Ibaditas: fundamentalistas e tolerantes

Os omanitas pertencem, na sua maioria, a um ramo do Islão que começou por ser extremista – os kharijitas. Foi um deles que assassinou Ali, o genro de Maomé, quarto califa e primeiro imã xiita. Os discípulos do teólogo Abdullah ibn Ibad sobrevivem porque, embora fiéis a rígidos princípios morais, adoptaram a moderação como política. (Ler mais | Read more…)

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Cumprimentar alguém em Omã, seja um familiar, amigo ou estranho, é como um cântico, afectuoso e longo: “Como está? Que notícias traz de onde vem? Que as notícias sejam sempre boas. Seja muito bem-vindo.”

E se for hora de refeição, ficará também feito um convite, para almoçar ou jantar. Este ritual, provavelmente único no Médio Oriente, incluindo na região do Golfo Pérsico onde se situa o sultanato que os portugueses dominaram durante 144 anos (de 1506 a 1650), exprime a hospitaleira religiosidade dos omanitas.

Este é um povo que segue à risca os preceitos islâmicos definidos pelo seu profeta, Maomé, conseguindo no entanto adaptá-los à era da globalização.

Enquanto nos guia pelos mais belos lugares do seu país, Saeed Abdullah Al-Hashli, um cientista político que trabalha para o departamento de relações públicas do Ministério da Informação, em Mascate, organiza o itinerário de modo a parar, à hora certa, para fazer as orações obrigatórias do dia.

O templo pode ser a imponente Grande Mesquita Sultão Qaboos, na agitada capital, ou um humilde santuário na tranquila aldeia de Misfat al A’Briyeen, no alto de um monte com vista paradisíaca, onde as casas de terracota se escondem de olhares predadores em becos estreitos e caminhos de pedra em forma de serpentina.

Se o tempo escasseia, Saeed e Ahmed, o motorista, condensam duas preces numa só. Se as vestes não são apropriadas, na bagageira do carro estará sempre a roupa indicada para louvar Alá sem ofensa corporal.

Saeed, 28 anos, é um ibadita de fé inabalável. Questionado sobre como consegue manter imaculada a sua disdasha (túnica tradicional) branca, imune à areia do deserto ou à poeira do souk (bazar), responde como se quisesse converter-nos: “Deus é belo e gosta do que é belo; Deus é limpo e gosta do que é limpo.”

© Mohammed Mahjoub | AFP | The National

Os fundamentos da religião são para cumprir, diz Saeed. No entanto, às vezes é preciso ser flexível. Ele que anda à procura de noiva gostaria que ela trabalhasse e não fosse apenas dona de casa.

Não a obrigaria a ocultar o cabelo com um hijab, mas não a dissuadiria se ela optasse por esconder o rosto, como fez a sua mãe, que usa uma máscara colorida sobre o nariz, deixando ver apenas os olhos e a boca. Esta máscara é, em algumas regiões, indicador de que a mulher é casada.

Saeed sonha, também, aprofundar os seus conhecimentos no estrangeiro, quiçá nos Estados Unidos, para “estabelecer pontes com todos, incluindo os israelitas”.

Esta abertura, talvez, justifique a sua veemente negação de que os ibaditas sejam um ramo dos khawaridj ou kharijitas, uma extremista seita do Islão responsável pelo assassínio de Ali, genro de Maomé e quarto califa, como alega a maioria dos islamólogos.

Roger Arnaldez [1911-2006], um dos autores de Dictionnaire de l’Islam, Religion et Civilisation, clarifica que os ibaditas descendem efectivamente dos kharijitas mas separaram-se deles em 684 d.C., quando Abdullah ibn Ibad, o teólogo fundador da doutrina com o seu nome, “adoptou em relação aos muçulmanos de outras seitas uma atitude mais clemente e mais tolerante.”

“Várias razões explicam a sobrevivência dos ibaditas”, observou Arnaldez. “A sua relativa moderação, que fez com que os califas e generais não tentassem exterminá-los como aconteceu com os azraqitas, outra seita kharijita; a coragem e tenacidade que demonstraram na adversidade; mas sobretudo o perseverança em conservar e transmitir as suas doutrina e tradições.”

Os omanitas foram os primeiros povos a converter-se ao Islão, em 630 a.C., quando Maomé enviou um dos seus líderes militares,`Amr ibn al-`As, para se encontrar com Jaifar e ‘Abd, governadores conjuntos de Omã, e os convidar a juntar-se à “umma”, comunidade de crentes.

Havia uma guarnição persa, que era zoroastra, e uma comunidade árabe, que era cristã. Os persas rejeitaram a nova fé e foram expulsos pelos árabes que a aceitaram. A partir do século VII, Omã tornou-se um baluarte muçulmano, ajudando a propagar a fé no Sudeste da Ásia e na África Oriental e Ocidental.

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Os ibaditas apareceram antes do cisma entre sunitas e xiitas. Tudo começou, descreve Liesl Graz, em The Omanis, Sentinels of the Gulf, na Batalha de Siffin, quando Ali aceitou uma proposta do seu opositor, o governador da Síria, Mu‘awiya, de prender as páginas do Corão às pontas das lanças dos seus homens como sinal de que apelava à arbitragem divina.

Na altura, foi proclamada uma trégua, e o processo de arbitragem foi marcado para o ano seguinte. Ignorando conselhos dos que lhes estavam mais próximos, Ali concordou pôr em perigo o seu califado, que era perfeitamente legítimo, e essa decisão foi considerada inaceitável por alguns dos seus discípulos, que o abandonaram.

Chamaram-se a si próprios “kharijitas” – os que se vão embora – tornando-se uma terceira parte na disputa entre sunitas e xiitas e, ao mesmo tempo, a primeira seita islâmica.

No processo de arbitragem, Mum‘awiya foi proclamado califa, mas Ali rejeitou o julgamento em que foi deposto e continuou a ostentar o título de “Comandante dos Fiéis”. Os kharijitas, no entanto, nunca lhe perdoaram por ter submetido à vontade humana o poder que lhe tinha sido conferido por Deus. Numa manhã de Janeiro do ano 661, Ali foi assassinado no pátio da mesquita de Kufa (actual Iraque) por Ibn Malgoum, kharijita azraqita.

A mesquita que o sultão pagou

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Em Omã há [em 2005] mais de 13.000 mesquitas de vários estilos arquitectónicos, mas nenhuma rivaliza em beleza – na riqueza interior e na simplicidade exterior – com a Grande Mesquita Sultão Qaboos, em Mascate, a capital.

Foi o monarca que a mandou construir e pagou do seu próprio bolso (além de governante, ele é um homem de negócios com acções em companhias como a Rolex).

A Grande Mesquita começou a ser construída em 1995 e foi inaugurada em 2001. Tem cinco minaretes representando os cinco pilares do Islão e a sua cúpula central ergue-se a 50 metros de altura.

Abrangendo uma área de 416 mil metros quadrados, pode acolher até 16.000 crentes. A pedra usada nas paredes e chão foi importada da Índia. Em Mascate, cortaram-na e trabalharam-na à mão com perfeição geométrica.

As portas, as janelas, os arcos, os nichos e os vitrais, com motivos florais e inscrições do Corão, foram concebidos de forma a preservar luz e sons.

A carpete persa de 21 toneladas e 28 cores que cobre todo o salão principal (4263 metros quadrados) foi costurada durante quatro anos por 600 mulheres, em Nishapur, na província iraniana de Khurassan.

Os retoques finais, para juntar todas as 58 peças numa só, demoraram 27 meses. Os candeeiros suspensos do tecto são feitos de cristal Swarovski com filamentos banhados a ouro. O maior tem 1.122 lâmpadas e pesa 800 quilos.

© worldarchitecture.org

À tarde, quando o Sol se põe, ao enorme parque de estacionamento do grandioso edifício, vão chegando vários automóveis. Os homens seguem um caminho; as mulheres outro. As crianças com menos de 10 anos de idade não podem entrar.

A segregação é incompreensível aos olhos dos que não partilham a fé. Saeed Al-Hashli o nosso guia, tenta justificar:

– “O facto de as mulheres ficarem separadas, na parte de trás, não as inferioriza. É uma protecção. Os homens são fracos. Além disso, aos olhos de Deus, os que estão na fila da frente não são necessariamente os mais importantes.”

Indiferente a estes argumentos, uma jovem pára o seu carro junto ao nosso. Sem véu mas com o lenço bem apertado à cabeça, sem deixar escapar um fio de cabelo, guarda os sacos de hambúrgueres que comprou no McDonalds no banco de trás.

Ouve as mensagens no telemóvel e faz uma última chamada. Retoca a maquilhagem dos olhos e lábios. Compõe a saia comprida e segue, em passo confiante, em direcção à rampa exclusivamente feminina que a conduzirá à oração.

Quando o muezzin chama os fiéis pelo altifalante, a mesma voz ecoa no rádio do nosso todo-o-terreno. À volta tudo é silêncio. Como se Deus tivesse deixado a mesquita para se encontrar com os incrédulos.

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Estes dois artigos, agora revistos, foram publicados originalmente no jornal PÚBLICO em 9 de Maio de 2005 | These two articles, now revised, were originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on May 9, 2005

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