentaria aqui haver hoje muitos outros residentes lusófonos em Macau, não apenas portugueses.) Ora, esta justificação de um americano recém­‑chegado a Macau, surpreendente que possa ser, vem ao encontro de uma das grandes preocupações que sentimos quando resolvemos lançar o Festival Literário de Macau. Desde que a indústria dos casinos foi objecto de um processo de liberalização, nos primeiros anos deste século, o território tem vindo a sofrer os efeitos de uma investida cultural – ou, se preferirem, os efeitos de uma agressão cultural – que anseia por uma aproximação ao modelo de Las Vegas, com tudo o que isso importa de descaracterização da identidade de Macau e, por vezes mesmo, de banalização do absurdo. Na medida das suas possibilidades, o Festival Literário procura ser um contraponto a essa tendência, fazendo a defesa e honrando o património intangível de Macau ao transpor para a escrita publicada, mas também para o encontro de pessoas e de ideias, o que Macau e a sua cultura possam ter de mais singular. Honrar a memória, mas também discutir o presente. Há dois anos, o vencedor do concurso de contos em língua chinesa foi um funcionário público chamado Loi Chi Pang, que está associado à gestão de uma biblioteca e a um museu da cidade. O seu texto lidava com um tema do presente que vem criando uma enorme angústia entre os habitantes de Macau: a subida descontrolada das rendas para habitação e comércio e, em consequência disso, o progressivo desaparecimento do comércio tradicional, substituído um pouco por todo o lado pelas grandes marcas da globalização. (Hoje, as rendas estão a baixar ligeiramente devido à desaceleração económica dos últimos dois anos, mas já é tarde demais para salvar grande parte do comércio tradicional.) Ao explicar o que o levou a escolher esse tema, o senhor Loi disse querer reflectir no conto um problema social que muito o preocupa. Cito: “Há pessoas idosas que querem continuar os seus negócios mas a geração mais nova não mostra qualquer interesse. Essas pessoas só têm duas hipóteses: uma é continuarem, a outra é trabalharem noutra área. Mas se toda a gente mudar de área, a cultura de Macau perde­‑se”. E isto, lamenta este funcionário público, escritor nas horas livres, está já a acontecer hoje em Macau. Em quatro anos de Festival Rota das Letras, e em outras tantas edições do Concurso de Contos, dezenas de novos escritores, de Macau, da China, de Portugal, Brasil, Estados Unidos, Rússia, Coreia do Sul, de inúmeros outros países, têm oferecido generosamente a sua contribuição para esta reflexão, através da literatura, em torno de Macau. 051


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Ao mesmo tempo, e de modo igualmente generoso, muitos dos autores que convidámos a participar no Festival Rota das Letras têm­‑nos ajudado também neste projecto de Escrever Macau, que é uma das principais razões para a própria existência do evento. Como se disse nos prefácios dos livros já publicados, é um privilégio ter escritores como Hu Xudong e Sheng Keyi, ou Clara Ferreira Alves e Afonso Cruz, a escrever sobre Macau. Mais: é surpreendente ver Han Shaogong à procura de Fernando Pessoa, ou Pan Wei a revisitar a obra de Luís de Camões, ou ainda Alexandra Lucas Coelho testar a normalidade dos corações alheios à luz da poesia de Camilo Pessanha. Macau é, nestas antologias de contos e outros escritos, um espaço pejado de referências literárias, de controvérsias históricas e também de problemas bem actuais. Esperamos que possa continuar a sê­‑lo durante muitos anos, numa existência cúmplice com um Festival que deu já entrada no calendário dos principais eventos culturais de Macau. Daqui a pouco mais de um mês, estaremos a dar início à 5ª edição do Rota das Letras. Vamos receber este ano em Macau a visita de José Pacheco Pereira, Luís Ruffato, Ernesto Dabó, Chan Koonchung, Zheng Yuanjie e muitos outros autores do mundo chinês e da lusofonia. E faremos pela primeira vez uma homenagem a dois grandes escritores já desaparecidos destes dois mundos literários tão ricos quanto distintos. Um é Camilo Pessanha, o autor de Clepsidra, poeta que viveu em Macau quase toda a sua vida e ali morreu há 90 anos. O outro é Tang Xianzu1, dramaturgo do final do século XVI, final da dinastia Ming, contemporâneo de Shakespeare e autor de O Pavilhão das Peónias, obra­ ‑prima que, num único capítulo, levaremos agora à cena num belo teatro de Macau. Tang foi o primeiro grande autor chinês a testemunhar a presença portuguesa em Macau, numa visita que ali fez em 1591. Deixo­‑vos, numa tradução livre, com o seu poema “Encontro com Comerciantes Estrangeiros”, que reflecte a forte impressão resultante desse primeiro contacto de há 400 anos:

Tang Xianzu (1550­‑1616).

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“Os Comerciantes Portugueses” Não vivendo da agricultura, vestindo trajos coloridos em grandes barcos com altos mastros, trazem para a China jóias tão reluzentes quanto as estrelas, tão brilhantes quanto a Lua.” …

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SODAD E MEMÓRIAS NA LITERATURA CABO­‑VERDIANA DA DIÁSPORA * VERA DUARTE

Senhoras e senhores,

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m nome da Academia Cabo­‑verdiana de Letras, a que tenho a honra de presidir, e em meu nome pessoal, saúdo a UCCLA e a Câmara Municipal da Praia pela iniciativa deste encontro, bem assim como todos os escritores e escritoras que nos dão o privilégio de pisar o chão das ilhas. Constitui uma grande alegria para nós poder acolhê­‑los a todos nesta terra da morabeza. Permitam, contudo, uma saudação especial ao escritor Luandino Vieira, por quem nutro a mais profunda admiração e reconhecimento, pois ele é, talvez, um dos responsáveis por eu estar aqui e agora. Foi ele quem, nos idos anos de 80 do século passado, sendo eu uma jovenzinha a iniciar­‑me nas lides literárias, me escreveu uma linda carta incentivando­‑me a publicar. Senhoras e senhores, A 25 de setembro de 2013, um grupo de 30 escritores e escritoras fundava a Academia Cabo­‑verdiana de Letras (ACL), tendo como objetivo primordial o culto das letras e da literatura cabo­‑verdianas. A ACL constituiu­‑se na base de dois triângulos virtuosos: 1 – Cultura, liberdade e felicidade, na certeza de que são estes os valores fundamentais porque vale a pena o escritor lutar.

*Com Acordo Ortográfico

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2 – Dignificar o passado, valorizar o presente e enriquecer o futuro, na convicção plena de que este deve ser o desígnio fundamental e a razão de ser da Academia. Em última instância, aliás, mais não compete à ACL do que recuperar e dignificar o legado que homens e mulheres da escrita nos vêm dando desde o povoamento destas ilhas – dar visibilidade e ajudar ao aprimoramento da literatura que se produz no arquipélago; e trabalhar para um futuro cada vez mais fecundo e brilhante da escrita cabo­‑verdiana. Mas, porque é que começo esta minha intervenção sobre literatura e diáspora falando da ACL? Exatamente porque ela é a prova cabal da tese que vamos procurar desenvolver, qual seja a de que, sendo Cabo Verde um país que se criou de fora para dentro, também a literatura cabo­‑verdiana tem­‑se desenvolvido, com a mesma legitimidade, dentro e fora do país. A prova de que é assim está na própria composição da ACL: metade dos académicos vive dentro e metade vive fora. Cabo Verde nasceu de fora para dentro, pois foram os europeus e os africanos, ambos vindos de fora, que se fixaram nestas ilhas, antes desertas, e deram origem ao povo cabo­‑verdiano. Efetivamente, foi com a notícia de achamento logo seguida das duas cartas régias de 1466 e 1472, fixando a primeira privilégios para habitar, o que atraiu os brancos a arriscarem­‑se a viver por tempo indeterminado nos trópicos, e fixando a segunda a obrigatoriedade de povoar e produzir, o que conduziu à fixação dos africanos e à criação da primeira sociedade escravocrata de produção no Atlântico (Iva Cabral). Parafraseando Luiz Silva, diríamos que “Cabo Verde nasce do cruzamento de exílios, resultantes de deportações e da escravatura. Esta fórmula constitui quase uma singularidade que, se não me engano, só tem paralelo em algumas ilhas caribenhas. Esta realidade sociológica é digna de ser estudada e aprofundada até porque dela derivam, com certeza, fenómenos que serão também singularidades.” E é exatamente num desses fenómenos derivados – a diasporização – que vamos encontrar a razão e o fundamento do nosso tema. Porquê? O ter o país nascido de fora para dentro, como já referimos, poderá ter deixado no cabo­‑verdiano uma caraterística idiossincrática e identitária que se reflete numa saudade da terra longe, que terá motivado o caráter diaspórico do nosso povo. Praticamente desde que se formou com consistência aquilo que viria a ser a nação cabo­‑verdiana, que os cabo­‑verdianos começaram a emigrar. Pelas mais diversas razões, e não exclusivamente por motivos de sobrevivência 055


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económica, como tão ilustrativamente já afirmava Eugénio Tavares ao dizer que “o cabo­‑verdiano não emigra somente por razões mandibulares”, haverá também uma certa busca inconsciente de alguma essência naquele que parte para a terra longe em busca de algo. Este algo pode não ser apenas a sobrevivência económica, a afirmação profissional ou a motivação política, como já bastamente se evidenciou, mas também a busca dessa outra dimensão mais ampla, não insular, que lhe advém da sua remota origem continental. A busca de outros espaços, não ilhados, cuja memória está inscrita na dimensão inconsciente do ser cabo­‑verdiano. Haverá mesmo algum sentimento paradoxal composto de uma certa saudade do futuro, como tão belamente diz o académico Jorge Tolentino, e a busca inconsciente de uma essência ancestral. O cabo­‑verdiano, quando emigra, leva consigo Cabo Verde e só por isso é possível considerar as comunidades emigradas como a décima primeira ilha, querendo­‑se com isso dizer que a vida nas comunidades diasporizadas continua a processar­‑se ao ritmo do bater do coração da pátria distante. É o velho binómio “korpu ke skrabu ta bai, alma ke livre ta fika”1. O conhecido emigrante cabo­‑verdiano em França, o intelectual Luiz Silva, já citado, diz, enfaticamente, o seguinte: “A emigração, graças ao apego à terra e a consciência do dever, foi o marco fundamental do nascimento da nação cabo­‑verdiana. Exercício de libertação apaixonante para o país, no sentido de ir buscar valores económicos, sociais e culturais para enriquecer a cabo­‑verdianidade. A emigração é, assim, uma figura proteica, na expressão de Baltasar Lopes, de que os cabo­‑verdianos, dado a estreiteza do meio, ainda têm necessidade de se socorrer para servir Cabo Verde”. Tem razão Luiz Silva, mas eu vou mais longe. Além de servir Cabo Verde, a emigração também serve para dar vazão à própria pulsão anímica daquele que emigra. Só assim se compreende o passargadismo de que foi tão impregnada a nossa literatura. Já não na sua versão polémica, e que gerou tão belas páginas de um anti­ ‑passargadismo combativo do nosso poeta, também na diáspora, Ovídio Martins: “gritarei, berrarei, matarei não vou para Pasárgada”, nem o anti­‑passargadismo de outro escritor, na altura também na diáspora, Onésimo Silveira, que escreveu sobre a consciencialização na literatura cabo­‑verdiana, contestando aquilo que foi

“O corpo que é escravo vai, a alma que é livre fica”.

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entendido como fuga à realidade da luta pela independência; mas um passargadismo todo ele feito da necessidade que também o poeta e o escritor têm de, por vezes, deixarem o seu prosaico quotidiano e se refugiarem em algum lugar de sonho na companhia de deuses e heróis. É essa singular, proteiforme e fecunda realidade de país de emigração que tem propiciado a construção de um edifício literário cabo­‑verdiano amplamente alimentado também com uma literatura da diáspora. Concordamos ainda com Luiz Silva quando ele afirma que “não é possível fazer uma leitura de Cabo Verde sem passar pela literatura, marcada por muitos exílios, dentro das ilhas, no espaço colonial e nos países da emigração”. Mas de que falam os poetas e prosadores da diáspora cabo­‑verdiana? A quase generalidade dos escritores cabo­‑verdianos na diáspora tem por temática Cabo Verde, os cabo­‑verdianos e a própria emigração. E é sobre esses casos que, de uma forma muito perfunctória, faremos incidir a nossa atenção. Poderíamos talvez retroceder aos primórdios da formação de Cabo Verde para recuperarmos a figura de um cabo­‑verdiano, de cuja existência tivemos conhecimento através do magnífico romance histórico Rainha Ginga, de José Eduardo Agualusa, e cuja fidedignidade nos foi confirmada pelo antropólogo e académico João Lopes Filho. Trata­‑se do mulato Cristóvão da Costa, como o designa Agualusa, que nasceu em Cabo Verde em 1525, portanto escassos 60 anos após o achamento e início de povoamento das ilhas e que, segundo Agualusa, “correu o mundo como homem livre e como escravo, tendo padecido de inúmeras tormentas, ao mesmo tempo que exercia o seu ofício, com reconhecido valor em Goa, em Malabar, e Cochim. Finalmente fixou­‑se em Burgos, tendo sido nomeado pelo senado da cidade para ocupar o cargo de médico dos pobres”. Cristóvão da Costa, físico português, conhecido como o Africano, escreveu o Tratado das drogas e medicinas das índias orientais e um curiosíssimo Tratado em louvor das mulheres. Ele será provavelmente o primeiro escritor cabo­‑verdiano da diáspora. Mais do que isto, Cristóvão da Costa marca o início de uma longa lista de notáveis escritores cabo­‑verdianos da diáspora, embora, em termos de modernidade, tal lista só possa ter à cabeça o nome de Eugénio de Paula Tavares, o primeiro intelectual cabo­‑verdiano a exilar­‑se para os EUA pelas suas ideias republicanas e que, segundo Luiz Silva, escreve o seu primeiro texto da literatura cabo­‑verdiana sobre o exílio a 057


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12 de junho de 1900, na sua viagem para a América do Norte: “O lugre abriu suas largas velas ao nordeste cariciosamente fresco, e desfechou, canal abaixo, proa da América, do El Dorado da Liberdade, Igualdade e Fraternidade…”. Uma lista de eminentes escritores e escritoras que comporta nomes como Manuel Lopes, Mesquitela Lima, Pedro Corsino de Azevedo, António Nunes, Luís Romano, Daniel Filipe, Yolanda Morazzo, Gabriel Mariano, Aguinaldo da Fonseca, Virgílio Pires, Leopoldina Barreto, João Varela, Maria Margarida Mascarenhas, Orlanda Amarílis e Mário Fonseca, para só citar alguns. Além dos contemporâneos Nuno Miranda, Teobaldo Virgínio, Artur Vieira, Nelson Cabral, Donaldo Macedo, Filinto Silva, Joaquim Arena, José Luís Tavares, José Luís Hopffer Almada, Carlota de Barros, Francisco Fragoso, e tantos outros. Das minhas leituras, que eventualmente não serão tantas quanto eu gostaria e seria necessário, poderia afirmar, quase sem hesitação, que os poetas e escritores falam sobretudo da sodad da terra­‑mãe, da sua mátria distante mas sempre presente, a nostalgia de um passado nas ilhas, das vivências no seu ambiente de pertencimento, à procura de desvendar os passados, as estórias dentro da história, os relacionamentos, pacíficos ou conflituantes que se estabelecem entre os cabo­ ‑verdianos e os outros, seja esse outro, quer o (ex) colonizador, quer o normal cidadão do país de acolhimento, quer outro qualquer e, sempre presente, desde o primeiro escritor da diáspora, Eugénio Tavares, que nos EUA proclama a “África aos africanos”, o apelo à emancipação, à luta de libertação, à conquista da independência e ao desenvolvimento do país. Concordamos com Maria do Carmo Mendes quando assevera que, “por razões que se prendem ora com a insularidade, ora com condições climatéricas adversas, ora ainda com a incapacidade de aceitação de um regime colonial, a experiência do exílio foi vivida por diversos escritores cabo­‑verdianos, pelo que as suas obras acabam por denunciar uma índole autobiográfica intensa, a par de um marcado realismo literário”. Foi assim que Amílcar Cabral nos legou, em “Regresso”, um canto de saudade e esperança nos versos “Mamãe Velha, venha ouvir comigo o bater da chuva lá no seu portão”. O poema é finamente inspirado na chuva caindo que anuncia a felicidade de um amanhã de liberdade e já percorreu os quatro cantos do mundo, cantado por vozes tão belas como as da brasileira Alcione e da nossa sempre Cesária Évora. António Nunes, poeta visionário, retoma o mote da chuva e da evocação da terra mátria através da figura da mãe, em um dos mais belos poemas do edifício literário cabo­‑verdiano, “Mamãi”. Nele retrata a saudade da terra através da evocação da mãe 058


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e se projeta num futuro de esperança e liberdade, exemplificado nos versos “um dia essas leiras de terra serão nossas” e haverá “águas correndo por levadas enormes”. Do poeta neorrealista Daniel Filipe, combatente da ditadura salazarista, perseguido e torturado pela PIDE, que nasceu na ilha da Boavista e cedo foi para Portugal, onde veio a falecer precocemente, antes de completar quarenta anos, resgatamos os versos do poema “Morna” em que, significativamente, ele fala da saudade: “É já saudade a vela, além. Serena, a música esvoaça na tarde calma, plúmbea, baça, onde a tristeza se contém.” Ficamos assim com a clara perceção de como a saudade das ilhas influenciou a poética dos seus filhos que, por qualquer motivo, tiveram de ir para a terra longe. Já Luís Romano – ressalta­‑se o contista, romancista e ensaísta que tem como tema permanente da sua intensa atividade literária Cabo Verde e os cabo­‑verdianos, apesar da sua longa permanência no Brasil, país onde viveu por décadas e onde veio a falecer –, escreveu em português e em língua cabo­‑verdiana, no crioulo de Santo Antão, sua ilha natal. Também de Santo Antão, podemos referir­‑nos a Teobaldo Virgínio, atualmente com 92 anos e que vive nos EUA. Poeta e ficcionista, é colaborador de várias revistas literárias, e tem na temática cabo­‑verdiana a sua perene fonte de inspiração. Gostaria de completar este quadro, que pretendo seja paradigmático, com Artur Vieira, membro da ACL e que também há muito tempo reside no Brasil, onde, com Luís Romano, fundou a revista Morabeza, de divulgação internacional da arte e cultura cabo­‑verdianas, e que recentemente publicou o livro Matilde. Com esta obra de dramaturgia, Vieira inaugura um capítulo fundamental da literatura cabo­ ‑verdiana, o da nossa história trágico­‑marítima, que está ainda muito por fazer se tivermos em conta o que ele nos revela: “nos tempos do capitão Jeme Frisina, cinco barcos saíram dos EUA com destino à Brava. Nenhum deles chegou a Cabo Verde.” Não abordamos com relevância a questão da língua por a maior parte dos escritores cabo­‑verdianos da diáspora utilizarem o português como língua de criação literária, tal como os escritores que vivem no interior do país, e apenas uma minoria da produção literária ser feita em língua cabo­‑verdiana, francês, inglês ou outra. Gostaria de encerrar esta comunicação com alguns versos fulgurantes do poema antológico “A invenção do Amor”, de Daniel Filipe, escritor de diáspora, um poema 059


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tão imortal, intemporal e universal como o próprio sentimento que lhe dá vida – O AMOR. “Em todas as esquinas da cidade nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga um cartaz denuncia o nosso amor Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel numa tarde de chuva entre zunidos de conversa e inventaram o amor com carácter de urgência deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura e souberam entender­‑se sem palavras inúteis Apenas o silêncio a descoberta a estranheza de um sorriso natural e inesperado”

Bibliografia Silva, Luiz. Os Exílios na Literatura Cabo­‑verdiana, Paris, julho de 2006. Silva, Luiz in Duarte, Pedro, Na Varanda de Um Espaço Finito. Edições Cahiers Lusophones.

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Cardoso Mendes, Maria do Carmo, Exílio e diáspora em Cabo Verde, Universidade do Minho, Portugal.


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ENTRE A REALIDADE E O IMAGINÁRIO: um olhar sobre a literatura chinesa e macaense da atualidade* YAO JINGMING

N

esta comunicação, pretende­‑se fazer um breve esboço sobre as diversas facetas da literatura chinesa da atualidade, apresentando as suas principais tendência literárias, os escritores mais representativos e a sua dinâmica, bem como as limitações com que se defrontam. A partir desta perspetiva, falar­‑se­‑á também das características diversificadas da criação literária de Macau, onde coexistem várias culturas e os escritores escrevem em diferentes línguas. Uma breve retrospetiva Quando falamos da literatura chinesa da atualidade, é necessário fazermos uma rápida retrospetiva sobre a literatura contemporânea chinesa que, considera­‑se de modo geral, teve o seu início a partir de 1949, ano em que Mao Tsedong proclamou a fundação da República Popular da China (RPC), depois de ter conseguido expulsar as tropas do Partido Nacionalista para a Ilha de Formosa. Desde então, embora Mao tivesse aconselhado os escritores a “desabrocharem livremente como flores”1,

O denominado “Movimento das Cem Flores”.

1

*Com Acordo Ortográfico

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»»» Dias de Sol, de Hao Ran

a liberdade de que estes gozavam era muito limitada. Assim, ou se tornaram porta­‑vozes da política vigente ou deixaram de pegar na pena. Em 1966, deu­‑se início à Revolução Cultural, que destruiu de forma trágica a cultura tradicional … em nome da cultura. Mo Yan (莫 言), vencedor do Prémio Nobel de Literatura de 2012, ao recordar a situação durante a Revolução Cultural, época em que ele viveu e cresceu, e em que participou na Campanha de Envio para o Campo por cerca de dez anos, admite que, na verdade, não havia literatura chinesa com valor naquela altura. Muitos escritores foram criticados ou até presos por serem considerados “feudalistas, burgueses ou revisionistas”. Apenas uns raros escritores, firmes partidários do sistema, foram autorizados a escrever sobre temas politicamente corretos, e a preocupação com o valor literário deixou de ser uma questão que os inquietava. Este período foi caracterizado pela violência que atingiu todos os aspetos da vida social do país: nem Confúcio foi poupado, e chegou mesmo a ser “derrubado”. Como a maioria das obras literárias, tradicionais e estrangeiras, foram classificadas como “ervas daninhas” da burguesia ou do feudalismo, o público não tinha nada para ler senão umas escassas publicações de teor revolucionário que tiveram permissão para ser editadas e divulgadas. O romance intitulado Dias de Sol (艷陽天), da autoria de Hao Ran (浩然), foi um desses livros, tornando­‑se um best seller graças à promoção da política de então. Até mesmo os alunos de escolas secundárias foram incentivados a ler esse livro, que narra a vida dos camponeses libertados da opressão da velha sociedade. Com o fim da Revolução Cultural, em 1976, começou a surgir uma literatura denominada “Literatura de Ferida”, cujo maior contributo consistiu em revelar e denunciar as feridas e a dor causadas pelo caos daquele período de loucura política e destruição cultural. Um 062


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dos mais famosos romances a descrever esse período foi Cisnes Selvagens (鴻), de Jung Chang2 (張戎), que já teve numerosas edições em Portugal mas que, na China, ainda não foi editado. É um livro autobiográfico, com narrativas e descrições violentas e chocantes sobre os sofrimentos vividos pelas três gerações da família da autora. Desde a década de oitenta, a China começou a aplicar uma política de abertura ao exterior e de reforma que trouxe mudanças consideráveis em todos os aspetos da vida do país, incluindo a literatura. Os escritores saíram do seu mundo fechado e passaram a ter oportunidade de conhecer a literatura estrangeira. Surgiram novos escritores, que aprenderam com escritores estrangeiros, experimentando novas formas de expressão, ou romperam os tabus, espreitando o mundo mais psicológico e secreto do homem. E a poesia de então, fortemente influenciada pela poesia ocidental, desempenhou um papel relevante e ativo, quer como voz lírica do mundo sentimental e espiritual do eu, como, por exemplo, a poesia de Hai Zi (海子), quer como forma de intervenção na vida social, como esta estrofe de um poema de Bei Dao (北島): “O horizonte tranquilo divide a fileiras dos vivos e dos mortos. Prefiro optar pelo céu a ajoelhar­‑me no chão para não aumentar a altura dos executores que vão bloquear o vento de liberdade. Dos buracos de bala, parecidos com estrelas, verterá a aurora cor de sangue.”3

Zhang Rong é o nome da autora em pinyin (transliteração do mandarim na versão oficial chinesa), enquanto Jung Chang é uma versão ocidental do mesmo nome. 3 Bei Dao (Declaração (宣告), Tradução de Yao Feng, in Suplemento nº163/2012, Hoje Macau 2

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»»» Cisnes Selvagens, de Jung Chang, edição portuguesa

»»» Bei Dao


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Nos últimos trinta anos depois da abertura e da reforma, a China tem vindo a conhecer um considerável desenvolvimento económico e social, tendo­‑se tornado já na segunda maior economia do mundo. Historicamente fechada e conservadora, a China nunca esteve tão profundamente integrada no mundo como agora. A par do rápido desenvolvimento económico, a literatura também tem vindo a tornar­‑se mais aberta, mais variada e mais vigorosa, apesar das limitações ainda impostas, sobretudo em relação a temas considerados delicados e sensíveis. Nestas circunstâncias, mais tolerantes do que anteriormente, os escritores conseguiram transplantar o modernismo, o pós­‑modernismo e outras tendências dos movimentos literários ocidentais do último século para o contexto da literatura chinesa, através de aprendizagem, de imitação e de empréstimo. Houve, com isso, um estímulo do génio criativo que resultou numa explosão ou num renascimento literário. Num tempo curto, dois escritores chineses já ganharam o Prémio Nobel de Literatura. Mo Yan, um dos dois vencedores do Prémio, considera que “a literatura contemporânea chinesa faz hoje parte importante da literatura mundial... Estamos a sincronizar­‑nos com o ritmo do mundo.”4 Muito confiante na qualidade da literatura contemporânea chinesa, este escritor “Não Fale”5, como sugere o seu pseudónimo, sublinha que “na China, nos últimos anos, a questão da fome e os frequentes movimentos políticos causaram grandes impactos à vida do nosso povo. Muitas obras da China conseguem tocar a alma das pessoas, e a profundidade das obras também ultrapassa a de obras de muitos escritores ocidentais.”6 Outro escritor, Yan Lianke (閻連科) , compartilha esta opinião mas prefere sublinhar outro aspeto da literatura chinesa: “na literatura mundial de hoje, a literatura chinesa, que é uma parte importantíssima da literatura asiática, nunca se encontrou numa realidade tão rica […] como agora, que traz esperanças e ao mesmo tempo desesperos. É uma realidade que dá origem a inumeráveis estórias ou lendas, ora surrealistas, ora quotidianas, mas todas são mais reais e mais sombrias.”7 De qualquer maneira, a realidade chinesa serve de riquíssima e inesgotável fonte de inspiração para os escritores chineses da atualidade.

Mo Yan speaks on Chinese literature at UM (莫言在澳門大學主講漢語文學的成就與前途). Disponível em: http:// news.umac.mo/nrs/faces/pub/viewItem.jspx?id=30754&locale=zh_TW 5 MoYan (Não Fale, em chinês) é o pseudónimo literário de Guan Moye. 6 Idem 7 Yan Lianke: “Homem que Sente a Escuridão”, discurso proferido aquando da atribuição do prémio Kafka de 2014 em Praga. Disponível em: http://www.storm.mg/article/23801 4

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A internet e a literatura Com o desenvolvimento da tecnologia da internet, o mundo tem vindo a tornar­‑se uma aldeia onde as pessoas se conhecem facilmente e a comunicação é muito rápida e eficaz. BBS8, blog, microblog, webchat, bem como outros novos meios de comunicação, facultam às pessoas variadas formas livres de escrever, de se expressar ou de “publicar”. Antes do surgimento da internet, os autores tinham de enviar as obras para os redatores de jornais e revistas, tentando a sua publicação. No entanto, como quase todos os jornais e revistas da China, mesmo os de natureza literária, têm que ser autorizados pelas entidades responsáveis, os redatores não podem avaliar as obras enviadas senão de acordo com o critério ortodoxo. É certo que esse critério não está regulamentado por escrito, mas na cabeça de cada redator funciona um sistema de “filtragem”. Por experiência própria e por terem consciência das circunstâncias políticas, eles sabem de antemão quais os trabalhos que podem ou não podem publicar. No caso de alguma obra “problemática” ser publicada, o redator, ou o diretor, tem de assumir a culpa. Aconteceu que uma revista literária de Cantão tinha publicado uma novela, moldada no realismo mágico, que conta a história de um alto dirigente que deveria fazer, de avião, uma visita de inspeção a uma vila montanhosa ainda atrasada. Mas a montanha onde se situava a vila estava deserta e amarelada, porque toda a floresta já tinha sido cortada. Para ocultar esse cenário, o responsável pela vila mandou os camponeses pintarem a montanha de verde. Assim que a novela foi publicada, a instituição que trata da inspeção das publicações acusou a obra de ter deturpado a realidade, apreendeu­‑a e criticou severamente o diretor da revista. É

Bulletin Board System

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»»» Yu Xiuhua, uma Emily Dickinson “made in China”


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»»» Yan Lianke, um homem predestinado a sentir a escuridão

claro que a internet não é uma república totalmente livre, visto que também ali se escondem os olhos da inspeção, mas os utilizadores têm sempre meio de “saltar o muro” para terem acesso a qualquer portal. É pela internet que muitos escritores amadores, na sua maioria jovens, ficam conhecidos, e ricos, com os seus trabalhos reconhecidos. Ultimamente, Yu Xiuhua (余秀華) , uma camponesa de 39 anos, com “paralisia cerebral”, conforme a imprensa chinesa, ficou conhecida de um dia para outro como poetisa, e não só a nível nacional, pois também chamou a atenção da imprensa internacional, como o New York Times. Yu, comparada por uma poetisa chinesa que vive nos Estados Unidos à poetisa americana Emily Dickinson, já se tornou alvo de atenção para além do círculo de poetas. A sua poesia, amplamente divulgada e lida, está a despertar de novo o interesse do público pela poesia. O poema de Yu, intitulado “Vou atravessar a maior parte da China para dormir contigo”, publicado sob o seu nome e com o rótulo um pouco pejorativo de “poetisa camponesa com paralisia cerebral”, apareceu em toda a imprensa chinesa. Aqui está uma estrofe do poema: “Na maior parte da China, tudo está a acontecer: vulcões em erupção, rios a secar uns presos políticos e refugiados, a ser desleixados veados e grous com coroa vermelha, dentro do alcance da espingarda Apesar disso, eu comprimi inumeráveis noites numa noite para dormir contigo. Sou inumeráveis eu a correr em tua direção para dormir contigo”9

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余秀華 (Yu Xiuhua):[月光落在左手上], O Luar Cai na Mão Esquerda, Guilin: Guangxi Normal University Press, 2014, p.56. Tradução para português do autor deste texto. 066


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Tanto poetas consagrados como leitores comuns pensam que os poemas de Yu Xiuhua carregam sentimentos ingénuos e sinceros, expressos num lirismo corajoso, inovador e bem próprio, e estão por isso imbuídos do poder de tocar o coração. De qualquer maneira, a internet tem mudado profundamente a nossa vida e é através dela que nos chegam todos os dias surpresas, milagres ou escândalos. Escrever entre o sol e a sombra “Estou vivo e escrevo sol”, diz o poeta Ramos Rosa. Escrever o sol é uma missão solar, e o escritor deve cumpri­‑la, mas o escritor chinês Yan Lianke assume que a sua tarefa consiste em sentir a escuridão, que faz igualmente parte do mundo solar. Galardoado com o prestigiado Prémio Kafka em 2014, este escritor dinâmico e produtivo acha que na China há pessoas que vivem no meio da luz ilimitada, com entusiasmo e otimismo em relação ao futuro, mas também há pessoas que sentem a sombra intensa, o frio penetrante, que estão envolvidas numa névoa cinzenta, numa espécie de medo de existir. Para Yan Lianke, nunca houve um período histórico no país que se assemelhasse a este, o que está a tornar a China cada vez mais influente no mundo, mas, a par disso, verifica­‑se uma cegueira em relação às crenças e os valores tradicionais parecem não ter sido devidamente herdados e respeitados. O que está a acontecer no dia a dia parece mais mágico, absurdo e ficcional do que o real. Para testemunhar esta realidade, Yan já escreveu muitas obras, entre as quais se distingue o romance O Sonho da Aldeia Ding (丁莊夢), baseado numa história verídica, que conta como é que a maioria dos habitantes da aldeia foi contagiada pelo vírus da sida por causa da venda de sangue. Numa narrativa violenta, o autor traz 067

»»» O sonho da aldeia Ding, de Yan Lianke, edição em português

»»» Peito Grande, Ancas Largas, de Mo Yan, edição em português


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»»» Irmãos, de Yu Hua, edição em português

à tona os conflitos éticos causados pela extrema pobreza, assim como pelo desejo de fácil enriquecimento. A sua outra novela, Ao serviço do povo (為人民服務), que não conseguiu ser publicado na China mas já foi traduzido para português brasileiro, também provou a sua coragem ao desafiar tabus da realidade chinesa. Por isso, Yan é um escritor que merece ser mais divulgado em língua portuguesa. Mo Yan, vencedor do Prémio Nobel 2012, tem uma produção variada e abundante e é um escritor com grande projeção internacional. Tem dois livros publicados em português: Peito Grande, Ancas Largas e Mudanças. O primeiro, publicado na China em 1995, causou grande controvérsia devido ao título erótico, mas esta obra foi o motivo principal para ele ser galardoado com o Prémio Nobel. No fundo, o corpo feminino serve como uma imagem metafórica e simbólica da mãe, uma força da vida que percorre o tempo de guerra, a fome, as convulsões políticas, sem ser vencida. O segundo livro é uma antologia de crónicas que, num tom espontâneo e repleto de humor ou ironia, relata momentos da sua vida vivida inseridos sempre no típico contexto chinês. Ao lado de Yan Lianke e Mo Yan, não se pode ignorar outros nomes, como Yu Hua (余華), Bi Feiyu (畢飛宇), Su Tong (蘇童), Sheng Keyi (盛可以), Han Han (韓寒), entre outros. São os escritores mais representativos e mais ativos da literatura chinesa da atualidade. Os romances de Yu Hua, habitualmente numa narrativa áspera, mordaz, mas hábil, descrevem a crueza da vida dos chineses bem como a desintegração moral da sociedade através da construção de uma série de personagens das diversas fases do nosso tempo, tais como Xu Sanguan (許三觀), vendedor de sangue, da Estória de venda de sangue (許三觀賣血記), Fu Gui (福 068


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貴) de Viver (活著) ou Li Carequinha (李光頭)e Song Gang (宋剛), de Irmãos, que são uma referência incontornável para a compreensão do nosso tempo, marcado por altos e baixos sociais.

Há uma literatura em Macau O conceito “Literatura de Macau” sempre foi polémico, quer entre académicos e escritores chineses, quer entre portugueses, quer entre os dois lados. A hibridez de diferentes culturas tornou difícil a definição da literatura de Macau. Penso que não interessa como definir esta literatura visto que, culturalmente, Macau não é uma terra autónoma nem independente, sendo a sua cultura sempre de matriz chinesa ou portuguesa. Pode considerar­‑se que autores que nasçam, cresçam e residam permanentemente em Macau são escritores de Macau numa definição geográfica, mas, no fundo, eles são escritores chineses, portugueses, ingleses ou franceses, dependendo da sua pertença cultural. Em função desta definição, Henrique de Senna Fernandes pode ser classificado em vários níveis: escritor de Macau a nível geográfico, escritor macaense a nível antropológico e escritor português a nível cultural. No entanto, o mais importante é que temos de afirmar que em Macau há uma literatura, representada por todos os escritores que aqui vivem e escrevem. Mas, infelizmente, as duas culturas, embora convivam basicamente em harmonia e sem conflitos violentos, nunca conheceram uma convergência essencial e profunda. Esta situação de desentendimento parece bem descrita por um provérbio cantonense: “o pato não se entende com a galinha”. Passados quinze anos do retorno de Macau à China, a situação não melhorou, antes pelo contrário, piorou. Nota­‑se que a expressão literária em língua portuguesa entrou numa fase um pouco morna em comparação com o período anterior a 1999, o que se deve principalmente ao regresso de muitos portugueses ao seu país, sobretudo aqueles que se dedicavam à escrita. Dois escritores que continuam ativos são Fernanda Dias e Carlos Morais José, mas Fernanda Dias vive, na maior parte do tempo, em Portugal, embora a sua escrita continue a ter Macau como tema principal, enquanto Carlos Morais José, para além de escrever ficção, dedica muito tempo e energia à divulgação da cultura e literatura chinesas. Um dos frutos do seu trabalho consistiu na publicação em português, no ano passado (2014), de Quinhentos Poemas Chineses. Nesta fase, Carlos Morais José e eu estamos a trabalhar na tradução de Trezentos Poemas Portugueses para chinês. 069


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No que diz respeito à criação literária em chinês, surgiram jovens escritores que têm trazido uma nota de frescura ao panorama chinês, tais como Sussane U (袁紹 珊), com a sua poesia a ser afirmada positivamente fora de Macau, Tai Pei (太皮), um jovem ficcionista que já deu nas vistas na revista literária mais conceituada da China Continental. Merece ser salientada a enorme aposta lançada pela Fundação de Macau (FM) em termos de apoio e promoção de escritores locais. No ano passado, a FM, em colaboração com uma editora prestigiada de Pequim, publicou a Coleção Literatura de Macau, fazendo chegar os escritores locais a um vasto público de leitores da China Continental. Mesmo hoje em dia, não é exagerado dizer que Macau continua a ser uma cidade dentro de “duas cidades distintas mas que não são fáceis de separar e que correspondem a duas almas, a duas vidas, a duas civilizações a de Portugal e a da China”,10 como descreve o escritor Jaime de Inso sobre a Macau do século XIX.

Jaime de Inso: O caminho do Oriente. Macau: Instituto Cultural de Macau, 1996, p.75.

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Bibliografia Bei Dao: “O Homem­‑Ilha“ in Suplemento nº163/2012, Macau: Hoje Macau

Jaime de Inso: O caminho do Oriente. Macau: Instituto Cultural de Macau,1996

余秀華 (Yu Xiuhua):《月光落在左手上》(O Luar Cai na Mão Esquerda), Guilin: Guangxi Normal University Press, 2014

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2º TEMA

A LITERATURA E A INSULARIDADE

1. GERMANO ALMEIDA | Insularidade e literatura – a atual problemática da insularidade 2. JOÃO DE MELO | Açores – um lugar de todo o mundo 3. JOÃO PAULO CUENCA | Homem­‑ilha 4. LUÍS CARDOSO “TAKAS” | Ataúro: desterro e abrigo 5. LUÍS CARLOS PATRAQUIM | Ilha de Moçambique – como se fosse o Aleph


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Conferencistas do 2º tema, A LITERATURA E A INSULARIDADE EM CIMA:

Da esquerda para a direita, Germano Almeida e João Melo EM BAIXO:

Da esquerda para a direita, João Paulo Cuenca, Luís Cardoso “Takas” e Luís Carlos Patraquim


INSULARIDADE E LITERATURA A atual problemática da insularidade* GERMANO ALMEIDA

P

retende­‑se que a palavra “insularidade” seja um neologismo surgido no século XX para caracterizar os espaços mais ou menos pequenos, ilhas, portanto, e mais ou menos isolados em função do seu território ou do seu grau de desenvolvimento relativamente aos espaços ditos continentais. Mas, também se pretende que só merece a designação de ilha uma extensão de terra que possa ser percorrida num único dia. Isso porque, explica certo autor, uma ilha é sobretudo um espaço de afeto e de sentimento, com limites marcados pelo mar, um espaço de utopia que, refere Sérgio Neto num texto dedicado a Cabo Verde, sugere a ideia de porto de abrigo ou lugar incógnito e fabuloso. Isso é relativamente verdade, sobretudo quando identificamos pequenas ilhas dentro da ilha maior. Por exemplo, a Boa Vista. Hoje em dia, a ilha ficou meia hora de distância de uma ponta a outra, mas, na minha adolescência, ainda não era assim, os povoados que a compunham ficavam a distância de muitas horas de jornada, razão por que cada grupo populacional vivia praticamente fechado sobre si próprio (se excetuarmos algumas pessoas do interior que iam à vila vender os seus produtos e adquirir outros), de tal modo que, na vila onde cresci, todos os mais velhos eram tratados como “tios” e tinham um dever de correção sobre os mais pequenos que tanto podia incluir um simples recado aos pais do prevaricador como até mesmo uma pescoçada, se o caso fosse considerado grave. *Com Acordo Ortográfico

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É lógico, pois, que se pergunte em que medida ser­‑se ilhéu, insular em quase todas as aceções que essa palavra pode ter, influencia ou pode influenciar as nossas vidas e, consequentemente, os temas e até a qualidade do que escrevemos, sobretudo quando acreditamos piamente que esse lugar onde nascemos, seja ele uma ilha ou um qualquer outro lugar, é o centro do mundo. A minha ilha tem cerca de 600 km2, um comprimento máximo de menos de 30 km e, no tempo em que ali vivi, tinha uma população total que rondava os 3 mil e tal/ 4 mil habitantes. Na vila onde morava deveríamos ser umas 1500/1800 pessoas e conhecíamo­‑nos todos uns aos outros. Historicamente, a Boa Vista já foi importante no contexto cabo­‑verdiano, e pode­‑se dizer que a ilha tem uma história fabulosa. Chegou a ser sede do Governo por diversas vezes, ali se instalou a Comissão Mista para a abolição da escravatura, o primeiro número do Boletim Oficial de Cabo Verde foi ali publicado em 1842 e foi à Boa Vista que chegou em primeira mão a notícia da Revolução Liberal acontecida em Portugal, em agosto de 1820. Nesse tempo, a ilha tinha um constante movimento de navios (constante para a época, bem entendido!) que, vindos do exterior, aportavam a ela como primeiro porto de escala do arquipélago. E, assim, a revolução tinha acontecido em Portugal em agosto de 1820, e chegou à Boa Vista em março de 1821, portanto sete meses depois. E o mais estranho para nós, hoje em dia, é que a notícia tenha sido tratada como se tivesse acabado de acontecer, e os militares e mesmo a população em geral tomaram posição sobre ela, uns contra, outros a favor, agindo em conformidade e inclusivamente fazendo vingar a Revolução Liberal. No tempo presente, a comunicação é praticamente instantânea. Ainda há dias recebi, vinda de Boston, na América, a notícia do falecimento de um parente meu que tinha morrido ali mesmo, em São Vicente, não havia mais que meia­‑hora. De modo que esse lapso de sete meses para a chegada de uma notícia tão importante como foi a Revolução Liberal mostra o grau de insularidade em que a ilha vivia. Insularidade essa que se foi cada vez mais acentuando, à medida que fomos cada vez mais perdendo ligações com o exterior, que por si já eram esporádicas, sobretudo devido a epidemias que assolaram a Boa Vista. E, na minha juventude, as escalas de navios eram verdadeiros acontecimentos, resumidos aos palhabotes que aportavam, de tempos a tempos, transportando os víveres de que necessitávamos e também a “mala real”, enormes sacos de cartas vindas dos emigrantes e que por horas nos ligavam ao mundo exterior. Nesse tempo, os Correios já estavam equipados com fonia e morse e um 076


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telegrafista que todos os dias, nem sempre com êxito, buscava ligar­‑nos ao mundo, que naquele tempo se circunscrevia à Praia, a capital, donde recebia as notícias que depois circulavam de boca em boca até chegar às pessoas do interior da ilha. Lembro­‑me perfeitamente do primeiro aparelho de rádio chegado à ilha. Era um enorme Grundig, alimentado por uma pesada bateria que todos os dias era preciso levar à fábrica Ultra para carregar. Tinha porém uma voz forte, poderosa, solene, que enchia não apenas a sala da casa do seu dono como ainda transbordava para a rua, onde nós nos apinhávamos para ouvir, não tanto as notícias, mas sobretudo aquela voz encantadora. A nossa insularidade era compensada por outras formas, nem sempre as melhores. Embora com pouca gente, ou talvez por isso mesmo, a ilha abundava em contadores de estórias, mas também em compositores e tocadores dos mais diversos instrumentos, e era sobretudo fértil nas cantigas de escárnio e maldizer. A paródia, o humor sarcástico, mas sobretudo a crítica das pessoas que se considerava estarem a portar­‑se socialmente de forma errada. Porém, nada aterrorizava tanto como o pasquim. O pasquim era um instrumento cuja perversidade atemorizava toda a gente, dado o seu caráter insidioso e impossível de ser desmentido, pelo que, nas manhãs em que aparecia um pasquim pregado numa árvore, toda a vila entrava em polvorosa, curiosa de saber quem estava a ser denunciado, normalmente mulheres, especialmente as casadas com marido emigrante, porque o papel ficava pregado à árvore sem que ninguém tivesse coragem de o arrancar dali e assim podia ficar dias e dias em exposição pública. Curiosamente, os pasquins terão começado a entrar em declínio certa vez em que uma senhora mais despachada soube que era a injuriada, dirigiu­‑se ao local onde estava pregado o pasquim, empurrou os curiosos que se divertiam a ler, arrancou o papel, que rasgou ali diante das pessoas, e disse­‑lhes, em geral, “Vão todos à bardamerda, mesmo que seja verdade o que esse malvado diz de mim, é a minha vida, ninguém tem nada a ver com isso!” A palavra insularidade vem necessariamente de ilha, insula, isolada no meio do mar. Daí que se pretenda que os ilhéus em geral receiam, não o mar em si, mas o que pode vir do mar, porque os perigos que os espreitam chegam sempre por essa via. E é verdade que praticamente todas as ilhas de Cabo Verde sofreram assaltos de piratas e, que se saiba, a única que conseguiu defender­‑se com êxito foi Santo Antão. As demais terão sido saqueadas e vandalizadas. Ora isso fez criar na imaginação popular o que se considera uma psicologia própria dos ilhéus, muito diferente daqueles que nascem e vivem nos continentes, que em princípio podem sempre continuar a fugir. 077


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Há uns anos atrás, um estudioso das coisas da cultura e identidade quis saber se o facto de ter nascido numa ilha fez de mim um homem diferente. Na realidade, nunca tinha pensado nessa questão e achei a pergunta interessante. Mas logo conclui que era irrespondível, pelo menos para mim próprio. Porque tendo acidentalmente nascido numa ilha, não sei o que é ter­‑se nascido noutro lugar que não seja uma ilha. Mas também me pareceu que uma outra pergunta se impunha: o que é realmente uma ilha? Ainda que um tanto vagamente, lembrava­‑me do que tinha aprendido na escola primária: uma ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados. Ora, a ser correta essa definição, ela nada tinha a ver com o lugar onde nasci e vivi toda a minha adolescência. Vou fazer uma comparação: em frente da vila de Sal­‑Rei, na Boa Vista, há um ilhéu. Esse, sim, a gente pode ver à distância que de facto está cercado de mar por todos os lados. E então, em termos das definições dos livros, bem que pode perfeitamente ser considerado uma ilha. Porém, isso de forma alguma se aplicava ao espaço onde morava que, de acordo com os próprios dizeres da geografia, só podia ser um continente, no sentido de uma grande extensão de terra sem interrupção de continuidade e que se pode percorrer de lés­‑a­‑lés sem atravessar o mar... Essa convicção está longe de ser presunçosa. É que, nos anos da minha infância, atravessar a ilha da Boa Vista de um lado a outro não era brincadeira nenhuma. Lembro­‑me que, para se chegar da vila de Sal­‑Rei, na ponta oeste, à povoação mais distante a leste, eram precisas mais de 12 horas de jornada no lombo de um burro, conforme a alimária fosse de trote mais ligeiro ou mais molengão. Cresci, pois, na imensidão incomensurável da Boa Vista, que aliás ainda hoje não conheço em toda a sua extensão. Já adulto, aprendi a diferenciar uma ilha de um continente, mas, por mais que racionalize, continuo a não achar desigualdade alguma entre eles. De modo que ser ou não diferente terá, quanto a mim, muito a ver com a vivência de cada um, as pessoas que nos educaram, o meio no qual nos fomos formando, que, no caso, foi de uma total liberdade enquanto morador numa vila semi­‑rural. Mais tarde, os livros começam a entrar na nossa vida, outras realidades, um certo alargamento do centro do mundo para além do simples pedaço abarcado pelos olhos e, a pouco e pouco, a compreensão de uma emigração com que diariamente convivíamos e sabíamos tão impiedosa que mais não fazia que amontoar viúvas de maridos vivos mas perdidos nas plagas das Américas, por longos e longos anos presentes na família apenas através das cartas mensais, das descomunais malas de 078


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roupa usada e pelos dólares que remetiam. Eram todas criaturas míticas que a nossa imaginação ampliava desmesuradamente, sobretudo quando mandavam fotografias de estúdio em poses de grande indumentária e garbo, de pé, negligentemente apoiados em delicadas bengalas com castão em forma de cabeça de cavalo ou de águia, ou sentados em belas poltronas que mais pareciam os majestosos tronos dos reis que conhecíamos dos livros. Até que um dia, finalmente, desembarcavam de regresso. Americanos de fato completo, incluindo colete, gravata e chapéu, porém velhos e trôpegos, pesadamente apoiados em grossas bengalas, engrolando um crioulo arcaico, pontuado de palavras em inglês. Chegavam para encontrar as respetivas mulheres já carcomidas pelo tempo, estafadas pela nhanhida1 vida no campo, labutando nas hortas na época das águas, cuidando de sol a sol dos animais da criação doméstica, alimentando­‑se a desoras e, quando calhava, ainda bem que com serventia para alguns deveres caseiros, como levar uma panela ao lume ou fazer um chá, porém já sem qualquer hipótese de chegarem a ser esposas. Partiu com vinte anos, regressou com sessenta, dizia­‑se deles, casou­‑se por procuração, no estado em que está nem serventia terá para lhe tirar os três vinténs, ela vai morrer sem avaria na joia. Naquele tempo acreditávamos, dito pelos mais velhos, que era completamente interdita a entrada no Céu de toda e qualquer mulher virgem, aquela que lá chegasse nesse estado tinha primeiro que enfrentar o velho e barbudo S. Pedro, munido de um poderoso arco­‑pua com que barbaramente executava um serviço que até consumado em condições naturais era doloroso. Ora essa refinada perversidade no além à espera das mulheres, atribuímo­‑la à exclusiva culpa e descaso do marido que se deixara perder na ganância dos dólares e nunca mais se lembrara de vir sequer por uma semana à ilha visitar a família. Só muitos anos depois, quando os meios de comunicação de toda a espécie trouxeram finalmente para as ilhas a terra longe, viemos então a entender como a América era realmente “terra longe”, e também que os dólares que a nossa fantasia se deliciava a fazer tropeçar nos pés dos emigrantes nos seus passeios pelas ruas eram penosamente ganhos nas embrutecedoras fábricas onde labutavam, sem tréguas nem férias. Não obstante toda essa vivência, a insularidade não serviu de mote para uma literatura que espelhe esse lado nacional, razão por que esta é escassa à volta da

Sofrida

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questão que mais sofreu com a insularidade, isto é, a emigração. Pessoalmente, ainda muito jovem, tive a sorte de conviver com um velho emigrante que me contava as imensas estórias por que passou e viu companheiros passarem. Voltamos para a terra cheios de bazofaria, dizia, mas na verdade lá fora somos tratados pior que escravos, feliz aquele que não tiver necessidade de sair da sua terra. Até agora não apareceu um narrador a contar­‑nos a vida nos nossos emigrantes enquanto experiência vivida. Entre nós, a nossa, e também deles, insularidade, revelava­‑se sobretudo na comunicação via cartas que entre ida e vinda podiam levar até 6 meses. Acabei por ser um verdadeiro elo de ligação entre as mulheres na terra e os maridos na terra­‑longe, dada a minha qualidade de escrevinhador de longas cartas em cujo conteúdo inicial e final praticamente uniforme conseguia ainda meter pequenas variações de estilo como forma de as personalizar mais de acordo com a idade de quem pedia: “Querido e amado marido do meu coração, espero que ao receber estas mal traçadas linhas estejas gozando de boa e perfeita saúde ao lado dos que te rodeiam. Nós aqui na graça de Deus descontando os dias conforme é a sua vontade, sempre lembrando de ti com saudades imensas que não têm fim e só terão fim no dia em que voltares para a tua casa e a tua família que te espera sempre ansiosa e com fé que Deus um dia nos dará essa satisfação se assim for a sua vontade…” Essa era a parte em que permitia a minha imaginação trabalhar à vontade para encher as folhas, porque os assuntos propriamente ditos eram relativamente escassos, pouco havia a tratar entre pessoas que muitas vezes mal se conheciam, era um burro que tinha partido uma perna e que vivia agora entalado, uma inesperada praga de gafanhotos, a chuva que devia ter caído na altura em que o milho floria e só tinha chegado semanas depois, as dores do reumatismo que já chegavam, até podia ser que naqueles lugares com tantas invenções houvesse já alguma pomada capaz de aliviar as dores… E a seguir eu ficava de novo livre para os cumprimentos e as despedidas, mantenhas de um tio que tem estado bastante adoentado derivado a uma queda que deu de um burro em que machucou uma perna e também as costas porque esse burro, um animal até essa altura manso que nem uma cabra, nem zurrar sabia, nesse dia espantou­‑se, certamente que por causa de alguma coisa ruim surgida nas minguadas horas do meio­‑dia, o certo é que saltou do caminho arrastando o tio pelo estribo onde um seu pé tinha ficado engatado, mantenhas também de todas as pessoas que ainda se lembram de ti… Hoje dou conta de como a palavra “saudade”, que nunca me esquecia de meter nas cartas, era ausente do vocabulário dessas criaturas, viúvas de maridos vivos mas distantes, e que encaravam como natural essa separação. 080


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Mas havia uma outra forma de insularidade mais material e de que ninguém parecia ter consciência e que era a desertificação provocada pelas prolongadas secas, cada dia invadindo mais e mais a ilha. As próprias autoridades não deviam saber como combater esse flagelo para além da rigorosa, quanto inútil, proibição de cortar árvores ou arbustos de qualquer espécie destinados a serem usados como combustível doméstico. Porém, só depois da independência Cabo Verde viria a ter uma fábrica de enchimento de gás butano, circunstância que acabou socializando o produto, não só pelas múltiplas escolhas no tamanho e preço das garrafas, como também porque o Estado subsidiava grande parte do seu custo, desse modo o colocando ao alcance da generalidade da população. Mas até lá, quer de dia quer mesmo de noite, foi uma luta diária, sem tréguas, sem descanso e sem ódio entre os poucos fiscais e uma imensa população que precisava alimentar­‑se e por isso mesmo desafiava as autoridades, assumindo as consequências que no final se resumiam à perda da lenha e algumas horas de cadeia. No entanto, essa luta sem tréguas, porque tinha a ver afinal das contas com a própria sobrevivência das pessoas, ainda não se encontra de forma alguma refletida na nossa literatura, ainda que seja verdade que a insularidade não condicionou, pelo menos negativamente, a literatura nacional, quanto mais não seja em termos de produção, já que no que concerne à divulgação ela foi bastante castigadora, se compararmos as dificuldades que, por exemplo, o grupo claridoso enfrentou, em termos materiais e técnicos, para imprimir os poucos números que publicou. Muitas vezes são criticados por terem publicado apenas dez números em cerca de 40 anos, e não se tem em conta que hoje vivemos em perfeitos paraísos tipográficos comparados com eles. De todo o modo, é certo que a insularidade, normalmente tida como castradora, pode inclusivamente ter entre nós desenvolvido uma forte tendência para o ócio que, como se sabe, é realmente o grande motor do desenvolvimento literário. E isso explicaria o facto de num arquipélago por definição insular, e também portador de um isolamento acentuado, pelo menos no passado, pudessem ter surgido condições para o desenvolvimento de uma literatura de certa forma desproporcional com o número de habitantes das ilhas, desse modo provando que a insularidade não é sempre uma circunstância adversa.

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AÇORES Um lugar de todo o mundo* JOÃO DE MELO

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esse tempo, não se sabia nada do mundo. A vida era apenas uma ideia baça, tangida à superfície áspera das coisas. Eu via­‑a com olhos de menino, através de uma cortina translúcida, talvez cor de cinza como devia ser o fundo dos oceanos. Orientava­‑me à flor da realidade bem mais pelo ouvido e pelo tato do que pelo sempre abreviado sentido do olhar na infância. Apesar de ele estar ali tão perto – entranhado no ouvido, quase ao alcance da mão – ainda não tinha ido conhecer o mar. Tão­‑pouco conhecia a vila do Nordeste, sede do concelho, e a cidade de Ponta Delgada (que ficava a pouco mais de dez léguas de um caminho batido a cascalho de bagacina e a ossadas pedregosas); ou mesmo as freguesias ao lado da minha que se perfilavam lá no alto, ao cimo da falésia, à sombra das torres das suas igrejas (cujas fachadas se postavam de frente para a gloriosa cidade de Jerusalém). Também nunca fora até aos verdes e enevoados montes das terras a que então chamavam o «mato do povo» – de cima dos quais se via mar e mar de um lado e do outro da ilha. Eram rasos os ventos marítimos que vinham da América, e húmidos os campos de milho, beterraba e tabaco. Solenes e sinistras, grandes aves de arribação de hábitos noturnos (os «cagarros», que nidificavam nas rochas) atravessavam a escuridão do céu noturno dos Açores, chorando como bebés enfurecidos por cima das casas, enquanto nós, crianças cismadas, tentávamos em vão dormir com os seus sinistros

*Com Acordo Ortográfico

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grasnidos de cólera no ouvido. Diziam­‑nos as avós que as vozes plangentes das aves se misturavam com o pranto dos bebés mortos antes de serem batizados. Sem o sacramento do batismo não eram considerados cristãos perfeitos. Por isso mesmo, não iam para o Céu, mas sim a caminho do Limbo, que diziam ser a estação infinita das suas almas. Não devendo penar injustamente no Purgatório, por serem inocentes, nem no fogo eterno do Inferno, por isenção de toda a culpa, não podiam contudo aspirar ao bosque deleitoso do Paraíso, destinado aos misericordiosos e aos justos. E porquê? Ora, porque não eram pecadores confessados e arrependidos, não puderam redimir­‑se do pecado original, nem serem levados à doce e serena presença de Deus Nosso Senhor, criador do Universo, obreiro da Vida, mordomo da Casa Grande da Morte e do Juízo Final. Os aviões de então passavam alto de mais, muito acima do nosso mundo de animais terráqueos, com os pés grudados ao chão. Viajavam mais perto de Deus do que de nós, filhos da terra e dos homens. Os seus corpos de peixes metálicos, entrando e saindo de entre as nuvens carregadas de chuva, extinguiam­‑se no limite extremo do olhar, como se fossem o ponto final na última página de um livro. Também os navios não iam além de miniaturas recortadas na cartolina branca do mar que a luz do Sol fixamente iluminava sobre a linha do horizonte: imóveis, sem rumo à vista, perdidos nos imponderáveis e líquidos caminhos das suas viagens à volta do mundo. De sorte que (como esquecê­‑lo?) o grande dia da minha infância aconteceu quando pude descer ao fundo da falésia, através de veredas escavadas naquela costa muito alta, em alcantilado, que nos defendera durante séculos de todos os corsários e piratas. Ia finalmente conhecer o mar de perto. Cheguei ao calhau rolado e fiquei ali de pé, como que extasiado, perante a imensa planície de água que se erguia e enrolava ao largo. Era um mar de verdade: movia o carro das suas sete ondas­‑rodas e vinha desabar a meus pés, por entre a penedia e a areia preta da costa vulcânica. Pela primeira vez, escutei a sua voz no erguer das ondas, no dobrar da avalanche líquida e na força da sua rebentação. Ouvindo e vendo o mar, eu estava ali e estava longe, sabendo que ele ia e voltava de ilhas, povos e países distantes para nos falar das cidades e do tempo futuro que nos esperavam nas bandas ocultas de um mundo que ainda nos faltava descobrir. Deslumbrado, sentei­‑me à sua frente, chamei­‑o baixinho, uma, duas, três vezes seguidas, mar, mar, mar, e logo ele, cão ingénuo e faminto, me veio comer às mãos. Além de plano (e não oblíquo, conforme eu o via lá de cima), cheirava a partida, não a chegada, e lavava­‑me o olhar deslumbrado com o sal de palavras que me eram mais ou menos desconhecidas: adeus, saudade, despedida, regresso, Lisboa, Brasil, Venezuela, Canadá, América, América, América... 083


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Bastava puxar os fios do mar (ele possuía­‑os à superfície da água, boiando ao sabor das correntes e das ondas) e desejar um navio, uma cidade, um país ideal, um simples lugar de achamento num dos antigos continentes que nos haviam largado a meio do Atlântico, entre a Europa e a América. Puxando os fios do mar, podia acontecer que surgisse a tal ilha emersa no meio de uma utopia, ou um deus montado no seu carro de nuvens douradas pela luz sangrenta do crepúsculo, um cavalo a galope sobre a espuma de um perfeito sonho de largada, ou outra qualquer personificação do desejo de viajar ao encontro do mundo. Também não se sabia, nesse tempo, o que era um vulcão – de onde vinha, de que funestos poderes se armava a terra da ilha para nos fustigar. As desgraças maiores chegavam sempre à frente dos devastadores ciclones americanos, com chuvas de noventa e nove dias consecutivos, os sismos que abriam fendas e rachas nas empenas das casas e no chão dos caminhos – ou vinham no rol de umas esquisitas doenças, ditas estrangeiras, cujos nomes não cabiam na língua que então falávamos nos Açores. Esses males existiam para que os esconjurasse o poder divino dos grandes remédios. E os únicos grandes remédios da vida na minha ilha não existiam nas farmácias: só Deus, a Igreja e os Santos possuíam a competência de todas as curas e remedeios da alma. Por isso mesmo, quando nos aconteciam lástimas, íamos de procissão, Rua Direita acima e abaixo, com a Salvé Rainha nos suspiros e nas vozes, rezando, pedindo misericórdia e perdão à Padroeira, na sinceridade profunda do nosso arrependimento. Na verdade, nós tínhamos pecado em excesso, tanto por obras como por pensamentos ou intenções: merecíamos os ciclones e os temporais, os sismos, a perda das searas e das colheitas, a dor e o medo de morrer. Na noite, a procissão subia e descia a rua e regressava por fim à igreja, por entre rezas, cânticos, lágrimas e suspiros. E então, por puro e indubitável milagre, logo cessavam os sismos e os temporais, e amainavam as vagas e os ciclones americanos: tudo por obra e graça de Nossa Senhora do Rosário, que se apiedara dos nossos corações arrependidos. Findos os tremores de terra, as chuvas, os ventos, e remidas as nossas contas com Deus, voltava a ser permitido pecar por pensamentos, obras e omissões – na certeza de que vinham depois os confessores e a semana da Páscoa. Bastar­‑nos­ ‑ia ajoelhar com humildade a seus pés, benzer­‑nos, fazer o sinal da cruz e dizer o ato de contrição com ar compungido: logo contávamos com a absolvição do confessor, a troco de umas penitências leves, quase irrisórias, tão fáceis de cumprir que até ríamos do padre e da confissão. E assim era a felicidade. Um dia, chegou a notícia do vulcão dos Capelinhos, na longínqua ilha do Faial. Abismados, perguntámo­‑nos que estranha coisa seria essa de saírem jatos de fogo e 084


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lava cor de púrpura das profundezas do mar e do ventre da terra, cuja calda deslizava depois montanha abaixo, submergindo casas e ruas, matando os campos, as pessoas, os animais, sem que a nada e a ninguém valesse o Senhor Deus Todo Poderoso das catequistas, das avós religiosas e frias, dos sermões irados na missa de domingo, da verdade absoluta da Fé em todas as evidências da nossa idade. Não houve quem nos soubesse ou quisesse responder. Tornou­‑se­‑nos claro que existem lugares, tempos e pessoas junto dos quais e de quem nada adiantava formular perguntas. Numa ilha dos Açores, um vulcão pode abrir uma porta de saída da terra para o mar, e uma outra de regresso à origem do mundo e da vida. Foi o que naquele tempo aconteceu. Como tínhamos nós, exilados, esquecidos entre três continentes (a Europa, a África e a América), ido nascer aos Açores? Por que motivo falávamos uma língua que datava do tempo das naus de África, da Índia, do Brasil, da América, que amiúde aportavam à aguada das ilhas, ou a socorrer­‑se contra a investida do corso, da pirataria magrebina, das furiosas tormentas do mar, dos naufrágios de Sepúlveda, das histórias trágico­‑marítimas coligidas pelo frade Bernardo Gomes de Brito ou escritas por um insigne e estupendo mentiroso, num tempo em que a ficção ainda não existia entre nós – inventada logo a seguir por Fernão Mendes Pinto, o autor de Peregrinação? De novo, pouco ou nada adiantava fazer perguntas. Os bichos da terra não podem esperar respostas sensatas à impostura dos seus próprios verbos interrogativos. Recorrem à imaginação explicativa do ser, põem de parte a chamada lógica natural, só creem no bom propósito do que mais e melhor lhes convém. Deve haver uma teoria para tudo neste mundo. Por exemplo, acerca da largada dos primeiros tios solteiros para o Brasil e a Venezuela, à procura dessas terras do fogo, das minas, da riqueza fácil e impetuosa. Ou acerca dos outros tios que iniciaram a demanda dos distantes países do frio, onde então a neve se chamava sinó, os comboios eram treines e a cerveja se dizia bia. Chegavam a lugares e nomes como Québec, Toronto, Kitimat, Boston, New Bedford ou Fall River, doentes, exaustos de tanta guerra de água salgada, de tanto enjoo do cheiro a resina e óleo quente dos barcos, tanta tormenta de mar levantado pelos ventos. Mas depois mandavam cartas com um dólar dentro, dobrado no meio de papelinhos cor de tabaco, para não serem detetados à luz pelos olhos ávidos dos carteiros. Eram cartas com muitas lágrimas e erros de ortografia, que nos davam a saber que o mundo, ao contrário do que nos tinham ensinado na escola, afinal não era redondo, nem oval, nem curvo sequer, mas sim horizontal, contínuo, parado, sem princípio nem fim. À medida que sobre elas se caminhava, as águas abriam­‑se à passagem dos viajantes, como outrora ocorrera ao profeta Moisés na travessia do Mar Vermelho. O céu movia­‑se 085


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por cima das suas cabeças e o horizonte deslocava­‑se para diante, sempre à frente dos passos perdidos desses aventureiros do mar. Ninguém inventara, até então, uma forma de regresso a casa. Para sair da ilha, bastava ir adiante e a direito, passar a cancela do quintal, fechar o caminho andado, atrás das costas, e depois singrar, ir à tona da água, como iam as garrafas lançadas na corrente com uma mensagem de amor ou um pedido de socorro, até que de novo surgisse terra à vista na linha do horizonte. Não vos pareça excessiva nem absurda a minha hipótese – mas esse não foi só um movimento de partida dos Açores para o mundo de fora. Tratou­‑se de um reencontro com a morada universal de todos os viajantes que já não recordam um lugar de origem, nem sabem onde começa o seu ponto de chegada à outra margem do Atlântico. Como explicá­‑lo, aliás? Íamos de regresso aos continentes de onde havíamos sido expulsos antes de termos nascido; de regresso a tudo e a nada, de novo nas voltas do mar e do tempo, subindo de um século para o século seguinte, em ascensão para o alto e também para dentro de nós. Regressávamos a Coimbra e a Lisboa, onde tínhamos deixado os livros de estudo, a conspiração política e o amor das mulheres; íamos de volta à Europa das velhas catedrais góticas, para nelas conhecer a vontade de Deus a nosso respeito; às Áfricas, como herdeiros dos que morreram às mãos da terra e da guerra; à América única e numerosa como a mulher amada do poeta Ruy Belo; aos sonhos de pai e mãe, à ideia de que devia haver em nós uma ânsia de humanidade igual ao sangue da grande família universal. Mas, repito, como explicar os Açores enquanto lugar de partida para o seio do mundo se, afinal, ainda agora e sempre, nos limitamos a ir longe buscá­‑lo e se nada mais queremos do que tomar o nosso mundo nas mãos, sustentá­‑lo, tomar­‑lhe o peso, o mecanismo, a razão – e depois envolvê­‑lo no nosso sonho de regresso à casa do ser e da Ilha? A linguagem das literaturas insulares não se confina a uma geografia, nem à história daquilo que nela se ignora. A ilha será sempre um lugar do imaginário universal, para mais depressa ser também literatura e, assim, um lugar de todo o mundo. A ficção regional não existe. O padrão de grandeza de toda a linguagem de criação literária não se cinge à imagem local, nem ao colorido das vozes, nem à tradição obediente a um cânone estritamente insular. A condição humana, vista e descrita na sua autenticidade, será sempre o desígnio maior de quem conhece e descreve a sua gente. Em si mesma, a literatura é o sexto continente da Terra. A sua função consiste em projetar para longe de si esse tal lugar de todo o mundo que afinal nasce connosco, vive dentro da nossa vida e só assim se faz único, à medida de cada homem, de cada livro, de cada escritor. 086


À GUISA DE PRÓLOGO1* JOÃO PAULO CUENCA

1.

Eduardo Lourenço, num dos seus ensaios mais célebres, “Tempo Português”, define seus compatriotas como detentores de um “destino de povo marítimo, viajante, separado de si mesmo pelas águas do mar e do tempo”. Predestinado ao desterro, o português viveu e vive simbolicamente numa ilha – segundo Lourenço, ilha­‑saudade, ilha mítica por excelência da Europa, ocupada por um povo em fuga de si mesmo. Ao longo dos séculos, esses ícaros jogaram­‑se ao desconhecido buscando um sol separado deles pelo oceano e por quedas vertiginosas. Com eles, levaram milhões. Não que todos quisessem. Após as tragédias do etnocídio indígena no Brasil e do brutal regime escravocrata em todas as colônias, a herança central que os portugueses deixaram aos que espalharam nestas terras, além da poesia das palavras, do bacalhau à gomes de sá e da cruz foi a mesma dúvida de ilhéu que os define: ficar ou partir? Pois a ilha é um território cercado por esta pergunta, “ficar ou partir?”, sob a dupla sentença do exílio e da saudade. O projeto de buscar­‑se a si mesmo fora, ir para regressar – e talvez perceber­‑se mais à vontade no mundo que em casa. Bonita melancolia que, no entanto, pela História uniu poetas a traficantes de escravos.

Texto lido no VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, na mesa “A Literatura e a Insularidade” em 02/02/2016. Contém trechos de coluna publicada na Folha de São Paulo no mesmo dia e também do romance Descobri que estava morto (Caminho, 2015).

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*Com Acordo Ortográfico

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Talvez o projeto de instalar­‑se à margem do mundo com tal estado de diáspora mental tenha sido levado à perfeição em Cabo Verde. Até a segunda metade do século XV não havia nada além de pedras no arquipélago africano, e agora há. Os seres humanos mais bonitos e elegantes do mundo a dançar as mornas mais bonitas e mais tristes. E que sonham em emigrar ou já dizem adeus: há mais cabo­‑verdianos fora do país que aqui. Depois de poucas horas na Cidade Velha, uma mistura aparentemente impossível de recôncavo baiano com caribe na África subsaariana, tenho vontade de aprender crioulo, alugar uma casa e fazer o contrário: ficar. E tentar convencê­‑los que o longe é agora, convencê­‑los a interromper essa maldição herdada dos portugueses – que projetem, enfim, sua nostalgia aqui, para o paraíso por trás da bruma seca destas terras.Isso na verdade é para dizer que aceito convites para estabelecer­‑me numa casinha ali na Achada de Santo Antônio, no Miradouro do Brasil. Talvez minha Pasárgada seja, afinal, Cabo Verde. Este desejo de fuga, no entanto, não é a tônica da geração de brasileiros a que pertenço. O Brasil há tempos já não é uma “República Federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus”, como escreveu Oswald de Andrade. Nosso destino virou. País majoritariamente de imigrantes e não emigrantes, o Brasil, de certa forma, é onde a diáspora portuguesa foi para morrer. Não por acaso, segundo a lenda, Dom Sebastião está enterrado sob as dunas da Ilha dos Lençóis, no Estado do Maranhão. Por essas é preciso confessar não ser exatamente um brasileiro. Talvez seja um a­‑brasileiro, ou um brasileiro apátrida com atavismos profundamente lusitanos. Sempre me vi isolado no perpétuo Baile da Ilha Fiscal que é o Rio de Janeiro, sofrendo o que alguns amigos pouco sofisticados chamam de “síndrome de anti­‑dorothy” – qualquer lugar sempre foi melhor que o meu lar. Pelas viagens, sinto falta não de casa, mas, como dizia o Camilo Pessanha, de tudo o que vou deixando para trás, como se algo meu se desfizesse pelo caminho. A essa saudade ao contrário da terra natal, comum a mim e a tantos de nós, os alemães chamam de Fernweh. A velha máxima de Baudelaire “parece que sempre serei feliz onde não estou” sempre valeu para mim apenas no Rio de Janeiro. Se no resto do mundo eu era razoavelmente feliz, bem­‑adaptado e tinha uma curiosidade legítima sobre as ruas e as pessoas que as ocupavam, na minha cidade natal a combinação de falta de esperança com um sentimento generalizado de asco fazia com que eu me sentisse um intruso. Mais que isso: um traidor. Caminhava pelas calçadas com o desejo constante de pedir desculpas para todo mundo. O porteiro, o homem da banca de jornais, o transeunte anônimo, o motorista de táxi que 088


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parava ao meu aceno. E por que desculpas? Porque pareciam esperar de mim algo que não tinha para oferecer? Até hoje, tal sentimento me empurrou para longas e exóticas temporadas no exterior, onde este homem­‑ilha viveu muito além das suas fronteiras físicas e emocionais, esgotando recursos e queimando pontes como um bon vivant camicase e patético. A maioria das viagens que marcaram minha busca pelo porto definitivo não foram patrocinadas por expedições da Coroa, mas por modestas publicações, trabalhos no estrangeiro ou encontros literários como este. Sempre as prolonguei seguindo critérios imprudentes e aleatórios. Da opulência de hotéis cinco estrelas para a pobreza de muquifos de beira de estrada, já reproduzi muitas vezes a decadência da corte do Império que nos une. Não no espaço de séculos, mas de um dia para o outro. Essa crença ingênua na partida – o mesmo pecado original de Portugal, de Dom Sebastião, dos meus antepassados corsários espanhóis convertidos em tristes argentinos sob o meu pouco refinado patronímico de Cuenca, de gerações de emigrantes e desterrados caindo como peças de dominó longe de casa – sempre ocultou certa vocação para a tristeza, desejos vagos de desaparição. Demorei para entender que a minha personalidade não seria construída pelo acúmulo de experiências – e sim erodida por elas. Homem­‑Ilha Jamais cometeu a indiscrição de admitir, principalmente a si mesmo, o medo que seu desejo de abandonar a cidade fosse recíproco – que ela desejasse abandoná­‑lo também. Ir embora por vontade própria seria bastante diferente do que ser expulso, do que capitular cabisbaixo frente a um adversário medíocre, ou, pior, do que ser visto como alguém em fuga. Até que ponto renunciar à terra natal não seria fruto de uma rejeição dos seus? É possível fugir sem ser covarde? Quaisquer que fossem as respostas, as próprias interrogações eram derrotas que não estava pronto para assumir. Era necessário manter a superioridade que tem o que abandona sobre o abandonado, a lucidez do amante que se despede e que, a partir de um ponto iluminado e irresistível na linha do tempo, decide estar só. Garantir esse status antes da sua diáspora pessoal era, como se vê, uma questão incontornável. Ele mesmo, filho de emigrantes, teve o exemplo em casa: temia o esquecimento pelos seus colegas de profissão, pela imprensa, pelas ex­‑mulheres, pelo séquito de admiradoras que nunca 089


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o conheceram (e justamente por isso), pelas conversas nas mesas dos bares – a prescrição dos que vão embora, o nome que deixa de ser lembrado até que nunca mais seja dito. Além de ir embora, precisava fazer falta. Justamente o que sua família, ao escapar do naufrágio de seus círculos de origem nos anos 70, não conseguira. O apego ao parco património social acumulado aos 37 anos contrastava com o mal disfarçado desprezo que tinha, não só pelas suas conquistas, mas pelo palco delas: o Rio de Janeiro. Como costumava repetir, conquistando desafetos imediatos pelos bares, a cidade que seria a capital da cultura do Extremo Ocidente se não houvesse Buenos Aires, que seria a capital do dinheiro do Extremo Ocidente se não houvesse São Paulo e que caminhava, então em tempos pré­‑olímpicos, a tornar­‑se uma Barcelona um pouquinho mais miserável e bastante mais exótica nos cafundós do Hemisfério Sul. Mais exótica e mais cara: a corrida imobiliária que transformava barracos nos morros da Zona Sul carioca em pousadas­‑boutique comandadas por franceses na Mikonos pós­‑tropical que as favelas sugeriam em tempos de nova paz armada já fazia parte de um processo irreversível. Se nos primeiros anos do século XX as ruas estreitas e os milhares de cortiços do centro da cidade, focos de pestes como varíola e gente pobre, foram demolidos para a abertura de boulevares haussmannianos margeados por palacetes e edifícios art nouveau (que também seriam postos abaixo para a construção dos arranha­‑céus sem arquitetura tão caros ao milagre económico da Ditadura Militar décadas depois), no início do século XXI o bota­‑abaixo de barracos para emular Paris na encosta dos morros seria uma impossibilidade política e estética – ainda que suas condições não fossem muito diferentes dos cortiços passados cem anos: lixo acumulado, esgoto deficiente, violência, tuberculose, caos urbano. Não por acaso, os homens e as mulheres que foram expulsos do centro com a reurbanização empreendida pelo prefeito Pereira Passos a partir de 1902 foram os mesmos que desmataram a floresta tropical dos morros e a transformaram em favelas. Tratava­‑se de um círculo vicioso, um oroboro2, não de uma cobra, mas de um cachorro correndo atrás do próprio rabo – visão muito comum nas ruas do Rio de Janeiro em qualquer tempo. Nos anos dez do século XXI, mais discreto e eficaz que derrubar os barracos dos morros da Zona Sul foi militarizar a área, construir muros de três metros de altura nas fronteiras das favelas e retirar gradualmente o oxigénio dos seus moradores. Do processo inicial de asfixia fizeram parte reformas que maquiaram o improviso, encareceram a área e abriram caminho, ainda Oroboro, ou ouroboro, é um símbolo representado por uma serpente, ou um dragão, que devora a própria cauda. O oroboro simboliza o ciclo da vida, a eternidade.

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que não tenham alargado as ladeiras e vielas que sangram pelo morro, para a chegada de novos personagens: oficiais das Forças Armadas brasileiras e suas ramificações mafiosas, empreiteiros, agentes imobiliários, estrangeiros, novos capitalistas, bancos, imprensa, bistrôs, galerias de arte abstrata, American Apparel, lojas de frozen yogurt japonês no lugar do velho sapateiro, estudantes de design sustentados pelos pais ocupando sozinhos o ex­‑barraco onde vivia uma família de seis e agora é um Luxury Loft, um Upscale Condo’s, um cubículo elegante com vista lateral para o mar e 350 mil dólares por 25 metros quadrados. Tratava­‑se da versão carioca de gentrificação, a ocupação de uma área urbana degradada por moradores de uma classe social mais rica com o afastamento de seus habitantes originais: Hackney, Greenwich Village, Williamsburgh, Kreuzberg, Canal Saint Martin, Vidigal, Cantagalo, Rocinha, Pavão­‑Pavãozinho, Chapéu Mangueira, Providência, Saúde. – Parece com arte. É difícil de explicar exatamente o que é, mas você reconhece quando vê – disse certa vez Tomás Anselmo, apontando para o primeiro Starbucks no Morro da Rocinha, inaugurado no verão de 2015. Se no início o cafezinho triplicou de preço, depois foi o aluguel e logo chegaram as propostas de compra dos imóveis. E a conta de luz oficial, a conta de TV a cabo oficial, o imposto oficial, o bandido oficial e um processo cultural integrado ao desenvolvimento, o que fazia Tomás discorrer por horas sobre como a música, o baile funk, os shortinhos atochados nas bundas das meninas do morro, a sacanagem e o jeito de trepar estavam sendo rapidamente gentrificados nos morros protegidos da Zona Sul, agora invadidos pela classe média. Até os bares e os bailes dos morros começaram a parecer com as cópias deles mesmos encontradas no asfalto, numa espécie de fita de mœbious3 da gentrificação. O ruído não foi pouco. Ainda que os novos colonizadores, brancos e gringos (mesmo que brasileiros), fossem aparentemente simpáticos ao exotismo e ao caos do morro, no fundo guardavam a esperança de uma limpeza total. Por outro lado, os moradores originais já não conseguiam esconder o preconceito com os emigrantes do asfalto e a irritação com o policiamento ostensivo – continuavam sob o controle de homens armados, simpáticos a todo o tipo de arbitrariedade contra negros e pobres. Passaram décadas atolados num gueto dominado por traficantes em guerra contra a polícia e contra facções contrárias para agora perder suas casas e esquinas para gente

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A fita, ou faixa, de Mœbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma faixa, depois de se dar meia volta numa delas. É uma superfície com uma componente de fronteira, não é orientável, possui apenas um lado e uma borda e representa um caminho sem início nem fim, infinito, onde se pode percorrer toda a superfície da faixa que aparenta ter dois lados, mas só tem um. 091


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que jamais gastou um minuto da vida fazendo qualquer tipo de trabalho honesto. Acabavam por vender suas casas e partir a subúrbios obscuros aparentemente sem fazer a óbvia pergunta: “Por que é que agora, que a vida melhorou, a gente tem que ir embora?” Vagabundos, filhinhos de papai, come­‑dorme, figurante de novela, viadinho, artistinha, inteleca, projeto de otário e a cusparada no chão: “Vão tomar no cool.” Era o mesmo preconceito encontrado na senhora quatrocentona de Ipanema ao ver o Arpoador tomado pelos favelados no domingo, ou South Beach cheia de turistas eurotrash, ou Key West com os bêbados barrigudos desembarcando de cruzeiros pagos em dez prestações, ou Greenwich Village lotado de suburbanos de Connecticut, ou os cafés do Boulevard Saint­‑Germain dominados por americanos ignorantes, ou a piscina do Country Club cheia dos nouveaux riches da Barra da Tijuca, era esse mesmo preconceito de classe baseado em raça, nível social, grana e cultura que começou a se encontrar sem qualquer pudor em qualquer favelado a partir da segunda metade dos anos dez do século XXI. A palavra “comunidade”, eufemismo para favela usado por décadas por jornalistas, sambistas e sociólogos, virou sinónimo de património cultural, que precisa de proteção, manifesto, patrocínio do Estado, muros. Sempre foi ou será tarde demais: o morro continuava em guerra. Descobriu em si a nostalgia restaurativa do Rio de Janeiro dos Anos Dourados da Bossa Nova e, para alguns, da Ditadura Militar – saudade do passado que, até então, era exclusividade dos aposentados que moravam em apartamentos atapetados no asfalto. Nos bairros da Zona Norte e nos subúrbios, invisíveis para a imprensa e bastante menos cristalizados no imaginário carioca for export, o processo de expulsão da população original foi mais rápido e menos sutil que nos morros da Zona Sul, sem o risco desse tipo de convivência inusitada. Sob o pretexto da revitalização, palavra que em tempos pré­‑olímpicos foi capaz de justificar todo tipo de atrocidade, remoções e desalojamentos arbitrários expulsaram dezenas de milhares de pessoas de suas casas dando espaço irrestrito aos novos donos absolutos dessas áreas: empreiteiros e seus braços políticos e armados. Marcas de tinta nas portas surgiam como sentenças a determinar as casas que seriam demolidas em 48 horas nos guetos da Vila Autódromo, em Jacarepaguá, Taquara, Campinho, em Madureira, no Maracanã, em Olaria e na área do Cais do Porto. O desrespeito ao direito ao reassentamento dos moradores, a transferência imediata de Promotores de Justiça críticos ao processo, o uso de tasers para acordar mendigos, o espancamento de trabalhadores de rua, camelôs e biscateiros por Guardas Municipais antes da sua desova em depósitos humanos nos estertores da cidade numa operação da Prefeitura chamada, sem ironia, de “Choque de Ordem”: essas foram algumas das marcas da092


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quela década que os cariocas escolheram ignorar, corrompidos pela promessa de uma Copa do Mundo, uma Olimpíada, quatro estações de metrô, vias expressas, um par de museus e estádios – o desejo provinciano de ser nova­‑iorquino nos trópicos, de emular cosmopolitismo através de uma cirurgia plástica urbana que jamais veio, mas que foi largamente estampada em infográficos nos jornais. Naqueles primeiros anos da década de dez, a cidade começava a se perder de vez para alguns de seus velhos moradores. Quem não tinha como pagar pelo Novo Rio era varrido aos subúrbios escuros e calorentos que seguiam crescendo viroticamente ao longo das sucateadas linhas de trem nos bairros fora do cinturão olímpico. O preço dos imóveis dentro do pequeno colar de pérolas delimitado pelo mar e pelo Maciço da Tijuca passou a ser regulado pelo mercado internacional, em desproporção com o poder real de compra de seus habitantes: em 2013, o aluguel de um conjugado de trinta metros quadrados em um prédio superpopuloso nos tenebrosos corredores de concreto de Copacabana era igual ao de um apartamento similar em Paris ou Nova York e o dobro de outro em Berlim ou Lisboa. Em pouco mais de três anos entre a primeira e a segunda década do século XXI, o mesmo processo económico que fez os preços dos imóveis se multiplicarem por dois ou quatro transformou o real na moeda mais sobrevalorizada do mundo. Nesses tempos, o consultor financeiro de Tomás Anselmo lhe telefonava girando o dedo num copo de uísque com soda e muito gelo às cinco da tarde para dizer coisas como –“Olha, meu caro, eu vou jogar todo o investimento no DI e a rentabilidade colocamos naquele fundinho de ações, eu tenho conversado com o pessoal do Factual e eles têm sido obscuros sobre o mercado, então é papo de proteger o seu principal e só tirar a rentabilidade de um fundo de renda fixa”. Menos informados, nativos de todas as idades arregaçavam as gengivas para repetir, orgulhosos, as manchetes do New York Times e do Guardian sobre o crescimento e o aumento do custo de vida no país – sem desconfiar ou esquecendo propositalmente que a abundância de dinheiro era a mesma que financiava empréstimos de risco, os negócios de célebres megapicaretas e que drenava a competitividade da indústria. Quando a Economist publicou em novembro de 2009, pouco depois que o Arcanjo Gabriel anunciou a Profecia Olímpica, que o Brasil em algum momento da década “posterior a 2014” seria a quinta economia do mundo, superando o Reino Unido e a França, que o único risco do Brasil, dali em diante, seria o orgulho excessivo, que o Brasil, ao contrário da Índia, não tinha conflitos étnicos e insurgentes, que o Brasil, ao contrário da China, era uma democracia, e, ainda, que o Brasil, ao contrário da Rússia, exporta mais que petróleo e armas, acreditou­‑se que o futuro do país do futuro do pretérito havia chegado. Anos de093


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pois, Tomás Anselmo diria com os olhos embotados: “A edição da Economist com o Cristo Redentor decolando4 na capa foi o início da nossa derrocada. Eles penduraram essa revista nas paredes dos escritórios da cidade inteira, como um quadro num altar. A maioria nunca leu o especial de vinte páginas sobre o futuro mágico do Brasil, mas tinha aquilo enquadrado. Que semanas! Que meses! Havia manhas naquele tempo! Aceitaram aquela matéria como uma teofania, como se tivesse sido escrita não por um grupo de jornalistas gringos com tentáculos ligados aos fundos de investimento do próprio Belzebu, mas por um apóstolo em êxtase transcrevendo a voz de trombeta de Deus lhe narrando o paraíso e mandando que enviasse o texto às sete igrejas da Ásia. Acreditámos naquele momento que estávamos condenados à prosperidade e infelizmente esse não foi o nosso último ato ingénuo. Antes a Economist houvesse reproduzido em suas páginas sobre o Brasil o apocalipse de São João, já que agora as coisas antigas desapareceram e tanta gente enxuga dos olhos toda lágrima, disso não há dúvida.” Naqueles tempos de perplexidade, queixava­‑se Tomás Anselmo, que não apenas o Balneário de São Sebastião do Rio de Janeiro ficava mais caro, mas também distante das suas referências de infância e juventude. No lugar dos cinemas de rua e de antigas livrarias onde consumiu sua adolescência sonâmbula, igrejas evangélicas e academias de ginástica. No lugar dos postes franceses de cobre e luz alaranjada, iluminação de necrotério em luzes fluorescentes pelas ruas em arranjos prateados de metal – a nova luz do Rio de Janeiro era mentirosa na sua tentativa de esconder as trevas em que a cidade vivera para sempre. No lugar de bares e restaurantes e boates de nomes antigos que perderam o sentido, como Penafiel, Luna Bar, Garage, Real Astoria, 69, Carlitos, Basement, Giotto, Bunker e Caneco 70, monstros de vidro espelhado, a irracional multiplicação das farmácias e drogarias, várias por quarteirão. No espaço vazio de cada um desses salões agora ocupados por prateleiras de shampoo e portarias modernosas, Tomás enxergava um aquário de lembranças órfãs de mesas e cadeiras rumo ao esquecimento que ele mesmo tanto temia, até que a última foto de cada um desses balcões dentro da última gaveta fosse finalmente queimada. E não morriam apenas os cinemas e bares, mas também outro tipo de velhas testemunhas do tempo: no Rio de Janeiro até as estátuas das praças desapareciam ou eram desmembradas por ladrões para que lhe derretessem o bronze, ainda que as praças fossem gradeadas para afastar o sono dos mendigos. No passeio público, o anjinho da Fonte dos Amores, do Mestre Valentim, sem asas e braços, na Praça XV, a espada do General Osório, fundida com o bronze

O mesmo que “descolando”.

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dos canhões da Guerra do Paraguai, no calçadão de Copacabana, os óculos da estátua do poeta Drummond, sentado de costas para o mar – e pelo menos o roubo dos seus óculos lhe impedia de enxergar a feia passagem dos carros e prédios para a qual estava condenado até à eternidade. Um homem aprisionado em si mesmo, os pés presos ao chão, a vista embotada: a estátua era ele mesmo, decrépito antes dos quarenta, com a sensação de acordar todos os dias da ressaca que surge entre os dois atos de um drama: Como vim parar aqui? Que cidade é mesmo essa? Perdido numa narrativa de dejá­‑vus ilustrados com paranóica determinação, o ato de reconstruir esse caminho, o que seria o mesmo que tirar os pés do chão ou finalmente pisar nele, parecia impossível. Tomás Anselmo não sabia como começar. Nos anos que antecederam a queda, quando Tomás Anselmo não estava na rua bufando e inventariando suas perdas, trancava­‑se em casa com sua mulher, ligava o ar condicionado e promovia pequenas orgias regadas a champanhe em taças de martini. Entupia­‑se de psicotrópicos e jamais escrevia, mas gravava músicas com seu equipamento sonoro recém­‑comprado: graves esparsos, riffs agudos de guitarra construídos sobre camadas infinitas de delays, batidas atmosféricas, sintetizadores do fim do mundo. E depois perdia horas mixando as faixas e tentando classificar em qual rótulo suas composições sexy­‑melancólicas se encaixariam: chillwa‑ ve, glo­‑fi, neo­‑fusion landscaping, hyper glitch pop, minimal electro­‑shoegaze, weightless psych­‑ambient, etc. Quando acabavam as festinhas, antes de dormir apagava do computador as trilhas sonoras compostas apenas para essa seleta e pouco vestida audiência – esse era então seu público e palco nos cerca de cinco anos em que não escreveu e não trabalhou. Um convite para uma ronda noturna com um dos poucos amigos que ainda restavam (chamavam­‑se de “a resistência”) provocava, depois do inventário de bares e boates que não existem mais, a repetição de velhas citações: “Sair? O que eu mais quero, no fim das contas, é que todo mundo volte pra casa” ou “O único propósito do cabaré é que homens solteiros encontrem mulheres complacentes. O demais é desperdício de tempo em ares impuros!” E Tomás lembrava que não tinha por que buscar mulher fora do seu palácio refrigerado de cinquenta metros quadrados, fora da paz do seu deserto doméstico, e depois desfilava o rame­‑rame que os amigos mais chegados já sabiam de cor, até que desistissem de ouvi­‑lo: que a euforia e o autofascínio do carioca nos anos dez eram insuportáveis, que a Lapa revitalizada e iluminada era um ninho de turistas, estupidez e obscuridade, que não havia praticamente nenhuma música ou teatro feita por um patrício contemporâneo que lhe fizesse sair de casa, que os poetas da cidade eram trocadilheiros pirotécnicos e que os prosadores eram zumbis, reprodutores cegos de tradições mortas, e que qualquer mesa ocupada pelos artistas da cidade lhe parecia então de uma vulgaridade torturante: pensamentos limi095


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tados, cheios de fórmulas e receitas, curvados aos fortes, às ideias vencedoras e antigas, ao paternalismo e à sede por dinheiro. Numa mesa no Rio de Janeiro dos anos dez, os artistas que desperdiçavam o tempo do mundo trocando informações sobre projetos e intrigas entre si e os outros cineastas, publicitários, escritores, jornalistas, fotógrafos, pintores ou designers podiam ser divididos em dois largos grupos: os que tinham etiquetas com o dinheiro do Governo grampeadas na testa e os que tinham etiquetas com o dinheiro da Emissora de T, ou dos seus anunciantes, grampeadas na testa. Quem não fizesse parte de qualquer um dos dois grupos, estaria disputando as migalhas desses círculos, orbitando ao seu redor com ar nada distraído e logo conspirando bravamente para deles fazer parte através de conchavos com a aristocracia que preenche cargos dentro dos complexos e inchados organogramas de agências de publicidade, produtoras, a própria Emissora, jornais e TV, ou através de editais e bolsas e regadores de mão oferecidos pelas três esferas de poder estatal. Não que Tomás Anselmo fosse um puro que não soubesse circular por esses esquemas e dele extrair algum dinheiro, alguma fama e sexo fácil. Ao contrário – e muito pelo contrário, como já se sabia. O problema era essa etiqueta, essa etiqueta grampeada na testa, a facilidade e a desfaçatez com que esse grampo não lhes causava nenhuma dor, o problema era o desejo explícito de descolar uma boquinha em cada tapinha nas costas e, mais que a promiscuidade e mediocridade geral, o problema era o preço baixo. E, por isso: pagar tão caro para morar nesse túmulo de ideias com ares de banheiro público onde uma ida à padaria no Leblon ganha ares de expedição hollywoodiana, com a visão de papa‑ razzi armando escritórios portáteis sobre motocicletas, enviando fotos para portais na internet em tempo real da celebridade da vez que foi beijar seu amante em exibição, onde qualquer lugar, da mesa de bar ao Theatro Municipal passando pela praia, é uma passarela onde o carioca exercita sua vocação principal de ver­‑e­‑ser­‑visto, onde todos são estrangeiros na cidade onde nasceram, divididos num sem número de comunidades, zonas, favelas, bairros, condomínios, torcidas, morros, escolas de samba, facções criminosas, esquinas, postos na praia e mesinhas de bar, e que já não fazia mais sentido para Tomás e para uma silenciosa e crescente minoria que não apenas mudava de bairro, mas desistia da cidade da vez, não por falta de dinheiro, mas simplesmente por não suportá­‑la mais. Ou assim queria crer Tomás Anselmo na década dourada de dez do século XXI. Apesar do auto­‑engano, Tomás sabia que a cidade cheia de árvores e gente dizendo adeus era apenas ele mesmo, Tomás Anselmo. Ele, que nunca havia desistido de nada, que sempre tinha sido alvo da desistência de alguém – um emprego, uma mulher – estava finalmente assombrado pela consciência de nunca ter desistido um dia. Mas logo tudo iria desaparecer. E ele também. 096


ATAÚRO: Desterro e Abrigo* LUÍS CARDOSO “TAKAS”

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quem desce das montanhas para ir a Díli é impossível ficar indiferente quando olha para o mar. Para além da extensão das águas, do outro lado avista­‑se uma ilha. Tem a forma de uma tartaruga que se dobrou sobre si mesma para se eternizar. Chama­‑se Ataúro e é conhecida como a ilha das cabras ou dos homens nus. Era para lá que as autoridades mandavam os indesejados, presos políticos ou de delito comum. Muitos são os que tiveram parentes que, por uma ou outra razão, foram para lá desterrados e nunca mais souberam deles. Uns porque faleceram, outros porque, tendo sobrevivido, decidiram ficar por lá para sempre. Um número reduzido tentou a fuga através do mar para outra pequena ilha próxima, que tem por nome Lira. O meu pai foi colocado nesta ilha isolada como enfermeiro de serviço. Não foi por ser um indesejado, dado que nunca se atreveu a pronunciar uma única palavra contra o regime e nem consta que tivesse praticado algum crime. Talvez tivesse sido mesmo por obrigação uma vez que os enfermeiros tinham de fazer o roteiro pelas várias circunscrições antes de se fixarem em definitivo na capital, local desejado por todos, por ser o sítio onde poderiam acompanhar de perto os estudos dos filhos, no Liceu e na Escola Técnica. Mas a colocação em Díli só acontecia quando já estavam velhos e já não tinham forças para experimentar as delícias da capital e dos pecados capitais. *Sem Acordo Ortográfico

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Só sei que, quando chegámos a Ataúro, deparámos com uma terra inóspita, cuja população se dedicava à pesca e se vestia com um hakfolik1, a vestimenta mais apropriada para quem andava o dia inteiro mergulhado no mar. Era também desta forma que os pescadores se apresentavam em terra, daí ser conhecida como a ilha dos homens nus. Mas cabras, não vi nenhuma. Provavelmente as últimas a serem avistadas serviram de refeição a quem as encontrou. A travessia familiar foi feita através de um beiro, uma piroga com balanceiros que serviam para equilibrar a embarcação. Demorou uma noite inteira. O desembarque aconteceu de manhã quando nos foi dado avistar a casa de Mário Lopes. Um senhor alto e corpulento como o Germano Almeida, com uma careca luzidia, uma barriga proeminente, cara redonda e de lábios grossos. Fora mandado para aquela pequena ilha para nunca mais ser visto. Queriam livrar­‑se dele. Ataúro era o sítio exacto. Assim pensavam as autoridades. Mário Lopes era natural de São Tomé e Príncipe e vivia na Guiné­‑Bissau, onde era comerciante. Casou com uma filha de Honório Barreto, o único governador negro daquela colónia portuguesa. Assim rezavam os manuais escolares. Tinha dois filhos ainda crianças quando um dia foi preso pela PIDE e nunca mais foi visto. Só mais tarde, muito mais tarde, lhes foi dada a notícia que o pai se encontrava em Timor, na ilha de Ataúro. Mário Lopes não desistiu. Em vez de tentar uma fuga pelo mar decidiu aproveitar a sua estadia para dar uma outra utilidade ao seu desterro. Continuou o ofício de comerciante, fundou uma empresa que vendia peixe seco, uma cantina onde vendia a retalho, uma padaria que quase deu cabo das árvores, cujas madeiras eram utilizadas no forno. Acima de tudo, empregava os pescadores de Ataúro. A primeira embarcação que teve foi uma coracora2, depois teve outras, às quais deu sucessivamente os nomes de "Perseverança" 1, 2, 3 e 4. Quando as autoridades pensavam que já estava desesperado e, por isso, rendido ao seu destino, eis que apareceu em Díli com a sua coracora e uma tripulação composta por pescadores que cantavam para pedir aos antepassados o sopro dos bons ventos e para que as correntes marítimas não fossem traiçoeiras e os levassem para parte incerta. Apressaram­‑se a vir ter com ele temendo que fizesse uma insurreição ou levantamento popular. Ameaçaram­‑no de que o haveriam de prender de novo. Langotim, pano com que os homens se cobrem da cintura para baixo, usado em muitas regiões da Ásia. Pequena embarcação a remos, com dois balanceiros.

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Mandavam­‑no para uma ilha deserta. Onde não houvesse ninguém para o ajudar. Morreria de fome e de sede. Ele informou que não havia motivo para alarme. Mas para sobreviver tinha de trabalhar. Havia fundado uma cantina e precisava de comprar víveres para alimentar a população carenciada. Deixaram­‑no em liberdade temendo que a sua detenção levasse a população de Ataúro a fazer uma sublevação, que traria danos irreversíveis para a colónia. As revoltas podiam desencadear outras. Rebentavam por simpatia como as granadas de mão, como aconteceu durante a rebelião de Manufahi. As autoridades foram pressionadas por outros deportados políticos, muitos dos quais eram maçons e mantinham ligação com os seus congéneres em todo o mundo, para que o deixassem em paz. Mário Lopes transformou­‑se na entidade da ilha. Hoje não há quem vá a Ataúro e não saiba quem foi Mário Lopes. Em certa medida, a minha incursão planetária e o meu interesse sobre o que acontecia nas terras que ficavam no outro lado do mar começou precisamente quando descobri quem era aquela pessoa. Interessei­‑me pela sua história. Várias vicissitudes por que passou na vida fizeram­‑no sofrer de algumas maleitas. Por várias vezes acompanhei o meu pai até à sua residência para o tratar. Era nessa altura que ele falava ao velho enfermeiro sobre o que se passava nas terras de além­‑mar. Quando se deslocava à capital para buscar víveres, regressava sempre com jornais e revistas estrangeiras. Deitava­‑se na sua cadeira de lona e informava­‑se sobre tudo o que se passava no mundo. O meu pai ouvia­‑o com atenção enquanto preparava a seringa e os medicamentos para lhe dar a injecção. Eu fingia que me entretinha com os animais de estimação que ele tinha lá em casa, como as tartarugas, mas estava atento a tudo o que ouvia. Lembro­‑me também de uma pequena telefonia que precisava de uma grande antena que Mário Lopes esticava para cima das ramas de uma árvore de tamarindo, e assim ouvia o noticiário da Rádio da Austrália. Tudo fazia crer que aquele homem, face ao cerco do mar e à falta do contacto familiar, da mulher e dos filhos menores que haviam ficado sem a sua presença e sem notícias, iria sucumbir de desgosto e de desespero, mas lutou contra todas adversidades para continuar vivo. Assim que lhe permitiram as circunstâncias, fez saber aos seus onde estava e pôs­‑se em contacto com o mundo inteiro. Não gostava de estar isolado. Nem que o isolassem. As autoridades renderam­‑se ao facto da sua permanência naquela pequena ilha contribuir de alguma forma para o desenvolvimento local. Já não era tão perigoso como inicialmente supunham. Até lhe permitiam que falasse de vez em quando numa cerimónia religiosa ou num evento público, inclusive fazendo crítica sobre o que devia ser a missão de Portugal 099


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na sua campanha pelos valores civilizacionais, não poupando sobretudo os maus funcionários que punham em causa esse desígnio nacional por causa de más práticas. Foi também nessa altura que ouvi histórias e visitei os locais onde estavam encarcerados alguns timorenses, que tinham sido deportados pelos japoneses quando estes ocuparam a ilha, bem como outros que foram deportados pelos portugueses sob a acusação de terem colaborado com os japoneses durante a ocupação. Face à penúria local, muitos sucumbiram, mas outros decidiram assentar na ilha casando com mulheres locais. A chegada de um barco era sempre motivo de romaria. Vi a chegada de Mau Hú, o prisioneiro. Quando o desembarcaram na praia de Maumeta vinha de mãos atadas. Talvez por temerem que fugisse no alto mar ou armasse uma rebelião e tomasse conta da embarcação, encetando uma fuga para uma das ilhas indonésias. Assim que colocou os pés em terra retiraram­‑lhe as algemas e soltaram­‑no. Os dois cipaios que o acompanharam durante a travessia disseram­‑lhe que estava livre. Podia ir para onde quisesse. Puseram­‑se a rir como crianças. Mau Hú ficou sem saber se haveria de chorar ou de sorrir perante a insólita situação. Não sabia para onde ir. Não tinha parentes na ilha ou uma pessoa que lhe desse abrigo. Qualquer tentativa de atravessar a nado, para fazer o regresso à ilha grande, estava condenada ao fracasso. Se bem que era um homem encorpado e ainda jovem. O bom senso aconselhou­‑o a desistir dessa aventura, sabendo de antemão que os tubarões não lhe dariam passagem. De repente, viu­‑se sozinho na praia. Sem saber para onde ir. Os tripulantes do beiro foram­‑se embora. Os cipaios fizeram o mesmo. Estava abandonado numa ilha e não era nenhum Robinson Crusoe. Sabia dessa história. Fez a quarta classe na missão católica de Maliana. Era um homem culto. Mas estava desempregado. Na história que mais tarde haveria de contar a quem o quisesse ouvir, disse que foi preso por ter dito uma frase abonatória em relação a D. Boaventura, o seu valente tio que promoveu a rebelião de Manufahi. Alguém que o ouviu, denunciou­‑o à PIDE. Foi acusado de traidor e desterrado para a ilha de Ataúro. Deitou­‑se na areia a pensar no que iria fazer. Sabia que alguma coisa haveria de lhe acontecer. Mais cedo ou mais tarde alguém viria ter com ele para lhe dar ajuda. Como na história do velho crocodilo que se transformou em terra por ter sido ajudado por uma criança. Coisas do destino. Mário Lopes, que a tudo assistiu da varanda da sua casa, foi ter com ele. Aproximou­‑se do sítio onde Mau Hú estava deitado e perguntou­‑lhe se tinha casa para onde ir. Mau Hú abriu os olhos e quando deu de caras com a pessoa de quem já tinha visto o retrato na sede da PIDE em Díli, 0100


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sorriu. Estava tudo a acontecer de forma célere como o inspector havia imaginado. O velho rebelde tinha mordido o isco. Contou a versão da sua prisão conforme lhe fora sugerido pelo inspector. Sendo também vítima do regime teria a imediata solidariedade e acolhimento por parte do homem que se tornara no ícone da ilha de Ataúro. Mário Lopes deu­‑lhe guarida e fê­‑lo feitor da sua cantina. Mau Hú registava num caderno as horas de saídas e entradas e controlava toda a movimentação do desterrado. Mário Lopes nunca lhe deu confiança a ponto de falar com ele sobre questões de ordem política. A relação restringia­‑se ao facto de um ser o empregador e o outro, o empregado. Mau Hú quis saber mais sobre a Guerra de Manufahi falando com o meu pai, cujos parentes participaram na revolta. Ele sabia desse facto. O velho enfermeiro que muito sabia sobre o carácter e os procedimentos dos informadores, cuja rede se estendia por toda a colónia, disse que nada sabia. Que era uma história passada no tempo e num lugar distinto. Mau Hú decidiu contar a sua versão. Embrulhou­‑se num enredo em que confundiu nomes de terras e de pessoas fazendo o meu pai desconfiar que a história que contava era falsa. Disso fez saber a Mário Lopes que, em resposta, lhe disse estar ciente que a PIDE, mais cedo ou mais tarde, haveria de mandar alguém para o controlar. Mas não ia deixar o homem abandonado na praia. Era acima de tudo um humanista. Socorria quem precisasse de ajuda. Mário Lopes ficou a viver na ilha criando dois filhos que entretanto teve com D. Aquilina, uma timorense natural de Ermera. Mais tarde, restabeleceu contacto com os outros dois filhos, que se tinham refugiado no Senegal, adquirindo nacionalidade estrangeira. Um deles, com quem me encontrei em Paris quando fui à Sorbonne, tornou­‑se diplomata daquele país. No rescaldo da descolonização e com a guerra civil, assistiu à chegada do último governador, que se refugiou na ilha de Ataúro. Quando a Indonésia invadiu Timor foi convidado por Lemos Pires a acompanhá­‑lo de regresso a Portugal. A resposta não tardou: – Tu vais, eu fico! E ficou para sempre na ilha que, embora tivesse sido seu local de desterro, lhe deu abrigo e conforto durante os anos em que lá viveu. Morreu pouco tempo depois da invasão.

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ILHA DE MOÇAMBIQUE como se fosse o Aleph* LUÍS CARLOS PATRAQUIM

«Esta ilha pequena, que habitamos,/ Em toda esta terra certa escala/ De todos os que as ondas navegamos/ De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;/ E, por ser necessária, procuramos,/ Como próprios da terra, de habitá­‑la;/ E por que tudo enfim vos notifique,/ Chama­‑se a pequena ilha Moçambique.(…)//.» Luís de Camões, in Os Lusíadas I, 54

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ma pequena ilha na rota do Índico que dá o nome a um país não é coisa pouca. Como é que essa “pequena e quase insignificante Ilha de Moçambique”, como escreveu Frei Bartolomeu dos Mártires, logrou tal feito? A Ilha, observou o cronista, seria de “muito pouca, ou de nenhuma importância (…) se não fosse enriquecida duma espaçosa enseada e um porto, que é, sem contradição, o melhor, o mais seguro e mais cómodo, que se acha em toda esta dilatada costa”, observando que “os navios são obrigados a passar muito perto, e quase junto à fortaleza de S. Sebastião, que pela sua bem escolhida posição local na entrada, e boca do porto, o põem a coberto de qualquer insulto hostil”. E foi isso, essa empresa da rota da Índia, cometimento único, no dizer de Charles Boxer, que lhe deu lugar na História. Gama, talvez sem saber, aproveita o desinteresse da armada do almirante chinês Zheng He (1371­‑1433/6) pelos lugares da costa africana. As expedições que Zheng comandou decorreram por um período de cerca de três décadas, de 1405 a 1433, com barcos imponentes, embora sem a capacidade de manobra das naus portuguesas, mais tarde. Foi a maior aventura marítima do Império do Meio, mas, vá lá saber­‑se por que mistérios, manda a lenda dizer que o almirante só se interessou por girafas, com que presenteou o imperador Yong Le. Haverá mais ponderosas razões, mas a destruição dos arquivos fez com

*Sem Acordo Ortográfico

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que esta empresa permanecesse na nebulosidade. De alguma maneira, consolidou o poder da dinastia Ming, então a emergir. Vasco da Gama entra na baía em 1498 para a aguada e melhores informações para seguir até Calicute, dominava a ilha Mussa bin­‑Mbique, ou Mussa Ben­ ‑Mbique, ou ainda Mussa al­‑Mbiki (Moisés, filho de Mbiki). E, de aí, na incerteza da grafia certa do sultão e comerciante, devendo vassalagem a Zanzibar, a derivação para o seu aportuguesamento como Moçambique, a nasalação como uma espécie de ancoragem e de mesclagem litorânica que tanta indiferença haveria de suscitar nos impérios do interior da terra, sobretudo a sul. Isso foi mais tarde, depois do Império de Gaza; depois de cerca de 80 anos de colonialismo efectivo; depois da libertação e durante a gesta e elaboração, no espaço urbano e nos lugares de contenda, sobretudo a norte do país, da construção da narrativa da identidade nacional. Coisa sempre controversa, como se sabe, já que a Identidade, sempre plural e também por causa disso, é um devir em permanência, desafio com que enfrentamos este dealbar de 2016. De aí a dualidade entre Próspero e Caliban, arquétipos e enquadramentos que a pós­‑colonialidade questiona e em que se enreda. Lugar logotético, para os mais esotéricos, da grande montanha sagrada dos aborígenes da Austrália, Uluru, ou Ayers Rock, a Ilha não alcança os 3 km de comprimento, a largura ronda os 300­‑400 m e está orientada no sentido nordeste­ ‑sudoeste à entrada da Baía de Mossuril, a uma latitude aproximada de 15º 02’ S e longitude de 40º 44’ E. A costa oriental da Ilha estabelece, com as ilhas irmãs de Goa e de Sena (também conhecida por Ilha das Cobras), a Baía de Moçambique. Estas ilhas, assim como a costa próxima, são de origem coralina. A permanência portuguesa efectiva começa em 1507 com a instalação da Feitoria, sendo Diogo Vaz o feitor e Rui Varela o escrivão. O mouro­‑negro, na designação lusitana, era Braheme Ben Amiro, auto­‑declarando­‑se “grande servidor de Sua Alteza, o Rei Dom Manuel I”. Em 1508, com o incremento da carreira das Índias, surge o primeiro Capitão de Sofala e de Moçambique, este nome sempre referido à Ilha, de seu nome Vasco Gomes de Abreu. O forte de São Gabriel conclui­‑se em 1508. Património histórico da Humanidade, a norte, no Índico, diante do Lumbo, acenando ao largo ventre da terra, no continente, onde repousam em seu sono as Cabaceiras, a grande e a pequena, eis a Ilha de Moçambique, Omuhípiti. Ela é que é a porção líquida e apetece citar Sophia de Mello Breyner: “A memória longínqua de uma pátria / Eterna mas perdida e não sabemos / Se é passado ou futuro onde a perdemos”. A autora de Geografias e de Coral nunca esteve na Ilha 0103


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mas é da condição dos poetas a transfiguração das coisas para a revelação da sua mais pura substância e relação. Escreve o historiador Alexandre Lobato: “Colónia árabe extremamente defensável, a Ilha de Moçambique tornara­‑se uma povoação swahili de árabes e negros com seu xeque e nobres negros, continuando a ser frequentada por árabes brancos que prosseguiam o seu comércio já antigo com o Mar Vermelho, a Arábia, a Pérsia, a Índia e as ilhas do ĺndico. Para Sul, até Sofala, o Bazaruto e Mambone, incluindo Angoche e Quelimane, e para Norte por todas as ilhas e enseadas, a costa estava assinalada por idênticas povoações, quase todas porém modestas, só uma ou outra constituindo centro comercial de maior vulto para a exportação do marfim, escravos e madeira e a entrada de coloridos panos da índia e cordões de missanga. Aqui e além, havia um pequeno chefe político, e Moçambique tinha também o seu, metido na engrenagem político­‑económico­‑social árabe­‑africana, que deu origem ao que os portugueses chamaram mouros­‑negros que se tornaram senhores da zona.”. Deixemos este arremedo incerto de navegação à bolina pela História e alguma notação Historiográfica, que esta é a Ilha dos Senhores e dos Escravos, das Damas e dos Jograis, das armas e dos barcos, dos comércios olorosos e terríveis, dos Amores, de dúbios ou emplumados heróis. E da síntese humana do seu povo, que continua a exprimir­‑se em coti1. Eles cantam: “Eis o que é belo neste mundo / eis o que o homem roga acontecer dia após dia / Nós da beira­‑mar gostamos imenso / a nossa alegria de hoje é incomparável, pela vinda destes / amigos de outros Países / toda a Ilha hoje está a abalar// Naqueles tempos, tempos que já lá vão, / quando vínhamos do continente / o nosso transporte principal era o paporo2 / Ao pisarmos a Ilha, avistávamos primeiramente as estatuetas / das muralhas florindo um brilhante candeeiro / Da Ilha para os vários locais viajávamos de riquexós / Quando o paquete atracava era guiado por um piloto / um farol que piscava da ponta do Mercado Sancul”. Canto de louvação, seguramente extraímo­‑lo da Antologia A Ilha de Moçambique pela voz dos poetas, organizada por Nelson Saúte e António Sopa. Dela nos socorreremos sem pudor. Num ensaio enxuto, provocador e sempre estimulante, de Eugénio Lisboa, o autor de Crónica dos Anos da Peste e de As Vinte e Cinco Notas do Texto, entre outros livros que se deviam ler, observa, contra a pulsão edulcorada ou romantizada de um Camões a legitimar a Ilha como lugar de poetas e o mais que se queira, que a oitava Coti, ou Koti – língua local Vapor

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na epígrafe deste texto vai ao arrepio dessa espécie de engodo sentimental. Camões aponta o lugar como um cartógrafo que o desenhasse num mapa e em pouco mais se adianta. Quando em oitavas posteriores se refere a Quíloa, a adjectivação é, no mínimo, rude: “Que perto está uma ilha, cujo assento / Povo antigo cristão sempre habitou. / O Capitão, que a tudo estava atento, / Tanto com estas novas se alegrou, / Que com dádivas grandes lhe rogava, / Que o leve à terra onde esta gente estava. (...) // O mesmo o falso Mouro determina, / Que o seguro Cristão lhe manda e pede; / Que a ilha é possuída da malina / Gente que segue o torpe Mahamede. / Aqui o engano e morte lhe imagina, /Porque em poder e forças muito excede / A Moçambique esta ilha, que se chama / Quíloa, mui conhecida pela fama.” Luís Vaz de Camões viveu cerca de dois anos (1568­‑1570) na Ilha, no regresso das “Índias”, vindo de Goa, terra que considerou ser uma «madrasta de todos os homens honestos». Sabe­‑se, por Diogo Couto, que lhe deu boleia para o reino, que estava «tão pobre que vivia de amigos». Com um único pormenor: trazia o manuscrito dos Lusíadas e nas andanças entre a fortaleza e o campo de São Gabriel ou nalguma surtida à costa, com a ilhota de São Lourenço por testemunha, terá perdido o Parnaso, quiçá por maior atenção à Bárbara Escrava. Mas sobre amores devemos ser discretos. A verdade é que Camões será talvez o primeiro, ou um de entre eles, a grafar o nome. A épica moçambicana que ninguém escreverá está nos antípodas da que o ilustre vate ousou mas a ela se enlaça, dela se desprende e muitos sinais misteriosos ou funcionais mantém. De aí a maldição, essa espécie de pecado original, essa duração da maçã que fascina, e o muito mais que a Ilha vem sendo, ad seculum seculorum. Desse olhar prismático se fez o lugar e o mito e a história concreta e terrível e a malvasia e a sura3 de deuses e homens multímodos e os poemas, e a Ilha dos Poetas. Porque ela é um palimpsesto de textos e de línguas e de linguagens. Anti­‑épico por convicção, deve­‑se a Rui Knopfli o mais conseguido e referencial dos livros sobre Omuhípiti. De seu título, A Ilha de Próspero. Em poema mais antigo que integra no roteiro fotográfico e sentimental publicado em 1970, Knopfli baptiza­‑a de Ilha Dourada. Assim: “A fortaleza mergulha no mar / os cansados flancos / e sonha com impossíveis / naves moiras. / Tudo o mais são ruas prisioneiras / e casas velhas a mirar o tédio. / As gentes calam na voz / uma vontade antiga de lágrimas / e um riquexó

Vinho de palma

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de sono / desce a Travessa da Amizade. / Em pleno dia claro / vejo­‑te adormecer na distância, / Ilha de Moçambique, / e faço­‑te estes versos / de sal e esquecimento.” O contraste com a visão joyeuse de Alberto de Lacerda, natural dela e, por isso, peregrino do mundo: “Ó corpos dados com melodia / as melodias do meu ardor! / Ó pretas lindas! Ponta da Ilha! / Vestem soberbos panos de cor. / Deles se despem com grã doçura, / Vénus despida do próprio mar. / É com doçura que negras, lindas, / Desaparecem no meu calor.”. Visão quase epifânica quando, noutro poema de louvação: “O Oriente surgido do mar / Ó minha Ilha de Moçambique / Perfume solto no oceano / Como se fosse em pleno ar.” Ainda não falei de Beatriz Viterbo, que Jorge Luís Borges conheceu. Nunca fui a Buenos Aires nem visitei Carlos Argentino. Ainda não referi o Aleph, “um dos pontos do espaço que contém todos os pontos”. Porque “toda a linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que a minha temerosa memória mal e mal abarca?”, escreve Borges. Ele viu. “Vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a Terra, e na Terra outra vez o Aleph, e no Aleph a Terra, vi o meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos haviam visto esse objecto secreto e conjectura cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.” A Ilha é um desses pontos, atrevo­‑me a afirmar. Único imperativo: chegar às ilhas pela mão dos poetas. Reler, de Tomás Morus, o tudo, é claro, das aventuras do marinheiro português e a viagem toda do grande chanceler decapitado, mas começar pela carta a seu amigo Pedro Gilles, ou Pedro Egídio: “Caríssimo Pedro Gilles. Sinto­‑me quase envergonhado ao enviar­‑vos este livrinho sobre a República da Utopia, depois de vos ter feito esperar cerca de um ano, quando certamente esperáveis recebê­‑lo dentro de seis semanas. Vós sabíeis, com efeito, que para redigir este escrito estava dispensado de qualquer esforço de invenção e de elaboração de forma adequada, pois o que tive de fazer foi repetir o que, na vossa companhia, ouvira relatar a Rafael.” Inaugurar o mundo com o artifício de uma espécie de displicência ou inventá­‑lo em bojo delirante. Ou repetir, de Herberto, outra Ilha: “Toca­‑se lentamente uma parte suspensa do corpo, /e a alta tristeza purifica os dedos”. Avisos. Ilha, ilhar. Ilhemo­‑nos na mão que pensa os continentes, seu sulco como vórtice por onde escorrem todas as interrogações. Os grãos de sal que o sopro espalha. A possibilidade de Ser. 0106


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Ou a ínsula de Sancho Pança. Pois te digo, meu fiel escudeiro, que uma ínsula te ofertarei e dela serás rei assim eu vença os gigantes que me afrontam – nãos os vês, ali, rodopiando como velas alvas de moinhos improváveis? – e minha vitória deponha aos pés de Dulcineia. Ilhas: porção líquida onde toda a invenção é utópica. A água como pele, a terra como crosta, imóvel cicatriz. As ilhas de Sophia, que são glosas e nomes, de Pascoaes e Pessoa e o Rei de Chipre ou “se não fosse o amor que tudo esconde” ou “como quem só em ilhas habitasse”. “O sol, o muro, o mar”, escreve a autora de Navegações. A evidência como princípio. A uma ilha se aporta ou dela se parte? Que linha urge transpor? Bachelard e as metáforas sobre a água. A porção líquida, materno afago de onde somos expulsos. Por isso navegamos ao contrário. A ilha como intervalo da água. Ilhas, do fogo, da madeira, do corvo, das cobras, de Goa, de Moçambique, de Santiago de Cabo Verde, da Sicília, de Creta. O touro, esse, o touro onírico. Chega­‑se a uma ilha pelo mugido húmido das nuvens, pelo grito das aves marítimas, diz Herberto, por uma espécie de pulsão adâmica, as linhas do texto por cerzir, a memória da terra desolada. Montaigne conta de Aristóteles que conta de Platão: os cartagineses aventuram­ ‑se pelo mar oceano, transpõem o estreito hoje de Gibraltar e descobrem uma grandiosa e fértil ilha. Emigram. Cartago despovoa­‑se. A proibição de viajar é decretada. A ilha irá afundar­‑se muito mais tarde. Atlântida rediviva? Ilhas que se multiplicam em arquipélago. Os seus amores. John Donne, por quem os sinos dobram: nenhum homem é uma ilha. Melhor fora que Hemingway se ficasse pelas paisagens do Michigan, ele, Nick Adams, os índios e essa espécie de “animais evangélicos” de que falava D. H. Lawrence. Ilha, a abobadada linha do horizonte, seu fio na garganta, os peixes na cabeça, o sal da espera. “A Tempestade”, “A Ilha de Próspero”, Caliban. A Rui Knopfli: de pouco lhe serviu a invenção de Ariel. Invocar Robinson Crusoé, esse quase arquétipo da ocupação de mundos pelo Ocidente. Ver o mastro tombado sobre a porção líquida, as ondas sem medo de Virgínia Wolf, lambendo­‑o, e o apóstolo Robinson na invenção de si, o escrutínio da matéria para a paliçada que lhe delimitará o centro do seu corpo. Onde ele habita, entre distâncias e medos. Um desenho apaziguador. O silêncio da arquitectura. A versão inicial de Michel Tournier em Sexta­‑Feira ou a vida selvagem: “Quando Robinson voltou a si, encontrava­‑se deitado, o rosto na areia. Uma 0107


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onda rolou pelo areal molhado e veio lamber­‑lhe os pés. Girando sobre si, deixou­ ‑se ficar de costas. Gaivotas negras e brancas volteavam no céu, de novo azul após a tempestade. Robinson sentou­‑se com dificuldade e sentiu uma dor aguda no ombro esquerdo. A praia estava juncada de peixes mortos, conchas quebradas e algas negras, para ali lançadas pelas vagas. A ocidente, uma falésia rochosa entrava pelo mar dentro e prolongava­‑se numa série de recifes. Aí se erguia a silhueta do Virgínia, com os mastros arrancados e os cordames flutuando ao vento.” Adeus, Robinson. Na ponte velha, não muito distante do Palácio de São Paulo, está o próspero Gonzaga, o da Inconfidência Mineira e porfiado cantor de Marília de Dirceu: “A Moçambique aqui vim deportado. / Descoberta a cabeça ao sol ardente; /Trouxe por irrisão duro castigo / Ante a africana, pia, boa gente. / Graças, Alcino amigo, / Graças à nossa estrela! / Não esmolei, aqui não se mendiga; / Os africanos peitos caridosos / Antes que a mão infeliz lhe estenda, / A socorrê­‑lo correm pressurosos. / Graças, Alcino amigo, / Graças à nossa estrela!”. E conversar com o mancebo Campos Oliveira, que Manuel Ferreira considera o primeiro poeta moçambicano. Ir com ele ao paço. O sotaque da voz, entre Goa e o arrastado em erres do falar português e coti, fazendo de pescador às damas: “Eu nasci em Moçambique, / de pais humildes provim, / a cor negra que eles tinham / é a cor que tenho em mim: / sou pescador desde a infância, / e no mar sempre vaguei; / a pesca me dá sustento, / nunca outro mister busquei. / (…) Vou da Cabaceira às praias, / atravesso Mussuril, /traje embora o céu d’escuro, / ou todo seja d’anil:/ do Lumbo visito as águas / e assim vou até Sancul, / chego depois ao mar alto / sopre o norte ou ruja o sul. // Só à noite a casca atraco / para o corpo repousar, / e ao pé da mulher que estimo / ledas horas ir passar: / da mulher doces carícias / também quer o pescador, / pois d’esta vida os pesares / faz quase esquecer o amor!”. Chega­‑se à ilha, às ilhas, sempre por um naufrágio? De que mundos perdidos? E para os reproduzir? Nenhuma ilha consegue abolir o tempo. Um tempo que se corporiza até à interrogação/confrontação/aparição do Outro. E o Aleph espreita. “Estes lugares, outrora unidos, foram por uma violenta e arrasadora convulsão afastados” – narra Virgílio, Eneida. Mas não posso acreditar. Não quero. As ilhas, fragmentos do Todo estilhaçado? Mónadas? De que perdida unidade? Ilhas: a miséria e o deslumbramento de tudo ser possível. Não assim Omuhípiti. Ou: também assim em Omuhípiti. O seu outro nome de Ilha de Moçambique. Montaigne conta de Aristóteles que conta de Platão: os cartagineses aventuram­‑se 0108


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pelo mar oceano, transpõem o estreito hoje de Gibraltar e descobrem uma grandiosa e fértil ilha. Emigram. Cartago despovoa­‑se. A proibição de viajar é decretada. A ilha irá afundar­‑se muito mais tarde. Atlântida rediviva? Estas vozes reincidiram e buscaram outros oceanos e ilhas, ilhas que se multiplicaram em arquipélagos, os seus amores. Ilha, a abobadada linha do horizonte, seu fio na garganta, os peixes na cabeça, o sal da espera. “Dêem­‑me as ninfas!... Só as ninfas, naharras 4 de azul vestidas! Uma Que seja E açoitada de frenesins E nua. A mim só me resta evocar os ademanes da Ilha em forma de mulher. Sentado no Lumbo. Defronte dela! O casario decrépito, a claridade insuportavelmente azul. É o mar Índico, já se vê! E a vela, quase de branco, encardida. Lá vão eles para os corais. Um peixe vermelho há­‑de emergir das águas. Em riste. O primeiro dia da criação. As mulheres cantam. É o N’Sope, a dança da corda. Ou as vozes dolentes do N’Durre 5, Em círculo, elas, e os panos grávidos sob a lua. Este peixe vermelho que faz rodopiar a Ilha, o vento inflando a cabeça, Morno, dulcificando as casas. Omuhípiti.” Mulheres mais velhas, com influência e “feitiços” vários. N’Sope e N’Durre – danças da Ilha, executadas ambas por mulheres, a primeira saltando uma corda, a segunda em grupo.

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Se lhe percorrermos os cemitérios – hindu, islâmico, cristão, judaico – apercebemo­‑nos de que o mundo se precipitou nela. Foram séculos, muitos, mesmo antes de Vasco da Gama lançar âncora, breve, em demanda de Calicute. Eu percorro Muaziza, o seu itinerário. “Alegrai­‑vos, ó acossados pelo grito, E vinde saudar a pose do meu amor! Adorai seus frutos e não vos atreveis Se não descalços E vinde!” Desviemo­‑nos da estrada, essa centro­‑nordeste que galga o Zambeze e sulca de interioridades perdidas a carne em “ipislon” do país por encontrar. Rio acima, do Chinde a Tete, quebram ainda nas margens as rodas dos navios antigos, por onde subia sonho e tráfico e se amalgamava cobiça e sémen, sangue e línguas, velhos tambores com suas peles eriçadas ante o odor da pólvora, enraivecidos, em estiras que as baionetas rasgavam como ao ventre das mulheres. Deixemos o magnífico planalto, a savana e as montanhas do Niassa, a norte, onde nas grutas vociferam os espíritos modelando o barro, e atentemos no perfil litorânico, esse recorte sinuoso de ancas, enseadas espigadas de um cio verde de algas e peixes entrelaçados, perfil alto para enlaçar, percorrer em chama, corpo tremente desde os pés em Maputo à púbis azul do Bazaruto e, subindo sempre, sugar os seios em Angoche, para deslizar a boca salgada no quase fim dos lábios, a Muaziza chegados. Seu rosto de Tempo, o m’siro6 amaciando a espera. Este é o Itinerário de Muaziza, a que não havia na cidade tumultuosa, eufórica, elandi de cerviz dobrada a ser escorraçada da Rua Araújo/Bagamoyo, a ritualizar­‑se nos messiânicos comícios, a cobrir de ideológicos panos suas vergonhas, rasurando­ ‑lhes estórias, percursos, nomes. E os espíritos ainda a dormir a sono solto!… Olhavam­‑se as ruas percorridas palmo a palmo e não havia o Tempo. As casas eram de alvenaria, um ou outro quintal nostálgico, as paredes rebocadas dos prédios coloridas a tinta Robbialac. As narrativas suspensas. E nem o verdete das estátuas. Só asfalto e caniço. M’siro, ou m’sirro, pasta feita com o pó extraído de uma árvore local, usada pelas mulheres da ilha como bálsamo e máscara de beleza, entre outras utilizações.

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Clandestinas as estórias, obscuros os caminhos de partida e de chegada, as catanas em riste cortando todos os cordões umbilicais, despertencendo­‑nos para a partilha agónica de um fanfarroso presente cujo fascínio autêntico se enrodilhava de amnésias, plots direccionados, heróis fundacionais de uma saga excludente para não­ ‑iniciados, onde nem o tudo da Hora Gloriosa conseguia preencher o informulado vazio que se escondia algures. Urbaníssimos a inventar espíritos que só chegariam muito mais tarde; descentrados de si, não obstante o despojado ou vibrante amplexo às coxas que se ofereciam como a marcha vitoriosa da História, subiam aos quartos – como escreveu Sebastião Alba – ungidos pela última respiração de um corpo, o sopro erótico que mornava nas noites de sábado, molhadas de álcoois e de olhares, entrelaçar de mãos, gramáticas interrompidas. Era quando Muaziza gargalhava no escuro e uma chuva quente restituía aos corpos a sua nudez perdida. Onde procurá­‑la para nos despirmos? Em que jardins se passeava? Que livro desfolhava, caminhando larga e solta, convocando o desejo? Era preciso desamaldiçoar o mar, perceber­‑lhe a gravidade cíclica das marés como uma cópula sempre inicial, decifrar no vento as vozes, conjugar o mundo. “Venham­‑nos ver, venham­‑nos ouvir Estamos agora a descrever os factos desta Ilha As casas estão quase todas destruídas As que resistem ainda têm Rachas enormes e perigosas As ruas se encontram todas destruídas As pontes estão aproximadamente em queda total Alfândega já não existe A Ilha já não é aquilo que foi antes Porquê isto tudo?” É o povo da Ilha. É a redentora mácula do início. Por mais que as amem e chorem a partida, deixem as cidades do Sul, as que se afundam para um renascimento futuro e procurem a que fulgura em pleno mar. Derruída embora, ela é a única e a Una. Dadivosa, ela espera. Vereis que não é Penélope, a fiel. Nem evoqueis esses nomes de mau augúrio. Pois que não sentis pesar na testa os cornos da deriva? E riem as mulheres de m’sirro. Ao coro delas, acorreram os poetas. De Moçambique, nascidos na e da porção 0111


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líquida, Orlando Mendes, Lília Monplé, Tereza Rosa d’Oliveira, um Virgílio de Lemos do Ibo e senhor de todas as Ilhas, Eduardo White, que inaugura o seu trabalho poético com Amar sobre o Índico. Todos a procurar o inconcebível universo a partir de um ponto, de esse Aleph. E os outros que a ela não resistiram: de Nelson Saúte a Mia Couto, de José Craveirinha a João Paulo Borges Coelho ou Calane da Silva. E Okapi, os mais novos todos, presos ao cordão de ouro, umbilical. Por mais que dela desconfiem, por mais que as considerações sobre o cânone e suas chancelas se angustiem ou decretem ou se interroguem, a Ilha é o lugar onde, o nome e todas as suas derivações na História. E vem a A Emenda e o Soneto “A pose do meu amor quando se senta Dança a nudez da Ilha nos pés descalços. Vede ao que vim, ferido de percalços, Suspenso dos olhos seus e da tormenta. Se mais houvera de cair lá estaria Onde se demora o Tempo repousado. Vede nas mãos o desejo seu entrelaçado E deixai vir a mim a dor que merecia. De sonhá­‑la tremo e uivo e doído calo A voz que nela em minh’alma ressoa, Ou se acoita na língua em que lhe falo, Se para merecê­‑la soubesse o que atordoa O silêncio com me olha e de talo Me sorve o pó que já de mim se esboroa.”

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3º TEMA

A POESIA E A MÚSICA

1. ABRAÃO VICENTE | Quando a música é toda a literatura 2. JOSÉ FANHA | Na ponta do pé, na boca do povo 3. JOSÉ LUÍS PEIXOTO | A música é o tempo da literatura 4. ZECA MEDEIROS | Crónica de um fado insulano


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Conferencistas do 3º tema, A POESIA E A MÚSICA EM CIMA:

Da esquerda para a direita, Abraão Vicente e José Fanha EM BAIXO:

Da esquerda para a direita, José Luís Peixoto e Zeca Medeiros


CABO VERDE: quando a música é toda a literatura* ABRAÃO VICENTE

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inda tenho medo de Beethoven e de Mozart. Na minha infância, sempre que as suas composições passavam na rádio era porque alguém tinha morrido. Alguém importante tinha morrido, ou então porque era um feriado religioso ou nacional. Nesses dias, o tempo congelava­‑se em esfera e as nossas memórias petrificavam­‑se como anéis de fumo sobre o cachimbo apagado do tio Manel. A seguir à música e à explicação do locutor sobre os finados do dia, seguia sempre a verificação de nomes e apelidos, minha avó pela casa perguntando por nominhos e apelidos, meu pai fumando o seu cigarro indiferente, minha mãe cantarolando uma morna qualquer. Isso e outros significados que as músicas sempre nos traduziam. Cesária: minha avó lamentando pelo marido finado, Bonga: meu pai com um dinheiro extra, Roberto Carlos: minha mãe examinando o meu pai de lado, os Livity e os Rabelados: as minhas irmãs preparando suas festas, Kassav: meu irmão em dia de jogo de futebol no campo grande de “achada riba”, Bob Marley nas proximidades: invariavelmente eram os nossos vizinhos boémios a preparar o fim de semana. Isso e o cheiro a guisado, o barulho das duas máquinas, da minha avó e da minha mãe, a costurarem em simultâneo, a azedinha verde e os tamarindos ácidos no céu da boca. Tudo era música e som. Tudo era poesia. Pode ser que sim, a música ser toda a literatura e o contrário também. Escrevo com Cesária, com Morgadinho, com Tito Paris, com Ary Cuenca, com Alberto Koening, com Batchart, com B.Leza e Eugénio Tavares, com Manuel D'Novas, com *Com Acordo Ortográfico

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Lura. Escrevo com Codé di Dona e com Nha Nácia Gomi. Tudo passa pela música, em Cabo Verde. Este pode ser um slogan manhoso para explicar a cabo­‑verdianidade, desde o primeiro som das palmas dos pés pisando a negra areia de Cidade Velha, às sonâncias do chicote na costa do negro no vale da Ribeira Grande de Santiago. Demasiadas vezes é a música a construir e a antecipar a realidade, as modas, os hábitos, a rotina e o próprio tom com que as rabidantes 1 gritam pelas ruas “cavalinha fresco, cavalinha fresco”. É a música e sua batida Funaná, Morna, Coladeira, Kizomba, Cola­‑San­‑djon, Mazurca, Bandeiroda, Tchabeta, Batucu, Zouk, Hip­‑hop ou Reggae quem marca o tom com que, em slow motion, os corpos se movem nas ruas da Praia e de Mindelo, de Ponta de Sol e Vila Nova de Sintra. Nem tudo se faz em Crioulo, nem tudo podemos chamar nosso. Nossa música, a cidade de Troia, outros e novos sons, seu Cavalo. Nosso destino e sina, essa simbiose de querer o que parece não nos pertencer e pertencermos à contemporaneidade das coisas “antifrágeis”, segundo Nassim Taleb. “Antifrágil”, a condição do que padecendo de turbulência e inconstância parece fortificar­‑se e enriquecer­‑se por essa mesma razão. Como não amar a nossa antifragilidade. Troia e o seu cavalo. A bitola que nos fez e nos faz ser ilhéus sobreviventes na ilha do Atlântico ou, mais concretamente, o que nos faz ser os últimos habitantes da Atlântida submersa. A lusofonia dos cânticos crioulos e das estórias minuciosas dos quotidianos desérticos. É assim que, no tique­‑taque dos relógios modernos digitais, continuam a soar velhas cantigas escritas para serem poemas, apenas poemas, como se o poema em si não fosse cântico e melodia. Das melodias que nascem espontaneamente para serem apenas isso: melodias cantadas, mas tornam­‑se literatura e inspiram outras e novíssimas letras. Assim, ainda nos tímpanos da nossa memória as penas da morna e da saudade. Nomes incontornáveis de crioulidade lírica e da invenção do sentimento melancólico de se ser um “ser” das ilhas, de sentir o mesmo que outros poetas em outras línguas e latitudes sentiram tendo a terra debaixo dos pés como musa e inspiração. Nós que somos ilhas no infinito azul do Atlântico, muitas vezes no horizonte apenas uma outra ilha e o vazio vertical do horizonte em queda livre. Nós aqui no lugar / terra onde existiram e existem figuras como Eugénio Tavares, Antône Txitxe, Luís Rendall, B.Leza, Olavo Bilac Vasconcelos Gomes, Sérgio Frusoni, Joaquim do Carmo Silva, Txuff, Luis Morais, Armando Faria, Toy Vieira, Jotamont, Simão Gomes Ramos, Armando António Lima, Lela di Maninha, Tututa, Djidjungo, Vasco Martins, Mirri

Vendedeiras de mercadorias provenientes de outros países em mercados tradicionais.

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Lobo, Voginha, Morgadinho, Frank Kavakin, Djirga, Amândio Cabral e Manel D’Novas. Todos esses e Cesária para os cantar no lugar onde toda a poesia é música à espera do seu tempo para ser cantada. Sal e Boavista como se fossem a ponta do paraíso, o Éden onde seremos Adão e Eva em perpétuo círculo de pecado, onde Deus se perpetua na circular condenação da humanidade e seus vícios. São Nicolau, a estreita rua entre a ribeira e a memória. Chiquinho ou a nossa infância numa ilha só. Paulino Vieira e toda a Praia Branca na poesia única de um só ser humano ser toda a ilha, sua sensibilidade e alma. Santo Antão como um exercício de exuberância onde a natureza desafia os deuses a redesenhar uma outra forma de coração onde tudo caiba sem que isso seja o fim do respirar e da beleza. São Vicente, um poema delicado na baía de todas as mestiçagens e cruzamentos. Brava de Nho Eugénio, o lado mais distante das ilhas onde toda mulher é poema, prumo e prosa. Brava, aqui como se fosse nossa América esquecida. Fogo e suas bandeiras, todas as bandeiras e os sobrados celebrando a promessa do fim das coisas que deveriam ser, o outro extremo da alma reinventada no caldeirão das viagens prometidas. Nós e os outros que nos habitam. Fogo, todo o vulcão, seu feitio e a sua imprevisibilidade. Maio, ilha. O fim do começo. Horace Silver e Adalberto Silva, nosso Betú. A morna na sua mais definida poesia, a ligação umbilical entre a terra e o coração. Santiago, todos os ritmos e o continente em nós. Nha Nácia Gomi, Ntoni Denti doru, Codé di Dona a triologia da alma, do poema e da ancestralidade santiaguense. Anu Nobu no coração da ilha e do monte Pico D’Antónia. Logo por consequência Katchás, Pantera, Antero Simas, Betú, sim Betú outra vez porque é a morna em nós, Bulimundo, Norberto Tavares, Pantera, Carlos Modesto, Tó Alves, Mário Lúcio, Carmem Souza, Zezé di Nha Reinalda, Codé di Dona, Djoy Amado, Duka, Gamal, Hernani, Ildo Lobo, Kaka Barbosa, Djoy Amado, Kim Alves, Albertino Évora, Lura, Manuel de Candinho, Djinho Barbosa, Maruka, Mayra Andrade, Finaçon, os Tubarões, Pedro Rodrigues, Princesito, Zé Henrique, Totinho e Zeca di Nha Reinalda. O Rei de funaná, nos gritos da “fomi 47”. Codé di Dona, outra vez. Não há literatura nem poesia cabo­‑verdiana que não tenha bebido da sua música. Dos sons do tambor à melodia da morna, dos gritos e murmúrios caseiros ao terreiro do batuco. Quer nos Nativistas Guilherme da Cunha Dantas, Joaquim Augusto Barreto, Luiz Medina e Vasconcellos, Luiz Loff de Vasconcellos, António Januário Leite, José Lopes da Silva, Eugénio Tavares, António Manuel da Costa Teixeira e Pedro Monteiro Cardoso, quer nos Claridosos, Baltasar Lopes da Silva sob o pseudónimo “Osvaldo Alcântara”, Jorge Barbosa, Manuel Lopes, António Aurélio Gonçalves; Jaime Figueiredo, quer na geração da chamada “nova largada”, onde o poema e a literatura foram também 0117


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arma de combate político­‑ideológico, mas também de afirmação idiossincrática, com autores como Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Onésimo Silveira, Mário Fonseca e Oswaldo Osório, quer nos ditos escritores universalistas Corsino Fortes, Arménio Vieira, João Manuel Varela e os heterónimos, José Luís Tavares, Vadinho Velhinho e Filinto Silva, em todas essas épocas e momentos, toda a poesia e toda a literatura é feita na cadência musical da nota ILHA de insularidade, arquipélago e âmago. Toda a sensualidade dos nossos traços como povo, história, estórias na literatura musical e na minimalista poesia dos novos sons. Lura, Élida Almeida, Djodje, Mayra Andrade, Pantera, Carmem Sousa, Bilan, Jennifer Soledad, Batchart, Sara Tavares, Princesito, Zé Espanhol, Suzana Lubrano, Ary Cuenca, Flor di Bila, Hernani Almeida, Dannae, Kady, Hélio Batalha, Kiddie Bonz, Nelson Freitas, Ceuzani, Cordas do Sol entre muitos outros. São eles a lusofonia da pátria poética que mais se sente. Com ou sem a poesia literária dos livros e das enciclopédias, com ou sem o aval das academias, arrisco a dizer que hoje a nossa lusofonia, e se calhar a lusofonia que mais se sente nas pátrias e no coração dos países que falam português, é essa lusofonia musical que pega no poema e o transforma em música, em bit, na batida perfeita e na cada vez mais periclitante sensualidade das danças improvisadas que nascem no gueto e fazem escola nas redes sociais. A nova lusofonia neste país onde toda a literatura é música é aquela construída no mundo sem barreira das novas tecnologias, dos produtores musicais, das produções independentes, das instituições artísticas espontâneas e da vontade coletiva erigida em circuito aberto das redes sociais e nos espaços aparentemente labirínticos das sociedades cada vez mais livres de amarras. Continuaremos a cantar “Sodadi” no arquipélago da poesia, Cabo Verde, apesar do bit da lusofonia ser agora mais enérgico e estar fora do controlo de padrões e rituais académicos e institucionais. Continuaremos a cantar o nosso funaná a gaita e ferrinho, enquanto o ritmo acelera nos novos funanás recriados com o passar dos anos, seguirá a ser em Codé di Dona onde encontraremos a essência e toda a literatura inerente ao pensamento popular cabo­‑verdiano. Continuaremos a receber os novos sons, da kizomba, do semba, ao sertanejo brasileiro, mas é no funaná, na coladeira, no colá­‑san­‑djon, na morna e no talaia baixo que o povo das ilhas continuará a recriar sua essência como alma e percurso. É nestes ritmos que toda a literatura cabo­‑verdiana constituída música e toda a música feita literatura continuará a ser uma linha única alimentando­‑se da mesma fonte: as ilhas, o arquipélago, Cabo Verde. O destino e a jornada do homem cabo­‑verdiano continuarão a ser narrar a jornada e a saudade de mesmo nós, e nós, os ditos novos, volta e meia daremos conta que contamos a mesma história mudando apenas o tempo onde as coisas acontecem, mas nunca o espaço, as letras, as histórias...e as melodias. 0118


NA PONTA DO PÉ, NA BOCA DO POVO* JOSÉ FANHA

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omo é que nasce uma canção?

Comecemos por perguntar: como é que nasce uma canção? Nasce da música da voz, do ritmo do tambor ou dos passos do dançarino, da sucessiva teimosia das ondas do mar, dos golpes de vento, do balanço da menina que passa e envolve o mundo na graça do seu passar. Depois junta­‑se­‑lhe a palavra até que tudo venha conjugar­‑se numa harmonia que junta a música, a palavra e o canto. Mas pode ser doutra forma que a canção aparece. Pode nascer ao contrário. Pode nascer da palavra e do poema. Muitas vezes o poema já contém em si uma música da língua, uma música do mundo a que só falta mesmo juntar­‑lhe o trinado das cordas da guitarra, o assobio da flauta, a respiração das percussões. O compositor vai então atrás dessa musicalidade da palavra dita poética, transformando­‑a em canto. E junta­‑lhe o violino, as marimbas, o cavaquinho, o pandeiro, o reco­‑reco, a concertina, até rebentar a grande festa da canção. E é disso mesmo que falamos quando falamos de canções. Dos ritmos e melodias nascidos do trabalho, da festa, do amor. A canção vem da terra, do corpo, do coração, e traça um caminho que nos leva da voz ao pé e do pé à voz. A canção é uma festa muito intensa e particularmente presente em toda a lusofonia. *Com Acordo Ortográfico

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As canções nascidas neste espaço, tão vasto e humano quanto simbólico, resultam quer da apropriação e transformação da língua portuguesa quer do uso das línguas outras que, com o português, se vêm cruzando ao longo da História num diálogo diverso e raro, talvez único no mundo em que vivemos.

Novos ramos de um mesmo tronco

A língua portuguesa já é uma menina crescida. Fez 800 anos em 2014. 800 anos! Há 800 anos foi escrito o primeiro documento integralmente em português. Desde esse momento que a poesia foi a forma mais forte e mais bela que os portugueses encontraram para falar de si a si próprios ou aos outros e para dialogar com a alteridade que sempre foi uma grande marca da sua identidade. Em torno da língua e da poesia construiu­‑se esta forte e inesperada identidade cultural feita de uma vasta quadrícula de influências que começaram por ser as do mundo Mediterrânico a que se juntaram as do mundo dos povos do Centro e Norte da Europa. Mas esta língua não se ficou por aqui. Partiu pelo mar fora como base da expansão e do processo de colonização desenvolvido pelos portugueses. Nesse processo colonial a língua foi, sem dúvida, um instrumento de domínio. No entanto, inesperadamente, a língua portuguesa foi apropriada por esses diversos povos colonizados e tornou­‑se, primeiro, num instrumento de afirmação de novas identidades, depois numa arma comum de resistência e libertação e, não excluindo as línguas originais de cada nação, tornou­‑se finalmente no suporte de uma imensa comunidade de falantes que é a da Lusofonia, que promete vir a desempenhar um papel de grande futuro neste conturbado mundo em que vivemos. Oito séculos tem a língua portuguesa. E, ao longo destes séculos, foram surgindo, quase sem intervalo, uma quantidade impressionante de poetas de imensa qualidade. São centenas de grandes poetas que fazem esta extraordinária respiração que é a história da poesia em português. Podemos dizer que a paixão pela poesia se expandiu, dando origem a novas e fantásticas vozes poéticas a partir do século XVIII no Brasil e no século XX, em que a poesia portuguesa atingiu um ponto muito alto em Portugal, tendo­‑se constituído também como parte determinante da raiz das poesias de Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné­‑Bissau, Timor­‑Leste ou Cabo Verde. Novos ramos, que nasceram de um mesmo velho tronco, e que foram incorporando outros ritmos, outras musicalidades, outras temáticas, outras línguas e outros falares. 0120


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Uma escrita africana

Se visitarmos a poesia portuguesa desde o período trovadoresco até à atualidade, vamos encontrar temas que atravessam os séculos e que vêm desaguar quer na poesia contemporânea, quer na canção popular rural ou urbana, como é o caso do fado. Como vimos e sabemos, a força da poesia como fator identitário transborda para as antigas colónias africanas. E vemos como são quase sempre poetas os autores das primeiras obras nacionais ou onde se afirma a especificidade nacional. Entre finais do século XIX e os primeiros 30 anos do século XX, surgem pontualmente poetas cuja escrita reflete a procura de temas locais sem que se desloquem da raiz portuguesa para a construção de novas identidades culturais. É o caso, em Cabo Verde, de Eugénio Tavares, autor de poemas e mornas, Rui Noronha em Moçambique ou Geraldo Bessa Victor em Angola. Alguns anos depois, em 1936, Manuel Lopes, Baltasar Lopes (também com o pseudónimo de Osvaldo Alcântara) e Jorge Barbosa, com evidente influência do neorrealismo brasileiro e também do português, publicam em Cabo Verde a revista Claridade, que tinha como objetivo procurar afastar definitivamente os escritores cabo­‑verdianos do cânone português, procurando refletir a consciência coletiva cabo­‑verdiana e chamar a atenção para elementos da cultura local que há muito tinham sido sufocados pelo colonialismo português, como é o exemplo da língua crioula. O Movimento Claridoso é uma porta que se abre para uma atitude de afirmação e revolta das culturas nacionais contra o domínio colonial. Nos anos 50, já sob influência das conquistas do modernismo e afirmando uma clara identidade africana, a poesia ganha nova força em Angola através da poesia de Agostinho Neto, António Jacinto e Viriato da Cruz, entre outros, em Moçambique através de José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar, em Cabo Verde através de uma nova geração a que pertencem Luís Romano, Arnaldo França, Corsino Fortes, Ovídio Martins, e ainda Alda Espírito Santo em São Tomé e Príncipe, Vasco Cabral na Guiné­‑Bissau e Fernando Sylvan em Timor­‑Leste. Na divulgação de uma literatura claramente africana e anticolonial é importante referir o papel fundamental que teve a Casa dos Estudantes do Império com as suas publicações. Esta instituição, que recebia muitos estudantes africanos em Lisboa, tornou­‑se, durante os anos 50, no ninho onde germinaram as ideias que deram origem aos movimentos de libertação de Angola, Moçambique, Guiné­‑Bissau e Cabo Verde e num local onde se consolidaram parte das elites destes países, nomeadamente muitos dos seus poetas e romancistas. 0121


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Canção e poema

Voltemos à canção e à sua relação com a poesia. Em geral, as instituições académicas têm tendência a considerar que a poesia cantada é uma poesia menor. Talvez porque precisa de ser mais imediata, menos elaborada, porque terá tendência à vulgaridade em oposição à profundidade das grandes composições No entanto, temos grandes poetas da canção. Poetas que escreveram para a voz, para o passo de dança, para a alma e para o pé do povo. Porque é que têm de ser considerados menores belíssimos compositores e poetas populares como Eugénio Tavares, B. Leza, “Liceu” Vieira Dias, Frederico de Brito ou mesmo grandes poetas como José Afonso ou Chico Buarque de Holanda? Não se chama poesia “lírica” a muita da poesia de Camões e de outros grandes? E de onde nasce o “lírico” se não da lira? Há muito quem pense que a poesia ganha voo de asa ao chegar ao ouvido do povo no embalo de uma canção pela mão do poeta lírico, ou seja, segundo o dicionário, do rimador troveiro, rapsodo, lirista, trovista, cantor, aedo, vate, versejador, trovador, poeta, bardo, versificador. Esta separação entre poesia “séria” e letras de canções era uma fronteira inultrapassável até ao dia em que Amália Rodrigues cometeu a “heresia” de cantar em fado um soneto de Camões. Ia caindo o Carmo e a Trindade. Uns entendiam que se estava a abastardar o grande lírico português. Outros achavam que, ao deixar­‑se aproximar da grande literatura, o fado perdia a sua pureza popular. Esta discussão foi ultrapassada a partir da altura em que “desaguaram” no fado poetas com a dimensão de Pedro Homem de Mello, Alexandre O’Neill, David Mourão­‑Ferreira e tantos outros. A história da relação entre canção e poesia é vasta. Nos anos 50/60, a canção teve um grande desenvolvimento através de excecionais compositores e cantores franceses, espanhóis, portugueses, brasileiros, chilenos, argentinos, gregos, italianos. Surgiram grandes poetas da canção, como Jacques Brel, Patxi Andion, Caetano Veloso, Victor Jara. E outros tantos fantásticos compositores que trouxeram para a canção poetas com a grandeza de Lorca, Alberti, Góngora, Aragon, Baudelaire, Gedeão, Florbela Espanca, Agostinho Neto.

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A canção é uma arma

A canção tornou­‑se numa arma, como diz o cantor e, a partir dos anos 60, partilhou fraternamente o grito alegre e intenso de revolta contra o colonialismo e contra as ditaduras que mancharam a História de Portugal e do Brasil. Coimbra, cidade da Universidade e dos estudantes, onde reinava o fado e a balada, revelou­‑se um dos berços da canção política. Já nos anos 30 e 40, o neorrealismo tinha reunido na cidade um número notável de poetas de grande fôlego, alguns dos quais, como Luís Bettencourt, levaram a poesia às vozes dos fados e das baladas, unindo as duas grandes expressões culturais coimbrãs que são a canção e a poesia. A partir do fado e da balada, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e outros, vão juntar às toadas tradicionais letras e poemas claramente politizados, especialmente bem recebidos pelos estudantes que começavam a sentir na pele a pressão de uma guerra injusta para a qual a ditadura os empurrava sem piedade. A canção junta pessoas e vozes. A canção fala e faz falar. Grita. Entra nas Universidades, em muitas igrejas e espaços paroquiais, em clubes operários. A canção é perseguida e proibida. Autores como Zeca Afonso ou Chico Buarque de Holanda são presos inúmeras vezes. Presos devido às palavras a arder que nos traziam. Presos pela dignidade com que resistiam. Presos pela palavra que insistiam em espalhar. Adriano cantava os poetas. Em primeiro lugar Manuel Alegre, e outros depois, como Manuel da Fonseca, António Gedeão, Raúl de Carvalho e muitos mais. O Zeca cantou menos os poetas mas também o fez, desde Luís de Camões, Jorge de Sena, Luís Pignatelli, António Quadros, Ary dos Santos a Fernando Pessoa ou António Aleixo. Além dos poetas, Zeca escreveu muitas das letras que cantava. Mas também recolheu toadas, melodias e letras da tradição popular das Beiras, do Alentejo, dos Açores, pondo muitas vezes em destaque o seu profundo apelo à liberdade. Zeca Afonso tomou ainda para si a influência da música africana criando canções que, de alguma forma, uniram as lutas de um e outro lado do Oceano, tornando claro que a luta dos africanos e dos portugueses era a mesma. E pode dizer­‑se sem perigo de demagogia que essas canções também contribuem para o traçado do espaço da lusofonia. No Brasil, parece­‑me importante pôr em destaque o papel desse excecional poeta da canção que é Chico Buarque de Holanda, que trouxe a poesia erudita para um diálogo fecundo com a música popular. Basta lembrarmo­‑nos de “Morte e Vida 0123


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Severina”, a partir do texto de João Cabral de Melo Neto, da “Ópera do Malandro”, a partir da “Ópera dos Três Vinténs”, de Bertolt Brecht, ou da presença frequente da poesia de Carlos Drummond de Andrade em canções como “Até ao Fim”. Entre os cantores africanos há que destacar Rui Mingas que, além de cantar canções tradicionais, outras de compositores como “Liceu” Vieira Dias, Barceló de Carvalho e Teta Lando, cantou ainda poetas como Agostinho Neto, Manuel António, António Jacinto, Onésimo Silveira. No que diz respeito à relação entre poesia e canção, há que distinguir os poetas cuja obra pré­‑existe à composição musical, poetas a quem os compositores vão buscar o tema e o sentido e fazem com que a música reforce e popularize esse mesmo sentido. Há ainda os poetas que escrevem para a canção, muitas vezes em conjunto com o compositor naquilo que é seguramente uma criação a quatro mãos. Dois dos maiores serão Vinícius de Morais e José Carlos Ary dos Santos. Todos nós sabemos de cor alguns dos maravilhosos poemas destes dois grandes poetas cantados por inúmeros cantores. Podemos falar igualmente de outros, como Vítor Martins, poeta de Ivan Lins, Aldir Blanc, de João Bosco, Joaquim Pessoa, de Carlos Mendes.

E depois do Adeus?

Aí temos o título de uma bela canção de Paulo de Carvalho que foi usada como senha para o começo das ações militares do 25 de Abril de 1974 em Portugal. Um momento maravilhoso que anunciou a chegada da liberdade, o fim do colonialismo, a promessa futura da institucionalização deste espaço da lusofonia. Por isso, talvez caiba perguntar: e depois da liberdade? E depois da independência, o que é que aconteceu à canção? Terá perdido a força da urgência? E em troca ganhou o quê? Reduziu­‑se ao consumo? Ao embalo da dança? Ao negócio dos telemóveis? Depois de 74 fui acompanhando as nossas canções ao sabor do acaso e da paixão. Mudaram­‑se os espaços e a relação dos músicos com os públicos. Mudaram as tecnologias. Destruiu­‑se em grande parte a hierarquização dos locais de fruição. O domínio crescente da produção musical sobre a criação tem dado origem a uma triste uniformidade daquilo que ouvimos. No entanto, vou guardando para mim uma espécie de antologia pessoal onde vou juntando a memória de momentos únicos que me foram dados ouvir e que, 0124


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espero, possam ser pontos de referência, sinais que do passado ou do presente apontem para um futuro melhor, mais feliz, mais próximo do coração. Lembro­‑me de um disco notável de José Carlos Schwarz, da Guiné­‑Bissau, com Miriam Makeba, chamado “Djiu di galinha”. Alguém lhe deu continuidade? Não sei. Culpa minha talvez. Cabo Verde é um vulcão imparável de música boa, de ligação à terra e ao povo, desde os Tubarões, dos Finaçon, da música de Bau, de Tito Paris e de tantos outros caminhos que os músicos de Cabo Verde têm vindo a desbravar. E temos a doce e maravilhosa morna que, tal como o fado, tem vindo a renascer desde Bana, Cesária e tantos outros, aos mais jovens, como Nancy Vieira e Lura, entre outros. A fortíssima e tão intensa música de Angola continua a fazer nascer ritmos e compositores que misturam os ritmos africanos de enorme impacto com influências diversas que vêm do mundo e ao mundo regressam com o seu brilho e a sua maravilhosa capacidade de cantar a nostalgia. Depois de Bonga, Rui Mingas e Filipe Mukenga, outros tenho vindo a conhecer, como Paulo Flores. Mas o que mais fortemente me tem chegado da música angolana é a música para dançar, desde o semba à extraordinária e internacionalizada kizomba. O Brasil é outro vulcão musical, onde dezenas de velhos e novos cantores e autores continuam a debitar muitíssima música de grande qualidade, a par de outros que, diga­‑se em abono da verdade, continuam a insistir numa música básica, meramente comercial e sem nenhuma qualidade. No entanto, para atestar como a música brasileira está viva e mais que viva, basta ouvir “O trono do estudar”, onde Chico Buarque, Zelia Duncan e outros vários cantores se juntam num momento excecional para apoiar os estudantes de S. Paulo que lutam na rua pela manutenção do ensino oficial. Em Portugal poderia falar de caminhos diversos. Fausto e o seu emocionante “Por este rio acima”, Vitorino, Sérgio Godinho, Jorge Palma, Rui Veloso, Pedro Abrunhosa, os Rio Grande, os Fabulosos Tais Quais e os muitos grupos de recolha de música tradicional, são braços diversos de um rio de onde nascem permanentemente novos caminhos, alguns que irão longe, outros que acabam por morrer antes de chegar à praia. Há ainda que sublinhar o reencontro da juventude portuguesa com o fado, que me parece muitíssimo prometedor e que tem feito nascer vozes emocionantes como as de Camané, Marisa, Katia Guerreiro ou Ana Moura. 0125


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Sei pouco do que se passa em Moçambique. Sei apenas que há um trabalho consistente sobre a riquíssima tradição musical das suas várias etnias. Da nova música da Guiné­‑Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor­‑Leste sei pouco ou nada. E a verdade é que as nossas rádios e televisões estão de costas viradas para a música da lusofonia, mais perto da música internacional pronta a engolir do que daquela que vem do coração dos nossos povos. Sei ainda que, em todos os nossos países, os jovens músicos mostram­‑se muito influenciáveis pelo rap e pelo hip­‑hop, expressões urbanas, internacionalizadas e distantes das raízes do canto da terra, mas que podem desempenhar um papel positivo na denúncia da situação de abandono a que a juventude é muitas vezes votada. O melhor da nossa música exige apoio oficial e divulgação mediática para conseguir chegar a todos os cantinhos da lusofonia. Todos nós continuamos a precisar de um espaço que fale cantando ou que cante falando. Um espaço de liberdade do corpo. Um espaço de diálogo com o passado. Um espaço onde a canção viaje da voz do povo à ponta do pé.

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A MÚSICA É O TEMPO DA LITERATURA* JOSÉ LUÍS PEIXOTO

O

s textos poéticos mais antigos de que há conhecimento tiveram origem na Suméria, há mais de 4000 anos. Trata­‑se de hinos escritos pela sacerdotisa Enheduanna em louvor da deusa Inanna, deusa do amor, da fertilidade e da guerra: temas ainda tão atuais. Os primeiros textos poéticos destinavam­‑se a ser cantados. Noutras latitudes, em quase todas, sempre foi comum que as primeiras formas de poesia tivessem ligações à música. É esse o caso da Península Ibérica e, concretamente, do idioma galaico­‑português, com as suas cantigas trovadorescas, a partir de finais do século XII. Desde esses inícios até aqui, a poesia tem sido uma síntese do mundo. Na sua ambição maior, cada poema pretende ser uma amostra de realidade que sugere toda a realidade. O poema é, em simultâneo, astrolábio e Estrela Polar. Pelo mesmo princípio se pode defender que a poesia é uma síntese de toda a literatura. Se a poesia aspira a ser música é porque a literatura, toda ela, também aspira a ser música. No texto e na música, o ritmo é um dos elementos mais essenciais. A cadência das pausas determina­‑o. No texto, poético ou não, a pontuação é uma das maneiras de gerir as pausas, de dar­‑lhes intenção e, assim, criar um ritmo. Não é difícil encontrar exemplos. O ritmo fica bem visível nas enumerações de possibilidades, probabilidades, capacidades e oportunidades ou em sequências de *Com Acordo Ortográfico

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adjetivos escolhidos, específicos, rigorosos e precisos, que não sejam redundantes, desnecessários, maçadores e chatos. Podemos, se for nosso interesse, interromper uma frase, longa ou talvez não, com informações que, além de trazerem assunto, contribuem com ritmo, com gaguez voluntária. Ou podemos escolher uma daquelas tiradas a parecerem infinitas e a mostrarem­‑nos que temos um fôlego muito maior do que imaginávamos se a lermos bastante depressa. Um conjunto de sons agrupados de forma agradável: esta é uma definição simplificada e habitual de “harmonia”. Também nesse caso, música e poesia partilham características. A rima empenha­‑se nessa demanda há séculos. A coesão que essa harmonia transmite, salientada pela métrica e pela acentuação, é um efeito musical. Também a repetição, apesar de frequentemente arrumada no campo das técnicas de retórica, tem as suas raízes mais profundas na música. Esse regresso periódico a uma toada que se vai tornando familiar e que, aos poucos, se vai expandindo, é um paralelo claro dos refrões, estruturantes e musicais quando colocados no lugar certo, com a dimensão certa. A fonética é um dos elementos essenciais de qualquer língua. Na literatura, o som está presente e importa até quando lemos em silêncio. A atenção que dermos a essa dimensão terá um efeito inevitável no resultado, naquilo que, ilusão ou realidade, conseguimos esculpir. A literatura é uma atividade humana em todas as suas vertentes. É feita por humanos, destina­‑se a humanos e utiliza matérias absolutamente humanas: a língua e a linguagem. O papel prosaico que o idioma ocupa no nosso quotidiano pode levar­‑nos ao engano de dá­‑lo por adquirido, de o sentirmos natural como as estações do ano, como o vento, como o sol. Não é esse o caso, a língua, todas as línguas, são o resultado de uma evolução de séculos, feita de conquistas alcançadas por gerações consecutivas. Ao longo desse esforço, o ser humano tentou encontrar meios que exprimissem de forma o mais precisa possível aquilo que pensava e sentia. Assim, desse modo, também são profundamente humanas as formas de medir o tempo em literatura: o bater do coração, como um metrónomo permanente e implícito; o fôlego, como um compasso quaternário que nos mantém vivos. Na minha adolescência, no Alentejo, eu tocava saxofone na banda da Sociedade Filarmónica e tocava guitarra elétrica numa banda punk. Música, há só uma. Ainda assim, esses dois géneros, agora, ajudam­‑me a perceber que, no saxofone, analógico, o tamanho das notas sustentadas coincidia com a capacidade dos meus pulmões, já a guitarra elétrica, máquina ligada à corrente, seria capaz de reverberação potencialmente infinita. 0128


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Quando medido pelo humano, o tempo não é infinito. Quando medida pelo humano, a literatura não é infinita. É também em cada um dos seus fins que se constrói a música, é nas suas pausas. Há sons que começam e acabam, sílabas que começam e acabam, palavras que começam e acabam. É assim no samba e no semba, na morna e no fado, é assim em toda a geografia deste idioma, de vogais mais ou menos abertas. Que saibamos aproveitar cada pausa, cada passo, para inscrevermos ritmo, porque é o fim que permite o tempo, porque é o tempo que permite a música, a literatura e a vida.

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CRÓNICA DE UM FADO INSULANO* ZECA MEDEIROS

A

o João de Melo, aos amigos de Cabo Verde Insulano será meu fado. Neste barco, neste sonho. Na inquieta maresia da voz do poeta. Ao longe uma canoa. Velhos baleeiros rasgam as ondas alterosas do mar soberano. Mau tempo. Nas vertentes da ilha um céu inconstante recorta a silhueta de mulheres cobertas por xailes negros, silenciosas sentinelas de basalto. Uma luz crepuscular vem amansar a toada das marés. É uma calmaria breve que, de repente, se agita num sobressalto: a dança lenta e majestosa do leviatã, a viagem, a vertigem do arpão num ritual de sangue e ousadia. Quem são estes baleeiros? Em cada ruga esculpida pelo tempo pressinto uma carta de marear, um atlântico destino, talvez o cais de uma ilha de fogo. Talvez, num olhar de lonjura, os ecos de uma doce melodia das ilhas de Cabo Verde. Irão navegar antigos portulanos nas incertas rotas de New Bedford? Irão perder­‑se no mar imenso, no rumo aziago de Moby Dick, a baleia branca? Insulano será meu fado. Ao desvendar lagos, lendas e mitos na fantasmagórica coreografia do nevoeiro. No mistério telúrico de 7 cidades serei arcebispo nigromante a invocar danações e alquimias que ficaram a latejar na memória do tempo. Na ilha dos escravos serei mestre e anfitrião de um Arlequim náufrago, submerso herdeiro da maresia. Insulano será meu fado. Na voz e no rosto desta gente feliz com lágrimas. Irei partilhar suas dispersas latitudes, seus amores *Com Acordo Ortográfico

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desencontrados, suas feridas coloniais. Irei navegar suas errâncias, seus regressos, seu pranto feliz derramado à flor da terra, à flor do mar. Na ferrugem dos dias serei melancólico relojoeiro a consertar o tempo, a contrabandear na engrenagem de ponteiros parados as horas adiadas dos sonhos sem rumo. Irei também navegar as rotas da utopia. Num improvável périplo entre a ilha do Corvo e Santiago do Chile serei venturoso livreiro a revelar ao mundo a translúcida poesia de Pablo Neruda. Poderei ser em 1427 gajeiro na caravela de Diogo de Silves, avistando por entre a bruma da manhã a ilha de Santa Maria. Serei emigrante, “calafona”1, maestro de uma orquestra invisível. Nas têmperas de sal do pintor atlante serei mulher com rabo de peixe, homem com rosto de cão. Poderei mesmo ser Ulisses no seu adiado regresso a Ítaca. Insulano será meu fado, neste bailado pendular entre a luz e o coração das trevas. “Semeador de sombras e quebrantos”2 escreveu Anthero. Sob a âncora da esperança os seus olhos claros irão espelhar todas as feridas do mundo. Um tiro. Dois tiros. “Silêncio escuridão e nada mais”. Mas agora que o sol vem celebrar o mar eterno na voz luminosa de D. Djutta Ben­‑David3, vou fundear meu violão, minha galera, vou estender o meu cansaço nas areias brancas desta praia. Insulano será meu fado. Minha morna.

Regionalismo açoriano que significa “emigrado que regressa ao arquipélago”. In “Solemnia Verba”, soneto de Antero de Quental. 3 Djutta Ben­‑David, cantora cabo­‑verdiana que viveu e morreu nos Açores. 1 2

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PAINEL

NOVOS ESCRITORES

CARMELINDA GONÇALVES | Escrita e insularidade DAI VARELA | O livro infanto­‑juvenil como intercâmbio de emoções HÉLDER FORTES | Diáspora, insularidade, poesia e música!


VI ENCONTRO DE ESCRITORES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Painel NOVOS ESCRITORES Da esquerda para a direita, Carmelinda Gonçalves, Dai Varela e Hélder Fortes


ESCRITA E INSULARIDADE* CARMELINDA GONÇALVES

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uando pensamos na produção literária em Cabo Verde, que ilhas e que escritores aparecem no nosso imaginário? O facto de sermos um país onde o oceano tratou de isolar esses dez grãozinhos de terra significa que há algumas ilhas em que a literatura seja mais hegemônica? Imagine um jovem amante das letras nas terras de Eugênio Tavares. Ou quiçá no chão onde nasceu Chiquinho. Onde beberia a fonte da escrita? Certamente não seria nas redes sociais. Deveria ser na escola, desde a fase primária, onde aprenderia que o livro abre oportunidades, desenvolveria com o passar dos anos uma verdadeira literacia e as competências associadas, para que em seu futuro vislumbrasse mais que pequenas mensagens em seu telefone portátil. Somente mudaremos o cenário atual se houver uma aposta real na literatura. Nas salas de aulas, gavetas de livros para o despertar da leitura, nas escolas, a figura do bibliotecário bem como bibliotecas com estantes abertas aos pequenos e, nos intercâmbios escolares, concursos de leitura, de contos, numa política de educação voltada para o enriquecimento do culto do livro. Como haveremos de querer que as crianças leiam se os adultos não o fazem? Como poderemos pensar em literatura nas escolas se muitos são os professores que não leem para além do material pedagógico escolar? Como nos referenciarmos *Com Acordo Ortográfico

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quanto a autores nacionais se pouco se sabe acerca deles, pouco se pesquisa e menos ainda se valoriza. E o que dizer do “castroso” acesso aos livros que as crianças têm, de um modo geral, nesses cutelos1 e vilarejos? As famílias dão preferência a uma refeição ao investimento em livros, cujas folhas só o cérebro tem a capacidade de mastigar e de lá tirar proveito. Com este cenário fica óbvio que por estas bandas poderiam aparecer muito mais poetas, romancistas, contadores, caso os incentivos certos aparecessem no local e na hora exata. É nesse ambiente espinhoso que o jovem escritor cabo­‑verdiano se encontra. Vai­‑se debatendo contra portas fechadas, inspirando­‑se na ilha que vê na linha do horizonte, produzindo trabalhos e deixando­‑os engavetados. Imagine agora um país que se envolvesse na divulgação dos seus pensadores, levando de ilha a ilha e de país a país os seus escritores? Aquele menino de pés descalços na Boavista haveria de ler um conto infanto­‑juvenil e levá­‑lo para sua casa, assim como o jovem do Tarrafal acreditaria na aventura de escrever sabendo que os caminhos poderiam ser melhores. Na verdade, a insularidade está dentro de todos os que cultivam o papel de serem eles próprios ilhas isoladas e nada fazem para uma verdadeira união e valorização da nossa literatura.

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Nome que se dá em Cabo Verde a terras situadas em montanhas ou encostas. 0136


O LIVRO INFANTO­‑JUVENIL como intercâmbio de emoções DAI VARELA

A

literatura infanto­‑juvenil é uma provocação para o autor na sua forma cria-

tiva, mas é também um desafio sobre as barreiras que a insularidade impõe. Mesmo nisso, Cabo Verde tem demonstrado que o desafio da insularidade tem sido transformado em cenário onde habitam as personagens. Algumas chegam de bem longe e se enamoram pelas ilhas, enquanto outras querem partir e muitas se quedam, iguais a guias turísticos da fantasia. Contudo, contar estórias infantis das – e nas – ilhas é também fazer a personagem se surpreender e admirar com os mistérios pós­‑mar de quem partiu, de quem chega e de quem sempre esteve. Estórias essas que são também um empurrar para bem longe a cortina invisível do desconhecido que paira sobre a nossa inocência insular. Ou seja, cada estória que transpõe a ilha leva uma personagem, uma criança e parte do povo que lhe deu corpo. Levar e entregar a literatura infantil pode ser um acto de coragem por disponibilizar ao ser mais sincero na crítica as ferramentas de nos interpretar como povo para então nos ressignificar e assim nos transformar. Quanta responsabilidade esta, a de descompartilhar características semelhantes. Contudo, sabemos que a literatura infanto­‑juvenil não se faz apenas com livros. Basta lembrar que um dos primeiros veículos de transporte que o povo das ilhas conheceu foi a contação de estórias e esta se locomovia através de rodas de conversas e musicalidade como companheira de viagem. O poder da literatura infantil é tanto *Sem Acordo Ortográfico

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que há relatos de crianças que transitaram entre mundos – do real ao fantástico – regressando modificadas. Melhoradas. E o livro infanto­‑juvenil reserva parte deste poder. Isto porque o livro é das poucas construções físicas que aumenta o território espacial do espírito que se pode caminhar com a mente. É a ponte que nós somos, atravessada com o olhar, voltada para a criança que há em nós. Primeiramente construída na oralidade, esta oratura mostra hoje que é maior do que esta ponte impressa porque o amontoar de publicações ainda dá apenas para iniciar a sua base. Basta lembrar que antes do texto já a palavra oral se imprimia nas pessoas e se exprimia sempre por contacto nos corpos­ ‑papel. Por isso que a literatura infantil, nova no território das publicações, acarreta desafios de, primeiro, se constituir como processo literário nas ilhas, depois, de se impor como uma contribuição válida e necessária, até chegar ao ponto de se destacar no interior da cultura gráfica. Como é notório, a produção literária infanto­‑juvenil de Cabo Verde tem, na sua maioria, procurado assumir um papel lúdico e de transmissão da herança folclórica, mas sem esquecer o lado educativo e pedagógico. Estas publicações não procuram ser uma extensão ou simulacro da escola, ao invés disso, há uma preocupação do livro se apresentar como uma obra literária per se. Nossos livros infanto­‑juvenis não são pensados apenas na lógica do consumo e do entretenimento. Os autores não procuram usá­‑los como instrumento didáctico de ensino, apesar do que muitos tentam despertar o interesse do Ministério da Educação para que o livro seja integrado na leitura curricular. Uma das preocupações identificadas nas temáticas das obras nacionais é a de estimular a imaginação da criança­‑leitora através da identificação com nossos usos e costumes, valores e cultura. Claro que não se tenta formatar a criança num sistema de valores, mas sim ajudá­‑la a se enquadrar em relação à sua insularidade, à sua diáspora e ao Mundo. Para isso, há uma introdução de elementos nacionais ou regionais nas estórias que ajudam a criança­‑leitora a se sentir retratada e conseguir uma certa identificação. Apesar de isso não ser explicitado nas capas, as publicações infanto­‑juvenis procuram a adaptação às idades das crianças através dos temas abordados, da linguagem escrita e da introdução de valores, bem como da própria ilustração que as acompanha. Sendo um produto cultural, o livro infanto­‑juvenil contém parte do processo de transmissão da herança social. Do livro pode­‑se saber sobre costumes e valores desta sociedade, mesmo que através de fantasias, mas também da qualidade do traço dos ilustradores, do parque gráfico, das políticas sectoriais, do nível de literacia, ou mesmo da forma como nos expressamos e entendemos a vida. 0138


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Entender a vida é também assimilar este veículo cultural como factor de inclusão ou exclusão na sociedade ou ainda fronteira de memória e esquecimento. Por outro lado, inundar nossas crianças com um produto alienante da sua realidade é o melhor caminho para elas criarem um menosprezo ou um olhar redutor pela sua própria identidade e cultura. Como é que se pode esperar que um jovem tenha produções criativas com matriz cabo­‑verdiana quando na sua formação desconhece esses traços? Esta magia só acontece nos livros de fantasia.

Temática literária inventiva

As edições de literatura infantil em Cabo Verde são em número reduzido, abrangendo diversos géneros, estilos e temáticas. Os assuntos passam pela contemporaneidade, como é o caso de Saaraci, o último gafanhoto do deserto, de Luísa Queiroz; transmitem as tradições orais – algumas já perdidas – caso de Stória, stória, de Helena Centeio; outros abordam o folclore, como na obra Blimundo, de Leão Lopes, ou Estórias de Encantar, de Hermínia Curado Ferreira; há abordagens educativas, como A Tartaruguinha, de Orlanda Amarílis, e ainda A Cruz de Rufino, de Fátima Bettencourt; passam também pela expressão da sensibilidade dos autores, com textos e imagens puramente estéticos e poéticos, como O Monstrinho da Lagoa Rosa, de Graça Matos Sousa, e ainda UNINE, de Leão Lopes. Há também alguma preocupação na habilidade da leitura, como é o caso de 1, 2, 3, da autora Marilene Pereira; ou do fantástico da ficção extraterrestre de O ET de Carmelinda Gonçalves, e ainda o livro SOLRAC no planeta terra, de Carlos Araújo, ou mesmo a vertente formativa do Vamos conhecer Cabo Verde, de João Lopes Filho. Se notarem, quando uma criança­‑leitora está a recontar estas estória da literatura infanto­‑juvenil, transformando o texto numa narrativa para quem a ouve, esta criança­‑autora está a recriar, e recriar é produzir cultura também. Ao recriar a estória, este sujeito literário consegue justificar e criticar suas próprias crenças, seu sentido insular e sua relação diaspórica e mundana. Termos poucas publicações e muitos autores ou putativos autores leva a que não exista nenhuma editora especializada no género infanto­‑juvenil. Este é um facto que vai contra a corrente porque basta estar­‑se actualizado com os dados internacionais para saber que quem impulsiona fortemente as vendas do livro impresso é o público jovem. É preciso criar­‑se condições para surgirem novos autores da literatura infanto­‑juvenil e, com isso, um novo olhar sobre suas questões em termos de leitura, da literatura infantil e mesmo da criança. 0139


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Algumas propostas para melhoria do panorama

Como sabem, o papel de formar, informar e distrair as crianças­‑leitoras não pode nem deve ser assumido apenas pelos autores; os pais, os professores, o Estado (na forma das suas instituições) também têm um papel importante neste processo. As mudanças precisam operar mais a montante, ou seja, no Estado, e por isso apresento algumas propostas aqui: Cabe ao Estado criar as oportunidades de desenvolvimento do gosto da leitura, principalmente ao disponibilizar ou facilitar o acesso às obras nacionais. A escola, desde o pré­‑escolar, é o local propício para assegurar a atenção da criança­‑leitora, mesmo que seja usando a literatura no seu aspecto utilitário, informativo ou pedagógico. Cabo Verde dispõe de 526 estabelecimentos de educação ou ensino pré­‑escolar, 420 unidades de Ensino Básico e 50 do Ensino Secundário. Porque é que não se consegue alcançar este público com os livros infantis? Porque falta um plano nacional de hábitos de leitura para incentivar o descobrir dos autores nacionais. Não há projectos de leitura e, consequentemente, não há disponibilização de livros e contacto com os autores, contadores e ilustradores. É preciso desenvolver­‑se técnicas de incentivo ao hábito de leitura através de programas de pequena escala e itinerantes. Falo, por exemplo de, semanalmente, se montar a mesma tenda de leitura em diferentes escolas. É preciso envolver­‑se as comunidades na criação de mini­‑bibliotecas infantis que serão com certeza acarinhadas pelos autores nacionais. No nosso país, em 2015, estimavam­‑se cerca de 525 mil pessoas residentes. Destes, o número de jovens (pessoas entre os zero e os 14 anos) era de 155 mil pessoas. Com um público­‑alvo deste tamanho, porque é que editamos tiragens de 500 exemplares e temos dificuldades em vender livros? É preciso incentivar­‑se o professor a aperfeiçoar a sua formação na literatura nacional. O professor deve conhecer antes de procurar alargar o leque de leitura do aluno. Pode­‑se despertar a interacção dos alunos através de visitas às bibliotecas. Mesmo que a criança­‑leitora não pretenda escrever um livro, para ela se tornar um profissional de excelência é preciso ler muitos livros. Deve­‑se também incentivar a pesquisa da literatura infanto­‑juvenil nacional no ensino superior e destacar os melhores trabalhos. Um dos maiores problemas para os novos autores ou autores independentes é a distribuição. É preciso encontrar­‑se novas formas de circulação das obras. Deve­‑se criar canais de facilitação de distribuição nos postos de venda em todas as ilhas. Em 0140


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termos internacionais, pode­‑se criar canais para fazer chegar os livros às Embaixadas e Consulados espalhados pelo Mundo e divulgar nossa produção. Entendo que os decisores e editores nacionais não queiram ainda sair da zona de conforto de editar ou reeditar consagrados e clássicos. Contudo, em Cabo Verde, temos um total de 300 mil assinaturas ao serviço de acesso à internet, sendo que 80% delas o utilizam através dos seus smartphones e outros dispositivos móveis. Isto significa que temos um mercado para os livros digitais ainda por explorar.

Estatuto do Livro Infanto­‑Juvenil

Para se chegar a esse ponto ideal para a literatura infanto­‑juvenil em Cabo Verde, proponho que seja criado o Estatuto do Livro Infanto­‑Juvenil, um instrumento que não só lhe reconheça o valor artístico, mas que crie as condições da sua expansão. Com este Estatuto, o livro infanto­‑juvenil nacional não deverá pagar taxas alfandegárias para a sua importação, e o valor de envio por Correios dentro de Cabo Verde terá um preço reduzido e suportado pelo Estado. A comunicação social dá uma atenção relativa a esta produção literária, mas com este Estatuto seria possível fazer­‑se publicidade aos livros a um preço reduzido. Pode­‑se também deduzir do imposto as despesas efectivamente feitas com a publicação das obras deste género e, desta forma, reduzir­‑se os custos de produção.

O livro infantil é um intercâmbio de emoções

A literatura infantil pode ser uma ferramenta da formação identitária e parte do processo de transformação da diáspora sobre as ilhas e das ilhas sobre o Mundo. Para isso, é preciso olhar­‑se para o livro infantil como um intercâmbio de emoções e sentimentos que precisa de espaço económico para produção de saberes e arte. Arte de representar as conversações letradas. Porém, as nossas crianças são tidas como actores da leitura que já subiram ao palco (onde estão pouco representadas) mas ainda não se assistiram como público da leitura silenciosa e visual porque o Estado ainda não proporcionou o mercado possível. Num país como Cabo Verde, de poucas terras aráveis, a leitura assemelha­‑se a abrir roços no terreno das palavras. Desta produção feita com a enxada de tinta brotarão leitores, autores e pensadores, provando que cada livro é um fragmento e cada criança­‑leitora uma totalidade.

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DIÁSPORA, INSULARIDADE, POESIA E MÚSICA!* HÉLDER FORTES

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into­‑me sem sombras de dúvidas um privilegiado por ter nascido cabo­ ‑verdiano, de ter aberto os olhos ao mundo nestas ilhas nuas e despidas, de o meu umbigo ter sido enterrado no pó seco do meu Cabo Verde, e de ter aprendido a falar na língua dos meus antepassados, dos meus avós, do meu pai e da minha mãe – no crioulo, a minha língua materna! O meu orgulho em ter nascido neste país insular, ímpar, singular, peculiar, nada usual e sem igual é imensurável, algo inexplicável, pois não troco este cantinho – que foi denominado por dez grãozinhos de areia no meio da imensidão que é o oceano atlântico –, por nada! É que, para mim, aqui é a morada do amor, da paz, do sossego e da tranquilidade, pois tudo se encontra numa suave e perfeita harmonia! Às vezes, sem querer, dou por mim questionando a insularidade e o afastamento das ilhas dos continentes, se foi opção nossa, ou se fomos simplesmente negados pelos continentes! Sorte ou azar, das duas, uma! Mas a distância e o afastamento não nos isola do resto do mundo, é que o mar que escancara e esfrega a sua tamanha beleza nos nossos olhos abriu e continua a abrir horizontes a este povo flagelado pelo clima insular! Diante de cenários puramente obscenos e pornográficos, vales e cutelos completamente despidos, exibindo as suas intimidades sem qualquer tipo de pudor, o meu povo não se amofinou, agarrou­‑se ao mar, com a mala carregada de esperança e dotado de um único documento, a coragem de trabalhar, e assim se aventurou pelo mundo fora,

*Com Acordo Ortográfico

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à procura do sustento dos que por aqui ficaram! Com esta dispersão, a chamada emigração, deu­‑se início à nossa Diáspora que, com o passar dos anos, foi crescendo e nos dias de hoje a comunidade que vive lá fora é superior à que reside no país! Do ventre da insularidade, o rebento que recebeu o nome de Diáspora Cabo­‑verdiana! Se a insularidade é quem deu à luz, logo, a mãe da Diáspora, ela é a avó da poesia e da música, pois os encontros e desencontros, a alegria que se vivencia na hora do regresso e da chegada, a tristeza que simboliza a partida para terra longe, a saudade, a ânsia de partir e a fome de regressar, os amores desfeitos com o zarpar dos vapores, o desgosto causado pela separação, a angústia causada pela clandestinidade, o desespero pela legalização, as dificuldades na integração, a discriminação, esta jornada do crioulo fruto da insularidade que o fez seguir para outros cantos do mundo em busca de novos encantos, que em muitos casos não passaram de meros desencantos, tudo isso rabiscado de forma poética, dá lugar a poesias fantásticas e a poetas intemporais e imortais. Desta poesia e destes poetas, aquando musicados com as influências dos vários ritmos embebidos na nossa vasta Diáspora, nasce a nossa música que, interpretada e cantada por vozes dóceis e inconfundíveis, faz qualquer povo dançar!

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HOMENAGENS

CORSINO FORTES, por Germano Almeida ARMÉNIO VIEIRA, por Ondina Ferreira


Corsino Fortes | Fotografia de Pedro Matos / Nรณs Genti


HOMENAGEM ao POETA CORSINO FORTES* por Germano Almeida

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stou aqui, em nome da UCCLA, para trazer algumas palavras em forma de Homenagem ao poeta Corsino Fortes que, há menos de um ano, deixou de estar entre nós em convívio físico. Lembro­‑me, teria eu à volta de 15 anos, estávamos em casa a ouvir o noticiário, quando a rádio anunciou muito sentidamente que o poeta José Lopes tinha acabado de falecer. Foi uma consternação, porque ele tinha estado alguns anos na Boa Vista, onde tinha deixado muitos amigos e escrito muitos poemas cantando quer a ilha quer as pessoas. E lembro­‑me de ouvir um tio meu dizer, de repente, certamente lembrado da imensa produção do poeta, “Homens como José Lopes não morrem, apenas tombam!” Tal como o meu tio para com José Lopes, também recuso para Corsino Fortes a designação de defunto, porque ele vai continuar presente entre nós por muitos séculos, através da ímpar obra que soube pacientemente construir e nos deixa como herança de inestimável valor. Creio poder afirmar, sem receio, que continua a haver na nação cabo­‑verdiana um evidente défice de reconhecimento para com aqueles que, ao fim e ao cabo, acabaram por corporizar, quer através da escrita, quer através de outras formas de manifestação cultural, o sentimento de nacionalidade que as circunstâncias da nossa *Com Acordo Ortográfico

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história não deixaram que se confundisse com nenhuma outra, até finalmente desembocarem na nossa independência, em 1975. Há toda uma plêiade de homens nobres a quem Cabo Verde deve deferência, respeito e homenagem.

Somos um povo com história. E por isso seria importante sermos tam‑ bém um povo com memória.

A nossa memória coletiva, a nossa autoestima, é construída, não pelas fomes que nos devastaram durante séculos, não pelas misérias das roças de São Tomé, das quais sobrevivemos, ao mesmo tempo que temos a habilidade de as esquecer como se nunca tivessem existido, mas pelos feitos de que nos orgulhamos, levados a cabo por aqueles que vieram antes de nós e nos deixaram um legado histórico aos mais diferentes níveis. Quando, por exemplo, um poeta como Ovídio Martins sustenta que “Morremos e ressuscitamos todos os dias, para desespero dos que nos impedem a caminhada”, mais não está a fazer que a afirmar a imposição de uma perenidade que é como que uma marca nacional, a saber, a marca da sobrevivência a todo o custo e a qualquer preço e que por isso tem desafiado a terra, o mar e os céus para continuar a recusar perecer. Podemos orgulhosamente falar de cabo­‑verdianos em todos os ramos do conhecimento. Desde sempre encontramos nacionais nossos ligados às mais diversas profissões de notoriedade, e também às mais diversas formas de arte e sua expressão. Mas, se nos quisermos restringir apenas ao nível da literatura, e é lógico que assim seja, já que estamos aqui a prestar homenagem a um poeta, vamos encontrar uma forte presença de cabo­‑verdianos nesse específico ramo das artes humanas. Podemos começar por José Evaristo Almeida, autor do romance O Escravo, passar pelo já referido poeta José Lopes, pelo panfletário Loff de Vasconcellos, pelo historiador Sena Barcelos, pelo poeta, político, jornalista e dramaturgo Eugénio Tavares, pelo jornalista e poeta do crioulo Pedro Cardoso – isso para falar apenas de alguns pré­‑Claridosos. Depois desses, temos o grupo dos Claridosos: Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes, Jorge Barbosa... E temos também um outro intelectual nacional, infelizmente muito pouco lembrado, e que é o grande ensaísta João Lopes, diretor da revista Claridade a partir do seu nº 3. Claridade é um marco literário, no sentido de haver um antes e um depois da Claridade. Numa entrevista dada ao professor Michel Laban, em julho de 1984, o escritor Teixeira de Sousa, sem dúvida com acentuado exagero, chama à literatura anterior à Claridade de “choradeira descolorida”, referindo­‑se aos poetas e prosado0148


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res cabo­‑verdianos que, diz, punham nos seus escritos flores, pássaros, figuras mitológicas ou reais, situações e sentimentos que nada tinham a ver com o nosso país, contrapondo­‑os aos Claridosos que vieram acabar com essa choradeira alienada e alienante, fincando os pés na terra e criando finalmente uma literatura do concreto, do quotidiano das ilhas, na verdade a primeira afirmação de uma literatura retintamente cabo­‑verdiana. Esse grupo claridoso é tanto mais importante, quanto é certo que viria a influenciar diretamente as gerações seguintes, numa primeira vaga, escritores como o próprio Teixeira de Sousa, que colaborou no nº 5 da Claridade, saído em 1947 e, anos mais tarde, uma nova geração, já mais politicamente consciencializada, e a que pertenceram pessoas como Arnaldo França, Nuno Miranda, Orlanda Amarílis, Tomás Martins, Ovídio Martins e, posteriormente, escritores e poetas como Gabriel Mariano, Júlio Martins, Teobaldo Virgínio, Onésimo Silveira… Esses são alguns dos cabo­‑verdianos de que nos devemos orgulhar e que deve‑ mos homenagear E, entre eles está, por direito próprio, o poeta Corsino Fortes. A primeira vez que Corsino Fortes e eu falámos um pouco mais longamente foi um dia qualquer depois que publiquei o livro O meu poeta. Eu sabia da existência de Corsino Fortes fora de Cabo Verde, primeiro em Angola e, depois, como embaixador em Portugal, conhecia alguma da sua poesia desde o tempo da Antologia dos Modernos Poetas Cabo­‑verdianos, publicada em 1961 no âmbito das comemorações do achamento de Cabo Verde, tinha lido Pão & Fonema, mas nunca tinha calhado encontrarmo­‑nos. E, nesse dia, ele parou­‑me na rua e disse abruptamente e com o seu escancarado sorriso: “Alguém já disse que o teu poeta sou eu, mas nós dois sabemos que não é verdade!” Sorri também: “Manobras da reação”, respondi (era uma frase que estava muito na moda na época), mas também traduz a ausência de espírito crítico nacional. Porque a única coisa que o Meu Poeta tem em comum com Corsino Fortes é que ambos se vestiam de branco. De resto, não havia qualquer outra semelhança entre eles: tinham percursos diferentes, preocupações diferentes e, por isso mesmo, uma diferente forma de estar na sociedade. Eu já conhecia o poeta Corsino Fortes desde o tempo da Antologia dos Modernos Poetas Cabo­‑verdianos, onde ele surge colaborando com três poemas, dois dos quais, “Noite de S. Silvestre” (publicado no nº 9, 1960, da revista Claridade) e “Ode para além do choro”, de 1961, já antecipam as preocupações, a temática e a linguagem 0149


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que virá a usar na sua trilogia A Cabeça Calva de Deus, obra épica que, dentro das devidas proporções, podemos comparar aos Lusíadas, à Canção de Rolando ou à Eneida – pois todos eles têm como ambição cantar um povo, na sua história, nas suas desgraças, nos seus anseios e nas suas glórias. Há autores que fazem questão de solenemente afirmar que o seu compromisso, o seu engajamento, é exclusivamente com a sua obra, pouco preocupados com o destino desta ou com a sua utilização, como se estivessem apostados numa espécie de criação de uma arte pela arte. Pode ser uma opção respeitável, essa pretensão, até pelo facto de existirem filosofias que defendem uma arte apenas preocupada com a beleza, a estética, o lúdico, esgotando­‑se nisso a sua finalidade na sociedade. Bem, Corsino Fortes não padece deste prurido. Talvez muito antes de Amílcar Cabral o ter dito expressamente, ele já tinha intuído que “toda a revolução é um acto de cultura” e, por isso, desde sempre a sua arte é uma arte engajada, comprometida. Comprometida com a sua terra, com o seu povo, numa busca incessante da mais nobre forma poética de melhor afirmar um orgulho de pertença, o orgulho de viver neste chão “ano a ano / crânio a crânio /”. A sua poesia quer mostrar como é heroico o povo das ilhas na sua luta contra uma terra pobre, avara, seca, onde até a chuva é um “bode macho capado” que não poucas vezes obriga à emigração em busca da sobrevivência noutras paragens, incluindo vender “Kamoca food nas ruas de New York”. Porém, sempre de olhos fixos na esperança de um regresso num dia, quando os “tambores rompem / a promessa da terra / com pedras / devolvendo às bocas / as suas veias / de muitos remos /”. Corsino Fortes é o poeta que quer a qualquer preço despertar o orgulho cabo­ ‑verdiano. O seu desígnio é claramente transformar o profundo sentimento de nacionalidade, essa ideia de pertença comum a todos os cabo­‑verdianos, na afirmação de um nacionalismo quase feroz, mas que tenha a virtude de fazer com que se sonhe um Cabo Verde que se projeta no mundo, um Cabo Verde que seja o chão dos nossos sonhos. No poema “Recado d’Umbertona”, Corsino diz­‑lhe: “Vai e diz ao povo de Tchuba Tchobê que se as pedras do chão são letras, a planta dos meus pés é uma escola, porque os meus pés são largos, os meus pés são grandes e o mundo é um dedal num dedo meu”. Este Corsino de Pão & Fonema já pouco tem a ver, melhor, está longe do Corsino da “Noite de S. Silvestre”, a tal “meia­‑noite corrosiva e ambígua / que nem aconchega no seu manto / os sorrisos órfãos das alegrias que fenecem / que nem ressoa as doze badaladas / que saem em retalhos do seu ventre / e os transforma em prantos / no lago perene da minha angústia / que nem reflecte a cândida luz / que pende dos olhos nublados / das avezinhas nocturnas /”. 0150


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Os livros que formam A Cabeça Calva de Deus são uma nova dimensão de Corsino Fortes. Trata­‑se, como alguém já escreveu, de “um discurso em ascensão, em que o poeta gradativamente incorpora e ressignifica elementos simbólicos do universo insular, encenando experiências da realidade cabo­‑verdiana, histórias do próprio sujeito e da linguagem, com o objetivo de constituir uma memória coletiva do grupo”. Fortes, em um ato de consciência histórica, reflete, enfim, sobre a «independência do povo de Cabo Verde» no sentido de construção e valorização de uma identidade «em curso», em constante processo de transformação. Para isso não hesita em apelar para a mais completa autoestima nacional, aquilo a que chamamos a nossa plena bazofaria para dizer que “se a ONU escolher Cabo Verde como uma vela / o mundo não dormirá no escuro”. E, a seguir, num gesto de profunda humildade e bom senso, pede a Deus que nunca nos ajude a unir estas dez ilhas. “Porque se unidos, amalgamados ossos com ossos, rochas com rochas, estes dez pedaços, daríamos um golpe de estado no paraíso.”1 Nada desse exagero é inocente. Pelo contrário, acaba todo ele por ser pensado como um projeto, como o próprio Corsino Fortes disse numa entrevista: “Acaba por ser todo o projeto de independência do povo de Cabo Verde, em que Pão & Fonema representa, de facto, os símbolos daquilo que é fome, daquilo que é a realidade de Cabo Verde durante séculos, e, por outro lado, a exigência pela palavra, liberdade e cultura. Em Árvore & Tambor já há a materialização do “pão”, no sentido dos instrumentos de produção do país e toda a comunicabilidade do arquipélago com África e o mundo. Pedras de Sol & Substância é a substancialização solar desta realidade. Há uma materialização de aspetos, não só de ordem literária, mas também de ordem pictórica e musical. É tudo aquilo que pode significar a identidade deste espaço, e dos que o habitam, dentro e fora do arquipélago.” Termino, pois, esta breve homenagem ao poeta Corsino Fortes com uma citação de Hegel: “O homem livre não é invejoso. Aceita de boa vontade aquilo que é grande e regozija­‑se de que tal possa existir”. E Corsino Fortes é grande entre nós e devemos ser orgulhosos de ele existir.

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Excerto do poema "Golpe de Estado no Paraíso", em Árvore & Tambor. Instituto Caboverdiano do Livro, Publicações Dom Quixote, 1986. 0151


ArMénio Vieira | | Fotografia de Pedro Matos / Nós Genti


HOMENAGEM ao escritor ARMÉNIO VIEIRA* por Ondina Ferreira

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ntes de entrar propriamente no que aqui me traz, e uma vez que é sobre “Arménio Vieira, o cultor da Língua de Camões”, chamava aqui as palavras do escritor Germano Almeida, quando reitera e afirma a sua ligação à Língua Portuguesa ao retratar bem o seu ambiente linguístico/cultural: (…) eu cresci alimentado por ambas (a língua portuguesa e a cabo­‑verdiana) sem nunca diferenciar qual das duas era mais suculenta pois que as usava indiferentemente, e por isso ambas fazem parte do que eu sou, razão por que não quero viver sem nenhuma delas, sei que perder uma me amputaria em metade. (…)”. Creio que a geração a que pertenço se revê, se não na totalidade, pelo menos em parte significativa, nesta afirmação em que ouso incluir também o poeta Arménio Vieira. E porque também a linguagem poética de Arménio Vieira é construída substantivamente através deste seu ser cultor da Língua Portuguesa, evoco, a propósito, as palavras do conhecido poeta Manuel Alegre, que chama à Língua Portuguesa, «a música secreta» e sobre ela escreve: “Há na minha língua uma página chamada Atlântico, onde há sempre uma viagem que não acaba até outros mares e outros poemas. (…) Nas suas harmonias, nas suas dissonâncias, nas suas vogais azuis e verdes e nas suas consoantes sibilantes. Tem a cor do mar e o assobio do vento. Amo essa cor, esse assobio, esse murmúrio. E o cheiro a alga e sal (…)”. (Fim de citação). *Com Acordo Ortográfico

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Posto isto, passo ao tema. Sobre Arménio Vieira Falar sobre Arménio Vieira é sempre um prazer. Acrescido do facto de ser uma grande honra trazer para aqui tão grande poeta! O nosso Prémio Camões! Arménio Vieira, poeta, escritor, jornalista, professor, crítico de cinema. A sua poesia e a sua ficção de há muito ultrapassaram as nossas fronteiras geográficas e hoje são pertença não só da cultura cabo­‑verdiana, mas também da literatura lida, estudada e analisada em Língua Portuguesa no espaço da lusofonia, e ainda traduzidas para outras línguas e culturas. Costumo dizer que o poeta nasceu na cidade da Praia, cabo­‑verdiano de origem e de vivência e (aqui também caberia um “mas”) de pena universalista. Sim, os textos de Arménio Vieira, quer sejam em poema ou em prosa, e esta última é quase sempre poética, fazem jus a este “universal” que existe e que caracteriza o seu ser poeta. Com efeito, a sua formação poética, cultural e histórica – na minha opinião, como leitora aficionada dos textos e poemas de Arménio Vieira –, revela­‑se quase toda ela “bebida”, fundada, na cultura dita europeia ocidental. Ele parte da clássica greco­‑latina, passa e passeia­‑se (o poeta) pela história e pela literatura europeia, a mais erudita, com ênfase na portuguesa, na francesa, russa, inglesa, alemã, entre outras, indo até à americana e, algumas vezes, num jogo simbólico muito peculiar, este poeta consegue prefigurá­‑las, transferi­‑las e contextualizá­‑las para as ilhas desta “macaronésia” atlântica sempre indecisa e adiada. Senhor de uma erudição e cultura portentosas, Arménio Vieira dá­‑se ao luxo de “jogar”, de “brincar”, de construir e de desconstruir também, através de “trocadilhos” poéticos, com essa cultura imensa que possui, e que reelabora numa constância e em profundidade, como, aliás, prova tudo o que vem escrevendo. No fundo, à boa maneira dos eleitos, aos quais ele pertence, intelectualmente falando. Os seus textos como que extraem a essência filosófica desse lastro cultural que o sustenta, como também reflectem a mundividência experimentada e teorizada por um observador de todo especial. Para além de aliar a isso tudo a poesia, que parece que lhe é inata. Ora, é o próprio poeta que dita o «Ser Poeta»1: “Sem cuidar do tempo / que os pon‑ teiros gastam / Entre a débil consoante / (Pela qual o navio Se faz ao mar) E a exausta vogal / Com que termina / A viagem / Me dou ao ofício / De escrever poesia.”

Vieira, Arménio, O Brumário, Biblioteca Nacional de Cabo Verde e Publicom, 2013, p. 91.

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Pois é, entre o “tempo” ou a ausência dele, no início e no final da “viagem”; com a habilidade tecedeira de uma “aranha”; a beleza da “rosa;” e a (im) precisão de um “número”, simbólicos e alegóricos, assim o poeta cria e escreve o seu poema. Mas igualmente num poema inserto num dos seus últimos livros da trilogia de O Brumário e em jeito de situar o leitor, o autor prevê e justifica o destino dos seus versos. A poesia é o “baralho do poeta” com que “…os loucos tentam o póquer que os salve” 2. “Estes versos acerca dos livros / e da gente terão o destino / com que os deuses sela‑ ram as criaturas, / incluindo quem, pelo melhor / de todos os poemas, / previu o fim da tabacaria em frente / mais a tabuleta e o dono dos cigarros, / e de quantos loucos, dos quais, / pelo mágico baralho do poeta, / tentam o póquer que os salve.” O poeta, munido com estas preciosas “ferramentas”, chamemo­‑las assim, mais a estilística que ele auto­‑recria em estética própria e original; com isto tudo interligado e interdependente, o poeta configura os seus poemas – textos prodigiosamente melódicos e poéticos, que nos deliciam. Na escrita de Arménio Vieira há também questões de sempre, inquietantes e existenciais, com que o poeta nos interpela. A morte, por exemplo. Por outro lado, e do que mais gosto e aprecio na poesia de Arménio Vieira, é a sua assombrosa capacidade de, através da comicidade da linguagem, parodiar, em tom jocoso, irónico, por vezes mordaz, temas vários, personagens e personalidades reconhecidas do mundo das artes, do cinema e da literatura, e utilizar amiúde a chamada linguagem de carnaval, da paródia ou a menipeia3 que ele tão bem desenvolve e aplica na sua linguagem criativa literária. Esta linguagem, sobre a qual teorizou, e bem, Júlia Kristeva, aliás autora curiosamente conclamada pelo poeta e trazida à cena poética num dos textos incluídos em O Brumário. De facto, e retomando, há um riso paródico e uma finíssima ironia em muitos textos de Arménio Vieira, cujos sentidos, porque plurissignificativos, residem no tornar comum ou no chamado “destronamento” de quase tudo que é tido por elevado, dogmático ou sério. Repito que fortes influências desta discursividade carnavalesca são visíveis em muitos dos textos de Arménio Vieira. O poeta por vezes brinca e/ou ironiza com a chamada poesia épica, laudatória, que narra em versos heróis, os seus feitos ou cometimentos bélicos.

Idem, p. 18. Sátira

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Em sentido oposto, aquilo que há de elevado e humanamente comovedor nas pessoas, nas criaturas, temo­‑lo bem descrito e sentido pelo poeta em muitos dos seus poemas narrativos e/ou dialogados. Apenas uma ilustração disso. Um exemplo que achei muito terno, muito afectivo e solidário foi aquele com que Arménio Vieira brindou os mais velhos da literatura e da cultura cabo­‑verdiana, se quisermos, generalizada numa frase: os Homens da Claridade. Vamos encontrá­‑lo exactamente no texto “Bisca Tropical” 4. “Imaginem este quadro, surreal e jocoso: Praça Nova (1936). Jaime Figueiredo jogando a bisca versus Rendall Leite, o douto germanista. Subitamente, Figueiredo joga o ás sobre um duque. Nhô Djunga Fotógrafo, fingindo­‑se irritado, exclama: ‘Homessa! Será que o Pavão de Lata foi quem o mandou jogar o ás?’ Manuel Lopes diz: ‘Não respondo à pergunta, que eu não vi nada.’ Baltasar Lopes solta uma estrondosa gargalhada. ‘Vá lá que o Jaime nunca soube o que é um jogo a doer’, pensou mas não disse. Jorge Barbosa diz: ‘Figueiredo precisa de óculos, é só ir ao João Lopes.’ Aurélio Gonçalves conclui indulgente e filosoficamente: ‘Figueiredo distraiu­‑se, acontece aos melhores.’ Para terminar, falou Jaime Figueiredo: ‘Alucinação alcoólica, sou um barco ébrio.’ Rendall Leite de pé: ‘– game is over, adieu sweet Prince.’ Manuel Ferreira, o cronista, chegaria ao Jardim de Epicuro, ou seja, à referida praça, quando rebentou a guerra de todas as guerras, razão por que de tal bisca a céu aberto não fez menção nem registo. Em tempo: faço­‑o eu, nascido Cinco Anos Depois, por coincidência a única fita que Marlon Brando assinou. P.S. – O Pavão de Lata, um hipotético romance de J. Figueiredo, continua a ser um mistério. João Cleofas Martins (Nhô Djunga), à semelhança de Juan Rulfo, era prosador e fotógrafo. O restante, excepto as pessoas nomeadas, é pura ficção. Nota final à guisa de epitáfio: à data eram personagens em busca de um palco. Quem nos dera tê­‑los de novo, ainda que seja para a bisca do adeus.” Ora bem, com o estilo a que nos habituou, o poeta inscreve nos seus textos, em larga medida, duas das suas múltiplas dimensões: uma, a de jogador de xadrez,

Vieira, Arménio, Derivações do Brumário, Edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde e Publicom, 2013, p. 31.

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o qual, no seu ambiente, na cidade da Praia, já tem lugar cativo. E a outra, a de crítico de cinema que Arménio Vieira fora outrora. É assim que nos traz à ribalta (através de memórias inscritas em alguns poemas) grandes clássicos e eternas fitas cinematográficas que nos ficaram inesquecíveis, com os nomes dos seus realizadores e dos actores celebrizados pela memória fílmica. Há um trecho muito interessante que é um pequeno documentário ou, mesmo, um take, qual realizador de filme, que Vieira nos dá em “Post Scriptum”5: “Imaginemos a seguinte bizarrice: Quelha de Londres, cerca de 1918. Em vez de Jack o Estripador matando senhoras, vêem­‑se três terríveis tigres – Adolf Hitler, Benito Mussolini e Vladimir Lenine, de cassetete e apitos à Gestapo, correndo atrás de Charlot, o Judeu vagabundo, o qual, tremendo, tal um coelho entre a parede e o pau, é salvo por Fernando Pessoa, de guarda­‑chuva em riste e de cigarro na boca. Coincidências: os cinco, sem exclusão usam brilhantina e cuecas de nylon made in England. Pessoa, porém, é o único que perfuma as cartas de amor e fuma tabaco. Filme de quinze minutos, mudo é claro, dirigido por Charles Spencer Chaplin, segundo uma ideia do Conde Silvenius6.” Do mesmo modo, o tal jogador exímio de xadrez, que é Arménio Vieira quando simbolicamente transplantado para a escrita poética, e poeta, ele faz­‑nos perceber, de forma subtil, através de peças colocadas num tabuleiro quase cósmico, que nos está a transportar para um xadrez mais complicado que é, afinal, a própria vida. Arménio Vieira, ao longo dos seus poemas, como que desafia o leitor para uma revisitação, de que ele dá o exemplo; ou mesmo para uma leitura inaugural das obras dos grandes nomes da literatura e de vultos da História universal e, neste ponto, sou tentada a dizer que o poeta emerge aqui, neste particular, com uma dimensão pedagógica. Ele faz isso não só citando­‑os, mas também fazendo­‑os interagir em imaginados diálogos, entre personagens e entre os entes históricos (escritores) que as criaram e que o poeta constantemente convoca nos seus textos­‑poemas. Não obstante toda essa abrangência e esse todo panorâmico no modo de ver, no olhar, e no fazer poético que possui, mesmo assim, e de forma diferenciada,

Vieira, Arménio, O Brumário, Biblioteca Nacional de Cabo Verde e Publicom, 2013, p. 93. Pseudónimo usado por Arménio Vieira.

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Arménio Vieira faz­‑se acompanhar no seu caminhar poético de alguns distintos companheiros que, ouso dizer, mais presentes, mais constantes, mais próximos da sua senda poética, ele ora cita, alegoriza, metaforiza, ora recorda num real quase vivenciado. E isto em vários textos. Apenas para exemplificar, mencionarei, distinguindo, Camões, Borges e Fernando Pessoa e, a propósito deste último, no dizer de Luís Carlos Patraquim (Mitografias, Poemas na Vertical) e cito: “Percebemos que o homem e a obra, mais o formidável desdobramento heteronímico... é uma presença na poesia de Arménio Vieira. Não uma influência angustiante... com ele, Arménio Vieira dialoga, glosa, recombina, sacoleja em mordaz ou empático novo lançamento de dados” (Fim da citação). De facto, encontramos em muitos textos de Vieira esta intertextualidade pessoana transfigurada. Outros poetas há também que foram seus compagnons de route, os quais, de forma real e vivida, são recordados em alguns poemas. Um deles é, sem dúvida, Mário Fonseca. Sobre este último, vale também dizer que são, ou foram – uma vez que Mário Fonseca nos deixou –, poetas de uma mesma geração e que, de certa forma, juntos iniciaram a que depois seria uma longa e profícua caminhada poética, que teve os seus inícios no antigo Boletim Cabo Verde, no Seló. Juntos, participaram em colaborações dispersas em várias revistas literárias, apenas para citar, Imbondeiro e Vértice, entre outros periódicos. “O Mar e as Rosas” é o poema dedicado exactamente à memória do saudoso poeta Mário Fonseca. Tratou­‑se de um facto. Passou­‑se na vida real. Mário Fonseca perdera os manuscritos do livro e andou um ror de anos em busca deles. Creio que assim Arménio Vieira o celebriza e o imortaliza neste quase soneto e através do título homónimo da obra perdida. Outro poema em que Mário Fonseca é evocado ao lado de um grande nome da poesia portuguesa, Fernando Assis Pacheco, também já desaparecido do mundo dos vivos, é o poema “Epitáfio”7. Pois bem, a poesia de Vieira corporiza­‑se numa tal subtileza imagística que a plurissignificação das palavras escolhidas, a linguagem metafórica, culta, multifacetada, a beleza rítmica, a musicalidade versatória, entre outros atributos que distinguem os bons textos poéticos, atingem plena valorização nos poemas de Arménio Vieira. Mesmo para terminar e perceber o “estar” e o “sentir” do poeta, temos o poema “o estar só entre muita gente” 8:

Vieira, Arménio, Derivações do Brumário, Edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde e Publicom, 2013, p. 30. Vieira, Arménio, O Brumário, Biblioteca Nacional de Cabo Verde e Publicom, 2013, p. 14.

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“Estar só entre as gentes / magnífica antítese, / nada melhor do que isto. / Quem o disse e na pedra o gravou / foi um Camões errante e amoroso. / Venha agora a nave que me leve / a uma ilha (...) ... Alternância e não antítese / é quanto pude achar, / já que, das muitas rosas / que eu vi em nove ilhas e no resto / nunca fui a metade.” Pois bem, usando o mote camoniano, o poeta expressa as suas emoções, ora doces, ora amargas, o seu isolamento interno, o seu sentir­‑se incompleto. O poeta, afinal – numa espécie de fio condutor dos seus poemas –, releva com ironia e com alguma complacência as partidas pregadas por algo que pode ser nomeado de Destino. Assim, Arménio Vieira nos conduz ao seu mundo interior, à consciência da sua solidão, às suas ilusões e decepções e à maneira como ele percepciona e vê o mundo.

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SOBRE A LITERATURA DE CABO VERDE O VI EELP visita a Cidade Velha

LITERATURA CABO­‑VERDIANA: FINCAR OS PÉS NO CHÃO DAS ILHAS – O VERSO E O ANVERSO DA LITERATURA CABO­‑VERDIANA, por Nuno Rebocho ASPECTOS SOCIOCULTURAIS NA LITERATURA CABO­ ‑VERDIANA, por João Lopes Filho


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SOBRE A LITERATURA DE CABO VERDE Da esquerda para a direita, Nuno Rebocho e João Lopes Filho


LITERATURA CABO­‑VERDIANA: FINCAR OS PÉS NO CHÃO DAS ILHAS O verso e o anverso da literatura cabo­‑verdiana* NUNO REBOCHO

Amigos,

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abe­‑me abrir a sessão em Cidade Velha, preâmbulo deste Encontro de Escritores que a UCCLA trouxe até nós. Antes de passar a palavra a João Lopes Filho, que precede a apresentação de livros nesta sala, atrevo­‑me a gastar algum tempo chamando a vossa atenção para uma questão que me parece central e que defino como o verso e o anverso da literatura cabo­‑verdiana. Mas, previamente, devo alertar­‑vos para que, por certo, a maioria dos presentes estranhará que um português, como eu, opte por este tema, um lema próprio do Movimento Claridoso – “Fincar os pés no chão das ilhas”. Nesta opção pesa o preito pelas ilhas onde me acolhi e nas quais me alapei há já longos anos, e também o hábito de procurar identificar­‑me com os “mundos novos” onde, acidentalmente e incidentalmente, me alojo: assim aconteceu em Portugal, em Espanha, na Córsega e, de certo modo, também no Brasil. Este modo de ser camaleão, de me adaptar inteiramente ao meio onde me instalo, apenas não funcionou – direi, por enquanto – em Moçambique, onde vivi a minha infância e juventude, onde cresci e me identifiquei, considerando­‑me em consequência tanto português, por nascimento, como moçambicano, por educação. De facto, os lugares onde alguém cresce e desenvolve a sua meninice e juventude serão pátrias – ou mátrias, como lhes chamava a saudosa Natália Correia – que enformam as pessoas, a sua sensibilidade, o seu pensamento. *Com Acordo Ortográfico

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Com Cabo Verde me identifiquei por mãos do Manuel Ferreira, já nos distantes anos de 1963/64. Guardo do seu convívio numa leitaria do Rossio, em Lisboa, uma amizade que me arrastou à leitura da sua Hora di Bai e a um primeiro contacto com as referências a Eugénio Tavares, a Baltazar Lopes da Silva, a Manuel Lopes. E outros cabo­‑verdianos surgiram nas minhas leituras quase iniciais, como Daniel Filipe e João Vário. Dir­‑se­‑ia que, desde a minha iniciação ao prazer da leitura e da escrita, a apetência pela diversidade lusófona ficou a marcar­‑me, continuando uma atração vinda desde os tempos do Núcleo de Arte, em Moçambique, tendo então descoberto o meu condiscípulo Luís Bernardo Honwana, Rui Knopfli, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Reinaldo Ferreira, entre muitos outros. Julgo que o meu velho professor Cansado Gonçalves teve alguma influência nos gostos que, desde muito novo, me orientaram. Anos mais tarde, já em Lisboa e homem feito, a amizade com José Luís Hopffer e José Luís Tavares projetou­‑me para um melhor conhecimento das letras cabo­‑verdianas. Foi assim – com o contributo direto e indireto de ilustre gente – que, passo a passo, fui empurrado para este “chão” a que circunstâncias diversas me projetaram e com o qual o tempo e o país das pessoas me identificaram. Quis o acaso dos encontros muitos, e de alguns desencontros (é bom que se diga), ter achado quem me desse a mão colaborante nas peregrinações pelo estranho mundo das letras. E, lendo aqui e conhecendo acolá, me enterrei por completo no chão crioulo de uma cultura que também passou a ser minha. Esta recordação era aqui necessária, exigindo a evocação dos manes que me trouxeram às letras de Cabo Verde. Com o seu percurso, que o Movimento Claridoso moldou, a literatura cabo­‑verdiana encontra a sua firme afirmação em Eugénio Tavares, com uma inspiração por vezes petrarchiana, para marchar ao encontro da magnífica autenticidade desbravada por um certo pasargadismo que, aliás, o Movimento da Claridade claramente expressa. Convirá lembrar­‑vos que há quem descubra nos Claridosos um “evasionismo” ultrapassado por Olívio Martins e seus pares: são formas de ver com as quais não comungo. É a realidade cabo­‑verdiana uma encruzilhada de mundos – espelhada no seu crioulismo –, que nos autores de Claridade transparece, e não uma visão apátrida. Basta ler com alguma atenção a obra de Manuel Lopes, de Baltazar Lopes da Silva/Osvaldo Alcântara, de João Lopes ou Jorge Barbosa para entender a carne que, com dificuldade, crescia em torno do osso colonialista. O relativamente serôdio pan­‑africanismo, que alguns incensam, de nenhum modo apaga a componente de 0164


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expressão portuguesa e brasileira: a dualidade das origens é própria da mestiçagem cultural da cabo­‑verdianidade. Pretender recusar o contributo desta vertente é fechar a porta à aceitação da poesia de Arménio Vieira, de Osvaldo Osório, de José Luís Tavares, de Filinto Elísio ou de Jorge Carlos Fonseca. Como a rejeição da outra vertente implica recusar a autenticidade cabo­‑verdiana de um Timóteo Tio Teofe ou de um Kaká Barbosa, por exemplo, acerrimamente aferrados a um “nacionalismo literário” que, ao cabo e ao resto, é igualmente herdeiro do barbosianismo. Quer isto dizer que, na minha opinião, o terra­‑longismo acaba por ser outra expressão do finka­‑pé na txon já reivindicado por esses homens da Claridade. Não o compreender é frontalmente recusar a essência mestiça da crioulidade. E, sem isso, não se compreende a riqueza que emerge das obras de Manuel Lopes e de Teixeira de Sousa, hoje a chamar a atenção para o desbravar de caminhos que Germano Almeida nos traz. É para este aspeto dual – a um tempo “nacionalista” e a um tempo “evasionista” (ao cabo e ao resto, a realidade crioula) – que desejo chamar a atenção: é um caso especial da cultura lusófona que recebe outros afluentes, como o do modernismo maravilhoso/mágico de um Fernando Monteiro ou o do idealismo franco­‑africanista de um Mário Fonseca ou o sincretismo de um Corsino Fortes. Não se esgota aqui a diversidade da literatura que se descobre nestas ilhas, nem é essa a minha intenção. Quando os estudiosos discutem, e mesmo opõem, vertentes da mesma realidade, prefiro chamar a atenção para o caráter redutor de tais estudos, que merecem o meu discordante respeito. Que me seja permitido ainda aqui recordar um nome que nos acaba de deixar: Pedro Duarte. A sua poesia pós­‑claridosa merece especial atenção. E o seu romance, Manduna de João Tiene, é um dos grandes frescos da realidade de Cabo Verde no primeiro quartel do século XX, nele se repercutindo muito da sua vivência. Pedindo desculpa das demasiadas palavras que deixo em abertura desta sessão e que abusaram da vossa paciência, passo a palavra a João Lopes Filho.

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ASPECTOS SOCIOCULTURAIS NA LITERATURA CABO­‑VERDIANA* JOÃO LOPES FILHO

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cabo­‑verdiano desenvolveu uma cultura específica, resultante da miscigenação e interpenetração sociocultural das várias etnias europeias e africanas que se cruzaram na formação da sociedade local. É evidente que a todos estes fenómenos não se poderiam alhear as mais diversas expressões literárias profundamente radicadas nos suportes ambientais e sociais do arquipélago. Daí que, quer através da poesia ou da ficção, os escritores cabo­ ‑verdianos foram dando o seu testemunho, ao longo dos tempos, acerca do quadro vivencial de Cabo Verde. Assim, no “corpus literário” cabo­‑verdiano detectam­‑se aspectos socioculturais baseados em estruturas mentais ou conceptuais elaboradas através de uma rede categorial – “a visão do mundo insular” – como sejam o arquipélago, o mar, a chuva, a estiagem, a seca, a fome, a evasão, a viagem, a emigração e a liberdade… É todo um quotidiano girando à volta de dois eixos complementares: a terra e o mar. Entre estes dois pólos situa­‑se o imaginário cabo­‑verdiano. De um lado matiza­‑se a comunhão substancial do homem com a terra natal; do outro, com o mar. O mar é a moldura e a terra é o seu retrato social. O ilhéu vive em dois espaços envolventes e interdependentes. Por isso, o sobrado, o casebre, a loja, o funco1, constituem o ovo, Habitação tradicional da Ilha do Fogo, construída com lava de vulcão.

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*Sem Acordo Ortográfico

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a concha, a raiz; são os elementos estáticos que se opõem dialecticamente ao espaço perpetuamente movediço – o mar. O cabo­‑verdiano transita entre os dois espaços (cada um deles pode ser entrada e saída) e deslocar­‑se é viajar. É vencer um percurso. É cobrir uma distância. Daí o desejo da viagem estar obsessivamente presente no imaginário ilhéu. É a solidão, o desejo de aventura e a insularidade “da terra pequena metida nas grades das suas contradições, avara ao futuro dos homens e úbere aos sonhos e aos anseios”.

O Homem e a Terra

Na oposição mar/ilha, a complexidade psíquica do cabo­‑verdiano pode ser definida por um conjunto de inter­‑relações geográficas, sociais, económicas e políticas. Por um lado, sente­‑se constrangido pelos limites geográficos da terra­‑mãe “nua e esquecida, seca, batida pelos ventos, ao som das músicas e sem águas, que aprisionam angústias e ânsias”. Por outro lado, liga­‑se efectivamente à “migalha de terra no meio do mar”, comungando com ela a dor da incapacidade de o sustentar, de o reter e de o fazer feliz. O condicionalismo geográfico confina o cabo­‑verdiano entre duas fronteiras: o mar, que aprisiona a terra, e a terra, que por sua vez, o sufoca e empareda. Todavia, para ele, a terra natal é mais que uma extensão, do que uma matéria: pode ser “a rocha escarpada”, o milho ou o feijão, a cachupa ou o cuscuz, o pilão ou o batuque, a cabra ou o cão, a mangueira ou o tamarindeiro, a casa ou a fonte; pode ser uma pedra ou um torrão, a morna ou o violão, um vento ou uma luz. É nestas ilhas que o cabo­‑verdiano vive os seus devaneios; é por esta terra que os seus sonhos adquirem a exacta substância; é nela que ele organiza a sua estrutura fundamental. Na força do arquipélago terra­‑mãe se reúnem as imagens do berço e do abrigo.

O Homem e a Água

Sabido de todos, a água é o elemento das transacções, das misturas e da fusão das matérias. Combinada com a terra, cria formas e substâncias, produz alimento e vida. Para o imaginário cabo­‑verdiano, a água doce é a esperança contra as ondas do mar, contra a fronteira líquida que, simultaneamente, separa e une. Num arquipélago de lestadas, de estiagens prolongadas, de secas quase cíclicas, a chuva/ água era o signo obsessivo que adquiria um estatuto de personagem principal. É 0167


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adjuvante, quando benéfica, e oponente, quando prima pela ausência ou pelos excessos inesperados e suas consequências. Por isso, sensações adormecidas explodiam no tecido da alma cabo­‑verdiana com o cheiro húmido da terra molhada, com a euforia dos campos encharcados, com a erva encabritando­‑se na pressa de aproveitar a frescura e com as promessas de fartura que viriam envolvidas “naquele ar novo das coisas lavadas”. O cabo­‑verdiano era então estimulado por um desejo muito vegetal, comungando o mesmo desejo da terra quando chegava a chuva, oiro que enchia os corações de alegria e felicidade.

O Signo da Viagem

A ilha confronta­‑se com o mar na dialéctica do próximo e do longínquo. Olhando para fora de si mesma, vê­‑se cercada de um mar que é continuidade. Mas um sentimento de isolamento envolvia o ilhéu numa espécie de insatisfação que lhe provocava o desejo de galgar distâncias ignoradas para viver a aventura libertina… “Destino de cabo­‑verdiano é o desconhecido”. A pequenez da ilha, entendida nos seus contornos geográficos e económicos, opunha­‑se à metáfora “terra­‑longe”, e o signo da viagem constituía a “pedra­‑de­ ‑toque” da evasão que se situava a vários níveis. Surgia: – De dentro, como mecanismo de evasão mental e de fuga ao real; – De fora, como imposição do contexto geográfico­‑económico. Dirigia­‑se: – Para um terra­‑longismo vago; – Para um país ideal (o reino da Pasárgada?) que se antevê como paraíso perdido ou terra prometida. O signo num destino determinado em que a viagem não se constituía em si mesma, mas uma ponte entre desejos, ou a necessidade para atingir um dado objectivo. Orientava­‑se: – Por um espaço­‑tempo indefinido embora a viagem seja concreta e real; – Pelo tempo psicológico – a viagem é onírica e por vezes conhece apenas a forma dos sonhos e das palavras. Na sua construção, este signo da viagem tem três dimensões, que subsumem um querer tripartido: – Querer partir e ter de ficar; 0168


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– Querer ficar e ter de partir; – Ter que partir para regressar.

Querer partir e ter de ficar

Recorde­‑se que os retratos, os comportamentos, as atitudes, os valores e as vivências veiculadas pelas personagens poéticas são indicadores da maior relevância para a compreensão dos factos sociais. Neste contexto se confrontam a terra/ilha e o mar, assemelhando­‑se à miniatura versus a imensidade, o limitado versus o infinito, a tradição versus a sedução, a escassez versus a fartura, pois as condições precárias em que viviam as classes mais desfavorecidas predispunham para a divagação, para o sonho, para a evasão: o mar era o caminho e a terra­‑longe a meta. Embora se perfilasse a ameaça de que a “terra­‑longe” fosse povoada de perigos e aventuras (terra­‑longe tem gente gentio), acrescente­‑se que “era uma tensão ingénua de pioneiros”, mas também uma “oportunidade de compensar a vida estreita das ilhas com a primeira revelação viril de uma vida combativa de homem”. Balouçando entre dois caminhos – o ficar e o partir – situava­‑se a angústia insular, consubstanciada no drama de todos aqueles que gostariam de partir mas tiveram de ficar. Uns tolhidos por constrangimentos exógenos, outros por conformismo, por indecisão, por incapacidade de trocar a frágil segurança oferecida nas ilhas pela aventura do desconhecido, temendo a incerteza do futuro.

Querer ficar e ter de partir

A sobrevivência e subdesenvolvimento são uma e a mesma coisa numa conjuntura económico­‑social com todas as suas trágicas consequências. No caso de Cabo Verde, o elemento detonador eram as secas cíclicas que crestavam a paisagem, dizimavam o gado, arrasavam a agricultura e reduziam as ilhas a regiões semi­‑desérticas. Desprovidas de reservas, as populações tornam­‑se mais carentes e, se não tivessem auxílios vindos do exterior, muitos morreriam à míngua de alimentos se não emigrassem. É assim que, desaparecidas todas as esperanças trazidas pelas promessas da chuva, as pessoas fugiam revelando nos rostos, nos gestos e nas atitudes as marcas da tragédia. A condenação do cabo­‑verdiano não tinha apelo e procurava na emigração o pedaço de pão que a terra madrasta lhe negava – “terra nhanida” – terra sofrida.

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Ter que partir para regressar

No contexto da literatura local, o aparecimento da revista Claridade, em 1936, marcou um “corte” entre o que tinha sido escrito antes e o que se havia de escrever depois: “o projecto da geração da claridade destaca­‑se pela transgressão, pelo deslocamento da visão europeia para uma visão cabo­‑verdiana. Daí o rompimento com os modelos temáticos europeus e uma radical consciência regional”. O discurso literário cabo­‑verdiano deixa quase exclusivamente de ser subsidiário do português para adquirir conotações e vivências insulares – regionalismo. Também, paulatinamente, o discurso poético cabo­‑verdiano relacionou (em parte) o seu mundo com a acção política. Tornou­‑se, então, um discurso “interessado” e “objectivado” para uma representação particular da sua realidade, virando­‑se para questões relacionadas mais com o contexto sócio­‑cultural do que apenas para o universo literário. Contudo, estes dois momentos são complementares, pois a aparente gratuidade da linguagem sobre o plano prático constituiu, de alguma maneira, um apelo para a tomada de consciência e para uma certa presença no mundo através da cabo­ ‑verdianidade. Numa fase seguinte, o ideário da revista Certeza enriqueceu a tomada de posição da Claridade pela introdução de uma visão dialéctica dada pelo marxismo e o grupo do Suplemento Cultural da Revista Cabo Verde enceta a substituição do conceito regional pelo conceito nacional. É assim que uma nova perspectiva em relação à situação colonial surge já próxima da década de sessenta e nesta se vai prolongar e aprofundar até à Independência Nacional. Entretanto, o discurso de revolta generaliza­‑se com o grupo do Suplemento do Notícias de Cabo Verde (1962), cujas tendências assumiram uma interpretação frontal da situação social marcada pelo colonialismo. Muitos jovens dos sectores mais alfabetizados da população que conseguiram/ tiveram de partir (uns para estudar, outros por motivos políticos), iniciaram a “viagem” ao outro lado do mar das ilhas para ganharem a liberdade e regressarem. Então, o contacto com outros povos, o fermento do conhecimento e a absorção de ideias mais avançadas no que respeitava a movimentos independentistas, fizeram com que se tornassem dirigentes políticos, iniciando localmente o esclarecimento da população. Alguns deles eram escritores e divulgaram os seus textos atravessados pelo sopro dos conflitos sociais vigentes, denunciando prepotências, dominações, humilhações e sofrimentos seculares. 0170


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Regressados, tinham uma missão a cumprir: a sua palavra esclarecida anunciaria novos caminhos, conduzindo à construção do País na independência e rumo ao desenvolvimento. Em breve traços, eis alguns dos aspectos mais marcantes que poderemos encontrar no âmbito de algumas das várias fases da literatura cabo­‑verdiana a partir do “fincar os pés no chão das ilhas”. Acrescente­‑se, no entanto, que posteriormente desenhou­‑se uma nova etapa na literatura cabo­‑verdiana, que procurou ultrapassar alguns dos temas anteriormente tratados (a seca, a fome e a emigração), centrando­‑se numa escrita em que a temática rural dá lugar aos quotidianos da área urbana, ao mesmo tempo que apresenta uma visão mais abrangente nas suas abordagens, acompanhando a dinâmica da globalização.

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1 Avenida Combatentes Liberdade da Pátria, Cidade da Praia. 2 Largo da Praça do Município e edifício da Câmara Municipal da Praia. 3 Mercado Central da Cidade da Praia.

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4 Aspeto da assistência na sessão de abertura do VI EELP. 5 Abertura do VI EELP. Na mesa de honra, da esquerda para a direita, Vítor Ramalho (Secretário-Geral da UCCLA), Óscar Santos (Presidente da Câmara Municipal da Praia), e o escritor João de Melo (Açores, Portugal). 6 O Secretário-Geral da UCCLA abre a sessão, dando as boas-vindas aos presentes. 7, 8, 11 e 12. Diversas perspetivas da assistência. 10. O Presidente da Câmara da Praia, Óscar Santos, no discurso de acolhimento ao VI EELP.

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9. Na 1ª fila, o Comandante Pedro Pires, Presidente de Cabo Verde de 2001 a 2011.

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13. Mesa do 1º Tema do Encontro, “Literatura e Diáspora”. Da esquerda para a direita, os oradores convidados: Yao Jingming (Macau/China), Ricardo Pinto (Macau), Silvino Évora (moderador, Cabo Verde), Vera Duarte (Cabo Verde), Miguel Real (Portugal) e Alice Goretti Pina (São Tomé e Príncipe). 14, 15, 17. Aspetos da assistência. 16. Perspetiva da mesa e do público presente durante os trabalhos do 1º Tema, “Literatura e Insularidade”. 18. Mesa do 2º Tema do Encontro, “Literatura e Insularidade”. Da esquerda para a direita, os oradores convidados: Luís Carlos Patraquim (Moçambique), João Paulo Cuenca (Brasil), Margarida Fontes (moderadora, Cabo Verde), João de Melo (Portugal), José Luís Mendonça (Angola), Germano Almeida (Cabo Verde) e Luís Cardoso de Noronha “Takas” (Timor-Leste). 19, 20. Aspetos da assistência.

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21. Mesa do 3º Tema do Encontro, “A Poesia e a Música”. Da esquerda para a direita, os oradores convidados: Zeca Medeiros (Portugal), Abraão Vicente (Cabo Verde), José Luís Peixoto (Portugal), Fátima Fernandes (moderadora, Cabo Verde), José Fanha (Portugal) e Ana Paula Tavares (Angola). 22. Aspeto da assistência. 23. Perspetiva da mesa e do público presente durante os trabalhos do 3º Tema, “A Poesia e a Música”. 24. Encontro com os Novos Escritores. Da esquerda para a direita, os jovens escritores cabo-verdianos convidados para este painel, moderado por Ana Paula Tavares (ao centro): Carmelinda Gonçalves, Chissana Magalhães, Dai Varela, Dâmaso Vaz, Débora Sanches, Eileen Barbosa, Natacha Magalhães e Silvino Évora. 25. Perspetiva da mesa e do público presente durante o Encontro com os Novos Escritores. 26. A mesa dos jovens escritores, outra perspetiva.

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31. Sessão de encerramento do VI EELP. Na mesa, da esquerda para a direita: António Lopes da Silva (Vereador da Cultura da Câmara Municipal da Praia), Mário Lúcio Sousa (Ministro da Cultura de Cabo Verde) e Vítor Ramalho (Secretário-Geral da UCCLA). No pódio, Carmelinda Gonçalves. 27. Homenagem ao Poeta Corsino Fortes, pelo escritor Germano Almeida (Cabo Verde).

32. Junto à mesa da sessão de encerramento, José Fanha dirige-se ao público presente.

28. Homenagem a Arménio Vieira, pela escritora Ondina Ferreira (Cabo Verde) e pelo poeta Jorge Carlos Fonseca (Cabo Verde).

33. Alice Goretti Pina, junto da mesa, dirige umas palavras à assistência.

29 e 30. Aspetos da assistência

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34, 35. Dois aspetos da assistência durante a sessão de encerramento do VI EELP.


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36 e 38. Visita do VI EELP à Cidade Velha. 37. Carlos Manuel Castro (Vereador das Relações Internacionais da Câmara Municipal de Lisboa) e Luís Natal (Presidente do Conselho de Administração da EMEL, empresa apoiante da UCCLA). 39 e 40. Visita à prisão do Tarrafal.

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41. Encontro e Tocatina sobre a Literatura de Cabo Verde. 42. Leitura de poesia por Vera Duarte. 43. Leitura de poesia por Miguel Real. 44. Momento de dança. 45

45.. Momento de música.

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LITERATURA E DIÁSPORA PROGRAMA DAS

MESAS E COMUNICAÇÕES REALIZADAS NO VI EELP

Dia 1 de fevereiro 9h

Abertura do Encontro Intervenções: Representante dos Escritores – João de Melo (Portugal) Secretário­‑Geral da UCCLA – Vítor Ramalho (Portugal) Presidente da Câmara Municipal da Praia – Óscar Santos (Cabo Verde) Presidente da República de Cabo Verde – Jorge Carlos Fonseca Homenagem a Corsino Fortes, por Germano Almeida Apresentação de Prémios: Prémio Cabo­‑Verdiano de Literatura do BCA, em parceria com a Academia Cabo­‑Verdiana de Letras, por António Castro Guerra e Vera Duarte; Prémio Literário UCCLA “Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa” e apresentação do livro Literatura e Lusofonia 2013 ­‑ Anais do IV Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, por Rui Lourido

15h Tema: A LITERATURA E A DIÁSPORA

Moderador Silvino Évora (Cabo Verde) Vera Duarte (Cabo Verde) Sodad e memória na literatura cabo­‑verdiana da diáspora Ricardo Pinto (Macau) Rota das Letras: em defesa da identidade de Macau 0189


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Yao Jingming (Macau R.P.C.) Entre o real e o imaginário: um olhar sobre a literatura chinesa e macaense da atua‑ lidade Alice Goretti Pina (São Tomé e Príncipe) Casa da vida, cais da saudade José Luís Mendonça (Angola) Agostinho Neto e a cidadania poética do homem negro Miguel Real (Portugal) A contestação do luso­‑tropicalismo português de Gilberto Freyre: Eduardo Lourenço e Baltazar Lopes Dia 2 de fevereiro 9h30min Encontro com os novos escritores de Cabo Verde

Carmelinda Gonçalves, Chissana Magalhães, Dai Varela, Dâmaso Vaz, Débora Sanches, Eileen Barbosa, Hélder Fortes, Natacha Magalhães e Silvino Évora 15h

Tema: A LITERATURA E A INSULARIDADE Moderador Margarida Fontes (Cabo Verde) João de Melo (Portugal) Açores – um lugar de todo o mundo Germano Almeida (Cabo Verde) Insularidade e literatura – a atual problemática da insularidade Luís Cardoso “Takas” (Timor­‑Leste) Ataúro: desterro e abrigo Luís Carlos Patraquim (Moçambique) Ilha de Moçambique – como se fosse o Aleph João Paulo Cuenca (Brasil) Homem­‑ilha

Dia 3 de fevereiro 9h30min Tema: A POESIA E A MÚSICA

Moderador Fátima Fernandes (Cabo Verde) José Luís Peixoto (Portugal) A música é o tempo da literatura

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Abraão Vicente (Cabo Verde) Cabo Verde: quando a música é toda a literatura José Fanha (Portugal) Na ponta do pé, na boca do povo Zeca Medeiros (Portugal) Crónica de um fado insulano Ana Paula Tavares (Angola) 15h

Encerramento do Encontro Homenagem a Arménio Vieira, por Ondina Ferreira e Jorge Carlos Fonseca Intervenções: Vereador da Cultura da Câmara Municipal da Praia – António Lopes da Silva Secretário­‑Geral da UCCLA – Vítor Ramalho Ministro da Cultura de Cabo Verde – Mário Lúcio Sousa Iniciativas complementares

Dia 31 de janeiro

Cidade Velha: visita histórica e sessão literária – «Literatura Cabo­‑Verdiana: Fincar os pés no chão das ilhas», com Nuno Rebocho, e «Aspetos socioculturais na Literatura Cabo­‑Verdiana», com João Lopes Filho, em conversa com os convidados no auditório da cidade Inauguração da exposição “Casa dos Estudantes do Império, 1944­‑1965 ­‑ Farol de Liberdade”, no Centro Cultural Português, Cidade da Praia Dias 1­‑3 de fevereiro

Mostra/Feira do Livro, Hotel Praia­‑Mar, Prainha Dia 2 de fevereiro

Encontro animado/tocatina/conversa sobre literatura cabo­‑verdiana e leitura de poesia orientada por Vera Duarte, na Galeria Nela Barbosa Dia 4 de fevereiro

Visita ao «campo da morte» do Tarrafal, com os escritores do VI EELP Sessão literária e lançamento de livros do Centro Cultural da vila do Tarrafal Visita à casa de família de Amílcar Cabral. 0191



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LITERATURA E DIÁSPORA 2016 ESCRITORES DO VI EELP Referências Biobibliográficas

Abraão Vicente Alice Goretti Pina Carmelinda Gonçalves Dai Varela Germano Almeida Hélder Fortes João de Melo João Lopes Filho João Paulo Cuenca José Fanha José Luís Mendonça José Luís Peixoto Luís Cardoso “Takas” Luís Carlos Patraquim Miguel Real Nuno Rebocho Ondina Ferreira Ricardo Pinto Vera Duarte Yao Jingming Zeca Medeiros



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LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

ABRAÃO VICENTE [Cabo Verde]

Abraão Vicente nasceu na ilha de Santiago, Cabo Verde, a 26 de fevereiro de 1980. Licenciado em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa, fez a sua tese sobre a construção do campo artístico em Portugal durante o século XX. Pintor e fotógrafo autodidata, Abraão Vicente participou em exposições em vários países e tem presença em coleções privadas de renome. A par da sua atividade no mundo das artes plásticas, já trabalhou como jornalista, foi cronista do jornal A Nação e concebeu e apresentou quatro programas televisivos: “Casa da Cultura”, “180 graus”, “Intimidades” e “Nha Terra Nha Cretcheu”. Para além disso, publicou diversas obras. Dedicou­‑se igualmente à política no seu país. Foi deputado ao Parlamento de Cabo Verde e tem atualmente a Pasta da Cultura e das Indústrias Criativas no Governo dirigido pelo Primeiro­‑Ministro Ulisses Correia e Silva. BIBLIOGRAFIA Prosa

Poesia

Traços Rosa Choque (crónicas, 2012, Lua de Marfim)

Amar 100 Medo, Cartas improváveis & outras le­ tras (poesia 2014, edição on­‑line)

Dez contos para ler sentado (coletânea de con‑ tos, em participação, 2012, Editorial Caminho) O Trampolim (romance, 2010, Editora Kankan Stu‑ dio)

1980 Labirintos (poesia em prosa, 2013, Lua de Marfim) E de repente a noite (poesia, 2011)

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LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

ALICE GORETTI PINA [São Tomé e Príncipe]

Alice Goretti Dias Xavier de Pina trabalhou como professora eventual de Português e secretária do Ministro da Saúde em São Tomé e Príncipe. Fez o curso de Formação de Empresários e integrou a direção da Associação de Jovens Santomenses com Iniciativa Empresarial até deixar o país. Em 2000 veio para Portugal, onde, além conciliar os estudos e o trabalho, continuou ligada ao associativismo e à moda, sem nunca abandonar o gosto pela escrita. Em 2003 concluiu o curso de Marketing Internacional para a Indústria do Vestuário. É licenciada em Direito e pós­‑graduada em Criminologia. Reside em Lisboa, onde, como criadora de moda santomense, registou a sua marca, Goretti Pina Fashion, em 2008. Trabalhou como mediadora intercultural nos Serviços Públicos (nas áreas de Saúde, Educação e Intervenção Comunitária) até final de 2013, no MISP (projeto do ACIDI em parceria com a Câmara Municipal de Loures e o movimento associativo do Concelho). Tem poemas publicados na secção de Escrita Criativa da Revista Lusófona de Línguas, Culturas e Tradução, Babilónia, de 2005. Em 1999, com a obra O amor da filha do angolar, chegou à final do Prémio PALOP do Livro/98 em Maputo. Em 2010, ganhou o concurso Criar Lusofonia, promovido pelo Centro Nacional de Cultura e pela Direção Geral do Livro, Arquivo e Bibliotecas, com o projeto “No dia de São Lourenço”. Publicou, em novembro de 2012, a obra poética Viagem. Seguem­‑se diversas participações em antologias poéticas e em encontros de escritores em Portugal, Brasil e Cabo Verde. Editou em 2013 o romance No dia de São Lourenço/O encanto do 0196


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Auto de Floripes. Em fevereiro de 2014 aceitou o desafio da CPLP/FAO para madrinha da campanha Juntos contra a Fome!, iniciativa que visa erradicar a fome nos países da CPLP até ao ano de 2025. Como tal, tem colaborado nas atividades desenvolvidas nesse âmbito. Venceu novamente o concurso Criar Lusofonia 2014 com o projeto “Feijão N´Agua, Pagá Dêvê, Lujá Bôtê e outros contos de se ler”. Em 2015, colaborou com o projeto Contextos de São Tomé e Príncipe, do grupo HBD, doando um conjunto de poemas No leito das asas, À beira do tempo, agora editado, e cuja receita reverte totalmente a favor de projetos sociais na ilha do Príncipe. Lançou em abril de 2015 a obra poética A Respiração dos Dias. É mentora da Campanha Arte Solidária STP, lançada em fevereiro de 2016, com o apoio institucional da Embaixada de STP em Portugal, cujo objetivo é apoiar doentes santomenses de Junta Médica em Portugal. Dos eventos mais recentes (2017) nos quais participou, destacam­‑se: . Correntes d`Escritas, “Sempre tudo esteve escrito desde sempre”. Póvoa de Varzim. . LuxExpo, Salão do Livro, ASTPL. Luxemburgo. . VCA ­– Vida Cultura e Arte – Colóquio sobre os africanos em Portugal, da escravatura à imigração. Biblioteca Orlando Ribeiro. Lisboa. . Foi homenageada no dia 8 de Março, dia da Mulher, Noite de mérito, na Casa de Angola. Lisboa.

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LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

CARMELINDA ALCINDA GONÇALVES [Cabo Verde]

Filha de pais cabo­‑verdianos, Carmelinda Gonçalves nasceu em Luanda e, aos dez anos, foi viver em Cabo Verde, onde residiu até partir para completar os estudos universitários em São Paulo, Brasil. Trabalhou na Rádio de Cabo Verde e na Rádio Nova em programas por ela criados em conjunto com um grupo de colegas. Representou Cabo Verde em alguns concursos de beleza, foi Miss CEDEAO em 1996 e a primeira Miss Cabo Verde a concorrer ao concurso de Miss Mundo. Foi modelo, mas não perdeu de vista o seu desejo de se formar em Medicina. Médica dentista, com pós­‑graduações em implantodontia e ortodoncia, exerce a sua profissão em Cabo Verde, onde tem consultório próprio. Nos tempos livres gosta de escrever e tem dedicado o seu labor literário às crianças, tendo já publicado quatro livros infantis: O pirilampo e a libélula, em 2014, O ET, em 2015, O espantalho, também em 2015, e Bullying, em 2016.

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LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

DAI VARELA [Cabo Verde]

Dai Varela, de nome próprio Odair Varela Rodrigues, é natural de Cabo Verde e autor do conto ilustrado “A fita cor­‑de­‑rosa” (duas edições), distinguido com uma “Menção Honrosa” no Concurso Lusófono de Trofa – Prémio Matilde Rosa Araújo 2013, entre 252 outros textos dos países da CPLP. Dai Varela foi ainda representante de Cabo Verde, como jovem autor, na VI Bienal de Jovens Criadores da CPLP, na Bahia (Brasil’2013). A fita cor­‑de­‑rosa (duas edições) teve o seu lançamento em 2015, em Portugal. A sua segunda obra, Tufas, a princesa crioula: aprendendo as palavras mágicas, um conto infantil ilustrado, em edição bilingue (português e inglês), foi lançada em Portugal em março de 2017, no âmbito do 3º Encontro da Literatura Infanto­‑Juvenil da Lusofonia. Licenciado em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona de Cabo Verde (ULCV), Dai Varela tem carreira como jornalista, tanto no formato impresso como no digital. Atualmente, é professor de Jornalismo na ULCV e publica no seu blogue: www. daivarela.blogspot.com. 0199


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GERMANO ALMEIDA [Cabo Verde]

Germano Almeida nasceu na ilha da Boavista, em Cabo Verde, em 1945. Licenciou­‑se em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa. Foi Procurador da República de Cabo Verde e exerce atualmente advocacia na cidade de São Vicente. Foi um dos fundadores da revista Ponto & Vírgula, do jornal Aguaviva, de que é coproprietário e diretor, e sócio da Ilhéu Editora, responsável pela publicação dos seus livros em Cabo Verde. A sua obra de ficção representa uma nova etapa na rica história literária de Cabo Verde e está publicada em vários países, tendo sido já reconhecida com a atribuição de diversos prémios. O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo foi adaptado ao cinema, no filme intitulado “O Testamento do Senhor Napumoceno”, galardoado com o 1º Prémio do Festival de Cinema Latino­‑Americano de Gramado, no Brasil, e distinguido com os prémios para o melhor filme e melhor actor no 8º Festival Internacional Cinematográfico de Assunción, no Paraguai. BIBLIOGRAFIA PARCIAL Regresso ao Paraíso (2016)

Os Dois Irmãos (1994)

Do Monte Cara Vê­‑se o Mundo (2014)

O Dia das Calças Roladas (1992)

A Família Trago (1998)

O Meu Poeta (1990)

Estórias Contadas (1998)

O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo (1989)

Estórias de Dentro de Casa (1996) A Ilha Fantástica (1994)

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HÉLDER FORTES [Cabo Verde]

Hélder Fortes nasceu em 1980, na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente, Cabo Verde. Fez os estudos primários e secundários no Mindelo e, em 2000, foi para a capital, a cidade da Praia, na ilha de Santiago, onde fez um Curso Profissional de Turismo e Ambiente e um Bacharelato em Gestão Turística. Em 2005, licenciou­‑se em Eco­ ‑Agroturismo na Escola Superior Agrária de Coimbra. Findo o ciclo universitário, regressou a Cabo Verde, à cidade da Praia, onde reside. Em 2009, iniciou um ciclo de crónicas no jornal O Liberal. Em 2012, fez uma Pós­ ‑Graduação em Direito Bancário e atualmente trabalha como funcionário bancário. O seu primeiro projeto literário foi o romance Ladeiras do Inferno, publicado em 2012. Em 2013, escreveu a obra Dame um café, na qual se debruça sobre o problema da prostituição, sobretudo infantil e, em 2016, com o livro A Queda do Muro, abordou o tema do “Desastre da Assistência”, um fatídico acontecimento ocorrido em 20 de fevereiro de 1949 (um ano de fome), quando desabou o teto do barracão dos Serviços de Assistência onde era distribuída a sopa dos pobres. 0201


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JOSÉ LUÍS MENDONÇA [Angola]

Poeta de profissão, José Luís Mendonça nasceu a 24 de novembro de 1955, no Golungo Alto, na província do Cuanza Norte, em Angola. Licenciado em Direito pela Universidade Católica de Angola, integrou a denominada “Novíssima Geração”, expressão escolhida para designar o conjunto de jovens angolanos que começaram a despertar para o mundo da literatura no início dos anos 80. Membro da União de Escritores Angolanos (UEA) desde 1984, José Luís Mendonça dirige e edita atualmente o quinzenário Cultura – Jornal Angolano de Artes e Letras. O poeta fez a sua estreia no mundo das letras angolanas com Chuva Novembrina, obra à qual foi atribuído, em 1981, o Prémio Sagrada Esperança, pelo Instituto Nacional do Livro e do Disco (INALD). Outros galardões literários de José Luís Mendonça: Em 1996, recebeu novamente o Prémio Sagrada Esperança (INALD) com Quero Acordar a Alva. Em 1990, recebeu da UEA o Prémio Literário Sonangol, com Respirar as Mãos na Pedra. Em 2005, o Ministério da Cultura atribuiu­‑lhe o Prémio “Angola Trinta Anos”, na disciplina de Literatura, pela sua obra poética Um Voo de Borboleta no Mecanismo Inerte do Tempo. No ano de 2015, foi­‑lhe outorgado o Prémio Nacional de Cultura e Artes na categoria de Literatura, pela singularidade do estilo e valor cultural das temáticas tratadas. José Luís Mendonça instituiu o amor como guia da sua produção literária, percorrida por diversos temas, entre os quais as relações entre povos e o poder político. No conjunto da sua obra poética, associa a política e a ideologia, as interações que a história recente de Angola origina, as tradições populares e o maravilhoso, bem como a preservação do ambiente. 0202


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JOÃO DE MELO [Portugal]

João de Melo nasceu na ilha de São Miguel (Açores) em 1949, onde completou a instrução primária, após o que prosseguiu os seus estudos no continente. Em 1967, passou a residir e a trabalhar em Lisboa. Depois de participar na guerra colonial em Angola entre 1971 e 1974 (tema de duas das suas obras mais significativas, a antologia Os Anos da Guerra e o romance Autópsia de Um Mar de Ruínas), trabalhou na vida sindical, foi editor de autores portugueses e crítico literário. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pela qual veio a licenciar­‑se em 1981 no curso de Filologia Românica. Professor dos ensinos secundário e superior durante vários anos, foi convidado pelo governo português para o cargo de conselheiro cultural junto da embaixada de Portugal em Espanha (que desempenhou durante 9 anos, entre 2001 e 2010). Em 2003, em Madrid, criou a “Mostra Portuguesa” (de que realizou 7 edições), o maior evento cultural português fora de fronteiras. Tem, traduzidos para espanhol, os seguintes livros: Gente feliz con lágrimas, Antología del cuento portugués (Alfaguara), Cronica del principio y del agua y otros relatos, Mi mundo no es de este reino, Mar de Madrid e Autopsia de un mar de ruinas (Linteo Ediciones). Autor de obras de ficção, ensaios, antologias, poesia, livros de crónicas e de viagem, os seus livros foram traduzidos em Espanha, Itália, França, Holanda, Roménia, Bulgária, Estados Unidos, Hungria, Alemanha, Reino Unido, Sérvia e México. Foram­‑lhe atribuídos os seguintes prémios literários: Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, Prémio Eça de Queiroz/Cidade de Lisboa, Prémio Cristóvão Colombo (Capitais Ibero­‑americanas), Prémio Fernando Namora/Casino do Estoril, Prémio Antena 1, Prémio «A Balada» e Prémio Dinis da Luz. Gente Feliz com Lágrimas, o seu romance mais conhecido, foi adaptado ao teatro pelo grupo “O Bando”, e a telefilme e a série de televisão pelo realizador José Medeiros. 0203


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BIBLIOGRAFIA Poesia

Os Navios da Noite (contos), 2016

1989, Prémio Fernando Namora, 1989, Prémio Eça de Queirós/Cidade de Lisboa, 1989, Prémio Livro do Ano Antena 1, 1989, Premio Internacional Cristóbal Colón de las Ciudades Capitales Íbero­ ‑americanas, 1990

Lugar Caído no Crepúsculo (romance), 2014

Os Anos da Guerra (antologia), 1988

A Divina Miséria (novela), 2009

Entre Pássaro e Anjo (contos), 1987 (Prémio literário “A Balada”, Açores, 1989)

Navegação da Terra, 1981 Prosa

Luxúria Branca e Gabriela (conto). Ilustrações de Francisco Simões, 2009 O Vinho (conto). Ilustrações de Paula Rego, 2008 O Mar de Madrid (romance), 2006

Autópsia de Um Mar de Ruínas (romance) 1984 O Meu Mundo Não É Deste Reino (romance) 1983 (Prémio Dinis da Luz, Açores) Há ou Não Uma Literatura Açoriana? (ensaio)

As Coisas da Alma (contos), 2003 Literatura e Identidade / Identidad y Literatura (bilingue), (ensaio), 2003 Antologia do Conto Português (antologia), 2002 Açores: O Segredo das Ilhas (viagens), 2000 O Homem Suspenso (romance), 1996

Toda e Qualquer Escrita (ensaio), 1982 A Produção Literária Açoriana nos Últimos Dez Anos (1968­‑1978). (ensaio), 1979 Antologia Panorâmica (antologia), 1978

do

Conto

Açoriano

A Memória de Ver Matar e Morrer (romance), 1977

Dicionário de Paixões (crónicas), 1994

Histórias da Resistência (conto), 1975

Bem­‑Aventuranças (contos), 1992 As Manhãs Rosadas (conto). Ilustrações de David de Almeida, 1991 Gente Feliz com Lágrimas (romance), 1988 (Grande Prémio de Novela e Romance da APE,

0204

Infanto­‑juvenil Carta a El­‑Rei Dom Manuel Sobre o Achamento do Brasil, adaptada para os mais novos. Ilustrações de Carla Nazareth, 2009


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JOÃO LOPES FILHO [Cabo Verde]

João Lopes Filho é natural da Ilha de São Nicolau, Cabo Verde. É licenciado em Ciências Antropológicas e Etnológicas e ainda em Ciências Sociais e Políticas, pela Universidade Técnica de Lisboa (UTL), diplomado em Administração, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, e Engenheiro Técnico Agrário, pela Escola Agrícola de Santarém, também em Portugal. É Professor Agregado do Curso de Antropologia, na Especialidade de Estudos Africanos, da Universidade Nova de Lisboa, e Doutorado em Antropologia, na Especialidade de Etnologia, também pela Universidade Nova de Lisboa. A sua atividade profissional reparte­‑se entre a docência, na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Cabo Verde (onde leciona diversas matérias e coordena cursos de Mestrado), e a investigação, no Centro de Estudos de Sociologia e no Centro de Estudos Africanos, ambos da Universidade Nova de Lisboa, e no Centro de Estudos das Migrações e Relações Internacionais, da Universidade Aberta, em Lisboa. Escritor e antropólogo, João Lopes Filho tem uma vasta obra publicada e integra diversas coletâneas em várias línguas, para além de trabalhos em coautoria. Pela sua obra como escritor e como antropólogo, já foi galardoado com diversos prémios e distinções, entre os quais: Troféu Prestígio “AI­‑UÉ, 1992” –­ Etnografia Africana; Medalha de 1ª Classe da Ordem do Vulcão, concedida pelo Presidente da República de Cabo Verde (2004); Medalha de Reconhecimento, concedida pela Câmara Municipal da Vila da Ribeira Brava, São Nicolau (2007); Grande Prémio de Literatura Sonangol (2010); Cidadão Honorário da Cidade Velha, pelo Município de Ribeira Grande Santiago (2011); Prémio de Investigação ­– Gala Somos Cabo Verde, Praia (2015). 0205


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BIBLIOGRAFIA Cartas de um Sempalhudo, Praia, Edições Uni-CV, 2017 António Carreira ­‑ Etnógrafo e Historiador, Praia, Fundação João Lopes, 2015 Percursos & Destinos, Luanda, União de Escritores Angolanos / Sonangol, 2010

Ilha de S. Nicolau de Cabo Verde. Formação da Sociedade e mudança cultural, (2 vols.), Lisboa, Ministério da Educação, 1996 Cabo Verde. Retalhos do Quotidiano, Lisboa, Caminho, 1995

Crónicas do Tempo que Passou, Praia, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2009

Vamos Conhecer Cabo Verde, Lisboa, Embaixada de Cabo Verde, 1988 (2ª ed.­‑ Secretariado Entreculturas, Ministério da Educação, 1992)

In Memoriam João Lopes, Praia, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2007

A Comunidade Cabo­‑Verdiana em Portugal (co­ ‑autor), Lisboa, I.E.D., 1992

Imigrantes em Terra de Emigrantes, Praia, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2007

Defesa do Património Sócio­‑Cultural de Cabo Verde, Lisboa, Ulmeiro, 1985

Subsídios para o estudo da abolição da escravatura, Praia, Spleen, 2006

Contribuição para o Estudo da Cultura Cabo­ ‑verdiana, Lisboa, Ulmeiro, 1984

Introdução à Cultura Cabo­‑Verdiana, Praia, Instituto Superior de Educação, 2003

Cabo Verde ­‑ Subsídios para um Levantamento Cultural, Lisboa, Plátano Editora, 1981

Olhares Partilhados, Praia, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2002

Cabo Verde ‑­ Apontamentos Etnográficos, Lisboa, Ed. do Autor, 1976

O Forte do Príncipe Real e a Defesa da Ilha de S. Nicolau, Cascais, Edições Património, 1998

Estória, Estória... Contos Cabo­‑Verdianos, Lisboa, Ulmeiro, 1978 (2ª ed. ‑­ 1983, Edição em inglês ­‑ 1995)

Vozes da Cultura Cabo­‑verdiana, Lisboa, Ulmeiro, 1998 O Corpo e o Pão. O Vestuário e o Regime Alimentar Cabo­‑verdianos, Oeiras, Câmara Municipal de Oeiras, 1997

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O Gatinho Medroso, Mindelo, Ilhéu Editora, 2012.


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JOÃO PAULO CUENCA [Brasil]

João Paulo Cuenca nasceu no Rio de Janeiro, em 1978, e licenciou­‑se em Ciências Económicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde foi escritor residente do Programa Avançado de Cultura Contemporânea. Dentro da sua área profissional, trabalhou com a Eletrobras­‑UFRJ, com a Fundação Getúlio Vargas, CEPESP (Centro de Estudos de Política e Economia do Setor Público) e na área Financeira e Internacional do Banco Nacional de Desenvolvimento brasileiro. É autor dos romances Corpo presente (2003), O dia Mastroianni (2007), O único final feliz para uma história de amor é um acidente (2010) e Descobri que estava morto (2015). Os seus livros foram traduzidos para oito línguas e os direitos já foram adquiridos por onze países. Em 2007, foi selecionado pelo Festival de Hay como um dos 39 jovens autores mais destacados da América Latina e, em 2012, foi escolhido pela revista britânica Granta como um dos 20 melhores romancistas brasileiros com menos de 40 anos. Escreve crónicas semanais para jornais brasileiros desde 2003 e atualmente é colunista da Folha de São Paulo. Muitas das suas crónicas foram reunidas na antologia A última madrugada (2012). Nos últimos anos tem­‑se dedicado a escrever para teatro, cinema e TV. Em 2014, escreveu o argumento/roteiro e dirigiu o seu primeiro filme de longa­‑metragem, “A morte de J.P. Cuenca”, que foi selecionado para o Festival do Rio e para a Mostra Internacional de Cinema de SP no ano seguinte. A estreia europeia do filme realizou­ ‑se no prestigiado festival CPH:DOX, na Dinamarca, em novembro de 2015, estando já planeadas outras exibições em festivais internacionais em 2016, ano em que entrará no circuito comercial. O projeto foi escolhido em 2013 para participar no primeiro workshop do Bienalle College ­‑ Cinema Project, realizado pela Bienal de Veneza, e 0207


ESCRITORES DO VI ENCONTRO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

ganhou o edital de coprodução da RioFilme com o Canal Brasil no mesmo ano. João Paulo Cuenca integra inúmeras antologias e revistas literárias (contos e crónicas) e é autor de argumentos/roteiros de filmes, séries e documentários exibidos no Brasil e internacionalmente. Foi colunista dos jornais O Globo, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, Revista TPM (Brasil), El País (Espanha), sendo atualmente colunista permanente do jornal Folha de São Paulo. Faz crítica de cinema, arte e literatura. É autor da peça de teatro Terror, 2011, encenado no CCBB Brasília e Rio de Janeiro e tem participado, como palestrante convidado, em festivais e conferências, um pouco por todo o mundo, nomeadamente no Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, em Portugal, em 2008, 2009 e 2011. Tem feito palestras em diversas Universidades, como a PUC, a UFRJ, a Sorbonne, Columbia, Princeton, Heidelberga, Yale, Brown, UCLA e Stanford (2014), entre outras. Para além disso, foi curador de diversos eventos literários de grande fôlego, entre os quais a Feira do Livro de Belo Horizonte, em 2014 (para um público de 275 000 pessoas) e a Feira do Livro da Bahia, em 2013 (para um público de 260 000 pessoas). João Paulo Cuenca tem­‑se dedicado ainda ao ensino de literatura em workshops para público em geral em diversas cidades brasileiras.

BIBLIOGRAFIA Estados Unidos (Tagus Press, 2013), Finlândia (Ivan Rotta & Co, 2014) e Roménia (Polirom, 2015)

Descobri que estava morto, Caminho, Portugal, 2015 (Publicado no Brasil pela Tusquets em 2016) A última madrugada, São Paulo: Leya, 2012 O único final feliz para uma história de amor é um acidente, Rio de Janeiro: Companhia das Letras 2010. Publicado em Portugal (Caminho, 2010), Espanha (Lengua de Trapo, 2012), Alemanha (A1 Verlag, 2012), França (Cambourakis, 2013), 0208

O dia Mastroianni, Rio de Janeiro: Agir 2007. Publicado em Portugal (Caminho, 2009), Itália (Cavallo di Ferro, 2008), Alemanha (A1 Verlag, 2013) Corpo presente, Rio de Janeiro: Planeta 2003


ESCRITORES DO VI ENCONTRO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

JOSÉ FANHA [Portugal]

José Fanha nasceu a 19 de fevereiro de 1951, em Lisboa. Licenciado em Arquitetura, é guionista de televisão e cinema, dramaturgo e dramaturgista de teatro, autor de letras para canções e textos para rádio, poeta e escritor de literatura infanto­‑juvenil. Em 1968, frequentou o Curso de Formação Artística da Sociedade Nacional de Belas Artes, onde foi aluno de Rolando Sá Nogueira, Fernando Conduto, António Sena, José Ernesto de Sousa, Rui Mário Gonçalves e José Augusto França, entre outros. No ano seguinte, em 1969, entrou para o curso de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e, enquanto estudava, trabalhou como jornalista no Record e na «Mosca», suplemento humorístico do Diário de Lisboa, como desenhador no Ministério das Obras Públicas, e nos ateliers dos arquitetos Maurício de Vasconcelos, Frederico George e Manuel Vicente. Na década de 70 termina o seu curso e vive intensamente o dia 25 de abril. Nasceu então o poeta de intervenção, que faz parte da geração de abril com nomes como Zeca Afonso, Francisco Fanhais, Manuel Freire, José Jorge Letria e outros, que cantavam para juntar pessoas e dizer­‑lhes que era preciso acabar com a ditadura. É Mestre na área de Educação e Leitura pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa com uma tese sobre Comunidades de Leitores intitulada Novos modos de leitura – Novas identidades. 0209


ESCRITORES DO VI ENCONTRO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

BIBLIOGRAFIA RESUMIDA Poesia

As orelhas voadoras (2013) Era uma vez a República (2010)

Francisco, com colagens de João Abel Manta (2015) Poemas para um dia feliz ­‑ antologia de poemas felizes portugueses (2007) Poemas com animais ­‑ antologia de poemas portugueses sobre animais (2004)

Esdrúxulas, graves e agudas, magrinhas e barrigudas (2010) Alex Ponto Com: Mary Lob, a lagosta assassina (2009) O dia em que a mata ardeu (2007)

Poemas da linha da frente: a guerra, em conjunto com José Jorge Letria (2003) Busca (1977)

Zulaida e o poeta (2007) Diário inventado de um menino já crescido (2004) Textos para televisão

Cantigas da dúvida e do perguntar (1970)

“Zarabadim” (RTP/84);

Ficção

“Rua Sésamo”, participação em cerca de 500 episódios (RTP/88/94).

Eça agora (Ed. Oficina do Livro, 2007) O código d’Avintes (Ed. Oficina do Livro, 2006) Ficção infanto­‑juvenil O Baile do Bê­‑Á­‑Bá, com Daniel Completo (2016) Ailé ailé ­‑ Zeca Afonso cantado e contado às crianças, com Daniel Completo (2015) Histórias na ponta de um sorriso (2014)

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Cinema Os dois irmãos, adaptação do romance do escritor cabo­‑verdiano Germano Almeida, com apoio do ICAM para realização de Francisco Manso, 2015/2016.


ESCRITORES DO VI ENCONTRO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

JOSÉ LUÍS PEIXOTO [Portugal]

José Luís Peixoto nasceu a 4 de setembro de 1974, em Galveias, Ponte de Sor. É licenciado em Línguas e Literaturas Modernas ­‑ Inglês e Alemão, pela Universidade Nova de Lisboa. A sua obra ficcional e poética figura em dezenas de antologias, está traduzida em muitos idiomas e é estudada em diversas universidades nacionais e estrangeiras. Em 2001, recebeu o Prémio Literário José Saramago com o romance Nenhum Olhar, que foi incluído na lista do Financial Times dos melhores livros publicados em Inglaterra no ano de 2007, tendo também sido incluído no programa Discover Great New Writers das livrarias norte­‑americanas Barnes & Noble. Foi atribuído ao seu livro A Criança em Ruínas o Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para o melhor livro de poesia. O romance Cemitério de Pianos recebeu o Premio Cálamo Otra Mirada, destinado ao melhor romance estrangeiro publicado em Espanha em 2007, tendo sido finalista do prémio Portugal Telecom (Brasil) e do International Impac Dublin Literary Award (Irlanda). Em 2008, recebeu o Prémio de Poesia Daniel Faria com o livro Gaveta de Papéis. Em 2010, o seu romance Livro venceu o prémio Libro d’Europa, em Itália, e foi finalista do prémio Femina, em França. Em 2012, publicou Dentro do Segredo, Uma Viagem na Coreia do Norte, a sua primeira incursão na literatura de viagens. Os seus romances estão traduzidos em vinte idiomas. 0211


ESCRITORES DO IV ENCONTRO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIBLIOGRAFIA Poesia

Dentro do Segredo (viagens), 2012

Gaveta de Papéis, 2008

A Mãe que Chovia (infantil), 2012

A Casa, a Escuridão, 2002

Abraço, 2011

A Criança em Ruínas, 2001

Livro (romance), 2010

Prosa

Cal (prosa e teatro), 2007

Todos os Escritores do Mundo têm a Cabeça Cheia de Piolhos (infantil), 2016

Cemitério de Pianos (romance), 2006 Antídoto, 2003

Estrangeiras (teatro), 2016

Uma Casa na Escuridão (romance), 2002

Em Teu Ventre (novela), 2015

Nenhum Olhar (romance), 2000

Galveias (romance), 2014

Morreste­‑me, 2000

0212


ESCRITORES DO VI ENCONTRO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

LUÍS CARDOSO “TAKAS” [Timor­‑ Leste]

Luís Cardoso de Noronha, um dos mais conhecidos escritores timorenses, nasceu em Cailaco, no interior de Timor­‑Leste, em 1958. Estudou nos colégios missionários de Soibada e Fuiloro, no Seminário de Dare e no Liceu Dr. Francisco Machado, em Díli, continuando posteriormente os estudos em Portugal, licenciando­‑se em Silvicultura pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa. Como o seu pai era falante de mambai e a sua mãe de lacló, em casa adotaram como língua corrente o tétum­‑praça. Luís Cardoso desempenhou as funções de representante do Conselho Nacional da Resistência Maubere, foi contador de histórias timorenses, cronista da revista Fórum Estudante e professor de Tétum e Língua Portuguesa. Como escritor, produziu várias obras, traduzidas para inglês, francês, italiano, holandês, alemão e sueco. Entre elas, Crónica de uma travessia – A época do ai­‑dik­‑funam (1997), Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo (2001), A última morte do Coronel Santiago (2003), Requiem para o navegador solitário (2007), O ano em que Pigafetta completou a circum­‑navegação (2013). 0213


ESCRITORES DO VI ENCONTRO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

LUÍS CARLOS PATRAQUIM [Moçambique]

Luís Carlos Patraquim, poeta, dramaturgo, jornalista e guionista, nasceu em Maputo, Moçambique, em 1953. Colaborador do jornal A Voz de Moçambique, refugia­‑se na Suécia em 1973. Regressa a Moçambique em janeiro de 75, integrando os quadros do jornal A Tribuna. Foi membro do núcleo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique) e do Instituto Nacional de Cinema (INC) onde se mantém, de 1977 a 1986, como roteirista/ argumentista e redator principal do jornal cinematográfico Kuxa Kanema. Criador e coordenador da “Gazeta de Artes e Letras” (1984/86) da revista Tempo, colabora ainda noutras publicações, como as revistas Colóquio/Letras e África. Foi ainda coordenador redatorial da revista Lusografias. Luís Carlos Patraquim tem uma vasta obra publicada, em prosa, poesia e teatro. Foi distinguido com o Prémio Nacional de Poesia de Moçambique em 1995. Em 1986, fixou­‑se em Portugal, mantendo a colaboração com a imprensa moçambicana e portuguesa, escrevendo roteiros para cinema e peças para teatro. Foi consultor para a “Lusofonia” do programa “Acontece”, de Carlos Pinto Coelho, e comentador na RDP­ ‑África. Luís Carlos Patraquim regressou a Moçambique em 2014. 0214


ESCRITORES DO VI ENCONTRO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

BIBLIOGRAFIA Poesia

A cor vermelha dos jacarandás

O Escuro Anterior, 2013

Teatro

Antologia Poética, 2011

As Mulheres de Água, 2011

Matéria Concentrada, 2011

D’Abalada, 2006

Pneuma, 2009

No Estaleiro Geral, 2004

O Osso Côncavo, 2005

Tremores Íntimos Anónimos, com António Cabrita, 2003

Lidemburgo Blues, 1997 Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora, 1992

Vim­‑te Buscar, 2002

Mariscando Luas, com Chichorro (ilustrações) e Ana Mafalda Leite, 1992

Em preparação: O Grande Tambor

A Inadiável Viagem, 1985

Karingana Wa Karingana, 2000 Cinema

Monção, 1980

Roteiro de “A Tempestade da Terra”, de Fernando d’Almeida e Silva

Prosa

Roteiro de “Kilapy”, de Zezé Gamboa

Manual para Incendiários (crónicas), 2012

Roteiro, colaboração, de “O Gotejar da Luz”, de Fernando Vendrell

Ímpia Scripta (crítica literária), 2012 Enganações de Boca (crónicas), 2011 A Canção de Zefanias Sforza (novela), 2010

Doctoring e colaboração em numerosos trabalhos de cinema.

No prelo: O Senhor Freud Nunca Foi a África, crónicas

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ESCRITORES DO VI ENCONTRO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

MIGUEL REAL [Portugal]

Miguel Real é o pseudónimo literário de Luís Martins (1953). Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa, fez um mestrado em Estudos Portugueses, na Universidade Aberta, com uma tese sobre Eduardo Lourenço. Escritor e ensaísta, investigador do Centro de Literaturas e Culturas Europeias e Lusófonas da Faculdade de Letras de Lisboa (CLEPUL) e professor do ensino secundário, Miguel Real tem uma vasta obra publicada na área da ficção, do romance histórico e do ensaio. Prémios literários: em 1979, ganhou o Prémio Revelação de Ficção APE/IPLB (Associação Portuguesa de Escritores/Instituto Português do Livro e das Bibliotecas), com o livro O Outro e o Mesmo e, em 1995, voltou a ser distinguido com o Prémio Revelação da APE/IPLB, desta vez na área do Ensaio Literário, com Portugal ‑­ Ser e Representação. Em 2000, recebeu o Prémio LER/Círculo de Leitores, com o ensaio A Visão de Túndalo por Eça de Queirós. Uma bolsa atribuída em 2001 pelo programa Criar Lusofonia, do Centro Nacional de Cultura, permitiu­‑lhe percorrer o itinerário do Padre António Vieira pelo Brasil. A esse propósito escreveu um diário, editado em 2004, intitulado Atlântico: a viagem e os escravos. Em 2006, conquistou o prestigiado Prémio Literário Fernando Namora com o romance A Voz da Terra. Em conjunto com Filomena Oliveira, recebeu o Grande Prémio de Teatro da Sociedade Portuguesa de Autores/Teatro Aberto (2008) pela obra Uma família Portuguesa. Com o Feitiço da Índia (2012) ganhou o Prémio Autores 2013 para o Melhor Livro de Ficção Narrativa da Sociedade Portuguesa de Autores. Atualmente, é colaborador do JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, onde faz crítica literária. 0216


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LITERATURA E LUSOFONIA | REFERÊNCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

BIBLIOGRAFIA Vieira, o Céu na Terra: Nos 400 anos do nascimento do Padre António Vieira, uma homenagem, com Filomena Oliveira, Edições Fénix (2015)

Padre António Vieira e a Cultura Portuguesa, Quidnovi (2008)

Portugal: Um País Parado no meio do Caminho (2000­‑2015), Dom Quixote (2015)

Agostinho da Silva e a Cultura Portuguesa, Quidnovi (2007)

O Último Europeu: 2284, Dom Quixote (2015)

O Último Minuto na Vida de S., Quidnovi (2007)

O futuro da religião, Nova Vega (2014)

O Último Negreiro, Quidnovi (2006)

A Cidade do Fim, Dom Quixote 2013)

O Último Eça, Quidnovi (2006)

O Feitiço da Índia, Dom Quixote (2012)

Atlântico: a viagem e os escravos, Círculo de Leitores (2005)

O Romance Português Contemporâneo: 1950­ ‑2010, Editorial Caminho (2012) A Voz da Terra Lisboa, Dom Quixote (1.ª edição: 2006, 4ª edição: 2012)

Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa, Quidnovi (2008)

Memórias de Branca Dias, Temas e Debates (2003)

A guerra dos Mascates, Dom Quixote (2011)

O Essencial Sobre Eduardo Lourenço, INCM (2003)

As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia, Dom Quixote (2010)

Eduardo Lourenço ­‑ Os Anos da Formação 1945­‑1958, INCM (2003)

A Ministra, Quidnovi (2009)

A Visão de Túndalo Por Eça de Queirós, Difel (2000)

Matias Aires: As máscaras da vaidade, Sete Caminhos ( 2008) O Sal da Terra, Quidnovi (2008)

Portugal ­‑ Ser e Representação, Difel (1995) O Outro e o Mesmo, Contexto (1980)

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NUNO REBOCHO [Portugal]

Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), Nuno Rebocho viveu em Moçambique desde os três meses até 1962. Preso por motivos políticos em 1967, esteve preso na Cadeia do Forte de Peniche. Escritor, poeta e jornalista, Nuno Rebocho recusa ser um “animal sedentário” e vive, desde há alguns anos, em Cabo Verde. Colaborou em diversos órgãos de imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redator da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e o Modo e Vida Mundial, e foi chefe de redação da Antena 2 da RDP. Colaborador dos portais on­‑line “Acontece em Sorocaba” (Brasil) e “Liberal” (Cabo Verde). Como escritor, tem vários livros publicados, em várias modalidades: poesia, romance, ensaio, investigação histórica, e está representado em diversas antologias e coletâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Organizou, comissariou e participou em inúmeros eventos dedicados à escrita, em particular à poesia, em Portugal e em Cabo Verde ALGUMA BIBLIOGRAFIA Poesia

Investigação histórica

Breviário de João Crisóstomo, Uagudugu, Memórias de Paisagem, Invasão do Corpo, Manifesto (Pu)lítico, Santo Apollinaire, meu santo, A Nau da India, A Arte de Matar, Cantos Cantábricos, Poemas do Calendário, Manual de Boas Maneiras, A Arte das Putas, Canto Finissecular.

O 18 de Janeiro de 1934, A Frente Popular Antifascista em Portugal, A Companhia dos Braçais do Bacalhau.

Crónicas Estórias de Gente, Estravagários (Crónicas Alentejanas).

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Romance A Segunda Vida de Djon de Nha Bia. 2000


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ONDINA FERREIRA [Cabo Verde]

Ondina Maria Duarte Fonseca Rodrigues Ferreira, cabo­‑verdiana, nasceu em 1946, durante uma viagem de seus pais de Mindelo a Lisboa. Licenciou­‑se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa e concluiu o Mestrado em Ciências da Educação na Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos. Professora e palestrante no meio académico, colabora e foi cofundadora de revistas e de boletins de ensaio e crítica literário­‑cultural cabo­‑verdianos, de que se destacam: Voz di Letra, Fragmentos, Pretextos, Magma, Cultura, da qual foi diretora, Arquipélago, Artiletra, Farol, Revista África – Literatura, Arte e Cultura. Foi membro do Governo de Cabo Verde (1991­‑1996), Deputada e 1ª Vice­‑Presidente da Mesa da Assembleia Nacional (1996­‑2001). Entre 2001 e 2004, foi Diretora Executiva do IILP ­‑ Instituto Internacional da Língua Portuguesa, uma Instituição da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP). Ondina Ferreira foi uma das primeiras subscritoras da Liga Cabo­‑Verdiana dos Amigos da Língua Portuguesa (LICALP), uma associação civil, apolítica, sem fins lucrativos, que tem por objetivo primordial a preservação, a difusão e a expansão oral e escrita da Língua Portuguesa entre os falantes cabo­‑verdianos. Ondina Ferreira, que também usa o pseudónimo Camila Mont’Rond, publicou as seguintes obras: Amor na Ilha e Outras Paragens (2001); Ponto de Partida e Outros Contos (2001); Maria Helena Spenser – Contos, Crónicas e Reportagens (2005) e Baltasar Lopes da Silva e a Música (2006). 0219


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RICARDO PINTO [Macau]

Ricardo Jorge Fonseca de Almeida Pinto nasceu em Nampula (Moçambique) em 15 de maio de 1962. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa, em 1988, iniciou a sua atividade profissional na Rádio Macau (1979­‑1981), tendo pertencido às redações da revista Auto Mundo (1982­‑1984), jornal Auto Sport (1985­‑1987), da RTP (1987­‑1990) e TDM (1990­‑1997). Em janeiro de 1998 assumiu a direção do semanário Ponto Final, em Macau. Em Portugal, tem colaboração dispersa nos jornais Expresso, Sete, A Tarde e O Jogo, na Rádio Renascença e na SIC. Ganhou o “Prémio Macau 1995” do Clube de Jornalistas pelo seu trabalho “Guerra em Paz”, publicado na edição de novembro de 1995 da Revista Macau. Em 2012 promoveu a realização do 1º Festival Literário de Macau – Rota das Letras, que teve em 2016 a sua quinta edição. Em 2014, o Governo da Região Administrativa Especial de Macau concedeu­‑lhe a Medalha de Mérito Cultural. 0220


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VERA DUARTE [Cabo Verde]

Natural do Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, Vera Duarte é juíza desembargadora e presidente da Academia Cabo­‑Verdiana de Letras, presidente da Associação Cabo­ ‑Verdiana de Mulheres Juristas, membro do Comité Executivo da Associação Internacional de Juristas, para além de participar em outras associações da sociedade civil cabo­‑verdiana, como a Associação de Escritores Cabo­‑Verdianos. Desempenhou, entre outros, os cargos de Ministra de Educação e Ensino Superior, presidente da Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania, Conselheira do Presidente da República e Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça. Em 1995, recebeu o Prémio Norte­‑Sul do Conselho da Europa, entregue em Lisboa pelo então Presidente da República Portuguesa, Dr. Mário Soares. Este prémio representou o reconhecimento do Conselho da Europa pela sua atividade em prol dos Direitos Humanos, sobretudo enquanto membro da Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, para a qual foi a primeira mulher a ser eleita, e da Comissão Internacional de Juristas. Vera Duarte estreou­‑se como escritora em 1993, com um livro de poesia. Desde então, tem publicado outras obras, de poesia, ficção e ensaio, e tem colaborado em revistas e jornais nacionais e internacionais. Foi galardoada com o Prix Tchicaya U Tam´si de Poésie Africaine pelo livro O Arquipélago da Paixão (poesia, 2001), e o Prémio Sonangol de Literatura pelo livro A Candidata (ficção, 2004). BIBLIOGRAFIA Poesia

Prosa

Exercícios poéticos, (2010)

A Palavra e os Dias (crónicas), (2013)

Preces e súplicas ou os cânticos da desesperança, Lisboa: Instituto Piaget (2005)

Construindo a utopia – Temas e Conferências sobre Direitos Humanos (ensaios), Cidade da Praia: Tipografia Santos, Lda, (2007)

O Arquipélago da Paixão, Mindelo: Artiletra (2001) Amanhã amadrugada, Lisboa: Vega (1993)

A candidata (romance), Luanda: União dos Escritores Angolanos (2003)

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YAO JINGMING [Macau, República Popular da China]

Yao Jingming, que usa o pseudónimo de Yao Feng, nasceu em Pequim, em 1958, e atualmente é professor associado na Universidade de Macau. Exerceu as funções de Vice­ ‑Presidente do Instituto Cultural de Macau, tendo dado início a vários projetos editoriais. Dedica­‑se à tradução literária, escreve poemas e crónicas, e já publicou, em chinês e em português, nove obras de poesia, de entre as quais se destacam: Nas asas do vento cego (1990), A noite deita­‑se comigo (2001), Canto para longe (2006), Poemas escolhidos, 2002­ ‑2008 (2008), In brief (2011), Palavras cansadas da gramática (2014). Yao Jingming coordena também a revista Poesia Sino­‑Ocidental e já recebeu vários prémios de poesia. Em 2006 recebeu a medalha da Ordem Militar de Santiago de Espada, atribuída pelo Estado Português. Como amador da arte, participou em várias exposições de fotografia e realizou uma exposição individual de instalação. Em 2015, foi convidado para participar no International Writing Program (IWP) na Universidade de Iowa, Estados Unidos. Em finais de 2016, Yao Jingming assumiu a direcção do Departamento de Português da Universidade de Macau. 0222


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ZECA MEDEIROS [Portugal]

José Medeiros, músico, compositor, ator e realizador, conhecido também no meio artístico por Zeca Medeiros, nasceu a 9 de dezembro de 1951, em Vila Franca do Campo, na Ilha de São Miguel, Açores. Começou a sua vida musical tocando a bordo do paquete “Funchal”. Após cumprir o serviço militar, começou a trabalhar para a RTP, entrando para os quadros da estação, em Lisboa. Com a abertura da televisão nos Açores, regressou à sua terra de origem, onde iniciou a sua carreira de realizador, durante a qual dirigiu, para a RTP Açores, vários filmes, encenou peças de teatro e foi autor e coautor das respetivas bandas sonoras e guiões. Zeca Medeiros realizou e compôs as bandas sonoras de obras que se tornaram referências do cinema para a televisão pública portuguesa, nomeadamente séries como “Mau Tempo no Canal”, baseado no romance homónimo de Vitorino Nemésio, “Xailes Negros” ou “Gente Feliz com Lágrimas”, baseado no romance homónimo de João de Melo. Com o grupo “Rosa dos Ventos”, gravou o álbum “Rimando contra a Maré” (1982). Em 1985 grava “Alabote”, seguindo­‑se o “Cinefilias e outras incertezas”, em 1999, “Torna Viagem” em 2003, “Fados, Fantasmas e Folias” em 2010 e, mais recentemente, “Aprendiz de Feiticeiro”. Durante o seu percurso participou em trabalhos discográficos de Dulce Pontes, Brigada Victor Jara, João Loio, Trigo Limpo, Viviane, Ala dos Namorados, Carlos do Carmo, Rui Veloso e Jorge Palma. Em 2005, recebeu o Prémio José Afonso pelo CD “Torna Viagem”, fazendo com este disco uma grande digressão pelo país, ilhas e diáspora. 0223






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