Livro No alvoroço

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A comunidade negra de Santa Maria e sua Irmandade do Rosário (1873-1942)

ênio grigio


Publicação da Câmara Municipal de Vereadores de Santa Maria que promove a cultura local por meio de publicações anuais, através do Concurso Lei do Livro, que incentiva a divulgação de temas relevantes relacionados à cultura e história Santa-Mariense. A obra foi selecionada por uma comissão integrada pelo Conselho de Cultura do Município, Academia Santa-Mariense de Letras e Casa do Poeta de Santa Maria. Serão distribuídas gratuitamente para a comunidade, escolas, bibliotecas, instituições culturais, educacionais e de pesquisa. Mesa Diretora – Gestão 2019 Presidente: Verª Maria Aparecida Brizola (PP) 1º Vice - presidente: Vera. Luci Duarte - Luci Tia da Moto (PDT) 2º Vice - presidente: Verª Deili Silva (PTB) 1a Secretário: Ver. Alexandre Vargas (PRB) 2a Secretário: Leopoldo Ochulaki - Alemão do Gás (PSB) 1º Suplente: Ver. Admar Pozzobom (PSDB) 2º Suplente: Ver. Daniel Diniz (PT) Direitos de reprodução reservados à Câmara de Vereadores de Santa Maria, RS. Comissão Julgadora 14ª Edição Conselho Municipal de Cultura – Haydée Hostin Lima Academia Santa-mariense de Letras – Carlos Alberto Belinasso Casa do Poeta – Denise Beatriz da Silva Reis Projeto gráfico e diagramação: Pablo Moreira de Mello Capa: Jamille Marin Coletto Revisão: Fernanda Araujo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Instituto Federal Farroupilha – Campus Júlio de Castilhos Processamento Técnico. G857n Grigio, Ênio “No alvoroço da festa, não havia corrente de ferro que os prendesse, nem chibata que intimidasse”: a comunidade negra e sua Irmandade do Rosário (Santa Maria, 1873-1942)./Ênio Grigio - Santa Maria: Câmara Municipal de Vereadores de Santa Maria, 2018. 320 p. :

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30 cm.

Este livro é resultado do doutorado em História (2016) – Unisinos. Inclui bibliografia e anexos. ISBN: 978 – 85 – 66758 – 08 - 5 1. Igreja 2. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário 3. Santa Maria da Boca do Monte 4. Pós-abolição. 5. Associativismo negro I. Título. CDU: 930.85 “18/19” (816.5) Índice para o catálogo sistemático: 27-9

Igreja

Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária Joice Nara R. Silva – CRB 10/1826


Para José e Isolema, meus pais e meus exemplos Para Eulália Maria Fin, pelos seus ensinamentos de como encarar a vida e os desafios que ela impõe. Para todas as pessoas que lutaram e que lutam por uma sociedade justa e igualitária, livre do preconceito e do racismo.



Agradecimentos A elaboração de uma tese de doutorado e a transformação dela em um livro é sempre o resultado de um trabalho coletivo. Muitos indivíduos e instituições contribuíram para que pudéssemos desenvolver efetivamente este trabalho e, por isso, quero deixar aqui um agradecimento especial. A ordem é aleatória e não obedece a critérios de importância. À Universidade do Vale do Rio dos Sinos e ao Programa de Pós-Graduação em História e sua equipe competente de professores. Foram momentos de muita aprendizagem que vivemos em cada aula, em cada evento ou nas conversas diárias. Aos professores Júlio Ricardo Quevedo dos Santos (UFSM), Vitor Otávio Fernandes Biasoli (UFSM), Eliane Cristina Deckmann Fleck (UNISINOS) e Leandro Jorge Daronco (IF FARROUPILHA), por participarem da Banca de Qualificação e Banca de Defesa e aprimorarem a estrutura e a organização da pesquisa e da escrita. Este trabalho exigiu muitas horas de pesquisa em Arquivos e meu agradecimento especial a todos os profissionais que são os “guardiões” de muitas de nossas fontes de pesquisa: - Ao Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria (AHSM), dirigido pela arquivista Daniéle Xavier Calil, por ser sempre atenciosa com todos os frequentadores e por possuir uma equipe de funcionários e estagiários que realizam um atendimento elogiável. Sempre será muito bem atendido quem for pesquisar no AHSM. - À Therezinha de Jesus Pires Santos e Gilda May Cardoso, por “abrirem” as portas da Casa de Memória Edmundo Cardoso e disponibilizarem o rico acervo deste escritor/pesquisador/artista para a comunidade. A paixão dessas mulheres pela cultura e pela história é tão significativa que elas se tornaram “parceiras” na pesquisa, selecionando documentos, indicando livros e separando fotografias, junto a sua equipe de arquivistas e estagiários. - À equipe de profissionais que trabalham na guarda e disponibilização de documentos no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) e Arquivo da Câmara Municipal de Santa Maria (ACMSM) – por facilitarem a realização de pesquisas históricas;


Aos profissionais, por facilitarem e permitirem o acesso aos documentos eclesiásticos guardados nos arquivos das paróquias e dioceses de Santa Maria, Cruz Alta e Porto Alegre. Meu agradecimento ao IF Farroupilha, por criar o Programa de Incentivo a Qualificação Profissional e financiar parte da pesquisa. Meus agradecimentos a todos os colegas do IF Farroupilha, por me apoiarem e incentivarem na realização desta pesquisa. Ao prof. Aristeu Castilhos da Rocha, colega de história, por assumir a maior parte dos compromissos do Campus Júlio de Castilhos para que eu pudesse me dedicar a este estudo. A todos os colegas do Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos, especialmente Hermes Gilber Uberti e Liriana Zanon Stefanello, pela companhia e conversas nas viagens entre Santa Maria e Porto Alegre. À Giane Vargas Escobar e Franciele Oliveira, pela constante troca de informações e documentos que enriqueceram esta pesquisa. Aos meus pais José Búrigo Grigio e Isolema Brembati Grigio que, embora tivessem pouco acesso à educação formal, sempre souberam de sua importância e fizeram de tudo para que os três filhos garantissem os estudos na educação básica. São meus guias e meus exemplos. A toda a minha família, pelo incentivo e por dar todas as condições para que eu pudesse me dedicar a este estudo. Meu agradecimento especial à Eulália Maria Fin, companheira de todas as horas, por acompanhar-me em cada passo deste trabalho e por compreender a dedicação que ele exigia. Ao prof. Paulo Roberto Staudt Moreira, por todo o aprendizado que tive nos quatro anos de doutorado. Tudo ficou fácil com a orientação do prof. Paulo. Suas sugestões e indicações fizeram toda a diferença na condução da pesquisa. À competente prof. Fernanda Araújo, pela revisão ortográfica. À Câmara Municipal de Vereadores, pela publicação deste trabalho e por investir na popularização da arte, da cultura e da história por meio da seleção e distribuição gratuita de livros que enriquecem o conhecimento sobre a cidade. À Comissão Julgadora 13ª edição da Lei do Livro, Maria Ednara Leão Moreira (Conselho Municipal de Cultura), Carlos Alberto Belinasso (Academia Santa-mariense de Letras) e Adalberto Rossatto (Casa do Poeta) pela escolha desta obra. Nesta fase final, foram fundamentais o apoio e o trabalho de Maria Rita Py Dutra, que faz a apresentação deste livro; Pablo Mello, pela diagramação, trabalho com as imagens e ideias na produção; Jamille Marin Coletto, pela ilustração e produção da capa; Alexandra Ribeiro de Souza Schimanko (Relações Públicas da Câmara Municipal de Vereadores), por todas as orientações e auxílio na produção desta obra.


Sumário 1. INTRODUÇÃO..............................................................15 2. ORIGENS E DIFUSÃO DAS IRMANDADES DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO...............................................29 . 2.1 A Origem das Irmandades...........................................................................32 2.2 A Devoção a Nossa Senhora do Rosário..............................................35 2.3 As Irmandades Negras no Brasil – Uma Breve Análise Historiográfica....................................................................................49

3. IRMANDADES E RELIGIOSIDADE NO RIO GRANDE DO SUL.............................................................................55 3.1 O “Mercado Religioso” no Rio Grande do Sul: Irmandades e Ordens Terceiras.............................................................................................58 3.2 Para que se celebre o Santo Sacrifício da Religião, com aquela Decência que é devida....................................................68 3.3 As Irmandades Negras no Rio Grande do Sul................................78

4. ESCRAVIDÃO, IRMANDADES E IMIGRAÇÃO ALEMÃ EM SANTA MARIA..........................................................85 4.1 Irmandades em Santa Maria da Boca do Monte....................................95 4.2 Alemães e Senhores de Escravos.....................................................................101

5. O COTIDIANO DA ESCRAVIDÃO E O CONTEXTO DA CRIAÇÃO DA IRMANDADE DO ROSÁRIO EM SANTA MARIA..............................................119 5.1 A Escravidão em Santa Maria da Boca do Monte nas Memórias de João Daudt Filho...........................................................................................................124 5.2 A Criação e a Dissolução da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário......................................................................................................................143


6. “AGORA QUE ESTÃO SENTADOS NO BANQUETE DA FORMOSA LIBERDADE”: O RENASCIMENTO DA IRMANDADE NO PÓS-ABOLIÇÃO.........153 6.1 O Renascimento da Irmandade.......................................................163 6.1.1 Um local para a sede da Irmandade.................................................167 6.1.2 A construção da Capela........................................................................170 6.1.3 Vila Rica: um bairro negro................................................................177

6.2 A Sociedade Beneficente Irmandade do Rosário................181 6.3 As Festas e as procissões da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário..................................................188

7. OS IRMÃOS DO ROSÁRIO: ENTRE A ESCRAVIDÃO E A LIBERDADE..............................................................................................195 7.1 Sisnando Antônio de Oliveira............................................................200 7.2 José Francisco do Nascimento.........................................................215 7.3 Adão Gabriel Haeffner e Antônio Gabriel Haeffner...........225 7.4 Osório Nunes do Nascimento..........................................................232

8. A IRMANDADE DO ROSÁRIO E O PADRE CAETANO PAGLIUCA...................................................................................239 8.1 A Irmandade do Rosário versus Caetano Pagliuca............250 8.2 Disputas, Fatos e Versões: a (Des) Construção de uma Memória................................................................................................268

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................277 LISTA DE SIGLAS.................................................................................................284 FONTES.....................................................................................................................286 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................292 ANEXO 01...................................................................................................................316 ANEXO 02..................................................................................................................318


Prefรกcio Por Maria Rita Py Dutra



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Na história do Brasil, a figura do negro esteve ligada à manutenção do bem estar das classes dominantes, no papel de escravizado, forjando e perpetuando uma ética conservadora e desigualitária, no linguajar de Milton Santos. Ética essa que naturalizou as imagens da casa grande e senzala e as relações de exploração da mão de obra escravizada. No Rio Grande do Sul, após os anos 30, com a construção do mito do gaúcho, referenciados na literatura regional, nas artes e no próprio movimento tradicionalista, negros e indígenas gradativamente foram sendo invisibilizados, ocupando posição periférica, reduzidos a meros coadjuvantes. Ao mesmo tempo, espraiava-se a tese da convivência harmoniosa, do negro submisso e fiel ao seu senhor, a qual foi derrubada com a pesquisa magistral de Clóvis Moura apresentada na obra Rebeliões das Senzalas: quilombos, insurreições, guerrilhas, publicada em 1ª edição, em 1959. Em pesquisa documental, Moura mapeou dezenas de quilombos, altamente organizados, alguns deles com exércitos formados com mais de 20 mil homens. Tal obra foi um impacto na história oficial brasileira e, infelizmente, não posso afirmar que a mesma seja de conhecimento de todos os estudiosos e pesquisadores da área. Um pouco mais de meio século depois de Rebeliões das Senzalas, Ênio Grigio nos presenteia com a obra, também magistral No Alvoroço da Festa, não havia Corrente de Ferro que os Prendesse nem Chibata que Intimidasse: a Comunidade Negra e sua Irmandade do Rosário (Santa Maria, 1873-1942). A magnitude da pesquisa elucida alguns pontos: numa região de estancieiros, militares, alemães e italianos, metade da população é formada por negros e a Igreja Católica tinha interesse em conquistar esse contingente, iniciando-os na fé; imigrantes alemães proprietários de escravizados; o atual Bairro Rosário, antigamente Vila Rica, foi um território negro, onde funcionou a Irmandade do Rosário, a Capela de Nossa Senhora do Rosário, a Sociedade União Familiar e a Sociedade Recreativa Cultural Treze de Maio. Em virtude de uma disputa judicial entre a Irmandade do Rosário e o Padre Caetano Pagliuca, a Igreja foi demolida. O interesse do professor Ênio Grigio sobre a temática das Irmandades Religiosas teve início em 1998, quando ele ingressou no curso História da Universidade Federal de Santa Maria, durante uma aula da Profª Beatriz Teixeira Weber, quando se debatia o papel das irmandades religiosas nos diferentes períodos da história do Brasil. Instigado pelo tema, ao concluir a graduação em História, Grigio ingressou no curso de Especialização em História onde apresentou, em 2003, a Monografia de Especialização: A Irmandade De Nossa Senhora do Rosário em Santa Maria/RS (1873-1915): uma trajetória de conflitos, sob orientação da Profª Beatriz Teixeira Weber. Documentos são levantados, o conflito da comunidade negra com o pároco local, Padre Caetano Pagliuca é


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evidenciado, resultando em disputas judiciais com resultados paradoxais, além de uma série de questões não respondidas sinalizam que era preciso continuar as pesquisas, preencher lacunas, mergulhar mais profundamente em jornais arquivos, documentos, em pesquisas já realizadas, enfim, muito trabalho, foi o que Grigio fez, ao decidir pelo doutorado durante os anos 2012 – 2016. Foi no decorrer das pesquisas que o autor registrou o ano de 1873 como o de criação da Irmandade do Rosário, em Santa Maria, para congregar a comunidade negra local, à medida que a Irmandade conquistava autonomia, promovendo festas em que sagrado e profano se interligavam. Cabia ao pároco mediar a situação, foi o que levou, dois anos após a criação da Irmandade, à sua dissolução pelo Cônego Marcelino, com a justificativa que a mesma havia se desviado de seus propósitos, por sair a pedir esmolas sem autorização e a empunhar uma bandeira que não estava benta. Com os ares a abolição, em 1889, alegando que os componentes da Irmandade agora estavam assentados sobre o “banquete da formosa liberdade”, o Padre Aquiles Catalano solicitou ao Vigário Capitular da Diocese do Rio Grande do Sul que a Irmandade voltasse a funcionar, o que foi aprovado. Logo após, a Irmandade, através de um abaixo assinado, solicitou à Câmara Municipal, e ganhou, a doação dos terrenos onde funcionava o Cemitério Santa Cruz, então desativado. Nesse local, hoje está erguida a Igreja do Rosário, ali na Rua Rosário, 401. Em 1890, foi lançada a pedra fundamental da capela, construída com campanha de doações, e com o material de demolição do antigo cemitério, culminando com sua inauguração dez anos depois. Nesse ano (1900), a Irmandade consolidou sua autonomia, alterou seus estatutos para pessoa jurídica, com o nome de Sociedade Beneficente Irmandade do Rosário, e catorze anos depois, restabeleceu-se o conflito entre a Irmandade e a Igreja, havendo diferentes versões para o episódio. Conforme a pesquisa, o Vigário detinha o controle de todas as associações ligadas à paróquia, menos o da Irmandade do Rosário. Para resolver, Padre Caetano Pagliuca usou da seguinte estratégia: passou a frequentar a Irmandade como membro, galgou ao cargo de tesoureiro e apossou-se das chaves da capela. Padre Caetano Pagliuca não aceitava era que um grupo de negros fosse proprietário da capela e dos terrenos em seu entorno. Na disputa judicial, o juiz deu ganho de causa à Irmandade, ordenando que o Padre devolvesse as chaves; o padre recorreu e, em segunda instância, saiu vitorioso. Com o transcorrer do tempo, esse episódio passou por um processo de total esquecimento ou apagamento (expressão usada pelo autor), contudo os clubes negros erguidos naquele território, ali permaneceram ainda por um bom tempo. O que ficou é que, ao sair da escravidão, aquela comunidade negra possuía espaços de sociabilidade: Sociedade União Familiar, fundada em 1896, e Sociedade Recreativa Cultural Treze de Maio, fundada em 1903.


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Ademais, havia espaços de religiosidade: a Irmandade do Rosário, criada em 1873; e a Capela de Nossa Senhora do Rosário, inaugurada em 1900, e demolida em 1942. Dessa forma, a população negra tinha intensa vida comunitária, agregando-se para equacionar suas demandas. Além disso, o autor deu vida e voz aos protagonistas dessa bela história.


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Introdução


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“No alvoroço da festa, não havia corrente de ferro que os prendesse, nem chibata que intimidasse”. Essa frase que utilizamos como título deste trabalho foi empregada por João Daudt Filho para descrever a determinação e a coragem dos membros da Irmandade do Rosário na realização da festa de sua padroeira em Santa Maria da Boca do Monte. O texto que segue procura analisar a trajetória dessa instituição religiosa e sua importância para homens e mulheres negras em tempos de cativeiro e de liberdade.Este livro, resultado de uma tese de doutoramento defendida em 2016 na Unisinos, procura ampliar a análise sobre as ações da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, acompanhar a trajetória de um grupo de negros no período de transição da escravidão para a liberdade e o aproveitamento do espaço religioso na organização e funcionamento da comunidade. A história dessa Irmandade permite a discussão e análise de vários pontos que queremos apresentar neste texto. O primeiro deles é a origem das Irmandades do Rosário, sua incorporação pelas populações negras em diferentes partes do mundo e a presença e importância das irmandades religiosas no Rio Grande do Sul. No segundo momento, procuramos entender o contexto da escravidão em Santa Maria e as razões da criação de uma irmandade negra na cidade. A Irmandade ainda nos possibilita compreender como viveram ex-escravos nas primeiras décadas após a abolição da escravatura, analisar a composição e a atuação da comunidade negra local, conhecer suas lideranças e empreender uma cartografia socioprofissional de seus integrantes, principalmente daqueles que ocuparam cargos diretivos. Por último, avaliar as transformações e as dificuldades que as irmandades sofreram com a implantação de um catolicismo que pretendia centralizar as atividades religiosas nas mãos dos sacerdotes. Estabelecemos como marcos cronológicos deste trabalho, o período entre a criação da Irmandade do Rosário em 1873 e a demolição de seu templo em 1942. Com a demolição da primitiva igreja e o crescimento urbano, a história daquela comunidade negra desapareceu da memória da cidade. Entretanto, esses períodos cronológicos não são estáticos nem arbitrários, pois recuaremos ou avançaremos no tempo de acordo com a necessidade de cada temática. A princípio, essa demarcação pode parecer demasiada longa, mas foi propositalmente estabelecida para podermos compreender a trajetória da Irmandade do Rosário e de seus integrantes em diferentes contextos políticos e sociais. Nesse período, poderemos acompanhar o nascer, o viver e o morrer de vários membros da Irmandade. Santa Maria está localizada no centro geográfico do Rio Grande do Sul. A antiga vila originou-se de um acampamento de militares e civis responsáveis pela demarcação dos limites meridionais da colônia portuguesa e espanhola, estabelecidos pelo Tratado de Santo Ildefonso (1778). O Rio Grande do Sul foi incorporado


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tardiamente ao complexo colonial português e foi alvo de disputas entre as Coroas de Portugal e Espanha com ocupações, invasões e guerras pela manutenção do território. O processo constante de redefinição da fronteira e os muitos conflitos na defesa ou expansão do território português fazia de Santa Maria um local de presença ou de passagem de militares. A conquista da região das Missões, a Guerra da Cisplatina e a Guerra dos Farrapos agitaram a Província e fizeram circular pelo território soldados, mercenários e desertores. Depois de desmobilizados, muitos integrantes dos efetivos militares acabaram permanecendo em Santa Maria, constituindo família e se dedicando a diversas atividades profissionais. Dessa forma, foi que chegaram à vila os primeiros imigrantes alemães1 que atuavam como soldados mercenários e indivíduos de diversas condições sociais. Santa Maria sempre foi multiétnica. Circulava por ela um número considerável de indígenas que inicialmente haviam sido incorporados no projeto jesuítico-missioneiro e, após a conquista das Missões, passaram a viver nas estâncias, nas vilas ou mesmo nas florestas da região. Por estar localizado entre áreas planas de campos nativos e áreas florestais do rebordo do Planalto Gaúcho, aquele território possibilitou diferentes tipos de ocupação, desde grandes proprietários rurais até pequenos lavradores nacionais. Sua posição geográfica atraía indivíduos de diferentes origens, que buscavam oportunidades econômicas e ascensão social. Em razão de tais condições, imigrantes alemães também foram atraídos para a Boca do Monte. A população do povoado era também composta de africanos e seus descendentes. Eles estavam presentes desde a origem da povoação, no centro da vila, nos seus arredores ou nas estâncias da região, exercendo os mais diversos trabalhos na agricultura, na pecuária ou no espaço urbano. Essa população negra, composta por negros livres, libertos ou escravizados buscaram locais onde pudessem criar novas identidades, celebrar sua religiosidade e manifestar os traços culturais de seus antepassados. Um dos espaços centrais utilizados pela população negra para seu encontro, estabelecimento de laços de solidariedade, organização e celebração eram as irmandades religiosas. A Capitania e depois Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, localizada na fronteira meridional da América Portuguesa, sofria com as grandes distâncias em relação ao centro administrativo colonial e depois com a capital do Império do Brasil. A região se sentia abandonada pelo governo central e o tratamento dispensado a seus habitantes levou a constantes reclamações, fato que foi apresentado como um dos motivos da guerra civil farroupilha. A mesma 1. Como o Estado Alemão passou a existir oficialmente somente a partir de 1871, após a unificação, utilizaremos o termo “alemão” para designar os imigrantes provenientes de regiões que correspondem ao território da atual Alemanha. Ver: GANS, 2004; WITT, 2008.


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situação ocorria no plano religioso, com paróquias e sacerdotes exercendo seus ofícios distantes de seus superiores. Esse abandono foi compensado pela ação dos leigos que, por meio das irmandades religiosas, garantiram a construção dos templos, a realização das festas de devoção e a manutenção da religiosidade na distante província. As irmandades ou confrarias são instituições milenares que foram adaptadas e incorporadas pelo cristianismo e tiveram papel fundamental na difusão e manutenção do mundo católico, principalmente em regiões distantes, sem a presença constante do clero. Embora controladas pela Igreja e pelo Estado, uma vez que precisavam da aprovação de ambos para seu funcionamento, tinham uma autonomia que garantia a construção de igrejas, de hospitais, de orfanatos e de asilos. O Direito Canônico estabelecia diferenças entre “irmandades” e “confrarias”. “As associações de fiéis que tinham sido criadas para “exercer alguma obra de piedade ou caridade se denominam pias uniões, que se estão constituídas em organismos, chamam-se irmandades”. Quando estas tinham “sido eretas para incremento do culto público”, recebiam a denominação de confrarias (BOSCHI, 1986, p. 14-15). Apesar dessas sutis diferenças, vamos utilizar tais termos como sinônimos, pois não encontramos qualquer distinção na documentação pesquisada. Algumas associações ora eram mencionadas como confraria, ora como irmandade. As irmandades reproduziam as hierarquias presentes na sociedade, pois funcionavam como um espelho que refletiam as diversas categorias sociais que conviviam em profunda interdependência. Sua criação e pertencimento obedecia a critérios sociais, profissionais e étnico-raciais. Nossa Senhora do Rosário tornou-se a principal devoção cristã da população negra no Brasil. Na Europa, foi utilizada inicialmente como estratégia e como “arma” na defesa da fé católica contra as heresias ou como reação às tentativas de destruição do cristianismo. Depois, foi associada à libertação dos escravos e tornou-se popular entre os negros livres ou escravizados. No Rio Grande do Sul, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário figurava entre as mais antigas da região e sua devoção se espalhou em diversas cidades da província. Muitas delas ainda precisam ser “descobertas” pela historiografia e revelada sua história e de seus integrantes. O cotidiano da população negra de Santa Maria estava totalmente interrelacionado com a escravidão. Mesmo os negros livres ou libertos carregavam consigo a marca do sistema escravista. A criação de vínculos de solidariedade, como os que foram estabelecidos pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, criada em 1873, era uma das estratégias para o enfrentamento dessa realidade. A abolição da escravidão não alterou o quadro de preconceito e de hierarquização sociorracial vigente.


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Para muitos negros, a migração foi uma alternativa para buscar condições melhores de trabalho, de moradia e de ascensão social, e Santa Maria despontava como um centro atrativo, em função das oportunidades provocadas pela chegada da ferrovia, o que poderia gerar estabilidade profissional e social. Negros de Santa Maria e oriundos de outros lugares recriaram a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário que havia sido dissolvida por ter entrado em confronto com as novas concepções do catolicismo (o ultramontanismo). O cenário político e religioso das últimas décadas do século XIX e as primeiras décadas do século XX foi marcado por constantes transformações e profundas mudanças com o fim da escravidão, a proclamação da República e a efetiva implantação de uma nova política católica. Com renascimento da Irmandade do Rosário, surgiram diversas outras associações negras que dinamizaram o cotidiano daqueles indivíduos excluídos da “sociedade santamariense”. A fundação e manutenção dessas associações possuía uma dimensão simbólica e política importante para aquela população, à medida que desafiavam os padrões e a hierarquia social. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário é o tema central deste livro, mas abriremos algumas “janelas” para analisar outros aspectos da história regional e nacional, como a presença da escravidão entre os imigrantes e seus descendentes, o processo de fim da escravidão na cidade, as comemorações do chamado “13 de maio”, o associativismo negro e a trajetória de ex-escravos no pós-abolição, tendo como fim compreender os diversos contextos em que a Irmandade ou seus integrantes estavam inseridos e as transformações que impuseram nessa realidade. A comunidade negra de Santa Maria não só foi influenciada pelo contexto sócio-político, mas também foi protagonista de seu destino por meio de suas organizações. Os fatos que apresentaremos não são exclusivamente religiosos, políticos, econômicos, culturais ou sociais, pois como explicou José D´Assunção Barros (2005, p. 02), “todas as dimensões da realidade social interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimensões separadas”. Apesar de querer fugir de uma possível “etiquetagem”, não podemos nos furtar de apresentar as dimensões, os enfoques e as abordagens que adotaremos2. O estudo das irmandades pode ser realizado por meio de diferentes dimensões, mas pretendemos nos concentrar em uma perspectiva de História Social. Sabe-se que o aspecto devocional e simbólico é a chave para a compreensão das razões de existência 2. “Uma dimensão implica em um tipo de enfoque ou em um ‘modo de ver’ (ou em algo que se pretende ver em primeiro plano na observação de uma sociedade historicamente localizada); uma abordagem implica em um ‘modo de fazer a história’ a partir dos materiais com os quais deve trabalhar o historiador (determinadas fontes, determinados métodos, e determinados campos de observação); um domínio corresponde a uma escolha mais específica, orientada em relação a determinados sujeitos ou objetos para os quais será dirigida a atenção do historiador” (BARROS, 2005, p. 04-05).


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das irmandades, contudo nos interessa também as relações sociais estabelecidas pelos irmãos do Rosário, sua sociabilidade, seus conflitos, suas redes, suas estratégias e trajetórias. Os termos “escravo” e “escravizado” serão utilizados simultaneamente no decorrer deste texto para designar os indivíduos que foram privados de sua liberdade. O primeiro, por respeitar as designações encontradas nas fontes e a condição jurídica dessas pessoas, e o segundo, para apontar que o regime escravista, embora institucionalizado, não era uma condição natural, mas o resultado de uma imposição a que milhões de pessoas foram forçadas. Para a manutenção e/ou superação do trabalho compulsório, foram utilizadas diferentes estratégias com ações de ambos os lados. Nessas disputas, os negros escravizados eram agentes históricos ativos e não meros instrumentos sob o domínio de senhores escravistas. Este é um estudo que privilegiará uma abordagem qualitativa das fontes, mas não vamos ignorar os dados quantitativos e utilizá-los-emos quando necessário. Conceitos como “estratégias”, “redes” e “trajetórias” foram desenvolvidos por historiadores que procuraram analisar os acontecimentos de um ponto de vista micro-histórico. Alguns conceitos e metodologias da microhistória serão utilizados neste trabalho. A micro-história, como uma “prática historiográfica3”, começou a chamar a atenção a partir da publicação do livro de Carlo Ginzburg (2006) “O queijo e os vermes” sobre o moleiro Menocchio, publicado originalmente em 1976. A obra situa-se no século XVI, época marcada pela Reforma Protestante e pela difusão da imprensa. Tendo como base os processos inquisitoriais, o autor procurou decifrar os pensamentos e os conceitos construídos por aquele moleiro. Por meio da trajetória de Menocchio, Ginzburg desenvolveu a hipótese da influência mútua entre as culturas popular e erudita e como a cultura letrada circulava entre os camponeses. Outra obra fundamental na consolidação da proposta da micro-história foi “A herança imaterial”, de Giovanni Levi (2000). Por meio da vida do padre exorcista Giovan Batista Chiesa, Levi apresentou as relações sociais, as estratégias de alianças, a relação centro e periferia e o mercado de terras do mundo camponês do Antigo Regime. Criticou a ideia de que o mundo camponês era inerte e homogêneo e que as mudanças eram apenas o resultado de forças externas. Trabalhou com a hipótese de que existe uma racionalidade específica do mundo camponês e que as comunidades tinham papel ativo em sua transformação. Essa nova prática historiográfica foi se construindo a partir de um conjunto de elementos desenvolvidos, absorvidos e incorporados de vários pesquisadores. Edoardo Grendi foi um dos primeiros e dos mais importantes pesquisadores para o desenvolvimento desse método investigativo. Segundo Henrique Espada Lima 3. Como os micro-historiadores preferiam chamar.


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(2006, p. 153), foi o responsável pelo campo de investigação e pelos fundamentos do debate teórico da micro-história e, apesar disso, não mereceu uma atenção proporcional à importância que teve e tem no debate italiano. Edoardo Grendi postulava a adoção de uma perspectiva “micro” para a história, acostumada com grandes magnitudes, com a longa duração, com procedimentos seriais e quantitativos. Ao contrário da história total proposta por Braudel, ele defendeu um modelo de análise mais modesto que permitisse reduzir o objeto de investigação. Sobre isso ele escreveu: “O novo ‘estilo’ encarnou-se na proposição de uma escala de análise - “micro”, ou seja, muito ampliada -, que, enquanto tal e de modo provocador, ratificava a dissolução da história-síntese e causava ao mesmo tempo uma espécie de escândalo na corporação”(GRENDI, 1998, p. 251-252). Um dos objetivos da redução da escala de observação é a recuperação do sujeito e de sua experiência no processo histórico. Analisaremos a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário como “instituição” que congregava os negros de Santa Maria. Mas, além da “instituição” e de seu percurso histórico, vamos ingressar no seu interior para conhecer os sujeitos e suas experiências na construção desta e de outras organizações negras. Reduziremos nossa escala de observação para perceber as relações sociais, as diferentes formas de trabalho, o contexto familiar e a devoção dos irmãos do Rosário. Quando alteramos a escala de observação, certos fenômenos podem se revestir de novos significados e fatos anteriormente não observados passam a fazer parte do escopo de análise. A proposta microanalítica de Edoardo Grendi também tinha referências de autores ingleses, principalmente de Edward Palmer Thompson, que procurava aliar os métodos da tradição marxista com os oriundos das ciências sociais, valorizando as experiências dos trabalhadores e não apenas suas instituições e organizações. Desse autor inglês, Grendi apropriou-se de dois princípios: o protagonismo dos indivíduos e dos grupos sociais e a rigorosa contextualização do objeto histórico (SERNA; PONS, 2012, p. 35). Thompson foi um crítico dos reducionismos provocados pelas noções de infra e superestrutura do marxismo e orientou seus estudos para o protagonismo das classes populares e dos indivíduos nas transformações históricas. Edoardo Grendi é frequentemente citado diante do oxímoro “excepcionalnormal”. Ele afirmou que esse conceito foi sem a menor dúvida superestimado e explicou o seu significado da seguinte forma: “o testemunho-documento pode ser excepcional porque evoca uma normalidade, uma realidade tão normal que ela permanece habitualmente calada” (GRENDI, 1998, p. 257)4. O autor não estava se referindo ao estudo de casos excepcionais, mas ao problema das 4. Fez a afirmação que o conceito foi superestimado na nota de rodapé n° 10.


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fontes. Muitas vezes não se presta a devida atenção a fontes tidas como banais, mas que podem ser significativamente reveladoras. Foi com a utilização de muitas fontes que poderiam ser classificadas como “banais”, como uma pequena anotação, um recibo de pagamento manuscrito ou um pequeno bilhete, que fomos revelando a trajetória de vida dos irmãos do Rosário e da Irmandade. Por outro lado, uma pesquisa também pode ser desenvolvida sem a descoberta de documentos inéditos, pois ela pode ser feita apenas com a releitura apurada de fontes já bastante conhecidas. Diante da falta de fontes específicas, é necessário e inevitável o uso de documentos indiretos que também podem revelar a normalidade de uma realidade. Assumimos o desafio de produzir uma tese sobre a Irmandade do Rosário, conhecendo a dificuldade relacionada a quase inexistência de fontes produzidas pela própria Irmandade. Os seus livros de registros não foram encontrados, com exceção de seu “Compromisso”, que foi registrado em cartório e publicado no jornal “O Estado”. No entanto, isso não impossibilitou que conheçamos a história dessa associação e de seus integrantes. A microanálise das fontes existentes e as produzidas por terceiros foram “excepcionais” para a compreensão da realidade vivida pela Irmandade e seus sócios. Além desses, outros caminhos foram apontados por Carlo Ginzburg. Um texto importante para a compreensão de alguns princípios da micro-história foi publicado por Ginzburg e Carlo Poni (2004, p. 169-178)), que se chama “O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico”. Nesse texto, os autores propuseram um exercício investigativo baseado no método onomástico que se fundamenta no nome. O nome torna-se “o fio de Ariadna que guia o investigador no labirinto documental” e “é aquilo que distingue um indivíduo de um outro em todas as sociedades conhecidas”. O nome torna-se “uma bússola preciosa” (Ibid., p. 174-175). Utilizando esta metodologia de seguir o nome de um indivíduo ou grupo de indivíduos, o historiador vai compondo uma espécie de imagem gráfica do tecido social, observando os diferentes contextos e descobrindo a redes de relações sociais em que estão inseridos. O nome será um guia importante neste trabalho. Por meio dele, pretendemos compreender as múltiplas relações estabelecidas pelos integrantes da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e a composição e atuação da comunidade negra local, especialmente de suas lideranças. Ao acompanhar (pelo nome) determinados indivíduos, teremos acesso aos seus ambientes de circulação, seus comportamentos, alianças, estratégias, solidariedades, compadrios e negócios. No entanto, é preciso lembrar as reflexões feitas por Rodrigo Weimer (2013, p. 330) sobre o uso do nome como uma ferramenta metodológica: “Os nomes trazem impressos tradições, memórias e experiências vividas. Evidenciam formas


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de relacionar-se com o passado. A ele rendem homenagem e também projetam o que se espera do devir”. E acrescentou: “Os nomes podem ser, também, fios condutores, mas são muito mais do que isso”. Por utilizar os nomes como uma ferramenta metodológica e por reconhecer que eles “são mais do que isso”, é que utilizaremos no decorrer deste texto os nomes completos dos autores que adotaremos como referências. Como método de investigação histórica, Ginzburg (1989, p. 143-179) também desenvolveu o que chamou de paradigma indiciário. Buscou inspiração no trabalho do crítico de arte Giovanni Morelli, que revolucionou o trabalho de identificação de autoria das obras de arte, examinando os pormenores que eram menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia, como os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. Inspirou-se também no personagem de Sir Conan Doyle, Sherlock Holmes, e sua perspicácia ao interpretar pegadas na lama, cinzas de cigarro, etc. Outro exemplo seguido por Ginzburg foi o trabalho da psicanálise desenvolvido por Freud, que também procurou nos pormenores, normalmente considerados sem importância, a chave para decifrar a psique humana. Carlo Ginzburg, portanto, ao propor o paradigma indiciário, buscou inspiração nos indícios utilizados pelos críticos de arte para indicar a autoria de uma obra, nas atividades dos detetives para buscar provas, nos sintomas detectados pelos psicanalistas para decifrar a psique humana ou na medicina, que se utiliza de indícios indiretos para encontrar as causas de uma doença. Essa técnica, obviamente, deve combinar observação minuciosa e sensibilidade do historiador. Para fazer a leitura desses indícios, o historiador precisa operar por meio da intuição. Na realização desta pesquisa, foi valorizada cada evidência, cada traço, cada indício para a reconstrução da trajetória da Irmandade do Rosário e de seus integrantes. O estudo das irmandades no Brasil acompanhou as grandes “tendências” da historiografia brasileira. Alguns pesquisadores perceberam que seria impossível compreender a sociedade e a religiosidade do período colonial e imperial, sem incorrer nas ações das associações religiosas. Foram pioneiras nessa análise as pesquisas de Fritz Teixeira Salles, Julita Scarano, Caio Boschi, Anthony John Russell-Wood e João José Reis. Também são referências no estudo das irmandades autores como Marina de Mello e Sousa, Mariza de Carvalho Soares, Regina Célia Xavier, Larissa Viana, Anderson José Machado de Oliveira, Lucilene Reginaldo, Mauro Dillmann Tavares, Mara Regina do Nascimento, Liane Susan Müller, entre outros. Alguns desses autores discutiram o papel das irmandades como agentes de resistência ou de acomodação no sistema escravista. Outros optaram por visualizar outras possibilidades no estudo dessas associações,


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como espaços de sociabilidade, do estabelecimento de relações interétnicas e de mestiçagem. A análise de alguns desses autores, suas posturas teóricas e a posição que adotamos será mais bem desenvolvida no decorrer deste texto. Este também é um estudo do pós-emancipação, pois busca analisar as alternativas encontradas por um grupo de ex-escravos e/ou seus descendentes, reunidos em torno da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em um espaço urbano no interior do Rio Grande do Sul. Seguindo seus rastros, poderemos compreender suas escolhas, alternativas e possiblidades de enfrentamento de uma sociedade que os segregava. Trabalhar com a história do negro após o cativeiro não é das tarefas mais fáceis, principalmente pela tendência da “ausência da cor” em alguns documentos e pela tentativa de negação de qualquer relação com o cativeiro, pois silenciar sobre o passado escravizado foi uma forma de evitar o estigma gerado pela escravidão, de discriminação social e racial. Contudo, não é impossível, como tem demostrado Hebe Mattos, Ana Lugão Rios, Rodrigo Weimer, Walter Fraga Filho, Paulo Staudt Moreira, Flávio Gomes, Petrônio Domingues, Ana Beatriz Loner e outros. A produção historiográfica sobre Santa Maria e a região central do Rio Grande do Sul tem avançado significativamente nos últimos anos. Resultado disso pode ser visto nas obras “Nova História de Santa Maria: contribuições recentes” e “Nova História de Santa Maria: outras contribuições recentes”, organizadas por José Iran Ribeiro e Beatriz Teixeira Weber (2010; 2012), que apresentam uma coletânea de 38 artigos que resumem as mais diversas pesquisas que foram realizadas sobre a cidade. Além desses, outros trabalhos vêm apresentando diversas facetas de Santa Maria da Boca do Monte e demostrando seu caráter multiétnico. A religiosidade dos santa-marienses foi tema das pesquisas de Luis Eugênio Véscio, Alexandre Karsburg, Vitor Biasoli e Marta Borin, que analisaram as relações e os conflitos da Igreja com a maçonaria, as disputas religiosas e os conflitos gerados pela implantação de um novo modelo de catolicismo. Enquanto isso, Giane Escobar e Franciele Oliveira demonstraram a organização da comunidade negra de Santa Maria por meio da fundação de clubes sociais, blocos carnavalescos, jornais e acompanharam a trajetória de pessoas e famílias que se destacaram na liderança destas instituições.. Também foram importantes para esta pesquisa os dados levantados por Letícia Batistella Guterres, Gláucia Külzer e Fabrício Rigo Nicoloso. No decorrer do texto, o leitor terá contato novamente com esses autores e suas contribuições para a compreensão da temática deste livro. A pesquisa bibliográfica está associada a uma grande variedade de fontes documentais obtidas em diferentes arquivos. Dos arquivos da Igreja, utilizamos os livros de registros das irmandades, livros de correspondências emitidas, processos de genere, livros paroquiais de batismo, casamento e óbitos, livros tombo,


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boletins informativos e cartas pastorais. Nos arquivos do Estado, trabalhamos com habilitações de casamentos, inventários, testamentos, processos-crimes, livros de óbitos, livros cartoriais de registros, além de correspondências entre o governo provincial e as câmaras municipais. O Arquivo Histórico de Santa Maria (AHSM) contém um rico material de pesquisa composto por requerimentos, documentos recebidos e emitidos, livros caixa, além de mais de 600 processos-crime. Jornais e fotografias também foram importantes para a composição deste livro, pesquisados no AHSM e na Casa de Memória Edmundo Cardoso. O cruzamento e a análise dessas fontes permitiram captar o contexto de atuação da Irmandade do Rosário e o ambiente em que viveram os irmãos do Rosário. A origem das irmandades religiosas e da devoção a Nossa Senhora do Rosário é o tema do capítulo 02. Voltaremos ao Período Medieval para encontrar como se formaram as primeiras organizações confraternais de caráter religioso e sua importância para a manutenção e defesa do catolicismo. Nesse contexto, a devoção do rosário foi construída como um símbolo de luta e proteção contra as deturpações doutrinárias e como bandeira de novas conquistas espirituais. O avanço europeu sobre a África e a América implicou a tentativa de conversão dos povos conquistados e escravizados. A conquista também tinha de ser espiritual e Nossa Senhora do Rosário foi importante nessa missão. A figura da “Senhora do Rosário” foi sendo gradualmente incorporada pelas populações negras que construíram sua própria narrativa sobre a origem da devoção e a organização de seu culto, através da criação de irmandades e confrarias. O leitor também encontrará, nesse capítulo, as diferentes interpretações realizadas pelos historiadores sobre o papel das irmandades negras em tempos de escravidão e liberdade. No capítulo 03, analisaremos o papel das irmandades no Rio Grande do Sul, procurando estabelecer sua importância em um território periférico, longe dos centros administrativos, tanto político como religioso. Elas também fizeram parte do cenário católico da província e contribuíram significativamente para a manutenção da religiosidade local, através da construção de seus templos ou na realização das celebrações e festas de devoção. Nesse contexto, as irmandades negras também foram criadas em diferentes pontos da Província e congregaram indivíduos escravizados, libertos e livres. As irmandades de Santa Maria da Boca do Monte e sua relação com o sistema escravista é o tema do capítulo 04. A Vila de Santa Maria foi se constituindo a partir de diferentes grupos sociais, que foram constituindo irmandades religiosas de acordo com sua posição na hierarquia social. A elite política e econômica encontrava-se na Irmandade Conjunta do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Conceição, enquanto a população negra constituiu a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Entre os membros da elite estavam


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alguns imigrantes de origem alemã5, cujo progresso estava intrinsicamente ligado ao uso de mão de obra escrava. No capítulo 05, procuramos compreender o cotidiano da escravidão em Santa Maria e o contexto de criação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Utilizamos como base de análise o livro de memória de João Daudt Filho que confrontaremos com outros documentos do período. Daudt Filho revelou um olhar da elite de Santa Maria sobre as relações escravistas na cidade e o papel que cada um devia desempenhar. A criação e a dissolução da Irmandade do Rosário em tempos de escravidão também serão tratadas nesse capítulo. O renascimento da Irmandade do Rosário no pós-abolição em Santa Maria é o tema tratado no capítulo 06. Analisaremos como a população negra se organizou para refundá-la, buscou um local para sua sede e construiu sua capela no bairro da Vila Rica. Depois desse processo de organização, os irmãos do Rosário buscaram a transformação de sua associação religiosa em uma Sociedade Beneficente com personalidade jurídica. Nesse momento, os membros da Irmandade chegaram a ter uma aproximação com a Igreja Anglicana, cujo desfecho veremos nesse capítulo. No capítulo 07, dedicaremos à montagem da trajetória de alguns membros da Irmandade do Rosário, apresentando as dificuldades que enfrentaram diante de uma sociedade hierarquizada a partir de critérios sociorraciais. Muito mais que levantar as dificuldades, o objetivo é destacar as formas de enfrentamento e de superação dos problemas encontrados. O associativismo foi um dos caminhos tanto no aspecto religioso, como profissional ou de recreação. O leitor conhecerá um pouco de Sisnando Antônio de Oliveira, José Francisco do Nascimento, os irmãos Adão Gabriel Haeffner e Antônio Gabriel Haeffner, Osório Nunes do Nascimento e os caminhos percorridos por esses indivíduos e suas famílias em tempos de cativeiro e de liberdade. No último capítulo, apresentaremos o enfrentamento entre a Irmandade e o clero, representado pelo Pe. Caetano Pagliuca. A Igreja Católica adotou a postura de centralizar as manifestações do culto religioso nas mãos de seus sacerdotes, o que provocou um embate com as irmandades religiosas e sua histórica autonomia de administrar sua devoção e seus bens. No caso de Santa de Maria, as disputas deram-se pela posse e controle da Capela do Rosário. O clero produziu uma versão desses acontecimentos, privilegiando uma narrativa de luta contra a maçonaria e os anticlericais. Em Santa Maria, a trajetória da Irmandade do Rosário abre muitas frentes de reflexão sobre diversos temas da história local e nacional. O seu estudo 5. Quando usarmos a expressão “de origem alemã” estaremos nos referindo aos indivíduos nascidos em território da atual Alemanha e seus descendentes, mesmo que tenham nascido no Brasil.


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também possibilita a compreensão das alternativas, das dificuldades e dos espaços encontrados e construídos pelos negros no período pós-abolição, pois muitos de seus integrantes viveram a experiência do cativeiro e da liberdade. Em outra frente, os múltiplos conflitos da Irmandade com a Igreja Católica permitem captar as transformações que estavam ocorrendo com o clero, com essas associações e com a própria cidade. Convido o leitor a acompanhar e decifrar as tramas sociais e religiosas de Santa Maria da Boca do Monte nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.


2 ORIGENS E DIFUSÃO DAS IRMANDADES DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO



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Santa Maria, década de 1870, a cidade estava preparada para mais um evento da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Era o dia de recolher os donativos para a realização da festa de sua padroeira. Sob o olhar desconfiado e atônito da elite do lugar, negros livres, indivíduos escravizados e libertos aproveitavam para sair às ruas entoando cantorias que homenageavam a santa ou criticavam a situação de violência a que eram submetidos. Sobre esses acontecimentos, Daudt Filho deixou o seguinte registro no seu livro de memórias6: Por ocasião da Festa de N. S. do Rosário, os pretos perdiam a cabeça. No alvoroço da festa, não havia corrente de ferro que os prendesse, nem chibata que intimidasse. Em bandos precatórios, roncando as cuícas e, ao som da batucada de cuias e pandeiros, entravam nas casas com o estandarte da santa, pedindo espórtulas para os festejos. Alegres com os tragos do ‘mata-bicho’ que lhes eram oferecidos, saiam cantando: Bamos s’imbora Não fica ninguém A Virgem do Rosário E Maria também. (DAUDT FILHO, 2003, p. 45).

Era uma atividade marcada pela dança, pelo barulho, pelo improviso e pela festa. João José Reis (1991, p. 62) chamou essas cerimônias de “carnavalização negra da religião”, pois nas festas e celebrações das irmandades negras “o sagrado e o profano frequentemente se justapunham e, às vezes, entrelaçavam-se. Além de procissões e missas, a festa se fazia de comilanças, mascaradas e elaboradas cerimônias (...)7”. Pandeiros, cuias e cuícas ditavam o ritmo em Santa Maria e não havia quem os intimidasse. “Fragmentos de liberdade” foi como Alisson Eugênio (2010, p. 75-76) chamou as festas das irmandades religiosas dos escravos em Minas Gerais. Segundo o autor, com suas procissões os negros reinventavam os espaços dos centros urbanos, suspendendo seus ritmos cotidianos marcados pelas tarefas rotineiras do trabalho escravo. “No lugar disso, a música, o batuque, as danças e o foguetório proporcionavam outra dimensão, caracterizada pelo lúdico e pela devoção, na existência daqueles indivíduos marcados pelas cores da escravidão”. O evento, que foi registrado na memória de Daudt, é o resultado 6. João Daudt Filho escreveu um livro de memórias, publicado em 1936, que traz uma série de relatos sobre o cotidiano de Santa Maria sob o ponto de vista de um indivíduo que pertencia a uma das famílias da elite. Ele não tinha a intenção de escrever um livro de história sobre a cidade onde passou a sua infância, mas resgatar algumas lembranças do passado para deixar para filhos, netos e outros membros da família. A primeira edição, com poucos exemplares, destinava-se aos membros da família e a um limitado número de amigos. Com a repercussão de suas reminiscências e pela procura de sua obra, outras edições foram publicadas (já são 4 edições). 7. Apesar de destacar as festas das irmandades negras, o autor também afirmou que “a invasão mundana do sagrado não tinha cor. A execução de danças e mascaradas no espaço da festa religiosa fazia parte de uma antiga tradição portuguesa, ligadas à permanência de fortes elementos pagãos no catolicismo da península Ibérica (...). Aliás, tanto aqui como no Velho Mundo, esse catolicismo lúdico favoreceu a adesão dos negros, que por seu lado abriram novos canais para o seu desenvolvimento” (p. 66). Era a “carnavalização branca da religião”.


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de centenas de anos de história e de influências de santos e pagãos, de crentes e de hereges. Também percorreu milhares de quilômetros entre a Europa, a África e a América, adaptando-se em cada local, de acordo com seus integrantes e seus interesses. Por isso, convido o leitor a embarcar nesta viagem para conhecer a origem das irmandades religiosas. Voltaremos no tempo e conheceremos o espírito de associação dos romanos e dos germânicos; encontraremos padres preocupados com pagãos, com hereges, com mouros e criando novas devoções e novos hábitos. E, por fim, teremos diante de nós os africanos, que deveriam ser incorporados ao mundo cristão, vindos de diferentes regiões.

2.1 A ORIGEM DAS IRMANDADES As irmandades eram associações religiosas formadas essencialmente por leigos e uma de suas principais finalidades era a de promover a devoção a um “santo”8. Eram sustentadas por “joias” que cada sócio deveria pagar no seu ingresso, além de mensalidades, aluguéis de propriedades, coletas e doações. Possuíam um estatuto, que era chamado de “Compromisso”, cuja finalidade era estabelecer como funcionaria a irmandade, as obrigações e os benefícios de cada um de seus membros. A gerência das irmandades era feita pelas mesas administrativas que, na sua forma mais simples, eram compostas por um presidente, um tesoureiro, um escrivão, um procurador, um zelador e mesários, cujo número variava de acordo com cada uma delas. As irmandades religiosas tiveram um papel central na história do catolicismo no Brasil, pelo menos até o final do século XIX. Elas começaram a se desenvolver em toda a Europa Ocidental nos séculos XII e XIII e foram fundamentais na religiosidade lusitana. Em Portugal, conforme Russell-Wood (2005, p. 191), as primeiras irmandades sobre as quais há detalhes são: a Ordem Terceira de São Francisco (1289), a Confraria dos Homens-Bons (Beja, 1297) e a Irmandade da Imaculada Conceição (Sintra, 1346). Carlos Moreira Azevedo (2000, p. 461) voltou ainda mais no tempo e encontrou as raízes das irmandades nos “colégios” (collegia) romanos e nas “guildas” germânicas. Os “colégios” romanos eram associações privadas de pessoas que exerciam a mesma profissão, que queriam venerar o mesmo deus ou que tinham objetivos esportivos ou mesmo lucrativos em comum. Praticamente em todas as cidades existiam um ou vários “colégios”, e poderiam fazer parte dessas associações 8. Estamos nos referindo a todas as devoções, que podem ser uma das designações de Maria (Nossa Senhora), de anjos ou mesmo do “Corpo de Deus” (Santíssimo Sacramento). Mesmo as Irmandades da Santa Casa de Misericórdia ou as Irmandades da Caridade tinham seus santos de devoção. Como exemplo, temos o caso da Irmandade da Caridade de Alegrete/RS, que tinha por orago Santa Rosa de Viterbo (Aprovação do Compromisso da Irmandade da Caridade de Alegrete). Livro de Provisões, p. 29. AHCMPA. A aprovação deste Compromisso foi no ano de 1876.


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homens livres ou escravizados. Eles imitavam a organização política de uma cidade, pois cada um tinha o seu Conselho, seus magistrados anuais e suas lideranças. Para se tornar membro de um “colégio” era preciso o pagamento de uma cota periódica que, junto a outras doações, garantiria a seus associados a realização de banquetes e funerais decentes. Para Paul Veyne (2009, p. 173), o paralelo com as confrarias operárias e devotas do Antigo Regime é incontestável. Os “colégios” também eram reconhecidos como “pessoas jurídicas” pelo direito romano (CORRÊIA; SCIASCIA, 1988, p. 47). A invasão dos povos “bárbaros” levou a constituição de uma nova estrutura social na Europa, a partir do século V. Entre os povos que foram se incorporando ao território europeu estavam os germanos, que também tinham suas organizações confraternais. Elas eram chamadas de “guildas”, onde “homens de toda espécie – camponeses, artesãos e, sobretudo negociantes – juravam um ao outro, de igual para igual, manter-se juntos, custasse o que custasse” (ROUCHE, 2009, p. 420)9. Esse juramento ocorria no dia 26 de dezembro, dia da festa do deus Jul. Nesse dia, os novos confrades preparavam gigantescos banquetes “onde todos se empanturravam até vomitar e bebiam até alcançar o estado no qual (...) podiam entrar em comunhão com as forças sobrenaturais” (ROUCHE, 2009, p. 421). O nome “guilda” era derivado das quantias em dinheiro (geld) que cada membro depositava em um fundo comum. Tanto os “colégios” romanos como as “guildas” germânicas foram vistos com desconfiança pelos governos e combatidos pelo clero, que os consideravam satânicos e imorais. A saída era aproximá-los das paróquias e dos mosteiros, procurando canalizá-los para um convívio e uma solidariedade de matriz cristã, onde a oração em conjunto poderia ajudar a cimentar as relações estabelecidas (AZEVEDO, 2000, p. 461). Para Carlos Azevedo (2000, p. 461), as primeiras irmandades religiosas surgiram no interior da própria Igreja, congregando inicialmente apenas membros do clero e depois se estendeu para fora dos muros dos mosteiros e foram incluindo os leigos. Segundo o autor, as primeiras irmandades documentadas de Portugal são do século XII e sua finalidade era rezar pelos mortos, o que demonstra que a preocupação com a salvação das almas era a principal motivação dessas primeiras associações. No fim da Idade Média, a importância das irmandades aumentou significativamente com o surgimento das cidades e pelas constantes crises provocadas pela fome ou pela peste. Para Russel-Wood (2005, p. 191), “a criação 9. Para Marc Bloch (1987): “Sob a designação de ‘guildas’, o direito germânico tinha compreendido as associações de homens livres, formadas fora dos laços de parentesco e destinadas, de algum modo, a fazer as vezes daqueles: um juramento, libações periódicas que, nos tempos pagãos, tinham sido acompanhadas de libações religiosas, por vezes uma caixa comum e sobretudo uma obrigação de entreajuda, eram as características principais: ‘na amizade’, tal como na vingança, permaneceremos unidos aconteça o que acontecer (...)”(p. 460).


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de confrarias de homens e mulheres leigos tinha o duplo objetivo de proteger os seus membros de tais infortúnios e de praticar obras de caridade”. E acrescentou: “estas irmandades representaram o nascimento da consciência social na Europa”. Essas confrarias, com objetivos caritativos, assumiram um importante papel na criação, administração e manutenção de pequenos hospitais, leprosários ou albergues. Em Portugal, embora já existisse, como vimos acima, a maioria das confrarias medievais foram criadas a partir do século XIV e localizavam-se em igrejas paroquiais e capelas próprias. Elas procuravam responder a várias funções, que iam do auxílio espiritual a prestação de socorros mútuos e ações de caridade que beneficiavam mendigos, doentes, presos, peregrinos, viajantes, etc. As irmandades religiosas acompanharam a expansão ibérica dos séculos XV e XVI e passaram a fazer parte do cenário religioso da África, da Ásia e da América, pois a expansão marítimo-comercial trazia consigo também uma justificativa religiosa, a expansão do cristianismo. Uma das mais importantes irmandades portuguesas era a da Santa Casa de Misericórdia, que tinha como atividade principal a assistência social aos pobres e doentes por meio da criação e manutenção de hospitais. O compromisso da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, a primeira dessas irmandades, criada em 1498, tornou-se o modelo para todas as outras. Estas irmandades ficaram conhecidas popularmente como “Misericórdias”. Eram associações fechadas que selecionavam um número máximo de irmãos, e os candidatos deveriam ter certas “qualidades”, restringindo o acesso aos nobres e mestres de ofícios que não exerciam trabalhos manuais (não padeciam do defeito mecânico) ou uma parcela mais rica e de bom “conceito” das populações locais (TOMASCHEWSKI, 2007, p. 28). As irmandades religiosas tinham como uma de suas características a reprodução das hierarquias sociais de cada localidade – uma conclusão contida na maioria das obras que analisaram essas associações. Esse aspecto já foi bastante explorado pela historiografia e nos limitaremos às conclusões de dois estudos clássicos sobre as irmandades. Na obra “Os leigos e o poder”, Caio Boschi (1986, p. 151) afirmou que esses sodalícios foram “retratando a estratificação social que se constituía. Ao aglutinar os grupos, reforçavam-se as diferenciações sociais e étnicas (...)”. Essa também é a conclusão de João José Reis (1991, p. 53) em “A morte é uma festa”, em que as irmandades tinham “a função implícita de representar socialmente, se não politicamente, os diversos grupos sociais e ocupacionais”. Para ele, “o critério que mais frequentemente regulava a entrada de membros nas confrarias não era ocupacional ou econômico, mas étnico-racial”. Por isso, havia irmandades de brancos, de pardos e de pretos, e a principal devoção da população negra era Nossa Senhora do Rosário.


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2.2 A DEVOÇÃO A NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO A devoção a Nossa Senhora do Rosário foi sendo construída por centenas de anos, até se consolidar como o principal orago da população negra na América Portuguesa e no Brasil Imperial. A constituição dessa devoção realizou-se em diversos momentos que, neste texto, chamarei de “Atos”. Para a descrição desses acontecimentos, utilizarei elementos históricos, mas principalmente o aspecto mítico-religioso utilizado como elemento de conversão ou manutenção da fé católica, o que deu ares espetaculares a cada um desses momentos. O leitor perceberá quando se trata do evento histórico em si, e quando isso foi transformando-se em um elemento de fé com seu aspecto mítico/religioso e extraordinário. a) Primeiro Ato: Domingos de Gusmão e o início da devoção; Foi a Domingos de Gusmão que Nossa Senhora ensinou a devoção ao rosário, segundo a tradição católica. Domingos nasceu em Caleruega, Castela, em 1170, tornando-se cônego regular em 1198. Foi escolhido para acompanhar o bispo Diego d´Azevedo, seu superior, em missões diplomáticas, onde conheceu a região de Languedoc (sul da França), dominada pela heresia dos albigenses, também chamados de cátaros10. Enquanto esteve na região, Domingos se empenhou na conversão dos albigenses e na mudança do próprio catolicismo, pois denunciava que os clérigos deveriam dar o exemplo, optando por uma vida de pobreza e de humildade. Reunindo em torno de si um grupo de missionários, criou a Ordem dos Irmãos Pregadores, oficializada por bula do papa Honório III, em 1216 (NETO, 1989, p. 173). Nascia oficialmente a “Ordem Dominicana”, como ficou popularmente conhecida, e que passou a ter papel importante nos destinos do catolicismo. No discurso católico, uma das principais ferramentas para a conversão dos albigenses e de salvação dos pecadores foi dada a Domingos de Gusmão, em 1214, pela Santíssima Virgem. Vendo que os pecados dos homens impediam a conversão dos hereges, Domingos entrou numa floresta próxima a Toulouse e passou três dias e três noites em oração e penitência. A Virgem então lhe 10. Das muitas heresias medievais, a dos albigenses talvez tenha sido a mais importante e de maior penetração, especialmente na Itália setentrional e na França Meridional. Floresceu nessas áreas, no século XII e início do XIII, e consistiu na manifestação local de um movimento heterodoxo, que remonta ao agnosticismo dos primeiros séculos da era cristã, ao maniqueísmo e até ao zoroastrismo persa. Para os albigenses, o mundo sensível era obra do demônio e a vida na terra era uma provação. Rejeitavam inteiramente o antigo testamento e desprezavam os sacramentos, a cruz, o culto católico e as igrejas. Tudo isso era obra do demônio, merecendo ser abominado. O papa Inocêncio III recorreu a uma Cruzada para esmagar a heresia. Para extirpá-la do Languedoc, foi utilizado todo o tipo de violência, incluindo a Inquisição, criada em 1229. (NETO, 1989, p. 166-170.)


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apareceu, acompanhada de três princesas do céu, e lhe disse: “Se queres ganhar para Deus esses corações endurecidos, prega o meu Rosário” (MONFORT, 2000, p. 09)11. Domingos se levantou e foi em direção à catedral. Imediatamente os sinos foram tocados por anjos para reunir os habitantes da região. Quando chegou à igreja e iniciou sua pregação, houve uma tempestade espantosa; a terra tremeu, o sol se obscureceu, trovões e relâmpagos repetidos fizeram estremecer os ouvintes. O terror aumentou ainda mais quando os habitantes viram uma imagem da Virgem, exposta em lugar de destaque, erguendo os braços três vezes ao céu pedindo vingança contra eles se não se convertessem. Por meio das orações de Domingos, a tempestade cessou e ele passou a explicar a excelência do rosário com tanto fervor e entusiasmo, que quase todos os habitantes de Toulouse o adotaram e renunciaram seus erros (MONFORT, 2000, p. 8-10). O rosário tornou-se um símbolo da ortodoxia doutrinária católica e era tido como a principal arma contra as dissidências heréticas. A oração era praticada inicialmente nos mosteiros medievais e foi se tornando mais popular graças à disseminação das irmandades leigas. De acordo com a pedagogia dominicana, a recitação do rosário deveria ser feita através da oração vocal acompanhada da meditação reflexiva, ou seja, demandava exercício físico e espiritual12. A repetição das 150 ave-marias possuía a finalidade de atingir o estado de transe contemplativo e a longevidade do rito imprimia um aspecto de sacrifício do devoto, que buscava um estado de elevação espiritual (DELFINO, 2013, p. 109-111). Para Francisco Van der Poel (1981, p. 60), a prática da oração do rosário é anterior à difusão promovida por Domingos de Gusmão e tem a sua origem entre os monges anacoretas nos primeiros séculos da Igreja13. Ele explicou que os monges que não sabiam ler os salmos, chamado de saltério (composto de cento e cinquenta salmos), rezavam um determinado número de pai-nosso e ave-maria, servindo-se de pedrinhas para contar. Rezavam cento e cinquenta 11. Luis Maria Grignion Monfort nasceu em Monfort-La-Cane, na província francesa da Bretanha e morreu em 1716. Foi canonizado pelo papa Pio XII em 1947. Do livro “O segredo admirável do santíssimo Rosário para a conversão e salvação” é que foi extraída a versão resumida que foi traduzida e publicada no Brasil como “A eficácia maravilhosa do Santo Rosário”. Da sua difusão, por Domingos de Gusmão, até a segunda metade do século XV, ele foi chamado de Saltério de Jesus e de Maria, pois contém 150 avemarias, o mesmo número dos Salmos de Davi. 12. No século XIV, o monge Henrique Kalkar fez uma subdivisão do saltério mariano, dividindo as avemarias em quinze dezenas e inserindo entre uma e outra a oração do Pai Nosso. No século XV, entrou em uso também a “enunciação” e “meditação” dos mistérios do rosário. A enunciação variava de acordo com as diferentes comunidades cristãs. Em 1521, o dominicano Alberto de Castelo escolheu quinze mistérios, que foram se impondo aos demais. Esses mistérios reproduziam uma síntese das verdades ortodoxas defendidas pelos católicos e reforçavam a crença nos dogmas marianos em um momento de avanço das manifestações protestantes. 13. A palavra anacoreta provém do grego anakhôrein e significa aquele «que se retira de um lugar habitado». Designa, por outro lado, a separação em relação ao mundo exterior junto a outros homens, mulheres, familiares e pressupõe também uma separação do próprio corpo a fim de dominá-lo. O anacoreta lutava contra as paixões e as tentações dos demônios (BORGES, 2011, p. 190 – nota 01)


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ave-marias para substituir o número de salmos. Vander Pol afirmou que o rosário nasceu no meio do povo simples e que há notícias do seu uso no ano de 109014. Um objeto semelhante ao rosário, o colar de contas, era usado em diferentes partes do mundo, mas sem nenhum caráter religioso. Juliana Beatriz Almeida de Souza (2001, p. 04) (apud Marina Warner)15 viu semelhanças do rosário com o colar de contas originário da Índia bramânica e do hinduísmo se estendendo entre o budismo e o islamismo. Era um costume mover entre os dedos um colar para acalmar os nervos e seu manuseio se espalhou pela Grécia, Ásia e norte da África. Também se atribuíram aos cruzados o seu uso no ocidente, que adotou essa prática que era comum entre os muçulmanos. A devoção do rosário continuou fervorosa por quase um século após as pregações de Domingos de Gusmão e depois foi caindo no esquecimento. O francês Alano de Rupe, também dominicano, foi o responsável pelo reestabelecimento do rosário na década de 1460, segundo ele, também por ordem da própria Virgem. Em 1475, Alano terminou a obra “Apologia do Saltério de Maria”, em que procurou explicar o significado da oração, os muitos milagres obtidos por sua utilização e os benefícios para o devoto. Depois dessa retomada da devoção, o “Saltério” passou a ser conhecido popularmente como “Rosário”, que significa coroa de rosas. Luis Monfort (2000, p. 11) justificou que a própria Virgem aprovou esse nome, revelando a várias pessoas que cada vez que se rezava uma ave-maria lhe era entregue uma rosa; e, por cada rosário completo era lhe entregue uma coroa de rosas. Seja qual for a sua origem, o rosário passou a ser utilizado como uma “arma” dos católicos contra hereges e pagãos. Temerosos com o clima de insatisfação que rondava a Europa no final do século XV em relação à atuação da Igreja Católica, os dominicanos resolveram reestabelecer a devoção revelada a seu fundador, Domingos de Gusmão. É nesse contexto que temos a publicação de Alano de Rupe e a criação da primeira Confraria de Nossa Senhora do Rosário, em 1475, na cidade de Colônia (no Sacro Império Romano Germânico). A fundação da primeira Confraria do Rosário foi atribuída a Alano de Rupe e ao também dominicano Jacob Sprenger16, um dos autores do célebre Malleus Maleficarum, uma espécie de manual para reconhecer, interrogar e julgar as mulheres acusadas de bruxaria. Mais uma vez temos a associação da Ordem Dominicana ligada à correção da doutrina católica através do rosário. 14. Para o uso do rosário no ano de 1090, usou como referência a obra “Explicação dos Divinos Mistérios da Missa”, de autor desconhecido, publicado na cidade do Porto (Portugal), em 1868. 15. O texto original é de: WARNER, Marina. Tú Sola entre las Mujeres. El Mito y el Culto de la Virgen María. Madrid, Taurus Humanidades, 1991. 16. Enquanto Juliana Beatriz Almeida de Souza (2001, p. 05) atribuiu a criação da primeira confraria apenas a Jacob Sprenger, Leonora Lacerda Delfino (2013, p. 112) dividiu a autoria da criação entre Alano de Rupe e Jacob Sprenger.


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Durante o movimento que ficou conhecido como “Reforma Religiosa”, que abalou a Europa cristã, a devoção mariana tornou-se um símbolo de identidade religiosa católica. Na medida em que os protestantes contestavam as figuras santificadas e negavam os atributos milagrosos de Maria, fazer sua defesa era símbolo de fidelidade à Igreja Católica e de defesa a sua doutrina oficial. Para Leonara Delfino (2013, p. 111), esse investimento devocional explica o porquê de os dominicanos estarem tão envolvidos tanto com a difusão da devoção do rosário como com a eliminação das dissidências religiosas, além de denunciar os suspeitos de heresias nos tribunais do Santo Ofício. Todas as vezes que sua Igreja estava em perigo, o clero apelava para as devoções marianas. De acordo com a tradição católica, uma das interseções mais importantes de Nossa Senhora do Rosário na defesa do cristianismo foi na Batalha de Lepanto, em um momento decisivo para a Igreja Católica e para a Europa Cristã. Essa batalha constitui o nosso Segundo Ato. b) Segundo Ato: A Batalha de Lepanto e a Festa de Nossa Senhora do Rosário; A Batalha de Lepanto tem um significado especial para os cristãos, pois foi decisiva na manutenção da cristandade europeia, fato que ocorreu graças à intervenção de Maria por meio da oração do rosário, conforme o imaginário católico. O fiel católico ou o simples visitante que entrar na Igreja de Nossa Senhora do Rosário17, em Porto Alegre, vai se deparar com uma grande pintura no seu teto, que procura retratar a vitória cristã sobre os otomanos em Lepanto. A pintura é obra do pintor alemão Lorenz Heilmair, da Academia de Belas Artes de Munique, que migrou para o Brasil em 1952. Olhando a pintura do altar da igreja (imagem 1), vemos na sua base Domingos de Gusmão e o papa Pio V e entre eles a Basílica de São Pedro. Domingos possui um rosário em sua mão esquerda e com a mão direita aponta com o dedo indicador para ele, mostrando que a vitória foi obtida mediante a sua oração. Em seguida, o pintor apresenta o confronto entre a esquadra cristã e a muçulmana. Os cristãos estão vitoriosamente erguendo suas bandeiras e estandartes. Enquanto o estandarte com a cruz está erguido de forma imponente, a bandeira com a lua crescente (símbolo do islamismo) está enrolada no navio 17. A Irmandade de Nossa Senhora e São Benedito foi fundada em Porto Alegre em 1786 e praticava suas solenidades religiosas num altar da matriz de Nossa Senhora Madre de Deus. Em 1815, solicitou autorização ao bispo do Rio de Janeiro para construir uma capela própria, cuja pedra fundamental foi colocada em 1817. A igreja só ficou pronta em 1846. Em 1934, uma comissão de engenheiros decidiu pela demolição da igreja e uma nova foi construída a partir de 1942. O novo templo foi inaugurado solenemente em 7 de outubro de 1956, festa de Nossa Senhora do Rosário, e é nessa nova igreja que está a pintura de Lorenz Heilmair. Sobre o processo, as discussões e as polêmicas na demolição da antiga Igreja do Rosário ver: TANCINI, 2008.


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conquistado. No alto, os anjos observam a cena e se alegram com a vitória cristã. A seguir, veremos um breve resumo dos acontecimentos que levaram ao encontro das esquadras cristãs e muçulmanas nas águas do mar Mediterrâneo e a consolidação da devoção e da festa de Nossa Senhora do Rosário.

Imagem 1 – Batalha de Lepanto na Igreja de Nossa Senhora do Rosário – Porto Alegre/RS

Pintura de Lorenz Heilmair no teto da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Porto Alegre. (Foto do autor)


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Em fevereiro de 1570, os governantes da “Sereníssima República de Veneza” receberam uma correspondência com o seguinte teor: Selim, Sultão Otomano, Imperador dos turcos, Senhor dos Senhores, Rei dos Reis, Sombra de Deus, Senhor do Paraíso Terrestre e de Jerusalém, à Senhoria de Veneza: Demandamos Chipre, que Nos será dada de boa vontade ou à força: e não desperte a Nossa terrível espada, pois Nós lhe moveremos a mais cruel das guerras em toda a parte; não confie no seu tesouro, pois Nós faremos com que fuja das mãos como uma torrente; tome cuidado ao irritar-Nos. (SCALÉRCIO, 2009, p. 63)

O tom atrevido da carta desencadeou preocupação e medo entre os venezianos, pois a grandiosidade do Império Otomano tornava-se cada vez mais ameaçadora para a Europa Ocidental. Já fazia quase um século que o Império Otomano direcionava seus tentáculos em direção ao Ocidente. Veneza, que até então não havia se envolvido na tentativa de impedir o avanço dos turcos, entrara na rota de interesses dos otomanos, pois Chipre, que eles “demandavam”, era uma possessão veneziana. Não querendo entregar sua possessão, Veneza enviou emissários por toda a Europa em busca de socorro. A Europa católica estava sendo dividida pelo avanço protestante e a ameaça muçulmana estava mais próxima. Havia o boato que um dos seus sultões desejava entrar a cavalo na Basílica de São Pedro, conquistar Roma e acabar com a cristandade. O argumento de lutar pelo cristianismo foi uma das justificativas para solicitar ajuda e oferecer aliança com outros povos e nações. O primeiro a ser procurado foi o papa Pio V, “um pontífice entusiasmado por cruzadas” (SCALÉRCIO, 2009, p. 64). Diante das dificuldades em que se encontrava Veneza, Pio V percebeu a chance de organizar uma mobilização dos príncipes católicos sob a liderança da Santa Sé. Estava disposto a liderar uma cruzada contra os protestantes, mas se conseguisse uma guerra santa contra os seguidores de Maomé seria ainda melhor para suas pretensões (Ibid., p. 66). Outro personagem importante nessa mobilização e que deveria ser convencido a participar do empreendimento era “Sua Majestade Católica”, o rei Felipe II de Espanha. Embora o rei tivesse muitas preocupações com seu imenso império, o Mediterrâneo ocupava uma posição expressiva nos interesses espanhóis. O litoral sul da Península Ibérica estava exposto a ataques de corsários ligados ao sultão de Istambul. No interior da própria Espanha, nas áreas do antigo reino de Granada, em 1568, rebentara uma rebelião de mouros, quase todos muçulmanos. Rondava na Espanha católica o temor de que os rebeldes pudessem receber reforços vindos do norte da África e que o sultão turco estivesse por trás de tudo (Ibid., p. 67-70). Embora houvesse interesses comuns entre Veneza, Roma e Espanha, as desconfianças dificultavam as negociações. Enquanto isso, as tropas otomanas


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desembarcavam em Chipre e marchavam em direção às principais cidades da ilha. Os representantes de Roma, de Veneza e da Espanha discutiam interminavelmente sobre a aliança e apareciam impasses de todos os tipos. Uma esquadra foi montada para auxiliar Chipre, porém o improviso e a falta de mantimentos tornaram o socorro um fracasso total (SCALERCIO, 2009, p. 73). Os turcos desembarcaram na ilha de Chipre em julho de 1570 e, em 09 de setembro, a capital Nicósia caía em suas mãos e somente Famagusta, melhor fortificada, poderia resistir por algum tempo (BRAUDEL, 1984, p. 459). Diante do fracasso na tentativa de proteger Chipre das conquistas das tropas otomanas, no dia 25 de maio de 1571, formou-se a “Santa Liga”, integrada pelo papa Pio V, Filipe de Espanha, as Repúblicas de Veneza e Gênova, o grão-duque Cosimo da Toscânia, o duque Emanuel Filiberto de Savóia, o duque Francesco Maria Urbino, o duque Otávio Farnese de Parma e os Cavaleiros de Malta. Declararam-se “em perpétua guerra contra o império otomano, os muçulmanos do Norte da África (exigência espanhola) e do Oriente Médio. Os primeiros objetivos da Santa Liga eram recuperar Chipre e a Terra Santa (exigência do Papa)” (SCALERCIO, 2009, p. 74-75). Como o objetivo inicial era impedir o avanço otomano e recuperar Chipre, uma esquadra foi formada com aproximadamente 200 embarcações e um contingente de 68.500 pessoas entre soldados, marinheiros e remadores. Enquanto a esquadra cristã reunia-se, os turcos se mantiveram ativos e atacavam os territórios venezianos de Creta, Corfu, Cerigo, Zante e Cefalônia. Depois a esquadra turca aportou em Lepanto, com quase o mesmo número de embarcações da esquadra cristã. Como Famagusta, a última resistência da ilha de Chipre havia caído, e a notícia que a guarnição veneziana havia sido trucidada pelos turcos, no dia 03 de outubro, a esquadra da “Santa Liga” zarpou para procurar o inimigo. No dia 07 de outubro de 1571, um domingo, por volta das 7h 30min da manhã, as forças da “Santa Liga” avistaram o inimigo otomano. Em ambas as esquadras, começaram os preparativos para a batalha: posições, clarins, tambores, rezas e as bandeiras de batalha foram desfraldadas. Estavam frente a frente quase quinhentas embarcações. Por volta das 15 horas tudo estava terminado. A “Santa Liga” venceu com sobras em todos os setores em que a batalha foi travada18. Em Roma, o papa Pio V aguardava notícia da esquadra cristã. No dia 07 de outubro, ele trabalhava com seu tesoureiro que lhe apresentava uma série de problemas financeiros que a Igreja estava enfrentando. De repente, o papa abriu uma das janelas e entrou em êxtase quando teve uma visão da vitória obtida sobre os otomanos. As notícias oficiais do desfecho da batalha chegaram a Roma duas semanas depois e confirmaram a suposta visão do pontífice. A vitória cristã 18. Sobre as consequências da vitória cristã em Lepanto, ver BRAUDEL, 1984, p. 465-482.


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foi, por todos, atribuída à intervenção da Virgem, pois se espalhou a notícia que, durante a batalha, os soldados otomanos tinham avistado acima dos mastros da esquadra católica uma “Senhora” que os aterrorizava com seu aspecto ameaçador e majestoso. O dia 7 de outubro ficou consagrado a Nossa Senhora da Vitória e o senado veneziano pôs debaixo do quadro que representava a batalha a seguinte frase: “Nem as tropas, nem as armas, nem os comandantes, mas a Virgem Maria do Rosário é que nos deu a vitória” (ALMEIDA, 2010). Em 1573, Gregório XIII mudou o nome da festa de Nossa Senhora da Vitória para Nossa Senhora do Rosário e transferiu o dia de sua celebração (do dia 07) para o primeiro domingo de outubro. Cada vez mais foram surgindo igrejas e capelas dedicadas à devoção do rosário19 e, junto a elas, irmandades foram sendo criadas. A devoção foi se espalhando e teve uma especial predileção entre a população negra, que a transformou na irmandade mais popular entre os africanos e seus descendentes. As razões dessa aproximação entre o rosário e a população negra é o tema do Terceiro Ato. c) Terceiro Ato: O rosário e as populações negras. A devoção a Nossa Senhora do Rosário tem origem europeia e sua difusão aconteceu diante de um contexto em que a Igreja Católica se sentiu ameaçada, através do surgimento de novas concepções do cristianismo (albigenses, protestantismo, etc) ou mesmo pelas guerras que ameaçavam a Europa. Mas, por que essa devoção teve tanta identificação entre africanos e seus descendentes? Outros santos tornaram-se invocação dos escravos pela afinidade epidérmica, origem geográfica, pela identidade com seus sofrimentos ou pelo fato de que os “santos dos brancos” não saberiam compreender os dissabores dos negros, como afirmou Caio Boschi (1986, p. 25-26). Como explicar a devoção a Nossa Senhora do Rosário? A devoção do rosário, fortalecida durante a ameaça da Reforma Protestante, passou a ser também uma das principais invocações no processo de conquista, colonização e conversão dos gentios das terras além-mar. Ultrapassou os muros dos conventos e igrejas dominicanas e passou a ser divulgada por outras ordens religiosas missionárias, especialmente pelos jesuítas. Julita Scarano explicou que os inúmeros privilégios concedidos pelos pontífices provocaram o florescimento de igrejas, conventos e irmandades dedicadas à “Senhora do Rosário”. Na 19. “À devoção do rosário foram atribuídas ainda várias vitórias, como a libertação de Viena (Áustria) das tropas turcas em 1683 por Carlos, imperador dos Romanos e a vitória do príncipe Eugênio sobre os turcos em 1716 perto de Neusatz no Danúbio, perto de Belgrado (Iugoslávia). Nessa última ocasião, o papa Clemente XI estendeu a Festa do Rosário para toda a Igreja, colocando-a no primeiro domingo de outubro. Em 1913 o papa Pio X mudou-a para o dia 07 de outubro” (VAN DER POEL, 1981, p. 62).


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Península Ibérica, era a protetora de inúmeros grupos e poucas delas tinham popularidade semelhante (SCARANO, 1975, p. 39-40). Muitos pesquisadores procuraram explicar a aproximação dos negros com a devoção a Nossa Senhora do Rosário. Para Francisco Van Der Poel (1981, p. 62), a devoção dos negros tem sua origem na Batalha de Lepanto, pois com a vitória sobre os turcos, 20 mil cristãos escravizados foram libertos. Em sua pesquisa sobre a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Araçaí (Minas Gerais), o autor percebeu que esta associação entre a libertação dos escravos com a “Senhora do Rosário” ainda permanecia naquela localidade, pois algumas pessoas ainda diziam simplesmente que “foi Nossa Senhora do Rosário que deu a liberdade aos escravos”. Ainda Juliata Scarano (1975, p. 39) mencionou a obra de Frei Agostinho de Santa Maria, o qual explicou que a razão de Nossa Senhora do Rosário ser a padroeira dos negros foi uma imagem da santa resgatada em Argel (Argélia/África), e que foi a própria “Mãe de Deus” quem os escolheu, para a “confusão dos brancos”20. Outra hipótese levantada foi a identificação do rosário com objetos constituintes da religiosidade africana. José Ramos Tinhorão buscou essa associação na aproximação dos negros com a Igreja de São Domingos, em Lisboa. Vejamos: Atraídos desde o início do século XVI para a área da Igreja de São Domingos – onde um retábulo na capela dos Reis Magos incluía a figura do negro Baltazar, a imagem da Virgem exibia o rosário que lhes lembrava seu orixá oracular Ifá (consultado pelo lance, ao acaso, de cascas de uma árvore sagrada reunidos em rosário) e a imagem de São Jorge erguia a mesma espada de seu poderoso orixá Ogum -, os negros escravos e forros de Lisboa procuraram desde cedo marcar presença no local (TINHORÃO, 2012, p. 46).

Para Tinhorão, foram os aspectos visuais que atraíram os negros. A presença do rei mago Baltazar, negro, a semelhança do rosário cristão com o rosário de Ifá e a aparência da espada de São Jorge com a espada de Ogum. É a tese da integração do negro ao catolicismo por meio da “justaposição de exterioridades” e não a partir de um processo de releitura de novos contextos sociais e culturais21. Para Lucilene Reginaldo (2005, p. 56), a tese de Tinhorão peca principalmente pelo anacronismo e pelo equívoco no que toca ao tráfico 20. A referência utilizada pela autora está na nota 08: Frei Agostinho de Santa Maria, Santuário Mariano, Lisboa, Pedrozo Galvão, de 1707 a 1721. 21. SOUZA, 2002, p. 166-167; REGINALDO, 2005, p. 56-57. REGINALDO, 2009, p. 305. As autoras fazem uma crítica às formas de compreensão de apropriação do catolicismo dos povos africanos apenas pelo seu aspecto de aparência. Assim como Lucilene Reginaldo, Marina de Mello e Souza também negou a possibilidade de simples incorporação dos africanos apenas pelas semelhanças entre as formas de culto. Explicou sua compreensão da seguinte forma: “Mais do que a incorporação de elementos da cultura dominante que apresentam pontos de contato com as tradições do dominado ou a adoção de formas que permitirão a integração do estrangeiro, o que destacamos são releituras de modelos sancionados pela sociedade a partir do prisma das pessoas originárias de outro universo cultural” (SOUZA, 2002, p. 166-167).


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de escravos. Para a autora, a importância e o vigor ao culto ao rosário são anteriores à presença de cativos jejes e iorubas (de onde vem o culto dos orixás) entre as populações negras nas Américas e na Península Ibérica. Outro pesquisador que procurou explicar a adesão dos africanos ao culto a Nossa Senhora do Rosário por meio das semelhanças foi A. Saunders, como explicou Marina de Mello e Souza (2002, p. 161). Ele viu feições comuns entre as religiões africanas e a religião católica, como o hábito de rezar em conjunto, o culto dos santos católicos que podiam ser identificados com os espíritos ou os deuses secundários das religiões africanas, a condução dos ritos por um sacerdote, as procissões com danças e a crença em demônios e bruxas, o que podia ser facilmente compreendido pelos africanos22. A constatação de Saunders até pode explicar uma possível proximidade das religiões africanas com o catolicismo, porém suas conclusões podem ser usadas para explicar qualquer uma das devoções das irmandades negras, mas não inteiramente a aproximação com a devoção a Nossa Senhora do Rosário. A identificação dos negros com Nossa Senhora do Rosário não foi propriamente uma escolha espiritual, mas de ordem prática, na visão de Didier Lahon (2012, p. 59). Em Portugal, a Confraria do Rosário do Mosteiro de S. Domingos, no centro de Lisboa, foi a instituição matriz de todas as confrarias desta invocação que nasceram não somente em Portugal, mas também em todo o império e em especial no Brasil. A data de referência para a fundação desta irmandade para a maioria dos pesquisadores do tema é o ano de 1496. Enquanto as outras eram instituições fechadas, a Irmandade do Rosário “apareceu em Lisboa no âmbito do mais perfeito ecumenismo, na única instituição, (...) que nessa época aceita, no seu seio, todas as categorias sociais, independentemente do estatuto econômico e social”, como atestou Lahon (2012, p. 59). A irmandade de Lisboa apresentava outra característica que a aproximou ainda mais da população negra: os privilégios reais. A partir da primeira década do século XVI, já era permitido o ingresso de africanos escravizados ou libertos na instituição instalada no mosteiro dominicano, onde havia a coabitação harmônica de irmãos negros e brancos. Cada vez mais numerosos na irmandade, os negros foram ocupando postos chaves na mesa administrativa da instituição. De acordo com Lahon, por razões nunca explícitas, o poder real foi atribuindo uma série de privilégios aos confrades negros, entre eles, “o mais desconcertante, atribuído antes de 1526, refere-se à possibilidade de resgatar, em outros termos de libertar, contra justo preço, os membros escravos da confraria contra a vontade do dono” (LAHON, 2012, p. 60). Esse privilégio foi estendido a algumas e reivindicado por várias irmandades negras em Portugal (REGINALDO, 2009, p. 300). 22. A obra referida pela autora é: SAUDERS, A.C. de C.M. A social history of blacks slaves and freedmen in Portugal – 1441-1555. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.


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Tal privilégio provocou uma reação dos senhores de escravos, que viram seu direito de propriedade e sua autoridade ameaçados, o que gerou desentendimentos no interior da Irmandade do Rosário. Em 1550, o conflito chegou a tal ponto que a instituição rachou literalmente em duas alas, uma dita “honrosa”, e a outra “dos pretos e forros”. A difícil coexistência prosseguiu até 1565, quando a ala negra obteve os seus próprios estatutos e a sua independência oficial. Nascia oficialmente a Confraria do Rosário dos Homens Pretos do Mosteiro de São Domingos (LAHON, 2012, p. 60-61)23. Os africanos, que foram escravizados e levados para Portugal, perceberam que as irmandades eram também espaços de proteção e ajuda mútua, porém só eram admitidos na Irmandade do Rosário de Lisboa os primeiros que chegaram. Participar da Irmandade do Rosário significava também a possibilidade concreta de liberdade, independente da vontade dos proprietários. Mais que uma escolha, fazer parte dessa associação era a única opção viável. As proximidades dos aspectos religiosos e as releituras estabelecidas não podem ser ignoradas, mas o aspecto prático tornou-se fundamental para aquela população escravizada. Nossa Senhora do Rosário era também a padroeira das conquistas espirituais estabelecidas nas novas terras descobertas ou conquistadas (REGINALDO, 2009, p. 303). Por isso, a população africana teve contato com a devoção do rosário desde as primeiras tentativas de conversão feita pelos missionários cristãos. O uso do rosário na conversão dos novos povos conquistados foi explicado da seguinte forma por Didier Lahon: O modo de expressão mesmo da devoção, ou seja, a reza diária, parcial ou total, de um Rosário, em outros termos de 150 Ave-Marias e 15 Pater Noster, é do ponto de vista pedagógico, uma devoção perfeitamente adaptada a uma sociedade na qual domina a expressão oral e o analfabetismo, assim como o iletrismo na maior parte das camadas sociais. A esse respeito ela responde, perfeitamente, às populações africanas que, graças ao caráter repetitivo, podem assim aprender de modo mecânico os principais mistérios e dogmas da fé católica sem, nem sempre, compreender o sentido (LAHON, 2012, p. 59).

23. O autor ainda afirmou: “Nenhuma confraria negra, tanto em África como no Brasil, e até mesmo as hispânicas da península ou da América, conseguiram obter, apesar dos seus esforços, o menor privilégio de liberdade conseguido por suas congêneres portuguesas” (p. 61). O autor acrescentou sobre a existência de irmandades negras em Portugal: “Assim, durante a segunda metade do século XVI, enquanto que se desenvolveu o conflito na confraria mista do Rosário de S. Domingos de Lisboa, as irmandades negras ou mistas já existem ou aparecem não somente nas principais cidades da Província, ao Norte e ao Sul do Tejo, em centros urbanos médios, bem como em zonas majoritariamente rurais” (p. 69). O autor explicou também que essas irmandades estavam divididas em três categorias: “aquelas que segundo o documento consultado são quase exclusivamente constituídas de negros; as irmandades mistas nas quais brancos e negros convivem; e por último, as que sofreram mutações ou estão em cursos de mutação” (p. 69).


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A situação não era muito diferente da grande maioria dos habitantes da Europa, que também estavam distantes do mundo letrado. O fato é que as irmandades negras se espalharam pela Península Ibérica, pela África e pela América. Para Marina de Mello e Souza (2002, p. 162), “foi um dos padrões sociais comuns à vasta região que constituiu o universo de relações escravistas e coloniais em torno do Oceano Atlântico”. Na América Portuguesa, calcula-se que cerca de 80% da população negra pertencia a, pelo menos, uma irmandade na virada do século XVIII para o XIX, segundo estimativa da autora (Ibid., p. 189)24. Enquanto vários pesquisadores apresentaram suas teorias e ainda continuam discutindo sobre as razões da devoção entre os negros, Leda Maria Martins (1997) foi ouvir como os próprios membros das irmandades negras explicam a origem do rosário. A autora ouviu os grios da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, em Minas Gerais, que resistiu ao tempo e mantém a tradição de seus Congados e Reinados25 . Entre os seus entrevistados está o Sr. João Lopes, 64 anos, capitão-mor da irmandade, que explicou como começou a devoção dos negros por Nossa Senhora do Rosário. A autora reproduziu a entrevista usando a linguagem literal utilizada pelo Sr. Lopes. Procuramos adaptar o relato mesclando a linguagem formal e informal para não perder a essência da história narrada26. Um menino, filho de escravo, estava brincando quando viu Nossa Senhora aparecer no mar. Ele voltou para sua casa e contou para seus pais que tinha visto uma mulher muito bonita sentada em uma pedra dentro do mar e com uma luz na cabeça. O pai do menino lhe disse que não admitia que ele contasse mentira, que o preto não conta mentira, e que abrisse a boca só para falar a verdade. Ele bateu no menino que depois voltou a brincar. Em seguida, ele viu novamente a santa no mar. Os brancos também viram Nossa Senhora sentada no mar e com o padre foram lá para tirar a santa. Levaram banda de música, coral, construíram uma igrejinha bonita, tiraram a santa e colocaram dentro da igreja. Quando voltaram no outro dia, a santa não estava mais lá, mas sentada na mesma pedra. Começaram então a fazer romarias, convocaram os marujos, tiraram novamente a santa do mar e a colocaram na igreja. Não adiantou, ela voltava sempre para o mesmo lugar. 24. João José Reis (1991) na sua obra “A morte é uma festa’, faz referência aos trabalhos de Katia Mattoso e Inês Oliveira sobre os libertos da Bahia “ – africanos na sua maioria – [que] mostram a importância das irmandades em suas vidas e mortes. Entre 1790 e 1830, apenas 21,6% dos libertos e 18,5% das libertas que deixaram testamentos não pertenciam a irmandades. Muitos eram membros de mais de uma, de quatro, cinco, sete” (p. 54). 25. “Ainda que sejam tomados um pelo outro, os termos Congado e Reinado mantêm diferenças. Ternos ou guardas de Congo podem existir individualmente, ligados a santos de devoção em comunidades onde não exista o Reinado. Os Reinados, entretanto, são definidos por uma estrutura simbólica complexa e por ritos que incluem não apenas a presença de guardas, mas a instauração de um Império, cuja concepção inclui variados elementos, atos litúrgicos e cerimoniais e narrativas que, na performance mitopoética, reinterpretam as travessias dos negros da África às Américas” (MARTINS, 1997, p. 31-32) 26. O texto original encontra-se nas páginas 53-55. A entrevista foi gravada por Leda Maria Martins em 12/01/1994.


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A criança voltou a contar para os pais que tinha visto a mulher bonita dentro da água do mar. Novamente foi repreendido e apanhou. Na terceira vez que isso aconteceu, seus pais foram a certa distância, viram a santa e a multidão tentando ver se Nossa Senhora estava fora da água. Então os escravos foram pedir ao seu senhor se eles podiam ir cantar para a santa na beira do mar. Cantar como, se vocês não têm instrumentos? Perguntou o senhor. Então, os negros pediram permissão para cortar madeira para que eles pudessem fazer seus instrumentos. O senhor autorizou desde que não cortassem nenhuma madeira em pé. Depois dos instrumentos preparados, eles foram até à beira do mar para cantar para Nossa Senhora. Uma mulher que estava na frente balançava um galho de oliveira em direção à santa. Os negros abaixaram a cabeça e começaram a cantar e tocar os seus tambores e os demais instrumentos, e quando levantaram a cabeça, Nossa Senhora estava no meio deles. Os brancos se revoltaram e mandaram um capataz bater nos negros enquanto eles cantavam e dançavam. No entanto, os negros não sentiam as chicotadas dadas pelo capataz, quem passou a senti-las foram os próprios brancos, o que gerou grande confusão. Nossa Senhora vendo que os negros estavam ali de coração puro, fiéis a ela, começou a chorar pelos martírios que os brancos estavam fazendo aos negros. No momento em que ela chorou, as lágrimas que correram de seus olhos caíram no chão e nasceu um pé de capim, de onde cresceram umas frutinhas. Dessas frutinhas, os negros começaram a fazer o rosário de Nossa Senhora. E até naquele momento, eles usavam colar de conta de nozes e contas de frutas de palmeira. Depois, os negros escravizados levaram a santa para a fazenda onde moravam. O senhor prendeu os negros na senzala e deixou a santa separada deles. Também avisou que não podiam visitá-la. No dia seguinte, o senhor foi vê-la e ela não estava mais no lugar que ele havia deixado. Ameaçou os negros, mas eles nada sabiam. Então, um menino sugeriu que talvez ela tivesse voltado para o mar. Quando chegaram à beira do mar, ela estava dentro de um ranchinho de sapê que os negros haviam feito para guardar seus instrumentos musicais. Tentaram tirá-la de lá, mas ela preferiu ficar na casa de sapê, que é a casa de Nossa Senhora. Por isso, por mais bonita que seja, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário é a mais humilde de todas as igrejas do Brasil27. Leda Maria Martins reproduziu seis narrativas da lenda a partir de entrevistas com membros da irmandade e cotejando com versões de outras regiões brasileiras identificou que, apesar das variantes, elas possuem um núcleo comum composto por três elementos:

27. Existem muitas similaridades com a festa do Ensaio de Promessa do Quicumbi, de Teixerias, como pode ser visto na pesquisa de Andréa Witt (2016).


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1º) a descrição de uma situação de repressão vivida pelo negro escravo; 2º) a reversão simbólica dessa situação com a retirada da santa das águas ou da pedra, capitaneada pelos tambores; 3º) a instituição de uma hierarquia e de um outro poder, fundados pelo arcabouço mítico (MARTINS, 1997, p. 56).

A construção da devoção a Nossa Senhora do Rosário foi produzida durante vários séculos e é permeada por narrativas fantásticas da intervenção divina na história. Quando o cristianismo estava em perigo, a arma principal contra os pagãos era o rosário. Na expansão marítima europeia, com as caravelas, as irmandades se espalharam pelo mundo, principalmente na África e na América. Milhões foram transportados de um continente ao outro e uma realidade completamente adversa e desumana estava posta. Para os negros, elas surgiram como um mecanismo de solidariedade, de ajuda mútua, de manutenção ou constituição de novas identidades e de novas releituras diante da desagregação social e cultural provocadas pela escravidão. Como um fenômeno essencialmente urbano, era necessária a criação de condições propícias para a fundação dessas associações, principalmente entre a população negra. Com o surgimento das primeiras vilas e o crescimento de um emergente comércio de sujeitos escravizados na América Portuguesa, criaram-se também as primeiras irmandades negras. A fundação de irmandades fez parte do cotidiano colonial e era a garantia de manutenção da religiosidade católica em regiões onde a presença oficial da Igreja era limitada. Existem dificuldades de estabelecer datas precisas da fundação das Irmandades do Rosário no Brasil, pois as datas dos compromissos não correspondem às da criação dessas associações, mas sim do momento em que se tornaram oficiais diante da Coroa e da Igreja. Para Julita Scarano (1975, p. 47-48), as Irmandades do Rosário foram introduzidas no Brasil pelos jesuítas. Em São Paulo, uma delas existia desde os primórdios de Piratininga, tendo sido criada por José de Anchieta, ainda no século XVI. Também estavam entre as mais antigas as Irmandades do Rosário do Rio de Janeiro (1639), Belém, Salvador, Recife e Olinda (todas da década de 1680) (VAN DER POEL, 1981, p. 187). A segunda metade do século XVI também foi o período apontado por Russel-Wood, como a data de fundação das primeiras irmandades negras na América Portuguesa, embora exista dificuldade muito grande em encontrar registros desse período. O autor fez questão de frisar que foram tantas fundadas e dissolvidas sem receber sanção oficial nem ser tema de correspondência da Coroa, que seria praticamente impossível fazer-se uma contagem geral das irmandades negras no Brasil colonial em qualquer data ou lugar (RUSSEL-WOOD, 2005, p. 198-200). Este universo religioso era complexo e em cada posição da hierarquia social havia uma irmandade que se adequava. Avançando um pouco


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no tempo, Russel-Wood fez a seguinte afirmação sobre essas possibilidades para a população negra: No século XVIII, seria verdadeiro dizer que para cada pessoa, negra ou mulata, homem ou mulher, escrava ou livre e para cada origem tribal ou local de nascimento (crioula, ou seja, nascida no Brasil ou vinda da África) existia uma irmandade na qual poderia encontrar seus iguais (RUSSEL-WOOD, 2005, p. 199-200).

Talvez o autor tenha exagerado nessa avaliação, pois as irmandades se desenvolviam mais adequadamente nos centros urbanos, onde vivia apenas uma pequena parte da população colonial. Os negros escravizados ou livres dos espaços rurais tinham mais dificuldades em participar ativamente de uma delas, não que tal possibilidade deixasse de existir, mas eram necessários canais de negociações e/ou imposições mais fortalecidos com os seus senhores. Negociação, resistência, acomodação, imposição são algumas das categorias que foram utilizadas na compreensão do papel e do significado das irmandades negras. Convido o leitor a visualizar no próximo item um breve (e incompleto) panorama da historiografia sobre as irmandades negras no Brasil e suas diferentes formas de interpretação.

2.3 AS IRMANDADES NEGRAS NO BRASIL – UMA BREVE ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA As irmandades negras tiveram uma atenção mais significativa dos pesquisadores do que as demais associações religiosas, o que gerou uma produção historiográfica mais abundante e também mais polêmica. Essa produção possui olhares diferentes sobre as funções das irmandades negras, vendo nelas um meio de dominação dos senhores ou como uma forma de resistência dos indivíduos escravizados. Atualmente, o seu estudo vai além desse binômio e procura analisar a complexidade de sua atuação e de seus significados sobre diferentes perspectivas. Vamos compreender isso um pouco melhor. Alguns trabalhos se tornaram ponto de referência no estudo das irmandades negras, ou pelo seu pioneirismo ou por sua abordagem. Um dos primeiros a analisar essas associações foi Fritz Teixeira Salles (2007) que procurou compreender o comportamento social das irmandades de Minas no século XVIII. Embora o seu trabalho não se configure em um estudo específico das irmandades negras, elas estão no centro de sua análise. Com base no materialismo histórico, visualizou, na composição social de diversas delas, uma luta de classes e uma colaboração religiosa na discriminação e no preconceito racial. Salles enxergou um espelho da sociedade colonial mineradora nessas corporações. Para ele, quando se aprofundaram os antagonismos de classe no seio da sociedade,


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intensificaram-se os conflitos entre as irmandades. Ao permitir ao escravo e ao mulato ingressar nesse tipo de associação, “proporcionou uma forma de luta, um veículo próprio e adequado, além de legal, para a apresentação de suas reivindicações”(SALLES, 2007, p. 105). Uma das primeiras análises específicas das irmandades negras foi realizada por Julita Scarano (1975). Como obra pioneira, a autora preocupou-se em explicar as origens, sua jurisdição eclesiástica e temporal e a classificação social nas irmandades, para depois analisar as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e, mais especificamente, a do Distrito Diamantino, nas Minas Gerais do século XVIII. A obra possui um caráter didático-explicativo e foi produzida com intensa pesquisa em fontes primárias. A própria autora explicou que não foi possível um diálogo com a historiografia, pois até então não existiam estudos com esta abordagem, o que é mais um mérito desta obra. Sobre o papel das irmandades negras, Scarano afirmou que elas possibilitaram colocar os negros em pé de igualdade com as associações dos brancos. Era o meio de que dispunham para mostrar aos senhores que também faziam parte da humanidade, mesmo que, na realidade, fossem colocados em condições subumanas. Elas também davam ao preto a possibilidade, mesmo pequena, de união e defesa. Segundo a autora, em Minas Gerais, as Irmandades do Rosário nunca tomaram uma posição contrária ao princípio da escravidão – e nem poderiam fazê-lo – diante do controle governamental. Cooperaram com a alforria de um ou outro irmão e em alguns casos vão se opor aos “maus senhores”, tendo papel preponderante na luta pela melhoria das condições dos homens de cor (SCARANO, 1975, p. 82-83)28. A irmandade sempre se interessou pela liberdade de sua gente, mesmo que não tenha alcançado um campo vasto e significativo (SCARANO, 1975). Na avaliação de Scarano, “o branco, tentando integrar o negro na religião católica, afastá-lo de suas crenças nativas e sujeitá-lo a seu domínio, deu-lhe um meio, ainda que precário, de reunião e luta, para obter uma condição mais humana” (Ibid. p. 87). Essa condição mais humana abrangia uma vasta gama de possibilidades, como o enterro digno, o conforto durante a doença, a proteção em caso de abandono e outras atividades como a alimentação dos presos (p. 91-95). Dessa forma, não tentava pôr fim à escravidão, mas procurava diminuir seus malefícios. Ao mesmo tempo em que se tornaram um espaço de luta e de conquista para os negros, as irmandades também possibilitaram um controle sobre eles. 28. Scarano (1975, p. 83) também afirmou que: “As irmandades foram criadas dentro de um sistema fundado na desigualdade entre os homens e na exploração de um grupo sobre os outros e aceitavam plenamente o regime escravocrata. Mesmo as irmandades de homens de cor demonstraram tal aquiescência e admitiam implicitamente o sistema, pois também possuíam cativos, como a Irmandade do Rosário do Tijuco”.


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Ao querer ser bem aceito pela sociedade, cumprir a lei e apoiar-se na religião imposta pelo branco, limitava a ação das mesmas, impedindo uma ação mais global contra a escravidão. Entretanto, se não foram as irmandades capazes de uma ação violenta contra o cativeiro, não foram elas que a impossibilitaram, pois a vigilância era contínua e rigorosa em toda a região do Distrito Diamantino (Ibid., p. 146-148). Outra obra clássica sobre as irmandades foi desenvolvida por Caio Boschi (1986). Enquanto Julita Scarano se concentrou no aspecto social e assistencial das irmandades, Boschi insistiu no seu sentido político e, por isso, procurou analisá-las e suas relações com o Estado. Também concentrou sua pesquisa em Minas Gerais, no século XVIII. Baseado no pioneirismo de Fritz Salles, afirmou que é impossível conhecer a história social de Minas sem estudar a atuação das irmandades. A proliferação das irmandades exigiu do governo metropolitano uma severa e permanente fiscalização sobre elas, pois eram associações que nasciam de forma espontânea, da livre vontade dos habitantes e não algo imposto pela Coroa e, por isso, poderiam apresentar um constante perigo para o Estado. Era preciso controlá-las e dominá-las (BOSCHI, p. 28-29). Mas, ao mesmo tempo em que possuíam um espírito de independência, em que a população em geral e os grupos sociais subalternos afirmavam suas identidades culturais, étnicas ou sociais, contraditoriamente, Boschi viu um eficiente agente de colonização nessas associações, pois não perderam seu traço de instituição europeia e, portanto, eram identificadas com a política colonizadora (Ibid., p. 68-69). Como agente de colonização, na perspectiva do autor, as irmandades serviram como um instrumento de enquadramento do negro aos padrões culturais do branco. O Estado e a Igreja, ao mesmo tempo em que facilitavam a assimilação da religião cristã, permitiram ao negro uma espécie de “sincretismo planejado”, isto é, dirigiam e determinavam as formas pelas quais seriam norteados os contatos religiosos dos negros com os brancos, no esforço de assimilação e fixação daqueles ao mundo destes” (BOSCHI, 1886, p. 12). Nesse “sincretismo planejado”, as autoridades civis e eclesiásticas chegaram a permitir a incorporação à liturgia romana de uma para-liturgia africana. Sendo assim, “as irmandades de negros escamotearam o permanente conflito de classes, em choques e violências, que permeou todo o período colonial” (Ibid. p. 69). Para Boschi, as irmandades negras foram permitidas na medida em que não colocassem em cheque o próprio sistema. Foram estimuladas e consentidas diante de uma política que visava “preservar as relações de dominação e submissão” (Ibid., p. 157). À medida que os negros procuraram reproduzir o modelo estabelecido pela associação de brancos, incorporaram e


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assimilaram unilateralmente à sua personalidade comportamentos e atitudes dos brancos com os quais conviviam. E concluiu: Em decorrência, ao contrário dos quilombos, as irmandades acabaram se tornando uma forma de manifestação adesista, passiva e conformista das camadas inferiores, onde não se formou uma consciência de classe e, por conseguinte, onde inexistiu uma consciência política (BOSCHI, 1987, 157).

Nessa perspectiva, as irmandades ratificaram o regime escravista e toda a sua estrutura social hierarquizada e tiveram sua atuação controlada. Para ele, operacionalizavam uma estratégia política de manipulação dos negros, incorporando a ideia de igualdade em relação aos brancos, sem alterar a ordem social. Apesar disso, Boschi reconheceu a sua importância: Se é verdade que as irmandades de negros não lutaram pelo fim do sistema escravista, não é menos verdade que, sem elas, certamente desapareceria qualquer propósito de solidariedade intragrupal. Embora não objetivassem a destruição do sistema, as irmandades davam aos negros a oportunidade de desabafar suas agruras, expressar suas necessidades e, até mesmo, tentar influir em seu futuro, procurando tornar suas vidas mais suportáveis. Por isso, elas foram palco privilegiado da sociabilidade praticada na colônia. E nessa medida, os negros souberam utilizar-se delas como um instrumento de defesa e de proteção contra os rigores da escravidão (BOSCHI, 1986, p. 152).

Contudo, jamais contestando o sistema e funcionando como um neutralizador das tensões sociais. “O Estado as transformava em dócil e leal aliado” (BOSCHI, p. 180). Não é essa a interpretação de Antônia Aparecida Quintão (2002a, p. 20-21), que viu nas irmandades um espaço de luta e resistência, pois tinham um caráter de protesto racial. Era uma “resposta possível” diante das situações de injustiças e desigualdades, praticadas em uma sociedade hierarquizada e discriminatória. Era um protesto “dentro da ordem”, uma vez que eram fiscalizadas pelas autoridades civis e eclesiásticas, mas isso não invalidava o seu caráter contestatório e nem diminuía seu significado. Escreveu Quintão: (...) se a classe senhorial e as elites quiseram utilizar as Irmandades como meio de controle e de integração do negro numa sociedade escravocrata, estes souberam transformá-la num espaço de solidariedade, de reivindicação social e de protesto racial, conseguindo dessa forma, a sua identidade e sua dignidade (QUINTÃO, 2002b, p. 34).

Na obra “Irmandades negras: outro espaço de resistência e luta”, Quintão (2002b) analisou a atuação dessas associações em São Paulo, no final do século XIX, em pleno movimento abolicionista. Quintão encontrou irmãos da Irmandade do Rosário, que também faziam parte da Irmandade dos Remédios,


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reduto do movimento dos caifazes, liderados por Antônio Bento. Os caifazes circulavam entre as Irmandades de Nossa Senhora dos Remédios, do Rosário e de Santa Efigênia. Antônio Bento exerceu o cargo de provedor da Confraria de Nossa Senhora dos Remédios, o que facilitava o contato com os irmãos de outras irmandades. Tal atuação é um dos argumentos utilizados por Antônia Quintão para afirmar que as irmandades foram palco de resistência contra o regime escravista. Caio Cesar Boschi e Maria Aparecida Quintão sintetizam duas correntes com interpretações antagônicas sobre o papel social das irmandades negras. Outros historiadores também polarizam a discussão na perspectiva da “dominação” ou da “resistência”, da “negociação” ou do “conflito”, do espaço “conquistado” ou do espaço “concedido”. Na perspectiva da dominação, encontramos ainda os trabalhos de Cristina Ávila, Maria do Carmo Gomes (1988), Manoel Silveira Cardozo (1973) e Décio Freitas (1980), que também viram nas irmandades um ponto de apoio aos dominadores e, ao desencorajar a adesão às revoltas dos escravos, tornaram-se verdadeiros “antiquilombos”. Com uma interpretação baseada na “resistência” temos como referência, além de Antonia Quintão, os trabalhos de Rita de Cássia de Araújo (1996) e Elizete da Silva (1994). Outros perceberam nas irmandades um local de ambiguidades e contradições. Elas foram concebidas como espaço de acomodação, mas, ao mesmo tempo, possibilitaram a formação de identidades e constituíram um espaço de relativa autonomia. Julita Scarano, como vimos, tem essa interpretação junto a Anthony John Russell-Wood (2005)29. Outros autores procuraram fugir dessa dicotomia entre acomodação e/ou rebeldia e viram nas irmandades relações mais complexas do que simplesmente “traidores ou heróis da causa negra” (MACCORD, 2001, p. 43)30. Ampliaram o campo de interesses no interior delas e começaram a visualizar outros aspectos, como a preocupação com a morte, a mestiçagem, a trajetória de vida de alguns de seus integrantes, as origens das devoções negras e as festas. Nessa perspectiva, podemos destacar as obras de João José Reis (1991), Marina de Mello e Sousa (2002), Mariza de Carvalho Soares (2000), Marcelo MacCord (2001), Regina Célia 29. O autor afirmou que para os escravos as “irmandades eram a única forma de vida comunitária legalmente a eles permitida no período colonial. Para os escravos, podiam ser úteis para garantir sua liberdade. Para o liberto, conferiam certo grau de proteção contra a exploração numa sociedade extremamente competitiva” (p. 227). Já no plano cultural, “as irmandades negras podem ter sido sólidas guardiãs das línguas e religiões africanas. Isso desafiava abertamente a rigorosa proibição do uso da música e da dança africanas” (p. 228). Ao mesmo tempo, elas simbolizavam para o colono branco uma tradição familiar, ao mesmo tempo portuguesa e católica. “A Irmandade representava moderação, autoridade e estabilidade na população negra e mulata” (p. 229). E conclui que “o papel vital desempenhado por essas irmandades na promoção da adaptação e da integração social do escravo e do liberto negro e mulato no Brasil colonial foi reconhecido pela Coroa, pelas Câmaras Municipais e pelos colonos” (p. 228). Ou seja, os maiores interessados pela estabilidade e pela manutenção do sistema escravista. 30. E acrescenta: “Ao invés de simplesmente conformar ou resistir, a Irmandade cruza interesses de diversos atores, onde cada um deles se apropria do espaço confraternal dentro de suas possibilidades de ação” (p. 43).


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Xavier (2002), Larissa Viana (2007), Anderson José Machado de Oliveira (2008), Lucilene Reginaldo (2005, 2008) entre vários outros. Filiamo-nos a essa última postura historiográfica, por ela captar a diversidade de atuação das irmandades, valorizar sua complexidade e permitir compreender o protagonismo de seus integrantes. Voltaremos a falar desses pesquisadores e suas conclusões em diversos momentos no decorrer deste texto e em situações específicas. Pelo Atlântico circularam produtos, pessoas, “divindades” e práticas religiosas. As irmandades chegaram à América integradas ao projeto de ocupação territorial e conversão dos gentios. Espalharam-se por todo o território e foram constituindo um catolicismo com características próprias, adaptadas a uma realidade formada por europeus, indígenas, africanos, mestiços, senhores escravistas, sujeitos escravizados, ricos e pobres. A diversidade populacional e social e suas hierarquias estavam representadas nas irmandades que iam sendo fundadas conforme a expansão territorial avançava. E, nesse caso, estava o Continente de São Pedro. O leitor será levado agora à parte meridional do Brasil para conhecer as principais irmandades fundadas no Rio Grande do Sul e sua importância em um território integrado tardiamente ao mundo português. Com isso, conhecer parte do cenário em que foi fundada a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Santa Maria. Esse é o tema do próximo capítulo.


3 IRMANDADES E RELIGIOSIDADE NO RIO GRANDE DO SUL



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O Continente de São Pedro passou efetivamente a fazer parte dos planos de expansão do Império Português somente nas primeiras décadas do século XVIII. Laguna era a última vila do território contínuo da América Portuguesa e de lá partiram as primeiras expedições para tomar conhecimento das terras mais ao sul, fazer contato com os indígenas e analisar as possibilidades de ocupação desse espaço meridional, onde não havia ainda uma definição precisa sobre quem exercia a efetiva soberania. Laguna também era o último porto antes da Colônia de Sacramento, localizada na embocadura do Rio da Prata. Essas primeiras expedições possibilitaram o conhecimento das vastas regiões de campos nativos, ideais para o desenvolvimento das atividades pecuárias, mesmo tendo que enfrentar a concorrência dos índios missioneiros. A partir de 1730, partindo de Laguna, os primeiros colonizadores começaram a explorar e se estabelecer nos Campos de Viamão31. Em 1746, os Campos de Viamão já contavam com aproximadamente duzentas pessoas, divididas em 50 famílias. Tornou-se sede de uma capela em 1741, transformada em freguesia no ano de 1747 (KHUN, 2006, p. 103), dando maior autonomia para a nova região, pois seus habitantes não precisariam ir até Laguna para casamentos e batizados. Antes disso, outro marco fundamental nas pretensões expansionistas dos portugueses até o Rio da Prata foi a construção, em 1737, do Forte Jesus Maria José, a primeira fortificação militar portuguesa no Rio Grande do Sul. É a partir desse forte que foi criada oficialmente a Vila de Rio Grande de São Pedro em 174732. A efetiva ocupação do Continente de São Pedro pelos luso-brasileiros começou depois de mais de duzentos anos da chegada dos primeiros colonizadores da América Portuguesa. Começava um longo período de conflitos e negociações com os espanhóis, que estavam na região desde 1626, quando ultrapassaram o Rio Uruguai e fundaram a redução de São Nicolau. Assim como nas demais regiões, a religião fazia parte deste processo de avanços territoriais e de 31. “Os Campos de Viamão abrangiam uma área de considerável extensão no nordeste do atual Rio Grande do Sul. Os tais campos correspondiam às terras situadas ao sul do rio Mampituba, tendo ao leste o Oceano Atlântico e a oeste e a sul a baliza fluvial do Guaíba e da Lagoa dos Patos (…). Para os paulistas e lagunenses que exploravam o Rio Grande a partir do “Caminho da Praia”, os campos eram todas as planícies despovoadas à margem esquerda do Rio de São Pedro. É importante ressaltar, desde já, que as denominações Campos de Viamão e Freguesia de Viamão, criadas em 1747, são coisas distintas. Na verdade, os campos tinham uma extensão um tanto indefinida, que abarcavam praticamente todos os territórios setentrionais do Continente do Rio Grande até meados do século XVIII. É certo que a Paróquia de Viamão era imensa nos seus princípios, mas logo deu origem, nas décadas seguintes, a diversas outras freguesias, como Triunfo (1756), Santo Antônio (1763) e Porto Alegre (1772), entre outras” (KHUN, 2006, p. 103). 32. “O núcleo populacional de Rio Grande, situado na planície costeira sul-rio-grandense, desenvolveu-se em uma península próxima da desembocadura da Laguna dos Patos, estuário com cerca de 265 quilômetros de comprimento e 60 quilômetros de largura máxima, totalizando uma superfície de cerca de 10.000 km² e que se estende no sentido norte-sul, paralelamente à costa atlântica. Suas origens remetem ao processo de ocupação luso-brasileira da região meridional do continente sul-americano e de suas pretensões expansionistas rumo ao Rio da Prata a partir do século XVIII” (OLIVEIRA, 2013, p. 42-43).


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ampliação da fé cristã. A cruz estava lado a lado com a espada na expansão do império português e na organização administrativa das novas possessões. Além da catequização de indígenas e de africanos trazidos como escravos, com a fundação de capelas, freguesias e irmandades, também procuravam atender as necessidades espirituais dos colonizadores que migravam para a região. O leitor terá, nas próximas páginas, uma visão geral da religiosidade católica e suas associações nas terras do Rio Grande de São Pedro. Neste capítulo, ainda voltaremos a nos concentrar nas Irmandades do Rosário.

3.1 O “MERCADO RELIGIOSO” NO RIO GRANDE DO SUL: IRMANDADES E ORDENS TERCEIRAS Uma das preocupações dos novos habitantes da América Portuguesa e dos novos territórios a ela incorporados era a transposição de instituições que lhes garantissem segurança institucional e religiosa. Por isso, as primeiras irmandades foram criadas logo após a instalação das primeiras capelas e das primeiras vilas. Com a chegada dos primeiros povoadores no Campos de Viamão e a instalação do povoado, logo começou a organização das associações religiosas para a manutenção das igrejas e da vida religiosa do lugar. A Irmandade Conjunta de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento de Viamão foi uma das pioneiras, criada em 1745. Em 1750, na mesma localidade, foi criada a Irmandade de São Miguel e Almas e, um ano depois, os “homens de cor” criaram a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (LOPES, 1891, p. 171). A primeira paróquia criada no Rio Grande do Sul foi a de Jesus, Maria, José e São Pedro, em Rio Grande, efetivada em abril de 1738, com a chegada do primeiro pároco, Pe. José Carlos da Silva. A partir de 1755, com a construção da nova matriz, passou a se chamar São Pedro, que era tido como o único padroeiro e assim era festejado. Viamão continuou ligada à Paróquia de Laguna, até a sua separação e transformação em freguesia, em setembro de 1747 (RUBERT, 1994, p. 56-72). Em Viamão, a fundação da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição é anterior à da paróquia, o que de antemão, já demonstra a importância dessas associações para a manutenção do catolicismo diante das distâncias e da dificuldade de ter a presença de sacerdotes. Assim como avançavam as áreas de ocupação, imediatamente criavam-se essas instituições religiosas organizadas pelos leigos. Fábio Khun (2010, p. 122) identificou o surgimento de vinte e nove irmandades e três ordens terceiras atuantes entre 1745 e 1819, considerando que até 1815 haviam sido criadas somente vinte e duas freguesias no Rio Grande do Sul.


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A constatação de Russel-Wood sobre as dificuldades de catalogar a existência de todas as irmandades também é válida para o Rio Grande do Sul. No entanto, um trabalho fundamental, que permite ter uma visão panorâmica da existência dessas irmandades, foi realizado pelo arcediago Vicente Zeferino Dias Lopes, autor de “Nótulas Sobre a História Eclesiástica do Rio Grande do Sul – 1737-1891”33, que procurou descrever os principais acontecimentos da história da Igreja no Rio Grande do Sul. Com a ajuda do clero, que atuava nas diversas paróquias daquele período, e com a consulta em arquivos eclesiásticos e governamentais, Vicente Lopes produziu um texto, que ficou pronto em 1891, que tem servido de base para muitas pesquisas, apesar de algumas imprecisões e esquecimentos. No que se refere às irmandades, o autor listou alguns dados históricos de noventa delas e mencionou a existência também da Irmandade de São Miguel e Almas, da Freguesia da Cachoeira, cujos livros e compromissos se perderam, somando então noventa e uma irmandades. Listou separadamente cinco Ordens Terceiras (três de São Francisco, Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora das Dores, esta última começou como irmandade e transformou-se em ordem terceira). O arcediago não colocou nessa lista as irmandades que tinham como objetivo central a caridade, a fundação de hospitais e o atendimento aos enfermos, como as Misericórdias. Mencionou a sua existência quando escreveu sobre as Casas de Caridade e os hospitais, e estão, nesta categoria, mais sete. Somadas as irmandades e as ordens terceiras, temos um total de cento e três associações que foram identificadas pelo arcediago Lopes, fundadas até o ano de 1891. Comparando a lista produzida por Lopes (1891) com os documentos do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, do Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre e dos Relatórios produzidos pelos presidentes da província (especialmente o de 1859)34, percebemos que algumas irmandades ficaram de fora do levantamento realizado pelo sacerdote no final do século XIX. Nessa análise comparativa, identificamos mais vinte irmandades que não entraram na lista do autor por falta de informações, por terem sido criadas após o estudo, por esquecimento ou por qualquer outro motivo. Temos ainda as Irmandades do Rosário de Santa Maria, de Santo Amaro e de Mostardas que, embora nenhuma menção de sua existência foi encontrada nestes arquivos, suas atividades foram 33. O texto original não foi publicado, mas datilografado pelo Monsenhor João Maria Balém. Aparece em outras bibliografias como “Comentário Eclesiástico do Rio Grande do Sul desde 1737”, pois o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS) também possui uma cópia desse texto, e assim o denomina. Utilizo o título da cópia existente no Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. 34. O Relatório, produzido em 1859, é bastante minucioso no que se refere ao Culto Público, apresentando as condições de cada freguesia (divisas, bens de raiz, fábrica, capelas, irmandades e cemitérios). De algumas freguesias, os dados estão incompletos, talvez porque os párocos não enviaram os dados solicitados para a produção do relatório. Este relatório está disponível online na Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional, e pode ser acessado em: http://memoria.bn.br/pdf/252263/per252263_1859_00002.pdf


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retratadas em jornais35, bibliografias36 ou livros tombo37. Temos, então, cento e três identificadas por Lopes, mais vinte e três encontradas em outras fontes e documentos, chegando a um total de cento e vinte seis identificadas. Para ter uma noção geral dessas irmandades e suas principais devoções, elaboramos o quadro abaixo:

Quadro 1 - Irmandades e Ordens Terceiras no Rio Grande do Sul – Séculos XVIII-XIX Irmandades e Ordens Terceiras

Irmandade de Nossa Senhora da Conceição

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Conceição

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário

Localidade

12

Porto Alegre, Pelotas, Herval, Jaguarão, Rio Grande, Bagé, Cruz Alta, Uruguaiana, São Lourenço do Sul (Freguesia do Boqueirão), Santa Vitória do Palmar, Camaquã, São Gabriel

08

Cachoeira do Sul, Viamão, Piratini, São José do Norte (Freguesia do Estreito), São Leopoldo, Santa Maria, Canguçu, Osório (Freguesia da Conceição do Arroio)

16

Viamão, Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Pelotas, Santana do Livramento, Jaguarão, São Gabriel, Cachoeira do Sul, Bagé, Santo Antônio da Patrulha, São Borja, Encruzilhada do Sul (Freguesia de Santa Bárbara da Encruzilhada), Santo Amaro, Mostardas, Santa Maria

35. Encontramos um convite para a festa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, de Santo Amaro, no jornal A Federação, de Porto Alegre, em 03 de janeiro de 1891. Disponível em: http://memoria.bn.br/ DocReader/DocReader.aspx?bib=388653&pesq=Irmandade%20do%20Ros%C3%A1rio. 36. Embora seja constante a referência à existência da Irmandade do Rosário de Mostardas em sítios eletrônicos, não consegui encontrar nenhum estudo acadêmico sobre a referida Irmandade. O mais próximo disso foi: http://marisaguedeshistoriadora.blogspot.com.br/2009/05/ensaio-de-promessa.html. Sobre a Irmandade do Rosário de Mostardas na atualidade e a preservação do “Quicumbi” entre os quilombolas da região, temos a dissertação de mestrado de Janaina Campos Lobo (2010). 37. As atividades e portarias relacionadas à Irmandade do Rosário de Santa Maria encontram-se no arquivo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição – Santa Maria.


A comunidade negra de Santa Maria e sua Irmandade do Rosário (1873-1942)

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Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito

04

São Leopoldo, Taquari, Alegrete, Itaqui

Irmandade de São Benedito

01

Rio Grande

Irmandade da Caridade

04

São Gabriel, Jaguarão, Bagé, Alegrete38

Irmandade da Santa Casa de Misericórdia

03

Pelotas, Santa Vitória do Palmar, Porto Alegre

Irmandade de São Miguel e Almas

10

Viamão, Porto Alegre, Gravataí (Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia), Rio Grande, Rio Pardo, Triunfo, Pelotas, Santo Antônio da Patrulha, Taquari, Cachoeira do Sul

Irmandade de São Francisco das Chagas e Nossa Senhora da Conceição

01

Rio Pardo

Irmandade de Nossa Senhora das Dores

04

Santo Antônio da Patrulha, Porto Alegre, Triunfo, Rio Grande

Irmandade de Nossa Senhora do Amparo

01

Torres

Irmandade de Nossa Senhora da Boa Viagem

02

São José do Norte (Curato de N.S. da Boa Viagem do Pontal da Barra), Rio Grande

Irmandade de Nossa Senhora das Dores e Senhor dos Passos

01

Rio Pardo

Irmandade de Nossa Senhora da Assunção e Boa Morte

01

Pelotas

Irmandade de Nossa Senhora da Luz

01

Pelotas

Irmandade do Senhor dos Passos

02

Rio Pardo, São Leopoldo

Irmandade do Espírito Santo

03

Porto Alegre, Cachoeira do Sul, Rio Pardo

38

38. Também pode ser chamada de Santa Rosa Viterbo.


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Irmandade do Espírito Santo e Caridade39

01

Rio Grande

Irmandade do Santíssimo Sacramento

03

Cruz Alta, Jaguarão, Santo Antônio da Patrulha

Irmandade do Santíssimo Sacramento e São João Batista

Herval, Quaraí

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santa Ana

Uruguaiana, São Leopoldo (Freguesia do Rio dos Sinos)

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Graça

01

Arroio Grande

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Luz

01

Pinheiro Machado (Freguesia de N.S. da Luz de Cacimbinhas)

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Oliveira

01

Vacaria

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora das Dores

01

Camaquã

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora de Belém

01

Porto Alegre (Guaíba)

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora do Patrocínio

01

Dom Pedrito

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora do Rosário

01

Rio Pardo

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora dos Anjos

01

Gravataí (Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia)

39

39. A Irmandade do Espírito Santo e Caridade foi fundada em 1835. Em 1841 passou a se chamar Irmandade da Santa Casa de Misericórdia.


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Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora dos Navegantes

01

São José do Norte

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora Madre de Deus

01

Porto Alegre

Irmandade do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora das Mercês

01

São Sepé

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santa Bárbara

01

Encruzilhada do Sul

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Sant'Ana do Livramento

01

Santana do Livramento

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santo Amaro

01

Santo Amaro

Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Domingos

01

Torres

Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Francisco de Borja

01

São Borja

Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Francisco de Paula

01

Pelotas

Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Gabriel

01

São Gabriel

Irmandade do Santíssimo Sacramento e São José

01

Taquari

Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Luiz

01

Mostardas

Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Martinho

01

São Martinho

Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Pedro

01

Rio Grande

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Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Sebastião

01

Bagé

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Senhor do Bom Jesus do Triunfo

01

Triunfo

Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Francisco de Paula

01

São Francisco de Paula

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora Aparecida

01

Alegrete

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Assunção

01

Caçapava

Irmandade de São Jerônimo

01

São Jerônimo

Irmandade de São João Batista

01

Camaquã

Irmandade de São José

01

São Gabriel

Irmandade de São José do Patrocínio

01

Encruzilhada do Sul

Irmandade de São Lourenço

01

São Lourenço do Sul

Irmandade do Santo Sepulcro

01

Porto Alegre

Irmandade do Senhor do Bom Fim

01

Rio Grande

Irmandade de Santa Bárbara

01

Porto Alegre

Irmandade de Santa Cecília

01

Porto Alegre

Irmandade de Santo Antônio

01

Porto Alegre

Irmandade de Sant´Ana

01

Rio Grande

Irmandade de Santo Antônio das Lavras

01

Lavras do Sul (Freguesia de Santo Antônio das Lavras)

Irmandade de São Pedro Claver

01

São Sebastião do Caí


A comunidade negra de Santa Maria e sua Irmandade do Rosário (1873-1942)

Ordem Terceira de São Francisco

03

Viamão, Rio Grande, Rio Pardo

Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo

01

Rio Grande

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Fonte: AHCMPA, AHRS, LIVRO TOMBO SANTA MARIA – Quadro elaborado pelo autor

Esse quadro é apenas um demonstrativo da importância dessas associações religiosas no Rio Grande do Sul e confirma que elas estavam em todos os lugares da província. Não há objetivos estatísticos e nem a pretensão da precisão, é apenas uma amostra das irmandades que existiram entre os séculos XVIII e XIX. Todas elas não existiram ao mesmo tempo, algumas tiveram curta duração e outras se tornaram centenárias. Ainda tiveram àquelas que se constituíram em irmandades conjuntas e depois se separaram, formando duas entidades distintas40. Há ainda àquelas que não se preocuparam com a obtenção das provisões eclesiásticas e civis para o seu funcionamento e, mesmo assim, continuaram suas atividades. Acredito que as irmandades identificadas até aqui não representam a totalidade das que existiram no período e, portanto, essa lista não está completa. Várias outras devem ter funcionado em diversas freguesias e por não passarem pelo processo de reconhecimento religioso e civil, suas existências ficaram restritas aos documentos paroquiais. Exemplo disso é a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, de Santa Maria da Boca do Monte, que é objeto deste estudo. Ela não passou por esse processo de reconhecimento, não está na lista do arcediago Vicente Lopes e não há qualquer registro sobre ela na Cúria Metropolitana de Porto Alegre e nem no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porém, os livros tombos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Santa Maria registram suas atividades desde o ano de 187341. Apesar da consciência da possível imprecisão da lista, ela demonstra alguns aspectos importantes da religiosidade e das devoções presentes no Rio Grande do Sul. O primeiro deles é o prestígio da devoção mariana na província, principalmente de Nossa Senhora da Conceição. São doze irmandades dedicadas 40. A Freguesia de São João do Herval pode ser usada como exemplo destas mudanças que ocorriam nas irmandades e na dificuldade de sua catalogação. O arcediago Lopes (1891) descreveu a existência da Irmandade Conjunta do Santíssimo Sacramento e São João Batista e a Irmandade de Nossa Senhora da Conceição. Listamos apenas as duas irmandades para a localidade do Herval, já o relatório de 1859 apresentou as irmandades separadas e identificou mais uma, apenas com o nome de “Almas”, que não acrescentamos no quadro. O texto do relatório descreve da seguinte forma: “Irmandades – Possui quatro irmandades. As de Nossa Senhora da Conceição, São João Batista e Almas têm compromissos legais: a do Santíssimo Sacramento está apenas aprovado pelo poder eclesiástico”. Culto Público p. 06. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/252263/per252263_1859_00002.pdf> Acesso em: 25 jul. 2014. 41. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Livro tombo n. 2 (1860 - 1888). APNSC-SM.


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exclusivamente a ela e mais oito associadas ao Santíssimo Sacramento. A popularidade dessa devoção pode ser explicada pela influência portuguesa. Nossa Senhora da Conceição foi aclamada, em 1646, como padroeira do Reino Português, Algarves e de todos os seus domínios pelo rei D. João IV. Também foi a protetora do Brasil no período colonial e proclamada, juntamente a São Pedro Alcântara, a Padroeira do Império do Brasil, por Dom Pedro I. A condição de padroeira foi usada pelas irmandades como forma de prestígio e até de barganha, como fez a Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, de Porto Alegre, em ofício enviado ao Presidente da Província, em 1888, solicitando recursos para o término e últimos reparos de seu templo. Argumentou que os recursos já haviam sido destinados por Lei Provincial e que a igreja serviria como sede de uma freguesia a ser instalada. Se esses argumentos não fossem convincentes, apostou que apenas um seria suficiente: E se não bastassem as razões alegadas para o deferimento desta petição, seria suficiente o fato de ser Nossa Senhora da Conceição a Padroeira do Império, para que V. Exa. acolhesse a pretensão da atual Mesa, no sentido de colocar o Templo da Virgem em estado de ser visitado por todos os fiéis do Continente Sul-Americano42.

Além de Nossa Senhora da Conceição, várias outras invocações de Maria foram adotadas pelas irmandades na província, como Nossa Senhora das Dores, do Amparo, da Boa Viagem, da Graça, da Luz, de Belém, dos Navegantes, da Assunção, do Rosário, entre outras. Larissa Viana afirmou que um dos traços mais marcantes da espiritualidade luso-brasileira foi a devoção preferencial à Maria sob diversos títulos, presentes nas preces, nas festas, nos sermões ou como titular de igrejas e irmandades (VIANA, 2007, p. 100). Embora a autora tenha analisado o período colonial, essa influência permaneceu e também marcou os períodos posteriores. As múltiplas irmandades fundadas com tais invocações também demonstram essa característica na Província do Rio Grande do Sul. O segundo aspecto é a profusão de Irmandades do Santíssimo Sacramento. Além das oito irmandades conjuntas com Nossa Senhora da Conceição, temos mais trinta e quatro dedicadas a essa devoção. A grande maioria delas em conjunto com os padroeiros de cada freguesia. A finalidade específica das Irmandades do Santíssimo Sacramento era o culto da eucaristia e, por uma disposição canônica, só poderiam ser constituídas em igrejas paroquiais, pois era preciso a presença do sacerdote para a celebração da missa e consagração da hóstia, para o posterior culto eucarístico. 42. Correspondência da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição ao Presidente da Província. 16 de setembro de1888. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS.


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A principal celebração da Irmandade do Santíssimo Sacramento era a Festa de Corpus Christi, uma das mais populares procissões do ano religioso do período colonial e imperial. Welber Carlos Andrade da Silva (2012, p. 47) explicou que no período colonial, pelas determinações do padroado régio português43, a organização da festa do Corpo de Deus deveria ser dirigida pela monarquia, representada por suas Câmaras Municipais. Por isso, cabia à Câmara local a organização e o financiamento dessas procissões. Era uma festa religiosa tornada universal pela Igreja na Idade Média, que foi apropriada pelo Estado português na época moderna, na conclusão de Beatriz Catão Santos (2005). Welber Silva (2012, p. 35) também frisou que “o culto ao Santíssimo Sacramento, estabelecido no final da Idade Média, exigiu uma ritualística rebuscada com requintes de ostentação e luxo. Isso significava a promoção de ricas celebrações que nem sempre estaria à disposição das categorias mais pobres”. Desse modo, as Irmandades do Santíssimo Sacramento sempre tiveram associadas às elites locais. Outra instituição dominada pelas elites de cada localidade era a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia. A sua presença acompanhou o processo de colonização da América Portuguesa. A Misericórdia de Salvador, na Bahia, surgiu provavelmente em 1542, seguida da de Santos, talvez em 1543 e da do Rio de Janeiro, menos de duas décadas depois (ABREU, 2001). Com o incentivo e a proteção da Coroa Portuguesa, essa irmandade se espalhou por todo o Brasil. No Rio Grande do Sul, as primeiras Misericórdias organizadas foram a de Porto Alegre, em 1803; em Rio Grande, a Irmandade do Espírito Santo e Caridade (criada em 1835) passou a denominar-se Santa Casa de Misericórdia, em 1841; e, em Pelotas, em 1847. Essas cidades estavam entre as mais importantes da província, pois nelas havia uma grande circulação de pessoas e de bens. Porto Alegre, a capital; Rio Grande, o principal porto; e Pelotas, o centro charqueador.

43. O regime do padroado remonta à Idade Média, pelo qual a Igreja instituía um indivíduo ou instituição como padroeiro de certo território, a fim de que ali fosse promovida a manutenção e propagação da fé cristã. Em troca, o padroeiro recebia privilégios, como a coleta dos dízimos e a prerrogativa de indicar religiosos para o exercício das funções eclesiásticas. Em Portugal, em decorrência da luta contra os mouros, o rei adquiriu não só o padroado sobre diversos locais restritos, como também um padroado propriamente régio, que o habilitava a propor a criação de novas dioceses e escolher os bispos. A ele estava associado o beneplácito, isto é, a exigência de que o monarca aprovasse previamente as normas e determinações da Santa Sé que se destinassem ao reino. A Coroa também obteve o padroado sobre as novas terras conquistadas e a conquistar no ultramar. Apesar de suas intenções iniciais, o padroado tendeu a servir de instrumento para subordinar os interesses da Igreja aos da Coroa. Nos primeiros séculos, esses regalismo traduziu-se na transferência para as ordens regulares da maior parte das obrigações em relação a manutenção do culto, o que permitia a realização da receita dos dízimos para outros fins. Na segunda metade do século XVIII, embora a Coroa tenha valorizado o clero secular, essa política sujeitou crescentemente os sacerdotes à condição de autênticos funcionários da monarquia. No Brasil, a situação não se alterou com a independência, pois o padroado foi mantido até a proclamação da República, em 1899 (NEVES, 2001, p. 466-467).


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O quadro com a lista das irmandades suscita outras observações de que trataremos adiante. É corrente na historiografia destacar a sua importância como local de status social e prestígio. O pertencimento a uma irmandade composta pelos ‘principais’ era algo tão importante quanto o fato de ser oficial da Câmara. Muitas exigiam “limpeza de sangue”, bons costumes e qualidades; um componente fundamental da estratégia de ascensão social era a ocupação de cargos nas suas mesas diretoras (KÜHN, 2010, p. 122). Também são enfatizadas como importantes, lócus de sociabilidade tanto para a elite como para a população pobre. Não há dúvidas quanto a esses aspectos, no entanto, é preciso lembrar que a inscrição numa irmandade não era mera formalidade; era compromisso, envolvimento, participação ativa (BOSCHI, 1996, p. 15). O papel e a atuação dessas irmandades em diferentes regiões da província serão apresentados e analisados no item que segue.

3.2 PARA QUE SE CELEBRE O SANTO SACRIFÍCIO DA RELIGIÃO, COM AQUELA DECÊNCIA QUE É DEVIDA. Na província do Rio Grande do Sul, as irmandades religiosas tiveram importante papel na construção e manutenção de igrejas em diversas freguesias e mantiveram contato frequente com o governo provincial para melhorar a situação dos templos. Ao catalogar um conjunto de correspondências/ofícios (no AHRS) remetidos pelas irmandades ao Governo da Província, no século XIX, encontramos 121 documentos. Destes, 72 documentos têm como tema a construção, reforma ou manutenção das igrejas em diversas freguesias44. É possível verificar, com base nessas correspondências, o envolvimento das irmandades na construção, reforma ou manutenção de igrejas em Porto Alegre, Cachoeira do Sul, São José do Norte, Santa Maria, Tapes, Camaquã, Uruguaiana, Bagé, São Leopoldo, São Jerônimo, Encruzilhada do Sul, São Gabriel, Herval, Gravataí, Jaguarão, Vacaria, Rio Pardo, Rio Grande, entre outras. Os membros das irmandades mobilizaram as comunidades para a construção de seus templos, em alguns casos, em parceria com o vigário da localidade e, em outros, independente dele. A preocupação com a construção ou manutenção das igrejas é continuamente manifestada com o objetivo de “dar mais lustre ao Culto Divino”45 ou para que “se 44. Os documentos encontram-se no Fundo Assuntos Religiosos, Caixa 07, Maço 14 (Devoções, Irmandades e Sociedades). Essas correspondências foram divididas nas seguintes categorias, com respectivos números de documentos: Solicitação de Aprovação de Compromissos/Regulamento – 3 documentos; Caridade (construção de casa de caridade, atendimento de presos, doentes, expostos) – 5 documentos; Construção/Administração de Cemitérios - 8 documentos; Construção/Reforma/Manutenção de igreja – 72 documentos; Festividades (convites para celebrações ou solicitação de guarda de honra e música) – 16 documentos; Resposta de Ofício – 4 documentos.; Outros (terrenos, loterias, exéquias, reclamações, etc.) – 13 documentos. 45. Correspondência da Irmandade do Santíssimo Sacramento (Herval) ao Presidente da Província. 17 de junho de 1849. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS.


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celebre o Santo Sacrifício da (...) Religião, com aquela decência que é devida”46. Se algumas delas queriam apenas templos decentes, outras desejavam uma demonstração mais exuberante do templo e do culto nele celebrado, como foi explicado pela Mesa da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Jaguarão, em correspondência enviada em 1856, ao Presidente da Província Jerônimo Francisco Coelho. Justificou o seguinte: (...) resolveu levar, por este meio, ao alto conhecimento de V. Exa. as necessidades públicas que sofre o culto Divino e a Religião, que tanto convêm fazer sensível aos fiéis, pela grandeza e majestade da Casa de Deus, pela pompa e a ostentação dos atos religiosos. (...) Assim é que poucas, e bem pobres alfaias possui a Irmandade para as funções religiosas, cuja pompa é de necessidade ostentar, para o maior fervor dos fiéis à religião e ao culto Divino47.

A pompa e a ostentação, tanto do templo como dos atos religiosos, tinham uma função catequética com o objetivo de aumentar o fervor religioso. As manifestações externas de devoção foram uma característica da religiosidade católica colonial, também denominadas de “Catolicismo Barroco”. Essas manifestações externas da fé eram caracterizadas por missas rezadas por dezenas de padres, acompanhadas por corais e orquestras, templos com abundante decoração, funerais grandiosos e procissões cheias de alegorias (REIS, 1991, p. 49). Mas, como muito bem lembrou Mara Nascimento (2006, p. 34), “fé exteriorizada não implica necessariamente falsa fé. O homem barroco era antes de tudo um homem religioso que precisava manifestar sua religiosidade”. Na metade do século XIX, essas características começaram a ser alteradas por uma nova concepção de religiosidade que começou a ser implantada pela Igreja no Rio Grande do Sul, mas isso veremos adiante. As preocupações das irmandades iam além do simples aspecto externo e material. Prova disso foi manifestada, em 1860, pela Irmandade Conjunta do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora das Dores, da Vila das Dores de Camaquã, em correspondência também ao presidente da Província, com o seguinte teor: (...) venho respeitosamente cientificar a V. Exa. como primeira autoridade da Província e conhecer a necessidade dela; por isso, faço saber a V. Exa. que este Distrito há muitos meses está sem um sacerdote e com magoa tenho visto morrerem muitos cristãos sem quem lhes possa socorrer com o socorro da Igreja, nem com sacramentos, nem com enterro; (...) e eu como procurador e em nome dos habitantes deste distrito venho aos pés de V. Exa. implorar pelo socorro espiritual como manda a Santa Igreja Romana a fim de que não padeçamos neste lugar48. 46. Correspondência da Irmandade de São José do Patrocínio (Encruzilhada do Sul) ao Presidente da Província. 13 de setembro de 1851. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS. 47. Correspondência da Irmandade do Santíssimo sacramento (Jaguarão) ao Presidente da Província. 15 de junho de 1856. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS. 48. Correspondência da Irmandade do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora das Dores (Tapes) ao


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A presença da Igreja, representada por um de seus sacerdotes, era importante para o atendimento espiritual dos fiéis. As irmandades se tornaram interlocutoras junto às autoridades na solução das necessidades espirituais de suas localidades. Outras vezes, levaram até o governo provincial o seu descontentamento com a atuação de certos sacerdotes. O provedor da Irmandade de Nossa Senhora das Dores (Tapes) reclamou da negligência do padre diante de um roubo da igreja. Segundo ele, o padre se preocupava apenas em “comer galinhas gordas e beber bom vinho”49. Já a Irmandade de Nossa Senhora de Sant’Ana do Uruguai (Uruguaiana), sem entrar em detalhes, informou apenas que seus membros “não estão contentes com este funcionário, pelo que se dirigem ao Sr. Vigário Geral, (...) requisitando um outro sacerdote para este exercício”50. A preocupação com a caridade e com o atendimento de enfermos pobres não ficou restrita às cidades mais importantes, mas penetrou no interior da província. Uma comissão liderada pelo Barão de Itaqui enviou uma correspondência ao Presidente da Província que incita algumas reflexões sobre a religiosidade no Rio Grande do Sul. Refere-se à criação da Santa Casa de Caridade, na cidade de Bagé, em 1874. Vejamos: Tendo o falecido Visconde de Serro Alegre deixado por disposição verbal a quantia de oito contos de reis para que seus herdeiros dessem princípios a construção de uma casa de caridade nesta cidade, e tendo um número avultado de pessoas se mostrado desejosas de levar a efeito essa construção, estando na frente destas os membros da sociedade – Estrela do Sul -; fizeram uma reunião para esse fim, e ai resolveram nomear uma comissão que se encarregasse da execução da obra projetada (...). Não teve a comissão de dar passo algum, nem de fazer despesa com a aquisição de terreno apropriado, visto que o Ten. Cel. José Facundo da Silva Tavares fez a generosa e avultada doação de um que possuía no alinhamento de uma das ruas da cidade, no extremo Norte, em lugar elevado e plano, com 260 palmos de frente e 250 de fundo; terreno este que é representado o melhor para um edifício desta ordem (...). Tem resolvido a comissão criar uma irmandade de caridade, a que deverão pertencer não só os moradores da cidade e seu município, como muitos brasileiros residentes no Estado Oriental, na proximidade desta fronteira; devendo cada irmão concorrer a mensalidade de mil réis, que será só e exclusivamente aplicada ao tratamento dos enfermos; sendo esta, bem como as esmolas que se tirarem em um dia de cada semana, a única fonte de receita com que presentemente conta a comissão para a irmandade fazer frente a tal despesa (...)51. Presidente da Província. 1860. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS. 49. Correspondência da Irmandade de Nossa Senhora das Dores (Tapes) ao Oficial Maior da Secretaria de Governo. 04 de abril de 1856. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS. 50. Correspondência da Irmandade de Nossa Senhora de Sant’Ana do Uruguai ao Presidente da Província. 22 de janeiro de 1847. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS. 51. Correspondência da Comissão encarregada da construção de uma casa de caridade ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. 29 de abril de 1874, Assuntos Religiosos, Caixa 07, Maço 14. AHRS.


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Para compreendermos melhor a criação desta “casa de caridade” da irmandade e sua relação com a religiosidade na província, precisamos conhecer um pouco dos seus personagens que têm papel central nessa argumentação. O “Primeiro e Único Barão e Visconde de Serro Alegre” era João da Silva Tavares, um dos homens mais poderosos da região durante o século XIX. Militar e estancieiro, participou de muitos dos conflitos que assolaram a província. Sua família teve presença marcante na história do Rio Grande do Sul por pelo menos um século. Começou sua carreira militar na invasão do Uruguai, em 1816, mas sua participação mais importante foi na Guerra dos Farrapos. Compadre de Bento Gonçalves e comandante da Guarda Nacional em Bagé, recusou-se a acompanhar os rebeldes e se manteve fiel ao Império durante a Guerra dos Farrapos. Em 1836, enfrentou Antônio de Souza Netto na Batalha de Seival, onde foi derrotado. No dia seguinte, o coronel Netto proclamou a República Rio-grandense. Nessa batalha, Silva Tavares lutou junto ao seu filho João Nunes da Silva Tavares, que iniciava uma longa carreira de participação em conflitos internos e externos no Império do Brasil. Além da Guerra dos Farrapos, João Nunes, que ficou conhecido como Joca Tavares, participou da Guerra contra Aguirre (1864), da Guerra do Paraguai (1864-1870) e da Revolução Federalista (1893-1895). Pela sua participação nos conflitos durante o Império, recebeu o título de Barão de Itaqui. Outro filho de João da Silva Tavares, Joaquim da Silva Tavares, recebeu o título de Barão de Santa Tecla, por serviços prestados ao Império e assumiu o cargo de vice-presidente da Província, em 188852. Joca Tavares foi o presidente da comissão que escreveu a correspondência acima, anunciando a criação da Irmandade e a construção de uma casa de caridade, desejo de seu pai. Ele também se tornou provedor desta53. A doação do terreno para a construção foi feita por seu irmão, também militar, o Tenente Coronel José Facundo da Silva Tavares. Ou seja, a família Silva Tavares foi a responsável pelo início da construção da casa de caridade, que depois se transformou em hospital, funcionando até a atualidade. A família Silva Tavares foi uma das mais poderosas do sul do Brasil durante o século XIX. Estancieiros, milicianos, comandantes, políticos, 52. Jonas Moreira Vargas, que estudou a elite política do Rio Grande do Sul, escreveu o seguinte sobre João da Silva Tavares, referindo-se a ele enquanto ainda tinha o título nobiliárquico de Barão: “Os adversários políticos seguidamente denunciavam o Barão e seus familiares dos desmandos que os mesmos cometiam naquela região. Em junho de 1867, ele foi acusado de estar desviando o dinheiro mandado para os gastos com a Guarda. Em outra ocasião, o Barão foi denunciado por um ministro uruguaio de estar intervindo na guerra entre blancos e colorados que assolava o Estado Oriental. Apesar de defender-se contra a acusação, o envolvimento dele era evidente. Além de possuir propriedades e gados no outro lado da fronteira, o Barão mantinha estreitos vínculos com as autoridades uruguaias, incluindo um chefe de polícia que lhe enviava desertores capturados no seu território” (2007, p 131). 53. Correspondência da Comissão encarregada da construção de uma casa de caridade ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. 29 de abril de 1874. Assuntos Religiosos, Caixa 07, Maço 14. AHRS.


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acostumados com a guerra, com o poder e com a morte. Sob o seu comando estavam corpos militares, gado e pessoas da região. Foi a atuação de sujeitos como da família Silva Tavares que levaram alguns historiadores a acreditar na pouca religiosidade dos habitantes do Rio Grande do Sul. Arlindo Rubert (1994, p. 58), ao escrever sobre a história da Igreja no Rio Grande do Sul, afirmou que por sua formação étnica e histórica “os gaúchos são afoitos e amantes da liberdade, não se sujeitam facilmente à disciplina da Igreja, são pouco religiosos (...)”. Artur Cesar Isaia (1998, p.32), da mesma forma, alegou que a religião ocupava um lugar não-proeminente na vida do rio-grandense, pois a familiaridade com a vida militar e sua rotina “tornavam-no pouco propenso a qualquer tipo de restrição normativa, capaz de influir na ‘domesticação’ de seus hábitos”. Semelhante argumentação foi usada por Eliane Lucia Colussi (1998, p. 370) ao considerar que “a pequena presença da instituição católica no Rio Grande do Sul, especialmente na primeira metade do século XIX, favoreceu, sobretudo entre a elite regional, a difusão de um pensamento anticlerical ou pouco simpático às causas religiosas”. As conclusões desses pesquisadores, que produziram seus trabalhos na década de 1990, reproduzem uma ideia consolidada de que o sul-rio-grandense teria sido pouco católico e religioso devido ao abandono da estrutura da Igreja provocado pelas grandes distâncias entre a província e a sede do bispado e, internamente, entre as paróquias. Além dessas causas estruturais, o motivo principal seria o caráter guerreiro de seus habitantes, pouco afeito aos sentimentos católicos. As constantes guerras, que assolaram a província no século XIX, influenciaram na pauta de atuação das irmandades, na construção dos templos e no envolvimento dos seus habitantes no culto religioso. Algumas das consequências das guerras foram relatadas pelo provedor e pelo escrivão da Irmandade do Santíssimo Sacramento, da Freguesia de São João Batista do Herval. Eles fizeram um relato da construção da primeira igreja, levantada ainda pelos militares que ali acamparam54 e a decisão de construção de um novo templo pelos devotos, diante da ruína da antiga igreja: (...) até que a piedade destes, para dar mais lustre ao Culto Divino, fundou bastante mais que alicerces da futura Matriz, de esmolas, com interrupção de tempo pela guerra de 1825, e depois pela falta de concorrência de esmolas, resulta da pobreza sequaz da guerra. 54. “A atual cidade do Herval teve origem em um acampamento militar. No último decênio do século XVIII acampou à margem direita do arroio Herval (...) um forte destacamento português comandado pelo heroico rio-grandense brigadeiro Raphael Pinto Bandeira. Este mandou levantar ali um quadrado de trincheiras, um edifício para quartel-general e uma pequena igreja. Com o intuito de comerciar com a tropa, muitos particulares foram se estabelecer nas adjacências do acampamento de sorte que, dez anos mais tarde, quando Pinto Bandeira teve ordem de abandonar essa posição, existia aí um grande número de habitações, quase todas construídas de taipa e cobertas de santa fé”. Extraído de: http://biblioteca. ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/riograndedosul/herval.pdf.


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Contudo, de novo acesos, depois de passageiro descanso, pelo fogo divino formaram o esqueleto os fiéis devotos da dita Matriz, cuja desgraça nasceu com a da Província inteira em 1835, pois em lugar de voar cada um com o coração ou com os bens que pudesse para o Altar, e conclusão do templo, lançaram uns voluntariamente mãos às espadas (...), no momento que outros, desamparando domicílios e templos, foram procurar asilo em terra alheia (...). Passam-se anos (alguns à vista de V. Exa. nesta Província), trata o tempo, ingrato como homens, deitar por terra o esqueleto de nossa Matriz (...)55.

A guerra afetou significativamente a rotina dessa comunidade e tornaram escassos os recursos e as pessoas. A construção da igreja foi interrompida diversas vezes pelos conflitos na região. Em outras localidades, apesar das guerras, as irmandades conseguiram mobilizar seus membros e suas comunidades para a continuidade da construção de seus templos e a manutenção de suas festas religiosas. Foi o caso da Irmandade de São José do Patrocínio (Encruzilhada do Sul), que enviou uma correspondência (representação) ao governo provincial informando a necessidade da construção de uma nova igreja e de um cemitério. Separamos um pequeno trecho dela que demonstrava a preocupação com as celebrações e festas religiosas, apesar das guerras: (...) os antigos moradores deram para Patrimônio de São José, no lugar da Povoação, meia légua de terras, na costa do rio Camaquã, edificou-se uma Igreja (...), além do consistório, tudo de pedra e cal, tem ornamentos e mais alfaias, com que, mais ou menos se celebram os atos religiosos; fez-se uma casa de Império dos mesmos materiais para as festas do Divino Espírito Santo, não obstante a sanguinolenta Guerra na Província, onde esta freguesia foi um dos seus verdadeiros Teatros56.

A correspondência foi escrita em 11 de novembro de 1846, enquanto a província ainda sentia os resquícios da guerra civil farroupilha. Mesmo com todos os dramas do conflito, a correspondência demonstrava que a vida religiosa e a organização de seus habitantes continuaram existindo, apesar do lugarejo estar no teatro das operações de guerra. Terminado o conflito, era preciso reorganizar a província em todos os aspectos, inclusive a estrutura religiosa. O número de correspondências enviadas ao governo demonstra essa preocupação. Dos 121 documentos do século XIX, que já mencionamos anteriormente, mais da metade (59,5%) foram enviados no final da década de 1840 e na década seguinte (25 deles entre 1846-1849 e 47 documentos entre 1850-1859). Quando a 55. Correspondência da Irmandade do Santíssimo Sacramento (Herval) ao Presidente da Província. 17 de junho de 1849. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS. O provedor da irmandade era Joaquim Francisco dos Santos Abreu (sobrinho-neto de Bento Gonçalves, entrou para a Marinha do Brasil em 1851, onde chegou ao posto de almirante. Participou da Guerra contra Aguirre e da Guerra do Paraguai). 56. Correspondência da Irmandade de São José do Patrocínio (Encruzilhada do Sul) ao Presidente da Província. 11 de novembro de 1846. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS.


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província voltou à normalidade, as irmandades tiveram papel importante na reconstrução dos templos e no retorno das práticas religiosas. O número significativo de correspondências das irmandades solicitando a melhoria dos seus templos contraria a afirmação de Arlindo Rubert (1994, p. 59) de que “só excepcionalmente o povo colaborava” na manutenção das igrejas, com o pretexto de que tudo vinha do governo, sob o regime do padroado. Se a colaboração não vinha em dinheiro, ela vinha em forma de pressão para que as autoridades se preocupassem com o culto divino. Por outro lado, toda irmandade desejava ter templo próprio para suas celebrações, o que demandava grandes investimentos das próprias associações e, consequentemente, multiplicava o número de igrejas. Uma suposta valorização da guerra não transformou o sul-rio-grandense em um sujeito pouco religioso, pois as principais lideranças dessas guerras estavam à frente dessas associações religiosas e caritativas. O argumento para a valorização da guerra como impedimento para a aceitação do catolicismo teve sua essência na obra “A Formação do Rio Grande do Sul” de Jorge Salis Goulart (1985)57, produzida na década de 1930. O objetivo do autor era mostrar as particularidades da formação social e histórica do Rio Grande do Sul e a superioridade do “gaúcho” diante dos demais brasileiros, sob o prisma de uma pretensa análise sociológica. Nessa obra, um capítulo foi dedicado ao “sentimento religioso e a religião”, em que o autor destacou que “o rio-grandense nunca imitou o padre, e sim o militar” e que acostumados “aos modos altaneiros e à voz áspera dos militares, os habitantes do campo não admitiam que pudesse ter algum valor alguém que lhes falasse humilde e simplesmente” (GOULART, 1985, p. 55-56). Os Silva Tavares representavam estes homens acostumados com a guerra e com a vida militar e, apesar disso, preocuparam-se em construir uma casa de caridade, participar de uma irmandade e fazer parte de comissões para a construção da Igreja Matriz São Sebastião de Bagé58. Uma revisão deste discurso 57. Uma primeira versão desta obra foi lançada em 1927, revisada e reeditada em 1933. Esse autor foi um dos grandes divulgadores da ideia da “democracia nos pampas” e da benevolência da escravidão no Rio Grande do Sul. Destacamos as seguintes passagens de seu texto: “Pela natural independência do gaúcho (...), não encontramos aqui nenhuma servidão econômica. Neste particular, patrões e empregados (...) viviam em comum, com os mesmos hábitos e as mesmas necessidades” (p. 39). “Patrões e empregados alimentavam-se com o mesmo churrasco e o mesmo chimarrão, cavalgavam os mesmos animais e juntos entregavam-se às mesmas fainas dos campos (...)” (p. 39). “Julgamos que nosso espírito democrático já se formara antes da grande introdução do elemento negro. Esse ponto de vista explica o fato de serem, como relatam os historiadores, os indivivíduos escravizados melhor tratados aqui do que nas demais províncias do Brasil (...). Não tinham aqui os dominantes necessidade de tiranizar os dominados, pois que a sua superioridade era natural, harmoniosa em tudo. Não era necessária a coação material que viria inverter lamentavelmente uma ordem social espontânea. Desde a cultura até a capacidade econômica, a ‘elite’ diretora era, naturalmente superior” (p. 48). Essas concepções foram revistas pelo avanço da historiografia nos últimos anos, principalmente relacionado à escravidão. 58. A participação dos Silva Tavares na construção da Igreja Matriz pode ser consultada em: TABORDA, 1975, p. 106-109.


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da pouca religiosidade sul-rio-grandense foi feita por Mara Regina do Nascimento (2006), Mauro Dilmann Tavares (2008) e Vitor Biasoli (2010). Mara do Nascimento (2006, p. 34) concordou com a pouca presença da instituição católica no cotidiano da população no século XVIII, porém afirmou que esta não era uma peculiaridade do Rio Grande do Sul, mas era uma realidade em todo o Brasil, onde o desenvolvimento do catolicismo se deu mais pelas ações dos leigos do que pelas autoridades eclesiásticas, pelo menos até o início do século XIX. O mito da pouca religiosidade do sul-rio-grandense, na visão de Mara do Nascimento (2006, p. 34), foi criado pela própria Igreja Católica no século XIX, com o objetivo de desvalorizar as práticas católicas que se realizavam sob a organização das irmandades religiosas. Essa estratégia tinha como principal articulador o Bispo Dom Feliciano que, a partir da fundação da Diocese de Porto Alegre, em 1853, passou a repetir exaustivamente a precariedade do catolicismo na Província em pastorais, discursos e em sermões para conseguir implantar plenamente as diretrizes ultramontanas. A tese de Mara era demonstrar que, apesar de todas as adversidades, as Irmandades de Porto Alegre cumpriram importante papel social e religioso nas mais variadas situações. A crença da pouca religiosidade no Rio Grande do Sul também é oriunda das fontes oficiais que informaram sobre a presença da Igreja na província. Para Mauro Dillmann Tavares (2008, p. 52) “foi uma minoria letrada, política e intelectual, geralmente anticlerical, interessada em desqualificar a Igreja e separá-la do Estado, que deixou registros para que os historiadores interpretassem (...)”. Embora por motivos diferentes, tanto a Igreja quanto os burocratas do Estado tinham intenções de desqualificar a religiosidade existente na província. Pensar que as guerras e as lutas na fronteira do Rio Grande do Sul não se conjugam com religião e Igreja institucionalizada, é desconhecer a característica da Igreja Católica desde o momento em que o cristianismo se tornou religião oficial do Império Romano e apoiou sua política imperialista ou o seu espírito cruzadista, conforme o argumento de Vitor Biasoli (2010, p. 79). E acrescentou: “podia não haver frequência aos cultos e observância dos sacramentos (...) mas isso não significava que a Igreja Católica estava fora do eixo das cidades, das tropas e dos governos que dominavam o Rio Grande no período das lutas de fronteira” (p. 79). Outro aspecto destacado pelo autor da aproximação entre guerra e religião é a militarização de alguns santos, apresentados como guerreiros ou chefes militares ou na sacralização de práticas guerreiras, como as cavalhadas nas Festas do Divino (p. 79). A chave para compreender a adesão religiosa dos habitantes do Rio Grande do Sul pode ser encontrada na existência e atuação das irmandades na região. Esse caminho já havia sido indicado na década de 1950, por Dante de Laytano:


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Os fatos históricos não parecem explicar que no Rio Grande do Sul os portugueses e seus descendentes tenham abandonado a religião, e esses fatos poderiam ser encontrados no levantamento do número de irmandades, confrarias e ordens terceiras ou de templos e sacerdotes, nas promessas, anjos e santos do folclore, através das lendas da campanha, dos adágios, do cancioneiro, ou ainda pelos nomes de rios, lugares, ruas, etc. (LAYTANO, 1952, p. 129).

Foi seguindo tal orientação que tentamos demonstrar a proliferação dessas associações em diversos lugares e o quanto elas foram importantes na constituição e preservação das manifestações religiosas. Nas mesas administrativas estavam membros da elite social, política e militar da província. Como vimos, o Visconde de Serro Alegre (João da Silva Tavares) deixou uma parte de sua herança destinada à construção de uma casa de caridade, o que foi encampado pelo seu filho, Barão de Itaqui (João Nunes Tavares), que foi provedor da irmandade e responsável pelo empreendimento. Também foi provedor da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos, de São Leopoldo, o Barão (depois Visconde e Conde) de Porto Alegre (Manuel Marques de Souza). O 2º Barão de São Gabriel (João Propício Mena Barreto) foi “protetor” da Irmandade do Patriarca São José daquela localidade. A lista dos sujeitos com títulos nobiliárquicos que estiveram na direção de irmandades é grande, principalmente nas Misericórdias59. O argumento de que a participação na direção das irmandades era motivo de aquisição e manutenção de status é importante e não deve ser desconsiderado. O que pretendemos reforçar é que interesses devocionais também eram importantes para esses homens, que já eram “senhores da guerra” e “senhores da terra” e não precisavam somente desses mecanismos para manter seu prestígio. Fazer parte de uma delas exigia deles disposição, tempo, recursos e, claro, devoção. É também pela devoção que podemos entender o fato de Joaquim Gonçalves da Silva e Bento Gonçalves da Silva (filhos de Bento Gonçalves), como membros da Mesa da Irmandade de São João Batista de Camaquã, assumirem a responsabilidade de bater nas portas dos 3º e 4º quarteirões do distrito para pedir “esmolas” para a construção de uma nova igreja na localidade, em 185360. Eles já possuíam uma “herança imaterial” deixada pelo prestígio e liderança de seu pai, mas, mesmo assim, não se furtaram dessa tarefa religiosa. 59. Foram provedores da Misericórdia de Pelotas: Domingos de Castro Antiqueira (Visconde de Jaguary); João Francisco Vieira Braga (Visconde de Piratini); Joaquim José de Assumpção (Barão de Jarau); Francisco Antunes Gomes da Costa (Barão de Arroio Grande). Sobre a atuação deles ver: TOMASCHEWSKI ,2007. Na Misericórdia de Porto Alegre temos também José Feliciano Fernandes Pinheiro (Visconde de São Leopoldo), Manoel José de Campos (Barão de Guaíba) e Manoel de Lima e Silva (Barão de Caxias). Para Porto Alegre ver: NASCIMENTO, 2006. 60. Correspondência da Irmandade de São João Batista de Camaquã ao Presidente da Província (cópia da ata de 25 de junho de 1853 anexada). 08 de outubro de 1853. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS.


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O envolvimento das irmandades na construção das igrejas, nas obras de caridade ou na busca de “socorro espiritual”, demonstra sua importância no cenário religioso da província ao realizar ações concretas para a manifestação da fé e da devoção. E, ao insistir que seus membros eram também devotos e “senhores de fé”, como fator fundamental que os movia, não significa desconsiderar o caráter elitista e exclusivista que muitas dessas associações possuíam, não permitindo a entrada de indivíduos que não faziam parte de seu grupo social. A historiografia sobre as irmandades religiosas no Rio Grande do Sul ainda tem uma produção limitada, concentrando-se na região metropolitana de Porto Alegre. Queremos destacar quatro historiadores que tiveram como foco central de suas análises a atuação dessas associações. A primeira referência é o trabalho de Mara Regina do Nascimento (2006) que concentrou sua pesquisa na Irmandade da Santa Casa de Misericórdia e na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em Porto Alegre, mas não deixou de visualizar a atuação das demais nas práticas funerárias, na administração dos sacramentos e nos diversos papéis desempenhados por essas associações na cidade. Outro pesquisador que tem dedicado seus esforços de pesquisa na compreensão da atuação das irmandades é Mauro Dillmann Tavares (2008), que também concentrou seus estudos na cidade de Porto Alegre. Em sua dissertação de mestrado, analisou as manifestações de devoção das irmandades, destacando as atuações das Irmandades de São Miguel e Almas, de Nossa Senhora da Conceição e a de Nossa Senhora do Rosário, que eram destinadas, respectivamente, a brancos, pardos e negros. Tanto Mara quanto Mauro destacaram a postura e as relações estabelecidas por elas com a Igreja Ultramontana. Na continuidade de sua trajetória acadêmica (tese de doutorado), Mauro Tavares (2013) dedicou-se a pesquisar a morte e as práticas fúnebres em Porto Alegre, agora sob a égide da República (primeira metade do século XX). Para tanto, fez uso da atuação da Irmandade de São Miguel e Almas e da construção de seu cemitério, inaugurado em 1909. Esse cemitério tornou-se significativo para os cristãos, pois manteve a administração e os rituais católicos, diferentemente do cemitério público e secular, instalado nos meados do século XIX. Com as transformações dos rituais fúnebres, Tavares acompanhou as transformações que a cidade foi sofrendo durante a primeira metade do século XX. A trajetória da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia tem sido o objeto de pesquisa de Cláudia Tomaschewski (2007), outra pesquisadora que queremos destacar. A Misericórdia da cidade de Pelotas ocupou sua atenção na produção da dissertação de mestrado, onde procurou investigar como se organizou essa associação, as motivações para sua existência e as formas de distribuição da assistência no período de 1847 a 1922. Procurou focar seu trabalho nos dois


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extremos da sociedade: os ricos que estavam à frente da Santa Casa e os sujeitos incapazes de trabalhar, por ela assistidos. Já em sua tese de doutorado, Tomaschewski (2014) fez um estudo comparativo entre a Misericórdia de Pelotas e a de Porto Alegre (1847-1891), destacando suas relações com o Estado, com o mercado e com a dádiva. Por último, mas não menos importante, é a pesquisa de Liane Susan Müller (2013) sobre a atuação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, também da capital, como um berçário de muitas instituições negras que desempenharam papel de representação desta comunidade no período da escravidão e da liberdade. A autora demonstrou que o papel da irmandade foi muito além do seu aspecto religioso, influenciando decisivamente na organização dos negros em Porto Alegre. Voltaremos a falar dessa autora no próximo item, quando trataremos da historiografia das irmandades negras no Rio Grande do Sul. As irmandades acabaram entrando na rota de pesquisas de outras temáticas. Os historiadores das elites se associaram a elas na compreensão dos mecanismos para ascensão ou manutenção do status social. Os pesquisadores da saúde e da doença não podem ignorá-las, pois muitas delas construíram e mantiveram hospitais, hospícios, enfermarias e prestaram socorros aos pobres de muitas regiões. Àqueles que se preocupam com os espaços de sociabilidade e de identidade têm nelas um baluarte de experiências e de manifestações. Nessas condições, que as irmandades entram no jogo dos interesses de muitos historiadores61.

3.3 AS IRMANDADES NEGRAS NO RIO GRANDE DO SUL As irmandades religiosas repetiam no plano religioso as diferentes categorias sociais de cada região. Desse modo, em diferentes partes do Brasil e também no Rio Grande do Sul, algumas delas procuravam limitar seu ingresso somente a brancos “puros”, como as Misericórdias (mas também do Santíssimo Sacramento, as de São Miguel e Almas e as Ordens Terceiras), embora nem sempre isso fosse possível. Para Mara do Nascimento (2006, p. 89-90), ser branco “puro” significava ter reconhecida lisura e probidade e estar afastado daquilo 61. É o caso de “Artes de Curar”, o já clássico trabalho de Beatriz Teixeira Weber (1999), que investigou as tramas entre o positivismo, medicina, religião e a magia no Rio Grande do Sul, no período de 1889 até 1928. Para a autora, a história gaúcha possuiu uma excepcionalidade, pois foi o único Estado a adotar a perspectiva positivista após a proclamação da República e isto teve grande influência nas artes de curar, pois um de seus princípios previa a liberdade profissional. Esse fator abria a possibilidade para outras práticas de cura, o que ia de encontro ao saber médico, que buscava o monopólio da cura. Nesse trabalho, Weber dedicou um capítulo para compreender o funcionamento e o significado que possuiu a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Os historiadores da saúde e das doenças acabaram tendo a Santa Casa de Misericórdia como uma referência fundamental, pela sua trajetória e pelo acesso a documentação preservada. Por uma necessidade de contextualização e de melhor compreensão de seus objetos de análises, acabaram entrando na seara das irmandades. É o caso da tese de doutorado de Nikelen Acosta Witter (2007) e da dissertação de mestrado de Daniel Oliveira (2012), apenas como exemplo.


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que no imaginário da época aproximava-se dos maus costumes: ser de cor, não ser letrado e ser pobre. Diante dessa barreira, os grupos sociais marginalizados criaram as suas próprias irmandades. Tendo como referência as irmandades negras, Russel-Wood fez a seguinte afirmação sobre a existência desses grupos no Brasil durante o período colonial: Era rara a vila do Brasil no século XVIII que não contasse uma irmandade de Nossa Senhora do Rosário e uma multiplicidade de irmandades menores dedicadas a Santo Antônio de Categeró, São Benedito, Santa Ifigênia e outros santos aos quais os negros e mulatos eram especialmente devotos. (RUSSEL-WOOD, 2005, p. 200).

As irmandades também tinham uma importância significativa para a população negra do Rio Grande do Sul. O leitor atento que examinou o quadro com a lista das irmandades religiosas e ordens terceiras deve ter percebido o número expressivo de Irmandades de Nossa Senhora do Rosário existentes na província. Propositadamente, não fizemos muitas referências a elas e a outras irmandades negras até aqui, para dedicar-lhes uma atenção mais especifica, diante de sua importância e centralidade nesta tese. No levantamento que fizemos, a presença das irmandades negras é significativa e, como as demais, estão espalhadas nos quatro cantos da província. Do quadro, extraímos as de devoção da população negra para melhor percebermos o seu número e a localização geográfica.

Quadro 2 - Irmandades Negras Rio Grande do Sul – Séculos XVIII e XIX Irmandades

Localidades

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário

16

Viamão, Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Pelotas, Santana do Livramento, Jaguarão, São Gabriel, Cachoeira do Sul, Bagé, Santo Antônio da Patrulha, São Borja, Encruzilhada do Sul (Freguesia de Santa Bárbara da Encruzilhada), Santo Amaro, Mostardas, Santa Maria

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito

04

São Leopoldo, Taquari, Alegrete, Itaqui


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Irmandades

Localidades

Irmandade de Nossa Senhora da Conceição

02

Porto Alegre, Pelotas

Irmandade de São Benedito

01

Rio Grande

Irmandade de São Pedro Claver

01

São Sebastião do Caí

Irmandade de Nossa Senhora da Assunção e Boa Morte

01

Pelotas

Irmandade de Santa Bárbara

01

Porto Alegre

Total

26 Fonte: AHCMPA, AHRS, LIVRO TOMBO SM (Quadro elaborado pelo autor)

Essas irmandades não eram exclusivamente compostas por negros. Eram mistas, com presença de brancos, pardos e pretos, mas claramente identificadas com a população negra, seja na sua administração ou na condução de suas cerimônias. São dezesseis irmandades dedicadas a Nossa Senhora do Rosário, quatro conjuntas de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e mais uma exclusivamente de São Benedito. Além delas, temos a Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, de Porto Alegre, que era uma irmandade de pardos e, em Pelotas, as Irmandades de Nossa Senhora da Conceição e a de Nossa Senhora da Assumpção da Boa Morte, que também eram irmandades negras62. No final do século XIX, foi criada, em São Sebastião do Caí, a Irmandade de São Pedro Claver com o fim de “promover a vida verdadeiramente (...) católica entre os descendentes de africanos”. Incluímos nessa lista a Irmandade de Santa Bárbara, de Porto Alegre, originária da Igreja do Rosário, que, segundo Liane Müller (2013, p. 55) seus devotos eram brancos e pardos. Temos, portanto, pelo menos vinte e seis irmandades negras espalhadas pela província. Não se comparam com as da Capitânia de Minas, onde Célia Maia Borges (2005, p. 225-228) encontrou 63 delas somente dedicadas a Nossa Senhora do Rosário (nos séculos XVIII e XIX), mas considerando o povoamento e a urbanização tardia da província do Rio Grande do Sul, seu número não é desprezível e merece uma maior atenção dos pesquisadores. 62. Sobre as associações negras de Pelotas ver Fernanda Oliveira Silva (2011)


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No Rio Grande do Sul, são poucos os trabalhos acadêmicos que têm como foco central as irmandades negras. Elas aparecem em estudos mais abrangentes e/ou associadas a outros espaços de organização dos negros, como clubes sociais ou a imprensa negra. A irmandade negra mais estudada (ou que existem mais referências) é a Irmandade do Rosário de Porto Alegre. Um dos primeiros trabalhos com o objetivo de marcar as comemorações do centenário da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário63 foi realizado por José Barea, que, em grande parte, se confunde com a história da Irmandade do Rosário e com as demais que existiram naquela igreja. O autor utilizou os documentos da irmandade para estabelecer uma história cronológica da Paróquia do Rosário e, consequentemente, da própria irmandade. Os irmãos do Rosário também chamaram a atenção de Liane Susan Müller (2013, p. 19) que identificou, na irmandade, o nascedouro de várias instituições recreativas e beneficentes da população negra de Porto Alegre e que se tornaram mecanismos próprios de expressão e luta. “Ao apreender a dominar a parte institucional da irmandade, os negros criaram condições para, por meio dela, propor estratégias no sentido de preservar e ampliar seus direitos. Uma segunda organização surgiu então, colada à primeira, livre dos ditames burocráticos (...)”. Em outro trabalho, Liane Müller (2005, p. 02) também encontrou a presença de muitos irmãos do Rosário e de outras instituições negras na Festa de Nossa Senhora dos Navegantes e chegou à conclusão que “se os brancos foram os idealizadores e os criadores do nome oficial da festa, os negros foram os responsáveis por sua difusão e popularização”. A relação entre a Irmandade do Rosário e a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes já tinha sido proposta por Dante de Laytano (1955, p. 56) que a via como uma tradição afro-brasileira de Porto Alegre. Para tal, procurou verificar o aspecto histórico, católico e africano da festa. No estudo do aspecto africano da Festa dos Navegantes, Laytano procurou estabelecer as relações dos santos católicos com as divindades africanas. Para isso, o autor realizou, em 1951, um “Recenseamento Especial para verificar a importância do Culto Africano em Porto Alegre”, visitando 71 casas ou centros religiosos. Dos locais visitados, 63. A paróquia foi criada em 24 de outubro de 1832 e o autor foi vigário entre 1928 a 1936. Em 1836, tornou-se o primeiro bispo da diocese de Caxias do Sul. O objetivo da obra foi justificado da seguinte forma: “Como singela recordação de tão faustosa data, foram coligidos estes dados históricos, que vêm preencher, ao menos em parte, uma grande lacuna do Arquivo Paroquial, desprovido de qualquer fonte de informação sobre os primeiros 50 anos da freguesia. Não podia deixar de figurar nestas páginas a história da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário desde a sua fundação, muito anterior à criação da paróquia, pois foi a mesma corporação religiosa que, na antiga da Vila de Porto Alegre, deu início ao culto regular da Virgem do Santo Rosário e edificou, alguns decênios mais tarde, esta igreja ultrassecular que zelou constantemente pela sua conservação. A história da Irmandade se apresenta até mais desenvolvida que a da Paróquia, não só por abranger um período de tempo muito mais vasto, mas ainda porque a maioria das informações foi extraída do arquivo da Irmandade e porque o movimento administrativo da paróquia era, até fins do século passado, bastante reduzido” (BAREA, 2004, p. 17).


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encontrou “6 de culto à N. S. dos Navegantes, pelo menos quatro inteiramente consagradas a ela, outra simultaneamente a Ymanjá e Navegantes e outra só a Ymanjá, deusa das águas, na tradição africana”. Com objetivos acadêmicos, a Irmandade do Rosário, da capital, foi objeto de análise de Mara Nascimento e Mauro Tavares, já apresentados anteriormente, que integraram o estudo dessa irmandade negra dentro de temáticas mais abrangentes e incluíram outras associações religiosas de Porto Alegre. Tavares (2008, p. 130-137) também incluiu em sua análise a de Nossa Senhora da Conceição, uma tradicional irmandade de pardos de Porto Alegre. Lúcia Regina Brito Pereira (2007) incluiu a Irmandade do Rosário entre as organizações negras que construíram estratégias educacionais e que se traduziram em formas de resistência e formação de identidade. Outras irmandades negras, além da capital, acabaram se aproximando de outras temáticas de pesquisa. Em sua tese de doutorado, Fábio Kuhn (2006) dedicou o último capítulo às Irmandades de Viamão para compreender a participação das elites nessas associações religiosas. Analisou as Irmandades do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora do Rosário e a Ordem Terceira de São Francisco. Em estudo posterior, Khun (2010) procurou identificar as irmandades religiosas fundadas na província durante o período colonial. Márcio Munhoz Blanco (2012) também fez breve incursão pela Irmandade do Rosário ao analisar a família escrava e a sociabilidade nos Campos de Viamão. Também em Viamão, Cristiane Pinto Bahy (2005) procurou analisar a atuação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário a partir de fontes primárias (livro de despesas diárias, livro de entrada de irmãos e o compromisso de 1756), destacando a festa da padroeira como um momento de socialização. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, de São Leopoldo, foi objeto de análise de Ricardo Brasil Charão (2002; 2004; 2005), que procurou relacionar o tema da imigração com da escravidão e explicar a presença significativa de negros em plena colônia alemã do Rio Grande do Sul. Também, em São Leopoldo, Vinicius de Oliveira (2006, p. 56-107) considerou a Irmandade do Rosário entre as possibilidades das “negras vivências” dos escravos da região. As irmandades negras também aparecem nos levantamentos das associações negras de Pelotas realizados por Fernanda Oliveira da Silva (2011). O objetivo da autora era analisar todas as formas de associativismo negro, sejam elas religiosas, sociais, políticas, esportivas ou recreativas. Em Santa Maria, parte da história da Irmandade do Rosário e os conflitos em que se envolveu foi tema de minha monografia de especialização (GRIGIO, 2003). Depois, a Irmandade foi usada como argumentação para duas “teses” sobre a religiosidade na cidade. Vitor Biasoli (2010) partiu da tese de que a


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Igreja Católica, em Santa Maria, no final do século XIX, era abalada pelas forças anticlericais e que uma reviravolta religiosa aconteceu na cidade, a ponto de ter uma das maiores romarias do Estado (Romaria de Nossa Senhora Medianeira). Nessa reviravolta, a última batalha para a conquista de Santa Maria se deu com a Irmandade do Rosário. Alexandre Karsburg (2007), por sua vez, utilizou-se desta como mais um elemento para provar que a religiosidade era uma característica da cidade e que não havia intenção de acabar com o catolicismo, mas sim transformá-lo. O leitor deste trabalho já acompanhou, nos primeiros capítulos, as origens das irmandades, as possíveis explicações da devoção à “Senhora do Rosário”, sua identificação com a população negra em diversas regiões do Império Português, a diversidade de irmandades existentes no Rio Grande do Sul e um pouco da historiografia sobre o tema. Depois desse percurso, vamos nos concentrar em Santa Maria e conhecer a instituição e, principalmente, as pessoas que fizeram parte da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.


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4 ESCRAVIDÃO, IRMANDADES E IMIGRAÇÃO ALEMÃ EM SANTA MARIA



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Santa Maria nasceu sob o signo da escravidão. Antes mesmo do estabelecimento do povoado que deu origem à cidade, escravos trabalhavam por seu território. Os comandantes militares, que “acamparam” na região, eram senhores de escravos e, talvez, alguns de seus cativos trabalharam na construção dos primeiros ranchos. Os estancieiros, os lavradores nacionais, os imigrantes alemães e seus descendentes e os comerciantes que foram se instalando na região e deram origem ao povoado, tinham na mão de obra escrava sua fonte de trabalho e de riqueza. Embora o surgimento da cidade não esteja diretamente relacionado ao regime escravista, sua história está intrinsicamente ligada à utilização de indivíduos escravizados. O marco fundador da cidade foi o acampamento criado por militares e civis que faziam parte da Comissão Demarcadora, responsável pelo estabelecimento dos limites entre o território português e espanhol no sul da América. O dito acampamento foi montado em terras64 que pertenciam ao padre Ambrózio José de Freitas, um senhor de escravos. Em 1795, o Padre Ambrózio atuava na Capela de Santa Bárbara da Encruzilhada e emitiu uma carta de liberdade condicional para um de seus escravos chamado Amado José. Transcrevemos integralmente a carta por se tratar de um documento relevante para a história de Santa Maria, principalmente por ser anterior a criação do acampamento que daria origem ao povoado. A carta tinha o seguinte teor: Digo eu, Ambrózio José de Freitas, Presbítero Secular, que sou Senhor e possuidor de um mulato escravo chamado Amado José, ao qual pelos bons serviços que me tem feito, o corto no valor de duzentos mil réis, preço que me custou, porém devo receber esta importância em serviços manejados pelo mesmo cortado65 na administração da minha Estância de Santa Maria, em todos aqueles que me forem úteis, e se lhe adianta ir, encarregando-se-lhe de zelar e promover os meus interesses, vencendo ele por mês cinco mil réis, que vem a ser por ano sessenta mil réis, e tendo ele pago o seu valor na moeda sobredita, continuará se me fizer conta, e a ele, na mesma administração; e outrossim, ficarei obrigado a dar-lhe o necessário de vestir e a sua família, e levar-lhe em conta este dispêndio no que ele vencer na sua mesma administração; 64. João Belém e Romeu Beltrão divergem sobre quem era possuidor da sesmaria que foi comprada ou cedida ao padre Ambrózio. Belém afirmou que a sesmaria pertencia ao tenente Jerônimo de Almeida, que a cedeu ao padre Ambrozio (BELÉM, 2000, p. 32). Romeu Beltrão afirmou que o Rincão de Santa Maria foi concedido em sesmaria a Francisco Antônio Henriques de Amorim pelo vice-rei D. Luís de Vasconcelos. “Todavia, Amorim morava em Cachoeira do Sul, como também o padre Ambrózio, e não veio desfrutar a sesmaria que lhe foi concedida, vendendo-a em seguida ao padre (...)”. Ainda, conforme Beltrão, não há nenhum registro do nome o Ten. Jerônimo de Almeida como favorecido pela sesmaria e vendedor ao padre, como divulgam alguns historiadores, amparados num engano de João Belém (BELTRÃO, 2013, p. 49). 65. Segundo Stuart Schwartz (1998, p.214) escravo cortado ou coartado era: “o escravo que conseguira o direito, expresso por seu proprietário em testamento ou outro documento, de pagar pela própria alforria; a este cativo era permitida uma certa liberdade de movimentos ou a capacidade de obter e conservar a posse de bens que lhe permitissem acumular a quantia necessária. Em síntese, o coartado era um escravo em processo de transição para a condição social de livre” (p. 214).


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e poderá ele e a sua família conservar na mesma Fazenda algum gado que forem adquirindo; e o que for vindo de conta, e outros animais, os irão vendendo para ir aliviando o campo no caso do gado ir crescendo; e porque não sei se terei para o futuro alguma controvérsia relativa ao mesmo cortado, segundo as péssimas intenções do Irmão do falecido Senhor do dito cortado, declaro que toda e qualquer despesa que eu para o futuro houver de fazer por este motivo em defensa da compra e liberdade do dito mulato, será ele obrigado a compensar-me na moeda que então entre nós então se ajustar; sendo pois esta a minha vontade, eu a dou por ratificada neste documento pelo qual, nem eu, nem meus herdeiros poderão chamar ao cativeiro depois dele cumprir as condições supraditas; e para a firmeza de tudo lhe passei o presente de minha letra e sinal, nesta Capela de Santa Bárbara, a três de novembro de mil setecentos e noventa e cinco. Ambrózio José de Freitas66.

O escravo Amado José tinha a confiança do padre Ambrózio, pois lhe prestava “bons serviços” e a ele deu a responsabilidade de administrar sua propriedade e seu gado, recebendo orientações de como proceder. Não temos mais informações sobre este sujeito, mas o fato da carta de liberdade ter sido registrada em agosto de 1797, mas concedida em 03 de novembro de 1795, quase dois anos antes, indica que o acordo e os serviços estavam sendo prestados por ele. O senhor de escravos67, padre Ambrózio, na carta, refere-se duas vezes “a ele e sua família”, deixando claro que Amado José fazia parte de um núcleo familiar e que não estava sozinho na tarefa de administração da estância. A carta de liberdade é um documento que revela o nome de um dos primeiros habitantes de Santa Maria68, o mulato escravo Amado José, que esteve no território antes da instalação do acampamento da Comissão Demarcadora. Tinha a responsabilidade de administrar a estância do Pe. Ambrózio por mais de três anos em troca de sua liberdade. Nas terras da estância do padre, administrada por Amado José, um grupo de soldados estabeleceu seu acampamento em 1797, no mesmo ano do registro da carta de liberdade do escravo. As Coroas de Portugal e Espanha assinaram o Tratado Preliminar de Restituições Recíprocas, em 1777, que estabelecia a devolução dos territórios ocupados ilegalmente por meio de guerras e invasões e uma nova linha divisória entre eles seria demarcada. Depois de muitas negociações, em 1784, uma 66. Transmissão e Notas. Porto Alegre, 1797, Livro 24, p. 99v. APERS. A transcrição paleográfica foi feita pelo prof. Paulo Roberto Staudt Moreira. A carta de liberdade pode ser encontrada em:<https://familysearch. org/pal:/MM9.3.1/TH-1971-26874-74104-96?cc=1985805&wc=SW7XBZW:264235201,265037701>..Acesso em: 09 de agosto de 2015 67. Além de Amado José, o padre Ambrózio alforriou, em 1794, Maria, Angola, mediante o pagamento, pela escrava, de 6 doblas, que deveria ir pagando de “suas agências”, mesmo valor que havia sido comprada de Mariana Antônio de Araújo. A carta só foi registrada em 1808. (MOREIRA; TASSONI, 2007, p. 161). Em 1804, o padre alforriou Antônia, parda, em retribuição aos bons serviços prestados pela escrava (MOREIRA; TASSONI, 2007, p. 461). 68. Antes das disputas entre Portugal e Espanha, a região central do Rio Grande do Sul também fez parte do complexo missioneiros e padres jesuítas que já vinham percorrendo os matos e campos do lugar desde as primeiras décadas do século XVII. Sobre isso ver: QUEVEDO, 2010, p. 107-142


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Comissão Mista de portugueses e espanhóis foi estabelecida para a demarcação de limites. Com o tratado, uma caravana expedicionária seria responsável por percorrer o território e estabelecer uma linha divisória na América Meridional. Em 1786, a expedição portuguesa resolveu dividir-se e uma das partes se constituiu na 2ª Subdivisão Demarcadora. A Comissão Mista funcionou até 1797, marcada pela desconfiança recíproca, pela discórdia e pela defesa dos interesses de cada uma das Coroas que representava, quando foi dissolvida, sem terminar seu trabalho. A 2ª Subdivisão Demarcadora encontrava-se em Santo Ângelo quando recebeu ordem para retroceder e procurar proteção junto à guarda portuguesa mais próxima e ali montar um acampamento até que os trabalhos fossem retomados. O local escolhido foi a elevação onde se encontra hoje o centro da cidade de Santa Maria, em território que pertencia à estância do padre Ambrózio. Imagem 2 – Localização do “Acampamento” e da Estância do Pe. Ambrózio

Detalhe do mapa de 1800 mostrando a Guarda Portuguesa e o “Acampamento da Expedição e a Sede da Estância do Pe. Ambrózio. O mapa foi adaptado por José Antônio Brenner69.

Depois de escolhido o local para o acampamento, imediatamente a mata foi derrubada, “levantando-se em seguida o quartel para a tropa, o escritório para a comissão técnica, os ranchos para os oficiais e a indispensável Capela em obe69. Extraído de < http://brennerdesantamaria.blogspot.com.br/2012/05/santa-maria-215-anos.html> Acesso em 13 de jun. 2015.


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diência à vontade soberana decorrente do espírito religioso da época” (BELÉM, 2000, p. 32). Vários soldados e oficiais trouxeram esposas e filhos, elevando o número a mais de cem indivíduos (Ibid., p. 32)70. O capelão responsável pelos ofícios religiosos era o padre Euzébio de Magalhães Rangel e Silva, também senhor de escravos71. Desde o início da ocupação portuguesa, os primeiros representantes da Igreja na região tiveram uma íntima relação com a escravidão72. A presença dos soldados e de um oratório atraiu gente de diversos lugares e logo se formou um povoado. Em 1801, os militares da Comissão Demarcadora receberam ordens para se dirigir às Missões, em razão do estado de guerra em que a região se encontrava. De acordo com Romeu Beltrão, “o rancherio deixado pela Partida deve ter sido ocupado por mais moradores, que vieram se juntar aos que o Acampamento havia atraído” e calcula em uns 400 o número de habitantes no final de 1801, já conhecida como Capela do Acampamento de Santa Maria (BELTRÃO, 2013, p. 70)73. Em 1801, também começaram a 70. Sobre quem se estabeleceu no acampamento, Romeu Beltrão chegou a seguinte conclusão: “Até o presente, podem ser dados como componentes da Partida e presentes no Acampamento de Santa Maria da Boca do Monte, porque seus nomes constam dos registros de batismo da época, conforme pesquisa por mim feita, aparecendo como pais ou padrinhos dos batizandos, os seguintes: capitão e logo em seguida sargento-mor (major) do Regimento de Artilharia da Corte Joaquim Félix da Fonseca Manso, comandante da Partida; Pe. Euzébio de Magalhães Rangel e Silva, capelão; Manuel da Silveira Peixoto, comissário-pagador; Ten. de Dragões José dos Santos Cardoso; Ten. José Francisco da Cunha; Ten. Jerônimo Gomes da Silva; Ten. Severino Antônio da Silveira, porta-estandarte; alferes de dragões Carlos dos Santos Barreto; furriéis de dragões Manoel dos Santos Guterres e Manoel da Rocha w Sousa; cabos de dragões Joaquim José Fernandes e Joaquim José Fagundes; soldado do regimento de dragões Joaquim Pereira Marques e soldado de cavalaria ligeira José Pereira Chaves” (BELTRÃO, 2013, p. 59). 71. O padre Euzébio alforriou o escravo José, Benguela, em 1789, “pelos muitos e bons serviços que ele tem feito, e pelo amor que lhe tem, disse que por seu falecimento ficaria forro e liberto” (MOREIRA; TASSONI, 2007, p. 440). Em 1806, quando se encontrava no Povo de Santo Ângelo das Missões, também concedeu a alforria ao escravo Antônio “não só pelos bons serviços que me tem feito, mas também atendendo ao direito de liberdade com que Deus Nosso Senhor dotou o homem, por meu falecimento quer e é minha vontade, que fique forro, liberto, e isento de toda a pensão de cativeiro, tornando ao seu primeiro estado sem que pessoa alguma [...] lhe possa impedir, o que faço de minha livre vontade [...] e porque presentemente me acho em domínios estranhos e no serviço de El Rei, e não há nestes lugares Tabelião Público” (MOREIRA; TASSONI, 2007, p. 491). 72. Quando os integrantes da Demarcação e o capelão foram embora, Santa Maria conservou seu Oratório, onde exerciam o ministério, esporadicamente, os coadjutores de Cachoeira em visita à pequena povoação. Os dois coadjutores que visitavam Santa Maria foram o Pe. João José de Freitas e o Pe. Antônio José Lopes (RUBERT, 1994, p. 123). Assim como o padre Ambrózio e o padre Euzébio, o padre João José de Freitas também tinha sido senhor de escravos, pois, em 1806, concedeu uma carta de liberdade para Rosa, crioula, mediante o pagamento de 12 doblas e mais 4$ (MOREIRA; TASSONI, 2007, p. 491). 73. Beltrão também explicou as etapas de evolução de uma povoação. Devido a estreita ligação entre o Estado e a Igreja, as etapas de evolução eram: oratório público, capela, capela curada, freguesia, vila (município), cidade e capital. Quando oratório, só eram permitidas as orações e celebração de missa em dias que não fossem santificados, como também batizados, casamentos e encomendações, porém sempre com a autorização de alguma autoridade eclesiástica; como capela, que pouco se diferenciava do oratório, recebia de vez em quando a visita de um sacerdote para as práticas religiosas, também com a autorização do vigário da paróquia a que pertencia à capela; a capela curada possuía um cura permanente e gozava das prerrogativas de ter sacristia e pia batismal; a freguesia ou paróquia representava a independência sobre o ponto de vista eclesiástico, pois possuía pároco ou cura permanente e estava sujeito diretamente ao bispo; a vila era o estado de independência político-administrativa e se instituía quando havia a elevação ao estado de município; o título de cidade dependia do grau de desenvolvimento de uma vila ou de alguma influência política, e capital significava ser sede do governo provincial (BELTRÃO, 2013, p. 77).


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chegar ao Acampamento de Santa Maria em torno de 50 famílias de índios que abandonaram as Missões e vieram se estabelecer na nascente povoação. Eles possuíam uma capelinha que ficou conhecida como Igrejinha dos Índios, onde veneravam uma imagem do Senhor dos Passos e procissões eram realizadas na semana santa, o que atraía a presença do restante da povoação (BELTRÃO, 2013, p. 71; BELÉM, 2000, p. 41). Santa Maria tornou-se um ponto de atração, por sua localização e por ser uma fronteira agrária aberta. Sesmarias foram sendo distribuídas, lavradores nacionais foram ocupando as encostas da serra, comerciantes foram se instalando no povoado, ex-militares que circulavam pela região foram se estabelecendo e imigrantes alemães viram um lugar em que podiam prosperar. Os viajantes que passaram pelo povoado destacaram sua localização privilegiada. O soldado suíço Henrich Trachsler, desertor, na sua passagem entre 1828 e 1835, escreveu: “Esta localidade é a praça mercantil das vilas circundantes e sua população se compõe de aproximadamente mil almas. Sua posição é relativamente vantajosa, pois está localizada, ao mesmo tempo, nas estradas dos ervais e dos povoados das Missões brasileiras e não longe da localidade de São Martinho (...)” (MARCHIORI; NOAL FILHO, 2008, p. 38). Outro viajante, o francês Arsène Isabelle, em sua visita realizada em 1º de março de 1834, deixou o seguinte relato: “Nota-se muita atividade nesta povoação central da Província: Santa Maria é o mercado das aldeias circunvizinhas, compreendida entre Cachoeira, Caçapava, Alegrete e São Borja. Tem ainda a vantagem de estar situada no caminho dos ervais e das Missões e ficar na proximidade de uma outra vila das montanhas, chamada São Martinho (...)” (MARCHIORI; NOAL FILHO, 2008, p. 40). E assim, o oratório transformou-se em capela, depois freguesia e, finalmente, o povoado ascendeu à condição de vila (município) em 1858. A sede do novo município estava localizada entre o rebordo do planalto gaúcho e as áreas planas da Depressão Central, entre as áreas florestais e as terras de campo e isso foi importante na definição de suas características econômicas. As áreas de floresta da encosta da serra eram, na grande maioria, ocupadas por lavradores nacionais que praticavam uma agricultura de subsistência. Nos campos, predominava a pequena e média criação de animais, também integradas a uma pequena agricultura de produção de alimentos, embora também existissem alguns poucos grandes criadores (KULZER, 2009, p. 29-30; 37; FARINATTI, 2001, p. 108-122). Glaucia Kulzer (2009, p. 29) destacou que “o cotidiano desta nascente Vila era profundamente enraizado no mundo rural à sua volta, regida pelo ritmo dos plantios e das colheitas”.


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A mão de obra escravizada estava presente na floresta, nos campos e na cidade. Nos inventários pesquisados por Kulzer (2009, p. 38), 55% da população rural inventariada dependia desses trabalhadores de alguma forma. Farinatti (2001, p. 120), dedicando-se aos lavradores nacionais, encontrou 48% deles com escravos. A mão de obra por excelência, nas unidades produtivas, era a familiar, mas quando podiam buscavam contar com o trabalho escravo. A maioria possuía menos de 5 cativos, geralmente uma família escrava, com uma mulher ou um casal com filhos pequenos ou algum elemento mais velho. Os dados obtidos em 1858, no mesmo ano da emancipação política do município (mas divulgado em 1859), possuía o seguinte quadro populacional para Santa Maria: Tabela 1. População livre, liberta e escrava de Santa Maria da Boca do Monte, 1858. Livre

%

Liberto

%

Escravo

%

Total

4.124

80,7%

20

0,4%

966

18,9%

5.110

Fonte: Mapa Estatístico da População da Província classificada por idades, sexos, estados e condições com o resumo total de livres, libertos e escravos. In: Fundação de Economia e Estatística (FEE). De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981.

Os dados apresentavam uma população escravizada em torno de 19% sobre o total da população com 966 escravos. O percentual, em Santa Maria, aproximava-se de Rio Grande que possuía 18%, Itaqui 15%, São Borja 14% e Cruz Alta 13%. Nas regiões ligadas à criação de gado e a produção de charque, os números eram ligeiramente mais elevados. O maior percentual se encontrava em Jaguarão com 28%, depois Pelotas com 27%, Bagé 25%, Alegrete 23% e Uruguaiana 22% (KULZER, 2009, p. 37; FEE, 1981). O índice de 19% de Santa Maria estava um pouco abaixo da média da província que era de 25% (BAKOS, 1998, p. 71). Não é um número que deve ser desprezado. Se somarmos os 966 escravos, os 20 libertos e mais alguns livres, teremos uma população negra muito significativa desde a fundação do novo município. Em 1872, um novo censo foi realizado e seus dados permitem uma visão mais ampliada da diversidade populacional de Santa Maria, embora os censos do período não fossem precisos. Mesmo que os dados do censo de 1859 já possam ter sido influenciados pela proibição do tráfico de escravos, esse novo contexto é mais visível nas informações obtidas em 1872. Em Santa Maria, houve um aumento no número de escravos de 996 para 1204, porém em termos proporcionais ( para o total da população), o índice caiu para 14,6%. A tabela a seguir demonstra os números em relação ao sexo e à classificação:


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Tabela 2. População escrava de Santa Maria da Boca do Monte, 1872 Pardos

Pretos

Total

Homens

204

425

629

Mulheres

197

378

575

Total

401

803

1204

Fonte: Recenseamento do Brasil em 1872 – Rio Grande do Sul – Paróquia de Santa Maria da Boca do Monte74

Em Santa Maria, a presença negra e escravizada ia além dos 1204 escravos recenseados. O número deveria ser maior, pois como informou Paulo Moreira (2003, p. 29), “inúmeras amarras prendiam os cativos a estágios intermediários até a liberdade definitiva, iludindo as matrículas e diminuindo consistente e gradualmente o número de escravos existentes”. O censo de 1872 não incluiu o número de libertos e os acrescentou junto aos livres. Porém, diferenciou a população livre em brancos, pardos, pretos e caboclos. Em Santa Maria, os livres foram classificados da seguinte forma: Tabela 3. População Livre de Santa Maria da Boca do Monte, 1872 Brancos

Pardos

Pretos

Caboclos

Total

Homens

2029

523

297

684

3533

Mulheres

2239

456

157

639

3491

Total

4268

979

454

1323

7024

Percentagem

60,8%

13,9%

6,5%

18,8%

100%

Fonte: Recenseamento do Brasil em 1872 – Rio Grande do Sul – Paróquia de Santa Maria da Boca do Monte75

Os números demonstram uma configuração multiétnica entre a população livre. Quase 40% dos 4268 livres não eram brancos. Uma categoria que não estava no censo de 1858 foi incluída, a dos caboclos. Na categoria cor, no formulário que o recenseador deveria preencher, estava a seguinte informação: “Declarase se a pessoa é branca, parda, cabocla ou preta, compreendidas na designação de caboclas as de raça indígena”76. Marcio Antônio Both da Silva (2014, p. 13) 74..O.Recenseamento.pode.ser.consultado.em:.https://archive.org/stream/recenseamento1872rs/ ProvinciaDeS.PedroDoRioGrandeDoSul#page/n0/mode/2up 75. Foram desconsiderados os 30 ausentes/acidentalmente (19 homens e 11 mulheres) e os 13 transeuntes/ população flutuante (7 homens e 6 mulheres). O Recenseamento completo pode ser consultado em: https:// archive.org/stream/recenseamento1872rs/ProvinciaDeS.PedroDoRioGrandeDoSul#page/n0/mode/2up 76. Um modelo do formulário pode ser visualizado em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/ instrumentos_de_coleta/doc1101.pdf. Acesso em: 17 de maio de 2015.


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analisou os diferentes usos do termo “caboclo” na historiografia. Apesar das dificuldades de uma definição precisa, pois nela podiam estar envolvidos elementos econômicos, sociológicos e étnicos, o autor considerou que, no Rio Grande do Sul, a palavra “caboclo” passou a ser empregada para fazer referência a um tipo de camponês pobre, geralmente mestiço e que pratica um tipo de agricultura de subsistência, além de ser dono de um modo de vida próprio, semelhante ao indígena e marcado por sua mobilidade nas áreas de fronteira agrária77. Esta população, em Santa Maria, representava 16,1% do total, segundo o censo. Os negros (pardos e pretos) também tinham um número importante entre os livres, passando um pouco de 20% do total. Para finalizar essa breve incursão pela estatística, é importante visualizar como esses dados da diversidade étnica aparecem sobre o total da população de Santa Maria. Tabela 4. População Total de Santa Maria da Boca do Monte, 1872 Brancos

Pardos

Pretos

Caboclos

Total

População

4268

1380

1257

1323

8228

Percentagem

51,9%

16,8%

15,3%

16,1%

100%

Fonte: Recenseamento do Brasil em 1872 – Rio Grande do Sul – Paróquia de Santa Maria da Boca do Monte

Pelo censo de 1872, mais de 32% da população era composta por negros, o que é praticamente um terço dela. Se acrescentarmos os caboclos nesta conta, quase a metade dos habitantes de Santa Maria não eram brancos. Assim como Paulo Moreira, o historiador Thiago Leitão de Araújo (2011, p. 06) também questionou o número de indivíduos escravizados apresentados pelo censo de 1872. Para sua argumentação, utilizou os relatórios da Diretoria Geral de Estatística, mais especificamente o “quadro estatístico do número de escravos matriculados nas estações fiscais”, realizado entre 1872 e 1873. Para Santa Maria, os dados das matrículas apresentam o número de 1396 escravos, ou seja, 192 a mais do que os 1204 apresentados pelo censo. Independentemente das precisões numéricas e estatísticas, era um cenário bem distinto da descrição que fez o médico alemão Robert Avé-Lallemant em sua passagem pelo povoado em 1858, que a comparou com uma “bonita aldeia suíça” e chamando-a de “a singularmente alemã Santa Maria” (MARCHIORI; NOAL FILHO, 2008, p. 48-49). A presença de alemães em lugares tão distantes pode ter impressionado o médico viajante e, provavelmente, suas visitas se 77. Ver também: ZARTH, 1997; SILVA, 2004.


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concentraram nas famílias de seus compatriotas, mas a diversidade étnica presente era muito mais diversa do que a relatada por ele, mesmo considerando que o seu relato tenha sido feito 14 anos antes. A presença significativa de negros livres e escravizados justificava a criação de uma irmandade religiosa para congregá-los. E, justamente no início da década de 1870 que o censo foi realizado, a lei do Ventre Livre foi promulgada, a obrigatoriedade das matrículas estabelecida e que foi criada a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. A partir de agora, Santa Maria dispunha de uma irmandade para os brancos e outra para os negros, que conheceremos melhor a seguir.

4.1 IRMANDADES EM SANTA MARIA DA BOCA DO MONTE As irmandades funcionavam como um espelho das hierarquias sociais presentes nas diversas localidades. Em regiões maiores e mais dinâmicas, as opções eram diversas e cada vez mais seletivas e, em outros lugares, as alternativas se limitavam a uma, duas ou três possibilidades. Em Santa Maria, havia a presença de duas delas: a Irmandade Conjunta de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. A primeira reproduz uma característica da província, a profusão dessas duas devoções, como vimos no capítulo anterior. A existência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário era um indicativo de uma presença significativa de negros escravizados, livres ou libertos. A divisão sociorracial estava estabelecida, pois, como vimos, as Irmandades do Santíssimo Sacramento eram destinadas principalmente aos brancos e ricos. Essa divisão sociorracial das irmandades em Santa Maria da Boca do Monte, na segunda metade do século XIX, refletia no seu microespaço uma realidade que era constante em todo o Brasil. O arcediago Vicente Lopes, no seu levantamento sobre as irmandades, informou que, em Santa Maria, os paroquianos criaram uma Irmandade Conjunta de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento78, adotando seu Compromisso em 22 de outubro de 1856, tendo sido aprovado por provisão de Dom Feliciano José Rodrigues Prates em 10 de dezembro do mesmo ano. A aprovação civil foi confirmada pela Lei Provincial nº 379, de 20 de novembro de 1857 (LOPES, 1891, p. 184). No entanto, ela existiu há pelo menos 10 anos antes do seu registro oficial. Em 1846, a mesa administrativa da irmandade recebeu um conto de réis para a reforma da Igreja Matriz e enviou uma correspondência ao vice-presidente da província agradecendo o esforço para o aumento do culto

78. O arcediago utiliza como nomenclatura Irmandade Conjunta do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Conceição. Na consulta às correspondências produzidas pela Irmandade, o nome está invertido. Utilizamos a nomenclatura das fontes primarias produzidas pela própria Irmandade.


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divino79. Outras três correspondências foram enviadas entre 1846 e 185280, tratando da reforma da igreja. Como muitas outras, essa irmandade existiu bem antes de sua aprovação eclesiástica e civil. A elite econômica, política e militar estava reunida na Irmandade de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento. Um único livro de entrada de irmãos foi encontrado e registra a presença de 162 indivíduos, listados entre 1860 e 1874, sendo 124 homens e 38 mulheres81. Entre eles, estavam o Coronel João Antônio da Silva Cezimbra82, o primeiro nome do livro, Manoel Teixeira Cezar83, Manoel Martins de Moraes84, o Major Olivério Antônio de Athaydes85, o Coronel José Alves Valença86, Joaquim José Edolo de Carvalho87 e o Coronel Feliciano Gonçalves Borges88, o último nome registrado no livro. Essa é uma pequena amostra dos seus integrantes que incluíam estancieiros, comerciantes, militares e políticos. Os imigrantes de origem alemã que foram chegando à vila, encontraram na irmandade uma referência e um local de acesso e contato com a elite local. Nicolau Becker, João Appel e Antônio Gabriel Edler já faziam parte dela desde 1846. 79. Correspondência da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição ao Vice-presidente da Província. 08 de outubro de 1846. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS. 80. As correspondências tratam dos seguintes temas: 1846: Nomeia procurador para receber o dinheiro para as obras e reparos da igreja – 1850: Explica as reformas feitas, solicita mais recursos e a necessidade de construção de um novo cemitério – 1852: Responde portaria nomeando uma comissão para obras na igreja. Correspondências da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS. 81. Livro Atas. Irmandade de Nossa Senhora da Conceição e Santíssimo Sacramento. Museu Sacro de Santa Maria (MSSM). 82. Membro da 2ª Legislatura da Câmara Municipal, que governou o município entre 1861 e 1865. 83. Possuía a segunda maior fortuna de Santa Maria nos dados dos inventários analisados por Glaucia Kulzer (2009. p. 139). Segundo a “Relação dos Animais Vacuns, Cavalares e Lanígeros do Município Santa Maria da Boca do Monte, de 1858 (de agora em diante “Relação de 1858”) possuía uma légua de campo e empregava na sua manutenção 5 escravos, um peão e um capataz. Tinha 2000 reses, 200 cavalos, 200 ovelhas (Relação de 1858. Delegacia de Polícia, Santa Maria. Caixa 14, Maço 28. AHRS.). Seu registro no Livro de Entrada de Irmãos é 16 de setembro de 1861, porém já era tesoureiro da irmandade em 1852 (Correspondências da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS). 84. Em 1858, possuía uma légua de campo e empregava na sua manutenção 5 escravos e seus dois filhos, sendo ele o administrador. Tinha 1700 reses; 150 cavalos; 180 ovelhas (Relação de 1858. Delegacia de Polícia, Santa Maria. Caixa 14, Maço 28. AHRS.). Seu registro de entrada na Irmandade é 16 de setembro de 1861. 85. Em 1858, possuía 1 e meia légua de campos e empregava na manutenção 6 escravos e 1 filho como capataz. Tinha 2000 reses; 300 éguas, 200 ovelhas e 20 mulas (Relação de 1858. Delegacia de Polícia, Santa Maria. Caixa 14, Maço 28. AHRS.). Foi membro da Câmara Municipal em dois mandatos entre 1865 e 1873. Seu registro de entrada na Irmandade é 06 de fevereiro de 1867. 86. O Coronel Valença foi o primeiro presidente da Câmara Municipal, entre os anos de 1858 e 1861; mais tarde, entre 1860 e 1864, tornou-se Comandante Superior da Guarda Nacional de Santa Maria. Seu filho José Alves Valença Junior também era membro da Irmandade, também ocupou lugar na Câmara Municipal e foi deputado provincial em 1858. Lutou na Guerra dos Farrapos e na Guerra do Paraguai. Seu registro de entrada na Irmandade é 05 de março de 1861. 87. Foi subdelegado de Santa Maria e membro da Câmara Municipal em 1861. Também participou da Guerra do Paraguai. Seu registro de entrada na Irmandade é 31 de março 1861. 88. O seu inventário demonstra que possuía duas léguas e meio quarto de campo de criação, com 4078 cabeças, além de diversos outros bens de raiz. Utilizava como mão de obra 12 escravos (KULZER, 2009, p. 73). Seu registro de entrada na Irmandade é de 08 de abril de 1874.


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Depois deles, vários outros imigrantes foram se integrando a ela. Voltaremos a falar desses imigrantes confrades de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento, principalmente os Daudt e os Haeffner. O contraponto da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição era a Irmandade do Rosário. Na primeira, estavam os senhores; na segunda, os escravizados. A Irmandade do Rosário não fez parte dos registros do arcediago Vicente Lopes, talvez porque tenha funcionado num período muito breve, na década de 1870. Período breve, mas marcante e definidor de uma característica de sua trajetória: o conflito e o enfrentamento com o clero. Sua criação aconteceu, provavelmente, em 1873, quando foram realizadas eleições para sua mesa administrativa89. Em 1874, a Irmandade estava representada na primeira visita pastoral do bispo diocesano Dom Sebastião Dias Laranjeira à Freguesia de Santa Maria. No dia 23 de novembro, o bispo foi recebido fora da vila pela Câmara Municipal, Juiz e outras autoridades que o acompanharam até a residência do vigário José Marcellino de Souza Bittencourt. Como fazia mal tempo, não pôde fazer sua entrada solene nesse dia e teve que esperar até o dia 25 para tal cerimônia. O livro tombo traz a seguinte narrativa desse evento que movimentou a cidade: Neste dia, pelas nove horas da manhã, reuniam-se em frente à casa do Reverendo Vigário os mencionados sacerdotes, as Irmandades do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora do Rosário, a Câmara Municipal, autoridades e principais habitantes desta vila e freguesia, as escolas públicas e particulares de ambos os sexos, com numeroso concurso de alunos90.

Os membros da Irmandade, ao menos como representação, estavam em uma situação semelhante às demais entidades e autoridades da cidade. Estavam ali, ombro a ombro, senhores e escravos, brancos e negros, ricos e pobres. Igualdade entre eles não existia, mas fazer parte da Irmandade do Rosário, em certas situações, diminuía as diferenças entre eles. Para a população negra, participar dessa associação negra representava reconhecimento social e possibilidade de visibilidade em uma sociedade marcada por preconceitos sociais e raciais. Na solenidade de encerramento, o vigário apresentou ao bispo uma “escravinha” (conforme expressão utilizada no livro tombo) de 8 anos de idade chamada Maria, que foi libertada para comemorar a visita pastoral. Depois dos discursos do padre e do bispo, a “escravinha” recebeu sua carta de liberdade91. Maria era escrava de Isabel Nunes do Nascimento e foi comprada por 120 mil 89. No capítulo 05, o leitor terá mais informações sobre as circunstâncias da criação da Irmandade do Rosário em Santa Maria. 90. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Livro tombo n. 2 (1860-1888) p. 119. APNSC – SM. 91. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Livro tombo n. 2 (1860-1888) p. 119v. APNSC – SM.


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réis pelo vigário e pelo alferes Germano Hoffmeister (padrinho de Maria) para marcar a presença do prelado92. Na cerimônia de recepção do bispo, um evento marcado pela formalidade, a Irmandade foi utilizada como um instrumento de representatividade, sociabilidade e visibilidade. Em outros momentos, a identidade cultural se manifestava. O leitor deve lembrar-se da descrição feita por João Daudt Filho do barulho, das danças e do alarido provocado pelo peditório para Festa do Rosário, que abriu o capítulo 02, e do impacto e do estranhamento que isso provocava na cidade. Daudt ainda acrescentou naquela descrição: Na frente do bando soltavam foguetes dois crioulos gêmeos, escravos do meu avô Adão e Antônio – tão parecidos que ninguém seria capaz de diferenciá-los. Como ‘baliza’ puxava o bando o pai João da Mão Pelada, um africano velho, com cara e gestos de perfeito macaco, fantasiado com um chapéu alto enfeitado de papéis de cor e de fitas de seda esvoaçantes. Dançando aos pulos, como símios, em desafio às iras dos seus donos, confiados na Imagem Santa, cantavam todos em coro a seguinte estrofe: E – lerê redoba, nego Bate pé, levanta pó, Que amanhã nosso costado Branco limpa c’o cipó (DAUDT FILHO, 2003, p. 45).

São poucos os registros da trajetória da Irmandade nesse período, mas os que existem são reveladores de sua importância para os confrades negros. A festa que ficou na memória de Daudt Filho era especial para aquela comunidade e todos se preparavam para a ocasião. Era uma atividade que acontecia em todo o Brasil. Célia Maria Borges (2005, p. 181) encontrou semelhante costume em povoados no interior de Minas Gerais, onde os festeiros recolhiam esmolas pelas casas para ajudar na preparação da festa. “Abria o cortejo a bandeira de Nossa Senhora do Rosário; atrás homens enfeitados com indumentárias coloridas dançavam e entoavam cantigas que tinham nas letras um pedido de esmola. Quando recompensados, agradeciam a oferenda, sempre através do canto, acompanhados por instrumentistas”. A Festa do Rosário é um acontecimento com vários eventos e, segundo Célia Maia Borges (2005, p 178), “é impossível separar as manifestações do sagrado e do profano”. Além dos “peditórios” descritos acima, faz parte da festa as novenas, missas, procissões, quermesses, cerimônia de posse do rei e da rainha da Irmandade, banquetes, desfiles, danças, levantamento do mastro, foguetório, representações teatrais e eleições dos “reis do Congo”. Na festa, 92. A carta de liberdade esta disponível para consulta nos site do Arquivo Público do Rio Grande do Sul.em:.https://secweb.procergs.com.br/aap/ObtemDadosServlet?metodo=verArquivoPDF&NRO_INT_ DOCUMENTO=745321 . Acesso em: 20 de dezembro de 2014.


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ecoavam os pandeiros, as cuícas e, principalmente, os tambores, pois eles “invocam os espíritos dos ancestrais e têm o poder de expulsar as entidades e vibrações negativas” (SANTOS, 2007, p. 63). Muitas comunidades ainda mantêm suas tradicionais festas do Rosário com variações em cada comunidade, não existindo um modelo único de organização ritual. Rugendas retratou a festa de Nossa Senhora e a coroação de “Reis Negros” na litografia a seguir: Imagem 3 – Festa de Nossa Senhora do Rosário

Johann Moritz Rugendas. Festa de Nossa Senhora do Rosário, Patrona dos negros, c. 1835.

Em Santa Maria, em frente ao grupo que fazia o “peditório”, estava o pai João da Mão Pelada “com um chapéu alto enfeitado de papéis de cor e de fitas de seda esvoaçantes”. O chapéu alto enfeitado seria uma coroa? Estaria Daudt se referindo aos “reis” e “rainhas” escolhidos nas festas de Nossa Senhora do Rosário? Provavelmente, sim. A escolha de “Reis Negros” era uma tradição em muitas das festas organizadas pelas irmandades negras. Marina de Mello e Souza (2002, p. 181), que estudou as origens dessas cerimônias, percebeu que em quase todas as regiões que receberam mão de obra africana, as comunidades escolhiam reis que cumpriam papéis rituais e sociais e eram festejados com danças, música e teatralizações. As raízes africanas eram visíveis na comemoração festiva da


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eleição e coroação dos reis negros, principalmente no uso de instrumentos de origem africana e no aspecto das danças “nas quais a postura do corpo era marcada pela velocidade dos passos e pela independência entre membros superiores e inferiores, que davam aos observadores a impressão de desarmonia dos gestos” (Ibid., p. 181). Essa era a impressão de Daudt ao afirmar que dançavam “aos pulos, como símios”, muito diferente das danças europeias marcadas pela rigidez do tronco e coerência entre pernas e braços93. Independente de João da Mão Pelada ter ou não ter sido escolhido como um rei negro, sua liderança naquela comunidade era incontestável, pois “puxava o bando” e até mesmo por Daudt era reconhecido como “pai”. Essas lideranças negras eram importantes na redefinição de novas identidades dos africanos escravizados94. Era preciso estabelecer novos laços de solidariedade e de sociabilidade e a escolha de reis ou o reconhecimento de lideranças poderiam recriar estruturas sociais existentes nos lugares de origem, conforme apontou Marina de Mello e Souza. Outra liderança importante era o Pai Antônio, preto forro, cujo assento de óbito foi assim registrado: Aos sete dias do mês de setembro de mil oitocentos e cinquenta e sete anos no cemitério da Santa Cruz desta Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Santa Maria da Boca do Monte foi sepultado Pai Antônio, natural da Costa da África, solteiro, de idade de mais de cem anos, morreu de velhice e de repente, sem sacramentos. Foi encomendado na forma do Ritual Romano. Do que para constar foi este assento (Antônio Gomes Coelho do Valle)95.

O africano Pai Antônio morreu na década de 1850, enquanto o Pai João exercia a liderança do cortejo da Irmandade do Rosário no início da década de 93. As características da descrição feita por Daudt Filho dos “bandos precatórios”, grupos de pessoas que iam pelas ruas recolhendo doações em benefício próprio ou alheio, precisa ser contextualizada. Na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX (até pelo menos a década de 1930), predominavam no Brasil o discurso de um pretenso racismo científico, que buscava compreender as diferenças culturais e sociais por meio do conceito de raça. Os teóricos da raça partiam de três proposições básicas. A primeira afirmava a realidade das raças, estabelecendo que existiria entre as raças humanas uma certa distância, o que pressupunha também uma condenação ao cruzamento racial. Uma segunda tese instituía uma continuidade entre caracteres físicos e morais, determinando que a divisão entre raças corresponderia a uma divisão entre culturas. Um terceiro aspecto apontava para a preponderância do grupo “racio-cultural” ou étnico no comportamento do sujeito, não havendo a possibilidade do arbítrio do indivíduo. Esses conceitos foram discutidos incorporados e/ou adaptados para a realidade brasileira a partir das discussões realizadas nos museus etnológicos, nos institutos históricos e nas escolas de direito e medicina, conforme os estudos de Lilia Moritz Schwarcz (1993). O Rio de Janeiro foi um dos locais em que essas proposições foram longamente debatidas. Foi também onde João Daudt Filho se formou na faculdade de Farmácia, em 1881, e também morava quando escreveu seu livro de memórias. Portanto, foi inevitavelmente influenciado por essas concepções, o que explica a animalização dos negros ao compará-los com símios. 94. No conhecido Quilombo do Manoel Padeiro, que vicejou na Serra dos Tapes, cercanias de Pelotas, pouco antes da guerra civil farroupilha, várias de suas principais lideranças eram conhecidas pela alcunha de pai, como o taberneiro africano Simão Vergara. Isto “numa evidente referência a ser visto como indivíduo de respeito nas relações hierárquicas e comunitárias negras locais” (MOREIRA; ALALAM; PINTO, 2013). 95. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Óbitos n. 01 (1814-1863), p. 106. ACSM.


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1870. Entretanto, ambos eram reconhecidos não só pelos seus iguais, mas também por toda a comunidade. Pai Antônio foi assim denominado em um documento oficial e católico e assim reconhecido pelo vigário. Pai João foi denominado por um membro da elite, que apesar do estranhamento da cerimônia religiosa/ política que assistia, não deixou de reconhecer sua liderança. Pai Antônio foi enterrado do cemitério Santa Cruz, onde mais tarde foi construída a Capela do Rosário e novas lideranças se destacaram. Outros dois personagens foram lembrados por Daudt na sua descrição, os crioulos gêmeos, Adão e Antônio, escravos do avô, que iam à frente da procissão soltando foguetes. Vamos, por ora, deixá-los na sua tarefa de tornar a procissão mais festiva e dedicaremos nossa atenção para o senhor dos dois escravos, o avô de nosso memorialista, o alemão Gabriel Haeffner e seus patrícios, que migraram para Santa Maria da Boca do Monte. Analisaremos a relação entre a imigração alemã e a escravidão em Santa Maria e o discurso que se produziu sobre esses imigrantes na cidade. Apesar de parecer que o tema esteja um tanto quanto desfocado do objetivo deste livro, o leitor perceberá sua influência na história da Irmandade e na de seus integrantes. Nesta segunda metade deste capítulo, conheceremos os senhores de escravos de origem alemã e, no próximo, o cotidiano de alguns de seus escravos que fizeram parte da Irmandade do Rosário. Começamos por Gabriel Haeffner, pois esse nome nos acompanhará pelo restante deste trabalho.

4.2 ALEMÃES E SENHORES DE ESCRAVOS Gabriel Haeffner era natural de Baden, na região da atual Alemanha. Veio para o Brasil como soldado contratado (mercenário) e assentou praça no dia 05 de agosto de 1826. Serviu no Rio de Janeiro, na 4ª Companhia, do 3º Batalhão de Granadeiros da 1ª Linha96. A vinda de soldados estrangeiros era de grande interesse do imperador D. Pedro I. Segundo Juvêncio Saldanha Lemos, era preciso resistir às prováveis represálias armadas de Portugal, que não reconheciam a independência do Brasil. Por outro lado, o Exército Imperial era vulnerável à demagogia liberal dos políticos e o recrutamento forçado gerava reclamações e descontentamentos entre a população. Para o imperador, os soldados vindos de fora, descompromissados com qualquer causa nacional, não seriam manobrados pelos políticos brasileiros, descontentes com os rumos que o governo estava tomando, principalmente após o fechamento da Assembleia Nacional Constituinte, em 12 de novembro de 1823. O 96. “A força terrestre compunha-se de uma 1ª Linha, ou como chamaríamos hoje, um exército regular em serviço (…). Como reserva, em condições de ser ativada em caso de mobilização, havia uma 2ª Linha, constituída por ‘Regimentos de Milícias’ (…) e ainda uma 3ª Linha, ou ‘Regimentos de Ordenanças’, e composta, em teoria, por indivíduos incapazes de servir nas 1ª e 2ª Linhas (…)” (LEMOS, 2013, p. 94).


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imperador viu na contratação de soldados mercenários uma forma de garantir-se no seu vacilante trono (LEMOS, 2013, p. 56). A discussão sobre um projeto de imigração não se limitava aos interesses do jovem imperador. Marcos Justo Tramontini (2003, p. 45-46) apontou uma série de interesses e objetivos que eram pretendidos com um processo de colonização, como o de instaurar uma agricultura de subsistência subsidiária a de exportação, de pequenas propriedades e explorada por homens livres, aumentar a população do país para favorecer a implantação da indústria e do comércio, preparar a abolição do tráfico de escravos, criar uma classe média e formar um exército capaz de garantir a segurança interna e servir à política expansionista imperial. Juvêncio Lemos (2013, p. 13-14) classifica os diferentes objetivos em quatro correntes: 1) a do Imperador, que pretendia unicamente o recrutamento de soldados; 2) a da Imperatriz Leopoldina, que desejava “civilizar o Brasil” com a importação da cultura europeia; 3) a de José Bonifácio, que pretendia o fim da escravidão; 4) a de alguns intelectuais e políticos que desejavam um incentivo à agricultura, o povoamento, o branqueamento e uma preparação para o fim da escravidão. Por ora, ficamos apenas com os interesses do imperador. O governo imperial despachou para a Europa, em 1822, o alemão Jorge Antonio Aloisio von Schaefer para contratar soldados mercenários. A ideia inicial era importar irlandeses ou franceses, por serem católicos, mas diante da resistência dos governos destes países, os alemães surgiram como alternativa. Como a legislação da maioria dos países europeus proibia o recrutamento de soldados, muitos vieram sob o rótulo de colonos, mas era preciso também agenciar camponeses para trabalhar na agricultura para disfarçar a atividade ilegal (LEMOS, 2013, p. 57-59)97. Com essa prática, foram incorporados ao Exército Imperial, aproximadamente, três mil soldados alemães (Ibid., p. 86). Eles formaram o 2° e 3° Batalhões de Granadeiros98, o 27° e 28° Batalhões de Caçadores99 e o Esquadrão de Lanceiros Imperiais. Os colonos/camponeses e suas famílias eram despachados para Nova Friburgo/RJ e para a Colônia de São Leopoldo/RS. O 27° Batalhão de Caçadores foi o único dos batalhões estrangeiros que enfrentou um inimigo externo no primeiro reinado, defendendo a bandeira imperial brasileira na Guerra Cisplatina. Em 20 de fevereiro de 1827, participou 97. O Argus, em 07 de janeiro de 1824, foi o primeiro navio que chegou ao Brasil com alemães. Ele trouxe 134 colonos e 150 homens destinados ao serviço militar. Ver: MUHLEN, 2013; DREHER, 2010. 98. “Originalmente, granadeiros eram os soldados que conduziam granadas; devido ao peso destes artefatos, eram escolhidos para tanto os indivíduos mais fortes e corpulentos” (LEMOS, 2013, p. 153, nota 399). 99. A expressão militar “Caçadores” começou a ser empregada na França (Chasseurs), em 1742, para designar grupos de soldados que combatiam em ordem dispersa, na vanguarda da linha de combate. O Exército Português também passou a adotar essa designação. A partir de 1808, a Real Infantaria portuguesa era formada por “batalhões pesados” - de Granadeiros ou Fuzileiros – caracterizados pelo maior efetivo, armas mais longas, soldados mais altos e mais fortes; e “batalhões leves”, de Caçadores, com menor efetivo, dotados de armas mais curtas e soldados menores. (LEMOS, 2013, p. 64, nota 154)


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da famosa batalha do Passo do Rosário, na Província do Rio Grande do Sul. O 28° Batalhão de Caçadores, também conhecido como “Batalhão do Diabo”100, foi enviado para o nordeste para repelir a Confederação do Equador, que havia sido proclamada em Pernambuco, em 1824, e se alastrado pela Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Após o fim do conflito, retornou para o Rio de Janeiro. O 2° Batalhão de Granadeiros era o responsável pela guarda do Palácio de São Cristóvão e pela proteção pessoal de D. Pedro I e da família imperial. Era “a guarda pretoriana do Imperador” (Ibid., p. 245). O 3° Batalhão de Granadeiros, onde Gabriel Haeffner serviu, era o responsável pela guarnição da cidade, ou seja, a guarda de prédios públicos e de rondas policiais. Em 1828, foram incorporados a este batalhão cerca de quinhentos irlandeses. Já o Esquadrão de Lanceiros Imperiais era um pequeno corpo de cavalaria, que também esteve envolvido na Guerra Cisplatina e na batalha do Passo do Rosário. O atraso no pagamento das tropas, as péssimas condições de vida e os castigos arbitrários que sofriam (os estrangeiros e os brasileiros) levou à explosão de uma revolta dos soldados mercenários, em 1828, no Rio de Janeiro. O estopim foi o castigo aplicado a um soldado alemão do 2° Batalhão de Granadeiros, designado a auxiliar o arquiteto responsável para ampliar o palácio imperial e que foi encontrado nas ruas da cidade depois do toque de recolher. A confusão começou na manhã do dia 09 de junho, após a aplicação da pena, (chibatadas) ao soldado transgressor. Os soldados do 2° Batalhão de Granadeiros tomaram o quartel e começaram a realizar saques no bairro de São Cristóvão. A notícia chegou ao 28° Batalhão de Caçadores, localizado na Praia Vermelha. Os soldados, aproveitando o clima de rebeldia, assassinaram o major Benedicto Thiola, subcomandante odiado por todo o Batalhão. O motim se estendeu até o 3° Batalhão de Granadeiros, liderado pelos irlandeses, que também saíram pelas ruas saqueando e matando, nas proximidades do Campo de Santana. Para a defesa da cidade, “porretes e facões foram distribuídos aos escravos, que foram mandados às ruas, com instruções para liquidar sumariamente todo o soldado estrangeiro que encontrassem!” (LEMOS, 2013, p. 343). O conflito se tornou generalizado entre escravos e soldados mercenários e transformou a região em uma praça de guerra. O reforço veio do 24° Batalhão de Caçadores de 2ª Linha, cujos integrantes eram moradores dos distritos vizinhos da Corte, que foram convocados para defender a cidade e intervir no conflito. O governo imperial também solicitou a intervenção das forças navais inglesas e francesas, ancoradas na baía de Guanabara para acabar com a revolta dos mercenários. Depois de três dias de conflitos e muitos mortos, alemães e 100. “No serviço de guarnição se saiam bem. Mas quando de folga, tais soldados viravam demônios: bêbados, arruaceiros, indisciplinados, turbulentos, permanentemente envolvidos em grossas pancadarias com a população carioca” (LEMOS, 2013, p. 226).


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irlandeses se renderam, foram presos e levados para as presigangas da marinha101. Diante da gravidade do conflito, foi preciso punir as lideranças e desmobilizar as tropas mercenárias. Irlandeses foram enviados de volta para a Europa, os 2° e 3° Batalhões de Granadeiros foram, aos poucos, sendo desativados pelo licenciamento de maior parte de seus integrantes ou pela incorporação a outras unidades militares. O 28° Batalhão de Caçadores foi enviado para o Rio Grande do Sul para auxiliar na Guerra Cisplatina e dever-se-ia unir às tropas acampadas em Santa Maria da Boca do Monte. Com o fim da guerra, começou o licenciamento dos soldados e a extinção do batalhão. Quase todos os ex-soldados ficaram no Rio Grande do Sul e vários deles em Santa Maria102. Não sabemos qual foi a participação efetiva de Gabriel Haeffner no motim das tropas estrangeiras no Rio de Janeiro, em junho de 1828103. O fato é que na onda da desmobilização dos estrangeiros, obteve a sua baixa como soldado no dia 06 de novembro de 1828 , pouco mais de dois anos depois de ter chegado ao Brasil. Após a saída do exército, foi para a Colônia Alemã de São Leopoldo, onde casou, em 1829, com Maria Felícia Edler. Já com quatro filhos, Gabriel Haeffner, em 1835, decidiu deixar São Leopoldo e rumou a Santa Maria da Boca do Monte onde se estabeleceu em uma casa comercial. Nesse ano, teve início a Guerra dos Farrapos, que trouxe dificuldades para toda a província e a tomada de posição era inevitável para a maior parte da população. Segundo João Belém (2000, p. 93-103), apenas dois negociantes, João Appel e Gabriel Haeffner ficaram na povoação por serem alemães e completamente alheios às questões políticas da localidade. A guerra atingiu em cheio a Colônia de São Leopoldo, pois era uma fonte de produtos agrícolas, animais, armas, munições e também de muitos ex-soldados com experiência militar na Europa ou na Guerra Cisplatina. As requisições, os saques, os recrutamentos, os assassinatos provocaram o desejo de migrar para um lugar mais seguro. Com isso, novos alemães foram chegando em Santa Maria, e a condição de estrangeiro permitiu a manutenção do comércio local. Belém chega a afirmar que, comercialmente falando, Santa Maria ficou sendo como que um “município neutro”, com aplausos gerais de revolucionários e legalistas. Era como um oásis em meio ao deserto (Ibid., p. 93-103).

101. Presigangas eram navios-presídios. Ver: FONSECA, 2003. 102. Ficaram em Santa Maria o sargento Felippe Valmarath, Boaventura Dauzacker, que virou pedreiro, João Bilo, carpinteiro e João Appel, primeiramente alfaiate, virou um rico comerciante e proprietário de muitos escravos. 103. A Revista do Centenário publicou um fac-símile de sua baixa como soldado e o descreve da seguinte maneira: “Gabriel Haeffner, filho de Carlos, natural de Baden, idade 23 anos, altura 5 pés e 3 polegadas, cabelos castanhos, olhos pardos”. AZEVEDO, 1914, [não paginado].


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Imagem 4 - Gabriel Haeffner

Fonte: Revista Comemorativa do Primeiro Centenário da Fundação da Cidade de Santa Maria, 1914104.

O período de paz e tranquilidade descrito por Belém não atingiu a todos. Em 1838, Gabriel deixou a freguesia e transferiu sua residência para Rio Pardo. São várias as razões apresentadas para o abandono de Santa Maria. Para Romeu Beltrão (2013, p. 151), os motivos da mudança foram as constantes requisições para que alojasse militares e pessoas que acompanhavam os exércitos. Para João Daudt Filho (2003, p. 22), seu neto, foi a desordem, a anarquia e os saques praticados por bandoleiros que infestaram o pacato povoado durante a guerra, o que contradiz a tese da tranquilidade que desfrutavam os comerciantes alemães. Já para João Belém (2000, p. 97), foi uma questão de caráter, já que “não teve a tenacidade férrea de seus compatriotas na luta pacífica que sustentavam”. É difícil apontar uma única causa para ele ter deixado o local que havia chegado três anos antes. Em São Leopoldo, os imigrantes alemães, muitos deles com experiência militar, não ficaram alheios e neutros e assumiram suas posições no embate político e militar que estava estabelecido. A colônia ficou dividida entre apoiadores dos farroupilhas e defensores do Império, com lideranças

104. Revista Comemorativa do Primeiro Centenário de Santa Maria, [não paginado].


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alemãs dos dois lados do conflito105. Em Santa Maria, João Belém (2000, p. 94) dá indicativos de que aconteceu o mesmo, ao citar o exemplo do alemão João Felipe Conrado, que era filiado ao Partido Liberal e partiu para a campanha ao lado dos farroupilhas com seu chefe político, o Coronel José Alves Valença. Vários viajantes que passaram por Santa Maria, na primeira metade do século XIX, mencionaram a sua posição estratégica e vantajosa para a atividade comercial, servindo como um mercado para as regiões circunvizinhas (MARCHIORI; NOAL, 2008). Se a localização do povoado na região central da província foi benéfica para o seu desenvolvimento comercial, essa mesma condição, segundo José Iran Ribeiro (2010, p. 236), “tornava frequente a passagem de exércitos em deslocamento num sentido ou outro”. É muito provável que a instabilidade gerada pela Guerra dos Farrapos e as constantes passagens de grupos armados pelo povoado tenham feito o imigrante alemão tentar a sorte em Rio Pardo. Pouco tempo depois de sua partida, Gabriel Haeffner retornou a Santa Maria. Não teve a tranquilidade e a sorte nos negócios que esperava encontrar em Rio Pardo e a volta foi inevitável106. Era o ano de 1841 e, no retorno, reabriu a sua casa comercial na rua do Acampamento (AZEVEDO, 1914). Depois de tantas idas e vindas, estabeleceu-se definitivamente em Santa Maria. Sua prole foi extensa, teve dez filhos: Carlos, Frederico, Gabriel, José, André, João, Carlos, Anna, Maria Felícia e Catharina. Os irmãos Gabriel Haeffner Filho, Carlos Gabriel Haeffner e José Gabriel Haeffner se tornaram membros da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento. De suas filhas, o casamento de duas delas interessa significativamente para este trabalho. A primogênita Anna casou-se com Nicolau Becker, que chegou a Santa Maria em 1843, com outros imigrantes alemães. Nicolau também se dedicou ao comércio, em sociedade com outro alemão recém-chegado, Pedro Höehr. Em pouco tempo, já tinha sua firma individual com sede na Rua do Acampamento. De acordo com Astrogildo de Azevedo (2014, não paginado), “o prestígio de que gozava em extensa zona circunvizinha, avolumava dia a dia as transações de sua loja, elevando-a (…) à categoria das primeiras da terra”. Três anos depois de ter chegado à vila, Nicolau Becker já era um dos membros da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento e assinava uma correspondência ao vice-presidente da província tratando da manutenção e reforma da igreja107. 105. Sobre a participação dos alemães na Revolução Farroupilha ver: MOEHLECKE, 1986; FLORES, 1995; TRAMONTINI, 2003, especialmente o capítulo 5. 106. A importância econômica e estratégica de Rio Pardo tornara aquela cidade cenário de vários acontecimentos bélicos na Guerra Civil Farroupilha, culminando com a tomada da localidade pelos revoltosos, em 30 de abril de 1838. Rio Pardo foi retomada pelos legalistas apenas em dezembro de 1839, com a participação de uma Companhia de Alemães, comandada pelo Capitão Fernando Kersting. 107. Correspondência da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição ao Vice-presidente da Província. 08


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Imagem 5 – Nicolau Becker

Fonte: Revista Comemorativa do Primeiro Centenário da Fundação da Cidade de Santa Maria, 1914108

Catharina, outra filha de Gabriel, casou-se em 1856 com João Daudt. A família Daudt chegou ao Brasil em 1824 com os primeiros colonos alemães e foi instalada em um lote colonial na Feitoria Velha. Ao mesmo tempo em que se dedicavam à agricultura, estabeleceram um curtume, um dos primeiros da região. João Daudt, que nasceu no Brasil, ainda jovem foi morar em Porto Alegre onde trabalhou com seus cunhados no transporte de passageiros nos primeiros barcos a vapor do Rio Grande do Sul. É numa dessa viagem que conheceu Catharina, quando Gabriel Haeffner e sua família iam a Porto Alegre, e logo se casaram (DAUDT FILHO, 2003, p. 20-24). Para satisfazer o desejo da esposa de ficar próxima a sua família, João Daudt mudou-se para Santa Maria, estabeleceu uma sociedade com o concunhado Nicolau Becker em sua casa comercial e as duas famílias passaram a dividir a mesma casa ao lado do negócio (Ibid., p. 24). Daudt tornou-se capitão da Guarda Nacional e um político local influente, participando de sete das nove legislaturas da Câmara Municipal, no período imperial. Também fez parte da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento, tendo seu assento de de outubro de 1846. Assuntos Religiosos. Caixa 07, Maço 14. AHRS 108. Revista Comemorativa do Primeiro Centenário de Santa Maria, [não paginado].


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ingresso realizado em 31 de março de 1861109. Seu filho primogênito, João Daudt Filho, escreveu um livro de memórias, de que estamos utilizando. Imagem 6 – João Daudt

Fonte: Revista Comemorativa do Primeiro Centenário da Fundação da Cidade de Santa Maria, 1914110.

Santa Maria estava despontando como um lugar promissor e atraiu a atenção de imigrantes de outras regiões nas primeiras décadas do século XIX. Os imigrantes alemães e seus descendentes foram se adaptando aos novos costumes da região e se integrando com a elite local. Participar das irmandades facilitava estes contatos e acessava novas possiblidades econômicas e políticas111. Um dos aspectos de imediato envolvimento dos alemães e de seus descendentes foi o uso de mão de obra cativa. A historiografia da escravidão 109. Livro de Entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição. AMSSM. 110. Revista Comemorativa do Primeiro Centenário de Santa Maria, [não paginado]. 111. Além dos nomes já mencionados, apresentamos a seguinte lista como exemplo da presença de alemães e descendentes na Irmandade de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento: Germano Hoffmeister, Leopoldina Hainn Weinmann, Nicolau Mergner, João Pedro Kirst, João Weber, Carlos David Haag, Jacob Weber, Juliana Weber, Antônio Appel, Carlota Hoetzbach Appel, Ernesto Beck, Pedro Weinmann, João Holtzbach, Maria Alves Valença Appel, Leopoldina Appel, Anna de Oliveira Appel, Henrique Scherer, Jacob Luis Laÿdner, Candida Damasceno Appel, Matheus Beck, João Appel, Theobaldo Jaeger, João Frederico Allgayer, Maximiano José Appel, Carlos Brenner, Martim Hoher, Reginaldo Ignácio Krieger, André Beck, Anna Luiza Appel, Sebastião Edler, Capitão João Baptista Niederauer, Jacob Beck, Frederico João Frangott Schneider, entre outros. Livro de Entrada de Irmãos. AMSSM


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tem avançado significativamente nos últimos anos. Novas abordagens e novas metodologias têm colocado em cheque ou desfeito antigos mitos sobre o escravismo no Rio Grande do Sul. Nesse contexto, também começaram a se desenvolver pesquisas sobre a presença de indivíduos escravizados em áreas e núcleos de imigração. As primeiras obras sobre a colonização apresentaram uma visão dos imigrantes alemães como devotos do trabalho e amantes do progresso. Essa visão estava presente na historiografia da década de 1920 e 1930, especialmente nas obras de Ernesto Pellanda (1925) e Aurélio Porto (1934). Nas décadas de 1960 e 1970, os trabalhos de Jean Roche (1969) e Carlos Hunsche (1975) reforçaram a ideia do imigrante trabalhador, solidário, isolado da sociedade “nacional” e de formas de trabalho inferiores como a escravidão. A ideia de que os imigrantes eram moralmente superiores e tinham como base o trabalho familiar em pequenas propriedades eram os argumentos para negar a presença do trabalho escravo. O perfil das obras que abordaram a temática da imigração alemã em Santa Maria seguiu o mesmo itinerário. João Belém, na década de 1930, reforçou a ideia da importância germânica nos períodos de conflitos e no progresso que trouxeram para o povoado. Ele escreveu: “(…) estes alemães chegados antes e durante a Revolução Farroupilha, foram, na sede do Curato, os arquitetos deste grande edifício social que, hoje, contemplamos, o qual ergueram com ingente esforço e solidificaram, amando com carinho a terra que os agasalhou” (BELÉM, 2000, p. 114)112. Romeu Beltrão, na década de 1960, em uma coleção de artigos sobre o Coronel Niederauer escreveu que esses imigrantes eram “trabalhadores, empreendedores, prolíficos e tenazes, trazendo no sangue os traços característicos da raça germânica (...)” (BELTRÃO, 1998, p. 24)113. O arquiteto e professor José Antônio Brenner (1995; 2010) publicou duas obras sobre a imigração alemã em Santa Maria, abordando a trajetória e a genealogia de duas famílias: os Niederauer e os Cassel. Essas obras também reforçam o aspecto heroico, a “saga” vivida pelos primeiros imigrantes. Em 1858, o médico e viajante alemão Avé-Lallemant passou pela povoação que chamou de “a singularmente alemã Santa Maria”. O viajante relatou a presença alemã nas ruas, no dialeto falado pelos seus habitantes e da riqueza existente entre esses imigrantes (MARCHIORI, 2008, p. 47-52). Ao comentar o relato do viajante, Brenner (1995, p. 77) afirmou: “A descrição pode conter algum exagero praticado 112. O tema aparece em diversos momentos da obra, mas especialmente entre as páginas 110 e 128. 113. Essa obra, organizada por José Newton Cardoso Marchiori, é uma coletânea de 52 artigos escritos por Beltrão para marcar o centenário da morte do Cel. João Niederauer Sobrinho, publicada no jornal A Razão, no período de 21 de junho de 1968 a 15 de maio de 1969. A principal obra de Beltrão, Cronologia História de Santa Maria e do Extinto Município de São Martinho (1787-1930), como o próprio nome induz, tem uma preocupação apenas cronológica e mesmo assim faz diversas referências à importância dos alemães para o lugar.


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por conta do entusiasmo e da surpresa de encontrar, no longínquo interior da Província, conterrâneos que emigraram pobres e viviam na prosperidade na nova pátria, com o fruto exclusivo de seu trabalho”. Poderíamos acrescentar: com o seu trabalho e do de seus escravos. Ao seguir os caminhos percorridos por Manoel Congo e o período em que viveu em São Leopoldo, Vinícius de Oliveira (2006, p. 69) afirmou que “não se trata mais de ‘provar’ a existência de escravos na região colonial imigrante, tarefa já efetuada. O desafio do presente consiste em dar voz, vez e vida a esses cativos”. Tal afirmação se justifica na medida em que várias pesquisas demonstraram a posse de escravos entre os imigrantes que ocuparam a colônia de São Leopoldo114. Seguindo este caminho, temos o importante trabalho de Marcos Tramontini (2003) que discutiu alguns mitos presentes na historiografia sobre a imigração, como a do isolamento, do indiferentismo político e da homogeneidade de pensamento dos colonos alemães. Em sua tese de doutorado, demonstrou que esses imigrantes não estavam isolados, pois se integraram economicamente e participaram da vida política provincial desde o início da colonização. O uso de mão de obra escrava estava entre os argumentos da rápida adaptação dos imigrantes ao seu novo espaço sociocultural. Para comprovar o seu argumento, Tramontini (2003, p. 118) utilizou a carta que Madalena Ernestina Metzen escreveu de São Leopoldo, em 07 de abril de 1826, para Johann Ehhard aconselhando aos futuros imigrantes que “se vocês têm algum dinheiro para economizar e não têm inclinações a comer pão vindo de longe, vocês facilitariam muito nosso trabalho aqui comprando alguns negros (…)” 115. A carta de Madalena foi escrita antes mesmo de completar dois anos da chegada das primeiras famílias na Colônia de São Leopoldo. Quando a economia colonial começou a apresentar índices de crescimento, aumentou a procura por mão de obra escrava, o que demonstra, segundo Tramontini (2003, p. 367-370), que a organização social dos imigrantes seguiu a dinâmica da sociedade brasileira e não estava isolada ou alheia a ela. Aceitando a provocação de Vinícius de Oliveira da necessidade de “dar voz, vez e vida a esses cativos” estão as pesquisas de Paulo Staudt Moreira e Miquéias Mugge, que manipulando fontes diversas, como cartas de alforrias, documentos judiciários, eclesiásticos e fazendo uso da micro-história, têm demonstrado como era a sociedade escravista que existia nessa zona de imigração ou da inserção de negros “no precário mundo da liberdade”. Dessa forma, deram vida ao preto nagô Pedro Allgayer, que teve roubada a sua carta de alforria em 1884, e, através desse caso, puderam compreender as estratégias, a construção de identidades, o reconhecimento comunitário e a presença negra em uma 114. Uma das pioneiras nesta inversão historiográfica foi a historiadora Helga Piccolo (1989a; 1989b; 1998) 115. Tramontini (2003, p. 121) também lembra que alguns tiveram dificuldade de adaptação na nova terra, diante do abandono de sua aldeia natal com todas as suas tradições e seus referenciais culturais.


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zona específica de imigração europeia (MOREIRA; MUGGE, 2014, p. 81-118). Também apresentaram os sofrimentos da liberta Ana, que foi julgada pelo crime de infanticídio, em 1885, e que havia sido escrava do alemão Johann Nicolau Blauth. Acompanhando esse processo e utilizando o cruzamento de fontes, os autores descortinaram as relações de dependência e de gratidão estabelecidas pelas alforrias, as relações de parentesco construídas, o protagonismo feminino e o preconceito que sofriam os escravos e a população egressa do cativeiro naquela região (Ibid, p. 63-80). Em outro episódio em que procuram discutir as intrínsecas relações entre a imigração alemã e a escravidão, Paulo Moreira e Miquéias Mugge apresentaram o requerimento (1827) ao Imperador de um colono, recém-chegado da Europa, e que foi beneficiado com terras em São Leopoldo. O colono alemão em questão era Paulus Hammel e solicitava a permissão para exercer a atividade de marceneiro, ofício lucrativo, para poder comprar cativos para aplicar ao serviço da lavoura. Esse é mais um exemplo da “capilaridade e da legitimidade” da escravidão na primeira metade do século XIX, inclusive entre os colonos alemães (Ibid., p. 21-40)116. É também mais um argumento da rápida adaptação à mentalidade nacional, tese defendida por Tramontini. Outro pesquisador importante da imigração alemã é Marcos Antônio Witt (2008, p. 110), que também adotou a perspectiva da micro-história para desvendar as estratégias políticas dos colonos no século XIX. Discutiu as disputas religiosas e políticas dos primeiros pastores alemães (João Jorge Ehlers, Frederico Cristiano Klingelhoeffer e Carlos Leopoldo Voges), os seus interesses econômicos, os arranjos familiares dos imigrantes e seus investimentos. A presença de cativos não foi ignorada nas análises de Witt sobre as disputas, nem as estratégias e os interesses dos imigrantes. Segundo esse autor “comprar, manter e vender escravos fez parte do cotidiano de alguns ‘exponenciais’, os quais otimizaram o desempenho de suas propriedades a partir da exploração de trabalhadores cativos”117. Outros pesquisadores também fizeram análises sobre a escravidão entre os imigrantes ou a invisibilidade da população negra nessas regiões. Vinícius de Oliveira (2006), que foi utilizado neste texto para introduzir este breve resumo historiográfico, explorou as múltiplas vivências dos escravizados em São Leopoldo, como a mobilidade e a circulação dos cativos pela região, sua economia independente, suas redes sociais, seus crimes e conflitos. Maria Angélica Zubaran (1994 p. 65-74) analisou 40 cartas de alforria concedidas por 116. Os autores seguem a trajetória deste e de outros imigrantes na busca de ampliar suas oportunidades de mobilidade social e espacial. 117. “Exponenciais” eram os indivíduos que se destacaram política e socialmente e que faziam parte da elite local nas regiões de São Leopoldo e o litoral norte, o que o autor chamou de “mega espaço”.


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teuto-rio-grandenses e percebeu traços comuns com a sociedade escravista do Rio Grande do Sul, como a ideologia paternalista, a concepção de negócio dada à liberdade, assim como a influência do movimento abolicionista118. Os imigrantes e/ou seus descendentes que buscaram novas oportunidades em Santa Maria da Boca do Monte também fizeram uso do trabalho escravo. No entanto, as pesquisas sobre essa temática aparecem de forma secundária. Ainda não há um estudo específico sobre isso. A presença da escravidão entre os imigrantes alemães de Santa Maria ainda precisa de um maior investimento da historiografia. Uma das primeiras obras que apresentaram aspectos da escravidão entre os alemães em Santa Maria é o livro de Memórias de João Daudt Filho que tanto mencionamos. Do ponto de vista historiográfico, foi a perspectiva do estudo das elites que demonstrou, por meio dos inventários post-mortem, a presença de cativos entre o patrimônio dos imigrantes. Gláucia Kulzer (2009) analisou a formação patrimonial das famílias de elite em Santa Maria no século XIX e, para isso, pesquisou 253 inventários, no período de 1858 a 1889. Destes, 51 eram de teuto-alemães, conforme expressão utilizada por ela, onde: a maioria (35%) dedicava-se à atividade vinculada a terra, 16% atuavam no comércio, 5% eram negociantes, 2% exerciam atividades militares, 12 % englobava uma variada gama de atividades, tais como curtumes, sapataria, ferraria, cervejaria, lombilharia, entre outras e finalmente 31% não foi possível identificar a quais atividades estavam vinculados (KÜLZER, 2009, p. 54).

Com base nessa amostra de inventários, Kulzer procurou contabilizar a concentração da riqueza e analisar as fortunas entre os alemães. Chegou à conclusão que a maioria tinha baixa concentração de riqueza e que se dedicavam, sobretudo, à atividade agrícola. A maioria era de pequenos comerciantes ou lavradores. Poucos indivíduos dedicaram-se ao grande comércio. O grande destaque foi João Appel, que integrou o seleto grupo de apenas cinco indivíduos (dos 253 inventários) com um montante superior a 10 mil libras. Ele possuía 23 escravos, o que representava 12% de sua riqueza (KULZER, 2009, p. 54). Embora tenha se aproximado da situação econômica dos imigrantes alemães e de seus descendentes e tenha citado alguns exemplos, a autora não estabeleceu uma análise mais profunda sobre a presença dos cativos nesse grupo social, porque este não era o objetivo central de sua pesquisa. As estratégias políticas e sociais dos imigrantes para ascender à elite em Santa Maria foi tema do trabalho de Fabrício Rigo Nicoloso (2013). O autor procurou fazer uma análise prosopográfica de um grupo de dezesseis famílias119 118. Ver também: CHARÃO, 2002; 2004. ALVES, 2004; 2011. 119. São elas: Appel, Höehr, Scherer, Hoffmeister, Fischer, Beck, Niederauer, Weimann, Brickmann,


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de imigrantes, em dois períodos diferentes, que chamou de “os patriarcas” (que chegaram entre 1830 e 1860) e “os herdeiros” (os descendentes das famílias já estabelecidas - entre 1860 e inícios da década de 1890). Entre os critérios utilizados para a análise dessas famílias, estava o envolvimento com a escravidão. No entanto, Külzer apenas abordou o tema superficialmente, uma vez que o objetivo principal de ambos era outro. Com base nas famílias selecionadas, Nicoloso trabalhou com vinte e cinco indivíduos da geração dos “patriarcas” e vinte e dois sujeitos na geração dos “herdeiros”, totalizando quarenta e sete indivíduos. Desse total, o autor selecionou doze indivíduos e analisou seus inventários e uma carta-testamento. Para a seleção desses sujeitos, utilizou como critério de “avaliar os bens e fortunas acumuladas por imigrantes e descendentes que, em suas trajetórias sociais em Santa Maria, exerceram cumulativamente ou de forma consecutiva, três das profissões […]: negociantes, artesãos e proprietários” (NICOLOSO, 2013, p. 121). Reproduzo na próxima página parte das informações colhidas pelo autor desses doze indivíduos (inventários e testamento), principalmente, o que interessa neste capítulo, a relação com a escravidão, e acrescento as duas últimas colunas com informações de outras fontes. Quadro 3: Presença de Escravos em inventários e outras fontes Nome

Ano de abertura Inventários

Escravos nos inventários

Posse de escravos Outras fontes

Outras Fontes120

João Appel

1864

23

Sim

Livro de Batismo/Compra e Venda

André Beck

1877

X

Sim

Livro de Batismo/Compra e Venda/Alforria

Pedro Beck

1863

X

X

X

Otto Brinckmann

1903

X

Sim

Compra e Venda

120

Daudt, Druck, Cassel, Kessler, Kruel, Brenner e Lenz. Para família, autor utiliza o conceito de Giovani Levi: “Falaremos de família no sentido de grupos não co-residentes, mas interligados por vínculos de parentela consanguínea ou por alianças e relações fictícias [...]”. LEVI, 2000, p. 98-99. 120. Os livros de batismo estão no Arquivo da Cúria da Arquidiocese de Santa Maria; compra e venda e alforria são os volumes organizados pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul.


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Ênio Grigio

Nome

Ano de abertura Inventários

Escravos nos inventários

Posse de escravos Outras fontes

Outras Fontes120

Pedro Cassel

1885

Sim (criadas)

Sim

Livro de Batismo/Alforria

Carlos Kruel Filho

1854

X

X

X

Júlio Kessler

1892

X

X

X

João Henrique Druck

1876

X

Sim

Livro de Batismo

João Niederauer Sobrinho

1869

1 (criada)

Sim

X

Martins Höehr

1894

X

Sim

Compra e Venda

Frederico Guilherme Niederauer

1896

X

Sim

Livro de Batismo/ Alforria121

Carlos Henrique Niederauer

1876

X

Sim

Livro de Batismo/Alforria

Fonte: NICOLOSO, 2013, p. 122-123 /Livros de Batismo/ Documentos da escravidão/APERS121

Se analisarmos os dados encontrados por Nicoloso, a partir dos inventários, podemos chegar à conclusão de que a escravidão foi circunstancial e limitada entre os alemães e seus descendentes. Se tirarmos João Appel, que foi uma exceção, inclusive entre os “nacionais”, temos apenas dois indivíduos com escravos domésticos em seus inventários (Pedro Cassel e João Niederauer Sobrinho). No entanto, quatro desses inventários foram abertos após a abolição da escravidão e, obviamente, neles não poderiam ser encontrados escrravos. Se recorrermos a outras fontes, os dados revelam que os imigrantes de origem alemã fizeram uso de forma intensa da mão de obra cativa. Dos doze indivíduos selecionados por Nicoloso, no mínimo nove foram senhores de escravos em algum momento de suas vidas. Os inventários são instrumentos importantíssimos para o estudo da temática da escravidão. No entanto, como lembra Junia Ferreira Furtado (2009, p. 112), “testamentos e inventários são retratos instantâneos de um plantel e pouco ou 121. Frederico Guilherme Niederauer e Carlos Henrique Niederauer eram irmãos, filhos de Frederico Niederauer e Margarida Silbemagel Niederauer. Embora ainda não tenham encontrado escravos em seus nomes, seus pais foram senhores de escravos. Frederico, o pai, faleceu com em 1861, aos 51 anos. Margarida continuou com a posse de sujeitos escravizados. Portanto, os filhos usufruíram do trabalho escravo, por isso, conside-los-ei possuidores de escravos em algum momento de suas vidas.


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nada revelam sobre a sua dinâmica ao longo da vida do testador”. O trabalho de Marcelo Matheus (2012) é revelador da necessidade de ir além do que demonstram os inventários. Esse autor trabalhou com duas fontes distintas para estabelecer a estrutura da posse de indivíduos escravizados em Alegrete. Tendo como base principal os inventários post-mortem, procurou verificar a posse de escravos entre os anos de 1829 e 1869, dividindo o período em dois recortes temporais, antes e depois do fim do tráfico Atlântico. Para a década de 1870, utilizou uma fonte rara e riquíssima: a Lista de Classificação de Escravos para serem Libertados pelo Fundo de Emancipação122, instituído pela Lei do Ventre Livre. Matheus (2012, p. 77-102) analisou 289 inventários com escravos. No primeiro recorte, antes do fim do tráfico, foram computados 91 inventários, que revelaram que a grande maioria dos senhores – 70,5% detinham entre 01 e 09 escravos. No segundo recorte, entre 1850 e 1869, foram analisados 198 inventários e a posse entre 01 e 09 escravos foi de 74%, praticamente mantendo o percentual anterior. Na Lista de Classificação, o autor chegou a 2.620 registros, o que representava 83,5% dos escravos dos senhores residentes em Alegrete. Os resultados encontrados revelaram a existência de 792 senhores de escravos e, 95% deles, proprietários de até 9 cativos. Esses escravistas representavam quase sete vezes mais do que os 111 inventários com escravos existentes entre 1871 e 1879 catalogados pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Esses números de Alegrete revelam que a posse de escravos estava amplamente disseminada em vários setores da sociedade e que, muitas vezes, os inventários post-mortem não conseguiam captar sua extensão. O mesmo acontece entre os imigrantes alemães. O universo apresentado por Nicoloso é pequeno, mas serve como demonstração de que muitos indivíduos foram senhores de vários escravos e não mais os possuíam no momento de sua morte. Nos 303 inventários de alemães analisados por Eliege Moura Alves (2011), entre 1850 e 1870, apenas 16 possuíam escravos em São Leopoldo. É bastante provável que muito mais desses sujeitos com bens inventariados fossem senhores de escravos durante algum tempo de suas vidas. Vamos usar como exemplo o caso de André Beck, um dos selecionados por Nicoloso, cujo inventário foi aberto em 1877 e não continha escravos. Utilizando os “Documentos da Escravidão – Compra e Venda de Escravos”, do projeto organizado pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul, verificamos que André Beck comprou, em 1869, de Pedro Conrado Licht o escravo Atanásio, 122. O Fundo foi criado para ser repartido proporcionalmente entre os municípios para libertar os cativos conforme critérios de classificação estabelecidos na Lei do Ventre Livre e regulamentado no Decreto 5135 de 13 de novembro de 1872. Em cada localidade, deveria ser criada uma junta de classificação para a elaboração dessas listas, que deveriam conter todos os escravos residentes nas respectivas localidades. Após a abolição, foram destruídas para evitar que ex-senhores reivindicassem indenizações do Estado. Por enquanto, apenas duas foram encontradas, Alegrete e Rio Pardo.


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mulato, 18 a 19 anos e pagou por ele o valor de 1:000$ (um conto de réis). Dois anos depois, em 1871, vendeu a escrava Domingas, de 14 anos, para Nicolau Becker pelo valor de seiscentos mil réis. No ano seguinte, vendeu Matildes, com 17 anos, para Frederico Kessler, por setecentos mil réis. Em 1873 vendeu o preto Alberto, 20 anos, para Pereira & Irmão, por 1 conto de réis. Em 1875, pouco antes de sua morte, vendeu para o mesmo Frederico Kessler mais quatro escravos: Josefa, 22 anos, Joaquina, 26 anos, e seus filhos Idalina, 7 anos, e José, 5 anos. O valor total da negociação foi de dois contos e seiscentos mil réis123. Até aqui já identificamos oito que foram propriedade de André Beck, em diferentes momentos de sua vida. E não para por aí. Em 1873, alforriou a preta Maria, 51 anos, de Nação, “em atenção ao bem que (…) tem servido, e aos seis filhos que a mesma tem produzido”124. Os filhos de Maria foram Luiza, nascida em 1847, Júlia, nascida em 1850, Jozé, nascido em 1852, outro Jozé, nascido em 1854, Domingas, nascida em 1855 e Mathildes, nascida em 1857125. Os assentos de batismo também revelam a existência do escravo Luiz, que apadrinhou vários cativos126. Desconsiderando Domingas e Mathildes, que foram vendidas para Nicolau Becker e Frederico Kessler e que já estão contabilizadas, temos mais seis escravos, que somados aos oito negociados, chegamos à conta de quatorze. É claro que André Beck não possuiu todos os escravos ao mesmo tempo, também não sabemos quantos filhos da cativa Maria conseguiram sobreviver aos altos índices de mortalidade infantil127, mas o importante é saber que ele usufruiu 123. APERS. Documentos da Escravidão no RS: Compra e Venda de escravos, vol. 02, p. 296, 307, 308, 315, 313 (respectivamente). 124. APERS. Documentos da Escravidão no RS: Catálogo Seletivo de Cartas de Liberdade, vol. 02, p. 873. 125. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. 58; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864) Suplementar, p. 25v.; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864), p. 58v; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864) Suplementar, p. 30v; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864) Suplementar, p. 44v; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864) Suplementar, p. 57v., ACSM. 126. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 4 (1851-1864), p. 47; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864) Suplementar, p. 46-46v.; p. 53v., p. 54v., 68v.; Livro de Batismo n. 7 (18641869), p. 126-126v. ACSM. 127. Os livros de óbitos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, de Santa Maria são incompletos. Quanto a mortalidade infantil, João José Reis (1995, p. 36) encontrou nos livros de óbitos das paróquias de Salvador, para o ano de 1836, dados que indicam que 47,2% dos escravos não atingiam 11 anos e 30,7% de livres. Sheila de Castro Faria (1998, p. 1273-1298) analisou registros de óbitos da Freguesia de São Salvador e da Freguesia de Santo Antônio de Guarulhos, no norte Fluminense, na segunda metade do século XVIII, e no Século XIX. Para São Salvador, os dados revelaram que 50% dos livres/libertos (1754-1796) tinham menos de 11 anos e entre os escravos, o percentual era de 44%. Já na Freguesia de Santo Antônio de Guarulhos, a morte dos livres (1844-1852) era de 53% e dos escravos (1844-1850) de 45%. A autora também explicou que a menor proporção de escravos falecidos antes dos 11 anos refletia o padrão demográfico do tráfico africano, que introduzia mais adultos e homens do que mulheres, e, tudo indica que o número de escravizados adultos entrados na região era maior que a de homens livres, pois seria absurdo supor que as condições de vida das crianças escravizadas fossem melhores do que as livres. No Rio Grande do Sul, Silmei Petiz (2006) analisou 4.733 registros de óbitos, sendo que 2.033 eram de escravos, para o período de 1790 a 1822, e chegou a dados que mostram a incidência de 42, 87% de mortes de inocentes – crianças que em média tinham até sete amos e ainda não haviam sido batizados. Carolina Bitencourt Becker (2010) analisou os registros de Alegrete, de 1831 a 1850, e encontrou 38% dos óbitos entre os inocentes - 0 a 7


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intensamente do mundo da escravidão, batizando, alforriando, comprando e vendendo indivíduos escravizados. O primeiro registro que encontramos foi o batismo de Luiza, filha da escrava Maria, em 1847. Como deve ter adquirido esta escrava antes dela ter o primeiro filho, e o último registro que temos é a venda dos quatro escravos a Frederico Kessler, em 1875, temos o envolvimento de Beck com a escravidão por 30 anos ou mais. Esses são os escravos que conseguimos identificar deste senhor, podendo existir outros. Com o cruzamento de diversas fontes, vamos encontrar escravos em 15 das 16 famílias selecionadas por Nicoloso. São elas: Appel, Höehr, Scherer, Hoffmeister, Fischer, Beck, Niederauer, Weimann, Brickmann, Daudt, Druck, Cassel, Kessler, Kruel, Brenner. A única família que não identificamos a presença de escravos foi a dos Lenz. Além dessas famílias, eles poderiam ser encontrados também entre os Weber, Haag, Müller, Maldeseder, Conrado, Hainn, Mergener, Fleck, Schirmer, Schnaider, Maurer, Kroef, Stock, Oestrich, Fryler, Edler e, claro, os Haeffner e os Becker, entre outros. É a “capilaridade e a legitimidade” da escravidão, nas expressões de Paulo Moreira e Miquéias Muge, ou a “pulverização da escravidão”, conforme Hebe Mattos, presentes também entre os imigrantes alemães e seus descendentes em Santa Maria da Boca do Monte. As casas comerciais, as fábricas, as salas de produção artesanal, as lavouras e as casas dos imigrantes alemães estavam servidas por mão de obra cativa. Os escravos gêmeos de Gabriel Haeffner não eram exceção entre os imigrantes presentes em Santa Maria. O uso da mão de obra escrava estava disseminado entre os imigrantes e seus descendentes na cidade. Muitos viajantes destacaram a presença alemã na região, sua importância e seu progresso econômico128. Compararam o povoado com uma “bonita aldeia suíça” ou “uma rica aldeia a anos. Embora esses dados sejam de tempos, regiões e categorias diferentes, eles revelam a alta taxa de mortalidade infantil entre os indivíduos escravizados, que nos dados apresentados, nunca eram inferiores a 40%. 128. Além dos viajantes já mencionados, destacamos os seguintes relatos recolhidos por MARCHIORI; NOAL FILHO: Luiz de Oliveira Bello esteve em Santa Maria em 20 de agosto de 1856 e deixou o seguinte relato: “Depois do almoço passei pela Freguesia. Terá 120 casas todas térreas, mas em geral espaçosas; metade pelo menos pertence a alemães, aqui estabelecidos desde a fundação da Colônia de São Leopoldo, a maior parte dos quais exercem as artes mecânicas. A eles se deve a tal prosperidade de que goza esta povoação” (p. 44). Henrique Schutel Ambauer em sua passagem em 1860 descreveu que “a população da vila é na maior parte alemã ou originária dela” (p. 56). Já o ministro suíço, Johann Jakob von Tschudi, destacou a influência política dos alemães: “Na vila de Santa Maria já estão estabelecidas diversas famílias alemãs, e somente graças a forte solidariedade delas para com os colonos alemães foi possível (...) compor a câmara do município nas eleições de 1864, somente com alemães, com exceção de apenas dois brasileiros” (p. 60). Em meados da década de 1880, Henry Lange também destacava a presença alemã na composição da população: “O número de habitantes é estimado entre 4.000 a 5.000 dos quais a metade é de alemães ou de origem alemã. Todo o município poderia ter aproximadamente 13.000 habitantes (70). O geógrafo alemão, em 1886, também destacou que “por todos os lados se veem nomes alemães nas placas e, realmente, a população alemã desempenha aqui, um importante papel. Perfaz, mais ou menos a metade da população da cidade, dada como de 5.000 habitantes” (p. 73). Os outros apresentam vários outros relatos e impressões de viagem de sujeitos que passaram por Santa Maria.


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margem da estrada de Darmstadt a Heidelberg”129, mas ignoraram sua condição multiétnica e multicor. Conforme vimos, os dados do censo de 1872 revelam que quase a metade da população era composta por não brancos e, entre eles, estavam os escravos desses alemães. Muitos imigrantes, como Gabriel Haeffner, Nicolau Becker e João Daudt se desenvolveram economicamente com atividades urbanas, principalmente ligadas ao comércio. Como as irmandades negras também se desenvolviam preferencialmente em espaços urbanos, muitos de seus integrantes eram oriundos desses e de outros espaços econômicos. É o caso dos gêmeos Adão e Antônio, escravos do comerciante Gabriel Haeffner. No próximo capítulo, vamos compreender como era o cotidiano desses escravos em Santa Maria da Boca do Monte. Se neste capítulo privilegiamos a trajetória de alguns senhores escravistas, no próximo, a atenção será para as pessoas que foram escravizadas. Vamos conhecer melhor os escravos gêmeos, o ambiente em que viviam e as atitudes da Igreja diante da Irmandade.

129. As duas expressões foi usada por Robert Avé-Lallemant na sua chegada em Santa Maria em 26 de março de 1858 (MARCCHIORI; NOAL FILHO, 2008, p. 48-49).


5 O COTIDIANO DA ESCRAVIDÃO E O CONTEXTO DA CRIAÇÃO DA IRMANDADE DO ROSÁRIO EM SANTA MARIA



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No dia 04 de janeiro de 1848, uma jovem chamada Maria, escrava de Gabriel Haeffner, deveria estar preocupada e, ao mesmo tempo, ansiosa com as dores que sentia, pois estava no final de sua gestação. A situação deve ter mobilizado também os escravos de Nicolau Becker e João Daudt, genros de Gabriel, pois havia proximidade e convivência entre eles. Naquele mesmo dia, a jovem deu à luz a dois meninos que chamou de Antônio e Adão, os quais já conhecemos parcialmente. No mês seguinte, levou as crianças para serem batizadas. Foi feito o seguinte registro: Aos treze dias do mês de fevereiro de mil oitocentos e quarenta e oito anos nesta Freguesia de Santa Maria da Boca do Monte batizei e lancei os Santos Óleos a Antônio e Adão, gêmeos, nascidos a quatro de janeiro do mesmo ano, filhos naturais de Maria, de Nação da Costa, e escrava de Gabriel Haeffner. Foram Padrinhos de Antônio, Antônio, escravo de Jozé Gomes Porto e Matildes, escrava de Nicolau Becker, e de Adão, Antônio e Libana, ambos escravos de Jozé Gomes Porto: E para constar mandei fazer este assento que assino. O Vig. Antônio José Borja Sant´Ana130.

Maria era africana e sua origem foi identificada como sendo de “Nação da Costa”. Ela foi batizada pelo mesmo vigário Antônio José Borja de Sant´Ana já adulta, com aproximadamente vinte e dois anos, no dia 30 de setembro de 1846131, e seus padrinhos foram Antônio e Libânia132, escravos de Jozé Gomes Porto133, os mesmos que escolheu dois anos depois para seus filhos gêmeos. Neste mesmo ano, de 1846, quatro dias depois, Maria voltou à pia batismal e o vigário deixou assim registrado: “Aos quatro dias do mês de outubro de mil oitocentos e quarenta e seis, batizei e lancei os santos óleos a João, nascido a 130. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 3 (1845-1850)., p. 63-63v. ACSM. 131. O final de setembro de 1846 foi agitado para o vigário Antônio José Borja de Sant’Anna, pois em três dias ele tornou membros da Igreja Católica, por meio do batismo, quarenta e quatro pessoas. Os assentos de batismo registram quatorze batizados para o dia 28 de setembro de 1846, vinte e um batizados para o dia 29 de setembro e nove para o dia trinta de setembro (Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. 27-35. ACSM). 132. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. 35, ACSM. Libânia foi alforriada por Jozé Gomes Porto em junho de 1846, com 45 anos, por ter lhe servido e criado os seus filhos. Entretanto, sua alforria era condicional à morte de Luzia Francisca de Almeida, mulher de Porto. Sua carta de alforria pode ser vista em: https://secweb.procergs.com.br/aap/ ObtemDadosServlet?metodo=verArquivoPDF&NRO_INT_DOCUMENTO=738431. 133. Para apresentar Jozé Gomes Porto, vamos recorrer à descrição de Luiz de Oliveira Bello, que em campanha para deputado, viajou pelo interior da Província e registrou suas andanças em um diário. Era o dia 19 de agosto de 1856 e o candidato assim escreveu: “(...) caminhando mais quatro léguas, cheguei à Freguesia de Santa Maria ao meio-dia, e hospedei-me em casa do Sr. José Gomes Porto, Subdelegado da Freguesia, velho de 60 e tantos anos, pai do Coronel Portinho e de numerosa família’’ (MARCHIORI; NOAL FILHO, 2008, p. 44). O velho Gomes Porto nasceu em Cachoeira do Sul e tinha o posto de tenente da Guarda Nacional. O Coronel Portinho, seu filho, passou grande parte de sua vida em Cruz Alta, participou da Guerra dos Farrapos e da Guerra do Paraguai, alcançou o posto de brigadeiro e recebeu o título de Barão de Cruz Alta.


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treze de maio do dito ano, filho natural de Maria, de Nação, escrava de Gabriel Haeffner. Padrinhos: João Soares de Oliveira e Carolina Francisca de Almeida”134. Maria estava batizando o seu filho, João, quatro dias depois de ter sido batizada. Provavelmente, o sacerdote não quis batizar seu filho sem a certeza de que a mãe, africana, também tivesse recebido o sacramento. Isso leva a crer que fazia pouco tempo que Maria estava no Brasil, pois ainda não tinha sido batizada ou não se tinha conhecimento de seu batismo. Maria havia percorrido um longo caminho, foi capturada em alguma nação ou aldeia africana, enfrentou e sobreviveu à longa viagem nos navios tumbeiros até um dos portos do Brasil, provavelmente Rio de Janeiro, Recife ou Salvador. De lá, mais uma viagem pela costa do Brasil até o Rio Grande do Sul. E, por último, a viagem até o centro da província, onde o seu futuro como cativa a aguardava em uma família de imigrantes alemães. Se não fazia muito tempo que estava no Brasil, poderia ter saído grávida da África ou ter engravidado no sofrido trajeto até Santa Maria135. Em sua nova realidade, parece ter tido uma relação afetiva estável, pois além de João, Antônio e Adão teve pelo menos mais dois filhos, Paulo, nascido em 1849136 e Manoel, que nasceu em 1852137. Foram cinco filhos homens. O pai dos gêmeos era o africano Manoel, também escravo de Gabriel Haeffner138. Como o último filho de Maria recebeu o nome de Manoel, provavelmente em homenagem ao pai, são indícios de tratar-se de uma estabilidade afetiva e uma relação consensual entre os africanos Maria e Manoel. Os padrinhos de Manoel, último filho de Maria, foram Domingos e Maria, ambos apenas identificados no assento de batismo como libertos. Coincidentemente a “Revista Comemorativa do Primeiro Centenário da Cidade de Santa Maria”, de 1914, publicou uma foto de um casal negro chamado Domingos e Maria, com a legenda “um casal com mais de cem anos”, como pode ser visto a seguir. Não há nenhuma informação sobre eles na “Revista”, apenas a fotografia. O batizado de Manoel foi realizado em 1852 e a foto publicada em 1914, ou seja, 62 anos depois. Como a foto indica a longevidade do casal, parece plausível tratar-se das mesmas pessoas139. Sendo ou não os padrinhos de Manoel, a foto retrata um casal com idade bastante avançada que viveu o mundo da escravidão e da liberdade, e que estavam vivendo em uma casa de “pau a pique” na periferia da cidade ou 134. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. p. 35. ACSM. 135. Sobre o tráfico de escravos para o Rio Grande do Sul, ver: BERUTE, 2006. 136. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. 139v. ACSM. 137. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria Livro de Batismo n. 4 (1851-1864), p. 31v.-32. ACSM. 138. Encontramos o nome do pai dos gêmeos no assento do segundo casamento de Adão, realizado em 1920. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Casamento n. 8 (1901-1923), p. 245v. ACSM. 139. Além de Domingos e Maria, os editores da “Revista” publicaram outras fotos de indivíduos negros, porém diferentemente dos personagens da elite política, religiosa e militar, não há qualquer informação sobre eles. Inclusive, as fotos estão numa seção chamada “Fábricas Diversas” e estão dispostas aleatoriamente, sem nenhuma relação com o conteúdo exposto no texto.


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em terras de algum proprietário. Diferente dos personagens da elite política e militar de Santa Maria, nada foi dito sobre eles na “Revista”. Imagem 7 – Domingos e Maria dos Santos

Fonte: Revista Comemorativa do Primeiro Centenário da Cidade de Santa Maria, não paginada.

Para compreender melhor o cenário em que viveram esses escravos, recorremos às memórias de João Daudt Filho140, que confrontaremos com outros 140. Priscila Musquim Alcântara de Oliveira (2012) analisou em sua dissertação de mestrado a trajetória política do engenheiro Yêddo Fiuza, sobrinho de João Daudt Filho. Em seu texto, traçou um perfil histórico de Daudt Filho, que chamou de o “farmacêutico patriarca”. Da sua dissertação, extraímos o resumo que segue: João Daudt Filho viveu noventa anos. Nasceu em 1858, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Cursou a Faculdade de Farmácia do Rio de Janeiro. Depois de formado, voltou para a cidade natal e iniciou uma próspera carreira como empresário do ramo farmacêutico. Daudt Filho vivenciou os anos finais do Império e o embate entre Monarquistas e Republicanos, a proclamação da República, a ascensão de Vargas, o Estado Novo e a redemocratização de 1945. Manteve relações de amizade com pessoas de vários desses grupos, muitas vezes, até com representantes de grupos rivais, como o republicano Júlio de Castilhos e o liberal Gaspar Silveira Martins. Embora sua família não participasse da elite política gaúcha, e tampouco o próprio Daudt Filho tenha exercido algum cargo político, o farmacêutico conviveu e teve em seu círculo de amizades lideranças políticas, além de Júlio de Castilhos e Gaspar Silveira Martins, já citados anteriormente, o republicano Francisco de Assis Brasil, o ex-presidente Getúlio Vargas e, em especial, o ex-ministro da Educação e Saúde do governo Vargas,


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documentos. Daudt Filho nasceu em 20 de junho de 1858, poucos dias após a emancipação política de Santa Maria da Boca do Monte (que ocorreu no dia 17 de maio de 1858). O neto de Gabriel Haeffner conviveu com os escravos do avô, do seu tio Nicolau Becker, de seu pai João Daudt e de tantos outros. Conviveu com Maria, Manoel, os gêmeos Adão e Antônio e seus outros irmãos.

5.1 A ESCRAVIDÃO EM SANTA MARIA DA BOCA DO MONTE NAS MEMÓRIAS DE JOÃO DAUDT FILHO São muitas as reflexões que podem ser feitas sobre a atuação e o papel dos memorialistas e seu uso como fonte histórica. No entanto, não se pode negar a importância que esses indivíduos tiveram na preservação da memória local141. É graças a preocupação e a dedicação desses indivíduos, que temos resgatadas e produzidas a história de muitas cidades e regiões, onde os historiadores acadêmicos chegaram tardiamente (e em alguns lugares ainda não chegaram). Beatriz Weber (2013, p. 09-17) lembrou que a diferença de chamá-los de memorialistas - e não historiadores - pois tem a função de preservar o material organizado por esses autores, destacando-os como “fontes” a serem estudadas e não como obras históricas a serem usadas como referências sobre as cidades. Essa diferença não desqualifica o mineiro Gustavo Capanema. Daudt Filho, nos tempos de ginasial, foi colega de turma de Júlio de Castilhos, ex-presidente do Rio Grande do Sul e um dos principais colaboradores do texto da Constituição de 1891. Chegou a passar as férias na Estância da Reserva, propriedade da família Castilhos no então município de Vila Rica. A amizade continuou na vida adulta e a convite de Castilhos, Daudt Filho passou um mês em São Paulo, na república estudantil que o amigo dividia com Francisco de Assis Brasil, Joaquim Pereira da Costa e Eduardo Lira. Com relação aos liberais, a ligação de Daudt Filho era bem mais próxima. Seu cunhado, Felipe Alves de Oliveira, pai de Isaura, Felipe e João Daudt d’Oliveira, era delegado de Santa Maria e integrava as fileiras do Partido Liberal. Além disso, pesava o fato de que João Daudt, pai de Daudt Filho, era amigo do deputado liberal gaúcho, Gaspar Silveira Martins. Em agosto de 1890, Felipe Alves de Oliveira, delegado da cidade, cunhado de Daudt Filho, foi assassinado por vingança política. O assassinato pode ser considerado um divisor de águas para a família Daudt. Buscando mais segurança, João Daudt Filho mudou-se para Porto Alegre, onde se consolidou como empresário. Montou a Farmácia Daudt e seu principal produto, a Pomada Boro-Borácica, garantiu-lhe lucros expressivos. Em 1894, Daudt Filho, Alfredo Leal e Valença Appel criam a União Farmacêutica de Porto Alegre, cujos estatutos previam a criação de uma escola livre de Farmácia, o que ocorreu no ano seguinte. Da Escola de Farmácia, constituiu-se, em 1898, a Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Na capital gaúcha, Daudt Filho conheceu e casou-se com Haydée Vinhas Lopes, neta de João Simões Lopes, o visconde da Graça, vice-presidente da província do Rio Grande do Sul. Por indicação de um tio da esposa, assumiu a gerência da Companhia de Gás. Em 1912, mudou-se para o Rio de Janeiro. Lá, já havia inaugurado um laboratório e uma farmácia. Com os sobrinhos João e Felipe, inaugurou a firma Daudt, Oliveira e Cia, em 1917. O laboratório Daudt garantiu a prosperidade financeira e a consolidação da família no ramo empresarial (p. 28-31). 141. Santa Maria tem dois textos clássicos produzidos por memorialistas: “História do Município de Santa Maria” de João Belém, publicada em 1933 e “Cronologia Histórica de Santa Maria e do Extinto Município de São Martinho” de Romeu Beltrão, publicada em 1958, oriundos de uma série de artigos que o autor escreveu para o jornal “A Razão”, entre os anos de 1951 e 1952. Além desses dois autores, merece referência a atuação de Edmundo Cardoso na preservação de memória da cidade. Embora tenha publicado a “História da Comarca de Santa Maria – 1878-1978” sua contribuição está na preservação de jornais, revistas, fotografias, mapas, cartas, e filmes que se constitui em um importante acervo para pesquisas, aberto para a comunidade e disponibilizados por meio da “Casa de Memória Edmundo Cardoso”, instituição fundada por sua família, após a sua morte em 2002.


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esses pesquisadores e suas obras, mas os situa em um determinado contexto histórico, de ausência de cursos superiores de formação de historiadores. O livro de Daudt Filho é o que o título indica: memórias. Nele, recorda fatos de sua infância, sua trajetória escolar, a amizade com Júlio de Castilhos, a mudança para São Leopoldo e depois para Porto Alegre para aprimorar seus estudos, a estadia no Rio de Janeiro para fazer o curso de Farmácia, seu retorno a Santa Maria e o início da carreira profissional, suas relações políticas, a sua versão sobre o assassinato do cunhado Felipe Alves de Oliveira142, a participação na fundação da Faculdade de Medicina e Farmácia de Porto Alegre e sua trajetória como empresário. Seu livro de memórias é uma autobiografia, onde procura estabelecer uma sequência cronológica dos acontecimentos, embora não tenha muitas preocupações em datar os fatos que relata. A sua obra transita por dois temas que foram tratados com desconfiança e em certos casos com desprezo e incredulidade por alguns historiadores, mas são indissociáveis: as memórias e as (auto) biografias. Pierre Nora estabeleceu as diferenças entre memória e história, e para não perder o seu carácter quase poético, reproduzimos a seguir: A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, neste sentido ela está em permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A história, porque operação laicizante, demanda análise e discurso crítico (NORA, 1993, p. 9).

Os diferentes elementos da memória são explorados por Nora, e algumas dessas características queremos destacar. A primeira característica é que a memória é seletiva, ou seja, marcada pela “dialética da lembrança e do esquecimento”. E num texto ou livro de memórias, essa seleção é ainda mais complexa, pois a seleção é exercida duplamente. A primeira é mais natural, mais biológica/psicológica e é marcada pelas imprecisões, pela deformação, pelas manipulações, pelas projeções e pelas transformações que o indivíduo não controla. O italiano Alessandro Portelli (1997, p. 16) entende que “a memória é um processo individual, que ocorre em 142. O Juiz Municipal e de Órfãos de Santa Maria, Felipe Alves de Oliveira, foi assassinado a tiros em 12 de agosto de 1891, no centro da cidade, sendo condenado como mandante o Coronel da Guarda Nacional, o republicano Martins Höehr.


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um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados”. Já Maurice Halbwachs (2003), apontou que a memória não é somente um fenômeno individual, mas é influenciada e construída coletivamente. Se é construída coletivamente, a memória de um indivíduo diz muito sobre o grupo e a coletividade que pertenceu e onde viveu. Outro ponto fundamental é a influência do presente na organização da memória, presente na reflexão de Pierre Nora e que também foi desenvolvida por Michael Pollak. A memória é um elo do presente com o passado e sofre as influências, as preocupações pessoais e políticas do momento em que está sendo articulada. Ela é um “fenômeno construído”, na expressão de Pollak (1992, p. 2004). Se a memória é construída individual e coletivamente, Pollak concluiu que existe uma estreita relação entre ela e o sentimento de identidade (tomado no seu sentido mais superficial). Esse sentimento de identidade é “o sentido da imagem de si, para si e para os outros. (...) A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com os outros” (p. 204). Aqui chegamos ao segundo ponto do processo de seleção em que passa uma autobiografia: a imagem de si que deve ser escrita para o conhecimento dos outros, como quer ser percebida pelos outros. Daudt Filho, ao escrever suas memórias, não o fez de maneira inocente, nem para falar mal de si mesmo, nem de sua família. Escreveu a partir de seu presente, de sua experiência de mais de 75 anos (ele nasceu em 1858 e a primeira edição é de 1936) e, talvez, se sentisse como um “guardião da memória familiar” (BARROS, 1989). Escreveu porque julgava que sua história e de sua família era digna de registro (BOURDIEU, 1996; LEVI, 1996). Embora não tenha se dedicado à literatura, Daudt Filho conviveu com escritores, poetas e jornalistas, como podemos ver na foto da próxima página, que podem tê-lo influenciado na decisão de registrar suas lembranças. Diante das características e da forma como a memória é produzida, qual é o papel do historiador? Na citação que utilizamos de Pierre Nora, ele termina dizendo que a história demanda análise e discurso crítico. É por meio da utilização desses dois fundamentos que Nora (1993, p. 9) também escreveu “a memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é destruí-la (...)”. Da mesma forma, Marcia Motta (2012, p. 29) considerou que é “tarefa do historiador a deslegitimação de memórias”. A memória pode ser destruída e deslegitimada pelo historiador, mas também pode ser seu objeto de estudo ou mesmo promover um diálogo entre memória e história, como fez Rodrigo de Azevedo Weimer (2013).


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Imagem 8 – João Daudt Filho no Rio de Janeiro

Sentados: Carlos Drummond de Andrade, Ovídio Chaves, João Daudt Filho, Graciliano Ramos, Augusto Meyer. Em pé: Samuel Lima Rocha, Álvaro Moreyra, Paulo Godoy. S/data143.

Além da análise das recordações, os historiadores têm outra importante tarefa que é a de se tornarem os “guardiões dos fatos incômodos”, na expressão de Peter Burke (1992, p. 251). Assim como existem as memórias, também existem as amnésias. Então, os historiadores analisam o que é lembrado e trazem à lembrança o que é esquecido. É isso que pretendemos fazer com as “Memórias” de João Daudt Filho, principalmente de sua infância e juventude, quando conviveu com o mundo da escravidão. Então, vamos confrontar suas lembranças e esquecimentos com outros documentos históricos. Por meio dos relatos de João Daudt Filho, podemos conhecer alguns aspectos do cotidiano de Santa Maria, as relações sociais e étnicas nela estabelecida e o convívio com o escravismo. Ele iniciou o seu livro de memórias relatando a trajetória de seus descendentes, a mudança do avô Gabriel Haeffner de São Leopoldo para Santa Maria e sua retirada para Rio Pardo diante da violência da Guerra Civil Farroupilha. Uma das preocupações e medo dos moradores encontrava-se nos arredores da cidade. Eis o seu relato:

143. Foto extraída de: http://www.elfikurten.com.br/2013/07/graciliano-ramos.html <acesso em 10/07/2015>


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Muitas vezes, ouvi do meu avô a narração de cenas horríveis praticadas por salteadores das casas de negócios. Contava ele que, nos matos que rodeavam Santa Maria, havia malocas de ladrões, de onde partiam bandidos que, repentinamente atacavam a cidade, carregando o roubo na garupa. Lembro-me agora que, ao fazer um passeio com meu avô ao Pinhal, ele apontou umas grotas profundas à margem da Picada dizendo: - Ali era o quilombo dos caiambolas, nome dado aos escravos fugidos. Numa dessas sortidas, o trunfo saiu às avessas aos salteadores. Quatro bandidos atacavam a casa de negócio de João Niederauer. Um sobrinho desse negociante, Frederico Crespo, que conheci, de dentro do balcão, alvejou os atacantes matando dois e ferindo o outro gravemente. O quarto companheiro era uma china, que havia ficado a cavalo do lado de fora. Vendo o que sucedera aos companheiros, fugiu a toda, rua abaixo, levando o que contar ao resto da quadrilha (DAUDT FILHO, 2003, p. 22)144.

Está evidente, no relato acima, a associação da existência de um quilombo nos arredores de Santa Maria com os ataques sofridos no povoado. Os matos que circundavam o povoado e a encosta da serra eram locais propícios para a fuga e o esconderijo. José Iran Ribeiro (2010, p. 230-231) demonstrou que a localidade estava sofrendo o ataque de indivíduos que se escondiam nos matos da região desde a Guerra da Cisplatina (1825-1828). Também muitos desertores das tropas brasileiras se valiam dos matos para viverem escondidos e os que não conseguiam, na região, roubavam da população. O que corrobora com as lembranças de Daudt Filho é um documento apresentado por Iran Ribeiro (2010, p. 238) da descoberta de um quilombo em 1842. Trata-se de uma correspondência do Tenente-Coronel Rodrigo A. da Silva denunciando que haviam sido “agarrados dois negros armados e por eles foi informado haver um quilombo de mais de cem indivíduos de todas as classes: brancos, mulatos, negros, índios e parte desses desertores”145. No relato de Daudt, todos os que viviam nos matos ao redor do povoado eram ladrões e salteadores. No meio de sua descrição, mencionou a existência dos caiambolas e logo a seguir o assalto aos Niederauer, fazendo uma associação entre eles ou pelos menos usando os dois exemplos para caracterizar o sentimento de insegurança local. O documento apresentado por Iran Ribeiro demonstra que os matos eram procurados por uma variedade de indivíduos que procuraram se organizar e se proteger. A presença de negros fugidos nos matos que circundavam Santa Maria pode ser atestada por outros documentos, como o assento de batismo realizado pelo vigário Antônio Gomes Coelho do Valle, do preto Alfredo: 144. As palavras em itálicos são originais do texto. Na versão de Astrogildo de Azevedo, “eram 3 caboclos e uma china, guedelhudos, maltrapilhos, armados até os dentes”. AZEVEDO, 1914, [não paginado]. 145. A fonte original se encontra no Arquivo Nacional, Série Guerra, IG 280, passo dos ferreiros, 27/03/1842, tenente-coronel Rodrigo A. da Silva ao brigadeiro ajudante general, conforme nota 186 do autor.


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Aos dezenove dias do mês de janeiro de mil oitocentos e cinquenta e cinco anos, na Fazenda de Manoel de Bitencourt, desta Freguesia de Santa Maria da Boca do Monte, batizei e pus os santos óleos ao preto da Costa forro Alfredo com mais de cinquenta anos de idade (…) agarrado nos matos do [rio] Vacacay Grande onde andava há muitos anos. Foram padrinhos: Joaquim da Costa Pavão e sua mulher Dona Josefina Amália Ferreira Pavão (...)146.

Uma das importantes lendas do Rio Grande do Sul é a do Pai Quati, que retrata a vida de um negro nos matos de Santa Maria. Diz a lenda, que em meados do século XIX, um fato curioso chamava a atenção dos moradores dos Banhados, no segundo distrito de Santa Maria, pois apareciam, seguidamente, objetos feitos de cipó ou taquara nas estâncias da região, como balaios e esteiras novas. Da mesma forma, desapareciam ferramentas, charque ou pequenos animais. No início, causou estranheza, pois associavam os objetos como arte do diabo ou ao feitiço dos negros escravizados. Com o passar do tempo, as suspeitas foram desaparecendo, chegando ao ponto de pessoas deixarem objetos ou mesmo galinhas amarradas em frente de suas casas na esperança de vê-las trocadas por balaios ou esteiras. Essas transações ocorreram durante anos e tornaram-se um hábito comum. Certo dia, escravos [de Joaquim da Costa Pavão] que andavam à procura de mel, a uns dois quilômetros mais ou menos da casa da estância, perceberam sinais de fumaça no meio da floresta e avistaram um negro que estava preparando um assado. Os sujeitos resolveram capturar o desconhecido, que era, naturalmente, um negro fugido. Cobria-lhe o peito e as costas uma couraça de pele de quati. Levaram para a estância e logo o chamaram de Pai Quati, em razão de sua indumentária, mas não conseguiam se comunicar, pois ele não falava a língua portuguesa. Então, chamaram alguns pretos nascidos na África e um deles conseguiu se entender com Pai Quati [eram ambos nascidos em Moçambique] e sua história foi revelada. Ele havia chegado a Rio Pardo com um grupo de negros para serem vendidos em leilão, mas conseguiu fugir e foi se escondendo na mata até se estabelecer próximo a Santa Maria, onde construiu uma choupana. Como não queria roubar, trocava seus artesanatos por objetos e alimentos de que necessitava. A história desse africano percorreu a região e todos queriam conhecê-lo. Livre, foi convencido de que não seria escravizado e começou a trabalhar como peão, ora em uma estância, ora em outra, pois seguidamente abandonava tudo para ir novamente viver no mato caçando quati. Morreu velho, passando a maior parte de seus dias, sozinho, no meio do mato147. 146. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 4 (1851-1864), p. 80v.-81. ACSM. 147. Resumo baseado em: BELÉM, 2000, p. 297-299. Para o autor, isso que parece uma lenda, é um fato verídico, confirmado pelo assento de batismo do Pai Quati. Deixei entre colchetes informações apresentadas pelo autor que carecem de fonte.


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Teria sido mesmo o preto Alfredo, preso nos matos e batizado aos cinquenta e cinco anos, o famoso e lendário Pai Quati? Talvez nunca saibamos. Mas, as encostas da serra e sua mata virgem eram locais propícios para o esconderijo de negros, desertores e chinas, como a que fugiu do episódio do assalto aos Niederauer. Quando o velho Gabriel contava histórias ao seu neto João Daudt sobre os arredores da cidade, ele estava falando de uma realidade que preocupava a população, principalmente os comerciantes. No entanto, nas matas da encosta da serra, também viviam muitos lavradores nacionais, produzindo alimentos para sua subsistência ou para abastecer a cidade148. Uma vez percorridos os matos da região, voltamos ao centro do povoado e as memórias de Daudt, principalmente de sua infância, onde conviveu com nossos principais personagens. Vejamos o que relatou sobre seus primeiros anos de vida: Minha Mãe Preta era uma negra africana, alta, esguia, robusta, seios volumosos transbordando de seiva sadia, tão abundante que, muitas vezes, me engasgava. Por isso, ela dizia: - Mo fio tem guela pretada. Tinha quatro lanhos feitos a fogo em cada face, marca de sua tribo, que lhe davam aspecto felino. Seu carinho por mim era verdadeiramente maternal, mais intenso do que dava à própria filha, a Pitoca, minha irmã de leite. Era tão grande o seu afeto que, de cada vez que me encontrava, mesmo depois de eu grande, quando passava muito tempo sem me ver, levantava-me nos braços robustos, cobrindo-me de beijos, chorando e exclamando: - Mo fio mimoso, eu tava com tanta sodade de ti! De vez em quando, me pedia uns cobres, para comprar um naco de ogomo (fumo de mascar) e tomar um trago do oti (cachaça): - Mi dá uns vintém. Mãe preta era cativa de meu tio Nicolau, enchendo-lhe a casa de filhos e netos. Depois que a áurea lei de 13 de maio quebrou os grilhões da escravatura, juntou-se com pai Miguel, e os dois, já velhos, foram aos Deus dará, lutar pela vida. Adquiriram algum pecúlio e resolveram rever as terras longínquas do seu nascimento. […] Provavelmente, morreu na miséria, ausente dos filhos, nos confins da África (DAUDT FILHO, 2003, p. 41).

Essa citação permite uma série de outras reflexões sobre a relação entre senhores e escravos, mas quero me concentrar no cotidiano dos sujeitos escravizados dessas famílias alemãs ou descendentes de alemães. A mãe preta era uma escrava que pertencia a Nicolau Becker e tinha uma filha pequena que satisfazia a necessidade de seu concunhado João Daudt, que precisava de uma ama de leite. A relação cotidiana e afetiva dessas escravas com os filhos dos senhores é um tema muito significativo e importante da vida privada dessas famílias. 148. Segundo Luís Augusto Farinatti (2009), as extensões das posses desses lavradores nacionais eram bastante variáveis, mas bem menores que os latifúndios pastoris. De acordo com sua pesquisa, mais de 50% das terras tinham entre 50 e 300 hectares e algumas outras não passavam dos 30 hectares. A mão de obra principal era a familiar, mas, sempre que possível, os lavradores locais buscavam contar com o trabalho escravo (a maioria contava com menos de 5 cativos).


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As mães pretas foram alvo de muita atenção de Gilberto Freyre (2006), no clássico “Casa Grande e Senzala”, pois seriam elas uma das principais responsáveis pela formação de uma cultura mestiça no Brasil. Para Freyre, essas mulheres negras influenciaram na linguagem das crianças, ensinando as primeiras palavras e adocicando a língua portuguesa; no imaginário, com as histórias de seres fantásticos e temíveis; na religião, com as primeiras orações e simpatias para a proteção espiritual e também no cuidado com o corpo, por meio da higiene; além de nutri-los com o próprio leite. A mãe preta era a chave para a mestiçagem e para a compreensão da suposta “democracia racial”, pois era a ligação mais íntima entre a senzala e a casa-grande e o símbolo da doçura nas relações entre os senhores e seus escravos domésticos. Nas palavras do próprio Freyre: A casa-grande fazia subir da senzala para os serviços mais íntimos e delicados dos senhores uma série de indivíduos – amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos, mas o de pessoas da casa [...]. Quanto às mães pretas, referem às tradições o lugar verdadeiramente de honra que ficavam ocupando nos seios das famílias patriarcais (FREIRE, 2006, p 425).

A mãe preta descrita por Daudt poderia ser o retrato, o símbolo e a comprovação de que Gilberto Freyre tinha razão. Ela era doce, afetuosa, submissa ao ponto de ser mais carinhosa com o sobrinho do seu senhor do que com a própria filha. Eram as justificativas ideológicas usadas pelos senhores para camuflar a violência do sistema escravista e os preconceitos raciais no Brasil. Bem! Foi a partir dos filhos que começaram as críticas sobre a visão freyriana da mãe preta e, consequentemente, de sua concepção de sistema escravista. Um dos principais contrapontos veio de Sônia Maria Giacomini e Elizabeth Karam Corrêa Magalhães (1983, p. 7388) ao denunciar que “a mãe preta foi a mãe da criança branca e não de seu filho preto”149. Com isso, levantaram temas como o da negação da maternidade negra, da separação das crianças escravas de suas mães, o abandono dos moleques na roda dos expostos e o uso da “mercadoria escrava-leiteira”. Essas autoras eram depositárias de uma tradição que fazia duras críticas à visão das relações escravistas defendidas por Gilberto Freyre, iniciadas por Florestan Fernandes e sua “Escola de Sociologia Paulista”150. Essa corrente de pensamento, no propósito de desfazer o mito da democracia racial, mostrar a violência e a opressão do sistema escravista e demostrar as desigualdades existentes entre brancos e negros na sociedade paulista, acabou “coisificando” os escravos. Nas palavras de Florestan Fernandes (2008, p. 112): “Nas relações 149. Ver também: GIACOMINI, 1988. 150. Dela fazia parte os alunos de Florestan, dentre eles Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso.


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sociais, o escravo estava para o senhor, ou os familiares e dependentes brancos dele, na mesma posição que uma ‘coisa’ está para seu ‘dono’”151. Na visão desses intelectuais, o caráter violento da escravidão mutilou os negros intelectual, moral, social e economicamente e os despojou da capacidade de competir com os brancos na disputa por emprego, educação e sustento152. Nesse mesmo período, e de forma conectada com essas análises sociológicas, desenvolvia-se uma historiografia que também contrapunha as conclusões de Gilberto Freyre e reafirmava a violência da escravidão, mas centrava suas análises na resistência dos escravizados contra o regime opressor, numa autêntica luta de classes. Em contraposição à mãe preta, submissa, a referência passava a ser Zumbi, o herói guerreiro153. A partir da década de 1980, uma nova perspectiva analítica começou a abordar os escravos como sujeitos que resistiam ao sistema, mas também negociavam, buscavam alternativas, adaptavam-se a determinadas situações. Eram sujeitos que atuavam diretamente sobre a realidade em que viviam154. Nesta nova realidade historiográfica, a mãe preta foi reabilitada e tornou-se novamente tema de pesquisa dos historiadores155. Sob essa nova perspectiva, é possível rever a afirmação de que a mãe preta de Daudt era o exemplo ou o retrato da submissão. Ela sabia aproveitar a sua condição e a relação que estabeleceu com o autor e sua família e sua capacidade de negociação pode ser expressa na atitude de pedir “mi dá uns vintém”. Uma vez feitas tais observações, vamos conhecer um pouco quem era essa mulher? A mãe preta de Daudt se chamava Maria. Ela foi batizada com aproximadamente 15 anos de idade, no dia 09 de novembro de 1849, e seus padrinhos foram dois libertos, identificados apenas como Paulo e Eva156. Era uma jovem africana, cuja origem foi simplificada no assento de batismo como sendo de “Nação da Costa”. No entanto, Daudt deixa pistas de sua origem. As palavras oti (ou otin) e ogomo são de origem yorubá (ou nagô como eram conhecidos no Brasil), assim como o costume de fazer cicatrizes no rosto, os “quatro lanhos feitos a fogo em cada face” mencionados pelo autor. Com isso, podemos concluir que Maria era originária da África Ocidental, da área florestal do Golfo da Guiné, onde hoje se localizam a Nigéria, o Benin e Togo e provavelmente foi embarcada em algum dos portos da baía de Benin157. 151. Ver também: FERNANDES, 1978. 152. Para um contraponto e um questionamento das teses de Florestam Fernandes ver: ANDREWS, 1998. 153. Ver as obras de Luis Luna (1968), José Alípio Goulart (1972), Jocob Gorender (1978; 1990), Décio Freitas (1984) e Mário Maestri (1979; 1993; 1998). 154. Esta nova abordagem começou com os estudos de João José Reis e Eduardo Silva (1989), Sidney Chalhoub (1990), Robert Slenes (1999), entre outros. 155. Apenas como exemplo: ALENCASTRO, 1997; DEIAB, 2006; NASCIMENTO, 2006; CARNEIRO, 2006. 156. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. 139v-140. ACSM. 157. “Alguns falantes de yorubá partiram da África por portos da Baía Ocidental de Biafra, como Rio


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Na sua cerimônia de introdução ao mundo cristão, a jovem Maria estava acompanhada de outra africana, Maria, a mãe dos gêmeos Adão e Antônio, que estava levando à pia batismal, o seu filho Paulo. Os padrinhos também foram Paulo e Eva158. Parece ter havido uma cumplicidade muito grande entre Gabriel Haeffner e seus genros e entre eles próprios. Essa cerimônia religiosa foi aproveitada para batizar escravos do velho Haeffner e do seu genro Nicolau Becker. Da mesma forma, lembramos que quem irá amamentar o filho de João Daudt será a escrava de Nicolau Becker, que estava sendo batizada. O ambiente familiar permitia que os escravos tivessem relações mais ampliadas, que iam além do ambiente circunscrito da casa. As relações afetivas e consensuais também aí se estabeleciam e se tornavam permanentes, apesar de não oficializadas por meio do casamento religioso. Por outro lado, esses contatos também poderiam permitir o encontro de novos parceiros sexuais e a constituição de relações circunstâncias. Isso talvez explique os cinco filhos identificados da escrava Maria, de Gabriel Haeffner, e o fato de Maria, a mãe preta de João Daudt, ter enchido a casa do tio Nicolau de filhos e netos. Os assentos de batismo ratificam as memórias de Daudt sobre a prole da escrava Maria. A maternidade da africana começou com quinze anos, pois quando foi batizada, em novembro de 1849, já estava grávida de Benedita, que nasceu quase cinco meses depois, em 04 de março de 1850, e seu batismo realizado em 24 de junho do mesmo ano. Além de Benedita, Maria teve mais seis filhos: Luiza, nascida em 1856 e Rita, nascida em 15 de dezembro de 1857. Foi o nascimento de Rita, que recebeu a alcunha de Pitoca, que deu condições para que Maria fosse a ama de leite de Daudt Filho, que nasceu seis meses depois. Em 1860, nasceu Rosa, em 1865, Martha, em 1867, Sérgio e finalmente nasceu Hilário159, em 1873, já beneficiado com a Lei do Ventre Livre. E os netos de Maria mencionados por Daudt? Identificamos quatro deles: Elvira, nasceu em 1872 e era filha de Luiza; Nestor, nasceu em 1874, filho de Rita, a irmã de leite de nosso autor; Thereza, nascida em 1880, e Rita, nascida em 1882, eram filhas de Rosa160. Todos nascidos após a lei de 1871. Maria já era avó de Elvira quando nasceu Hilário, seu último filho. É provável que com essa quantidade Brass e Bonny, mas a grande maioria embarcou em portos localizados na Baía de Benin. A Baía de Benin é considerada aqui como abrangendo desde a costa do Rio Volta até o Rio Nun. O tráfico de escravos nas costas da África Ocidental e Centro-Ocidental foi sempre dominado por poucos pontos de embarque” (ELTIS, 2006, p. 273). Uma análise sobre a construção de uma identidade yorubá pode ser vista em: OLIVA, 2005, p. 141-179. 158. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. 139v, ACSM. 159. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. 171; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864) Suplementar, p. 44; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864) Suplementar, p. 60v; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864) Suplementar, p. 83; Livro de Batismo n. 7 (1864-1869), p. 8; Livro de Batismo - Filhos de Mulher Escrava (1871-1887), p. 08v. ACSM. 160. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo - Filhos de Mulher Escrava (1871-1887), p. 08v., 18v., 57v.-58, 67v.-70. ACSM.


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de filhos e netos a ama de leite de Daudt Filho não tenha voltado para África, mas desapareceu dos olhos e alcances da ex-família senhorial. A ideia de um fim pobre na África era mais uma demonstração de mágoa (e traição) da ex-família senhorial com o afastamento dos ex-escravos, do que reflexo da certeza de que ele tinha do destino de sua mãe preta. Outra escrava importante deste círculo de relações era Matildes, ora classificada como parda, ora como mulata, também cativa de Nicolau Becker. Matildes devia ter sido uma das primeiras escravas adquiridas por Nicolau. Ele chegou a Santa Maria em 1843 e, dois anos depois, em 1845, Matildes estava levando à pia batismal, para ser batizado, o seu filho Jozé, e ela já era identificada como escrava desse senhor. Matildes colaborou para o aumento do número de indivíduos escravizados por este imigrante alemão, pois além de Jozé, teve ainda Emília (1848), Fermino (1849?) Delfina (1850) e Elizia (1854)161. Matildes deve ter tido um papel importante na adaptação de outros escravos que chegavam à família Becker ou mesmo dos escravos das famílias Haeffner e Daudt, as três unidas pelos laços do matrimônio das filhas do velho Gabriel Haeffner. Seu papel foi mais decisivo na adaptação das cativas africanas, como das duas Marias, a mãe dos gêmeos e a mãe preta, pois já estava na casa há mais tempo e conhecia o sistema da família. Sua importância foi reconhecida na medida em que ambas escolheram Matildes como madrinha de seus filhos. Maria, escrava de Gabriel, escolheu-a como madrinha de Antônio, um dos gêmeos. A outra Maria, sua companheira de cativeiro, entregou-lhe a sua filha Rita, a Pitoca, para ser sua afilhada. Ela também foi acionada para ser madrinha de escravos de outros senhores, tanto de alemães e seus descendentes como de nacionais, o que permite afirmar que ela tinha certa mobilidade e estabelece uma respeitabilidade entre os cativos. Temos a seguinte situação: Maria, a mãe preta, era escrava dos Becker, mas amamentava o filho dos Daudt. Matildes era escrava dos Becker, mas amadrinhava filhos de escravos de Gabriel Haeffner, João Niederauer, André Beck, Salvador da Rosa Garcia e Julião José flores162, o que prova as múltiplas relações e redes que os escravos estabeleciam no interior das famílias alemãs e também com as famílias dos nacionais163.

161. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. 17v; Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. 81; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864), p. 12v; Livro de Batismo n. 3 (18451850), p. 170v-171; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864) Suplementar, p. 39, ACSM. . No seu assento de batismo de Fermino, realizado em 1851, consta apenas que tinha um ano e meio e como Delfina nasceu em 1850, tudo indica que ele nasceu em 1849. 162. Os assentos de batismo onde Matildes é madrinha se encontram em: Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 3 (1845-1850), p. 63-63v.; Livro de Batismo n. 4 (1851-1864) Suplementar, p. 30v., p. 41, p. 55v., 60v.; Livro de Batismo n. 7 (1864-1869), p. 7, p. 74; Livro de Batismo Escravos (1871-1887) p. 63-63v. ACSM. 163. Ver: GUTERRES, 2005; 2013.


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Matildes viveu longos anos na casa de Nicolau Becker. Daudt Filho se refere a ela como “a velha escrava Matilde”164. Lá, viu nascer seus filhos e netos. Uma terceira geração de escravos começava a se formar com o nascimento de suas netas, filhas de Emília: Januária, que nasceu em 1865 e Úrsula, em 1868165. Avó, filha e netas, todas pertencentes ainda a Nicolau Becker. A avó Matildes foi madrinha das duas netas com José, seu filho mais novo, também escravo de Nicolau Becker. A prole de Emília foi extensa, pois além das duas meninas nascidas cativas, ela teve mais seis filhos, nascidos de ventre livre: Ritta (1873), Prudêncio (1876), Raimunda (1879), Matilde (1880), Germano (1882) e Maria (1884)166. A pequena Úrsula foi alforriada em março de 1874, com o pagamento de quatrocentos mil réis, feita por uma comissão de cidadãos santamarienses que desejavam solenizar a passagem de um representante do governo167. Apesar de todos os trabalhos realizados por Matildes, seus filhos e agora seus netos, Nicolau ainda recebeu considerável quantia pela menina, classificada de parda e mulatinha168. Além da pequena Úrsula, são poucas as cartas de liberdade concedidas pelos senhores alemães ou descendentes em Santa Maria169. Recorremos novamente ao projeto do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, que catalogou milhares de cartas de alforria dos Tabelionatos de todo o Estado, e encontramos somente 11 casos envolvendo alemães e descendentes, demonstrados no quadro a seguir: 164. “Lembro-me de que meu querido xale foi dado à velha escrava Matilde, depois de já muito coçado e desbotado pelo uso. Fiz, por isso, tal berreiro de ciúme que a pobre velha ficou sem aquela preciosidade, que eu disputava com avareza” (DAUDT FILHO, 2003, p. 28). 165. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 7 (1864-1869), p. 7; Livro de Batismo n. 7 (1864-1869), p. 74, ACSM. 166. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo Escravos (1871-1887), p. 18, p. 29v., p. 47v., p. 58, p. 71, p. 77, ACSM. Identificamos outro neto de Matildes, Leonel, filho de Elizia, nascido em 1873. Ela também foi madrinha deste neto. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo - Filhos de Mulher Escrava (1871-1887), p. 11-11v.ACSM. 167. Carta de Liberdade disponível em: https://secweb.procergs.com. br/aap/ObtemDadosServlet?metodo=verArquivoPDF&NRO_INT_ DOCUMENTO=744567. <Acesso em 28 de dez. de 2013> 168. Letícia Batistella Guterres (2013) analisou as cartas de alforria registradas em Santa Maria entre os anos de 1858 e 1884 em sua tese de doutorado. Nos livros cartoriais, foram registradas 149 alforrias, que libertaram 153 cativos, e somadas as 31 alforrias encontradas pela autora em pia batismal, chegamos a soma de 184 indivíduos. Segundo a autora, em alguns anos da década de 1850, não houve cartas registradas: 1851, 1852, 1853, 1857. Nessa década, somaram-se apenas 15 cartas de alforria. Na pia batismal, anunciou-se a alforria de 14 inocentes. Na década de 1850, portanto, totalizaram-se 29 escravos libertos. Na década de 1860, houve 73 cartas registradas, já as alforrias em pia somaram apenas 17, tendo-se um total de 90 escravos alforriados. Na década de 1870, 56 cartas de alforria foram concedidas. Nenhum assento de batismo do ano de 1870 foi registrado com um inocente alforriado. Na década de 1880, apenas 9 casos registrados de alforrias concedidas. A partir do ano de 1885 em diante, não houve mais a localização de registros de alforria (p. 66-67). 169. Marcos Tramontini, na análise da escravidão na Colônia São Leopoldo, afirmou que a emissão de cartas de alforria era “uma prática insignificante dos ‘alemães’ se comparados aos dos ‘nacionais’”, (p. 15-16). Disponível em: http://cdn.fee.tche.br/jornadas/1/s5a3.pdf <Acesso em 08 de abr. de 2014>. Sobre as cartas de alforrias em zona de imigração ver também: ZUBARAN, 1994, p. 65-74; MOREIRA; MUGGE, 2014.


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Quadro 4 – Cartas de Alforria envolvendo senhores de origem alemã. Nome Senhor(a)

Nome Escravo

Cor/ Qualidade

Origem

Condição

Dat. Conc.

Francisco Weinmann e sua mulher Carolina Weinmann

Ana Maria Antônia

Preta

Mina

Pag. 1:600$

30/08/1862

José Alves Valença Junior e Maximiniano José Appel

Joaquina

Preta

Crioula

Sem condição

06/11/1864

Henrique Niederauer

Vicente

Pardo

Crioulo

Marchar para a guerra

24/12/1866

Felipe Beck

Adão

28

Crioulo

Marchar para a guerra

16/02/1867

Abraão Cassel Filho

João

28

Marchar para a guerra

18/02/1867

Pedro Cassel

Maria

40

Pag. 800$

20/12/1867

Pereira & Irmãos

Benedita

26

Pag. 1:000$

28/11/1869

Margarida Niederauer

José

40

Preto

Africano

Pag. 1:800$

30/10/1870

André Beck

Maria

51

Preta

Nação

Sem condição

14/07/1873

Nicolau Becker

Úrsula

5

Parda/ Mulatinha

Pag. 400$

05/03/1874

Isabel Nunes do Nascimento

Maria

7

Pag. 120$

25/11/1874

Idade

Pardo Africana

Fonte: Catálogo Seletivo de Cartas de Liberdade – APERS – Santa Maria da Boca do Monte – 1858 - 1888

Os escravos de Margarida Niederauer, Pedro Cassel e Francisco Weinmann compraram a sua liberdade. Henrique Niederauer concedeu a alforria para que seu escravo, Vicente, o substituísse na Guerra do Paraguai e, depois de terminada, continuasse servindo ao exército brasileiro. Algo semelhante fez Felipe Beck e Abraão Cassel Filho, só que estes compraram dois escravos jovens e imediatamente o alforriaram de “livre e espontânea vontade e sem constrangimento algum” para que servissem ao exército brasileiro como seus substitutos também na Guerra do Paraguai.


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As cartas de liberdade, emitidas sem condição alguma, foram apenas duas. Uma emitida por José Alves Valença Júnior e Maximiliano José Appel, que receberam de herança da avó Eufrásia Maria de Oliveira, a preta Joaquina, em retribuição aos bons serviços prestados a ela. Já André Beck, que conhecemos antes, emitiu a carta de alforria da preta Maria, em atenção a seus bons serviços e aos seis filhos que ela produziu. Ele também se envolveu na alforria de Benedita, de Pereira & Irmãos onde a carta foi concedida mediante o pagamento de 1:000$ (um conto de réis) “sendo parte da mão do senhor André Beck, a quem a escrava fica responsável”170. Ao que parece, André emprestou dinheiro à Bendita para que comprasse sua liberdade e ela ficava responsável para pagá-lo. A passagem de autoridades por Santa Maria parece ter servido como pretexto para a libertação de crianças cativas. Além da compra da carta de liberdade de Úrsula, citada acima, temos o caso de Maria, escrava de Isabel Nunes do Nascimento, que foi alforriada para comemorar a primeira visita pastoral do bispo diocesano D. Sebastião Dias Laranjeira e o pagamento foi realizado pelo vigário José Marcellino de Souza Bittencourt e pelo alferes Germano Hoffmeister (por isso este caso está nesta lista). É interessante notar que o vigário estava envolvido tanto na alforria de Úrsula para celebrar a passagem do político, como na de Maria, na passagem do Bispo171. Veremos, na segunda parte deste capítulo, que o padre José Marcellino tinha uma íntima ligação com o mundo da escravidão, que pode ter contribuído no seu esforço na emissão de cartas de liberdade. Como era o cotidiano das crianças cativas em Santa Maria? Como era a convivência de Daudt Filho com os filhos dos escravos do pai, dos tios e do avô? Vamos deixar que ele mesmo explique: Quando eu era menino, meus companheiros prediletos eram os “moleques”, subordinados a tudo quanto eu queria, inclusive servirem de cavalos de minha montaria e puxadores do meu tosco carroção de duas rodas. Pouco a pouco, minha mãe foi me indicando melhor rumo; quando cheguei à adolescência, já não me aprazia essa camaradagem. Juntava-me, então, somente a rapazes de educação igual à minha e nesse meio, daí por diante, fui adquirindo os melhores amigos (DAUDT FILHO, 2003, p. 25).

Em outro trecho de seu texto, ele deixou explícito o que entendia por “moleques” e reforçava o tratamento dispensado a eles. Ele contou que seu pai recebeu, em pagamento de uma dívida antiga, dois moleques: um preto e outro mulato. “(…) Prestavam-se a serem cavalos de meu andar, de parelha de puxar 170. Ver carta em: https://secweb.procergs.com.br/aap/ObtemDadosServlet?metodo=verArquivoPDF&NRO_ INT_DOCUMENTO=744459 171. As cartas de liberdade originais estão disponíveis para consulta no site: http://www.apers.rs.gov.br/ portal/index.php


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e a ajudar-me a fazer urupucas, mundéus, esparrelas e alçapões (...)” (Ibid., p. 44). Portanto, “moleques”, para Daudt Filho, eram as crianças filhos de escravos. Esses exemplos permitem visualizar como era o cotidiano das crianças escravizadas, o que significava muitas vezes estar a serviço dos caprichos dos filhos de seus senhores. Deve ter sido também a infância dos filhos de Matildes e das duas Marias que, além dos serviços diários, deviam estar também à disposição das brincadeiras dos netos de Gabriel Haeffner. No clássico “Casa Grande e Senzala”, a função dos “moleques” também foi tema das reflexões de Gilberto Freyre (2006, p. 419-420), que os chamou de “leva-pancadas”. Utilizando-se de outros autores, Freyre mostrou que nas casas-grandes coloniais, quando uma criança branca deixava o berço, recebia um escravo de seu sexo e de sua idade para seus brinquedos e “serviam para tudo: eram bois de carro, eram cavalos de montaria, eram bestas de almanjarras, eram burros de liteiras e de cargas as mais pesadas”. Para Freyre, essas atitudes tinham influências psíquicas favoráveis ao desenvolvimento de tendências sadistas e masoquistas e animava o despotismo das crianças brancas. Muitas vezes, estabeleciam-se relações de amizade entre essas crianças, que deveriam ser rompidas na adolescência, na medida em que os filhos dos senhores passavam a ser preparados para assumir seus postos na hierarquia e elite social. Ainda vamos continuar um pouco na história desses “moleques”, que dão a indicação das mercadorias transportadas e negociadas pelos comerciantes, neste caso, comerciantes alemães e seus descendentes. Para isso, mais uma vez vamos recorrer às lembranças de Daudt Filho. Escreveu ele: Aconteceu, porém, que chegava a época de meu pai ir a Porto Alegre surtir-se de mercadorias para seu negócio e quis levar-me de passeio. Os moleques também iriam para cuidar dos cavalos durante a viagem. Subi às nuvens de contentamento pela companhia dos moleques. Chegados a Porto Alegre, tive, porém, um grande desgosto. Os moleques e eu fôramos enganados! Papai, não podendo ter em casa maior número de escravos, via-se obrigado a desfazer-se deles. Juntos, choramos muito quando nos despedimos (DAUDT FILHO, 203, p. 45).

Essas reminiscências do autor indicam que entre os produtos negociados por esses comerciantes estavam mercadorias humanas. O pai, João Daudt, recebeu dois escravos em troca de dívidas, e depois os levou a Porto Alegre para vendê-los. Talvez tenha usado os meninos como moeda para o pagamento das mercadorias que levaria a Santa Maria da Boca do Monte. Vejamos outros exemplos que reforçam tal argumento, de indivíduos já mencionados neste texto, para não “afogar” os leitores em nomes.


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No dia 09 de novembro de 1871, Nicolau Becker comprou, de André Beck, a crioula Domingas, de quatorze anos, por seiscentos mil réis e, dois dias depois, vendeu-a para André Beck Sobrinho por seiscentos e quarenta mil réis, tendo um lucro de quarenta mil réis nesta transação em apenas dois dias. Também, no ano de 1871, no dia 24 de janeiro, José Gabriel Haeffner (filho de Gabriel Haeffner) comprou de José Manuel de Quadros, de Passo Fundo, a preta Benedita, 27 anos, por um conto de réis e, cinco dias depois, transferiu-a para Francisco Fernandes Penna pelo mesmo valor172, ao menos no registro cartorial. Provavelmente, tenha registrado esse valor para pagar menos impostos. Esses exemplos demonstram que os alemães e seus filhos também se envolveram no lucrativo comércio de escravos, comprando, vendendo ou servindo como intermediários de outros interessados em cativos. Os documentos catalogados pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul, de compra e venda de escravos dos livros notariais de Santa Maria da Boca do Monte, revelaram existência de noventa e sete negociações em que o comprador de escravos era de origem alemã, no período de 1858 e 1888. Quando os vendedores eram alemães ou descendentes, as negociações somaram cinquenta e três casos. Desses, em vinte e três casos, as negociações eram entre os próprios imigrantes, ou seja, em que o vendedor era de origem alemã, assim como comprador173. Não pretendemos fazer nenhuma análise estatística ou comparativa desses dados. Eles servem apenas como mais um argumento para provar a presença significativa de indivíduos escravizados entre os imigrantes em Santa Maria e na sua incorporação como mercadorias em suas negociações. Para comprovar os lucros obtidos por meio do comércio de gente, vamos apresentar um último exemplo. É o caso de Frederico Schneider, que comprou a menina Izabel, de 12 anos, de Luis Pereira dos Santos, de Cruz Alta, por novecentos mil réis, em 02 de janeiro de 1862. Seis meses depois, vendeu a menina para Francisco Weinmann, pelo valor de um conto e seiscentos mil réis174, quase o dobro do preço que pagou. O trabalho dos escravos e os lucros obtidos por meio de sua transformação em mercadorias, também permitiram o enriquecimento de muitas das famílias de imigrantes e não exclusivamente pelo seu trabalho. Em suas lembranças, Daudt também descreveu as qualidades que os escravos deveriam ter e a violência com que eram tratados por certos senhores: 172. APERS. Documentos da Escravidão no RS: Compra e Venda de escravos, vol. 02, p. 307, 305 (respectivamente). 173. APERS. Documentos da Escravidão no RS: Compra e Venda de escravos, vol. 01 e vol. 02. Existem casos em que foram negociados vários escravos, por isso, considerei cada escravo comprado ou vendido como uma negociação. Se determinado indivíduo vendeu quatro escravos de uma única vez para um mesmo comprador, são somadas quatro negociações. Da mesma forma, quando a compra ou venda envolve filho menor. Os números são significam o total de escravos, pois um mesmo escravo pode ter sido negociado várias vezes. 174. APERS. Documentos da Escravidão no RS: Compra e Venda de escravos, vol. 02, p. 288, 289.


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Um negro com os requisitos necessários, de boa qualidade, valia um conto de réis. Para ser considerado boa mercadoria, devia ser retinto, ter dentes sãos, canela fina e os lagartos duros e salientes nos braços (os bíceps). Um cavalo manso valia 100$000. Por dez cavalos podia-se trocar um negro com aquelas qualidades. Por menos da metade, meu pai, precisando de cozinheira, comprou uma. Dizia o dono, ao oferecê-la, que a negra não servia para o trabalho da roça e, por isso a vendia por qualquer preço. Já lhe havia dado “uma tunda de laço”, mas não prestava mesmo para o que ele necessitava. Chegou em nossa casa, toda encolhida, gemendo de dores, em estado lastimável, com as costas em carne viva, crivadas de lanhos fundos, feitas pelas surras de que se vangloriava o antigo senhor. Até bichos tinham as feridas. Chamava-se Felicidade...(DAUDT FILHO, 2003, p. 44)

Embora Daudt não cite em seu texto, identificamos que a escrava Felicidade era propriedade de Joaquim de Oliveira Flores e foi vendida para João Daudt, em 1866, pelo valor de oitocentos mil réis. Era identificada como crioula, com mais ou menos 35 anos. Tinha uma filha de dois meses que foi incluída no valor da compra e que até então não tinha nome175. Três meses depois, a criança foi batizada com o nome de Laura. Os padrinhos foram os filhos da escrava Matildes, José e Emília, dois escravos de Nicolau Becker176. Além de Laura, incluída nesta negociação, Felicidade teve pelo menos mais cinco filhos: Marçal (1868), Ambrózio, crioulo (1873), Victória, preta (1875), Basília, parda (1875) e Ignez, preta (1880)177. Felicidade faleceu no dia 18 de abril de 1890 e seu assento de óbito a identifica como preta, solteira, 59 anos e a causa de sua morte foi pleuris (ou pleurisia)178. Ao relatar a história da escrava Felicidade, Daudt denunciava a violência sofrida pelos escravos, mas reforçou a ideia de que os imigrantes os tratavam bem. Ele continuou seu relato dizendo que: (...) tratada com piedade por meus pais, que sempre foram bondosos para os escravos, ela encontrou, enfim a “felicidade”. Foi depois, ótima cozinheira, serviçal de primeira ordem para todos os trabalhos caseiros e dedicada amiga de minha mãe na dura missão de ajudar a criar dez filhos (DAUDT FILHO, 2003, p. 44).

A relação amistosa e carinhosa estabelecida pelos Daudt com a escrava Felicidade contrastava com a violência que sofria com o “nacional” Joaquim de Oliveira Flores179. A forma de tratamento e as lembranças da mãe preta também 175. APERS. Documentos da Escravidão no RS: Compra e Venda de escravos, vol. 02, p. 301. 176. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 7 (1864-1869), p. 09. ACSM. O batismo foi realizado no dia 11 de março de 1866. 177. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 7 (1864-1869), p. 125v-126; Livro de Batismo - Filhos de Mulher Escrava (1871-1887), p. 10, p. 27v.-28, p. 36, p. 56. 178. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Óbito n. 2 (1863-1895), p. 96. ACSM. 179. Daudt ainda relata episódios de violência praticados por outros “nacionais” como de Hildebrando


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reforçam essa noção. Ao escrever sobre a Colônia de São Leopoldo, em 1924, Telmo Müller também procurou marcar a diferença entre eles. Ele afirmou que “as relações entre os colonos e os negros não tinham as conotações da relação entre portugueses e eles. Os negros chegaram a ter relações de emprego com os colonos, mas sem nenhuma conotação escravista, embora a relação fosse escalonada: branco é branco, preto é preto” (MÜLLER, 1998, p. 238)180. No texto de Daudt, quando há um relato sobre a violência da escravidão praticada por algum alemão, ela é solicitada pelo próprio indivíduo escravizado. Vejamos: Acostumados a apanhar, parece incrível, alguns até reclamavam “lambadas” quando sentiam o corpo mole. Parece anedota, mas é a pura verdade! O pai Manoel, escravo africano de meu avô, de vez em quando tomava suas “camoecas”, depois das quais ficava pesado, indolente, sem ânimo para o trabalho. Numa dessas, apresentou-se ao meu avô com o laço na mão e pediu: - Meu sinhô, pai Manué tá cum priguiça, pricisa de laço no lombo. Meu avô lhe vez a vontade. Com algumas lambadas, pai Manué, masoquista, ficou lépido e esperto (DAUDT FILHO, 2003, p. 45).

O escravo aqui referido é Manoel, o companheiro de Maria, pai dos gêmeos Adão e Antônio. O pretenso bom tratamento dados aos escravos dos alemães foi questionado por Marcos Tramontini181 na sua análise sobre a colônia alemã de São Leopoldo, na primeira metade do século XIX. São frequentes as evidências de rebeldia e resistência escrava encontradas por esse autor na documentação policial e judiciária. Citou o exemplo “do negro nagô João, de propriedade de Henrique Panitz, que o atacou e ameaçou com uma faca após uma agressão feita pelo patrão” (p. 16) e os constantes atritos entre os escravos fugitivos que se embrenhavam nas matas da serra e acabavam assaltando os colonos. Além desses exemplos, Tramontini também apresentou a proposta da Câmara para colocar um palanque no interior da cadeia para realizar os castigos aos escravos, pois era imoral fazê-lo publicamente na rua182. Vinicius de Oliveira (2006, p. 58) também apresentou elementos que questionam a ideia de benevolência e bondade dos senhores alemães. Para ele, o tratamento dispensado pelos senhores teutos aos seus escravos não era homogêneo, mas “muitos recorriam à violência como recurso punitivo ou Teixeira, Antônio Pavão, Jeremias, do Arroio Grande, no atual distrito de Arroio Grande, uma senhora chamada de D. Manoela. p. 45-46. 180. O texto foi publicado originalmente em 1924, ano em que se comemorava o centenário da imigração alemã. 181. Disponível em: http://cdn.fee.tche.br/jornadas/1/s5a3.pdf <Acesso em 08 de abr. de 2014> O documento original encontra-se em: AHRS, Cartório Júri. Processo Crime Cartório Júri, N.2, m.1 – 16.12.46. 182. Atas da Câmara de São Leopoldo. 05.07.1848.


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disciplinador de seus plantéis, em uma aproximação com um padrão cultural tido como legítimo pela sociedade luso-brasileira”. O autor citou vários exemplos que comprovam sua afirmação, como a publicação do jornal “Correio do Sul”, de 24 de novembro de 1859, que informava que havia sido recolhido à Cadeia para ser castigado a pedido do seu senhor o preto João, escravo de Jacob Engeldorf. Em 15 de março de 1873, Luiza Gehardt pediu ao delegado para manter o seu escravo João preso na cadeia. Também Antônio Diehl mandou prender seu escravo João por um mês, em 1863, e João Stumpf fez o mesmo com o pardo Rafael, embora, nesses casos, não haja referência sobre a execução de castigos físicos (p. 105). O escravo de Henrique Panitz, o mesmo João, preto de Nação Nagô, que ameaçou seu senhor com uma faca e foi utilizado como exemplo por Tramontini, foi condenado pelo Estado, em 1846, a dois mil açoites e a usar grilheta nos pés por dois anos, como castigo por ter assassinado o parceiro Thomaz (p. 106-107). Portanto, a violência era parte inerente ao sistema escravista e dela fizeram uso todos os que usufruíam do sistema, inclusive os imigrantes alemães e seus descendentes. A obra de um memorialista como Daudt, apesar das ressalvas que podem ser feitas, torna-se uma importante contribuição para a compreensão das relações escravistas do século XIX, principalmente por relatar aspectos cotidianos. No entanto, é preciso estar ciente de que é um olhar sob o ponto de vista da “Casa Grande”. Um olhar que retrata as relações escravistas dos imigrantes como benevolentes, dóceis, afetivas; e, quando a violência é retratada, é por puro masoquismo, onde o resultado final é a satisfação daquele que foi violentado, pois o escravo Manoel saiu “lépido e esperto”. Os imigrantes de origem alemã utilizaram seus escravos em serviços diversos, como os trabalhos domésticos, amas de leite, na agricultura e pecuária, nas suas oficinas, nas viagens em busca de mercadorias para abastecer suas casas comerciais e também os alugavam para a prestação de serviços. Encontramos o escravo Adão, agora com 20 anos de idade, trabalhando no conserto das ruas da cidade, no ano de 1867, com o escravo Miguel e com o crioulo Maurício. O pagamento foi efetuado para Gabriel Haeffner (6 dias de serviço) e D. Florisbela (18 dias e meio), seus respectivos donos, no valor de 1.280,00 réis por jornal. O crioulo Maurício, não mencionado, mas provavelmente liberto, recebeu por 15 dias de serviço183. Vinicius de Oliveira (2006, p. 69) relatou a mesma situação de aluguel de escravos por “nacionais” e alemães para Câmara de São Leopoldo. A sociedade de Santa Maria da Boca do Monte viveu intensamente o mundo da escravidão. A mão de obra cativa estava em todos os lugares, nas grandes 183. Conta da despesa feita pela Câmara com os concertos das ruas desta Villa em 9 (?) de 1867. Arquivo Histórico de Santa Maria (AHSM), Fundo Junta Intendencial, Caixa 01, Tomo 07.


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propriedades rurais, nas encostas da serra, na limpeza das ruas, nas cozinhas, nas oficinas e nas casas comerciais dos imigrantes. Os viajantes, os políticos e os médicos que passaram pela cidade ou viveram nela, exaltaram a presença e o progresso trazido pelos laboriosos imigrantes europeus. Tudo isso pode ser verdade, mas não podemos esquecer que com eles estavam centenas de escravizados, que amamentaram e cuidaram de seus filhos, que contribuíram para o enriquecimento de muitas famílias, que se tornaram mercadorias e, simplesmente, tornaram-se invisíveis para genealogistas, cronistas e historiadores. A importância desses indivíduos precisa ser colocada no devido lugar.

5.2 A CRIAÇÃO E A DISSOLUÇÃO DA IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO O mundo religioso dos escravos também estava presente nas memórias de Daudt Filho. Ele destacou a influência das amas de leite e das mucamas sobre as crianças que “adquiriam as crendices supersticiosas dos africanos”. É, por isso, segundo ele, que a maioria do “povo inculto ainda acredita na existência dos gênios maléficos da África (...)”(DAUDT FILHO, 2003, p. 42)184. Mas, ao mesmo tempo em que considerava os africanos “indivíduos semisselvagens” e que se adaptavam às crenças dos brancos, muitas vezes “por espírito de imitação”, admitiu a influência dos cativos em sua devoção. Disse ele; “Eu, porém, tinha muita fé em Nossa Senhora do Rosário, que aprendi a venerar com minha mãe preta. Desde tenra idade, ouvia mãe Maria dizer que uma promessa aquela virgem nunca falhava” (Ibid., p. 35). Embora os registros da Irmandade desse período sejam raros, podemos conhecer alguns de seus integrantes, como Maria, a mãe preta, o Pai João da Mão Pelada e os gêmeos Adão e Antônio que soltavam fogos na procissão. Se esses indivíduos que integravam o conjunto de escravizados das famílias Daudt, Becker e Haeffner participaram da Irmandade, é possível supor que os demais também participaram, como Matildes, Maria, Manoel, Felicidade e seus filhos e netos. Ela tornou-se um local de reunião, de celebração e de encontro dessa comunidade negra. Na análise das listas de matrículas de escravos de 1872/1873, 184. Daudt escreveu que o maior terror era o Lobisomem e que o pai Pedro, escravo do seu avô, já tinha visto. Descreve ele: Contou-me o pai Pedro o seguinte causo, na sua meia língua. Uma noite de sexta-feira, viu um cão medonho do tamanho de um terneiro (...) atacar uma negra vestida de saia de baeta encarnada. No dia seguinte, de manhã cedo, quando foi ao açougue comprar carne, ao passar pela porta da casa do ‘seu’ Ulerico, tomou-lhe - Louvado – e quando ele respondeu sorrindo – Louvado seja – viu que tinha nos dentes fiapos encarnados. Era da saia da negra acreditava ele. O ‘seu’ Ulerico era lobisomem, virado de noite em cão, afirmava convencido pai Pedro” (p. 42). Gilberto Freyre (2006) também destacou esta influência africana: “Por intermédio dessas negras velhas e das amas de menino, histórias africanas, principalmente de bichos – bichos confraternizando com pessoas, falando como gente, casando-se, banqueteando-se – acrescentaram-se às portuguesas” (p. 436).


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Thiago Leitão de Araújo (2011, p. 08) identificou que, em Santa Maria da Boca do Monte, 136 escravos possuíam residência urbana, sendo 19,7% do total de cativos. Muitos deles participavam ativamente da Irmandade. Outros 1260 foram identificados como escravos rurais. No relato que fez sobre o bando precatório que se preparava para a Festa do Rosário, Daudt (2003, p. 43) afirmou que suas danças desafiavam a ira de seus donos. Os membros da Irmandade desafiavam não só os seus donos, mas também o vigário e toda a Igreja. Esse desafio custou-lhe a dissolução, pouco tempo depois de sua criação. Foi com a seguinte justificativa que o Pe. José Marcellino de Souza Bittencourt explicou o fim da Irmandade, em 1875: Pela presente portaria, dei por bem dissolver a devoção de Nossa Senhora do Rosário, por mim organizada nesta Igreja Matriz, visto ter se afastado totalmente do fim da sua instituição, desprezando os estatutos, e, por fim, desobedecer a esta vigararia na proibição de sair com a bandeira a tirar esmolas. Obstinadamente violada a segunda imposição que lhes fiz, depois de ter sabido, e o que é ainda mais, levando a dita bandeira sem estar benta, cometendo assim o crime de idolatria, incorrendo nas censuras da Igreja. Ficam, portanto, cassadas, todas as garantias, de nenhum efeito a eleição publicada em mil oitocentos e setenta e três, e, dissolvida, como de fato fica, a dita devoção. Esta deve ser cumprida e registrada no livro do tombo para todo o tempo constar. Dada e passada em minha residência paroquial aos 20 dias do mês de novembro de 1875. José Marcellino de Souza Bittencourt185.

Embora breve, a portaria de dissolução apresenta informações muito significativas sobre a criação da Irmandade, sua atuação, a trajetória de vida e o pensamento do vigário. Logo no início do seu documento, o padre Bittencourt informou que a devoção de Nossa Senhora do Rosário foi por ele organizada. Como Bittencourt foi nomeado pároco em 1866, sua criação foi posterior a essa data. O documento menciona o ano de 1873, o que possivelmente foi o ano de fundação da Irmandade. Nesse ano, foram feitas eleições para a diretoria e um estatuto foi criado, o que o vigário tornava sem efeitos com essa portaria. A devoção a Nossa Senhora do Rosário já existia em Santa Maria, como ficou demonstrado pelas memórias de Daudt Filho, que aprendeu a venerá-la como sua mãe preta Maria. O que o padre deve ter tido foi a iniciativa de proceder aos aspectos institucionais e burocráticos para a criação da irmandade negra, ao menos no nível paroquial. Sua atitude pode ser vista como o resultado de sua experiência e de sua trajetória pessoal. O padre Bittencourt era baiano, nasceu em Salvador, na Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, em 1837. No início 185. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro tombo n. 2 (1860 - 1888), p. 138v.- 139. APNSC-SM. O Padre José Marcellino se refere à “devoção” de Nossa Senhora do Rosário nesta portaria, não deixando claro a sua condição. Porém, ao relatar a visita pastoral de D. Sebastião, em 1874, (ver capítulo 04) a mencionou como “Irmandade” e é dessa forma que será tratada neste texto.


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do século XIX, Santo Antônio era uma das dez freguesias em que a cidade de Salvador estava dividida. João José Reis fez a seguinte descrição sobre as freguesias que estavam localizadas na região central da cidade de Salvador: “Famílias de ricos senhores de engenho, comerciantes, funcionários civis e eclesiásticos dividiam as mesmas ruas com negros escravos e libertos (...). Na Sé e em outras freguesias do centro - freguesias do Passo, Santo Antônio Além do Carmo, Santana, São Pedro -, se encontravam também casas humildes, feitas de adobe, térreas, de porta e janela, levantadas em terrenos foreiros, ocupadas por famílias negras pobres, escravos alforriados, que se dedicavam ao pequeno artesanato, ao comércio ambulante, ao transporte de cadeiras, à lavagem de roupas” (REIS, 1991, p. 30).

Reis (1991, p. 34) apresentou uma estimativa de 66 mil pessoas vivendo na cidade de Salvador, em 1836, e destas, 72% seriam de negros e mestiços. A Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo compreendia dois distritos: o primeiro urbano e o segundo distanciado da cidade umas “boas léguas”, dividindo o seu espaço entre o urbano e o rural. A Igreja Matriz da freguesia era dedicada à devoção de Santo Antônio. Além dela, havia a Capela de Nossa Senhora da Conceição, dos homens pardos do Boqueirão, Nossa Senhora do Rosário, dos Quinze Mistérios, Senhor dos Perdões, Nossa Senhora da Conceição da Lapinha, Santo Antônio da fábrica do Queimado, Nossa Senhora do Resgate, a Capela do Patrocínio do Senhor São José dos Agonizantes, a de Nossa Senhora da Soledade, do Convento da Ursulinas do Coração de Jesus, a do cemitério das Quintas, a de São Gonçalo e o oratório da antiga Quinta dos Padres. Ana Amélia Vieira Nascimento (2007, p. 55-56) analisou os dados do censo de 1855 e encontrou, na Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, uma população composta de 22,62% de brancos, 31,96% de pardos, 17,49% de crioulos, 5% de cabras e 22,92% de pretos. A população branca era minoria nesta freguesia onde nasceu e viveu o jovem Marcellino Bittencourt. As irmandades existentes em Salvador podiam ser contadas as dezenas. No século XVIII, quando a população de Salvador era menor, Lucilene Reginaldo (2005, p. 75-76) identificou 16 delas somente de pretos. Entre elas, estão algumas das mais antigas do Brasil, como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, fundada ainda no início do século XVII. Maria Inês de Oliveira (1988, p. 85-86) fez uma lista de 36 que abrigavam libertos durante o século XIX. As irmandades negras e suas celebrações faziam parte do cotidiano de Salvador, ambiente em que nasceu e cresceu o jovem José Marcellino de Souza Bittencourt. Este contexto dinâmico das irmandades soteropolitanas deve ter influenciado na tentativa de organização da Irmandade do Rosário em Santa Maria. No entanto, a proximidade com a comunidade negra de Salvador e depois de Santa Maria tinha outras razões.


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José Marcellino era filho de José Maria Bittencourt e Joana Maria da Cruz. O casamento de seus pais ocorreu no dia 04 de outubro de 1836 “depois de ser o contraente absolvido da ex-comunhão como raptor da contraente”. Serviram como testemunhas o Reverendo Alexandre da Silva Menezes e o Tenente Francisco de Paula Bahia186. O pai, José Maria Bittencourt, faleceu de “moléstias internas” três meses depois, no dia 15 de janeiro de 1837, “foi amortalhado em hábito branco” e encomendado pelo sacristão e mais cinco padres187. No dia 02 de junho de 1837, nasceu José Marcellino de Souza Bittencourt, quase cinco meses depois da morte de seu pai188. O seu batismo ocorreu um ano depois, no dia 15 de julho de 1838, e foi padrinho o Reverendo Alexandre da Silva Menezes189 (que também foi testemunha de casamento de José Maria e Joana Maria). Salvador vivia um período de muita agitação, pois em 1835 ocorreu a Revolta dos Malês, em 1836 a Cemiterada190 e, em 1837, a Sabinada. 186. Paróquia de Santo Antônio Além do Carmo. Salvador, Bahia. Livro de Casamento (1816-1840), p. 181v.-182. Disponível em: <https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-18572-25444-53?cc=217727 2&wc=M7ZY-929:369564601,369564602,369978901>. Acesso em: 20 jul. 2015. O assento de casamento completo: “Aos quatro dias do mês de Outubro de mil oitocentos e trinta e seis nesta matriz de Santo Antônio Além do Carmo, dispensados dos proclamas por sua Excelência Reverendíssima em seu respeitável despacho de 03 de Outubro do mesmo ano como consta do documento que fica em meu poder, depois de ser o contraente absolvido da excomunhão como raptor da contraente, conforme o mesmo respeitável despacho e tendo jurado(?) de não haver entre eles impedimento algum canônico, com palavras de presente e mútuo consentimento em presença do Coadjutor Francisco Mendes Barreto e das testemunhas o Reverendo Alexandre da Silva Menezes e o Tenente Francisco de Paula Bahia, casado, ambos desta Freguesia. Celebraram o Sacramento do Matrimônio José Maria de Bittencourt e Joana Mª da Cruz, ele contraente filho legítimo de Francisco Germano de Souza Bittencourt e Maria Joaquina da Trindade e ela contraente de Maximiano Pereira dos Santos e Maria Romualda, ambos contraentes naturais e moradores nesta Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo. Receberam as bênçãos nupciais na forma do Ritual Romano e constituições deste Arcebispado. E para constar se fez este termo que assinei. O Vigário Encomendado. Joaquim José de Sant`Anna”. 187. Paróquia de Santo Antônio Além do Carmo. Salvador, Bahia. Livro de Óbitos (1828-1838), p. 242. Disponível.em:.<https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-18353-8813-68?cc=2177272&wc=M7Z1TMQ:369564601,369564602,370512901>. Acesso em: 20 jul. 2015. O assento de óbito completo: “Aos quinze dias do mês de janeiro de mil oitocentos e trinta e sete nesta Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo faleceu de moléstias internas, com todos os sacramentos, José Maria de Bittencourt, branco, com vinte e quatro anos de idade mais ou menos, casado com Joana Maria da Cruz, foi amortalhado em hábito branco, encomendado por mim sacristão e mais cinco padres, sepultado na Matriz. Para constar, se fez este termo que assinei. O Vigário Encomendado Joaquim José de Sant`Anna”. 188. O Ir. Jacob José Parmagnani (1995, p. 17), que escreveu uma biografia do Padre e depois cônego José Marcellino de Souza Bittencourt, apresentou como data de seu nascimento o dia 17 de abril de 1837. Entretanto, o próprio cônego, no seu testamento mencionou como data do seu nascimento o dia 02 de junho de 1837 (Testamento de José Marcellino de Souza Bittencourt. 29 de junho de 1911. Processo n. 1165, p. 03. APERS). 189. Paróquia de Santo Antônio Além do Carmo. Salvador, Bahia. Livro de Batismo (1828-1840), p. 333. Disponível.em:<https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-18351-58572-58?cc=2177272&wc=M7Z166F:369564601,369564602,370382601>. Acesso em: 15 jul. 2015. O assento de batismo completo: “Aos quinze dias do mês de julho de mil oitocentos e trinta e oito, nesta matriz de Santo Antônio, o Reverendo Coadjutor Antônio Pedro Gomes da Fonseca batizou e pus os santos óleos a José, branco, idade de um ano, filho natural, digo legítimo de José Maria de Bittencourt, já falecido e Joana Maria da Cruz, parda. Foi Padrinho o Reverendo Alexandre da Silva Menezes. E para constar se fez este termo que assinei. O Vigário Encomendado Joaquim José de Sant`Anna”. 190. Ver REIS, 1991, p. 13-26.


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No assento de batismo de José Marcellino de Souza Bittencourt, sua mãe, Joana Maria da Cruz, foi qualificada como parda. Joana foi batizada no dia 08 de setembro de 1819, com nove meses de idade, também na Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, filha legítima de Maximiano Pereira e Maria Romualda, e o vigário registrou ao lado de seu assento de batismo a sua qualificação: “parda, párvola, forra”191, como pode ser visto na imagem a seguir. Imagem 9 - Cópia do assento de batismo de Joana Maria da Cruz

Fonte: Livro de Batismo da Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, Salvador, Bahia192.

O Ir. Jacob José Parmagnani (1995, p. 19) reproduziu o assento de batismo do padre José Marcellino, lembrou que a criança foi batizada órfã de pai e concluiu: “Nada mais foi possível saber sobre a infância, a adolescência e a entrada na maioridade do biografado”193. Se por ora não temos mais informações sobre a infância do jovem José, é possível conhecer o contexto em que viveu e as influências que possivelmente recebeu. Com a morte do pai, antes mesmo de seu nascimento, o seu destino foi traçado pela mãe, a parda forra Joana Maria.

191. Paróquia de Santo Antônio Além do Carmo. Salvador, Bahia. Livro de Batismo (1812-1828), p. 247. Disponível.em:.<https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-18352-60818-13?cc=2177272&wc=M7Z13Z4:369564601,369564602,370326001>. Acesso em: 25 jul. 2015. O assento de batismo completo: “Aos oito dias do mês de setembro de mil oitocentos e dezenove nesta Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, batizou e pôs os Santos óleos o Reverendo Coadjutor Innocêncio Moreira do Rio a Joana, parda, com nove meses de idade, filha legítima de Maximiano Pereira e Maria Romualda. Foi Padrinho Manoel José Teixeira, casado, desta Freguesia e para constar se fez este assento. O vigário João Manoel Guerreiro”. 192. Disponível em: <https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-18352-60818-13?cc=2177272&wc=M7Z13Z4:369564601,369564602,370326001>. Acesso em: 25 jul. 2015. 193. Sobre o fato de ser filho de uma mulher parda, nenhuma palavra. Eloy Terra (2002) ao escrever a obra “As Ruas de Porto Alegre” também fez uma breve exposição biográfica do cônego José Marcellino Bittencourt, que dá nome a uma praça de Porto Alegre, e provavelmente utilizou das informações de Parmagnani. Terra também reproduziu o assento de batismo, mas suprimiu a informação que Joana Maria da Cruz era parda. Repetiu a conclusão de Parmagnani: “além deste breve registro, nada mais se sabe sobre a infância e adolescência de José Marcellino” (p. 83).


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José Marcellino de Souza Bittencourt, além de viver em uma cidade marcada pela proliferação de irmandades leigas, tinha em sua história familiar uma provável integrante de irmandade negra. Se Daudt Filho aprendeu a ter devoção a Nossa Senhora do Rosário de sua “mãe preta” Maria, não é arriscado afirmar que José Marcellino aprendeu a devoção com sua mãe, parda forra, Joana Maria. Além da participação na criação da Irmandade do Rosário, em Santa Maria, ele também se tornou membro da Arquiconfraria do Rosário de Porto Alegre e de outras irmandades como descreveu em seu testamento: “Pertenço à Irmandade do Santíssimo Sacramento e de São Miguel da Catedral, da Arquiconfraria de N. S. do Rosário e da Beneficência Brasileira Porto-alegrense, além das Confrarias e Arquiconfrarias diversas fora desta cidade”194. José Marcellino também escreveu um “devocionário” que tinha como título “O Mês de Outubro – Mês do Santíssimo Rosário”. Era um livreto de bolso com meditações e orientações para a prática cristã (PARMAGNANI, 1995, p. 84-88). Além de devoto, era um propagador da devoção do rosário. O padrinho de batismo de José Marcellino foi o Reverendo Alexandre da Silva Menezes, que pode ter influenciado na sua decisão de seguir a carreira sacerdotal. O Reverendo, como vimos, também foi testemunha de casamento José Maria Bittencourt e Joana Maria da Cruz, o que indica uma aproximação entre ele e a família Bittencourt. O fato é que o jovem José Marcellino ingressou no seminário e mudou-se para o Rio Grande do Sul a convite do novo bispo da província, o também baiano Sebastião Dias Laranjeira. O padre Sebastião Dias Laranjeira estava em Roma, onde doutorou-se em Direito Canônico, quando foi escolhido para ser bispo da diocese do Rio Grande do Sul, para substituir D. Feliciano Rodrigues Prates, que havia falecido em 27 de maio de 1858. Em 1861, assumiu e atraiu para sua nova diocese 14 sacerdotes baianos (PARMAGANANI, 1995, p. 36) e o seminarista José Marcellino Bittencourt, que foi ordenado sacerdote no dia 08 de dezembro de 1864195. Para que pudesse se tornar presbítero da Igreja Católica, o jovem seminarista teve que passar por uma investigação chamada “habilitação de genere”196, em que “lhe era necessário justificar que 194. Testamento de José Marcellino de Souza Bittencourt. 29 de junho de 1911. Processo n. 1165, p. 03v. APERS. 195. Testamento de José Marcellino de Souza Bittencourt. 29 de junho de 1911. Processo n. 1165, p. 03. APERS. 196. De acordo com Aldair Carlos Rodrigues (2014), “as habilitações de genere – abreviação da expressão latina “De genere, vita et moribus” (de geração, vida e costumes) – eram formadas pelo conjunto de provanças ao qual os indivíduos interessados na ordenação sacerdotal deveriam se submeter, mostrando que possuíam os requisitos exigidos pela legislação eclesiástica para a concessão do estado eclesiástico. Um dos principais elementos averiguados no processo de habilitação para os sacramentos da ordem era a “limpeza de sangue” do candidato. Era necessário provar a sua não descendência de raças consideradas “infectas”: mouros, judeus, negros, mulatos e gentios. Exigia-se também que os pretendentes tivessem saúde e não apresentassem deficiências físicas. Inicialmente, os pretendentes deveriam fazer uma petição ao juiz das justificações de genere da sede da sua diocese informando sua naturalidade e residência, assim como os dados referentes aos seus pais e avós. A partir dessa petição, era enviada uma carta aos párocos das localidades de origem dos ascendentes do habilitando pedindo informação sobre a limpeza de sangue, vida e costumes da família do habilitando” (p. 32).


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era cristão velho, limpo e de limpo sangue e não era cristão novo, mouro ou judeu e nem tinha raça de outra nação infecta (...)”197. O processo foi conduzido pelo cônego Dr. Lino Reginaldo Alvim, que concluiu: Mostra-se, que o habilitando José Marcellino de Souza Bittencourt é natural e batizado na Freguesia de Santo Antônio desta cidade, filho legítimo de José Maria de Bittencourt e Joana Maria da Cruz, aquele (que já é falecido) natural e batizado na mesma freguesia e esta também nela nascida e batizada, neto paterno de Francisco Germano de Souza Bittencourt e Maria Joaquina da Trindade, e materno de Maximiano Pereira dos Santos e Maria Romulada, todos daquela já mencionada freguesia e já falecidos; e não constando das testemunhas inquiridas ser ele herege ou apostata de nossa Santa Fé Católica, nem haver incorrido em pena alguma vil de fato ou de direito, por si, seus pais e avós: hei portanto o referido habilitando José Marcellino de Souza Bittencourt por habilitado para todas as ordens menores e sacras até o presbiterado e hábil para possuir benefícios eclesiásticos pelo que pertence a sua sanguinidade somente. Assim o julgo e se lhe dê sentença, pagas à custa destes autos. Bahia, treze de agosto de 1863. Lino Reginaldo Alvim198.

O cônego Alvim, com base nestas informações, julgou “ao referido habilitando por inteiro e legítimo cristão velho e limpo de toda a raça de nação infecta”, habilitando-o a “ocupar os mais ofícios, honras e dignidades eclesiásticas que lhe fossem conferidas, por estar para tudo hábil, pelo que toca a limpeza de seu sangue (...)”199. A origem paterna, as relações familiares com membros do clero (seu padrinho de batismo era Reverendo Alexandre da Silva Menezes que também era padrinho de casamento de seu pai) e o assento de batismo onde foi declarado branco, facilitaram a sentença favorável no processo “de genere” e permitiram que fosse ordenado sacerdote e trabalhasse com o bispo do Rio Grande do Sul, o seu conterrâneo Dom Sebastião Dias Laranjeiras200. O bispo Dom Sebastião foi fundamental na consolidação dos ideais ultramontanos no Rio Grande do Sul. A política católica tinha como objetivo a centralização do poder religioso na figura do papa, dos bispos e do clero em geral. Com esse novo ideário, a América Latina passou a ser uma das principais preocupações romanas, pois o continente era visto como a terra do “erro pagão a ser conduzido à verdade católica” e onde “tudo tem que ser colocado ‘nos eixos’ através de um trabalho paciente e tenaz a ser executado por um episcopado ‘reformado’ dos erros do passado” (HOORNAERT, 1996, p. 176). Esse pensamento reformista foi entrando no Brasil com a vinda de clérigos estrangeiros ou com ida de brasileiros para estudar no exterior, como foi Dom 197. Processo de Habilitação de Genere. Marcellino de Souza Bittencourt. Porto Alegre. AHCMPA 198. Processo de Habilitação de Genere. Marcellino de Souza Bittencourt. Porto Alegre. AHCMPA 199. Processo de Habilitação de Genere. Marcellino de Souza Bittencourt. Porto Alegre. AHCMPA 200. Sobre a “dispensa do defeito de cor” entre o clero ver os trabalhos de Anderson José Machado de Oliveira (2008; 2012).


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Sebastião. Vagarosamente, o ideal ultramontano foi conquistando espaços até tornar-se hegemônico. Mauro Dillmann Tavares (2007, p. 1-7) analisou as medidas tomadas por Dom Sebastião para alterar o comportamento religioso dos fiéis e implantar uma nova percepção da religião. O bispo investiu na criação do Cabido201, no funcionamento do Seminário, na divulgação do ensino do catecismo, na necessidade de santificar o dia de domingo e no aumento do poder dos párocos diante dos leigos, o que afetava diretamente as irmandades. Imagem 10 – Cônego José Marcellino de Souza Bittencourt

Fonte: Foto extraída da capa do livro “O fundador do Pão dos Pobres de Santo Antônio” de autoria do Ir. Jacob José Parmagnani

Logo depois de ser ordenado sacerdote, José Marcellino de Souza Bittencourt foi enviado para ser coadjutor em São Gabriel do pároco João Peixoto Miranda Veras, também baiano. Depois de um ano de atividade nessa localidade, foi transferido para Santa Maria da Boca do Monte onde assumiu 201. “Desde os tempos mais remotos, tinham as dioceses o Cabido Catedralício, composto de um número regular de clérigos e capelães, que eram o senado dos bispos, conselheiros e executores das celebrações litúrgicas nas Catedrais. Compunha-se de dignidades, cônegos prebendados, cônegos de meia prebenda e de capelães e moços do Coro. Por falta de número suficiente de sacerdotes, eram admitidos também clérigos, isto é, diáconos e menoristas, principalmente entre os capelães. Seu número dependia do costume de cada país ou região ou importância da Sé” (RUBERT, 1998, p. 211).


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como vigário, substituindo o falecido Antônio Gomes Coelho do Vale. O jovem sacerdote permaneceria nesta freguesia por 21 anos (1866-1887) e pôde revelar seu posicionamento em questões de fé e de política. Em termos religiosos, seu pensamento estava muito próximo ao bispo Dom Sebastião. A atitude do vigário Marcellino Bittencourt de dissolver a Irmandade do Rosário de Santa Maria foi reflexo da postura ultramontana, que estava sendo implantada por parte do clero católico do qual ele era partidário. Para dissolvê-la, o padre apresentou três motivos. Primeiro, por ela ter se afastado totalmente de sua instituição, desprezando os estatutos; segundo, por desobedecer duas vezes à proibição de sair com a bandeira a pedir esmolas; terceiro, por sair com a bandeira sem ela estar benta, o que segundo o padre, provocou o crime de idolatria, merecendo as censuras da Igreja. José Marcellino de Souza Bittencourt não tolerou a dupla desobediência e a autonomia da Irmandade, sem as bênçãos da Igreja. O vigário estava incomodado com a desobediência de suas determinações. O desacato de sua autoridade merecia punição exemplar, no referido caso, a dissolução da Irmandade. O ultramontanismo almejava que os sacerdotes fossem o centro do poder religioso em suas paróquias, controlando os fiéis e “deixando os leigos em posição secundária e passiva”(VÉSCIO, 2001, p. 100), o que estava sendo posto em prática por Marcellino Bittencourt. No catolicismo brasileiro, nesse período, as manifestações religiosas populares, como as praticadas pelas irmandades negras, iam muito além da liturgia oficial e da atuação dos padres. Os leigos tinham participação ativa, o que incomodava os clérigos que atuavam sob a orientação ultramontana. “Assuntos Administrativos das capelas e igrejas, dos santuários e confrarias, aspectos do culto, do rito e da espiritualidade, tudo foi passado para o controle dos vigários”, como observou Vitor Biasoli (2010, p. 42). O catolicismo “luso-brasileiro, leigo, medieval, social e familiar” foi sendo substituído interna e surdamente por outro “romano, clerical, tridentino, individual e sacramentalista”, conclui Biasoli (2010, p. 44). As celebrações das irmandades negras, da forma como eram realizadas, cultuando a memória dos antepassados, e o gosto pela música e pela dança contrastavam com os novos padrões da Igreja Católica. Foi a justaposição entre o sagrado e o profano, através da utilização do espaço coletivo da Irmandade para a manifestação de sua religiosidade popular, das dificuldades que enfrentavam na sociedade e de seus ritos ancestrais, que levou o padre a afirmar que ela tinha se afastado totalmente do fim de sua instituição. Nesse novo contexto, “o sagrado e o profano tornaram-se irreconciliáveis” (QUINTÃO, 2002, p. 52) e surgiram muitos conflitos entre o clero e as irmandades. A Irmandade do Rosário de Santa Maria foi uma das vítimas da estratégia de completa subordinação das associações leigas aos vigários paroquiais.


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No período em que esteve à frente da Paróquia de Santa Maria, o cônego Marcellino esteve no centro de assuntos que movimentaram e dividiram a cidade em apoio ou contestação a sua postura. Foi membro do Partido Liberal e se envolveu diretamente na política da cidade, adquirindo simpatizantes e adversários. Chegou a ser agredido próximo à praça da cidade, em um episódio ainda não muito bem explicado e contestou a Câmara Municipal na demolição da Igreja Matriz, que estava em ruínas202. Depois desse longo período em Santa Maria, em 1887, o cônego Marcellino foi transferido para a capital, Porto Alegre, onde se tornou cura da Catedral da Diocese do Rio Grande do Sul por 15 anos, o que prova sua aproximação com o bispo e o ideal ultramontano que estava sendo implantado na província. Depois desse período, dedicou-se ao desenvolvimento do “Pão dos Pobres de Santo Antônio”, instituição fundada por ele e que se dedicava ao atendimento de órfãos e viúvas. Foi grande amigo de Aurélio Veríssimo Bittencourt203, a quem convidou para assinar a escritura de compra do terreno onde seria construído o “Pão dos Pobres”, a fazer parte de sua administração (PARMAGNANI, 1995, p. 101-109) e também lhe confiou a realização de seu inventário post mortem204. José Marcellino de Souza Bittencourt recebeu diversos títulos, que fez questão de nominar no início de seu testamento, como: Cavaleiro da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, do Império do Brasil, Comendador da Real Ordem Militar de N. S. da Conceição da Vila Viçosa de Portugal, Cavaleiro da Nobilíssima Ordem do Santo Sepulcro de Jerusalém, Vice-Comissário da Terra Santa nos Estados Unidos do Brasil e Cônego Prebendado da Santa Igreja Catedral da Diocese de São Pedro do Rio Grande do Sul205. Ser filho de José Maria Bittencourt, que inicialmente foi excomungado por “rapto”, e da parda forra Joana Maria da Cruz, não impediram que ele recebesse esses títulos, em função das redes de relações que foram construídas por sua família ou por si mesmo. O cônego Marcellino deixou Santa Maria em um momento de profundas mudanças. A escravidão e o Império estavam agonizando, a cidade viveu um período de ebulição com a criação de uma colônia italiana e a instalação da ferrovia, interesses das elites e do clero se confrontavam e com a instalação da República um novo ordenamento político e jurídico foi promovido. Nesse período de mudanças, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário teve o seu renascimento. Novos desafios estavam por vir. 202. Ver KARBURG, 2007; BIASOLI, 2010; PISTÓIA; 2011. A agressão ao cônego Marcellino gerou o seguinte documento: Processo-Crime. Civil e Crime. Santa Maria. N. 1040, Maço 30, Ano 1883. APERS. 203. Para uma análise da trajetória de Aurélio Veríssimo de Bittencourt ver: MOREIRA, 2009; 2011. 204. Inventário de Jose Marcellino Bittencourt. Porto Alegre. N. 265, Ano 1911. APERS. 205. Testamento de José Marcellino de Souza Bittencourt. 29 de junho de 1911. Processo n. 1165, p. 01. APERS.


6 “AGORA QUE ESTÃO SENTADOS NO BANQUETE DA FORMOSA LIBERDADE”: O RENASCIMENTO DA IRMANDADE NO PÓS-ABOLIÇÃO



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A cidade de Santa Maria viveu momentos de agitação no final do século XIX. Uma colônia italiana foi instalada no município em 1877, trazendo novos imigrantes e novas ideias206. Em 1884, chegaram os trilhos da ferrovia e com ela o desenvolvimento urbano e o espírito de modernidade207. As disputas agitavam a política local e várias vezes redundaram em violência física, resultando em espancamentos, atentados e assassinatos (PISTÓIA, 2011). Os ideais republicanos avançavam, e o fim da escravidão estava na agenda das discussões. No Rio Grande do Sul, assim como em outras regiões do Brasil, o número de indivíduos escravizados diminuiu drasticamente a partir de 1884. O número de cativos na província era de 62.231, em 1884, diminuindo para 22.042, no ano seguinte (BAKOS, 1998, p. 72)208. Porto Alegre festejou a extinção da escravidão no município no dia 07 de setembro de 1884. Tal fenômeno ocorreu também em Santa Maria. Em 1884, o número de cativos no município era de 1124, no ano seguinte, esse número baixou para 126 cativos (Ibid., p. 72). Colaborou para que isso ocorresse, a atuação de sociedades, clubes, jornais e centros abolicionistas tanto em Porto Alegre como em diversas regiões da província (MONTI, 1985). Aparentemente poderia parecer um gesto de benevolência dos senhores ou uma tomada de consciência diante da “infâmia” da escravidão. Mas muitos utilizaram desta e de outras estratégias para continuar explorando o trabalho de ex-cativos em formas disfarçadas de escravidão. Paulo Moreira (1990, p. 212) percebeu que “a grande maioria dos ‘libertados’ em 1884 e nos anos seguintes continuaram sob o controle de seus senhores, através do sistema de contrato de serviço”. Conforme os dados apurados pelo autor, em Porto Alegre, 71% das libertações de 1884 (de um total de 352 casos) eram mediante contrato de prestação de serviço de 5,7 anos em média. Em 1885, 76,77% das libertações (de um total de 301 casos) tinham como condição a prestação de serviço com uma média de 6 anos (MOREIRA, 1990, p. 212-213). A força de trabalho dos indivíduos continuou pertencendo ao contratador que alugava, vendia, castigava e deixava em testamentos como qualquer outra de suas propriedades. 206. Era o quarto núcleo de imigração italiana do Rio Grande do Sul e foi chamada de Colônia Silveira Martins, em homenagem ao senador e presidente da Província Silveira Martins. A região ficou conhecida como Quarta Colônia e, atualmente, abrange diversos municípios. 207. Conforme João Rodolpho Amaral Flôres (2007), tratava-se da mais importante estrada de ferro construída ao longo da história do Rio Grande do Sul que ligaria Porto Alegre a Uruguaiana, interligando o Litoral com a Fronteira Oeste. Os trabalhos tiveram início em 1877, partindo da margem do Rio Taquari em direção ao centro, passando por Cachoeira do Sul e chegando a Santa Maria em 13 de outubro de 1884. Somente em 10 de setembro de 1885, os trabalhos de construção foram dados como concluídos, quando os trilhos alcançaram o pátio de manobras da estrada. Em 15 de outubro, foi inaugurada com bailes, banquetes e passeatas. (p. 104-105). Sobre a relação entre ferrovia e modernidade, ver HARRES, 2011, p. 111-127. 208. Tradicionalmente, a historiografia afirmava que a população escrava no Rio Grande do Sul baixara drasticamente após 1871, drenada pelo tráfico interprovincial. Pesquisas recentes, entretanto, têm mostrado que o estado permaneceu com grande população cativa até o final da década de 1870. Ver: ARAÚJO, 2008.


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A “emancipação” de várias cidades gaúchas foi mais uma teatralização montada em favor do processo gradual de abolição do que uma efetiva realidade. Pressionados pela resistência escrava e pelo crescimento do movimento abolicionista, os senhores optaram estrategicamente por libertar os seus cativos através da concessão de cartas de alforrias condicionais. Ou seja, a maioria dos cativos não foram libertados imediatamente, mas permaneceram presos a cláusulas que os obrigavam ao cumprimento de anos de trabalho gratuito aos seus senhores (MOREIRA, 1990; 2009). A estratégia de construção de uma “emancipação concedida” no apagar das luzes do cativeiro, segundo Walter Fraga Filho (2004, p. 104), foi uma tentativa dos senhores de arrancarem o respeito e a ‘perene gratidão’ dos antigos escravos”. Estratégia nem sempre bem-sucedida, pois muitos abandonaram seus ex-senhores, como percebeu o autor (Ibid, p. 109). Fraga Filho analisou o período de transição da escravidão para a liberdade na Bahia. Hebe Mattos (2013, p. 177-243) também percebeu a existência de múltiplos projetos e estratégias nas tentativas de controle político do processo de ‘transição do trabalho’ no Rio de Janeiro, onde também procurou-se colar a liberdade como obra de generosidade dos senhores, que apostavam na sua ascendência moral sobre os cativos. Eram variadas as tentativas de controle sobre o trabalho e sobre a população negra nos momentos derradeiros do escravismo. Os três autores aqui mencionados não esqueceram a atuação dos escravos no processo que acabou com o escravismo, como as deserções em massa, a fuga das senzalas e a pressão por alforrias coletivas. Também devem ser lembradas as atividades desenvolvidas por instituições ou intelectuais negros que tiveram atuação determinante209. Os negros não eram meros expectadores do movimento abolicionista, dirigidos por intelectuais e pródigos benfeitores brancos. Havia muitos interesses em jogo, e cada grupo usava dos recursos de que dispunham; de um lado, para controlar os trabalhadores negros; de outro, para serem livres das amarras do escravismo. O fato é que no dia 13 de maio de 1888, a princesa assinou a lei que acabou com mais de três séculos de escravidão no Brasil. Os últimos anos da escravidão em Santa Maria e a existência de grupos abolicionistas ou lideranças locais que lutaram pelo fim da escravidão precisa ainda de estudos mais consistentes. A chegada da notícia da abolição na cidade consumiu apenas duas linhas na obra de Romeu Beltrão. Escreveu ele: “A cidade festeja com um grande desfile a abolição da escravatura, decretada naquele dia. Sinal de que já existia telégrafo em Santa Maria” (BELTRÃO, 2013, p. 413). João Belém nada escreveu. Edmundo Cardoso (1990), em artigo publicado na “Revista 209. Lembramos a aproximação dos caifazes de Antônio Bento com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa Senhora dos Remédios na luta pelo fim da escravidão em São Paulo, já apresentado no capítulo 02.


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da Academia Rio-Grandense de Letras”, foi bem detalhista dos acontecimentos daqueles dias, utilizando-se do “relato da imprensa da época” (sem mencionar qual) e do contato com figuras importantes daqueles eventos210. A notícia chegou à Boca do Monte no mesmo dia em que a lei foi decretada e transformou a cidade em uma grande festa, na versão de Edmundo Cardoso. O jovem Ernesto Marques da Rocha211 era telegrafista de 1ª classe e atuava como empregado na Viação Férrea, no “posto” do distrito da Boca do Monte, onde recebia a emissão de ordens, instruções, e comunicados. No dia 13 de maio, ouviu um sinal de alerta chamando a atenção de todos os telegrafistas da linha Porto Alegre-Uruguaiana para um aviso que a seguir seria dado. Minutos depois recebeu a notícia vinda da capital de que a Princesa Isabel havia assinado a lei que abolia a escravidão no Brasil, “mancha infame que era tão detestada e contra a qual tantos combatiam no país”. Ernesto, que também “rezava pela cartilha abolicionista”, deixou um aprendiz no seu lugar, pegou seu cavalo e tomou o rumo de Santa Maria para transmitir a novidade e “embriagar-se de civismo junto ao povo que, certamente, iria festejar a alvissareira notícia” (CARDOSO, 1990, p. 36). Ernesto precisava chegar à cidade o mais breve possível, “pois os seus brios de jovem republicano precisavam ser somados, nas ruas de Santa Maria, a exaltação patriótica dos abolicionistas”. Depois de chegar à rua do Comércio, “sentiu-se como um arauto pregoeiro de um novo dia”, apeou do cavalo e foi dando a notícia a todos, enquanto se dirigia à casa de Ramiro de Oliveira212, “moço liberal e instruído”, que pregava a libertação dos escravos e fazia propaganda republicana, em consonância com seu amigo Júlio de Castilhos. O “movimento explodiu nas ruas, com o povo aglomerando-se festivamente” e dirigindo-se às residências das personalidades “pregoeiras da Abolição”. O povo começou a se aglomerar próximo da residência de Ramiro de Oliveira, 210. Entre as fontes orais de Edmundo Cardoso (1990) estava o Coronel Ramiro de Oliveira. O autor escreveu sobre o Coronel: “Eu o reverenciava e quando jovem passei muitas e muitas tardes em sua residência, usufruindo da sua sabedoria e do vigor do seu espírito. Fiz muitas anotações que serviram, ao longo dos anos, para ilustrar muitos artigos e estudos, como acontece com o presente relato” (p. 33, nota 1). O “relato da imprensa da época” utilizado por Cardoso, embora não tenha citado em seu texto, foi o jornal “O Combatente”, órgão do Clube Caixeiral. O autor possuía cópias destes jornais em seu acervo e, hoje, estão disponíveis para consulta na Casa de Memória Edmundo Cardoso. Por possuir outras fontes além do jornal, utilizaremos a versão de Cardoso e transcrevemos integralmente a notícia do jornal no Anexo 01. 211. Escreveu Edmundo Cardoso sobre Ernesto Marques da Rocha: “Resta apenas informar que o jovem Ernesto fez, posteriormente, bonita carreira. Chegou ao posto de Agente da Estação ferroviária de Santa Maria. Depois com algumas economias, demitiu-se, comprou terras, plantou, criou, vendeu madeira, casou, fez política republicana com fidelidade, e se relacionou com grandes figuras da política como Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e Pinheiro Machado, e alcançou, pelo voto popular, o cargo de Intendente Municipal de Santa Maria, tendo cumprido todo o seu mandado. E, ainda em plena vida pública, pôde ver seu filho José Marques da Rocha ser Prefeito de Santa Maria” (p. 36). 212. O Coronel Ramiro de Oliveira tornou-se chefe do PRR (Partido Republicano Rio-grandense) em Santa Maria e Intendente Municipal entre 1908 e 1912.


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na rua do Acampamento. Próximo dali ficava a residência de João Ignácio de Souza, “outra figura abolicionista assaz conhecida e respeitada”. Em seguida, chegaram as bandas de música do maestro Francisco de Paula Alexandre e a Lira Santamariense (CARDOSO, 1990, p. 36). O povo dirigiu-se para frente do Hotel León, na rua do Comércio, onde de suas janelas falaram Ramiro de Oliveira, Ernesto de Oliveira e o Dr. Joaquim Pereira da Costa, “freneticamente aplaudidos pelo povo que carregava caixas e caixas de cerveja que iam sendo consumidas avidamente”. Com atiradores de rojões e foguetes, o povo circulava pelas ruas centrais parando em frente ao Hotel Mascorda, onde falou o Dr. Júlio Gomes Porto; depois, dirigiram-se para frente da tipografia do jornal “A Província”, onde Gomes Porto saudou os jornalistas Ernesto de Oliveira e Herculano dos Santos como “representantes da imprensa livre e destemerosos combatentes em prol da Abolição” (Ibid., p. 33-34). Nova parada foi feita em frente ao jornal “O popular”, “O Combatente” e Clube Caixeiral onde também discursos eloquentes foram proferidos. Sobre a presença dos negros nas festividades Edmundo Cardoso escreveu: Os oradores abrasavam-se cada vez mais, e o tema abolicionista ficava cada vez mais quente porque muitos negros vinham se juntar as comemorações, alguns trazidos por seus “donos” para abdicar publicamente de suas “propriedades”, e outros pretos que estavam rompendo esses laços, sem esperar a iniciativa dos “proprietários”. A presença dos negros no comício inflamava os ânimos, e redobrava o entusiasmo dos abolicionistas e, et por cause dos oradores (CARDOSO, 1990, p. 34)213.

Uma sessão solene foi realizada na sede do Clube Caixeiral, com a presença dos “homens eminentes da cidade”, presidida por Manuel Carneiro Pinto, onde foram oradores o Dr. Pereira da Costa, Ernesto de Oliveira, Júlio Gomes Porto, Irineu Pereira, João Ferreira Bastos Sobrinho e o orador oficial do Clube214. Na frente do Caixeiral, eram soltos foguetes e rojões e as bandas de música revezavamse. À meia noite, a sessão foi encerrada e a muito custo a multidão se dispersou, permanecendo pequenos grupos, “acionados por oradores insistentes e algum foguetório, mas sempre com muita cerveja estimulando e lubrificando os fervores cívicos”. Àqueles que não concordavam com a causa abolicionista mantiveram-se discretos e prudentemente longe das comemorações, mas, “mesmo assim, uns poucos escravagistas mais notórios e birrentos foram alvo de apupos e vaias, sendo seus nomes gritados com epítetos menos gratificante” (CARDOSO, 1990, p. 35).

213. O negrito está conforme o texto original. 214. O Orador do Clube Caixeiral era Herculano dos Santos conforme eleição publicada em: O Combatente. 12 de fevereiro de 1888, ano II, n. 06, p. 01. ACMEC.


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Santa Maria tornou-se uma cidade festiva, emocionada e literalmente embriagada pelo fim da escravidão no Brasil, é o que podemos aferir na descrição de Cardoso. Não há dúvida de que a abolição da escravidão foi motivo de alegria para muitos, e festas aconteceram em diversas cidades do Brasil, mas a narrativa do autor deixa a impressão de um grande espetáculo teatral215. Ramiro de Oliveira, o moço instruído e liberal que pregava a abolição, junto a seu irmão Octaviano de Oliveira, alforriou publicamente o seu escravo Reginaldo só no dia 28 de março de 1888, nas comemorações do segundo aniversário do Clube Caixeiral. “O Combatente” noticiou: O Sr. Octaviano de Oliveira, depois de diversas considerações sobre a humanitária ideia da abolição dos escravos, leu uma carta concedendo liberdade plena ao crioulo Reginaldo, cuja carta era concedida por si e seu irmão Ramiro de Oliveira. Entre vivas aclamações do auditório foi essa carta entregue a D. Carolina Lenz, que a entregou ao feliz possuidor216.

O escravo Reginaldo, preto, foi comprado por Ramiro de Oliveira e outros (provavelmente seu irmão Octaviano) no dia 13 de junho de 1883 por 300 mil réis, de Müller & Ludowig217. Os irmãos Oliveira usufruíram do trabalho do escravo Reginaldo até poucas semanas antes da abolição e foram apresentados como grandes abolicionistas e defensores da liberdade. O jornalista e advogado Júlio Gomes Porto, outro aclamado orador nos festejos do 13 de maio, possuía, em 1882, o escravo Apolinário, pardo, com 17 anos, mas em vez de emitir sua carta de liberdade preferiu vendê-lo por 900 mil réis para Pereira & Irmãos, transação realizada no 03 outubro daquele ano218. Era preciso fazer política, teatralizar e demonstrar apoio a causa abolicionista, mesmo que se tenha tido benefício com o escravismo ou resistência a libertar seus escravos até o último momento. No relato de Edmundo Cardoso, os negros são apenas espectadores, “se juntam às comemorações” para ouvir os discursos de uma elite política branca. Não há qualquer menção a um indivíduo negro que tenha proferido qualquer tipo de manifestação oral. Nenhum nome é citado. A estratégia de tentar controlar a população negra, por meio do discurso da benevolência dos senhores, deu-se até mesmo depois da assinatura da lei. Alguns proprietários, também de forma teatral, apesar da lei já ter garantido a liberdade, trouxeram seus escravos para abdicar deles publicamente, reforçando a ideia de bondade e generosidade e, com isso, 215. Sobre os eventos promovidos para festejar a abolição da escravidão no Rio de Janeiro e em outros lugares do Brasil e seus registros iconográficos (fotografia), ver MORAES, 2011, p. 431-449. E também a Dissertação de Mestrado da autora: MORAES, 2007. 216. O Combatente. 08 de abril de 1888, ano II, n. 13, p. 02. ACMEC. BELTRÃO (2013, p. 412) e CARDOSO (1990, p. 32) também fazem menção a este fato. 217. APERS. Documentos da Escravidão: Livro de Compra e Venda, vol. 01, p. 399. 218. APERS. Documentos da Escravidão: Livro de Compra e Venda, vol. 02, p. 333.


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investindo na permanência dos mesmos como trabalhadores livres, porém dependentes. Não existiu em Santa Maria um movimento abolicionista atuante. Verônica Monti (1985, p. 112-113), a partir de uma notícia do “Jornal do Comércio”, de 29 de setembro de 1884, mencionou a existência de um Clube Abolicionista presidido pelo Coronel Valença, tendo como tesoureiro o Tenente Frutuoso Fontoura. Esses nomes não estavam entre os abolicionistas mencionados por Edmundo Cardoso. João Belém, em artigo sobre a imprensa de Santa Maria para a “Revista do Centenário”, de 1914, destacou a participação do jornal “O Combatente”219 e “O Popular”220 na luta pela causa abolicionista em Santa Maria. Escreveu Belém: O Combatente bateu-se pela abolição da escravatura, publicando patrióticos e veemente artigos, secundando a Federação, de Porto Alegre, nessa meritória obra de regeneração dos costumes. Herculano dos Santos, Octaviano de Oliveira e José Terra foram os mais intrépidos batalhadores desta campanha gloriosa (BELÉM, 1914, [não paginado]).

O jornal “O Popular” também foi destacado por Belém (1914), pois “a abolição da escravatura foi uma das suas mais constantes preocupações, enchendo páginas e páginas de luminosos artigos abolicionistas”. Nely Ribeiro (1993, p. 104) também mencionou a atuação desses dois jornais na propaganda abolicionista. Sobre “O Popular”, destacou que “o jornal se autoproclamava sem vínculo político, sendo seu ideal maior a Abolição da Escravatura”. Além disso, algumas iniciativas se deram pela interferência da Igreja, como se pode ver pela correspondência recebida pelo padre Achilles Parella Catalano221, enviada pelo bispado de Porto Alegre: Tenho a honra de comunicar a V. S. que em reunião de hoje a comissão do manifesto abolicionista nomeada pela Assembleia Geral, convocada no dia 23 do mês findo (...) escolheu a V.S. para em companhia dos Senhores Doutor Felippe Alves d`Oliveira, João José Pinto, Barão do Nonoai, João Cezar d´Oliveira, Presidente da Comarca Francisco José Ferreira Camboim Filho e o Collector (?) Gabriel dos Santos Moraes, formarem 219. O jornal “O Combatente” apareceu no dia 01 de janeiro de 1887, como um órgão social do Clube Caixeral, dirigido por Coriolano Camboim, Ildefonso Brenner, Vitor Rist Filho, Augusto Martins Vinhas e Otaviano de Oliveira. Era um jornal dominical, com dimensão de 30x40 centímetros e já expressava suas simpatias pela causa republicana. Em 1889, foi transferido para Adolpho Otto Brinckmann, que fez dele um órgão do Partido Republicano. Mais tarde, seu irmão Cândido Brinckmann assumiu a direção do jornal. Suspendeu suas atividades em 1907 (RIBEIRO, 1993, p. 103). Como veremos adiante, será um jornal que atacará duramente a Igreja Católica, especialmente a política ultramontana. 220. O jornal “O Popular” começou a circular em 07 de janeiro de 1888 e era dirigido por Herculano dos Santos. Durou até 1891 (RIBEIRO, 1993, p. 105-106). 221. Assumiu a paróquia em 08 de maio de 1887, substituindo o cônego José Marcellino de Souza Bittencourt. Era natural de Salvia, província de Salermo, Itália, mas naturalizou-se brasileiro em 1878. Governou a paróquia até 1895, quando foi destituído pelo bispo Dom Claudio José Ponce de Leão.


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uma comissão local que se encarregue de promover nesse município a libertação dos últimos escravos nele existentes (...). Porto Alegre, 06 de outubro de 1887222.

Se uma comissão teve que ser constituída sob indicação do clero, significa que a propaganda abolicionista, por meio dos jornais, tinha uma atuação que não estava dando resultados objetivos. Este movimento da Igreja Católica, na Boca do Monte, foi um desdobramento do apelo feito pelo Bispo D. Sebastião Dias Larajeira, em carta pastoral de 15 de agosto de 1887. Ele conclamava pela abolição completa da província, dando como prazo dezembro de 1887, quando se comemoraria o jubileu sacerdotal do Santo Papa Leão XIII223. Os membros da comissão foram convocados para uma sessão solene no dia 19 de novembro de 1887. Alguns não compareceram, mas o padre já havia solicitado ao bispo a nomeação de outros integrantes224. O padre Catalano fez um breve registro da sessão e dos acontecimentos posteriores até a lei de 13 de maio. Na noite, portanto, do referido dia 19, abriu na qualidade de Presidente da Sessão, com os digníssimos membros: Barão de Nonoai, Dr. Dioclecio Pereira da Silva; os advogados Francisco José Ferreira Camboin Filho e Dr. Felippe Alves de Oliveira servindo de secretário (...). O secretário leu a relação do número dos escravos que ainda existiam algemados ao cativeiro neste município, cuja relação foi-nos fornecida pelo escrivão da Coletoria, Cap. Manuel Carneiro Pinto espontaneamente. Dela constando, pois que só onze escravos pertenciam a diversos proprietários. Subiu à tribuna o digno secretário, o distinto advogado Camboim e o Sr. Octaviano d’Oliveira, representante do Club Comercial desta cidade, os quais em eloquentes frases apelaram para o sentimento de humanidade, patriotismo e igualdade, tanto inculcados pelo exímio Prelado, deste entusiástico povo, etc, etc. Levantou-se a sessão e no outro dia se deram providências afim dos proprietários de nossos irmãos infelizes ceder à sociedade tantos indivíduos livres. De fato, alguns deram prova de rasgos filantrópicos, outros pediram indenizações módicas, e dois, estando ausentes deste município consultaram-se. Assim as coisas se achavam e por uns meses ocorreram, quando se proclamou a áurea lei, que Excelsa. Princesa Regente por sua magnanimidade sancionou225.

Os critérios adotados para a escolha dessa comissão abolicionista não foram explicitados, mas não empolgou a todos, pois o leitor percebeu que alguns nomes indicados pelo bispo não compareceram e foram substituídos por outros. Assim como os integrantes do Clube Abolicionista, os nomes dos ávidos oradores abolicionistas, citados por Edmundo Cardoso na “festa” da abolição, 222. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro tombo n. 2 (1860-1888), p. 17. ACSM. 223. Ver o segundo capítulo do livro: MOREIRA, 2003. 224. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro tombo n. 2 (1860-1888), p. 174v-175. ACSM. 225. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Livro tombo n. 2 (1860-1888), p. 174v-175. APNSC-SM.


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não se encontravam na comissão nomeada pelo clero, a não ser Octaviano de Oliveira, que subiu à tribuna para apelar “para o sentimento de humanidade, patriotismo e igualdade”, mas, junto ao seu irmão Ramiro, alforriou seu escravo Reginaldo quatro meses depois desta sessão solene e poucas semanas antes da abolição, conforme vimos. O Barão de Nonoai226, integrante da comissão, possuía um grande número de escravos e depois se engajou no movimento abolicionista, mas também se utilizou do expediente dos “contratos de trabalho”, pois, em 1887, emitiu a seguinte carta de liberdade: Confiro plena liberdade ao meu ex-escravo Manoel Antônio, desistindo da condição de serviços a que estava sujeito, pelo que pode com sua mulher Marianna, emancipada, retirar-se desta fazenda quando lhe parecer e gozar de todas as regalias independente da presente declaração. Umbu, dezenove de abril de mil oitocentos e oitenta e sete. Barão de Nononhay227.

A carta foi concedida em 19 de abril e registrada em 12 de dezembro de 1887 e começa com uma contradição: “confiro a liberdade a meu ex-escravo”. Esse trecho confirma a existência de estágios intermediários entre escravidão e liberdade e as expectativas dos senhores da manutenção do domínio sobre seus trabalhadores após o fim do cativeiro: meu ex-escravo, meu liberto são expressões que denotam tais sentimentos. Mas é provável que Manoel Antônio já estivesse imerso em um contrato de prestação de serviços firmado oralmente entre trabalhador escravo e seu senhor, já que não encontramos esse documento registrado nos tabelionatos locais. Por outro lado, outra denominação chama a atenção, dirigida à mulher de Manoel Antônio, a emancipada Mariana, talvez já forra, mas que habitava na fazenda na companhia de seu companheiro ou esposo. A carta é um exemplo das armadilhas que poderiam estar contidas nas alforrias e nos abolicionistas, que continuavam explorando a mão de obra dos supostos libertos e, obviamente, falseava os números de cativos. As convicções de liberdade e de igualdade dos abolicionistas santa-marienses eram parciais e 226. O jornal “Diário de Santa Maria” publicou a seguinte nota sobre a trajetória do Barão de Nonoai: “João Pereira de Almeida nasceu em 1829. Era filho do militar João Pereira de Almeida e de Francisca Justa Pereira de Almeida, naturais do Paraná, e que moravam em São Martinho da Serra. Ainda jovem, ele passou a trabalhar como tropeiro. Mais tarde, casou-se com a filha de um fazendeiro da região, vindo morar em Santa Maria. Além de gostar das lidas campeiras, desde moço João mostrou apreço pela política. Ele chegou a ser delegado de polícia e comandante da Guarda Nacional de Santa Maria. Também era abolicionista, tanto que libertou os escravos de suas fazendas bem antes de 1888, quando a Lei Áurea tornou obrigatória a liberdade dos negros escravizados. A precoce alforria fez João Pereira de Almeida receber, em 1886, o título de Barão de Nonoai. João Pereira de Almeida foi empreiteiro da ferrovia Santa Maria-Uruguaiana e se distinguiu como o primeiro estancieiro a importar animais reprodutores do estrangeiro, com o objetivo de melhorar os rebanhos gaúchos. Muito desgostoso com a revolução de 1893, transferiu residência para Porto Alegre, onde morreu em 12 de julho de 1897” (Almanaque. Diário de Santa Maria, 22 de junho de 2002, p. 07). 227. Carta de Liberdade de Manoel Antônio. 12 de dezembro de 1887. Tabelionato do município de Cruz Alta, Livro 1, p. 18v. APERS. Sua versão digital está em: <https://secweb.procergs.com.br/aap/ ObtemDadosServlet?metodo=verArquivoPDF&NRO_INT_DOCUMENTO=742528>. Acesso em 07/08/2015


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contraditórias, talvez, por isso, nenhum deles tenha se destacado no imaginário popular como defensores dos escravizados. Mesmo sem uma atuação marcante em prol do fim da escravidão, era preciso parecer que todos estivessem engajados neste fim. A memória do dia “Treze de Maio” foi sendo construída na cidade como sendo obra de uma elite política e intelectual. No dia 26 de julho de 1888, a Câmara Municipal discutiu a abertura de uma rua em propriedades de João Daudt Filho, onde o engenheiro do município propôs “a denominação de Treze de Maio, por conter esta data uma época memorável para o Império, visto representar ela a sagração de um direito universal, que se resume na ideia de – liberdade -”228. Em 21 de outubro de 1888, “O Combatente” anunciava: “A edificação do Theatro 13 de Maio é para nós uma próxima realidade, porque a sua iniciativa partiu de um moço cheio de esperanças e que nossa sociedade goza de um nome e de uma influência bastante invejável”229. O moço cheio de esperança e influente era João Daudt Filho. Em 26 de janeiro de 1889, ele convocou uma reunião e uma sociedade foi efetivamente constituída para a construção do teatro (BELTRÃO, 2013, p. 422). Eternizar o “Treze de Maio” em nomes de ruas, sociedades e teatros foi uma tentativa de garantir os dividendos políticos e sociais da abolição e manter na memória da população a benevolência senhorial. Fazer associações à data “Treze de Maio” era conveniente, pois despersonalizava sua construção e evitava a associação com políticos ou intelectuais, principalmente em tempos de crise do Império Brasileiro e crescimento do ideal republicano. A população negra terá o seu próprio “Treze de Maio”, tanto como um espaço físico, como uma versão própria da abolição. O fim da escravidão, em Santa Maria, foi caracterizado por uma tentativa de controle sobre a memória desses acontecimentos, marcados por um discurso da benevolência branca, da produção de uma expectativa de gratidão dos ex-escravos e da constituição dos negros como expectadores do processo. E depois? Como a população negra se organizou no pós-abolição em Santa Maria da Boca do Monte? A primeira instituição que reuniu e deu visibilidade à população negra de Santa Maria foi a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Era um novo momento, novos projetos e muita expectativa em tempos de liberdade.

6.1 O RENASCIMENTO DA IRMANDADE O fim do regime escravista no Brasil era uma certeza no final do século XIX. A partir daí, surgiram muitas discussões que iam da indenização aos pro228. Câmara Municipal de Santa Maria. Livro de Atas (1888-1892), p. 26v-27. ACMSM. 229. O Combatente. 21 de outubro de 1888, ano II, n. 38, p. 01. ACMEC. Ver também: BELTRÃO, 2013, p. 417.


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prietários, até o destino dos libertos. Uma das consequências do “medo branco”, expressão usada por Celia Marinho de Azevedo, era investir em mecanismos de controle desta população que estaria livre da violência das imposições escravistas. A tentativa de controle poderia se dar por meio ideológico através do discurso da gratidão, da importância do trabalho e da observância das leis ou por meios práticos, como a criação de leis que proibiam a vadiagem. O discurso do controle da moralidade e da vadiagem esteve muito presente em Santa Maria da Boca do Monte. Em julho de 1888, o jornal “O Combatente”, enquanto ainda era um órgão de divulgação do Clube Caixeiral, fez o seguinte pedido às autoridades: Por diversas vezes temos presenciado a imoralidade e falta de respeito tributados às famílias que passeiam à noite por grupos de negras, que não querendo sujeitar-se em casa de seus patrões, entregam-se à vadiagem não respeitando a ninguém. Ainda há poucos dias, quando dançava-se em uma casa de família da rua do Comércio, os transeuntes eram obrigados a passarem pelo meio da rua porque a malta de vagabundas não só tomava a calçada, não dando lugar as famílias que passavam, como também pela linguagem imoral e injuriosas que dirigiam às pessoas de respeito. Ainda não é tudo. Depois que se fecha o comercio juntam-se uma quantas pretas na esquina do bilhar do hotel Léon e começam numa berraria imoral, vaiando a quem passa e falando de todos, não respeitando o lar de famílias respeitáveis de nossa sociedade. Para este fato chamamos a atenção das autoridades policiais, cônscios de que não precisaremos voltar ao assunto230.

O mesmo “Clube Caixeiral”, onde foram reunidos os “homens eminentes da sociedade” para festejar a abolição por meio de seu informativo, cobrava o controle da população negra, que agora recusava a “sujeitar-se nas casas de seus patrões”. A Igreja teve papel importante no discurso de controle social dos libertos, como podemos ver na Carta Pastoral de D. Sebastião Dias Laranjeira, de 15 de agosto de 1887. Depois de afirmar que “a escravidão é um cadáver que urge ser enterrado”, escreveu o bispo: Agora uma palavra aos libertos: Destituídos à sociedade no gozo e posse dos foros de cidadãos, queridos filhos, deveis ser gratos aos vossos benfeitores, que quebraram as cadeias que vos retinham no cativeiro. Deveis ser homens morigerados e ativos, continuando no pacífico exercício das vossas ocupações, e abominar a ociosidade que é a fonte de todos os vícios e de inúmeros males. Deveis obedecer às leis que nos regem e respeitar as autoridades constituídas no país. Deveis, enfim, como filhos dóceis da Santa Igreja, ser tementes a Deus e observar as suas leis e os seus preceitos, no vosso próprio bem espiritual e temporal231.

230. O Combatente. Santa Maria, 29 de julho de 1888, ano II, n. 27. ACMEC. 231. Carta Pastoral de D. Sebastião Dias Laranjeira. In: Báculo Episcopal: Encíclicas e Pastorais. Porto Alegre, de agosto de 1887, p. 07.


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Um liberto dócil, grato, temente a Deus e trabalhador era o que almejava o bispo, o clero e a elite proprietária que viu ameaçada a sua produção, pois esses trabalhadores agora tinham um dos pilares fundamentais da liberdade: a mobilidade. Para Hebe Mattos (2013, p. 288), os pilares básicos da liberdade eram a mobilidade, a família e a propriedade e possuíam significações profundas tanto no quadro tradicional, hierárquico e integrativo da sociedade rural desde o período colonial, como no quadro das prerrogativas da liberdade civil, pensadas nos moldes liberais. Para George Reid Andrews (1998, p. 84), o verdadeiro perigo colocado pela abolição não foi a violência física, mas o poder dos ex-escravos de negociar como iriam viver e trabalhar e, no caso de São Paulo, muitos fazendeiros eram incapazes de imaginar que teriam que barganhar com seus ex-escravos. A Igreja estava interessada no controle dos destinos desta população. É interessante notar que o bispo se dirigia pessoalmente aos libertos, sendo indicativa a presença deles no espaço católico. A criação de irmandades negras nos moldes ultramontanos poderia ser uma alternativa para o controle da população que agora estava livre da escravidão. Foi o que aconteceu na localidade de São Sebastião do Caí - RS, região de colonização alemã, onde foi criada, em 1890, a Confraria de São Pedro Claver com o fim de promover a vida “verdadeiramente católica entre os descendentes de africanos”. Os irmãos da confraria deveriam viver honestamente como solteiros ou legitimamente casados, assistir à missa aos domingos, confessar-se uma vez por ano, mandar os filhos à doutrina cristã, reunir-se uma vez por mês para assistir à devoção de São Pedro Claver e tratar de assuntos da Confraria, assistir às encomendações e ajudar-se mutuamente por obras de caridade. O vigário era o presidente da confraria e poderia constituir zeladores e zeladoras para vigiar a observância dos estatutos. Um provedor geral era escolhido anualmente para, junto ao presidente, zelar pelos interesses espirituais e temporais da confraria. Foram também eleitos um secretário e um tesoureiro. Independentemente de quem fosse o vigário, ele sempre seria o presidente da confraria232, demonstração de controle institucional sobre a associação criada nos parâmetros que desejava o ultramontanismo e com o objetivo de manter ligados à doutrina cristã “os descendentes de africanos”. O imaginário das elites, no século XIX, sobre a população negra brasileira foi analisada por Célia Maria de Azevedo (2004) em “Onda Negra Medo Branco”. A autora demonstrou que a preocupação com o controle social dos libertos era generalizada e que também foi um componente muito forte no discurso de muitos abolicionistas. As propostas e preocupações iam da coação para o trabalho até a manutenção da ordem para assegurar a prosperidade da nação. A criação de 232. Livro de Compromissos. Irmandade de São Pedro Claver, p. 19v.-21. AHCMPA.


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irmandades e a Carta Pastoral de D. Sebastião Dias Laranjeiras – que insistia na gratidão, na continuidade das ocupações, na abominação da ociosidade, na obediência às leis, no respeito as autoridades – inseriram a Igreja Católica na perspectiva do “medo branco”, da recusa ao trabalho nas propriedades dos antigos senhores, da insubordinação ou da autonomia da população negra agora livre das correntes do cativeiro. Neste cenário imediato do pós-abolição de Santa Maria da Boca do Monte, antes mesmo de completar um ano da Lei Áurea, o Pe. Aquiles enviou uma correspondência ao Vigário Capitular da Diocese do Rio Grande do Sul, Monsenhor Vicente Ferreira da Costa Pinheiro nos seguintes termos: Carta minha de informação sobre a futura Irmandade do Rosário ao Excelentíssimo Vigário Capitular. Em obediência ao venerável despacho por Vossa Excelência na petição retro exarado, vou submeter ao seu paternal critério o seguinte: Que os signatários supramencionados formam um pessoal mais ou menos morigerado, de espírito religioso para a sua oraga e prontos para este meio aperfeiçoar-se nas virtudes morais, teologais e sociais, sem exclusão da maior e mais sublime de todas – a caridade. É conveniente para os excelentíssimos senhores confraternizarem-se agora que estão sentados no banquete da formosa liberdade, criando a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, desde que a risca siga o que os compromissos preceituam. Cumpre-me, outrossim, a Vossa Excelência declarar que não garanto das qualidades de todos os mais que tem prestes de entrar para o dito sodalício; porém, das informações detidamente coligidas, julgo que não desmentirão ao desideratum, tão entusiasticamente encetado. Deus guarde a Vossa Excelência. Santa Maria, 01 de março de 1889233.

A correspondência do vigário é um tanto vaga sobre quem teve a iniciativa de recriar a Irmandade, mas deixa algumas pistas. O padre afirmou que é “um pessoal mais ou menos morigerado” e que não garante as qualidades de “todos os mais que tem prestes de entrar”, demonstrando muitas dúvidas sobre os seus membros. Se fosse o padre que tivesse a iniciativa de recriá-la, não apresentaria seus membros com tanto descrédito e com tamanha desconfiança sobre os futuros membros. O padre também escreveu que achava conveniente a confraternização dos “excelentíssimos senhores”, “criando a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário”, “agora que estavam sentados no banquete da formosa liberdade”, indicando que tal iniciativa não era obra sua, mas da população negra, agora livre do cativeiro. A Igreja também aproveitava a iniciativa dos próprios negros para mantê-los próximo de sua doutrina e instituição. O fim da escravidão pode ter sido a motivação para o início da organização de instituições negras em Santa Maria, e a Irmandade do Rosário foi a primeira delas. Embora as diferenças jurídicas tenham desaparecido com o fim da 233. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Livro tombo n. 3 (1889-1914), p. 36. APNSC-SM.


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escravidão, a segregação racial, social e cultural era um desafio a ser enfrentado, que começou com a própria correspondência do vigário anunciando a criação da Irmandade, que é marcada pelo descrédito e pela desconfiança. A impossibilidade de participar plenamente da vida social da cidade levou-os à formação de espaços próprios, onde pudessem ter participação ativa, celebrando sua religiosidade, o resultado do seu trabalho, sua sociabilidade ou aspectos da vida cotidiana.

6.1.1 UM LOCAL PARA A SEDE DA IRMANDADE A Irmandade precisava de uma igreja para ser a sua sede. A construção de templos bem equipados e ornamentados era de suma importância, especialmente para as irmandades negras, pois eles se tornavam um símbolo de organização, de empenho e de prestígio. Construir uma igreja para celebrar Nossa Senhora do Rosário permitiria à comunidade negra de Santa Maria um espaço de convivência religiosa e social. Um espaço próprio, conquistado e construído. Nessa fase de organização, lideranças começaram a surgir e um abaixo-assinado foi realizado e enviado à Câmara Municipal. Na sessão do dia 23 de junho de 1889, a Câmara discutiu o assunto e decidiu atender ao pedido da Irmandade. O livro de Atas da Câmara assim descreve este movimento: Um nós abaixo-assinado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, pedindo o terreno e materiais, pedras e tijolos, do cemitério velho intramuros desta cidade para a edificação de uma capela para a padroeira da mesma Irmandade, que depois de elucidado e bem discutido este assunto deu a Câmara este despacho: “Como requerem. Dando o agrimensor alinhamento necessário a partir da rua 24 de maio, do terreno nº 3, da quadra nº 3, até o terreno nº 7 e fundos iguais ao sul; podendo empregarem na construção da capela as pedras e tijolos do cemitério velho, com a obrigação de deixarem a rua aberta e limpa, assim como removerem para o cemitério atual as grades de ferro ali existentes”234.

Os confrades do Rosário estavam solicitando para sua sede o local que serviu de espaço para o antigo Cemitério Santa Cruz, de onde seriam aproveitadas as pedras e os tijolos para a construção da Capela da Irmandade. O cemitério esteve em funcionamento até 1879, quando um novo local foi destinado para os sepultamentos, depois de mais de duas décadas de negociações com o governo provincial, na grande maioria conduzida pelo padre Antônio Gomes Coelho do Valle. A Igreja Matriz de Santa Maria foi construída no início do século XIX e, em torno da igreja, erigiu-se o cemitério. Sepultamentos eram feitos no interior da capela e ao seu redor. Na frente da igreja existia a praça, que era cheia de barrancos 234. Câmara Municipal de Santa Maria. Livro de Atas (1888-1892), p. 56. ACMSM.


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de terra vermelha, coberta de capim e de macegas. Os vizinhos aproveitavam para levar para a praça cavalos e vacas de leite para ali pastarem livremente. Como o cemitério que circundava a igreja não era cercado, provavelmente esses e outros animais circulavam entre os túmulos. Este cemitério estava ficando cheio e na década de 1860 um novo foi construído a uma distância de um quilômetro da Igreja Matriz e era chamado de “Campo Santo de Santa Cruz”235. O vigário Antônio Gomes Coelho do Valle iniciou a tentativa de construção de um novo cemitério em 1856. Manteve diversas correspondências com Câmara de Cachoeira (de onde Santa Maria era distrito) e com a presidência da Província. Comissões foram criadas, o terreno foi escolhido, orçamentos foram feitos, mas o novo cemitério não saia. O vigário insistiu até 1864, quando pediu demissão do cargo de presidente da comissão de obras. Já velho e doente, faleceu em 1865. A autorização para a construção do cemitério em Santa Maria só foi efetivada pela lei 1.129, de 24 de abril de 1878. Em 1879, o cemitério estava apto para uso. Ossos e sepulturas do cemitério da Matriz e do cemitério Santa Cruz foram removidos para o novo local. Em 1888, a igreja foi demolida. A velha igreja e o cemitério que a circundava desapareceram do cenário da cidade. Em seu lugar, ruas foram alargadas e a praça remodelada. Para Alexandre Karsburg (2007, p. 43), “os políticos e comerciantes estavam realmente motivados em modificar a cidade, principalmente o seu Centro, justamente onde se encontravam a igreja, o cemitério e a praça”. A cidade deveria ser moderna236, bela e higienizada. A mesma intenção de ocupar o terreno de um antigo cemitério para a construção de uma igreja ocorreu em Bagé, também com uma Irmandade do Rosário, porém, trinta anos antes. Os membros escreveram para a Câmara Municipal a seguinte solicitação: Os abaixo assinados Irmãos de mesa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário ereta na Freguesia de São Sebastião desta Cidade, tendo em sua sessão acordado dar princípio a construção de uma Igreja com a invocação da mesma Senhora, no terreno sito na rua Santa Bárbara que outrora serviu de cemitério e contem cento e cinquenta e cinco palmos na sua frente a mesma sua a Leste, com fundos competentes ao Este, dividindo-se pelo Sul com casas de Manuel Galvão, e pelo Norte com terrenos de Tristão Rodrigues de Borba; precisam para esse fim requerer ao Governo da Província a concessão por título do mesmo terreno, por isso requerem e […] se dignem proceder as diligências do estilo. Cidade de Bagé, 30 de setembro de 1860237. 235. Relato baseado em: DAUDT FILHO, 2003; KARSBURG, 2007; FLORES, 2007. 236. “A noção corrente de modernidade no Brasil, de fins do século XIX e início do XX, dizia respeito ao progresso material, técnico e urbano. Para a maioria da população, a modernidade se traduzia em modificações que iam desde mudanças arquitetônicas de prédios, alargamento de ruas, construção de praças, até a higienização dos espaços públicos. Também envolvia novos valores culturais, como a ética do trabalho e normalização dos costumes, incluso nesse ponto uma vivência religiosa diferente. Todo esse processo era encetado pela parcela dominante do país: a elite política e intelectual” (KARSBURG, 2007, p. 30). 237. Correspondências. Assuntos Religiosos. Porto Alegre. Caixa 11, Maço 22, 1860. AHRS


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Por que essas duas irmandades solicitaram os terrenos dos antigos cemitérios para a construção de suas igrejas? O cemitério, de espaço sagrado, foi tornando-se um lugar que deveria ser evitado por ser insalubre, causador de doenças e deveria ficar longe das pessoas e dos pontos principais de convício urbano. Em alguns lugares, os espaços em que ocupavam nas cidades tornaramse ociosos, talvez por respeito ao local ou mesmo por ter permanecido a ideia de que o terreno ainda era portador de doenças. O certo é que algumas irmandades viram nesses locais uma oportunidade para erguer seus templos, como ocorreu em Santa Maria com a Irmandade do Rosário. Em Santa Maria, logo depois da emancipação política, a Câmara Municipal começou a conceder terrenos para a população sob a forma de aforamentos perpétuos, o que causou certa divergência com a Presidência da Província. A Câmara concedia os aforamentos baseando-se numa suposta doação do Pe. Ambrózio dos terrenos onde se encontrava o centro da povoação. O Presidente da Província exigia a comprovação documental de tal doação238. Depois de um longo tempo e muitas trocas de correspondências em que Câmara solicitava os terrenos para aumentar “as exíguas rendas”, mediante o aforamento dos terrenos e o governo provincial afirmando que ele que tinha esse direito, o Ministério dos Negócios, da Agricultura e Obras Públicas fez a concessão, em 04 de novembro de 1875, de uma légua quadrada “de terras públicas, compreendendo as ocupadas por esta Vila, para patrimônio desta Câmara (...), sendo, porém respeitados os direitos adquiridos pelos posseiros, sesmeiros e intrusos (...)”239. Dessa forma, 238. Em 08 de outubro de 1859, a Câmara Municipal de Santa Maria respondeu um ofício da Presidência da Província que solicitava se possuía algum patrimônio na povoação e, se não tivesse, em que lei poderia basear-se para conceder o aforamento de terrenos na vila. Em resposta, a Câmara afirmou que “tem feito algumas concessões de terrenos dentro do recinto da Vila, fundada na razão de serem terrenos concedidos por patrimônio pelo falecido Padre Ambrózio de Tal, quando se fundou esta povoação, isso atestam pessoas desse tempo que ainda hoje existem e que merecem todo o critério. Fundado nesses princípios foi que fez algumas concessões e nunca com o intuito e abusar da lei que nos regula sobre as terras devolutas” (Correspondência Expedidas. Porto Alegre, Maço 51, Caixa 26. AHRS). Em 22 de maio de 1862, a Câmara enviou nova correspondência explicando como entendia o uso dos terrenos da povoação: “Esta Câmara deliberou representar que tendo os terrenos em que está situada esta Vila e outras adjacentes (...) feito parte integrante de uma sesmaria ou concessão do Governo Geral obtida talvez há mais de cinquenta anos pelo Padre Ambrózio José de Freitas, e por este cedidas ou doadas para edificação e estabelecimento desta Vila, começada como Capela, opina esta Câmara que tendo sido a aquisição de tais terrenos feita de propriedade particular não podem eles serem considerados ainda hoje do domínio público, do qual julga terem sido excluídos por virtude da concessão do Governo a aquele Padre Ambrózio e, por isso, com toda a razão devem pertencer ao patrimônio municipal, preenchendose o fim de sua aplicação feita pelo concessionário e possuidor dos mesmos terrenos. Cumpre notar que a cessão ou doação do Padre Ambrózio de Freitas foi feita invoce, sem que haja notícia de escritura ou documento pelo que a realizasse; porém persuade-se esta Câmara que semelhante ato está bastante provado já pela tradição e abandono dos terrenos por parte do mesmo padre, e já pelos fatos consecutivos da posse que deles tomaram os primeiros povoadores e encarregados do estabelecimento da Povoação, aos quais até venderam, para ocorrer as despesas da obra da igreja da então Capela, uma porção desses mesmos terrenos, adquiridos pela doação do Padre Ambrózio (...)” (Correspondência Expedidas. Porto Alegre, Maço 51, Caixa 26, 1862). 239. Câmara Municipal de Santa Maria. ACMSM. Livro de Atas (1872-1882), p. 60v.


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a Câmara passou a conceder os terrenos sem a interferência provincial e determinar quem deveria recebê-los. Os aforamentos beneficiaram famílias inteiras e eram concedidas largamente. Estancieiros, militares, comerciantes foram ocupando os melhores lugares do espaço urbano240. A população pobre também se serviu desse expediente e solicitava terrenos para suas construções, mas foi ocupando espaços de menor prestígio, além de encontrar mais dificuldades na sua concessão. O indivíduo que obtivesse a concessão de aforamento de um terreno tinha a obrigação de pagar o “foro” (imposto de 2% sobre o valor do terreno) e deveria edificá-lo no prazo de dois anos. Caso isso não ocorresse, o terreno caía em “comisso” e poderia ser concedido a outra pessoa241. Em 10 de outubro de 1873, Maria de Jesus solicitou o aforamento de um terreno, mas a Câmara exigiu que “a suplicante justificasse a sua liberdade para poder requerer”242. Generosa Maria da Conceição, Francisca Maria da Conceição e Maria Braúlia de Oliveira tiveram seus requerimentos de aforamentos na quadra nº 24 indeferidos, em 29 de julho de 1881, “vistos não estarem as suplicantes em condições de poderem edificar e satisfazerem aos demais compromissos”243. O fato de ter recursos para construir em dois anos no terreno aforado limitava as concessões aos mais abastados e afastava a população pobre para regiões mais periféricas. A Irmandade, ao fazer a solicitação de terrenos para a construção de sua igreja, estava repetindo uma prática que era corriqueira em Santa Maria. Já que não existiam mais tantos terrenos devolutos, a solução foi encontrada no cemitério abandonado. A área do antigo cemitério permitiria que ela conseguisse terrenos contíguos, o que garantiria um espaço maior, pois as intenções dos irmãos do Rosário iam muito além da construção de uma capela.

6.1.2 A CONSTRUÇÃO DA CAPELA Depois de ter obtido o local, a Irmandade começou a se mobilizar para a construção de sua sede. O terreno já estava limpo, provavelmente as pedras e os tijolos dos muros do antigo cemitério já estavam separados, o portão de ferro transportado para o novo cemitério público, como ordenou os vereadores. Quando tudo já estava preparado, a Mesa da Irmandade enviou um ofício 240. Pesquisas têm demonstrado como elites rurais, cujos patrimônios estavam assentados em bens como fazendas e charqueadas, investiram em patrimônios urbanos edificados, visando localizar-se estrategicamente próximos com relação aos órgãos políticos, como as Câmaras Municipais, e a outros espaços de sociabilidade dos homens de bem. Ver: MARTINY, 2010; VARGAS, 2013. 241. Câmara Municipal de Santa Maria. ACMSM. Livro de Atas (1872-1882), p. 241. 242. Câmara Municipal de Santa Maria. ACMSM. Livro de Atas (1872-1882), p. 15v. Maria de Jesus provou sua condição de liberdade e seu pedido foi deferido na sessão do dia 11 de outubro de 1873 (Livro de Atas (1872-1882), p. 16. 243. Câmara Municipal de Santa Maria. ACMSM. Livro de Atas (1872-1882), p. 239v.


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convidando os membros da Intendência para o lançamento da pedra fundamental da nova igreja244. Em 26 de janeiro de 1890, uma cerimônia marcou o início das obras da capela. O vigário escreveu o seguinte discurso sobre o evento: Senhores. É hoje um dia de júbilo santo e solene para a Igreja Católica por este novo templosinho que aqui erigir-se-á brevemente; e de supremo regozijo para este povo sempre dedicado e pronto para alardear a sua fé inabalável! Será neste lugar, depois de ereto este Templo, o lugar sagrado para nos congregar, prestar a Deus o tributo da oração, respeito e obediência que lhe devemos como nosso Criador. Ah, Senhores, deixai expandir o meu coração. Neste momento está se patenteando um fato triste e aflitivo que a todos repercute, tenho disso certeza. Vejo que os protestantes, aliás dignos e invejáveis cidadãos, ali tem o seu templo campeando a sua torre sobre esta cidade com maioria católica. Vejo que uma raça ontem inferior a nós pela sua cativa sociabilidade e hoje livres e unidos fundam uma capela que a posteridade falará mais alto que a minha palavra. E nós católicos fizemos passar por sobre a velha matriz a “delenda Carthago” do “comartello”. Arrasou-se o antigo templo, e dizer aos pósteros, como o poeta “hie Tróia Fruit”, aqui outrora surgiu a casa de Deus que ensinou aos nossos antepassados a sua religiosa, social, civil e venturosa. Como isto é consternador! Homens de pouca fé, exclamarei como o Divino Mestre, porque dormis e o vendaval do ateísmo nos esmaga, vos divide e arranca de nossos peitos a luz da fé que alumia o agitar tenebroso do mundo moderno e a âncora da esperança que nos conforta no mais cruéis da vida. Sacudis, para o jugo do indiferentismo: chegou a época de desafiar o campo oposto que levanta a barreira contra a rocha inexpugnável que sobreviveu 19 séculos de lutas e triunfos e tudo em roda dela esboroa-se. Refleti e confiai em Deus. Foram estas desalinhadas palavras pronunciadas antes de lançar a pedra fundamental perante um número concurso e cuja ata ficou encerrada na pedra fundamental, e não vai aqui transcrita por esquecimento. A capelinha está situada no antigo cemitério, aproveitando-se de todo o material cedido pela Câmara Municipal e será levantada com esmolas do povo e mais entradas dos irmãos e irmãs. Santa Maria, 26 de janeiro de 1890245.

O discurso do vigário Aquiles Catalano é uma clara demonstração de sua insatisfação diante das dificuldades que o clero estava enfrentando na cidade246. O sacerdote apontou o avanço do protestantismo, do ateísmo, do indiferentismo e dos perigos do mundo moderno como ameaças para os católicos, perigos também apontados pelos ultramontanos. Mas, seu principal lamento era ausência de uma Igreja Matriz, que havia sido demolida por estar em ruínas247. Sobre os 244. Câmara Municipal de Santa Maria. ACMSM. Livro de Atas (1888-1892), p. 93v. 245. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Livro tombo n. 3 (1889-1914), p. 48-48verso. APNSC-SM. 246. Sobre o catolicismo em Santa Maria e região no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, ver KARBURG, 2007; BIASOLI, 2010; VÉSCIO, 2001. 247. O vigário Catalano estava diretamente envolvido com a demolição da Igreja Matriz proposta pela Câmara, pois ameaçava cair sobre os fiéis. Em 24 de dezembro de 1888, o bispado de Porto Alegre enviou uma correspondência ao Presidente da Província afirmando que havia recebido um telegrama do vigário dizendo que a igreja ia ser demolida e o material ia ser usado para a construção de um teatro e reclamava que “nenhuma igreja por velha ou arruinada que esteja pode ser demolida sem proceder licença ou acordo da autoridade diocesana, e que os materiais da mesma a saber: a madeira, pedra


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integrantes da Irmandade, e a capela que começava a ser construída, poucas foram as referências, a não ser a condição de que “uma raça ontem inferior a nós pela sua cativa sociabilidade e hoje livres e unidos fundam uma capela”, demonstrando que a experiência da escravidão e agora da liberdade, marcavam os membros da Irmandade do Rosário. Embora toda a organização e mobilização tenham permitido a posse do terreno e o lançamento da pedra fundamental em um período curto de tempo, a construção da capela revelou as dificuldades econômicas daquela comunidade negra. Os alicerces do templo foram fincados e a obra parou. E ficou assim por bastante tempo, a ponto de ser referida pelo cronista que utilizava o pseudônimo de “R. O. Chedo”, que no período eleitoral de 1896, anunciava, de forma jocosa, que se apresentaria como candidato e resolveria todos os problemas da cidade, entre eles, ordenaria “a conclusão da capelinha da Vila Rica”248. Outro cronista, que assinava com o pseudônimo de Aurélio Pinto, com o objetivo de fazer uma crítica a algumas posições tomadas pela Irmandade, que analisaremos adiante, resumiu a fase inicial da construção da capela da seguinte maneira:

e telha em bom estado não podem ser vendidos nem empregados em uso ou obra profana, como se pretende no caso presente” (Correspondência Expedidas. Livro III-1.1.18/11, p. 43. (AHCMPA). Quatro dias depois, o Monsenhor Vicente Pereira da Costa Pinheiro enviou uma correspondência ao vigário Aquilles Catalano informando as providências que havia tomado em relação à demolição da igreja: “ (...) ficando certo de haver a Presidência da Província mandado que a Câmara Municipal suspendesse os trabalhos da demolição da velha Igreja Matriz em virtude de minha reclamação. Entretanto, não sei ainda qual será a solução definitiva sobre este assunto, mas julgo que não poderá deixar de ser-nos favorável”. (..) Contra este atentado que se pretendia levar a efeito, reclamei enérgicas providências da Presidência, como era do meu dever” (Correspondência Expedidas. Livro III-1.1.18/11, 43v. AHCMPA). No entanto, o Monsenhor Pinheiro, representante do bispado, foi surpreendido com a resposta que obteve da Presidência da Província e fez duras cobranças ao Vigário Catalano com a seguinte ofício: “Acaba de responder-me a Presidência, trazendo ao meu conhecimento a correspondência trocada o ano passado sobre este assunto, entre a qual uma cópia de um ofício de V. Rma. dirigido à Câmara Municipal dessa cidade dizendo que visto achar-se concluído o Império do Espírito Santo e para ele serem transferidos as imagens da Igreja Matriz pelo seu estado de ruína, comunicava-lhe com autorização do Prelado diocesano que providenciasse no sentido de ser demolida a aludida igreja e propondo que os materiais da mesma fossem vendidos e o seu produto aplicado na construção dos altares, côro e mais obras precisas na mencionada Capela do Espírito Santo. Foi, pois em consequência desta requisição de V. Rma. que a Câmara Municipal promoveu ultimamente a demolição da arruinada Igreja Matriz (...). Ora, se V. Rma. havia julgado conveniente e para este fim deu os necessários passos a demolição da velha Igreja Matriz (...) parecia natural e justo que nada viesse agora reclamar quando se praticava aquilo mesmo que V. Rma. havia pedido oficialmente, nem era lícito que sabendo disso levasse à Presidência da Província reclamação alguma a este respeito”. O prelado diocesano também reclama que o vigário não tinha autorização para proceder a vender os materiais da igreja e que por isso agiu irregularmente. (Correspondência Expedidas. Livro III-1.1.18/11, p. 45-46. AHCMPA). Restava ao Monsenhor Pinheiro se desculpar com a Presidência da Província, o que fez em 02 de janeiro de 1889: “(...) O Reverendo Vigário teve procedimento irregular como lhe faço sentir nesta data, muito embora se queira eximir agora da responsabilidade como parece à vista da representação que nos dirigiu e que levei ao conhecimento de V. Exª.” (Correspondência Expedidas. Livro III-1.1.18/11, p. 48-48v. AHCMPA). Sobre este assunto ver também: KARBURG, 2007. 248. O Combatente. 12 de julho de 1896, ano X, n. 30. ACMEC.


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Em frente aos alicerces feitos há anos sem conta, uma caixa levantada a beira da estrada pedia ao caminheiro, na mudez sombria do cemitério de outrora, uma esmola; aos sábados um ermão, de opa branca e cabeção azul, de sacola em punho, percorria as ruas, azafamado, suarento, levando-nos o ultimo nikel, fazendo não pequena féria; um leilão de ofertas, vários peditórios com acompanhamento de duas bandeiras, ao estrugir de foguetes e ao som da fanfarra faziam aumentar o pecúlio da ermandade. Mas... a coisa ainda não chegava, não dava para tudo249.

Aurélio Pinto era um dos mais ferrenhos críticos da atuação da Igreja Católica em Santa Maria e, assim como João Daudt Filho, tinha um olhar elitista sobre as manifestações religiosas da população negra, sobre o dia a dia dos trabalhadores e as práticas sociais dos bairros periféricos. Utilizaremos outras manifestações de Aurélio Pinto durante este trabalho e o leitor perceberá a carga preconceituosa em seu texto, como as expressões ermão e ermandade, referindose ao linguajar e a pouca alfabetização daquele grupo social. Apesar disso, nesse artigo, demonstrou a estratégia utilizada pela Irmandade do Rosário para obter os recursos para a construção de seu templo, como a colocação de uma caixa no local onde seria construída a igreja e os peditórios que eram feitos na cidade. Entretanto, a construção não avançava. Até que no domingo, 30 de julho de 1899, “estiveram reunidos no consistório da Igreja Matriz os membros componentes da Irmandade de N. S. do Rosário, ficando assentado que se desse andamento, o mais breve possível com as obras da capela, cujos alicerces há anos estão assentados no local onde fora o antigo cemitério”250. Os irmãos do Rosário se mobilizaram e foram em busca de doações em dinheiro, materiais ou em forma de trabalho. Aqueles que podiam, faziam doações em dinheiro; outros, dedicavam dias de trabalhos, como fez Bento Manuel dos Santos, Antônio Marcírio, João Almada e Rafael José da Silva. Sisnando de Oliveira e Torquato Mariano percorriam as ruas angariando donativos em dinheiro ou em materiais251. As doações também podiam ser entregues aos senhores Epiphanio Felippe de Souza e João Appel Primo, respectivamente tesoureiro e secretário da Irmandade. João Appel Primo era filho do alemão Antônio Appel252, que veio para o Brasil a convite de seu irmão João Appel, o ex-soldado que se tornou um abastado fazendeiro e proprietário de grande quantidade de escravos (cap. 04). João Appel Primo casou-se com Maria Luiza Lacerda, com quem teve dez filhos. Tornou-se um importante comerciante de Santa Maria com “casa de fazendas, 249. O Combatente. 19 de dezembro de 1901, ano XV, n. 967. ACMEC. 250. O Combatente. 03 de agosto de 1899, ano XIII, n. 62. ACMEC. 251. As listas de doações foram publicadas no jornal O Combatente, nas edições de 03, 07, 14, 17, 21 de dezembro de 1899; 01 de janeiro e 25 de fevereiro de 1900. ACMEC. 252. Antônio Appel casou-se com Carlota Maria Holzbach. Foi proprietário e comerciante em Santa Maria. Faleceu aos 92 anos de idade, deixando os filhos: Antônio Appel Filho, João Appel Primo, Júlio Appel, Isolina Appel e Lydia Appel.


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drogas, ferragens, louças, miudezas, secos e molhados”. Chegou a ter duas casas comerciais, uma na rua do Comércio, nº 96 e outra na rua Duque de Caxias253. Foi vereador na última legislatura da Câmara Municipal no período imperial e chegou à função de Presidente do Conselho Municipal durante a Primeira República. João Appel Primo foi um importante personagem na história da religião em Santa Maria, como veremos adiante. Foi secretário da Irmandade do Rosário e teve papel importante na sua organização, envolveu-se na tentativa de construção da Igreja Matriz, converteu-se à Igreja Anglicana onde foi um ativo paroquiano e, ao mesmo tempo, era secretário da loja maçônica Luz e Fraternidade. O tesoureiro Epiphanio Felippe de Souza era baiano, filho natural de Felippa Liberata dos Santos e veio a Santa Maria com 10 anos de idade254. Em 11 de maio de 1887, casou-se com Vitalina Martins, natural de Cruz Alta, filha legítima de Francisco Rodrigues Alves e Ana Joaquina Alves. No seu casamento, Epiphanio tinha 29 anos e sua profissão era de “sacristão”255. Manteve uma estreita relação com o também baiano padre José Marcellino de Souza Bittencourt, de quem era compadre, por este ser padrinho de sua filha Ermelinda256. Em 1900, Epiphanio deixou de ser sacristão em função de divergência com o padre Pedro Wimmer. Aurélio Pinto, na sua coluna “Aos Domingos”, do jornal “O Combatente”, fez duras críticas à atuação do vigário Wimmer, constatando, segundo sua opinião, o afastamento dos fiéis católicos, “pois si até o sr. Epifânio que há anos sem conta ali exercia as funções de sacristão foi posto à margem só porque... (eu ia dizendo!)”257. Pena que não disse. O fato é que Epiphanio esteve diretamente envolvido na manutenção do culto católico em Santa Maria e na construção da Igreja do Rosário, concentrando as doações de dinheiro e materiais em sua casa258. 253. Recibo de pagamento. Fundo Intendência Municipal, Caixa 67, Tomo 404. AHSM. 254. Informação obtida por meio de seu depoimento no processo judicial movido pela Irmandade contra o padre Caetano Pagliuca, que veremos no capítulo 08. Informou que tinha 56 anos, era casado, capitalista, natural da Bahia, residente em Santa Maria há 46 anos (Processo de Imissão de Posse, 1914, p. 12-13). 255. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Casamento n. 06 (1882-1887), p. 92. ACSM. 256. O padre Marcellino de Souza Bittencourt incluiu Epiphanio e sua filha Ermelinda no seu testamento: “um conto (1:00$000) ao meu compadre Epiphanio Felippe de Souza, residente na mesma cidade de Santa Maria da Boca do Bonte; um conto (1:000$000) para sua filha, minha afilhada D. Ermelinda de Souza Bittencourt” (Testamento. Marcellino de Souza Bittencourt. Porto Alegre, 1911, n. 1165. APERS). 257. O Combatente. 30 de dezembro de 1900, Ano XIV, n. 104. 258. Epiphanio Felippe de Souza morava na rua Marquez do Herval (atual Serafim Valandro), próximo à rua Tuiuti. A sua retirada como sacristão lhe trouxe problemas econômicos, como pode ser visto em diversos requerimentos enviados à Intendência Municipal. Em 1904 escreveu: “Achando em atraso no pagamento das décimas urbanas de suas propriedades (...) desde 1901 a 1904. Em vista de acharme desempregado também desde 1900, o que recebo dos alugueis não me dá para viver com a minha família. É esta a razão pela qual tenho deixado de fazer os referidos pagamentos” (Requerimento. Fundo Intendência Municipal. Santa Maria, Caixa 06, Tomo 36. AHSM). As dívidas com a Intendência continuaram, o que motivou nova correspondência em 1910 (Requerimento. Fundo Intendência Muncipal. Santa Maria, Caixa 11, Tomo 61. AHSM). Em 1912, as contas foram aliviadas com a partilha dos bens de seu compadre, o cônego José Marcellino de Souza Bittencourt. Com o pagamento das taxas e impostos lhe sobrou do legado do padre 425$771 réis e o mesmo valor para sua filha Ermelinda


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O secretário João Appel Primo e o tesoureiro Epiphanio Felipe de Souza ocupavam cargos importantes na Irmandade do Rosário. Nas irmandades negras, era comum que estes cargos ficassem nas mãos de indivíduos brancos, devido ao capital cultural necessário para ocupá-los, como a alfabetização e diversos outros critérios, como destacou Julita Scarano (1975, p. 130), que raras vezes estavam à disposição dos negros devotos. “O cargo de tesoureiro era realmente cheio de dificuldades, exigindo grande esforço e uma série de conhecimentos, bem como tempo disponível para exercê-los com eficácia” (Ibid.. p. 130), além de credibilidade diante da comunidade, função exercida pelo sacristão Epiphanio. Mas, ao mesmo tempo, esses cargos, por serem ocupados por pessoas de fora das comunidades, geralmente eram passíveis de muita vigilância, através de prestações de contas constantes. Tratando do Compromisso da Irmandade do Rosário do Rio das Pedras, do período colonial, Célia Maria Borges (2005, p. 81) mencionou: “Como se pode observar, há aqui uma constante que vai permear a vida das organizações fraternais. A desconfiança com relação à guarda dos recursos pelos homens brancos levaria as irmandades a incluir em seus estatutos a necessidade de rigor no controle do dinheiro arrecadado”. Esses cargos eram exercidos por brancos, mas devidamente controlados. A organização da Irmandade e a atuação de seu secretário e tesoureiro deram resultado. No dia 26 de janeiro de 1900, “por motivo de ter sido levantada a cumeeira da Igreja de N. S. do Rosário (...) espocaram dezenas de foguetes durante e após o ato”259. A construção ainda durou alguns meses, até que o presidente, Joaquim Francisco de Araújo, mandou publicar, no dia 10 de setembro de 1901, o seguinte aviso: Faço público, que aos dias 20 e 21 do corrente, as bandeiras da Irmandade do Rosário, de acordo como Revmo. Vigário, percorrerão as ruas da cidade e que o produto dessa coleta será aplicado na conclusão da capela à rua 24 de Maio. Aviso outrossim, a todos os devotos que a 06 de outubro próximo se fará a transladação da imagem de Nossa Senhora do Rosário, às 9 horas da manhã para aquela capela que em seguida será inaugurada com toda a solenidade, celebrando-o a primeira missa260.

A Irmandade exercia suas atividades religiosas na Capela do Império do Espírito Santo, que servia como Igreja Matriz, onde estava a imagem de sua padroeira, até que a capela ficasse pronta. Enquanto não tinham condições de construir seus próprios templos, as irmandades ocupavam altares laterais de (Inventário. José Marcellino de Souza Bittencourt. Porto Alegre, 1911, p. 38v. APERS). Epiphanio morreu no dia 18 de março de 1926, com 68 anos (Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Óbitos n. 04 (1925-1930), p. 09). 259. O Combatente. 28 de janeiro de 1900, Ano XIV, n. 9. ACMEC 260. O Estado. 14 de setembro de 1901, Ano IV, n. 81. ACMEC


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igrejas que serviam como matriz ou mesmo altares laterais de igrejas pertencentes a outras irmandades. Depois de mais de dez anos, a capela estava pronta. A torre que ficava de um lado media 15,65 metros, e a capela possuía 11 metros de frente por 20 de fundo. Na frente, havia uma porta de 8 palmos ladeada por 2 nichos. Possuía 3 janelas de cada lado. Em sessão do dia 05 de dezembro de 1899, o Conselho Municipal fez a doação à Irmandade dos terrenos de nº 1 e nº 10, da quadra nº 45, onde havia sido edificada a capela261. Além desses, havia todo o terreno que pertenceu ao cemitério velho e que tinha sido doado em 23 de julho de 1889, mediante o abaixo-assinado que vimos anteriormente. A inauguração da igreja ocorreu no dia 06 de outubro de 1901, como foi noticiado pelo jornal “O Estado”: Teve lugar, domingo, como havíamos noticiado, a inauguração solene da Capela de N. S. do Rosário, recém construída no bairro Vila Rica, sob a iniciativa da respectiva irmandade. As 9 ½ horas da manhã, com grande concorrência de fieis, saiu a procissão da Igreja Católica, à Avenida do Progresso, acompanhando o andor com a imagem daquela santa em direção à capela, onde recolheu-se, depois de percorrer as ruas do Comércio e Conde de Porte Alegre. O novo templo, cujo interior achase inteiramente concluído, apresenta festivo aspecto. No altar-mor foi colocada a imagem da padroeira que trajava um rico vestido de seda branca bordado a ouro e manto azul do mesmo tecido, oferta feita pela exma. Sra. d. Maria Manoela Marques da Cunha. Realizou-se em seguida o sacrifício da missa, oficiando o revmo. padre desta paróquia Caetano Pagliuca. A Cerimônia terminou ao meio dia, tendo pregado o Evangelho aquele sacerdote262.

Embora o objetivo do fotógrafo que realizou a imagem a seguir, no final da década de 1900, fosse destacar o Colégio Franciscano Santana, o prédio maior fundado em 04 de março de 1905, a foto nos permite visualizar ao fundo as características da Capela do Rosário, que se sobressai na paisagem do bairro. A Irmandade tinha agora a sua sede própria e o templo onde podia celebrar a festa de sua padroeira. Foi mais de uma década de espera entre o lançamento da pedra fundamental e a inauguração da igreja. O local era uma garantia para a celebração da religião, mas também de reunião e diversão da população negra com as quermesses organizadas pelos membros. Era também um símbolo de organização e empenho dos habitantes daquela região da cidade, que enfrentavam uma sociedade preconceituosa onde a cor se mantinha como critério de hierarquização social.

261. O Combatente. 14 de dezembro de 1899, Ano XIII, n. 100. ACMEC 262. O Estado. 09 de outubro de 1901. Ano VI, n. 88. ACMEC.


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Imagem 11 – Vila Rica e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário - 1911

Fonte: Casa de Memória Edmundo Cardoso

6.1.3 VILA RICA: UM BAIRRO NEGRO A capela estava localizada na Vila Rica, bairro que foi caracterizado por João Borges Fortes, em 1901, quando servia na guarnição federal de Santa Maria, da seguinte forma: “Vila Rica está também ao Norte da cidade paralelamente à Rua do Comércio. Aí reside a população proletária e levanta-se uma pequena igrejinha sob a invocação da Virgem do Rosário, construída com o material aproveitado de um antiquíssimo cemitério, há anos abandonado” (MARCHIORI; NOAL FILHO, 2008, p. 98). Em artigo publicado no jornal “A Razão” (janeiro de 1999), Antônio Isaia (1999, p. 02) escreveu, que de acordo com a tradição oral, o bairro do Rosário “(...) ganhou seus primeiros ranchos durante a Revolução Farroupilha (1835-1845). Foram erguidos por famílias de escravos, dando origem ao primitivo traçado da Rua Guararapes, que em 1861 mudou o nome para rua 24 de maio e, finalmente, para rua Silva Jardim”. A igreja estava localizada na região periférica da cidade. A planta da cidade de Santa Maria, assinada pelo agrimensor José Neher, datada de 1902, demonstra que na região norte da cidade, a área urbana terminava na Capela do Rosário, indicada por uma flecha na imagem anterior. A rua 24 de maio, aberta na década de 1860, era a principal via de comunicação do bairro e entre os seus moradores estava Joaquina da Conceição, preta, natural da África, que faleceu em 1896, com 70 anos de idade263. Nessa mesma rua, outros importantes moradores negros tinham suas residências, que fundaram a Irmandade e outras instituições negras, como 263. Livro de Óbitos. Fundo Intendência Municipal, Caixa 02, Tomo 11. AHSM.


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Clube Treze de Maio (localizado na mesma rua) e o Clube União Familiar264. Na foto da próxima página (imagem 13), vemos a rua 24 de Maio em frente à Capela do Rosário (direita) e o Orfanato São Vicente265 (esquerda – primeiro plano) na década de 1910. Imagem 12 – Mapa de Santa Maria e localização da Igreja do Rosário

Fonte: Arquivo da Câmara Municipal de Santa Maria.

Assim como a Capela do Rosário, o bairro de Vila Rica fazia parte dos “arrabaldes” de Santa Maria, como se referiam os jornais do período, e seus habitantes eram tratados com desprezo e, muitas vezes, com ironia pela elite que vivia na área central.. As páginas dos jornais espelhavam essa visão elitista sobre a periferia da cidade, especialmente de um bairro onde muitos de seus integrantes tinham sido escravizados. Algumas expressões utilizadas pelos jornais comprovam que a Vila Rica era um bairro negro. Em 1898, o jornal noticiou que “um tremendo charivari” aconteceu “em um baile de homens de cor, lá para as bandas da Vila Rica, imediações desta cidade”266. Em 1904, “Juvenal”, como assinava o cronista, escreveu sobre a prática do entrudo durante o carnaval e no seu relato se referiu “ao povo moreno da Vila Rica”267. 264. Veremos a fragmentos da trajetória de alguns deles no capítulo 07. 265. O Orfanato São Vicente foi criado a partir de uma Associação de católicos, com o objetivo de atender meninas órfãs. 266. O Combatente. 22 de dezembro de 1898, Ano XII, n. 102. ACMEC. 267. O Combatente. 14 de fevereiro de 1904, ano Ano XVIII, n. 1192. ACMEC.


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Imagem 13 – Rua 24 de Maio e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário - 1914

Fonte: Revista do Centenário de Santa Maria de 1914/ACMEC268

Em 1896, o cronista denominado “R. O. Chedo”, que publicava uma coluna chamada “Bilhetinhos” no jornal “O Combatente”, indiretamente revelou o olhar que a cidade tinha sobre os habitantes da Vila Rica. Escreveu ele: Aos Vilariquenses – Santa Maria Não subam a Serra. O negócio é com os vilariquianos daqui, dali onde antigamente nós fazíamos jus a sete palmos de terra, porém, por efeitos evolutivos nos usurparam esse direito, transferindo-o lá para as bandas donde a boiada “estende o caracu”. Vocês são uns ingratos! Pois então, além de substituírem os mortos, as suas moradias têm “o trabalho” de todas as noites acenderem uma velinha em homenagem a capelinha encantada e fazer permanente aquela caixinha fechada a cadeado com o orifício a contemplar o céu e a provocar a tosse de tuberculosas algibeiras? Se eu fosse sócio de uma sociedade que por ali perto tem o seu pavilhão, protestava contra esse esbulho dos transeuntes. E além de vocês terem acentuado certa predileção pela zoologia, conservam uma coleção de cães que é um Deus nos acuda. Credo! Deviam acender velas, mas era para o Diabo. – Patrício obrigado269.

Ao criticar os habitantes da Vila Rica, o autor revela a importância da religiosidade para aquela comunidade, que além de colocar uma caixa para arrecadar doações para a construção de seu templo, exercia uma prática diária 268. A foto estava na Revista do Centenário e foi restaurada pela Casa de Memória Edmundo Cardoso, que gentilmente cedeu para ilustrar este texto. 269. O Combatente. 16 de abril de 1896, Ano X, n. 17. ACMEC.


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de devoção no ato de acenderem velas para a “capelinha encantada”, provavelmente oratórios existentes em cada moradia. Essa religiosidade da comunidade da Vila Rica também ficou manifesta no relato de um crime que abalou a cidade de Santa Maria em 1899, cometido por Olinto Alves da Silva, pedreiro, com 26 anos que acabou matando sua filha de 18 meses e tentou o suicídio ao desconfiar da fidelidade de sua esposa270. Apesar da dramaticidade do ocorrido, o que nos interessa é a descrição feita pelo jornal “O Estado” sobre o local onde aconteceu o crime. “A monotonia habitual do bairro, vulgarmente denominado da Vila Rica, foi quebrada (...) pelo sucessivo estampido de quatro tiros de revólver. À porta de um rancho, de paredes de barro e cobertura de zinco, estacionava curiosa massa popular”271, quando chegou um dos repórteres do jornal, que entrou na casa com Ramiro de Oliveira e Astrogildo de Azevedo e relatou o que viu “transportada a sala da frente, toscamente mobiliada por um banco de madeira, três velhas cadeiras, uma mesa e oleografias de santos pendentes das paredes”, depois entraram em um quarto onde se depararam com a cena do crime272. Olinto Alves da Silva era um pedreiro, membro da Liga Operária e morava em uma casa simples, com paredes de barro e cobertura de zinco. Olinto, sua esposa Belarmina de Lima e sua filha poderiam muito bem ser um dos exemplos de família que em sua moradia tinha “o ‘trabalho’ de todas as noites acenderem uma velinha em homenagem à capelinha encantada”, como descreveu o cronista “R. O. Chedo273”, uma vez que parecia muito devoto, pois possuía imagens de santos penduradas nas paredes de seu rancho. Não seria arriscado afirmar que as imagens eram de Nossa Senhora do Rosário ou de São Benedito. Para encerrar esta descrição do bairro de Vila Rica, obrigatoriamente temos que mencionar o “Tanque das lavadeiras”, que existia no entroncamento entre as ruas 24 de Maio e Floriano Peixoto, atrás de onde foi construído o Colégio Santana. Em 1904, Mario de Figueiredo, outro cronista do jornal “O Combatente” fez uma pequena descrição do local ao solicitar “um gradil para resguardar o 270. Olinto havia atirado contra si mesmo após ter matado a sua filha, mas o tiro não o matou, e depois dos curativos feitos, foi levado para prisão. Na prisão, com um canivete cortou a carótida esquerda, que o levou à morte. O crime cometido e o suicídio de Olinto merecem um estudo específico, pelas concepções médicas envolvidas na tentativa de explicar o assassinato, uma vez que ele tinha bons antecedentes, seu pai era tido como louco e também havia cometido suicídio. Ele foi descrito como indiático e sua filha como parda. O crime foi relatado pelo jornal “O Estado”, nas edições de 14 e 17 de junho de 1899; e no “O Combatente”, nas edições de 15 e 18 de junho de 1899. ACMEC. 271. O Estado. 14 de junho de 1899, Ano II, n. 47. ACMEC. 272. O Estado. 14 de junho de 1899, Ano II, n. 47. ACMEC. 273. Este mesmo cronista também mencionou a existência de grande quantidade de cães na Vila Rica e esta era uma reclamação constante nos jornais. O jornal “O Combatente” publicou, no dia 29 de agosto de 1897, a seguinte nota: “Moradores dos arredores da Vila Rica pedem-nos para chamar a atenção dos srs. fiscais da Intendência para a malta de cães vagabundos que infestam aquelas adjacências. Como se sabe, grande é o número de moradores de escassos recursos que ali residem. Entretanto, chegam a ter de dois a três cães, os quais, de noite, famintos, saem a roubar pelas casas da vizinhança! Bola neles, cidadãos fiscais. Cachorro ali é luxo” (O Combatente. 29 de agosto de 1897, Ano XI, n. 35. ACMEC).


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tanque sito na parte Norte da Rua Marechal Floriano. Arrepia-se-nos couro e cabelo ao figuramos a muito realizável hipótese de rolar um cristão descuidado pelo paredão do tanque das lavadeiras”. Argumentava o cronista que “com pouco dispêndio, pode-se evitar que um pobre diabo despenhe-se tanque a dentro, fraturando uma perna ou arrebentando a cabeça”274. Também ali existia uma fonte pública construída pela municipalidade. Muitas mulheres, moradoras do bairro, sustentavam suas famílias como lavadeiras, sendo este um importante local de trabalho, de encontro e de trocas de experiências. Depois dessa fase inicial, onde a Irmandade procurou estabelecer a sua sede e construir sua igreja, a etapa seguinte era sua organização institucional. Em 1889, o Brasil passou por um processo de mudança de sua forma de governo e, com ela, toda uma reestruturação política e legal ocorreu. O catolicismo no Brasil também teve que se reorganizar, principalmente com a separação entre Igreja e Estado, além de novas posturas do clero que estavam sendo implantadas. Neste contexto, a Irmandade do Rosário procurou os mecanismos legais para buscar autonomia e independência. A Vila Rica, com o passar do tempo, mudou de nome e passou a ser chamado de Bairro Nossa Senhora do Rosário, graças a presença da capela e da Irmandade.

6.2 A SOCIEDADE BENEFICENTE IRMANDADE DO ROSÁRIO A Irmandade do Rosário foi criada em um período de transição política, mas também religiosa, na medida em que os ideais ultramontanos estavam sendo implantados na diocese e na paróquia. Os ultramontanos desejavam o controle; a Irmandade, a autonomia. Embora já estivesse ativa, solicitando terreno para a sua sede, convidando autoridades e celebrando o início da construção de sua igreja, seus estatutos apresentam como data de fundação o dia 24 de junho de 1891, o que deve ser sua oficialização perante as autoridades civis. Depois de algum tempo, passou por uma discussão interna sobre o seu destino e entre os meses de abril e julho de 1899 resolveu modificar seus estatutos “organizando-se de forma a constituir-se também em sociedade Beneficente, por seus associados e com a denominação de “Sociedade Beneficente Irmandade do Rosário, em substituição ao de Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, composta, porém dos mesmos elementos que constituem a esta (...)”275. 274. O Combatente. 14 de fevereiro de 1904, Ano XVIII, n. 1192. ACMEC. 275. Requerimento. 08 de setembro de 1900. Fundo Intendência Municipal, Caixa 04, tomo 23, doc. 04. AHSM. Conforme este mesmo requerimento, as reuniões que reformaram os estatutos foram realizadas em Assembleia Geral nos dias 30 de abril, 06 de maio, 13 de maio e 15 de julho de 1899. A mesa administrativa que registrou a Irmandade como Pessoa Jurídica e a transformou também em Sociedade Beneficente era composta pelos seguintes nomes: Presidente: Joaquim Francisco de Araújo; Vice-presidente: Raphael José da Silva; Tesoureiro: Epiphanio Felippe de Souza; Secretário: João Appel Primo; Procurador: Torquato José Marianno; Zelador: Adão Grabriel Haeffner.


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Mais do que simplesmente modificar o nome, os irmãos do Rosário estavam pensando em autonomia perante os poderes religiosos, para isso, solicitaram e obtiveram o registro de sua sociedade e de seu estatuto no Cartório de Registro Geral. Com tal iniciativa, deixava de ser apenas um grupo religioso com uma mesma devoção e passava a ser uma sociedade com personalidade jurídica276. Essas modificações estavam preocupando o padre Pedro Wimmer, substituto do padre Aquiles Catalano, que escreveu para Intendência solicitando “para fins convenientes” que lhe fossem mandadas “por certidão verbo ad verbum o teor dos documentos e atas desta municipalidade referentes aos bens da Capela Católica da Nossa Senhora do Rosário e Irmandade respectiva”277. Tendo conseguido o registro como personalidade jurídica, a Irmandade278 tratou de requerer que os terrenos doados pela municipalidade para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário fossem transferidos para o patrimônio da Sociedade Beneficente Irmandade do Rosário. A solicitação foi deferida pela Intendência Municipal entendendo que não houve modificação na essência da instituição279. A Irmandade estava saindo do controle, e o clero não sabia mais que rumo ela estava tomando. Os desejos, os projetos e as características desta associação estavam descritas no seu estatuto. Quanto a sua finalidade foi definida da seguinte forma: Art. 2º – A sociedade tem por fim: § 1 – Proteger, socorrer e defender seus sócios necessitados ou injustamente perseguidos; § 2 – Ter médico e farmácia contratados para qualquer sócio que em caso de doença a eles recorrer; § 3 – Promover a instrução entre seus associados pelos meios a seu alcance; § 4 – Proporcionar a seus associados às festas de culto religioso que estiverem ao alcance dos fundos da sociedade. Art. 3º – A Sociedade Beneficente e Religiosa Irmandade do Rosário levantará logo que seja possível, em terreno de sua propriedade, anexo ao edifício que possui à rua 24 de maio, nesta cidade, um prédio com os requisitos para um hospital e escola. Art 4º - A sociedade preparará também no prédio de sua propriedade a rua 24 de maio desta cidade e que se acha em construção um templo em que se celebrará o culto Divino e consagrará a Senhora do Rosário, padroeira da Sociedade280.

276. Os documentos de solicitação, estatuto e parecer do oficial de registro geral encontram-se no Registro Civil de Pessoas Jurídicas de Santa Maria/RS – Rua Venâncio Aires, 2199. O Estatuto foi integralmente publicado no jornal “O Estado”, nas edições de 16, 19, 23 e 26 de maio. Exemplares destas edições encontramse na Casa de Memória Edmundo Cardoso. 277. Requerimento. 16 de maio de 1900. Fundo Intendência Municipal, Caixa 04, Tomo 23, doc. 83. ACMEC. 278. A partir deste momento, ao referirmo-nos à Irmandade, estaremos nos referindo à “Sociedade Beneficente Irmandade do Rosário”. 279. Requerimento. 08 de setembro de 1900. Fundo Intendência Municipal, Caixa 04, Tomo 23, doc. 04. ACMEC. 280. O Estado. Santa Maria, 16 de maio de 1900, Ano III, n. 41. ACMEC.


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Os projetos da Sociedade não eram simples. Uma das formas encontradas para “proteger, socorrer e defender” seus sócios era proporcionar o acesso a médico, farmácia e instrução. E mais, pretendiam a construção de um hospital e de uma escola. Eram enormes as expectativas quanto ao futuro da Irmandade. Se conseguiram levantar o templo, que estava quase pronto, porque não melhorar as condições de saúde e oportunizar o acesso à educação a família de seus integrantes? Vários integrantes da mesa administrativa da Irmandade que estavam propondo estes estatutos, viveram a experiência do cativeiro (conheceremos alguns deles no capítulo seguinte) e agora, vivendo a experiência da liberdade, queriam ser protagonistas de seu futuro, construindo um futuro melhor para seus companheiros, para suas famílias e para sua comunidade. Poderiam pertencer à Sociedade Beneficente Irmandade do Rosário “todas as pessoas do sexo masculino e feminino” desde que possuíssem a “idoneidade precisa” (art. 5º). Para ser admitido como sócio, o candidato deveria solicitar por escrito e ter a idoneidade abonada por intermédio de dois membros da diretoria (art. 9º). Aqueles que se portassem “indecorosamente ofendendo a moralidade e os bons costumes” perderiam o direito de sócio (art. 12º). Todos eram obrigados ao pagamento de uma joia de entrada de 5 mil réis para os de sexo masculino e de 3 mil réis para os de sexo feminino. Além disso, todos deveriam pagar uma mensalidade de 2 mil réis (art. 25). Aqueles que não pagassem a mensalidade durante um ano, sem justificativa, estariam excluídos da sociedade (art. 12). A Sociedade/Irmandade era administrada por uma diretoria eleita anualmente e composta de presidente, vice-presidente, secretário, tesoureiro, procurador, zelador e seis mesários (art. 26). Todos os sócios poderiam eleger e serem eleitos para exercer qualquer cargo na diretoria, porém, “não sendo extensivo no direito às pessoas de sexo feminino” (art. 36). O estatuto apresentava alguns dispositivos para que as assembleias gerais, que deveriam ocorrer no primeiro domingo de cada mês (art. 16), fossem realizadas de uma forma controlada e “harmônica”, como o fato de nenhum sócio poder falar mais do que duas vezes sobre o mesmo assunto (art. 20), falar somente sobre a matéria em discussão (art. 21), não interromper o orador ou faltar com o devido respeito aos consócios (art. 23) e usar a palavra com toda a moderação nos discursos (art. 24), entre outros. O Procurador da Irmandade era o responsável pela assistência social dos irmãos. Em caso de doença, era sua responsabilidade “providenciar para a visita imediata de médico da sociedade e aviamento do receituário”, levar ao conhecimento da diretoria quando fosse necessário socorrer algum sócio e, em caso de falecimento, providenciar o sepultamento (art. 33). A Sociedade/ Irmandade deveria fazer com “expensas próprias as despesas com os enterros,


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funerais e sufrágios por alma dos sócios falecidos” e acompanhar o cadáver até o cemitério (art. 45). Nas solenidades que tinham que comparecer, os sócios deveriam usar um pequeno laço de fita azul, enquanto que nas cerimônias religiosas teriam opas brancas com cabeção azul ou preto. Todas essas insígnias deveriam ser feitas pelos próprios sócios (art. 35). A Sociedade Beneficente Irmandade do Rosário estava caracterizada nos seus estatutos muito mais como “Sociedade Beneficente” do que “Irmandade”. Procuraram reforçar o seu aspecto civil em detrimento do religioso. Em seus 51 artigos, a palavra que indica seus membros é sempre “sócio” e nunca “irmão” ou “confrade”. A instituição é sempre “a sociedade” e nunca “a irmandade”. Os membros fundadores estavam muito convictos das razões e finalidades de sua criação, pois determinaram no estatuto que “em tempo nenhum a Sociedade Beneficente Irmandade do Rosário mudará de fins para que foi constituída” (art. 47). O aspecto devocional aparece por último nas definições da finalidade da Sociedade, referindo-se apenas à promoção das “festas de culto religioso”. A busca por autonomia era tanta que a única referência nos estatutos à Igreja Católica está no Art. 27º § 6º, estabelecendo que era função da diretoria “celebrar acordo, com o respectivo vigário para os atos de culto católico, assim como para as festividades religiosas ou sufrágios por almas de sócios falecidos e que fará celebrar no templo da sociedade”281. Esta tentativa de independência será foco de tensões com o clero da cidade. Já vimos que a Irmandade foi dissolvida na década de 1870 porque tomou decisões contrárias às orientações do cônego José Marcellino de Souza Bittencourt e, novamente, desejava seguir suas próprias convicções. Um episódio ocorrido neste momento de redefinição dos rumos da Irmandade demonstra esta tentativa de autogerência dos irmãos do Rosário, fato que produziu diferentes versões. Trata-se da presença de um reverendo anglicano realizando atividades educativas e religiosas na capela da Irmandade. O clero católico classificou o fato como “invasão”; o anglicano, como “convite”. O padre Caetano Pagliuca escreveu sobre isso em 1907: Neste último ano do paroquiado do Pe. Wimmer, Deus permitiu que viesse a esta cidade um ministro evangélico americano que, seguido no ano seguinte por um metodista e com o luterano que há anos aqui estava, formam o centro da propaganda protestante. Os dois primeiros e maximamente o evangélico, auxiliado pela maçonaria, pela curiosidade e indiferentismo puderam granjear bastantes asseclas, tomar conta o evangélico das capelas católicas da estação colônia e do Rosário desta cidade. Muito teve que trabalhar o vigário, e conseguiu que a primeira fosse restituída ao culto católico, sendo a segunda recuperada pelo seu sucessor um ano depois (BONFADA, 1991, p. 103)282. 281. O Estado. Santa Maria, 19 de Maio de 1900, Ano III, n. 42. ACMEC. 282. O conteúdo faz parte de um relatório feito pelo Pe. Caetano Pagliuca explicando ao bispo a situação


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O ministro evangélico americano que estava conseguindo “granjear bastantes asseclas” era James Watson Morris, que chegou em Santa Maria em 07 de dezembro de 1899, com o objetivo de instalar um templo da Igreja Episcopal Anglicana, que inicialmente foi denominada de Capela do Mediador (depois Catedral do Mediador). Morris mandou publicar convites nos jornais locais para que a população pudesse participar do primeiro culto público, que foi celebrado no dia 11 de fevereiro de 1900, na capela organizada na rua do Comércio, nº 24. “A capela estava literalmente cheia” publicou “O Combatente”, que sentenciou ao final de sua notícia: “com a inauguração da aludida capela conseguira a Igreja Episcopal, em nossa cidade não pequenos adeptos – pois em absoluto condena o celibato e o confessionário – o que já é muito moralizador”283. Segundo Oswaldo Kickhofel (2000, p. 22), no culto inaugural havia mais de 300 participantes e não era “formado por pessoas que tivessem vindo para satisfazer a curiosidade”, mas “por alguns dos profissionais e homens de negócios mais influentes e representativos do lugar”. De fato, o reverendo conseguiu atrair para sua Igreja importantes figurais locais, até mesmo a família Brinckmann, proprietária do jornal “O Combatente”, que passou a acompanhar e publicar todas as iniciativas e a programação da nova igreja. Cândido Brinckmann, diretor e proprietário do jornal, que passou a fazer parte da diretoria da sociedade de “Propaganda do Evangelho da Igreja Episcopal Brasileira”, tinha a seguinte composição: presidente, James Morris; secretário, Cândido Brinckmann, Tesoureiro, Emilio Diehl; conferencionista, Catão V. Coelho (importante colaborador do jornal)284. Muitos deles eram maçons e foram acolhidos pela nova denominação religiosa. Outro indivíduo que passou a ter uma atuação destacada na Igreja Episcopal Brasileira foi João Appel Primo, que havia sido secretário da Irmandade do Rosário. Na noite de 31 de julho de 1900, “teve lugar uma reunião na ‘Capela do Mediador’ afim de fundar-se uma congregação com o fim de dirigir os destinos da Igreja Episcopal Brasileira”285. A diretoria da Congregação Evangélica Brasileira, como foi denominada, ficou composta pelo presidente, James Morris; tesoureiro, João Appel Primo e secretário, Ignácio M. Vale Machado286. No mesmo dia em que o jornal “O Combatente” anunciava a reunião para a criação da associação anglicana, também noticiava que “o rev. James Morris, presbítero da Igreja Evangélica Episcopal Brasileira tem pregado com vantagem para a sua religiosa de Santa Maria, escrito em 1907. O relatório está na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro tombo n. 3 (1889-1914), p. 85-87. Foi Transcrito e publicado por Genésio Bonfada. Ele publica quase todo o relatório, mas omite pequenos trechos que desqualificam o clero na cidade. 283. O Combatente. 15 de fevereiro de 1900, Ano XIV, n. 14. ACMEC. 284. O Combatente. 14 de abril de 1901, Ano XV, n. 896. ACMEC. 285. O Combatente. 02 de agosto de 1900, Ano XIV, n. 61. ACMEC. 286. O Combatente. 05 de agosto de 1900, Ano XIV, n. 62. ACMEC.


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propaganda religiosa nas capelas do Rosário e da Estação Colônia”287. É bom lembrar ao leitor que a Capela do Rosário ainda não estava totalmente concluída. No dia 30 de maio de 1900, João Appel Primo era secretário da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, quando esta fez a solicitação para tornar-se pessoa jurídica e dois meses depois estava sendo eleito tesoureiro da Congregação responsável pelos destinos da Igreja Anglicana em Santa Maria. Uma das preocupações da Igreja Anglicana foi a formação doutrinária de seus paroquianos por meio das escolas dominicais. Uma dessas escolas dominicais tinha sido organizada por Rafael Arcanjo dos Santos e “era formada exclusivamente por crianças de cor, filhos de membros de uma comunidade de negros, fundada em 1889, denominada Irmandade de Nossa Senhora do Rosário”, como explicou Kickhofel (2000, p. 43)288. Ainda de acordo com o relato do autor, no Natal de 1901, a festa da escola foi realizada no templo da Irmandade ainda em construção, que constou da declamação de passagens bíblicas, hinos e orações apropriadas. A cerimônia teria impressionado os membros da Irmandade, e a pedido de seu presidente, as aulas dominicais passaram a ser realizadas na Capela do Rosário. O reverendo Morris também foi convidado pelo presidente da Irmandade para ensaiar hinos evangélicos aos domingos e fazer cultos às quintas-feiras à noite. Morris teria aceito “porque esperava que os ensaios e a escola dominical pudessem converter os negros ao evangelho” (KICKHOFEL, 2000, p. 44)”. Oswaldo Kickhofel achou curioso que o presidente era branco e de origem germânica e se chamava João Appel Primo. Certo dia, o presidente pediu demissão para se filiar à Igreja Episcopal, mas a Irmandade negou o pedido por causa da estima que o presidente desfrutava entre seus associados. Já como membro da Igreja Episcopal, João Appel Primo consultou a Irmandade se não gostaria que Morris dirigisse o culto na capela uma vez por semana. Morris não gostou muito da ideia, mas aceitou meio a contragosto e todas as quintas-feiras dirigia cultos na capela dos negros. Ali, realizou também um batismo e a encomendação de um enterro. Uma noite, enquanto Morris proferia o seu sermão, um membro da Irmandade lhe disse que não desejavam mais sua presença ali, pois eram católicos e só aceitavam a presença de um padre para celebrar os cultos (Ibid., p. 44). O elo de aproximação do reverendo James com a comunidade da Vila Rica e com Irmandade do Rosário – com certeza – foi João Appel Primo, mas ele era o secretário e não presidente da Irmandade como afirmou Kickhofel. A festa da escola dominical na Capela do Rosário “em construção”, não poderia ter acontecido 287. O Combatente. 02 de agosto de 1900, Ano XIV, n. 61. ACMEC. 288. Kickhofel é presbítero da Igreja Episcopal Anglicana e executor do projeto Memória daquela instituição.


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em 1901, pois, como vimos anteriormente, sua inauguração aconteceu em 06 de outubro de 1901. Talvez o autor tenha se enganado e a celebração tenha ocorrido um ano antes, quando a igreja estava em. Independentemente da forma como se deu a aproximação entre a Irmandade e a Igreja Episcopal, o simples fato da presença de um reverendo anglicano na Capela do Rosário revela um distanciamento do clero católico e certa autonomia da Irmandade. Se os irmãos do Rosário não desejassem a presença do reverendo, ela não teria acontecido. Aurélio Pinto, cronista de “O Combatente” e crítico contumaz da Igreja Católica, acompanhou estes acontecimentos e trouxe informações sobre por que a relação entre a Igreja Anglicana e a Irmandade do Rosário não prosperou: Houve um momento de seria meditação e profundo atilamento: transformar-se aquilo em sociedade beneficente e adotar-se o culto da Igreja Evangélica Brasileira. E lá se foi o presbítero algumas vezes levar a palavra da verdadeira religião de cristo (...) A Igreja Evangélica não fazia peditórios, farras, procissões, batismos, casamentos e encomendações a tanto por cabeça. O ermões haviam de convencer-se... Fez-se a associação, registrou-se os estatutos e começaram as prédicas evangélicas. Festa, nenhuma. O culto regenerador, no recolhimento da fé mais pura e da crença mais fervorosa não conseguira convencer aquelas criaturas. Faltavam as imagens, as bandeiras, a opa, as procissões, os andores, a troça dos peditórios, o confessionário, alguma festa enfim. Começara a desilusão. Qual beneficência! Qual evangélica! Não houve nada que os convencesse. Tinham sido inludidos, não havia festas...289

O autor que se protegia sobre o pseudônimo de Aurélio Pinto, explicou que havia certa intencionalidade na transformação da Irmandade em sociedade beneficente e no registro dos estatutos, o que daria liberdade para os sócios escolherem seus princípios doutrinários e se aproximarem da Igreja Anglicana. Entretanto, os irmãos do Rosário seguiram seu próprio caminho e mantiveram-se católicos. O cronista não compreendeu que para os negros do Rosário, não só o aspecto religioso era importante para participar da Irmandade, mas também as festas eram momentos fundamentais para essa comunidade, como veremos no item que segue. A aproximação com os anglicanos foi transformada pelo clero católico como um símbolo da associação entre protestantes e maçons na luta pela destruição do catolicismo. A partir da festa de inauguração da Capela do Rosário, a associação foi “reconquistada” pelo Pe. Caetano Pagliuca e as cerimônias e festas em homenagem a Nossa Senhora do Rosário tornaram-se muito concorridas.

289. O Combatente. 19 de dezembro de 1901, Ano XV, n. 967. ACMEC.


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6.3 AS FESTAS E AS PROCISSÕES DA IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO As festas organizadas em homenagem aos seus santos padroeiros eram os momentos de maior plenitude na vida das irmandades. No período escravista, elas subvertiam a ordem, escravos tornavam-se reis e rainhas e/ou desafiavam “às iras dos seus donos, confiados na Imagem da Santa”. A escravidão terminou, mas muitas irmandades negras continuaram fazendo de suas festas um momento significativo para a comunidade, mesmo enfrentando um reordenamento da “sensibilidade religiosa”290 proposto pela Igreja Ultramontana. Mauro Dillmann Tavares (2008) percebeu avanços e recuos, imposição e negociação na relação entre o bispo e as irmandades no Rio Grande do Sul no final do século XIX. Uma das primeiras medidas adotadas por Dom Sebastião foi a publicação de uma portaria em abril de 1866 que regulamentava como deveriam ser as festas religiosas. Tal portaria foi enviada a todas as irmandades que as obrigava a ouvir os párocos antecipadamente sobre as festas, novenas e procissões, que se evitasse a confusão e a gritaria e que as mulheres fossem decentemente vestidas. Segundo Tavares, a Igreja pretendia regular os hábitos religiosos da população, mas teve que realizar alguns recuos diante da conjuntura políticoideológica. A Igreja estava sendo alvo de inúmeras críticas por sua resistência aos projetos de registro civil e secularização do ensino e sofria com as imposições do padroado régio. Diante desse contexto, o importante era manter a fé católica “longe dos materialismos”, nem que para isso fosse necessário um abrandamento das censuras e dos controles sobre as irmandades (TAVARES, 2008, p. 217-230). Com o fim da monarquia e a implantação do regime republicano, a Igreja não só perdeu privilégios, mas também ficou livre das amarras do padroado. Nesse novo cenário, “a ingerência eclesiástica sobre as confrarias extrapolou – em muito – as medidas ultramontanas, ao proibir tudo que fosse abusivo na prática religiosa leiga e ao pressionar e obrigar as mesas administrativas das irmandades a reformularem os comportamentos dos devotos nas igrejas e consistórios” (Ibid., p. 227). Nas descrições feitas pelos jornais sobre as cerimônias religiosas e as festas de Nossa Senhora do Rosário, realizadas nas primeiras décadas do séc. XX, em Santa Maria, é um demonstrativo das mudanças de comportamento das irmandades diante do sagrado. Apesar das mudanças, elas não perderam a importância para quem as organizava. Os poucos jornais de Santa Maria que restaram, do final do século XIX início do século XX, noticiavam as solenidades e festas organizadas pela Irmandade, realizadas no mês de outubro. Estas celebrações e festas provocavam 290. Expressão usada por Mauro Dilman Tavares, 2008.


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uma inversão dos lugares, onde a “Capela” se tornava mais importante que a “Matriz”. Ao menos durante o mês de outubro, o olhar da cidade se dirigia para os “arrabaldes da Vila Rica” e aquela comunidade negra demonstrava a sua veneração à Santa e sua capacidade de organização e realização. A importância da festa organizada pelo Irmandade do Rosário foi crescendo com o tempo. A festa mais importante da cidade era dedicada ao Divino Espírito Santo e reunia diversão e religião291. Organizada por membros da elite, que se utilizavam dela para manter ou aumentar seu prestígio, era aguardada com expectativa. O jornal “O Combatente”292 fez vários registros da festa de 1892 e suas múltiplas atividades e atrações, onde a Irmandade do Rosário se fez presente. Um dos pontos altos das cerimônias religiosas era a procissão em homenagem ao Divino Espírito Santo, como registrou o jornal: Na tarde de domingo, percorreu as ruas do Comércio e Acampamento, a procissão composta de muitos andores, palio, bandeiras do Espírito Santo e Nossa Senhora do Rosário, os Colégios com seus respectivos estandartes, grande número de anjinhos, enorme massa de povo e uma banda musical293.

O festeiro responsável pela festa em 1892 foi o Major Francisco Weimann que foi composta de novenas, procissões, leilões, jogos, bailes e cavalhadas e duravam vários dias294. Depois da corrida das cavalhadas, foi servida uma mesa de doces aos corredores. No domingo, dia da missa solene, foram sorteados os responsáveis para o ano de 1893: Imperador – festeiro João Gaiger, capitão do mastro Jacob Beck, tenente das fogueiras Cezar Pinto e alferes das bandeiras Gabriel dos Santos Moraes. Depois da missa, foram entregues ao novo festeiro as bandeiras do Espírito Santo e, em sua casa, foi servida uma mesa de doces e finos líquidos. Depois de diversos discursos “foi queimado um fogo de artifício e subiu ao ar alguns balões”, além de um baile que durou até as duas horas da manhã. 291. Sobre as Festa do Divino, ver ABREU, 2000. 292. O jornal não pertencia mais ao Clube Caixeiral e era identificado como “órgão republicano”. 293. O Combatente. 12 de junho de 1892, Ano VI, n. 22. ACMEC. Esse é o primeiro registro encontrado da participação da Irmandade do Rosário em uma festa religiosa no período pós-abolição. Lamentavelmente edições dos jornais do período 1889-1891 não existem. 294. Publicou o jornal ‘O Combatente’ em 1892: “Sempre animada tem corrido a festa do Espírito Santo. Terminaram ontem as novenas sempre concorridíssimas. Quinta-feira começaram os leilões aos quais tem afluído muita gente e tem dado produtos lisonjeiros, pois sabemos que nas duas primeiras noites foi apurado para mais de 3:000$000. Neste mesmo dia percorreram as ruas da cidade as bandeiras, arrecadando muitas ofertas de valore e em dinheiro, ao que nos dizem 1:800$000. Anteontem e ontem foram corridas as cavalhadas na praça da matriz com muita concorrência de povo. Hoje correrão outra vez. Conseguiram tirar argolinhas na primeira corrida, os corredores Fructuoso Fontoura, Cezimbra, Pinto Filho, Vargas e Carlos de Moraes. Hoje se realiza a missa solene com o concurso dos Rev. Padres da Paróquia de São Jerônimo e colônia Silveira Martins. Se o tempo se conservar firme hoje, a procissão sairá amanhã as 3 horas. Ainda hoje há leilão de ofertas e fogos de artifício. Terça-feira, com um baile, concluir-se-á a festa” (O Combatente. 05 de junho de 1892, Ano VI, n. 21. ACMEC). DAUDT FILHO (2003, p. 201-202) também escreveu sobre a Festa do Divino.


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Na terça-feira, para encerrar as comemorações, ocorreu o baile da festa, que teve recitação de poesias, fino licor, vinho e doces em profusão. Terminou a festa “entre sorrisos, flores e músicas”295. Embora tivesse um caráter popular, a Festa do Divino possuía diversas atividades em que “a massa de povo” não tinha acesso. Os bailes nas residências dos festeiros, onde serviam licores finos e mesas fartas de doces, eram destinados a um grupo restrito de pessoas. A Irmandade do Rosário era uma coadjuvante nos festejos do Divino. Seus integrantes participavam não só como integrantes da corporação na procissão solene, mas também como membros da “enorme massa de povo” que assistiam às cavalhadas, que se encantavam com os fogos de artifícios ou que participavam das novenas. Enquanto sua igreja não ficava pronta, os irmãos do Rosário aproveitavam as oportunidades que tinham para dar visibilidade a sua nascente corporação. Também no ano de 1892, o jornal ‘O Combatente’ apresentou várias notícias e descreveu a Festa do Divino com bastantes detalhes, noticiou a realização da Festa do Campestre, mas não fez nenhuma menção à existência da festa de Nossa Senhora do Rosário, sinal que ela ainda estava em processo inicial de organização. As procissões eram realizadas em diversas circunstâncias e não somente em momentos de festas, mas também para solicitar a intervenção divina em momentos de crise e dificuldades. Por esse motivo, as primeiras manifestações religiosas da Irmandade (realizadas de forma independente e não como coadjuvante) apareceram nas páginas dos jornais. Em dezembro de 1893, “terça-feira [12 de dezembro], a Irmandade do Rosário, em procissão, ergueu preces pedindo chuva. Quarta-feira, continuou à noite a romaria, apesar de ter chovido ligeiramente ao meio-dia. A seca, porém, continua, havendo já falta d´água em muitas fontes na cidade e nas sangas adjacentes”296. A procissão acontecia quase todos os dias, pois na semana seguinte o jornal voltou a noticiar: “A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário tem continuado a percorrer a cidade, à noite, erguendo preces, pedindo chuvas. Todas as ruas têm sido visitadas pela Irmandade”297. Essa prática era comum, pois o jornal voltou ao tema em 1899: “A Irmandade de N. S. do Rosário andou, em procissão, domingo último, por algumas ruas da cidade, exibindo um santo e rezando para que chova! Ridículo, simplesmente!”298. Ao chamar aquela procissão de “ridícula”, o jornal “O Combatente” estava manifestando sua postura contra as práticas tradicionais do catolicismo. Ao desaprovar as atitudes da Irmandade, o jornal acabava revelando muitas de 295. O Combatente. 12 de junho de 1892, Ano VI, n. 22. ACMEC. 296. O Combatente. 19 de dezembro de 1893, Ano VII, n. 50. ACMEC. 297. O Combatente. 24 de fevereiro de 1893, Ano VII, n. 51. ACMEC. 298. O Combatente. 21 de dezembro de 1899, Ano XIII, n. 102. Na edição seguinte, o jornal explicou o motivo da procissão dos irmãos do Rosário: “A seca em nossa cidade e seu município está sendo aterradora, pois há perto de um mês não chove e o calor é cada vez mais intenso” (O Combatente. 24 de dezembro de 1899, Ano XIII, n. 103. ACMEC.).


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suas práticas religiosas ou festivas. Em um texto publicado em 1904, o cronista Mario de Figueiredo lembrava-se de uma “visita” que recebeu em sua casa dos irmãos do Rosário. Iniciou o texto mostrando seu espanto diante do uso da bandeira de Nossa Senhora do Rosário: Aquela manifestação noturna com as bandeiras de N. S. do Rosário deixou-me de queixo caído até hoje (...) Oito dias levei ruminando ideias e concertando reminiscências para obter a solução do X – a causa da dita e o motivo do comparecimento do símbolo sagrado (...). Porque isto de manifestação, afinal de contas, e com bandeiras simbólicas, não é brinquedo de criança, nem berimbau que preto toca299.

Depois de demonstrar sua incompreensão diante do uso das bandeiras naquela ocasião, pois entendia que “é muito significativo, muito sério, e traz compromissos de ordem moral e social que um homem, muitas vezes não calcula, não imagina e até não supõe”, o autor passou a explicar o que tinha acontecido naquela noite. “É que inventaram o dia de meus anos! Escolheram lá um dia e zás!” E continuou: O manifestado vê caras que nunca em sonhos descobrira, recebe e tem de aceitar cumprimentos, abraços e apertos de mãos que é um deus nos acuda; a família (se tem) vê-se numa azafama de mil demônios, para a surpresa, os manifestantes (dos quais nunca deixo de fazer parte) paramentam-se e cada qual, em frente da casa da vítima, faz questão de dar o mais estrondoso viva. É um reboliço, uma disputa para ser visto pelo amigo e para saudá-lo, como o da mãe para ver o seu primogênito, quando dá-lhe a luz. Um lufa-lufa, uma pandega monumental! 300

Independentemente da visão elitista e preconceituosa do autor em relação àquela manifestação composta de “foguetes, música, discurso e copo de cerveja”301, é uma clara demonstração que fazer parte da Irmandade ia muito além do aspecto devocional. Era o local de encontro, de festa e de contatos com pessoas do mesmo grupo social ou de setores da elite político-econômica. O símbolo maior de identificação deste grupo de homens e mulheres negras era a bandeira da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, que os acompanhava nas celebrações religiosas, nos enterros ou nas “manifestações pagãs”, apesar do autor achar que aquilo não era “brinquedo de criança, nem “berimbau que preto toca”. Apesar dessas e de outras manifestações realizadas por ela, não há dúvida de que a grande preparação era para a festa da padroeira. Já nas primeiras décadas do século XX, as celebrações do Rosário duravam o mês inteiro e em todas as tardes de outubro, às 7 horas, aconteciam “instrução, reza do 299. O Combatente. 20 de outubro de 1904, Ano XVIII, n. 1263. ACMEC. 300. O Combatente. 20 de outubro de 1904, Ano XVIII, n. 1263. ACMEC. 301. O Combatente. 20 de outubro de 1904, Ano XVIII, n. 1263. ACMEC.


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terço, ladainhas e benção”302. A festa era precedida de novenas que eram “extraordinariamente concorridas”303, como registrou o jornal “A Tribuna” em 1907. O jornal “Diário do Interior” fez o mesmo registro em 1913 ao noticiar o início das novenas afirmando que “a concorrência de fiéis àquele templo foi grande e o altar esteve ricamente ornamentado com muitos vasos com flores naturais”304. Antes do dia da festa, bandeiras saíam em “peditório” pela cidade solicitando auxílio para a realização das celebrações e festejos. O “Diário do Interior” noticiou em outubro de 1912: “Ontem, às 2 horas da tarde, saiu à rua, angariando donativos para as festas de amanhã, na Igreja do Rosário, sita no arrabalde da “Vila Rica” a bandeira daquela corporação, precedida de música e foguetes”305. O momento mais esperado, no entanto, era a grande festa, realizada sempre no primeiro domingo de outubro, quando se concentravam todos os esforços para marcar a data da padroeira com uma grande celebração, como foi descrita pela imprensa em 1912: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário levou a efeito, anteontem, conforme fora anunciado, a festa de sua sagrada padroeira. Elevado foi o número de fiéis que compareceu à festa, ficando inteiramente cheia, a transbordar de devotos, a Capela do Rosário. Às 4 horas da tarde, a procissão saiu da capela, percorrendo diversas ruas da cidade. Durante todo o trajeto, bem como antes da saída do préstito e depois da recolhida deste, tocou uma afinada banda musical, sendo queimados muitas dúzias de foguetes. A ornamentação da Capela do Rosário era de belo efeito, tendo-se a comissão encarregada da festa esforçado para imprimir a esta o maior brilhantismo. Para fora de mil pessoas tomaram parte da procissão ontem havida306.

Esses pequenos extratos de notícias jornalísticas deixam transparecer algumas características importantes da atuação da Irmandade ou de seus membros. Diferente do relato de João Daudt Filho, que presenciou as festas na década de 1870, os jornais relatam celebrações marcadas pela solenidade, pela rigidez e pela formalidade. Mesmo assim, tudo era preparado para dar o maior brilho possível para a festa em homenagem à Santa. A Irmandade do Rosário, em Santa Maria, era dominada pelos homens, pois as mulheres não tinham acesso à mesa administrativa. No entanto, nas suas principais celebrações, tanto nas novenas como na festa, sua participação era imprescindível, garantindo a organização e 302. Diário do Interior. 29 de setembro de 1912, p. 12. AHSM. 303. A Tribuna. 05 de outubro de 1907, p. 01. AHSM. 304. Diário do Interior. 27 de setembro de 1913, p. 05. AHSM. 305. Diário do Interior. 05 de outubro de 1912, p. 4. AHSM. 306. Diário do Interior. 08 de outubro de 1912, p. 02. AHSM.


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ornamentação da igreja o que revestia “todos os atos da máxima pompa”307 ou tinham participação ativa nas missas, cantando no coro da Igreja308 . A Irmandade do Rosário foi a primeira instituição criada pela população negra de Santa Maria no período pós-abolição. Passou por um período de organização institucional, de construção de sua capela e viu sua principal festa se transformar num evento que atraía “para fora de mil” pessoas. O seu desejo de autonomia sempre fez parte da Irmandade, seja na década de 1870 ou no momento em que renasceu, mas teve que enfrentar as transformações de seu tempo, tanto políticas como religiosas. Mas quem fazia parte desta sociedade religiosa? Qual a trajetória destes indivíduos? Se até agora só falamos da instituição Irmandade, no próximo capítulo falaremos de pessoas e descobriremos os desafios que enfrentaram na passagem do século XIX para o XX, da monarquia para a república, do catolicismo luso-brasileiro para o romanizado, do cativeiro para liberdade. Tantas mudanças, tantos desafios.

307. A Tribuna. 01 de outubro de 1910, p. 01. AHSM. 308. O jornal “A Tribuna”, 28 de setembro de 1910, noticiou: “Domingo próximo, será a festa da Nossa Senhora do Rosário. Na capela, às dez horas da manhã, rezar-se-á missa cantando as distintas Senhoritas que formam o coro da igreja. Às 4 horas da tarde sairá a procissão” (p. 02).


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7 OS IRMÃOS DO ROSÁRIO: ENTRE A ESCRAVIDÃO E A LIBERDADE


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No dia 19 de janeiro de 1915, o casal Henrique e Luísa Durig amarrou Ida Dutra Pinheiro, parda, menor de 14 anos de idade, serviçal de sua casa, pelos pés e mãos com fios de arame e depois, com outro pedaço de arame, espancaram -na. Após o castigo, atiraram-na no porão da casa onde tal fato se deu (na rua Floriano Peixoto, em Santa Maria), de onde a vítima conseguiu fugir. A menor se apresentou à polícia pedindo auxílio e contou ao delegado que há tempos vivia como “serviçal gratuita” na casa do casal Durig e era constantemente espancada por motivos frívolos. Henrique e Luísa alegaram que agiram dessa forma devido “ao procedimento irregular da menina” e que “cumpriram uma obrigação, castigando uma pessoa que lhes fora entregue para cuidarem de sua educação”309. No dia 14 de fevereiro de 1917, por volta das 23 horas, a mulata Antônia Máxima de Oliveira descia pela avenida Rio Branco, indo em direção à rua Carrapicho onde morava, quando foi abordada por dois soldados da Brigada Militar. Embora tivesse alegado que “andava calada e só” foi presa por vadiagem, pois estava um pouco alcoolizada e já era tarde da noite. Teve que dormir no xadrez. Durante a madrugada, foi levada para o pátio e o carcereiro Manoel Magalhães ordenou que seus cabelos fossem cortados. Segundo Antônia Máxima, tal ação foi “precedida e acompanhada de expressões grosseiras e atos violentos por ele lançados”. Depois, o carcereiro ordenou que ficasse nua para tomar banho, mas ela pediu para não passar por tamanha vergonha diante de tantos homens. O carcereiro desistiu do banho e a colocou novamente no xadrez. No dia seguinte, foi colocada em liberdade310. Na tarde do dia 20 de julho de 1922, Agrico Maia, 70 anos, e seu filho João Maia, 24 anos, agricultores, moradores do distrito de São Martinho, perseguiram e prenderam o negro Marcino Antônio do Rosário, 26 anos, que era seu peão, pois este “andava falando em desabono da honra”311 de Elvira Maia, 18 anos, filha de Agrico. Chegando em casa, deixaram Marcino amarrado no “tronco de laço” durante toda a noite. Na madrugada do dia seguinte, Agrico Maia amarrou Marcino em um pé de guaviroveira, foi até a casa de um vizinho, voltou de lá com talos de jerivá (espécie de palmeira) e deu a sua esposa Andrea Maia e sua filha Elvira para que dessem uns “laçaços” em Marcino, o que foi feito. Depois do espancamento, Marcino saiu “tramboleando” e fugiu312. 309. Processo-crime n. 108. 115. Santa Maria. p. 32. AHSM. Todos os processos-crimes existentes no Arquivo Histórico de Santa Maria (e citados neste texto) encontram-se disponíveis online e podem ser consultados em: http://web2.santamaria.rs.gov.br/arquivohistorico/sistema_descricao_documental/index. php/crime;term/browseTerm. 310. Processo-crime n. 158. 1917. Santa Maria, AHSM. 311. A testemunha Irineu Júnior da Rocha disse que Marcino foi seu peão e que, durante este tempo, “andou de namoro com uma filha de Agrico Maia”, que no mês de julho foi a sua casa e “pediu um cômodo(?) para botar a filha de Agrico, que ela o perseguia muito e já tinha dito até que ele não era homem”. Processo-crime n. 261. Santa Maria. 1922. p. 18. AHSM. 312. Processo-crime n. 261. 1922. Santa Maria. AHSM. Provável referência a andar aos trambolhões: “aos tombos, rolando” (SILVA, 1922, p. 794).


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No dia 26 de março de 1926, João Pires Rodrigues e Oscar Barcellos, por volta das 18 horas, estiveram na venda de Valentim Toniolo, na Colônia Conceição, 7º distrito de Santa Maria. Tomaram um cálice de cachaça e saíram levando Barcellos, no bolso, uma garrafa do mesmo líquido espirituoso. Próximo da olaria do mesmo Valentim Toniolo, depois de uma ligeira discussão, Oscar “puxou de uma faca e cravou no peito de João Pires”. No seu depoimento, Oscar Barcellos disse que tinha 23 anos, era solteiro, natural de São Gabriel, era jornaleiro, residia há 7 meses no distrito e revelou o motivo da discussão. Oscar explicou que João era peão e atuava de capataz do serviço de agricultura em casa de Maximiliano Danese e que depois foi substituído por ele; que devido a isso, por duas vezes, João tentou agredi-lo, mas fizeram as pazes e, no dia do crime, João começou a alegar que Oscar “era negro e não podia mandar ela[e] que era índio”. Que assim discutindo, João deu-lhe uma bofetada e que ele, em defesa, deu-lhe uma facada313. O espancamento da parda “serviçal gratuita”, o castigo e a humilhação da mulata por andar na rua durante a noite e ter seu cabelo crespo cortado314, o açoitamento do negro que ousou dizer que ia se casar com a filha do patrão e o índio que se recusava a ser mandado por um negro, são apenas alguns dos exemplos que demonstram que muitas das práticas do escravismo permaneceram latentes na sociedade brasileira, mesmo após décadas da abolição da escravidão. Esses casos também demonstram como a sociedade era racializada, com as definições de cor sendo usadas cotidianamente como critérios legítimos de hierarquização social. Essas concepções foram expressas em uma pequena notícia publicada em 1916, pelo jornal “Diário do Interior”, que dizia o seguinte: Vai para alguns meses que o mulato conhecido pela alcunha de Nenê Epifano seduziu uma menor pertencente a uma família síria aqui residente. Agora entendeu ele de casar, de motu-próprio, mas a família da moça se opõe. Nenê, muito desgostoso, foi pedir a intervenção da autoridade, que não pode intervir num caso de ação privada, como esse. Só será possível a intervenção policial no caso de representação da parte ofendida, o que parece não se dará315.

Esse seria apenas mais um caso de notícia envolvendo um suposto crime, se não fosse a resposta que o jornal recebeu, escrita por Claudeonor Martins 313. Processo-crime n. 345. 1926. Santa Maria. AHSM. O primeiro depoimento de Oscar Barcellos está na p. 09. 314. Embora o carcereiro tenha alegado que o corte dos cabelos era uma prática padrão na cadeia para evitar a proliferação de piolhos, as mulheres negras sofriam uma violência estética, através de concepções racializadas de beleza e feiura construídas “por intermédio de associações entre fenótipo, estereótipo e condição social”, como analisou Giovana Xavier (2012, p. 79). Por trás desse ato, certamente estava uma posição racista do carcereiro, atingindo, através do cabelo certamente crespo daquela mulher, a permanência indesejada da população negra. 315. Diário do Interior. Santa Maria, 24 de setembro de 1916, Ano VI, n. 223. AHSM.


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de Souza, e publicada na coluna “Seção Livre”. O autor da reposta fez questão de reproduzir tudo o que havia sido escrito pelo jornal para depois fazer sua contestação. Claudeonor lamentou a “má informação” e disse que nunca seduziu moça alguma e que tinha, sim, uma noiva com quem iria se casar em breve, “cuja mãe obrigava-a a dizer que o enlace não é da vontade da nubente”. Mas o fundamental veio a seguir: “Quanto ao epíteto injurioso de mulato com que me pretendem diminuir, ocorre-me a lembrança de uma frase do ilustre e saudoso dr. Alcides Cruz: ‘Não sei que vantagem há de chamar-se mulato a um homem que não tem vergonha de o ser’”316. Terminou sua réplica informando “à ilustrada redação do Diário do Interior” que vivia de seu trabalho e era oficial de alfaiate nas oficinas do snr. Genaro Mastrascuzza317. Dos quatro processos-crimes citados anteriormente, o único réu que foi condenado foi o negro Oscar Barcellos, que matou o índio que não o aceitava como capataz. Ele foi sentenciado há 6 anos de prisão celular318. Os demais foram absolvidos. Esses exemplos retratam algumas das dificuldades enfrentadas pela população negra nas primeiras décadas pós-abolição. Foi neste cenário de algumas rupturas, mas também de permanências, que os irmãos do Rosário viveram, trabalharam, rezaram e construíram laços sociais e institucionais. Os laços estabelecidos pela Irmandade do Rosário e as redes criadas pelo espírito associativo também foram responsáveis pela formação de uma consciência social e racial, como a que foi expressa pelo oficial de alfaiate Claudeonor Martins de Souza, que não tinha vergonha e ridicularizava o fato de ter o epíteto de mulato. Sua autoafirmação é uma indicação de como as associações negras contribuíram para atribuir conotações positivas a epiderme não-branca. O fato é que esses indivíduos enfrentaram as dificuldades de seu tempo e protagonizaram suas histórias e das instituições que criaram. Neste capítulo, pretendemos utilizar a Irmandade como uma janela para observar a trajetória de indivíduos negros que construíram diferentes formas de organização e se empenharam na luta por direitos e espaços de cidadania. 316. Diário do Interior. Santa Maria, 26 de setembro de 1916, Ano VI, n. 224. AHSM. Segundo Franco (2010: p. 70), Alcides Cruz nasceu em Porto Alegre, em 1867, e faleceu na mesma cidade no mesmo ano em que Claudeonor assumiu orgulhoso o epíteto de mulato. Agrimensor pela Escola Militar da capital, formado em Direito em São Paulo (1897), Alcides Cruz foi promotor em Porto Alegre (1900 a 1905), onde co-editou a Gazeta do Foro (1902/03) com o negro Aurélio Veríssimo de Bittencourt. Professor da Faculdade de Direito, foi também deputado em cinco legislaturas. 317. Diário do Interior. Santa Maria, 26 de setembro de 1916, Ano VI, n. 224. AHSM. 318. O recibo de entrega na casa de correção de Porto Alegre diz o seguinte: “Recebi e recolhi à prisão em 28 de dezembro p.p. Oscar Barcellos, com 23 anos de idade, solteiro, mulato, baixo, cheio de corpo, imberbe, dentadura visível, perfeita, lábios grossos, cabelos pretos e bem crespos, de profissão agricultor – o qual, por crime de homicídio simples, foi condenado pelo tribunal do júri desse município, há 6 anos de prisão celular, em sessão de 8 de novembro de 1926. De acordo com sua carta de guia, o réu em questão deverá ser posto em liberdade, por conclusão de sua pena, em 04 de abril de 1932. 04 de janeiro de 1927”. Processo-crime n. 345. Santa Maria, 1926, p. 69. AHSM.


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Vamos conhecer minimamente as relações familiares e as redes estabelecidas com outras instituições realizadas por alguns desses indivíduos negros. As dificuldades de tal tarefa já foram apontadas por Hebe Mattos, diante dos “silêncios da cor”. No entanto, Petrônio Domingues deixou uma importante dica para driblar o “silêncio das fontes” acerca da experiência histórica dos negros na era pós-escravista: Faz-se necessário desenvolver procedimentos novos (e rever os antigos) de tratamento do corpus documentais, ousar, ser criativo, fazer uso de “descrições densas”, paradigmas abdutivos e indiciários, cultivando um faro detetivesco e não desperdiçando nenhuma pista; manejar as estratégias e ferramentas de pesquisa com sensibilidade e uma dose de intuição, além, obviamente, de muita perseverança e paciência (GOMES & DOMINGUES, 2013, p. 71)319.

Obviamente que tal procedimento deve ser aplicado a todo e qualquer objeto de investigação, como lembra o autor, mas o cruzamento de fontes diversas é essencial para o estabelecimento dos caminhos percorridos por exescravos. Muitas foram as dificuldades, pois muitos possuíam prenomes comuns e ainda eram identificados com nomes diferentes, de acordo com o lugar social em que estavam. Longas lacunas se estabeleciam entre uma fonte e outra, e, a partir de pequenos indícios documentais, hipóteses foram levantadas para completar os “vazios históricos”. Apresentamos aos leitores Sisnando Antônio de Oliveira, José Francisco do Nascimento, os irmãos Adão Gabriel Haeffner e Antônio Gabriel Haeffner (que já conhecemos parcialmente) e Osório Nunes do Nascimento. Esses indivíduos foram escolhidos por terem vividos a experiência da escravidão e da liberdade e por estarem associados a outras instituições negras, o que permitiu uma visão mais ampla das relações sociais e comunitária em que estavam envolvidos.

7.1 SISNANDO ANTÔNIO DE OLIVEIRA Sisnando, Sisnande, Sizenando foram as diferentes formas de grafia do nome deste indivíduo que dedicou parte de seu tempo e de seus bens à Irmandade do Rosário e à Sociedade Treze de Maio. A sua casa era um ponto de referência para os negros de Santa Maria que estavam criando seus locais de manifestação da religiosidade, seus clubes e suas sociedades. Não conseguimos muitas informações sobre o local de seu nascimento e sua relação com a escravidão, mas seu assento de casamento apresenta alguns indícios de sua condição.

319. Os Capítulos 1, 3, 4, 6, 8, 10 e 12 foram escritos por Flávio Gomes e outros colaboradores. Os capítulos 2, 5, 7, 9 e 11 são de autoria de Petrônio Domingues.


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Sisnando Antônio de Oliveira320 casou-se com Leopoldina Maria de Oliveira e o seu assento de casamento foi registrado pelo vigário da seguinte forma: Aos 22 de março de mil oitocentos e noventa, nesta matriz de Santa Maria da Boca do Monte, feitas as diligências do estilo, sem impedimento perante mim e as testemunhas Daniel da Silva Mattos e Innocêncio Guilherme Dias, se receberam em matrimônio por palavras de presente os nubentes Sizenando de Oliveira, de trinta anos e Leopoldina Maria d´Oliveira, de trinta e seis anos, ambos solteiros, hoje livres, desta província e filhos naturais, ele de Ritta e ela de Joaquina. E para constar lavrei este termo que firmo. O vigário Achilles Parrela Catallano321 (grifo nosso).

A cerimônia de casamento foi realizada em 1890, quase dois anos depois do fim da escravidão, mas o padre fez questão de assinalar a condição de livres do casal (“hoje livres”). Ou seja, em algum momento de suas vidas, tanto Sisnando como Leopoldina viveram sobre a condição de escravos, e tal experiência marcou a inserção social de ambos mesmo após a Lei Áurea. A indicação “desta província” também indica que migraram para Santa Maria ou foram forçados a vir, pois não eram “desta freguesia”, como frequentemente o padre registrava quando o indivíduo nascia na respectiva paróquia. Sisnando tinha trinta anos, portanto nasceu por volta de 1860. Coincidentemente, em 1872, o alemão Francisco Weinmann comprou de Joaquim Rodrigues Marcellino (morador de Cruz Alta) um jovem escravo de 12 anos, crioulo, chamado Sizenando e pagou por ele 600 mil réis322. O jovem escravo também nasceu por volta de 1860, o que aumenta a suspeita de tratar-se da mesma pessoa, além do fato de Sisnando e/ou Sizenando não ser um nome muito comum. Com o fim da escravidão, os desafios da vida em liberdade eram enormes. A presença nas instituições e sociedades negras era uma estratégia voltada para a busca de solidariedade e proximidade com outros indivíduos na mesma condição. No seu casamento, Sisnando e sua noiva escolheram como uma das testemunhas Innocêncio Guilherme Dias, que também era integrante da Irmandade do Rosário. Além do matrimônio de Sisnando, ele foi escolhido para ser testemunha no processo de habilitação de casamento de outro irmão do Rosário chamado Firmino José Vidal323. Innocêncio faleceu no dia 08 de abril 320. Adotaremos como referência a designação de Sisnando (o que mais comumente foi encontrado), mas, nas citações, repetiremos a grafia de acordo com a documentação utilizada. 321. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de casamento n. 07 (1887-1901), p 38v. 322. APERS. Documentos da Escravidão. Compra e Venda, vol. 02, p. 308. 323. Firmino José Vidal foi membro da Irmandade do Rosário, da Sociedade Treze de Maio e da Sociedade Cravo e Rosa. Casou-se pela primeira vez com Geralda de Andrade, em 1897. Geralda, crioula, nasceu no dia 25 de fevereiro de 1866 e foi batizada no dia 26 de maio de 1866, na casa de Joaquim da Costa Pavão. Era filha natural de Ignácia, escrava de Maria Francisca de Andrade (Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro Batismo n. 7 1864/1869, p. 15. ACSM.). Depois do falecimento da primeira esposa, Firmino casou com Maria Isabel Silva, em 1912. Era morador da Rua 24 de Maio.


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de 1899, e sua reconhecida importância na comunidade pode ser percebida na seguinte nota publicada no jornal: “Quinta-feira foi sepultado o cadáver de Innocêncio Guilherme Dias, sendo acompanhado o corpo pela Irmandade de N. S. do Rosário e da banda musical Lyra Santa-mariense”324. Além do fato de ter seu sepultamento acompanhado por uma banda musical, raros são os negros que mereceram a atenção dos jornais do período de pós-abolição, além, obviamente, daqueles que cometeram algum delito. Sisnando Antônio de Oliveira percebeu que além da capela, da escola e do hospital que a Irmandade pretendia construir, eram necessários outros locais onde os negros de Santa Maria tivessem seus espaços de sociabilidade, de cooperação, de organização e de diversão, uma vez que não tinham acesso aos tradicionais clubes e instituições da cidade. Foi em uma reunião em sua casa, em 1903, que foi definida a criação da “Sociedade Treze de Maio”325 que, de acordo com sua “Acta de fundação”326, tinha o seguinte propósito: Aos treze dias do mês de maio de mil novecentos e três, na residência do Cidadão Sisnande d’Oliveira, reunidos em número de quarenta e sete cidadãos, foi fundada uma sociedade com o fim de comemoração a gloriosa data treze de maio. Por aclamação assumiu a Cadeira de presidente o cidadão José Fontoura que fazendo uso da palavra, expôs vivamente os motivos d’aquela reunião. Em seguida sucederam-lhe na tribuna os senhores Ovídio do Prado, Manoel de Moura, José Alves Teixeira e Tudio da Silva, que também, em eloquentes frases, fizeram a apologia dos altruísticos fins em que se prende a sociedade ora fundada. (...) Ficou combinado, para dirigir provisoriamente até que se proceda a respectiva eleição a seguinte diretoria: presidente: José Fontoura; vice-presidente: Manoel Pereira de Moura; 1º Secretario: Osório Nunes; secretário: José Alves Teixeira; orador: Ovídio do Prado; tesoureiro: Sisnande d’ Oliveira, ficando assim preenchida a mesa administrativa327.

O objetivo inicial da sociedade era comemorar a “gloriosa data treze de maio”, mas, com o passar do tempo, transformou-se em um dos mais importan324. O Combatente. 16 de abril de 1899, ano XII, n. 31. ACMEC. 325. Conforme Giane Vargas Escobar (2010, p. 100), a “Sociedade Treze de Maio”, em 1946, incorporou a palavra “Recreativa” em seu nome, passando a denominar-se “Sociedade Recreativa 13 de Maio”. Neste mesmo ano, após aprovação em Assembleia, recebeu a denominação de “Sociedade Recreativa Ferroviária 13 de Maio”. Atualmente, abriga o Museu Comunitário Treze de Maio. Sobre a história, atuação e a atual finalidade desta importante instituição, ver a dissertação de mestrado e a tese de doutorado de Giane Vargas Escobar (2010; 2017), uma das principais responsáveis pela revitalização e a transformação da Sociedade em um espaço comunitário, o Museu Treze de Maio. 326. Giane Vargas Escobar (2010: p. 98) explicou que “uma antiga sócia e ex-presidente do Clube Treze de Maio, Nilza Moura, guardou o Livro de Ata n. 1 em sua residência e assim que soube da ideia de criação de um Museu da Cultura Negra de Santa Maria, o Museu Treze de Maio, ela imediatamente entrou em contato com a equipe do Museu e entregou esta documentação fundamental para o entendimento de parte da história da população negra santa-mariense”. Este livro de atas foi digitalizado e transcrito por Augusto Britto, de acordo com as normas técnicas paleográficas, viabilizando dessa forma o acesso às informações e o não manuseio do livro original, que se encontra bastante deteriorado. A autora enviou gentilmente, por e-mail, uma cópia da transcrição paleográfica do Livro de Atas n. 1, o que agradeço. 327. Sociedade Treze de Maio. Acta de Fundação. Santa Maria, 1903-1914. AMTM.


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tes Clubes Sociais Negros328 do Rio Grande do Sul. Para Giane Vargas Escobar (2010, p. 100), “o ‘Treze’, como ficou popularmente conhecida essa Sociedade, é um símbolo de resistência e poder da comunidade negra, materializado em um espaço privilegiado que demarca, na cidade, um espaço político, uma vontade, um lugar de memória e de identidade negra”. Embora o objetivo expresso na ata da inauguração da “Sociedade” tenha sido a comemoração da Lei Áurea, outros eventos do processo de conquista da liberdade faziam parte do calendário festivo do “Treze”, como a Lei do Ventre Livre329. Embora a data “13 de Maio” tenha passado por um processo de ressignificação pelo movimento negro, no início do século XX, criar uma sociedade para comemorar a data da abolição era um ato de rebeldia. A elite política e econômica havia se apropriado destas comemorações e a transformado num evento onde a população negra estava excluída. Essa apropriação pode ser percebida nas festas organizadas para comemorar o aniversário da abolição. Em 1892, o jornal “O Combatente” noticiou que as atividades realizadas em comemoração ao quarto aniversário da abolição ocorreram da seguinte forma: À noite foi realizado no “Theatro 13 de Maio” um espetáculo de gala, em honra ao grande dia. Achava-se o teatro bem iluminado interior e exteriormente. Na entrada, bem como na plateia e camarotes, estava tudo enfeitado com simetria e gosto. Em um escudo lia-se com letras feitas a tinta verde e amarela, um inspirado pensamento do nosso amigo Ignacio Valle Machado. Foi levado à cena o bem escrito drama – Artur – produção do cidadão Afonso Porto da Fontoura. Antes, porém, foi executado com muita correção, o hino “13 de Maio”, escrito pelo nosso conterrâneo Antônio Gabriel Edler. A banda “Dionéa”, caprichosa como é, executou-o com perícia. Teve cabal desempenho o drama [Artur] (...). Nos intervalos dos atos, recitaram inspirada poesias (...) do camarote nº 6 os nossos companheiros Candido Brinckmann, Ignácio Valle Machado e Paula Ferreira, que foram aplaudidos e felicitamos. Também oraram relativamente a data festejada, os Srs. Edmundo Carvalho e Honório de Mattos, que falaram muito bem (...). As comédias tiveram desempenho satisfatório330.

Ao levar as comemorações para a Vila Rica e suas imediações, Sisnando de Oliveira e seus companheiros negros desejavam dar a sua versão sobre os 328. “Em 29 de fevereiro de 2008, Oliveira Silveira e os integrantes da Comissão Nacional de Clubes Sociais Negros dos estados do RS, SC, SP, RJ e MG elaboraram um conceito de Clube Social Negro, definindo dessa forma que ‘Os Clubes Sociais Negros’ são espaços associativos do grupo étnico afro-brasileiro, originário da necessidade de convívio social do grupo, voluntariamente constituído e com caráter beneficente, recreativo e cultural, desenvolvendo atividades num espaço físico próprio” (ESCOBAR, 2010, p. 61). 329. Maria Angélica Zuraban (2008) ao estudar as “comemorações da liberdade” em Porto Alegre afirmou que “as comemorações da Lei do Ventre Livre, no 28 de setembro, em Porto Alegre, serviram para que as lideranças negras do jornal O Exemplo discutissem as memórias da escravidão, que aparecem associadas ao martírio e à subserviência dos negros, e para transformá-las em uma ocasião para reafirmação da humanidade dos negros e negação dos estereótipos racistas” (p. 172). 330. O Combatente. Santa Maria. 15 de maio de 1892, ano VI, n. 18. ACMEC.


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acontecimentos em que estavam diretamente envolvidos. Queriam ouvir os discursos de seus companheiros, ter seus próprios oradores e celebrar do seu jeito o fim da escravidão. Naquele momento, celebrar a data da abolição em sua própria “Sociedade”, significava ouvir a voz daqueles que emergiram do cativeiro para a liberdade, mas uma liberdade que precisava ser construída dia a dia. Foi o que ocorreu em 1904: Às 8 horas da noite do referido dia, presente avultado número de sócios, o senhor Manoel P. de Moura, Presidente em exercício declarou aberta a sessão solene em comemoração à grandiosa data da Redenção de milhares de brasileiros. Dada a palavra ao orador oficial interinamente331 nosso digno consorcio Sérvulo de Macedo, discursou ele eloquente e brilhante discurso. Sob a áurea lei de treze de maio uma prolongada salva de palmas, cobriu as últimas palavras do orador. Seguiu-se com a palavra o senhor Eduardo Rodrigues representante da sociedade Rosa Branca que discursou com brilhantismo sob a data comemorativa. Em seguida subiu à tribuna o nosso digno consocio Ignácio Francisco Rocha, que em frases vibrantes fez o histórico do grandioso dia, sob o mesmo torna a serem ainda da palavra (?) Horácio Ribeiro, Manoel José Bueno, Apparício Pompéa, Osório Nunes do Nascimento. Não havendo mais ninguém que quisesse fazer uso da palavra o senhor Presidente Manoel P. de Moura, depois de pronunciar um patriótico e entusiástico discurso, declarou encerrada a sessão solene, dando-se então começo ao baile, que prolongou-se até as 9 horas da manhã, reinando sempre o melhor, enfim nada mais havendo o senhor P. agradeceu o comparecimento dos sócios e sócias(...)332.

Embora separados por pouco mais de uma década, os dois eventos têm algumas semelhanças e grandes diferenças. Os eventos aconteceram no dia 13 de maio em instituições que também se chamavam “Treze de Maio”. O primeiro foi composto por peças de teatro, poesias, hinos e discursos; o segundo, depois de um desfile pelas principais ruas da cidade acompanhado pela banda da Brigada Militar333, sua sessão solene também foi composta de discursos eloquen331. O orador era Ovídio Vicente do Prado, que havia solicitado licença do cargo por ter que deixar temporariamente a cidade (Ata de 23 de fevereiro de 1904). Ovídio também era integrante da Irmandade do Rosário. 332. Sociedade Treze de Maio. Ata de 13 de abril de 1904. Santa Maria, 1903-1914. AMTM. 333. O jornal ‘O Estado’ publicou em 1904: “A gloriosa data que assinala a abolição da escravatura no Brasil não passou despercebida entre nós. A patriótica sociedade ‘13 de Maio’, fundada nesta cidade com o fim exclusivo de comemorar a gloriosa data brasileira, fez, nesse dia, incorporada, um passeio pelas nossas principais ruas, precedida da banda musical da Brigada. O préstito, que subiu a rua do Comércio, parou em frente à residência do estimado chefe republicano local, nosso distinto amigo coronel Ramiro de Oliveira, que foi entusiasticamente saudado. O coronel Ramiro, em eloquentes palavras, respondeu à saudação. Continuando seu trajeto pela rua do Comércio, a sociedade tomou depois a do Acampamento, indo parar em frente à casa do ilustre intendente coronel Dutra Villa, que foi cumprimentado na qualidade de chefe do município. Agradecendo a consideração que lhe era dispensada, o coronel Villa fez o histórico da gloriosa data brasileira, sendo imensamente aplaudido. Após a passeata cívica a sociedade voltou a sua sede onde realizou uma sessão solene” (O Estado. Santa Maria, 14 de maio de 1904, ano VII, n. 39, p. 01). Sobre as atividades do mesmo dia, “O Combatente” publicou: A Sociedade 13 de Maio, composta de homens de cor, efetuou uma sessão solene, sendo orador o cidadão Servulo Ferreira. À noite, incorporada, precedida de uma banda de música e de seu estandarte, percorreu as ruas principais e a imprensa local. Pela parte que nos toca, muitíssimo obrigado” (O Combatente. Santa


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tes, frases brilhantes, convidados e um baile que durou a noite inteira. Mas, as diferenças são fundamentais. O primeiro foi realizado no centro e estavam presentes descendentes e antigos senhores; o segundo, em uma casa na periferia e seu público era formado por muitos indivíduos que viveram diretamente a experiência do cativeiro. Uma sociedade criada por negros para celebrar o dia “Treze de Maio” não era sinal de subserviência, mas de investimento na construção de espaços cruciais para a construção da memória coletiva negra, para fundamentar sentimentos de pertencimento, de transição da invisibilidade para a visibilidade, onde os afro-brasileiros reinventaram a liberdade e questionaram as desigualdades étnico-raciais no pós-abolição, como sugeriu Maria Angélica Zubaran (2008, p. 161-187) na sua análise sobre as “comemorações da liberdade” em Porto Alegre. Para que as assembleias, as reuniões e as festas da “Sociedade” fossem realizadas, Sisnando oferecia a sua própria casa. Muitos encontros aconteceram ali, até que em 24 de abril de 1906, sobre a presidência de Laurentino Paz, a “Sociedade Treze de Maio” decidiu pela aquisição de um terreno pertencente a Paulino Knackffus para a construção de um edifício sede. Sisnando de Oliveira foi o único que protestou contra a realização do negócio, mas não explicou o motivo de seu protesto334. Talvez já estivesse acostumado com a presença dos companheiros em sua casa e se sentisse gratificado com isso, porque achava arriscada a aquisição ou temia perder sua influência sobre seus companheiros de sociedade. Estava nascendo um dos símbolos associativos da história e da cultura afro-brasileira de Santa Maria e do Rio Grande do Sul. O “Clube Treze de Maio”, como ficou conhecido, foi construído na rua 24 de Maio, na mesma rua e a poucos metros da Capela do Rosário, sede da Irmandade. A residência de Sisnando de Oliveira estava localizada na rua Barão do Triunfo, mas fazia esquina com a rua 24 de Maio335. Vivendo próximo da Capela do Rosário e da sede da “Sociedade Treze de Maio, Sisnando foi uma das Maria. 15 de Maio de 1904, Ano XVIII, n. 1218. ACMEC). Ao parar em frente do chefe republicano local esta passeata incorporada indica pistas dos vínculos político-partidários desta comunidade. Em 1919, o jornal “Diário do Interior” publicou na “Seção Livre” uma “Prevenção”, anunciando quem faria “a distribuição das chapas aos Republicanos” nos locais de votação e onde cada correligionário votaria. Na lista, encontramos os nomes de Sérvulo Ferreira de Macedo e José Francisco do Nascimento, importantes lideranças da Sociedade Treze de Maio e do bairro da Vila Rica e simpatizantes do Partido Republicano (Diário do Interior. 12 de abril de 1913; 13 de abril de 1913. AHSM). O envolvimento partidário dos negros de Santa Maria merecem estudos específicos, mas fica explícito o envolvimento político de suas associações. 334. Sociedade Treze de Maio. Ata de 24 de abril de 1906. Santa Maria, 1903-1914. AMTM. Na reunião ocorrida no dia 13 de maio de 1906 foi lido para os sócios o contrato de compra e venda do terreno. Conforme o livro de Atas do período de 1903-1914, pelo menos 22 reuniões ou festas foram realizadas na Casa de Sisnando Antônio de Oliveira. 335. O local de residência de Sisnando e Leopoldina foi informando no processo-crime n. 229: “São testemunhas: Leopoldina de Oliveira e Eponina de Oliveira, ambas residentes na Rua Barão do Triumfo, esquina Silva Jardim” (p. 06). Processo Crime n. 229. Santa Maria. 1921. AHSM.


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lideranças do bairro negro, onde morou, construiu sua família e manteve sua atividade profissional como carroceiro. Sisnando e Leopoldina tiveram duas filhas. Celina e Eponina. No mapa da página seguinte, podemos visualizar o local onde Sisnando e sua família viveram e ajudaram a criar suas instituições. Imagem 14 – Localização da casa de Sisnando de Oliveira e instituições negras

Fonte: Extrato da Planta da cidade de Santa Maria, 1902 – de José Neher. AHSM (inserções realizadas pelo autor)

Um indivíduo que passou a fazer parte de sua rede de relações familiares foi Eduardo Rodrigues, que casou com Celina, sua filha mais velha. Sujeito controverso, que deve ter provocado “amor e ódio” naquela comunidade negra. Eduardo Rodrigues foi membro da “Sociedade Treze de Maio” durante muitos anos e exerceu diversos cargos na administração da entidade. Seu nome começou a aparecer no livro de atas a partir de 1904. No dia 13 de maio de 1904, na sessão comemorativa que celebrava “a grandiosa data da Redenção de milhares de brasileiros”, Eduardo Rodrigues foi um dos oradores, representando a “Sociedade Rosa Branca”336. O período imediato do pós-abolição foi também de intensa organização da comunidade negra. No final do século XIX, já existiam pelo menos três associações negras em Santa Maria: a Irmandade do Rosário, a sociedade de baile denominada “União Familiar”337, fundada em 1896, e uma terceira associação chamada 336. Sociedade Treze de Maio. Santa Maria. Ata de 03 de maio de 1904. AMTM. 337. “Acaba de ser fundada, nesta cidade, sob a denominação de ‘União Familiar’, uma sociedade de baile, composta de homens de cor” (O Combatente. Santa Maria, 15 de março de 1896, Ano X, n. 12. ACMEC).


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“Sociedade da Rosa”. Como publicou “O Combatente” em 1897: “Percorreu as ruas da cidade, segunda-feira, precedida de uma banda musical, a Sociedade da Rosa, composta de homens de cor”338. Em 1898, a comissão administrativa de uma “sociedade denominada Cravo e Rosa” avisava por meio do jornal “O Estado”, “que a primeira partida foi pela maioria de votos transferida para o dia 13 de maio, na rua do Acampamento, casa nº 84”339. Faziam parte da direção dessa associação Firmino José Vidal, sua esposa Geralda de Andrade e José Raphael da Silva, membros do Rosário e depois do “Treze”. Como dissemos, em 1904, Eduardo Rodrigues, genro de Sisnando, discursou nas comemorações da abolição, representando a “Rosa Branca”340. Seriam as três denominações (Sociedade da Rosa, Cravo e Rosa e Rosa Branca), apenas denominações diferentes da mesma sociedade? Se eram associações diferentes, o espectro, as redes e os campos de atuação dessas instituições negras se ampliam consideravelmente em Santa Maria da Boca do Monte, na passagem do século XIX para o XX. Eduardo Rodrigues possuía uma atuação destacada na “Sociedade Treze de Maio” e, em 1909, já fazia parte de sua administração como vice-presidente. Foi nesse período que começaram as divergências entre Sisnando Antônio de Oliveira e Eduardo Rodrigues. Na reunião realizada em 12 de setembro de 1909, Sisnando ofereceu mais uma vez a sua casa para as comemorações de 28 de setembro (Ventre Livre), mas não queria que comparecesse na sua residência o vice-presidente Eduardo Rodrigues, “por causas estranhas à sociedade”341. Embora a ata não mencionasse, essas causas estranhas estavam ligadas às relações familiares entre Sisnando, sua filha Celina e Eduardo Rodrigues, cujo enredo estava apenas começando. Depois da imposição, uma série de outras reuniões ocorreram em sua casa, com a presença de Eduardo Rodrigues, talvez em razão do reestabelecimento das relações entre eles. Em 1910, o presidente escolhido para dirigir a Sociedade Treze de Maio foi Eduardo Rodrigues e sob sua direção tiveram início as reuniões para a construção do edifício sede da instituição. A primeira reunião foi realizada na casa de Sisnando, no dia 17 de outubro de 1910, estando presentes “grande número de sócios e sócias” e entre elas Celina Rodrigues, esposa de Eduardo342. 338. O Combatente. Santa Maria. 18 de abril de 1897, Ano XI, n. 16. ACMEC. Informação gentilmente fornecida por Franciele Oliveira. 339. O Estado. Santa Maria. 16 de abril de 1898. ACMEC. 340. Embora essa associação, como vimos, já existisse em 1904, o jornal “Correio da Serra” noticiou em 1926: “A diretoria dessa novel associação dançante, fundada a pouco nesta cidade por elementos da raça etiópica, teve a fineza de nos convidar para o baile que realizou ontem na sede da Sociedade União Familiar. Gratos.” (Correio da Serra. Santa Maria, 26 de fevereiro de 1926, Ano IX, n. 2677, p. 3. AHSM). A sociedade Rosa Branca, existente em 1904, deve ter ficado um período sem funcionar e retomado suas atividades na metade da década de 1920. 341. Sociedade Treze de Maio. Santa Maria. Ata de 12 de setembro de 1909. AMTM. 342. Sociedade Treze de Maio. Santa Maria. Ata de 17 de outubro de 1910. AMTM. Nova reunião foi realizada no dia seguinte para tratar deste assunto, novamente na casa de Sisnando.


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Depois do período preparatório, tiveram início as obras do prédio. No dia 14 de maio de 1911, os sócios se reuniram na casa de Sisnando de Oliveira. Às 3 horas da tarde, acompanhados pela Banda de Música Lira Popular, todos seguiram para assistir ao assentamento da pedra fundamental. Ao chegar ao local, havia grande presença de sócios e curiosos, e o pedreiro, senhor Jacob, em 40 minutos colocou “a pedra no seu glorioso lugar”. Falaram o presidente Eduardo Rodrigues sobre o futuro e prosperidade da Sociedade Treze de Maio, e Ignácio Rocha, que ofereceu uma cédula de 10 mil réis para auxílio da Sociedade. Em seguida, “a massa popular” se dirigiu novamente à casa de Sisnando, onde foram servidos “doces e líquidos”, e ainda falaram diversos oradores343. A pedra fundamental foi colocada cinco anos depois do terreno a ser adquirido. A Irmandade do Rosário levou 10 anos para concluir a sua igreja, o que prova as dificuldades da população e a superação dos problemas econômicos para poder construir seus locais de encontro, de oração e de sociabilidade. Em setembro de 1911, a Sociedade Treze de Maio decidiu não realizar as comemorações do dia 28 de setembro para não comprometer o caixa, em função das obras no prédio344. Eduardo Rodrigues foi um líder importante daquela sociedade e conseguiu mobilizar sua comunidade para a construção do prédio do Clube Treze de Maio, como ficou conhecida sua sede. Mas suas relações pessoais e sociais provocaram divergências entre seus companheiros de sociedade. Seu principal opositor era seu sogro Sisnando de Oliveira. Em 1914, Sisnando enviou um ofício para os demais integrantes da diretoria da Sociedade Treze de Maio, solicitando a saída do presidente Eduardo Rodrigues. Duas reuniões ocorridas nos dias 07 e 12 de janeiro de 1914, na casa de Dominga de Almeida, discutiram o assunto e a Assembleia decidiu pela permanência de Eduardo Rodrigues como presidente345. Mas o que incomodava Sisnando de Oliveira? Quais eram os motivos da divergência com Eduardo Rodrigues? Em 30 de junho de 1913, Eduardo Rodrigues, casado, carroceiro, 36 anos, foi acusado de ter ferido Sebastião Machado de Oliveira, também casado, pedreiro, “de cor preta, 30 anos”346 com uma faca, depois de um conflito ocorrido na rua Coronel Niederauer. O desenrolar do processo-crime que foi instaurado revelou uma disputa por Aracy Pires, 20 anos, que trabalhava em serviços domésticos. No seu depoimento, Aracy disse que era “amasia do réu” e que ele “uma noite ameaçou matá-la, enciumado com Sebastião”, por isso, sua avó Emília Maria da Conceição o insultou. Na tarde do crime, Eduardo tomava satisfações da avó de Aracy, quando viu Sebastião do lado de fora da casa escutando a discussão 343. Sociedade Treze de Maio. Santa Maria. Ata de 14 de maio de 1911. AMTM. 344. Sociedade Treze de Maio. Santa Maria. Ata de 12 de setembro de 1911. AMTM. 345. Sociedade Treze de Maio. Santa Maria. Ata de 07 de janeiro de 1914; Ata de 12 de janeiro de 1914. AMTM. 346. Processo-crime n. 92. 1914. Santa Maria, AHSM.


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e se dirigindo a ele, de “trocas de palavras passaram as vias de fato”. Eduardo Rodrigues alegou que “há seis meses mais ou menos, Sebastião Machado pretendia tirar dele depoente a amasia de nome Aracy Pires; que nesse sentido Sebastião perseguia ele, réu, por toda a parte, ora pedindo ora ameaçando para que ele, réu, não mais procurasse Aracy”347. Para sua defesa, Eduardo Rodrigues contratou o advogado Ernesto Barros, que apresentou sete testemunhas: Silvério Teixeira do Amaral, Gonçalves Moreira, Napoleão dos Santos, Paulino de Tal, Ignácio José Domingues, Alcides Alves e Laurentino Paz. Desses sete nomes, pelo menos cinco eram membros da Sociedade Treze de Maio. Foram ouvidos apenas dois deles, Napoleão dos Santos, 35 anos, jornaleiro e Serafim Paulino da Silva (Paulino de Tal), 45 anos, jornaleiro, justamente os dois nomes que não conseguimos identificar como pertencentes à Sociedade. Infelizmente, os outros foram dispensados pelo advogado de defesa, pois permitiriam uma análise mais detalhada da categorização profissional dos integrantes da “Sociedade Treze de Maio”. No dia 27 de janeiro de 1914, foi lavrado o mandado de prisão contra Eduardo Rodrigues, que não foi encontrado por estar em lugar incerto e foi tido como réu foragido. Eduardo apresentouse com seu advogado no dia do seu julgamento, ocorrido no dia 08 de abril de 1914, quando o Conselho de Sentença determinou a sua absolvição348. Foi no decorrer do processo que Sisnando Antônio de Oliveira pediu a saída de Eduardo Rodrigues. Tanto o mandado de prisão, como o ofício de Sisnando solicitando a saída de Eduardo Rodrigues, ocorreram no mês de janeiro de 1914. Eduardo e Sisnando eram dois dirigentes importantes da Sociedade Treze de Maio ligados por laços familiares e estes mesmos laços foram motivos de divergências. Eduardo estava “amasiado” com Aracy Pires, porque estava separado de Celina Oliveira e este pode ser um dos motivos das divergências das duas lideranças da “Sociedade Treze de Maio”. No entanto, essas sociedades negras investiram num comportamento regrado de seus integrantes, como pode ser visto num comunicado mandado publicar pela “Sociedade Treze de Maio” no jornal “Gaspar Martins”, em outubro de 1906: Vimos declarar aos nossos distintos sócios, e como uma satisfação ao povo desta cidade, que os cidadãos José Alves Teixeira e d. Maria Luiza de Moura, causantes da lamentável desordem, ocorrida há 28 do p. p. mês [28 de setembro – Ventre Livre], foram eliminados de sócios desta associação sem direito de volverem jamais ao seu seio social. Esta satisfação que nos cumpre dar ao povo santa-mariense, e aos nossos consócios, na qualidade de diretores desta sociedade que queremos vê-la alevantada ao nível moral da decência e não desvirtuada por homens arruaceiros e perversos que, aceitos em seu seio social, 347. Processo-crime n. 92. 1914. Santa Maria, AHSM. 348. Processo-crime n. 92. 1914. Santa Maria, AHSM.


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cometem feias ações, fazendo periclitar a boa marcha que, sem medir sacrifícios, imprimimos, a nossa querida Sociedade 13 de Maio, que em não longínquo futuro há de tornar-se acatada e respeitada com o banimento de todo elemento que tentar desvirtuá-la. Presidente: Laurentino Paz; Vice P.: Neco Bueno; Tes. Sisnande A. de Oliveira; 2º Secret. Ignácio F. Rocha349.

O comportamento de Eduardo Rodrigues e o seu envolvimento com a polícia também foram motivos do descontentamento de Sisnando de Oliveira, pois desqualificava a “Sociedade Treze de Maio”, que desejava ser “acatada e respeitada” por todo o povo santa-mariense. A diretoria já havia banido sócios que não tinham um comportamento adequado, e Sisnando esperava o mesmo de seu genro Eduardo Rodrigues, que havia abandonado Celina. Sisnando sustentava sua família trabalhando como carroceiro, assim como o genro Eduardo Rodrigues. Em agosto de 1915, chegou à cidade um indivíduo chamado Antônio Ferreira da Silva, natural de Santana do Livramento, com 28 anos de idade e procurou Sisnando porque tinha interesse em trabalhar com carroças no comércio local. Julgando que Antônio era um homem sério, Sisnando deu-lhe uma carroça para que pudesse “ganhar sua vida”. Antônio tornou-se peão de Sisnando e “íntimo de sua família”, começando a namorar Eponina, filha mais nova de seu patrão, com 18 anos de idade. Após um curto namoro com Eponina, Antônio pediu-a em casamento ao seu pai, que por considerá-lo honesto e trabalhador, consentiu350. O casamento realizou-se no dia 09 de outubro de 1915. Tudo ia bem com o novo casal, até que apareceu na cidade uma mulher chamada Maria Rosalina da Silva, de Rio Pardo, dizendo-se esposa de Antônio Ferreira da Silva. Uma investigação foi instaurada para analisar o caso, que se configurava como bigamia. No primeiro depoimento, Antônio explicou que em 22 de dezembro de 1914, na cidade de Rio Pardo, contraiu matrimônio com Maria Rosalina da Silva, com quem “entretinha relações carnais”. Afirmou que Rosalina era criada da casa do Dr. João Carlos Leitão (...) e que a mesma saiu de casa espontaneamente indo à sua procura em uma casinha próxima ao quartel da guarnição federal, onde mantiveram relações sexuais. Diante disso, foi apresentada uma queixa de rapto e defloramento de Rosalina, e Antônio foi obrigado a reparar o mal pelo casamento. Alegou que não assinou o termo de casamento por ser analfabeto e que não mais coabitou com Rosalina, que havia se retirado para Santa Cruz. Por isso, julgava dissolvido o primeiro casamento e apto para realizar o segundo351. No segundo depoimento, apresentou uma versão 349. Gaspar Martins. 06 de outubro de 1906, Ano III, n. 77. AHSM. 350. Processo-crime n. 130. Santa Maria, 1916. Depoimento de Sisnando de Oliveira, p. 14-14v. AHSM. 351. Processo-crime n. 130. Santa Maria, 1916. Depoimento de Antônio Ferreira da Silva, p. 9-9v. AHSM.


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um pouco diferente. Disse que no dia 06 de dezembro tinha raptado e deflorado, em Rio Pardo, Maria Rosalina da Silva e que contraiu o casamento contra a sua vontade, pois, na realização do ato, um sargento que o acompanhava impediu que negasse o seu consentimento diante do juiz. Casou-se pela segunda vez, “por julgar nulo o primeiro casamento, visto ter sido ele àquele tempo praça do exército”352. A esposa de Sisnando, Leopoldina de Oliveira, também foi ouvida. Elogiou Antônio dizendo que ele era um rapaz bom, honesto, trabalhador e sem vícios. Além disso, que tinha buscado informações sobre o futuro genro com o sargento Alcides e sua mulher Carmelina, “então hospedados em casa da depoente”. Eles afirmaram que conheciam Antônio de Rio Pardo e que ele era solteiro353. No seu depoimento, Maria Rosalina, a mulher que veio em busca de seu marido Antônio, contou que, após o casamento, foram morar em Santa Cruz, e quando ela estava em estado adiantado de gravidez, seu marido seguiu para Santa Maria, prometendo que depois de estabelecido mandaria recursos para ela. Por fim, que passaram vários meses não recebendo notícias e que ignorava o que ele tinha feito. Para encurtar a história, Antônio Ferreira da Silva foi julgado por bigamia em sessão do dia 05 de agosto de 1916 pelo Tribunal do Júri de Santa Maria e condenado a um ano de prisão celular. Praticamente toda a família de Sisnando não pôde acompanhar a fase final do processo, pois estavam com problemas de saúde. O oficial de justiça Antônio Ribeiro de Almeida fez a seguinte certidão: Certifico que indo à residência do sr. Sezinando de Oliveira para intimálo, encontrei-o na cama gravemente doente e segundo informações de seus vizinhos, desenganado pelos médicos; sua filha Eponina de Oliveira, também doente, de parto, pelo que deixei de intimá-los, e também Leopoldina de Oliveira, mulher daquele, por ser a única pessoa da casa para atender os enfermos. O referido é verdade e dou fé. Santa Maria, 03 de agosto de 1916354.

Os vizinhos tinham razão quando informaram que Sisnando tinha sido “desenganado” pelos médicos, pois ele faleceu poucos dias depois, no dia 26 de agosto de 1916. Eponina ficou sem o marido e sem o pai. O jornal “O Exemplo”, importante periódico da imprensa negra de Porto Alegre, reconhecendo a liderança de Sisnando enalteceu o fato de ter sido o tesoureiro da Sociedade Treze de Maio por 13 anos e elogiou sua atuação: “Trabalhando, sem medir sacrifícios, pela grandeza de sua associação não esqueceu da necessidade de construir-lhe um prédio além de alvitrar outras iniciativas uteis”355. 352. Processo-crime n. 130. Santa Maria, 1916. Depoimento de Antônio Ferreira da Silva, p. 13-13v. AHSM. 353. Depoimento de Leopoldina de Oliveira. Processo-crime n. 130, p. 15-15v. AHSM. 354. Certidão. Processo-crime n. 130, p. 64. AHSM. 355. O Exemplo. Porto Alegre. 16 de setembro de 1916. Ano I, n. 36, p. 03. Disponível em: <http://memoria. bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=843717&PagFis=247&>. Informação encontrada e gentilmente cedida por Franciele Oliveira.


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Em março de 1918, foi realizada a partilha dos bens que pertenciam ao casal Sisnando e Leopoldina e seu inventário post-mortem ajuda a entender suas relações familiares e também financeiras. “O casal era proprietário e legítimo possuidor de uma casa de material, sito na rua Barão do Triunfo, nesta cidade, e mais três chalés de madeira, em mau estado, na mesma rua. Estes prédios são edificados sobre terrenos aforados, não estando pago todo o preço do aforamento”356. A herança foi dividida entre as duas filhas do casal: Celina, 23 anos, casada com Eduardo Rodrigues sob regime de comunhão de bens, e Eponina, solteira, 21 anos. Os bens foram avaliados em um conto de réis, ficando 500 mil para Leopoldina de sua “meação” e 250 mil réis para cada uma das filhas357. O processo de bigamia e o inventário de Sisnando trazem informações importantes sobre as relações econômicas e sociais da família. Temos uma família que “ganha a vida” com o transporte de mercadoria e fretes no comércio local. Sisnando também prestava serviço à Intendência Municipal, como pode ser visto na imagem abaixo, datado de 13 de junho de 1913. Embora analfabeto, deixou o registro de seu próprio punho no recibo. Na maioria dos documentos, sua assinatura aparece sempre “a rogo”358. Imagem 15 – Recibo de Pagamento para Sisnando de Oliveira - 1913

Fonte: Fundo Intendência Municipal. Caixa 18, Tomo 96. AHSM. 356. Inventário de Sizenando de Oliveira. N. 355, M. 08, Ano 1918, p. 3. APERS. 357. Inventário de Sizenando de Oliveira. N. 355, M. 08, Ano 1918, p. 3-3v. APERS. 358. Quando outra pessoa assina no lugar de alguém que não tem condições de assinar.


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O trabalho como carroceiro não era o único rendimento do casal. Leopoldina de Oliveira explicou , no processo de bigamia, que buscou informações sobre o pretendente de sua filha, Eponina, com o sargento Alcides e sua mulher, Carmelina, que estavam “hospedados em casa da depoente”. Ou seja, Sisnando e Leopoldina alugavam seus chalés para militares que eram transferidos para os quartéis da região ou outras pessoas que buscavam trabalho em Santa Maria, como foi o caso de Antônio Ferreira da Silva. As mulheres tinham papel fundamental nesta estratégia de buscar recursos para sobreviver ou na garantia de obter mais de um terreno por meio de aforamento. Em setembro de 1885, Leopoldina Maria de Oliveira enviou um requerimento à Câmara Municipal “pedindo por aforamento perpétuo o terreno nº 10, da quadra nº 4”, analisada pelos vereadores no dia 17 de setembro de 1885359. Um dos vizinhos de Leopoldina era Antônio Tanoeiro, preto forro, que teve seu pedido analisado pela Câmara no mesmo dia, solicitando o terreno nº 7, da mesma quadra nº 4360. Antes mesmo do casamento com Sisnando, Leopoldina possuía seu espaço onde devia ter construído sua moradia. Com a morte de Sisnando, as três mulheres, Leopoldina, Celina e Eponina enfrentaram muitas dificuldades e, anos depois, Eduardo Rodrigues voltou à cena. Em setembro de 1921, ele foi denunciado por ter agredido Celina Rodrigues361, “armado de relho e adaga”, na casa nº 69, da rua Barão do Triunfo. Segundo a indagação policial, Celina vivia “há muito dele separada, devido aos maus tratos recebidos; e desde que abandonou a companhia de seu marido, tomou a ocupação de lavadeira e criada de servir”362. No seu depoimento, Leopoldina de Oliveira afirmou que Eduardo Rodrigues “há cinco anos vem seguidamente espancando sua mulher; que está com o corpo cheio de cicatrizes”363. Celina confirmou o depoimento da mãe, afirmando que seu marido há 4 anos estava lhe “esbordoando constantemente”364. Na defesa de Eduardo Rodrigues, foi apresentada como testemunha o negociante João Appel Primo, que disse que o réu foi por muito tempo carroceiro de sua casa comercial e o reconhecia como honesto e trabalhador. Que sabia que Eduardo trabalhava também para outras casas e nunca ouviu queixas contra ele. João Appel Primo também informou que foi intermediário na venda de uma carroça e de dois animais, feita por Leopoldina para o réu Eduardo 359. Câmara Municipal de Santa Maria. Livro de Atas (1882-1886), p. 176. ACMSM. 360. Câmara Municipal de Santa Maria. Livro de Atas (1882-1886), p. 176. ACMSM. 361. O auto de corpo de delito a define como parda, 33 anos, casada, doméstica. Processo-crime 229. Santa Maria, p. 14. AHSM. 362. Processo-crime 229. Santa Maria, p. 2. AHSM. 363. Depoimento de Leopoldina de Oliveira. Processo-crime 229. Santa Maria, p. 25. AHSM. 364. Depoimento de Celina Rodrigues, p. 25v. Eduardo Rodrigues foi preso e pagou a fiança de 500 mil réis para responder o processo em liberdade, p. 17.


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Rodrigues, que “pertenceu ao marido daquela”, e que Leopoldina queixava-se de ter vendido a carroça muito barato365. Na estratégia de defesa, o advogado do réu tentou atribuir a culpa das agressões às mulheres (Celina, pelo “vício da embriaguez”, e Leopoldina, por seu “gênio irascível”366), depois mudou de estratégia e atribuiu a agressão ao fato de Eduardo Rodrigues estar embriagado, cujo resultado foi “a absolvição do réu pela dirimente da perturbação de sentidos e de inteligência”367. A agressão de Eduardo, realizada na noite de 29 de agosto de 1921, revela vários aspectos das relações sociais daquela comunidade. Celina e Leopoldina afirmaram em seus depoimentos que as agressões aconteciam há 4 ou 5 anos, o que coincide com o tempo entre a morte de Sisnando de Oliveira e o início do processo. Sisnando protegia a família e não admitia as atitudes de Eduardo, nem no circuito familiar, nem na “Sociedade Treze de Maio”, o que explica as constantes desavenças ocorridas entre eles registradas nas atas da associação. Leopoldina de Oliveira morreu com 86 anos de idade, no dia 10 de janeiro de 1935, de hemorragia cerebral e foi descrita no seu assento de óbito como sendo de cor preta, profissão doméstica, viúva, de pais desconhecidos368. Sisnando e Leopoldina tiveram uma trajetória marcada pelo envolvimento e liderança na construção de espaços de organização da comunidade negra de Santa Maria. Sua própria casa era local de encontro para discutir seus problemas, propor alternativas e festejar as datas que consideravam significativas. Mas o casal também enfrentou dramas familiares, como os dramas nos casamentos das filhas, a doença e a violência doméstica. A atividade de carroceiro (e o aluguel de chalés) garantiu o sustento da família e a manutenção de relações com diversos indivíduos da cidade. O trabalho com carroças foi uma alternativa encontrada por diversos indivíduos que foram membros da Irmandade do Rosário e de outras sociedades negras. Vamos conhecer mais um deles.

365. Depoimento de João Appel Primo. Processo-crime 229. Santa Maria, p. 38v. AHSM. 366. João Appel Primo disse saber que Celina Rodrigues bebia e que Leopoldina tinha “o gênio irascível e uma língua viperina” (Depoimento de João Appel Primo. Processo-crime 229. Santa Maria, p. 38 - 39. AHSM). Silvério do Amaral, 48 anos, casado, cocheiro, também afirmou que a causa das desavenças era a embriaguez de Celina e a “língua terrível de Leopoldina” (depoimento de Silvério do Amaral. Processocrime 229. Santa Maira, p. 39-39v.). 367. Acta. Processo-crime 229. Santa Maria, p. 56. AHSM. 368. Livro de Óbitos, n. 21, Santa Maria, p. 72. APERS.


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7.2 JOSÉ FRANCISCO DO NASCIMENTO José Francisco do Nascimento369 foi outro importante membro da Irmandade do Rosário e esteve presente em diferentes momentos de sua história, na organização e nos desafios que a instituição foi enfrentando. Ao apostar na educação de seus filhos, gerou novas lideranças na comunidade negra de Santa Maria, responsáveis pela criação e direção de outras instituições na cidade. Sua trajetória começou na metade do século XIX, na Vila de São Leopoldo. Nasceu na condição de escravo, no dia 20 de dezembro de 1859, filho natural de Micaela, ambos cativos do Tenente Coronel Antônio José da Rocha Júnior370. Foi batizado no dia 13 de maio de 1860 e foram seus padrinhos Aprício e Gertrude, também escravos371. A sua vida como escravizado em São Leopoldo e a forma como obteve a liberdade ainda permanecem desconhecidas. Em 1890, já se encontrava em Santa Maria da Boca do Monte onde realizou seu casamento com Innocência Maria Joaquina, registrado da seguinte forma pelo pároco: Aos dezessete de maio de mil oitocentos e noventa, nesta matriz de Santa Maria da Boca do Monte, feitas as prescrições canônicas, sem impedimento, perante mim e as testemunhas de José Lopes d´Andrade e Rafael Victor dos Santos, se receberam em Matrimônio por palavra de presente os nubentes José Francisco do Nascimento, de vinte e nove anos, natural de São Leopoldo e Innocência Maria Joaquina, de 17 anos, desta paróquia, ambos hoje livres, solteiros e filhos naturais; ele de Micaela Francisca da Conceição, ela de Zeferina Maria Teixeira. Receberam as bênçãos e para constar lavrei este termo que assino. O vigário Achilles Parrela Catallano372.

O casamento de José Francisco do Nascimento ocorreu poucas semanas após o de Sisnando, e o padre novamente repetiu a condição dos noivos: “hoje livres”. Innocência nasceu no dia 05 de setembro de 1873, filha de Zeferina, escrava de Hidelbrando Teixeira Cezar, cuja família possuía terras no Rincão 369. Franciele Oliveira realizou um importante trabalho de pesquisa sobre a trajetória de José Francisco do Nascimento e sua esposa Innocência Maria Joaquina na dissertação de mestrado defendida em 2017 e intitulada “Dois laços entre José e Innocência: trajetória de uma família negra entre a escravidão e a liberdade no Rio Grande do Sul. O leitor encontrará neste trabalho acadêmico de Franciele Oliveira a ancestralidade, a trajetória, a participação nas associações e a descendência desde casal que foi muito importante para a organização da comunidade negra no pós-abolição. Também terá a oportunidade de visualizar uma fotografia/pintura do casal José e Innocência guardada pela neta Rossy do Nascimento, além de outras imagens da família. 370. O registro de batismo aponta que Micaela e José eram cativos do Comandante Joaquim José da Rocha Junior. Entretanto, Franciele Oliveira (2017, p. 53-109), fez uma longa e coerente argumentação apresentando o Tenente Coronel Antônio José da Rocha Junior como senhor dos escravizados Micaela e José. Posição que passamos a adotar neste texto. 371. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. São Leopoldo. Livro de Batismo de Escravos (1847-1872), p. 45. Disponível em: https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-14864-20842-36?cc=2177295&wc=M78F4M9:371568501,371567402,371646201. Acesso em 20 de julho de 2015. 372. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Casamento n. 7 (1887-1891), p. 4141v. ACMSM.


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de São Pedro. Foi batizada em casa de Manoel Teixeira Cezar, em uma visita paroquial realizada pelo vigário José Marcellino de Souza Bittencourt, no dia 20 de novembro de 1875373. Innocência foi beneficiada pela lei do “Ventre Livre” e teve seu assento de batismo registrado no “Livro de Batismo dos Filhos de Mulher Escrava”, como determinava a lei nº 2040, de 28 de setembro de 1871. Assim, o estigma do cativeiro acompanhou mesmo quem nasceu de ventre livre. Zeferina, sua mãe, nasceu no dia 19 de julho de 1853, filha de Francisca, escrava de Rita Teixeira Cezar. Zeferina foi batizada na fazenda de Cipriano Teixeira Cezar, no dia 13 de janeiro de 1854, e no assento de batismo o padre registrou que era escrava “por troca” feita com Rita Teixeira de Moraes (sobrinha de Manoel, Cipriano e Rita Teixeira Cezar)374. Rita Teixeira de Moraes, senhora de Zeferina, era filha de Estácio Teixeira de Moraes e Joana Teixeira Cezar. Quando Innocência nasceu, Zeferina já era identificada como sendo escrava de Hildebrando, o que demonstra a “troca” e a circulação dos cativos dentro dessa família senhorial. A família Teixeira Cezar fazia parte da elite proprietária de Santa Maria. Manoel Teixeira Cezar possuía a segunda maior fortuna nos inventários analisados por Glaucia Kulzer (2009, p. 139) entre 1858 e 1889. Leticia Batistella Guterres (2013) encontrou 21 escravos pertencentes a Cipriano Teixeira Cezar nos assentos de batismo analisados por ela (entre 1844 e 1882) e o classificou como possuidor de um grande “plantel” de escravos375. Foi neste cenário que viveram Francisca, Zeferina e Innocência, pelo menos na fase inicial. A trajetória da jovem Innocência Maria Joaquina se encontrou com a de José Francisco do Nascimento e, em 1890, esta união foi selada por meio do casamento. Os filhos logo vieram, e com eles a preocupação com a educação formal. Innocência havia frequentado a escola376 e teve a mesma preocupação com seus filhos. Em 1895, os filhos Waldemar Francisco do Nascimento, Oscar Francisco do Nascimento e Arlindo Francisco do Nascimento eram alunos da “2ª aula pública” e vivenciavam com a família o espírito de solidariedade. Uma coleta foi realizada na cidade para a manutenção de “duas meninas desvalidas”, 373. “Aos vinte dias do mês de novembro de mil oitocentos setenta e cinco, em casa de Manuel Teixeira Cezar, desta Freguesia de Santa Maria da Boca do Monte, estando em visita paroquial, batizei solenemente a inocente – Innocência – preta, nascida a cinco de setembro de mil oitocentos e setenta e três, filha natural de Zeferina, escrava de Hildebrando Teixeira Cezar, foram padrinhos: Bonifácio, escravo e Antônia Maria dos Santos; e para constar fiz o presente por mim assinado. José Marcellino de Souza Bittencourt”. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo - Filhos de Mulher Escrava (1871-1887), p. 25v. ACSM. 374. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo n. 4 - Suplementar (18511864), p. 29. ACSM. Foram padrinhos de Zeferina: Emilio Luciano Cezar e Justina Maria Cezar. 375. Letícia Guterres utilizou os seguintes critérios: “Quando nos referimos às dimensões dos plantéis de escravos em Santa Maria, partimos da definição seguinte: Pequenos aqueles que se localizam na faixa de 1 a 4 cativos; Médio, entre 5 e 9 cativos; Grande, acima de 10 cativos” (p. 303). 376. Encontramos seu nome numa lista de alunos de “aulas públicas de Santa Maria”. Fundo Junta Intendencial. Santa Maria. Caixa 01, Tomo 07. AHSM.


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órfãs. José Francisco do Nascimento colaborou com 1 mil réis e dividiu outros 1 mil réis entre seus filhos para que eles também contribuíssem na coleta realizada na escola que frequentavam. Cada um deles contribuiu com 333 réis377. Ser reconhecido por aquela ação filantrópica era importante para aquela família que viveu a experiência da escravidão e que estava num ambiente de muita suspeição e desconfiança sobre a conduta da população negra. José Francisco do Nascimento, assim como Sisnando de Oliveira e Eduardo Rodrigues, também exercia a atividade de carroceiro. Um de seus filhos, José Francisco do Nascimento Filho, também trabalhava com carroças no comércio local. Em 1924, carroceiros, boleeiros e choferes passaram a ser matriculados na Intendência Municipal. Entre 1924 e 1928 foram registrados 134 condutores de carroças em Santa Maria e, entre eles, estavam José Francisco do Nascimento e seu filho. Os dados registrados nas matrículas informam que do total de 134 carroceiros, apenas 46 deles (34,3%) eram os condutores e ao mesmo tempo proprietários dos veículos. Os outros 88 (65,7%) exerciam esta atividade profissional em carroças de outros proprietários, como seus empregados378. José Francisco do Nascimento e seu filho eram proprietários e condutores de suas respectivas carroças. Entre os carroceiros havia 122 brasileiros, 3 portugueses, 2 russos, 2 uruguaios, 1 sírio, 1 espanhol, 1 argentino e 1 alemão. Os mais novos tinham 14 anos de idade e o mais velho era José Francisco do Nascimento, com 68 anos. A média de idade era de 29,6 anos. A descrição dos veículos permite visualizar um pouco das atividades exercidas por esses carroceiros, sendo 13 carroças de distribuição de pão, 5 carroças de pipas de água, 2 carroças de leite, 4 carroças particulares, 91 descritas apenas como carroças de 2 rodas e 19 carroças de 4 rodas. Tais dados se referem à circulação desses meios de transporte apenas no espaço urbano. Os dados de todo o município revelam números bem superiores. Em 1926, a Intendência Municipal respondeu a um amplo questionário solicitado pela 4ª Secção do Estado Maior de Porto Alegre e informou a existência de 19 carros de praça, 240 aranhas, 208 carroças de 2 rodas, 502 carroças de 4 rodas, 872 carretas, 100 automóveis e 8 caminhões379. A chegada da viação férrea dinamizou o comércio local e permitiu a possibilidade de trabalho na própria ferrovia ou em outros setores ligados a ela. Isso fez de Santa Maria um centro que atraiu indivíduos de diversos lugares, com esperança de trabalho e mobilidade social. José Francisco do Nascimento e sua 377. O Combatente. Santa Maria, 11 de agosto de 1895, Ano IX, n. 32. ACMEC. 378. Fundo Intendência Municipal. Caixa 82, Tomo 495; Caixa 83, Tomo 499. AHSM. O livro de matrícula está dividido em duas partes e foram catalogados em caixas diferentes. Percebemos, em poucos casos, que os carroceiros eram integrantes da família do proprietário, pois os sobrenomes eram semelhantes. 379. Fundo Intendência Municipal. Caixa 76, Tomo 455. AHSM.


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família são exemplos disso, trabalhando como operários ou como carroceiros, boleeiros ou choferes. Na foto a seguir, de 1913, carros aguardam a chegada do trem para conduzir seus passageiros aos mais diversos locais de Santa Maria e demonstra a quantidade de animais e pessoas envolvidas nesta atividade. Imagem 16 – Estação Ferroviária de Santa Maria

Fonte: Arquivo Histórico de Santa Maria

Além de pessoas, chegavam também mercadorias que precisavam ser distribuídas nas casas comerciais. Depois, essas mercadorias precisavam ser levadas até seus consumidores. Esta circulação interna de mercadorias era uma das opções para quem vinha para a cidade em busca de trabalho, como fez o genro bígamo de Sisnando de Oliveira. José Fontoura, o primeiro presidente da “Sociedade Treze de Maio”, também trabalhava com carroças, como noticiou “O Combatente” diante de sua morte: “Faleceu anteontem [05 de fevereiro de 1904] o carroceiro José Fontoura. O seu enterro, efetuado ontem pela manhã, teve grande concorrência, comparecendo três sociedades com seus estandartes e uma banda musical”380. Fontoura tinha 30 anos, era pardo e solteiro381. Os membros da “Sociedade Treze de Maio” deixaram registrado no seu livro de atas que a dor deixada pela perda do companheiro não foi só no seio da sociedade em que era presidente, mas também do “comércio desta Cidade, onde ele soube conquistar estima pela sua distinção e trabalho”382. A presença dos três estandartes, da banda musical e da nota no jornal são sinais da sua liderança na comunidade onde estava inserido e do prestígio social que gozava. A presença negra nas atividades de carroceiros, boleeiros e choferes foi 380. O Combatente. Santa Maria. 07 de janeiro de 1904, Ano XVIII, n. 1181. ACMEC. 381. O Combatente. Santa Maria. 11 de fevereiro de 1904, Ano XVIII, n. 1191. ACMEC. 382. Sociedade Treze de Maio. Santa Maria. Ata de 21 de abril de 1904. AMTM.


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claramente explícita em uma série de comentários publicados pelo cronista que usava o pseudônimo de Aurélio Pinto. Ele publicou um artigo no jornal “O Combatente”, no dia 17 de fevereiro de 1901, em que reclamava da atitude dos boleeiros que não acendiam os lampiões dos carros à noite, que transformavam as boleias em carroças (transportando fardos de alfafa e sacos de milhos). Reclamou também da forma como os boleeiros se vestiam, andando “descalços, de tamancos ou chinelas, na maior liberdade e de chapéu desabado” e de como conduziam os veículos, esbordoando “animais mancos ou rengos”383. A resposta dos “boleeiros e carroceiros” veio por meio do jornal “O Estado”, na edição de 27 de fevereiro de 1901. Em texto publicado “a pedido”, eles reclamaram das censuras e insinuações de Aurélio Pinto, afirmando que diante da “crise medonha” que ocorria, eram os “menos favorecidos de proteção”, que o rendimento que eles obtinham era “menos do que de outra qualquer profissão” e que “não há negro de pé rachado que ignore que os carros e carroças não costumam andar diante dos bucéfalos e burros, assim pois também não costumam andar adiante da distinta sociedade que tanto respeitamos”. E, por fim, que eram uma “corporação composta da maioria de homens analfabetos e devem ser desculpados de suas faltas, respectivamente ao sentido de tal referência que faz o sr. Aurélio”384. A tréplica veio na edição do dia 03 de março de 1901 (O Combatente) e desnuda a questão racial e social dos envolvidos. Aurélio Pinto escreveu sobre a publicação dos “carroceiros e boleeiros” e que “nada, porém, atenuará o desleixo com que os etiópicos e mongólicos condutores de carros (alguns) tratam de seu mister”. E afirmou de forma irônica: “perderam o precioso tempo, o latim e o rico dinheirinho, tão choradinho, tão boleadinho”385. O trabalho de carroceiro ou boleeiro era essencial para as pessoas e para o comércio local, mas não podia ficar desvinculado da ideia de progresso e de modernidade que chegou com a ferrovia. Isso implicava em um processo de “higienização” também dos costumes e do aspecto visual da cidade e das pessoas. Por outro lado, as críticas de Aurélio Pinto foram respondidas, o que demonstra autonomia e organização e uma consciência sócio-profissional e étnico-racial desta classe de trabalhadores, que não deixava sem resposta àqueles que os criticavam386. 383. O Combatente. 17 de fevereiro de 1901, Ano XV, n. 880. ACMEC. 384. O Estado. 27 de fevereiro de 1901, Ano IV, n. 17. ACMEC. 385. O Combatente. 03 de março de 1901, Ano XV, n. 881. ACMEC. 386. Na edição de 16 de maio de 1906, do jornal “Gaspar Martins”, o boleeiro João Abílio respondeu a um artigo publicado pelo “sr. Três Estrelas”. Escreveu ele: “Não ando vestido de finas casemiras nem enfeitado com galantes gravatas, como exige o sr. Três Estrelas, citando como exemplo, os boleeiros de Buenos Aires e Montevidéu; mas ando com a roupa limpa e posso conduzir no meu carro qualquer pessoa bem-educada. Sou um pobre homem trabalhador, mas não sou um galopim, um patijão, um larápio, um sem vergonha, como sr. Três Estrellas trata todos os boleeiros de Santa Maria, sem estar autorizado para fazê-lo. Perdoe s. s. que um humilde boleeiro tome a liberdade de dizer-lhe que um


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Foi desenvolvendo esta atividade ligada ao transporte urbano e enfrentando diversos tipos de preconceitos que Francisco José do Nascimento construiu sua numerosa família387. O espírito de cooperação aprendido na infância, a frequência à escola e o exemplo do pai, levaram os filhos à liderança de instituições sociais e profissionais. Uma das instituições em que parte da família Nascimento atuava na administração era a “Sociedade Carnavalesca Recreio da Mocidade” que estava ligada ao Clube Treze de Maio388. Sua organização era complexa e comportava a participação de homens e mulheres na sua direção. Em 1927, a diretoria era composta da seguinte forma: Quadro 5 - Diretoria da Sociedade Carnavalesca Recreio da Mocidade – 1927 FUNÇÃO/CARGO

NOME

Presidente Honorário

José Francisco do Nascimento

Presidente de Mesa

Juvenal do Nascimento

Presidente do Bloco

Octávio da Silva Goulart

Vice-presidente

Waldomiro Paz

Primeiro Secretário

Waldemar Machado

Segundo Secretário

Deoclecio Vidal

Primeiro Tesoureiro

Esmeraldino Nascimento

Segundo Tesoureiro

José de Oliveira

Primeiro Diretor

Gonçalves Amarante

Segundo Diretor

Octavio Martins

Diretor do Bloco

Marcos Pereira Magalhães

Primeiro Procurador

Osvaldo Pinto de Oliveira

Segundo Procurador

Waldemar do Nascimento

Primeiro Orador

Gonçalves Bueno

Segundo Orador

Adão Melchides da Silva

Primeiro Fiscal

Júlio Ferreira

Segundo Fiscal

Mario Pereira Magalhães

homem da alta sociedade e possuidor de finíssima educação tem o dever de ser delicado e cortês, até mesmo com boleeiros de Santa Maria (...)” (Gaspar Martins. 16 de maio de 1906, Ano III, n. 37. AHSM). 387. Conforme as pesquisas de Franciele Oliveira, Francisco José do Nascimento teve 11 filhos: Antenor (morre aos 2 anos). Ernani (morre aos 16 anos) José Francisco, João (morre aos 5 anos), Edelmira, Antônio, Esmeraldino, Waldemar, Juvenal, Arlindo e Oscar. 388. Segundo Antônio Isaia (1999), o bloco carnavalesco da “Sociedade Treze de Maio” tornou famosa as folias na cidade, com o nome de Recreio da Mocidade.


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DIRETORIA DE MOÇAS Presidente de Mesa

Georgina Paz

Presidente do Bloco

Albertina Souza

Vice-Presidente

Edelmira do Nascimento

Primeira Secretária

Maria Magdalena

Primeira Oradora

Francisca Salles

Primeira Fiscal

Osvaldina Silva

Segunda Fiscal

Antônia Joana Machado

Diretora

Cecília Goulart

Fonte: Correio da Serra – 04 de março de 1927 -AHSM

No quadro da diretoria destacamos (em cinza) os integrantes da família Nascimento para demonstrar o envolvimento de todos nestas associações, pois lá estavam os filhos Juvenal, Esmeraldino, Waldemar e Edelmira. Essa família negra também estava envolvida com associações de caráter profissional. No dia 08 de janeiro de 1930, foi organizado o “Centro Recreativo Ferroviário”, com sede na rua Bartolomeu de Gusmão, “próximo a linha [férrea] da Fronteira”389. Quatro dias depois, no dia 12 de janeiro, a primeira diretoria da sociedade foi composta pelos seguintes membros: Presidente: Ataliba Mattos; Vice-Presidente: Olmiro Paim; 1º Secretário: João B. Thomsen; 2º Secretário: Manoel do Carmo Guimarães; 1º Tesoureiro: Antônio Mello; 2º Tesoureiro: Waldemar do Nascimento; Diretores: Juvenal do Nascimento e Antônio Guerra Murillo390. Waldemar e Juvenal, ambos trabalhadores das oficinas da Viação Férrea, eram sócios-fundadores e membros da primeira diretoria do “Centro Recreativo Ferroviário”. Outro integrante da família Nascimento, o também carroceiro José Francisco Nascimento Filho391, esteve envolvido com outras instituições negras e teve papel fundamental na imprensa negra de Santa Maria. Franciele Oliveira (2014; 2016; 2017) tem demonstrado a existência de uma rede existente entre as diversas associações da população negra da Boca do Monte. Desenvolvendo sua pesquisa sobre o “Clube União Familiar”, fundado por “homens de cor”, em 1896, conforme vimos anteriormente, ela percebeu a existência de diversas ramificações ligadas ao clube, como de um bloco carnavalesco chamado “Rancho 389. Fundo Intendência Municipal. Acta de Instalação n. 01, Caixa 90, Tomo 548. AHSM. 390. Fundo Intendência Municipal. Caixa 90, Tomo 548. AHSM. 391. José Francisco do Nascimento Filho nasceu no dia 27 de outubro de 1892. Casou-se com Jeny da Rosa, em 1930 (Habilitação de Casamento. Santa Maria. José Francisco do Nascimento Filho e Jeny da Rosa. 1930. APERS). Morreu no dia 28 de julho de 1937, com 45 anos de idade, descrito como de cor preta (Registro Civil de Nascimentos e Óbitos. Santa Maria. Livro de Óbitos n. 31, p. 126. APERS).


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Succo” e um jornal com o nome de “O Succo”. O “Clube União Familiar” estava localizado na rua Barão do Triunfo, na Vila Brasil392, e tornou-se um centro aglutinador de diversas outras instituições negras, que utilizavam de seu espaço físico para diversas atividades393. José Francisco do Nascimento Filho circulava entre estas instituições394, mas seu destaque foi na gerência da revista “O Succo”, como foi noticiado pelo jornal “Diário do Interior”, em 1928: “A 31 do mês recém findo [outubro], entrou para o sétimo ano de publicidade, a revista local O SUCCO, dirigida pelos Srs. F. de A. Marques e José do Nascimento Filho. O número de aniversário apresenta magnífica feitura material trazendo vasta reportagem fotográfica, crítica e noticiosa. Prosperidades.”395. José Francisco do Nascimento Filho e seus companheiros estavam construindo um importante capítulo da história da imprensa negra no Rio Grande do Sul396. Em 1934, a “Sociedade Recreio da Mocidade” resolveu homenagear os 80 anos397 de José Francisco do Nascimento com um piquenique na Montanha Russa398. Era o dia 25 de dezembro, dia de celebração do Natal, e a festa ocorria normalmente com a presença de cerca de 200 pessoas entre sócios e convidados, até que, em uma confusão, com um tiro de arma de fogo foi morto o chefe de trem de carga Marçal Lourenço, com 34 anos, casado, de cor preta. Estavam 392. A criação da Vila Brasil foi iniciativa do espanhol Perfecto Leirós que pretendia ali edificar 180 casas de madeira de pequenas dimensões, que seriam vendidas ou alugadas para operários, militares e demais trabalhadores. Foram erguidos aproximadamente 50 chalés de madeira no local. Para mais informações ver Franciele Oliveira (2016). 393. Tanto o bloco ‘Rancho Succo”, como o “Clube Rosa Branca” realizavam seus bailes, festas, ensaios nas dependências do “Clube União Familiar”. 394. Na madrugada do dia 09 de maio de 1926, em um baile no Clube União Familiar, Pedro Antonio Silva, alfaiate, assassinou Tertuliano Silva, pedreiro, em frente à Sociedade União Familiar. A discussão havia começado no interior do salão e terminado na rua. Entre as testemunhas listadas estava José Francisco do Nascimento Filho, o que demonstra que também era frequentador do Clube União Familiar. Ver Processo crime n. 136. Santa Maria. 1926. APERS. 395. Diário do Interior. 06 de novembro de 1928. AHSM. Para Franciele Oliveira (2014) o nome F. A. Marques, poderia ser de Francisco de Assis Marques, esposo de Cecília Martins Marques, diretora do bloco carnavalesco “Rancho Succo” e presidente do “União Familiar” (p. 86). O jornal “Correio da Serra” publicou no dia 25 de outubro de 1925 referindo-se ao jornal “O Succo”: “Como temos noticiado, os dirigentes do nosso coleguinha local “O Succo”, resolveram comemorar o seu aniversário com uma série de festejos, para os quais foi organizado interessante programa, sob a direção inteligente da senhorinha Cecília Martins. Esses festejos tiveram início sábado à noite, nos salões do Clube União Familiar e se prolongaram domingo à tarde e à noite (...). Vale a pena acentuar nesta notícia, que a União Familiar é uma sociedade de pessoas de cor que vem conquistando a consideração e apreço da população de Santa Maria, pela maneira inteligente e elevada como seus dirigentes vem mantendo a sociedade. Compõe-se ela de elementos honestos e trabalhadores, bem selecionados e nas suas festas reina a mais perfeita ordem e moralidade, predominando uma admirável organização social, que pode servir de exemplo e modelo a todas as suas congêneres do Estado” (Correio da Serra. 25 de outubro de 1925. AHSM). 396. Sobre a imprensa negra no Rio Grande do Sul ver: SANTOS, 2007; SANTOS, 2003; PEREIRA, 2007; MÜLLER, 1999; MORAES, 2000; SANTOS, 2011. 397. Como o leitor deve se lembrar, José Francisco do Nascimento nasceu em São Leopoldo no dia 20 de dezembro de 1859, portanto, estava completando 75 anos e não 80, como acreditava. Havia uma diferença de 05 anos também no seu registro de óbito, que veremos a seguir. 398. O Parque da Montanha Russa era um local de turismo e de lazer para os habitantes de Santa Maria e região. Funcionou no período de 1907 a 1932 e era um ponto de encontro da sociedade santa-mariense.


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envolvidos na confusão soldados do Exército, da Brigada Militar e muitos ferroviários, revelando os perfis profissionais dos integrantes da Sociedade Recreio da Mocidade, que atuavam principalmente como um bloco carnavalesco ligado ao Clube Treze de Maio. Romagueira da Cunha Machado, 38 anos, de cor branca, investigador da polícia e que chefiava uma patrulha da Brigada Militar destacada para festa, foi acusado como autor do disparo que matou Marçal Lourenço. Entre os feridos no conflito estava Esmeraldino Nascimento e sua esposa Zilda do Nascimento. Ele tinha 32 anos, de cor preta, ajudante de funileiro, “diretor de mês” da Sociedade Recreio da Mocidade e filho do homenageado José Francisco do Nascimento. Ela tinha 23 anos, também de cor preta e doméstica399. A origem da confusão, de acordo com vários depoimentos, ocorreu no salão de baile, quando duas moças brancas ali presentes, ao serem convidadas para dançar disseram que “não dançavam em baile de negros”400. E a confusão se instalou. A questão racial foi o motivo da explosão do conflito. Abrimos este capítulo com alguns exemplos em que a questão racial e as práticas escravistas de violência permaneceram contra pretos e pardos durante muitos anos após a abolição da escravidão. Este é mais um caso. Os negros criaram suas próprias sociedades porque foram excluídos dos clubes e associações brancas e, mesmo nas atividades organizadas pelas suas próprias instituições, não escapavam do racismo e do preconceito. O processo que foi instaurado para apontar as responsabilidades do crime revela uma outra faceta de José Francisco do Nascimento. Várias testemunhas afirmaram que foram convidadas para participarem do piquenique em homenagem a “José Moraes” ou ao “velho Moraes” e raramente faziam menção ao nome José Francisco do Nascimento401. Antônio Cândido de Mello e Souza (2010, p. 278), ao estudar as comunidades rurais de São Paulo, havia percebido o costume dos indivíduos terem dois sobrenomes usados independentemente: um que indicava a família a que pertencia; o outro que pode ser chamado de sobrenome alternativo ou comunitário. “O primeiro é o nome de papel (...) usado nas ocasiões públicas, em que se quer atitude de tipo legal: casamento, contrato, imposto, censo demográfico. O segundo é o de uso corrente, ativo e passivo, sendo frequentemente o único que a maioria conhece”. Rodrigo Weimer (2013) analisou profundamente as práticas de nominações e encontrou atitudes semelhantes na comunidade de Morro Alto, na “gente da Felisberta”. Mello e Souza e Weimer 399. Processo crime n. 463. Santa Maria. 1935. AHSM. 400. Depoimento de Esmeraldino Nascimento, Zilda Nascimento, Valentin Rodrigues dos Santos e outros. 401. O depoimento de Zilda Nascimento é o único que o escrivão deixou registrado que ela fazia parte do “pic-nic” “que a Sociedade Recreativa ofereceu a seu sogro José Nascimento, também conhecido como José Moraes”. Todos os outros se referem apenas a José Moraes (Processo crime n. 463. Santa Maria. 1935. AHSM).


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analisaram essas práticas em comunidades rurais, e o caso de José Francisco do Nascimento ou “José Moraes” indica a mesma prática em comunidades urbanas ou recém-urbanizadas. Como vimos anteriormente, Zeferina, mãe de Innocência e sogra de José Francisco do Nascimento, era escrava de Rita Teixeira de Moraes. A família Moraes era descendente de Antônio de Moraes e Maria da Trindade, açorianos, chegados no Rio Grande do Sul na segunda metade do século XVIII e estabelecidos em Rio Pardo. O casal teve quinze filhos, deixando uma numerosa descendência que foi se estabelecendo na parte ocidental do Rio Grande do Sul, compreendendo a região das Missões, Santa Maria, Dilermando de Aguiar, São Pedro do Sul, entre outras402. A adoção do nome comunitário “Moraes” pode ter origem na família senhorial da esposa Innocência. José Francisco do Nascimento possuía um terreno aforado na rua Silva Jardim403 (antiga 24 de maio), na quadra nº 45, terreno nº 3, onde possuía sua casa de moradia404. Nessa mesma quadra, os terrenos nº 01 e nº 10 pertenciam à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário405. Além do local onde morava, também teve como propriedade uma casa na rua Conde de Porto Alegre, nº 110406. Sua residência estava nas proximidades da Capela do Rosário, do Clube União Familiar, do Clube Treze de Maio e de Sisnando Antônio de Oliveira. José faleceu no dia 04 de março de 1936, segundo seu registro de óbito, tinha 82 anos, de cor preta, tendo como causa da morte “hidropisiacardiorrenal (?)”407. O jornal “Diário do Interior” publicou a seguinte nota: Ocorreu, ontem, nesta cidade, o falecimento do sr. José Moraes do Nascimento, aqui residente. O extinto, que era muito estimado no círculo de suas relações, foi o fundador das Sociedade locais “Recreio da Mocidade, Sociedade 13 de Maio e outras. Todas elas se fizeram representar nos funerais, realizados na tarde de ontem, com seus estandartes envolto em crepe408.

O filho de Micaela, nascido em São Leopoldo, em 1859, estava encerrando sua trajetória de vida. Foi reconhecido por sua comunidade e pelas associações 402. PUFAL, Diego de Leão e MOUSQUER, Zélce. Famílias Portuguesas nas Missões (família de Antônio de Moraes e Maria da Trindade), in blog Antigualhas, histórias e genealogia, disponível em: <http://pufal. blogspot.com.br/> 403. Livro Terrenos Aforados. Fundo Intendência Municipal. Caixa 86, Tomo 520. AHSM. 404. Em 26 de fevereiro de 1929, enviou um requerimento para a Intendência Municipal com o seguinte teor: “José Francisco do Nascimento, querendo fazer reparos em sua casa de moradia a rua S. Jardim, vem requer a respectiva licença”. Requerimentos. Fundo Intendência Municipal. Caixa 90, Tomo 543. AHSM. 405. Livro Terrenos Aforados. Fundo Intendência Municipal. Caixa 86, Tomo 520. AHSM. 406. “José Francisco do Nascimento, querendo fazer um aumento em sua casa situada na rua Conde de Porto Alegre n. 110, vem requerer a V. S. a respectiva licença, sujeitando-se ao que for da lei. Requerimentos. Fundo Intendência Municipal. Caixa 70, Tomo 419. AHSM. Seu filho Esmeraldino morava próximo dali, mas na casa de n. 107 (Processo crime n. 463. Santa Maria. 1935. AHSM). 407. Registro Civil de Nascimentos e Óbitos. Santa Maria. Livro de Óbitos n. 25, p. 133. APERS. Foi declarante o seu filho Esmeraldino Nascimento. 408. Diário do Interior. Santa Maria. 05 de março de 1936. Ano XX, n. 53. AHSM.


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que ajudou a criar, que levaram seus estandartes em seu funeral. A primeira associação negra da qual fez parte e ajudou a constituir, embora não mencionada pelo jornal, foi a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Seus filhos participaram ou dirigiram as mais diversas associações negras, como o “Clube União Familiar”, o “Clube Treze de Maio”, o jornal “O Succo” e a “Sociedade Recreio da Mocidade”. O ex-escravo José Francisco do Nascimento constituiu e construiu uma geração de lideranças negras. Esse foi seu maior legado.

7.3 ADÃO GABRIEL HAEFFNER E ANTÔNIO GABRIEL HAEFFNER A experiência do cativeiro e da liberdade foi vivenciada por estes irmãos gêmeos, nascidos do ventre da africana Maria, de Nação da Costa. O leitor já acompanhou parte da trajetória deles enquanto eram escravos do alemão Gabriel Haeffner e a atuação na Irmandade do Rosário na década de 1870, quando soltavam foguetes na frente de uma procissão de peditório. Neste item nos dedicaremos à atuação no período pós-abolição e a inserção no mundo do trabalho e nos espaços de sociabilidade e de religiosidade desses irmãos. Enquanto escravizados, Adão e Antônio participavam da Irmandade do Rosário, trabalhavam para a família Haeffner e eram alugados para a Câmara Municipal para a “compostura” das ruas de Santa Maria. O último documento que encontramos dos dois irmãos no período da escravidão é de 1868 e referese a um recibo de pagamento para Gabriel Haeffner do trabalho de seu escravo Adão para a Câmara Municipal, já apresentado no capítulo 5. Em 1868, Adão e Antônio tinham 20 anos de idade e tiveram que esperar mais 20 anos para que fosse extinta a escravidão no Brasil. Provavelmente, a liberdade para eles veio com a campanha abolicionista de 1884 ou mesmo com a Lei Áurea, pois não há registro da emissão de cartas de liberdade em nome de Adão e Antônio (ou não foram encontradas) e, como vimos no capítulo 5, foram poucas as cartas de liberdade emitidas por senhores de origem alemã em Santa Maria. Uma vez livres, os gêmeos se apropriaram do prenome e sobrenome de seu senhor e, provavelmente, continuaram a prestar serviços para sua antiga família senhorial409. Não existem muitos registros sobre Antônio, mas Adão deixou “vestígios” que permitem compreender parte de sua vida pós-abolição, na constituição de sua família, no trabalho, na busca por melhores condições de vida e na participação nas associações negras.

409. Em 1892, em um requerimento que enviou à Junta Intendencial para a transferência de um terreno, seu nome foi assinado “a rogo” por João Gabriel Haeffner, um dos filhos de Gabriel Haeffner, o que demonstra a continuidade e aproximação de Adão com a família dos ex-senhores (Fundo Junta Intendencial. Caixa 01, Tomo 05. AHSM).


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João Daudt Filho mencionou os escravos gêmeos do avô no seu livro de memórias e tinha lembranças de sua participação na primeira fase da Irmandade do Rosário, porque a convivência com eles deve ter ultrapassado o período de sua infância e tenha usufruído dos seus serviços no pós-abolição. Depois de se formar em Farmácia no Rio de Janeiro, Daudt Filho retornou para Santa Maria e, em 1882, começou a trabalhar no seu estabelecimento farmacêutico. Em 1890, Felipe Alves de Oliveira, casado com Adelaide, irmã de Daudt Filho, foi assassinado quando chegava em sua casa, por rivalidades políticas e pessoais. Daudt se envolveu diretamente na tentativa de condenação dos assassinos. O principal suspeito de ser o mandante do crime foi o Coronel Martins Höher. No desenrolar do processo, a testemunha Ricardo Francisco da Rosa, casado, 48 anos mais ou menos, jornaleiro, morador em Cima da Serra, na Cruz Alta, afirmou ter procurado o Coronel Höher para obter algum serviço e este lhe disse que o único emprego era na polícia, como praça, mas que poderia lhe arranjar um serviço vantajoso, que ganharia 200 mil réis para matar João Daudt Filho e mais outra pessoa da família410. No segundo depoimento, prestado em 7 de setembro de 1890, Ricardo da Rosa revelou que “tem parado com o crioulo Adão, criado do cidadão João Daudt Filho, tendo procurado esse abrigo por lhe ter dito o Cabo Manduca que o Coronel Martins lhe mandara tirar a cabeça em virtude do depoimento que havia dado”411. Além de denunciar o mandante do crime, da coerção que estava sofrendo do coronel, o “índio Ricardo”, como foi mencionado diversas vezes no processo, também revelou o destino de Adão, que estava trabalhando como criado de João Daudt Filho, neto de seu antigo senhor. A situação de João Daudt Filho, em Santa Maria, ficou insustentável diante dos inimigos que havia feito para condenar os culpados da morte de seu cunhado. A situação política do Rio Grande do Sul passou por mudanças significativas com o fechamento do Congresso por Floriano Peixoto e a deposição de Júlio de Castilhos. Diante disso, o farmacêutico foi obrigado a abandonar seus negócios e exilou-se na fronteira com a Argentina. Em 1893, decidiu mudar-se para Porto Alegre, onde adquiriu um estabelecimento na rua dos Andradas, onde trabalhava com manipulação de medicamentos e possuía um gabinete para atendimento médico. Coincidentemente, nesse período, Adão começou a vender os terrenos que havia adquirido. Em 1890, Gervázio Merenciano, primeiro secretário da Irmandade no período pós-abolição412, e sua mulher Florência Emerenciana413, enviaram um requerimento 410. Processo Crime. Felipe Alves de Oliveira. 1891. N. 1612, M. 55, vol. 01, p. 149v-150v. APERS. 411. Processo Crime Felipe Alves de Oliveira. 1891. N. 1612, M. 55, vol. 01, p. 188. O depoimento foi dado em 07 de setembro de 1890. 412. Arquidiocese de Porto Alegre. Livro de Correspondências Expedidas 18/11. AHCMPA. 413. Gervázio Merenciano e Florência Rita Guedes casaram no dia 7 de julho de 1888. Ele tinha 28 anos


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para a Junta Intendencial “pedindo licença para vender dois terrenos a eles aforados para a pessoa de Adão Gabriel pelo preço de 78$000 réis”414. Tratava-se dos terrenos de números 9 e 10, da quadra nº 3, localizados na rua 24 de maio, esquina com a rua Conde de Porto Alegre. Em 1892, Adão Gabriel transferiu o terreno nº 9 para Rita Guedes415. Em 1895, transferiu o terreno nº 10 para Manoel Francisco Guedes416, que também pertenceu à Irmandade do Rosário e à Sociedade Treze de Maio417. A Irmandade foi um local de manifestação da religiosidade da comunidade negra de Santa Maria, mas os contatos e a proximidade que ela proporcionava permitiram o estabelecimento de outras relações, como a de compadrio ou de trocas comerciais, principalmente no período do imediato pós-abolição. O terreno nº 10 pertenceu a três indivíduos diferentes, todos pertencentes à Irmandade do Rosário. Adão Gabriel estava transferindo suas propriedades, pois mudou-se para a capital do Estado, assim como fez Daudt Filho. Esse é mais um indício que sugere que o “crioulo Adão, criado de João Daudt Filho” e Adão Gabriel sejam o mesmo indivíduo. Daudt Filho precisava de empregados na capital e fez questão de levar o criado que lhe servia em Santa Maria. Foi em Porto Alegre que Adão casou-se com Maria Francisca Guedes conforme registro abaixo: Aos quatro dias de julho de mil oitocentos noventa e seis na Igreja Catedral, Paróquia de Nossa Senhora Madre de Deus, dispensados das formalidade de estilo por sua Excelência Reverendíssima o Senhor Bipo Diocesano, em minha presença e das testemunhas João Baptista Granja e João Trindade de O’liveira, abaixo assinados, os contraentes Adão Gabriel Haeffner e Isabel Francisca Guedes, naturais deste Estado e paroquianos da Conceição, com licença do mesmo Excelentíssimo Senhor, às onze horas do dia, ele filho natural de Maria da Costa, de quarenta e nove anos de idade e ela de Maria Antônia, de cinquenta e cinco anos de idade, e logo lhes conferi as bênçãos nupciais de que para constar passo o presente que assino. O Cura Cônego José Marcellino de Souza Bittencourt418. de idade, era filho natural de Hemerenciana da Silva e nascido em Porto Alegre; ela tinha 18 anos, filha natural de Rita Soares. O padre escreveu ao lado do assento de casamento: “Libertos”. Florência nasceu no dia 7 de maio de 1869 e sua mãe, Ritta, era escrava de Ana Maria Soares. Foi batizada no dia 23 de outubro de 1870, quando por meio de uma carta escrita ao pároco, Ana Soares deu-lhe “plena liberdade (...) como se tivesse nascida de ventre livre” (Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Casamento n. 7 (1887-1901), p. 13; Livro de Batismo n. 8 (1869-1874), p. 109. ACSM). 414. Câmara Municipal de Santa Maria. Livro de Atas (1888-1892). p. 96. ACMSM. 415. Requerimento. Fundo Junta Intendencial. Caixa 01, Tomo 05. AHSM. 416. Manoel Francisco Guedes nasceu no dia 2 de dezembro de 1858, filho natural de Isabel, escrava de David José de Medeiros. Foi batizado no dia 30 de março de 1859, na casa de José Antônio da Rocha, na Freguesia de Santa Maria. Foram padrinhos João, escravo de Manoel Gonçalves Chaves, e Jacinta Maria de Jesus. Em 1891, Manoel casou com Maria Dominga da Conceição, nascida no dia 14 de setembro de 1871, filha natural de Domingas, escrava de Maria da Conceição Córdova. Maria foi batizada no dia 21 de outubro de 1871, tendo como padrinho Pedro Antônio do Valle e como protetora Nossa Senhora do Rosário (Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Batismo – Suplementar; Livro de Batismo n. 08 (1864-1874) ACSM). 417. Requerimento. Fundo Intendência Municipal. Caixa 02, Tomo 09. AHSM. 418. Paróquia Nossa Senhora Madre de Deus. Porto Alegre. Livro de Casamento n. 11 (1893-1898), p. 57v. AHCMPA.


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Isabel e Adão não realizaram o rito matrimonial na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da qual faziam parte, para que o cônego Marcellino, paróco da Catedral e conhecido dos noivos, pudesse realizar tal cerimônia. Enquanto esteve em Santa Maria, o sacerdote teve um criada chamada Isabel Francisca, que lhe devotava respeito e admiração. Em 1883, quando o cônego José Marcellino e seu colega Francisco Rositi retornavam de uma novena, foram agredidos na praça da Matriz419. Uma das testemunhas arroladas no processo de investigação foi esta mulher chamada Isabel Francisca, que tinha na época 40 anos mais ou menos, lavadeira e engomadeira, solteira e moradora da cidade420. Em seu depoimento, declarou “que quem tinha feito aquele mal aos Padres era um desgraçado”421, demonstrando sua simpatia pelos sacerdotes e respeito pela religião católica. O advogado João Silveira da Fontoura, que fez a defesa dos réus João Fiel Filho e José da Costa Leite (acusados das agressões aos padres), deu novas informações sobre Isabel Francisca, na contestação que fez do seu depoimento: “Disse a preta liberta (note-se que essa preta foi por tempos criada do ofendido Reverendíssimo Padre Marcellino e que, sem dúvida, pelos muitos bons serviços que lhe prestou concorreu para sua liberdade. Isto é público e notório em Santa Maria)”422. Depois de fazer essa observação, o advogado seguiu sua contestação sobre o que Isabel Francisca havia dito e visto naquela noite em que os padres foram agredidos. Essas informações levam a crer que Isabel Francisca Guedes, esposa de Adão Gabriel, tenha sido criada do cônego Marcellino. Em 1883, Isabel Francisca, a testemunha da agressão, tinha mais ou menos 40 anos de idade e era solteira. O casamento com Adão ocorreu em 1896, treze anos depois, e a noiva tinha 55 anos de idade. Os nomes são iguais, as idades se aproximam e a preferência pelo casamento celebrado pelo cônego Marcellino, em paróquia diferente de sua moradia em Porto Alegre, indicam que Adão uniu-se em matrimônio com a preta liberta Isabel Francisca, que trabalhava como lavadeira e engomadeira. Manoel Francisco Guedes, que adquiriu um dos terrenos de Adão Gabriel, era filho natural de Isabel, escrava de David José de Medeiros. Como os sobrenomes são iguais, acreditamos que se trata de mãe e filho (quando Manoel nasceu, Isabel tinha em torno de 17 anos). Então, Isabel Francisca Guedes foi escrava de David José de Medeiros, depois “criada” do cônego Bittencourt e, com o casamento, tornou-se esposa de Adão Gabriel Haeffner.

419. Sobre a agressão ao cônego José Marcellino de Souza Bittencourt ver: KARSBURG, 2007; BIASOLI, 2010; PISTÓIA, 2011. 420. Processo-Crime. Cível e Crime. Santa Maria, n. 1040, Maço 30, Ano 1883, p. 65-65v. APERS. 421. Processo-Crime. Cível e Crime. Santa Maria, n. 1040, Maço 30, Ano 1883, p. 15v; p. 66. APERS. 422. Processo-Crime. Cível e Crime. Santa Maria, n. 1040, Maço 30, Ano 1883, p. 88v.


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O casal permaneceu em Porto Alegre até 1899, quando Adão, embora analfabeto, foi qualificado como eleitor federal do município de Porto Alegre, fazendo parte da 3ª seção. Foi descrito como “Adão Gabriel Haeffner, 50 anos, filiação ignorada, casado, agência”423. Muitas são as análises e conjecturas que podem ser feitas de seu nome estar presente nesta lista de eleitores, que vão do processo fraudulento das eleições da Primeira República até a importância de ser qualificado como eleitor. Mas o que nos interessa, neste momento, é sua presença em Porto Alegre vivendo de suas “agências”424. Quanto a exclusão dos analfabetos do processo eleitoral, implementado pela Lei Saraiva, em 1881, sabemos que era relativa, já que os eleitores apenas precisavam assinar (ou desenhar) o nome425. A permanência de Adão Gabriel e Isabel Francisca em Porto Alegre não durou muito tempo. Em 1900, eles já estavam em Santa Maria participando da Irmandade do Rosário e, mais tarde, da “Sociedade Treze de Maio”. Adão foi um dos integrantes que assinaram (a rogo) a solicitação para que a Irmandade fosse transformanda em Sociedade Beneficente e, com seu irmão Antônio, ocuparam cargos na direção. Na eleição realizada em 1913, Antônio foi escolhido um dos mesários e Adão foi eleito para a função de zelador426. Ambos estiveram no centro de um conflito que dividiu a Irmandade em 1914/1915, que o leitor vai conhecer no capítulo seguinte. No dia 26 de agosto de 1906, Isabel Francisca Guedes faleceu, e o escrivão registrou no seu óbito que ela era de cor preta, com 52 anos, natural deste Estado427. Os “vestígios” deixados por Antônio Gabriel foram menores que seu irmão Adão, mas é possível perceber uma cumplicidade entre os dois na participação 423. A Federação, 10 de julho de 1899, ano XVI, p. 03. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/ DocReader.aspx?bib=388653&pesq=Ad%C3%A3o%20Gabriel>Acesso em: 20 de julho de 2015. 424. Para Ivan de Andrade Vellasco (2004), o termo agência e suas variantes (“vive de sua agência”, “agenciador”) são designações cujo significado é uma verdadeira dor de cabeça para quem tenta enquadrá-los em algum critério. Para o autor, no século XIX, o agenciador tanto poderia “agenciar” unicamente sua própria força de trabalho como assalariado, quanto “agenciar” a força de trabalho de outros, por exemplo, alugando escravos. Danilo Rabelo (2002), também para o século XIX, utiliza o termo “viver de suas agências” para homens e mulheres pobres e livres que vagavam entre as fazendas, cidades e arraiais arrematando trabalhos esporádicos, como camaradas, operários das obras públicas, jagunços, cozinheiras e lavadeiras. Para Cláudia Mauch (2012), a interpretação do termo agência no Rio Grande do Sul das décadas iniciais da República ainda permanece imprecisa e, por isso, fez a opção de classificá-la e quantificá-la como “trabalhador sem mais informação”, junto com trabalhador, servente, jornaleiro, operário, proletário e sem ofício. 425. Durante o inventário procedido quando da morte do carpinteiro Paulino de Souza Bastos, em 1926, o juiz estranhou que ele tivesse assinado o registro civil de um dos filhos e em outro constasse que ele não sabia escrever. Os filhos naturais de Paulino, um dos fundadores da sociedade negra Floresta Aurora (1872), explicou ao juiz que o seu pai lia mal e não sabia escrever: “Posteriormente, desejando ser eleitor, o que conseguiu, tendo votado, muitas vezes, com o Partido Republicano, como podem atestar os drs. Henrique Pereira Neto, Cristiano Felipe Fischer, Carlos Leite e todos os antigos funcionários da Prefeitura Municipal desta Cidade, conseguiu assinar o seu nome, não com perfeição, pode-se mesmo dizer melhor que desenhava o seu nome” (APERS – 2º Cartório do Civel e Comércio, POA, auto 6806, 1926. Falecido: Paulino de Souza Bastos, Inventariante: Paulina Bastos Ferreira). 426. Boletim Mensal. Diocese de Santa Maria, Ano II, n. 3, novembro de 1913, p.39. AMSSM. 427. Habilitação de Casamento. Adão Gabriel Haeffner. Santa Maria, 1920. APERS.


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na Irmandade do Rosário, na Sociedade Treze de Maio, no trabalho e na tomada de decisões nos conflitos que abalaram aquela comunidade negra. Antônio morreu em abril de 1919, e o Padre Caetano Pagliuca registrou o seguinte no livro de óbito: “Aos onze de abril de mil novecentos e dezenove foi encomendado o corpo de Antônio Gabriel Haefner, casado, falecido ontem, sacramentado, oitenta anos”428. O jornal “Diário do Interior”, com base nas informações repassadas pelo cartório, também informou que Antônio tinha 80 anos, mas que era solteiro429. Divergência que poderá ser solucionada com outras pesquisas. Como nasceu em janeiro de 1848, tinha 71 anos quando morreu. Em 1920, pouco mais de um ano após a morte de seu irmão Antônio, Adão Gabriel, viúvo, entrou com processo de habilitação para casar-se com Maria Gertrudes. A “habilitação de casamento” revelou que os noivos tinham “urgente necessidade de matrimoniarssem”, porém, sem revelar qual era o motivo dessa urgência. A noiva Maria Gertrudes tinha 42 anos, nasceu em Alegrete, de afazeres domésticos, filha natural de Maria Antônia da Rosa. Adão Gabriel Haeffner foi identificado com a idade de 79 anos, de profissão jornaleiro, viúvo de Isabel Francisca Guedes, filho natural de Maria de Tal430. Foram testemunhas no processo de habilitação de casamento, João Amâncio Mothei, 47 anos, proprietário, natural da Síria e Paulo Abelin, 41 anos, comerciante, também natural da Síria. Assinaram ainda como testemunhas Octavio F. Haussen, Abdo Farret e Mariano Niederauer. Se no documento civil a mãe de Adão Gabriel era apenas a “Maria de Tal” e o pai sequer foi identificado, no documento produzido pela Igreja ambos são mencionados e ainda receberam a designação de um sobrenome. Vejamos: Aos dezesseis de junho de mil novecentos e vinte receberam-se em matrimônio perante mim e as testemunhas João Maria de Oliveira e Manuel Domingos da Silva, o Srº Adão Gabriel Haefner e Dª Maria Gertrudes; ele com setenta e nove anos e filho de Manoel Gabriel e Maria Gabriel Haefner; ela com quarenta e dois anos e filha de Maria Antônia Rosa, ambos residentes nesta cidade, sendo ele natural da mesma e ela de Alegrete; ele viúvo e ela solteira. Em fé: o cura P. Caetano Pagliuca431.

O assento de casamento realizado pelo padre é o único encontrado que revela o nome do pai dos gêmeos Adão e Antônio. Chamava-se Manoel. Maria, da Costa da África, Maria da Costa, Maria de Tal e por último Maria Gabriel 428. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Óbitos n. 3 (1895-1925) p. 101v. O padre registrou que Antônio faleceu com 80 anos, quando na realidade ele estava com 71 anos, pois nasceu no dia 04 de janeiro de 1848, como vimos no capítulo 05. 429. Diário do Interior. Santa Maria. Ano VIII, n. 87, 12 de abril de 1919, p. 02. AHSM. 430. Habilitação de Casamento. Adão Gabriel Haeffner. Santa Maria, 1920. APERS. Adão estava com 72 e não 79 anos como informa este processo. 431. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Casamentos n. 08 (1901-1923), p. 245v. ACSM.


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Haeffner, foram os diferentes nomes dados a essa africana, que foi escrava do alemão Gabriel Haeffner. Seu nome africano, nunca saberemos. A preocupação em dar os nomes completos dos pais do noivo revela uma proximidade entre Adão Gabriel e o padre Caetano Pagliuca, que será manifestado no episódio de 1914/1915 (que conheceremos no próximo capítulo). “É a perspectiva relacional que deve ser considerada”, como observou Roberto Guedes (2008, p. 102). Ao pesquisar sobre a hierarquia e posição social manifestas na cor, Guedes concluiu que elas “eram fluidas e dependiam de circunstâncias sociais, sendo reatualizadas, negociadas” (Ibid., p. 102). O resultado dessas múltiplas relações estabelecidas pelos sujeitos e sua posição na hierarquia social eram expressos nos registros eclesiásticos. As diferentes formas de identificação de Adão são exemplos disso. Jornaleiro, criado, faxineiro, pedreiro, “agências” foram as descrições profissionais e as atividades exercidas por Adão Gabriel e, provavelmente, também por seu irmão Antônio. Adão prestou seus serviços de faxinerio por pelo menos 13 anos para a Intendência Municipal de Santa Maria, entre o início de 1913 até janeiro de 1925. Ele já estava com seus 77 anos e continuava realizando o trabalho de limpeza dos prédios da Intendência Municipal432. Abaixo, um exemplar de recibo de pagamento do trabalho de limpeza da Intendência realizado por Adão Gabriel. Imagem 17 – Recibo de Pagamento para Adão Gabriel Haeffner - 1925

Fonte: Fundo Intendência Municipal, Caixa 70, Tomo 420.

432. São vários os recibos de pagamento feitos a Adão Gabriel entre 1913 e 1925.


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Entre 1913 e 1925, período em que encontramos recibos de pagamentos dos serviços realizados por Adão na Intendência, foram Intendentes Municipais Jerônimo da Costa Gomes, Astrogildo de Azevedo, Claudino Nunes Pereira, Ernesto Marques da Rocha, Júlio Rafael Bozano, Fortunato Loureiro e Carlos Alberto Tacques. Trocavam-se os intendentes, mas Adão continuava sendo chamado para a limpeza do prédio, o que demonstra que ele havia obtido a confiança e a simpatia da classe política. Por mais de uma década manteve seu trabalho na limpeza da Intendência Municipal, o que garantia uma proximidade com os membros da elite política e estabilidade econômica para sua família. Adão, o ex-escravo de Gabriel Haeffner viveu as experiências da liberdade de forma diversa. Filho de uma africana, nascido em Santa Maria, migrou para Porto Alegre, casou, voltou a Santa Maria, casou novamente, frequentou Clube e Irmandade, trabalhou. Viveu longos anos, cujo desfecho veremos no final deste texto.

7.4 OSÓRIO NUNES DO NASCIMENTO A Irmandade de Nossa do Rosário e a “Sociedade Treze de Maio” contaram também com a liderança e o envolvimento de Osório Nunes do Nascimento, que ocupou cargos nas duas instituições. Osório fez parte da primeira diretoria do “Treze”, ocupando o cargo de secretário e, como tal, foi o responsável pelos primeiros registros dessa sociedade negra. A trajetória de seus avós, de seus pais e dele próprio revela os dramas e as incertezas de uma família em tempos de escravidão e os desafios da experiência em liberdade. Para apresentar alguns integrantes de sua família, vamos nos utilizar o seguinte assento de casamento: Aos dezesseis dias de setembro de mil oitocentos oitenta e dois, nesta matriz de Santa Maria da Boca do Monte, sem impedimento algum, em minha presença e das testemunhas Antônio Bento da Fontoura e Augusto Gomes do Valle se receberam em matrimônio, por palavra de presente, os contraentes Esmael Nunes do Nascimento e Amância Mendes da Conceição, naturais e moradores desta paróquia, já tendo dois filhos, Osório e Orlinda, da união ilícita em que viviam, ele filho natural de Raymunda Nunes do Nascimento; ela de Manoela Mendes; e logo lhes conferi as bênçãos nupciais na forma do Ritual, do que para constar fiz o presente que assino. O vigário José Marcellino de Souza Bittencourt433.

Entre os nomes que o referido assento de casamento nos apresenta estão o da irmã Orlinda, dos pais Ismael e Amância e da avó paterna Raimunda. Dessas três gerações, a avó Raimunda e o pai Ismael foram escravos de Dona Isabel Nunes do Nascimento, que usou todos os mecanismos do regime escravista, 433. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro Casamentos n. 06 (1882 – 1887), p. 07-07v. ACSM.


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alforriando, comprando, vendendo e dividindo como herança os seus escravos. Dona Isabel era casada com José Pacheco de Lima, que faleceu na década de 1840. O seu inventário post-morten foi realizado somente em 1857 e os bens do casal somavam a quantia de 5 contos e 46 mil réis (5:046$000), que foram divididos entre a viúva (meação) e nove herdeiros434. Desse valor, 3 contos e 800 mil réis (75,3% do total do patrimônio avaliado) correspondiam aos cinco escravos do casal, divididos da seguinte forma: Tabela 5 - Escravos de José Pacheco de Lima e Isabel Nunes do Nascimento – 1857 Nome

Valor

Raimunda

1: 200$000

Benedito

1:200$000

Ismael

500$000

João

500$000

Júlio

400$000

Total

3:800$000

Fonte: Inventário post mortem de José Pacheco de Lima. APERS

O restante dos bens do casal (1 conto e 246 mil réis) eram de uma chácara com casa “aquém da picada desta freguesia” e uma casa com um terreno amurado na freguesia. Na divisão dos bens, Isabel Nunes do Nascimento ficou com Raimunda, Ismael, João e parte do valor “das casas e benfeitorias” na freguesia. O escravo Benedito foi dividido entre cinco herdeiros435 e Júlio entre dois herdeiros436. Ismael e Júlio eram filhos de Raimunda. O primeiro tinha 10 anos de idade (nasceu em 15 de outubro de 1846), o segundo, 8 anos (nasceu em 08 de agosto de 1848). Em 1857, Benedito e Raimunda eram dois escravos jovens 434. Os herdeiros eram: João Pacheco de Lima, casado, 50 anos; Francisco Pacheco de Lima, solteiro, 48 anos; Ignácio Pacheco de Lima, solteiro, 46 anos; D. Rosa Maria do Nascimento, casada, 39 anos; D. Maria Nunes do Nascimento, solteira, 34 anos; D. Rita Maria do Nascimento, solteira, 29 anos; D. Marianna Nunes do Nascimento, casada, 25 anos; D. Maria Pacheco do Nascimento, solteira, 24 anos; Miguel Pacheco de Lima, solteiro, 23 anos. 435. O valor correspondente ao escravo Benedito foi dividido da seguinte forma: Francisco Pacheco de Lima (203$333 réis), D. Rosa Maria do Nascimento (155$678 réis), D. Maria Nunes do Nascimento (280$333 réis), D. Rita Maria do Nascimento (280$333 réis), D. Maria Pacheco do Nascimento (280$333 réis). 436. Júlio foi dividido entre D. Marianna Nunes do Nascimento (280$333 réis) e João Pacheco de Lima (119 mil 667 réis).


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e provavelmente formavam um casal. Raimunda, além de Ismael e Júlio, teve pelo menos mais cinco filhos, Robéria (nascida em 08 de junho de 1859), Abel (17 de setembro de 1862), Ubaldina (19 de outubro de 1864), Maria (12 de agosto de 1867) e Manoel, nascido provavelmente em 1869437. O destino de Benedito e de Raimunda, ambos crioulos, foram diferentes. Ele foi vendido para Idelfonso Machado de Oliveira, em 1866, pelo valor de 1 conto de réis, tendo na data “mais ou menos” trinta anos438. Raimunda era cozinheira de Isabel Nunes do Nascimento, que lhe concedeu carta de alforria em 1874, mediante o pagamento de “10 onças de ouro, equivalente a 310 mil réis”. Valor que foi entregue por Raimunda na ocasião do registro da carta de liberdade. Ela tinha mais ou menos 38 anos439. Os filhos de Raimunda tiveram destinos e trajetórias diversas. Robéria, quando foi batizada, em 30 de outubro de 1859, foi identificada como escrava de Maria Nunes de Souza (filha de Isabel Nunes do Nascimento). Em 1877, Robéria foi vendida para Guilherme Fischer (dono de uma botica), pelo valor de 600 mil réis e foi descrita como solteira, parda, 19 anos “mais ou menos”, com “aptidão boa para o trabalho”, sendo “do serviço geral de uma casa de família”440. Manoel foi vendido por Isabel Nunes do Nascimento, em 1878, para o Tenente Coronel João Pereira de Almeida (futuro Barão de Nonoay) pelo valor de 400 mil réis. O menino foi descrito como preto, com 9 anos, de serviço doméstico e “com boa aptidão para o trabalho”441. Maria já foi apresentada ao leitor no capítulo 4. Era a menina que foi alforriada por 120 mil réis, em 1874, para comemorar a primeira visita pastoral do bispo diocesano D. Sebastião Dias Laranjeira, e o pagamento foi realizado pelo vigário José Marcellino de Souza Bittencourt e pelo alferes Germano Hoffmeister, que era seu padrinho442. O destino de Ismael foi incerto, mas como não encontramos nenhum documento de compra e venda, ele pode ter ficado sob o domínio de Isabel Nunes do Nascimento, que, de alguma forma, obteve a liberdade. Já adulto, manteve um relacionamento com Amância Mendes da Conceição, com quem teve os filhos Osório e Orlinda. Em 16 de setembro de 1882, decidiram realizar o casamento religioso, acabando com a “união ilícita em que viviam”, conforme 437. Os assentos de batismo foram realizados na Paróquia Nossa Senhora da Conceição nos seguintes livros: Ismael - Livro de Batismo n. 3 (1845-1859), p. 41v; Júlio - Livro de Batismo n. 3 (1845-1859), p. 132132v; Robéria – Livro de Batismo n. 4 - Suplementar, p. 69v; Abel - Livro de Batismo n. 4 - Suplementar, p. 93; Ubaldina – Livro de Batismo n. 07 (1864-1869), p. 05; Maria - Livro de Batismo n. 07 (1864-1869), p. 65. Não encontrei o assento de batismo de Manoel. ACSM. 438. APERS. Documentos da Escravidão. Livro de Compra e Venda, vol. 02 p. 302. 439. APERS. Documentos da Escravidão. Cartas da Liberdade, vol. 02, p. 874. 440. APERS. Documentos da Escravidão. Livro de Compra e Venda, vol. 02, p. 317. Embora no assento de batismo, Robéria foi identificada como sendo escrava de Maria Nunes de Souza, a transação de venda é feita por Isabel Nunes do Nascimento. 441. APERS. Documentos da Escravidão. Livro de Compra e Venda, vol. 02, p. 320. 442. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Livro de Batismos n. 7 (1864-1869), p. 65v. ACSM. O batismo foi realizado no dia 05 de outubro de 1867. Foram padrinhos Germano Hoffmeister e Maria Catarina Kern.


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escreveu o sacerdote no seu assento de casamento citado anteriormente. Ismael e Amância se preocuparam com a educação formal de seus filhos. Orlinda era colega de Innocência Maria Joaquina, esposa de José Francisco do Nascimento, nas “aulas públicas”443. Osório deve ter tido o mesmo destino, o que lhe garantiu a alfabetização e o cargo de primeiro secretário da “Sociedade Treze de Maio”. Osório tornou-se carpinteiro, ofício que exerceu durante toda a sua vida. Em 1898, com 28 anos de idade, Osório casou-se com Maria Manoela, que tinha 22 anos, filha natural de Roberta Maria Joaquim e de Manuel Joaquim444. O casamento foi realizado apenas civilmente. A união religiosa foi realizada 16 anos depois, no dia 13 de abril de 1913445. Depois de casado, em 1899, Osório pretendeu edificar sua morada e solicitou o alinhamento necessário para a Intendência Municipal, na Travessa André Marques446. Em 1910, enviou outro requerimento à Intendência querendo edificar uma casa de madeira em terreno de sua propriedade na mesma travessa447. Poderia ter refeito a casa construída antes ou mesmo construído outra casa de madeira para alugar, como fez Sisnando de Oliveira, que possuía três chalés de madeira. Carpinteiro, Osório deve ter trabalhado pessoalmente na construção e reforma de suas casas. Na sessão solene em comemoração a “Áurea lei de Treze de Maio”, realizada em 1904, na Sociedade Treze de Maio, vários discursos foram proferidos e um dos cidadãos que fez uso da palavra foi Osório Nunes do Nascimento. Ele trazia consigo uma memória familiar marcada pelo cativeiro. Sua avó e seu pai foram escravizados e seus tios e tias foram vendidos como mercadoria. Livres, sofriam com a estigmatização de sua origem e de sua cor e nas diferentes sociedades negras podiam comemorar suas datas festivas, manifestar sua religiosidade e projetar o futuro. Eram palavras proferidas por àqueles que sofreram as agruras do escravismo. A Irmandade do Rosário e as demais associações negras funcionavam como pontos centrais de acolhimento, cooperação e expressão do passado e do presente daquela comunidade. José Fontoura, Osório Nunes do Nascimento, Sisnando de Oliveira, todos integrantes da Irmandade e membros da primeira diretória da “Sociedade Treze de Maio” tinham como companheiro nas duas instituições Ovídio Vicente do Prado, que exercia a função de orador do “Treze”. Natural de Cachoeira do Sul, 443. Encontramos seu nome numa lista de alunos de “aulas públicas de Santa Maria”. Fundo Junta Intendencial, Caixa 01, Tomo 07. AHSM. 444. Habilitação de Casamento. Osório Nunes e Maria Manoela. Santa Maria, 1898. APERS. 445. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro Casamentos n. 08 (1901-1923), p. 123. ACSM. 446. Requerimento. Osório Nunes do Nascimento. Fundo Intendência Municipal, Caixa 03, Tomo 19. AHSM. 447. Requerimento. Osório Nunes do Nascimento. Fundo Intendência Municipal, Caixa 11, Tomo 61. AHSM.


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também migrou para Santa Maria onde era empregado como criado de José Antônio de Souza Caldas448. Em 1892, casou-se com Laura, filha natural de Maria, que havia sido escrava de Felipe Leonardo Niederauer. Laura nasceu em 10 de junho de 1873449 e viveu sob a tutela de João Weber e Sophia Niederauer Weber, que autorizaram o casamento com Ovídio450. O novo casal morava na rua Tuiuti onde possuía uma “casa de tábuas e zinco”451 e tiveram um único filho, Honório do Prado452. Ismael Nunes do Nascimento, pai de Osório, morreu em 5 (ou 6) de junho de 1913 e por ser pobre foi sepultado por conta da municipalidade453. A esposa, Maria Manuela Nunes, morreu dez anos depois, no dia 4 ou 5 de agosto de 1926454. Osório viveu até os 64 anos, falecendo no dia 30 de abril de 1933, “de cor preta, profissão carpinteiro”455. Ovídio Vicente do Prado faleceu no dia 15 de junho de 1924, “de cor preta, de 65 anos, deste Estado”456. A Irmandade do Rosário foi o primeiro centro aglutinador da população negra de Santa Maria após o fim da escravidão. As experiências sociais vivenciadas no seu interior permitiram a construção de outras organizações negras. Fazer parte dela permitia a aproximação necessária para novos projetos e novas estratégias de organização. Além do papel coletivo, possibilitava a efetivação de interesses de caráter individual, como compra e venda, compadrio e testemunhos. Muitos indivíduos que passaram pela experiência da escravidão foram fundamentais na organização da Irmandade e das demais organizações negras. Essa geração de ex-escravos exercia atividades profissionais que garantiam sua sobrevivência, mas não tinham a segurança de um emprego fixo e assalariado. Uma segunda geração de trabalhadores, filhos desses “fundadores”, possuíam trabalhos mais estáveis na ferrovia, na Brigada Militar, no Exército e assumiram a direção das instituições que continuaram existindo. A família de José Francisco do Nascimento é um dos exemplos dessas transformações. 448. Habilitação de Casamento. Ovídio Vicente do Prado. Santa Maria, 1892. APERS. 449. Paróquia Nossa Senhora do Rosário. Livro de Batismo - Filhos de Mulher Escrava (1871-1887), p. 10v. ACSM. 450. Escreveu João Weber: “Declaro eu, abaixo assinado, João Weber que sou legitimamente casado com Sophia Niederauer Weber e que temos em nossa companhia, desde o seu nascimento, a preta de nome Laura, menor de 21 anos de idade, filha da preta Maria e que lhe damos pela autorização para casar-se com o preto Ovídio Vicente do Prado. Santa Maria, 16 de julho de 1892” (Habilitação de Casamento. Ovídio Vicente do Prado. Santa Maria, 1892. APERS). 451. Requerimento. Fundo Intendência Municipal. Caixa 16, Tomo 80. AHSM. 452. Franciele Oliveira (2017) fez importantes reflexões sobre a trajetória desta família negra, especialmente sobre os desafios enfrentados por Laura, na sua condição de tutelada após a Lei do Ventre Livre. Também demonstrou a importância de Ovídio e Honório na imprensa negra e na fundação e manutenção de associações sociais e esportivas. 453. Documentos de Caixa. Fundo Intendência Municipal. Caixa 16, Tomo 86. AHSM. 454. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro Óbitos n. 03 (1895-1925), p. 134. ACSM. 455. Livro de Óbitos. n. 15, p. 36. Santa Maria. APERS. 456. Inventário Post Mortem. Ovídio Vicente do Prado. 1924, N. 420, M. 09. APERS. Laura do Prado abriu um processo de inventário, mas, infelizmente, ele foi interrompido ou os demais documentos não foram preservados, pois o exemplar existindo no APERS possui apenas os documentos iniciais.


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A “Sociedade Treze de Maio”, fundada por carroceiros, criados, jornaleiros e carpinteiros mudou inclusive a sua denominação para “Sociedade Recreativa Ferroviária Treze de Maio”. A ferrovia, os quartéis e um comércio dinâmico atraíram indivíduos de diversas regiões para Santa Maria, que vinham em busca de trabalho. A migração intraprovincial foi uma constante entre os irmãos do Rosário, principalmente de cidades do entorno de Santa Maria, como Cruz Alta, Cachoeira do Sul, São Vicente do Sul, São Sepé, etc. Uma vez na cidade, procuraram seus iguais, integraram-se ou criaram suas próprias instituições. Tão importante quanto a criação dessas instituições foi a sua defesa. Em 1915, os irmãos do Rosário tiveram que defender a posse de sua capela em um conflito que dividiu a cidade e os membros da Irmandade. No centro do conflito estavam Adão Gabriel Haeffner, Antônio Gabriel Haeffner e o vigário Caetano Pagliuca. No capítulo seguinte, veremos o desenrolar desse episódio.


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8 A IRMANDADE DO ROSÁRIO E O PADRE CAETANO PAGLIUCA



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O clero católico passou por momentos de instabilidade na direção da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, de Santa Maria da Boca do Monte, no final do século XIX. As razões desta instabilidade, os enfrentamentos entre clericais e anticlericais, as versões produzidas pelo clero, a discussão de se Santa Maria era uma cidade “crente” ou “descrente”, as relações com a Maçonaria já foram objeto de análise de historiadores como Luís Eugênio Véscio (2001), Vitor Biasoli (2010), Alexandre Karsburg (2007), Marta Borin (2010), entre outros. Esses autores analisaram profundamente o contexto religioso de Santa Maria no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, portanto, concentrar-nos-emos apenas na atuação do Pe. Caetano Pagliuca e sua relação com a Irmandade do Rosário. Obviamente, teremos que apresentar o contexto que o padre Pagliuca estava inserido, mas não o faremos na profundidade já realizada por esses historiadores. O padre Caetano Pagliuca nasceu na Província de Avelino, em Montefalcione, Itália, no dia 28 de março de 1874. Filho dos pequenos agricultores Pascual e Sophia Pagliuca, Caetano desde cedo teve contato com a Pia Sociedade das Missões, fundada por Vicente Palloti, pois a paróquia de seus pais era atendida pelos padres e irmãos palotinos. No dia 02 de fevereiro de 1892, emitiu a sua primeira profissão religiosa, partindo em seguida com sete confrades para Porto Alegre. Caetano Pagliuca recebeu das mãos de Dom Claudio Ponce de Leão a ordem de presbítero, no dia 30 de novembro de 1897. Permaneceu no Bairro Tristeza, em Porto Alegre, até dezembro de 1900, quando foi nomeado para a Paróquia de Santa Maria chegando à cidade no dia 10 de dezembro de 1900. Assumiu efetivamente a paróquia em janeiro de 1901 com 26 anos de idade (DUTRA, 2009, p. 165-166). Foi nomeado pároco de Santa Maria em dezembro de 1900 e assumiu a paróquia em janeiro de 1901. O novo vigário encontrou uma paróquia que tinha passado por momentos de dificuldade na última década do século XIX, pois um grupo da elite local combatia duramente o clericalismo ultramontano. As relações conflituosas começaram ainda em julho de 1883, quando os padres Marcellino Bittencourt e Francisco Morano foram agredidos na atual praça Saldanha Marinho, no que pode ter sido um conflito político, uma vez que o vigário Bittencourt era membro do Partido Liberal, e o acusado de ser o mandante, Martins Höehr, era membro do Partido Conservador. Em 1884, começou um impasse entre a Igreja e a Câmara Municipal sobre o destino da Igreja Matriz, que estava em ruínas. A questão se arrastou até 1888, quando o Juiz Municipal decidiu pela demolição da igreja. O material foi leiloado e adquirido por João Daudt Filho, que o empregou na construção do Theatro Treze de Maio, sob o protesto do clero. Um ano depois, a Proclamação da República exigiu da Igreja Católica um processo de reconfiguração de seu status e da relação que mantinha como o Estado.


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O vigário Aquiles Parella Catalano assumiu a direção da paróquia em 1887, e sua atuação como sacerdote passou por um momento de crise e indefinição, pois ficava dividido entre as práticas católicas tradicionais e as novas posturas do ideário ultramontano, que estavam sendo implantadas pelo bispo do Rio Grande do Sul D. Cláudio Ponce de Leão. Sua postura diante do episódio da demolição da Matriz e a “mancebia do vigário, que disto não fazia mistério”457, levaram o bispo a censurá-lo publicamente na festa do Campestre e, posteriormente, transferi-lo para São Martinho. Um grupo de cidadãos intercedeu junto ao bispo para a permanência do padre na paróquia458, pedido que não foi atendido pelo prelado. O sucessor foi o padre Carlos Becker que não agradou um grupo da elite política/econômica e foi “expulso” da cidade. Na noite do dia 13 de novembro de 1895, foi o padre Becker intimado pelo “povo” a deixar a cidade em 48 horas459. Um “boletim” foi distribuído na cidade na manhã do dia seguinte, com o seguinte texto: Ao povo de Santa Maria Um fato extraordinário acaba de ter lugar em Santa Maria. Cerca de 30 membros da sociedade desta terra dirigiram-se à casa do Padre Becker e o intimaram a retirar-se desta paróquia no prazo de 48 horas. O motivo principal desse procedimento foi a resposta insólita e descabida do Bispo D. Claudio ao povo de Santa Maria que lhe dirigiu um abaixo-assinado extenso, pedindo a continuação do padre Achylles que representava perfeitamente as ideias religiosas. A intimação foi dirigida respeitosamente, ficando, entretanto, o padre Becker ciente de que se contrariasse tal intimação, seria expulso por outros meios. Essa resolução assenta também contra a propaganda minaz e traiçoeira que o jesuitismo espalha por toda parte, sendo o padre Becker um sectário perigoso dessa seita infernal. Abaixo o jesuitismo!460

O padre Carlos Becker não resistiu e deixou a paróquia no dia 15 de novembro de 1895. “Que venham melhores tempos para este povo infeliz, cujos destinos imorais 457. Essa expressão foi utilizada pelo padre Caetano Pagliuca, em 1907, no relatório que escreveu ao bispo coadjutor D. João Antônio Pimenta onde explicou a situação religiosa de Santa Maria e fez críticas aos seus antecessores. Sobre o padre Aquiles Catalano, Pagliuca escreveu: “Durante a administração deste não foi feita coisa alguma; a igreja não era frequentada, não havia prática dos sacramentos nem missa diária e, às vezes, nem aos domingos. Também era pública a mancebia do vigário, que desta não fazia mistério. Na noite de natal de 1894, quando todo o povo, na igreja esperava a missa do galo, o vigário ia em busca da concubina que o tinha abandonado!!!” (Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro tombo n. 3 (1889-1914), p. 85-87. APNSC-SM). 458. “(...) enviando ao bispo D. Claudio o padre Becker, seu preposto e jesuíta como ele, cujas doutrinas são antagônicas com os verdadeiros princípios religiosos que professamos, preferindo nós o padre Achilles, que é um sacerdote que está em perfeita harmonia com o modo de pensar e de sentir de seus paroquianos, sendo, além disso, despido de toda a hipocrisia e de preconceitos ridículos” (O Combatente. 1 de dezembro de 1895, ano IX, n 48. ACMEC). O texto é uma resposta contra um artigo publicado no “Jornal do Comércio (Porto Alegre) que defendia o vigário Carlos Becker”. Essa resposta foi assinada por 26 membros da elite de Santa Maria, que estavam entre o grupo que “expulsou” o padre Becker de Santa Maria. 459. O Combatente. 24 de novembro de 1895, Ano IX, n 47. ACMEC. 460. O Combatente. 17 de novembro de 1895, Ano IX, n 46. ACMEC.


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são dirigidos por homens sem lei”, escreveu ele antes de ir embora461. O jornal “O Combatente” tornou-se o porta-voz dos opositores do clero e passou a fazer duras críticas ao bispo e ao clero ultramontano. Diante da “expulsão” do padre Becker, o bispo D. Cláudio interditou a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, proibindo a realização de qualquer ato religioso na cidade, entre 17 de novembro de 1895 e 03 de março de 1896. Diante da interdição, “O Combatente” destacou: Santa Maria está sem padre, ‘perigando’ a não tê-lo por muito tempo. É o ‘castigo’ que o sr. D. Claudio vai impor ao nosso povo. Creia D. Claudio, que ninguém deixará de casar-se e que todos os atos que vocês da seita negra pensam não ser legais sem dois ou três padres nossos, hão de ser celebrados da mesma forma. Contratar-se-á um padre ou vai-se a igreja evangélica462.

A expulsão do padre não era unanimidade na população da cidade, como “O Combatente” fazia crer. O padre Becker recebeu o apoio de membros importantes da cidade, como José Penna de Moraes, João Appel Primo e Júlio Appel, que percorreram a cidade em busca de assinaturas para provar que não tinha sido o “povo” de Santa Maria que havia expulsado o padre. Alexandre Karsburg (2007) analisou com profundidade a expulsão de Carlos Becker e concluiu que havia dois grupos, um de apoio e outro de oposição ao padre, contestando a história eclesiástica de uma Santa Maria descrente e dominada pela maçonaria. Além de “O Combatente”, a defesa do padre ou a condenação de sua conduta se fazia principalmente por meio dos jornais “A Federação”, “Correio do Povo”, “Jornal do Comércio” e “14 de julho”. Estabeleceu-se um debate nada amistoso entre os defensores do padre Becker e seus detratores. Após o período de interdição, o bispo D. Claudio confiou a Paróquia de Santa Maria aos padres palotinos, que designaram o padre Pedro Wimmer para tal tarefa. De acordo com Vitor Biasoli (2010, p. 133), “sua posição era de um homem de Igreja vinculado a uma organização religiosa orientada pelo ultramontanismo”. O autor ainda destacou que “os palotinos, naquele momento, representavam a igreja romanizada em Santa Maria e enfrentavam uma elite intelectual e política que (...) pautava-se por princípios liberais cientificistas e era receptiva do ideário maçônico” (Ibid., p. 133-134)463. Ao assumir a paróquia, o padre Wimmer, em mais um momento de tensão, procurou manter uma postura firme diante de seus princípios ultramontanos, mas soube estabelecer alianças e um clima de cordialidade com seus possíveis adversários. “O Combatente”, a voz de oposição ao clero, noticiou: 461. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Livro tombo n. 3 (1889-1914), p. 85-87. APNSC-SM. 462. O Combatente. 1 de dezembro de 1895. Ano IX, n 48. ACMEC. 463. Vitor Biasoli (2010) também analisou como a história produzida pelos palotinos destacou a existência de uma luta implacável contra a maçonaria e os “anticlericais”.


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Ante-ontem honrou-nos com sua visita o modesto sacerdote padre Pedro Wimmer, que já há meses dirige a Igreja Católica desta cidade. S.S. na demorada palestra que conosco entreteve revelou ser um apostolo democrata na acepção da palavra, conquistando por isso as simpatias que temos visto lhe terem sido dispensadas pelo público464.

A estratégia surtiu efeito por um período, pois o jornal deixou de criticar o clero naquele ano de 1896 e noticiava as atividades desenvolvidas pela Igreja Católica, como missas, novenas e procissões. O clima tornou-se novamente acirrado com a visita do bispo D. Cláudio a Santa Maria, em janeiro de 1897. Na notícia da chegada do bispo, o jornal ainda manifestava o desejo da volta do padre Catalano e informava “que o sr. Bispo, consultado, continua na firme resolução de não atender ao pedido que a população desta cidade lhe fez, sobre a vinda do padre Catalano para aqui”465. Na missa rezada na capela que servia como matriz, o bispo criticou o casamento civil e condenou aqueles que se recusavam a frequentar o confessionário ou proibiam esposas e filhas que o fizessem. Também disse que a Igreja de Santa Maria era um chiqueiro, conforme relato de Cândido Brinckmann466. Por isso, o bispo foi vaiado ao sair da igreja. Um novo boletim foi distribuído pela cidade com críticas a D. Cláudio467. O clima voltou a tornar-se acirrado. A situação piorou na festa do Campestre de Santo Antão, quando o padre Catalano, convidado para a festa, foi censurado publicamente pelo bispo. “Sem moralidade, tendo descurado de seus deveres completamente e em desabono da própria religião, não procurando zelar dos interesses da Igreja que dirigia, chegando ao ponto de deixar desabar o antigo templo”. Essas foram as palavras “externadas pelo bispo na presença do próprio padre Catalano, que se retirou envergonhado!”468. 464. O Combatente. 07 de junho de 1896, Ano X, n 25. ACMEC. 465. O Combatente. 03 de janeiro de 1897, Ano XI n 01. ACMEC. 466. O Combatente. 17 de janeiro de 1897, Ano XI, n. 3. ACMEC. 467. “O Combatente” publicou no dia 10 de janeiro de 1897: “Eis o boletim que profusamente espalhamos pela cidade, segunda-feira pela manhã, narrando a vaia que provocaram as palavras dirigidas do púlpito da igreja pelo bispo D. Claudio”. Bispo Vaiado era o título do boletim e possuía o seguinte conteúdo: “Toda a população de Santa Maria assistiu ontem à noite, na igreja católica desta cidade, a maneira como calcou aos pés a constituição da República – o sr. Bispo Dom Claúdio – condenando em absoluto o casamento civil. ‘Não está casado quem não vier receber o sacramento da igreja’ ousou avançar o jesuíta! Não foi difícil conterem-se os ímpetos de protestos que seriam levantados mesmo dentro do templo, pois que assistiam à prédica muitas Exmas. famílias. Já na noite anterior o roupeta teve o desplante de dizer: ‘meus filhos, os pais e maridos que não deixarem suas esposas, suas filhas irem ao confessionário antes fossem enforcados! Como se vê, jogadas têm sido afrontosamente, às faces da sociedade santa-mariense hoje invadida por meia dúzia de formigões, as mais ignominiosas provocações e desrespeito às leis do pais! Assim é que o povo, ontem à noite, no uso de um direito supremo, apupou a primeira autoridade eclesiástica da igreja, no Rio Grande do Sul, levando-a debaixo de uma estrepitosa vaia desde que saiu da igreja até a casa onde hospeda-se. Enganam-se os inimigos de Deus. Não medra, não medrará felizmente nesta cidade a condenada arvore do jesuitismo – ocupe embora a cátedra da igreja o mais arrojado dos da seita. Para trás, jesuítas! ‘O Deus que vós insultais é o que nós adoramos’.” 04 de janeiro de 1897 (O Combatente. 10 de junho de 1897. Ano XI, n 02. ACMEC). 468. O Combatente. 24 de janeiro de 1897, ano XI, n 4. ACMEC.


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O clima de cordialidade e de aproximação estabelecido pelo padre Pedro Wimmer desde a sua chegada estava desfeito pelas atitudes do bispo. “O Combatente” reconheceu o espírito de tolerância de Wimmer, mas começava a não mais estabelecer diferença entre ele e Carlos Becker, que havia sido expulso: O padre Wimmer, o substituto de Becker, tem sabido levar a vida, tem tratado de chamar a si, improficuamente, elementos que garantam sua estabilidade e ao mesmo tempo que o recomendem perante a suprema autoridade eclesiástica. Creia no entretanto esse sacerdote, o bispo e seus congêneres, que em nada se distancia do padre Catalano. O padre Wimmer é digno êmulo de Carlos Becker, e, acredite o público independente que nos lê e sabe as condições da vida íntima de nosso povo, que si não fora a demasiada e até certo ponto ridícula democracia daquele sacerdote, ele teria tido já o mesmo fim que seu antecessor469.

O padre Wimmer precisava recomeçar. Alexandre Karsburg (2007, p. 281) constatou que “as atitudes inoportunas do bispo dificultaram a ação dos palotinos e, uma vez criado o clima adverso, tiveram que agir para reverter a situação até reconquistar a confiança da elite santa-mariense”. O jornal “O Combatente”, que havia dado uma trégua na propaganda contra a Igreja Católica, voltou toda a sua artilharia em direção ao clero e ao bispo. O vigário Pedro Wimmer teve que enfrentar essa oposição dos redatores do jornal que publicava semanalmente notícias, crônicas, poemas e editoriais contra a Igreja Católica. Mas, ao mesmo tempo que criticava o clero, que chamava de “corvos”, “formigões” “roupetas”, “vendilhões”, anunciava e celebrava as festas religiosas do Divino Espirito Santo e do Campestre de Santo Antão, que eram organizadas diretamente por festeiros, membros da elite local, muitos deles maçons. No final de 1900, Pe. Wimmer foi substituído na direção da paróquia, e o cronista que utilizava o pseudônimo de Aurélio Pinto escreveu nas páginas de “O Combatente”: Lá se vai ou se foi o “reverendíssimo padre Pedro Wimmer. Não deixa nem leva saudades (...). Na sociedade em geral, vemo-lo exposto ao escárnio, sem uma amizade ou simpatia sincera, às moscas completamente (...); na religião, afinal, vê-se o terreno destinado para a igreja, há anos, sem que uma esperança surja quanto a sua construção, simplesmente porque esperava que o povo fizesse ou faça o templo e dê aos vendilhões para explorarem lhe o próprio bolso. Fora isso, a debandada dos fiéis – convencidos uns de que aquilo não passa de um miserável balcão, escorraçados outros pelo predomínio nefasto da batina sebosa e das manoplas disformes do último dos “formigões”. Bem andou o sr. Claudio José removendo daqui tal múmia. Erra, porém, aqui deixando 2 ou 3 “palotinos”.

469. O Combatente. 24 de janeiro de 1897, ano XI, n 4. ACMEC.


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E continuando no erro, continuará a ver a dispersão continua do seu rebanho, o retrocesso, aqui, da religião que pretende ser representante. O futuro mostrar-lhe-ás as consequências da insistência no erro470.

O futuro mostrou que o bispo estava certo e o cronista errado. Entre os “palotinos” que ficaram estava o novo vigário, o Pe. Caetano Pagliuca, que assumiu em janeiro de 1901 e foi rompendo as resistências que havia contra a Igreja e os palotinos. Sua atuação foi mudando o teor das publicações realizadas pelo “O Combatente”. Entre 1901 e 1902, os dois primeiros anos de sua atuação como vigário, a propaganda anticlerical realizada pelo jornal era intensa, mas foi diminuindo em 1903 e 1904. Alguns fatores foram determinantes para essa mudança de postura do periódico. A mais importante delas foram as obras dirigidas pelo padre Caetano Pagliuca. Logo no início de sua atuação, criou a Escola São Luís e foi responsável pela vinda dos irmãos maristas, que também criaram sua escola. Paralelo a atividade educacional, deu início à construção da Igreja Matriz, fato que uniu a cidade, pois era um desejo antigo da população. A iniciativa de construção de uma igreja surgiu com a (re) fundação da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, em 1891. No dia 25 de dezembro daquele ano, no “vasto salão da casa do Snr. Moraes Chaves, teve lugar uma seleta reunião de muitas senhoras de nossa sociedade. Essa reunião teve por fim constituir a Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de nossa cidade”. Foi eleita uma diretoria provisória composta pela “Presidente, D. Anna F. Moraes; Secretária, D. Francisca P. de Moraes; Tesoureira, D. Anna B. Pinto; Diretoras, D.D. Amalia K. Weinmann, Joana Calasans, Leopoldina Weinmann, Manuela Rodrigues e Alice Outeiral”. Essa irmandade “além de celebrar todos os anos uma festa” tinha por “principal objetivo construir uma igreja”471. Alguns meses depois, (maio de 1892) o jornal “O Combatente”, mesmo com sua propaganda contra o catolicismo ultramontano, iniciou uma campanha a favor da construção da Igreja Matriz, alegando que “sem a construção de uma igreja – Santa Maria jamais alcançará a benemerência da culta civilização”472. Justificaram que nada os impelia a tratar do assunto “a não ser o desejo que temos de ver nossa localidade progredir, de vê-la civilizada finalmente”473. Uma comissão tinha sido formada para a construção da igreja, composta pelos “Srs. Pedro Weinmann, Fructusoso Fontoura, João Appel Primo e Dr. Raimundo Alexandre Pereira e as Exmas. Sras. DD. Amália Kessler Weinmann, Anna Becker Pinto, Anna Ferreira de Moraes e Maria Luiza Haag Beck”474. O encarregado de fazer o orçamento do edifício foi o 470. O Combatente. 30 de dezembro de 1900, Ano XIV, n. 104. ACMEC. 471. O Combatente. 10 de janeiro de 1892, Ano VI, n. 02. ACMEC. 472. O Combatente. 15 de maio de 1892. Ano VI, n. 18. ACMEC. 473. O Combatente. 15 de maio de 1892, Ano VI, n. 18. ACMEC. 474. O Combatente. 12 de junho de 1892, Ano VI, n. 22. ACMEC.


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agrimensor Cap. Kurt Vicent Daberkow. Os alicerces do projetado templo seriam construídos pela família Appel e o telhado pelo major Pedro Weinmann, além das pedras oferecidas por Ernesto Beck475. Apesar da empolgação inicial, do apoio do jornal e de importantes lideranças maçônicas, o empreendimento não foi adiante e a Irmandade de Nossa Senhora da Conceição deixou de existir. Dez anos depois, sob a liderança do padre Caetano Pagliuca, a construção da Igreja Matriz mobilizou novamente a cidade. Embora alguns de seus cronistas tenham feito críticas à construção da “majestosa” Matriz, os redatores de “O Combatente” afirmaram que não seriam eles que iriam “entorpecer a marcha”, ao contrário, desejavam a construção do templo, pois a cidade seria “embelezada por mais um soberbo edifício”476. As listas de donativos para a construção tornaramse comuns nas páginas do jornal, com doações de todos os grupos sociais. O “venerável mestre” (da loja maçônica Paz e Trabalho) major Pedro Weinmann, que havia se comprometido com a doação do telhado em 1892, manteve sua promessa e configura na lista de doações477, assim como diversos membros da maçonaria. Até mesmo, Adolfo Otto, Brickmann, irmão do diretor e proprietário de “O Combatente” fez a doação de 10 mil réis478. Entre as doações estava também o “dinheiro recebido da Exma, Srª D. Anna B. Pinto, proveniente de mensalidades da extinta Irmandade da Conceição” no valor de 2.826$000 réis479. A Irmandade de Nossa Senhora da Conceição voltou a ser reorganizada em 1903, agora para auxiliar na construção da igreja: Para a construção da igreja continuam a concorrer com donativos os numerosos fieis existentes neste município. Distintas exmas. famílias católicas desta cidade constituíram-se em associação religiosa, para auxiliarem mais eficazmente a desejada elevação do respeitável templo. A joia é de 5$. e a contribuição mensal de 1$., contando o grêmio católico um grande número de sócias. A associação tomou o nome de Irmandade de Nossa Senhora da Conceição e a sua diretoria ficou assim constituída: Presidente: Conceição Vauthier; vice-presidente, Pudica Weinmann; tesoureira, Aura P. de Azevedo; 1ª secretária, Anita Ferreira da Silva; 2ª dita, Picucha di Primio; oradora Maria Philbert480.

O padre Caetano Pagliuca estava conseguindo mobilizar diferentes setores da sociedade e aproveitava-se disso para fortalecer sua presença na sociedade santamariense e controlar as instituições religiosas da cidade. A construção da igreja foi o 475. O Combatente. 19 de junho de 1892, Ano VI, n. 23; 26 de junho de 1892, ano VI, n. 24. ACMEC. 476. O Combatente, 08 de maio de 1902. A comissão responsável por angariar fundos para a construção de igreja era composta pelo coronel Antero Correa de Barros, Dr. Gustavo Wauthier, cap. Daniel Fernandes, Amadeu Weinmann, cap. Augusto José de Seixas, Padre Pagliuca e Annibal de Primio (O Combatente. 25 de maio de 1902. Ano XVI, n. 1012. ACMEC). 477. O Combatente. 01 de junho de 1902, Ano XVI, n. 1014. ACMEC. 478. O Combatente. 01 de junho de 1902, Ano XVI, n. 1014. ACMEC. 479. O Combatente. 29 de maio de 1902, Ano XVI, n. 1013. ACMEC. 480. O Estado. 23 de maio de 1903, Ano VI, n. 40. AHSM.


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argumento utilizado pelo vigário Pagliuca para controlar uma das mais importantes manifestações religiosas de Santa Maria, a Festa do Divino Espírito Santo. A organização da festa era totalmente realizada pelos leigos, onde o sacerdote tinha papel secundário. Todas as atenções eram direcionadas ao “Imperador-festeiro”, como ele conduzia a festa e agradava as elites e a população em geral. A cada ano, no final dos festejos, era sorteado o responsável pela organização no ano seguinte (além do Imperadorfesteiro, eram escolhidos o Capitão do Mastro, o Tenente da Fogueiras e o Alferes das Bandeiras). Em 1903, o sorteio não foi realizado, pois ficou “encarregada de promover a festa a comissão diretora da construção da igreja” como até então tinha sido feita pelos festeiros, e caso restasse algum “saldo”, seria revertido para as respectivas obras481. Em 1904, a comissão mandou publicar o seguinte comunicado: Tomamos o compromisso de fazermos duas festas por ano, cujo produto, atenta a mais rigorosa economia, fosse aplicado na construção da Igreja Católica desta cidade, tivemos em vista não sacrificar a População com pedidos constantes (...). Dividimos o ano em duas épocas – Maio e Dezembro – no intuito de fazermos do Divino Espírito Santo e de Nossa Senhora da Conceição os protetores de nossa causa. Faremos as festas em seu tempo certo, sempre que seja possível, oferecendo ao Povo um divertimento tradicional, aos indiferentes uma festa, simplesmente, ao mesmo tempo que assinalamos mais um marco progressivo da religião para os crentes, no ensejo que lhe proporcionamos de se aproximarem de Deus pelo espírito da prática fervorosa da oração consciente em seu templo482.

A Festa do Divino, a partir dessa publicação, passou a ser organizada pela comissão da construção da igreja e controlada pelo padre Pagliuca. Além disso, a comemoração de Nossa Senhora da Conceição passou a ter um destaque central no calendário religioso da cidade. Em contrapartida, as celebrações tradicionais do Divino e do Campestre de Santo Antão foram perdendo espaço. Uma nova “sensibilidade religiosa” foi sendo construída e dirigida pelos padres palotinos, de acordo com os princípios ultramontanos. O trabalho de construção da Igreja Matriz progrediu e ela foi inaugurada no dia 08 de dezembro de 1909483. Paralelo a construção da Igreja Matriz, o padre Caetano Pagliuca investiu sua energia na fundação de instituições, que ganharam destaque nas páginas dos jornais, inclusive de “O Combatente”. Em 1904, na festa de premiação dos melhores alunos do Colégio São Luiz, o Intendente Municipal Dutra Villa, responsável pela entrega dos prêmios, classificou o padre Pagliuca, fundador do colégio, como “benemérito de Santa Maria”484. Em 1907, o jornal “A Tribuna” 481. O Combatente. 24 de maio de 1903, Ano XIII, n. 1116. ACMEC. 482. O Combatente. 13 de novembro de 1904. Ano XVIII, n. 1270. ACMEC. 483. Sobre a construção da Igreja Matriz e o seu papel na política ultramontana, ver BIASOLI, 2011. 484. O Combatente. 15 de dezembro de 1904. Ano XVIII, n. 1279. ACMEC.


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noticiou que Caetano Pagliuca, “este virtuoso sacerdote”, recebera, há tempos, ordem de seguir para Roma, removido dessa paróquia. Essa notícia contrariou a população de toda a cidade, pois o padre Caetano, pelas suas virtudes, pela sua dedicação e ameno trato havia conquistado gerais simpatias”. O Dr. Astrogildo de Azevedo dirigiu uma carta endereçada “ao nosso ministro junto ao Vaticano” solicitando o seu empenho para conseguir a permanência do vigário em Santa Maria. A resposta do ministro garantiu que “permaneceria aqui o virtuoso sacerdote. Parabéns a cidade de Santa Maria”485. Se o clero tinha seus adversários, tinha também seus aliados. As expressões utilizadas para classificar o clero de Santa Maria estavam mudando. O padre foi ocupando espaços fundamentais no desenvolvimento da cidade. Com participação direta ou indireta foi fundando escolas, criando hospitais, construindo igrejas, realizando obras assistenciais, obtendo aliados e fazendo uma intensa propaganda católica. Foi transformando-se em “benemérito”, “estimado” e virtuoso”. Imagem 18 – Padre Caetano Pagliuca

Fonte: Revista do Centenário de Santa Maria - 1914

A Festa do Divino estava sob o controle da comissão da construção da Igreja Matriz e dirigida pelo padre Pagliuca, mas era preciso centralizar nas mãos do clero outras manifestações religiosas. Na mira do vigário, estava a 485. A Tribuna. 20 de abril de 1907, Ano I, n. 7. AHSM.


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Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. O jornal “A Tribuna”, de outubro de 1907, indica também a atuação do vigário diante da festa de Nossa Senhora do Rosário. O jornal noticiava: “A festa, que está sendo dirigida pelo estimado e virtuoso sacerdote Caetano Pagliuca, realizar-se-á domingo próximo, contando de missa solene e procissão”486. Além de adjetivar de “estimado” e “virtuoso”, o periódico informava que a festa estava sendo “dirigida” pelo vigário. Esta tentativa de direção e controle da Irmandade levou a um grave embate entre Caetano Pagliuca, o bispo e os irmãos do Rosário. A partir de 1912, Caetano Pagliuca passou a ter a interlocução de Dom Miguel de Lima Valverde, que com a criação da diocese de Santa Maria, tornou-se o primeiro bispo da cidade. A diocese foi criada em 1910, mas o bispo assumiu somente em 1912. Os adversários da Irmandade eram poderosos.

8.1 A IRMANDADE DO ROSÁRIO VERSUS CAETANO PAGLIUCA Em outubro de 1913, os irmãos do Rosário escolheram uma nova mesa administrativa para gerir os destinos da Irmandade. Para presidente, foi eleito Ignácio Martins Garcia e seu vizinho, José Olegário Pires, o vice-presidente. Os demais membros eleitos eram: Secretário: Pe. José Iunges; Tesoureiro: Pe. Caetano Pagliuca; Mesários: Antônio Gabriel, José Nascimento, José Barboza de Lima e Octacílio dos Santos e Zelador: Adão Gabriel487. Essa diretoria estava iniciando um mandato que geraria um conflito que definiria o futuro da associação. Nesse momento, cargos fundamentais na sua estrutura administrativa, como a de secretário e tesoureiro, já estavam sob o domínio do clero488. O Presidente Ignácio Martins Garcia nasceu em São Vicente do Sul, entre meados da década de 1850 e início da década de 1860489, filho legítimo de Luiz Garcia e Dona Maria Martins da Conceição. Em Santa Maria, casou-se com Ambrosina Alves, natural de Bagé, filha de José Alves da Silva e Luiza Ferreira da Silva. O casamento religioso490 ocorreu no dia 10 de maio de 1911. Ignácio tinha aproximadamente 50 anos e Ambrosina 40 anos de idade. O casamento religioso foi a oficialização de uma relação conjugal que já existia há muitos anos. O casal teve uma filha chamada Alzira Silva, que casou com Ananias Barboza, em 1903. Embora tenha realizado o seu casamento religioso antes 486. A Tribuna. 05 de outubro de 1907, Ano 1, n. 54. AHSM. 487. Boletim Mensal. Diocese de Santa Maria, novembro de 1913, Ano III, n. 3, p. 39. AMSSM. 488. Novamente os cargos de tesoureiro e secretário estavam nas mãos de indivíduos brancos. 489. Se utilizarmos como referência o seu registro de óbito, Ignácio Martins Garcia teria nascido em 1855 (Livro de óbito n. 01. Santa Maria, p. 141. APERS). Mas, de acordo com seu assento de casamento, nasceu em 1861 (Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Casamento n. 8 – 1901/1923. ACSM). 490. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Casamento n. 8 (1901-1923), p. 83v.-84. ACSM.


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mesmo de seus pais, Alzira foi identificada como filha legítima tanto no processo da habilitação do casamento civil, quanto no assento de casamento religioso. Ananias nasceu em Cruz Alta, no dia 05 de junho de 1882, pardo, filho natural de Marciana, escrava de Thereza Christina Barbosa491. Ananias Barbosa também era membro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Ignácio Martins Garcia e Ambrosina Alves moravam na rua Floriano Peixoto, entre a rua Ipiranga e rua do Ipê (atual Av. Presidente Vargas e Av. Medianeira), onde possuíam “um terreno com casa de tábua e benfeitorias (...), medindo 40 metros de frente e fazendo fundo a uma sanga próxima, e dividido pelos lados com terrenos de José Olegário Pires e dr. Ezequiel D. Silva”492. Em 1905, solicitou à Intendência Municipal a licença necessária para a construção de “uma casa de tábuas e zinco”493, onde passou a residir. O vizinho e vice-presidente da Irmandade do Rosário, José Olegário Pires, nasceu em Cruz Alta, em 05 de março de 1886, filho natural de Josepha Maria da Dores. Em 1923, casou com Orisontina Silva, natural de Itaqui, nascida em 05 de abril de 1906494. José Olegário Pires era comerciante, atuando no mercado de carnes495 e participava também de outras associações negras496. O ano de 1914 foi muito difícil para o presidente Ignácio Martins Garcia. No dia 30 de agosto, faleceu sua esposa Ambrosina Alves Garcia, parda, com 45 anos de idade, de hemorragia cerebral497. Em 05 de outubro faleceu seu genro Ananias Barboza, de tuberculose pulmonar, com 33 anos de idade, pardo e carpinteiro498. Em 1911, já havia falecido a neta Sílvia, com 2 anos de idade, filha de Ananias e Alzira499. Além dos dramas familiares, o presidente Ignácio Martins Garcia teve que enfrentar os conflitos que dividiram a Irmandade do Rosário e um processo judicial movido contra o padre Caetano Pagliuca, que atraiu o interesse e movimentou toda a cidade. 491. Foram testemunhas no processo de habilitação de casamento, Germano Hoffmeister e João Appel. O casamento civil foi realizado na casa de Flaubiana Carpes. Processo de habilitação de Casamento. Ananias Barboza e Alzira Silva. Santa Maria, 1903. APERS. 492. Inventário Post Mortem. Ambrosina Alves Garcia. Santa Maria. 1915. n. 109, M. 2. APERS. 493. Requerimento. Fundo Intendência Municipal. Caixa 08, Tomo 41. AHSM. Em 1904, Ignácio Martins Garcia comprou de Maria Henrique Cezar o terreno n. 27, da quadra 36, por 250 mil réis (Requerimento. Fundo Intendência Municipal. Caixa 06, Tomo 36. AHSM). Em 1912, transferiu este terreno para Zulmira Seixas pelo valor de 200 mil réis (Requerimento. Fundo Intendência Municipal. 1905, Caixa 14, Tomo 72. AHSM). 494. Habilitação de casamento. José Olegário Pires e Orisontina Silva. Santa Maria. 1923. APERS. 495. Existem pelo menos dois recibos de pagamentos de carne “para a matança de cães”, emitidos pela Intendência Municipal e nome de José Olegário Pires (Documentos de Caixa. Fundo Intendência Municipal. Caixa 91, Tomo 552). 496. Franciele Oliveira (2017, p. 301) encontrou José Olegário Pires fazendo parte do conselho fiscal da Sociedade Carnavalesca 77777. 497. Inventário Post Mortem. Ambrosina Alves Pereira. Santa Maria.1915, n. 109, M. 2. APERS, p. 06. 498. Habilitação de Casamento. João Ferreira e Alzira Barboza. 1917, p. 06. APERS. Alzira Barbosa casou novamente com o jornaleiro João Ferreira em 1917. O noivo era filho de Manoel Ferreira do Nascimento, falecido em Rio Grande em 1901, e de Rosalina Ferreira, falecida em Bagé em 1900 (p. 02). 499. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de óbitos n.3 (1895-1925), p. 32v. APNSC-SM.


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O vigário Caetano Pagliuca, como legítimo representante do pensamento ultramontano, procurou centralizar todas as ações do catolicismo na cidade sob a direção do clero. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário também estava no seu projeto de controle das instituições leigas. Por isso, ingressou na Irmandade e passou a fazer parte de sua diretoria. Em 1913, o padre Pagliuca redigiu um novo estatuto, fazendo mudanças significativas que descaracterizaram os fins e objetivos originais da instituição: Art. 1º – A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da cidade de Santa Maria, tem por fim honrar a Maria Santíssima debaixo da invocação da Rainha do Rosário, e promover entre seus membros a verdadeira devoção que consiste na pratica sincera da vida cristã. Art. 2º - Fará, de acordo com a autoridade eclesiástica e no modo como ela entender, os atos e festas do culto católico e zelará para a boa conservação da Capela de Nossa Senhora do Rosário, sede social da mesma Irmandade. (...) Art. 4º - Poderá pertencer a Irmandade do Rosário toda a pessoa do sexo masculino ou feminino, desde que possua os seguintes requisitos: a) ser católica apostólica romana; b) ter bom comportamento civil e religioso, não pertencendo a seitas ou sociedades secretas, qualquer que seja a sua denominação; c) não ser casado só civilmente, nem pecador público, concubinário ou dado a outros vícios aviltantes; d) não ser turbulento ou semeador de discórdias; e) praticar habitualmente a religião, recebendo os sacramentos da Penitência e Comunhão, sobretudo no tempo pascoal. (...) Art. 28 – O patrimônio da Irmandade do Rosário consta, atualmente, de três terrenos que lhe foram cedidos, sem ônus algum, pela municipalidade, e a capela construída nos mesmos terrenos, situados à rua 24 de maio, desta cidade, podendo a Irmandade adquirir no futuro outros bens que julgar conveniente. Art. 29 – Sendo a Irmandade uma corporação religiosa, fazendo parte da Igreja Católica, declara que estes bens ela tem simplesmente a administração e o usufruto, não podendo em modo algum, dispor, sem previa autorização da autoridade eclesiástica competente. (...) Art. 32– Esta Irmandade nunca assumirá, nem exercerá a personalidade jurídica, sem previa e expressa autorização do Ordinário Diocesano500.

A Sociedade Beneficente Irmandade do Rosário, como já apresentamos no capítulo 06, foi criada com o objetivo de dar proteção, instrução e garantir o culto a Nossa Senhora do Rosário. No novo estatuto, os aspectos sociais e beneficentes foram excluídos e substituídos por um caráter exclusivamente religioso e devocional. O desejo de controle do clero estava presente em diversos artigos do estatuto, inclusive sobre os atos e festas de culto religioso que deveriam ser realizados “de acordo com a autoridade eclesiástica e no 500. PROCESSO judicial movido pela Irmandade do Rosário. O Compromisso da Irmandade reformado pelo Padre Caetano encontra-se anexado ao Processo de Esbulho. AFSM.


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modo como ela entender”. A seleção dos integrantes passou a ser feita de forma rigorosa, priorizando as características morais dos irmãos, que deveriam praticar habitualmente a religião, não ter vícios aviltantes, não ser turbulento, não pertencer a sociedades secretas e não viver em concubinato (amasiamento). A pressão do clero sobre o casamento fez com que alguns irmãos do Rosário realizassem a cerimônia religiosa depois de longos anos de união civil ou de relacionamentos estáveis. O presidente Ignácio Martins Garcia, como vimos, realizou seu casamento religioso em 1911, mas já tinha uma relação estável com a esposa por pelo menos 20 anos501. Osório Nunes do Nascimento, que conhecemos no capítulo anterior, realizou seu casamento religioso em 1913, mas era casado civilmente com Maria Manoela desde 1898. Raphael José da Silva viveu “amasiado” uns quarenta anos com Marianna Eugênia da Silva502. No dia 28 de abril de 1918, realizou o rito católico do matrimônio e 12 dias depois faleceu503. Estava com 75 anos e não quis terminar seus dias sem a benção do padre. Raphael José da Silva morava na rua Riachuelo em um terreno que ocupou com Marianna em 1885. Em 1892, ambos solicitaram o aforamento do local. Marianna, no requerimento que enviou à Intendência solicitando o terreno nº 3, da quadra 41, julgava “ter preferência no dito terreno, visto que há sete anos lhe foi entregue o dito terreno para cuidar e ela de boa vontade e fé cercou e plantou legumes e arvoredos, como prova o que existe no terreno (...)”504. Raphael fez o mesmo e solicitou o terreno ao lado, o de nº 4, justificando que o terreno estava ocupado há sete anos “na suposição errônea de tê-lo obtido legalmente e sabendo agora que para poder ficar com o mencionado terreno é preciso requerer por aforamento perpétuo, por isso, pede que lhe seja cedido o dito terreno (...)”505. O agrimensor Otto Brinckmann anotou no requerimento “o terreno (...) se acha devoluto, embora que esteja cercado, plantado e até com casa de moradia, pois nunca foi concedido, como prova o livro do cadastro (...)”506. 501. A filha do casal nasceu por volta de 1890, o que indica a longevidade da relação entre Ignácio e Ambrosina Alves Garcia. 502. “Aos vinte e oito de abril de mil novecentos e dezoito receberam-se em matrimônio perante o P. Wimmer e as testemunhas Thomé Alves do (Messia ?) e Augusto de Araújo Silva, os Srs. Rafael José da Silva e Marianna da Silva, ele com setenta anos e filho lº [legítimo] de Fausta de Jesus da Silva e Manuel Ignácio da Silva, natural de Porto Alegre, ela com cinquenta e cinco anos, filha de Engracia Conceição, natural desta paróquia, amasiados uns quarenta anos, tem seis filhos: Lucrecia com 39 a. [anos], Eugenia, 38 a., Maria Candida, 25 a., Diamantina, 19, João, 30, Otília, 24 anos de idade, agora legitimados. Em fé: o cura P. Caetano Pagliuca”. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Santa Maria. Livro de Casamentos n. 8 (1901-1923), p. 199v.200. ACSM. 503. “Aos dez de maio de mil novecentos e dezoito foi encomendado o corpo de Raphael José da Silva, casado, falecido ontem, setenta e cinco anos, sacramentado. Em fé: o cura P. Caetano Pagliuca”. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Livro de Óbitos n. 3 (1895-1925), p. 94. ACSM. 504. Requerimento. Marianna Eugênia da Silva. Fundo Junta Intendêncial. Caixa 01, Tomo 05. AHSM. 505. Requerimento. Raphael José da Silva. Fundo Junta Intendêncial. Caixa 01, Tomo 05. AHSM. 506. Requerimento. Raphael José da Silva. Fundo Junta Intendencial. Caixa 01, Tomo 05. AHSM. No requerimento enviado por Marianna Eugênia da Silva, o mesmo agrimensor observou que o terreno “se acha devoluto, embora que se acha cercado e plantado”.


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Raphael e Marianna usaram da estratégia de enviar requerimentos separados para legalizar a área que haviam ocupado e de onde obtinham parte de sua subsistência, uma vez que plantavam “legumes e arvoredos”. A atividade profissional de Raphael da Silva era a de pedreiro507. Com essa atividade, teve participação na construção da Capela do Rosário onde dedicava “um dia de trabalho por semana”508. Ele participou de pelo menos três associações negras. Foi um dos fundadores da Irmandade do Rosário, participou da Sociedade Treze de Maio e, em 1898, foi tesoureiro da Sociedade Cravo e Rosa509. Sua participação foi intensa na organização dos negros no pós-abolição e viu, nessas associações, o caminho para a proteção social e religiosa, diante de uma sociedade marcada pelo preconceito e por uma liberdade ainda precária e incerta. O seu casamento religioso depois de 40 anos e o de seus companheiros de associação demonstram a existência de um maior rigor doutrinário implantado pelo vigário Caetano Pagliuca. Rigor que ficou expresso no novo estatuto da Irmandade. O controle eclesiástico também se manifestava contra o pertencimento a “seitas ou sociedades secretas”, o que ocasionava a perda do “direito de irmão” (art. 10). Nesse caso, a referência principal era a maçonaria, que já havia motivado muitos debates e conflitos entre o clero e os maçons. Vários documentos publicados pelo Vaticano proibiam as relações entre católicos e maçons, especialmente as encíclicas Quanta Cura (e o seu anexo Syllabus) promulgada em 8 de dezembro de 1864 (Pio IX) e Humanum Genus, de 20 de Abril de 1884 (Leão XIII). No período imperial, o enfrentamento entre a Igreja Católica e a maçonaria desencadeou no conflito que ficou conhecido como “Questão Religiosa”. Embora outros fatores estivessem envolvidos, o centro do conflito foi a proibição dos maçons de participarem das irmandades religiosas, determinada pelos bispos de Olinda, Dom Vital de Oliveira, e do Pará, Dom Antônio de Macedo Costa. Pelo regime do padroado, tais determinações deveriam ter o beneplácito (aprovação) do imperador, o que não havia ocorrido, gerando um conflito entre a Igreja e o Estado. Os bispos preferiram seguir as orientações romanas, não reconhecendo a autoridade de D. Pedro II para censurá-los. Os bispos foram condenados à prisão por insubordinação e o impasse somente terminou com um acordo entre o imperador e o papa. A relação entre o clero e os membros da maçonaria também viveu momentos de tensão em Santa Maria, como vimos no início deste capítulo. 507. Raphael José da Silva fazia parte da lista de eleitores publicada pelo jornal “O Combatente”, do dia 05 de setembro de 1897, que o apresenta com “47 anos, filho de Manoel Ignácio da Silva, solteiro, pedreiro” (O Combatente. 05 de setembro de 1897. Ano XI, n. 36. ACMEC). Em 1913, realizou o conserto e a reconstrução do edifício da Subintendência de São Martinho (Documentos de Caixa. Fundo Intendência Municipal. Caixa 19, Tomo 99. AHSM). 508. O Combatente. 14 de dezembro de 1899. Ano XIII, n. 100. ACMEC. 509. O Estado. Santa Maria. 16 de abril de 1898. Ano 1, n. 31. ACMEC.


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Ainda sobre as mudanças do estatuto da Irmandade do Rosário, queremos ainda nos reportar aos artigos de nº 29 e 32 que destacamos na citação anterior. O artigo 29 do estatuto do padre Pagliuca deixou de ser uma instrução normativa, como é característica desses documentos, e assumiu o requisito de declaração, no qual os seus integrantes afirmam que não usarão de suas propriedades sem a interferência de um elemento exterior, a autoridade eclesiástica. No artigo 32, a Irmandade sabia que era uma entidade independente e com personalidade jurídica, mas, mesmo assim, colocou em seus estatutos que não assumiria tal condição sem o aval do poder eclesiástico. O Padre Caetano Pagliuca afirmou que os novos estatutos redigidos por ele foram “discutidos em Assembleia Geral e por todos assinados sem coação alguma”510. É difícil imaginar que uma sociedade declararia livremente que deixaria de usufruir de seus direitos e que delegaria esses direitos a outrem. O vigário Pagliuca tinha por objetivo fortalecer a presença eclesiástica na cidade e nas instituições religiosas, assumindo a direção de qualquer atividade leiga que possuísse ligações com o catolicismo. Essa interferência gerou um grave conflito na Irmandade do Rosário que dividiu a instituição e provocou enorme repercussão na cidade. No dia 03 de outubro de 1914, os membros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário se reuniram para a escolha da nova diretoria da associação. Antes da Assembleia Geral convocada para a eleição, uma sessão extraordinária foi realizada para analisar o seguinte ofício: Ilmo. Sr. Presidente e mais membros da diretoria da Irmandade do Rosário. Os abaixo assinados, sócios fundadores e efetivos da Irmandade do Rosário, tendo ficado atrasados no pagamento de sua contribuição como sócios que são da referida Irmandade, vem coletivamente pedir a essa diretoria que lhes seja perdoado o seu débito visto como até agora não lhes consta ter sido feita a sua eliminação, para os efeitos de serem os infra escritos desde logo investidos de todos os deveres e direitos conferidos aos irmãos. Santa Maria, 18 de setembro de 1914511.

O documento foi encaminhado por Rafhael José da Silva, Saturno de Almeida Falcão, Maurício Garcia, Firmino José Vidal, Sisnando de Oliveira, Jacintho Cezar de Souza, Maurício de Oliveira, Ovídio Vicente do Prado e Paulino Antônio dos Santos. Da diretoria, estavam na Assembleia o presidente Ignácio Martins Garcia, o vice-presidente José Olegário Pires, o Procurador Pedro Valença, o zelador Ernani do Nascimento e os mesários Octacílio dos Santos e José Francisco do Nascimento,

510. Depoimento do padre Caetano. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 62. AFSM. 511. Ata. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 52-52v-53. AFSM.


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tendo deixado de comparecer o secretário Ananias Barboza que se achava doente512, o tesoureiro Caetano Pagliuca, os mesários Adão e Antônio Gabriel, “estes três últimos por terem se retirado descontentes da última sessão”513. Com a ausência do secretário Ananias Barboza, o presidente convidou o mesário José Francisco do Nascimento para ler o ofício, submetendo-o a apreciação da mesa, a qual considerando justo o pedido daqueles sócios, todos eles de grandes serviços prestados a Irmandade resolveu unanimemente satisfazer o seu pedido conferindo-lhes todos os direitos desde que os mesmos se obrigassem a cumprir d’ora em diante os deveres sociais, cientificados os peticionários que se achavam quase todos no recinto da Igreja, estes aceitaram a decisão sendo por isso admitidos a votar e ser votados na próxima sessão de Assembleia Geral a realizar-se em seguida514.

Depois do perdão dos débitos dos antigos sócios, foi realizada a Assembleia Geral para a escolha da nova diretoria. Iniciando a sessão, “o presidente explicou o incidente havido na última reunião de Assembleia Geral e pediu aos irmãos que se harmonizassem e trabalhassem pela Irmandade, disse que o tesoureiro se havia retirado desgostoso da última sessão, mas que ele merecia ser reeleito, menos os mesários Antônio e Adão Gabriel, porque estes eram a causa de toda a desavença na Irmandade”. Depois disso, o mesário José Francisco do Nascimento levantou-se e “pediu a reeleição de toda a diretoria pondo-se em lugar de Antônio Gabriel e Adão Gabriel os antigos sócios fundadores Raphael José da Silva e Saturno de Almeida Falcão, que ali se achavam honrando aquela sessão”. A Assembleia aprovou a proposta, sendo assim eleita a seguinte diretoria para o ano de 1914 e 1915: Ignácio Martins Garcia, presidente; José Olegário Pires, vice-presidente; Ananias Barboza, secretário; Pe. Caetano Pagliuca, tesoureiro; Pedro Valença, procurador; Ernani do Nascimento, zelador; e os mesários Octacílio dos Santos, Raphael José da Silva, Saturno Almeida Falcão e José Francisco do Nascimento515. A Irmandade do Rosário estava passando por um processo de divisão interna. Não sabemos qual foi o incidente ocorrido na sessão anterior, apenas o fato de que o vigário havia saído “desgostoso” da reunião. Mesmo assim, os irmãos apostaram na permanência do padre na sua instituição, uma vez que ele já havia adquirido um certo prestígio entre os católicos da cidade. A culpa pelas “desavenças” foi colocada mesmo nos gêmeos Antônio Gabriel e Adão Gabriel, que foram alijados da direção da Irmandade. Eles não mereceram a 512. Como vimos anteriormente, Ananias Barboza era genro do presidente Ignácio Martins Garcia e faleceu de tuberculose, no dia 05 de outubro de 1914, dois dias depois da realização desta Assembleia. 513. Ata. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 54. AFSM. 514. Ata. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 52-52v. AFSM. 515. Ata. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 53-54v. AFSM.


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mesma consideração que foi dada ao vigário Caetano Pagliuca. Em nenhum momento o documento menciona os motivos pelos quais os irmãos gêmeos foram culpados pela discórdia na Irmandade do Rosário. Talvez existisse uma proximidade entre Antônio e Adão com o padre Caetano, e eles podiam estar fazendo a defesa das ideias do sacerdote no interior da associação religiosa. O bispo de Santa Maria, D. Miguel de Lima Valverde, não reconheceu a diretoria eleita e publicou a seguinte portaria no dia 27 de outubro de 1914: Ora, considerando que a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, desta cidade de Santa Maria, tem aberrado de um dos fins que lhe são próprios convertendo-se em pomo de discórdia entre irmãos, em vez de ser o vínculo da caridade entre eles; considerando que a divisão dos ânimos chegou a tal ponto que se deve temer sério perigo na reunião de Assembleia Geral, que seria preciso convocar para a eleição da nova mesa, a qual já devia estar eleita e empossada, como mandam taxativamente os estatutos, e não o foi até agora, porque se previa a repetição das cenas desagradáveis que se deram na última reunião legal, efetuada no mês de setembro próximo findo; considerando mais o número reduzido de irmãos nas condições exigidas pelo art. 23, cap. XIV dos mesmos estatutos, Havemos por bem, usando da Nossa jurisdição ordinária, nomear uma comissão composta dos irmãos, os Srs. Joaquim Francisco de Araújo, Presidente; Augusto de Araújo, secretário; P. Caetano Pagliuca, Tesoureiro e Octacílio dos Santos, Procurador, para administrar a dita Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, desta cidade de Santa Maria, pelo tempo que for necessário afim de bem constituí-la e organizá-la de acordo com os respectivos estatutos aprovados. Especialmente incumbirá à Comissão que vimos de nomear: 1º) rever a lista dos atuais irmãos, conservando todos e somente aqueles que se resolvam a cumprir com os deveres compromissais; 2º) a promover a entrada de novos irmãos bons, zelosos e tementes a Deus; 3º) tomar conta à última administração, remetendo-as dentro de um mês a nossa Câmara eclesiástica para serem examinadas e aprovadas se o merecem516.

A Irmandade do Rosário estava agora com duas diretorias: uma, formada a partir de sua Assembleia Geral; a outra, nomeada pelo bispo. No dia 08 de novembro de 1914, os seus membros realizaram uma Assembleia Geral Extraordinária para discutir a situação e tomar as decisões necessárias. Às 8 horas da noite, verificando-se a presença da “maioria absoluta de sócios em efetividade”, o presidente tomou assento na mesa, ladeado por todos os membros da diretoria, com exceção do tesoureiro “que deixou de comparecer”, e o secretário cujo cargo estava vago (o falecido Ananias Barboza). O presidente Ignácio Martins Garcia convidou como secretário o irmão José Francisco do Nascimento e depois passou a explicar o motivo da reunião “expondo o modo incorreto como se tem portado o tesoureiro da Irmandade Sr. V. Caetano Pagliuca, que 516. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Janeiro de 1915. Ano III, n. 01, p. 189-190.


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se nega obstinadamente a prestar contas à Irmandade, sonegando-lhes livros, documentos e mais haveres confiados a sua guarda quando em exercício de seu cargo”517. Diante das ponderações do presidente, a Assembleia votou uma moção de solidariedade com a diretoria autorizando-a a agir como melhor entendesse para salvaguardar os interesses da congregação. Também delegou plenos poderes ao presidente para contratar um advogado518. O advogado Demétrio Niederaurer519 então foi contratado para “requerer judicialmente a entrega dos livros e mais documentos e haveres pertencentes à Irmandade Beneficente Nossa Senhora do Rosário e conservados em seu poder pelo reverendo Caetano Pagliuca”520. No dia 21 de dezembro de 1914, o advogado apresentou outros detalhes do conflito na petição inicial enviada ao juiz distrital Walter Jobim. A Irmandade, por meio de seu advogado, disse o seguinte (que resumimos nos seguintes pontos): 1º) Que é proprietária e legítima possuidora da Igreja do Rosário e respectivo terreno; 2º) que a chave da Igreja sempre permaneceu em poder do presidente da Irmandade, que se encarregava da guarda e administração do imóvel referido; 3º) que tendo surgido dúvida entre a diretoria e o tesoureiro da Irmandade, Pe. Caetano Pagliuca, o presidente entendeu confiar a chave do edifício ao delegado de polícia, com o fim de ver se, por intermédio deste, chegavam a um acordo aceitável; 4º) que o delegado em boa fé, deixou a chave com o reverendo Pagliuca para que este a entregasse em mãos de D. Lívia Feliz Menna Barreto521; 5º) que, afastada a esperança de acordo, o delegado de polícia procurou reaver a chave que entregou ao padre, tendo este se recusado a lhe restituir; 6º) que a Irmandade privada da chave da Igreja, acha-se esbulhada da posse que lhe pertence, pois não pode usar o edifício para o exercício do seu culto, estando a diretoria impedida de lá entrar; 7º) que semelhante atentado foi praticado pelo reverendo padre Pagliuca, que abusou da confiança do delegado de polícia; 8º) que em tais condições, quer o 517. Ata. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 4. AFSM. 518. Ata. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 4v. AFSM. 519. Demétrio Niederauer era filho do Coronel Luiz Niederauer e de Leopolda Borges. Casou-se em 1914 com a professora de piano Odemira Barcellos Mariot. Era filha do Tenente Coronel João Mariot e de Vicentina Barcellos Mariot. Demétrio era um jovem advogado, que em 1914, tinha 24 anos de idade. Processo de Habilitação de Casamento. Demétrio Niedereuer e Odemira Barcellso Mariot. Santa Maria, 1914. APERS. 520. Procuração feita por Ignácio Martins Garcia ao advogado Demétrio Niederauer. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 54 p. 06. AFSM. 521. Lívia Menna Barreto era professora, casada com Augusto Menna Barreto e teve três filhos Manoel, Lívia e Florisbela. A família Menna Barreto possuía uma casa na Rua 24 de Maio e um chácara na região onde foi construída a Capela do Rosário. Lívia tinha uma filha com o mesmo nome, que na partilha dos bens do falecido pai tinha 20 anos e ficou com parte da casa e da chácara na rua 24 de Maio. Como os nomes são iguais, ficou difícil identificar na documentação quem era a mãe e quem era a filha. O fato é que Lívia Feliz Menna Barreto (provavelmente a filha) tinha uma participação ativa em diversas associações de Santa Maria, como o Clube Beneficente de Senhoras, a Congregação Mariana, entre outras. A partir de 1929, a chácara foi loteada e transformou-se na “Vila Menna Barreto”.


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suplicante recuperar a posse do imóvel em questão522. A petição do advogado revelou uma tentativa frustrada de negociação entre o vigário e o presidente da Irmandade mediada pelo delegado Octavio Mariense de Lemos523. As relações estavam definitivamente rompidas e o caminho judicial foi a alternativa encontrada pelos irmãos do Rosário para a restituição de sua capela. O juiz distrital Walter Jobim ouviu cinco testemunhas524 e concluiu: “(...) julgo provado o esbulho e determino, seja ao autor restituída a chave da igreja, para que imediatamente na posse da mesma seja emitida, e condeno o réu, Padre Caetano Pagliuca, na indenização dos prejuízos a que tiver dado causa (...)”525. Ojuiz também determinou o prazo para que o vigário apresentasse sua defesa, que, 522. Petição inicial. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 02-02v. AFSM. 523. No seu depoimento, o delegado Octavio Mariense de Lemos confirmou a tentativa de acordo entre o padre e o presidente da Irmandade: “Que tendo surgido dúvidas entre a diretoria e o tesoureiro da Irmandade, Padre Caetano Pagliuca, o presidente Sr. Ignacio Martins Garcia confiou a chave do edifício ao depoente com o fim de obter por seu intermédio um acordo; que o depoente tendo conferenciado com o padre Pagliuca e membros da diretoria da Irmandade do Rosário ficou combinado entre outras coisas que a chave da Igreja do Rosário ficava d’ora em diante depositada em mãos de dona Lívia Feliz Menna Barreto; que nessa ocasião o depoente entregou ao padre Pagliuca a chave para que ele fizesse chegar às mãos da nova depositária dona Lívia Feliz; que o padre Pagliuca de posse da chave não entregou a depositária e nem cumpriu o que combinou com a comissão; que chegando esses fatos ao conhecimento do depoente, este procurou o padre Pagliuca e pediu-lhe a devolução da chave, tendo o referido padre negado-se positivamente de restituí-la; sabendo o depoente que por esse modo a diretoria da Irmandade do Rosário ficou esbulhada da posse da referida igreja, porquanto não pode livremente ali entrar para exercer o seu culto”. O delegado também informou que recebeu a chave da diretoria da Irmandade em fins de novembro e que entregou ao padre em princípios de dezembro. Depoimento do delegado de polícia Otávio Mariense de Lemos. (Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 8-8v. AFSM). 524. As testemunhas ouvidas foram o delegado Octavio Mariense de Lemos, cujo teor do seu depoimento já apresentamos. Luis Fernando Callage (22 anos, jornalista, natural de Santa Maria) disse que sabe que o presidente é o Sr. Ignacio Martins Garcia, o qual se encarregava da administração e conservação da igreja, que após a desavença o presidente confiou a chave ao delegado de polícia, pedindo a este que propusesse um acordo com a padre. Assistiu este ato na casa do delegado de polícia e ficou combinado que a chave ficaria com D. Lívia Feliz Menna Barreto. O delegado entregou a chave ao padre para que ele entregasse a D. Lívia. O acordo não chegou a realizar-se e o padre negou-se a entregar a chave ao delegado de polícia, para que este entregasse ao legítimo detentor, o presidente Ignácio Martins Garcia. Afirmou também que os estatutos da mesma foram devidamente registrados conforme lhe informaram a diretoria. (p. 09V, 10); José Antônio da Silva (29 anos, casado, tipógrafo, natural de Santa Maria) afirmou que sabe que a Irmandade Beneficente Irmandade do Rosário é proprietária e legítima possuidora da Igreja do Rosário e respectivos terrenos, que a chave sempre permaneceu em poder do presidente da igreja. Sobre os estatutos, sabe que existem e que foram registrados, por ouvir dizer pelos membros da diretoria da Irmandade (p. 10, 11); Epiphanio Felippe de Souza (56 anos, casado, capitalista, natural da Bahia, residente em Santa Maria há 46 anos) disse que sabe terem sido os estatutos da referida Irmandade registrados no cartório do tabelião João Gonçalves Caminha, sendo naquele tempo o tesoureiro da Irmandade e o secretário era o Sr. João Appel Primo, que foi quem tratou do serviço do registro. (p. 13); João Appel Primo (52 anos, casado, comerciante, natural de Santa Maria) afirmou que a Irmandade Nossa Senhora do Rosário é pessoa Jurídica, porque na qualidade de secretário da referida Irmandade, há doze ou quatorze anos, foi quem fez registrar os respectivos estatutos no cartório, cujo tabelião não se recorda se era Herculano dos Santos ou João Gonçalves Caminha e que o único exemplar dos estatutos impresso que havia em poder da Irmandade, foi pelo depoente entregue em sessão da diretoria ao seu então substituto legal, padre Caetano Pagliuca (p. 13v) - (Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914. AFSM). 525. Sentença de Walter Jobim. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 16v. AFSM.


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O juiz também determinou o prazo para que o vigário apresentasse sua defesa, que, para isso, contratou os advogados Jacintho Barboza e Ernesto Barros. Na sua defesa, o vigário alegou que o presidente Ignácio Martins Garcia não era parte legítima para propor a ação, pois na época em que constituiu advogado não era mais presidente da diretoria da Irmandade, pois tinha terminado seu mandado em setembro de 1914. De acordo com os estatutos e que o bispo diocesano, chefe da Igreja, em 27 de outubro do ano de mil novecentos e quatorze, havia nomeado uma comissão para dirigir a mesma Irmandade, da qual fazia parte o réu. Também afirmou que a sessão da Assembleia Geral, realizada em 08 de novembro de 1914, não preencheu as formalidades legais, pois figuraram cidadãos que nunca pertenceram a ela, outros que há muito tempo já tinham sido excluídos por falta de pagamento e porque foi feita clandestinamente sem ser convidada a maioria de seus membros526. A Irmandade, por sua vez, procurava provar que era a legítima proprietária dos terrenos e da Igreja do Rosário e que seu presidente e Assembleia eram legítimos. Cada parte procurou apresentar documentos, testemunhas e razões para a sua causa. A divisão entre os irmãos estava definitivamente estabelecida. Registros em cartório de apoio foram realizados de ambos os lados. No dia 19 de janeiro de 1915, Joaquim Francisco de Araújo, Augusto de Araújo, Octacílio dos Santos, Antônio Grabriel Haeffner, Adão Gabriel Haeffner e Bonifácio Medeiros – os três primeiros, Presidente, Secretário e Procurador da comissão nomeada pelo bispo – e os demais também membros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário realizaram a seguinte escritura pública de protesto: (...). E pelos outorgantes foi dito (...) que vem protestar, como protestado fica contra a ação judicial que o Senhor Inácio Martins Garcia, expresidente da aludida irmandade e outros irmãos estão movendo contra o senhor Padre Caetano Pagliuca, no sentido de reaverem as chaves da Igreja do Rosário, propriedades, papeis, etc., e por esta autorizam o mesmo Senhor Padre Caetano Pagliuca a fazer desta escritura prova em favor do seu procedimento que tem sido correto, digno, agindo sempre com justiça e conforme ordens emanadas de autoridade superior. Pelo Senhor Padre Caetano Pagliuca foi dito que aceita esta escritura em todos os seus termos527.

A resposta veio no dia 26 de fevereiro de 1915, com uma escritura pública de solidariedade que fizeram os irmãos Sisnando de Oliveira, Firmino José Vidal, Jacintho Cezar de Souza, Paulino Antônio dos Santos, Claudio Victorino Lopes e Manoel Francisco Guedes em favor da diretoria da Irmandade composta por 526. Contestação. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p.25-25v. AFSM. 527. Escritura Pública de Protesto. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 29v. AFSM.


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Ignácio Martins Garcia, José Olegário Pires, Pedro Valença, Ernani do Nascimento, José Francisco do Nascimento, Raphael José da Silva e Saturno de Almeida Falcão. No documento cartorial, os irmãos confirmam os seguintes atos praticados: 1º - Eleição de diretoria que aqui figura como outorgada em 03 de outubro de 1914; 2º - Posse da mesma diretoria em 25 de outubro do mesmo ano; 3º - Assembleia Geral para protestar contra o Presidente do Padre Pagliuca e anular os estatutos pelo mesmo elaborados, por conhecer que estes eram contra os fins e interesses da Irmandade, em 1 de novembro de 1914; 4º - Delegação de poderes ao presidente Ignácio Martins Garcia para agir em nome da Irmandade em 08 de novembro do referido ano528.

A moção de solidariedade registrada em cartório acabou revelando um pequeno resumo dos acontecimentos até aquele momento. Depois dos documentos reunidos e das testemunhas ouvidas, cada uma das partes apresentou seus argumentos finais. A Irmandade, por meio de seu advogado, insistiu na condição de ser uma pessoa jurídica “e, como tal senhora de si mesma, sem dever submeter-se senão aos atos emanados de sua própria vontade e às leis do país”, na legitimidade da diretoria para propor a ação e na ilegalidade dos estatutos reformados pelo Pe. Caetano Pagliuca529. O advogado do padre argumentou que os estatutos reformados não sofreram nenhum protesto e conclui-se que eles regiam a sociedade. Portanto, “sem incontestável temor de contradição, verifica-se que a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário é religiosa”. E que “as igrejas uma vez sagradas ou bentas, refutam-se dedicadas ao culto divino, são excluídas do comércio, e, quando católicas, devem ser guardadas e administradas pelos bispos”530. Os advogados dos autores e do réu, além das tentativas de validar ou refutar testemunhas, sócios ou documentos, de forma indireta ou secundária, evidenciaram o que estava em jogo neste processo de esbulho. Demétrio Niederauer, nas preliminares de suas “razões finais” (pela autora, a Irmandade), afirmou que sob o ponto de vista do direito adjetivo, a causa não ia além de uma simples ação possessória, comum na prática forense, porém ela se constituía “por um conjunto particular de circunstâncias, um feito interessante, sobre que se tem de pronunciar a justiça de nosso Estado”. E acrescentou: “Considerados bem em si, Autora e Réu, ela é de natureza que o mero ingresso seu em juízo representa 528. Escritura Pública de Múltipla Solidariedade. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 80v. AFSM. 529. Razões Finais – pela autora. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 77-78. AFSM. 530. Razões Finais – pelo réu. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 94v. AFSM. O advogado tinha como base de sua argumentação o Acordão do Supremo Tribunal Federal de 13 de fevereiro de 1897.


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o triunfo perfeito do Humilde sobre o Potentado”531. Enquanto a defesa da Irmandade pretendia dimensionar o significado histórico do fato de um grupo de negros, muitos ex-escravos, enfrentarem a Igreja Católica e seus representantes na defesa de suas conquistas. Ernesto Barros, advogado de Caetano Pagliuca, procurou simplificar o que estava acontecendo e desqualificar seus autores. Escreveu ele nas preliminares de sua defesa: “De resto, ao que nos consta, o fato prende-se a dois contos de réis que a Irmandade possui em mãos do tesoureiro, e que meia dúzia de analfabetos pretende (...) abocanhá-los”532. Depois das razões apresentadas pelo vigário e pela diretoria da Irmandade através de seus advogados, o juiz distrital Walter Jobim, em uma longa exposição, considerou legítima a diretoria, a autoridade do presidente Ignácio Martins Garcia para propor a ação, a condição da Irmandade como Pessoa Jurídica para administrar seus bens, a ilegalidade dos estatutos reformados, a incompetência da autoridade diocesana para interferir na vida econômica das ordens religiosas, que a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário era proprietária e legítima possuidora da igreja do mesmo nome e sentenciou: “Julgo em face do expedido provado o esbulho e determino seja a Irmandade Beneficente conservada na posse da Igreja do Rosário e condeno o Réu nas custas e indenização dos prejuízos causados”533. Enquanto o processo estava em andamento, Dom Miguel de Lima Valverde, preocupado com a posse dos terrenos das capelas de sua diocese, publicou o “Aviso nº 18” nos seguintes termos: Como até o presente, muitas Capelas existentes nesta diocese ainda não tenham cumprido a cláusula de Direito, que manda seja transferida, por escritura pública e sem condição onerosa, à Exma. Mitra episcopal a propriedade do terreno em que estão edificadas, avisamos aos muitos Rvds. Párocos que as ditas Capelas ficarão de ora em diante sujeitas à provisão anual, sem o que não se poderá celebrar nelas a Santa Missa nem outro ato litúrgico, até que que se tenha verificado a cláusula supradita. Santa Maria, 11 de fevereiro de 1915534.

O bispo desejava a escritura púbica dos locais onde estavam construídas as igrejas e ameaçou com a interdição para garantir a sua posse e evitar futuros questionamentos legais. Alguns dias depois, no dia 03 de abril de 1915, foi emitida 531. Razões Finais – pela autora. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 73. AFSM. 532. Razões Finais – pelo réu. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 94. AFSM. 533. Sentença de Walter Jobim. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 96-99v. AFSM. 534. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Ano III, n. 2 e 3. Fevereiro e março de 1915, p. 224. AMSSM.


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a sentença de Walter Jobim, como vimos, mantendo a posse da capela em nome da Irmandade do Rosário. Caetano Pagliuca, inconformado com a decisão do Juiz Distrital, apelou para o Juiz da Comarca e novas razões e justificativas foram apresentadas pelo padre e pela Irmandade. No dia 24 de abril, o Juiz da Comarca, Alberto Rodrigues Fernandes Chaves, proferiu sua sentença, que contrariava a do Juiz Distrital Walter Jobim. Alberto Chaves considerou que o presidente Ignácio Martins Garcia não tinha legitimidade para entrar em juízo, pois seu mandato havia terminado e que o Bispo havia nomeado uma comissão para tomar conta da Irmandade, “sem que houvesse um só protesto” e a “Assembleia Geral realizou-se em desacordo com os estatutos, pois não foram seus sócios avisados ou convidados”535. O juiz também buscou argumentos no direito canônico, nos concílios realizados pela Igreja e na Constituição da República (que proclama a liberdade das confissões religiosas no exercício do seu culto) para justificar “que é de inteira competência do Bispo, como chefe da Igreja na diocese, corrigir e reprimir as faltas que cometerem as confrarias ou associações religiosas fundadas para o serviço católico”536. Também considerou os estatutos reformados como legítimos (pois menciona seus artigos em suas considerações) e reforçou a autoridade dos bispos e dos párocos sobre as associações religiosas. Quanto a posse da Capela de Nossa Senhora do Rosário, considerou que ela “foi ereta por meio de esmolas do povo católico, e que tal peditório, só poderia ser feito sob o apanágio do Bispado”537 e que os bispos são “os guardas e administradores dos templos católicos que forem sagrados e destinados ao culto (...) são de uso comum dos fiéis e não estão no domínio particular de ninguém”538. Diante disso, o Juiz determinou: “dou provimento à apelação para, reformando a sentença apelada, mandar que incontinente seja restituída ao Reverendo P. Caetano Pagliuca, a chave da Capela de N. S. do Rosário, e condeno o apelado nas custas”539. Chegava ao fim mais um de muitos processos envolvendo o clero e as irmandades leigas na disputa pela posse de seus bens. O vigário Caetano Pagliuca colocou em prática o que estava sendo determinado pelo catolicismo ultramontano sobre o lugar e o papel subordinado das irmandades leigas, a partir de decisões tomadas nos concílios, sínodos e conferências episcopais. O objetivo era claro: enfraquecer as irmandades ou substituí-las por outras associações leigas totalmente dirigidas pelo clero. Ve535. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano III, n. 05, maio de 1915, p. 261. AMSSM. O grifo está como no original. 536. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano III, n. 05, maio de 1915, p. 263. AMSSM. 537. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano III, n. 05, maio de 1915, p. 262. AMSSM. 538. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano III, n. 05, maio de 1915, p. 262. AMSSM. 539. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano III, n. 05, maio de 1915, p. 265. AMSSM.


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remos apenas um exemplo, pois esse tema já foi analisado por historiadores como Vitor Biasoli, Mauro Dillmann, Artur Cesar Isaia, Mara Regina do Nascimento, Antônia Aparecida Quintão e outros. A Pastoral Coletiva das Províncias Eclesiásticas Meridionais, de 1915, determinava: 1646. É necessário que as associações católicas fundadas depois da lei n. 173 de 10 de setembro de 1893, e que se fundarem, obtenham, pelos meios legais o reconhecimento de sua personalidade jurídica. 1647. Entretanto, para evitar abusos e conservá-las sob a dependência da autoridade eclesiástica, ordenamos que nenhuma confraria ou irmandade assuma e exerça essa personalidade, sem autorização Nossa por escrito, sob pena de ser imediatamente dissolvida540.

Ao reformar os estatutos e acrescentar a proibição do uso da personalidade jurídica, Caetano Pagliuca não estava tomando nenhuma atitude isolada. Essa era a política católica, e ele, como fiel seguidor do pensamento romanizado, estava cumprindo suas obrigações à frente do conflito. Vitor Biasoli classificou o conflito com a Irmandade do Rosário como o último embate do pensamento ultramontano na “conquista de Santa Maria”. Demétrio Niederauer, o advogado que fez a defesa da Irmandade, tinha razão ao afirmar que a questão ia muito além de uma simples disputa possessória. A disputa foi acompanhada passo a passo pelo público local e resultou em posições e pressões de ambos os lados. Sobre esse aspecto, é imprescindível o depoimento do jovem Octacílio dos Santos, 24 anos, solteiro, pintor, natural de Santa Maria: Perguntado se logo que houve a desavença entre a diretoria da Irmandade do Rosário e seu tesoureiro Caetano Pagliuca, com quem o depoente era solidário? Respondeu que com a diretoria presidida pelo Sr. Ignácio Garcia. Perguntado se o depoente compareceu a uma ou mais reuniões da Irmandade depois de ter havido a desavença com o reverendo Pagliuca. Respondeu que assistiu a três reuniões. Perguntado se é verdade que o depoente passou a ser solidário com o padre Pagliuca por insistentes pedidos deste e de dona Olga Cezimbra e de pessoas de sua família, que lhe diziam coisas todos os dias para que o depoente passasse a ser solidário com o padre Pagliuca? Respondeu que sim, que sua família é toda religiosa e que por pedidos dessas pessoas passou a ser solidário com o reverendo Pagliuca. Dada a palavra ao advogado do réu por este foi perguntado se a testemunha sabia ler e escrever? Respondeu que não sabe ler nem escrever. Perguntado quantos anos têm? Respondeu que 24 anos. Perguntado como justifica esta mudança do modo de pensar apesar de seus anos maduros para a integridade da sua moral e crença? Respondeu que ele antes estava com a diretoria e que agora está com o padre Pagliuca porque sua família muito insistiu bem como seus vizinhos a ponto de o depoente ver-se constrangido e sair da cidade por dois dias541. 540. Pastoral Coletiva dos Senhores Arcebispos e Bispos das Províncias Eclesiásticas de São Sebastião do Rio de Janeiro, Mariana, São Paulo, Cuiabá e Porto Alegre. Rio de Janeiro: Martins de Araújo & Cia, 1915, p. 442. 541. Depoimento de Octacílio dos Santos. Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria, 1914, p. 69-69v. AFSM.


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Octacílio dos Santos fazia parte da comissão nomeada pelo bispo para administrar a Irmandade exercendo o cargo de procurador. Já fazia parte da mesa administrativa, como mesário, na eleição de 1913, e foi reeleito em 1914 na composição que foi invalidada pelo bispo e pelo juiz da comarca. Era um indivíduo atuante na Irmandade e seu depoimento deixa claro o envolvimento da cidade no acompanhamento do caso, tomando posição de um ou outro lado. Octacílio teve que se refugiar em Silveira Martins por dois dias para fugir dos constrangimentos que estava sofrendo e que o levaram a mudar de posição no conflito. O padre Caetano Pagliuca mandou publicar um “a pedido”, com as razões de apelação de seu advogado e a sentença proferida por Alberto Chaves no jornal “Diário do Interior”, do dia 01 de maio de 1915, ocupando toda a primeira página daquele dia. É mais um sinal de que a cidade estava interessada no acompanhamento dos fatos e também no investimento do vigário na conquista de setores relutantes da opinião pública, que ainda defendiam a autonomia da devoção leiga. Era a exibição de sua vitória e de sua força contra àqueles que pretendiam desafiá-lo. O que estava em jogo nesse episódio ia muita além da disputa pela chave de uma pequena capela, localizada na periferia de Santa Maria, que era quase insignificante para o catolicismo. A chave disputada era simbólica e política. Ela abria muito mais do que as portas do templozinho, era a chave do controle dos espaços de manifestação do sagrado e a extinção de qualquer tipo de demonstração “profana” que ali poderia ser realizada. O controle desses locais era uma estratégia política do clero para a implantação do modelo ultramontano de catolicismo e a consequente criação de poder sobre os devotos. A busca por domínio não foi realizada sem enfrentamento e resistência, como aconteceu com os irmãos do Rosário. Nesse sentido, as disputas eram inevitáveis e cada um usava as “armas” e as alianças de que dispunham. O Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria também publicou as razões de apelação e a sentença do juiz. Este periódico católico acabou publicando outras decisões judiciais envolvendo o clero, as ordens religiosas e as irmandades. Em dezembro de 1913, mesmo ano da mudança dos estatutos, o “Boletim” publicou um parecer do consultor geral da República sobre os direitos de Pessoa Jurídica da Ordem Franciscana das Religiosas do Convento da Lapa542. Em 1915, na edição de fevereiro/março, publicou o “Acordão do Tribunal Federal, de 13 de fevereiro de 1897”, sobre o litígio entre o bipo do Pará e a Fazenda Nacional pela posse da Igreja das Mercês543. Em abril, a publicação enfatizou a situação jurídica das 542. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano II, n. 04, dezembro de 1913, p. 55-60. AMSSM. 543. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano III, n. 02 e 02, fevereiro/março de 1915, p. 229-231. AMSSM.


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Irmandades e Confrarias diante da autoridade episcopal e o direito dos bispos de dissolvê-las, de acordo com o Parecer do Dr. Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, extraído do “Mensageiro Diocesano” de São Luiz do Maranhão, de 15 de outubro de 1908544. E no mês de Maio, as “Razões de Apelação” e a sentença favorável em relação à Irmandade do Rosário. Foram três meses seguidos destacando o direito dos bispos sobre as igrejas e as irmandades. As decisões favoráveis nos litígios continuaram na pauta do “Boletim”. A querela entre a Irmandade do Santíssimo Sacramento, da Freguesia de Nossa Senhora da Glória (Rio de Janeiro) e do monsenhor Luiz Gonzaga do Carmo ganharam as páginas das edições de março de 1916545 e de abril/maio de 1818546. O caso era semelhante ao da Irmandade do Rosário, onde os irmãos do Santíssimo Sacramento desejavam a administração dos bens sem a interferência eclesiástica. Em junho de 1919, publicou o “Acordão unanime do Supremo Tribunal Federal sobre a dependência absoluta em que estão as irmandades para com os ordinários diocesanos”, tendo em vista o direito de intervenção do Arcebispo do Rio de Janeiro na Irmandade do Santíssimo Sacramento, de São Cristóvão e no direito desta de receber os juros das apólices que haviam adquirido junto à Caixa de Amortização da dívida pública federal547. O principal órgão de divulgação do bispado estava conectado e atento a toda a jurisprudência sobre as disputas entre as irmandades e o clero e fazia questão de divulgar integralmente o conteúdo dos “Acordãos” e sentenças favoráveis à Igreja. Também publicava as intervenções feitas pelos bispos nas irmandades, como a que ocorreu na cidade de Pelotas. No dia 16 de abril de 1918, por meio de um decreto, o bispo de Pelotas dissolveu as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Assunção e o de São Miguel e Almas por não corresponderem aos “fins de verdadeiras associações religiosas”548. Além do decreto, o “Boletim” também reproduziu um texto publicado em “A Palavra”, da cidade de Pelotas/RS, que detalha as razões do decreto do bispo: O motivo desse ato foi não corresponderem já essas irmandades ao fim religioso a que se deviam destinar. A Igreja é a sociedade melhor organizada que há sobre a terra, pois é obra de Deus. 544. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano III, n. 04, abril de 1915, p. 238-239. AMSSM. 545. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano IV, n. 02 e 03, fevereiro e março de 1916, p. 37-38. AMSSM. 546. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano VI, n. 04 e 05, abril e maio de 1918, p. 61-75. AMSSM. 547. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano VII, n. 06, junho de 1919, p. 88-89. AMSSM. 548. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano VI, n. 04 e 05, abril e maio de 1918, p. 79. AMSSM.


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Ela tem como garantia de sua vida a ordem, que tem por base a obediência. E quem manda na Igreja são as legítimas autoridades, os bispos, para isso deputados pelo Espírito Santo. Ora, uma vez que elementos díscolos e desobedientes surgem na Igreja, é dever da autoridade eliminar esses elementos. Foi o que aconteceu na atual circunstância. Contrariando os primitivos fundadores dessas irmandades, os seus atuais diretores, orientados pelo espírito que precipitou das alturas os anjos maus, negaram sua obediência à Igreja. E com isso não exorbitou S. Ex. Revma., porque ninguém negará ao pai o direito de mandar em sua casa, ninguém censurará uma sociedade por despedir os membros que lhe são adversos, ninguém dirá que o Sr. Intendente não tem direito de corrigir os perturbadores da ordem pública. Usando, pois, de um direito que só a ele assiste na Igreja de Pelotas, andou muitíssimo bem o Sr. Bispo, acabando com essas irmandades, cujos benefícios, em favor da religião são inteiramente desconhecidos549.

Para o clero ultramontano, os benefícios das irmandades em favor da religião eram “inteiramente desconhecidos”. Esqueceu-se o autor do texto o quão importante elas foram na construção de igrejas, na manutenção do culto e na expansão da religiosidade católica no período colonial e imperial. Em período de nova política doutrinária, as poucas que resistiram enfrentaram um processo de invisibilidade no interior das dioceses e paróquias e foram sendo substituídas por outras associações religiosas. Em 1916, a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, de Santa Maria, possuía 4 conferências de São Vicente de Paulo, 4 centros do Apostolado da Oração; 2 Congregações Marianas, a Congregação da Doutrina Cristã com 13 centros de catequese, a Associação da Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento e da Obra da Igreja dos Pobres e a Irmandade de Nosso Senhora do Rosário550. No relatório de 1920, as irmandades existentes na diocese sequer são mencionadas551. A disputa em questão estava muito além da chave de um pequeno templo católico. Estava em jogo o controle das manifestações religiosas católicas. A forma como o episódio foi descrito posteriormente também ganhou contornos simbólicos de uma luta do bem contra o mal. O controle dessa memória também se tornou importante no contexto de expansão ultramontana. A história da Irmandade do Rosário passou por um processo de invisibilidade, e seus membros foram culpados pelo enfretamento com a hierarquia da Igreja Católica. No próximo item, será objeto de análise o que foi dito sobre a Irmandade e o conflito com o padre. 549. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano VI, n. 04 e 05, abril e maio de 1918, p. 79. AMSSM. 550. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano IV, n 02 e 03, fevereiro e março de 1916, p. 31. AMSSM. 551. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano IX, n. 3-5, março a maio de 1920, p. 68-69. AMSSM.


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8.2 DISPUTAS, FATOS E VERSÕES: A (DES) CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA A disputa por versões sobre os acontecimentos envolvendo a Irmandade do Rosário e o clero teve início durante o desenrolar do processo e continuou após a sentença proferida pelo Juiz da Comarca Alberto Rodrigues Fernandes Chaves. Imediatamente após a decisão do juiz, surgiu em Santa Maria o jornal/ revista “Reacção”, dirigida por Demétrio Niederauer, Walter Jobim, João Belém e outros, conforme destacou Vitor Biasoli. A revista, cujos redatores eram ligados à maçonaria, tinha a intenção de realizar um enfrentamento ideológico contra o clero ultramontano, numa tentativa de retomar o que já tinha sido feito pelo jornal “O Combatente”. Na primeira edição da “Reacção”, que foi publicada no mesmo dia em que o jornal “Diário do Interior” apresentava em sua capa “as razões de apelação” e a sentença final, o editorial explicava os motivos de sua criação: A nossa reação anticlerical e liberal é a luta da verdade e da luz contra o obscurantismo pregado e mantido cuidadosamente pelo jesuitismo avassalante; é um largo movimento de patriotismo contra a seita repudiada e parasitaria, que, como um polvo, estende sobre o nosso meio os seus mil tentáculos negros e viscosos; é um alarme daqueles que amam a nossa família na sua pureza imácula, contra a invasão clandestina e desmoralizante de uma seita que nega a família, que vive no celibato e no contubérnio, que considera o trabalho um castigo de Deus, e a preguiça mística dos exploradores uma virtude católica. A nossa reação é um grito vibrante de protesto contra esses indivíduos vestidos de negro, e que se dizendo representantes de Deus e pregadores das doutrinas de Cristo, ministros espirituais e pastores de almas, exercem o mais vil e repulsivo dos mercantilismos e dos comércios; que falam em pobreza e possuem dezenas de milhares de conventos, de templos, de palácios, e um número infinito de milhões; que pregam o reino do céu e exploram o dinheiro dos homens, desde a fortuna dos ricos até as esmolas dos pobres e dos mendigos; que vendem a benção e o perdão do Papa, para os pecados passados e para os pecados futuros, pelo único critério da maior ou menor soma de dinheiro que entrega o pretendente; que exploram e profanam o corpo de Jesus Cristo, expondo-o nu, lívido e sangrento, em grosseiras imagens de louça, entre duas salvas, ao tilintar dos níqueis, na Semana Santa; que pregam a castidade e vivem na clandestina e abjeta das mancebias, fazendo de casas de padres e de bispados, focos de devassidão e de escândalos indecorosos552.

O leitor pode perceber que os objetivos da publicação era o enfretamento declarado, duro e intransigente contra o clero e contra o juiz que apoiou o padre Caetano Pagliuca. Artigos diversos foram publicados tendo como temática principal as práticas religiosas católicas ou o comportamento de padres e bispos. A revista abordou também o processo entre a Irmandade e o padre Pagliuca, destacando 552. Reacção. Santa Maria, ano I, n. 1, 01 maio 1915, p. 1. ACMEC.


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a atuação do Juiz da Comarca, que também era um dos alvos dos redatores. A crítica principal era a forma como o juiz procedeu após a divulgação da sentença e o tratamento dispensado aos defensores da Irmandade. Já na primeira edição, no artigo intitulado “O caso da Igreja do Rosário – a ação do Exmo. Dr. Juiz da Comarca”, os redatores afirmaram que não pretendiam discutir o assunto à luz do Direito, mas “apenas mostrar ao povo como procedem eles, os que se dizem filhos de Deus, e como procedemos nós, que somos, no dizer dos padres romanos, os filhos de Satanás”553. Os redatores explicaram os tramites legais pelo qual passou o processo, onde em primeira instância o juiz distrital dr. Walter Jobim deu ganho de causa à Irmandade do Rosário, ordenando que o reverendo Caetano Pagliuca entregasse a chave da igreja à referida Irmandade, pois entendeu que a disputada igreja pertencia àquela associação religiosa e não à Cúria Romana. Do modo contrário, porém, entendeu o juiz da comarca e, em grau de apelação, reformou a primeira sentença, mandando que tomasse conta da igreja o vigário Caetano Pagliuca, a quem ordenou que fosse restituída a chave imediatamente. Este era o “ponto capital do assunto”554 para “Reacção”. Vejamos como explicaram o episódio que segue: Com o devido respeito acatamos a sentença do exmo. dr. juiz de comarca, e, não diríamos uma palavra sobre o assunto, se S.Ex., esquecendo a compostura da alta missão que exerce, não tivesse pretendido enxovalhar um nosso companheiro de redação, manifestando deploravelmente a má vontade que nutre contra os autores do processo aludido. Tendo S.Ex. dado a sentença final, nada mais tinha a fazer; ao ilustrado juiz dr. Walter Jobim cumpria fazer executá-la. Com surpresa, porém, o advogado do autor nosso companheiro Demétrio Niederauer recebendo os autos para se cientificar da sentença, recebeu ao mesmo tempo o pedido da chave, pedido esse feito pelo oficial de Justiça, portador dos ditos autos. – A chave!, diz ele, está em poder do Presidente da Irmandade e será entregue logo que for expedido o mandado assinado pelo juiz distrital, que é a quem compete dar execução à sentença. O oficial de justiça volta ao cartório para logo depois tornar à presença do advogado Niederauer com um mandado assinado pelo dr. juiz de comarca e o seguinte recado: O dr. juiz de comarca manda dizer que o Sr. deixe de coisas e entregue a chave, senão manda lhe pôr na cadeia. O exmo. sr. dr. juiz de comarca, deixando o lugar eminente que ocupa, invade as atribuições do juiz distrital e, não satisfeito com este ato impulsivo que vem caracterizar a sua parcialidade na questão, ainda ameaça, ainda insulta, numa lamentável explosão de rancor, incompatível com a serenidade augusta da Justiça, da verdadeira Justiça, austera e retilínea555.

553. Reacção. Santa Maria, ano I, n. 1, 01 maio 1915, p. 10. ACMEC. 554. Reacção. Santa Maria, ano I, n. 1, 01 maio 1915, p. 10. ACMEC. 555. Reacção. Santa Maria, ano I, n. 1, 01 maio 1915, p. 10. ACMEC.


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A forma autoritária como se portou o Juiz da Comarca no referido episódio da entrega das chaves vinha “caracterizar sua parcialidade na questão” para “Reacção”. Aqui estava um ponto central de toda a discussão envolvendo o clero e membros da maçonaria na questão do Rosário556. Luiz Eugênio Véscio (2001, p. 222) ao analisar a relação entre a maçonaria e a Igreja Católica no Rio Grande do Sul, utilizou alguns documentos que fortalecem a crítica ao Juiz da Comarca, em especial uma carta de Ângelo Caldonazzi, endereçada a José Domingues de Almeida, onde aquele descreve a atuação do juiz da comarca: “tem feito tantas asneiras, e tão fenomenal a sua nulidade, e tão universal a sua perseguição a todos que não comungam com os ideais do padre Pagliuca, que todo mundo já sabe de antemão a sentença que ele proferirá nas causas, regulando-se pela religião das partes”. Caldonazzi era diretor-gerente557 da “Reacção” e acusava que o “catolicismo” do juiz condicionava suas sentenças. É difícil saber qual a influência da religião nas decisões proferidas pelo Juiz da Comarca ou qual o nível de “catolicismo” do magistrado. No entanto, sua ligação com a Igreja Católica e com o padre Caetano Pagliuca era inegável. Exatamente no dia 21 de dezembro de 1914, data em que o advogado Demétrio Niederauer fazia sua petição inicial ao juiz Walter Jobim para reaver os bens da Irmandade, dando início ao processo, Alberto Chaves percorria as ruas 556. A revista voltou a tratar da relação entre o Juiz da Comarca os demais envolvidos na disputa pela Capela do Rosário na 2ª edição da revista: “O exmo. sr. dr. juiz da comarca, mais do que nenhum outro, quebrou a linha de fidalgo e de cavalheiro, descendo até o insulto baixo, de linguagem chata. Em uma casa de negócio da rua do Comércio, estando um dos redatores desta revista em compartimento diverso daquele em que estava S.Ex., ouviu aquele magistrado pronunciar-se a nosso respeito nestes termos: Hei de mostrar a esta corja etc., etc. Juntando-se esta frase àquela outra – mando meter-lhe na cadeia – , chegamos à conclusão de que S.Ex. perdeu a estrada e anda a patinhar no lamaçal (...). S.Ex. fez publicar no Diário, ou consentiu na publicação da sua sentença sobre o caso da Igreja do Rosário!... Não sendo praxe a publicação de sentenças de S.Ex. no jornal da terra, é intuitivo que tal fato é devido à celeuma levantada em torno do espalhafatoso processo. Quis talvez S.Ex. mostrar aos seus jurisdicionados a lisura em seu proceder no caso, isto é, a verdade incontestável de sua justiça reverberando na grandiosidade incomparável de sua sentença, para deste modo nos confundir perante o povo. Se foi esta a intenção, S.Ex. procedeu de má fé porque a Reação não disse que a sentença era injusta, mas sim que o dr. juiz de comarca invadiu as atribuições do dr. juiz distrital, mandando ex-ofício executar a sentença e que havia ameaçado grosseiramente ao advogado da Irmandade” (Reação. Santa Maria, ano I, n. 2, 15 maio 1915, p. 3. ACMEC). As denúncias contra o Juiz da Comarca também estavam na 3ª edição da revista: “Desde o dia em que a “Reacção” verberou a ação do Dr. Alberto Chaves na questão do Padre Pagliuca com a Irmandade do Rosário, passaram os seus redatores a ser alvo de desconsiderações e insultos por parte daquele Juiz. Demetrio Niederauer teve em pleno júri a palavra caçada e uma saraivada de doestos do impetuoso magistrado. (...) Agora é o Dr. Bonumá a vítima das iras de S.Ex. Tendo a família do sr. Henrique Ribeiro se retirado de muda para o Rio Grande no dia 16 deste, o Dr. Bonumá foi acompanhar a sua noiva, que é filha daquele cavalheiro, até a primeira ou segunda estação, voltando em seguida. S.Ex., o sr. Juiz de Comarca, para vingar-se, telegrafa ao Procurador Geral do Estado dizendo ter o Dr. Bonumá fugido de Santa Maria e abandonado o cargo de Promotor!... De modos que o Dr. Bonumá, que isso veio saber por ser voz pública e ter noticiado a imprensa, foi forçado a telegrafar para P.Alegre dizendo que aqui estava, que não tinha fugido. Ao dia seguinte, quando o mesmo Dr. Bonumá redigia um protesto em audiência, S.Ex. caçou-lhe a palavra aos gritos, e abandonou a audiência sem ter assinado o termo de protesto. Mais tarde S.Ex. deu mais uma prova de tolerância e de respeito à lei mandando arrancar o protesto dos autos, segundo nos consta” (Reação. Santa Maria, ano I, n. 3, 01 jun 1915, p. 12. ACMEC). 557. Reacção. Santa Maria, ano I, n. 6, 16 de julho 1915. ACMEC.


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da cidade com o padre Caetano Pagliuca e o general João Nabuco, angariando donativos, ofertas e presentes para o natal das crianças pobres, conforme noticiou o jornal “A Federação”558. Em novembro de 1915, o “Boletim Mensal” publicou uma “provisão nomeando uma Comissão composta dos Srs. Dr. Alberto Chaves, A. Grott, Eleodoro Vargas, Elybio Netti e L. Menezes para o fim de angariar donativos no território das Paróquias de São Martinho e município de Júlio de Castilhos para os consertos necessários na Matriz e na reconstrução e adaptação do antigo império em casa canônica”559. Esses são dois exemplos que mostram a proximidade que existia entre o vigário e o juiz da comarca. Para fazer parte de uma comissão para angariar donativos para crianças pobres ou fundos para reforma de prédios da Igreja com o vigário, era necessário um mínimo de engajamento nos princípios e na doutrina católica. Também era necessária uma relação de confiança e de amizade com clero, o que o Dr. Alberto Chaves parecia desfrutar. Portanto, temos o maçom Walter Jobim proferindo, em primeira instância, a sentença em favor da Irmandade e o católico convicto Alberto Chaves decidindo, em segunda instância, em favor do bispo e do padre Pagliuca. Imagem 19 – Integrantes do Judiciário de Santa Maria – 1914

1º plano da direita para a esquerda: João Bonumá; Alberto Rodrigues Fernandes Chaves, Sinval Saldanha; Cel. Estácio Mariense de Lemos – 2º plano: Abelino Vieira Cap. José da Silva Brazil; Cap. Josué Fontoura. Fonte: Álbum do Centenário de Santa Maria - 1914 558. “SANTA MARIA, 21 – Uma comissão composta do dr. Alberto Chaves, general João Nabuco e reverendo Caetano Pagliuca percorre a cidade angariando donativos, ofertas e presentes para o natal das crianças pobres” (A Federação, Porto Alegre, ano XXXI, n. 302, 23 de dezembro de 1904, p. 05. Disponível em: <http:// memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=388653&PagFis=31086&Pesq=Caetano%20Pagliuca> Acesso em 28 de fevereiro de 2016. 559. Boletim Mensal da diocese de Santa Maria. Santa Maria, Ano III, n. 11, novembro de 1915, p. 358. AMSSM.


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Terminada a disputa pela Capela do Rosário, os envolvidos tiveram destinos diversos: Demétrio Niederauer tornou-se juiz distrital em Ijuí, depois se mudou para Caxias do Sul onde se tornou presidente do Conselho Municipal e, em 1947, assumiu a Prefeitura Municipal da cidade. Caetano Pagliuca continou na liderança do catolicismo em Santa Maria e um dos mais mais prestigiados sacerdotes, inclusive com uma estátua em frente a Catedral da Arquidiocese de Santa Maria. Walter Jobim foi eleito governador do Rio Grande do Sul e exerceu seu mandato entre 1947 e 1951. Sua família dedicou-se à advocacia, alcançando altos postos na magistratura (seu neto Nelson Jobim foi escolhido como presidente do Supremo Tribunal Federal). Os integrantes da Irmandade do Rosário perderam sua capela e foram sendo esquecidos pela história da cidade. A Irmandade do Rosário continuou existindo ainda por alguns anos, mas sobre o total domínio do clero de Santa Maria. Os jornais noticiavam as festas do Rosário, mas a menção à Irmandade foi desaparecendo. Suas festas continuaram atraindo a atenção dos fiéis devotos a Nossa Senhora do Rosário, mas sua organização passou ser feita por outras associações religiosas ou pessoas desvinculadas ao passado histórico da Irmandade. Em 1942, o clero decidiu pela demolição da capela e a construção de um novo templo. Com o crescimento da cidade, o bairro, antes na periferia, passou a ter uma localização privilegiada e começou a atrair a atenção de novos moradores. Antigos moradores foram sendo deslocados para bairros mais distantes. O jornal “A Razão” acompanhou a decisão pela demolição da Capela do Rosário e a construção da nova igreja por meio de pequenas notícias. No dia 27 de novembro de 1942, o jornal anunciava: Será demolida a atual Capela de Nossa Senhora do Rosário. Iniciadas as atividades para a construção do novo templo, no mesmo local. Sob a presidência do sr. Monsenhor Valentin Ferrari, teve lugar anteontem, uma reunião convocada para o debate de assuntos relacionados com a demolição da atual Capela de Nossa Senhora do Rosário e construção de uma nova, no mesmo local. Compareceram a esta reunião numerosos elementos destacados do catolicismo, residentes naquela zona da cidade, principalmente chefes de famílias. Os trabalhos decorreram num ambiente de elevada cordialidade e animação. Pela orientação que se imprimirá as demarches, pode-se prever para muito breve a construção da nova capela, sóbria, espaçosa e digna daquele aprazível bairro. Foi também escolhida a comissão que se encarregará dos trabalhos constantes do plano de ação traçados e que ficou assim constituída: presidente: Nelson Schaman; vice-presidente, tenente Armando Rocha; secretário, Manoel Lemos; assitente geral das obras e da tesouraria, padre José Pasa. Assumindo a presidência, o sr. Nelson Schamann convocou nova reunião da nova construção.


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A iniciativa foi recebida com grande simpatias pela população ao quando serão assentadas as decisões bases da nova construção. A iniciativa foi recebida com grande simpatias pela população católica, principalmente pelos moradores na zona da Capela de N. S. Do Rosário560.

Sobre a Irmandade do Rosário que construiu a igreja, nenhuma palavra. Esse foi o padrão seguido em outras notícias sobre o fato: a negação e a invisibilidade sobre a sua história e atuação. No dia 20 de dezembro, às 7 horas, com a capela completamente lotada, estando tomados todos os corredores e a escadaria de acesso, foi celebrada a última missa naquela igreja561, construída por meio da organização, do esforço e do trabalho dos negros pertencentes à Irmandade do Rosário. Quase um ano depois, no dia 17 de outubro de 1943, foi realizada a solenidade de lançamento da pedra fundamental do novo templo562. Desde o anúncio da tomada de decisão de demolir a Capela do Rosário (novembro de 1942) até o lançamento da pedra fundamental do novo templo (outubro de 1943), o jornal “A Razão” publicou oito notícias sobre o tema563. Das oito edições, apenas em uma delas há uma pequena referência ao livro de atas da “Confraria do Rosário”, que registra como foi celebrada a primeira missa no templo564. Essa foi a única referência. O objetivo da notícia não era escrever sobre a Irmandade do Rosário, mas informar que o padre Caetano Pagliuca, que rezou a primeira missa, havia sido convidado para celebrar a última. A Irmandade do Rosário deixou de existir no final da década de 1930. No relatório paroquial apresentado, em 1932, ela foi descrita como “quase extinta”565. Foi referida no relatório de 1938566, mas não foi mencionada no ano de 1939, o que leva a crer que deixou de existir. A Irmandade foi extinta, sua capela demolida e sua história completamente ignorada. No entanto, isso ainda não era suficiente. Uma versão do clero sobre os acontecimentos que envolveram as disputas entre eles precisava ser construída. Em outubro de 1959, a capela 560. A Razão. 27 de novembro de 1942, Ano IX, n. 41. 561. A Razão. 22 de dezembro de 1942, Ano IX. n. 62, p. 5. AHSM. 562. A Razão. 19 de outubro de 1943, Ano X, n. 9 p. 5. AHSM. 563. Quatro edições sobre a demolição da capela nos dias 27 de novembro de 1942 e nos dias 19, 20 e 22 de dezembro de 1942 e outras quatro sobre o lançamento da pedra fundamental do novo templo, nos dias 12, 14, 17 e 19 de outubro de 1943. AHSM. 564. “Está despertando vivo interesse nos círculos católicos da cidade, um significativo acontecimento religioso que terá lugar amanhã, às 7, 30 horas, na Capela de Nossa Senhora do Rosário. Conforme se lê nas atas da Confraria de Nossa Senhora do Rosário, da capela do mesmo nome, no primeiro domingo de outubro de 1901, da Praça Saldanha Marinho, em solene procissão, foi transportada a imagem de Nossa Senhora do Rosário para a referida capela, sendo rezada a primeira missa pelo revdo. padre Caetano Pagliuca. Agora, transcorridos quarenta e um anos, a Capela de Nossa Senhora do Rosário será demolida (...). A última missa na capela será celebrada amanhã, às 7,30 horas tendo sido convidado para rezá-la o padre Caetano Pagliuca, que lerá nesta ocasião a ata de quando foi celebrada a primeira missa” (A Razão. 19 de dezembro de 1942, Ano IX, n. 60, p. 3). AHSM. 565. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Livro tombo n. 4 (1915-1944), p. 16. APNS-SM. 566. Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Livro tombo n. 4 (1915-1944)., p. 34v. APNS-SM.


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foi transformada em Igreja Matriz da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário. Em 1984, nas comemorações dos 25 anos da criação da Paróquia do Rosário, foi produzido um livreto comemorativo com informações históricas da comunidade. O livreto explicava: Os membros da comunidade eram na sua maioria morenos pertencentes a Confraria de Nossa Senhora do Rosário. Infelizmente, uma organização anti-clerical daquele tempo, influenciou de tal maneira os membros da comunidade do Rosário que chegaram a triste realidade de se rebelarem contra a hierarquia da Igreja e ser a capela invadida por uma seita religiosa da cidade. Diante do acontecido, a capela foi fechada por ordem de Dom Miguel de Lima Valverde, 1º Bispo da Diocese de Santa Maria, tendo sido promovida ação judicial para reavê-la. Em 06 de outubro de 1901, o Pe. Caetano Pagliuca, antes da sentença judicial conseguiu reaver a Capela do Rosário (...) Em 24 de abril de 1915, o Juiz da Comarca deu ganho de causa à Igreja Católica, contra as pretensões da seita e dos anticlericais. Foram grandes os esforços da Igreja em harmonizar os ânimos da Comunidade da Capela do Rosário, que esteve tensa, até esta data, pela influência dos anticlericais e pela pouca formação religiosa dos membros da Confraria do Rosário567.

Imagem 20 – Igreja de Nossa Senhora do Rosário inaugurada em 1952.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nossa_Senhora_do_Ros%C3%A1rio_(Santa_Maria)#/media/ File:Igreja_Nossa_Senhora_do_Ros%C3%A1rio_-_Santa_Maria.JPG

567. Paróquia Nossa Senhora do Rosário. Jubileu de Prata. Santa Maria (s.n.), 1984, p. 06.


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O jornal “O Santuário”, orgão oficial da Diocese de Santa Maria, na edição comemorativa dos 75 anos da diocese de Santa Maria, repetiu a história568. O leitor que acompanhou este texto até aqui, pôde perceber que o redator do referido histórico fez uma grande confusão. Nenhuma seita invadiu a capela e muito menos teve ação judicial para reavê-la na década de 1900. O processo de 1914/1915 não tem nenhuma ligação com invasão de seita religiosa, ou seja, confusão total. Mas o que nos interessa é como os irmãos do Rosário foram descritos pelas publicações oficiais do clero. Segundo a imprensa católica, os problemas ocorreram porque os irmãos do Rosário se deixaram influenciar pelos anticlericais e por sua “pouca formação religiosa”. Se nas décadas de 1920, 1930 e 1940 a história da Irmandade foi sendo negada, posteriormente, seus membros foram acusados de serem os causadores dos problemas em relação ao clero. A trajetória da Irmandade do Rosário foi importante para a história de Santa Maria, contribuindo na formação e consolidação de uma identidade negra local, através do reconhecimento de seu protagonismo, de suas lutas, de suas vivências e negociações. Entretanto, a versão católica produzida em livretos e jornais negava sua importância e a transformava em uma associação marcada pela influência externa e por uma religiosidade duvidosa. São as “batalhas pela memória”, e este texto procura inserir novos elementos nesta disputa. Os irmãos do Rosário envolvidos na disputa com o padre Pagliuca, como José Francisco do Nascimento, Sisnando de Oliveira, Ignácio Martins Garcia, Raphael José da Silva, entre outros já possuíam uma trajetória consolidada de liderança na comunidade negra. Além da Irmandade, criaram e participaram de outras instituições, como o Clube União Familiar, o Clube Treze de Maio e a Sociedade Cravo e Rosa e também eram protagonistas nessas instituições. Não eram sujeitos ingênuos, de fácil manipulação e convencimento, como quis supor a crônica eclesiástica quando explicou os acontecimentos que envolveram aquele embate. Por outro lado, eram indivíduos católicos, que já haviam demonstrado sua devoção e religiosidade de diferentes formas, seja pela primazia que realizava sua festas ou mesmo a negação da presença do pastor anglicano em 1900 (como vimos no capítulo 06). Não seria em 1914/1915 que se transformariam em anticlericais, pois eram sujeitos autônomos e estavam defendendo o que julgavam seu por direito. 568. “Os ‘irmãos’ da Confraria eram, em sua grande maioria morenos. Houve, porém, infiltração anticlerical na comunidade da capela. Um pastor evangélico, auxiliado por alguns membros da maçonaria, invadiu e se apossou da capela. Diante do acontecido, a capela foi interditada por Dom Miguel de Lima Valverde e promovida ação judicial para reavê-la. Em 1901, Pe. Caetano Pagliuca conseguiu apossar-se da capela e, no dia 07 de outubro, em procissão desde a praça Saldanha Marinho, carregou a imagem de N. Sra. do Rosário, benta pelo papa Pio X, até o local onde se acha a atual paróquia. Em 1915, o Juiz da Comarca deu ganho de causa à Igreja contra as pretensões da seita” (O Santuário. Santa Maria, agosto de 1985, p. 16 – edição especial). ACSM.


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O final do século XIX e as primeiras décadas do século XX foram de profundas transformações na sociedade e no catolicismo que atingiram e foram consumindo a essência das irmandades negras. O fim da escravidão e a Proclamação da República possibilitaram a criação de uma série de instituições dirigidas e lideradas por negros e suas famílias. Os clubes sociais, as sociedades de bailes, os jornais, as sociedades recreativas e culturais foram ocupando espaços que antes pertenciam às irmandades negras. No plano religioso, a política ultramontana foi se infiltrando até se tornar hegemônica, centralizando o poder nas mãos do clero, regulando as formas de culto, controlando os leigos e criando novas associações religiosas. Nesse contexto, a Irmandade do Rosário perdeu sua autonomia, suas propriedades e o direito à sua memória e à sua história.


ConsideraçÕes Finais



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No decorrer deste livro, relatamos o nascimento, em 1848, de duas crianças negras, gêmeos, filhos de uma jovem africana escravizada, recém-incorporada ao trabalho em uma família de alemães. Acompanhamos a presença deles em aspectos da vida privada, no trabalho, nas associações e na manifestação de sua religiosidade. Assim, queremos terminar este texto com o destino final desses irmãos. Procuramos acompanhar alguns momentos da trajetória de ambos, embora um deles tenha deixado mais “vestígios” do que outro. Junto a eles, viveram escravos de diferentes origens que procuraram de várias formas romper com a violência da escravidão, seja por meio da constituição de famílias, no estabelecimento de laços de compadrio ou na busca de associações confraternais. Adão Gabriel Haeffner e Antônio Gabriel Haeffner. Com essas designações que, pela primeira vez, deparamo-nos com tais indivíduos. Eles estavam sendo responsabilizados pelo conflito que dividiu a Irmandade do Rosário em 1914/1915. A primeira indagação que nos veio foi a seguinte: O que esses dois “alemães” estavam fazendo em uma irmandade de negros? Já era conhecida a presença de Gabriel Haeffner entre os primeiros alemães que chegaram em Santa Maria e sua prática de atribuir prenomes compostos para seus filhos, cujo segundo termo era o do pai (Gabriel), como Carlos Gabriel Haffner, José Gabriel Haeffner e João Gabriel Haeffner. Mas, entre seus sete filhos homens não constavam os nomes de Adão e Antônio. Embora sem saber o grau de parentesco com o patriarca Gabriel Haeffner, a presença desses dois nomes de origem germânica junto a João Appel Primo era um fato que precisava ser explicado no contexto da Irmandade do Rosário. Ao serem apresentados como os causadores do conflito que gerou o processo entre a Irmandade e o padre e o apoio dado ao vigário Caetano Pagliuca, percebemos a existência de um possível conflito étnico nessa associação religiosa. Os “alemães” poderiam estar interferindo naquela instituição negra. Essa foi uma suposição apresentada na elaboração da Monografia de Especialização em História do Brasil, que de forma superficial conseguiu levantar alguns documentos e traçar uma cronologia da história da Irmandade. Ao começar essa pesquisa de doutoramento, a história e a presença de Adão Gabriel Haeffner e Antônio Gabriel Haeffner na Irmandade do Rosário precisava ser explicada de forma mais concreta e não apenas por suposições. E eles foram se revelando através dos vestígios guardados nos arquivos. Como o leitor pôde acompanhar, a presença dos irmãos na irmandade negra era inteiramente justificada, pois eram filhos dos escravizados Manuel e da africana Maria. Eles possuem uma importância central na história da Irmandade, pois são os únicos de que temos certeza que participaram de suas duas fases e tiveram papel decisivo no conflito de 1914/1915. Enquanto Antônio faleceu em 1919,


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o viúvo Adão, com 72 anos, ainda tinha disposição para realizar um segundo casamento e energia para trabalhar na limpeza da Intendência Municipal. A partir de 1925, Adão Gabriel Haeffner desapareceu dos documentos municipais consultados. Havia sido substituído no seu trabalho por outro indivíduo que fazia a limpeza da Intendência Municipal? Teria morrido? Migrado para outra região? Qual teria sido seu destino final? Em 1925, Adão já tinha 77 anos, uma idade já avançada para o período e principalmente para quem tinha passado pela experiência da escravidão. Para descobrir o que tinha acontecido com ele, investimos na pesquisa dos livros de óbitos guardados no APERS. Porém, o arquivo tem sob sua guarda os livros a partir do ano de 1929, ficando um intervalo de 4 anos entre o último documento encontrado no AHSM e o início dos livros de registros de óbitos. Era uma aposta que precisava ser feita. Iniciamos a pesquisa e fomos observando todos os registros de óbitos de Santa Maria da Boca do Monte a partir daquela data. Os livros iam chegando ao final e nenhum vestígio de Adão Gabriel Haeffner. Depois de 34 livros (aproximadamente 6800 registros), chegando até março de 1938, desistimos. A probabilidade de Adão ter vivido mais de 90 anos era muito pequena e ainda existia aquele intervalo de 4 anos entre 1925 e 1929 ainda não pesquisado. Era quase certo que ele tinha morrido naquele intervalo. Era preciso investir nesse período e a alternativa mais prática eram os obituários publicados nos jornais e que estavam à disposição no AHSM. Os livros de óbitos dos períodos anteriores a 1929 dependiam de explicações e negociações com os cartórios municipais, o que não estava descartado, mas era uma segunda opção. Pesquisamos em todas as edições do jornal “Correio da Serra” existentes no arquivo de Santa Maria entre 1925 e 1929 e, novamente, nenhuma informação sobre Adão Gabriel Haeffner. Já estava trabalhando com a possibilidade e a frustração de terminar a tese sem saber o destino final de Adão. Em mais uma viagem a Porto Alegre e São Leopoldo para tratar de assuntos ligados à pesquisa e à escrita da tese resolvi solicitar, sem muitas esperanças, mais alguns livros de óbitos de 1938 para pesquisa no APERS. O primeiro livro consultado naquele dia, o de nº 35, na página 110, findou a minha busca. O registro apontava o óbito de Adão Gabriel Haener (sic), do sexo masculino, de cor preta, profissão pedreiro, natural deste Estado, residente em Santa Maria, com 90 anos de idade, solteiro [sabemos que ele casou duas vezes], de pais ignorados pelo declarante, tendo como causa da morte “caquexia senil”567. E a 567. Repetidamente mencionada como causa de morte mal definida, a cachexia era definida pelo Dr. Chernowiz como: “Estado mórbido que se observa nos indivíduos exaustos, sobretudo depois de longas moléstias e que quase sempre é o pressagio da morte”. (Chernowiz I, p. 391) Já Langaard anotava: “Designa-se com este termo o estado em que todo o hábito do corpo se acha manifestamente alterado. Ordinariamente é empregado, para exprimir uma alteração profunda da nutrição, caracterizada por uma inchação e infiltração mais ou menos geral; pele amarela ou chumbada, sangue seroso e laxido


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“surpresa” mais impressionante/emocionante contida naquele registro e que havia custado muitos dias de pesquisa, era a data em que Adão Gabriel Haeffner tinha falecido: 13 de maio de 1938 (ver anexo 2). Data extremamente simbólica, pois era exatamente o dia em que o Brasil lembrava o cinquentenário do fim da escravidão. Com seus 90 anos de idade, Adão viveu quarenta deles em período em que prevalecia o regime escravista no Brasil e os outros 50 anos com a experiência da liberdade, mas sem se libertar dos estigmas e das marcas deixadas pelo período anterior, marcado por um cativeiro racializado. Os irmãos gêmeos nasceram em uma vila onde os negros estiveram presentes desde a sua origem, seja na administração da estância do Pe. Ambrózio, entre os integrantes da comissão demarcadora, nas primeiras fazendas da região seja entre pequenos proprietários que foram se instalando nas áreas florestais da “encosta da serra”. O local também chamou a atenção de diversos indivíduos, que viam em Santa Maria da Boca do Monte a possibilidade de ascensão social. Os imigrantes alemães e seus descendentes foram se instalando na região e desenvolvendo atividades agrícolas e urbanas. Foram ocupando os espaços políticos e econômicos na localidade e viram nas irmandades um meio para estabelecer novos laços sociais e manifestar as suas devoções. A integração com o sistema escravista também foi imediata e fizeram uso de forma intensa de escravos. Seu progresso e sua importância no desenvolvimento na cidade, assim como de outros integrantes da elite, foram exaltados historiograficamente como se fossem realizados apenas por conta de seu trabalho e de seus empreendimentos, ignorando-se completamente a exploração do trabalho de centenas de homens e mulheres negros que estavam a seu serviço, como suas propriedades. A exploração de mão de obra escrava era uma constante na cidade, independente do local de origem de seus possuidores. Adão e seu irmão Antônio viveram em uma cidade que estava sofrendo constantes transformações, decorrentes de mudanças nacionais ou de aspectos locais. Durante a infância dos gêmeos, o tráfico internacional de escravos foi proibido (1850), o que evitava de forma legal a chegada de outras mulheres africanas escravizadas, como sua mãe Maria. Quando tinham 10 anos de idade, presenciaram o distrito de Santa Maria da Boca do Monte se tornar independente de Cachoeira do Sul e transformar-se em município (1858). Viram companheiros de cativeiro serem alforriados com a condição de substituir filhos da elite local que tinham sido convocados para lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870), vibraram com a liberdade do ventre das mulheres escravizadas (1871). A chegada da estrada de ferro (1885) e instalação de suas oficinas em Santa Maria tornaram a cidade mais de todos os tecidos, estado este que se observa principalmente depois de moléstias longas, escorbuto, cancro e sífilis constitucional”. (Langgaard livro 1, p. 327, 328) O adjetivo senil neste caso, explica-se facilmente pelo caráter idoso do paciente.


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uma vez um polo que atraiu trabalhadores de outros lugares e diversificou as opções de trabalho, tanto na ferrovia como nas novas oportunidades de trabalho gerados por ela. A lei de 13 de maio de 1888 acabou com um regime que explorou os corpos e consumiu com a vida de milhões de africanos e de seus descendentes. A Lei Áurea terminou com a escravidão legal de homens e mulheres negras, mas a conquista da plena liberdade e da igualdade é uma luta que perdura até os dias de hoje. A liberdade trouxe também o desafio do enfrentamento de uma sociedade forte e desigualmente hierarquizada, em que a cor ainda era critério do estabelecimento do “lugar social” de cada indivíduo. A saída era criar espaços próprios onde pudessem celebrar sua religião, divertir-se, festejar e buscar melhores condições de vida. Em Santa Maria, essa organização se deu por meio da criação e manutenção de irmandades, clubes sociais, blocos carnavalescos e jornais. Tais associações buscavam a construção de uma memória própria a respeito do cativeiro e da conquista da liberdade. A luta por postos de trabalho e por habitação era uma constante para a comunidade negra do pós-abolição. O bairro da Vila Rica tornou-se um local de concentração da população negra de Santa Maria e de trabalhadores pobres que migraram para a cidade em busca de trabalho. Bairro periférico, de população pobre que sofria com a falta de infraestrutura básica e com o preconceito da elite local, mas que seus habitantes foram protagonistas na criação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, no Clube União Familiar, no Clube Treze de Maio e de outras entidades negras existentes. Instituições que tinham sua sede no próprio bairro ou nos seus arredores. Viviam uma liberdade precarizada, que deveria ser conquistada a cada dia, por meio do trabalho, no bairro em que viviam e nas associações que fundaram. A contestação e a busca por autonomia foram uma marca de suas instituições. A Irmandade foi o centro aglutinador dos negros de Santa Maria, tanto na década de 1870, como no período pós-abolição. Em tempos de escravidão, era a instituição que permitia que negros livres ou escravizados pudessem ser protagonistas de suas celebrações e de suas festas. Também era o local de reconstrução da identidade negra, pois ao mesmo tempo em que rememorava o passado africano através das danças, das festas e da escolha de reis e rainhas, incorporava traços novos de religiosidade e de devoção. Estes traços afrocatólicos impressionaram a elite local e a ousadia da Irmandade de desobedecer ao vigário levou a sua dissolução. Em tempos de liberdade, foi a primeira associação que passou a congregar ex-escravos e se tornou um espaço de solidariedade e de busca de melhores condições de vida para seus associados, uma vez que pretendia oferecer as


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condições de acesso a serviços médicos, farmácia, instrução e construir um prédio com os requisitos para um hospital e escola. A construção da Capela do Rosário foi um fator importante para seus integrantes, pois passaram a ter um local de encontro e de manifestação de sua devoção. As festas em homenagem a Nossa Senhora do Rosário tornaram-se tradicionais, deslocando o olhar da cidade para o bairro predominantemente negro. A transformação em “Sociedade Beneficente”, a aproximação com a Igreja Anglicana e a luta pela manutenção de seu templo demonstram o desejo de autonomia e de controle de seu destino. Os interesses dos irmãos do Rosário e os desejos do clero eram divergentes sobre o modelo de comportamento da Irmandade e a posse da Capela do Rosário, o que ocasionou uma disputa jurídica e depois uma disputa de versões. Um discurso que culpava os negros pelos conflitos existentes entre a Irmandade e o clero ganhou força. O argumento relatava que eles eram “religiosamente malformados” e foram influenciados por agentes anticlericais que queriam destruir o catolicismo. Aos poucos, ela foi sendo esquecida e a capela construída pelos negros foi demolida para a construção de uma nova igreja. O bairro foi crescendo, ganhou nova configuração e a história da população negra que existia ali foi sendo ignorada. Nos últimos anos, parte dessa história e dessa memória vem sendo revisitada por novos pesquisadores e por diferentes expressões do movimento negro. O Clube Treze de Maio, transformado em Museu Comunitário, é um marco da luta pela valorização da presença negra no passado e no presente de Santa Maria. Que novos locais sejam identificados e sua importância histórica seja retomada na memória da cidade. Uma nova geração de pesquisadores já tem se dedicado a compreender como a comunidade negra vivia, organizava-se e enfrentava os preconceitos sociorraciais de um local que valorizava apenas seu passado branco e europeu. Esta obra procurou demonstrar os diferentes desafios enfrentados pela população negra, seja em tempos de cativeiro ou de liberdade. Revelou parte da história da Irmandade do Rosário, cuja trajetória foi marcada pelo enfrentamento com os representantes da Igreja. Seus integrantes também enfrentaram as dificuldades da sobrevivência e as possibilidades de organização. Chegamos à conclusão que para homens e mulheres negras, de ontem e de hoje, seja “no alvoroço da festa” ou nas agruras do dia a dia “não havia corrente de ferro que os prendesse, nem chibata que intimidasse”.


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lista de siglas


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LISTA DE SIGLAS

AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre ACSM – Arquivo da Cúria de Santa Maria AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. APNSC-SM – Arquivo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição – Santa Maria AMSSM – Arquivo do Museu Sacro de Santa Maria. ACMSM – Arquivo da Câmara Municipal de Santa Maria AHSM – Arquivo Histórico de Santa Maria ACMEC – Arquivo da Casa de Memória Edmundo Cardoso UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos IHGRS – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul AFSM – Arquivo do Fórum de Santa Maria


Fontes


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FONTES Principais fontes primárias consultadas e organizadas por arquivo ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – PORTO ALEGRE Inventários: João Menna Barreto. Santa Maria. N. 333, Maço 14. Ambrosina Alves Garcia. Santa Maria. Santa Maria. N. 109, Maço 2. Ovídio Vicente do Prado. Santa Maria. N. 420, Maço 09. Sizenando de Oliveira. Santa Maria. N. 355, Maço 08. José Pacheco de Lima. Santa Maria. N. 23, Maço 01. José Marcellino de Souza Bittencourt. Porto Alegre. N. 265, Maço 15. Testamento Marcellino de Souza Bittencourt. Porto Alegre. N. 1165. Habilitação de Casamento: Demétrio Niedereuer e Odemira Barcellso Mariot. Santa Maria, 1914. João Ferreira e Alzira Barboza. Santa Maria, 1917. Ananias Barboza e Alzira Silva. Santa Maria, 1903. José Olegário Pires e Orisontina Silva. Santa Maria. 1923. Ovídio Vicente do Prado. Santa Maria, 1892. Osório Nunes e Maria Manoela. Santa Maria, 1898. Adão Gabriel Haeffner e Maria Gertrudes. Santa Maria, 1920. José Francisco do Nascimento Filho e Jeny da Rosa. Santa Maria. 1930. Saturnino de Almeida Falcão e Benedita Pereira da Silva. Santa Maria. 1892. Pacífico Pereira e Josephina Modesta. Santa Maria. 1909. Manuel Francisco Guedes e Maria Dominga da Conceição. Santa Maria. 1891. Laurentino Paz e vicentina de Moura Falcão. Santa Maria. 1898. Gabriel Haeffner e Julia Breth Haeffner. Santa Maria. 1896. Busca e Apreensão Saturnino de Almeida Falcão. São Martinho da Serra. N. 760, Maço 132. Esbulho Isabel Nunes do Nascimento. Santa Maria. N. 740, Maço 25.


288 Processo- Crime Assassinato de Felipe Alves de Oliveira. Santa Maria. N. 1612, Maço 55. Atentado contra José Marcellino de Souza Bittencourt. Santa Maria. N. 1040, Maço 30. Registro Civil de Nascimentos e Óbitos Livro de Óbitos. Santa Maria. N. 1 ao 34. ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL – PORTO ALEGRE Correspondências. Assuntos Religiosos. Devoções, Irmandades e Sociedades. Caixa 11, Maço 22 Correspondências. Câmara Municipal de Santa Maria. 1858-1867. Caixa 26, Maço 61. Correspondências. Delegacia de Polícia. Santa Maria. Caixa 14, Maço 28. ARQUIVO HISTÓRICO DA CÚRIA METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE – PORTO ALEGRE Livro de Provisões de Irmandades III – 1.1.11/1 Livro de Compromissos de Irmandades III – 1.1.11/2 Livro de Correspondências Expedidas III – 1.1.18/5 Livro de Correspondências Expedidas III – 1.1.18/6 Livro de Correspondências Expedidas III – 1.1.18/7 Livro de Correspondências Expedidas III – 1.1.18/8 Livro de Correspondências Expedidas III – 1.1.18/9 Livro de Correspondências Expedidas III – 1.1.18/10 Livro de Correspondências Expedidas III – 1.1.18/11 Processo de Habilitação de Genere – José Marcellino de Souza Bittencourt Jornal “Estrela do Sul – 1866 Nótulas sobre a Histórica Eclesiástica do Rio Grande do Sul. 1737-1891. Báculo Episcopal: Encíclicas e Pastorais. Paróquia Nossa Senhora Madre de Deus. Porto Alegre. Livro de Casamento nº 11 (1893-1898). ARQUIVO HISTÓRICO DE SANTA MARIA – SANTA MARIA Fundo Câmara Municipal – Caixa 01 – Tomos 01 a 06 Fundo Junta Intendencial – Caixa 01 e 02 – Tomos 01 a 09


289 Fundo Intendência Municipal – Caixa 01 a 96 – Tomos 01 a 582 Processos-Crimes – 01 a 630 – disponíveis online em: http://web2.santamaria. rs.gov.br/arquivohistorico/sistema_descricao_documental/ Jornal “O Estado” – 1903 a 1905 Jornal “A Tribuna” – 1907 a 1910 Jornal “Gaspar Martins” – 1906 Jornal “Diário do Interior – 1911 a 1920; 1936 Jornal “Correio da Serra” – 1925 a 1928 Jornal “A Razão” – 1938; 1942; 1943 Diário de Santa Maria - 2002 Acervo Fotográfico ARQUIVO DA CÚRIA DE SANTA MARIA – SANTA MARIA Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo nº 01 (1814 – 1822) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo nº 02 (1822 – 1845) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo nº 03 (1845 – 1850) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo nº 04 (1851 – 1863) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo nº 4 (1851-1864) – Suplementar. Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo nº 05 (1857 – 1861) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo nº 06 (1861 – 1867) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo nº 07 (1864 – 1869) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo nº 08 (1864 – 1874) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo nº 09 (1874 – 1875) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo - Ventre Livre (1871 – 1888) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Batismo – Retificação (1835 – 1887) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Casamentos nº 06 (1882 – 1887) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Casamentos nº 07 (1887 – 1901) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Casamentos nº 8 (1901-1923). Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Óbitos nº 01 (1814-1863) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Óbitos n. 2 (1863-1895) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Óbitos nº 03 (1895 – 1925) Paróquia Nossa Senhora da Conceição - Livro de Óbitos nº 04 (1925 – 1930) Jornal “O Santuário” – 1985


290 ARQUIVO PARÓQUIA NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO – SANTA MARIA Livro Tombo nº 1 (1837-1860). Livro Tombo nº 2 (1860-1888) Livro Tombo nº 3 (1889-1914) Livro Tombo nº 4 (1915-1944) ARQUIVO DO MUSEU SACRO DE SANTA MARIA – SANTA MARIA Boletim Mensal da diocese de Santa Maria – 1912-1921 Livro de Entrada dos Irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Conceição – 1860-1874 Livro 1 – Crônica da Congregação Mariana -1917 Livro 2 – Crônica da Congregação Mariana - 1923 Livro 3 – Crônica da Congregação Mariana – 1931 ARQUIVO DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA MARIA – SANTA MARIA Câmara Municipal de Santa Maria. Livro de Atas (1872-1882) Câmara Municipal de Santa Maria. Livro de Atas (1882-1886) Câmara Municipal de Santa Maria. Livro de Atas (1888-1892). Revista do Centenário de Santa Maria – 1914 ARQUIVO DA CASA DE MEMÓRIA EDMUNDO CARDOSO – SANTA MARIA Jornal “O Combatente – 1888; 1892; 1893; 1895 a 1904 Jornal “O Estado” – 1898 - 1901 Revista “Reacção” – 1915 a 1917 Acervo Fotográfico ARQUIVO DO MUSEU TREZE DE MAIO – SANTA MARIA Sociedade Treze de Maio. Livro de Atas 01 (1903-1014). ARQUIVO DO FÓRUM DE SANTA MARIA- SANTA MARIA Processo de Imissão de Posse. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Santa Maria.


291 ACERVOS DIGITAIS Acervo Digital da Biblioteca Nacional http://bndigital.bn.br/acervodigital/ Portal da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias https://familysearch.org/search/ Acervo Digital do Arquivo Público do Rio Grande do Sul http://www.apers.rs.gov.br/portal/index.php?menu=aap Acervo digital do Arquivo Histórico de Santa Maria http://web2.santamaria.rs.gov.br/arquivohistorico/sistema_descricao_documental/


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315

Anexos


316

ANEXOS 01 Abolição da Escravidão em Santa Maria Após uma luta, uma luta sem tréguas por muitíssimos anos, está extinta a escravidão em nossa cara pátria! Nós que somos amantes do progresso e da civilização, nós que amamos a liberdade, igualdade e fraternidade, podemos agora com altives dizer: Não temos mais escravos no Brasil! Acabou-se a escravidão, essa mancha horripilante que nos foi legada pelos nossos antecedentes há mais de trezentos anos e que se prolongou até nossos dias! Essa mancha que era nossa vergonha perante a humanidade e as nações civilizadas! Será um sonho? Será um conto das Mil e Uma Noites? Não, é a realidade. No dia 13 do corrente passou no senado em 3ª discussão a libertação total dos escravos!! O público Santa-mariense, amante da liberdade, do progresso e da civilização, que acompanhou o movimento abolicionista de 1884, libertando seu município com raras exceções não podia deixar passar despercebida tão faustosa e agradável notícia. Assim é que, mais uma vez prestou culto a tão grande acontecimento promovendo uma manifestação popular que ocorreu do seguinte modo: Ao escurecer, grande número de povo começou a reunir-se nas casas dos Srs. Ramiro de Oliveira e João Ignácio de Souza, pontos destinados para a reunião, e aonde consecutivamente soltavam inúmeros foguetes. Logo que chegaram as bandas de música do maestro Alexandre e Lira Santa-mariense seguiu o préstito em direção ao Hotel Leon, de onde de uma das janelas oraram os Srs. Dr. Joaquim Pereira da Costa e Ernesto de Oliveira, sendo ambos freneticamente aplaudidos. Daí seguiu o préstito ao som da música e ao estrugir de centenas de foguetes a percorrer as ruas da cidade. O contentamento popular chegou ao maior auge. O préstito seguindo em primeiro lugar pela rua do Acampamento, voltou, parando na rua do Comércio no Hotel Mascorda. onde também falou de uma das janelas o Sr. Julio Gomes Porto, que foi entusiasticamente aplaudido. Continuando o préstito até a praça da Constituição, parou em frente da tipografia da Província e aí falou o Sr. Julio Gomes Porto, que saudou os Srs. Ernesto de Oliveira e Herculano dos Santos como representantes da imprensa livre. Responderam a essa saudação àqueles Srs. sendo ambos muito aplaudidos. Voltando o préstito, parou em frente da Tipografia do Popular, onde orou o Sr. Ernesto de Oliveira, saudando o Sr. Herculano dos Santos, como redator do Popular e Combatente. O Sr. Herculano respondeu da sacada do Clube Caixeiral, que é contígua a tipografia, e na qualidade de orador do mesmo Clube, convidou o povo para tomar parte numa sessão comemorativa que o Clube ia fazer em regozijo da libertação total. Tendo entrado grande massa de povo o Sr. Presidente disse


317 qual o fim da reunião e abriu a sessão, convidando o Sr. Manoel Carneiro, na qualidade de funcionário público, para ocupar a cadeira da presidência. Este Sr. aceitando a incumbência deu imediatamente a palavra ao orador do Clube. Depois do orador do Clube falaram sucessivamente os Srs. Dr. Pereira da Costa, Ernesto de Oliveira, Julio Porto, Irineu Pereira, João Ferreira Bastos Sobrinho e finalmente ainda o orador do Clube, sendo todos freneticamente aplaudidos. Durante toda a sessão reinou sempre muita animação e entusiasmo. O Sr. Presidente ad-hoc encerrou a sessão às 11 horas. Assim é que o Clube Caixeiral, que também colocou sua pedrinha no edifício que se chama – Redenção dos cativos – coroou a obra com a sessão comemorativa. Eis aí em pálidas linhas a descrição desta festa. A liberdade dos escravos abriu para nossa pátria uma nova fase. Agora que o trabalho é livre, que não imperará mais o chicote e o bacalhau, abriu-se uma nova era para a nossa pátria. Felicitemo-nos todos por esse passo que acabamos de dar na senda do progresso e da civilização, e sirvanos ele de estímulo para outros cometimentos arrojados e grandes. Jornal “O Combatente”. 20 de maio de 1888, Ano II, Nº 18, p. 01-02. ACMEC


318

ANEXO 02


319

sobre o autor: Ênio grigio é professor do Instituto Federal Farroupilha – Campus Júlio de Castilhos. É Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo (1995), Licenciado em História (2001), Especialista em História do Brasil (2003), Mestre em Integração Latino-Americana (2005) pela Universidade Federal de Santa Maria e Doutor em História (2016) pela Unisinos.



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