Ética e Cidadania - Perspectivas sobre o agir humano

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Perspectivas sobre o agir humano

Americana/SP - 2020


Copyright © 2020 Centro Universitário Salesiano de São Paulo Capa Marcus Vinicius Serra Projeto Editorial Marcela Comelato Projeto Gráfico Paula Leite Revisão Cirlene Ferreira

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ E85 Ética e cidadania [recurso eletrônico] : perspectivas sobre o agir humano / organização Antonio Wardison C. Silva, Eduardo A. Capucho Gonçalves, Sergio A. Baldin Júnior. - 1. ed. - Americana [SP] : Adonis, 2020. recurso digital Formato: ebook Requisitos do sistema: auto executável Modo de acesso: world wide web ISBN 978-65-86844-12-2 (recurso eletrônico) 1. Ética. 2. Educação (Ensino Superior). 3. Instituições religiosas. 4. Livros eletrônicos. I. Silva, Antonio Wardison C. II. Gonçalves, Eduardo A. Capucho. III. Baldin Júnior, Sergio A. 20-65671 CDD: 170 CDU: 17 Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472 30/07/2020 30/07/2020

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“A caridade, não raro confinada ao âmbito das relações de proximidade, ou limitada aos aspectos somente subjetivos do agir para o outro, deve ser reconsiderada no seu autêntico valor de critério supremo e universal de toda a ética social.” Compêndio da Doutrina Social da Igreja


Sumário Prefácio.......................................................................... 7 PARTE I – Concepção................................................... 11 1 Identidade institucional: promoção dos direitos humanos e da educação sociocomunitária..................................... 11 Edson Donizetti Castilho

PARTE II – Problemas éticos........................................ 53 2 Ética e Cidadania......................................................... 53 Valter Luiz Lara

3 Ética no âmbito das relações étnico-raciais e da cultura: questões afro-brasileiras, africana e indígena ............... 81 Antonio Tadeu de Miranda Alves Francisco Evangelista

4 Ética e Ciência............................................................ 103 Ilmário de Souza Pinheiro

5 Ética e Cosmologia..................................................... 125 João Baptista de Almeida Junior

PARTE III – Paradigmas éticos..................................... 149 6 Ética da felicidade e seus conceitos fundamentais..... 149 Lino Rampazzo

7 Perspectiva metafísico-cristã: reflexão moral.............. 169 Antonio Wardison C. Silva


8 Ética Deontológica na modernidade .......................... 207 José Marcos Miné Vanzella

9 Ética utilitarista e seu impacto na sociedade.............. 229 Antonio Wardison C. Silva Sérgio Augusto Baldin Júnior

10 Perspectivas do pensamento moral democrático na contemporaneidade......................................................... 247 Enrico Paternostro Bueno da Silva

PARTE IV – O agir humano........................................... 267 11 Doutrina Social da Igreja: princípios do bem comum, da subsidiariedade e da solidariedade............................ 267 Luís Fabiano dos Santos Barbosa

12 O comprometimento ético do profissional na sociedade................................................................... 293 Sérgio Augusto Baldin Júnior

Posfácio......................................................................... 309


Prefácio Desde a Grécia Clássica, o pensamento ocidental procurou estabelecer cânones para o exercício da reflexão e este esforço deu origem ao pensamento filosófico. A Filosofia é reconhecida como uma arte, uma técnica ou mesmo como a mãe das ciências modernas. Ao mesmo tempo que ela é origem do pensamento rigoroso e das ciências contemporâneas, não pode ser confundida com estes. Ela sustenta o status epistemológico das ciências modernas e recebe o influxo das mesmas ciências para sua atividade reflexiva. Mas ela, a Filosofia, é independente do método científico das ciências particulares. Por possuir status gnosiológico próprio e deste modo ser capaz de gerar uma reflexão pela razão, com a razão e na razão, a Filosofia é apta no discurso sobre os mais sortidos assuntos. Pela afluência de variados conhecimentos e de conteúdo dos diversos ramos do saber humano, a Filosofia também se diversificou em várias vertentes. Hoje, existe a filosofia da ciência, da linguagem, da matemática, da biologia, da mente e de temas clássicos, também chamados de tratados, tais como sobre a ontologia, sobre a natureza, sobre o conhecimento, dentre outros. Apesar do caleidoscópio da reflexão filosófica, alguns tratados conservam o status ímpar e um deles é o tratado sobre a ética. O pensador Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz, especialmente no seu Escrito de Filosofia II: Ética e Cultura, aborda a questão da ética em sua relação com a vida prática.

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Nesta proposta de pensamento, a reflexão sobre a vida prática, e consequentemente sobre a vida ética, começa na vida pessoal, ou seja, inicia-se no sujeito. A pessoa humana começa a assumir a sua condição ética quando é capaz de dizer “eu sou”. Contudo, quando a pessoa ética consegue fazer tal afirmação, a realiza em meio a uma comunidade, a uma sociedade, a um grupo humano. Tal testemunho é dado junto com outras pessoas capazes de proferir as palavras “eu sou”. A vida em sociedade faz parte de quem somos. O comportamento ético surge como virtude da própria dignidade humana. Se “eu sou”, as outras pessoas também “são”, e “eu sou” por causa delas e “elas são” por causa de mim. Uma sociedade, um grupo, uma nação é ética na medida que reconhece a dignidade das pessoas. Deste modo, a justiça se impõe como a virtude do existir em comum e com ela surgem outras virtudes e a lei. A ética caminha com a cidadania. E depois deste processo, a pessoa que afirma “eu sou” é capaz de pensar, refletir, buscar a vida conveniente. Mas, qual o significado da vida conveniente? Bem, cara leitora e caro leitor, o presente texto, Ética e Cidadania: perspectivas sobre o agir humano, abordará esta questão em doze capítulos, alocados em quatro partes. A primeira parte, o primeiro capítulo, apresenta os princípios a partir dos quais o Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL) coloca-se no mundo ético, no mundo da vida prática e dessa maneira faz a reflexão do que é ética. A segunda parte, com quatro capítulos, apresenta alguns problemas éticos do mundo hodierno e presentes no cotidiano da atividade acadêmica. A terceira parte, com cinco capítulos, traz os paradigmas éticos, ou seja, as linhas de raciocínio pelos quais algum problema ético pode ser pensado. A quarta e última parte, com dois capítulos, propõe atitudes éticas a partir da ação e da reflexão do agir cristão.

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Dito isto, o livro Ética e Cidadania procura ser um texto de base para a reflexão dos estudantes universitários sobre estes dois temas. Dentro do percurso formativo, estabelecido pela Política Educacional do UNISAL, a discussão sobre a ética e a cidadania precisa ser observada em íntima conexão com as reflexões propostas no texto Antropologia Teológica: Pensar o humano na Universidade. Como foi dito acima, o ser humano é ético quando é capaz de dizer “eu sou”, porém, esta pequena sentença é carregada de significados próprios da tradição judaico-cristã que quer responder perguntas tais como: Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Qual o sentido da vida? Dentre outras. É um trabalho próprio da vida universitária, a capacidade de articular conceitos e princípios na busca de uma síntese. É uma atividade exigente para os universitários, mas também é um privilégio do estudante realizar tal síntese e este é o escopo desta obra. P. Eduardo A. Capucho Gonçalves Reitor Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL)

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PARTE I Concepção 1 Identidade institucional: promoção dos direitos humanos e da educação sociocomunitária Edson Donizetti Castilho1 Introdução O propósito do presente trabalho, como indicado já no título acima, é refletir sobre o tema da identidade institucional. Neste caso específico, a identidade do Centro UNISAL a partir de um duplo horizonte: a promoção dos direitos humanos e a crença na educação sociocomunitária como escolhas, além de outras, constituintes dessa identidade. Para tanto, e precedendo a apresentação desses dois aspectos, consideraremos ainda o conceito de identidade institucional tendo como referência três critérios atitudinais imprescindíveis em nossos dias: pluralismo, escuta e diálogo. Esses aspectos todos são refletidos a partir de um dado irrecusável do ponto de vista salesiano: o “caráter católico” como descrito logo a seguir. Inicialmente, tenhamos como importante referência que o UNISAL pertence às IUS, entidade que reúne as 94 Instituições Salesianas de Educação Superior de todo o mundo, mais especificamente em 22 países e nos cinco continentes. Por isso, não há como abrir esta reflexão sem considerar quanto definido pelo próprio Centro Universitário Salesiano de São Paulo 1 Sacerdote Salesiano. Licenciado em Filosofia e Pedagogia. Bacharel em Teologia. Mestre e Doutor em Educação. Docente do Centro UNISAL/Lorena.

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(UNISAL) como sendo seu retrato identitário. Sinteticamente ele se apresenta como uma comunidade acadêmica em que: A inspiração cristã, a natureza católica e a identidade salesiana supõem uma visão do mundo e da pessoa humana enraizadas e em sintonia com o Evangelho, e uma pedagogia fundamentada sobre os valores do Sistema Preventivo vivido por Dom Bosco. Isso implica, concretamente: um compromisso de unidade e comunhão com a Igreja; uma opção decidida em favor dos jovens; uma comunidade acadêmica com clara identidade salesiana; um projeto cultural cristão e salesianamente orientado e uma intencionalidade educativo-pastoral.2

Para alcançar tal escopo e explicitando também outros elementos que lhe são identitários, esta comunidade acadêmica acredita que: A integração do conhecimento, o diálogo entre fé e razão, a busca contínua da verdade, a formação ética, o espírito de liberdade na caridade, o respeito recíproco e a promoção dos direitos humanos caracterizam e animam o UNISAL.3

Como um dos membros fundadores das IUS e dela fazendo parte até os dias atuais, não permanecem dúvidas sobre quais são os três elementos fundamentais que caracterizam a identidade “unisaliana”: uma instituição de educação superior de “inspiração cristã, caráter católico e índole salesiana”. 2 Disponível em: https://iussdb.com/docs/oficial/portugues/2.%20Identidade%20 das%20Institui%C3%A7%C3%B5es%20Salesianas%20de%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20Superior.pdf. Acesso em: 22 jun. 2020. 3 Portal do UNISAL. Disponível em: https://unisal.br/institucional/quem-somos. Acesso em: 22 jun 2020.

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De inspiração cristã porque radicada sobre uma visão de mundo e da pessoa humana vinculada a Jesus Cristo e ao seu Evangelho; o caráter católico afirma a crença inegociável de que o UNISAL nasceu do coração da Igreja Católica e está, filial e canonicamente, em comunhão com ela. Salientando quanto se refere à índole salesiana, o Centro UNISAL acredita que sua natureza, atividades/iniciativas e estilo comportam: uma opção prioritária pelos jovens, especialmente das classes populares; uma relação integral entre cultura, ciência, técnica, educação e evangelização, profissionalismo e integridade de vida; uma experiência comunitária baseada na presença, com espírito de família, dos docentes e do pessoal de gestão entre e para os estudantes; um estilo acadêmico e educativo de relacionamentos, baseado num amor manifestado aos alunos e por eles percebido (amorevolezza).4

Por isso, pode-se afirmar que assim como estabelecido pelo Concílio Vaticano II, ao definir que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias” de toda a família humana nos dias atuais, “sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” e que “não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no coração da Igreja”,5 também é dimensão identitária do UNISAL manter uma atenta e amorosa sensibilidade na escuta da sociedade, especialmente dos jovens, ainda que essas vozes tragam, eventualmente, severas e instigantes marcas de questionamentos e naveguem em tão turbulentas quanto superficiais águas das contradições. 4 Ibid. 5 PAULO VI. Gaudium et spes, n. 1.

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Em tempos como os nossos, caracterizados por avanços socioculturais que reclamam consequentes atitudes de respeito às diferenças, abertura a um legítimo pluralismo em todas as suas expressões, instituições que se transformem em autênticas comunidades dialogantes, crença vigorosa na possibilidade da comunhão e unidade, mesmo na diversidade, mais do que em outros contextos sócio-históricos, se impõe para nós, hoje, um caminho que considere urgentemente a radical importância da “identidade”, enquanto categoria fundamental para o progresso da sociedade humana e de todas as instituições que lhe dão rosto e história. Nosso entendimento é que, como afirmado nas primeiras linhas desse trabalho, o tema da “identidade institucional” não será devidamente enfrentado sem que sejam consideradas outras categoriais conceituais importantes. Três delas soam imprescindíveis à reflexão proposta: pluralismo, escuta e diálogo. Isso supõe a construção de um itinerário que se distancie, decididamente, de superficiais polarizações conceituais, de práticas rasteiras baseadas em doutrinações sectaristas, de fundamentalismos estéreis que flertam com o “não diálogo” e justificam atitudes de obediência cega a princípios que, em si, rejeitam qualquer possibilidade de olhares distintos, divergentes ou complementares. Sem esse urgente distanciamento, qualquer dessemelhança é má e por isso deve ser rechaçada. Expressão nada auspiciosa dessa compreensão, acompanhada geralmente por danosos resultados, é encontrada nas variadas formas de totalitarismos que se desenvolvem em muitas partes do mundo ainda em nossos dias. Torna-se oportuno fazer, também inicialmente, uma ressalva. Há quem entenda, claro que de forma essencialmente equivocada, o sereno diálogo e a escuta atenta, diante daquilo que lhe é diverso, como atitudes negativas. Isso porque creem

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que, assumir uma postura dialógica, significa aproximar-se de um perigoso “relativismo”, o que implicaria até mesmo uma imprópria barganha de valores, princípios e crenças. Que a Igreja e, como parte dela, também as instituições eclesiásticas, nesse caso as instituições universitárias chamadas confessionais-católicas, são convocadas ao exercício do diálogo, isso é reconhecido desde o início do cristianismo. E foi confirmada ainda em magistério recente, pelo Concílio Vaticano II e pelos últimos sumos pontífices. Aliás, eles estabeleceram isso tanto por seu magistério escrito quanto por suas atitudes. Pensemos no princípio básico que precede toda ação pastoral: “Deus não faz acepção de pessoas” (Atos 10,4).6 A partir desse critério capital, desabrocha um longo e fecundo caminho da Igreja Primitiva, nascida em contexto judaico, para aproximar-se de outras culturas e povos, os chamados “gentios”. Ninguém nega que para realizar essa desafiadora missão, não raras vezes, a Igreja acabou cometendo algumas distorções metodológicas e ferindo, em certos momentos de maneira inquestionável, o chamado princípio de humanidade. Mas não há dúvidas em relação a um aspecto: o caminho de anúncio da fé cristã, necessariamente, consolidou-se a partir do seu encontro com uma reconhecida diversidade cultural e religiosa presente em todo o império romano. Fato derivado do complexo mosaico cultural construído a partir dos variados povos, diferentes raças e múltiplas religiões que absorvidas durante a sua expansão e força hegemônica. Como não se encantar com o empenho de Paulo para levar o Evangelho àquele que, na ocasião, embora sob domínio do Império Romano, já se apresentava como o berço do pensamento filosófico e onde eram formuladas as explicações racionais para os grandes eventos da vida e da natureza, o mundo grego? 6 BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002. Todas as demais citações bíblicas serão apresentadas com base nesta tradução.

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Da mesma forma não será irrelevante considerar que, desde o primeiro momento, neste movimento estratégico para tornar conhecidos os fundamentos da fé cristã, a Igreja Primitiva tenha se permitido dialogar, numa perspectiva tão firme quanto dialógica, com prestigiadas ideias filosófico-religiosas presentes nesses contextos. Assim, vemos Paulo Apóstolo e outros anunciadores da fé cristã presentes, nos primeiros séculos do Cristianismo, nos mais variados ambientes culturais e religiosos7, debatendo com as ideias platônicas, com os epicuristas, os estoicos8, ou opondo-se, também sob a égide da razão humana, aos judaizantes e gnósticos, por exemplo. Creio não cometer engano quem afirma que está na gênese do cristianismo predispor-se para o debate, para o diálogo, para o encontro, para a interlocução com outros saberes, outras culturas e vivências. Fatos e posturas que ao longo da história do cristianismo se distanciaram desse olhar, com certeza, não foram inspirados nos critérios originários que moldaram a prática da Igreja Primitiva no confronto com outras culturas e povos. Fundamental é não favorecer distorções dentro do processo. Um legítimo pluralismo e uma honesta postura dialogal não postulam, de forma alguma, a assunção de um olhar relativista sob qualquer ótica. Muito menos objetivam a prática de concessões indevidas, quando estão em jogo certos valores e crenças institucionais. Seria imaturo, nada inteligente, mesmo inaceitável confundir uma coisa com outra. 1. Identidade, Pluralismo, Escuta e Diálogo: Um breve olhar sobre o magistério da Igreja nas últimas décadas Para considerar o valor do diálogo e o caminho da comunhão entre pessoas, grupos e instituições distintas, como realidades 7 “Dirigia-se também aos helenistas e discutia com eles” (At 9,29). 8 “Até mesmo alguns filósofos epicureus e estoicos o abordavam. E alguns diziam: ‘Que quer dizer este palrador?’. E outros: ‘Parece um pregador de divindades estrangeiras’. Isto porque ele anunciava Jesus e a Ressurreição (At 17,18).

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queridas pela Igreja, são abundantes as indicações do magistério e as motivações nascidas dentro dos chamados organismos eclesiásticos. Não menos profusos são os argumentos do magistério que nos recordam o quanto é nefasto o relativismo que desconsidera a possibilidade da validade universal de certos valores e estabelece as circunstâncias históricas e sociais como critérios absolutos para qualquer axiologia. O magistério eclesiástico insiste de tal forma nessa compreensão porque entende que, sob uma ótica relativista, torna-se improvável que a consciência humana estabeleça quaisquer evidências em termos morais e éticos. A chamada sociedade líquida e o contexto/fenômeno da pós-verdade são explicitações dessa tendência sociocultural tão presente em nossos dias e que denominamos relativismo. Para uma clareza maior, recuperemos, ainda que sem o necessário alcance e profundidade, o que ensina a Igreja sobre o valor do diálogo e necessária abertura em vista de uma adulta interlocução entre olhares e posicionamentos distintos nas várias dimensões da vida: social, política, cultural e religiosa. As referências poderiam ser muitas. Vamos nos ater a algumas que, embora poucas, parecem-nos suficientes. Recordemo-nos que logo no início de seu pontificado, estando já em curso o Concílio Vaticano II, em sua primeira carta encíclica intitulada Ecclesiam suam,9 o Papa Paulo VI, atualmente já canonizado, ao apresentar os três grandes pensamentos que o motivaram na elaboração da carta, afirma: O nosso terceiro pensamento, que será também vosso, deriva dos dois primeiros: Quais as relações que a Igreja deve hoje estabelecer com o mundo que a circunda e em que vive e trabalha? Uma parte deste mundo, como todos sabem, recebeu influxo profundo do cristianismo e absorveu-o intimamente, apesar de agora mui9 PAULO VI. Ecclesiam Suam, publicada em 19 de outubro de 1964.

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tas vezes não reconhecer que lhe deve o que tem de melhor; a cristandade foi-se distanciando e separando, nestes últimos séculos, da origem da sua civilização. E outra parte, e a maior, deste mundo dilata-se pelos horizontes ilimitados das nações novas, como se costuma dizer. Uma parte e outra formam um mundo só, que oferece à Igreja não um, mas mil contatos possíveis: evidentes e fáceis, alguns; delicados e complexos, outros; hostis e refratários ao colóquio amigo, hoje muitíssimos, infelizmente.10

O escopo estabelecido por Paulo VI torna-se ainda mais claro e projeta-se como um largo desafio com a afirmação que ele faz logo em seguida: É o chamado problema do diálogo entre a Igreja e o mundo moderno, problema cuja apresentação, na sua amplitude e complexidade, cabe ao Concílio, como também o esforço para o resolver da melhor maneira possível. A realidade, porém, e a urgência do problema, se por um lado nos afligem, são-nos por outro estímulo, quase diríamos vocação. Este ponto era desejo nosso aclará-lo de algum modo aos nossos olhos, e aos vossos, Veneráveis Irmãos. Não estais, sem dúvida, menos habituados que nós a senti-lo nas suas exigências apostólicas. Desejávamos propor este exame como preparação comum nossa, para as discussões e deliberações que no Sínodo Ecumênico, todos juntos, julgarmos oportunas em matéria tão grave e complexa.11

Ao construir, ao longo desta encíclica, um atento e crítico olhar sobre a eclesiologia daquele momento, o Papa Paulo VI vai esclarecendo e lançando, de maneira instigante e clara, 10 Disponível em: www.vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_ enc_06081964_ecclesiam.html. Acesso em: 22 jun. 2020. 11 Ibid.

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propostas e caminhos a serem considerados pela Igreja, máxime, pelo Concilio Vaticano II, na ocasião, já caminhando para o seu encerramento. Não tem receio em afirmar que a Igreja, embora nascida de um querer divino, está sujeita a um caminho de renovação: Perfeita no seu conceito ideal, no desígnio de Deus, a Igreja deve ir-se aperfeiçoando sempre na expressão real, na sua existência terrestre.12

O caminho proposto é o da comunhão, da unidade, da abertura, tendo sempre o diálogo como método. Importante, ao mesmo tempo, é olhar o quanto se acredita, segundo a referida encíclica, que esse percurso de diálogo e busca de comunhão pode contribuir para uma autêntica cultura de paz entre os povos. Isso ocorrerá desde que considerados alguns aspectos importantes: A abertura dum diálogo, tal como deseja ser o nosso, desinteressado, objetivo e leal, pesa já por si em favor duma paz livre e honesta; exclui fingimentos, rivalidades, enganos e traições; não pode deixar de proclamar, como delito e como ruína, a guerra de agressão, de conquista e de predomínio, nem pode excluir, para além das relações entre os vértices das nações como hoje se diz, as existentes no interior das mesmas e as suas bases tanto sociais como familiares e individuais. Assim se difundirão em todas as instituições e em todos os espíritos o sentido, o gosto e o dever da paz.13

Aprender a dialogar de forma madura e profunda, eis um dos grandes desafios apresentados à sociedade hodierna. No caso das instituições confessionais cristãs-católicas, que 12 PAULO VI. Ecclesiam Suam, n. 19. 13 Ibid., n. 59.

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construíram e consolidaram, durante séculos, um itinerário radicado em uma perspectiva de hegemonia ou supremacia social, de autorreferencialidade religiosa e cultural, isso torna-se ainda mais urgente. Alegramo-nos e sentimo-nos confortados ao observar que o diálogo no interior da Igreja, e com os de fora que lhe estão mais próximos, se vai já praticando: a Igreja está hoje mais do que nunca viva! Mas, reparando bem, parece que tudo está ainda por fazer, o trabalho começa hoje e não acaba nunca. É lei da nossa peregrinação na terra e no tempo. É este, Veneráveis Irmãos, o múnus habitual do nosso ministério: tudo o estimula hoje a renovar-se, a tornar-se vigilante e operoso.14

Indicando claramente um novo caminho para a Igreja e, consequentemente, para todos os organismos e instituições pertencentes à Igreja Católica, afirma ainda o Papa Paulo VI na mesma Eclesiam Suam: Torna-se imperativo, no caminho que acredita no diálogo e na comunhão, recordar o grande evento do Concílio Vaticano II: O Concílio Vaticano II (1962-1965) representa um dos eventos mais importantes na dinâmica do cristianismo contemporâneo. Trata-se de um acontecimento pioneiro e de originalidade única, que provocou “a mais vasta operação de reforma” realizada no âmbito da igreja católica romana. Ao contrário de concílios anteriores, envolvidos por dinâmica apologética e de controvérsia doutrinal, o Vaticano II move-se por preocupação eminentemente pastoral. O discurso de João XXIII, por ocasião da abertura do Vaticano II, marca uma mudança de perspectiva decisiva. O fundamental agora não era mais a luta contra o erro e o uso da severidade, que 14 Ibid., 68.

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pontuaram o catolicismo romano no período anterior, mas a “medicina da misericórdia”, a busca de “aggiornamento”. (...) Esta sensibilidade de abertura foi essencial para a instauração de um clima de diálogo não só com o mundo moderno, mas também de retomada das instâncias ecumênica e inter-religiosa. A igreja católica estava agora envolvida por uma nova solicitação, marcada pela tônica da busca e o imperativo da comunhão.15

Representou um olhar novo da Igreja, tanto “ad intra” quanto “ad extra”. Em linguagem metafórica, uma verdadeira primavera: Esta convocação à abertura presente no evento conciliar não aconteceu sem dificuldades, tensões, embaraços e resistências. Já a decisão de João XXIII de anunciar a convocação do concílio em janeiro de 1959 causara vivo mal-estar. Tratava-se de um ato inesperado, imprevisto e surpreendente para quase todos os ambientes, tomados que estavam pelo clima de ´guerra fria´ e acomodados na aceitação de um catolicismo imóvel nas suas certezas. Em ato de grande alcance histórico, João XXIII manifesta sua intenção em favor de um “concílio novo”, realizado em horizonte de liberdade, e não uma mera continuação do Vaticano I. As intenções pastoral e ecumênica estavam já presentes na sua proposta de “dar um salto para frente” e “dilatar os espaços da caridade” até os confins da humanidade.16

Ainda que o Vaticano II tenha um documento específico para tratar do ecumenismo, cremos ser oportuno para o reconhecimento da Igreja Católica, enquanto comunidade dialogante, 15 TEIXEIRA, Faustino. O Concílio Vaticano II e o Diálogo Inter-Religioso. Disponível em: https://fteixeira-dialogos.blogspot.com/2010/04/o-concilio-vaticano-ii-e-as-religioes.html?m=1. Acesso em: 22 jun. 2020. 16 Ibid.

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recordar a declaração conciliar denominada Nostra Aetate (sobre o Diálogo Inter-Religioso). Podemos considerar os seguintes aspectos como sendo os mais relevantes deste documento: a crescente interdependência dos povos; a eterna busca da humanidade para as grandes e permanentes indagações da existência humana: a origem/sentido da vida, o sofrimento, a morte, o destino final reservado à humanidade; a admissão das religiões como caminho de busca de Deus ou do Absoluto no contexto das muitas etnias e culturas. O mesmo documento, evidenciando a mediação do diálogo, estabelece um critério sereno e profundamente humanista em relação à verdade e beleza presentes nas várias religiões cujos seguidores devem ser respeitados em suas escolhas mais fundamentais. Podemos dizer, reconhecendo ainda hoje a validade dos princípios enunciados na Nostra Aetate, que a Igreja, aberta ao diálogo com todos, é, ao mesmo tempo, fiel às verdades nas quais crê, a começar por crer que a salvação oferecida a todos tem sua origem em Jesus, único salvador, e que o Espírito Santo permanece atuando como fonte de paz e amor.17

Há uma conhecida e exigente expressão atribuída a Antônio de Pádua18 e que ressoa muito atual até hoje, mesmo depois de tantos séculos: “cessem as palavras; falem as atitudes/obras”. Nesse sentido, creio oportuno reconhecer que os gestos, por sua densidade narrativa, são belamente eloquentes quando expressam propósitos tão claros quanto nobres. 17 GUIXOT, Miguel Ángel Ayuso, MCCJ. Secretário do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Disponível em: www.arqrio.org/files/repository/4___Guixot_1_27012017144803.pdf. Acesso em: 26 jun. 2020. 18 Santo Antônio de Pádua (1195-1231), nascido Fernando de Bulhões, em Lisboa/ Portugal, franciscano, é um santo venerado pela Igreja Católica. Foi canonizado pelo Papa Gregório IX em 30 de maio de 1232. Seu dia festivo é comemorado no Brasil e em Portugal em 13 de junho.

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Contemplemos dois deles, ambos referidos a Paulo VI: o primeiro se refere à sua visita à Assembleia Geral da ONU19 quando apresentou a Igreja como uma “perita em humanidade”; o segundo recorda o seu profético encontro com o Patriarca Atenágoras, ocorrido em Jerusalém no dia 06 de Janeiro de 1964, encerrando o doloroso fato da excomunhão recíproca entre Roma e Constantinopla. Após quase mil anos de distanciamento e silêncio, o abraço entre Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras reafirmou a possibilidade de comunhão e unidade entre as duas igrejas e deu início ao processo de revisão e superação das feridas e cicatrizes deixadas pelos muitos séculos de recíproca excomunhão. As duas situações, mais ainda se contempladas no tempo/contexto em que tiveram lugar, expressam um decidido movimento na elaboração de uma nova eclesiologia conforme desejada e proposta pelo Concílio Vaticano II. Mais recentemente, ainda que não em um documento pontifício, o Papa Bento XVI, escrevendo ao matemático Piergiorgio Odifreddi, tanto pelo conteúdo da carta quanto pela nobreza do gesto, estabelece, uma vez mais, com serena honestidade, o quanto é enriquecedor assumir uma postura dialógica com a cultura hodierna. A carta escrita por Bento XVI se apresenta como uma “resposta” a um livro publicado por Piergiorgio Odifreddi, intitulado Caro Papa, ti scrivo (2011). Naquela ocasião, o próprio autor Odifreddi apresenta sua obra como sendo uma “luciferina introdução ao ateísmo”. Afirma que seu livro foi escrito após ter lido “Introdução ao cristianismo” do então sacerdote, teólogo-professor, Joseph Ratzinger. O objetivo apresentado pelo matemático Odifreddi: “expor honestamente as perplexidades, e às vezes incredulidade, de um matemático sobre a fé”.20 19 PAULO VI. Discurso na Assembleia Geral da ONU, em 04 de outubro de 1965. Disponível em: www.vatican.va/content/paulvi/pt/speeches/1965/documents/hf_pvi_ spe_19651004_united-nations.html. Acesso em: 22 jun. 2020. 20 UNISINOS. Disponível em: www.ihu.unisinos.br/171-noticias/noticias-2013/ 524052-bento-xvi-escreve-ao-matematico-ateu-caro-odifreddi-vou-lhe-contar-quem-foi-jesus. Acesso em: 28 jun. 2020.

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Por sua vez, ao comentar a obra Caro Papa, ti scrivo, Bento XVI, já emérito, afirma inicialmente: Professor Odifreddi, (…) eu quereria agradecer-lhe por ter buscado, até nos detalhes, confrontar-se ao meu livro e assim a minha fé; em grande parte é bem isso que eu descrevera em meu discurso à Cúria Romana na ocasião do Natal 2009. Eu devo igualmente agradecer-lhe pela fidelidade com a qual o senhor tratou meu texto, procurando sinceramente fazer-lhe justiça. Meu julgamento a respeito do seu livro é de que ele é um tanto contraditório. Eu li certas partes com prazer e proveito. Em outras partes, porém, eu me surpreendi com certa agressividade e ousadia na argumentação.21

Por sua vez, após receber a carta de Bento XVI e ao comentá-la em um artigo, o matemático Odifreddi afirma que resolveu escrever direta e publicamente ao Papa, no formato de um livro, porque entendeu: que a fé e a doutrina de Bento XVI, diferentemente da de outros, eram suficientemente coerentes e sólidas para que ele conseguisse encarar e rebater ataques frontais. Um diálogo com ele, ainda que imaginado à distância, poderia, pois, confirmar-se estimulante e nada banal, algo para afrontar com cabeça erguida.22

Depois de receber a “resposta” de Bento XVI, ao comentá-la e dirigindo-se ainda ao pontífice, Odifreddi reconhece que: escrevendo meu livro como um comentário ao seu, eu tentei encorajar a possibilidade, ainda que distante, de que um dia o destinatário poderia de fato a 21 Ibid. 22 Ibid.

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receber. Eu havia pois baixado os tons sarcásticos de outros ensaios, escolhendo um estilo de permuta entre professores “em igualdade”, obviamente em sentido acadêmico do termo. Eu havia acentuado os argumentos intelectuais sobre os quais eu esperava atrair sua atenção, sem renunciar a atacar de frente os problemas internos da fé e suas relações exteriores com a ciência.23

Importa aqui, como argumento favorável ao reconhecimento do diálogo entre identidades diversas, o que se revela nas entrelinhas do debate entre o papa emérito Bento XVI e o matemático ateu Piergiorgio Odifreddi: um diálogo entre a fé e a razão que permitiu a ambos um confronto franco, por vezes duro, como afirma, ao final de sua carta, o papa emérito. Professor, minha crítica ao seu livro é em parte dura. Mas a franqueza faz parte do diálogo; o conhecimento só pode crescer desse modo. O senhor foi bem franco e eu espero que aceite minha crítica com o mesmo espírito. Em todos os casos, eu avalio positivamente o fato que através de sua confrontação com minha introdução ao cristianismo, o senhor tenha procurado um diálogo aberto com a Fé da Igreja Católica e que, não obstante os contrastes, no campo central, há várias convergências. Com minhas saudações cordiais e votos de uma boa continuação em seu trabalho.24

Não menos interessante é a consideração sobre o teor do comentário de Piergiorgio Odifreddi sobre a resposta de Ratzinger/Bento XVI:

23 Ibid. 24 Ibid.

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Meu foco não foi falseado, já que atingiu sua meta: que obviamente não era de tentar “converter o papa”, mas de expor honestamente as perplexidades, e às vezes incredulidade, de um matemático sobre a fé. Do mesmo modo a carta de Bento XVI não procura “converter o ateu”, mas lhe remete honestamente à perplexidade simétrica, e às vezes incredulidade, de um cristão muito especial sobre o ateísmo.25

Perdura ainda, no caso de Joseph Ratzinger, como testemunho de abertura ao diálogo, sem o equivocado comprometimento de suas crenças e valores, o encontro que teve com o filósofo alemão Jürgen Habermas na Academia Católica da Baviera, Munique, em 19 de janeiro de 2004. Discutiram questões políticas, morais, o papel do Estado democrático, economia/capitalismo, fé e razão, globalização e papel da mídia nas sociedades pluralistas. Também entraram na pauta dos debates entre os dois, a questão do diálogo intercultural, o papel da filosofia e da teologia, a dimensão da liberdade humana e religiosa, fanatismo religioso, entre outros. O debate entre esses dois grandes intelectuais contemporâneos reafirmou o valor e a correlação entre razão e fé, rejeitando as patologias religiosas/fundamentalistas e, ao mesmo tempo, não esquecendo as patologias geradas no âmbito de um racionalismo radical e absolutizado. Embora tenhamos salientado a encíclica “Ecclesiam suam” e estimado, sobremaneira, o Concílio Vaticano II como um todo, não são poucos, enfim, os documentos eclesiásticos que estimulam o exercício do diálogo na contemporaneidade. E o espaço acadêmico-universitário, em se tratando de uma instituição confessional como é o caso do UNISAL, deve ressoar, com criativa maturidade, essas crenças da Igreja na sua relação com a cultura e os povos. 25 Ibid.

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Dialogar implica predispor-se à escuta! E uma escuta que remete, e isso cada vez mais, a um contexto plural com elevado alcance de complexidade. Não é fácil escutar os sinais, os apelos, a realidade com suas intrincadas e, muitas vezes, dissonantes tramas e ambiguidades; escutar os silêncios, os desejados e aqueles impostos. Escutar tanto auricularmente quanto cordialmente. Escutar inteligentemente. Escutar corajosa e amorosamente. Necessário igualmente que essa escuta não se aproxime do medo, da omissão, da mera conveniência, da arrogância, da timidez ou insegurança. Uma escuta apoiada no valor humano da liberdade e na profunda consciência em relação à dignidade de toda/cada pessoa. 2. Identidade Institucional: entre a expressão de um direito e a força de um empenho Nós convivemos cotidianamente com certos valores que nos remetem, imediata e claramente, à categoria de identidade. E, em geral, afirma-se que é sempre muito interessante conviver com pessoas que explicitam a própria identidade sem oportunistas camuflagens ou indevidas e imaturas concessões de crenças, princípios e valores. Tanto pessoal quanto coletivamente, há uma tendência a se olhar de forma reconhecida a pessoa que pauta sua conduta por uma firmeza de princípios, expressa-se com autenticidade, é coerente na relação entre o seu “falar” e o seu “agir”, não tergiversa quando em jogo estão as suas crenças, é tão firme quanto serena e respeitosa nas situações conflituosas, reflete maturidade quando em contexto de diversidade, expressa com elegante objetividade seus pontos de vista, testemunha espírito de resiliência e elevada estatura dialógica quando duramente questionada em seus valores. Não raras vezes, diante de pessoas assim, afirmamos tratar-se de uma pessoa com identidade,

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justamente porque não dada a fazer barganhas que reflitam incoerências ou infantis e equivocados consentimentos valorativos. Consideremos ainda que na construção da identidade pessoal participam incontáveis aspectos históricos, sociais, culturais, biológicos, familiares e religiosos. Por ser resultado de um processo que se desenvolve no tempo e no espaço, a identidade pessoal vincula-se à perspectiva de unidade do/no ser e, ao mesmo tempo, por ser tarefa sempre inacabada, está alinhada ao conceito de continuidade na busca de uma inteireza subjetiva. São componentes dialogantes nesse processo de elaboração de uma identidade pessoal, outros fatores que corroboram a formação de uma identidade social e profissional. Distanciando-nos do âmbito pessoal/individual, podemos considerar que caminho distinto não pode ser percorrido pelas instituições e corporações de modo geral. Nos vários modelos que orientam o empenho de construção de projetos estratégicos corporativos, todos eles consideram como elemento fundamental o trabalho que visa definir, com clareza e profundidade, quais são os valores, a visão e a missão, ou seja, os grandes princípios e crenças que nortearão as escolhas a serem estabelecidas do ponto de vista estratégico e institucional de uma referida empresa/grupo corporativo. É possível discordar de escolhas político-institucionais feitas por determinado grupo, mas é fundamental que as corporações empresariais, sociais, educativas, religiosas, definam com clareza aquilo que popularmente denominamos “negócio”. A relevância e possível consolidação de um grupo/corporação dentro da complexa sociedade hodierna, reclama, como condição “sine qua non”, uma urgente definição de sua identidade. Embora carregue uma substanciosa força interna, faz-se necessário afirmar que a identidade institucional está amparada também por uma criativa dinamicidade que lhe permite suficiente mobilidade na busca da necessária aderência aos

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tempos e aos contextos. A identidade institucional, ainda que reflita a consistência e riqueza da imagem corporativa, não pode permitir que a organização, em algum momento, ao ser submetida a um olhar inflexível e hermético, seja conduzida à asfixia que não permite aderência às mudanças socioculturais, político-econômicas e psicopedagógicas. Justamente por isso, o entendimento proposto por este trabalho é que definir uma identidade corporativa/institucional, nos vários âmbitos da vida sociopolítica, econômica e religiosa, é um necessário objetivo que navega no diálogo entre duas urgentes dimensões: • é a expressão de um direito; • ao mesmo tempo, revela a força de um empenho; no caso do Centro UNISAL chamamos a este empenho de “missão”, “vocação”, “carisma” ou um “espírito”. Exatamente por não se tratar de um empenho referido unicamente à dimensão material, organizativa ou física. Em termos de gestão e governança corporativa, envidar esforços para definir e concretizar um estatuto identitário institucional não deve gerar temores e inseguranças no espaço organizativo-empresarial; pelo contrário, realizar essa tarefa favorece segurança no caminho e estabelece válidos critérios para as relações sociais, tanto entre as pessoas quanto em relação aos grupos aos quais elas pertencem. De forma mais direta: é fundamental estabelecer a missão, as regras, os princípios, os valores, as prioridades e, a partir disso, conduzir-se conforme o estabelecido. 3. Identidade Institucional: o UNISAL e seu caráter confessional católico Numa sociedade que se caracteriza pela multiplicidade de colorações ideológicas e vigorosos embates conceituais, pela emergência de grupos e movimentos até recentemente 29


silenciados, por uma acentuada perspectiva revisionista da história e da cultura, vinculada, não raras vezes, a uma perigosa tendência ao relativismo, construir caminhos identitários soa tão desafiador quanto urgentemente necessário. O Centro UNISAL, como já referido anteriormente, afirma-se como portador de “um caráter católico”. Para além dos emaranhados conceituais que envolvem o empenho para construir uma definição de “caráter” e que alcançam elementos genéticos, biopsíquicos, socioambientais, antropológicos/culturais, políticos, entre outros, diz-se que o “caráter católico” do UNISAL se apoia no que afirma a Igreja Católica. Na compreensão eclesiástica a universidade católica se apresenta como: uma comunidade acadêmica que contribui, de modo rigoroso e crítico, para a defesa e o desenvolvimento da dignidade humana e para a herança cultural, mediante a investigação, o ensino e os diversos serviços prestados à comunidade. Para tanto ela goza daquela autonomia institucional que é necessária para cumprir, eficazmente, suas funções e garante aos seus membros a liberdade acadêmica na salvaguarda dos direitos do indivíduo e da comunidade no âmbito das exigências da verdade e do bem comum.26

O Centro UNISAL expressa essa catolicidade, para além do caráter jurídico-canônico, buscando ser uma presença cristã no mundo acadêmico-universitário, na sociedade, no mundo da cultura. Sua proposta reclama que as atividades universitárias, os organismos que o configuram, seus estatutos e regulamentos internos, suas linhas de pesquisa, suas políticas de ação, tudo se oriente pelos ideais, crenças e princípios católicos. Dessa forma, docentes, discentes, pesquisadores, gestores, “examinem a fundo a realidade, com os métodos próprios de cada 26 JOÃO PAULO II. Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae, n. 13.

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disciplina acadêmica, e contribuam para o enriquecimento do tesouro dos conhecimentos humanos”.27 Isso implica afirmar que entre os elementos constitutivos do fazer acadêmico “unisaliano” encontram-se, como luzeiros que a tudo precedem, um empenho axiomático na investigação da verdade e uma crença, tão serena quanto inconteste, na promoção do diálogo entre fé e razão. Sobre essa dupla escolha recordemos as palavras de João Paulo II: A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio.28

Trata-se nesse caso de uma autêntica investigação de toda a verdade sobre a natureza, o homem e Deus. Acredita o UNISAL, o que está presente também em seu caráter católico, que afirmar o “sentido da verdade” corrobora e sustenta, de maneira decisiva e corajosa, a busca pelos valores da liberdade, da justiça, da dignidade humana. O referido “caráter católico” do UNISAL estabelece ainda, entre outros, dois fundamentais princípios: 1. tanto as realidades terrenas quanto os valores/vida da fé têm a mesma origem suprema que é o próprio Deus; 2. como o serviço de uma universidade católica está amparado pelo reconhecimento da dignidade humana, em todo o trabalho, tanto de docência quanto de investigação científica e tecnológica, as implicações éticas e morais deste serviço devem ser salvaguardadas sempre. 27 Ibid., n. 17. 28 JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Fides et Ratio.

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É a partir deste horizonte que as instituições confessionais, como o Centro UNISAL, contemplam todos os fenômenos socioculturais, políticos e econômicos, verificando o que carregam e manifestam como “valor” e denunciando suas contradições e aquilo que representa um distanciamento do chamado “princípio de humanidade”. E assim pode-se afirmar que: não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no coração da Igreja. (...) Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história.29

Desde quando foram fundadas as primeiras universidades, em Bolonha, Paris e Oxford, no contexto da Idade Média e, em se pautando por um critério de honestidade histórica, nascidas no âmbito da Igreja Católica, o espírito da racionalidade passou a ocupar um espaço privilegiado nos ambientes universitários, alcançando, pouco a pouco, as muitas áreas do conhecimento, algumas até então pouco exploradas sob o critério que denominamos rigor científico. Nesse sentido é impróprio afirmar que as universidades com “caráter católico”, porque não renunciam à dimensão teológica e da fé na revelação trazida por Jesus Cristo, não são afeitas aos critérios da ciência ou ao que estabelecem os protocolos da razão. Já na Idade Média o ocidente recebeu um vigoroso influxo para o desenvolvimento das ciências, particularmente das ciências sociais, graças ao quanto as universidades católicas valorizaram a razão humana, considerada como válido critério na mediação derradeira para debates, polêmicas e conflitos conceituais entre pesquisadores e intelectuais da época. O que se deu ao longo da história e ressoa ainda em nossos dias é um processo de redução da razão a uma condição que não lhe é devida, absolutizada a partir de uma compreensão de 29 PAULO VI. Gaudium et Spes, proêmio.

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matriz iluminista e positivista. E aí, neste caso, as instituições confessionais/católicas têm o direito e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de oferecer uma contribuição. A pertinente crítica feita a um histórico endeusamento da razão nos remete também a um pensar sobre os limites da ciência. Isso se torna ainda mais urgente quando a razão e a ciência são, indevidamente, vinculadas a projetos de poder, seja de poder político, econômico, ideológico ou de qualquer outra ordem. Urgente para ser pensado, desastroso se assim não for. Conferir à razão e à ciência uma função operacional/funcional, capaz de controlar a questão da verdade/falsidade a partir da experiência vinculada às ciências positivas como critério resolutivo inquestionável é, uma vez mais, propor-lhes um espaço diminuto e desonesto. Neste sentido é oportuno recordar que a própria razão e a ciência, nas últimas décadas, têm feito um caminho de autolimitação, buscando superar um olhar reducionista sobre si mesmas e reafirmar seu estatuto epistemológico mais amplo. Poderíamos falar de uma crítica à razão moderna a partir dela mesmo, do seu interior, à consciência de seu caráter limitado e limitante a partir do caminho por ela mesma percorrido. Parece-nos bom relembrar aqui as sábias palavras de Bento XVI quando de sua visita à Universidade de Regensburgo/Alemanha. Na ocasião, durante a aula magna que proferiu, ao refletir sobre a questão fé e razão, filosofia e teologia, reafirmou a possibilidade do diálogo entre ambas e fez um sereno e claro alerta: Trata-se de uma condição perigosa para a humanidade: constatamo-lo nas patologias que ameaçam a religião e a razão – patologias que devem necessariamente eclodir quando a razão fica a tal ponto limitada que as questões da religião e do ethos deixam de lhe dizer respeito. O que resta das tentativas de construir uma ética partindo das regras da evolução ou da psicologia e da sociologia, é simplesmente insuficiente. 33


Quando uma instituição confessional diz acreditar na razão ou, melhor ainda, considerando a “vastidão da razão” como ensejado por Bento XVI, isso nos possibilita afirmar que: alargar o uso da razão significa, então, levar a sério toda a extensão da experiência humana, surpreender todos os aspectos da realidade, percorrer todo o itinerário que nos conduz da circunstância concreta ao reconhecimento do fundamento, do significado total, no fundo, do Mistério presente.30

Vejamos, por exemplo, as incontáveis contradições e limites humanos que nos precederam e que ocorreram durante o século XX: duas grandes guerras mundiais além de tantos outros conflitos bélicos, regimes totalitários com consequências danosas para milhões de pessoas (nazismo, fascismo, entre outros), doenças que desconheceram limites físico-geográficos e culturais, continuado desrespeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, gigantescas catástrofes socioambientais, para citar algumas expressões daquilo que se denomina, em linguagem antropológica/filosófica, crise da razão instrumental. Parece oportuno considerar, sob esse aspecto, que: alguns pensam que a sociedade moderna entra em crise por um excesso de racionalidade, que tornaria árida a convivência social, devendo-se dar mais espaço ao sentimento para equilibrar a situação. Pelo contrário, a sociedade moderna entra em crise por uma carência da razão, usada segundo o paradigma iluminista/positivista, que não é mais capaz de dar conta de todos os fatores da realidade, de orientar suas conquistas para responder às exigências humanas.31 30 PETRINI, Giancarlo. A identidade da universidade católica e sua contribuição à vida acadêmica e social. In: VALENTINI, Vando; RIBEIRO NETO, Francisco Borba; ALVES, José Antonio de Souza (Org). A missão e a identidade da Universidade Católica no mundo atual. São Paulo: EDUC. 2010, p. 45. 31 Ibid. p. 27.

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O Centro UNISAL, por sua índole identitária católica, reconhece, portanto, o valor da razão enquanto capaz de propor as perguntas fundamentais para a existência humana. E por isso, sabendo estar na contramão de alguns modernos sistemas filosóficos, acredita na beleza e simultaneamente na concreta impossibilidade da razão e da ciência em oferecer, ainda que amparadas por rigorosos métodos investigativos, as respostas plenas para as perguntas medulares que o ser humano propõe. Faz sentido, sob esta ótica, a afirmação de Bento XVI quando, dirigindo-se à comunidade acadêmica da Universidade La Sapienza, em Roma, recordou que definir a missão da universidade é uma questão de “enorme alcance” e ainda: creio que se possa afirmar que a verdadeira e íntima origem da universidade esteja na sede do conhecimento, que é próprio do homem. Este quer saber o que é tudo aquilo que o circunda. Quer a verdade. (...) o homem quer conhecer, quer se encontrar com a verdade.32

Acredita o Centro UNISAL, também por seu caráter católico, que a razão se orienta por um autêntico humanismo, ampara-se por uma cultura metafísica que não permite ao ser humano sentir-se desamparado em sua busca pela verdade. No que diz respeito aos dois grandes temas “razão” e “liberdade”, aqui é possível apenas acenar às questões relacionadas com eles. Sem dúvida, a razão é o grande dom de Deus ao homem, e a vitória da razão sobre a irracionalidade é também um objetivo da fé cristã. Mas, quando é que a razão domina verdadeiramente? Quando se separou de Deus? Quando ficou cega a Deus? A razão inteira reduz-se à razão do poder e do fazer? Se o progresso, para ser digno deste nome necessita 32 BENTO XVI. Siete discursos universitarios de Benedicto XVI. Fundación Universitaria Española. Madri: 2011, p. 127-128.

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do crescimento moral da humanidade, então a razão do poder e do fazer deve de igual modo urgentemente ser integrada mediante a abertura da razão às forças salvíficas da fé, ao discernimento entre o bem e o mal. Somente assim é que se torna uma razão verdadeiramente humana. Torna-se humana apenas se for capaz de indicar o caminho à vontade, e só é capaz disso se olhar para além de si própria.33

Atribuir um grau extremo de exaltação à racionalidade moderna, nos moldes como preconizado pelo ideal positivista/ iluminista e, mais ainda, desconsiderar a metafísica clássica conferindo-lhe desconfiança e/ou fracasso, nada mais indevido. Há aqueles que, inclusive, consideram o advento da razão em sua matriz iluminista/positivista e da ciência concebida a partir dessa matriz como tendo sido a causa fundamental da redenção do homem, mergulhado até então num “espaço de trevas”. Uma instituição confessional não participa desse olhar. Compreende que: a ciência pode contribuir muito para a humanização do mundo e dos povos. Mas, pode também destruir o homem e o mundo, se não for orientada por forças que se encontram fora dela. Além disso, devemos constatar também que o cristianismo moderno, diante dos sucessos da ciência na progressiva estruturação do mundo, tinha-se concentrado em grande parte somente sobre o indivíduo e a sua salvação. Deste modo, restringiu o horizonte da sua esperança e não reconheceu suficientemente sequer a grandeza da sua tarefa – apesar de ser grande, o que continuou a fazer na formação do homem e no cuidado dos fracos e dos que sofrem. Não é a ciência que redime o homem.34 33 BENTO XVI. Carta Encíclica Spes Salvi, n. 23. Disponível em: www.vatican.va/ content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi. html. Acesso em: 01 jul. 2020. 34 Ibid., n. 25-26.

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O “caráter católico” de uma instituição confessional como o Centro UNISAL, portanto, não se avizinha do olhar segundo o qual o grande critério da racionalidade e da cientificidade se refere à demonstrabilidade advinda da experiência e/ou dos critérios estabelecidos pelas ciências positivas. As perguntas fundamentais e sempre instigantes sobre a verdade, o bem, a vida, a morte, se contempladas somente a partir de um olhar redutivo sobre a razão e a ciência seriam, muito provavelmente, excluídas do ambiente acadêmico-universitário. E por uma conclusão inequívoca: a chamada metafísica moderna, amparada por esse olhar reducionista, porque não dá conta de responder a certas indagações de base, prefere desconsiderá-las, atribuindo a elas irracionalidade ou ausência de substrato científico. Perguntamo-nos, porém: Que razão? Que ciência? Aliás, Emanuel Kant já havia alertado para esse fato: nas entrelinhas do seu pensamento, conclui que o ser humano não é capaz de responder a certas questões metafísicas como, por exemplo, a existência de Deus e da alma. Entendia que se não posso encontrar provas racionais, não devo me ocupar dessas questões, devo prescindi-las da minha vida ou, ao menos, afirmar que não pertencem ao campo da razão. Valoriza a razão, mas não é capaz de dar um derradeiro e honesto passo, reconhecendo que a verdade, o que realmente importa porque humaniza/emancipa, não está aprisionada no âmbito de uma razão e de uma ciência reducionistas; não deu o passo porque isso implicaria acolher, íntima e racionalmente, o limite da razão humana. 4. A promoção dos direitos humanos O reconhecimento e a tutela dos direitos humanos, ideal cada vez mais inconteste em nossos dias, é responsabilidade de todas as pessoas e grupos e/ou organizações sociais. Quando, porém, nos dedicamos à tarefa de pensar a identidade de uma instituição universitária confessional, como é o caso do Centro 37


UNISAL, isso se reveste de um apelo ainda mais empenhativo. Não está em pauta somente o necessário respeito pelos direitos humanos no âmbito institucional interno, mas espera-se que uma instituição cuja missão é pedagógico-educativa se atenha à urgente iniciativa para ir além: torná-los conhecidos e promover, com decidida e inteligente diligência, a sua efetiva aplicação/atuação no vasto horizonte onde emerge, como valor inalienável, a dignidade humana. O Centro UNISAL se coloca, portanto, diante de uma desafiadora escolha identitária e que, segundo nosso olhar, corresponde concretamente a algumas linhas ou políticas de ação: • respeitar/viver internamente, no âmbito da comunidade acadêmico-universitária, o que determinado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos; • estar atento para que no espaço de sua organização pedagógica (matrizes curriculares, planos de ensino, jornadas acadêmicas, linhas de pesquisa, planos de aula, entre outros) seja contemplada, de variadas e criativas formas, a possibilidade de se conhecer em profundidade, sobretudo em suas bases antropológicas/filosóficas e seu alcance sociocultural, político-econômico, tudo o que se refere à questão dos direitos humanos; • estabelecer parceria e colaboração com instituições, organismos e movimentos que comungam desse mesmo olhar e buscam superar as muitas distorções, incoerências e lacunas na compreensão e atuação dos direitos humanos; • considerar, por conta da herança carismática herdada do sacerdote e educador italiano Dom Bosco, um olhar atento e arrojado na defesa dos direitos das crianças, adolescentes e jovens; • propor itinerários acadêmico-pedagógicos que busquem reafirmar a coerência entre os grandes pressupostos e

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valores que embasam os direitos humanos e a doutrina e cultura cristãs, particularmente os irrenunciáveis valores da liberdade, da igualdade, da justiça, da paz, todos eles reveladores do essencial “princípio de humanidade”; • reconhecer como preciosa herança as referências do magistério da Igreja que se vinculam diretamente à defesa dos direitos humanos, como exemplos: as Encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Quadragesimo Anno de Pio XI e Pacem in Terris de João XXIII, a Carta Apostólica Octogesima Adveniens de Paulo VI e as chamadas três cartas encíclicas “sociais” Laborem Exercens, Sollicitudo Rei Socialis e Centesimus Annus, todas de João Paulo II. Mas recentemente tivemos a Encíclica Laudato Sí e a Exortação Apostólica Querida Amazônia, ambas do Papa Francisco. Mais extensa e igualmente rica é a chamada “Doutrina Social da Igreja”. São referências que devem ser conhecidas e refletidas no interior de uma instituição confessional como o Centro UNISAL; • acreditar que, dentre os direitos fundamentais, capaz de criar a chamada cidadania “ativa e inclusiva”, além de “responsável e autônoma”, está o direito a uma educação de qualidade, capaz de gerar corações e mentes novas, promover uma verdadeira e duradoura revolução, a única capaz de mudar as estruturas sociais que precisam ser repensadas e repropostas. O princípio/valor da liberdade, numa visão antropológica cristã, estabelece como que uma “indivisibilidade e interdependência de todos os direitos fundamentais da pessoa: civis, culturais, religiosos, econômicos, políticos e sociais”.35 Justamente por isso, na escola do educador Dom Bosco, o Centro UNISAL reconhece e atua com uma proposta de “educação 35 VILLANUEVA, Pascual Chaves. Missão salesiana e os direitos humanos, especialmente os direitos dos menores. In: FISTAROL, Orestes Carlinhos. Sistema Preventivo e Direitos Humanos. Brasília: CISBRASIL e CIB. 2009, p. 41.

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integral”, para a qual concorrem todas as forças internas de cada pessoa e que reivindica, concomitantemente, um ambiente externo com clara intencionalidade educativa: reconhecer o primado da dignidade humana expresso/assegurado também na admissão de todos os seus direitos. O bacharelado em Direito, presente em quatro unidades do UNISAL (Americana, São Paulo, Campinas e Lorena), os muitos cursos de pós-graduação lato sensu na área jurídica, o mestrado em Direito sediado no município de Lorena/SP e as várias iniciativas de abertura às comunidades locais onde esses cursos têm lugar, iniciativas de caráter especificamente social, não permitem dúvidas quanto ao compromisso do UNISAL com a formação de profissionais capazes de balizar sua conduta pelo amor à justiça, pelo reconhecimento da dignidade humana em sua inteireza e pela defesa intransigente dos direitos humanos. Uma atenção especial, no caso dessa afirmação identitária do UNISAL, se dirige ao Mestrado em Direito por ele oferecido há duas décadas. Tendo como área de concentração a “Concretização dos Direitos Sociais, Difusos e Coletivos” o referido mestrado apresenta ainda duas linhas de pesquisa: 1. Direitos sociais, econômicos e culturais; 2. Direitos de titularidade difusa e coletiva. Das leituras das ementas aplicadas a essas duas linhas de pesquisa conclui-se pelo patente reconhecimento dos direitos humanos e por sua defesa e observância: A Linha de Pesquisa “Direitos sociais, econômicos e culturais” possui como temática central para estudo e pesquisa os Direitos Fundamentais abrigados pela Constituição Federal de 1988 e que representam a manifestação concreta dos Direitos Humanos consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, cuja Linha de Pesquisa aborda a grande temática Direitos Humanos e Fundamentais sob o aspecto histórico, filosófico, político, social e jurídico,

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partindo da problematização e estudo crítico e reflexivo dos direitos e garantias fundamentais diante da complexidade dos fenômenos sociais, econômicos, culturais, ambientais, políticos e jurídicos, da relevância do papel e da postura do Estado e de seus agentes, das demandas da sociedade e ao mesmo tempo do papel da sociedade e do cidadão na busca da concretização dos direitos sociais fundamentais, que se complementam com os direitos econômicos e culturais.36

Não de forma diferente é apresentada a outra linha de pesquisa do mesmo programa de mestrado: A Linha de Pesquisa “Direitos de Titularidade Difusa e Coletiva”, parte de uma visão holística e sistemática das questões sociais, econômicas, culturais, ambientais, que são abrangidas pelos chamados direitos e interesses difusos e coletivos, espécies do gênero Direitos Fundamentais (Direitos Humanos positivados). Também são considerados instrumentos eficientes para a busca da efetivação dos direitos sociais, econômicos, culturais, políticos, transformando-se em mecanismo de solução de conflitos de natureza difusa – aqueles em que os titulares do direito lesado são pessoas indeterminadas( indetermináveis) e que estão ligadas por uma circunstância de fato ou relação jurídica de base comum – e de natureza coletiva – aqueles que têm como titulares ‘grupo, categoria e classe’ de pessoas, unidos por uma relação jurídica de base, que são indeterminados, contudo, determináveis, fruto de violação a direitos da coletividade, e que demandam defesa/proteção coletiva.37 36 PORTAL UNISAL. Disponível em: https://unisal.br/cursos/mestrado-em-direito. Acesso em: 04 jul. 2020. 37 Ibid.

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Temos assim, e maneira incontroversa, que o Centro UNISAL revela sua identidade também pelo caminho do valor prioritário da dignidade humana e da tutela de seus direitos fundamentais. Busca promover, assim, uma cultura de paz, de respeito e diálogo com o amplo espectro das correntes e tendências socioculturais do tempo, de concreta e obstinada afeição pelos direitos humanos. E o faz, seja pelo estudo crítico e solidez investigativa, seja pela oportunidade de inserção efetiva dos discentes e docentes em programas, serviços e iniciativas de envolvimento na comunidade. 5. Educação sociocomunitária É historicamente reconhecida, mesmo nos espaços pedagógicos mais amplos que ultrapassam os limites eclesiais ou eclesiásticos, a ideia de que Dom Bosco, o santo educador italiano do século XIX, tinha três grandes crenças ou, como podemos também afirmar, “três grandes paixões educativas”: 1. os adolescentes e jovens, aos quais ele chamou de “a porção mais preciosa da sociedade”; 2. a educação: e a partir dos estudos realizados sobre seus escritos e práticas pedagógicas podemos concluir que, para ele, a educação sempre foi a mediação mais determinante e eficaz para buscar as necessárias mudanças estruturais tão necessárias no seu tempo e, podemos afirmar, também nos tempos hodiernos; 3. o sistema preventivo, um método educativo por ele disposto e, segundo seu olhar, uma verdadeira espiritualidade, amparado pela reconhecida categoria de “educação integral” e radicado a partir do chamado tripé salesiano: razão, religião e “amorevollezza”. Suas escolhas demonstram rara sensibilidade para colher o contexto histórico em que viveu e criativa capacidade de responder adequadamente aos agudos desafios trazidos por esse contexto, especialmente em relação à vida dos adolescentes e jovens mais pobres. 42


Mas para compreender um pouco melhor as intuições, conceitos e práticas pedagógicas de Dom Bosco faz-se necessário mergulhar, ainda que brevemente, no contexto sociocultural e político-econômico em que ele estava inserido. E esse mergulho oferecerá elementos para compreender, um pouco melhor, a escolha “unisaliana” pela educação sociocomunitária. Iniciemos este breve sobrevoo a partir de um dos maiores eventos vividos pelo continente europeu em sua história, a Revolução Francesa38 e seus grandes ideais. Dom Bosco inicia sua missão carismática em Turim, Norte da Itália, poucos anos depois deste movimento revolucionário, mais exatamente quatro décadas depois. Praticamente toda a Europa vivia as ressonâncias e sentia-se fortemente sacudida pelos ventos trazidos pela Revolução Francesa. Os sistemas totalitários entraram em colapso. Os ideais iluministas exigiram uma reorganização de todas as estruturas sociais, econômicas e políticas. Os privilégios das casas reais e da aristocracia europeia e o avanço das desigualdades sociais e econômicas fizeram emergir o sonho de uma nova estrutura social na qual participação, justiça e liberdade seriam critérios e valores inatacáveis. Para o propósito desta reflexão, basta afirmar que o processo revolucionário se estendeu por toda a Europa e a Itália, dividida naquele momento em vários reinos, sentiu os vigorosos influxos por ele gerado. Dom Bosco, profundamente envolvido nas tramas do seu tempo e guardando uma perspicaz capacidade para ler os complexos emaranhados socioculturais, políticos, econômicos e eclesiais do contexto em que estava inserido foi amadurecendo, pouco a pouco, uma resposta para os desafios que lhe eram apresentados. Sua percepção religiosa e sensibilidade 38 A Revolução Francesa foi um acontecimento que teve lugar na França entre 1789 e 1799. Caracterizou-se por ser um período marcado por intensa agitação política e social, não só na França onde nasceu, mas que alcançou todo o continente europeu. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, preconizados pelo movimento revolucionário levaram ao fim de regimes absolutistas em várias partes da Europa e do mundo ocidental.

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socioeducativa alargavam, cada vez mais, seu olhar, especialmente para compreender os desafios que tocavam a vida dos adolescentes e jovens de Turim e região. O binômio salesiano herdado de Dom Bosco, “bons cristãos e honestos cidadãos”, garante uma intelecção muito honesta do propósito que o animou em sua reconhecida atuação pastoral e pedagógica. Numa linguagem mais aderente aos nossos dias poderíamos dizer “fé e cidadania” para toda a vida. Favorecer a formação dos adolescentes e jovens, num contexto com acentuadas inconsistências e distorções/contradições, marcado por transformações socioculturais e político-econômicas ocorrendo em ritmo acelerado, cercado por incertezas e desconfianças, caracterizado já, à época, por uma crescente onda de pobreza, injustiças e desajustes sociais: mendicância, delinquência/criminalidade, abandono. Esses problemas em contexto europeu já eram presentes desde o final do século XVII. No século XIX, com o advento e avanço do processo de industrialização e consequente mudança dos camponeses para as cidades que cresciam, os problemas se tornaram ainda mais angustiantes e reclamando intervenções decididas, ousadas e urgentes. Aí entra Dom Bosco com sua sagacidade para ler os sinais e propor itinerários com solidez pedagógica e alcance sócio-transformador duradouro. Para tanto, define com clareza o destinatário principal de sua ação: os adolescentes e jovens pobres/necessitados; estabelece, com exuberante descortino intelectual e pastoral a mediação, para ele a mais preciosa em vista das necessárias transformações estruturais: a educação; intui e organiza uma metodologia nova, o que para ele era também uma espiritualidade, para propor educação: o método/ sistema preventivo. Para tanto, Dom Bosco, organizou instituições e uma rede de pessoas que comungassem de seus ideais:

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embora, inicialmente, sua ação tivesse configurações de cunho mais assistencialista, não foi necessário muito tempo para ele entender que, uma ação mais eficaz, demandaria agir inteligentemente numa dupla direção: 1. responder de forma tempestiva e concreta aos efeitos advindos da pobreza, desemprego, abandono, exploração dos adolescentes e jovens; 2. não menos importante, propor ações consequentes que minassem as causas da situação de pobreza e exploração desses mesmos adolescentes e jovens; em vista disso, criou internatos, escolas/oficinas de formação profissional para qualificar os destinatários de sua missão e favorecer sua inserção no mundo do trabalho; prezou o acompanhamento desses jovens, preocupado em propor-lhes não somente uma educação de qualidade, mas assegurar a defesa de seus direitos; empreendeu isso com reconhecida originalidade e prudente ousadia; estudar, por exemplo, a história dos direitos trabalhistas na Itália sem fazer menção a Dom Bosco não é possível. Ele foi pioneiro na tutela dos direitos de seus jovens aprendizes exigindo que os empregadores/ empreiteiros da época assinassem um contrato de trabalho tendo como testemunhas o próprio Dom Bosco e, quando possível, os pais/responsáveis desses jovens; manteve uma tão fascinante quanto enérgica atitude de fidelidade aos seus propósitos desde o primeiro momento; isso foi se tornando de tal maneira explícito aos olhos da sociedade turinense e piemontesa, e mesmo de outras regiões da Itália e da Europa, que a admiração pelo sacerdote educador foi descortinando vastos horizontes e encontrando apoio até mesmo em ambientes anticlericais; sua ação educativa e social, sua dedicação aos pobres, falavam por si mesmas.

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Reside aí, na consolidada experiência pedagógica e pastoral de Dom Bosco, a opção “unisaliana” pela educação sociocomunitária. Em quase sete décadas39, gerações de pedagogos e educadores se formaram nessa escola. Até hoje os cursos de licenciatura do Centro UNISAL ainda conservam uma clara aderência e nobre sensibilidade por tudo o que se refere aos grandes desafios que envolvem a vida dos adolescentes e jovens, especialmente os mais pobres e em situação de profunda vulnerabilidade social. Basta contemplar os projetos pedagógicos dos cursos e os planos de ensino construídos pelos docentes/ discentes para perceber, de maneira inequívoca, a opção por uma educação inclusiva. Expressão viva dessa crença do UNISAL está também na organização pedagógica do seu Mestrado em Educação. Estabelece a “Educação Sociocomunitária” como área de concentração40. Duas são as linhas de pesquisa: 1. Análise histórica da práxis educativa nas experiências sociocomunitárias e institucionais; 2. A intervenção educativa sociocomunitária: linguagem, intersubjetividade e práxis. Se aliarmos essas escolhas aos incontáveis projetos, serviços e iniciativas de caráter socioeducativo apoiados e/ou presididos pelo UNISAL em suas muitas instâncias e organismos, certamente, cessam quaisquer possibilidades de dúvidas em relação à opção por ele feita no tocante à sua crença nos princípios, valores e fundamentos que orientam sua compreensão de “educação sociocomunitária”. Temos assim que, no belo mosaico que expressa o “rosto unisaliano”, a peça que reflete a opção pela educação sociocomunitária é, certamente, uma das mais reluzentes. E isso a ponto de se pensar que, não se subordinasse o UNISAL a uma proposta educativa desse calibre, onde a emergência e 39 O Centro UNISAL, inicialmente Faculdade Salesiana de Ciências e Letras de Lorena, foi fundado em 12 de marco de 1952. 40 PORTAL UNISAL. Disponível em: https://unisal.br/cursos/mestrado-em-educacao. Acesso em: 27 jun. 2020.

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protagonismo dos adolescentes e jovens em condição de vulnerabilidade social fosse prioritária, ele estaria numa estrada muito próxima de trair seu fundador/inspirador, Dom Bosco. Isso implica, também, acreditar numa proposta pedagógica/ formativa que acredite na construção de mentes e corações menos egoístas, individualistas, consumistas, narcisistas e se proponha caminhos que conduzam à solidariedade, à convivialidade humana, ao compromisso ético, até mesmo ao sentido de compaixão; a assunção de um enraizado “princípio de humanidade”, incapaz de se fazer indiferente a qualquer situação de desumanidade ou pactuar com a injustiça. Conclusão Oferecemos, ao final e considerando as ideias e princípios acima referidos, algumas indicações que podem fortalecer um caminho de revisão e/ou reafirmação de alguns valores e princípios identitários, não só para o UNISAL, mas também para quantos navegam nas envolventes e desafiadoras águas do ensino acadêmico-universitário em nossos tempos: • reiterar a crença em uma atitude de constante olhar sobre a própria identidade; mesmo que as bases identitárias não mudem, o mundo, a sociedade, as realidades, os contextos mudam; é um sinal de sabedoria fazer as devidas interlocuções com as novas tendências socioculturais, políticas e econômicas dos ambientes e contextos onde estamos inseridos; não raras vezes essas transformações ocorrem em ritmo vertiginoso; tendo isso em vista, as exigências para o mundo acadêmico-universitário reclamam sabedoria/ escuta/reflexão e as propostas oferecidas pelas instituições confessionais precisam ser repensadas, repropostas; isso em nada implica a barganha de princípios e crenças identitárias alicerçadoras do projeto pedagógico atuado pela instituição; 47


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renovar a adesão a um caminho irrecusável no âmbito de uma instituição confessional como o Centro UNISAL: dispor-se, sem tergiversar, à causa da verdade; construir-se como uma servidora da verdade; aí reside sua força enquanto reconhecedora da dignidade humana e, ao mesmo tempo, seu vínculo com a missão da Igreja; trata-se de um serviço abnegado que reclama honestidade intelectual e moral e não está sujeito às conveniências ideológicas históricas; orientar-se por um itinerário acadêmico-universitário que assegure, nas três dimensões indissociáveis deste universo – ensino/pesquisa/extensão – uma clara e prioritária opção que considere, também sob a ótica cristã, as implicações éticas e morais de todo o trabalho realizado; em outras palavras, mesmo em contextos com profundas contradições conceituais e severas distorções operacionais, nos chamados tempos difíceis, uma instituição confessional não deve negligenciar na afirmação de seu ethos cristão e católico; acolher, na esteira do caminho eclesial percorrido nas últimas décadas, a escuta e o diálogo com o mundo e a sociedade como preciosos e indispensáveis critérios para o discernimento e este como a mais válida mediação para que as instituições confessionais continuem expressando relevância na contemporaneidade; a confessionalidade cristã-católica de uma instituição não deve conduzi-la à intolerância, à arrogância e/ou ao fechamento; longe disso, deve ser uma instituição aberta à pluralidade de ideias e, também por seu caráter confessional, entranhada e criticamente adepta de caminhos que conduzam à democracia, à inclusão social de cada pessoa, à solidariedade e à justiça;


recuperar no caso “unisaliano”, sob a perspectiva do seu inspirador Dom Bosco, a natureza pedagógica insubstituível da presença/relação entre os membros da comunidade educativa; em tempos onde se assoberbam as novas tecnologias de informação, medram de forma preocupante as muitas expressões de pós-verdade e se alarga o fenômeno das “fake-news”, as relações virtuais ganham primazia, a pedagogia “unisaliana” não pode ser olhada com displicência; não raras vezes, o mundo da virtualidade acaba por gerar uma como que “esquizofrenia coletiva”; a consagrada crença salesiana no valor da presença segue muito atual; nunca é demais recordar: presença física não se delega. No mundo em que se verifica tanto avanço tecnológico, em que as redes sociais ocupam um espaço extraordinário e parecem gozar de uma força descomunal, também neste mesmo universo contemplamos e convivemos com tantas expressões de desumanidade, de solidão, de abandono, de anonimato, de falta de empatia, de intolerância e de estímulo à violência; não parece irrelevante o fato de constatarmos, nos dias atuais, tantas manifestações de quadros depressivos e suicídios também entre os jovens; continuar acreditando que o empenho pedagógico-acadêmico que visa favorecer a formação-qualificação de profissionais para os tempos atuais reclama, mais que nunca e apesar de possíveis pressões ideológicas e mercadológicas, um olhar inteligentemente agudo que se oriente para além da formação técnica específica e/ou aquisição de ferramentais, competências e/ou habilidades práticas para um adequado e eficiente exercício em alguma área específica do mercado; competência e eficiência profissional em todos os tempos, mas sobretudo hoje, precisam vincular-se, de

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forma medular, a outros aspectos/dimensões, do mesmo modo urgentes: sensibilidade ecológica, consciência moral, postura ética, amor à verdade/bondade/beleza e honestidade intelectual, sentido de solidariedade e compaixão, abertura à transcendência, reconhecimento e promoção dos direitos humanos, crença no “princípio de humanidade” que sustenta o valor da dignidade humana, entre outros; aí se coloca a necessária revisão dos projetos pedagógicos e planos de cursos para que equilibrem a oferta de disciplinas e conteúdos técnicos/ científicos com disciplinas de teor humanístico e experiências de voluntariado solidário; restaurar a natureza da metafísica e superar um olhar reducionista sobre a razão, principalmente aquele concernente à matriz iluminista/positivista; rever, à luz da metafísica, o estatuto da razão e, a partir disso, redefinir os cânones de cientificidade; a razão, a ciência, a técnica não são realidades sem limites, que podem ser funcionalizadas, contempladas em seu valor operacional, postas a serviço de projetos de poder, instrumentalizadas ou reduzidas a dar respostas que viabilizem processos de produção e apoiem interesses político-econômicos de grupos/corporações; eis uma grande contribuição, entre outras, a ser oferecida por uma instituição como o Centro UNISAL; como afirmou Bento XVI na Carta Encíclica Spes Salvi41 a crença numa razão científica capaz de responder à necessidade humana de redenção e salvação não se verificou e isso porque o ser humano tem necessidades que ultrapassam os limites daquilo que o mercado e a sociedade tecnológica podem oferecer. Seu coração busca irresistivelmente um bem infinito; um bem que o poder e o mercado são incapazes de presentear.

41 PETRINI, Giancarlo. A identidade da Universidade Católica e sua contribuição à vida acadêmica e social, p. 40.

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Essas são modestas considerações para apoiar um diálogo com quantos carregam uma sincera e amorosa relação com o universo acadêmico-universitário. Sempre será tempo de reconhecer como surpreendentemente interessantes e, justamente por isso, fecundas fontes do conhecimento, também aquelas perguntas primeiras e substanciais, diante das quais uma razão reducionista, e as ciências dela derivadas, querem se fazer surdas. Isso não quer dizer que a Idade Moderna e o período iluminista não tenham trazido riquezas a serem assumidas e tenham corroborado o desenvolvimento do espírito humano e tenham fortalecido um desejo/vontade de obediência à verdade. A identidade institucional do UNISAL, por seu caráter católico, integralmente inspirado nos valores cristãos, por sua crença inviolável no valor da dignidade humana e, em virtude isso, comprometida com a tutela/promoção dos direitos humanos, abre-se à magnitude da razão para dialogar com o mundo, a sociedade, a diversidade das culturas e dos povos. Referências Em livros ALKIMIM, Maria Aparecida; VILLAS BÔAS, Regina Vera (Org). Direitos humanos e sistema educacional de Dom Bosco. Curitiba: Clássica Editora, 2013. BENTO XVI. Siete discursos universitarios de Benedicto XVI. Madri: Fundación Universitaria Española, 2011. BRAIDO, Pietro. Prevenir, não reprimir. O sistema educativo de Dom Bosco. São Paulo: Editora Salesiana, 2004. FISTAROL, Orestes Carlinhos. Sistema Preventivo e Direitos Humanos. Brasília: CISBRASIL e CIB, 2009. MENEZES, Anderson de Alencar. A evolução do diálogo na Igreja Católica: a Ecclesiam Suam. Recife: Faculdade Salesiana do Nordeste, 2007. NASCIMENTO, Grasiele Augusta Ferreira; ALKIMIM, Maria Aparecida; DA SILVA, Daisy Rafaela (Org). Direitos humanos e Juventude. Curitiba: Editora CRV, 2016.

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SILVA, Odair Marques; GARRIDO, Noêmia de Carvalho; CARO, Sueli Maria Pessagno; EVANGELISTA, Francisco (Org). Pedagogia Social - Animação Sociocultural: um propósito da Educação Social, Volume 5. São Paulo: Expressão & Arte Editora, 2012. SIQUEIRA, Josafá Carlos. Reflexões do mundo universitário. Rio de Janeiro: Editora PUC/Rio, 2018. VALENTINI, Vando; RIBEIRO NETO, Francisco Borba; ALVES, José Antonio de Souza (Org). A missão e a identidade da Universidade Católica no mundo atual. São Paulo: EDUC, 2010. Em páginas na web BENTO XVI. Carta Encíclica Spes Salvi. Disponível em: www. vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/ hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi.html. Acesso em: 01 jul. 2020. GUIXOT, Miguel Ángel Ayuso, MCCJ. Secretário do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Disponível em: www. arqrio.org/files/repository/4___Guixot_1_27012017144803. pdf. Acesso em: 26 jun. 2020. UNISINOS. Disponível em: www.ihu.unisinos.br/171-noticias/noticias-2013/524052-bento-xvi-escreve-ao-matematico-ateu-caro-odifreddi-vou-lhe-contar-quem-foi-jesus. Acesso em: 28 jun. 2020. PAULO VI. Discurso na Assembleia Geral da ONU, em 04 de outubro de 1965. Disponível em: www.vatican.va/content/paulvi/ pt/speeches/1965/documents/hf_pvi_spe_19651004_united-nations.html. Acesso em: 22 jun. 2020. PORTAL UNISAL. Disponível em: https://unisal.br/cursos/mestrado-em-direito/ Acesso em: 04 jul. 2020. _____. Disponível em: https://unisal.br/cursos/mestrado-em-educacao/. Acesso em: 27 jun. 2020. TEIXEIRA, Faustino. Disponível em: https://fteixeira-dialogos. blogspot.com/2010/04/o-concilio-vaticano-ii-e-as-religioes.html?m=1. Acesso em: 22 jun. 2020.

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PARTE II Problemas éticos 2 Ética e Cidadania Valter Luiz Lara1 Introdução Ética é noção humana por excelência. Os animais em geral se relacionam movidos por instintos e forças da natureza. O ser humano também é movido por instinto, embora nem sempre declarado. A diferença está na liberdade. E liberdade aqui não é fazer o que a natureza impõe pelo instinto, mas exatamente o contrário, ser capaz de escolher entre o que a natureza determina e o que a cultura oferece como alternativa para suprir as carências. A novidade no humano é a liberdade que cria a cultura e assim faz surgir o imprevisível. O instinto exige o abrigo e o ser humano cria diferentes formas para se abrigar do frio, da chuva e do calor. O instinto pede o alimento. O animal come cru, o ser humano inventa a culinária e faz nascer o cozido, a mesa, o banquete, a taça e o brinde. O animal se defende da agressão. O ser humano tem escolha e pode resistir ao revide. 1 Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo UMESP (2014); Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (1996). Licenciado em Filosofia - Faculdades Associadas do Ipiranga – Atual UNIFAI (1984), e bacharel em Teologia pela Faculdade de Teologia N. S. da Assunção – Atual PUC/SP (1988). Docente do Centro Universitário de São Paulo, UNISAL. Particularmente, exerce docência em disciplinas como Antropologia Teológica, Ética e Cidadania e outras disciplinas da área de Teologia Bíblica. É autor de livros como A Bíblia e o desafio da interpretação sociológica (2009), Em busca do humano (1997), e coautor de obras como Palavra de Deus Palavra da Gente (2004) e Teologia da Libertação no Brasil. História, Memória e Utopia (2015).

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A grandeza da Ética reside nesse pressuposto da liberdade criativa que se adquire na casa comum do convívio com os outros. Por isso, a palavra em sua origem grega (ethos) significa morada, isto é, o lugar que é mais do que habitat, é onde se aprende a conviver com os outros mediante princípios e valores que pautam a conduta segundo o respeito mútuo, o cuidado com o outro além do cuidado consigo mesmo. E isso não porque a natureza nos impõe, mas porque aprendemos pela cultura que nos é legada pela educação. A educação, neste sentido, não se reduz evidentemente à sua forma escolar, mas ao que se aprende pela transmissão do hábito, do costume e das tradições mais genuínas da cultura. Não é à toa que na tradição latina, moral seja sinônimo de ética, pois, a palavra moral tem origem no termo latino mores que significa “costumes” ou “hábitos”. Portanto, ética, moral, liberdade, cultura, economia, convivência social, fé religiosa e compromisso político são mais do que conceitos relacionados, são realidades interdependentes, componentes do que chamamos de especificamente humano. Os conceitos estão relacionados, porque a realidade é uma totalidade dinâmica. Neste capítulo, o nosso interesse volta-se para as relações de ética, cidadania e política como pressuposto para entender a relação fundamental entre fé religiosa e compromisso político. O caminho escolhido para atingir esse objetivo, tendo a ética como fio condutor, é o seguinte: cidadania (1), política (2), fé e religião (3); reflexão acerca não só da fé religiosa, mas de suas implicações na área da política (4), apresentando alguns critérios da tradição bíblica que podem iluminar o desafio daqueles que buscam coerência entre sua fé e as exigências éticas do compromisso político (5).

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1. Cidadania O que é cidadania? De onde vem esta palavra? Como entender esse conceito em nossos dias? E quais são suas implicações em uma sociedade como a nossa? 1.1. Conceito e suas origens históricas O conceito de cidadania tem origem na ideia de cidade, mas nunca esteve restrita ao espaço urbano. Cidadania diz respeito não só à cidade, mas se estende a todo território que a cidade controla e impõe seu domínio. Cidade e campo, urbano e rural, são grandezas distintas e quase sempre estiveram na história da humanidade em uma relação de mútua dependência, mas a segunda sempre sob o domínio e o poder da primeira. Cidade é o lugar centralizado da administração (política), da arrecadação dos tributos (economia), do julgamento legal (aparelho jurídico) e da força (polícia) que impõe obediência às leis, da alegada proteção de sua população contra agressores externos (exército) e do intercâmbio de trocas produtivas (mercado). O campo é o lugar da produção agropecuária que alimenta a cidade. No mundo antigo, mais de 90% das pessoas viviam no campo, mas era a elite da cidade que controlava e dominava o campo. Atualmente, esse percentual foi alterado e a relação é praticamente inversa na maioria dos países. O mundo do comércio, dos serviços e da produção industrial, impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico, alterou sobremaneira o panorama da relação campo e cidade. Cidadania é um conceito que foi se desenvolvendo ao longo da história. No império romano, por exemplo, a cidadania não tinha necessariamente vínculo residencial ou territorial. Ela podia ser adquirida pela compra de um título, ao qual só pessoas muito ricas tinham acesso e que poderia ser transmitido por herança dos pais para seus filhos. Conforme o contexto histórico, esses critérios foram sendo alterados, mas basicamente 55


aos escravos e estrangeiros a cidadania era negada. A mulher podia ser considerada cidadã se estivesse vinculada a algum membro cidadão da casa patriarcal, mas raramente exercia os direitos políticos e civis que o homem tinha na sociedade romana. Com o advento da era moderna, a partir das lutas contra as opressões de um mundo marcado por relações escravocratas, imperialistas, coloniais e por tantas outras desigualdades como as sociais, de gênero e de “raça” (alguns preferem o termo “etnia” por ter uma conotação mais cultural, social e antropológica, além de não se restringir apenas aos critérios físicos da discriminação de cor), nasceu e se impôs um conceito mais amplo de cidadania, uma noção de que direito é uma condição humana universal e que deve ser garantida por toda e qualquer organização sociopolítica. Os valores trazidos pelo advento da ciência e da filosofia iluminista no mundo ocidental priorizaram a autonomia da razão como critério de busca da verdade e a liberdade como direito de todos. Embora a modernidade tenha trazido consigo o respeito à subjetividade humana e os valores de emancipação do sujeito, ainda vemos o desrespeito ao outro e a grande maioria submetida aos poderes vigentes. A Revolução Francesa de 1789 e a Industrial trouxeram não só uma emancipação política da classe burguesa emergente, mas os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade. No entanto, apesar de a ordem liberal capitalista ter assumido tais valores, eles não parecem ter atingido a vida efetiva e cotidiana das massas mais pobres e trabalhadoras da sociedade. E, por mais que tais ideais tenham feito avançar a representação política e a ordem econômica no plano da evolução tecnológica, a democracia participativa ainda é um sonho e a inclusão das massas ao mercado de consumo é uma quimera. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 aproximou a consciência de cidadania a dos direitos humanos, mas ainda persiste a violação de direitos elementares da pessoa: 56


violência e fome são os primeiros de uma lista de morte e abuso de populações imensas espalhadas pelo planeta. Aos ideais de igualdade, fraternidade e liberdade da modernidade dois grandes novos desafios foram acrescentados: 1º) a igualdade entendida como fraternidade planetária entre o ser humano e as demais espécies do planeta e a liberdade como afirmação do direito de existir e manifestar-se de grupos, etnias e outras formas plurais de representação do gênero humano na afirmação de suas necessidades, desejos, corpos, perfis psicológicos e sexualidades. 1.2. Cidadania, nacionalidade e imigração O sentido de cidadania não está ligado apenas aos ideais de direitos humanos. Há um sentido jurídico do termo cidadania que faz referência à nacionalidade: brasileira, portuguesa, argentina, espanhola e etc. Trata-se de um status ou condição que o Estado atribui àquelas pessoas que pertencem à sua tutela de proteção e cuidados. Cada Estado possui seus critérios de admissão a esse estatuto e nem sempre está ligado ao nascimento em seu território. No Brasil, por exemplo, os critérios que definem quem pode ter cidadania/nacionalidade brasileira estão determinados no artigo 12, inciso I, da Constituição Federal de 1988 e complementados pela Emenda Constitucional nº 54/2007: a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na Repúbli57


ca Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira.2 Entretanto, cidadania é muito mais do que nacionalidade. Ser cidadão ou ter acesso à cidadania, nesse aspecto, se contrapõe à condição do estrangeiro que não a possui, mas reside ou é obrigado a se deslocar para outro país. Os imigrantes nos países do hemisfério Norte, na Europa e EUA ou mesmo no Brasil e na América Latina, passam por situações de muita dificuldade e carência. Quando são considerados ilegais vivem sem qualquer garantia de direito; imersos no submundo da marginalidade e do desprezo das instituições locais, vivem à mercê da sorte ou da caridade alheia. O problema da imigração desafia o conceito de cidadania restrito às fronteiras nacionais e o modelo global de organização social, política e jurídica que ignora o rosto desfigurado de mulheres, crianças, anciãos e outros grupos que são colocados à margem do sistema legal. Portanto, cidadania, direitos humanos e a situação de imigração no mundo atual afetam a ordem política, econômica e social globais. Precisam com urgência de um novo reordenamento das políticas internacionais de cooperação entre os povos e neste sentido precisam da orientação de uma nova ética que dê conta de superar conflitos entre governos, instituições, mercados, grupos e pessoas. Se os problemas são mundiais, a proposição de alternativas deve se orientar por diretrizes éticas universais que sejam capazes de integrar necessidades, interesses e sugestões locais. O desafio ético é urgente. Sem critérios que orientem a conduta humana para a convergência na resolução dos problemas fundamentais, as perdas já sentidas no aumento da desigualdade 2 BRASIL. Emenda Constitucional N. 54, de 2007. Publicação Original. Disponível em: www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2007/emendaconstitucional-54-20-setembro-2007-559896-publicacaooriginal-82340-pl.html. Acesso em: 18 jun. 2020.

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social, na devastação ambiental, na proliferação da fome e da violência, tenderão ao agravamento, dificultando cada vez mais o encaminhamento de soluções. 2. Política Antes de analisarmos a relação entre fé e política, faz-se necessário explicar o que entendemos por política no sentido mais amplo e considerar outros significados que a mesma palavra pode ter quando aplicada a fenômenos semelhantes da vida em sociedade. 2.1. Política no sentido genérico A palavra política tem vários sentidos e cada um depende do contexto em que é usada. O senso comum costuma restringir o conceito de política ao universo do exercício da política partidária, do jogo eleitoral e do ambiente relacionado a governos e aos políticos que se debatem, ora como oposição, ora como defensores dos governantes. Por outro lado, é frequente o uso da palavra política como título de iniciativas e programas de ação em diferentes áreas da gestão empresarial ou de governos: política institucional, política cultural, política ambiental, política de governo e política cidadã são exemplos entre tantas outras áreas que levam o rótulo de política. Porém, o sentido mais amplo continua sendo aquele dado por Aristóteles (384322 a.C.) que define o ser humano como animal político (em grego: zoon politikon), oferecendo ao conceito duas realidades que se aproximam e se completam: humanidade e cidadania. Pois o adjetivo politikon usado pelo filósofo em seu conceito de humano é palavra grega cujo significado, como já vimos, é aquele que vive na polis, isto é, na cidade. Neste sentido, política é tudo o que diz respeito às formas de participar e organizar a vida na cidade e, por extensão do sentido, em qualquer agrupamento social. 59


Política, no entanto, não é só cidadania como direito de vida digna que as pessoas têm de usufruírem dos bens coletivos construídos pelo conjunto da sociedade. É dever de participação nos destinos da casa, do bairro, da cidade, do país. Política é também dever do cidadão como ser social, conhecer, discutir e atuar no espaço público onde vive. Implica participar das decisões sobre os atos da administração pública, sobre os modelos de organização e de atuação do Estado na vida de todos. Política é dimensão da organização da vida em sociedade que interfere direta ou indiretamente na vida privada de todos. A Política enquanto dimensão ordenadora da vida pública refere-se não só às leis que regem a convivência social (aspecto jurídico), mas aos poderes que as criam (aspecto legislativo), fiscalizam o seu cumprimento (aspecto administrativo) e punem os que as desrespeitam (aspecto policial). Política, neste sentido, é poder que define limites e possibilidades em quase todas as esferas da vida: economia, educação, trabalho, saúde, moradia, mobilidade, lazer, arte e cultura. Assim, política em seu sentido genérico é tudo o que diz respeito a poder e relações de poder. 2.2. Política como relação de poder A política como dimensão da vida coletiva traz sempre a seguinte questão: Quem comanda? Quem orienta ou determina o caminho que se deve tomar? Afinal de contas, quem decide? Nessa perspectiva, política é decisão, ação, prática, atitude, promoção ou omissão que altera ou mantém a sociedade tal como ela está, ou, como alguns preferem, como ela “é”. Tem a ver com o poder de agir. Como o diz o ditado, “não basta querer, é preciso poder”. Por mais que apareçam pessoas disputando o poder no cenário político, o fato é que elas representam um coletivo e não apenas a si mesmas. Como os interesses representados pelas pessoas nem sempre são convergentes, a disputa é 60


sempre um jogo de forças cujo resultado não garante a vitória da maioria, mesmo em um regime cujas regras pareçam ser democráticas. Em política, a vitória é daquelas cujas condições lhes são favoráveis. Persuasão, busca de consenso pelo diálogo ou uso da força bruta, são meios que variam conforme regras da disputa ou da disputa sem regras. A situação concreta da correlação das forças entre os diferentes poderes é o que define o jogo político. O sentido da política como relação de poder é reflexo da variedade de interesses do corpo social que afeta todos os níveis das relações sociais. Neste aspecto, a política é o lugar por excelência do conflito, senão manifesto, em potencial das relações humanas. A vida coletiva é conflito de vontades, desejos e interesses. Isso é um fato perceptível no cotidiano de cada um de nós. Conviver é sempre um ato humano que pressupõe um poder viver, poder ser ou poder ter, em uma relação direta de encontro com o outro. Qualquer relação interpessoal se caracteriza pela dinâmica do poder que se manifesta como harmonia ou conflito, paz ou guerra, consenso ou dissenso. Neste sentido, política é disputa de poderes que buscam fazer prevalecer certas escolhas em detrimento de outras. Esse fenômeno se dá tanto na relação de um casal que precisa decidir o que os dois vão fazer, quanto na relação entre nações. Na relação a dois quem decide quando os dois desejam objetos opostos? Um quer ir ao cinema, o outro ao jogo de futebol. E aí? Que vontade prevalece? Como se dá a relação de poder nesse contexto? Existe um mais forte que impõe a sua vontade sobre o outro, ou há um equilíbrio e a tentativa de consenso quando as vontades não convergem? Que critério é usado para satisfazer as vontades de ambos quando elas se opõem? Veja como a política em sua referência às relações de poder está em tudo quando se trata de convivência, de vida comunitária, de administração dos interesses da coletividade. Abster-se 61


de participar, isto é, não desejar, ao menos, conhecer os termos da discussão e das ações que dirigem, conduzem e realizam determinados interesses (vontades) é uma omissão perigosa. Implica passividade e não necessariamente neutralidade em relação ao que ocorre na sociedade. 2.3. Política como Poder público O exemplo do casal expressa o que a política é no sentido das relações que se travam cotidianamente como disputa pelo poder em outras esferas da vida coletiva: comunidade, escola, empresa, administração pública. A disputa pelo poder na esfera da administração pública determina o resultado do que se pode chamar de políticas públicas no governo do Estado. Atenção para uma distinção fundamental entre Estado e governo, óbvia para uns, mas não muito clara para outros. Estado é a instituição que reúne todos os órgãos públicos permanentes de prestação de serviço, segurança e atendimento de um povo, em um determinado território, cujo governo assume o comando de sua administração. Governo é o comando do Estado em um determinado momento da história, oferecendo e executando diretrizes políticas na administração dos órgãos do Estado em suas diferentes instâncias: municipal, estadual e federal. Eleições, por exemplo, em uma democracia, representam a possibilidade de troca de governo, não do Estado. O governo eleito pode alterar ou manter as estruturas do Estado; pode melhorar ou não o atendimento à população por meio dos seus órgãos, ministérios, secretarias e outros aparelhos que o constituem. Política pública é, portanto, o conjunto das diretrizes que determinam a realização das ações governamentais naquilo que se julga ser as principais áreas da vida de seus cidadãos. Significa planejamento e escolha de prioridades para investimento (quase sempre financeiro) na área em que os recursos 62


do Estado, recolhidos através de impostos do cidadão, devem (ao menos em tese) atendê-lo em suas necessidades básicas de saúde, moradia, educação, cultura, trabalho e renda. Administrar recursos e aplicá-los, escolhendo prioridades, é a principal tarefa de todo governo. Essa tarefa é definida pelas políticas públicas que orientam as ações governamentais. A definição da Política pública de um governo representa os seus interesses prioritários. Ela define seus gastos, suas prioridades de fato e sua forma de agir efetiva nos diferentes órgãos da administração pública. Mais do que o discurso, para identificar e avaliar quais são as políticas públicas que orientam governos, é preciso perguntar: Quem são os sujeitos coletivos beneficiados por suas escolhas e prioridades de ação e de investimento? A resposta a essas perguntas é condição para se avaliar um bom ou mau governo, uma boa ou má administração, uma boa ou má escolha política. Política pública não precisa ser apenas objeto de interesse e das ações de governos. O texto-base da Campanha da Fraternidade de 2019, promovida pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) da Igreja Católica, cujo tema foi Fraternidade e Políticas Públicas, deixou isso bem claro: Podemos resumir que Política Pública não é somente a ação do governo, mas também a relação entre as instituições e os diversos atores, sejam individuais ou coletivos (consumidores, empresários, trabalhadores, corporações, centrais sindicais, mídia, entidades do terceiro setor), envolvidos na solução de um determinado problema (por exemplo, a distribuição de um produto para um determinado grupo que precise, a limitação de venda de um determinado produto, programas habitacionais para pessoas de baixa renda, incentivos

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fiscais, sistema de previdência, redistribuição da terra) e, para isso, utilizam alguns princípios, critérios e procedimentos que podem resultar em ações, projetos ou programas para garantir os direitos e deveres previstos na Constituição Federal e em outras leis.3

O que está em jogo na política e mais especificamente na escolha de prioridades em políticas públicas é a disputa pela realização de interesses e necessidades. Por isso, em uma sociedade desigual como a nossa, a política em sua expressão mais concreta como política pública é o cenário do conflito entre sujeitos em campos opostos. São oposições de toda ordem: pobres x ricos; empresários x empregados; agronegócio x agricultura familiar; exportadores x consumidores internos; e outros tantos nos mais diferentes setores da vida coletiva. Portanto, quando se leva em conta esse sentido mais amplo de política pública, política como de fato ela é, não se trata apenas de busca pelo bem comum, mas de luta que visa beneficiar determinados setores da sociedade em detrimento de outros. Política é efetivamente a dimensão da vida que representa o jogo de forças entre os diferentes grupos que compõem o tecido complexo das interações sociais. 2.4. Política e ética Se política significa relação de poder e, por conseguinte, a definição de quem decide o que fazer quando os interesses entram em conflito, nela está pressuposta a dimensão da ética, uma vez que esta é, por sua vez, a dimensão humana que decide, mediante valores, a orientação de toda conduta. Então não existe decisão política sem implicações éticas.

3 CNBB. Campanha da Fraternidade 2019: Texto-Base. Brasília: CNBB, 2018, n. 21.

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Entretanto, a linha que separa a ação política da ética é muito confusa e tênue. A diferença talvez esteja no alcance de uma e de outra. A política envolve em um primeiro plano o poder que atua em uma ou outra direção, afeta esse ou aquele sujeito, atende essas ou aquelas necessidades. O fenômeno ético abrange os valores que orientam essa atuação. Há evidentemente uma intersecção onde as duas se tocam, mas nem sempre estão em sintonia. Os valores éticos estão submetidos socioculturalmente à disputa política e as ações políticas, por sua vez, não estão isentas da avaliação ética. No plano político, a disputa de poder tem como objetivo a realização dos interesses de uns em detrimento de outros. Tem prioridade o poder mais do que qualquer valor. Política é poder, ética é valor. O que prevalece na política é a realidade do poder no jogo da correlação de forças e interesses em disputa, não os critérios da ética. Nicolau Maquiavel (1469-1527), filósofo que fundou a ciência política moderna, através de sua famosa obra O Príncipe (1996), foi um dos primeiros a demonstrar de modo realista como a política se separa da ética, incluindo a religião e qualquer outra diretriz moral que esteja acima dos objetivos políticos. Nesse aspecto, a filósofa Márcia do Amaral, em breves palavras, resume o pensamento de Maquiavel: A concepção maquiaveliana da política como uma atividade autônoma e soberana, completamente afastada das questões religiosas, avessa e independente com relação à tradição da moral cristã, criadora de sua própria ética empírica e utilitarista, cujo valor de virtude pode ser resumido na frase: agir segundo as exigências do momento, utilizando-se de quaisquer recursos que concorram, com eficácia para a manutenção do

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bem coletivo; por estabelecer uma completa separação entre Política e Ética, privilegiando a primeira e tomando a segunda como seu subproduto, apresenta-se, sem sombra de dúvida, como arrojada inovação frente ao pensamento político anterior. Por assim ser, angaria inúmeros opositores.4

De fato, a política tem sua própria lógica. O desafio é submetê-la ao exame não só dos critérios da eficácia política, mas dos valores decorrentes de uma consciência ética comprometida com a política, mas sem absolutizá-la, tornando-a prisioneira de si mesma. Pois, quando a política é colocada acima dos valores éticos – a busca pelo poder sem outra finalidade, a não ser o próprio poder – o resultado pode ser desastroso e cruel. E a religião, elogiada por governantes, menos por causa de seus próprios valores e mais pela necessidade de apoio, é mesmo mero instrumento de manipulação política? É também forma de cultivar sentimentos religiosos de legitimação do Estado, unidade e preservação dos bons costumes, como pensa Maquiavel? Os dirigentes de uma república ou de uma monarquia devem respeitar os fundamentos da religião nacional. Seguindo este preceito, ser-lhes-á fácil manter os sentimentos religiosos do Estado, a união e os bons costumes. Devem, ademais, favorecer tudo o que possa propagar esses sentimentos, mesmo que se trate de algo que considerem ser um erro.5

4 AMARAL, Marcia do. Maquiavel e as relações entre ética e política. Ensaios Filosóficos, v. 6, p. 11, out. 2012. Disponível em: http://ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/ Artigo6/AMARAL_Marcia.pdf. Acesso em: 18 jun. 2020. 5 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Maria Lucia Cumo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 61.

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Maquiavel está certo? É só isso a religião em sua relação com a ética e a política? Afinal, que lugar a religião ocupa nesse mundo da política? 3. Fé e religião Religião é um fenômeno complexo e controvertido. Fé, igualmente. Às vezes são usados como sinônimos. Mas para o que vamos tratar, a relação entre religião e política, a distinção é necessária. A fé é confundida com a religião porque a segunda não existe sem a primeira. Palavras como fé, religião, dogma, doutrina, fanatismo e igreja estão variavelmente associadas, mas representam realidades distintas, ainda que tenham proximidades semânticas. Não interessa tratar de cada uma delas, neste momento, mas apenas das duas primeiras: fé e religião. Não existem religião e igreja sem fé, mas pode haver fé sem religião e sem igreja. Portanto, a realidade essencial é a fé, pois, ela é a condição sem a qual não há religião possível. Então vamos aos conceitos elementares. 3.1. Fé Fé é uma dimensão da vida humana que existe independentemente de uma vinculação com alguma religião específica. Fé é uma experiência que caracteriza um tipo de relação do ser humano com o mundo e a vida em geral. Ela não é uma adesão a um corpo de ideias ou doutrinas sobre alguma coisa, é antes um estar no mundo segundo uma confiança que não se explica em um primeiro momento, mas que existe como entrega gratuita de si mesmo ao outro com o qual se estabelece uma relação. Fé não é uma coisa, mas um modo de ser e estar no mundo que gera autoconfiança e a reflete em suas relações com tudo à sua volta. Tome como exemplo a criança que mal articula a linguagem verbal, mas quando começa a dar seus

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primeiros passos é capaz de imprimir velocidade e se jogar nos braços da mãe. Ela tem fé, pois, acredita que a mãe vai ampará-la. Ela não explica isso, apenas sente e faz. Note como você, independentemente de suas convicções filosóficas, científicas ou religiosas, confia mais do que realmente admite. Veja quantas coisas fazemos sem antes analisar, observar, conferir, verificar se está tudo correto. Não conseguimos ser cientistas a todo momento. Acreditamos nas coisas que comemos e naqueles que as produziram. Temos fé no chão que pisamos e no sujeito desconhecido que dirige seu carro e acreditamos que ele vá respeitar o sinal e nos deixar passar sem que um acidente aconteça. A fé é o modo em que uma pessoa ou um grupo penetra no campo de força da vida. É o nosso modo de achar coerência nas múltiplas forças e relações que constituem a nossa vida e de dar sentido a elas. A fé é o modo pelo qual uma pessoa vê a si mesma em relação aos outros, sobre um pano de significados e propósitos partilhados.6 Por isso, a fé antecede a religião e se constitui como condição para se professar uma religião. Antes temos fé como disposição para viver o fluxo da vida, depois é que essa fé pode aderir a um repertório religioso e se transformar em fé religiosa. Antes de sermos religiosos ou irreligiosos, antes de nos concebermos como católicos, protestantes, judeus ou muçulmanos, já estamos engajados em questões de fé. Quer nos tornemos incrédulos, agnósticos ou ateus, estamos preocupados com as formas pelas quais ordenamos a nossa vida e com o que torna a vida digna de ser vivida. Além disso, procuramos algo para amar, e que nos ame, algo para valorizar, e que nos dê valor; algo para honrar e respeitar, e que tenha o poder de sustentar o nosso ser.7 6 FOWLER, James W. Estágios da fé. A psicologia do desenvolvimento humano e a busca de sentido. São Leopoldo: Sinodal, 1992, p. 15. 7 Ibid., p. 16-17.

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A fé então é uma experiência que qualifica o indivíduo a se predispor confiante e esperançoso diante do mundo: “a fé é a garantia dos bens que se esperam, a experiência sentida das realidades que não se veem” (Hb 11,1).8 Se a fé antecede a religião como estado de ser e estar no mundo, como uma qualidade do viver humano, então o que é a religião? 3.2. Religião Os estudos sobre religião são multidisciplinares, abarcam não só a teologia, mas as ciências humanas em geral: psicologia, sociologia, história e antropologia da religião. Porém, como o propósito neste capítulo é apenas apresentar um panorama sobre as relações entre fé religiosa e compromisso político em seu sentido humano mais amplo, o nosso horizonte de compreensão do conceito de religião é o socioantropológico. O conceito de religião que mais se aproxima da análise das relações entre fé e política que pretendemos desenvolver nos é apresentado pelo teólogo alemão Gerd Theissen, estudioso do contexto histórico e sociocultural do cristianismo primitivo. Ele entende a religião como fenômeno cultural e não apenas como produção teológica, fruto da revelação divina: “religião é um sistema cultural de sinais que promete o proveito da vida mediante a correspondência a uma realidade última”.9 A teologia não está evidentemente descartada para interpretar o fenômeno religioso, mas não é a única fonte para o seu conhecimento. A primeira parte da definição diz o que é a religião: a saber, uma linguagem cultural de sinais. Com isso, ela diz algo a respeito do ser da religião. A segunda parte diz 8 BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2017. 9 THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do cristianismo primitivo. Trad. Paulo F. Valério. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 21.

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o que ela realiza: o proveito da vida. Com isso, fica dito algo acerca de sua função. A definição deixa aberto se e em que sentido existe uma realidade última. Pois, a afirmação de que a religião, mediante a correspondência a uma última realidade, promete o proveito da vida, assume, por certo, a autocompreensão das religiões, mas não exige que ninguém o admita.10

O que mais nos interessa é a segunda parte de sua definição, pois, como produtora de linguagem cultural de sinais (primeira parte), a religião cumpre funções fundamentais no conjunto da vida humana. São funções de ordem psíquica (cognitiva, emocional e pragmática) e social, produtoras de expectativas em torno do proveito da vida. Quanto à função psíquica da religião, podem-se distinguir aspectos cognitivos, emocionais e pragmáticos: • Cognitivamente, as religiões sempre ofereceram uma ampla interpretação do mundo: elas atribuem ao ser humano seu lugar no universo das coisas [...]; • Emocionalmente a religião possui funções semelhantes: ela proporciona um sentimento de segurança neste mundo e uma confiança de que, no final, porém, tudo ficará bem ou poderia ficar bem. Precisamente por esse motivo, ela ocupa-se das situações-limite, quando essa confiança é ameaçada e abalada: na angústia, na tristeza, na culpa e no fracasso. Aqui ela estabiliza as pessoas diante do perigo de desmoronamento emocional [...]; • Por fim, a função pragmática da religião consiste em que ela legitima formas de vida com seus padrões de comportamento. Também aqui nos deparamos com uma proximidade entre superação de crises e provocação de crises.11 10 Ibid., p. 13. 11 Ibid., p. 22-23.

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Do ponto de vista da função social, há aquela que ajuda a socializar o indivíduo oferecendo os instrumentos do simbolismo cultural religioso de adaptação ao meio sociocultural. Mas há também a função reguladora de crises. Esta função se desdobra em três possibilidades distintas e em oposição uma das outras: a função de regular o conflito e oferecer condições para o equilíbrio e a legitimação da ordem social vigente; a função de regulação que propõe mecanismos de superação da crise, alterando ou reformando alguns aspectos da ordem vigente; e aquela que é provocadora da crise e busca promover a alteração senão de toda a ordem, a transformação do sistema predominante. A função reguladora de conflito entre grupos e classes diferencia-se claramente da função socializadora da religião: aqui, não é o indivíduo que se confronta com a sociedade, mas grupos inteiros, formados a partir da posição econômica ou da pertença étnica, são arrastados em conflitos mútuos. Aqui também nos defrontamos com várias funções: regularização de conflitos, amenização e exacerbação de conflitos. A religião tanto pode lançar pontes, mediante a ênfase em valores fundamentais comuns, quanto atiçar agressões por meio de fundamentalismos.12

E assim chegamos ao ponto que mais nos interessa para analisarmos as implicações políticas da religião. A pergunta é: Que função social ou mais propriamente política cumpre a religião em nossa sociedade atual? Que papel exerce a sua fé religiosa no cenário político atual?

12 Ibid., p. 24.

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4. Fé religiosa e compromisso político Quando os conceitos de fé e religião se encontram, produzem o que podemos chamar de fé religiosa. É a fé humana assumindo a consciência de si, aderindo a uma configuração sociocultural religiosa em suas implicações práticas e éticas, orientadas e legitimadas por um determinado imaginário simbólico interpretativo da realidade. A fé inerente ao sujeito quando encontra o repertório religioso cultural à disposição de sua educação e socialização se transforma em fé religiosa. A questão central é: O horizonte da fé religiosa impõe algum tipo de compromisso político diretamente implicado ou derivado de seu imaginário simbólico? À luz da teoria de Theissen, que função política, reguladora de conflitos, cumpre a fé religiosa que você professa? Ou ainda, estendendo ao cenário religioso e político atual, que função estão cumprindo homens e mulheres que se identificam com uma determinada confissão de fé no cenário dos conflitos políticos atuais? O Brasil verificado pelo último censo mostrou que 64% da população é católica e 22% é evangélica. Significa que 86% dos brasileiros são cristãos. Que função política tem cumprido a religião cristã na dinâmica dos conflitos de interesses entre classes, grupos e pessoas? Tem sido legitimadora da ordem, apaziguadora dos conflitos, ou provocadora de crises? Ela exerce uma função que coopera com reformas sociais, econômicas e políticas no sentido de transformar a ordem vigente ou favorece mais a manutenção do status quo, isto é, do sistema de desigualdade social que privilegia as elites? No dilema vivido atualmente pelo mundo e não só em nosso país entre economia e saúde, a fé religiosa tem algo a dizer? O que fazer? Manter a economia funcionando normalmente para evitar uma recessão sem precedentes, ou implantar medidas de isolamento social que podem evitar muitas mortes à medida que estabilizam a capacidade do sistema de atender 72


os infectados mais graves pela pandemia do Coronavírus? A escolha tem um lado econômico, evidentemente; depende de decisão política e pressupõe critérios éticos de discernimento que determinam o que deve valer mais em um momento como esse. E a fé religiosa o que tem a dizer? Os interesses imediatos da economia não podem sozinhos dominar o rumo das decisões políticas? Muita coisa precisa ser colocada na balança ao tomar uma decisão de tão amplo alcance. O conflito está no modo como se estabelece a hierarquia de valores. Que valores são esses? Saúde, vida, morte, trabalho, família, sobrevivência de empresas, empregos, custos, dinheiro, manutenção dos setores essenciais etc. O que deve vir primeiro e o que deve vir depois? São decisões que afetam a área jurídica, política e econômica; afetam a situação de muita gente e não apenas no curto prazo. O debate é vital e define o amanhã. E a fé religiosa tem alguma contribuição a dar nesse debate público em sobre quais valores devem prevalecer? Vida, saúde, emprego e renda? Há algum critério ético derivado de sua fé religiosa que sirva para orientar políticas públicas no combate aos males que afetam a sociedade como um todo? Um critério precioso da ética em política pública em uma sociedade democrática é o bem maior feito em nome da maioria. Está em questão um tema muito caro para os princípios da filosofia pragmática, isto é, o máximo de bem para o maior número de pessoas. O problema sempre está em discutir em termos de filosofia pragmática o que é o bem e que lugar deve ocupar o valor das minorias no campo de nossas escolhas. E a fé religiosa cristã? A tradição do decálogo, dos profetas bíblicos e o legado da comunidade cristã primitiva reunida em torno dos pobres têm algo a oferecer para a definição de políticas públicas na defesa das populações mais vulneráveis de nosso tempo? Os santos católicos como São Francisco, São João Bosco e Santa Irmã Dulce dos pobres (só para citar alguns),

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oferecem critérios para o nosso discernimento político? Evidentemente que sim. Não se trata aqui de impor quais exatamente são os compromissos políticos e os desdobramentos concretos da fé religiosa de cada um em um país de perfil religioso plural. Aliás, esta é uma avaliação que os cristãos devem fazer e refazer a cada momento da conjuntura política. Com quais critérios? Com os critérios presentes na tradição bíblica que fundou e continua sendo a referência fundamental de nossa fé. 5. Raízes bíblicas do compromisso político As relações entre fé religiosa e política sempre estiveram próximas e auto se legitimaram ao longo da história. O poder muitas vezes tem sido exercido em nome de Deus ou atuado com a legitimação daqueles que creem ser o governante representante divino. Assim aconteceu com imperadores, faraós e outros que impuseram seu poder a ferro e fogo. Ditadores e déspotas impiedosos foram aclamados como filhos de deuses, messias e outros títulos religiosos que mais escondiam do que revelavam suas verdadeiras identidades. Na tradição bíblica, fé e política não são realidades claramente distintas, uma vez que Deus exerce o seu poder através de seus representantes por Ele mesmo enviados: juízes, libertadores, reis, profetas e milagreiros. Entretanto, há uma tradição que anuncia e sempre denuncia os abusos daqueles que se apresentam como representantes e porta-vozes da vontade divina, mas de fato não o são: o falso profeta, o falso juiz, o falso messias e o rei perverso. Os critérios para a distinção de uns e outros são suas ações. O texto sagrado prescreve como lei o dever de buscar justiça, direito (Dt 16,18-20) e a defesa do pobre, da criança, da viúva, do estrangeiro e do escravo, isto é, daqueles que representam a população mais frágil e vulnerável. São os sujeitos sempre presentes e objeto do cuidado maior da lei e dos profetas (Dt 74


24,14-22; Is 1,17.23; Am 4,1;5,11; 8,4-6; Mq 3,1-4; Jr 5,28; 22,15-16). No Novo Testamento os mais pobres são protagonistas do Reino de Deus (Lc 6,20-23; Mt 5,3-12) e critério para julgar o comportamento das pessoas no dia do juízo final (Mt 25,31s). As comunidades cristãs primitivas são solidárias e compartilham as necessidades uns dos outros de modo a não faltar nada a ninguém (At 2,41-47; 4,32-37). Jesus tem uma palavra muito forte sobre a política. Ao mesmo tempo é crítica severa e anúncio positivo. O episódio em que Tiago e João, filhos de Zebedeu, pedem a Jesus o privilégio de sentar-se um à sua direita e outro à sua esquerda gera um conflito e indignação entre os demais discípulos (Mc 10,35-41). Diante dessa situação Jesus afirma: (42) Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. (43) Entre vós não será assim; ao contrário, aquele que dentre vós quer ser grande, seja o vosso servidor, (44) e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. (45) Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (Mc 10,42-45).

Jesus é duro na crítica, mas não nega a necessidade e o compromisso com a política. O problema está no modo como se exerce o poder. Sua crítica vai ao ponto: o uso da política quando se conquista o poder para dominar e tiranizar as pessoas, isto é, subjugar e explorar. O critério do agir político deve ser o oposto: o serviço à sociedade (Mc 10,43-44). Se você quer poder e deseja ser o representante dos interesses de algum grupo, deve se perguntar: a quem o meu poder vai servir? A Bíblia mostra a quem se deve servir. É só atualizar a palavra e ver quem são os pobres de hoje. 75


Como conclusão desse tópico e oportunidade para reflexão e diálogo, transcrevo em seguida a lista dos dez compromissos propostos pela Igreja Católica, através da CNBB em seu subsídio de estudo que preparou a 5ª Semana Social Brasileira em 201113 e cujo tema foi a Reforma do Estado. Seu lema: Um novo Estado, caminho para uma nova sociedade do bem viver. Estado para que e para quem? Anunciar com clareza que a forma de Estado existente no Brasil tem suas raízes na modernidade capitalista e que, por isso, como algumas pessoas e grupos o criaram, outras pessoas e organizações sociais podem transformá-lo ou substituí-lo por uma forma de Estado radicalmente nova. Anunciar que, no Brasil, esse mesmo Estado foi apropriado por oligarquias que, ainda hoje, procuram usá-lo com um poder a serviço de seus interesses. Denunciar que a persistência da miséria e da fome num país com tanto espaço, tanta riqueza e tanto crescimento econômico é sinal de que as instituições do Estado favorecem mecanismos que geram concentração da terra, da riqueza e da renda, deixando de lado sua responsabilidade pública de garantir os direitos de todas as pessoas e da Terra. Assumir com firmeza que um novo Estado exige novos valores, novas formas de convivência entre os seres humanos e com todos os seres que constituem o ambiente vital da Terra e que isso pode e está sendo construído na vida, nas iniciativas e nas formas de organização de povos indígenas, comunidades tradicionais, movimentos sociais, economia solidária e outras iniciativas populares. 13 CNBB. Um novo Estado, caminho para uma nova sociedade do bem viver. Estado para que e para quem? Subsídio de estudo para a 5ª Semana Social Brasileira. Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da caridade, da justiça e da paz. Brasília: CNBB, 2011, p. 90-92.

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Aprender dos e com os povos indígenas o seu Bem Viver e com os povos afro-brasileiros o seu Pertencer, como bases concretas de nossa proposta de vida, de sociedade e de Estado. Não permitir que a vida seja estatizada, lutando em favor da autonomia das pessoas, das comunidades e dos povos, bem como das diferenciadas formas de economia e de convivência com a Terra em cada bioma. Trabalhar por uma unidade que reconheça e conviva com a diversidade em todas as instâncias da vida. Fazer que esta prática seja base para um Estado plurinacional e pluriétnico, refundando a partir dos valores presentes na vida, na convivência e nas práticas de organização política e jurídica dos grupos, comunidades e povos que constituem o Brasil. Reconhecer, com alegria, que Deus está presente e ativo na História, sempre ao lado das pessoas, comunidades e povos injustiçados, empobrecidos, excluídos. Proclamar estas boas novas aos pobres, reforçando a confiança e a fé em Deus e neles próprios, filhos e filhas de Deus, e a certeza de que Ele deseja que usem de sua criatividade e poder para gerar sociedades com justiça, igualdade e paz. E, que para isso, deem passos na direção da construção de um novo tipo de Estado, verdadeiramente democrático e a serviço dos direitos de todas as pessoas da Terra. Para serem sementes da sociedade democrática, com um Estado igualmente democrático, as pastorais sociais e organismos eclesiais comprometidos com a vivência da solidariedade libertadora renovam sua decisão de viver em seus grupos e em suas formas de organização os valores que desejam como fundamentos do mundo novo que estão construindo. Empenhar-se no sentido de que todas as comunidades de seguidores e seguidoras de Jesus assumam sua missão de anunciadoras do Reino de Deus através 77


de sua vivência de amor libertador, presente na vida comunitária e no serviço aos pobres. Serviço que se expressa especialmente na luta por políticas públicas que garantam os direitos de todas as pessoas, o que só acontece com um Estado efetivamente democratizado.

Conclusão O itinerário que trilhamos ofereceu uma viagem através de alguns temas. Apesar de distintos, a intenção foi relacioná-los. Ética, cidadania, política, fé e religião. Todos foram tratados de modo a fundamentar o objetivo maior do capítulo: verificar as implicações éticas da relação entre fé religiosa e compromisso político. O fio condutor é o compromisso ético. Procuramos demonstrar como a ética é característica essencial da existência humana. Qualquer que seja a dimensão do humano a ser considerada, o caráter ético está sempre presente. Cidadania, política e religião foram delineadas de modo a evocar essa dimensão do compromisso com o outro, a cidade e o mundo. Fé e religião são distintas, todavia se encontram e se assemelham. Fé é condição de nossa relação com o mundo e religião é a linguagem feita de símbolos e sinais que oferecem à fé um sentido para buscar um bom proveito da vida. São realidades que se completam e não são jamais alheias ao mundo da política. A política pode usar da fé religiosa para manipular vontades. No entanto, o cidadão religioso sabe que seu compromisso com a política é de outra ordem, demanda das exigências éticas de coerência com sua fé religiosa. Neste sentido, concluímos essa breve reflexão colocando a ética como um desafio também à fé religiosa que se sente comprometida com a política. A política não precisa ser religiosa, pois não se trata de fazer retornar um domínio de cristandade,

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governo dominado por uma Igreja cristã e identificada com o Estado. O Estado é laico, mas não precisa ser antirreligioso. Pode ser conduzido por valores éticos orientando a política e ser enriquecido pela luz da fé religiosa, contanto que seja aberta, plural e leve em consideração o pluralismo étnico e religioso de nosso país. Àquele que professa a fé religiosa especificamente cristã, o desafio ético é explícito, porque exige que sua esperança esteja baseada em um testemunho cotidiano de um Deus que deseja a vida em plenitude para toda humanidade (Jo 10,10). Isso requer um empenho perene pela justiça e uma luta incansável pela superação das desigualdades em todas as esferas da vida que vai da economia ao exercício do poder, passando pelas relações familiares, profissionais e pelas escolhas que fazemos em relação à natureza, aos animais e ao mundo inteiro criado por Deus. A fé religiosa impõe à política, em uma sociedade cada vez mais desigual, critérios muito mais de solidariedade com a população mais pobre e vulnerável do que cumprimentos de fidelidade às práticas rituais de seguimento desta ou daquela religião, visto que já proclamava o profeta Oséias e do mesmo modo confirmou Jesus aos seus discípulos: “Porque é amor/ solidariedade/justiça o que eu quero, e não sacrifício/holocaustos” (Os 6,6; Mt 9,13; 12,7). A política que não leva em conta a justiça e a solidariedade precisa ser denunciada por aqueles que professam a fé religiosa cristã. Esse é o compromisso maior do amor com o qual fomos agraciados pela fé.

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Referências AMARAL, Marcia do. Maquiavel e as relações entre ética e política. Ensaios Filosóficos, v. 6, out. 2012. Disponível em: http:// ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo6/AMARAL_Marcia. pdf. Acesso em: 18 jun. 2020. BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2017. BRASIL. Emenda Constitucional nº 54, de 20 de setembro de 2007. Publicação Original. Disponível em: www2.camara.leg. br/legin/fed/emecon/2007/emendaconstitucional-54-20-setembro-2007-559896-publicacaooriginal-82340-pl.html. Acesso em: 18 jun. 2020. CNBB. Campanha da Fraternidade 2019. Texto-Base. Brasília: CNBB, 2018. _____. Um novo Estado, caminho para uma nova sociedade do bem viver. Estado para que e para quem? Subsídio de estudo para a 5ª Semana Social Brasileira. Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da caridade, da justiça e da paz. Brasília: CNBB, 2011. FOWLER, James W. Estágios da fé. A psicologia do desenvolvimento humano e a busca de sentido. São Leopoldo: Sinodal, 1992. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Maria Lucia Cumo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do cristianismo primitivo. Trad. Paulo F. Valério. São Paulo: Paulinas, 2009.

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3 Ética no âmbito das relações étnico-raciais e da cultura: questões afro-brasileiras, africana e indígena Antonio Tadeu de Miranda Alves1 Francisco Evangelista2 Introdução Este capítulo pretende refletir sobre a construção histórica da cultura brasileira e sua importância na construção das relações étnico-raciais no Brasil, onde diversas formas de ser e de estar no mundo se encontraram e formaram o que conhecemos como cultura brasileira. Nossa cultura é o resultado inicialmente do encontro do índio brasileiro com o homem branco português e, posteriormente, pelo encontro com o homem negro oriundo da África, trazido ao país em correntes e escravizado. O encontro não se deu sem conflito, pelo contrário. Eram três visões de mundo bem diferentes entre si que, ao se encontrarem em chão brasileiro, geraram outra cosmovisão sobre a realidade. A síntese cultural deste encontro e da mistura de elementos culturais tão diferentes entre si se deu no contexto da formação e desenvolvimento de um novo sistema econômico, social e político: o capitalismo. Nesse sentido, o capítulo também discute as relações étnico-raciais e a produção capitalista, avaliando os impactos econômicos nas relações sociais decorrentes na história brasileira, sobretudo na vida dos que foram escravizados. 1 Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP; professor no curso de Licenciatura em História e membro do Núcleo de Educação das Relações Étnico-raciais – Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL. 2 Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1990), Especialista em Filosofia para Crianças pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997), Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2002) e Doutor em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2011). Coordenador do Núcleo Étnico Racial e Cultural do UNISAL.

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A implantação do capitalismo ocorreu sem considerar a heterogeneidade do encontro e da mistura de grupos tão diferentes e diversos, impondo sua forma de organização social, causando enorme sacrifício e sofrimento aos negros e aos índios. Um olhar sobre o pensar e o agir éticos do brasileiro, tendo como referência a formação da cultura brasileira e sua diversidade, nos convida a pensar no papel da economia capitalista na consolidação da escravidão durante a colonização brasileira e seus reflexos na atualidade. Convidamos o leitor a refletir sobre o direito autodeclarado do homem de pele branca sobre outros seres humanos; homem este regido por valores econômicos, justificados pelo direito positivo, pela política e pela religião de matriz judaico-cristã. 1. Cultura e diversidade cultural Do ponto de vista político, a negação da diferença é a impossibilidade de se estabelecer o diálogo com o outro, com aquele que é diferente. Se não se dá ao outro a possibilidade de se expressar e agir, nega-se a ele a alteridade presente nas relações humanas. Pode-se localizar, na história da humanidade, várias tentativas de homogeneizar o social, ora em uma proposta política, ora em uma proposta econômica e, até mesmo, em uma proposta religiosa. Infelizmente, tais tentativas sempre resultaram na violência e na morte de muitas pessoas, pois, sabe-se que cada grupo procura estabelecer para si um modelo de organização social que corresponda às necessidades de seus componentes. Não se pode esquecer que o fundamento da cultura é a natureza humana. Isso leva a compreender a diversidade cultural como sendo natural nas manifestações dos humanos. A pluralidade existente nos modos de ser do homem, e que aparece nas diversas culturas, é decorrente da multiplicidade que marca o pensar e o agir humanos. A diferença cultural deve 82


ser encarada como a possibilidade de ver o mundo de outra maneira, com os olhos de outros, com outra visão da realidade, e não como movimento que separa aquilo que é diferente. Procuramos neste capítulo apresentar a cultura e sua relação com a diversidade e a pluralidade que são características naturais que marcam os modos de ser, pensar e agir dos diversos agrupamentos humanos. A intenção é refletir sobre a cultura brasileira, tentando levantar quais são suas principais características e como a diversidade e a pluralidade aparecem nas manifestações culturais em nossa realidade. Um dos fatores que marcaram, desde o início, a cultura brasileira foi a mistura de raças. Jorge Caldeira, no livro História do Brasil, afirma que: No Brasil, europeus e nativos estabeleceram relações que só se podem chamar de radicais. Excetuando-se os altos funcionários e os jesuítas (e seus índios aldeados), portugueses e nativos só tinham duas formas de se relacionar. A primeira era a aliança através do casamento; a segunda, a guerra.3

Outro fato marcante para a cultura brasileira foi a vinda de seres humanos que foram escravizados e trazidos para o Brasil para trabalharem nos engenhos. Começava, assim, a grande mistura racial e cultural que iria se completar com a chegada ao Brasil de outros grupos no final do século XIX, o que será tratado adiante. Isso obrigou a que, na estruturação das diversas formações sociais, existisse o espaço para a convivência com a diferença, o intercâmbio cultural, a preocupação de manter viva a tradição trazida de fora e o surgimento de novas manifestações culturais derivadas desses grupos.

3 CALDEIRA, Jorge. História do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 33.

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Desde o início da colonização brasileira houve (então) a marca da diversidade, pois, os primeiros brasileiros que nasceram foram fruto do casamento com o europeu que aqui chegou em busca de riquezas e encontrou um país povoado por índios. Dessa união surge o brasileiro que, sabendo viver nos trópicos, fica preso ao modo de vida do colonizador. Com relação à cultura dos índios que habitavam as terras antes do descobrimento do Brasil, o que permanece atualmente é decorrente da luta e da resistência histórica diante da política governamental que chega a negar o uso do termo “povos indígenas”. O massacre, a tomada das terras e a perda, por parte dos índios, de suas genuínas raízes culturais, devido ao contato com o homem branco, fizeram desaparecer ao longo da colonização suas influências na cultura brasileira. Foram e estão sendo dizimados aos poucos com a atual política em andamento no país. Já os negros, apesar do longo período de escravidão, conseguiram se firmar e criar marcas, dando corpo a uma série de manifestações culturais que, hoje, denomina-se de cultura afro-brasileira. A presença dos negros é marcante na cultura brasileira e se reflete na música e na dança por meio do samba, da capoeira, das manifestações religiosas representadas pela umbanda e candomblé, onde prestam culto aos deuses africanos que recebem o nome de santos católicos. E, apesar do disfarce, não deixam de frequentar os “terreiros” depois da missa. Boa parte dos negros no Brasil manteve sua religião, costumes e culinária, mesmo depois da extinção do tráfico de escravos vindos da África. Houve, assim, uma fusão muito grande entre a cultura negra e a cultura brasileira. Não se pode deixar de mencionar a importância da imigração que ocorreu no Brasil, no final do século XIX e começo do século XX. Com a vinda de italianos, portugueses, espanhóis, alemães, sírio-libaneses, judeus e japoneses para o país, ocorreu

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uma fusão dessas diferentes culturas com a cultura brasileira, cujas manifestações se fazem presentes por todo o território brasileiro. Segundo Jorge Caldeira: Afonso Pena queria atingir um objetivo nacional diferente: ocupar áreas desertas do território. Para isso montou um programa para subsidiar passagens e distribuição de terras para imigrantes nessas áreas, e criou o Serviço de Povoamento do Solo Nacional, uma autarquia com poder de reforçar os sistemas de imigrações estaduais. Os resultados foram imediatos. A partir de 1908 o fluxo migratório voltou a se acelerar. No ano de 1913, entraram para o Brasil 192.683 imigrantes, o maior número de toda a história do país.4

É preciso enfatizar a importância da cultura no período do Regime Militar, que se estendeu de 1964 a 1984 e se caracterizou pela presença dos militares no poder, os quais impuseram ao país um modelo de desenvolvimento econômico em que as ideias de liberdade de expressão e democracia eram sufocadas pela repressão e pela tortura de todos aqueles que eram considerados perigosos e contrários ao novo regime. Sendo assim, é decretado no Brasil, no dia 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional n. 5 que fecha todas as portas para a participação política da sociedade civil. Foi um período sombrio, quando a violência e o extermínio marcaram a sociedade brasileira. Período este marcado pelo patrulhamento ideológico, onde o pensar, o falar e o agir estavam sobre o controle do regime militar. A justificativa para o golpe militar de 1964 foi o restabelecimento da ordem política e econômica e a intervenção seria curta e saneadora. Segundo o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva: 4 Ibid., p. 247.

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A consequência imediata do golpe foi a formação de uma nova maioria, bastante sólida, constituída pelos partidos de direita, que exerceu um forte fascínio sobre centristas e liberais. Acreditavam em uma intervenção militar rápida, visando particularmente a uma reforma econômica, ao controle da inflação e ao fim da corrupção.5

Mas foi também um período caracterizado por uma intensa produção cultural. A resistência ao regime encontrou, nas manifestações artísticas, seu veículo para combater o modelo militar. Muitas vozes se levantaram no teatro, no cinema e na música popular brasileira, como portadores dos anseios da sociedade. Ainda segundo Francisco Carlos Teixeira da Silva: A repressão abate-se, também, sobre os intelectuais, artistas e estudantes. Peças teatrais de Bertold Brecht e Federico Garcia Lorca são proibidas em 1967; o Teatro Opinião, um dos principais centros da dramaturgia brasileira, é invadido por forças militares; paramilitares do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadem e depredam um teatro, em São Paulo, onde exibia-se Roda Viva, um musical de Chico Buarque de Hollanda.6

Tiveram grande importância, por seu engajamento no movimento democrático do país, Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Milton Nascimento que, por meio de suas composições, falavam ao coração e à cabeça dos brasileiros. Na luta contra o regime militar, muitas vidas se perderam, principalmente entre os intelectuais e os jovens que faziam resistência declarada aos militares. A cultura acabou sendo o meio que a sociedade civil encontrou para respirar no sufocante 5 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A modernização Autoritária: do golpe militar à redemocratização 1964/1984. In: LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 367. 6 Ibid., p. 371.

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poço em que o Brasil tinha caído. Foram anos turbulentos em que a criatividade artística ajudou os brasileiros a pensarem na construção de uma sociedade fraterna e igualitária, que respeitasse os direitos individuais e a liberdade de expressão. A década de 1960 também é marcada por uma grande mudança no comportamento dos jovens, que sonham construir uma sociedade livre dos velhos dogmas sexuais, sociais e religiosos. Na França e nos Estados Unidos, movimentos libertários querem “paz e amor” e lutam contra toda forma de dominação. No Brasil, o movimento tropicalista assume a vanguarda estética e propõe uma nova forma de comportamento para os jovens brasileiros. Para os tropicalistas, “é proibido proibir”, sintetizando o momento cultural e sendo uma das causas possíveis do Ato Institucional n. 5. Sendo um período de grandes transformações sociais, a década de 1960 demonstra como a cultura brasileira assimilou os ventos revolucionários que vinham da Europa e da América do Norte. É a década em que o Brasil passa a receber uma forte influência do “modo americano de viver”, Coca-Cola, jeans, rock e liberdade sexual são a moda do momento. Essas foram algumas características que, ao longo do tempo, marcaram a cultura brasileira e lhe deram como identidade a convivência, o intercâmbio e o respeito pela diversidade. A própria história da formação da cultura brasileira está intimamente marcada pela mistura de raças, credos, costumes, tradições, idiomas, tornando-a, assim, eclética e aberta ao novo. Quando se reflete sobre o pensar e o agir éticos do brasileiro, não se pode esquecer que a cultura brasileira é resultado de uma grande diversidade de manifestações de vários grupos humanos que, por circunstâncias históricas, políticas e econômicas, se encontraram e se integraram. No tempo presente, vivemos mergulhados em uma profunda crise social, política e econômica. Os Estados periféricos do

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atual sistema hegemônico não conseguem traduzir crescimento econômico em desenvolvimento social. As economias nacionais se encontram atreladas ao regime de dependência total do capital internacional, despejado no movimento volátil das bolsas de valores. Conforme adverte Boaventura de Souza Santos: Tal como o fascismo societal procura reduzir o Estado a um mecanismo através do qual são interiorizados no espaço-tempo nacional os imperativos hegemônicos do capital global, compete ao campo da democracia redistributiva transformar o Estado nacional em elemento de uma rede internacional destinada a diminuir ou neutralizar o impacto destrutivo e excludente desses imperativos e, se possível, inverter o sentido destes na busca de uma redistribuição equitativa da riqueza globalmente produzida.7

A queda do muro de Berlim representou o fim da utopia social comunista, sonho que se iniciou com a Revolução Francesa e seus ideais de igualdade, fraternidade e liberdade. Atualmente, o capitalismo hegemônico não consegue resolver as questões sociais dentro de sua estruturação econômica. Segundo Fernando Pedreira, no livro Summa cum Laude: O mundo pós utópico (ainda mal entramos nele) é naturalmente mais sensato, mais realista, menos tomado pelas ideologias e crenças milenares do que o anterior. É um mundo, digamos, menos romântico, mais prático e pedestre – e isto sem dúvida irrita e contraria os de temperamento revolucionário, os utópicos, os ideólogos, os românticos, enfim, que somos tantos.8 7 SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. In: HELLER, Agnes. A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, p. 73. 8 PEDREIRA, Fernando. Summa Cum Laude: Um ensaio sobre o sentido do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999, p. 37.

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O grande desafio do mundo moderno e contemporâneo tem sido estabelecer critérios de razoabilidade quanto ao pensar e ao agir ético nas relações sociais. No caso específico deste capítulo, cabe pensar como é possível organizar a vida social, política e econômica partindo da diversidade cultural presente na formação histórica do Brasil. 2. Relações étnico-raciais e produção capitalista: um pouco de história Nos últimos dias é possível verificar uma prática que se tornou, paradoxalmente, bastante perigosa: dizer alguma coisa, expressar um pensamento posteriormente reconhecido como, no mínimo, inconsequente, e pedir desculpas. Pedir desculpas, por conta da insistência com que tem sido feito, tornou-se uma prática leviana. Entretanto, esta prática, leviana dada sua recorrência, leva a crer na existência de um comportamento antiético. Parece que é possível dizer o que bem se entender, ainda que, como temos visto, possa ferir a dignidade da pessoa e, caso haja alguma censura, com um pedido de desculpas apagar eventuais más intenções (do emissor da mensagem, é claro) ou interpretações equivocadas (dos receptores da mensagem que, no caso, não são os que devem se desculpar). Porém, nos ditos e não ditos, nos enganos e equívocos, verifica-se de fato a existência de posturas e intencionalidades que irão permanecer no que chamamos de subconsciente coletivo (ou devemos dizer, no consciente?). A confusão gerada por este comportamento, fácil de ser percebido hoje por qualquer olhar de bom senso, é tamanha. Ao fim e ao cabo não é possível entender com clareza o pensamento dos emissores das mensagens, além de um certo incômodo, de uma certa sensação de que há uma intenção que se pretende ocultar: penso assim, expresso minhas ideias, mas... peço desculpas porque são “politicamente incorretas”. Na 89


verdade, deveríamos pensar: são eticamente incorretas, pois, na maioria das vezes, tem-se verificado que tentam contra a dignidade do ser humano. Há de se considerar que o pensamento a respeito da dignidade humana mostra considerável progresso, digamos assim, à medida que a sociedade vem historicamente se formando e transformando, especialmente a partir do último século quando a humanidade quase se autodestruiu por conta de duas guerras mundiais e de experiências terríveis como o Holocausto ou as bombas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagazaki. Há de se considerar também que ainda existem experiências e práticas igualmente aterradoras, pontuais ou coletivas, locais ou globais, que continuam sendo realizadas, mas, ao mesmo tempo, pode-se afirmar que pensar sobre dignidade humana tem sido uma constante. Não é difícil verificar que tratativas de temas desta área são recorrentes nos mais diferentes âmbitos – sejam em universidades, em instituições religiosas ou laicas, sejam em fóruns internacionais, pelos mais diversos meios de comunicação. No vasto elenco de temas que devem ser considerados, relativos à dignidade humana, nos compete tratar, sem dúvida alguma, da questão da escravidão – instituição perversa que ignora e se permite avançar contra a dignidade humana e, de um modo igualmente perverso, empregar discursos justificadores, de todas as ordens. Nesse sentido, mais do que “pedir desculpas”, é preciso, de modo igualmente recorrente e constante, refletir sobre o tema, promover debates, conhecer como se deu sua formação histórica, visto que se trata de uma instituição historicamente construída no domínio das relações sociais entre os sujeitos das diversas etnias que constituem uma sociedade.

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Não é a proposta para essas reflexões desenhar toda a história da escravidão, como era constituída na antiguidade e como foi “atualizada”, especialmente a partir de meados do século XV. O que se pretende (antes) é tecer considerações sobre a questão da ética no âmbito das relações étnico-raciais e culturais (ainda que pareça prolixo, vale insistir, relações histórica e socialmente construídas e que incluem a consolidação da instituição escravidão) e promover reflexões que possam colaborar para as demandas do aperfeiçoamento de nossa sociedade. Para tanto, é passível de consideração versar sobre alguns casos históricos que poderão parecer ser pontuais ou isolados, mas que tomados como exemplo e ilustração possibilitarão introduzir e provocar debates sobre o tema. Nesta linha, os exemplos que serão tratados nos permitirão considerar a relação entre imaginário e discursos e práticas concretas a respeito da escravidão e das relações étnico-raciais, procurando paralelos com a relação entre moral e ética. Na história da formação da América, em geral, e na história do Brasil, em particular, a escravidão imposta aos negros d’África é uma questão extrema e proeminente. Mas queremos considerar, nos limites da proposta para este capítulo, alguns aspectos da escravidão imposta aos povos nativos do Brasil. As relações entre europeus e indígenas nas terras brasileiras, por conta das características que tiveram, parecem ter diluído os aspectos de conquista, espoliação e extermínio que se sucederam ao longo do tempo. Os discursos da iconografia e da literatura, especialmente nas que se realizaram nas últimas décadas do século XIX, além daqueles formulados pela historiografia clássica (cujas perspectivas foram revistas e alteradas9), contribuíram para este processo de diluição, sedimentando 9 Sobre esta questão é indispensável considerar a consistente obra de John M. Monteiro (1956-2013), de inestimável valor para a revisão da história e crítica à historiografia a respeito dos povos nativos. Consideramos aqui: MONTEIRO, John. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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graves preconceitos e fazendo permanecer posturas de velho teor paternalista, a tal ponto de se verificar, em nossos dias, afirmações descabidas do tipo: “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”.10 A escravização dos índios no Brasil adquiriu características específicas, determinadas por alguns elementos que podem ser elencados de modo sucinto: a novidade do capitalismo colonial – a ideia da produção agrícola em larga escala (que, a grosso modo, se denomina por plantation), calcada na extensiva mão de obra escrava, estava ainda em experiência; quando esta forma de produção ficou clara (para o Brasil, é suficiente afirmar que as ações definitivas de colonização começam a partir de 1530), os indígenas passam a ser, ostensivamente, caçados e escravizados; contribui para a intensificação da preação, no terceiro quartil de 1500, a ocorrência de epidemias de doenças trazidas pelos europeus, em especial os colonizadores portugueses, entre as populações nativas (que não tinham anticorpos para resistir). Neste quadro geral, há de se considerar o contraponto representado pela presença contundente dos padres jesuítas, por mais questionável que seja por conta da forma e do fato de insistir na descaracterização da cultura dos índios. Sabe-se, entretanto, que a presença da Companhia de Jesus foi um constante empecilho para a preação realizada pelos bandeirantes paulistas, além de um estorvo contra a intenção de exploração dos nativos como mão de obra nas grandes plantações. O projeto dos jesuítas conflitava e incomodava o projeto de colonização, o que provocou movimentos de reação pelos colonos em diversos momentos, culminando com a retirada dos padres de São Paulo e do Maranhão, até que foram definitivamente expulsos da colônia pela administração pombalina. 10 PORTAL G1. Fala do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, em 24 de janeiro de 2020, sobre a criação do Conselho da Amazônia. Política, 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/24/cada-vez-mais-o-indio-e-um-ser-humano-igual-a-nos-diz-bolsonaro-em-transmissao-nas-redes-sociais.ghtml. Acesso em: 20 jan. 2020.

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Outro aspecto que se considera na questão da escravização indígena são as características culturais, compreendendo aqui a dimensão econômica. Os povos nativos jamais cultivaram intenções de acumulação, isto é, sua economia era diametralmente oposta à ideia capitalista colonizadora de produção e acumulação em escala. Os índios tinham sua forma de trabalhar e consumir centrada na extração, produção agrícola de subsistência e no nomadismo –, deslocavam-se entre os vastos territórios disponíveis sem necessidade de definirem propriedade. Nesse horizonte, não admitiram e não quiseram se submeter aos processos repetitivos impostos pelos modos de produção trazidos pelos europeus com as plantations. Daí, percebendo os objetivos dos colonizadores – submetê-los à escravização para apropriação compulsória de seu trabalho –, partem para a ação: reagem com ações belicosas contra os colonos. Aqui deve nos incomodar de modo especial, por seu caráter ético paradoxal, o instrumento da “guerra justa”. Instituído por Carta Régia de D. Sebastião, já por influência dos jesuítas, dentro das políticas portuguesas dos anos 1570 que visavam à proteção dos índios e proibiam sua escravização, este instrumento permitia aos colonos fazer guerra contra aqueles índios que apresentavam resistência armada e, assim, passavam a ser considerados inimigos. Ora, basta um mínimo de reflexão para perceber o paradoxo: A quê ou a quem os índios resistiam? Eram considerados inimigos de quem? Resistiam a invasores? Eram inimigos de conquistadores que procuravam escravizá-los e submetê-los à uma ordem diversa daquela que sua cultura milenar sustentava? Ainda que pareça repetitivo, uma vez que já foi afirmado ao longo deste capítulo várias vezes, queremos insistir no aspecto da construção de discursos e elaboração de instrumentos que pretendem, ao fim e ao cabo, justificar, autorizar, organizar e implementar a escravidão. E estes expedientes representam em

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atentados contra a ética. Senão, vejamos com relação à escravidão imposta aos africanos para a formação do Mundo Novo. O extraordinário trabalho de Eric Williams, Capitalismo e Escravidão, é um clássico, leitura obrigatória para quem desejar conhecer sobre o assunto. A análise que este historiador, negro, primeiro ministro de Trinidad e Tobago entre 1956 e 1981, faz sobre as origens, sedimentação e declínio da escravidão como uma instituição construída sobre e para relações internacionais de mercado é expressiva, dotada de sério rigor científico (a obra tem sua origem nas pesquisas realizadas para seu doutorado). Com argumentação contundente, mas em estilo gentil, sua interpretação é calcada em vasta documentação, entre cartas, tratados, discursos de parlamentares e periódicos dos séculos XVII, XVIII e XIX. Porém, para esta reflexão que estamos propondo, vamos nos referir a apenas algumas passagens e informações, como dissemos anteriormente, a título de exemplo. Tratando do desenvolvimento promovido pelo capitalismo mercantil, do século XVIII, Eric Williams menciona determinado empresário e fabricante de tecidos em Liverpool e Manchester que, inclusive, muito contribuiu para o aprimoramento das máquinas de fiação. Como armador esteve envolvido no comércio de escravos, além de cuidar “da equipagem da expedição que capturou o Senegal (pelos ingleses) em 1758 e se empenhou em conseguir o contrato para fornecimento de víveres para as tropas”.11 Tropas empenhadas em uma guerra de conquista. Estas atividades, entretanto, não impediram que fosse descrito, em seu necrológio, como “o comerciante e manufatureiro mais importante de Manchester, admirável por suas grandes capacidades e rigorosa integridade, por sua benevolência universal e préstimos à humanidade”.12 11 WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 114. 12 Ibid., p. 114.

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Outro trecho, de mesmo teor, trata de um patriarca de uma família de comerciantes atacadistas com fazendas nas Índias Ocidentais (Caribe e Jamaica) e fornecedores de manufaturados de algodão para a África e colônias inglesas. Eric Williams destaca: Sua fazenda era uma das melhores na Jamaica; “embora fosse um senhor eminentemente bondoso”, assegura-nos seu biógrafo, “ele não sentia repugnância de foro moral por esse tipo de propriedade”. Ao morrer, deixou um fundo que rendia cerca de mil libras anuais destinado a três ou mais bolsas de estudos em teologia, para incentivar a difusão do cristianismo em sua forma mais simples e inteligível e o livre exercício do julgamento íntimo em matérias de religião.13

É pertinente destacar também que, quando da abolição da escravidão na Jamaica e outras colônias inglesas, este patriarca recebeu “31.120 libras de indenização por seus 1.618 escravos”.14 Destas duas expressões quantitativas, embora nos impressione a primeira, não sabemos dimensionar exatamente o valor da “indenização”, o quanto 31.120 libras representavam naquela época, em 1833 (data da abolição da escravidão na Jamaica). Mas podemos nos sensibilizar com o número de escravizados? Os proprietários de escravizados eram homens admiráveis por suas “grandes capacidades e rigorosa integridade, por sua benevolência universal e préstimos à humanidade”, homens que, fundamentados em valores da moral cristã, financiavam estudos em teologia, incentivavam a difusão do cristianismo e o livre exercício do julgamento íntimo em matérias de religião. Mas em matéria de posse e direitos, autodeclarados, sobre 13 Ibid., p. 136. 14 Ibid., p. 136.

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outros seres humanos, o que norteava seu comportamento eram valores econômicos. Uma distinção entre moral e ética? Uma disparidade entre moral e ética? Os fatos históricos que destacamos aqui estão situados em finais do século XVIII e princípio do século XIX. Mas sabemos que a instituição escravidão, especialmente como ela se estruturou no Mundo Novo a partir das demandas econômicas da Europa Ocidental, desenvolveu-se ao longo de (no mínimo) 350 anos, desde meados do século XVI até 1.888 (no caso do Brasil). Isso nos permite entender que se tratava de uma instituição social estruturada nas relações sociais, justificada nos discursos, legalizada nos instrumentos administrativos e garantida nas formas políticas. 3. Quando o direito positivo tolerava e reconhecia Para refletirmos sobre o reconhecimento sancionado da forma escravidão, é interessante trazer à luz um outro exemplo, recolhido à revelia (dizemos à revelia por que é muito grande o número de discursos que (no Brasil) tratavam a escravidão de modo tão “comum”). Em artigo publicado no jornal Correio Paulistano, de 16 de fevereiro de 1888, sob o título “COMMUNICADO – O Banco de Crédito Real de S. Paulo”, o autor (não identificado, o que permite pressupor que faça parte do corpo editorial) expõe de modo claro e objetivo, sem ressalvas de qualquer ordem, a prevalência da ética econômica sobre os preceitos morais. Segue trecho que tomamos a liberdade de transcrever com redação atualizada: Outra dificuldade, quiçá mais árdua e grave, derivava do regime do trabalho agrícola. O serviço da agricultura, sendo feito pelo trabalho escravo, podia, incontestavelmente, dar causa à diminuição dos produtos e da renda da terra, à flutuação do valor da propriedade rural

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e, até mesmo, a comoções sociais. Com efeito, quando esse regime anômalo não estivesse estigmatizado pelos princípios da justiça e pelos preceitos severos da moral, a ciência social e econômica há muito o havia condenado como um sistema infenso à produção da riqueza e contrário às leis da sua distribuição. Se, portanto, o direito positivo o tolerava ou mesmo o reconhecia, nem por isso ele deixava de ser um regime instável e transitório, que, tendendo cada vez mais a desaparecer, não podia comunicar à terra e à propriedade agrícola a certeza e fixidez de valor.15

Devemos enfatizar: antes da concepção moral, a ciência econômica já havia reprovado o sistema de produção calcado na escravidão. Porém, não por sua desumanidade, não pela sorte dos escravizados, mas por ser um sistema adverso à produção da riqueza. A escravização, mais que uma aberração das relações humanas, e, portanto, sociais, era um entrave ao desenvolvimento econômico. O artigo, publicado às vésperas da Abolição da Escravidão no Brasil, mostra uma das faces do processo – aquela do interesse econômico. Outro exemplo que trazemos para nossas reflexões foi recolhido do mesmo modo de um jornal de 1880. Trata-se de um manifesto, se é que pode ser chamado assim, publicado no Correio Paulistano, em 14 de outubro de 1880. Neste caso, não tão às vésperas da abolição, mas, ainda que datado de oito anos antes desta, já inserido no processo que a historiografia denomina de republicanismo – o período no qual foram engendradas as transformações que poriam fim à escravatura e ao Império, redundando na Proclamação da República. O texto é assinado por um pseudônimo: “um abolicionista”, o 15 COMMUNICADO. O Banco de Crédito Real de S. Paulo. Correio Paulistano, São Paulo, fev. 1888, p. 2. Biblioteca Nacional Digital/Hemeroteca Digital. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=090972_04&pasta=ano%20 188&pesq=. Acesso em: 20 jan. 2020 (grifos nossos).

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que serve para significar o momento histórico que marcava a década de 1880, com os movimentos abolicionistas e republicanos crescendo a passos largos, sobretudo nos centros urbanos. Em tom de provocação, o “abolicionista” critica os senhores de escravos e a situação em que se encontravam; dizendo-se republicanos, defendiam a democracia, mas continuavam sendo os mesmos senhores de escravos. O autor abolicionista apresenta uma lista de 30 nomes (que achamos por bem não reproduzir, para não atribuir juízo de valor sobre qualquer personagem em particular da política brasileira da época), todos nomes da elite de cafeicultores, proprietários de terras e escravos, advogados, juízes, vários dedicados ao exercício político, muitos conhecidos nossos, dentre os quais dois futuros presidentes da república. Vejamos então o texto do artigo (também com redação atualizada): Escravos de abolicionistas Os ilustres amigos da Província abaixo mencionados compartilham as opiniões daquela folha sobre a escravidão. São estes os seguintes senhores: (segue a lista dos 30 nomes), e muitos outros. Estes senhores são todos republicanos democratas. Possuem, reunidos, para cima de mil escravos com cujo trabalho tiram grandes lucros nas suas fazendas. É de esperar que não tardem a dar aos míseros negros as cartas da liberdade. Isto aguarda esperançoso. Um abolicionista.16

É preciso observar que é muito provável que “Província” seja referência ao jornal “Almanach Administrativo, Comercial e Industrial da Província de São Paulo”. Com certeza, trata-se de uma referência a outro jornal paulista. Esta “troca” de notícias e informações entre as publicações e periódicos era muito comum neste tempo. 16 “Escravos de abolicionistas”. Jornal Correio Paulistano, de 14 de outubro de 1880, p. 2. Disponível em: http:/ /memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib= 090972_04&pasta=ano%20188&pesq=. Acesso em: 20 jan. 2020.

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Mas o que interessa às nossas reflexões é, em especial, o tom ácido do “abolicionista”, quando em sua provocação, já a partir do título, “Escravos de abolicionistas”, deixa à vista a contradição discurso e prática. No processo de consolidação das ideias republicanas, os escravocratas brasileiros reencontram com um antigo problema – a libertação de escravizados que foram, durante pelo menos 350 anos, a base da mão de obra, o esteio dos meios de produção de riquezas econômicas. Esta questão, no entanto, que fora causa de constrangimento em vários outros movimentos libertários (inclui-se aqui a Conjuração Mineira e a Confederação do Equador, para dar dois exemplos apenas) apresentava agora um estreitamento: como falar de cidadania, liberdade, república, em uma estrutura assentada sobre um modelo considerado, já há muito tempo, ultrapassado e contra produtivo? A república exigia a abolição, mas no comportamento dos senhores escravocratas verificavam-se vacilo e hesitações que para serem superados, dependiam das provocações dos abolicionistas. Entretanto, não sejamos céticos. Sabemos que também o espírito abolicionista muito contribuiu para que a instituição escravidão chegasse a bom termo. Poetas, advogados, clérigos e mesmo proprietários de escravizados, imbuídos de caráter humanista, tiveram acentuada influência para a transformação das relações sociais que colocavam e mantinham os afrodescendentes naquela condição de escravizados e excluídos de uma participação social e política efetiva. Também Eric Williams17 enfatiza o peso do humanitarismo no processo e reconhece seu valor para o fim da escravidão, mas não deixa de chamar a atenção para as contradições que marcaram os discursos calcados na ética capitalista que têm na economia e na produção de riquezas seus fundamentos e objetivos maiores.

17 WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão, p. 244.

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Conclusão Os estudos que vêm sendo realizados pelo UNISAL, particularmente pelos Núcleos de Educação das Relações Étnicos-Raciais, têm levado à constatação da existência e atualização de comportamentos excludentes que atingem os afrodescendentes. Na área da história, nossas pesquisas – ainda que epidérmicas, calcadas em análise bibliográfica, mas embasadas por pesquisa a documentos primários (jornais e revistas de diversas épocas) – têm permitido inferências que vão corroborar o que chamamos de “permanências históricas”. Os exemplos que trouxemos são uma pequena mostra da existência de contradições entre moral e ética, que revelam comportamentos sociais cuja intencionalidade era a produção de riqueza com base na mão de obra excluída da participação cidadã. Não é exagero afirmar que estas contradições ainda permeiam as relações entre vários segmentos de nossa sociedade, em nossos dias, visto que se tornou lugar comum proferir discursos com expressões pejorativas, depreciativas, ofensivas, seja com relação a mulheres, a homossexuais ou a afrodescendentes, para em seguida, com ares de inocência, afirmar que tudo foi dito “sem maldade alguma”. Vale a pena conferir.

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Referências CALDEIRA, Jorge. História do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MONTEIRO, John. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. PEDREIRA, Fernando. Summa Cum Laude: Um ensaio sobre o sentido do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. In: HELLER, Agnes. A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. SILVA, Francisco Carlos Teixeira. A modernização Autoritária: do golpe militar à redemocratização 1964/1984. In: LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 2000. WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Documentos históricos Biblioteca Nacional Digital. Hemeroteca Digital. “COMMUNICADO – O Banco de Crédito Real de S. Paulo”. Jornal Correio Paulistano, de 16 de fevereiro de 1888, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=090972_04&pasta=ano%20188&pesq=. Acesso em: 20 jan. 2020. Biblioteca Nacional Digital. Hemeroteca Digital. “Escravos de abolicionistas”. Jornal Correio Paulistano, de 14 de outubro de 1880, p. 2. Disponível em: h t t p : / / m e m o r i a . b n . b r / D o c R e a d e r / d o c r e a d e r. a s p x ? b i b=090972_04&pasta=ano%20188&pesq=. Acesso em: 20 jan. 2020.

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4 Ética e Ciência Ilmário de Souza Pinheiro1 Introdução A importância da relação entre Ciência e Ética se dá, principalmente, pela inserção das práticas científicas nos diversos espaços sociais. Cada sociedade, mais ou menos organizada, possui juízos orientadores do bem-estar pessoal e coletivo. A ciência, ao colaborar de forma peculiar com as resoluções de problemas que afetam a qualidade da vida humana e ambiental, encontra-se constantemente diante de questões éticas, suscitadas quase sempre pelo confronto entre a possibilidade e viabilidade moral de aplicações científicas. A ciência, por seu constante avanço, tende a ser associada à ideia de progresso, especialmente pelo respaldo do seu conhecimento. Esse lugar privilegiado, em geral, confere à ciência recursos mínimos para o seu crescimento. Ao mesmo tempo, dá a esta forma investigativa uma liberdade de pesquisa e intervenção. Contudo, é sempre mais recorrente pensar em como o progresso da ciência pode fluir sem comprometer o bem-estar humano e a qualidade da vida no planeta. Nesse contexto, a ética aparece, em âmbito preventivo e interventivo, para auxiliar os estudos científicos, principalmente quando a aplicação de estudos científicos pode incorrer em prejuízos para a integridade da vida. Situações concretas, sobretudo aquelas com alto grau de complexidade, suscitam questões éticas para repensar e, em alguns casos, reorientar as práticas científicas em questão. Por exemplo, após o lançamento da bomba atômica de urânio sobre Hiroshima e 1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe; graduado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Recife-PE); bacharel em Teologia pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL.

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da bomba nuclear de plutônio sobre Nagasaki, em 1945, um grupo de cientistas sobrevoou as cidades para verem de perto as consequências da intervenção bélica. Ao contemplarem as consequências inenarráveis, de tão desastrosas para a vida humana e a natureza, afirmaram que a partir dali a ciência não poderia seguir em frente sem uma ética reguladora, capaz de conduzi-la a fins apropriados, prezando pelo vínculo entre conhecimento científico e promoção da vida humana.2 A reflexão entre ciência e ética, neste capítulo, tem a finalidade de provocar discussões sobre a necessidade imprescindível do vínculo entre esses dois domínios, em vista da colaboração saudável da ciência para manutenção e qualidade da vida no mundo. De início, é fundamental apresentarmos os aspectos conceituais da ciência e da ética, com relevância às questões que interpelam ambos os domínios. Com isso, abordaremos problemáticas pertinentes ao debate científico, tais como: o controle da natureza e suas implicações para a continuidade da vida; a autonomia científica ante os diversos valores que conduzem as sociedades; o papel específico da ciência em questões éticas; por fim, os pressupostos éticos para a pesquisa científica. 1. Ciência: aspectos conceituais A ciência é comumente reconhecida pela análise do modo como os fatos se relacionam com as teorias. Pode ser também compreendida como um conjunto de descrições, interpretações, teorias, leis, modelos, paradigmas, entre outros, com o intuito de conhecer uma parcela da realidade. Dinâmica, a ciência está em constante aplicação e renovação; distingue-se por conduzir seus trabalhos por meio de uma metodologia própria.3 A ciência pode ser distinguida da seguinte forma: a) pura, 2 BUARQUE, Cristovam. A desordem do progresso: o fim da era dos economistas e a construção do futuro. São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 11-13. 3 FREIRE-MAIA, Newton. A ciência por dentro. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 18.

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quando não se preocupa, prima facie, com as aplicações, mas estuda questões com o intuito de aprofundar o conhecimento na área específica (física, biologia, psicologia etc.); b) aplicada, quando o trabalho científico possui destinação direta e as questões são definidas por grupos diversos de pesquisadores. Na verdade, todo conhecimento visa aplicações, de modo particular os tecnológicos, cujas aplicações concretas se manifestam em contextos sociais.4 Os objetivos da ciência podem ser sintetizados em: explicar, predizer, controlar e buscar a verdade. Tais objetivos podem ser classificados de dois modos: a) epistêmicos, em vista do aprofundamento do conhecimento humano, com acurada descrição da natureza e com o desenvolvimento de hipóteses e teorias explicativas; b) práticos, ao resolver problemas específicos presentes em diversas áreas, como na engenharia, na medicina e na agricultura, entre outros.5 Em sua análise historiográfica e filosófica da ciência, Thomas Kuhn6 compreende a ciência normal como o espaço onde uma comunidade de cientistas trabalha a partir de um paradigma, ao se guiar por um consenso proveniente de alguma obra de referência como, por exemplo, a Física de Aristóteles ou Principia de Newton. Nessas obras referenciais se identificam duas características: 1) possuem a capacidade de resolver de modo plausível questões relevantes para cientistas de uma área específica, com capacidade de atraí-los à forma de pesquisa da obra de referência e, ao mesmo tempo, 2) deixam em aberto problemas a serem solucionados pelos pesquisadores a partir do modelo proposto. Para Kuhn, assim se constitui a prática denominada de ciência normal. 4 FOUREZ, Gerard. A construção das ciências: introdução à filosofia e a ética das ciências. São Paulo: UNESP, 1995, p. 195-196. 5 RESNIK, David B. The ethics of Science: an introduction. Londres/Nova York: Routledge, 2005, p. 35-36. 6 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 12. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 71-73.

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Os paradigmas são modelos de base para os estudos científicos específicos, os quais podem ser melhor articulados e precisados segundo condições novas ou mais rigorosas. O estudo dos paradigmas inicia o estudante em uma determinada comunidade científica, onde atuará posteriormente. A aquisição de um paradigma impede o cientista de começar a sua investigação sempre “do zero”. Ao contrário, o cientista inicia a sua pesquisa onde o manual a interrompe, isto é, tendo como pressupostos princípios e conceitos já justificados, pode concentrar-se de modo exclusivo nos aspectos mais sutis dos objetos de investigação da comunidade científica. Mesmo o aparecimento de questões, que ultrapassam os limites da ciência normal, não dispensa a prioridade do uso dos paradigmas. Existem também problemas extraordinários e bem pode ser que sua resolução seja o que torna o empreendimento científico como um todo tão particularmente valioso. Mas os problemas extraordinários não surgem gratuitamente. Emergem apenas em ocasiões especiais, geradas pelo avanço da ciência normal. [...] Abandonar o paradigma é deixar de praticar a ciência que ele define.7

O próprio avanço científico apresenta pautas para se pensar as ações humanas, ou seja, suscita questões de cunho ético. A ciência pura possui um lugar especial de atuação, o laboratório, onde se imagina que seja filtrado o mundo exterior e se eliminem as pressões procedentes dali que não se adequam ao paradigma.8 Ao mesmo tempo, a partir das ciências aplicadas e da tecnologia, se questiona o quanto seja possível livrar-se das pressões externas. 7 Ibid., p. 100-101. 8 FOUREZ. A construção das ciências, p. 200.

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Impõe-se, de modo particular entre os críticos da ciência, a questão da objetividade científica e em que medida ela é capaz de livrar a ciência da intervenção de interesses humanos: políticos, sociais, econômicos, religiosos, entre outros. De igual modo, questiona-se o inverso, a respeito do grau de intervenção científica em outros domínios do saber e, especialmente, na condução da vida humana, em decisões de ordem moral, por exemplo. 2. Ética: aspectos conceituais A ética pode ser afirmada como qualidade de conduta que prescreve comportamentos. Como em seus primórdios, deve resolver os problemas gerados pela incompletude de nossas tendências altruístas. Ela se redefine a partir do aumento da complexidade das relações sociais, inclusive pelas questões advindas do progresso científico.9 É próprio das sociedades o estabelecimento de códigos morais para salvaguardar a boa convivência. O debate ético, porém, é mais amplo, conquanto se atente às lutas ideológicas presentes nas próprias convenções e busque esclarecer a maneira pela qual a ação em análise pode determinar o futuro. A ética, em geral, pode ser dividida em três áreas: a) normativa, o estudo de padrões morais, princípios, conceitos, valores e teorias; b) ética aplicada, dilemas éticos, escolhas, padrões de várias ocupações e a ampliação de teorias morais em contextos particulares; c) meta-ética, estudo da natureza e da justificação dos padrões morais. O debate ético, assim como a ciência, parte de pressupostos, argumentos, entre outros, aceitos pelos participantes do debate. Posições éticas decorrem de paradigmas éticos. Como afirma Fourez:

9 KITCHER, Philip. Science in a democratic society. New York: Prometheus Books, 2011, p. 90.

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Os paradigmas éticos permitem comparar diferentes abordagens e exprimir os valores aos quais se referem diferentes posições. E, assim como as teorias científicas derivam de paradigmas, também as posições éticas não são facilmente comensuráveis ou discutíveis quando não se referem aos mesmos paradigmas éticos.10

Isso vale para contrapor a ideia de que os julgamentos éticos seriam subjetivos, ao contrário dos julgamentos científicos objetivos. Mas estariam (assim) sujeitos à discussão e julgamentos racionais. Segundo Rollin,11 embora os julgamentos éticos não sejam validados pela coleta de dados ou realização de experimentos, não se pode relegar a ética à dimensão pessoal. Regras de consenso a respeito do que é correto ou não são articuladas em princípios sociais claros e, por sua vez, codificados em leis e políticas. A principal fonte do debate ético, como reflexão racional e comunitária, são os apelos múltiplos presentes na história da humanidade. Na Alemanha, em 1930, por exemplo, ocorreu o conhecido desastre de Lübeck,12 quando foi aplicado um teste para a vacina Bacillus Calmette-Guérin (BCG) para 250 crianças, aproximadamente. Destas, em menos de um ano, 72 desenvolveram tuberculose e, em consequência, faleceram. O execrável abuso levou a Alemanha, por meio do seu Ministro do Interior, a estabelecer diretrizes para pesquisas em seres humanos, considerando possíveis riscos e benefícios. Contudo, tal medida não foi suficiente para impedir as conhecidas experiências realizadas em humanos durante o período nazista, por exemplo.

10 FOUREZ. A construção das ciências, p. 278-279. 11 ROLLIN, Bernard E. Science and ethics. New York: Cambridge University Press, 2006, p. 33. 12 SAKULA, A. Who were Calmette and Guérin. Thoraz, n. 38, (11), 1983, p. 806-812.

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O debate ético ganha relevante notoriedade em momentos como esses, quando se desperta a sensibilidade diante da dor causada e, por conseguinte, se reconhece por meio da alteridade, do rosto do outro, a necessidade de defender a sua dignidade. O papel da ética em relação à ciência manifesta-se em conhecer as causas dos problemas e elaborar estratégias adequadas para contorná-los, principalmente aqueles que necessitam de intervenções estruturais. 3. O controle da natureza: implicações éticas A perspectiva da ciência como controladora da natureza ganha especial relevância a partir do pensamento de Francis Bacon (1521-1626), para quem os conhecimentos acumulados estendem o nosso poder sobre natureza. Ao considerar a máxima “saber é poder”, Bacon contrariou a tradicional separação entre o conhecimento prático e teórico, ao argumentar sobre a equiparação entre conhecimento humano e poder humano. A partir da Modernidade, quando os fenômenos são considerados produtos das estruturas, processos e leis subjacentes, importa mais conhecer os mecanismos da natureza, para se ter domínio sobre ela. Ao superar as formas de conhecimentos tradicionais e assumir a superioridade do estudo experimental,13 o homem passa a ser definido como intérprete da natureza. Como afirma Bacon: “deixando para trás os vestíbulos da natureza, já gastados por tantos passos sem resultado, penetramos em seus recônditos domínios”.14 Em detrimento da essência ontológica, se buscam os mecanismos causais. A estrita observação dos fenômenos possibilita a intervenção ativa sobre eles. A respeito dessa redução mecanicista: 13 Sobre a superioridade do método experimental, “Bacon comparou os empíricos com as formigas (já que eles coletam apenas resultados experimentais) e os dogmatistas com aranhas (quem faz teias de aranha usa a sua própria substância)”. PSILOS, Stathis. Philosophy of Science of A-Z, p. 78. 14 BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Abril, 1979, p. 42.

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Quando os filósofos mecânicos descreveram os organismos como “máquinas”, uma implicação importante era que poderíamos explicar o comportamento de um organismo observando como são suas partes componentes e como elas interagem, assim como veríamos as rodas e molas de um mecanismo mecânico explicar como o ponteiro do relógio se move. Esse método analítico – compreendendo o todo em termos de suas partes – provou ser espetacularmente poderoso e é onipresente nas ciências naturais e sociais atuais. Mas, talvez os sucessos inegáveis ​​dos métodos levem os cientistas a ignorar suas limitações.15

O domínio da natureza, consequência da apreensão de suas leis, torna o entendimento científico superior, por esse dar origem ao controle tecnológico.16 A ciência, contemporaneamente, tende a ser reconhecida por suas contribuições à tecnologia. Em vista disso, a postura moderna com relação ao controle da natureza não considera a subordinação às outras posturas, por isso tal controle tem-se expandido enormemente. Como afirma Hugh Lacey: Do ponto de vista moderno, a ampliação do bem-estar humano depende de avanços tecnológicos. Isso explica parcialmente a aceitação da ruptura das relações sociais e a construção de novos arranjos sociais, na esteira dos movimentos e das implementações tecnológicas. Esta observação capta o sentido em que o controle de natureza tem sido considerado como um valor não subordinado a outros valores. [...] No moderno esquema de valor de controle, a expansão da capacidade humana de controlar a natureza coloca-se no topo da hierarquia.17 15 BARKER, Gilian; KITCHER, Philip. Philosophy of science: a new introduction. New York: Oxford, 2014, p. 117. 16 LACEY, Hugh. Valores e atividade científica 1. 2. ed. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34, 2008, p. 125-126. 17 Ibid., p. 163-164.

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A capacidade de controle, porém, é passível de controvérsias. O teor de complexidade do mundo científico e da técnica é ambíguo, pois, pode trazer, simultaneamente, vantagens e desvantagens. Como a Revolução Verde,18 ao mesmo tempo que favoreceu o aumento da produção de alimentos, trouxe impactos sociais, por exemplo, ao comprometer a variabilidade de alimentos. Os constantes impactos ambientais questionam, sempre com mais preocupação, a respeito dos limites e das consequências da intervenção do homem na natureza. O controle, devidamente responsável, deve manifestar como irrenunciável a previsibilidade de eventuais consequências, as quais podem ser irreversíveis e podem, inclusive, causar danos a longo alcance, comprometendo a vida de futuras gerações. Da sociedade, e em particular da ciência, se exige um apelo ético ainda mais profundo. Segundo Hans Jonas (1903-1993),19 a ética foi construída e se mantém em caráter antropocêntrico, pensando o que é bom para o ser humano. O trato com o extra-humano era praticamente neutro. Os mandamentos e máximas da ética tradicional se restringiam ao círculo imediato da ação e o universo moral passou a ser representado apenas pelos contemporâneos. A natureza modificada do agir humano, porém, impõe uma modificação na ética. Se no passado longínquo a natureza cuidava de si própria, sem sofrer em demasia com as intervenções humanas, a técnica moderna, com suas ações de inédita grandeza e seu ritmo acelerado, compromete a preservação dos recursos naturais. Esse domínio fundou-se na ideia de que 18 Há diversos exemplos. Entre eles: “Na Índia e no México, o sucesso da revolução verde trouxe mudanças permanentes no modo de vida de muitas pessoas, minando a viabilidade econômica de aldeias apoiadas por pequenas fazendas, aumentando a migração para uma nova economia industrial dos centros urbanos e reduzindo a independência econômica das mulheres e papel na liderança da comunidade”. BARKER, Gilian; KITCHER, Philip. Philosophy of science, p. 120-121. 19 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaios de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p. 35-42.

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a vocação da humanidade se encontra no contínuo progresso desse entendimento. As sérias mudanças na natureza, e as próprias previsibilidades científicas, inserem nas pautas éticas a consideração das gerações futuras, para garantir-lhes a existência. Para tanto, Hans Jonas propõe uma revisão ética, por meio da substituição do imperativo kantiano aja de modo que tu também possas querer que a tua lei se torne lei geral, pelo imperativo “aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra”.20 Essa ética profunda, que descentraliza o ser humano, acaba por considerá-lo integralmente, ao reconhecer a força do seu poder interventor na natureza como um possível risco à sua própria existência. O conhecimento científico, com seu alto poder interventivo e determinante para o bem-estar humano, possui grande parcela da responsabilidade sobre a possibilidade de vida para as gerações vindouras. 4. Ciência e Valores O considerável avanço científico de base tecnológica e sua contribuição para temas relacionados a políticas públicas motivam governo e empresas a oferecerem incentivos em busca do controle do processo científico. Alguns investimentos, inclusive, por serem economicamente expressivos, só podem ser feitos pelo poder público. Os investidores especificam os produtos que desejam, enquanto os cientistas trabalham no conhecimento para oferecê-los. Os cientistas, do lugar apropriado, compreendem melhor os fenômenos e por isso podem ser juízes qualificados a esse respeito.21 Contudo, a ciência, controladora da natureza, pode também ser passível de controle por quem investe e orienta 20 Ibid., p. 47. 21 BARKER, Gilian. KITCHER, Philip. Philosophy of science, p. 139.

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as suas pesquisas. Esse cenário, por extrapolar o domínio da ciência, é mais suscetível à prática de abusos de poder. Essa relação apresenta a problemática entre a ciência e os valores. A questão é sobre a possibilidade de afirmar a ciência como livre de valores e se ela pode ser neutra. Para adentrarmos o tema da neutralidade da ciência, vale verificarmos a distinção entre valores cognitivos e sociais apresentada por Hugh Lacey.22 O “valor” designa uma propriedade de algo. Os valores cognitivos são características que teorias científicas devem possuir em alto grau para serem justificadas de um ponto de vista epistêmico, tais como: consistência, coerência, plausibilidade, simplicidade, poder explicativo, entre outros. Os valores sociais, por sua vez, apresentam as características julgadas partícipes de uma “boa sociedade”, tais como: valores políticos, religiosos, morais, econômicos. O princípio da neutralidade é não permitir que questões externas à ciência legitimem a verdade das teorias. Para falar da neutralidade, Lacey distingue três noções: imparcialidade, neutralidade e autonomia. A imparcialidade “é a concepção de que as teorias são corretamente aceitas apenas em virtude de manifestarem os valores cognitivos em alto grau”.23 Pela natureza objetiva, inviabiliza a aceitação ou não de teorias apenas em função de valores sociais. Em vista de salvaguardar a imparcialidade, é preciso manter os papéis desempenhados pelos valores sociais e cognitivos em seus devidos espaços. Contudo, as teorias científicas não são neutras por estarem submetidas a estratégias de pesquisas, as quais respondem a valores predominantes na sociedade que viabiliza a pesquisa. A ciência é, pois, considerada imparcial por corresponder a critérios unicamente epistêmicos, mas não é neutra por refletir determinados interesses sociais. 22 LACEY, Hugh. Existe uma distinção relevante entre valores cognitivos e sociais? Scientiae Studia, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 121-49, abr./jun. 2003. 23 LACEY. Valores e atividades científicas, p. 179.

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A autonomia, por consequência, é ameaçada pela necessidade de financiamento da pesquisa. O cientista está em constante busca para o financiamento de suas pesquisas e, não raro, deve sofrer com políticas de cortes que podem restringir a qualidade do seu trabalho. Quando isso ocorre, valores cognitivos subordinam-se aos tecnológicos, econômicos e políticos. Nessa crítica, vê-se como os pesquisadores, cujas práticas científicas sempre dependem de recursos, se inclinam a escolher objetos de estudos a partir dos temas privilegiados pelas agências financiadoras, nem sempre aqueles mais urgentes para atender às necessidades mais elementares da sociedade.24 Nessa crítica vale questionar a licitude moral das pesquisas. Algumas maneiras de se fazer ciência podem ser consideradas socialmente ou eticamente inaceitáveis e nesse âmbito as condições sociais podem influenciar a prática científica. A pesquisa que envolve humanos, por exemplo, geralmente está sujeita a padrões de alto rigor, independente dos benefícios que ela possa trazer. Mas algumas circunstâncias podem revelar o contrário, como aconteceu no período nazista, quando, entre muitos outros experimentos terríveis, pessoas eram sujeitas a extremos de temperatura, mergulhadas em água gelada, por exemplo, com o intuito de testar a resistência do corpo humano.25 O “caso Lysenko”26 é um exemplo paradigmático de manipulação política e ideológica. Trofim Lysenko, nos fins da década de 1920, na União Soviética, desenvolveu um programa para o aumento de cultivo de alimentos. Para isso, apenas com argumentos ideológicos, rejeitou a genética mendeliana, largamente aceita pela comunidade científica de seu tempo. Seus 24 Ibid., p. 180-183. 25 FRENCH, Steven. Ciência: conceitos-chave em filosofia. São Paulo: Artmed, 2007, p. 126-127. 26 KREMENTSOV, Nikolai; LAMBERT, Willian de Jong. “Lysenkoism” Redux: Introduction. In: KREMENTSOV, Nikolai; LAMBERT, Willian de Jong. The Lysenko controversy as a global phenomenon: genetics and agriculture in the Soviet Union and Beyond. V. 1. Nova York: Palgrave Macmillan, 2017, p. 2-12.

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programas e ideias se tornaram reconhecidos como ciência oficial pelas autoridades públicas. Contudo, como suas teorias eram infundadas, grande número de planos de agricultura falhou, causando escassez de alimentos e, como resultado, muitas mortes. A aplicação de conhecimentos científicos é de extrema importância e envolve relevantes problemas éticos, porque a ciência não apenas interpreta o mundo, mas também o transforma. Caso o conhecimento científico se oriente apenas pelas leis do mercado, aquilo que apareceu como esperança para a vida humana pode tornar-se sua autodestruição. 5. Ética e Ciência: a colaboração própria de cada domínio O conhecimento científico pode ser considerado como um “poder fazer” e, por isso, representa o que pode ser objeto de decisão em uma sociedade. Não é possível desvincular o conhecimento das decisões. A relação entre conhecimento e poder tem lugar especial na política, onde grande número de decisões é tomada. Nesse sentido, os cientistas são reconhecidos e convidados a decidir como especialistas a partir de temas concernentes aos seus estudos, o que se pode chamar de modelo tecnocrático. Há situações, de fato, onde o modelo tecnocrático não é apenas razoável, mas necessário, sobretudo pela crescente complexidade das tecnologias intelectuais e materiais. O tecnocrata parte de um paradigma e, por isso, está autorizado ao tema que lhe compete. Contudo, em nossas sociedades plurais é preciso lembrar que as questões dirigidas ao cientista, mesmo que sejam objeto de estudo em um determinado aspecto, referem-se à vida cotidiana, não são apenas questões científicas, mas de ordem social, política, espiritual, entre outras. Quando o saber tecnocrático desconsidera outros saberes ocorre abuso 115


de poder. Nos debates, cabe à ciência apresentar elementos de interpretação especializada que podem atestar a coerência de determinada visão. A grade analítica da ciência, como observa Fuerez,27 afirma que para a ciência compreender não significa aprovar, nem desaprovar, mas analisar, considerando os seguintes critérios: a) examinar a situação que se quer discutir da maneira como ela se apresenta espontaneamente; b) identificar indivíduos e grupos implicados; c) fazer estudo das causas dos fatores e de interesses envolvidos; e por fim, d) realizar os exames de possíveis cenários futuros. Essas prescrições podem livrar o debate ético de um terreno demasiado abstrato, mas não conferem à ciência a voz unilateral na sociedade sobre os temas estudados por ela. Tais informações podem ser esclarecedoras no âmbito de decisões políticas e éticas. A ciência, portanto, permite analisar de forma mais precisa os efeitos e a coerência de uma determinada abordagem. A ciência não pode oferecer resposta à ética, mas pode ajudar a esclarecer as implicações das escolhas. Contudo, não é possível extrair da ciência em si, uma resposta definitiva para questões éticas. Como afirma Zilles: O método de proceder da ciência moderna impede de considerar o sentido imanente dos acontecimentos naturais como fundamento da finalidade. Na busca do conhecimento ainda há uma referência a um objeto como natureza, mas dessa não se pode inferir o fim da atividade humana. Além disso, as descrições e constatações não permitem a conclusão de proposições sobre o que se deve fazer ou deixar de fazer, o que é permitido ou proibido. Daquilo que acontece de fato, e é o caso, não se adquire informação se é bom ou mal.28 27 FOUREZ. A construção das ciências, p. 281-283. 28 ZILLES, Urbano. Teoria do conhecimento e teoria da ciência. São Paulo: Paulus, 2005, p. 149.

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Há muitos temas estudados pela ciência que possuem análises e conceitos a partir de outros saberes, como antropológicos, sociológicos, religiosos, entre outros. Pretender a palavra ética apenas a partir da ciência, sem trazer ao debate, considerando os contextos específicos, os outros saberes, pode reduzir a complexa compreensão de algumas realidades. Tomemos, como exemplo, a questão do aborto. Analisemos brevemente dois posicionamentos antagônicos sobre o modo de tratar este delicado tema. Para Umberto Eco,29 a questão da dignidade humana, particularmente do feto, leva à questão do princípio da vida. Nessa perspectiva, seria importante saber até onde retroceder, do ponto de vista científico, para precisarmos o início da vida humana, identificá-la objetivamente para, então, em um consenso, saber a partir de quando ela deve ser defendida. A vida humana seria defendida, em um consenso, a partir de onde fosse considerada a sua existência, ou seja, onde ela começa. Sem esse consenso, amparados de informações provindas da ciência, continuaríamos a elaborar convenções sobre a vida e sua defesa. Na perspectiva deste pensador, não há apenas colaboração, mas a univocidade científica. Espera-se, no seu entender, que em algum tempo, ela seja capaz de afirmar a questão para, enfim, resolver um dilema que supere as crenças diversas. Ao contrário, para Carlos Maria Martini,30 é preciso apontar as questões complexas, que desafiam o próprio entendimento científico, como a questão dos extremos, particularmente na demarcação do início da vida. As fronteiras são sempre tênues, sutis e de difícil precisão. Diante disso, seria insuficiente condicionar a dignidade segundo a precisão de um momento temporal, a saber, o exato início da vida. Sabe-se, inclusive cientificamente, que a fecundação gera um ser novo, diferen29 ECO, Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em que creem os que não creem? Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 27-34. 30 Ibid., p. 25.42.

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te dos dois elementos anteriores. A questão mais importante, como sugere Martini, em relação à dignidade, não parece ser o “quando?” começa a vida humana, mas “o que é a vida humana”. A dignidade humana ultrapassa o dado preciso e reconhece a responsabilidade do outro, do novo, que se manifesta diante do “eu”. O “mistério” do princípio se submete ao que é a própria vida humana. A respeito de temas assim é preciso considerar trazer ao debate os diversos interlocutores envolvidos, sobretudo os mais interessados ou os que falam em nome deles. Como afirma Sanches, “a dignidade humana não é uma afirmação científica, mas social”.31 Embora não seja da competência científica fornecer a resposta à questão ética, não se pode relativizar as suas indispensáveis contribuições para esclarecer as implicações das escolhas. A análise se refere ao que se trata e quais as suas implicações, enquanto a decisão projeta o que escolhemos para a nossa história. Nesse sentido, em alguns casos, pode ajudar a definir a pauta ética, pois, os resultados científicos nos auxiliam a discernir com maior lucidez as consequências das nossas escolhas. 6. Pressupostos éticos para a pesquisa científica A atividade de pesquisa é elemento imprescindível no processo de conhecimento científico. Essa importância exige já dos que estão em processo de iniciação à vida científica (os estudantes) o envolvimento em práticas de pesquisa por meio da participação efetiva em projetos de investigação. O conhecimento científico é elemento fundamental na construção do destino da humanidade, daí a necessidade de infraestrutura técnica, física e financeira. Além da importância de seguir os métodos científicos, em 31 SANCHES, Mário Antônio. Bioética: ética e transcendência. São Paulo: Loyola, 2004, p. 98.

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razão de fidelidade ao pensamento científico e à apresentação de resultados derivados tão somente destes, é preciso considerar os padrões éticos, os quais dão origem e suporte aos códigos éticos das áreas específicas da ciência. Qualquer pessoa, física ou jurídica, que pertença a uma sociedade se submete a obrigações éticas. Também a ciência, como uma sociedade dentro da sociedade, tem uma ética profissional, com suas especificidades, a qual se submete a uma ética social mais ampla. As funções profissionais, como a dos profissionais de saúde, garantem privilégios sociais. A ética social oferece regras gerais e os grupos sociais compostos por profissionais específicos devem desenvolver a própria ética para situações com as quais se defrontam no cotidiano. A sociedade delega à ciência, em suas múltiplas manifestações profissionais, o direito de regulamentar as pertinências da profissão. A confidencialidade médica, por exemplo, é um código ético agregado à profissão. Com isso, a ética profissional situa-se em uma posição intermediária entre a ética do consenso social e a ética pessoal. O fracasso da aplicação da ética profissional pode comprometer a autonomia da profissão em questão.32 Em casos assim, a ética social tem o dever de monitorar e intervir. Há padrões éticos gerais a serem observados amplamente pela ciência. Alguns dos principais, apontados por Resnik,33 são reconhecidos como base a partir de onde as ciências podem positivar os seus códigos. A honestidade intelectual indica a não fabricação de dados ou o desvio de informações. Assim, na produção científica, ética e padrão metodológico estão conectados. Um cientista que fabrica informações (por exemplo) viola, ao mesmo tempo, a ética e os padrões metodológicos. É preciso evitar erros ao apresentar resultados, especialmente por submeter a pesquisa à revisão de pares para as necessárias 32 ROLLIN. Science and ethics, p. 35-36. 33 RESNIK. The ethics of Science, p. 48-65.

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considerações. A ciência é uma forma de comunidade científica, construída sobre cooperação e confiança, que supõe o respeito para o seu funcionamento. Para isso, a ciência precisa ser aberta ao compartilhar informação, resultados, métodos e ideias. O cientista chinês He Jiankui gerou forte polêmica em novembro de 2018 quando “anunciou ter alterado o DNA dos embriões de duas bebês para torná-las resistentes ao HIV, caso elas entrassem em contato com o vírus”.34 À época, Jiankui foi bastante criticado pelo seu feito, pois, os riscos são incertos, especialmente quando se trata de crianças que possuiriam uma vida saudável sem a mutação. Estudos recentes, inclusive, apontam para a probabilidade de pessoas com mutação genética como a criada por Jiankui morrerem mais jovens. As consequências para um trabalho isolado, sem o olhar preventivo da comunidade científica, podem ser irreversíveis. A ciência precisa de suficiente liberdade para seguir novas ideias e trabalhar novos problemas. Essa liberdade não pode violar o direito das pessoas, particularmente nas pesquisas aplicadas, nem abusar dos investimentos, os quais são privilégios, não direitos. A eficiência evita o desperdício dos recursos disponíveis. A liberdade intelectual fomenta a criatividade científica e, para isso, é preciso que as oportunidades sejam concedidas a partir de processos seletivos rigorosos e respaldados. O crédito para as pesquisas deve ser investido onde, de fato, for devido. Cientistas são responsáveis por evitar danos e produzir benefícios, assim devem responsabilizar-se pelas consequências que podem ser previstas. Devem, didaticamente, educar e informar o público sobre os processos científicos em andamento. Deve-se atentar a prudência de não publicar informações prematuramente para não ocorrer, por exemplo, de as pes34 GALLAGHER, James. A polêmica experiência de edição genética chinesa que pode reduzir a expectativa de vida. Disponível em: www.bbc.com/portuguese/geral-48479434. Acesso em: 15 mar. 2020.

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soas buscarem tratamentos que ainda não foram devidamente confirmados. Cada membro de um segmento científico deve conhecer e obedecer às leis de sua profissão. A distinção entre ciência pura e aplicada não é razoável quando serve de base para minimizar a responsabilidade moral do cientista puro das futuras aplicações, ainda não previstas, do conhecimento desenvolvido por ele. Pelo contrário, o envolvimento último com objetivos políticos, econômicos e bélicos torna necessário que o cientista, em qualquer espaço de estudo e/ou atuação, esteja atento à finalidade de sua pesquisa. Conclusão Um pressuposto para o bom funcionamento da ciência é a liberdade, com razoável abertura para evitar tornar-se dogmática e/ou preconceituosa. A condução da ciência, em nome do bom serviço à humanidade, não pode prescindir de padrões éticos. Os padrões originam códigos de conduta mais específicos e se aplicam de acordo com contextos específicos. Alguns padrões, mais gerais, tendem a ser irrenunciáveis, como a honestidade intelectual, a qual favorece a aplicação do método científico e evita plágio, fabricação e distorção de dados, antecipação indevida de resultados, entre outros. Os privilégios concedidos à ciência visam dotá-la de condições para prover a sociedade de bens e serviços. Acompanhado deles, órgãos de administração devem prevenir e simultaneamente revisar casos de má conduta ocorridos em meios como sociedades científicas, laboratórios, institutos de pesquisa e universidades. Mesmo dispondo códigos de ética competentes, permanece importante discutir padrões éticos. O mais apropriado consiste em favorecer negociações entre diversos interlocutores, por meio de negociações sociopolíticas. O movimento de negação da ciência, que tende a desmerecer e relativizar os seus conhecimentos, pode privar o usufruto das 121


descobertas científicas, de modo particular quando corroborados por autoridades políticas ou formadores de opinião pública. É também papel do debate ético defender a autonomia da ciência. Mesmo a constatação de limites e distorções das ciências, não deve ser justificativa para a sua rejeição. Ao contrário, as contingências podem oportunizar o aperfeiçoamento da pesquisa científica, tornando-a mais consciente e responsável. O bom uso do conhecimento científico colabora na percepção do que pode ou não ser adquirido a partir da ciência. Importante verificar as fontes que influenciam a ciência, seus direcionamentos para a pesquisa e o modo de composição de suas comunidades e instituições, tendo por base ética o estudo da relação da ciência com o bem-estar humano. O domínio científico precisa estar bem definido para não ser confundido com outros, para não comprometer a legítima autoridade da ciência, com o prejuízo de retardar o progresso de estudos já consolidados por comunidades científicas de relevância. Alguns confiam em posteriores desenvolvimentos tecnológicos para reverter ou prevenir os danos futuros. Essa confiança se assemelha aos poderes reconhecidos à mão invisível do mercado. Contudo, a história afirma a necessidade de orientar os poderes da ciência, sem esperar que da ciência, em si, derivem as escolhas éticas.

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5 Ética e Cosmologia João Baptista de Almeida Junior1 Introdução A humanidade sempre se interrogou de onde veio, sempre teve curiosidade em saber a origem de si mesma, de todos os seres e, de modo preferencial, do cosmos. A necessidade de respostas levou os antigos, providos apenas da própria observação e da imaginação, a criar lendas embaladas em mitos e fantasias. O interesse pela cosmogênese perpassa a história dos povos. Cada tradição cultural inventa sua narrativa: as cosmogonias dos gregos sobre feitos extraordinários de deuses; os contos babilônicos e egípcios que associam as origens ao Sol e à Lua; a versão hebraica do Gênesis de um Criador onipotente e único; até as versões científicas, mais recentes, apoiadas nos dados fornecidos pelos telescópios de observação do universo. Hoje, a humanidade se interroga para onde vai e coloca novas questões na direção do olhar prospectivo. Questões ainda sem respostas objetivas que, com frequência, assomam nossa reflexão quando sabemos de fatos que desequilibram a ordem geral do planeta, com risco de uma guerra nuclear ou de esgotamento das fontes naturais de vida. Então voltamos a atenção para o universo e ampliamos a lista de questionamentos. Até quando o planeta Terra suporta tanta exploração? Pode a humanidade ainda ser salva? Há possibilidade de vida fora do sistema solar? Por que o universo se expande? 1 Doutor em Filosofia e História da Educação; Mestre em Metodologia de Ensino, ambos pela UNICAMP; Bacharel em Física (USP - São Paulo), Filosofia (FAI - São Paulo), Teologia (UNINTER – Curitiba); Professor do Cento Universitário Salesiano de são Paulo, UNISAL.

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Questões sobre a nossa condição de habitantes de um planeta limitado em meio à vastidão do universo, aparentemente ilimitado, são objetos da cosmologia. Ao contrário das cosmogonias e mitos, a cosmologia contemporânea traz uma visão de mundo apoiada em dados científicos. O conhecimento que produz abre um portal para que homens e mulheres tenham uma visão mais humilde e racional sobre a postura ética de cada um na sociedade de que faz parte, no planeta que habita e na imensidão do universo que contempla com olhos voltados para o futuro. Os saberes cosmológicos e suas consequências éticas, com reflexos sobre o tratamento que se deve dar ao planeta, são os assuntos deste capítulo. 1. Cosmologia: Especulação e Ciência Cosmologia, etimologicamente, é a razão (logos) da ordem (kosmos), ou seja, o estudo da organização do universo, incluindo a diversidade dos seres do planeta e de seus modos de ser. A disciplina nasceu da necessidade de explicar racionalmente o cosmos, de modo a contrapor-se às antigas cosmogonias. De que trata a cosmologia? Estuda a cosmogênese (origem do cosmos, sua estrutura, composição e evolução); pesquisa questões de natureza escatológica, relativas aos extremos do eixo temporal: o ponto de partida e de chegada do universo. O olhar do cosmólogo pode se concentrar em evento remoto e original, por exemplo, o Big-Bang; ou focar em um fenômeno novo identificado, um buraco negro, região do espaço, da qual nada, nem a luz consegue escapar. O olhar pode abranger o universo como um todo, a fim de entender sua natureza e dinâmicas de transformação. Um cientista mais arrojado pode deslocar seu olhar heurístico até o além-cosmo para unir a explicação científica à especulação sobre causas e ocorrências nas suas bordas. Pretensão que o aproxima de discussões 126


consideradas tabus nas ciências porque adentram no campo da filosofia e teologia. Assuntos metafísicos que hoje encontram sustentação nas teorias relativísticas: o estado do cosmos pré-big bang, a fonte inicial de toda energia compacta, a existência de universos paralelos. Neste particular, a cosmologia, que inicialmente parece se contrapor à metafísica – a primeira como conhecimento passível de observação do cosmos e a segunda como saber especulativo do ser, na verdade, ambas se tangenciam nas questões suscitadas pelos eventos das fronteiras do cosmos – enquanto ciência fronteiriça e transdisciplinar, serve de base material para a metafísica que, por sua vez, contribui para alargar a reflexão sobre os extremos históricos do universo. Alguns cosmólogos adotam metodologias diversas no estudo da origem do cosmo, no contexto da história da antropogênese. Pacheco2 registra um tipo de cosmologia civilizacional interessada nas representações do mundo por um humanista que analisa as concepções de cosmogênese em diferentes culturas, comparando-as a partir de dimensões sociais e históricas, mantendo um diálogo colaborativo com arqueólogos, antropólogos, teólogos e outros pesquisadores das ciências sociais. 1.1. Pequeno histórico da Cosmologia Os primeiros filósofos gregos, antes de Sócrates, foram cosmólogos. Partindo das percepções da realidade material, buscavam encontrar a lógica que fundamentava toda ordem (kosmos) para que não se transformasse em desordem (chaos). De diferentes regiões da Grécia, eles se perguntavam qual o elemento formador de todos os seres existentes. O intento era definir a substância primeira, o arché, que estaria na base da estruturação da natureza e do universo. 2 PACHECO, J. A. de Freitas. Cosmologia: o lado escuro do universo. In: SIMON, Samuel (Org.). Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia no século XX. Brasília: UnB, 2011, p. 605.

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Cada filósofo nomeava um princípio elementar para compor o tecido material da realidade e até mesmo dos pensamentos. De modo sucessivo, as matérias-primas dos corpos, os archés nomeados, foram se desmaterializando nas propostas de cosmologia dos filósofos. Inicialmente explicavam que o mundo era composto dos elementos materiais água, ar, terra e fogo, que foram substituídos por partículas indivisíveis da matéria, os átomos, e destes às substâncias mais voláteis e imponderáveis, como o apeiron,3 até chegar aos números. Na cosmologia de Pitágoras, os números eram as bases arquetípicas de todas as coisas da natureza e do universo. A cosmologia que surge no contexto grego equivale à filosofia da natureza. Aristóteles foi seu primeiro sistematizador ao estudar o mundo cambiante dos fenômenos, interessado na capacidade da matéria revestir-se de quantidades, qualidades e naturezas. Para o filósofo, os seres e o universo são organizados pelas essências que os precedem. Sua cosmologia pretendia abstrair, de maneira reflexiva, as causas formais dos seres. Simon4 comenta que, apesar da relevância de suas reflexões sobre a realidade material a partir de admirável curiosidade, os filósofos gregos não produziram ciência, que requer estrutura e metodologia objetiva. O que faziam era produto de especulação. Do ponto de vista científico, a contribuição foi libertar a cosmologia dos mitos e dar mais atenção à realidade de entorno ao interpretar a natureza pela própria natureza, extraindo dela mesma suas leis e não impondo leis transcendentais ao mundo natural. Por essa razão, segundo Reale e Antiseri,5 a cosmologia aristotélica não deve ser vista como falsa ciência. Não houve 3 Apeiron era o elemento primordial das coisas para Anaximandro, equivalente ao infinito, ao indeterminado. 4 SIMON, Samuel (Org.). Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia no século XX. Brasília: UnB, 2011, p. 23. 5 REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do humanismo a Kant. Vol. 2. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 188.

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intenção de distorcer a realidade em favor de seus postulados. Aristóteles era filósofo e não conhecia os métodos experimentais que seriam inventados somente na era moderna. 1.2. Etapas da Cosmologia e modelos Do ponto de vista histórico, a cosmologia seguiu três grandes etapas. A primeira é da cosmologia clássica ou filosofia da natureza que vai do século IV a.C até o século XV d.C. Seus principais mentores são os gregos: Aristóteles (sec. IV a.C), com a leitura essencialista de mundo, e o astrônomo Ptolomeu (sec. II d.C), criador de uma concepção mecânica do universo que atravessou o período medieval e permaneceu até o início da era moderna. Este primeiro modelo mecânico, conhecido por geocêntrico, colocava o planeta Terra no centro do universo, que era considerado finito, estático e perfeito. A segunda etapa corresponde à cosmologia moderna ou experimental, iniciada no século XVI, com a invenção do método empírico nas ciências, no qual só se define postulados depois de observar e medir dados do mundo real e descrevê-los com algoritmos matemáticos e físicos. Os principais criadores foram Bacon, Copérnico, Galileu, Kepler e Newton. Apesar do ambiente hostil da intelectualidade, os séculos XVI e XVII foram de intensa inventividade da parte dos cientistas que trabalharam, independentemente, em seus projetos nos países de origem. O inglês Francis Bacon (1561-1626) criticou as causas finais de Aristóteles e propôs o primeiro formato do método experimental. O astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), o físico italiano Galileu Galilei (1564-1642) e o matemático alemão Johanes Kepler (1571-1630) foram os primeiros a demonstrar, no laboratório, as relações entre as medidas astronômicas e os modelos construídos que davam sustentação às teorias. O modelo que

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defendiam era heliocêntrico, o Sol ocupando o centro do universo, percebido como finito, estático e harmônico. A terceira etapa, vigente até hoje, é da cosmologia contemporânea ou relativística, iniciada no século XX com as descobertas do astrônomo Edwin Hubble (1889-1953), os aportes teóricos do físico Albert Einstein (1879-1955) e as contribuições do matemático Stephen Hawking (1942-2018).

A construção de grandes telescópios pelo governo americano nos montes Palomar e Wilson, na Califórnia, e o lançamento do telescópio orbital Hubble deram um salto notável à Astronomia e à Astrofísica, duas especialidades cosmológicas. A partir das imagens captadas pelos telescópios, que fornecem fotos de radiações de fundo,6 os cientistas revisaram as teorias e propuseram um modelo de universo em expansão, acêntrico, sem nenhum ponto considerado fixo que possa servir de base referencial. A cosmologia trabalha com modelos de universo para consolidar princípios, desenvolver explicações teóricas e produzir efeitos práticos, como por exemplo a criação de calendários e a previsão de eclipses. Os mais conhecidos são: Terra plana com abóboda de estrelas fixas; Terra como núcleo de esferas concêntricas (geocentrismo); Sol ao centro do sistema planetário (heliocentrismo); e balão ou bolha em expansão (acentrismo). Segundo Kuhn, “o homem não consegue existir muito tempo sem inventar uma cosmologia, porque esta pode fornece-lhe uma mundividência que lhe dá um sentido a todas as suas ações, práticas e espirituais”.7 Cada modelo, em seu período histórico, exerceu o papel de paradigma cultural ao influenciar as pessoas e instigar valores, condutas, heresias, conversões, revoltas e até condenações à morte. 6 Radiação de fundo é a luz emitida pelo universo original, quando ainda estava quente, captada como radiação de micro-ondas. 7 KUHN, Thomas. La Revolución Copernicana. Barcelona: Seixy Barral, 1978, p. 22.

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O caso do filósofo italiano Giordano Bruno8 (1548-1600) foi um marco histórico que deve ser lembrado como símbolo de uma era de mudança. Giordano era filósofo, matemático, além de frade dominicano e foi condenado a morrer queimado na fogueira por ter cometido heresias, entre elas a de defender o modelo de universo heliocêntrico, contrário à concepção ptolomaica adotada pela Igreja na época. O modelo atual, conhecido por Big Bang, é explicado pelo físico SILK: Grande parte dos cientistas admite com bases empíricas um eixo temporal de expansão do universo, a partir de um ponto zero de densidade infinita. Tal ponto denominado “singularidade inicial” equivale, supostamente, ao início do tempo e ao denominado fenômeno do Big Bang.9

O que este modelo tem de inédito é a possibilidade de observar o universo não como uma caixa, mas um grande balão inflável que contém todas as formas conhecidas de energia e matéria, astros e átomos. O modelo serve de fundamento para os princípios físicos da mecânica quântica, que complementa a mecânica clássica de Newton. O modelo parte de um pressuposto, de grande relevância na física, de que as leis da mecânica quântica, observadas no microcosmo, podem ser aplicadas em eventos do macrocosmo. Ou seja, as leis da física testadas nos experimentos de laboratório com partículas elementares são as mesmas que funcionam nas bordas do universo.

8 KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 45. 9 SILK, Joseph. O Big Bang: a origem do universo. Brasília: UnB, 1984, p. 23.

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2. Cosmologia moderna: mudança de paradigma Não é difícil ao homem cosmopolita de hoje pensar na vastidão infinita do cosmo. Pensamento que não era comum até o fim da idade média. No período medieval, as pessoas perscrutavam o céu e admiravam-se com as miríades de estrelas, no veludo da escuridão. O fundo do universo tornava-se mais perceptível em contraste com o brilho das estrelas, o que permitia à imaginação ligar os pontos luminosos e criar figuras mitológicas formando as constelações. De repente, durante a observação, uma estrela cadente10 despertava temor mais que de admiração. A primeira ideia que se associava ao fenômeno era de um sinal divino, talvez um presságio de catástrofe ou de maldição. A tradição de que do espaço não provém mensagens boas é antiga. A relação da humanidade com o cosmos, embora familiar, sempre foi tensa. Diante da escuridão sideral, homens e mulheres projetavam seus medos, inseguranças e culpas. Ainda hoje são creditados aos signos do zodíaco a determinação de traços de personalidade de uma pessoa e dos destinos dos humanos na Terra. Os antigos pensavam no cosmo como um espaço fixo, limitado até onde a vista conseguia enxergar. Uma grande caverna fechada e estática cujo teto correspondia à última esfera onde se fixavam as estrelas. Por seu lado, os homens contemplavam esse espetáculo, seguros de que caminhavam no solo firme da terra plana do planeta, que ocupava o núcleo concêntrico de todas as esferas siderais.11 Dois fatos históricos coetâneos contribuíram para a mudança desse paradigma no início da era moderna: a descoberta da América e a revolução copernicana. 10 Estrela cadente, na realidade, é um meteoro que se incendeia, por causa do atrito, ao ingressar na atmosfera terrestre. 11 Eudoxo de Cnido, no século IV a.C., criou o primeiro modelo de geocentrismo, no qual o movimento dos corpos celestes ocorria em esferas concêntricas, circulares e perfeitas.

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A chegada de Colombo à América representou o refinamento do que se delineava como terra plana no mundo medieval. Mais do que um acréscimo de civilizações àquelas conhecidas no mundo antigo, a novidade promoveu uma mudança radical na concepção de espaço entre os europeus. Abriram-se horizontes inteiramente novos e a perspectiva de conquistas impulsionou uma sequência de expedições marítimas ao novo continente. Se antes os europeus tinham medo do desconhecido, aos poucos a curiosidade desperta neles o interesse (e a ganância) em desvendar (e explorar) o novo mundo, com um povo estranho, até então inimaginável. A descoberta de culturas autóctones, do outro lado do planeta, implicou necessariamente uma relativização da própria concepção de espaço próprio e de referência antropológica no mundo. Como escreve Bollnow: Tão logo a superfície da Terra se curvou numa esfera, não restava sobre ela nenhum centro extraordinário. Nenhum país mais se distinguia do outro. Com as novas descobertas se havia perdido a estância segura de um centro, e a posição das pessoas sobre a Terra se via inevitavelmente relativizada.12

Não se podia mais considerar que o território europeu era o centro do mundo, embora a altivez dos colonizadores, em não reconhecer os novos habitantes como iguais, tenha encenado graves formas de exploração, escravidão e extermínio de povos. A lição moral que fica é que nós não devemos pensar que somos o centro do universo, nem talvez os únicos habitantes da imensidão cósmica. Com a descoberta do novo mundo, a ideia do cosmo, como grande caverna fechada, deixou de existir. Do mesmo modo, a concepção de espaço cósmico imutável vem sofrendo mudanças que refletem em nossos valores e modos de conduta no planeta. 12 BOLLNOW, Otto Friedrich. O homem e o espaço. Curitiba: UFPR, 2008, p. 92.

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Mas o que significa perder a referência de ser o centro do universo? Em que consiste essa relativização? A nova concepção de mundo desconstrói aos poucos a presunção de absoluto das verdades inabaláveis mantidas pela tradição. Se a descoberta da América agitou a população europeia, diante das possibilidades de novos conhecimentos, a proposta cosmológica do monge Nicolau Copérnico desequilibrou, de certa forma, o eixo do mundo. Quando De Revolutionibus13 foi publicada em 1540, após a morte do autor, alguns teólogos escreveram um manifesto desaprovando-a. Galileu, que saiu em defesa do geocentrismo, foi processado pela Igreja católica. Isto porque a teoria não só contrariava a cosmologia do Gênesis, mas tornava-se uma heresia. Portanto, não devia ser aceita como descrição verdadeira do mundo, porém muito mais porque inaugurava um novo modo de ver a realidade e de produzir saberes. O embate que se instaurou não foi somente entre um dogma da Igreja e alguns cálculos matemáticos para otimizar o calendário. O confronto mais grave foi entre cosmovisões, entre duas maneiras de conceber a verdade dos fatos. Segundo Reale e Antiseri, havia mais que questões religiosas envolvidas no episódio. A ciência como ela se configura ao fim da revolução científica, não está mais voltada para a essência ou substância das coisas e dos fenômenos, mas sim para a qualidade das coisas e dos acontecimentos de modo objetivo e, portanto, sendo comprováveis e quantificáveis publicamente. Não é mais o que, mas o como; não é mais a substância, mas a função, que a ciência galileana e pós-galileana passariam a indagar.14 13 O termo De Revolutionibus representa “a circulação”, isto é, descreve o movimento circular dos planetas, incluindo a Terra, em torno do Sol, contrariando a cosmologia geocêntrica vigente. 14 REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do humanismo a Kant. Vol. 2. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 188.

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A revolução científica de Copérnico levou à revisão as categorias da filosofia da natureza de Aristóteles, juntamente com a desconfiança na leitura literal da cosmologia do Gênesis. O antigo saber pretendia ser saber de essências e dogmas. O novo saber ensejava a descrição objetiva da realidade por meio de um método que não dependia de postulados ou garantias fora de si mesmo. 3. Cosmologia relativística: salto para o futuro A cosmologia contemporânea começou a ser delineada no início do século XX com a criação dos grandes telescópios de observação do cosmos. É conhecida por relativística, termo derivado da Teoria da Relatividade de Einstein, que foi quem deu o grande impulso e estruturou as bases matemáticas para a descrição do novo modelo. Em 1929, o físico Edwin Hubble mediu uma radiação de fundo do universo que ficou comprovada ser proveniente do afastamento uniforme entre as galáxias. Esse fenômeno dinâmico sinalizou a hipótese de o universo estar em movimento de expansão, tese desenvolvida pelo americano que lhe garantiu a indicação ao Nobel. Inicialmente preso ao paradigma moderno do universo estático, Einstein relutou em aceitar a hipótese de Hubble. Depois de rever sua perspectiva, acabou se curvando às evidências dos dados dos telescópios, cada vez mais potentes. Em seguida, não somente abraçou o modelo expansionista como se dedicou à elaboração teórica dos postulados e bases matemáticas do que ficou conhecido por Teoria da Relatividade Restrita. Há de se destacar em Einstein, o exemplo de cientista que, de forma pública, assumiu uma postura ética no campo da cosmologia. Sem medo de ter que rever seus pressupostos, se os fatos comprovassem o contrário, não se afastou da polêmica teórica e ainda colaborou para que a verdade científica fosse 135


preservada acima de tudo. Preferiu submeter-se corajosamente à evidência dos dados, princípio básico da física, do que permanecer cativo do modelo tradicional. A nova cosmologia sustenta uma concepção relativizada de mundo, ou seja, é a forma de explicação plástica dos cientistas, a visão que têm de um universo admissível, que corresponde ao real visível no momento. Devido às distâncias astronômicas entre as galáxias, medidas pelo parâmetro ano-luz que equivale à distância que a luz percorre em um ano, certamente grande parte do que os telescópios captam são informações de uma história do passado, do universo em formação, que somente agora chegam à Terra. As galáxias, cujas imagens recebemos, podem não existir mais ou estar em processo de desaparição. Os cientistas descrevem um universo admissível que está desaparecendo. Do nosso ponto de vista, raramente conseguimos ver o céu, à noite, encoberto pela luz artificial da cidade. A visão que temos, pelos meios de comunicação, é da produção artística operada pelos telescópios que captam radiações das estrelas e as transformam em fotos belíssimas. As fotos dirigem nossa imaginação às profundezas do cosmos. A passagem do mundo estático para um universo em expansão marca outro ponto de inflexão na história, com desdobramentos ainda não assimilados pela sociedade. A mudança não é apenas no modelo, de caverna imutável para uma bolha que infla. Houve uma mudança de paradigma. Isso equivale a mudar pressupostos, valores e o modo de produção dos saberes com efeitos na cultura, na religião, na ordem dos poderes e na sociedade em geral. Tal mudança requer protocolos de grupos de pesquisa e novas exigências éticas em relação às instituições científicas e acadêmicas. Espera-se, de forma consensual, a confirmação do compromisso ético dos cientistas em relação ao conhecimento

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produzido em favor da humanidade e da paz entre os países, do mesmo modo que aumenta a expectativa de abordagens ecológicas da comunidade internacional na preservação do planeta, que o Papa Francisco chama de “nossa casa comum”.15 Apesar da adesão de Einstein à tese expansionista, o modelo não obteve o consenso imediato dos cientistas. Houve uma série de entraves filosóficos e teológicos. O que demonstra que a cosmologia caminha em terreno multidisciplinar e precisa combinar os avanços das ciências duras com as hermenêuticas das ciências sociais. Um episódio ilustra esse entrave. Os cientistas britânicos Stephen Hawking16 e Roger Penrose, em 1968, apresentaram cálculos para a questão da origem e fim do universo: a variável física origem do tempo equivaleria a um “ponto zero” e a variável física fim do tempo ocorreria quando as galáxias e todo o resto de matéria cósmica fossem encolhidas pela força gravitacional e engolidas por um buraco negro como um ralo que suga toda a água ao seu redor. As teses foram bem recebidas pela comunidade e os cientistas premiados pela criação das equações descritoras dos fenômenos. Contudo, mesmo admitindo o valor científico da teoria, nem todos reconheceram sua validade filosófica e cultural. O relato a seguir, guardando as diferenças ideológicas, parece repetir certas resistências da época da apresentação do modelo copernicano. Por um lado, líderes religiosos se apressaram em aplaudir a ideia do “ponto zero”, ao perceberem no evento um modo de legitimar a presença divina no ato de criação ex nihilo. Por outro, físicos soviéticos recusaram a teoria, pois, contrariava o pressuposto do materialismo dialético de que o universo sempre existiu como substância material. 15 FRANCISCO. Papa. Carta encíclica Laudato Si’ - sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015. 16 HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. São Paulo: Mandarim, 2001, p. 41.

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Cientistas de outras nações tentaram refutar a tese do “ponto zero” a partir do nada. Previam um debate incômodo sobre a necessidade de admitir uma hipótese G, de God, para preservar o princípio de causalidade, dogma de cientificidade da comunidade. Outros negavam-se a discutir a questão da origem, alegando que o assunto era exclusivo do domínio da metafísica ou da religião e não das ciências. Pretendiam furtar-se, de modo cínico e antiético, do debate interdisciplinar que deve envolver todas as representações culturais da sociedade sobre temas de interesse e relevância, como os da cosmologia. Stephen Hawking, que participou dessa polêmica, assim se posicionou: Na minha opinião, essa não é a posição que verdadeiros cientistas devem tomar. Se as leis da ciência não se aplicam ao início do universo, por que não haveriam de falhar também em outras épocas? Uma lei não é uma lei se só vale às vezes. Temos que tentar compreender o início do universo com base na ciência. Pode ser uma tarefa além da nossa capacidade, mas deveríamos ao menos tentar.17

A questão ética que perpassa o debate é que não se trata de invocar o conceito de Deus como pressuposto para fundamentar os modelos científicos. Isso representaria um retrocesso à concepção essencialista. O que precisa estar claro é que no desenvolvimento das pesquisas, o cientista pode evoluir, de tal forma, que vai acabar desembocando na hipótese G, com a qual, se não pode assumir como pressuposto, talvez tenha que aceitar, pela progressão de raciocínio e pelo método que adotou, como a única evidência plausível para referendar o modelo cosmológico. A construção das ciências não está isenta de pressupostos ideológicos. Por maior grau de imparcialidade que os cientistas 17 Ibid., p. 79.

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requeiram de si mesmos, em termos de conduta de pesquisa e respeito aos resultados dos parceiros, todos devem seguir os protocolos de confirmação experimental e os códigos de ética. Se devem ser fiéis aos fatos, devem outrossim suspender os personalismos, as posições religiosas ou agnósticas. O compromisso que se exige do pesquisador é o respeito aos valores epistemológicos do processo de investigação. Respeito que não é apego a doutrinas, confessionais ou materialistas, o que denotaria parcialidade ideológica. É evidente que a escolha de método e a definição de hipótese pressupõem um direcionamento da pesquisa a resultados, que se espera, sejam confirmados. Contudo, faz parte da ética dos cientistas, independentemente de suas crenças, renderem-se aos dados da observação que, antes de serem divulgados, são legitimados pela comunidade com colegas de várias nações, seguindo os protocolos de conduta científica. Sobre a necessidade de interlocução das ciências com outras áreas para se ter um acordo ético, temos a recomendação do Papa Francisco na encíclica Laudato Si’: Uma ciência, que pretenda oferecer soluções para os grandes problemas, deveria necessariamente ter em conta tudo o que o conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a filosofia e a ética social. Mas este é atualmente um procedimento difícil de seguir. Por isso também não se consegue reconhecer verdadeiros horizontes éticos de referência. A vida passa a ser uma rendição às circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como o recurso principal para interpretar a existência.18

18 FRANCISCO, Papa. Carta encíclica Laudato Si’, p. 87.

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4. Novo paradigma: novos questionamentos A constatação do universo em expansão causou uma modificação nas coordenadas cosmológicas e antropológicas: implodiu o modelo esférico das estrelas fixas; descartou, de vez, a teoria heliocêntrica e com isso abalou nosso antropocentrismo. Hoje sabemos que bilhões de galáxias acompanham a Via Láctea em viagem pelo espaço. Sabemos que nossa galáxia condomínio soma bilhões de estrelas maiores que o Sol, de quinta grandeza, e que estrelas podem orbitar planetas com condições de vida. Precisamos atentar para a enormidade dos números e seus significados, pois, não estamos acostumados a pensar nessa ordem de grandeza. Nossa escala de contagem é limitada ao tamanho do nosso organismo, da humanidade e do planeta, o que representa uma pequena e relativa significância material na imensidão do cosmos. Constatar isso significa assumir a humildade de criatura, em meio aos outros indivíduos da criação. Colocar-se em condição de igualdade no consumo de energia da “nossa casa comum” e ter o cuidado coletivo de manter as condições de vida do planeta. Mas o ser humano parece esquecer o precedente da descoberta da América, que revolucionou os modos de presença relativa dos homens na época. Esquece, também, dos impactos que as mudanças dos modelos cosmológicos causaram ao demonstrar que não existe ponto absoluto no espaço para nenhum observador ideal. Mesmo assim, muitos persistem na crença de que a Terra e seus habitantes ocupam um lugar central na história do universo e comportam-se com soberba de conquistador.

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4.1. A questão do tempo Ao lado das medidas astronômicas difíceis de processar mentalmente, a variável tempo também perturba nosso alcance de compreensão e reflete em revisão de conceitos. As variáveis espaço e tempo são descritas pelos cientistas como interdependentes, constituindo uma única dimensão espaciotemporal. A partir de Einstein, a ideia de espaço está intrinsecamente unida à ideia de tempo. Isso significa que vislumbrar qualquer região do cosmo equivale a repensar o tempo original, porque o universo tem uma velocidade. Desta forma, admitindo-se que o cosmos seja nosso objeto de experimento no laboratório, o tempo não é uma variável fora do laboratório. É o eixo cronológico que se soma ao experimento na tentativa de descrever a evolução do cosmos, é um aliado no processo de desvelamento, de tirar o véu que cobre a realidade objetiva do universo. Por esta razão, as descobertas recentes corroboram a visão agostiniana de que o tempo é um ingrediente cósmico. Na linguagem do pensador, o tempo é criatura original e não se confunde com a ideia de sucessão indefinida, nem com a eternidade, que é um atributo divino. Provocava Agostinho: “não se pode perguntar o que Deus fazia antes da Criação, pois, o tempo é uma Sua invenção”.19 Na linguagem da mecânica quântica, segundo Hawking,20 o tempo/espaço é um parâmetro exclusivo, associado à configuração do cosmos, privado de externalidade. O que significa o tempo ser privado de externalidade? Significa admitir, como Agostinho, que não existe tempo absoluto enquanto dimensão fora ou antes da Criação. O tempo é um ente criado junto com o universo. Tempo e espaço são dimensões que se entretecem, como fios, para costurar o tecido cósmico 19 AGOSTINHO. Confissões, livro XI. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 78. 20 HAWKING, Stephen. Uma breve história do tempo: do Big Bang aos buracos negros. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 23.

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desde o princípio, quando o cronômetro marcou o ponto zero. Deus criou os fios mágicos tempo e espaço que, por si mesmos, se interpenetram na configuração do cosmos. Os cientistas, cada vez mais admirados dessa tessitura, debruçam-se sobre os fenômenos astrofísicos para compreender as leis que comandam os fios. 4.2. A questão da vizinhança Outra questão de interesse científico, e de curiosidade, é saber se estamos sozinhos no espaço. Segundo Lena,21 a consciência coletiva tem se apropriado das mudanças cosmológicas e, à sua maneira, modificado o modo de pensar o homem e suas relações com possíveis extraterrestres. Cientistas não confirmam a possibilidade de vida em regiões do universo. Desde o início das pesquisas espaciais, sondas foram lançadas ao cosmos na expectativa de detectar algum sinal de vida, diferente da nossa, talvez, ante a diversidade de seres conhecidos. A versão de que uma elite de cosmólogos saiba a verdade, mas a mantém como segredo estratégico, não tem base ética. Esta atitude estaria na contramão dos interesses de qualquer cientista, ferindo seu código de compartilhamento de um saber relevante. Na perspectiva do novo paradigma, o provável é mais verdadeiro do que as convicções acumuladas até hoje. Não se trata de afirmar que existam seres inteligentes, mas a presença de vida microbiológica, por exemplo, é bastante plausível. O astrônomo Carl Sagan (1934-1996) lembra-nos que na Via Láctea há bilhões de estrelas rodeadas de planetas como nosso sistema solar e levanta a hipótese:

21 LENA, Pierre. A nova visão do mundo: algumas reflexões para a educação. In: MORIN, Edgar. O desafio do século XXI – religar os conhecimentos. Lisboa: Gráfica Manuel Barbosa, 1999, p. 43.

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A química que produz a vida é reproduzida facilmente por todo o cosmos. Por que então seríamos tão privilegiados? O universo é três vezes mais velho que a Terra; deve haver, portanto, lugares em que houve mais tempo para a evolução biológica que em nosso planeta. Parece improvável que sejamos os únicos seres inteligentes. É possível, mas é improvável.22

5. Cosmologia: aspectos éticos e ecológicos A cosmologia não incuti preceitos éticos, quando muito fornece uma visão de mundo que dá sentido às ações humanas, sejam práticas ou espirituais. Mesmo em seu campo específico, ela não garante o controle das variáveis que observa, a ponto de antecipar a ocorrência de um fenômeno. No campo social, encontra-se mais limitada ainda nas possibilidades de previsão. Isso porque o ser humano é imprevisível e contraditório quando está em sociedade e age, unicamente, pautado em sua liberdade. Enquanto cosmovisão, a cosmologia tem um papel relevante no debate acerca das questões ecológicas, auxiliando a colocar na mesa de diálogo os requisitos éticos da aplicação da ciência e os modos de conduta dos habitantes do planeta na direção dos horizontes de futuro e de valores universais. Os valores que temos no âmbito da cosmologia decorrem das teorias recentemente criadas que, aos poucos, são assimiladas pela sociedade. Por essa razão, não é impertinente perguntar se é perda de tempo refletir sobre questões do cosmos quando há outros problemas urgentes. De maneira alguma. O primeiro desafio é traçar um quadro de referência valorativa, na dimensão cosmológica, para definir o sentido do agir humano, individual e coletivo, em relação ao planeta e ao futuro. 22 SAGAN, Carl. A certeza me aborrece (entrevista 28/04/1982). In: VV. A história é amarela: antologia de entrevistas da Revista Veja. São Paulo: Abril, 2017, p. 131.

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Segundo Severino, em qualquer campo de decisão do ser humano sempre estão presentes um valor conceitual e uma ação prática, relacionados à história pessoal. Mesmo não podendo pautar-nos em valores universais, previamente definidos, todos somos interpelados por uma demanda ética, por uma necessária qualificação ética de nosso agir. Os valores éticos precisam então ser construídos historicamente, ou seja, impõe-se que definamos os sentidos que precisamos imprimir em nossas ações, de modo a garantir o respeito à dignidade dos outros homens e a nossa própria dignidade como seres humanos.23

Desse modo, a construção de uma ética consiste em manter um equilíbrio entre a forma de pensar e o sentido de agir, a partir do que se pensa. Ética é práxis, pensamento e palavra (logos) em sintonia com ações insufladas por valores. O universo, em si, é uma complexidade material imensa. Nem benigno, nem hostil, nem fonte de valores morais; é indiferente às preocupações das criaturas que passam a ser irrelevantes na ordem cósmica. Entretanto, ao menos na escala planetária, os habitantes da Terra têm poder de fogo para, se não destruir, pelo menos desafinar a harmonia do sistema. A produção de ogivas atômicas representa uma ameaça nuclear real e iminente ao equilíbrio da paz. E isso significa uma ruptura de valores morais e humanos. O caso Chernobyl, o acidente na usina nuclear soviética, em 1986, mostrou que a humanidade, às vezes, falha de modo imoral, a ponto de colocar em risco uma cidade inteira. Mais grave ainda, o acidente foi ocultado pelo governo, o que atrasou as ações de salvamento e a comunidade não sobreviveu 23 SEVERINO, Antonio Joaquim. Ética e pesquisa: autonomia e heteronomia na prática científica. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 45, n. 158, p. 783, 2015, p. 783.

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aos efeitos da radiação. Governos, de modo paradoxal, em nome de uma paz de tabuleiro de xadrez, continuam estocando bombas atômicas. Portanto, mais acidentes desse calibre são possíveis hoje. Daí a necessidade de definir valores universais, uma vez que a raça humana não tem um histórico de comportamento inteligente. Ao esquecer lições do passado, repete erros e corre riscos desnecessários. Outro desafio é saber como instaurar uma ética de cuidados com o planeta a partir do quadro de valores cosmológicos. No início deste século, a UNESCO publicou um artigo com o título “Pode a humanidade ser salva?”,24 onde cobrava dos países ações concretas sobre o planeta. O artigo sugeria uma série de medidas para se ter crescimento social com desenvolvimento sustentável. Dentre elas uma ética do futuro, alimentada por uma visão de futuro como condição imprescindível para a sobrevivência do planeta. Uma visão ética do futuro, que se inicie de imediato por meio da educação da responsabilidade, ao modo de um imperativo categórico, na qual cada pessoa se questione: como posso desacelerar a degradação da nossa casa comum, se penso que é dos outros, e não meu, o dever de agir para a salvação do planeta? Conclusão Diferentemente dos antigos, a humanidade caminha para uma visão de mundo que implica em mudar as formas de relacionamento com o universo, iniciando pelos cuidados com o planeta, nossa nave comum em viagem para o futuro. A cosmologia clássica concentrou-se no estudo da organização do caos no universo, perguntando sobre o arché. Abordagem que se apoiou na reflexão filosófica e nas doutrinas religiosas. A cosmologia física, sem se afastar dos questiona24 FOLHA de S. Paulo, 17/02/2008.

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mentos metafísicos, concentra-se no estudo da dinâmica do cosmos, em suas dimensões cruzadas de tempo e espaço, sua origem e fim. Devemos pensar uma terceira abordagem que integre as anteriores, uma cosmologia ecológica e humanizada que se debruça sobre questões urgentes do meio ambiente, inspirando valores éticos para as condutas humanas na preservação da “nossa casa comum”. Do mesmo modo que olhamos o universo e vemos o seu passado que nos chega agora, temos de olhar o futuro para perceber melhor o presente e compreender como agir sobre ele para garantir o futuro. Uma visão cosmológica, com uma ética do futuro, é condição indispensável para assegurar a nossa sobrevivência no planeta. Referências AGOSTINHO (Santo). Confissões. Livro XI. São Paulo: Nova Cultural, 1999. BOLLNOW, Otto Friedrich. O homem e o espaço. Curitiba: UFPR, 2008. EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. FRANCISCO. Papa. Carta encíclica ‘Laudato Si’- sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015. HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. São Paulo: Mandarim, 2001. _____. Uma breve história do tempo: do Big Bang aos buracos negros. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense, 1979. KUHN, Thomas. La revolución copernicana. Barcelona: Seixy Barral, 1978.

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LENA, Pierre. A nova visão do mundo: algumas reflexões para a educação. In: MORIN, Edgar. O desafio do século XXI – religar os conhecimentos. Lisboa: Gráfica Barbosa, 1999. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. PACHECO, J. A. de F. Cosmologia: o lado escuro do universo. In: SIMON, S. (Org.). Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia no século XX. Brasília: UnB, 2011. REALE, Giovanni; ANTISIERI, Dario. História da Filosofia: do humanismo a Kant. Vol. 2. São Paulo: Paulinas, 1990. SAGAN, Carl. A certeza me aborrece (entrevista 28/04/1982). In: VV. A história é amarela: antologia de entrevistas da Revista Veja. São Paulo: Editora Abril, 2017. SEVERINO, A. J. Ética e pesquisa: autonomia e heteronomia na prática científica. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, v. 45, n. 158, out./dez. 2015. SILK, Joseph. O Big Bang: a origem do universo. Brasília: UnB, 1984. SIMON, Samuel (Org.). Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia no século XX. Brasília: UnB, 2011.

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PARTE III Paradigmas éticos 6 Ética da felicidade e seus conceitos fundamentais Lino Rampazzo1 Introdução Todos as pessoas buscam a felicidade. Esse é o motor universal que coloca em movimento todas as ações humanas. A título de exemplo, é curioso pesquisar na internet a palavra “felicidade”, que tão logo aparece uma enormidade de sites a respeito. E quantos livros falam de “felicidade”, até com promessas de alcançá-la? Alguns títulos se tornaram best-sellers, como A Arte da Felicidade, escrito por Dalai Lama. Desde a sua publicação no Brasil em 2000, a obra continua frequentando os primeiros lugares das listas dos mais vendidos. Outro fenômeno é o livro Os 100 Segredos das Pessoas Felizes, escrito pelo psicólogo americano David Niven. Em apenas seis meses no mercado brasileiro, o livro já tinha vendido mais de 100 mil exemplares. Um dos pioneiros na arte dos ensinamentos sobre a felicidade, o livro O Sucesso é Ser Feliz, escrito pelo psiquiatra brasileiro Roberto Shinyashiki e lançado em 1997, ficou mais de três anos na lista dos mais vendidos.2 1 Doutor em Teologia pela Pontificia Università Lateranense (Roma). Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Professor e Pesquisador no Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL. Coordenador do Curso de Teologia da Faculdade Canção Nova. 2 OS MANUAIS e suas receitas. Disponível em: http://galileu.globo.com/edic/128/ rdossie5.htm. Acesso em: 10 jun. 2020.

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Hoje, o mundo moderno sente-se profundamente envolvido pelos reclamos da felicidade. A propaganda e o consumismo se apresentam como o caminho da felicidade. Diante de tudo isso, nos perguntamos: o que é a felicidade? Como consegui-la? E, para ser fiel ao tema deste capítulo, pergunta-se: existe uma relação entre ética e felicidade? Vamos considerar, a seguir, o significado do termo ‘Ética’ e suas problemáticas na atualidade e os conceitos de Ética e felicidade nas raízes da Cultura Ocidental, ressaltando, por um lado, o pensamento dos filósofos gregos, particularmente da época clássica; e, por outro, esta mesma temática na perspectiva da Bíblia. Trata-se, evidentemente, de apenas algumas reflexões, sem a indevida pretensão de analisar de maneira completa uma problemática tão complexa. 1. Ética: significado do termo e suas problemáticas na atualidade A ética é um dos problemas da filosofia. Pode ser definida como a ciência que estuda os atos humanos com relação a seu fim último, que é a realização plena da humanidade, ou, como se costuma dizer, o que dá sentido à vida humana. A ética deve, pois, ser considerada uma ciência prática: de fato, não procura apenas o simples “conhecer”, mas quer chegar, por meio de alguma ação, ao bem do homem. Ao contrário das outras “ciências práticas” que procuram este ou aquele “bem particular” do homem (por exemplo, a medicina procura a saúde do corpo, a economia o lucro etc.), a ética tem por objeto próprio a perfeição do próprio homem que age. Por este motivo, as “outras ciências práticas” não são filosofia. De fato, somente a ética visa regular a ação do homem em relação à causa mais elevada da ordem prática, que é o “fim último”, ou o “bem absoluto” do homem.

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A palavra ‘ética’ provém do adjetivo grego ‘ethike’, que, por sua vez, deriva do substantivo ‘ethos’.3 Este termo ethos é o resultado da transliteração de dois vocábulos gregos: ethos com a vogal êta, trazendo o significado de morada, costume, entendido como espaço construído pelo homem; e com a vogal ‘épsilon’, portando o significado de comportamentos resultantes da reiteração de determinados atos. Como resultante dessa síntese de significados, o ethos passa a exprimir a disposição habitual para agir de certa maneira, no espaço da convivência social, para a mais plena realização humana possível, envolvendo três momentos básicos, a saber, costume, ação e hábito.4 Os romanos o traduziram para o termo latino mores, significando o mesmo que ethos, donde provém o termo moralis, do qual se deriva o termo moral em português. Na prática, porém, distingue-se a moral da ética. A moral diz respeito ao comportamento da pessoa que respeita, ou não, seus semelhantes, tornando, assim, seu comportamento bom ou mau, dentro de um determinado contexto histórico. A Ética, por sua vez, é a reflexão sistemática sobre a moral. De fato, a ciência é, por definição, um “conhecimento sistemático”. A ética, nesse sentido, estuda sistematicamente o fim último do homem; os atos humanos através dos quais o homem se dirige para o seu fim último, ou dele se afasta. Estuda, em seguida, a regra suprema destes atos, a saber, a lei natural; e a regra próxima ou consciência. Além disso, estuda os princípios intrínsecos de onde procedem estes atos, isto é, as virtudes morais e os vícios. E aplica tudo isso às várias áreas: à bioética, à ecologia, à cultura, à sexualidade, à economia, à política, à comunicação etc. 5 3 GONTIJO, Eduardo Dias. Os termos ‘Ética’ e ‘Moral’. Mental, Barbacena, v. 4, n. 7, nov. 2006. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272006000200008. Acesso em: 10 jun. 2020. 4 LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Escritos de Filosofia II – Ética e Cultura. Coleção Filosofia. 8 Vol. São Paulo: Loyola, 1988, p. 13. 5 MARITAIN, Jacques. A filosofia moral. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1973, p. 167-169.

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Mas a ética é também uma reflexão crítica dos comportamentos morais. Talvez alguns exemplos possam ajudar a entender melhor a diferença entre moral e ética. No período da colonização, no Brasil, a sociedade aceitava moralmente a escravidão dos africanos e dos afrodescendentes. Em outros termos, o fato de ter escravos não era considerado pela sociedade da época colonial como algo imoral. Mas este comportamento foi questionado exatamente pela ética. Será que pode ser considerado como comportamento bom o fato de ter escravos, de comprá-los e vendê-los como se fossem uma mercadoria? Esta pergunta ética questionou o que uma determinada sociedade aceitava como moral, ou, pelo menos, como não-imoral. Hoje, em várias culturas africanas é aceita como algo normal a mutilação genital feminina, praticada em adolescentes. É necessário um questionamento ético para acabar com esta prática. Mas a ética não questiona apenas o passado, ou as outras culturas. A ética, hoje, questiona (a título de exemplo) a destruição do meio ambiente, o consumismo, o tráfico de armas e de drogas, o sistema capitalista, o sistema coletivista etc. Se no passado os assuntos relacionados à ética eram como que reservados para os estudiosos de filosofia e de teologia moral, hoje fazem parte dos interesses dos cidadãos comuns. Fala-se até de uma ‘onda ética’,6 invadindo os meios de comunicação social que tratam de ecologia, de defesa dos direitos humanos, particularmente aplicados ao idosos, aos consumidores, aos afrodescendentes, aos negros, aos homossexuais, aos indígenas; fala-se com frequência de ética na política, questionam-se, em nome da ética, as fake news etc. Como se explica esta inclusão dos cidadãos comuns no discurso ético? Estamos numa fase nova da história humana, caracterizada 6 JUNGES, José Roque. Ética sexual e novos padrões culturais. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, n. 27, 1995, p. 65-66.

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por mudanças rápidas e profundas.7 Ressaltam-se, entre elas, as mudanças provocadas pelo processo de industrialização, de urbanização e dos avanços tecnocientíficos. A humanidade trocou o arado pela máquina, a vida no campo pela urbanização, com o consequente abandono de hábitos e tradições do mundo agrícola. A grande família caracterizada pela convivência entre várias gerações, entre avós, cunhados, primos, com alto índice de natalidade, agora se manifesta seja na família ‘nuclear’, com poucos filhos, seja com outras modalidades de família. Quanto aos avanços da tecnologia, pense-se, por exemplo, como o nascer e o viver caem sob o controle da ciência. Até a metade do século passado as crianças nasciam nas casas, com a ajuda das parteiras, e hoje nascem nos hospitais. As doenças hoje são acompanhadas pelos avanços da medicina com suas múltiplas aplicações. E, mais recentemente, a revolução provocada pela informática leva os computadores a substituir não simplesmente a força física, como acontece com as máquinas da revolução industrial, mas até a força mental. Em uma palavra, a velocidade das informações e a criatividade são, hoje, o segredo do sucesso do mundo tecnocientífico. E criou-se, aos poucos, uma sociedade dominada por aquele sistema de informação global que Octavio Ianni chamou de “príncipe eletrônico”:8 é o mundo virtual das tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, espalhadas pelo mundo inteiro que reúne indivíduos isolados, anônimos, mas bem informados.9 É suficiente pensar nas manifestações de protesto daquela que foi chamada de “primavera árabe”, onde a mídia eletrônica foi o grande instrumento da organiza7 CONSTITUIÇÃO Gaudium et spes. n. 4. In: COMPÊNDIO DO VATICANO II: constituições, decretos, declarações. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1968. 8 IANNI, Octavio. O príncipe eletrônico. In: DOWBOR, L.; RESENDE, P.; SILVA, H. (org.). Desafios da comunicação. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 62-76. 9 PUNTEL, Joana Terezinha. Comunicação: novas tecnologias e impacto socioeconômico. In: TRASFERETTI, J.; ZACHARIAS, R. (org.). Ser e comunicar: desafios morais na América Latina. Aparecida: Santuário; São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2008, p. 11-30.

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ção dos protestos. Ou, em anos mais recentes, o “poder” da mídia eletrônica nas eleições dos Estados Unidos e do Brasil. Pergunta-se, a esse respeito: tais mudanças acontecem apenas exteriormente, ou chegam a mudar interiormente a mentalidade das pessoas? E, voltando ao tema da “felicidade”, pode-se afirmar que o homem da sociedade industrializada, urbanizada, ‘informática’10 é mais feliz do que o homem das épocas passadas? Existem, por acaso, através das novas descobertas, o risco de criar novas formas de escravidão, de desrespeito dos direitos humanos, enfim, de “infelicidade”? Percebe-se, então, que as ‘mudanças rápidas e profundas’, anteriormente citadas, chegam também na maneira de questionar a ética e a felicidade. A esse respeito, o filósofo Olinto Pegoraro afirmou que as mudanças estruturais ocorridas na sociedade, a partir da Revolução Industrial, provocaram, no campo da ética, a passagem da microética para a macroética. A primeira se concentrava na ação individual e a segunda no sujeito-social. Por exemplo, quem é responsável do resultado de uma eleição, ou do alto índice do desemprego, ou do grave problema ecológico?11 Uma expressão da macroética pode ser encontrada no Art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil, onde se lê o seguinte: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.12 A Constituição, pois, apela para a responsabilidade ética, no caso do meio ambiente, também com as “futuras gerações” por parte de toda a coletividade. 10 SCHAFF, Adam. A sociedade informática. Trad. Carlos Eduardo Jordão Machado e Luiz Arturo Obojes. 4. ed. São Paulo: Unesp; Brasiliense, 1997. 11 PEGORARO, Olinto A. Ética e Ciência: fundamentos filosóficos da Bioética. In: PALÁCIOS, M.; MARTINS, A.; PEGORARO O. A. (org.). Ética, Ciência e Saúde. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 46-61. 12 Grifo nosso.

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2. Ética e felicidade nas raízes da Cultura Ocidental O título deste capítulo pode apontar para as raízes da cultura na qual vivemos: a cultura ocidental. E esta cultura, historicamente, deu-se, por sua vez, também pelo encontro entre o pensamento filosófico dos gregos e a tradição judaico-cristã. Eis porque a brevidade deste texto, que precisa delimitar a reflexão sobre ética e felicidade, restringe-se a apresentar, de maneira sintética, esta temática na visão, por um lado, dos filósofos da Antiga Grécia e, por outro, na perspectiva da Bíblia. O capítulo está inserido no bloco mais amplo dos “Paradigmas Éticos”, onde serão apresentadas perspectivas éticas desenvolvidas sucessivamente na história. 2.1. Ética e felicidade nos filósofos clássicos da Antiga Grécia O tema da felicidade e sua relação com a ética aparece já com Sócrates (469-399 a. C.) e seu discípulo Platão (428-347 a. C.) e continua na reflexão da filosofia grega. 2.1.1. Sócrates O pensamento de Sócrates é uma crítica à perspectiva dos Sofistas, que viveram em Atenas na segunda metade do século V a.C. Etimologicamente, o termo “sofista” significa “sábio”. Entretanto, com o decorrer do tempo, ganhou o sentido de “impostor”, devido sobretudo às críticas de Sócrates e de Platão. Os Sofistas eram professores ambulantes: percorriam as grandes cidades, ensinando as ciências e as artes, particularmente, a eloquência, em troca de uma elevada retribuição pecuniária. Diante das convicções do homem, fundadas na tradição e na fé, os Sofistas procuraram chegar a conclusões racionalmente aceitáveis, duvidando das crenças e dos costumes morais de seus concidadãos. Eles contestavam a existência de verdades

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e normas universalmente válidas. Os Sofistas afirmavam que o “bem” é algo de relativo, corresponde à visão que cada um tem de “bem”, trata-se apenas de uma ‘opinião’. Sócrates, pelo contrário, afirmava a necessidade de não se limitar a uma simples ‘opinião’, mas de chegar ao “conceito do bem”, que é universal. A partir disso, ele descobria também os conceitos de justiça, beleza, verdade etc. Ele afirmava que o bem é ciência, chegando a identificar a moralidade com o conhecimento. Para ele é um absurdo conhecer o bem e fazer o mal. Por isso, o mal seria fruto da ignorância. Com Sócrates aparece (então) uma visão de “intelectualismo ético”, que será característico do pensamento antigo: identificar o bem com o conhecimento. E os homens virtuosos seriam apenas os sábios, aqueles que conhecem. Depois de ter afirmado que o bem é ciência, Sócrates examina a relação entre bem e felicidade. Sempre polemizando com os Sofistas, para os quais o homem precisa procurar apenas o que é ‘útil’, Sócrates sustenta que, frequentemente, para chegar ao “bem”, o homem virtuoso precisa renunciar àquilo que individualmente pode ser útil. Mas, agindo assim, ele experimenta uma íntima satisfação que representa para ele uma elevada felicidade. A felicidade, assim, se encontra na honestidade, na prática da virtude. A essa altura, pergunta-se: qual é, para Sócrates, o caminho para chegar ao bem e à felicidade? Pode-se responder com uma simples palavra: a interiorização. Este termo remonta à frase escrita na entrada do antigo templo de Delfos, localizado no Centro da Grécia Antiga: “Conhece-te a ti mesmo”. Através do diálogo, Sócrates, antes de tudo, desmonta opiniões erradas, comumente aceitas. Mas, depois, mostra que cada um possui no seu íntimo a verdade, ou pelo menos, a possibilidade de chegar a ela. E a missão do sábio consiste

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em ajudar os outros a descobrirem a verdade. Sócrates se inspira na profissão da mãe, que era parteira. Enquanto a mãe de Sócrates ajudava as mulheres a gerar os filhos, ele, por sua vez, ajudava aos discípulos a descobrir a verdade, que já está presente na alma de cada um. Os dois momentos deste método são definidos com os termos ‘ironia’ e ‘maiêutica’. A ‘ironia’ acontece quando o sábio desmonta as opiniões erradas; e a ‘maiêutica’, que significa ‘arte de ajudar a parir’, corresponde à segunda etapa do diálogo em que o discípulo, com a ajuda do mestre, chega a “gerar ideias”. Em suma, a reflexão de Sócrates sobre ética e felicidade pode ser assim resumida: ‘conhece-te a ti mesmo’ (interiorização) para encontrar a verdade, fazer o bem (ética) e ser feliz. 2.1.2. Platão Na mesma linha, mas com um aprofundamento significativo, temos o pensamento de Platão, que foi discípulo de Sócrates. Toda a sua filosofia tem uma orientação ética, que desvaloriza os prazeres, as riquezas e as honras. Trata-se de uma consequência da sua visão do mundo e do homem caracterizada pelo dualismo, a saber, pelo contraste entre o mundo espiritual e o mundo físico. O mundo espiritual, para ele, era o único perfeito, imutável e eterno, o reino das ideias. No vértice do sistema hierárquico das ideias, ele coloca a ideia de bem: mas, enquanto sumo bem, há identificação com a verdade e a beleza. Apesar disso, o poder do bem não é o único. No mundo sensível domina uma energia destruidora: ela é, na esfera do pensamento, o erro; no ontológico, o perecível; na moral, o mal; na educação, a sofística (que não acreditava na verdade); e na política, o abuso de uma tirania. O meio para chegar a participar do mundo das ideias é a educação, que leva ao conhecimento das ideias. E, para Platão, o conhecimento das ideias não vem de fora, é fruto, pelo 157


contrário, do esforço da alma para se assenhorear da verdade. O papel do educador reside em promover, no educando, este processo de interiorização, graças ao qual chega a sentir a presença das ideias. Segundo Platão, a alma humana, antes de entrar no corpo, pertencia ao mundo das ideias (hiperurânio). Mas, entrando no corpo, ela esqueceu as ideias. Porém, quando vê (por exemplo) atos valorosos, recorda a ideia de valentia; observando ações justas, compreende o que é justiça. Estamos presos, diz ele, numa caverna, com as costas para a entrada: daquilo que acontece fora, só vemos as sombras que o Sol projeta. O meio para nos elevar aos ideais da vida é o diálogo, que conduz ao descobrimento dos conceitos. Daí chama-se “reminiscência” este autoconhecimento. O despertar para o mundo das ideias é um processo gradual. Na educação deve-se levar em conta tanto o corpo quanto a alma. Os exercícios corporais, a cultura estética e moral, a formação científica e filosófica: tudo isso constitui a matéria de seu plano educativo. A ideia essencial da pedagogia em Platão é a formação do homem virtuoso dentro do Estado justo. O Estado é o meio da educação. Para Platão, o indivíduo é constituído de três almas: a concupiscível (= os instintos), a irascível (= a força, o valor) e a racional. A virtude que dirige a alma racional chama-se “sabedoria”; a que dirige a alma irascível é a “fortaleza”; a que dirige a alma concupiscível é a “temperança”; e a que controla as relações entre as três almas é a “justiça”. Estas são as quatro virtudes “cardeais”. A essas três partes do homem correspondem três classes sociais do Estado: à alma concupiscível a dos produtores ou trabalhadores; à irascível a dos guerreiros; à racional a dos filósofos, que governam. A justiça dá a regra correta à relação destas classes entre elas. 158


Às quatro virtudes cardeais opõem-se os quatro vícios capitais: sofisma, violência, intemperança e injustiça. Em coerência com toda essa visão, que desvaloriza o mundo físico e ressalta a importância do mundo espiritual, Platão sustenta que merece mais compaixão quem comete a injustiça do que quem a sofre; e é mais feliz o justo no meio dos sofrimentos do que o injusto no mar de delícias. Por isso ele ensina que, para conseguir a felicidade, é necessário renunciar aos prazeres e às riquezas e dedicar-se à prática da virtude. Percebe-se, de um lado, uma continuidade com o pensamento de Sócrates e, ao mesmo tempo, um aprofundamento. A continuidade se manifesta na valorização da interiorização através da educação; e o aprofundamento numa visão mais sistemática dos problemas filosóficos, na classificação de virtudes e vícios e na importância que ele dá à educação social.13 2.1.3. Aristóteles A reflexão sobre ética e felicidade continua no pensamento de Aristóteles (384-322 a. C.) que, por sua vez, foi discípulo de Platão. Ele trata da felicidade em seu livro Ética a Nicômaco. Este fato mostra que, para ele, existe uma estreita relação entre ética e felicidade. A ética é o estudo da vida do homem, do seu agir. Mas por que o homem age? Pode-se responder que o homem age para realizar a si mesmo: e a realização de si mesmo é o que chamamos de felicidade. Todas as ações humanas tendem a “fins”, que são “bens”. O conjunto das ações humanas e o conjunto dos fins particulares para os quais elas tendem subordinam-se a um “fim último”, que é o “bem supremo”, que todos os homens concordam em chamar de “felicidade”. Mas o que é a felicidade? Para muitos é o prazer. Mas uma vida gasta para o prazer é uma vida que nos torna “semelhantes 13 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Trad. Benôni Lemos. 1 Vol. São Paulo: Paulus, 2003, p. 73-75.

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aos escravos”, uma vida “digna dos animais”. Para outros, a felicidade é a honra, o sucesso. Mas esta honra depende de quem a confere. E, de qualquer maneira, vale mais aquilo pelo qual se merece a honra do que a própria honra. Para muitos, a felicidade está em juntar riquezas. Mas a riqueza é apenas um meio para outras coisas não podendo, portanto, valer como fim. O bem supremo, a felicidade, realizável pelo homem, consiste em aperfeiçoar-se enquanto homem, a saber, naquilo que torna o homem diferente dos outros seres: minerais, vegetais ou animais. O simples viver como tal não corresponde à felicidade, pois, também as plantas vivem. E a experiência sensível é vivenciada inclusive pelos animais: por isso ela não pode proporcionar a felicidade. O específico do homem é a razão. Consequentemente o seu bem ou a sua ‘felicidade’ (em grego eudaimonia) deve consistir na atuação da razão. E, para Aristóteles, a perfeita atuação da razão se encontra na contemplação.14 Mas o homem não é apenas uma pura razão, porque ele tem carne e sentidos. Por isso, para ser feliz, deve satisfazer todas as suas faculdades, também as dos sentidos. A verdadeira felicidade, então, para ele se encontra em uma mistura entre o prazer sensível e o prazer da razão. Mas qual é o meio para se conseguir a felicidade? Para Aristóteles este meio é o exercício da virtude. Aqui, pois, encontramos a ligação entre ética e felicidade. No fundo, o filósofo estagirita relaciona o bem, conceito ético, com a felicidade. A visão que ele tem do bem leva-o a identificar as seguintes características presentes no bem – a saber, ele é completo, o melhor bem é aquele que é valioso em si mesmo e o melhor bem é autossuficiente, e a felicidade possui todas essas características, razão pela qual ela pode ser considerada “o maior bem”.15 14 REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990, p. 203-204. 15 MARQUES, Ramiro. O livro das virtudes de sempre. São Paulo: Landy, 2001, p. 16.

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E, para ele, a virtude corresponde ao “justo meio”, ao equilíbrio. Em outras palavras, a virtude é o hábito de praticar ações que estejam no meio entre dois excessos. Não é, então, virtuoso o avarento, nem o esbanjador, mas o homem generoso; não é virtuoso o homem temerário, ou, ao contrário, o medroso, mas o homem corajoso. Nesse sentido, ele escreveu: “a virtude é uma disposição para escolher; ela consiste na escolha do justo meio relativo à nossa natureza, efetuada segundo um princípio racional e fixado pelo homem prudente”.16 Em seguida, Aristóteles divide a virtude em dois grupos principais: virtudes do intelecto ou dianoéticas e virtudes morais. As primeiras concorrem para o desenvolvimento das faculdades intelectivas e são cinco: a ciência intuitiva, a ciência intelectiva, a sabedoria, a arte e a ciência prática. As virtudes morais são as que presidem ao controle das paixões e à escolha dos meios aptos para a consecução do fim. Entre as virtudes éticas ele destaca as seguintes: a coragem, a temperança, a liberalidade e a justiça, esta última como elemento fundamental da vida social.17 Entre as virtudes examinadas por Aristóteles, ocupa lugar de relevo a amizade. Segundo ele, a amizade é tão importante que sem ela não pode haver felicidade. Esta última se encontra primariamente no exercício das virtudes especulativas e secundariamente no exercício das virtudes morais. Quem se contenta com o exercício das virtudes morais é feliz (eudáimon), quem se dedica especialmente ao exercício das virtudes especulativas é felicíssimo (eudaimonéstatos). De modo geral, Aristóteles considera o exercício das virtudes morais como um meio que facilita o exercício das virtudes especulativas. A essência da felicidade consiste na contemplação.18 16 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross. São Paulo: Abril, 1984, 1106b, 37-38. 17 PERONE, Ugo e Annamaria; FERRETTI, Giovanni; CIANCIO, Claudio. Storia del pensiero filosofico. 1 Vol. Torino: SEI, 1975, p. 130-134. 18 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Trad. Benôni Lemos. 1 Vol. São Paulo:

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O caminho para a felicidade, indicado por Aristóteles, apresenta algumas dificuldades. Antes de tudo a realidade da morte torna impossível a perfeita felicidade nesta vida. Além disso, na visão dele, para que apenas alguns pudessem viver na contemplação, tornava-se eticamente aceitável o trabalho dos escravos que permitia aos “privilegiados” a experiência da contemplação.19 2.1.4. Período helenístico: Estoicismo e Epicurismo A “época helenística” é aquele período histórico que se estende desde a morte de Alexandre Magno (323 a.C.) até a conquista do Egito pelos Romanos (30 a.C.). Neste período, por um lado, o Império de Alexandre se divide em vários reinos; e, por outro, a civilização grega se estende neste grande império, dando origem à “época helenística”. A helenização do mundo trouxe consigo a perda da pureza helênica: perdeu-se a intensidade da época clássica de Sócrates, Platão e Aristóteles, mas esta expansão universal enriqueceu a própria cultura. Novas cidades eclipsaram Atenas por suas riquezas e se converteram em centro de atração de artistas e sábios: Alexandria (no Egito), Pérgamo (na Ásia Menor) e Antioquia (na Síria). Devido às transformações políticas e culturais da época, as ideias cosmopolitas deslocavam os sentimentos regionais dos pequenos estados gregos. A filosofia reflete este novo clima: deixa, de lado, a reflexão sobre metafísica e cosmologia, analisando mais o problema ético, com o objetivo prático de procurar o caminho que leva o indivíduo à felicidade. Destacam-se nessa linha as escolas estóica e epicureia. Paulus, 2003, p. 101-103. 19 PERONE, Ugo e Annamaria; FERRETTI, Giovanni; CIANCIO, Claudio. Storia del pensiero filosofico, p. 130-134.

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O estoicismo é o movimento filosófico mais original do período helenístico e também o que teve a duração mais longa. Fundado nos fins do século IV a.C., continuou a florescer até o século III d.C., em Roma. Os grandes expoentes do estoicismo foram Zenão (336-274 a.C.), Crisipo (281-208, a. C.), na Grécia; e, em Roma, Epiteto (50-138 d. C.), Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.) e até o imperador Marco Aurélio (121-180 d. C.). No campo ético, os estóicos defenderam a tese de que, diante da rigorosa e inelutável determinação racional do universo, nada mais resta senão aceitá-lo como tal; a verdadeira felicidade consiste em descobrir essa racionalidade. E os estoicos, observando que os sentimentos e as paixões se opõem ao exercício da razão, sustentam que, para ser virtuoso, é preciso ficar indiferente diante das paixões; ter “apatia” (apátheia) particularmente diante das alegrias e das dores. Trata-se, então, de um ideal rigorista. Para os estóicos, entre virtude e vício não há meio termo; ninguém é mais ou menos viciado ou virtuoso: é simplesmente virtuoso ou viciado. Por isso, o homem é ou completamente sábio ou completamente louco. Como se pode ver facilmente, a moral estóica alcança pontos altíssimos, apesar de seu rigorismo excessivo. O Epicurismo, fundado por Epicuro de Samo (341-260), é uma filosofia que, em muitos aspectos, contrapõe-se ao estoicismo. A felicidade, ou o bem supremo do homem, segundo Epicuro, consiste no prazer (hedoné). É sempre pelo prazer que escolhemos fazer ou evitar alguma coisa. O prazer no qual (para Epicuro) consiste a felicidade é a vida pacífica, a paz da alma, a ausência de qualquer preocupação: ataraxia. O prazer é entendido, portanto, como ausência de dor e não como satisfação das paixões. Para a plena consecução da paz da alma, da ataraxia, da felicidade, Epicuro recomenda o homem libertar-se de três

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preocupações: dos deuses, da morte e da atividade política. Para ele, os deuses não se preocupam com as coisas deste mundo; não há razão para se temer a morte porque quando ela vem não existimos mais. Por fim, não vale a pena dedicar-se à atividade política, porque ela é cheia de preocupações. Este último posicionamento reflete uma sociedade em que não havia mais espaço para a democracia.20 2.2. Ética e felicidade na visão da Bíblia Na perspectiva da Bíblia, o homem busca a felicidade na satisfação de seus anseios mais imediatos: os alimentos de que necessita para subsistir, a casa que precisa para morar, a família e a comunidade em que é estimado, a paz que defende contra os inimigos. O Antigo Testamento vê com otimismo os bens terrenos como fonte de felicidade; e só tardiamente começa a vislumbrar a insatisfação que eles podem deixar na alma. A abundância de filhos, a multiplicação dos rebanhos, a esposa amada e virtuosa, os bens de fortuna adquirida devidamente, a paz que permite desfrutar esses bens e a companhia dos amigos são bens elogiados pela Bíblia como que enchendo o homem de felicidade. Mas esse conjunto de bens não é entendido em um plano simplesmente hedonista, de puro prazer. Por meio deles se pressupõe a abertura para os bens espirituais da justiça e da bondade. Por isso, considera-se como essencial para a felicidade que haja a sabedoria, a prudência, a compaixão para com os pobres e o respeito à lei. E mais ainda: supõe-se que esses bens da virtude sejam causa de bênçãos terrenas, pois Deus sempre recompensa os justos. Mas a origem de todos os bens que alegram o coração humano é sempre Deus. Por meio das provas que teve de su20 PERONE, Ugo e Annamaria; FERRETTI, Giovanni; CIANCIO, Claudio. Storia del pensiero filosofico, p. 130-134.

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perar ao longo de sua história, o povo de Israel foi depurando os seus anseios humanos e aproximando-se da fonte original de todo bem. A felicidade passa a centrar-se no “temor a Javé”, que equivale à atitude religiosa do homem. A sabedoria que vem de Deus é a fonte última de toda felicidade. Nem todas as realizações humanas são capazes de satisfazer os anseios do coração humano. Só Deus aplaca a sede e a fome de felicidade, como se lê no livro dos Provérbios, que exalta a Sabedoria de Deus: “bem-aventurado o homem que me escuta velando todo dia às minhas portas e guardando o limiar da minha casa. Pois quem me encontra, encontra a vida e obtém o favor de Javé” (8,34-35). Mas precisou esperar o Novo Testamento para ver uma mudança na consideração da felicidade humana. O que Jesus propõe como situação de felicidade constitui quase que literalmente a negação das aspirações humanas anteriores: “Felizes os pobres...os que choram...os não violentos...os que têm fome e sede de justiça...os misericordiosos...os de coração puro...os que promovem a paz...os que são perseguidos” (Mt 5,3-10). A realização da felicidade completa acontecerá no futuro (“Deus os consolará... Deus os saciará”). Mesmo assim, a felicidade já começa no presente (“porque deles é o Reino dos Céus”), embora esse presente se abra para o futuro que acontecerá depois da história humana. O Cristianismo veio, de certa forma, aprofundar a insatisfação do coração humano ao estimular as aspirações pelo infinito que superam o imediato e terreno. Não se trata de uma atitude depreciativa em relação à vida e seus valores, mas de uma ampliação de horizonte, relativizando de certa forma o imediato. Tudo começa a ter sentido na dependência do Bem absoluto, único capaz de satisfazer o coração. A ligação entre a felicidade e a ética se encontra no apelo ao desapego, na capacidade de enfrentar o sofrimento, nos

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compromissos para a não violência, para a justiça, a misericórdia, a construção da paz, sem a maldade do coração, conforme a mensagem das bem-aventuranças. 21 Conclusão As filosofias discutiram longamente sobre se a felicidade era algo que dependia do homem e se somente ele era capaz de alcançá-la ou se, pelo contrário, era um dom superior, que devia ser acolhido passivamente; se a felicidade estava ao alcance de todos ou era privilégio de alguns poucos. E, depois de tão longas discussões, sempre resta algo de misterioso e inatingível na felicidade, algo que se relaciona com o próprio mistério do homem. Esta reflexão se limitou a considerar a relação entre ética e felicidade nas raízes da cultura ocidental e, mais especificamente, nos filósofos clássicos da Antiga Grécia, do Helenismo e na perspectiva bíblica. Apesar da especificidade de cada concepção, percebe-se, em todas elas, uma espécie de ligação causa-efeito entre ética e felicidade. Esta não se consegue sem aquela. Até mesmo o epicurismo que, às vezes, é indevidamente identificado com um vulgar hedonismo, na sua visão mais correta exigia um equilíbrio na procura do prazer. Hoje, o mundo moderno sente-se poderosamente envolvido pelos reclamos de felicidade. Porém, também nunca existiram tantas falsas imagens de felicidade como as de hoje. A propaganda e o consumismo vestem a felicidade com imagens de conforto, com a satisfação de necessidades artificialmente criadas. E, por isso, as frustrações são cada vez mais graves. Nos últimos anos, aumentaram as frustrações diante da realidade dos meios de comunicação virtual. As redes sociais conseguiram acelerar, de modo expressivo, o que anteriormente costumava 21 IDÍGORAS, J. L. Felicidade. In: Vocabulário Teológico para a América Latina. Trad. Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1983.

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demorar dias, meses e até anos. A comunicação passou a ocorrer em uma velocidade inimaginável. Contudo, o fascínio inicial acabou logo, dando lugar à ansiedade por respostas instantâneas e, também, à irritabilidade e à frustração quando algo não acontece quando esperado. A sociedade imediatista tem agregado pessoas cada vez mais ansiosas, infelizes e consumistas de tecnologias virtuais. O mundo virtual virou real e há quem imagine se tratar de realidade o que é ficção. O mundo atual tem exigido a massificação dos desejos e vontades, ditando a moda e criando necessidades antes inexistentes, mas que passam a exercer forte pressão entre as pessoas que temem ir na contramão da maioria.22 Mas o desenvolvimento da consciência crítica faz desaparecer certas ilusões ingênuas que encobrem formas superficiais de felicidade, permitindo assim que se encontre o sentido da vida. As reflexões deste capítulo, sem nenhuma pretensão de uma completa análise do tema relativo à ética da felicidade, tiveram como objetivo estimular o desenvolvimento da consciência crítica apontando para caminhos mais coerentes com a realidade humana mais profunda, tendo como base alguns significativos dados históricos, escolhidos particularmente nas raízes da cultura ocidental. Os sucessivos capítulos irão apresentar outros paradigmas éticos desenvolvidos nas seguintes épocas históricas.

22 CANHOS, Maria Regina. Ano-Novo, vida nova...Como? O Mensageiro de Santo Antônio, Santo André, a. 61, n. 631, p. 14-15, jan./fev. 2020, p. 14-15.

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7 Perspectiva metafísico-cristã: reflexão moral Antonio Wardison C. Silva1 Introdução Originariamente, o Cristianismo é um ramo da tradição judaica, movimento que se instaura aos poucos na cultura da Palestina no tempo de Jesus. Todavia, em sua rápida expansão pelo Mediterrâneo, distancia-se não somente da geografia palestinense, mas também dos seus costumes religiosos, culturais e políticos, o que possibilitará ao Cristianismo a construção da sua própria identidade, que tão logo irá conquistar o Ocidente. Os primeiros escritos sobre seu ethos virão do livro canônico Atos dos Apóstolos, atribuído ao mesmo autor do terceiro Evangelho: Lucas. Esse registro – bem como em algumas epístolas de Paulo, como Romanos – demonstra o desenvolvimento da religião nascente, em suas primeiras comunidades. Surpreende, nesse período, a capacidade de inculturação do Cristianismo no mundo helênico, como a adoção da koiné, língua grega comum de então, que será usada para a transmissão de todos os textos do Novo Testamento, assim como da primeira literatura cristã.2 Em seus diversos âmbitos, os escritos cristãos nascem e se difundem no mundo palestino. No campo da ética, qual vem a ser o objeto de estudo deste capítulo, eles brotam da tradição veterotestamentária, o que não poderia ser diferente. O Antigo Testamento oferece ao povo judeu do tempo de Jesus um profundo e original saber ético, praticamente imutável quanto 1 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP; Pró-reitor de Extensão, Ação Comunitária e Pastoral do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL. 2 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999, p. 166-168.

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ao culto, no Templo, e à observância da Lei (Torah), identidade esta oriunda de uma milenar tradição, de fé monoteísta. E é nesse contexto que brota e se afirma o ethos do Novo Testamento. Jesus, o messias anunciado pelos profetas, é a grande expressão dessa nova realidade. A partir dos seus ensinamentos, narrados nos Evangelhos e nos textos apostólicos, estrutura-se um povo em torno de uma fé (centrada na Páscoa de Cristo Jesus), com a missão de anunciar o Reino de Deus. Nasce daí o legado moral cristão: o acolhimento do Reino implica no testemunho e vivência de suas normas fundamentais. O “Sermão da Montanha”, de Mateus (5-7), significa (ou resume) este legado, tanto que seu conteúdo – independentemente das reais circunstâncias sociopolíticas daquela época – provocou grande impacto nos ouvintes. De fato, o texto apresenta uma “tábua” de valores, de sentido (novo) às normas e preceitos judaicos, do legalismo tradicional. O Cristianismo, assim, inaugura um novo e revolucionário ethos, de saber ético correspondente, o qual fundamentará, nos séculos seguintes – em roupagem aproximada ao helenismo –, a Ética cristã.3 Em uma superficial comparação, é possível afirmar que há algo em comum entre os ideais éticos do helenismo e aqueles do cristianismo: a natureza humana como objeto de reflexão e compreensão do agir humano. A diferença entre eles também é facilmente evidenciada: a ética grega tem como alvo a plena realização do humano, a ser alcançada pelo próprio homem, na razão; a perspectiva cristã entende que somente em Deus o homem pode alcançar sua realização e, por isso, Ele é fonte dos princípios de seu agir, regiamente observados na fé. Ora, como o homem vem de Deus – e tal é a perspectiva cristã –, a Ele deve submeter seu comportamento, como toda a sua vida. Deus, nesse sentido, torna-se o fim último do homem; somente Nele o homem poderá encontrar felicidade.4 Decorre daí que 3 Ibid., p. 169-171. 4 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Trad. João Dell’Anna. Rio de Janeiro, 2003, p.

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a ordem sobrenatural (divina) assume total primazia sobre a ordem natural (humana). Jesus instaura essa relação necessária entre o homem e Deus com o novo ethos a ser observado (Mt 6,26-34), em uma experiência de radical liberdade (1Cor 9,1923) e amor a Deus e ao próximo (Mc 12,28-34). Jesus, portanto – em seu modo exemplar de união com Deus e observância aos seus ensinamentos – é a fonte da Ética Cristã.5 A partir do século I, o ideal ético cristão desenvolve-se fundado na observância ao querigma, testemunhado pelos cristãos, particularmente por apologetas (em confronto com tendências heréticas) e mártires (com a doação da própria vida). Porém, somente no século III, com Clemente de Alexandria (150-215) e Orígenes (185-254), que a Ética Cristã passa a ser delineada, teoricamente. Aos poucos, a perspectiva ética cristã vai ganhando corpos em sua cautelosa fusão (conceitual) com o pensamento grego e atingirá sua magnitude com Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Nesse horizonte, o presente capítulo pretende explicitar e refletir sobre a ética cristã em sua peculiar perspectiva metafísica. Para tal, recorrerá a esses dois célebres pensadores do mundo ocidental.6 1. A ética em Santo Agostinho Santo Agostinho, mestre reconhecido pelo seu extraordinário pensamento, de produção intelectual invejável, destaca-se como o maior pensador da Antiguidade tardia e, sem dúvida, como um dos maiores da Igreja e do Ocidente. Agostinho nasceu em 276. Diferentemente dos gregos, que atribuíam a felicidade ao conhecimento – como o alcance da Ideia de Bem, em Platão – para o cristianismo, ela consiste na experiência de amar, da relação amorosa do homem com àquele que o criou, Deus, revelado em Jesus Cristo. O conteúdo da moral, nessa perspectiva, terá sua fonte em Cristo, em seus atos e palavras; a observância desse conteúdo será o único caminho para a verdadeira felicidade, que está aberta a todos, e não restrito intelectualmente aos poucos, como na filosofia grega. CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética. Trad. Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2013, p. 64. 5 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 171-172. 6 Ibid., p. 173-174.

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Tagaste (África) em 354. Em busca de conhecimento e desenvolvimento profissional, transfere-se para Milão, em 384, após percorrer Cartago e Roma. Ao assistir frequentemente os sermões de Santo Ambrósio, em Milão, e ao aproximar-se do círculo neoplatônico-cristão rompe com o maniqueísmo e descobre o mundo inteligível tão buscado. A partir daí, converte-se ao catolicismo. Ao retornar a Tagaste, funda uma comunidade religiosa e passa a viver como monge. Em 391, em Hipona, é ordenado sacerdote; em 395, bispo. Nas últimas décadas de sua vida, dedica-se ao trabalho pastoral, período de grande efervescência dos seus tratados teológicos. Falece em 430 em Hipona.7 Com Agostinho, emerge pela primeira vez na literatura ocidental o Eu como categoria basilar da antropologia. O apelo à experiência interior e à interioridade irão direcionar suas reflexões e escritos, fundamentalmente, uma experiência intelectual e moral, bem como religiosamente cristã. Atesta essa originária perspectiva filosófico-teológica sua obra As Confissões, onde apresenta um categórico itinerário de conversão.8 1.1. O princípio da Ordem As grandes linhas da ética de Agostinho – que não poderão ser encontradas sistematicamente em uma obra, em particular9 – podem ser compreendidas a partir da categoria fundamental ordem,10 princípio norteador que o guiará em sua 7 Ibid., p. 177-179. 8 Ibid., p. 182. 9 CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética, p. 63. 10 Para os gregos, o mundo inicialmente era um caos, que depois transformou-se em cosmos (ordem). Os pré-socráticos passaram a descobrir a arché (princípio) do universo; e muitos aventuraram-se por este caminho. De fato, embora com ideias divergentes, procuravam descobrir o logos, razão universal responsável pela origem e a ordem das coisas. Desta concepção, surgiu a ideia que a perfeição moral consiste na identificação da vontade com a reta ordem da natureza. Assim, para a filosofia clássica, a ideia de ordem alcançava duas perspectivas: uma ontológica e a outra, ética. Toda essa discussão é absorvida por Santo Agostinho e desenvolvida na perspectiva

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reflexão sobre a natureza da ética, bem como sobre as suas demais questões filosóficas. Em De Civitate Dei, Agostinho define ordem em uma perspectiva ontológica: “a paz de todas as coisas, [é] a tranquilidade da ordem. A ordem é a disposição que às coisas diferentes e às iguais determina o lugar que lhes corresponde”.11 De outra forma, a paz está referida à presença da ordem; dela, procede necessariamente a paz; a ordem é a disposição que garante a cada coisa o seu lugar próprio. E continua Agostinho: “portanto, como os miseráveis, enquanto tais, não estão em paz, não gozam da tranquilidade da ordem, isenta de turbações...”12 O reconhecimento desta ordem objetiva é condição do retorno, seja do entendimento, seja da vontade. A vontade, ao reconhecê-la, evita perturbá-la, “respeitando-a em suas ações, mediante uma reta apreciação dos valores e por uma conduta consentânea com eles”.13 Ora, o fim da moralidade será a manutenção da reta ordem; pois, ela se identifica com a bondade objetiva. O mal, nesse horizonte, será a transgressão desta ordem. A identificação da moral com a reta ordem provém do helenismo, que concebe a natureza, a vida e todo o cosmo perfeitamente ordenados. Tudo é regido pela lei natural das coisas, bem como pelo número e pela proporção. Resulta daí uma ordem admirável, agradável à vontade e ao entendimento. Esta ordem é o resultado da vontade divina, que é a lei interna, regendo tudo harmoniosamente com as normas eternas da divina sabedoria; as normas da razão e da vontade estão referidas à mesma fonte e ambas têm a mesma validade, evidência e cristã da revelação, de um Deus criador e ordenador de todas as coisas. ALMEIDA, Frederico Soares de. O amor como elemento fundamental na ética de Santo Agostinho. Pensar – Revista Eletrônica da FAJE, v. 5, n. 1, 2014, p. 59-60. 11 AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus. Trad. Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: São Francisco, 2003, XIX, 13, 1. 12 Ibid., XIX, 13, 1. 13 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 187.

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necessidade. Deve o humano conformar sua conduta às leis da ética (das quais não se têm provas), o que exigirá dele vontade em cumpri-las. Para Agostinho, em nada adiantará a inteligibilidade caso o indivíduo endereça-se pelo caminho falso, dos vícios, contrário às leis éticas. Todavia, acredita que somente em Deus o homem poderá encontrar a fonte de sua conduta. Nesse sentido, o homem, ao buscar a ordem, a harmonia, poderá ousar contemplar Deus. “Por isso a tarefa moral do homem resume-se na execução fiel da ordem das normas eternas”, que provêm Deus.14 A ideia de ordem, procedente então da tradição grega, como também da tradição bíblico-cristã, apresenta duas faces, interligadas: por um lado, ela articula o múltiplo da experiência dos seres humanos e a da finitude dos seres que se apresentam à sua inquisição intelectual e o refere a um princípio transcendente, de onde a ordem procede; por outro lado, ela estabelece como norma ao agir humano “essa ordenação ontológica como fundamento de sua racionalidade ou de sua prerrogativa de agir ético”.15 A categoria da ordem será, então, fundamento para a estruturação da ética agostiniana. A ordem está intrinsecamente articulada com a ideia de fim. Ela, enquanto ordenação dos elementos no todo, é fim em si mesma; em seu dinamismo, orienta o ser submetido à sua norma para um fim, que transcende a ordenação dos seus elementos e onde ele poderá encontrar sua plena realização. As ideias de ordem e fim, em plena harmonia, permitirão que da ética se obtenha uma visão coerente e unitária.16 Convém considerar a perspectiva antropológica da ordem: da tradição grega, a antropologia agostiniana recebe a dimensão ontológica, que compreende o homem como corpo, alma 14 Ibid., p. 188. 15 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 186. 16 Ibid., p. 188.

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e espírito, dotado de liberdade e racionalidade; da antropologia paulina, a dimensão soteriológica (sobre a salvação), onde a vida apresenta-se envolta da dialética existencial do pecado e da graça; da narração bíblica da criação, a dimensão histórica, a qual a concepção imagem de Deus orienta o homem para a beatitude definitiva em Deus. 1.2. Elementos estruturais da ética agostiniana No escopo do pensamento ético de Agostinho, a ideia de beatitude assume um elemento fundamental. Entende-se beatitude como o fim último do homem, a felicidade. Constantemente, o homem a busca em seu coração e só em Deus poderá desfrutar de tal bem. A vida feliz, nesse sentido, constituir-se-á na busca daquilo que é perene, livre de qualquer vicissitude da vida. Esse ser, do qual não existe outro maior, é Deus (o Sumo Bem). Nele o homem encontra a verdadeira e absoluta felicidade. Mas o fato de o homem estar distante dessa felicidade absoluta (por estar no tempo – história), necessitará de uma vida virtuosa, potencializada pela vontade, para alcançar a beatitude.17 A ideia de beatitude torna-se diretriz do itinerário ético-soteriológico do pensamento de Agostinho. Mas é precisamente na obra Sobre os costumes da Igreja (388) que ele apresenta as grandes colunas da sua concepção ética. Na primeira parte da obra, reflete sobre a busca da beatitude e da lei do amor, esta originária das Escrituras, da ordenação de amor a Deus e ao próximo. Assim, a busca da beatitude e da lei do amor estão em estreita relação, como afirma Agostinho: “portanto, seguir a Deus é o desejo da beatitude; alcançá-lo é a própria beatitude. Mas nós o seguimos amando”.18 Na segunda parte, reflete sobre as virtudes, como referidas à lei fundamental do amor. 17 MATTOS, José Roberto Abreu de. Ética agostiniana, p. 121. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, v. 19, n. 73, jan/mar 2011, p. 123-124. 18 AGOSTINHO, Santo. De moribus Ecclesiae catholicae apud VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 190.

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Ora, para Agostinho, a experiência atesta um princípio de atividade, que é a vontade, outro elemento matriz do seu pensamento ético. Como potência sublime da alma, a vontade reside na própria raiz do seu ser, a ponto de podermos identificá-lo com sua vontade. As manifestações de afeições são propriamente manifestações da vontade; assim, “todas as afeições da alma consistem na aceitação ou na rejeição, pela vontade, de algo bom ou mau”.19 Pois, a vontade pode optar livremente entre o bem e o mal, dada a sua inclinação à felicidade. E não pode ela inclinar-se à felicidade senão na posse da verdade e do bem supremos. Ao contrário, consistirá pecado quando ela buscar a rejeição desses bens, alojando-se egoisticamente em seu próprio bem.20 Esses movimentos da vontade têm sua causa – assim como todo corpo tende ao seu lugar natural, dado o seu peso – no amor, elemento este sublime da ética de Agostinho. O amor, como compreende Agostinho, é a essência do homem, pois, o amor reside em sua própria existência e, por isso, é uma atividade humana;21 e o amor não terá repouso enquanto não encontrar o seu “lugar”, como exprime Agostinho na obra Confissões: “... porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós”.22 Já que o amor decorre do próprio homem, este não pode deixar de apreciá-lo; ao buscar o amor, cultiva necessariamente o prazer. Compreende-se assim o amor como uma alegria ontológica profunda. Esta representa a inquietação de Agostinho em sua fase de juventude, quando ele ainda não conhecia o amor, mas ao gostar de amar, procurava um objeto para esse amor, que vinha a ser Deus. Seria uma insensatez qualquer ato ou condição de separar o homem do 19 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 188. 20 Ibid., p. 192. 21 ALMEIDA, Frederico Soares de. O amor como elemento fundamental na ética de Santo Agostinho, p. 56. 22 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1999, I, 1.

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seu amor. Por sua vez, não constitui problema o ato de amar, em si, mas o objeto do amor. E não pode haver humano sem o ato de amar. Portanto, assim afirma Agostinho: ama, pois, mas atende ao que é digno do teu amor.23 Outro elemento de suma importância na ética de Agostinho é a compreensão do mal que, em 405, encontra espaço em suas elucubrações filosófico-teológicas. Na obra De natura boni, trata-o na perspectiva metafísica de sua origem e explicação, tema que o atormentou desde os tempos de Cartago.24 Agostinho convence-se que o problema do mal somente encontrará solução em duas fontes: no neoplatonismo, com a compreensão do mal como privação do bem; e no cristianismo, na doutrina da criação, em que Deus, ao atingir o ápice da sua criação, “viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1,31).25 Por sua vez, com o título de De libero arbitrio (395), Agostinho já havia iniciado sua especulação sobre o mal, particularmente sobre a sua origem e natureza. Percebe que a interrogação sobre o mal atinge total sutileza quando posta em relação com o livre-arbítrio, elemento este também matricial da ética agostiniana. O livre-arbítrio, um dom (bem) concedido por Deus, permite ao homem – o que vem a ser a compreensão dessa categoria, do livre-arbítrio –, agir livremente de acordo com a sua vontade; e é a vontade livre que o permite agir bem; ao contrário, não seria possível agir retamente e nem atribuir a ele o mal. Era necessário, então, que Deus desse ao homem vontade livre.26 23 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 188-189. 24 AGOSTINHO, Santo. Confissões, III, 7, 12; VII 3, 4-5, 7. 25 BÍBLIA de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002. “Todo o bem procede de Deus: a existência pela criação, a verdade pela iluminação, a virtude ou a retidão da vontade por uma como iluminação ou fortalecimento da ordem moral. Todo o nosso ser depende de Deus: nossa existência de Sua eternidade, nosso conhecimento das razões eternas de Sua sabedoria, e nossa vida moral do Seu amor”. BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 188-189, p. 193. 26 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995, II, 1, 3.

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Nesse horizonte, Agostinho faz uma apologia ao livre-arbítrio como atributo da liberdade humana.27 Reconhece que o mal não pode ter lugar entre os seres, muito menos corromper a obra divina, bem como impedir o homem de encontrar Deus.28 Pois d’Ele procede a bondade, correspondente aos seres enquanto seres e o bem correspondente ao livre-arbítrio. A questão do mal e do livre-arbítrio, no contexto da ordem e da beatitude, implicam na questão sobre o fim último da ordem, que é o seu princípio, Deus. Ele é o supremo da beatitude, e foi dado a conhecê-Lo pela mediação do Verbo, Cristo Jesus, concepção esta exclusa e, por isso, insuficiente no pensamento platônico.29 Fundamentalmente, a questão do mal e do livre arbítrio, no contexto teocêntrico – e alargado pela tríade uso, fruição e amor – constitui elemento matriz do pensamento ético agostiniano. Até os últimos escritos, Agostinho sustentará esta concepção.30 Em De doctrina christiana, iniciada provavelmente em 397 e concluída trinta anos depois, Agostinho esboça um tratado sobre os princípios a serem considerados na interpretação das Escrituras. Na obra, estabelece a distinção entre o uso e a fruição: este (do latim frui, gozar, alegrar-se), de caráter teológico, é compreendido pelo mistério da Santíssima Trindade; àquele (do latim – uti -, servir-se e usar),31 de caráter antropológico, pela ordem da vida moral do homem, na sua condição de criatura de Deus. Ou melhor, fruição “significa afeiçoar-se 27 Ibid., livro I. 28 Ibid., p. 13. 29 AGOSTINHO, Santo. Confissões, VII, 9, 13-14. “A purificação da alma, em Platão, e a sua ascensão libertadora até elevar-se à contemplação das ideias, transformam-se em Santo Agostinho na elevação ascética até Deus, que culmina no êxtase místico ou felicidade, que não pode ser alcançada neste mundo” (VÁZQUEZ, idem, p. 278). 30 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 192. 31 PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 67.

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a uma coisa por amor a ela mesma;32 o uso, “serviço de algo para alcançar um objeto que se ama”.33 Nesses conceitos, Agostinho procurou conciliar a felicidade na vida em Deus com o comportamento moral do homem em sua realidade terrena e isto quer dizer: como o homem, moralmente, só pode fruir dos bens eternos, resta-o utilizar-se das coisas terrestres como um caminho para a eterna alegria. Assim, na perspectiva da fruição e da utilização, o homem revigora sua trajetória em busca do verdadeiro bem e felicidade.34 Ora, a vida moral consiste em uma sequência de atos individuais. Cada um deles implica em uma tomada de posição, pelo indivíduo, face às coisas: delas ou o homem frui ou se utiliza. O fato é que o homem só poderá fruir de Deus, do qual não se pode conceber outro bem maior. E tal vem a ser a máxima em Agostinho: não se deve fruir senão de Deus.35 Prossegue-se que para Agostinho, a ordem da vida moral é regida pela ordem do amor, que se desdobra no uso como amor de si mesmo (corpo e alma) e dos outros, segundo os graus correspondentes, e elevado à esfera da fruição como amor de Deus. Essa vem a ser a estrutura da ética de Santo Agostinho.36 1.3. A perspectiva do amor Da compreensão ética, surge a concepção agostiniana de virtude como “ordem do amor” (ordo amoris). Esta compreensão reordenará a clássica definição de virtude – como perfeição no uso da razão reta – dado o contexto cristão em que Agostinho a apresenta. Assim, ao refletir sobre a virtude, em De Civitate Dei, compreende que: “o amor, que faz com que a gente ame bem o que deve amar, deve ser amado também com ordem; 32 GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 193. 33 Ibid., p. 193. 34 PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história, p. 67-68. 35 GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 188-189, p. 193. 36 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 193.

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assim, existirá em nós a virtude, que traz consigo o viver bem”;37 e tão logo apresenta sua definição de virtude: “a virtude é a ordem do amor”.38 A virtude consiste em o homem fazer bom uso das coisas, boas e más, e direcionar tudo isso ao bem último, aquele capaz de assegurar a paz;39 a virtude é o perfeito amor a Deus. Ora, Ele é o objeto desse amor, o bem supremo, a mais alta sabedoria e perfeita harmonia. As virtudes cardeais (prudência, fortaleza, temperança e justiça), diferentemente então da concepção grega, só terão sentido, para Agostinho, na graça. Sem esta condição, não poderá uma vontade tornar-se reta. O homem só alcançará a perfeita ordem quando a razão dominar todos os movimentos da alma.40 Procede-se que, na perspectiva do amor, a antropologia agostiniana pode ser interpretada em seu mais sutil caráter ético; nela, a unidade do homem é pressuposta a ser vivida no exercício dos graus ordenados do amor.41 Tal exercício, no contexto ético do “bem viver”, é ordenado ao fim, que pode ser compreendido como ordenação da beatitude ao Transcendente. O amor ordenado permanece como graça, fruto da mais sublime das virtudes, a caridade (caritas). Pode-se entender a caridade como o amor que ama aquilo que deve ser amado. É ela que conduz o homem ao seu objeto próprio, Deus. Este amor, caridade, é como peso interior, que conduz a alma a Deus. Como afirma Santo Agostinho: “o meu amor é o meu 37 AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus, XV, 22. (Grifo nosso). 38 Ibid., XV, 22. 39 Ibid., XIX, 11. 40 MATTOS, José Roberto Abreu de. Ética agostiniana, p. 121. 41 Quanto aos graus ordenados do amor, assim compreende Agostinho: o grau ínfimo refere-se aos bens externos. Em si, são verdadeiros bens, porque criados por Deus. O mau consistirá no abuso de tais bens. Acima dos bens externos estão os homens, semelhantes. Neles deve prevalecer a máxima de amar o outro como a si mesmo. O amor a si mesmo implica no devido valor ao corpo, porém, maior que esse, à sua alma racional, que o leva a ser imagem e semelhança de Deus. Por sua vez, a alma deve ser amada em vista não de si mesma, mas de Deus, seu bem supremo, de onde brota a máxima: amar a Deus com toda a sua alma. GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 188-189, p. 194.

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peso. Para qualquer parte que vá, é ele quem me leva”.42 O homem só poderá viver uma vida de caridade se Deus nela se fizer presente, pois, Ele é a própria caridade e no homem, Ele deve habitar. O amor ao outro, por causa d’Ele, é propriamente a caridade. Esse é o amor que permite a socialização entre os homens. Nesse horizonte, a realização do amor em Deus exige, necessariamente, o amor ao próximo e entre os seres humanos.43 Neste amor, realiza-se a unidade do espírito como inteligência e vontade. E por ele, o amor, o desejo é ordenado e elevado ao mais alto grau da afetividade humana. Caso o desejo promova a desordem na ordem do amor, é na restauração dessa desordem pela caridade que o homem poderá encontrar o caminho da beatitude e de sua consumação em Deus. Na perspectiva, portanto, do amor ordenado, a ética agostiniana atinge seu mais supremo sentido, de uma ética cristã plenamente amadurecida.44 Vê-se que o problema central da ética agostiniana consiste na reta escolha das coisas a serem amadas; e o objeto último do querer do homem não pode ser outro senão o próprio Deus. Basta ao homem, no exercício da vontade, determinar e querer tudo aquilo que o leva a Ele. E, de fato, o que pode conduzir o homem a Deus é a caridade (o amor de Deus). Pelo fato de se referir às pessoas, diferencia-se de todas as outras modalidades de amor. Porque o homem ao amar o outro, em profunda sinceridade, ama-o como a si mesmo. Na igualdade, o homem ama o outro e a si mesmo; ao querer o bem do outro, deseja seu próprio bem. E é próprio da sua natureza aspirar à igualdade. Ainda mais, na relação interpessoal suplica reciprocidade: aquele que ama o outro requer necessariamente ser amado. O 42 AGOSTINHO, Santo. Confissões, XIII, 9. 43 ALMEIDA, Frederico Soares de. O amor como elemento fundamental na ética de Santo Agostinho, p. 59. 44 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 194-195.

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amor (então) traz uma comunhão de vidas entre almas. Ora, o amor aos homens e a Deus revela algo em comum: o amor ao bem. Porém, Deus é o sumo bem e, por isso, deve ser amado de forma diferente, ou melhor, sobre todas as coisas. Se o amor entre os homens necessita de igualdade, o amor a Deus, não. Ele deve ser amado acima de qualquer pessoa, até mesmo do próprio indivíduo que o ama. O amor a Deus é absoluto e infinito. E isso não quer dizer aniquilação do próprio “eu”, pois, o homem ao possuir Deus, possui tudo; Nele, encontra tudo. Nesse sentido, deverá a alma “perder-se” em si mesma para ganhar tudo em Deus; “esquecer-se” de si para encontrar tudo n’Ele. E tal é o amor genuíno a Deus. Este amor, totalmente livre que se entrega ao seu objeto amado, é, portanto, a caridade.45 Portanto, “a força matriz para a realização da ordem moral é o amor, que remata na caridade. Sua força orientadora é a vontade, que culmina na liberdade. Sua consumação é a ordem da caridade”.46 A caridade, por sua vez, não é somente o centro da moralidade. Ela mesma constitui a vida moral. Em profunda relação com a justiça, potencializa-se e a impulsiona: o início do amor marca o início da justiça; o seu progresso, o progresso da justiça; a sua perfeição, a perfeição da justiça. E não há qualquer possibilidade de o perfeito amor ao bem absoluto não ser perfeitamente justo. Nessa condição, só pode a alma cumprir a lei divina, amar e fazer o bem, que estão intrinsecamente associados, em mútua dependência: “quem diz caridade, diz amor; quem diz amor, diz vontade; quem diz vontade, diz atividade. Assim o amor, por sua mesma natureza, tende a traduzir-se em atos”.47 Em suma, na ideia de ordem, que traz a significação de normativa, a conformidade com o bem – que é o fim – orienta a vida da pessoa humana à constante busca da beatitude, de tal 45 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 189-191. 46 Ibid., p. 188. 47 Ibid., p. 191.

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forma que o bem realizado se exprima na forma de paz, isto é, na “tranquilidade da ordem”. A ética agostiniana, na perspectiva filosófico-teológica de sua construção – como conhecimento e prática –, é transfigurada pela sapientia (sabedoria), “entendida como a possibilidade de o homem tomar posse conscientemente das verdades e razões eternas, pois, que a sabedoria é uma certa posse beatificante de Deus.48 Uma vez que é da sabedoria que provém as normas e preceitos para a ação do indivíduo. Na sabedoria, Agostinho constrói – com e além dos gregos –, uma ética para a humanidade, reestruturada à luz do ethos cristão. Esse modelo ético terá forte influência no pensamento ocidental e, por isso, perdurará nos séculos seguintes como Ética cristã.49 2. A perspectiva ética na escolástica A tentativa de Agostinho em “cristianizar” a filosofia grega – se assim é possível considerar –, deveu-se, provavelmente, ao seu mestre Ambrósio (340-397). Ele, já em De officiis ministrorum, havia apresentado sistematicamente o dever do cristão, a partir de uma literatura não cristã. Com perspicácia, Ambrósio desenvolve as quatro principais virtudes (temperança, fortaleza, justiça e prudência), como para os gregos, em uma perspectiva cristã, o que, sem dúvida, contribuiu para a ética agostiniana. Posteriormente a Ambrósio e Agostinho, as quatro virtudes da ética foram, em geral, aceitas e desenvolvidas pelos pensadores escolásticos. Não raro, pensadores cristãos apresentaram-na ao lado da tríade fé, esperança e caridade. Paralelamente pensadores cristãos desenvolveram listas de pecados – capitais e veniais –, com suas práticas de redenção, direcionadas ao clero e ao laico. Essa discussão, de jurisprudência eclesiástica, era quase que inevitável pela Igreja, dada a sua tentativa de 48 MATTOS, José Roberto Abreu de. Ética agostiniana, p. 118. 49 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 196-197.

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manter a ordem moral neste primeiro período da Idade Média. Por sua vez, essa discussão foi aquecida pela perspectiva de “interioridade” da filosofia de Agostinho, transmitida em Moralia, de Gregório, o Grande (+604), em Sententiae, de Isidoro de Sevilha (+636), bem como nas obras de Alcuíno (+804), Hrabanus Maurus (+856) entre outros escritores.50 O período escolástico contou com insignes filósofos. Como nossa pretensão é estudar o seu maior represente, Tomás de Aquino, apresentaremos, brevemente, os mais notáveis que o precederam. João Scoto Erígena (810-877) obteve forte influência de Platão e Plotino. Seu pensamento ético, de matriz neoplatonista, tem um caráter negativo e ascético. Para Erígena, só Deus é o ser verdadeiro; as coisas podem ser se manifestadas n’Ele; o mal é irreal e incognoscível por Deus. Cabe ao homem retornar à união com Ele. Diferentemente de Erígena – considerado em sentido lato como partícipe deste período – Anselmo (1033-1109), de fato, representa (estritamente) o período escolástico, dada a sua tentativa de tornar a ortodoxia cristã inteligível pela razão. Em sua perspectiva de salvação, adota a teologia agostiniana de pecado original e a necessidade da graça não merecida, bem como a concepção de liberdade como o poder de não pecar. Ainda procura distinguir a liberdade enquanto oposta à necessidade e a liberdade da escravidão do pecado. Aberlado (1079-1142), nesse horizonte, tenta distinguir o pecado referido à propensão de erro do homem, herdado pelo primeiro pecado, do pecado fruto da sua má ação, voluntária. Para ele, o pecado, propriamente dito deve residir na ação do homem contra Deus e seus mandamentos, manifestadamente consentidos pelo homem, isto é, o pecado só pode ser fruto da sua má intenção. Afirma que os gregos, ao recomendarem o amor desinteressado, mais aproximaram-se do Cristianismo que o legalismo judaico, até porque eles, decla50 SIDGWICK, Henry. História da Ética. Trad. Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2010, p. 135-138.

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radamente, desprezavam os desejos irracionais e, com isso, buscavam insistentemente as “coisas” da alma. A esse respeito, entram em conflito com Abelardo os pensadores Hugo de S. Vitor (1077-1141) e Bernardo de Clairvaux (1091-1153). Para o primeiro, não pode haver amor desinteressado, porque aquele que ama só pode desejar o objeto do seu amor, amando-o; para o segundo, a alma (gradualmente) é conduzida a quatro estágios: o desejo pelo auxílio de Deus; o amor a Deus, em razão do seu favor a ela; o amor à bondade absoluta de Deus; busca, ainda que em raros momentos, que o amor de Deus se torne o único afeto. Com Pedro Lombardo (+1142), em Libri sententiarum, tem-se um verdadeiro manual de ensino teológico, aceito por muito tempo pela Europa Ocidental. Na obra, Lombardo apresenta uma exposição concisa da teologia cristã, com um método próprio desse período histórico: para cada proposição tecida, apresenta argumentos favoráveis e contrários extraídos da Sagrada Escritura e da Patrística, até mesmo busca reconciliar autores aparentemente conflitantes em suas perspectivas filosófico-teológicas.51 3. A ética em Santo Tomás de Aquino Tomás de Aquino, o mais importante filósofo do período medieval, nasceu no Castelo de Roccaseca em 1225 (provavelmente). Ainda criança, foi enviado à Abadia Beneditina de Monte Cassino (1230-1239). Após, dirige-se para Nápoles, a fim de seguir seus estudos e lá conhece e ingressa (em 1244) na Ordem dos Pregadores. Depois, é enviado para Paris, tornando-se discípulo do Mestre Alberto Magno, que exerceu sobre ele notável influência intelectual.52 Em 1256 torna-se mestre em Teologia, o que lhe permitiu o direito de comentar a Sagrada Escritura. Em 1259, volta à Itália, onde segue com 51 Ibid., p. 138-142. 52 TORRELL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino – sua pessoa e obra. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2004, p. 31.

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o magistério até 1268. Este período atesta o amadurecimento do Doctor Angelicus, com a escrita das obras: Summa contra Gentiles, Compendium Theologoae, De potentia Dei e a primeira parte da Summa Theologiae, além de outros textos. Em 1268 Tomás retorna a Paris, onde escreve a segunda parte da Summa Theologiae e comentários à filosofia aristotélica,53 entre outras obras. Em 1272 retorna a Nápoles, onde inicia a terceira parte da Summa, deixando-a inacabada. Faleceu em 1274. Sua obra é considerada como um dos maiores monumentos intelectuais do Ocidente.54 Todo o percurso acadêmico de Tomás, registrado em suas obras, demonstra sua inesgotável discussão nos campos da filosofia (razão) e da teologia (fé) especulativas. De fato, seu tratado sobre a ética representa esta tendência, para ele, assim como para os filósofos clássicos, a ética tem como fundamento a metafísica, sendo a estrutura inteligível do agir humano comportado entre o especulativo e o prático. Suas grandes teses desembocam na reflexão ética, o que lhe confere uma unidade significativa e surpreendente. Particularmente, a integração da ética de Aristóteles (em Ética a Nicômaco) com a moral cristã terá importância decisiva para o Ocidente.55 Antes de tudo, devemos considerar que a ética tomasiana é, fundamentalmente, uma ética da perfeição e da ordem. Essas categorias, ontológicas, recebem noções correlatas: a ordem diz respeito à reta disposição dos seres de acordo com a escala de perfeição correspondente a cada um. A partir de Agostinho e conjugada com Aristóteles, ordem recebe a noção de perfeição como ato, onde encontra realização na ação humana, 53 Tomás, para construir seu extraordinário pensamento filosófico, serve-se de duas fontes: a teologia cristã e a filosofia aristotélica. Não obstante, Tomás também incorpora elementos da filosofia platônica, por meio de Agostinho, considerado por ele um mestre e guia. Particularmente, as obras agostinianas mais frequentadas por Tomás foram A Cidade de Deus e De trinitate. PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história, p. 84-85. 54 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 209-211. 55 Ibid., p. 212-213.

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considerada então a sua perfeição ao inserir-se livremente na ordem da natureza, que é a norma da ação, e isso se constitui uma ação ética. A noção de perfeição constituirá a noção de bem; a noção de ordem, de fim. Ora, todo ser, enquanto ato apresenta-se perfeito em sua ordem (orientado e agindo em direção ao fim). Compreende-se, assim, a ação ética, enquanto ato humano que, por conseguinte, deve promover a perfeição do ser humano, que é racional e livre. Nesse sentido, “bem e fim ou perfeição e ordem são, pois, as categorias metafísicas que subjazem à Ética tomásica56 como ética filosófica e que devem ser levadas em conta a cada passo de sua elaboração conceitual”.57 Como abertura ao seu pensamento ético, devemos assegurar que os seres foram criados para um determinado fim. O homem, nesse sentido, direciona-se a um fim que lhe é próprio. Porém, diferentemente dos outros seres, tem a capacidade de conhecer o fim ao qual se direciona, de maneira livre. E, como um ser dotado de razão e liberdade, insere-se no reino da moralidade.58 Ou melhor: “ao agente racional e livre cabe dirigir sua própria ação, ou seja, ordená-la ao bem que é o fim, tornando o seu agir, por natureza e destinação, constituinte ético ou moral”.59

56 Entenda-se tomásica e tomasiana como uma mesma referência a Tomás de Aquino. 57 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 216. 58 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 476. 59 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 216. Faz-se necessário aqui esclarecer que na ética de Tomás de Aquino, a antropologia adquire valor matricial. O humano, em sua ação – e dotado de liberdade – é entendido em sua ordenação para o fim. Esta concepção assegura-se no fundamento teológico-metafísico, que concebe o humano como criatura e imagem de Deus. Ibid., p. 223.

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3.1. A natureza do ato humano Na perspectiva de pensar a natureza do ato humano,60 Tomás de Aquino – em sua célebre obra Suma Teológica61 –, compreende que em toda forma há, naturalmente, uma tendência ao seu fim (assim, como exemplo, o fogo tende para o alto). Esta tendência natural caracteriza-se pela ordenação das coisas a um fim determinado. Os seres racionais, por sua vez, que conhecem o fim ao qual se direcionam – diferentes dos outros seres, que carecem de conhecimento –, possuem uma tendência de ordem superior, correspondente à sua forma superior. Ora, há duas modalidades distintas de tendências, no âmbito do conhecimento: aquela correspondente à sensação, determinada pelo instinto (a sensitiva); e aquela, a operação intelectual (racional). Quer dizer, os sentidos estão referidos àquilo que é sensível e o intelecto àquilo que é inteligível. E essa inclinação superior só poderá pertencer à potência apetitiva da alma, visto que somente por ela o homem pode tender às coisas que conhece e não somente para aquelas ao qual se inclina, naturalmente.62 E como o intelecto, a vontade63 (a) – que tem como objeto necessário o bem em geral, ou a beatitude – adere necessariamente aos primeiros princípios e, em razão da sua natureza própria, ao último fim, que é a beatitude.64 Pode-se aqui 60 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 476. 61 A Suma Teológica, uma das mais importantes obras da filosofia, contém duas partes: “a primeira parte trata de Deus criador e senhor do universo, que tudo governa segundo a lei eterna que é Ele mesmo; com especial carinho governa o homem que Ele fez ‘à sua imagem e semelhança”: ele saiu da mão de Deus. Na segunda parte, Tomás trata do retorno do homem a Deus. O argumento básico é tirado da própria natureza humana que busca a felicidade. Enquanto seu mestre, Aristóteles, defendia uma felicidade histórica, Tomás situa-o na eternidade”. PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história, p. 83. 62 AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Trad. Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2002, I, q. 80, a. 1. 63 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 476. 64 Ibid., p. 476. A ideia de beatitude, construída a partir do pensamento aristotélico (de perspectiva filosófica) e agostiniano (de perspectiva teológica), torna-se a matriz de toda ética de Tomás de Aquino. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 220.

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entender necessidade como aquilo que não pode não ser, seja de um princípio intrínseco ou extrínseco; pode ainda dizer de um fim e, até mesmo, de uma causa eficiente. O fato é que a vontade necessariamente se inclina para algo. E assim como se compreende natural aquilo segundo a inclinação da natureza, compreende-se também voluntário aquilo segundo a inclinação da vontade. E não pode a necessidade natural extrair a liberdade da vontade;65 bem como não pode a vontade querer por necessidade tudo o que ela quer, pois, há bens particulares sem relação necessária com a bem-aventurança.66 Podemos compreender essa concepção com o paralelismo entre o querer e o conhecer. Há proposições que o intelecto assente sem conhecê-las, mas porque relacionadas necessariamente com os seus primeiros princípios. Todavia, há aquelas proposições que o intelecto não pode deixar de assentir, em razão da coerência lógica interna das mesmas (pode acontecer de ele assentir somente ao perceber – e assim sentir-se “coagido” – tal necessidade). Da mesma maneira pode-se compreender a vontade. Uma vez que há bens, particulares, dispensáveis para a bem-aventurança e, por isso, a vontade não as adere necessariamente. Outros, porém, estão em estreita relação com o fim último, a felicidade, cujo assentimento não pode lhes ser negado. Há de se conceber que nem sempre essa necessidade se realiza.67 Das potências da vontade e do intelecto, afirma Tomás esta ser superior àquela. Uma coisa pode ser superior a outra em dois sentidos: absolutamente, quando ela é em si mesma; e relativamente, quando em relação a outra coisa. E esta superioridade fica clara ao examinarmos o objeto dessas 65 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I, q. 82, a. 1. 66 Ibid., I, q. 82, a. 2. A vontade pode estar necessariamente referida à sua bem-aventurança quando, por exemplo, o homem adere a Deus, em que somente n’Ele poderá encontrar seu bem maior. Ibid., I, q. 82, a. 2. 67 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 477.

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potências: “o objeto do intelecto é a própria razão do bem desejável; e o bem desejável, cuja razão está no intelecto, é o objeto da vontade”.68 Quer dizer: a razão de causa aponta algo mais superior que outra e, por isso, principal. Dado que aquilo que é anterior absolutamente e por natureza é mais perfeito, assim o ato precede a potência; nesse sentido, o intelecto é anterior à vontade, como aquilo que move e antecede aquilo que é movido, pois, o bem que é conhecido, só poderá mover a vontade. Como se vê, em Tomás de Aquino, assim como Aristóteles, o intelecto precede a razão. Nesse contexto, tal vem a ser a exposição sobre o livre arbítrio (b)69 em Tomás de Aquino, dado que a vontade, como princípio ativo, move diversas potências, parece constituir-se livre – e em nenhum aspecto essa condição da vontade pode ser negada. Ao contrário, caso a vontade não comportasse a liberdade, os atos humanos perderiam aquele caráter que os tornam dignos, seja de louvor, seja de reprovação. E não seria válida a moralidade. Deve-se entender a liberdade da vontade quanto à sua indeterminação em relação ao objeto, ao ato e ao fim: quanto ao primeiro, ainda que a vontade busque sempre o fim último, ela permanece livre para utilização dos objetos penúltimos, isto é, dos meios para o alcance do fim desejado; quanto ao segundo, ela é livre para mover-se por si própria, sem o impulso de um princípio gerador; quanto ao terceiro, ela pode querer não somente o fim último, mas, ao apropriar-se de meios diversos, buscar um fim aparente, o que pode explicar sua tendência ao mal.

68 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I, q. 82, a. 3. 69 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 478.

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Compreende-se o livre arbítrio (então) como propriamente a vontade, que tem o poder inato de escolher entre uma coisa e outra, penetrada em uma operação racional. Por isso, o livre arbítrio, ao escolher os meios, participa do dinamismo da vontade, que está orientada para o bem enquanto fim. Nesse horizonte, a bondade do fim deverá constantemente buscar os meios aptos para alcançar este fim. Em síntese, o livro arbítrio é a vontade, não em um sentido absoluto, mas enquanto capaz de escolher.70 Examinada a vontade livre, necessária para o pensamento ético tomasiano, busca-se, agora, apresentar a estrutura do ato humano (c),71 que possui quatro graus distintos: 1) Intenção: compreende-se, como em seu termo próprio, como algo que tende para alguma coisa; e tende para alguma coisa a ação do movente, bem como o movimento da coisa movida. Ora, a vontade, ao tender para alguma coisa, cumpre o ordenamento da razão, assim a intenção é “ato da vontade, pressuposta a ordenação da razão, que ordena algo para o fim”.72 Contudo, nem sempre a intenção visa o fim último, podendo dirigir-se a fins intermediários;73 pode até mesmo a intenção dirigir-se ao fim último e intermediários, simultaneamente. Isso se explica pelo fato de o homem ter a intenção, ao mesmo tempo, de muitas coisas.74 Uma vez que a vontade busque os meios condizentes com o fim desejado, considera o fim e os meios em um único ato;75 2) Conselho: é a operação da escolha dos meios para o fim, movido pela vontade, isto é, após se direcionar para o fim, a vontade busca os meios condizentes, deliberando-os, 70 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 226. 71 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 478. 72 AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Trad. Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2003, I-II, q. 12, a. 1. 73 Ibid.,I-II, q. 12, a. 2. 74 Ibid., I-II, q. 12, a. 3. 75 Ibid., I-II, q. 12, a. 4.

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podendo estes serem não necessários, por isso, singulares contingentes. Nesta operação, não se busca determinar o fim, mas os meios direcionados a ele. “Todavia, o que é considerado fim de uma deliberação pode ser considerado meio em relação a outra, e assim por diante, até o fim último, que não pode tornar-se meio”;76 3) Consentimento: a deliberação conduz à formulação de juízos, indicando ações desejáveis e reconhecendo nelas a bondade que, por sua vez, é apreendida. Ora, “consentir é sentir juntamente e implica uma certa união com aquilo a que se consente. Por isso, a vontade, ao qual pertence tender para a coisa, mas propriamente se diz que consente”.77 Esclarece Tomás, ao citar “Damasceno: ‘depois do juízo, o homem dispõe e ama aquilo que foi julgado na deliberação, que se chama sentença,’ isto é, consentimento”.78 E o consentimento só pode ser para o fim, sobre as coisas que são para o fim;79 4) Eleição: ao consentir, as ações deliberadas pelo conselho adquirem valor subjetivo, com a efetuação da eleição, que se compreende como um ato do intelecto e da vontade, mas é a vontade que determina essa operação. Ora, a eleição diz do desejo do homem e desejar é ato da vontade (da potência apetitiva), “por isso, a conclusão parece pertencer à eleição”, como consequência dela.80 Nesse horizonte, considera o filósofo Aquinatense: “deve-se dizer que a eleição acrescenta ao consentimento uma relação com respeito àquilo para o que se escolheu previamente algo e por isso, após o consentimento, ainda permanece a eleição”.81

76 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 478. 77 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I-II, q. 15, a. 1. 78 Ibid., I-II, q. 15, a. 2. 79 Ibid., I-II, q. 15, a. 3. 80 Ibid., I-II, q. 13, a. 1. 81 Ibid., I-II, q. 15, a. 3.

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3.2. A moralidade do ato humano Seguimos com a exposição do pensamento ético de Tomás de Aquino com a reflexão sobre a moralidade do ato humano.82 Nesse sentido, busca o Aquinatense pensar a (a) natureza da bondade moral.83 Compreende que os atos são propriamente humanos enquanto voluntários. O ato voluntário, por sua vez, distingue-se em ato interior e ato exterior da vontade: o primeiro tem por objeto o fim; o segundo, a coisa para a qual se tende ao fim. Só poderá o ato exterior ser passível de moralidade caso seja voluntário. “E assim, a espécie de um ato humano se considera formalmente segundo o fim, materialmente segundo o objeto do ato exterior”.84 Entende-se, nessa perspectiva, que a bondade da ação procede do fim referente ao ato interior, que se procura obter com o ato exterior. A ação boa é aquela conforme a razão, de sua forma (como dar esmola ao pobre); o mal, o contrário. Isto é, aquilo que contraria a ordem formal (como roubar). Ora, uma vez que seja a alma racional a forma do homem, a ação segundo a razão confere bondade. Tudo aquilo que repugna à razão só pode ser mau. E aquilo que não se refere à razão ou ao seu contrário, é indiferente – como exemplifica Tomás, o ato de tirar uma palha do chão.85 Não obstante, o ato humano deliberado da razão ou pode ser bom ou mau. E assim afirma o Aquinatense: “deve-se dizer que todo fim visado pela razão deliberativa pertence ao bem de alguma virtude, ou ao mal de algum vício”.86

82 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 479. 83 Ibid., 479. 84 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, II, q. 18, a. 6. 85 Ibid., I-II, q. 18, a. 8. 86 Ibid., I-II, q. 18, a. 9.

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Compõe a reflexão sobre a moralidade do ato humano o tratado sobre (b) a virtude,87 o que caracterizará a ética tomasiana como uma ética das virtudes.88 Tomás compreende que a virtude é hábito, que designa a perfeição da potência, entendida enquanto ordem para o fim, ato; ela, também, compreende-se como o bom uso do livre arbítrio. Assim, todo ato virtuoso nada mais é que o uso correto da liberdade; ainda, ela é a ordenação do amor, pois, é pela virtude que o amor se ordena no homem.89 A virtude implica em uma ordenação para a ação – em si mesma, ela é uma disposição ordenada da alma – e, por isso, “é da razão da virtude humana ser hábito operativo”.90 E só pode a virtude tornar a alma melhor; ao implicar a perfeição da potência, a virtude de uma coisa tenderá ao alcance máximo que essa coisa poderá atingir e esse ponto máximo deverá ser um bem. Portanto, “a virtude humana, que é um hábito de ação, é um hábito bom e produtor de bem”.91 Ao refletir sobre o sujeito da virtude, Tomás considera a virtude como o último grau da potência. Ora, aquilo que é último em uma coisa, só pode existir nela. Isso implica que a virtude está em uma potência da alma como em seu sujeito.92 Como outras potências, pode o intelecto ser movido pela vontade. E de fato, quando o homem se propõe a pensar algo é porque o desejou. Por isso, o intelecto, uma vez ordenado para a vontade, pode ser sujeito da virtude.93 Ainda, é certo que aquilo 87 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 479. 88 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 232. O tratado das virtudes, em Tomás de Aquino, é considerado como um dos maiores tratados da ética ocidental. Em sua concepção sobre a virtude, entendida como hábito, Tomás reúne duas tradições: a de Aristóteles, para quem a virtude é a perfeição do ser, e a do estoicismo, incorporada por Agostinho, em que a virtude diz respeito à boa qualidade da mente, o que assegura a vida com retidão. Ibid., 232. 89 AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Trad. Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2005, I-II, q. 55, a. 1. 90 Ibid., I-II, q. 55, a. 2. 91 Ibid., I-II, q. 55, a. 3. 92 Ibid., I-II, q. 56, a. 1. 93 Ibid., I-II, q. 56, a. 3.

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que move tem maior perfeição do que aquilo que é movido. Ora, a vontade move potências. Logo, deve-se considerar que a virtude existe na vontade.94 Tanto no pensar quanto no querer, o homem necessita da reta disposição. Nesse sentido, Tomás distingue as virtudes intelectuais das virtudes morais. Por sua vez, antes de explicitarmos tais virtudes, faz-se necessário a compreensão sobre paixão, uma vez que a virtude tem a tarefa primordial de combatê-la. Ela, a paixão, na perspectiva da estrutura do agir, é aquilo “que advém ao sujeito no nível somático-psíquico sem a mediação da razão ou da vontade”.95 Dotada de autonomia, ela se constitui como potência da corporeidade e psiquismo do humano. As virtudes intelectuais são quatro: o intelecto, a ciência, a sapiência e a prudência. Há, entre elas, uma relação de interdependência: a ciência, das operações dedutíveis, depende do intelecto, que é o hábito dos princípios. Estes, por sua vez, dependem da sapiência, que tem o domínio sobre elas, julgando as coisas segundo as razões e princípios supremos;96 já a prudência – que é indispensável não somente para o homem viver bem, mas também para ser bom – “é a virtude mais necessária à vida humana, pois, viver bem consiste em agir bem [...] É a razão reta do agir”.97 Ela está referida ao domínio prático, pois, não basta apenas conhecer o reto caminho, mas saber aplicá-lo às circunstâncias concretas.98 As virtudes morais são três, a saber: a justiça regula os atos externos. Prescreve aquilo que é e não é devido ao homem, independentemente de qualquer situação. Para Tomás, assim para Aristóteles, “a justiça é toda a ética. Ser ético é praticar a 94 Ibid., I-II, q. 56, a. 6. 95 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 209-230. 96 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I-II, q. 57, a. 2. 97 Ibid., I-II, q. 57, a. 5. 98 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 479.

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justiça”;99 a temperança controla a conduta interna do homem, bem como regula as paixões – em particular aquelas oriundas da sexualidade100 –, subordinando-as à razão. Como a virtude da moderação e do autodomínio, visa, portanto, equilibrar e moderar as paixões;101 já a fortaleza regula as paixões que comprometem a ação, subordinando-as, também, à reta razão. Estas três virtudes, junto à prudência,102 compreendem-se como virtudes cardeais: elas “regulam toda a conduta humana, na medida em que esta participa da vida racional. A razão é aperfeiçoada pela prudência, a vontade pela justiça, a parte concupiscível da alma pela temperança e a parte irascível pela fortaleza”.103 Tomás considera essas quatro virtudes morais, portanto, como cardeais. A virtude, em geral, é a virtude humana, e ela é compreendida como perfeita razão, que exige a retidão do apetite. Encarregam-se desse ofício as virtudes morais, considerada nessa esteira a prudência. Quanto ao sujeito, as virtudes intelectuais são mais importantes que as morais. Estas, por sua vez, quanto à razão de virtude, são mais importantes (que às intelectuais), pelo fato de visar o bem, que é o objeto do apetite.104

99 PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história, p. 93. 100 Ibid,. I-II, q. 60, a. 5. 101 PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história, p. 92. 102 Para Tomás de Aquino “deve-se dizer que a prudência é uma virtude essencialmente intelectual, mas por sua matéria é comum com as virtudes morais, porque, segundo já se disse, é a reta razão do agir. Nesse sentido, é enumerada entre as virtudes morais”. Ibid., I-II, q. 58, a. 3. 103 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 480. Compreende Tomás que “a virtude humana é um hábito que aperfeiçoa o homem, para proceder bem. Ora, os atos humanos só têm dois princípios, ou seja, o intelecto ou a razão e o apetite. São eles, como se diz no livro III da Alma, os dois motores do homem. É preciso, pois, que toda virtude humana aperfeiçoe um desses dois princípios. Se for virtude que aperfeiçoa o intelecto especulativo ou prático para o bom agir do homem, a virtude será intelectual; se aperfeiçoar a potência apetitiva, será virtude moral, donde se conclui que toda virtude humana é intelectual ou moral”. AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I-II, q. 58, a. 3. 104 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I-II, q. 61, a. 1.

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A prudência (phronesis - prudentia), de acordo com Tomás de Aquino – assim como Aristóteles – é a mais importante das virtudes.105 Tomás a considera – em razão da leitura da tradição filosófica com o ethos cristão – “como recta ratio que aconselha, julga e preceitua o agir moral em vista do verdadeiro fim da vida humana [...] e é coroada com o dom do conselho”.106 Ainda, ela é a virtude da deliberação e de responsabilidade pessoal; pode até ser chamada de virtude do bom senso.107 Assim, em Tomás, a prudentia “passa a ser a norma próxima objetiva do agir moral, exercendo uma função mediadora entre a objetividade da lei [que será tratado a seguir] e o ato subjetivo da decisão”.108 3.3. As leis Como apresentado, as virtudes regulam a vida interna do homem; cabe à lei regular sua vida externa. Nesse horizonte, prosseguimos com a reflexão ética de Tomás sobre a lei. E iniciamos com a análise sobre a (a) natureza da lei.109 Antes, porém devemos entender que Tomás, ao investigar sobre a essência da lei, está em busca de “explicitar e fundamentar as propriedades que irão conferir à realidade intencionada pelo agir ético o caráter normativo que a constitui como estrutura objetiva do mesmo agir e, portanto, como horizonte permanente da existência ética”.110 O Aquinatense compreende por lei a regulação ou preceito referente às ações do homem, como uma regra ou medida dos atos, dita o que o sujeito deve ou não fazer.111 Como a razão é a norma suprema dos atos do homem – porque ordenar é próprio 105 Ibid., I-II, q. 61, a. 2. 106 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 239. 107 PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história, p. 92. 108 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 239. 109 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 480. 110 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 234. 111 Ibid., p. 234.

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da razão –, só pode a lei, em última instância, reduzir-se a ela, apresentando-se como uma reta formulação das exigências racionais. Não pode a lei existir senão com base na razão.112 A lei, por sua vez, não deve ser inscrita para vantagens particulares, mas para o uso comum dos cidadãos, isto é, para um fim comum. Pois, a lei, pela sua própria natureza “tem um caráter universal designado pelo seu objeto que é o bem comum”.113 Ora, o fim dos atos humanos é a felicidade ou a bem-aventurança, donde se segue que a lei – que é a norma daqueles atos – deve visar a felicidade e, por isso, o bem-estar da coletividade. E a lei, ordenando-se para o bem comum, deverá ser aplicável aos fins particulares.114 Ainda: dado que a lei provém do povo, visto que é a sua constituição, não pode ela proceder de qualquer pessoa. E como a lei visa a ordenação ao bem comum, tal ordenação é ou para todos ou para alguém que faz as vezes de todos, a pessoa pública.115 Tomás adverte que as leis se constituem, de fato, quando promulgadas. É nessa condição que elas poderão ter força para ordenar a sua observância. E, para isso, devem as leis ser conhecidas pelos homens da comunidade. Afirma Tomás que a lei “não é outra coisa que uma ordenação da razão para o bem-comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade”.116 Nesta definição, Tomás explicita “a causa formal (universalidade como ordenação da razão), a causa final (o bem comum) e a causa eficiente (a promulgação pela autoridade legítima) da lei”.117

112 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I-II, q. 90, a. 1. 113 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 235. 114 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I-II, q. 90, a. 2. 115 Ibid., I-II, q. 90, a. 3. 116 Ibid., I-II, q. 90, a. 4. 117 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, p. 236.

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Visto que a lei deve direcionar-se à comunidade, apresentamos agora (b) as várias classes de lei,118 como pensadas por Tomás de Aquino. Ora, tanto são as leis quanto são as comunidades. E Tomás não tem dúvida que a primeira e maior das comunidades é aquela governada por Deus. Ele, o legislador supremo (ou fim objetivo), é o fim último de todas as coisas. n’Ele, o homem encontra gozo e felicidade, que é um bem subjetivo.119 Sua lei, por ser eterna e suprema, chama-se lei eterna. Se o mundo é regido pela providência divina, e o é, como compreende o Aquinatense, toda a comunidade terrestre é governada pela razão divina. “E porque a razão divina nada concebe no tempo, mas tem o conceito eterno, como é dito no livro dos Provérbios, segue-se que é necessário que tal lei eterna seja dita eterna”.120 Em sua célebre obra Suma contra os Gentios, Tomás afirma que todo governante busca, por meio da lei, dirigir os homens para o seu fim. Ora, o fim visado por Deus é Ele mesmo. Portanto, a lei divina visa ordenar o homem para Deus, porque o fim do homem é a sua união com Deus e nisto está a felicidade.121 A lei divina manifesta-se ao homem em sua própria natureza, isto é, em sua natureza humana; ela, naturalmente, se inclina para aquele que é o seu verdadeiro e fim último, Deus, certa de participar da providência divina e, por isso, capaz de conhecer, de forma imediata, as normas últimas do agir. Essa participação, da lei eterna na criatura racional, se chama lei natural – “pois Ele [Deus] estabeleceu a lei eterna e dentro dela fixou os conteúdos 118 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 481. 119 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética, p. 279. A ética tomasiana é o resultado do pensamento ético aristotélico com a perspectiva teológica cristã. Ao considerar, todavia, a felicidade com um bem para o homem e, por isso, um bem subjetivo, afasta-se de Aristóteles, para quem a felicidade é o fim último. Mas, com Aristóteles, concebe que o conhecimento é meio eficaz para se alcançar o fim último. Este assento intelectualista demonstra a aproximação do Aquinatense com o autor da Ética a Nicômaco. Ibid., 179. 120 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I-II, q. 91, a. 1. 121 Id. Suma contra os gentios. Trad. Odilão Moura. Campinas: Ecclesiae, 2017, III, 115.

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gerais da verdadeira moral como lei natural”122 –, compreendida como aquelas operações da razão e da vontade conforme a natureza humana. Assim, o homem é capaz, por exemplo, de entender o bem e o mal. Considerada a inclinação do homem para a verdade, deve ele buscar constantemente a verdade, particularmente sobre Deus. Considerada, ainda, sua inclinação à convivência com os outros (sociedade), deve o homem não praticar o mal, quer dizer, não ofender o seu próximo e viver de acordo com o bem último, que é Deus: “daí se evidencia que a lei natural nada mais é que a participação da lei eterna na criatura racional”.123 Nessa perspectiva, apresenta-se o supremo princípio moral: fazer o bem e evitar o mal. Ele se origina da própria natureza humana, que só pode buscar a felicidade e o bem; por isso, constantemente o homem procura distanciar-se de tudo aquilo que o prejudica. Suas inclinações estão direcionadas, primeiramente, às coisas básicas da natureza, como o desejo de existir, procriar etc., inclinações essas também presentes nos animais irracionais. Também, o homem tem desejos próprios, espirituais e exclusivos, como o de conhecer, buscar a justiça e o bem etc. “Portanto, a lei natural ordena aquilo que é absolutamente essencial e mínimo para que o homem viva segundo o seu bem, que é a felicidade”.124 Tomás (então) considera que o homem, pela lei natural, participa da lei divina, ainda que de maneira geral – quer dizer, de modo imperfeito –, dados alguns princípios comuns: da razão do legislador, Deus, o homem reconhece as disposições mais particulares para a sua ação, em especial para com o próximo. Tais disposições, descobertas de acordo com a razão humana, compreendem-se como leis humanas.125 Resultam, daqui, algumas orientações práticas: primeiro, as leis humanas não 122 CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética, p. 65. 123 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I-II, q. 91, a. 2. 124 PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história, p. 88. 125 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I-II, q. 91, a. 3.

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podem contradizer as leis naturais. Deverão, por conseguinte, combater todo tipo de vício, tudo aquilo que corrompe a lei natural; segundo, deve o legislador combater, também, todo comportamento vicioso que deturpa a lei natural. Sem o combate constante aos vícios, não poderá a sociedade manter-se viva ou durar no tempo.126 Elas, a lei natural e a lei humana, para a direção da vida humana, se constituem na lei divina: faz-se “necessário que de modo mais elevado seja o homem dirigido para o único fim sobrenatural. E assim acrescenta-se a lei divinamente dada, pela qual a lei eterna é participada de modo mais elevado”.127 Só pode o homem, ao procurar agir de acordo com a lei, tornar-se bom, pois, o efeito da lei consiste em tornar o homem bom.128 A lei eterna, que é a suma razão, está diante do homem, e deve ele sempre sujeitar-se a ela. Ora, Deus, em sua perfeita sabedoria, criou todas as coisas, donde se segue que Ele governa toda a ação das coisas criadas, singulares. E como n’Ele todas as coisas estão regidas para um fim, que é Ele mesmo, n’Ele obtém-se razão de lei. “E segundo isso, a lei eterna nada é senão a razão da divina sabedoria, segundo é diretiva de todos os atos e movimentos”.129 No homem, esta lei, eterna, pode ser conhecida, já que n’Ele, ela foi impressa. Ora, indaga Tomás, que uma coisa ou pode ser conhecida nela mesma ou a partir dos seus efeitos. E tal é o Sol, não dado a conhecê-lo em sua substância, mas por sua radiação. Assim também, deve-se dizer que ninguém pode conhecer a lei eterna em si mesma, a não ser os bem-aventurados, mas a sua radiação, ao qual toda criatura humana pode alcançar. Todo homem, portanto, em graus diferentes, pode conhecer e participar dessa verdade e, por isso, 126 PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história, p. 88. 127 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I-II, q. 91, a. 4. 128 Ibid., I-II, q. 92, a. 1. 129 Ibid., I-II, q. 93, a. 1.

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conhecer, também em graus diferentes, a lei eterna.130 E desta lei, por sua vez, todas as leis procedem. Sublinha Tomás que em todos os moventes, um primeiro move o segundo, do qual move os demais, de tal forma que o segundo não move, a não ser enquanto é movido por um primeiro movente. E assim é o governo: a razão do governo procede daquele que governa, governando seus súditos que, necessariamente, dependem do seu governador. Ora, todas as coisas se direcionam para o seu fim último, Deus; D’Ele todas as coisas procedem, donde deve o homem reconhecer a lei eterna. Nesse sentido, “como a lei eterna é a razão de governo no governante supremo, é necessário que todas as razões de governo que estão nos governantes inferiores derivem da lei eterna”.131 Portanto, as leis derivam, em sua última instância, da lei eterna, verdadeira e única, de onde se chancela sua nobreza e validade. Encerramos, agora, a estrutura do pensamento ético de Tomás de Aquino com a reflexão sobre (c) a sanção da lei: prêmio e castigo.132 A sanção, inicialmente, pode ser mal interpretada caso alguém a compreenda como algo apenas coercitivo, extrínseco à lei. Não obstante, ela decorre da natureza própria do homem e, por isso, deve ser observada. Tomás compreende que tanto o comportamento das coisas naturais quanto a conduta do homem devem observar a ordem prescrita das coisas. Mas aos homens, o comportamento da ordem depende do seu livre arbítrio, o que não é possível com as coisas naturais. Assim, o bem dos seres depende da conservação à reta ordem natural, o contrário, produz-se o mal. Nos homens, de maneira semelhante, a disposição à reta ordem natural promove o bem enquanto a sua abnegação, o mal. Mas como o homem é dotado de livre arbítrio, as consequências do seu ato não correspondem à necessidade natural, mas à sua atividade humana, pessoal. 130 Ibid., I-II, q. 93, a. 2. 131 Ibid., I-II, q. 93, a. 3. 132 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 481.

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Por isso, a sansão deve dirigir-se ao homem, em particular. Compreende Tomás, nesse horizonte, que as ações humanas são ou punidas ou premiadas por Deus.133 E isto quer dizer: Deus nutriu o homem de uma ordenação para o fim, que é o bem. Caso ele haja retamente, em direção ao fim, deverá alcançá-lo e a ele será dado a premiação, ao contrário, caso desvie-se do fim, deverá ser punido.134 Conclusão A história da filosofia Ocidental é marcada, sem dúvida, pela fusão da filosofia grega com a teologia cristã. Mais do que um revestimento de linguagem e de concepções teóricas, essa tentativa não somente fundamentou, mas sustentou (e até hoje) o pensamento cristão-católico, em suas grandes linhas. Agostinho e Tomás de Aquino são os dois maiores representantes desse horizonte filosófico, de encontro da fé com a razão: o primeiro, ao construir uma filosofia com base em Platão; o segundo, em Aristóteles. Este marco é tão evidente que a filosofia patrística, dos primeiros séculos da era cristã – onde se encontra Agostinho –, e a filosofia escolástica, com destaque nos séculos XI-XIII – particularmente com Tomás de Aquino –, sobreviveram com total autoridade até a filosofia moderna, com Kant, onde se dá o rompimento do pensamento cristão, portanto da teologia (fé) com as ciências (razão). A fé deixa de ter primazia sobre a razão, como até então sustentado. Ao contrário, a razão encontra autonomia e a ética, até então verticalizada, encontra seu fundamento no próprio humano. Sobre esta verticalização, cabe aqui destacarmos: a) a filosofia cristã, de fato, verticalizou a metafísica, tornando o conceito de ser (abstrato e universal) a realidade divina 133 Suma contra os gentios, III, 115. 134 Ibid., III, 140.

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pessoal (Deus). Sobre esta adaptação, a Sagrada Escritura exerceu total influência; b) esta verticalização se deu, propriamente, com a ética. Como em Agostinho, a moralidade consiste em o homem buscar constantemente a verdade, a bondade e a beleza, que é Deus, fim último do homem e nisso consiste sua bem-aventurança. Da mesma forma sustentou Tomás de Aquino e ao conceber que o homem, ao sair de Deus, para ele deve voltar; c) a metafísica, assim verticalizada, potencializou o conceito de analogia, extraído da filosofia grega, em que, por meio de semelhanças e diferenças dos seres, pensava-se em sua definição. Agostinho e Tomás de Aquino acentuaram a compreensão do humano a partir de sua semelhança com Deus, assim o homem dotado de inteligência e vontade, imagem, portanto, do seu Criador.135 Em suma, Agostinho e Tomás de Aquino inscreveram na história da filosofia as mais belas páginas sobre o pensamento cristão católico, de profunda reflexão filosófico-teológica. Particularmente sobre a ética, que foi o objeto de investigação deste capítulo, souberam articular uma antropologia à moralidade, à luz da fé e da razão e, assim, pensar o agir do homem que, na sua condição natural, só pode direcionar-se ao seu Bem último, Deus. Referências AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus. Trad. Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: São Francisco, 2003. _____. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1999. _____. O livre-arbítrio. Trad Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995.

135 PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história, p. 78.

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ALMEIDA, Frederico Soares de. O amor como elemento fundamental na ética de Santo Agostinho. Pensar – Revista Eletrônica da FAJE, v. 5, n. 1, 2014. AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Vol. 2. Trad. Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2002. _____. Suma Teológica. Vol. 3. Trad. Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2003. _____. Suma Teológica. Vol. 4. Trad. Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2005. _____.Suma contra os gentios. Trad. Odilão Moura. Campinas: Ecclesiae, 2017. BÍBLIA de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002. BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 2007. CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética. Trad. Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2013. MATTOS, José Roberto Abreu de. Ética agostiniana. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, v. 19, n. 73, p. 121, jan./mar, 2011. PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história. Petrópolis: Vozes, 2006. SIDGWICK, Henry. História da Ética. Trad. Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2010. TORRELL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino – sua pessoa e obra. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2004. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Trad. João Dell’Anna. Rio de Janeiro, 2003.

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8 - Ética Deontológica na modernidade José Marcos Miné Vanzella1 Introdução A modernidade implicou em um conjunto de importantes acontecimentos que modificaram profundamente a vida das pessoas e sua forma de pensar. A superação do feudalismo, a formação dos Estados nacionais, a reforma protestante, o crescimento do comércio, as grandes navegações, o processo de industrialização e a expansão do capitalismo colocaram as pessoas em confronto com um novo mundo. Não só o novo mundo de povos distantes e de outros costumes, línguas e religiões diferentes, mas um novo mundo em próprio solo europeu. Trata-se de uma forma de viver muito diferente daquela tradicional vinculada ao feudo. A moral católica sofre significativas alterações. O problema ético ganha em complexidade na modernidade. As relações sociais se globalizam; e as pessoas de credo, cultura e regimes sociopolíticos diferentes precisam conviver. Surge a necessidade de desenvolver novas concepções teóricas para dotar as pessoas de um “melhor” discernimento ético frente aos novos problemas. Ao lado da tradicional ética teleológica desenvolvem-se as éticas deontológicas. O termo deontologia foi criado por Jeremy Bentham, com o significado de ciência da moralidade. O próprio autor desenvolve uma proposta de ética da consequência, que foi chamada de utilitarismo, em função de seu princípio fundamental. A deontologia, entendida como ciência da moralidade, possui outra vertente importante, fundada pelo pensador alemão Immanuel Kant. Para o autor, a ética e toda ciência normativa 1 Prof. Dr. José Marcos Miné Vanzella, docente do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL.

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estão fundamentadas na liberdade humana, a qual deriva de sua natureza e faculdade racional, através da qual o homem é capaz de se dar leis universais de conduta. Por isso, também pode julgar seus atos conforme sua validade universal. A ética do discurso, através da comunidade de argumentação – no contexto da contemporaneidade –, procura uma síntese capaz de superar as parcialidades e integrar contribuições das éticas anteriores, com o intuito de satisfazer as necessidades de uma sociedade formada por pessoas singulares, livres e iguais, com visões de mundo e concepção de bem diferentes, mas que precisam conviver. 1. A deontologia utilitarista de Jeremy Bentham Jeremy Bentham nasceu em Londres em 1748, bacharelou-se aos 15 anos. E em 1789, ano da Revolução Francesa, publicou “Uma introdução aos princípios da moral e da legislação”, sua maior obra teórica, que o levou a ser considerado o fundador da escola de filosofia inglesa chamada de “Utilitarismo”. Bentham permanece na esteira do empirismo inglês, corrente de pensamento que busca o rigor do conhecimento baseando-se nas experiências sensíveis e no uso limitado da razão. Por isso, pretende fundar uma nova forma de abordar os problemas éticos, criando sua ciência da moral, chamando-a de “deontologia”. Ele afirma: “a natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois soberanos: a dor e o prazer”.2 É importante entender que o prazer é expressão sensível da felicidade; a dor, da infelicidade. Dor e prazer são sensações. Por isso, em oposição ao direito natural, entende-se que a felicidade geral é alcançada pelo cálculo hedonístico (cálculo dos prazeres). Assim Bentham desenvolve uma teoria da utilidade da ação, comprovável na experiência. 2 BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: Os Pensadores. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 3.

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O objetivo do sistema de Bentham é construir o edifício da felicidade através da razão e da lei, a partir do princípio da utilidade. Em suas palavras: O termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer coisa, propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade […], a impedir que aconteça o dano, a dor , o mal ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em pauta; se esta parte for a comunidade em geral tratar-se-á da felicidade da comunidade, ao passo que, em se tratando de um indivíduo particular, estará em jogo a felicidade do mencionado indivíduo.3

Bentham entende que é inútil falar do interesse da comunidade sem compreender qual o interesse dos indivíduos. Por esse motivo, para esclarecer as ações que são realmente desejáveis, por ampliar a felicidade e evitar a dor, tanto para a ciência da moral quanto para o direito, é necessário o direito de livre discussão e crítica das ações e instituições, como condição da confecção de uma legislação que promova a maior felicidade para o maior número de pessoas. Para Bentham, uma ação está em “conformidade com o princípio de utilidade, quando a tendência que ela tem a aumentar a felicidade for maior do que qualquer tendência que tenha a diminuí-la”.4 Os motivos para o agir são bons quando levam à harmonia e à felicidade e maus, quando levam ao desequilíbrio e à dor. Quando se pergunta: que sentimentos devem ser preferidos? A resposta é o prazer, segundo sua intensidade, duração, proximidade, certeza, fecundidade e pureza. Bentham desenvolve conforme estes critérios meios para calcular a utilidade da ação. 3 Ibid., p. 4. 4 Ibid., p. 4.

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Os prazeres são, portando, graduados como mais intensos ou menos intensos. Ganhar uma copa do mundo traz para o jogador de futebol um prazer muito mais intenso que vencer uma simples partida. Os prazeres também podem durar mais ou menos. A obtenção de um título universitário dura a vida toda. Há prazeres intensos que duram alguns minutos apenas. Há prazeres próximos, muitos até imediatos; outros, são distantes, como o “sonho” de um jovem ser juiz, antes de ingressar em uma faculdade de Direito. Há prazeres que são certos, como almoçar em um restaurante conhecido; outros, são incertos, como escolher um restaurante e um prato desconhecidos em viagem. Quanto à fecundidade, pode-se dizer que a realização de uma ação, como por exemplo tornar-se juiz, pode trazer uma série de outros prazeres, ao passo que outros prazeres se estinguem, praticamente em si mesmos, como um delicioso prato. Quanto à pureza, há prazeres que podem ser obtidos com muita dor e esforço, enquanto outros não. Novamente, o exemplo de tornar-se juiz ou campeão em um determinado esporte, como o “ufc”, se encaixam, pois, é necessário muito esforço físico e mental, os quais exigem a privação de muitos prazeres. Em muitos casos ficam sequelas, físicas e mentais. Como pode ser observado, Bentham estabelece critérios para julgar se uma ação é boa ou não conforme o princípio da utilidade e com isso procura estabelecer uma ciência da ética. 2. A deontologia de Immanuel Kant O grande nome da ética deontológica no pensamento alemão é Immanuel Kant. Ele publica os livros: Fundamentos da Metafísica dos costumes (1785) e três anos depois, a Crítica da razão Prática (1788). Como se pode observar, ele está no mesmo período de Bentham e antevéspera da Revolução Francesa, que eclode em 14 de julho de1789.

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Kant é o que se pode chamar de um filósofo paradigmático, pois, foi capaz de pensar com coerência e rigor uma nova teoria e método para investigar as questões dos costumes e fundamentar uma nova forma racional de abordar as questões morais. Marcio Renan Hamel aponta como Kant divide a filosofia: A filosofia formal denomina-se lógica; a filosofia material, porém, que se ocupa de determinados objetos e das leis a que eles se submetem, se divide em duas, pois que tais leis ou são leis da natureza ou leis da liberdade. Para Kant, a ciência dos primeiros denomina-se física e a dos segundos, ética; aquela costuma ser também chamada teoria da natureza e esta teoria dos costumes.5

O estudo da parte empírica da ética é, na concepção de Kant, precedido da análise da metafísica dos costumes, necessária “para a construção de uma filosofia moral pura, que externe os fundamentos da obrigação contidos na lei moral”.6 Para que o ser humano exerça realmente sua liberdade e se dê as próprias normas de comportamento, ele precisa conhecer seus fundamentos teóricos, depurados de sua dimensão material sensível. Assim, a ética deontológica é concebida por Immanuel Kant como uma Metafísica dos costumes. O termo Metafísica indica o estudo dos fundamentos racionais. O estudo é depurado de seus elementos empíricos e isso em notável oposição ao trabalho de Bentham. Por esse motivo, ele muda o foco da abordagem e verifica apenas a validade da máxima da ação conforme a universalidade da razão prática.7 Ou seja, a ação 5 RAMEL, Marcio Renam. Da ética kantiana à ética habermasiana: implicações sociojurídicas da reconfiguração discursiva do imperativo categórico. Katalysis, Florianópolis, v. 14, n. 2, jul./dez, 2011, p. 165. 6 Ibid., p. 165. 7 Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições

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válida é aquela que pode ser transformada em lei. Surge dessa maneira a ideia de uma crítica da razão pura prática.8 2.1. Do conhecimento vulgar à moral popular e à metafísica dos costumes Na Metafísica dos costumes Kant parte do conhecimento vulgar para a determinação de seu princípio. Transita assim da filosofia moral popular para a metafísica dos costumes e desta para a crítica da razão pura prática. Ao fazer a transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico, Kant entende que a razão deve produzir uma vontade boa em si mesma. Para ele, a representação da lei em si mesma – que só se realiza no ser racional –, ao determinar a vontade, poderá constituir o bem excelente. Por isso afirma: Devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal. Aqui é pois a simples conformidade à lei em geral (sem tomar como base qualquer lei destinada a certas ações), o que serve de princípio à vontade, e também o que tem de lhe servir de princípio, para que o dever não seja por toda parte uma vã ilusão e um conceito quimérico; com isto está perfeitamente de acordo a comum razão humana nos seus juízos práticos e tem sempre diante dos olhos este princípio.9

Em um trecho mais adiante ele explica o dever: “a necessidade das minhas ações por puro respeito à lei prática é o que constitui o dever, perante o qual tem de ceder qualquer outro motivo, porque ele é a condição de uma vontade boa em si cujo 70, 2007, p. 15-16. 8 Ibid., p. 18. 9 Ibid., p. 33.

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valor é superior a tudo”.10 Portanto, para atingir uma vontade boa em si o entendimento vulgar deve excluir das leis práticas todos os móbiles sensíveis. A partir deste ponto, em que se atinge o entendimento do dever e sua ligação com uma vontade boa em si, Kant pode dar início, na segunda seção, à transição da filosofia moral popular para a metafísica dos costumes. Na segunda seção da Metafísica dos costumes Kant reconhece que é duvidoso que as coisas aconteçam por dever. Porém, ele deixa claro, independente disso: a questão é saber “que a razão por si mesma e independente de todos os fenômenos ordena o que deve acontecer”.11 Adverte que o conceito de Deus, como bem supremo, é tirado da ideia que a razão traça a priori da perfeição moral e que está ligada indissoluvelmente ao conceito de vontade livre e, por fim, que todos os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente a priori na razão. Entendendo que as leis morais devem valer para todo ser racional em geral, é do conceito universal de um ser racional que também devem ser deduzidas.12 Kant diferencia os seres racionais dos demais e conceitua a vontade nos seguintes termos, “tudo na natureza age segundo leis; só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis, é necessário a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática”.13 Segue com outras definições como as de mandamento e imperativo:

10 Ibid., p. 35. 11 Ibid., p. 41. 12 Ibid., p. 46. 13 Ibid., p. 47.

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A representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se imperativo. […] Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever (sollen), e mostram assim a relação de uma lei objetiva da razão para uma vontade que segundo a sua constituição subjetiva não é por ela necessariamente determinada (uma obrigação).14

Kant entende que imperativos são fórmulas para exprimir a relação entre leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser racional, como o ser humano, que está sujeito também a outras inclinações. Ele ainda distingue o imperativo hipotético, “quando a ação é boa para qualquer outra coisa”, do imperativo Categórico, “quando é necessária numa vontade em si conforme a razão como princípio dessa vontade”15. Distinguindo sua concepção moral da questão da felicidade e da prudência, Kant compreende que “o essencialmente bom na ação reside na sua disposição seja qual for o resultado”.16 Por isso afirma: o imperativo categórico é, portanto, só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. Desse único imperativo pode-se derivar todos os imperativos do dever. Poderia também exprimir-se assim: age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza.17

14 Ibid., p.48. 15 Ibid., p. 50. 16 Ibid., p. 52. 17 Ibid., p. 59.

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Através do imperativo categórico, a pessoa verifica a validade de sua ação. Paul Ricoeur adverte que a moral kantiana é uma síntese da moral comum, considera que só podem ser consideradas obrigatórias as máximas de ação que passam na prova de universalização. Por isso não é necessário considerar o dever inimigo do desejo, entendendo ser legítimo assumir o imperativo categórico dentro de certos limites.18 Ele entende que a ética fundamental de Aristóteles, que é teleológica, e a ética deontológica de Kant não são rivais, mas se interseccionam.19 São para Ricouer, de fato, complementares. Por conta de suas habilidades racionais e morais, o homem para Kant existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. “O fundamento deste princípio é: a natureza racional existe como fim em si. É assim que o homem se representa necessariamente a sua própria existência; e, neste sentido, este princípio é um princípio subjetivo das ações humanas”. 20 Por isso, Kant afirma na sequência uma terceira fórmula do imperativo categórico: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.21 Portanto, para o autor toda vontade humana seria legisladora universal por meio de suas máximas, chegando a compreensão do princípio da autonomia da vontade, que significa que o homem está obrigado a agir conforme sua própria vontade, a qual segundo o fim natural é legisladora universal.22 Este princípio está em oposição ao princípio de uma heteronomia 18 RICOEUR, Paul. O justo. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins fontes, v.2, 2008, p. 50. 19 Ibid., p. 55. 20 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 69. 21 Ibid., p. 69. 22 Ibid., p. 75.

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da moral tradicional: uma moralidade recebida de fora, o que gerou grande oposição ao pensamento de Kant. A compreensão do ser racional como legislador universal através das máximas de sua vontade leva o autor a um outro conceito, o de um reino dos fins. “Seres racionais estão todos submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si”.23 Chega-se, então, ao conceito de moralidade: “a moralidade é, pois, a relação das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal, possível por meio de suas máximas”.24 Kant conclui da exposição da moralidade o princípio fundamental da dignidade humana. “Portanto, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas que têm dignidade”.25 E afirma a autonomia da vontade como princípio supremo da moralidade. 2.2. O conceito de liberdade e o fato da razão Kant, após estabelecer a crítica à moral heterônoma, mostra que o conceito de liberdade é a chave da explicação da autonomia da vontade. Já na terceira seção, transição da Metafísica dos costumes para a Crítica da razão prática pura, ele afirma: “a vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem”.26 Para Kant a razão pura prática, em si mesma, é imediatamente legisladora. Ao identificar a vontade como uma espécie de causalidade dos seres vivos racionais, Kant apresenta que a razão pura pode ser prática, isso significa que ela pode mover a vontade. Georges 23 Ibid., p.76. 24 Ibid., p. 84. 25 Ibid., p. 84. 26 Ibid., p.93.

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Pascal explica: “a razão pura pode ser em si mesma prática, precisamente porque determina a vontade sem que entrem em jogo móbiles externos, bastando a pura forma da lei, expressa pelo imperativo categórico”.27 Por isso o ser humano é livre e responsável por seus atos. Há um nexo interno entre moralidade e liberdade, que Nodari explicita nos seguintes termos: “logo se a lei moral não fosse pensada pela razão humana não haveria possibilidade de admitir a liberdade e se não haveria lei moral, já que a liberdade funda a lei moral e a lei moral prova a liberdade”.28 Kant, porém, adverte que não se trata apenas do ser humano, mas de todo ser racional, e complementa: todo o ser que não pode agir senão sob a ideia da liberdade é, por isso mesmo, em sentido prático, verdadeiramente livre, quer dizer, para ele valem todas as leis que estão inseparavelmente ligadas à liberdade, exatamente como se a sua vontade fosse definida como livre em si mesma e de modo válido na filosofia teórica.29

Na sua obra “Crítica da Razão Pratica”, Kant afirma: “todavia se a razão pura pode ser por si prática, e efetivamente o é, como a consciência da lei moral o acusa, então se trata de uma e mesma razão que, seja de um ponto de vista teórico ou prático, julga segundo princípios a priori...].30 Por ser a priori, acrescenta algo à ação e é fundamento da liberdade. Menotti comenta que a liberdade deve ser pressuposta como propriedade da vontade de todos os seres racionais. Ele 27 PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Trad. Rodolfo Schaefer. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p.130. 28 NODARI, Paulo César. Teoria dos dois mundos e o conceito de liberdade em Kant. Caxias do Sul: Educs, 2009, p. 272. 29 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 95. 30 Id. Crítica da razão Prática. Trad. Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 195.

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entende que a liberdade deve ser demonstrada como pertencente à atividade dos seres racionais em geral e dotados de uma vontade.31 Este é o fato da razão que Kant expressa nos seguintes termos: a lei moral fornece um fato absolutamente inexplicável a partir dos dados do mundo sensível, um fato que anuncia um mundo puro de entendimento, permitindo-nos conhecer alguma coisa dele, qual seja, uma lei. Por esse motivo, Kant também afirma: O único princípio da moralidade consiste na independência de toda matéria da lei (a saber de um objeto apetecido) e, pois, ao mesmo tempo na determinação do arbítrio pela simples forma legislativa universal, da qual uma máxima tem que ser capaz. Mas aquela independência é liberdade em sentido negativo, porém esta legislação própria da razão pura e enquanto tal razão prática, é liberdade em sentido positivo. Portanto a lei moral não expressa senão a autonomia da razão prática pura, isto é, da liberdade e esta é ela mesma a condição formal de todas as máximas, sob a qual elas unicamente podem concordar com a lei prática suprema.32

Assim se compreende que uma vontade em que a simples forma da máxima pode servir de lei, é uma vontade livre. Kant entende que o conceito de liberdade constitui a pedra angular de todo o edifício da razão pura, tanto especulativa quanto prática. Sua possibilidade é demonstrada pelo fato de ser liberdade efetiva manifesta por meio da lei moral. Graças à razão somos conscientes da lei à qual nossas máximas estão sujeitas. Ele sabe que a pessoa pertence ao mundo sensorial e ao mesmo 31 MENOTTI,Camila Ribeiro. A relação entre lei e sentimento moral. In: Atas do XIV Encontro nacional de filosofia - ANPOF, Águas de Lindoia, 2010. 32 KANT, Immanuel. Crítica da razão Prática. Trad. Valerio Rohden. Ed. Martins Fontes, 2008, p. 55-56.

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tempo ao mundo inteligível, e que deve considerar segundo a mais alta destinação.33 Fica claro como a razão pura pode determinar por si mesma a vontade, bem como a realidade objetiva de uma vontade pura, a partir do conceito de um mundo inteligível, que garante o fato da razão. O qual é entendido como a consciência dessa lei fundamental da liberdade transcendental que deve ser concebida independente de todo o empírico. Como afirma Jhon Rawls, “... o objetivo de Kant na segunda Critica é evidenciar que a razão prática pura existe e que é manifesta em nosso pensamento, sentimento e conduta morais: no fato da razão”.34 Kant diferencia o sentimento do respeito dos demais sentimentos nos seguintes termos: “é pelo contrário, um sentimento que se produz por si mesmo através dum conceito da razão e assim é especificamente distinto de todos os sentimentos do primeiro gênero que se podem reportar a inclinação ou ao medo”.35 Com base nesta distinção ele pode esclarecer melhor o sentido de dever: “portanto o conceito de dever exige na ação, objetivamente, concordância com a lei, mas na sua máxima, subjetivamente, respeito pela lei, como o único modo de determinação da vontade pela lei. E disso depende a diferença de ter agido conforme o dever e a de ter agido por dever, isto é, por respeito à lei...”36 A ação moral, em sua causalidade, é aquela por respeito à lei. Assim, dever é necessidade de uma ação por respeito à lei. Desse modo, a razão prática, para o autor alemão: “tem a ver com a vontade que é uma causalidade na medida em que a razão contém o fundamento determinante

33 Ibid., p. 141. 34 RAWLS, John. História da filosofia moral. Trad. Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 307. 35 KANT, Immanuel. Crítica da razão Prática, 2008, p. 195. 36 Ibid., p. 131.

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desta”.37 A partir da compreensão da causalidade da vontade por respeito à lei, pode se compreender como a consciência desta faculdade de uma razão prática pura possa produzir uma consciência de suas inclinações.38 A razão prática pura supõe para Kant os postulados da imortalidade, liberdade enquanto causalidade e existência de Deus. Como afirma o autor: “consequentemente o postulado da possibilidade do sumo bem derivado (do melhor mundo) é ao mesmo tempo o postulado da efetividade de um sumo bem originário.39 Ao falar do fato da razão, como uma causalidade especial da liberdade da vontade na ordem inteligível das coisas, Kant escreve: Esse factum vincula-se indissoluvelmente à consciência da liberdade da vontade, antes, é idêntico a ela; mediante a qual a vontade de um ente racional, que como pertencente ao mundo sensorial se reconhece, do mesmo modo que outras causas eficientes, como necessariamente submetido às leis da causalidade, contudo no domínio prático, por outro lado, a saber, enquanto ente em si mesmo é ao mesmo tempo consciência de sua existência determinável em uma ordem inteligível das coisas.40

Kant, ao afirmar as leis da causalidade, deixa claro que a vontade está sujeita aos móveis empíricos, mas também possui sua existência e participação no reino dos fins, no mundo inteligível e por isso é livre quando segue a lei. Nesse sentido, o dever é um querer que vale para todo ser racional mediante uma razão prática pura. 37 Ibid., p. 145. 38 Ibid., p. 183. 39 Ibid., p. 214. 40 KANT, Immanuel. Crítica da razão Prática, p. 67-68.

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Rawls comenta que para Kant, o fato da razão é a: “nossa consciência comum da lei moral como dotada de suprema autoridade, é fato básico do qual devem partir nosso conhecimento moral e nossa concepção de nós mesmos como seres livres”.41 Kant também entende o direito como: “a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal da liberdade”.42 Por isso enuncia o princípio universal do direito, nos seguintes termos: “qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal”.43 Para ele há apenas um direito inato. “A liberdade (a independência de ser constrangido pela escolha alheia) na medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes”.44 Por este princípio garante ao ser humano ser senhor de si mesmo. O princípio da liberdade introduz a dignidade humana no direito, em função de sua dignidade moral, a qual, por sua vez, tornar-se-á a fonte moral dos direitos fundamentais no século XX. 3. A passagem para a ética do discurso A ética do discurso foi desenvolvida a partir das pesquisas de Karl Otto Apel e Jürgen Habermas. O objetivo aqui é apenas uma breve introdução deste importante ramo da ética deontológica, presente em nossa atualidade.

41 RAWLS, John. História da filosofia moral, p. 299. 42 KANT, Introdução ao Estudo do Direito. Doutrina do direito. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2007, p. 46. 43 Ibid., p. 46. 44 Ibid., p. 53.

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Apel, em sua obra “Transformação da filosofia”,45 apresenta a profunda mudança paradigmática da filosofia, que ocorreu no século XX via filosofias analítica, semiótica, pragmática e hermenêutica. Do conjunto destas filosofias resultou a chamada guinada linguística. Rompendo com o paradigma clássico, o qual entendia a linguagem apenas como um instrumento posterior de transmissão do conhecimento, demonstra-se que ela é um elemento constitutivo necessário, sem o qual operações cognitivas complexas não podem se realizar. Assim como afirmou Wittgenstein no “Tractatus”: o pensamento é a proposição plena de sentido. Trata-se do conhecimento, demonstração e compreensão do papel constitutivo que a linguagem possui na formação dos nossos conhecimentos, pensamentos, narrativas de mundo e produções científicas e culturais. O último capítulo da referida obra de Apel trata do seguinte tema, “o a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética”.46 Ele traz logo abaixo a indicação do problema que o capítulo pretende enfrentar. Trata-se do problema de uma fundamentação racional da ética na era da ciência. O autor busca retomar o propósito de Kant, porém, em um contexto muito mais complexo e distinto. Apel fala do paradoxo referente ao fato de um mundo globalizado e de ações com consequências globais, no qual está ausente uma ética universal. Seu trabalho é uma tentativa de dissolver esse paradoxo através da fundamentação da ética do discurso. A partir das contribuições da filosofia da linguagem, Apel sabe que uma proposição científica para ser considerada cientificamente válida precisa ser aceita pela comunidade de argumentação dos cientistas conforme seus rigorosos critérios de experimentação e validade. Por sua vez, as comunidades dos cientistas possuem uma ética de argumentação, que ele eleva, em seu entendimento de uma mera 45 APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia. 2 Vol. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000. 46 Ibid., p. 407ss.

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condição pragmática, como a concebeu Charles S. Pierce, para uma condição transcendental. Portanto, uma condição constitutiva e necessária da possibilidade da argumentação. Com essa compreensão, Apel coloca a ética da comunidade de argumentação científica como condição da verificação de uma verdade científica. Ora, sabendo que a comunidade científica é apenas um grupo particular de argumentação, Apel eleva o conceito e estende a análise a toda comunidade de argumentação, estabelecendo assim a ética do discurso como fundamento de todo discurso que se pretende racional. Como dito acima, Jürgen Habermas torna-se parceiro de Apel na empreitada da elaboração de uma ética do discurso. Em um de seus escritos ele afirma: “K.-O. Apel e eu empreendemos, nos últimos anos, a tentativa de reformular a teoria moral de Kant no que diz respeito à questão da fundamentação de normas, com recurso aos meios da teoria da comunicação”.47 Habermas explica na sequência o que significa a ética do discurso e as intuições morais que conceitua. Habermas deixa claro que a ética do discurso é uma ética deontológica e afirma: “esta entende a correção de normas ou imperativos em analogia com a verdade de uma frase assertórica”.48 Por sua vez na ética do discurso substitui-se o imperativo categórico pelo chamado princípio D, enunciado nos seguintes termos: Só podem reivindicar validade aquelas normas que poderiam contar com a aprovação de todos os afetados enquanto participantes de um discurso prático. […]. Ao mesmo tempo, o imperativo categórico é despromovido a um princípio de universalização ‘U’ que, em 47 HABERMAS, Jürgen. Ética do discurso. In: Obras escolhidas. Vol. III. Trad. Lumir Nahodil. Lisboa: Edições 70, 2014, p. 105. 48 Ibid., p. 197.

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discursos práticos, assume o papel de uma regra de argumentativa. No caso de normas válidas, os resultados e as consequências colaterais que previsivelmente decorrem de uma observância geral para a satisfação dos interesses de cada um têm de poder ser aceito por todos sem coação.49

Essa fundamentação não se refere ao fato da razão, por levar em conta interesses e consequências. Chama diretamente a atenção, também, que a reflexão passa do paradigma da subjetividade, expresso na primeira pessoa do singular, para o paradigma da intersubjetividade, de uma comunidade de comunicação que atende aos interesses de cada um dos participantes. Fica claro, também, a intenção de garantir, com base nas pressuposições universais da comunidade de comunicação, a correção normativa. Habermas ainda vai abordar o que entende por intuições morais, nos seguintes termos: “gostaria de designar por ‘morais’ todas aquelas intuições que nos informam sobre as melhores formas de nos comportarmos para, com cuidado e consideração, contrariar a extrema vulnerabilidade das pessoas”.50 Deve ficar claro que ao afirmar as intuições, o ponto de partida do autor é o que ele chama o mundo da vida, nosso mundo cotidiano tecido linguisticamente, não ideias ou princípios abstratos. Cuidado, consideração e vulnerabilidade estão referidos ao conceito de pessoa. Isso é importante, porque a ética do discurso coloca as pessoas em seu relacionamento intersubjetivo no centro de sua atenção. Assim, ele escapa de uma abordagem autossuficiente do indivíduo. No seu escrito: “quanto mais a individuação progride, mais o sujeito individual se embrenha numa rede cada vez 49 Ibid., p. 108. 50 Ibid., p. 110.

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mais densa, e, ao mesmo tempo, sutil, de faltas de proteção recíprocas e patentes necessidades de proteção”.51 Por isso, continua mais adiante: “a justiça no sentido moderno refere-se à liberdade subjetiva de indivíduos insubstituíveis; a solidariedade, pelo contrário, refere-se ao bem dos companheiros irmanados numa forma de vida intersubjetivamente partilhada”.52 Habermas se opõe, como Hegel, ao universalismo abstrato da justiça, tanto das abordagens individualistas quanto do direito natural racional de Kant, ao mesmo tempo que rejeita o particularismo concreto do bem comum, como aquele formulado por Aristóteles. Para Habermas: Todas as morais gravitam em torno da igualdade de tratamento, da solidariedade e do bem comum; no entanto, estas noções fundamentais remontam às condições de simetria e expectativas de reciprocidade da ação comunicativa, ou seja, podem ser encontradas nas atribuições mútuas e nas suposições comuns de uma prática quotidiana orientada para o entendimento.53

Nesse sentido, ele pretende que as intuições e pontos de vista das teorias éticas anteriores possam ser alcançados e assumidos na ética do discurso. Por isso, afirma a intenção de que: “a ética do discurso possa atingir o substancial recorrendo a um conceito processual e fazer valer o nexo interno entre os aspectos tratados nas éticas do dever e nas éticas dos bens, da justiça e do bem comum”.54 Isso é muito importante para compreender a relação da ética do discurso com os direitos humanos. Para Habermas, “os direitos humanos encarnam manifestações generalizáveis e, sob o ponto de vista do que 51 Ibid., p. 111. 52 Ibid., p. 112. 53 Ibid., p. 113. 54 Ibid., p. 114.

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todos poderiam querer, podem ser moralmente justificados”.55 Estes direitos, ligados à dignidade humana, constituem substância moral da nossa ordem jurídica. A universalização das normas não conduz à repressão da estrutura da pluralidade, antes, quanto mais se diferenciam interesses e orientações valorativas particulares, mais gerais e abstratas são as normas moralmente justificadas que regulam no interesse de todos os espaços de manobra para a ação do indivíduo. Conclusão Do exposto, deve ficar claro que o desenvolvimento da sociedade moderna, sua complexidade e ampliação das esferas de ação dos indivíduos, exigiu novas respostas aos problemas éticos. As éticas deontológicas procuraram a seu tempo e modo responder a essas novas necessidades. O utilitarismo e a razão pura prática expressam importantes contribuições ainda que parciais. O desenvolvimento das éticas deontológicas culmina com a ética do discurso, que faz um esforço de superação do paradigma da subjetividade, o individualismo, sem perder as conquistas modernas da autonomia e liberdade. Faz um esforço de síntese, que reintegra o sujeito no mundo e seus interesses com a razão, através da comunidade de argumentação. Ela é capaz de lançar luz sobre os problemas atuais das sociedades plurais e articular-se com a defesa da dignidade das pessoas e dos direitos humanos, preservando liberdade e respeito através do teste de universalização que valida a argumentação moral.

55 Ibid., p. 118.

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Referências APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia. São Paulo. Vol. II. Trad. Paulo Astor Soethe: Loyola, 2000. BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: Os Pensadores. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1989. HABERMAS, Jürgen Ética do discurso. In: Obras escolhidas. Vol. III. Trad. Lumir Nahodil, Lisboa: Edições 70, 2014. KANT, Immanuel. Crítica da razão Prática. Trad. Valerio Rohden. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70. 2007. KANT, Immanuel. Introdução ao Estudo do Direito. Doutrina do direito. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2007. MENOTTI, Camila Ribeiro. A relação entre lei e sentimento moral. In: XIV Encontro nacional de filosofia – ANPOF. Atas, Águas de Lindóia, 2010. NODARI, Paulo César. Teoria dos dois mundos e o conceito de liberdade em Kant. Caxias do Sul: Educs, 2009. PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Trad. Rodolfo Schaefer. São Paulo: Martins Fontes, 1985. RAMEL, Marcio Renam. Da ética kantiana à ética habermasiana: implicações sociojurídicas da reconfiguração discursiva do imperativo categórico. Katalysis, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 164-171, jul./dez. 2011. RAWLS, John. História da filosofia moral. Trad. Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes 2005. RICOEUR, Paul. O justo. Vol. 2. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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9 - Ética utilitarista e seu impacto na sociedade Antonio Wardison C. Silva1 Sérgio Augusto Baldin Júnior2 Introdução O utilitarismo foi concebido no século XVIII por David Hume, ao indagar se os princípios morais devem ser avaliados pelas utilidades que eles promovem. Não obstante, os traços característicos dessa perspectiva filosófica são encontrados na Grécia Antiga, com Epicuro (341-271/70 a.C.) e seus seguidores; depois, nos trabalhos de John Lock (1632-1704); dos ingleses Richard Cumberland (1631/32-1718) e de John Gay (16851732); como também do irlandês Francis Hutcheson (16941746), este criador da famosa máxima: a melhor ação é a que busca a maior felicidade para o maior número de indivíduos. As vertentes do utilitarismo ganham força no século XIX, com os ingleses Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Com Bentham e Mill a perspectiva utilitarista da ética é definitivamente formulada.3 No século XX ela desenvolve-se com Urmson, Smart, Brandt e Lyons.4 1 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP; Pró-reitor de Extensão, Ação Comunitária e Pastoral do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL. 2 Salesiano padre, Coordenador da Missão Institucional (CMI); Coordenador do Curso de Filosofia; Professor de Lógica, Filosofia Moral, Filosofia da Linguagem, Estética e Antropologia Teológica do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL; Professor de Acompanhamento Espiritual na Pós-Graduação do UNISAL – Campus Pio XI; Mestre em Filosofia com ênfase em ciências históricas e antropológicas pela Università Pontificia Salesiana de Roma; Pós-Graduado em Counseling pelo IATES – Curitiba. 3 SANTOS, Paulo Vinícius Borges. Utilitarismo: a ética baseada na consequência do ato. Revista Outras Palavras, v. 13, n. 1, p. 15-16, 2017. Disponível em: http://revista. faculdadeprojecao.edu.br/index.php/Projecao5/article/view/761. Acesso em: 12 ago. 2020. 4 CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética. Trad. Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2013, p. 75.

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Compreende-se o utilitarismo como uma perspectiva ético-filosófica que avalia as ações com base nas consequências produzidas – quer dizer, o maior bem gerado deverá constituir a ação correta. E esse é o parâmetro para a validade moral. O utilitarismo tem o objetivo, então, de gerar a felicidade para o maior número de pessoas, opondo-se ao egoísmo e ao sofrimento. A ação é valorada pela utilidade proporcionada, independentemente da motivação do autor do ato. A dor será sempre significada como um mal; a dor causada ao outro tem como consequência o sofrimento de todos. Nesse sentido, o utilitarismo tenta evitar a dor; só a consente em vista de evitar uma dor maior.5 O presente capítulo, nesse horizonte, tem a finalidade de, com base em Bentham e Stuart Mill, explicitar a perspectiva filosófica do utilitarismo, sua natureza e método, bem como avaliar seu impacto na sociedade, como uma perspectiva filosófica de notável expressão nos dias atuais, dados seus desdobramentos e aplicabilidade. 1. A perspectiva utilitarista O utilitarismo consiste em um modo de pensar e agir em referência aos problemas morais. Se de um lado esta perspectiva filosófica tem suscitado admiração por muitos; do outro, tem despertado rejeição. Seus defensores consideram louvável o fato de uma ética buscar a felicidade e o bem-estar de todos – pois, como afirma Stuart Mill, “a doutrina utilitarista é de que a felicidade é desejável e é a única coisa desejável, como um fim, todas as outras coisas são desejáveis apenas enquanto meios para este fim”6 –, como também a diminuição da miséria e do sofrimento humano; encontram no utilitarismo uma via racional para subsidiar o indivíduo em uma situação 5 SANTOS, Paulo Vinícius Borges. Utilitarismo, p. 13. 6 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Portugal: Porto, 2005, p. 75.

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ética, particularmente, em situações de conflito moral; alegam a independência dessa perspectiva em relação às regras. Elas, por sua vez, são importantes, mas estão subordinadas ao bem, podendo ser invalidadas em situações excepcionais e em vista de um bem maior. Para aqueles que condenam o utilitarismo, o veem como uma ofensa à dignidade humana, acentuam o fato de o utilitarismo não obedecer, rigorosamente, os direitos reconhecidos; de sacrificar as pessoas em troca de um bem coletivo, em razão das leis do mercado. Por isso, uma perspectiva disposta a sacrificar os princípios e regras estabelecidos, residentes em uma sociedade em prol daquilo que é útil.7 Ainda, para alguns pensadores, Bentham e Stuart Mill foram radicais ao omitir Deus e as regras divinas da moral. Assim, criaram uma “doutrina moral sem Deus”. A esta crítica, Stuart Mill responde, categoricamente: “se for verdadeira a crença de que Deus deseja, acima de todas as coisas, a felicidade de suas criaturas, e que foi este o propósito da sua criação, a utilidade, além de não ser uma doutrina alheia a Deus, é mais profundamente religiosa do que qualquer outra”.8 Independentemente de tais considerações, há de se reconhecer o caráter progressista do utilitarismo: ele considera, em situações adversas, a falibilidade de toda obra humana e, por isso, susceptível de aperfeiçoamento; reconhece-se como uma proposta moral aberta a reformulações e capaz de provocar mudanças e reformas sociais. De tantas interpretações sobre o termo “utilitarismo”, uma parece mais adequada à sua perspectiva ética: 7 CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista: uma defesa do utilitarismo. In: OLIVEIRA. Manfredo Araújo de (Org). Correntes fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 99. 8 MILL, John Stuart. Utilitarismo, p. 62. Nesse sentido, Bentham não acolhe os preceitos religiosos a não ser aqueles capazes de promover a mensuração de suas consequências; não recorre a um ser onipotente e benevolente como meio para levar o indivíduo à felicidade geral; também evita qualquer conclusão provinda da natureza e das Escrituras. Ver: SIDGWICK, Henry. História da Ética. Trad. Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: ícone, 2010, p. 225-226.

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A ideia de que a ética não é indiferente ao bem-estar das pessoas, que a qualidade moral de nossas ações/ regras é função de suas consequências, que o bem dos indivíduos afetáveis por um curso de ação deve ser maximizado e seu sofrimento minimizado, e que a ética deve se importar não apenas com o bem-estar ou o sofrimento do agente moral, mas como a qualidade de vida de todos os seres capazes de sentir e de sofrer, potencialmente atingidos por um curso de ação.9

Apresentadas estas considerações, que demonstram a significatividade do utilitarismo como uma ética relevante para a sociedade contemporânea, pode-se assim compreendê-lo com base na seguinte máxima: “uma ação (ou regra de ação) será moralmente boa na medida em que o saldo líquido de felicidade ou de bem-estar decorrente de sua realização (ou de uma conformação à regra) for maior que o resultante de qualquer ação ou regra alternativa e disponível ao agente”.10 Este princípio ético constitui, ao mesmo tempo, o critério para que o indivíduo possa agir racionalmente. E tal vem a ser um princípio criteriologicamente postulado em função de melhorias sociais.11 Como considera Bentham, “a ética pode definir-se como a arte de dirigir as ações do homem para a produção da maior quantidade possível de felicidade em benefício daqueles cujos interesses estão em jogo”.12 Ao valorizar a felicidade como fim de toda ação, o utilitarismo, porém, não a define com precisão. Para Stuart Mill, não é tarefa fácil encontrar a essência da felicidade. Postula que ela não deve ser encontrada na opinião dos homens médios, mas somente dos homens sábios e experientes.13 Mas é possível 9 CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista, p. 100. 10 Ibid., p. 100. 11 CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética, p. 75. 12 BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 69. 13 SANTOS, Paulo Vinícius Borges. Utilitarismo, p. 18.

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entendê-la como prazer e ausência de sofrimento. As ações serão justas se promoverem a felicidade; injustas, se promoverem o contrário à felicidade. Mill apresenta essa perspectiva na Obra Utilitarismo de 1861.14 Na mesma obra, por sua vez, deixa claro – assim como Hume e Bentham – que questões de fins últimos, em si, não admitem provas. Todavia, considerações capazes de determinar o intelecto a emitir um consentimento podem ser apresentadas. Tais são essas considerações: a) o que todo homem deseja é prazer para si mesmo; b) prova-se que qualquer coisa é desejável pelo fato de as pessoas realmente a desejarem; c) a felicidade das pessoas é, então, desejável; a felicidade geral só pode ser um bem às pessoas. Nesse horizonte, Mill dá ênfase a uma sanção não considerada por Bentham: “o ‘sentimento de unidade com os semelhantes’, que faz disso um ‘desejo natural’ de um indivíduo de ‘natureza moral corretamente cultivada’ de que seus objetivos estejam em harmonia com os deles”.15 Na perspectiva de Mill, na maioria dos indivíduos esse sentimento é inferior ao egoísmo ou até mesmo ausente. Apresenta-se, porém, aos indivíduos como um atributo que não pode não ser considerado. Esta convicção aparece como a última sanção da moralidade da felicidade maior. 14 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Contemporânea – do século XIX à neoescolástica. Trad. Ana Pareschi Capovilla. São Paulo: Loyola, 1999, p. 150. 15 SIDGWICK, Henry. História da Ética, p. 228. Ainda, em oposição a Bentham, Stuart Mill reconhece diferenças de qualidades em prazeres distintos, bem como a anulação de diferenças de quantidade. Essa perspectiva tem um impacto ao reconciliarmos o senso comum à adoção de prazer, como um critério do dever. Parece pouco provável um indivíduo escolher, entre prazeres, o menos prazeroso. SIDGWICK, Henry. História da Ética, p. 229. Para Mill, a felicidade não pode ser apenas compreendida quantitativamente, de prazer produzido, mas qualitativamente, do prazer conquistado. A quantidade do prazer é, portanto, importante, assim como sua qualidade. Ora, prazeres oriundos das faculdades superiores têm primazia sobre àqueles das faculdades inferiores. Caso apenas a quantidade fosse importante, não seria possível distinguir a felicidade de um homem com a felicidade de um animal irracional. Assim, o homem diferencia-se de um animal porque sua felicidade está referida a graus de qualidade. TRINDADE, Sérgio Luiz Bezerra. A ética utilitarista de Jon Stuart Mill. Revista FARN, v. 4, n. 1/2, jul. 2004/dez. 2005, p. 100.

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2. Concepções de utilidade ou bem-estar A ideia de “utilidade” compreendida pelos utilitaristas refere-se ao bem-estar dos humanos, ainda que, de acordo com Bentham, deva-se considerar, nessa perspectiva, os animais não humanos. A utilidade, para Bentham, institui as noções de moralidade e justiça e está ancorada na natureza humana, concebida e aberta ao teste de experiência prática.16 Essa natureza está regida por duas forças: o prazer e a dor. Assim, o princípio da utilidade pode aprovar ou desaprovar qualquer ação, aquela colocada em jogo, em razão de aumentar ou diminuir a felicidade.17 O fato é que o utilitarismo reflete sobre a qualidade de vida melhor ou pior dos indivíduos, levando em consideração o bem-viver, a qualidade de vida, o bem-estar ou a felicidade, apresentados como critérios relevantes para a ética. Porém, não há, entre os adeptos do utilitarismo, um consenso sobre essas qualidades. Em geral, as concepções a esse respeito dizem sobre a qualidade do estado mental dos indivíduos, assim como sobre aspectos objetiváveis que afiram a sua felicidade. Hoje, as teorias do bem-estar classificam-se em três vertentes,18 a saber: a) Teorias mentalistas do bem-estar. De acordo com uma perspectiva clássica, o bem dos indivíduos reside em um estado subjetivo ou na vivência de prazer. Assim compreenderam Bentham e Stuart Mill, que o humano busca, constantemente, o prazer ou a felicidade. Bentham afirma que é próprio do humano buscar o prazer ou algum tipo de bem-estar e, com isso, recursar a dor e o sofrimento; Stuart Mill afirma que o humano anseia por um hedonismo qualitativo, dos prazeres intelectuais 16 SIDGWICK, Henry. História da Ética, p. 223. 17 BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, p. 10. 18 CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista, p. 101ss.

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e morais, ainda que conserve os prazeres do corpo; b) O bem-estar como satisfação de preferências. Em princípio, o utilitarismo de preferência não faz exigências arbitrárias às preferências a serem satisfeitas. E isso quer dizer: as preferências apresentam-se como candidatas a serem satisfeitas. Essa concepção distancia-se, por exemplo, de ditaduras até então benévolas à sociedade, risco este presente ao utilitarismo fundamentado no bem-estar, visto que o governante autoritário poderá submeter as pessoas a um determinado padrão de vida por considerar uma pretensa felicidade a ser alcançada por todos. O utilitarismo de preferência permite a pluralidade de objetivos humanos. O economista e filósofo Amartya Sen destaca-se como o principal representante desta perspectiva utilitarista;19 c) Teorias objetivistas do bem-estar. Diferentemente das concepções anteriores, o bem-estar não precisa atrelar-se a preferências e nem a estados mentais. A pessoa pode apresentar um conjunto de coisas valiosas e necessárias para que sua vida seja boa e este é o fato de a pessoa, intuitivamente, buscar coisas que para ela aparecem como boas. Assim, as teorias objetivistas entendem que as pessoas não almejam apenas o prazer e estados mentais positivos. Assim, Stuart Mill apresenta uma concepção plural de bem-estar que, dentre seus elementos, estão a virtude, o autodesenvolvimento, a autonomia e o respeito a si.

19 Para Amartya Sem, o bem material, como a riqueza, deve proporcionar o crescimento humano. A qualidade da vida, do progresso econômico, portanto, deve ser aferida pelo aperfeiçoamento do humano, do desenvolvimento da sua liberdade e felicidade. Pois, não é verdade que o desenvolvimento econômico resulta, necessariamente, no viver-bem. A ética, bem como a política, tem a tarefa de construir o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ver: PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 149-151.

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3. Uma ética de caráter teleológico O utilitarismo é uma ética teleológica (em grego telos significa fim) ou consequencialista por considerar “que a qualidade moral de um ato/regra de ação é função das consequências produzidas pelo ato/regra em questão”.20 O utilitarismo de atos apregoa que uma ação é correta se ela provocar coisas tão boas quanto aquelas resultantes de cursos alternativos de ação; o utilitarismo de regras, na mesma medida, compreende que são corretas as ações que se conformam a regras tão boas quanto àquelas resultantes de regras alternativas. Ora, para o utilitarismo, o bem antecede o correto. Não será possível, criteriologicamente, a correção das normas sem se levar em conta o bem delineado, identificado nas consequências, o que implica em afirmar que “uma conduta é correta ou incorreta analisando, tão somente, as consequências advindas daquela ação, não fazendo juízo de valor a respeito do caráter e da real intenção do agente”.21 O bem é, portanto, a utilidade (embora não haja consensualidade sobre a ideia do útil). A qualidade moral das ações dependerá das consequências produzidas,22 pois, as consequências podem suscitar prazer ou dor, bem em si ou males.23 A ética utilitarista diferencia-se da ética deontológica enquanto esta entende que o ato é em si mesmo bom o mau, independentemente das consequências produzidas, isto é, o correto não quer dizer o que é bom para as pessoas, o correto tem prioridade sobre o bom. Na ética utilitarista, como já visto, a moralidade depende do bem enquanto resultado. Enquanto que a ética utilitarista tem no núcleo do seu conceito a ideia 20 CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista, p. 104. 21 SANTOS, Paulo Vinícius Borges. Utilitarismo, p. 14. 22 CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista, p. 104-105. 23 SANTOS, Paulo Vinícius Borges. Utilitarismo, p. 14.

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de bem, a ética deontológica tem a ideia de dever, de regras que emanam seja da natureza, seja de pactos celebrados. Não obstante, as duas perspectivas filosóficas não estão inteiramente em desacordo: para um deontologista, o rompimento com um princípio – como não roubar – constitui uma violação à lei moral; assim também, para o utilitarista o rompimento com uma promessa pode ser injustificável, ainda que seu julgamento só poderá ser feito com base nas consequências negativas do ato praticado, correspondente ao bem-estar humano.24 4. Comparações interpessoais de utilidade O utilitarismo, ao pressupor a possibilidade de comparar e quantificar o grau de prazer, felicidade e bem-estar, pode avaliar que uma utilidade proporcionada a cada indivíduo pode ser válida para a utilidade dos indivíduos. Deste princípio, reprova-se a dor ou o sofrimento, contrários ao prazer. Essa perspectiva, de um cálculo felicífico – método criado por Bentham para aferir a felicidade –, permite que o indivíduo possa escolher a ação correta, aquela capaz de promover o maior saldo de prazer: a soma dos prazeres levará à diminuição do suposto sofrimento. Fundamentalmente, a aritmética de Bentham apoia-se em dois princípios: 1) O prazer pode ser medido, porque todos os prazeres são qualitativamente iguais. A partir de critérios de intensidade, duração, proximidade e segurança, é possível calcular a maior quantidade de prazer. 2) Diferentes pessoas podem comparar seus prazeres entre si para conseguir um máximo total de prazer.25

24 CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista, p. 105-106. 25 CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética, p. 75.

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Assim, dada a possibilidade de se aferir numericamente o grau de utilidades, em cursos de ação, as escolhas e a avaliação moral dependerão de um cálculo. Neste cálculo, não serão computadas as virtudes e as qualidades morais do agente.26 Os problemas morais podem, então, ser solucionados. Basta avaliar a quantidade de utilidades resultante de cada ação e escolher aquela que proporcionará o maior número de utilidade.27 Não há dúvida de que esta medida representa um grau dificultador, ao se levar em questão não apenas a ação de um indivíduo mas de vários indivíduos e, com isso, comparar as ações interpessoais de utilidade. E isso leva a entender “que a viabilidade do utilitarismo depende de que sejam possíveis comparações interpessoais de utilidade, o que por sua vez pressupõe que possamos ter um conhecimento suficiente de outras mentes”.28 Caso isso seja possível, ainda far-se-á necessário averiguar a possibilidade de comparações cardinais de utilidade ou apenas ordinais. A possibilidade de comparação entre as ações interpessoais parece ser explicada por Harsanyi. Para ele, o indivíduo deverá imaginar-se (colocar-se) no lugar do outro e questionar-se sobre qual seria a preferência de tal pessoa com respeito à ação. Harsanyi chamou esta máxima de empatia imaginativa. Embora as diferenças sejam muitas, não seria problemática essa comparação, uma vez que os indivíduos comportam uma similaridade básica, o que permitiria que suas ações fossem, em certa medida, as mesmas. E isso não quer dizer, para o utilitarismo – como prescreve Harsanyi –, que as pessoas sejam exímias na arte de fazer comparações interpessoais de utilidade, mas que dificilmente essa possibilidade não seja não viável. Harsanyi parece pressupor que sejam feitas com26 SANTOS, Paulo Vinícius Borges. Utilitarismo, p. 19. 27 CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista, p. 106-107. 28 Ibid., p. 107.

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parações ordinais de utilidade e não cardiais: “seria possível, pois, dizer que o indivíduo x tem mais preferências satisfeitas do que y ou é mais feliz que y”.29 Para Harsanyi, ainda, entre as preferências manifestas e verdadeiras, deve o indivíduo comportar-se de acordo com as verdadeiras, por serem estas de utilidade social e rechaçar aquelas preferências de utilidade fundadas no egoísmo, na inveja etc. e, portanto, antissociais. De acordo com Stuart Mill, devemos sempre buscar o bem coletivo e rejeitar a felicidade particular. Afirma que na “regra de outro”, de Jesus de Nazaré, lê-se todo o espírito da ética utilitarista: deve o indivíduo tratar o outro como gostaria de ser tratado, amar o outro como gostaria de ser amado. Dos meios necessários para a aproximação a este ideal, podemos considerar: primeiro, que as leis e as estruturas sociais coloquem a felicidade ou o interesse dos indivíduos em harmonia com o todo; segundo, que a educação e a opinião usem de suas forças para estabelecerem no indivíduo uma associação entre a própria felicidade e o bem comum.30 Assim, rejeitada a ideia de uma felicidade particular, do útil egoísta e, ao contrário, conceber o bem como útil para o maior número de pessoas, para os outros, podemos entender o utilitarismo como um altruísmo ético. Pois, o egoísmo ético exclui o interesse dos outros, tornando-se a ação vantajosa apenas para o indivíduo. O altruísmo ético exclui os interesses de ordem particular em função do bem para todos. Porém, como conciliar os interesses particulares com os interesses de todos em uma situação de conflito, isto é, quando o meu interesse entra em conflito com o interesse coletivo? O interesse pessoal requer a conservação da própria vida ou de suas comodidades. O interesse coletivo (contudo) questiona essas comodidades e até mesmo a vida daquele indivíduo em favor de todos. O utilitarismo, então, aceitará o sacrifício do interesse pessoal, 29 Ibid., p. 108. 30 MILL, John Stuart. Utilitarismo, p. 58.

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bem como de suas comodidades e, se possível, até mesmo da própria vida do indivíduo em benefício de toda a comunidade. Este sacrifício, em si, não será bom a não ser em função de aumentar o bem ou a felicidade de todos.31 5. A utilidade total e a utilidade média As ações que presumidamente implicarão bem maior deverão, o que é inerente ao utilitarismo, ser maximizadas. Porém, não há unicidade sobre a noção de maximização da felicidade, se ela deve ser média ou total. Para os utilitaristas clássicos como Bentham e H. Henry Sidgwick,32 deve-se maximizar a utilidade total, isto é, deverá o indivíduo optar por aquela ação que claramente provocará um saldo maior de bem-estar coletivo, entendido como a soma das utilidades dos indivíduos que compõem a sociedade. Porém, deve-se entender que: Uma dificuldade do princípio de maximização da utilidade total é que ele não leva em conta um eventual crescimento da população. Se houver aumento populacional e a utilidade total permanecer inalterada, a utilidade per capita diminuirá sem que isso fira o princípio. Somente um princípio de maximização da utilidade média se mostra sensível a tal problema. Ele prescreve a maximização da utilidade média per capita, a qual se obtém dividindo-se a soma de utilidade pelo número de indivíduos.33

31 VÁZQUEZ. Adolfo Sánchez. Ética. Trad. João Dell’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 168-169. 32 Henry Sidgwick (1838-1900) procurou enfrentar, em suas obras, as dificuldades impostas ao utilitarismo, sem perder sua perspectiva clássica. Para ele, a sociedade está retamente ordenada quando suas principais instituições buscam promover o maior bem possível, concebido como a soma da participação de todos os seus indivíduos. SANTOS, Paulo Vinícius Borges. Utilitarismo, p. 16-17. 33 CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista, p. 108.

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Este princípio foi defendido por Stuart Mill. No entanto, o utilitarismo é indiferente a essas duas propostas. Cabe ao utilitarista, então, simplesmente optar por uma delas. Tanto uma quanto a outra pode oferecer totalidades relevantes para o corpo social. 6. O utilitarismo negativo O utilitarismo ainda apresenta uma outra vertente, conhecida como o “utilitarismo negativo”. Tem sua origem em Karl R. Popper (1902-1994), despertado, ainda em sua infância, pelo contexto de pobreza na periferia de Viena, cenário este que contribuiu para sua visão utilitarista.34 Esta vertente substitui a “maximização da felicidade” pela “minimização do sofrimento”. Quer dizer, busca-se menos o bem-viver, no sentido até mesmo de produção de riquezas, e mais a diminuição da dor e do sofrimento das pessoas e tal vem a ser a ideia matricial de “menor sofrimento”. Essa perspectiva, no campo político, parece eliminar a possibilidade de uma ditatura benevolente, justificada pela ampliação de felicidade. J. M. Bermudo defende que o “utilitarismo negativo” combate uma política direcionada exclusivamente em proporcionar a felicidade de seus indivíduos. De fato, a busca constante pelo bem-estar pode obscurecer a dor e a miséria da população. E não parece ter sido outra senão esta a preocupação de Bentham e Stuart Mill, em eliminar o sofrimento e as iniquidades sociais. Mas o “utilitarismo negativo” se diferencia desses autores clássicos pelo fato de a dor ser concebida como prazer negativo ou ausência de prazer e, por essa razão, em fomentar diferentes implicações: “contra a tese de um saldo único de prazer-dor, o utilitarismo negativo propõe a tese do saldo duplo, dando prioridade absoluta ao combate ao sofrimento e à miséria”.35 34 SANTOS, Paulo Vinícius Borges. Utilitarismo, p. 17. 35 CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista, p. 110.

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Por conseguinte, o “utilitarismo negativo” não se exprime na máxima “minimizar a dor”, mas em apontar que o sofrimento causado por uma política excludente não pode ser justificado pelo o bem-estar da sociedade. Ou melhor, não é verdade que a felicidade produzida se converta, necessariamente, na minimização da dor e sofrimento, ou ainda que se minimiza a dor e o sofrimento com a geração de riquezas.36 7. A extensão do utilitarismo O utilitarismo, a rigor, compreende que o curso de uma ação deve beneficiar o maior número possível de pessoas. Assim, tanto a perspectiva utilitarista da felicidade quanto a perspectiva do combate ao sofrimento afirmam esse postulado. Compreende, ainda o utilitarismo, que não pode haver diferença entre os cidadãos, pois, todos são iguais. “O utilitarismo advoga, assim, imparcialmente e igualmente os interesses de todos os afetados”.37 A fórmula criada por Bentham – a maior felicidade para o maior número – institui, como se supõe, duas máximas que podem entrar em conflito entre si: a produção da maior quantidade de felicidade; e que a felicidade se endereça ao maior número possível de pessoas. O cálculo aqui proposto não se restringe aos seres humanos, mas a todos os seres capazes de sentir e de sofrer. Bentham parece ter postulado um hedonismo ético universal, uma forma de hedonismo clássico, porém diferente quanto ao seu caráter social. O hedonismo consiste no fato de o indivíduo buscar prazer38, ao prescrever “que os interesses de todos os seres capazes de ter uma qualidade de vida melhor ou pior deveriam ser igualmente contemplados, recusando o preconceito de que a ética estaria mais relacionada com a racionalidade do que com a sensibilidade”.39 36 Ibid., 109-110. 37 SANTOS, Paulo Vinícius Borges. Utilitarismo, p. 20. 38 CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética, p. 75.

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39 CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista, p. 111.


Para Bentham, a disposição ao sofrimento constitui a matriz que sustenta o tratamento igual entre os indivíduos, bem como aos seres vivos. De fato, os utilitaristas contemporâneos têm buscado sensibilizar a sociedade contra todo tipo de crueldade aos animais, em geral.40 8. O sujeito utilitarista e suas perspectivas atuais De acordo com Giuseppe Abbà, o sujeito utilitário é portador de desejos, de paixões e de interesses que devem ser realizados.41 Este sujeito utilitário surge no contexto da mudança conceitual provocada no século XIV pelo eclipse da noção de causalidade final e pelo advento da causalidade eficiente como principal fonte de tomada das decisões éticas, diminuindo consideravelmente a importância da finalidade normativa e da prática das virtudes em vista da natureza humana, assim como ela é. Destacam-se aqui, João Duns Scot (1266-1308), Guilherme de Ockham (1285-1347) e Francisco Suárez (15481617). Esta perspectiva incidiu fortemente na formulação do jusnaturalismo contemporâneo.42 40 CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética, p. 75. Sobre o utilitarismo atual, vale aqui uma menção: ao contrário do utilitarismo clássico – que encontra na felicidade o único bem e na dor, o único mal –, considera que as pessoas têm desejos diversos, e que suas ações não buscam apenas a felicidade. Por sua vez, as vontades estão inclusas no conceito de felicidade. Parece que Stuart Mill inseriu princípios liberais ao utilitarismo, com o propósito de evitar algumas incoerências fixadas no utilitarismo clássico, como que uma pessoa deveria sacrificar sua própria vida em função do prazer coletivo (como no anfiteatro romano, onde homens, ao enfrentarem animais, sacrificavam a própria vida em função do prazer da plateia). Assim, o utilitarismo pós Bentham e Mill, moderno, em grande parte, sustenta os valores invioláveis da pessoa humana, respondendo satisfatoriamente questões apontadas pelos críticos dessa perspectiva filosófica. E de fato, a noção atual de (1) democracia, (2) progresso e (3) direito à escolha parece comungar com o utilitarismo; nessa nova perspectiva, a democracia parece compreender-se como a versão prática do utilitarismo, onde o governo da maioria busca atender o útil do maior número de pessoas; a observação aos direitos da pessoa – que consistirá na igualdade de direitos –, trará, certamente, o progresso para a humanidade; as pessoas gozam de uma multiplicidade de alternativas, capazes de proporcionar-lhes e ampliar a felicidade (SANTOS, 2017, p. 20-21). 41 ABBÀ, Giuseppe. História Crítica da Filosofia Moral. Trad. Frederico Bonaldo. São Paulo: Raimundo Lulio, 2011, p. 347. 42 Ibid., p. 348.

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Para Thomas Hobbes (1588-1679), este sujeito utilitário afasta-se da concepção de que o ser humano deve ser e aproxima-se da noção dos requisitos mínimos de colaboração entre os “sujeitos utilitários”. Há um distanciamento expresso das ideias do melhor modo de viver. Este sujeito colaborativo avançará na modernidade, marcado fortemente por um individualismo que não mais será cancelado até os tempos atuais. Portador de paixões, em primeiro lugar, e, depois, de interesses, a concepção subjetiva de felicidade nascente não é incorporada à vida social, como se requeria.43 Já na perspectiva de Hume, o sujeito utilitário não disporia da livre vontade, como visto anteriormente, mas realizaria a ação como se fosse uma “calculadora”, movido pelas paixões. Esta é a assim chamada “ética do senso moral”. Retornando à perspectiva hobbesiana, a busca dos prazeres ou a fuga de algumas dores coincidiria com o desenvolvimento de uma perspectiva hedonista, ainda muito presente e de constante influência na contemporaneidade. Ainda segundo Giuseppe Abbà, este sujeito utilitário, centrado na concepção da eficiência que motiva a ação, e não na sua causa final, permeou o pensamento científico da modernidade (conforme a perspectiva de Galileu e Newton), influenciando, inclusive, a razão prática kantiana centrada na liberdade e na autonomia dos agentes racionais. Deve-se destacar, entretanto, que o sujeito kantiano – pela razão autônoma – distancia-se das três concepções anteriores de sujeito utilitário, que se identificam com uma ética em terceira pessoa.44

43 POLANYI, Karl. The great transformation. The Political and Economic Origins of Our Time. Boston: Beacon Press, 1944. Apud ABBÀ, Giuseppe. História Crítica da Filosofia Moral, p. 350. 44 ABBÀ, Giuseppe. História Crítica da Filosofia Moral, p. 351-368.

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Conclusão Tendo em vista todo o caminho percorrido – de desenvolvimento das bases conceituais da ética utilitarista, passando pelas linhas de aproximação histórica, conceitual e as problemáticas dela subjacentes – fica evidente sua relevância nos contextos hodiernos, da mesma maneira que impõe desafios no que toca sua eficácia ou adequação à própria vida em sociedade. Com aspectos positivos e negativos, a ética utilitarista, nas suas mais diversas ramificações, é elemento fundamental de estudo para quem deseja compreender melhor os desafios éticos da contemporaneidade, seja no âmbito filosófico, seja nos âmbitos cultural, social, econômico, político ou religioso. Referências ABBÀ, Giuseppe. História Crítica da Filosofia Moral. Trad. Frederico Bonaldo. São Paulo: Raimundo Lulio, 2011. (Manuais de Filosofia). BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974. CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. Por uma ética ilustrada e progressista: uma defesa do utilitarismo. In: OLIVEIRA, Manfredo Araújo de (Org). Correntes fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000. CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética. Trad. Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2013. MILL, John Stuart. Utilitarismo. Portugal: Porto, 2005. PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história. Petrópolis: Vozes, 2006. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Contemporânea – do século XIX à neoescolástica. Trad. Ana Pareschi Capovilla. São Paulo: Loyola, 1999.

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SANTOS, Paulo Vinícius Borges. Utilitarismo: a ética baseada na consequência do ato. Revista Outras Palavras, v. 13, n. 1, 2017. Disponível em: http://revista.faculdadeprojecao.edu. br/index.php/Projecao5/article/view/761. Acesso em: 12 ago. 2020. SIDGWICK, Henry. História da Ética. Trad. Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: ícone, 2010. TRINDADE, Sérgio Luiz Bezerra. A ética utilitarista de Jon Stuart Mill. Revista FARN, v. 4, n. 1/2, jul. 2004/dez, 2005. VÁZQUEZ. Adolfo Sánchez. Ética. Trad. João Dell’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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10 Perspectivas do pensamento moral democrático na contemporaneidade Enrico Paternostro Bueno da Silva1 Introdução Um estudo a respeito do “pensamento moral democrático” deve se situar entre dois campos fundamentais do pensamento filosófico: a Filosofia Política e a Ética. A Filosofia Política, via de regra, investiga os fundamentos da sociabilidade, da vida comum nas sociedades, das formas de governo, do estabelecimento das leis etc. Por sua vez, a Ética (ou Filosofia Moral) investiga a conduta, o comportamento e os costumes dos indivíduos e povos, tendo em vista a possibilidade de se descobrir critérios universais quanto ao “bom”, o “justo” e o “correto”. Neste capítulo, não será diferente. Para isso, vamos tomar como pressuposto uma concepção abrangente de poder e política, tal qual se encontra em importantes filósofos como Antonio Gramsci, Hannah Arendt, Michel Foucault e Jürgen Habermas. Isso significa que não vamos entender por “política” apenas as condições institucionais da organização do poder na modernidade (divisão entre poderes, fundamentos legais, comportamentos eleitorais, práticas partidárias, etc.), mas também a maneira pela qual se organizam as relações de poder no cotidiano das pessoas, bem como os caminhos que indivíduos e movimentos adotam na resolução de conflitos ligados à vida comum. Disso decorre que, ao falarmos sobre democracia, não estaremos falando apenas de todos os aspectos legais e institucionais que uma sociedade democrática exige. Mas também, 1 Enrico Paternostro Bueno da Silva é doutor em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB).

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e principalmente, falaremos da dimensão comportamental e atitudinal dos sujeitos, bem como organizações coletivas civis que garantem e lutam para expandir a soberania popular. Em outras palavras: compreendemos que a democracia requer não apenas instituições funcionais, mas também práticas, costumes, relações e valores de teor democrático. Ou seja, requer uma moral democrática – um conjunto de normas de convívio e práticas cotidianas que garantam a todo o conjunto da sociedade uma vida comum profundamente democrática, em sentido abrangente. Embora sejam muitos os autores que discutem a democracia sob este prisma, vamos focalizar nossos estudos sobre a teoria social de Jürgen Habermas, filósofo alemão contemporâneo e um dos principais estudiosos das democracias modernas. Habermas se insere em uma importante linhagem de pensamento filosófico do século XX que ficou conhecida como Teoria Crítica.2 Dentre outras características, destaca-se entre os autores da Teoria Crítica a ideia de que a Filosofia e as Ciências da Sociedade não devem apenas se limitar a “descrever os fenômenos”, mas teorizar sobre as possibilidades e os obstáculos para uma humanidade cada vez mais emancipada. Isso implica em supor, de saída, a possibilidade de uma vida social liberta das diferentes formas de dominação e opressão (escravidão, exploração do trabalho, autoritarismo político, violência sistemática, exclusão social, machismo, racismo, homofobia, transfobia etc.). A partir de tal suposição, devem ser estudadas as condições sociais presentes, suas contradições e os obstáculos concretos que existem à emancipação. O objetivo deste capítulo é apresentar brevemente a concepção de Habermas referente à ampliação da democracia nas sociedades modernas, a qual deve ter como fundamento principal uma opinião pública formada na base da sociedade, 2 NOBRE, Marcos. A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

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de modo cada vez mais livre, paritário e não alienado. Para isso, apresentaremos primeiro um panorama geral da obra do autor e sua concepção de democracia deliberativa. Em seguida, apresentaremos uma síntese a respeito da chamada ética do discurso, uma tentativa de o autor estabelecer parâmetros atitudinais necessários a um debate público com potencial democraticamente edificante. 1. A Esfera Pública como fundamento da democracia Mudança Estrutural da Esfera Pública, publicada em 1962, foi a primeira grande obra de Jürgen Habermas e é nela que se encontra seu primeiro conceito de esfera pública. Trata-se de uma pesquisa histórico-sociológica que retrata as origens da esfera pública burguesa e suas transformações com o desenvolvimento do capitalismo e o avanço dos meios de comunicação em massa. Quando mobiliza o termo esfera pública, Habermas está se referindo a todo conjunto de espaços, veículos e ambientes em que indivíduos e organizações civis debatem sobre temas de interesse público. Congressos, conferências, mesas-redondas, programas televisivos, artigos de jornal e revistas, cafés, salões, agremiações, obras literárias..., todos esses espaços fazem parte da esfera pública quando são acionados para debater questões de interesse geral. Em seu estudo, Habermas recorre a documentos históricos que tratam do Estado Absolutista na Alemanha, França e Inglaterra. Mostra como determinadas legislações e decisões políticas foram, a partir do século XVIII, cada vez mais tematizadas pelos burgueses (comerciantes, industriais, banqueiros...) nos emergentes veículos de imprensa, mas também em cafés, salões, grêmios e associações onde se reuniam. Nesses espaços, pessoas privadas emitiam publicamente seus discursos e buscavam conduzir uma troca racional de argumentos acerca de questões políticas presentes. 249


Com isso, nasceu uma esfera pública burguesa de debate e crítica, cujo resultado, ao consolidar-se em uma opinião pública, permitia que a burguesia pressionasse o Estado e cobrasse dele informações e medidas políticas. A separação entre o “privado” e o “público”, entre a intimidade e a publicidade, passou a ser decisiva para esses novos espaços. Habermas aponta algumas normas que se desenvolveram nesse conjunto de espaço chamado “esfera pública”: a participação paritária, ou seja, a igualdade de status durante o debate, que significa que as desigualdades de diversos tipos que existam entre os participantes deviam ser momentaneamente suspensas em nome da igualdade dada pelo igual caráter humano de todos, a fim de que apenas prevalecesse, de fato, o melhor argumento; e a acessibilidade do espaço, que devia ser cada vez mais público, ou seja, cada vez mais aberto à participação ampla e sem restrições. A função política desses espaços seria constituir uma mediação entre a sociedade civil e o Estado, permitindo aquela defrontar-se com este. Ou seja: a esfera pública funcionava como um agregador de demandas, construída por meio de formações de consensos no debate público, que pressionava o Estado a agir conforme a opinião pública. Nas palavras de Habermas, “a esfera pública com atuação política passa a ter o status normativo de um órgão de automediação da sociedade burguesa com um poder estatal que correspondia às suas necessidades”.3 A grande mudança estrutural que dá nome ao livro se refere às transformações da estrutura social e da função política da esfera pública com a tomada do poder político pela burguesia e, posteriormente, o desenvolvimento dos meios de comunicação em massa. Com a Revolução Francesa, a Independência dos Estados Unidos e outras tantas revoluções por todo o mundo ocidental, a classe burguesa passou a governar diretamente 3 HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 93.

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esses Estados. Isso é um primeiro passo importante para a mudança dessa “esfera pública”, já que agora a burguesia não tem mais uma Monarquia Absolutista sobre a qual exercer pressão: é a própria burguesia que governa. Mas ocorreram também outras mudanças: desde os finais do século XIX e, principalmente, a partir da década de 1930, as principais sociedades capitalistas adotaram um modelo político-econômico com maior atuação do Estado sobre a economia e os serviços públicos. Além disso, estamos em um momento em que os meios de comunicação de massa estão em pleno desenvolvimento, com o nascimento do rádio e do cinema. Com isso, a ideia de “publicidade” sofre profunda mudança conotativa e a “opinião pública” passa a ser objeto de manipulação midiática por interesses burgueses, que precisam manter o Estado sob seu controle. A ideia de publicidade, que antes significava apresentar abertamente um discurso para o debate público e coletivo, agora passa a significar “propaganda”, no sentido de “persuasão”, “convencimento”. Habermas avalia que os novos meios de comunicação, em vez de contribuírem para um debate público mais amplo e mais aberto, acabaram servindo à manipulação de interesses, criação de necessidades e condução da opinião pública, conforme o interesse de poderosos grupos econômicos e políticos. Ocorre, portanto, uma despolitização da esfera pública. Gradativamente, ela passa a contribuir cada vez mais para a manutenção do domínio burguês; enquanto isso, todo aquele potencial de democratização da esfera pública passa a ser sufocado. Paralelamente a isso, ocorre outro fenômeno: as “massas trabalhadoras” passam a buscar cada vez mais voz, com o sufrágio universal e a difusão progressiva da alfabetização. Em termos mercadológicos, significa mais consumidores da “cultura” e dos bens publicizados. Em termos político-administrativos, significa um amplo público sobre o qual a burguesia pode consolidar um comportamento eleitoral favorável. 251


Em suma, Mudança Estrutural da Esfera Pública é um trabalho de fôlego que não mascara a complexidade histórica apresentada pelos documentos. Problematiza a decadência das possibilidades de um debate político mediante razões do novo quadro e levanta rigorosos questionamentos sobre as possibilidades de uma deliberação pública, verdadeiramente democrática, sobre o capitalismo. Entretanto, o livro ainda não traz uma proposta sobre como essa esfera pública pode contribuir com as democracias capitalistas modernas. 2. Habermas e a Sociedade Moderna O conceito permaneceu relevante para o autor com o passar do tempo, embora ele tenha encontrado novas abordagens para compreendê-lo. A Teoria do Agir Comunicativo de 1981 é uma longa crítica da racionalidade moderna que culmina em uma complexa teoria da sociedade. Nela, o conceito de esfera pública passa a ser parte de um modelo mais abrangente. Anos depois, em 1992, Habermas traz uma ideia mais propositiva sobre a esfera pública, em Direito e Democracia: Entre a Facticidade e a Validade. Na Teoria do Agir Comunicativo, Habermas propõe uma nova concepção para se interpretar o mundo moderno. Segundo ele, o desenvolvimento da racionalidade humana ao longo da História conduziu a uma diferenciação entre duas modalidades de uso da razão: de um lado, haveria a racionalidade instrumental, voltada para o êxito, através de cálculos dos meios mais adequados para atingir determinados fins; de outro, a racionalidade comunicativa, voltada para o entendimento, por meio do discurso e da argumentação. Com isso, Habermas quer mostrar que o ser humano não usa apenas sua razão para dominar e alcançar seus fins de forma egoísta (racionalidade instrumental), mas também para se comunicar, construir consensos, criar normas de convívio e se entender com os outros seres humanos (racionalidade comunicativa). 252


O desenvolvimento histórico dessas duas modalidades da razão humana é traçado por Habermas sobre um estudo antropológico que não cabe aprofundar aqui.4 Ele está atrelado, a grosso modo, a duas formas fundamentais de ação que teriam se constituído enquanto elementos da evolução da espécie humana: o trabalho e a comunicação com uso da linguagem. Cabe explicar essa diferença segundo os termos do autor: Por ‘trabalho’ ou ação racional teleológica entendo ou a ação instrumental, ou a escolha racional ou, então, uma combinação das duas. (...) A ação racional teleológica realiza fins definidos sob condições dadas; mas, enquanto a ação instrumental organiza meios que são adequados ou inadequados segundos critérios de um controlo eficiente da realidade, a ação estratégica depende de uma valoração correta de possíveis alternativas de comportamento, que só pode obter-se de uma dedução feita com auxílio de valores e máximas. Por outro lado, entendo por ação comunicativa uma interação simbolicamente mediada. Ela orienta-se segundo normas de vigência obrigatória que definem as expectativas recíprocas de comportamento e que têm de ser entendidas e reconhecidas, pelo menos, por dois sujeitos agentes. As normas sociais são reforçadas por sanções. O seu sentido objetiva-se na comunicação linguística cotidiana.5

A partir desse modelo, Habermas formula, entre as décadas de 1970 e 1980, sua teoria para a sociedade moderna. Segundo ele, o nascimento do mundo moderno (a partir da Europa, nos séculos XVIII e XIX) provocou uma divisão da vida social 4 Ver: HABERMAS, Jürgen. Communication and the Evolution of Society. Boston: Beacon Press, 1979; HABERMAS, Jürgen. Para a Reconstrução do Materialismo Histórico. São Paulo: Unesp, 2015. 5 HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como “Ideologia”. Lisboa: Edições 70, 1994, p. 57-58.

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em dois níveis: o sistema, terreno da ação teleológica, onde predomina a racionalidade instrumental; e o mundo da vida, espaço da ação comunicativa voltada para o consenso e integração social, onde predomina a racionalidade comunicativa. Para explicar melhor essa separação entre Sistema e Mundo da Vida, Habermas subdivide esses dois âmbitos. O sistema se subdivide entre: um subsistema econômico, representado pelo mercado, em que as relações são mediadas pelo dinheiro e a comunicação ocorre pelo código positivo da recompensa; e um subsistema administrativo, representado pelo aparato do Estado, em que as relações são mediadas pelo poder e a comunicação ocorre pelo código negativo da sanção. O mundo da vida, em contraste, é o espaço de socialização e interação social, organizado pela ideia do consenso e por normas sociais que não estão escritas na lei, mas que regulam nossos comportamentos cotidianos. Habermas indica, porém, que no mundo da vida nem todo contexto de ações reproduz um entendimento alcançado pela comunicação. Muitas das normas sociais (velhos preconceitos, por exemplo, como o machismo e a homofobia) são internalizadas a partir das tradições culturais. Nas sociedades modernas e democráticas, porém, essas normas são frequentemente revistas e gradativamente perdem força, conforme o debate público vai avançando. Ainda quanto ao mundo da vida, é importante visualizar que ele também se subdivide em dois grandes conjuntos: há uma esfera privada do mundo da vida (relações domésticas, familiares, íntimas, pessoais, etc.) e uma esfera pública (todo aquele conjunto de espaços de debate público, já mencionado). Nessa esfera pública, Habermas destaca a atuação das organizações da sociedade civil (ONGs, movimentos sociais, associações de moradores e outros coletivos organizados) que acabam assumindo o papel de protagonizar o debate público e pressionar o poder político, ou melhor, o subsistema administrativo. 254


3. Para uma Democracia Deliberativa Na obra Direito e Democracia de 1992, Habermas demonstra apostar no papel dessas organizações para que as sociedades sejam crescentemente democráticas. Para ele, os espaços estatais da democracia representativa, como o Parlamento, são importantíssimos, mas insuficientes. Uma democracia forte é aquela que possui amplo debate público, em que os indivíduos constroem coletivamente uma opinião pública por meio de um debate abrangente, aberto e igualitário. Ademais, ela requer um subsistema político (Estado, partidos, parlamentares) aberto à opinião pública e disposto a dialogar com ela. Para que isso seja possível, é necessário que as organizações da sociedade civil sejam ativas e participativas, mobilizando esse debate público e pressionando o Estado: O núcleo institucional [da sociedade civil] é formado por associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida. A sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política. O núcleo da sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse geral no quadro de esferas públicas.6

Este fragmento diz muito sobre a teoria habermasiana. Primeiramente, indica que há uma esfera privada que se distingue da esfera pública. Intimidade e publicidade, porém, não se isolam 6 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre a Facticidade e a Validade, vol 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 99.

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entre si, uma vez que há fluxos de temas que são canalizados de uma esfera para outra. Em seguida, o texto aponta que são exatamente as organizações da sociedade civil que assumem a tarefa de canalizar “os ecos dos problemas sociais” tratados na esfera privada, condensá-los e problematizá-los na esfera pública. Sugere, ainda, que a esfera pública é o espaço onde “questões de interesse geral” são tematizadas e debatidas em vistas de soluções para os problemas sociais. Não cabe à esfera pública, assim concebida, administrar políticas públicas ou aprovar leis. Ela não faz parte do subsistema administrativo, mas está enraizada no mundo da vida através da sociedade civil. Não obstante, é imprescindível à democracia. É a “caixa de ressonância” dos problemas percebidos no mundo da vida; é a esfera em que os atores da sociedade civil debatem questões a serem elaboradas pelo Estado. Temos, então, um contraponto ao duro pessimismo expresso na Mudança Estrutural. Na obra de 1992, Habermas parece enxergar a esfera pública como um espaço potencial para a ampliação e radicalização democrática. Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pública tem que reforçar a pressão exercida pelos problemas, ou seja, ela não pode limitar-se a percebê-los e a identificá-los, devendo, além disso, tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los de modo convincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar.7

A esfera pública não é, portanto, uma instituição, uma organização. Tampouco é um sistema, dada a porosidade de seus horizontes. Trata-se de uma rede, em que se comunicam conteúdos, tomam-se posições e formam-se opiniões. É, acima de tudo, um espaço social gerado no agir comunicativo, orien7 Ibid., p. 91.

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tado para o entendimento por meio do discurso. É espaço de debate e busca de consenso, que resulta na consolidação de uma opinião pública. Apesar da crítica dos meios de comunicação em massa traçada por Habermas em seu estudo primeiro, em Direito e Democracia, ele diz acreditar que “a sociedade civil pode, em certas circunstâncias, ter opiniões públicas próprias, capazes de influenciar o complexo parlamentar (e os tribunais), obrigando o sistema político a mudar o rumo do poder oficial”.8 Nessa obra mais recente, ele defende que, apesar dos processos de seleção e reelaboração de informação pela mídia, a imagem do consumidor passivo, simplesmente manipulado pelos programas, já é bastante questionável. Hoje, muitas pesquisas buscam apreender as estratégias de interpretação dos espectadores, que se comunicam entre si, sintetizam e eventualmente criticam a oferta programática. O poder midiático, embora forte e constitutivo da formação da opinião pública, não pode ser concebido de forma inevitavelmente homogeneizante e unilateral. Diante do quadro teórico exposto até aqui, caberia perguntar: se o mundo da vida é espaço da comunicação discursiva em busca do entendimento, como a teoria habermasiana consegue explicar certos problemas sociais da modernidade, como a insensibilidade à vida humana, a burocratização excessiva das relações sociais, o egoísmo crescente e o racionalismo extremado? Para ele, esses grandes desafios das relações humanas no mundo moderno seriam provocados quando “mecanismos sistêmicos reprimem formas de integração social, também em áreas nas quais a coordenação consensual da ação não pode mais ser substituída, ou seja, nas quais está em jogo a reprodução simbólica do mundo da vida”.9 Em outras palavras, trata-se da colonização do mundo da vida 8 Ibid., p. 106. 9 HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo. Vol. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 155.

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pelo sistema. Assim, a coisificação das relações humanas – um problema muito sério tratado por Habermas – resultaria da penetração da lógica do dinheiro e do poder nos espaços de interação social onde deveria vigorar, por excelência, a ação comunicativa. É no ponto de encontro entre as estruturas interativas e os subsistemas que se daria o enfrentamento central da modernidade, enfrentamento esse decisivo para se determinar a capacidade de sobrevivência de formas de comunicação e de interação que deram origem aos principais movimentos sociais da modernidade. Seu resultado não foi o desaparecimento das formas interativas mas o surgimento de uma esfera de autonomia social identificada com o processo de produção da democracia.10

A esfera pública é, assim, o palco desta luta contra a colonização do mundo da vida pelo sistema, contra o avanço da racionalidade instrumental sobre as práticas cotidianas. É, por isso, espaço de resistência democrática contra a coisificação da humanidade, o embrutecimento das relações e a burocratização da vida. Mas não se limita a este papel defensivo, de resistência à “colonização”, conforme destacado na Teoria do Agir Comunicativo. Também pode ser entendida, conforme Direito e Democracia, enquanto espaço de tematização, problematização e dramatização das demandas levantadas pelas interações comunicativas no mundo da vida, visando colocá-las na agenda pública de forma a influir na condução dos procedimentos decisórios do subsistema administrativo. É, em suma, espaço de construção da democracia, na medida em que busca impor limites ao sistema e orientá-lo pelas demandas deliberadas discursivamente. 10 AVRITZER, Leonardo. A modernidade da democracia. Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 18.

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4. A Ética do Discurso Ainda faltaria, contudo, responder à questão: que tipo de comportamento moral deve estar por trás dessa participação popular na esfera pública? Dito de outro modo: uma vez que uma democracia forte requer sujeitos e coletividades ativas no debate público, quais são os parâmetros morais que devem nortear a ação e os discursos públicos? Para responder a essa questão, Habermas dedicou alguns escritos a formular algo que ele denomina Ética do Discurso. Trata-se de um conjunto de princípios, de pretensão universal (ou seja: pretensamente aplicável a todas as pessoas), capaz de orientar as ações e decisões relativas ao uso comunicativo da razão na esfera pública. Isso significa que uma democracia verdadeiramente deliberativa requer determinados princípios fundamentais para orientar a prática cotidiana dos cidadãos. De modo geral, Habermas sintetiza as características centrais da Ética do Discurso em quatro aspectos. Primeiramente: a) é uma ética deontológica, entendendo que um discurso que pretende defender a correção de uma norma ou um valor (que pertencem ao mundo “social”, construído e compartilhado coletivamente) pode ser comparado a uma asserção que visa à verdade do estado de coisas no mundo “objetivo” (como as leis científicas, existentes independentemente dos participantes na interação discursiva). Disso decorre que b) é também uma ética cognitivista, no sentido de que considera possível argumentar racionalmente sobre o fundamento das normas, valores e visões de mundo: não apenas os fatos do mundo objetivo, mas também as pretensões do mundo social podem ser discutidas e fundamentadas sobre razões. É, ainda, c) uma ética formalista, na medida em que não formula (ela própria) um conteúdo normativo como fonte de normas subjacentes às ações e relações sociais, mas visa construir as condições de validade social sobre um procedimento justo e legítimo de deliberação 259


racional. Esse aspecto é bastante importante: Habermas não discute qual deve ser o conteúdo das leis e políticas públicas de uma sociedade democrática; sua teoria pretende discutir quais são os requisitos para que leis e políticas públicas sejam democraticamente estabelecidas. Por fim, d) trata-se de uma ética universalista, almejando exprimir uma fundamentação de validade geral, não apenas intuições de uma cultura ou uma época. Com isso, Habermas pretende que sua ética tenha validade universal e que os princípios necessários a um diálogo aberto e paritário sejam imprescindíveis à vida social justa em quaisquer contextos culturais. E quais são esses princípios, afinal? Para ele, embora possam ser formuladas diversas normas específicas para um bom debate público, o princípio moral fundamental dessa Ética é apenas um: a universalização. Segundo esse princípio, “no caso de normas válidas, os resultados e as consequências colaterais que previsivelmente decorrem de uma observância geral para a satisfação dos interesses de cada um têm de poder ser aceitas por todos sem coação”.11 Isso significa que uma norma social, política pública ou lei só pode ser considerada legítima se, de algum modo, contemplar os interesses e necessidades dos afetados por ela, e puder ser aceite por eles. Isso deve significar, em um debate público, uma atitude de rejeição a argumentos que apelem aos próprios interesses e vontades, egoistamente defendidos, e que sejam considerados os resultados e efeitos de modo universal. Argumentos e comportamentos válidos no debate público são aqueles que consideram as implicações gerais da demanda defendida. Embora Habermas seja taxativo ao afirmar que a universalização é o único princípio moral da Ética do Discurso, propõe também outras regras e normas, referentes, por exemplo, aos procedimentos adequados para uma formação não manipulada 11 HABERMAS, Jürgen. Ética do Discurso. Lisboa: Edições 70, 2014, p. 108.

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da opinião pública. É nesse sentido que formula parâmetros discursivos para uma “situação ideal de fala”, que remetem àquele ideal da esfera pública burguesa dos séculos XVIII e XIX. O próprio autor os sintetiza em três pontos fundamentais: (3.1)Todo sujeito dotado de capacidade de fala e ação pode participar em discursos; (3.2) a) Toda e qualquer pessoa pode problematizar toda e qualquer afirmação; b) Toda e qualquer pessoa pode introduzir toda e qualquer afirmação no discurso; c) Toda e qualquer pessoa pode enunciar suas atitudes, desejos e necessidades; (3.3) Nenhum locutor deve ser impedido, por uma coação que se faça sentir dentro ou fora do discurso, de usufruir dos seus direitos estabelecidos em (3.1) e (3.2).12 Apesar de tais regras serem notadamente impossíveis de serem concretizadas por completo – se tomadas as limitações concretas de espaço e tempo e as desigualdades pertinentes ao contexto sociocultural no qual se dá o discurso –, Habermas defende que elas devam funcionar como horizonte. Ou seja, as condições da “situação ideal de fala” aparecem como uma métrica para providências institucionais que visem neutralizar tanto tais limitações reais quanto as influências internas e externas que podem incidir sobre o discurso público, de modo que as condições idealizadas supostas pelos participantes do debate possam ser, ao menos, alcançadas de forma aproximada. Isso significa, por exemplo, uma postura crítica em relação à desigualdade de espaço que diferentes grupos de interesse têm para se manifestarem na imprensa. 12 Ibid., p. 81.

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Conclusão Durante esse texto, pudemos verificar que Habermas traz importantes contribuições ao pensamento moral democrático no mundo contemporâneo. O autor oferece uma notável interpretação dos problemas sociais modernos, discute as possibilidades de ampliação da democracia, analisa os obstáculos existentes e propõe um parâmetro ético universalista, visando uma qualificação e expansão das democracias modernas. Isso requer, segundo o autor, uma cultura do debate público favorável àquilo que o filósofo Immanuel Kant chamava de “uso público da razão”.13 Trata-se, em suma, da expectativa de uma esfera pública viva e ativa, que discuta os problemas coletivos segundo razões e construa consensos para formar uma opinião pública razoável capaz de pressionar o subsistema político-administrativo. Essa formulação ajuda a ampliar a própria ideia do que significa “justiça social”. Tradicionalmente, esse conceito foi utilizado para se referir aos critérios e padrões utilizados pelos Estados nacionais em sua distribuição de bens, serviços e encargos pela sociedade. Habermas, em vez de discutir qual é o critério ideal de justiça social (a necessidade, o mérito, etc.), propõe uma teoria formalista – que consiste em teorizar sobre a forma pela qual as normas e políticas públicas são alcançadas e formuladas, e não o seu conteúdo. Em outras palavras, em vez de propor políticas públicas para a justiça social (de distribuição de renda, reorganização tributária, ou mesmo novas formas de convívio libertas de preconceitos enraizados), ele prefere discutir quais são as condições mais adequadas para que os próprios cidadãos formulem, democrática e coletivamente, qual é o significado de uma sociedade justa.

13 KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é ‘Esclarecimento’? In: Immanuel KANT. Textos Seletos, edição bilingue. Petrópolis: Vozes, 1985.

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Entretanto, sua tendência em privilegiar a participação política autônoma dos cidadãos em detrimento da satisfação das necessidades é entendida como um limite para alguns interlocutores. Kevin Olson, por exemplo, aponta uma tensão entre a concepção normativa de autonomia e os direitos sociais que ela deve salvaguardar, de modo que estes últimos estariam insuficientemente justificados. Ou seja, para Olson, a teoria de Habermas não consegue oferecer uma justificativa convincente para a defesa de direitos sociais fundamentais (acesso à educação, saúde, previdência, saneamento básico etc.).14 A filósofa Nancy Fraser,15 semelhantemente, problematiza a plausibilidade de que o ideal normativo da esfera pública alcance seus objetivos em contextos marcados por estratificações profundas em termos de acesso a recursos, valoração cultural e poder político, apontando que os diversos grupos sociais que se colocam em debate podem se encontrar em condições discursivas desiguais. Para ela, Habermas subestima o fato de que, em sociedades desiguais, grupos sociais privilegiados têm mais poder de influenciar a opinião pública e têm mais força para impor seus interesses sobre o debate público. Em uma sociedade marcada por desigualdades e preconceitos, a posição política de mulheres, negros e outros grupos historicamente excluídos do debate público tende a ser menos valorizada. Essa desigualdade interna na esfera pública deveria ter sido melhor considerada por Habermas. Em ambos os casos, a crítica alcança conclusões semelhantes: ao não fundamentar com força suficiente a garantia de direitos sociais básicos, o modelo de Habermas “não consegue empoderar todos aqueles cuja participação democrática 14 Ver: OLSON, Kevin. “Democratic Inequalities: The Problem of Equal Citizenship in Habermas’s Democratic Theory”. Constellations, vol. 5, n. 2, 1998. 15 FRASER, Nancy. “What’s Critical about Critical Theory? The Case of Habermas and Gender”. New German Critique, n. 35, 1985; FRASER, Nancy. “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy”. Social Text, n. 25/26, 1990.

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é normalmente prejudicada por desigualdades materiais e, portanto, não pode garantir a todos os cidadãos uma deliberação democrática justa e igualitária”16. Olson e Fraser, por caminhos diferentes, também argumentam no sentido de tentar remediar a questão. Olson defende uma concepção ampliada de autonomia, que constitua uma justificação sólida para equalizar os aspectos civis, políticos e materiais da cidadania. Já Fraser, por sua vez, argumenta contra a perspectiva de que a suposição das “situações ideais de fala” possa suspender provisoriamente as desigualdades durante o debate público. Ela defende que tais desigualdades sejam francamente expostas e tematizadas e entende que apenas sua superação concreta promoverá um debate público justo. De todo modo, é notável que nenhum dos dois abdique por completo do arcabouço teórico que problematizam; pelo contrário, são fortemente influenciados por ele e buscam revisar seus eventuais pontos falhos. A despeito dessas críticas, não se pode negar a força da proposta habermasiana e sua influência sobre o debate democrático contemporâneo. Não por acaso, seu estudo alcançou grande recepção no Brasil, tendo sido discutido especialmente durante o período de redemocratização nas duas décadas que se seguiram à superação da ditadura militar.17 A todos que apostam em um projeto de ampliação da soberania popular e de uma participação política crescentemente efetiva e crítica em uma democracia liberal, a teoria de Habermas segue sendo uma referência primordial. 16 OLSON, Kevin. Democratic Inequalities, p. 215. 17 Ver, por exemplo: COSTA, Sérgio. “La Esfera Pública y las Mediaciones entre Cultura y Política: el caso de Brasil”. Metapolitica, vol. 3, n. 9, 1999; HADDAD, Fernando. “Dialética positiva: de Mead a Habermas”. Lua Nova, n. 59, 2003; OTTMAN, Goetz. “Habermas e a esfera pública no Brasil: considerações conceituais”. Novos Estudos Cebrap, n. 68, 2004; SILVA, Filipe Carreira da. “Habermas e a esfera pública: reconstruindo a história de uma ideia”. Sociologia, Problemas e Práticas, n. 35, 2001; SILVA, Josué Pereira da. “Trabalho e Teoria Social: Habermas, Gorz e o Conceito de Sociedade Dual”. Ideias, vol. 2, n. 2, 1995.

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PARTE IV O agir humano 11 Doutrina Social da Igreja: princípios do bem comum, da subsidiariedade e da solidariedade Luís Fabiano dos Santos Barbosa1 Introdução “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.2 Estas memoráveis palavras fundamentam de modo muito claro os motivos principais que levam a Igreja Católica a voltar seu olhar comprometido com as realidades do mundo e, especialmente, do ser humano. Jesus Cristo foi profundamente solidário com as pessoas que conviveu e encontrou. Jamais demonstrou indiferença por tudo aquilo que se referia aos desafios humanos e da criação. Na esteira desse discipulado foi que a Igreja, ao longo dos seus dois milênios de história, construiu seu projeto de realização da caridade na verdade dos valores evangélicos. 1 Luís Fabiano dos Santos Barbosa, Mestre em Teologia Dogmática pela Università Pontificia Salesiana di Roma (UPS); pós-graduado lato sensu em Educação Sexual, licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL; e pós-graduando em Orientação, Supervisão e Gestão Escolar pelo UNINTER. 2 CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes: Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje. 13. ed. São Paulo: Paulinas, 2003, n. 1.

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A Doutrina Social da Igreja é o amadurecimento fecundo e profético dos valores e convicções que nascem da revelação amorosa de Deus para com o seu povo e sua inteira criação, cuja plenitude foi a presença do Filho de Deus entre os homens; verdadeiro Deus e verdadeiro homem entre os homens para testemunhar-lhes o autêntico caminho de humanização. Neste capítulo não propomos uma síntese da Doutrina Social da Igreja porque seria vã ilusão no espaço que aqui dispomos. O que tentamos apresentar são alguns elementos que fundamentam esse corpo doutrinal (a caridade na verdade) e os três grandes princípios – bem comum, subsidiariedade e solidariedade – que, indissociáveis, compõem a estrutura dos grandes conceitos que norteiam nossa incidência social. 1. A caridade na verdade: pressuposto da Doutrina Social da Igreja A fé em Jesus Cristo exige de cada pessoa uma resposta de amor para com o próximo. O amor a Deus está profundamente ligado ao amor ao próximo:3 se em minha vida negligencio completamente a atenção ao outro, importando-me apenas com ser piedoso e cumprir meus deveres religiosos, então definha também a relação com Deus.4 O amor que identifica o ser cristão não deve ser vivido somente entre aqueles que constituem institucionalmente a assembleia dos irmãos (a Igreja). O amor nos impulsiona a sair de nós mesmos5 em direção àqueles que mais necessitam. 3 BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004. Cf. Mc 12,28-31; Mt 22, 34-40; Lc 10, 25-28; Jo 13, 34-35; 1Jo 4, 7-21. 4 BENTO XVI (Papa). Deus caritas est. Carta Encíclica sobre o amor cristão. São Paulo: Loyola, 2006, n. 18. 5 “Deus é amor. Mas o amor pode ser odiado ali onde exista a exigência de sair de si mesmo para ir para além de si mesmo. O amor não é um romântico sentido de bem-estar. Não é um banho de autocondescendência, mas sim uma libertação do ser aprisionado no próprio eu.” RATZINGER, Joseph. L’infanzia di Gesù. Milano: Rizzoli, 2012, p. 101. (Tradução nossa). “Agostinho afirmará que só quem ama é livre porque só quem ama sai de si mesmo e olha para o mundo a sua volta.” PONDÉ, Luiz Fe-

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Desde as origens do cristianismo, o valor alteridade e a profunda solidariedade para com o mundo marcaram constitutivamente a natureza do ser Igreja. Mais recentemente, o Papa Francisco esboçou o seu programa de governo para a Igreja Católica, recordando essa identidade original daqueles que se sentem seguidores de Jesus.6 Esta exigência de movimento de “saída” do eu para7 o outro marca também uma necessidade sempre atual na vida social dos seres humanos: “a Igreja nunca poderá ser dispensada da prática da caridade como atividade organizada dos crentes, como aliás nunca haverá uma situação que não seja necessária a caridade de cada um dos indivíduos cristãos, porque o homem, além da justiça, tem e terá sempre necessidade do amor.8 O ser humano que crê em Deus vive a caridade que visa o homem todo e todos os homens. O cristão chamado pelo amor para amar, realiza essa sua missão buscando sempre a globalidade do ser humano. O amor cristão busca o bem integral das pessoas. “Toda atividade da Igreja é manifestação de um amor que procura o bem integral do homem [...] é amor o serviço que a Igreja exerce para acorrer constantemente aos sofrimentos e às necessidades, mesmo materiais, dos homens”.9 A sociedade com seus avanços e retrocessos em relação ao cuidado do humano e de toda criação jamais dispensará o amor. É claro que não se trata de “amor” à lógica da concepção contemporânea, visto que esta, muitas vezes, reduz e ofusca o sentido da sua incidência social. Pois “a caridade, não raro confinada ao âmbito das relações de proximidade, ou limitada lipe. Espiritualidade para corajosos: a busca de sentido no mundo hoje. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018, p. 94. 6 FRANCISCO (Papa). Evangelii gaudium. Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Brasília: Edições CNBB, 2013, n. 20-24. 7 Ratzinger, à luz da revelação bíblica, considera o ser cristão em duas perspectivas: “é ser aberto na relação ‘a partir de’ e na ‘direção para’. RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 139. 8 PAPA BENTO XVI. Deus caritas est, n. 29. 9 Ibid., n. 19.

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aos aspectos somente subjetivos do agir para o outro, deve ser reconsiderada no seu autêntico valor de critério supremo e universal de toda a ética social”.10 A caridade cristã jamais poderá ser reduzida ao assistencialismo que não promove autonomia e a liberdade das pessoas. É claro que inúmeras instituições eclesiais realizam projetos e programas cujos objetivos são assistir às necessidades básicas dos pobres e marginalizados. Contudo, a prática da caridade na perspectiva cristã funda-se no próprio mistério de Deus Amor, que é sempre englobante: abraça o bem inteiro do ser humano, de todos os homens e da inteira criação. E, por isso, devemos nos perguntar: qual o lugar da razão na experiência globalizante do amor de Deus para o humano? Assim como a fé, o amor não é um “cego assentimento”, ele tem uma razão de ser. No que se refere à razão na vivência do amor, a fé tem um papel fundante e purificador. A fé consente à razão de realizar melhor sua missão e ver mais claramente o que lhe é próprio. É aqui que se apresenta a doutrina social católica: esta não pretende conferir à Igreja poder sobre o Estado; nem quer impor, àqueles que não compartilham a fé, perspectivas e formas de comportamento que pertencem a ela. Deseja simplesmente contribuir para a purificação da razão e prestar a própria ajuda para fazer com que aquilo que é justo possa aqui e agora, ser reconhecido e, depois, também realizado.11

Muitas vezes, a prática do amor vivida na Igreja Católica pode sofrer críticas severas, sobretudo quando a caridade implica dialogar e exigir do Estado uma real atuação em vista do bem comum e da prática da justiça. A Doutrina Social da Igreja, ao 10 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005, n. 204. 11 PAPA BENTO XVI. Deus caritas est, n. 28.

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se propor a dialogar com o Estado e seus mecanismos para a promoção da justiça, tem como instrumento condutor as vias da razão. Assim se justifica, mais do que nunca, a relação e interação da fé com a razão. Se por um lado a razão permite aos cristãos ampliar a prática do amor por meio da interação com o Estado, por outro lado, a fé contribui para que a missão da razão seja plenamente realizada: alcançar a verdade: “a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e mediante a formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis”.12 Sendo o papel da fé buscar a concretização do amor em todas as instâncias de organização da sociedade, então, o ofício da razão é favorecer a inteligibilidade e possibilidade da realização concreta das ações institucionais que buscam a justiça e o bem comum. No cristianismo trata-se de “caridade na verdade”, isto é, caridade intelectual.13 O amor é da verdade porque tem nela a sua origem e fonte, que descobrimos e vivemos pela fé; mas o amor também é na verdade porque pela via da razão desenvolve e tem como alicerce a mesma verdade. O Papa emérito Bento XVI, na sua Encíclica Caritas in Veritate,14 nos ofereceu uma urgente e profunda reflexão sobre a prática da caridade da Igreja no mundo contemporâneo. Este documento apresenta uma análise econômico-social da realidade a partir dos fundamentos do amor cristão, especialmente organizados no corpus da Doutrina Social da Igreja. Afirma que “só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor 12 Ibid., n. 28. 13 Id., Audiência Geral: As ordens mendicantes. Disponível em: www.vatican.va/ holy_father/benedict_xvi/audiences/2010/documents/hf_ben-xvi_aud_20100113_ po.html. Acesso em: 02 jan. 2020. 14 Id.. Caritas in veritate: sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade. São Paulo: Loyola, 2009.

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à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade”.15 Sem a verdade, a caridade corre o risco de perder a própria direção. É a verdade que ilumina a caridade. E esta iluminação acontece por meio da interação entre fé e razão, pois, elas são as “asas” que elevam o espírito humano à contemplação da verdade.16 Ao assumir como ponto de referência a verdade, a Igreja nos mostra a necessidade de purificar a caridade “dos estrangulamentos do emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo, que a priva de amplitude humana e universal”.17 Vivemos duas grandes marcas culturais que podem obscurecer a vivência do amor na verdade. A primeira é o “desencanto com a razão instrumental”, o que trouxe para nossa sociedade uma verdadeira supervalorização da emoção. Este vigente emotivismo não favorece a prática da caridade na verdade porque torna frágeis as relações interpessoais. A segunda é o pluralismo religioso e a busca por espiritualidades “panaceicas” (respostas para todos os problemas). Estas marcas culturais que, enquanto identidades são duas, no âmbito da influência da experiência religiosa cristã se tornam uma única chaga. De fato, como consequência destas tendências, encontramos por parte de alguns cristãos uma postura de autodefesa por meio da prática do “fideísmo cego”. A caridade “é ao mesmo tempo verdade da fé e da razão, na distinção e, conjuntamente, sinergia destes dois âmbitos cognitivos”.18 Pois “só através da caridade, iluminada pela luz da 15 Ibid., n. 2. 16 JOÃO PAULO II (Papa). Fides et Ratio. Carta Encíclica sobre as relações entre fé e razão. 12 ed. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 5 (prólogo). 17 PAPA BENTO XVI. Caritas in veritate, n. 3. 18 Ibid., n. 5.

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razão e da fé, é possível alcançar objetivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e humanizadora”.19 Nesse horizonte amplo e profundo da relação entre fé, razão e caridade é que devemos refletir sobre os princípios basilares da Doutrina Social da Igreja. 2. A Doutrina Social da Igreja O cristianismo não é uma ideologia e nem a Igreja Católica é uma instituição assistencial cuja filosofia consiste em promover uma revolução social. A responsabilidade social faz parte da experiência de fé, do ser Igreja, mas não se reduz a isso. A fé em Jesus Cristo exige o compromisso social.20 Além disso, como nos recorda o Concílio Vaticano II, “a revelação cristã leva a uma compreensão mais profunda das leis da vida social”.21 O Evangelho, isto é, a pessoa de Jesus Cristo revelou a toda humanidade a plena verdade do ser humano.22 Nesta verdade está contida a necessária atenção ao social que constitui a base principal de desenvolvimento de toda pessoa humana. A Doutrina Social da Igreja é o compromisso dos seguidores de Jesus perante a história do mundo e dos seres humanos. A Igreja é solidária com a humanidade. Nas estradas da história está ao seu lado, se faz companheira. Acompanhando o mundo na história, a Igreja vive sua própria e íntima vocação.23 O caráter religioso da Igreja, portanto, profundamente humano, justifica a sua missão entre, com e para o ser humano.

19 Ibid., n. 9. 20 Cf. Mt 25, 31-46; Tg 2, 14-26. 21 CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 23,1. 22 Ibid., n. 10. 23 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 18.

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O ensino social da Igreja inclui um corpo de doutrina que se vai articulando à medida que a mesma Igreja interpreta os acontecimentos no decurso da história à luz do conjunto da Palavra revelada por Cristo Jesus, com a assistência do Espírito Santo. Este ensino torna-se tanto mais aceitável para os homens de boa vontade, quanto mais inspira o procedimento dos fiéis.24

Inspirados pelos valores do Evangelho os cristãos convidam – primeiro com seu procedimento e depois com o ensino – os homens de boa vontade a entenderem o ser humano em sua inviolável dignidade, como também reconhecer no tecido social uma oportunidade real de desenvolvimento de tudo aquilo que constitui a existência humana mais justa e fraterna. A Doutrina Social, portanto, não é só da Igreja. É tarefa universal. Porque, de fato, é “a pessoa humana que se trata de salvar, é a sociedade humana que importa renovar”.25 Trata-se de organizar as várias forças do saber e da ordem social em vista da promoção do autêntico humanismo. Aqui a autenticidade está relacionada à integralidade da concepção do ser humano. Por isso, a Doutrina Social da Igreja pressupõe e também busca favorecer um humanismo integral, “capaz de animar uma nova ordem social, econômica e política, fundada na dignidade e na liberdade de toda a pessoa humana, a se realizar na paz, na justiça e na solidariedade”.26 Para alcançar tal finalidade, a Doutrina Social da Igreja se estrutura em três importantes princípios: o bem comum, a subsidiariedade e a solidariedade. O fundamento destes princípios é a caridade na verdade.27 Jamais deverão ser entendidos como “meros e/ou bons propósitos” destituídos de força e sentido. 24 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Petrópolis: Loyola, 1993, n. 2422. 25 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 18. 26 Ibid., n. 19. 27 PAPA BENTO XVI. Caritas in veritate, n. 06.

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Estes princípios, expressões da verdade inteira sobre o homem conhecida através da razão e da fé, promanam ‘do encontro da mensagem evangélica e de suas exigências, resumidas no mandamento supremo do amor com os problemas que emanam da vida da sociedade’.28

A própria lógica da apresentação destes princípios no Compêndio de Doutrina Social sublinha tanto a orientação que eles se propõem quanto a sua unidade intrínseca e indissociável. Pensar em fazer o bem de modo imparcial (bem comum) é de alguma maneira favorecer a participação ativa dos sujeitos privados e da sociedade civil e o respeito da dignidade da pessoa (subsidiariedade) e assim, tornar os relacionamentos humanos nas tramas sociais cada vez mais solícitos e responsáveis pelo bem dos outros (solidariedade). “A Igreja mesma atribui à própria doutrina social um ‘corpus’ doutrinal unitário que interpreta de modo orgânico as realidades sociais.”29 Abaixo refletiremos, de modo geral, sobre cada um destes princípios, tentando sempre mostrar a conexão própria entre eles, como também em que medida são imprescindíveis para o real desenvolvimento social da humanidade. A Igreja considera esses três princípios como o fundamental parâmetro de referência para a interpretação dos fenômenos sociais. Eles permanecem atuais e universais em seus significados.30 2.1. O princípio do bem comum Há quem considere que à medida em que avançamos no século XXI, o nacionalismo perde terreno rapidamente. Cada vez mais pessoas acreditam que toda a humanidade é fonte 28 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 160. 29 Ibid., n. 162. 30 Ibid., n. 161.

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legítima de autoridade política.31 A percepção global e universal das relações e organizações humanas cresce mediante à intensa apropriação dos recursos e possibilidades do ambiente virtual. Todavia, isso não quer dizer que no momento presente os seres humanos se sintam mais próximos e comprometidos uns com os outros. Falamos com muitos, mas não nos importamos com todos. Comunicamos quase tudo, mas por quase nada nos responsabilizamos. Nem sempre nossa globalidade virtual se traduz em compromissos com os desafios sociais concretamente localizados. Paradoxalmente podemos dizer que a humanidade é rica, mas esta riqueza está nas mãos de poucos e não beneficia a maioria pobre.32 Diante destes desafios, o princípio bem comum é uma exigência atualíssima em vista do bem da humanidade e da inteira criação. O princípio bem comum não existe em detrimento do “bem individual”33, antes, amplia a real necessidade de respeito das individualidades em um contexto de mundo onde é emergente buscar o bem de todos os homens e do homem todo.34 Isto só é possível porque tal princípio tem valor somente em referência à obtenção dos fins últimos da pessoa e ao bem comum universal de toda a criação.35 Aliás, “o fim da vida social é o bem comum historicamente realizável”36. Então “por bem comum se entende: o conjunto de condições da vida social que permitem, tanto aos grupos, como a cada um dos seus membros, atingir mais plena e facilmente a própria perfeição”.37 31 HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 280. 32 BAUMAN, Zigmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós? Rio de Janeiro: Zahar, 2015. 33 BENTO XVI (Papa). Carita in veritate, n. 07. 34 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 164. 35 Ibid., n. 170. 36 Ibid., n. 168. 37 Ibid., n. 164.

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Cada ser humano e o inteiro grupo social trazem em si uma orientação histórica de desenvolvimento constante. As contingências conjunturais ou as próprias decisões nascidas do exercício da liberdade podem favorecer ou comprometer tal alcance. E visto que o princípio bem comum “é de todos e de cada um, é e permanece comum, porque indivisível e porque somente juntos é possível alcançá-lo, aumentá-lo e conservá-lo”.38 O bem comum não é só “comum” em suas finalidades, mas o é, sobretudo, em sua origem de responsabilização das consciências. Somente juntos conquistaremos, faremos crescer e perpetuar o bem necessário e justo para todos. O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral. Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios. [...] Toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de defender e promover o bem comum.39

Quando dizemos “juntos” também não pensamos em uma generalização que cause efeito contrário ao processo de responsabilização com o bem comum. Os mais simples já sentenciaram no conhecido dito popular “quando a responsabilidade é de todos é igualmente de ninguém”. A própria forma de organização social estabelece níveis diferenciados de efetivação de seus principais objetivos. Verdade incontestável é que “o bem comum é a razão de ser da autoridade política”.40 Já Aristóteles 38 Ibid., n. 164. 39 PAPA FRANCISCO. Laudato si’. Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum. Loyola: São Paulo, 2015, n. 157. 40 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 168.

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considerava o homem um “ser político”41 e Platão identificava como fundamento da estrutura política o bem comum.42 Hoje, essas concepções filosóficas continuam a nos inspirar, todavia, a complexidade das próprias estruturas institucionais exigem uma maior sinergia dos vários campos que compõem o ambiente social. Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana. A salvação dos bancos a todo o custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura.43

Não é possível alcançar o bem comum em uma lógica social cujo critério de orientação e decisões seja exclusivamente o dado financeiro.44 A ânsia desenfreada pelo acúmulo de bens é contrária à finalidade de justa distribuição de tudo aquilo que no mundo contém como bem natural ou produz para o bem dos homens e de toda criação. Também a “ecologia integral é inseparável da noção de bem comum”.45 Vê-se um tímido crescer das consciências na íntima relação existente entre meio ambiente e o ser humano como realidades interdependentes. É daí que surge o conceito de “ecologia integral.”46 Tanto o ser humano quanto a inteira 41 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1991, Livro IX. 42 Cf. PLATÃO. República. São Paulo: Scipione, 2002. 43 PAPA FRANCISCO. Laudato si’, n. 189. 44 “Volumes inteiros foram escritos sobre como o dinheiro fundou Estados e os arruinou, abriu novos horizontes e escravizou milhões, impulsionou a indústria e levou centenas de espécies à extinção.” HARARI, Yuval Noah. Sapiens, p. 409. 45 PAPA FRANCISO. Laudato si’, n. 156. 46 Ibid., n. 137-162.

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criação habitam a mesma casa comum. Trata-se de tornar o desenvolvimento humano sustentável e integral para esta e às futuras gerações. Desafio igualmente importante é a destinação e o uso universal dos bens que dispomos ou produzimos. Nem tudo está à disposição de cada um ou de todos, e nem mesmo que sirva ou pertença a cada um ou a todos.47 O princípio do bem comum busca favorecer que cada um possa dar e receber, e onde o progresso de uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros.48 O grande sociólogo Zygmund Bauman já nos alertou sobre o perigo de não pensarmos nas consequências de um acúmulo de recursos que não se destine ao bem de todos. De fato, em um de seus livros ele se pergunta: a riqueza de poucos beneficia todos nós?49 É uma questão importante, especialmente quando recordamos que entre “poucos” e “todos nós” existe sim uma distância, contudo, disparate também real é aquele que encontramos no contexto da maioria que não é detentora da riqueza. Além das classes trabalhadoras que batalham para viver em condições razoáveis de bem-estar, no grupo da maioria sem riqueza está também os que trabalham para sobreviver, os que sobrevivem sem trabalhar, os pobres miseráveis que se encontram em condições de “subvida”.50 “O princípio da destinação universal dos bens requer que se cuide com particular solicitude dos pobres [...] A esse propósito deve ser reafirmada, em toda a sua força, a opção preferencial pelos pobres.51 47 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 173. 48 Ibid., n. 175. 49 BAUMAN, Zigmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós? Rio de Janeiro: Zahar, 2015. 50 Pense-se, por exemplo, naquelas milhares de pessoas, aos olhos de muitos invisíveis, em situação de rua. Elas buscam nas lixeiras e na mendicância o mínimo encontrado ou recebido para “subviver”. Para a aprofundar o tema confira: SILVA, M. L. L. Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009. 51 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 180.

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A Doutrina Social da Igreja reafirma em seus princípios a opção preferencial pelos pobres. Esta preferência de nenhum modo exclui outras classes, antes oferece a sua primeira atenção (mas não a única) àqueles que têm menos condições. Tal opção não significa abraçar esta ou aquela ideologia partidária ou visões teológicas reducionistas (teologias de genitivos ou a partir de setores da sociedade). A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8,9). [...] A Igreja é advogada da justiça e dos pobres, exatamente por não se identificar com os políticos nem com os interesses de partido.52 A atenção às necessidades materiais dos pobres é e será sempre no cristianismo um princípio inegociável. Porém, “não há desenvolvimento pleno nem bem comum universal sem o bem espiritual e moral das pessoas, consideradas na sua totalidade de alma e corpo”53. A Doutrina Social da Igreja visa o bem integral de todas as pessoas e do ser humano como um todo. Qualquer intervenção sociopolítica que menospreze ou desconsidere esta totalidade e complexidade será empecilho ao pleno e autêntico desenvolvimento dos que habitam na e da própria casa comum. Além dessa percepção mais global do ser humano, o princípio bem comum exige também que nos preocupemos com as gerações futuras. A sociedade e a criação, de modo geral, têm um destino comum, do qual não podem ser excluídos aqueles que virão depois de nós.54

52 PAPA BENTO XVI. Discurso de Abertura na Conferência do CELAM em Aparecida [13 de maio de 2007]. In: Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Documento de Aparecida. São Paulo: Paulus, 2007, p. 273 e 278. 53 PAPA BENTO XVI, n. 77. 54 PAPA FRANCISCO. Laudato si’, n. 159.

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2.2. O princípio da subsidiariedade Ao princípio bem comum está intrinsecamente conectado o princípio subsidiariedade. O sentido mais amplo e global de responsabilidade social (bem comum) passa necessariamente pela capacidade de envolvimento das liberdades individuais e institucionais para que, subsidiadas, possam elas alcançarem eficazmente e com autonomia os ideais de sociedade mais justa e fraterna. Ainda é muito frequente ouvir entre nós expressões como: “isto é de responsabilidade do Estado”; “se o governo assumisse sua responsabilidade”; “o país não vai para frente por causa dos políticos” etc. São formas de indignação certamente pautadas em fundamentos e, portanto, de alguma maneira legítimas. Mas, no fundo, expõem um triste cenário de pouca clareza e consciência do “sentido político” mais amplo. A Doutrina Social da Igreja, ao propor o princípio subsidiariedade como instrumento importante de interpretação e articulação das questões sociais, quer também contribuir com a sociedade em vista de uma participação mais ativa e autônoma dos indivíduos e setores componentes do complexo corpo social. Deste modo evitar-se-á tanto as tendências de imputar aos governos e Estados a inteira responsabilidade pelo bem das pessoas e instituições, como também a tentação de ceder a sistemas ideológicos cujos objetivos visam absolutizar o poder político e institucional em detrimento da dignidade das pessoas. No contexto de globalização real das formas de se conceber a organização social, o princípio subsidiariedade apresenta-se como uma exigência fundamental.

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A globalização tem necessidade, sem dúvida, de autoridade, enquanto põe o problema de um bem comum global a alcançar; mas tal autoridade deverá ser organizada de modo subsidiário e poliárquico, seja para não lesar a liberdade, seja para resultar concretamente eficaz.55

Segundo os propósitos mais originais do ser Igreja e os grandes valores do seu compromisso social, tal princípio sustenta e defende a liberdade e a autonomia pessoais sem ofuscar os direitos e deveres reais das instituições cuja responsabilidade é zelar pelo bem comum dos sujeitos sociais. Isto se aplica igualmente às instâncias internacionais e às tendências globalizantes. A subsidiariedade é, antes de mais nada, uma ajuda à pessoa, na autonomia dos corpos intermédios. Tal ajuda é oferecida quando a pessoa e os sujeitos sociais não conseguem operar por si sós, e implica sempre finalidades emancipatórias, porque favorece a liberdade e a participação enquanto assunção de responsabilidades.56

Subsidiar significa colaborar favorecendo a emancipação. Tal processo é um convite ao engajamento maior no campo das nossas responsabilidades políticas, para além das agremiações partidárias. A consciência ativa e imparcial para com as necessidades da sociedade é um dos principais “subsídios” a ser oferecido aos cidadãos e instituições sociais do nosso tempo. De fato, o princípio da subsidiariedade é um valor de suma importância dentro do quadro referencial da filosofia social. A subsidiariedade não admite a ilicitude de roubar dos indivíduos a possibilidade de participação e engajamento sociopolítico 55 PAPA BENTO XVI. Caritas in veritate, n. 57. 56 Ibid., n. 57.

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tão necessário à sociedade democrática.57 Deste princípio depende o equilíbrio entre a esfera pública e a privada, com o consequente reconhecimento da função social do privado; como também de uma adequada responsabilização do cidadão no seu “ser parte” ativa da realidade política e social do país.58 Além disso, “a subsidiariedade é o antídoto mais eficaz contra toda a forma de assistencialismo paternalista”.59 O honesto e eficaz compromisso social jamais poderá reduzir-se às sensibilidades que tendem a assistir permanentemente a indivíduos e/ou instituições, ainda que com reais vulnerabilidades. Estas são na verdade um apelo para que a ajuda dada favoreça o desenvolvimento do subsidiado, mas não a sua pueril dependência. Igualmente se contrapõem a tal princípio as formas de centralização, de burocratização, de presença injustificada e excessiva do Estado e do aparato público no processo de participação dos cidadãos na resolução dos problemas da sociedade.60 Por outro lado, certamente em momentos bem precisos será inevitável que o Estado exerça uma função de suplência, porém, considerando o valor imprescindível da subsidiariedade esta suplência se justificará somente no caráter excepcional da situação.61 Entre os vários exemplos que poderíamos oferecer para uma real aplicação deste princípio, recordamos um ligado àquilo que vem sendo um dos grandes dramas econômico-financeiro de muitos Estados e instituições sociais: a pesada carga tributária. Também neste dilema político e social é possível aplicar a subsidiariedade. 57 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 186. 58 Ibid., n. 187. 59 PAPA BENTO XVI. Caritas in veritate, n. 57. 60 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 187. 61 Ibid., n. 188.

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Uma possibilidade de ajuda para o desenvolvimento poderia derivar da aplicação eficaz da chamada subsidiariedade fiscal, que permitiria aos cidadãos decidirem a destinação de quotas dos seus impostos pagos ao Estado. Evitando degenerações particularistas, isso pode servir de incentivo para formas de solidariedade social a partir de baixo, com óbvios benefícios também na vertente da solidariedade para o desenvolvimento.62

Nesse sentido, o princípio de subsidiariedade envolveria de tal modo os cidadãos que, para além de reivindicar a diminuição e/ou o cancelamento deste ou daquele imposto, passariam a pensar em qual a estratégia para melhor utilização desses recursos, destinando-os às situações mais emergentes da vida social. Assim, o princípio subsidiariedade desembocaria naturalmente em solidariedade, sendo este igualmente princípio estruturante da Doutrina Social da Igreja. A história tem demonstrado que quando se nega a subsidiariedade ou se limita o alcance desse princípio em nome de uma pretensa democratização ou igualdade de todos na sociedade, corremos o risco de limitar ou anular o espírito de liberdade, iniciativa e participação. Estes valores constituem o alicerce do autêntico desenvolvimento onde os diferentes sujeitos sociais, subsidiados, desempenhem suas próprias funções.63 2.3. O princípio da solidariedade O apelo ao princípio de solidariedade em tempos de “liquidez”64 faz todo sentido. Sobretudo se recordarmos que a expressão “solidariedade” traz na sua origem etimológica não a “solidão”, mas sim a “solidez”. De fato, solidário vem do latim 62 PAPA BENTO XVI. Caritas in veritate, n. 60. 63 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 187. 64 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

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“solidus”65 e nos remete à dimensão de alicerce, de segurança, de firmeza, de fundamento. Sendo assim, não é absurdo pensar que nossa sociedade sente falta de “virtudes sólidas”66 em vista do estabelecimento de uma autêntica “ética sólida”.67 O cristianismo foi fundado na luz do imaginário simbólico da firmeza da “pedra”. Disse Jesus a Pedro: “Tu és pedra e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”68. A partir de então os cristãos receberam o mandato perpétuo de construir uma sociedade mais justa e fraterna alicerçada na “firme rocha” dos valores do Evangelho.69 Temos necessidade de solidariedade; mentalidades, formas de agir e comprometimentos mais sólidos. A fragilidade dos vínculos relacionais, sociais e a pouca responsabilização para com os desafios humanos e ambientais exige de todos nós uma postura mais humana, isto é, solidária. “O princípio da solidariedade, também enunciado sob o nome de ‘amizade’ ou de ‘caridade social’, é uma exigência direta da fraternidade humana e cristã”.70 Especialmente a partir do princípio da solidariedade é que fica mais clara a relação entre os demais princípios da Doutrina Social da Igreja. “A subsidiariedade sem a solidariedade decai no particularismo social, a solidariedade sem a subsidiariedade decai no assistencialismo que humilha o sujeito necessitado”.71 A solidariedade reclama subsidiariedade porque todos os povos devem se tornar artífices do seu destino.72 65 ERNOUT, A.; MEILLET, A. Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine. 13 ed. Paris: Klincsieck, 1951, p. 1117. 66 PAPA FRANCISCO. Laudato si’, n. 211. 67 Ibid., n. 105. 68 Cf. Mt 16,18. 69 Cf. Lc 6, 46-49. 70 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n.1939. 71 PAPA BENTO XVI. Caritas in veritate, n. 58. 72 PAPA FRANCISCO. Evangelii Gaudium a alegria do Evangelho: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Brasília: Edições CNBB, 2013, n. 190.

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Amplamente falando, a solidariedade é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum.73 Aplicando-a à distribuição dos bens, diríamos: “a solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada.”74 Nunca houve como hoje uma consciência tão generalizada do liame de interdependência entre os homens e os povos. Esta real e crescente mútua dependência é de fato uma forma de solidariedade.75 Segundo a Doutrina Social da Igreja, é solidário aquele que se sente responsável por todos os seres humanos e pela inteira criação.76 Porque “tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global.”77 O mundo humano e de todas as criaturas tem necessidade da solidariedade universal.78 A solidariedade universal é para nós não só um fato e um benefício, mas também um dever. Hoje, muitas pessoas tendem a alimentar a pretensão de que não devem nada a ninguém, a não ser a si mesmas. Considerando-se titulares só de direitos, frequentemente deparam-se com fortes obstáculos para maturar uma responsabilidade no âmbito do desenvolvimento integral próprio e alheio.79

73 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 193. 74 FRANCISCO (Papa). Evangelii gaudium, n. 189. 75 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 192-193. 76 BENTO XVI (Papa). Caritas in veritate, n. 38. 77 FRANCISCO (Papa). Laudato si’, n. 240. 78 Ibid., n. 14. 79 PAPA BENTO XVI. Caritas in veritate, n. 43.

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Não são raras as pessoas que, influenciadas principalmente por ideologias consumistas e de cunho estritamente individualista, apostam sempre mais nos próprios interesses particulares e, às vezes, mesquinhos. Nesse contexto, a autossatisfação se apresenta como a meta a ser viciosamente alcançada, à custa de tudo e de todos. O olhar humano que é incapaz de escapar do “antolho” que só permite ver a própria frente (o EU), jamais será solidário. A solidariedade não é, portanto, expressão de sentimentalismo vazio. Pelo contrário, trata-se de princípio social e de virtude moral.80 É esforço contínuo de repensar as estruturas sociais, as formas de governança, mas também refere-se às posturas livres e conscientes de indivíduos que se enxergam na complexa trama humana e ambiental e nela e por ela não se tornam indiferentes. Entre as formas de solidariedade tão urgentes em nosso tempo destacam-se a melhor repartição dos bens e a justa remuneração do trabalho.81 Quando a lógica do mercado e a do Estado se põem de acordo entre si para continuar no monopólio dos respectivos âmbitos de influência, com o passar do tempo definha a solidariedade nas relações entre os cidadãos, a participação e a adesão, o serviço gratuito.82

A construção da existência social deve ter um chão solidus. O compromisso solidário deve perpassar todas as instâncias da vida em sociedade. Sem este princípio é difícil imaginar um desenvolvimento que faça diferença na história de todos os homens e do homem todo. A prosperidade jamais será autêntica 80 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 193. 81 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 1940. 82 PAPA BENTO XVI. Caritas in veritate, n. 39.

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se o compromisso solidário for inautêntico. O bem prospera no mundo à medida em que o serviço humano para os humanos e toda a criação for verdadeiramente gratuito. O princípio da solidariedade é igualmente um apelo às questões ecológicas mais candentes. Porque “toda lesão da solidariedade e da amizade cívica provoca danos ambientais, assim como a degradação ambiental por sua vez gera insatisfação nas relações sociais”.83 Contudo, não podemos desconsiderar que o valor e o empenho solidário encontram seu espaço de sentido não exclusivamente entre os cidadãos coetâneos e/ou contemporâneos. “Já não se pode falar de desenvolvimento sustentável sem uma solidariedade intergeneracional”.84 Preocupar-se com os futuros cidadãos do mundo é um ato concreto de solidariedade que implica sentido de gratidão por tudo aquilo que recebemos de outras gerações e compromissos de alcance sustentável para aqueles que virão. “Solidariedade significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade”,85 inclusive daqueles cidadãos que nos sucederão. A solidez que o nosso tempo e o vindouro necessitam é aquela do princípio de solidariedade. Para que a economia e as finanças regressem para uma ética propícia ao ser humano, precisamos também nós regressarmos à “solidariedade desinteressada”;86 sem interesses exclusivamente econômicos, orientada para o bem comum e, sempre que necessário, efetivada via o princípio da subsidiariedade.

83 Ibid., n. 51. 84 PAPA FRANCISCO. Laudato si’, n. 159. 85 Id., Evangelii gaudium, n. 188. 86 FRANCISCO (Papa). Laudato si’, n. 58.

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Conclusão Ao final deste capítulo é importante recordar que a Igreja não tem soluções para todas as questões específicas que o mundo contemporâneo nos apresenta, sobretudo no que tange aos desafios da realidade social. A sua Doutrina, juntamente com as várias forças sociais, acompanha as propostas que correspondem à dignidade da pessoa humana e o bem da inteira criação. Por meio deste corpo doutrinal, a Igreja propõe com clareza os valores fundamentais da existência humana, para transmitir convicções que possam depois traduzir-se em ações políticas que visem o progresso sustentável da humanidade.87 Quando a Doutrina Social da Igreja nos oferece os princípios bem comum, subsidiariedade e solidariedade como conceitos fundantes do engajamento cristão, ela está exercendo, com sabedoria divina, a honestidade e o compromisso cidadão. Diante dos desafios do mundo, a Igreja jamais viverá um monólogo estéril. Por meio do seu corpo doutrinal “ela entra em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio”88. E espera encontrar interlocutores que junto com ela realizem um discurso, um diálogo, uma comunicação performativa,89 isto é, que da mútua escuta não nasçam discursos eloquentemente vazios, mas sim, concreto compromisso social. Todavia, como cristãos, humildemente devemos reconhecer: “o que está disponível a nós cristãos somente não basta para a tarefa de chegar à facticidade cristã”.90 87 Id., Evangelii gaudium, n. 241. 88 PAULO VI (Papa). Ecclesiam suam. Carta sobre os caminhos da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1965, n. 38. 89 Trata-se de “[…] comunicação que gera fatos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova.” PAPA BENTO XVI. Spes salvi. Carta Encíclica sobre a esperança cristã. São Paulo: Loyola, 2007, n. 2; confira também os números 4 e 10 do mesmo documento. 90 HEIDEGGER, Martin. Fenomenologia da vida religiosa. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 109.

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Referências BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004. Documentos da Igreja Católica CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes: Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje. 13. ed. São Paulo: Paulinas, 2003. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Petrópolis: Loyola, 1993. PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005. PAULO VI (Papa). Ecclesiam suam. Carta sobre os caminhos da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1965. JOÃO PAULO II (Papa). Fides et Ratio. Carta Encíclica sobre as relações entre fé e razão. 12. ed. São Paulo: Paulinas, 2009. BENTO XVI (Papa). Deus caritas est. Carta Encíclica sobre o amor cristão. São Paulo: Loyola, 2006. BENTO XVI (Papa). Spe salvi. Carta Encíclica sobre a esperança cristã. São Paulo: Loyola, 2007. BENTO XVI (Papa). Discurso de Abertura na Conferência do CELAM em Aparecida [13 de maio de 2007]. In: Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Documento de Aparecida. São Paulo: Paulus, 2007. BENTO XVI (Papa). Caritas in Veritate: sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade. São Paulo: Loyola, 2009. BENTO XVI (Papa). Audiência Geral: As ordens mendicantes. Disponível em: www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2010/documents/hf_ben-xvi_aud_20100113_po.html. Acesso em: 02 jan. 2020. FRANCISCO (Papa). Evangelii Gaudium. Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Brasília: Edições CNBB, 2013.

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FRANCISCO (Papa). Laudato si’. Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum. Loyola: São Paulo, 2015. Estudos ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1991. BAUMAN, Zigmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós? Rio de Janeiro: Zahar, 2015. BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. PLATÃO. República. São Paulo: Scipione, 2002. PONDÉ, Luiz Felipe. Espiritualidade para corajosos: a busca de sentido no mundo hoje. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. HEIDEGGER, Martin. Fenomenologia da vida religiosa. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2018. SILVA, M. L. L. Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009.

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12 O comprometimento ético do profissional na sociedade Sérgio Augusto Baldin Júnior1 Introdução Permanece a inquietante pergunta: o que ainda pode ser escrito e refletido sobre a ética profissional e sua incidência na sociedade hodierna? Desta questão, várias outras procedem: será que já não estão esgotadas todas as teorias e discussões sobre o assunto? Será que já não se escreveu demais e pouco se percebe? No horizonte prático, algum sinal de mudança, alguma centelha de melhora na sociedade? Todas estas são questões que já foram, estão sendo e ainda serão discutidas em tudo o que faz referência ao mundo das relações humanas e das relações em comunidade e em sociedade. Seria até mais prudente adotar a perspectiva plural no âmbito das relações em comunidades e em sociedades, visto que a pluralidade e a multidiversidade são elementos constantes em todas as construções de cenários, e isto previne, inclusive, absolutizações desnecessárias para este empreendimento. Ao menos dois fenômenos merecem particular atenção no campo do exercício profissional contemporâneo. Primeiro, as relações de trabalho estão sofrendo rápida e profunda transformação em praticamente todos os âmbitos até então tidos genericamente como estratificados. Os setores primário, secundário e terciário, aprendidos nos livros de Geografia do Ensino Fundamental 2 e Ensino Médio, até o final dos anos 1 Salesiano padre, Coordenador da Missão Institucional (CMI); Coordenador do Curso de Filosofia; Professor de Lógica, Filosofia Moral, Filosofia da Linguagem, Estética e Antropologia Teológica do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL; Professor de Acompanhamento Espiritual na Pós graduação do UNISAL – Campus Pio XI; Mestre em Filosofia com ênfase em ciências históricas e antropológicas pela Università Pontificia Salesiana de Roma; Pós-Graduado em Counseling pelo IATES – Curitiba.

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90 do milênio passado, já não se apresentam com as mesmas estruturas após a consolidação da tecnologia digital e da inteligência artificial, bem como a financeirização e especulação capital mundialmente consolidadas. Estes três setores, característicos da noção de produção, de geração de renda e de trabalho, portanto, os setores para os quais as profissões eram voltadas, não são entendidos mais como possuidores de certa autonomia uns em relação aos outros. A produção de insumos do setor primário depende da alta tecnologia para satisfazer os interesses do investidor, ao mesmo tempo que a alta tecnologia precisa, cada vez mais de insumos de qualidade para garantir sua eficiência e rentabilidade. No setor secundário, a indústria se vê cada vez mais como indústria digital, com sistemas de controle e padrões de eficiência que já apontam para uma massiva robotização do setor, com a exigência de profissionais com um perfil completamente diferente do período toyotista ou fordista. Já o setor terciário, que abrange o maior número de profissionais na contemporaneidade, vê seu leque de opções cada vez mais expandido, ao mesmo tempo em que é desafiado a lidar com as novas situações de empreendedorismo e de informalidade. Áreas terciárias, como as relacionadas à saúde, à educação, ao sistema de segurança pública e à assistência social, oscilam nas mais variadas formas, em quase todas as nações, ora embalados por narrativas e discursos estatizantes, ora por abertura gradual ou completa à especulação financeira e, às vezes, pelas duas prerrogativas ao mesmo tempo. E isto tudo ainda é apenas uma pequena parte do cenário constituído. Em segundo lugar, mas não em segundo plano, aparecem as configurações atuais de emprego, como um horizonte que precisa ser levado em conta. Segundo o relatório 2018 da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2019), dos 3,3 bilhões de trabalhadoras(es) do mundo, 61% são informais, em relação aos 39% que são formais; também, deste mesmo montante

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mundial, 52% são remuneradas(os), 34% são autônomas(os), 11% são trabalhadoras(es) familiares não remuneradas(os) e 3% são empreendedoras(es). Ainda, 10% destas(es) trabalhadoras(es) vivem em pobreza extrema e 16% em pobreza moderada. As taxas de crescimento da população ativa e de ofertas de emprego estão em queda ou estabilidade desde 2004, ao contrário da taxa de produtividade que, após uma sensível queda em 2009 e uma alta em 2011, segue em uma moderada estabilidade, mais de 1 ponto percentual acima da população ativa e do emprego. O fenômeno que se observa é o de uma estabilidade no crescimento da produtividade e uma desaceleração econômica acentuada. Tal relação tende a mudar exponencialmente o perfil profissional das próximas décadas. Cada profissional e seu conjunto de pares precisará crescer em produtividade em um grau muito maior do que sua expectativa com relação ao retorno econômico, fruto de seu trabalho e desempenho. Estes dois fenômenos, bem como a noção plural de comunidades e sociedades acompanharão este breve capítulo. 1. Interesses pessoais e interesses coletivos no horizonte de exercício das profissões Três perspectivas, ao menos desde o Período Ático da Grécia Antiga, sustentam a concepção da ética e, por consequência, da moralidade na cultura, assim chamada ocidental. Após o período da moralidade baseada na força dos heróis e dos aristocratas “fundadores” das poleis gregas, tanto o grupo dos filósofos quanto o dos sofistas começam a desenvolver novas perspectivas que pretendiam ser capazes de manter o convívio entre as pessoas através de liames, que pretensamente trariam certa consistência e estabilidade social. Desenvolvida por Platão, tendo por base a ideia de uma ética universal sustentada no mundo das ideias, a moral socrática 295


colocava o saber e a ética coletivos como prioritários em relação ao agir individual, pois derivados de uma instância maior: a sabedoria que contempla o mundo das ideias e que, portanto, ordena o conjunto do conhecimento e das atitudes humanas. Aristóteles, por sua vez, tendo como base a experiência da cotidianidade, indutivamente, coloca ao centro o indivíduo, que por sua vida virtuosa ou viciosa, irá incidir diretamente em como vivem os demais indivíduos na pólis. Tanto a vida ativa quanto o gozo dos prazeres da vida e a vida contemplativa, na perspectiva aristotélica, dependem desta moral em primeira pessoa para se consolidarem na sociedade. Já o grupo dos sofistas, por mais que representassem uma multiforme gama de espectros com relação às teorias do conhecimento e às práticas sociais, merece particular destaque devido ao confronto com as tradições morais dos heróis e dos aristocratas, principalmente por força de sua mobilidade entre as poleis gregas, o que permitiu uma relativização das normativas éticas, colocando-as sob o jugo das convenções. O desenvolvimento da técnica de persuasão para o convencimento sobre o agir ganhou contornos tão importantes ao ponto de obrigar os filósofos, dentre os quais, os referidos acima, a elaborarem respostas mais pertinentes em relação às categorias naturais e convencionadas do agir humano. Estes três espectros irão acompanhar praticamente todo o percurso histórico da ética e da moral ocidental, desde seus primórdios até a contemporaneidade. Assim, a perspectiva dedutivista de uma ética universal, a perspectiva indutivista, que não necessariamente é opositora da primeira, e o convencionalismo ético (radical ou moderado) parecem conceder à contemporaneidade as diversas tonalidades e formas que a ética profissional, dentro do conjunto tratado por Ética, assume.

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Ainda há que se enfrentar, nos tempos atuais, quatro outras problemáticas que não são irrelevantes e duas perspectivas: a noção de comunidades e a noção de sociedades, em parte, derivam do desenvolvimento das três concepções de ética anteriores. Se situadas no plano estrito das ideias, as noções de comunidade e sociedade são desenvolvidas, via de regra, no singular, pois, partem de ideias gerais que se deduzem nas diversas expressões e localidades no mundo: esse agrupamento de pessoas forma uma comunidade; esta comunidade, por sua vez, pertence a algo abstratamente maior, a sociedade. Em uma perspectiva proveniente do idealismo alemão, esta sociedade que abarca consigo o ideal de realização das práticas humanas, para Hegel, chamar-se-á Estado.2 É o Estado, como representação da vontade absoluta, que une as vontades individuais em torno de um bem, regulando inclusive suas práticas. Exercer uma profissão, nessa perspectiva, significa fazer parte de um corpo, uma corporação (pública ou privada) que visa salvaguardar o bem do Estado, ou seja, o bem de todos. Permanecerão, por mais que no horizonte prático sejam plurais, as ideias singulares de comunidade e de sociedade. Já no que toca o dado da experiência, dentro da perspectiva indutivista, duas correntes se formam: uma de caráter experimental de moralidade, posta em terceira pessoa, que delineia o utilitarismo ético e moral (tendo como expoente David Hume, embora este não seja utilitarista em sentido estreito); e uma segunda, em primeira pessoa, que, recuperando Aristóteles, em uma leitura realista a partir de Santo Tomás de Aquino, apresenta o caminho de uma vida de práticas virtuosas, como necessário para a efetivação do convívio humano nas comunidades e nas sociedades. 2 Para um maior aprofundamento sobre esta temática, sugiro a leitura de: HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Porto Alegre: Martins Fontes, 1997.

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A primeira visão, na qual o acento ao útil prevalece, aproxima-se de um relativismo próprio dos sofistas de outrora, acentuado, em uma atualização para a ética profissional destes tempos, no jargão: Minhas atitudes e como eu ajo no desempenho da profissão permanecem somente enquanto estou no exercício desta. Terminado o tempo de expediente, vivo como acho que devo viver. Vida privada e vida profissional parecem estar em um contínuo processo de dissociação. Ora, tal acento individualista e instrumental do exercício da profissão leva a uma perigosa noção de instrumentalização da comunidade e da sociedade, por consequência. Sociedade, comunidade, instituições e os demais seres humanos estão sob a determinação do indivíduo, são espectros (ou representações) do “si mesmo”. Nessa perspectiva, o racionalismo cartesiano, que inaugura, em certo aspecto a modernidade, confunde-se com o utilitarismo próprio da revolução industrial, alavancados por uma primazia do sujeito, própria do século XX e que gera uma ética puramente alicerçada em interesses particulares, extremamente exploratórios. Pois bem, se a regra é explorar e atingir o máximo de sucesso pessoal, as perspectivas orgânica, sistêmica, institucional, colaborativa, comunitária e social do trabalho são eclipsadas pelo interesse pessoal. Pode-se ousar afirmar que aqui se desenvolve uma categoria egoísta de ética profissional. Não há sentido para o trabalho e o empenho a ser realizado, apenas lucro e satisfação das próprias necessidades. Nessa configuração, o empenho profissional se estabelece, via de regra, na performatividade, visto que o “agir profissionalmente” entra no jogo de papéis para atingir o máximo de vantagem em tudo – quase que uma radicalização da teoria moral de Thomas Hobbes.3 Certamente, este jogo performativo 3 O princípio do contratualismo de Hobbes aparece sobremaneira na obra: HOBBES, Thomas. Leviatã – ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Trad. Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2014. Para a leitura crítica deste tema,

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gerará desvantagem para outrem. Uma possível alternativa seria o exercício da profissão a partir da ética deontológica, como um aperfeiçoamento do que foi preconizado por Immanuel Kant4 que, na esteira idealista, configura o agir humano alicerçado na ética do dever e na regra de ouro: “não fazer ao outro o que não desejo que seja feito a mim” ou, de modo positivo: “faço ao outro o que desejo que seja feito a mim”. Tal regra, vinculada ao imperativo do agir bem em todas as circunstâncias, mesmo que isso signifique prejuízo para si mesmo, parece uma eficaz alternativa ao utilitarismo radical. Um profissional que pauta sua ação por este princípio, sempre colocará em primeiro lugar o bem comum, o bem comunitário e o bem social. Porém, há de se levar em conta que o sujeito agente pode ter interesses e predisposições divergentes ou até mesmo contrárias à instituição, comunidade ou sociedade da qual faz parte. Como resolver tal dilema? Faz-se urgente resgatar a leitura tomista acerca da ética aristotélica, apenas citada anteriormente e que agora, poderá ocupar um lugar central de norteadora do agir profissional. Tomás de Aquino apresenta uma leitura bastante consistente com relação ao agir baseado em uma perspectiva teleológica, do fim último, levando em consideração a totalidade do percurso de vida de cada pessoa. As práticas virtuosas não constituem um fim em si mesmas, mas corroboram para a felicidade ou, na perspectiva tomista, para o fim último, a realização da plenitude possível de cada ser humano em vista do bem maior, transcendente. É uma moralidade baseada no agir virtuoso e na vida virtuosa que predispõe cada pessoa no caminho da realização de um projeto de felicidade, alicerçado na responsabilidade e no empenho quotidiano. sugerimos: ABBÀ, Giuseppe. História Crítica da Filosofia Moral. Trad Frederico Bonaldo. São Paulo: Raimundo Lulio, 2011. p. 171-210. (Manuais de Filosofia). 4 Duas obras de I. Kant merecem destaque: KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967; KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, s.d. (Textos filosóficos).

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Mas, como tal prerrogativa moral pode se tornar balizadora da ética profissional? A resposta não é fácil de ser identificada, tampouco simples na sua implementação. Agir eticamente, em um contexto de responsabilidade e a partir da primeira pessoa exige, por mais paradoxal que seja, uma noção e um engajamento institucional, comunitário e social muito grande. Se, para atuar em instituições e comunidades justas, a prerrogativa moral tomista oferece a cada pessoa os balizadores da responsabilidade e da prática das virtudes quotidianas, ao mesmo tempo, não prescinde da necessidade de que as instituições e estas mesmas comunidades estejam, também elas, articuladas de forma virtuosa e justa, mais especificamente, de maneira ética. A grande diferença com relação ao modelo estritamente deontológico, que pressupõe esta ética já na ideia própria de instituição e de comunidade, está na vinculação com a teleologia aristotélica da felicidade como fim último e como realização que, na atualização tomista, necessita das práticas virtuosas, embora estas não sejam fins em si mesmas para que, no conjunto vivido, tal realização seja alcançada. Assim, a vida virtuosa do profissional vinculada à vida virtuosa dos demais profissionais que atuam nas instituições e nas comunidades são necessárias para o desenvolvimento responsável das mesmas, uma vez que a pluralidade e a diversidade de manifestações institucionais, comunitárias e sociais são o fenômeno mais perceptível da atualidade. Tal processo, longe de cair na tentação relativista do convencionalismo radical, exige diálogo e grande capacidade de enfrentamento e superação de conflitos, principalmente face aos novos desafios que o exercício das profissões enfrentará nas próximas décadas.

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2. Desempenho, produtividade e expectativa remuneratória, desafios atuais para uma ética profissional em primeira pessoa As profissionais e os profissionais engajados em uma ética profissional em primeira pessoa irão se deparar com alguns desafios: a sociedade e as relações trabalhistas pautadas pelo desempenho, pela produtividade e pela expectativa remuneratória. Sobre o desempenho e a produtividade, vale recordar que cada vez mais a sociedade apelidada de 4.0 (indústria 4.0; comércio 4.0; educação 4.0; internet das coisas; hiperconexão 4.0 etc.) apresenta como sinônimo justamente este termo: sociedade do desempenho. Quanto melhor o desempenho, quanto melhor a performance laboral, mais reconhecidos são as e os profissionais e mais valor e reconhecimento adquirem no mercado. Quanto mais resultados e produtos geram, mais eficientes, solicitadas e solicitados se tornam. Tal perspectiva seria uma infalível receita para o sucesso, não fosse uma realidade dura: é irreal e fantasiosa a perspectiva de que todos que tenham grande motivação e um excelente desempenho e produtividade alcancem, necessariamente, o sucesso (entendido grosso modo nesta perspectiva do discurso comum vigente) e a valorização profissional almejada, bem como a remuneração condizente com isso. Performance e oportunidades não necessariamente estão relacionadas com empenho profissional, mas são, na maioria dos casos, processos especulativos sociais, criados e desenvolvidos particularmente na liquidez dos processos sociais e culturais atuais. Reunidos todos estes fatores, uma ética profissional estruturada em primeira pessoa vai preconizar não o desempenho e o resultado a qualquer custo, em uma lógica de competitividade, mas uma perspectiva de colaboração e de sentido coletivo no qual o trabalho e o exercício da profissão estão posicionados 301


mais em vista do bem comum a todos e o fortalecimento dos vínculos sociais do que em vista de uma boa performance individual. Destarte, o bom desempenho e a produtividade estão em vista de um bem maior que ultrapassa a própria pessoa, sua instituição ou empresa e atinge toda a comunidade, ou comunidades. O valor profundo e significativo do trabalho passa a ter relação profunda com o desenvolvimento humano em cada local ou região ao qual ele se destina. O profissional ético, realiza, colabora e participa da construção e efetivação de sociedades pautadas nos direitos humanos, na justiça e na colaboração social, bem como no desenvolvimento de estratégias criativas e duradouras para o bem comum. O parágrafo acima pode parecer muito restritivo a uma pequena parcela da população que exerce alguma função colaborativa de liderança, mas na realidade quer explicitar o compromisso de levar a cabo tudo que se realiza, opera e empreende na mesma perspectiva, no mesmo horizonte, respeitadas as diversidades e pluralidades como princípios basilares. Isto não pretende significar uma homogeneização de atitudes ou de posturas, mas a garantia de princípios possíveis de solidariedade e subsidiariedade. Todas e todos que realizam atividades profissionais são, por força da responsabilidade inerente à própria condição profissional, colaboradoras e colaboradores neste processo de desenvolvimento da sociedade. Aqui, não se pretende delinear desenvolvimento como aumento de capital ou aumento de consumo, mas desenvolvimento humano, cidadão e solidário das sociedades e das comunidades. Ainda uma palavra sobre a expectativa remuneratória. Se os atributos desempenho e produtividade precisam ser pautados pelo horizonte da justiça social, o dilema da remuneração necessariamente passa pela perspectiva dos empreendimentos, institutos, organizações e empresas que permeiam suas atividades laborativas de princípios éticos e o mais possível,

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justos. O caráter exploratório do trabalho e os regimes de competitividade cega fortalecem dois aspectos sociais: a violência e o adoecimento das profissionais e dos profissionais. A via institucional também precisa pautar sua atividade em princípios e valores comuns e próprios de sociedades cada vez mais colaborativas e inclusivas, tornando-se, sob o ponto de vista da ética tomista,5 instituições virtuosas, capazes de colaborar essencialmente para a melhoria das condições de vida em comunidade e em sociedade. Mas não só: as instituições e seus profissionais são corresponsáveis pela “casa comum”, pela preservação e sustentabilidade de micro e macrorregiões, bem como pelo fortalecimento dos sistemas ecológicos e biomas de onde atuam, recordando que a dimensão ecológica diz respeito não somente à natureza e ao meio ambiente, mas também às relações que se estabelecem nestes ambientes. Não é responsável uma instituição e seus profissionais que desconsideram a preservação e o cultivo das boas relações com o seu entorno institucional, tampouco com os núcleos familiares de seus colaboradores, mesmo que possua eficientes sistemas de preservação ambiental, nos parâmetros mais estritos da legislação vigente. Em se tratando de legislação, vale o princípio do máximo de justiça em cada ação e em cada exercício profissional. É importante recordar que nem toda lei e nem toda legislação é regida pelo princípio da justiça. Portanto o desenvolvimento profissional, por mais que seja pautado pela legislação em cada tempo, deve recordar que esta é imperfeita e sempre passível de melhoras e acréscimos. Daí a importância da ética em primeira pessoa, uma vez que o critério que salvaguardará o bom termo da atividade profissional será sempre o discernimento da pessoa em cada situação-problema em que ela estiver inserida ou a qual for invocada. 5 Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Segunda parte da segunda parte. Questões 1 a 18. Porto Alegre: Sulina, 1980.

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3. Comprometimento, solidariedade e engajamento: três matizes da justiça social e da ética profissional Como evidenciado no subtema anterior, ética profissional em primeira pessoa pressupõe comprometimento, solidariedade e, acima de tudo, engajamento para desenvolver não somente a instituição, mas tudo aquilo que, ao redor, apresenta-se como necessário para o bem das pessoas, da comunidade e da sociedade como um todo. Mas o que significa ser comprometido em primeira pessoa? O que significa ser solidário em primeira pessoa? E o que significa ser engajado em primeira pessoa? A primeira e mais tentadora tentativa de resposta tende a relacionar as três perspectivas na esfera privada, da subjetividade. Se, por um lado, o empenho da vontade e a predisposição pessoal são fatores essenciais para levar a cabo um processo de responsabilização como o acima apresentado, por outro, é completamente insuficiente manter tal postura pessoal simplesmente no horizonte da subjetividade. A atitude moral em primeira pessoa requer um considerável empenho no que toca a objetividade, principalmente pela necessidade de sintonia com a realidade extrínseca a cada pessoa. Destarte, comprometimento requer um complemento: “com quais situações, com quais pessoas, com quais instituições”. Da mesma forma, solidariedade pressupõe um “para com quem, para com o quê”. Por fim, engajamento requer um “em que, em qual causa”. As três palavras-chave deste subcapítulo remetem a uma objetividade externa ao sujeito realizante, ao sujeito da ação, ao profissional. Aqui, as perspectivas da colaboração social e do utilitarismo moral encontram certa dificuldade em sua implantação de maneira exclusiva, visto que a noção de máximo proveito para si e para os outros (colaboração social) precisa ser revista, bem como a noção de obter o que é mais útil e maximamente vanta304


joso para si, em todas as circunstâncias (utilitarismo), prejudica o horizonte da alteridade. Em linhas gerais, comprometimento, solidariedade e engajamento podem, outrossim, desenhar um prejuízo ou um empenho não exitoso para o profissional, visto que são atitudes que, como vimos, requerem interlocutores ou sujeitos externos ao próprio profissional e que, em muitas circunstâncias, fogem do horizonte de possibilidade pessoal de resolução ou de encaminhamento vantajoso. Assim, nem sempre será possível conciliar ética profissional em primeira pessoa com vantagem profissional, tendo em vista que (tampouco) este seja o horizonte da presente reflexão: uma proposta de moral egoística predatória. Os três elementos aqui evidenciados, antes de tudo, são balizadores de um empenho contínuo de responsabilidade e transformação social. O comprometimento solicita, do profissional que atua em primeira pessoa, uma cosmovisão mais aguçada, convocando-o à atualização constante, ao manejo adequado de informações para que se transformem em conhecimento e, quiçá, em sabedoria de vida, não para si, mas em vista do bem e da preservação do todo. O profissional comprometido, o é também em vista da sustentabilidade natural e ambiental, corresponsável que é pelo crescimento e desenvolvimento prudente do bem-estar de todos. A solidariedade requer, do profissional que age em primeira pessoa, um profundo sentido de alteridade e de empatia. Não basta ser simpático aos olhos observadores externos, a empatia que é requerida pela solidariedade perpassa o horizonte da aceitação incondicional da verdade que é o outro, sem que com isso se possa cair em um relativismo valorativo. “Colocar-se na pele do outro, da outra” é atitude central para o exercício da solidariedade. O engajamento convoca o profissional que age em primeira pessoa para um posicionamento político, como sujeito que age e transforma, interage e desenvolve a cultura e a comunidade em

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que está inserido. Nesse aspecto, mais do que nos anteriores, a atuação profissional encontra-se em constante diálogo com a instituição, com a comunidade externa ao ambiente de trabalho e com a sociedade como um todo. Atuar profissionalmente requer consciência de que se faz isso por meio de processos e percursos políticos. Aqui, vale a pena recordar que a ação e o engajamento políticos não correspondem a determinado tipo de posicionamento político, embora ambas as realidades possam coincidir. Comprometimento, solidariedade e engajamento concorrem, então, para a promoção da justiça social, na medida em que se compreende a atuação profissional como colaborativa no processo de estabelecimento do bem de todos e se recupera a noção de que o trabalho a ser desenvolvido por todos serve para o bem e o progresso de todos, não em um sentido científico-positivista, mas em um sentido mais abrangente, visto que o progresso civilizatório não necessariamente está vinculado ao desenvolvimento de novos meios de consumo e de tecnologia. O trabalho, antes de tudo, concorre para o desenvolvimento humano e para o aprimoramento de suas relações, consigo, com os outros, com a natureza e com tudo aquilo que o transcende. A justiça social, nesse sentido, não se equipara a um igualitarismo ou a um distributivismo impessoal. Ao contrário, quanto mais cada pessoa é reconhecida em suas particularidades e potencialidades, mais justiça se alcança para todos, de maneira abrangente. A ética profissional se torna a arte de colaborar neste processo, como um dos caminhos possíveis para a realização e estruturação destes ideais de justiça.

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Conclusão A proposta, à guisa de conclusão, para este breve capítulo não é a de estabelecer uma dialética inconciliável entre a pessoa que age e atua profissionalmente e a instituição de trabalho ou à comunidade à qual aquele trabalho atende, mas de estabelecer uma hermenêutica entre a responsabilidade inerente à condição de quem exerce determinado tipo de profissão e o conjunto dos espaços em que ela se realiza. Tal hermenêutica envolve muitos processos, interesses pessoais e da coletividade, muitas expectativas, de desempenho, de resultado, muitos fracassos, que são também tentativas que envolvem criatividade e inventividade e que convergem em uma atitude comprometida, solidária e engajada que visa e almeja o bem social de todos. Pensar uma ética profissional que se afaste do horizonte supracitado, significaria alijar-se da responsabilidade de construir uma humanidade cada vez melhor. Referências ABBÀ, Giuseppe. História Crítica da Filosofia Moral. Trad. Frederico Bonaldo. São Paulo: Raimundo Lulio, 2011. (Manuais de Filosofia). AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Segunda parte da segunda parte. Porto Alegre: Sulina, 1980. APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Petrópolis: Vozes, 1994. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2001; 2006. BAUMAN, Zygmund. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. HAWLS, John. História da Filosofia Moral. Porto Alegre: Martins Fontes, 2005. HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Porto Alegre: Martins Fontes, 1997. 307


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Posfácio No prefácio há uma pergunta sem resposta aparente, ou melhor, um questionamento que foi respondido nas linhas precedentes deste livro. A discussão sobre a ética é variada e muitas vezes conflituosa. Em determinadas circunstâncias uma ação individual ou coletiva pode ser encarada como ética sob um determinado prisma e por uma outra abordagem o mesmo evento pode ser considerado não ético ou mesmo antiético. Inclusive há a possibilidade de uma lei não ser ética ou até mesmo ser antiética. A legislação arquiteta um conjunto de leis para dirimir conflitos em sociedade, ou seja, qualquer legislação busca a resolução de conflitos e, consequentemente, a relação harmoniosa entre os sujeitos. Porém, para um conjunto de leis ser considerado, bom precisa buscar sua dimensão ética. Você leitor ou você leitora, após ter estudado os capítulos deste livro, pode agora entender a seguinte frase: a ética legitima uma lei, porém o compromisso ético vai além da exigência legal. A exigência legal não esgota o compromisso ético. Às vezes, não transgredir as leis não é suficiente para uma pessoa se declarar ética. Quando alguém percebe que o compromisso ético transborda os limites de qualquer lei é porque compreende que a atitude ética ou moral faz parte da constituição da própria pessoa, de si mesma. Pensar a ética é refletir sobre o ser humano em suas condições de vida. Mas, daí alguém pode inferir que em cada situação prática da vida existe uma ética diferente. Ou seja, podem existir várias éticas? Como os leitores puderam analisar nas páginas do livro, há correntes diferentes de ética, com cada uma oferecendo distintas possibilidades de resposta. 309


Então, qual ética alguém deve adotar na sua vida? A resposta é simples, porém instigante. Antes de respondê-la é preciso ter em mente uma pergunta anterior. Qual a visão de pessoa humana, uma determinada corrente de pensamento possui? Um exemplo, se uma escola de pensamento tem por convicção que o ser humano é bom em sua natureza, esta mesma escola proporá a liberdade como algo fundamental de todo o ser humano. Mas, se outra escola tem como opinião que o ser humano é mal, proporá o controle de toda a sociedade, pois, é preciso prevenir os males que podem ser causados pela ação humana. Ambas as escolas de pensamento são coerentes entre o princípio assumido e as ações propostas. Caro leitor e cara leitora, aqui se encontra o ponto fulcral da reflexão proposta desde o início do texto: qualquer ética se funda na definição de quem é a pessoa humana. Se somos pessoas no seio de uma comunidade e no mesmo instante que a sociedade me influencia eu também influencio as pessoas ao meu redor, qual a visão de ser humano que alguém deveria ter? A mais inclusiva. Em qual sentido? A que perpetuará tanto o sujeito singular quanto toda a comunidade na qual a pessoa se encontra. Naturalmente, este livro possui o objetivo de ser uma introdução aos alunos universitários na discussão sobre ética e cidadania e, por isso, está longe de esgotar o assunto e seus impactos na vida quotidiana. Mas, se o leitor ou a leitora que chegou até aqui sente ainda uma necessidade de maior aprofundamento é sinal de que compreendeu bem os questionamentos propostos e pode seguir em frente em seus estudos, pois, percebe como os temas são pertinentes tanto em âmbito pessoal quanto comunitário. P. Eduardo A. Capucho Gonçalves Reitor Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL) 310





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