Investigação criminal e científica

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"Se comparássemos a vida em sociedade a um vulcão em actividade, poderíamos dizer que a Polícia trabalha com a lava incandescente, ao passo que os restantes operadores sociais (Juízes, Ministério Público, etc.) agem sobre a lava arrefecida ou em vias de arrefecimento. Os funcionários policiais actuam na linha da frente, submetidos às maiores pressões psicológicas, aos maiores riscos, lá onde se estabelecem as fronteiras do medo, da dor ou da exclusão social, lá onde qualquer erro pode ser fatal, lá onde a linha que separa o herói do vilão depende tantas vezes da sorte" (José Vicente Gomes de Almeida, Procurador da República – Congresso ASFIC-PJ)


A investigação criminal desenvolve-se, lógica e pragmaticamente, em termos semelhantes à investigação científica. Além de se socorrer de conhecimento científico oriundo de outras ciências, ela própria se desenrola segundo o método científico, seja pela aplicação a cada caso concreto de técnicas de pesquisa próprias da ciência (qualitativas, sobretudo), seja pela generalização de certas conclusões encontradas num conjunto de investigações e sua aplicação noutros casos particulares (tendencialmente, quantitativas).

A investigação criminal parte do conhecido para o desconhecido (retrocedendo no tempo até â obtenção de elementos que a projetem, de novo, para o momento do crime), descobre, recolhe, conserva, examina e interpreta as provas reais. Localiza, contacta e apresenta as provas pessoais. Utiliza métodos adequados (tática de investigação) e processos apropriados de atuação técnica (técnica de investigação). Consiste numa pesquisa sistemática, administrada estrategicamente, com método e objeto próprio e um fim específico. Inclui três “ferramentas” essenciais:

- Informação (processamento dos dados, factos e notícias recolhidas através de um método próprio – é absolutamente essencial e transversal);

- Interrogação (conjunto de procedimentos tendentes à obtenção de prova pessoal. A investigação exige conhecimentos ao nível do relacionamento interpessoal - soft skills, incluídos);

- Instrumentação (conjunto de procedimentos tendentes à obtenção de prova material, consistindo na capacidade de observar, analisar e interpretar a realidade dos factos).

As dimensões da informação, da interrogação e da instrumentação, assim como os elementos de inteligibilidade da racionalidade e da lógica subjacentes ao método da investigação criminal tendem a operar em três níveis de raciocínio. Referimo-nos à articulação entre o raciocínio jurídico, histórico e operacional, no processo de reconstrução do facto (os 3R’s).

O investigador criminal baseia-se em técnicas, métodos e conhecimentos específicos (multi, inter e transdisciplinares), procurando resposta para as questões sacramentais da IC: Quem fez (ou se prepara para fazer) [autoria] o Quê [infração], Onde [espaço], Quando [tempo], Como [modus operandi] e Porquê [móbil], assumindo o perfil de um pesquisador, capaz de argumentar e convencer, sustentado na prova produzida (testabilidade, falseabilidade),

James Gilbert afirma que o método da investigação criminal se funda na aplicação do método científico à necessidade de conhecer, tanto o delito como o processo. Distingue cinco níveis: (1) a enunciação do problema (com a definição do objeto; a identificação do suspeito; sua localização; detenção; e recuperação de tipos de prova); (2) a elaboração da hipótese (produto do conhecimento recolhido; do motivo; e dos meios identificados); (3) observação e experimentação (através da avaliação dos resultados da hipótese); (4) interpretação dos dados (a inteligibilidade dos resultados das observações e das experimentações); (5) e a elaboração de conclusões (o problema enunciado foi resolvido? as provas sustentam a hipótese? cada fase da investigação encontra-se conforme a legalidade? a interpretação dos dados sustenta a recomendação para uma acusação?).

Num paralelismo com a investigação científica, ao paradigma ou teoria corresponde o quadro mental e teórico (pensamento complexo), ordenado em função das tipologias criminais sob escrutínio, dos limites e condicionantes legais (o processo penal é direito constitucional aplicado) e das boas práticas de investigação criminal que lhe estão associadas (referencial). 

O ponto de partida é, por conseguinte, a identificação de um problema (o objeto da investigação é o crime, a notícia de um facto criminoso, o problema a partir do qual a metodologia de investigação se desenrola). A compreensão da complexidade do problema, a definição de um propósito claro, as ferramentas tecnológicas à disposição, o recurso a técnicas consolidadas, a composição de uma estrutura que permita o desenvolvimento otimizado da investigação, com pessoal altamente qualificado (recursos humanos), são absolutamente essenciais à busca da verdade material/processual. No fundo, à semelhança da Estratégia (não há investigação criminal sem uma dimensão estratégica), analisar o ambiente (externo e interno), definir o(s) objetivos(s) a alcançar (o quê?), a forma de os conseguir (como?), o tempo (quando?), o local (onde?) e os meios a empregar (com que forças?), tendo em conta o objetivo traçado pela política (para quê?)

A similitude com métodos e técnicas da investigação científica é notória, conforme a representação gráfica que se segue: 


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Com natureza, essencialmente, qualitativa, a formulação de hipóteses (coexistem e são testadas em simultâneo) resultantes da análise à notitia criminis antecede o planeamento estratégico (o plano de ação é flexível e dinâmico, podendo ser reformulado em face da

alteração de circunstâncias ou cenários que vão surgindo no decorrer da investigação -estratégia emergente), a pesquisa, recolha e análise de dados (informação, a partir do momento em que adquirem significado dentro de um determinado contexto), num processo de análise, correlação e síntese (socorrendo-nos de diferentes linguagens, formulação, operacionalização, avaliação e controlo/monitorização; briefing, follow up e debriefing), e a identificação de vazios, no preenchimento das questões sacramentais da investigação criminal (Quem fez o Quê? Quando? Onde? Como e Porquê? em que as respostas resultarão sempre da recolha, análise, tratamento e gestão da informação - no seu sentido mais lato - obtida ao longo do procedimento investigatório). 

Afastada(s) a(s) hipótese(s) inicial(ais), o processo recomeça, num ciclo investigativo criminal sem fim.

Para complementar as informações obtidas numa primeira fase, v.g., elementos recolhidos em fontes abertas (OSINT), nas bases de dados disponíveis, internas e externas, histórico de casos e/ou modi operandi (análise de informação criminal) ou a inspeção efetuada ao local do crime (em especial, nos crimes de cenário), uma “revisão da literatura” (em particular, no âmbito da criminalidade económico-financeira), pesquisa bibliográfica e documental (aqui incluída a legislação e regulamentação dos mais diferentes institutos, entidades, regras e procedimentos, nacionais e europeus) e, subsequentemente, trabalho de campo, recolhendo informação no meio criminal (HUMINT – testemunhas, colaboradores/informadores), procedendo a vigilâncias [técnica que consiste na monitorização discreta e (mais ou menos) constante, sobre um alvo - pessoa, coisa ou local], realização de perícias e entrevistas (inquirições e interrogatórios), buscas, interceções telefónicas e demais meios de obtenção de prova e técnicas especiais de investigação que, concatenados, constituirão o acervo processual, o material probatório, com vista à prolação de um despacho de acusação, que fixa o objeto e conclui a fase de inquérito, permitindo a passagem à fase seguinte, a instrução (facultativa, no ordenamento jurídico nacional) e, após (eventual) pronúncia, à fase de julgamento, nos termos do CPP (a prova faz-se em julgamento).


(…)


Em qualquer caso, constituem fatores de sucesso do processo de pesquisa, o foco, disciplina e responsabilidade, os níveis de autoexigência e dedicação permanente, a capacidade de sacrifício, organizativa e de síntese, a resiliência, experiência e conhecimento adquirido no exercício da atividade profissional (saber e saber fazer).

A atividade investigativa criminal, tal como a atual conjuntura, “exige uma metodologia de pensamento complexo” (A. Moreira, in Ribeiro, 2010, prefácio), o que implica criatividade, inovação e adaptação. A ideia de um “DETETIVE HÍBRIDO” (o investigador está tão confortável com as novas tecnologias quanto com as técnicas e métodos tradicionais) e/ou de “POLÍCIA CIENTÍFICO” (em que planeamento e ação se alicerçam em teorias, boas práticas e lições aprendidas). 

Trabalho em equipa (visão global, transversal, interativa, multi, inter e transdisciplinar) e divisão de tarefas, liderança, organização e disciplina (“A arte da guerra”, Sun Tzu), apoiados em princípios e valores como a lealdade, a unidade, a perseverança, espírito de sacrifício e sã convivência (“A sabedoria dos lobos” – Twiman, T.)

Socorrendo-nos de Cardeal (2018), assinalem-se alguns aspetos essenciais à operacionalização da perspetiva da complexidade nesta atividade:

- A primazia da situação, em que a capacidade de adaptação é determinante;

- A identificação e a reação ao estímulo, em que os mesmos eventos estimulam diferentes

ações em diferentes momentos e/ou indivíduos;

- A antecipação (e vantagem) estratégica;

- O todo que é, desejavelmente, maior que a soma das partes (será, sobretudo e seguramente, diferente da soma das partes);

- O todo que vem primeiro, porque conhecemos as coisas pela sua globalidade, intuitivamente e em função do que já experimentámos, do que já somos, do que já conhecemos;

- A contextualização (o que quer que seja, é num determinando contexto);

- A interação e relacionamento interpessoal em equipas de investigação criminal, bastas vezes com maior influência ou relevância do que as ordens de topo (numa atividade hierarquicamente estruturada);

- As estruturas dissipativas, que necessitam de um influxo contínuo de energia, papel do líder;

- A teleonomia, ou seja, o projeto, o propósito, a direção que existe nos sistemas vivos;

- A noção longe-do-equilíbrio que leva à superação (os sistemas vivos organizam-se,

sobrevivem e prosperam longe de condições ou situações de equilíbrio);

- A segunda lei da termodinâmica (a tendência universal para a desorganização e para o caos);

- A cultura estratégica (e geracional).


O pensamento estratégico caracteriza-se pela criatividade e divergência, é intuitivo e sintético. Sucintamente, quanto às suas principais fundações, anotem-se: 1) A capacidade de pensar fora da caixa (think out of the box); 2) de identificar formas de fazer as coisas; 3) de transformar as ideias em algo útil e executável. 

Quanto aos elementos que as integram (no que à investigação criminal diz respeito), destacam-se:

- Ver a floresta e não as árvores (visão integrada da realidade ou dos problemas)

- Colocar em causa os paradigmas tradicionais (desafiar o status quo)

- Juntar os tópicos da visão integrada para que façam sentido

- Isolar questões relevantes a partir de contextos integrados

- Criar sinergias para que o todo seja maior que a soma das partes

- Pensar de forma holística e criativa

- Ver a intuição como parte relevante do processo de decisão


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