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O �LTIMO DA RA�A

Louis L'Amour

T�tulo original: Last of the breed


Copyright 1986 Louis L'Amour Enterprises
Tradu��o: Rui Costa
Copyright tradu��o � Editora Globo S.A.
Composi��o: Artestilo Compositora Gr�fica Ltda.
Editora Globo S.A.

CIP-Brasil. Cataloga��o-na-fonte
L'Amour, Louis, 1908-
I-233u O �ltimo da ra�a / Louis L'Amour; tradu��o Rui Costa. - Rio de
Janeiro : Globo, 1987.
ISBN 85-250-0258-5
1. Fic��o norte-americana 1. T�tulo.
87-0867 CD13-813.5
�ndices para cat�logo sistem�tico:
1. Fic��o : S�culo 20 Literatura norte-americana 813.5
2. S�culo 20 : Fic��o Literatura norte-americana 813.5

Para John e Carol Lee Veith


Velhos amigos, bons amigos,
os melhores amigos.

PR�LOGO

O soldado colocou sobre a mesa diante do coronel Zamatev o pacote achatado,


embrulhado em pele de animal, e recuou um passo, assumindo uma postura r�gida e
atenta. Antes de demonstrar algum interesse pelo pacote, o coronel observou bem o
soldado.
A fome, o frio e o cansa�o de longas caminhadas haviam minado as for�as e a
sensibilidade daquele homem. Os olhos fundos, ele aguardava ordens.
- Voc� n�o viu Alekhin?
- N�o, senhor.
- E o americano? Voc� o viu? Ele falou com voc�?
- Recebemos ordens para mat�-lo, para atirar nele assim que o v�ssemos. Eu o vi de
relance entre as �rvores e fui atr�s. Era meu dever mat�-lo. Ele se mexeu, eu
percebi uma brecha entre duas �rvores e avancei.
- E a�?
- Era uma armadilha. Entre as duas �rvores havia uma corda feita de galhos,
escondida pela moitas. Tropecei e ca�. - O soldado levou a m�o � testa, onde ainda
se viam sinais de machucado. - Bati a cabe�a com for�a. Quando acordei, ele estava
de p�, perto de mim.
- Estava armado?
- Estava com minha espingarda e minha faca. A boca da espingarda estava encostada
na minha garganta. Ele ficou me olhando por longo tempo e depois disse: �Voc� �
novo demais para morrer. Fique a� deitado e v� contando at� cem. Quando terminar,
levante-se e leve este pacote ao coronel Zamatev. Mas entregue-o somente a Zamatev,
a mais ningu�m. Entendeu? Mais ningu�m. E diga-lhe para abrir quando estiver
sozinho".
- S� isso?
- S�.
- E voc� contou at� cem?
- O que � que eu podia fazer? Ele tinha me tomado a espingarda. Tinha sumido.
O coronel Zamatev observou-o sem o m�nimo sinal de piedade.
- S� isso? S� isso mesmo?
Havia pavor nos olhos do soldado. Desesperado, olhava de um lado para outro.
- Ele disse...
- Disse o qu�? - Zamatev inclinou-se para frente. - Ouviram-no falar de novo. E
ouviram voc� responder. O que voc�s conversaram?
Aflito, o soldado engoliu em seco. O suor brotava-lhe da testa.
- Ele... Ele disse: "Voc� est� a dois dias da sua unidade. Vai tentar ir at� l�,
mas n�o deve chegar em menos de dois dias, est� entendendo? Se chegar � sua unidade
antes de dois dias, eu vou atr�s de voc� e te mato".
- Voc� acreditou nele?
- Ele era perverso! Um dem�nio! Senti medo.
- Quanto tempo voc� demorou para alcan�ar a unidade?
O soldado n�o tinha mais nenhuma esperan�a.
- Quase... Quase dois dias.
Zamatev voltou-se para seu ajudante-de-ordens, Suvarov.
- Foi o Yakut que ouviu o homem falar? A que dist�ncia ele estava de sua unidade?
- Menos de meio dia de viagem, coronel. - Zamatev olhou para o soldado.
- Leve-o daqui, tenente. N�o quero v�-lo outra vez.
Depois que o soldado foi levado para fora da sala, seguiu-se um longo sil�ncio. O
tenente Suvarov aguardava, o cora��o batendo pesado. Zamatev iria responsabiliz�-
lo? Mudou o apoio de um para o outro p�; gostaria de ter coragem de sentar-se.
Zamatev fora at� a janela e olhava para as instala��es l� fora. Era forte, um pouco
encurvado, e vestia um palet� simples de uniforme. Um palet� que naquele momento
poderia estar coberto de condecora��es, se o coronel quisesse us�-las.
Mas ele era como aquela sala, um homem que precisava apenas do m�nimo necess�rio.
Ali havia uma mesa com cadeira girat�ria, estante com duas prateleiras, um cesto de
lixo, uma cadeira em frente � mesa e um banco encostado � parede. Suvarov conhecera
salas de outros oficiais do mesmo escal�o de Zamatev e elas nunca eram iguais
�quela.
Zamatev voltou-se para ele.
- Ent�o, ele nos escapou outra vez...
- Alekhin o encontrar� - disse Suvarov. - Alekhin n�o sossegar� enquanto esse
americano n�o estiver morto. Alekhin nunca desiste, e essa � uma quest�o pessoal
dele. N�o sossegar� nunca.
Zamatev olhou em sua dire��o.
- Est� dispensado, tenente. Quero v�-lo de manh�.
- De manh�, senhor? Mas eu mal...
Os olhos de Zamatev estavam g�lidos.
- De manh�, Suvarov.
Assim que o tenente saiu, contornou a mesa e se sentou, o olhar fixo no embrulho em
pele de animal a sua frente. Era o couro curtido de um animal pequeno, muito leve e
amarrado com tiras de couro cru. Alguma coisa ele continha. Algo leve, por�m rijo.
Um peda�o de casca de �rvore, talvez?
O remetente do pacote provavelmente n�o dispunha de papel ou de barbante havia
muito meses. O pacote era apenas um dado a mais numa busca que, quando parecia
pr�xima do fim, tornava a come�ar com nova fuga do americano.
Haveria outros americanos como aquele? Ou seria ele o �nico? Pela primeira vez, em
tantos meses, o coronel Arkady Arkadovitch Zamatev come�ava a duvidar da capacidade
de seus superiores.
Pegou o embrulho e, sem pressa, com dedos cuidadosos, come�ou a desfazer os n�s,
ignorando a faca ao alcance da m�o.
CAP�TULO 1

O major Joe Makatozi saiu � luz de um sol de fim de tarde. A primeira coisa que
tentava lembrar era a dura��o dos dias naquela latitude. Seus olhos observavam �
direita e � esquerda.
Uns trezentos metros de comprimento, uns cem de largura, tr�s torres de vigil�ncia
de cada lado, dois homens em cada uma delas. Uma metralhadora, montada em cada
torre, al�m de uma outra, de m�o, com cada um dos guardas.
Seguia atr�s do tenente Suvarov, dois guardas a escolt�-lo. Cinco edif�cios com ar
de caserna, um outro sendo constru�do, prisioneiros em quatro dos cinco edif�cios,
mas nem todas as celas ocupadas.
N�o alimentava ilus�es. Fora feito prisioneiro e, assim que obtivessem a informa��o
que possu�a, matariam-no. Embora estivesse longe de qualquer oceano, sentia no ar
um frescor que lhe lembrava o litoral. Seguia confiando na sua primeira impress�o.
Estava em algum lugar pr�ximo ao lago Baikal, na Sib�ria.
Uma faixa branca, a uns dois metros do arame farpado, marca o limite de aproxima��o
dos prisioneiros. A cerca propriamente dita era de uns tr�s metros e meio de
altura, com vinte fileiras bem esticadas de arame eletrificado. Da cerca at� a orla
da floresta talvez houvesse uns sessenta metros.
Seus captores eram as �nicas pessoas que sabiam que ele ainda estava vivo. N�o
haveria investiga��es, nem sutis manobras diplom�ticas. N�o contava com nada nem
ningu�m.
Tudo dependia exclusivamente dele. E s� tinha uma vantagem a seu favor: Os captores
n�o tinham a menor no��o do tipo de homem que haviam aprisionado.
Foi levado a uma sala tipicamente militar. Sentado � mesa, um homem alto, de ombros
largos, observou Joe Makatozi com um olhar perscrutador.
Era a primeira vez que o coronel Arkady Zamatev via diante de si aquele homem que,
por mais de um ano, fora o centro de todas as suas preocupa��es.
At� agora, o plano que ele pessoalmente organizara tinha funcionado com uma
precis�o de que podia muito bem se orgulhar. Quando ele se prop�s a capturar o
major Makatozi, seus superiores pensaram que estivesse louco. Contudo, restava
ainda obter, com urg�ncia, informa��es sobre os prot�tipos de novos avi�es que os
americanos estavam desenhando. Makatozi, como piloto, tinha testado quase todos.
Al�m disso, acompanhara a constru��o de alguns, e sugerira aperfei�oamentos.
Zamatev era o �nico a saber que, na divis�o de alistamento de pessoal do Ex�rcito
americano, havia tr�s agentes trabalhando para os sovi�ticos, sem que um tivesse
conhecimento da exist�ncia dos outros dois. Os tr�s eram americanos e, pelo menos
at� ent�o, n�o surgira suspeita alguma quanto a suas atividades. Manobras
trabalhosas tinham sido feitas para coloc�-los no lugar certo, em caso de uma
emerg�ncia como aquela. Gra�as a esses agentes, Zamatev conseguira que o major
Makatozi fosse designado paro o comando do Alasca, onde, antes de come�ar os testes
com uma nova aeronave, faria um curso de reciclagem de v�o em regi�es �rticas.
N�o fora dif�cil. Algu�m dissera, casualmente, alguma coisa a respeito de pilotagem
do novo avi�o em regi�es sub�rticas e dias depois surgira a quest�o do curso de
reciclagem, no caso de o major Makatozi ser indicado para testar o novo avi�o. O
resto era por conta de Makatozi.
J� fazia quatro anos desde que fora constru�do o campo de prisioneiros secreto. O
plano surgira a partir da necessidade de se conhecer o grau de desenvolvimento da
tecnologia militar e naval de americanos e ingleses, assim como suas poss�veis
subdivis�es. As demais provid�ncias ficaram a cargo dos servi�os das For�as
Armadas, em conjunto.
A id�ia era muito simples. Localizar e depois capturar indiv�duos-chaves no pessoal
militar, lev�-los para aquele campo - de cuja exist�ncia apenas as figuras mais
poderosas do Politburo tinham conhecimento -, extrair deles toda a informa��o e,
ent�o, dar-lhes um fim. Seriam alguns poucos desaparecimentos, isolados e sem
nenhuma rela��o aparente. Era praticamente nula a possibilidade de se suspeitar de
alguma coisa.
As opera��es tinham come�ado dois anos antes, com a captura de um sargento-major,
uma figura sem destaque que, no desenvolvimento rotineiro de seu trabalho, entrara
por acaso em contato com informa��es muito importantes. Aquele fora um sucesso
modesto. Depois viera o qu�mico Pennington...
Ao sentir o olhar do novo prisioneiro, o coronel Zamatev irritou-se. Os olhos de um
azul acinzentado n�o combinavam com o rosto moreno e anguloso, mas era o ar
arrogante e ao mesmo tempo frio que lhe despertava a ira. Nunca vira isso em
prisioneiros que ia interrogar. N�o era s� a arrogancia que irritava Zamatev, mas
tamb�m uma esp�cie de menosprezo e indiferen�a.
O coronel Zamatev estava seguro de que o dossi� ali na sua mesa continha tudo sobre
o prisioneiro; Curso superior completo, atleta que participara de v�rias
competi��es internacionais, campe�o de decatlo de n�vel ol�mpico. Obtivera grau de
excel�ncia no manejo de diversas armas de fogo, quando na For�a A�rea, al�m de ser
considerado um perito em artes marciais. Tudo era bastante objetivo e direto. Al�m
do mais, no Ex�rcito, na Marinha e na Aeron�utica, dezenas de oficiais granjeavam
curr�culo semelhante �quele.
Mesmo dispondo de tanta informa��o a respeito do piloto americano, Zamatev
desconhecia um fato essencial. Sob aquele verniz de instru��o, cultura e
profissionalismo encontrava-se um selvagem adormecido.
Diante do coronel Zamatev os prisioneiros geralmente mostravam-se amedrontados ou
cautelosos. Todos afinal conheciam as hist�rias de lavagem cerebral, tortura...
Esse homem por�m n�o demonstrava medo nenhum, nem mesmo inseguran�a, Zamatev
sentia-se profundamente irritado por uma sensa��o vaga e perturbadora.
- Major Joseph Makatozi, n�o �? Esse nome � americano?
- Se n�o for, nenhum outro �. Eu sou �ndio, mesti�o de Sioux e Cheyerme.
- Ali! Ent�o quer dizer que voc� � daqueles de quem tomaram o pa�s?
- Como n�s j� o t�nhamos tomado de outros.
- Mas voc�s sa�ram perdendo dessa vez, foram aniquilados.
- Ganhamos a �ltima batalha. - A voz de Joe Makatozi assumiu um tom proposital de
insol�ncia. - E ganharemos sempre.
- Voc� lutaria por um pa�s que n�o � mais seu?
- O pa�s foi nosso e continua sendo. Em todas as guerras em que os Estados Unidos
lutaram, ningu�m superou nosso desempenho no campo de batalha.
Aumentou a irrita��o de Zamatev. Orgulhava-se intimamente de ser frio e de ter
controle emocional absoluto. Ao interrogar, assumia uma atitude descontra�da e
aparentemente amig�vel, envolvendo o prisioneiro sem ele o perceber. A arrog�ncia
daquele americano dificultava muito esse tipo de abordagem. Ademais, perturbara-se
tamb�m ao notar que, entrando na sala, Makatozi registrara tudo o que estava ali,
incluindo ele.
Para aquele interrogat�rio preliminar, tinha pensado em se basear no fato de o
prisioneiro pertencer a uma minoria discriminada. Assim, numa tentativa de conduzir
as coisas por canais mais fluentes de comunica��o, Zamatev apontou para um homem
forte e entroncado que estava sentado no banco, examinando Makatozi em sil�ncio,
com olhar pesado e ca�do.
- Como �ndio americano, voc� talvez se interesse em conhecer Alekhin. Ele � um
Yakut, equivalente siberiano dos �ndios dos EUA. Os Yakut s�o famosos na Uni�o
Sovi�tica. N�s os chamamos "os homens de ferro do norte". S�o nossos melhores
ca�adores e rastreadores.
Zamatev olhou fixamente o americano.
- O maior orgulho de Alekhin � o de nenhum prisioneiro sob sua guarda ter jamais
escapado.
Joe Mack, como o chamavam desde os tempos de atletismo, virou-se para o Yakut, que
o encarou com olhos negros, sem express�o. Uma mecha de cabelo branco encobrindo
uma velha cicatriz, marcava-lhe o semblante. Dele emanava a for�a de um gorila e as
rugas do rosto lembravam, � primeira vista, um primata cansado. Por�m, observando-
se melhor, percebia-se nelas aquilo que de fato representavam: Marcas de crueldade
e selvageria. Apesar do aspecto muito mais desgastado, tinha quase a mesma idade de
Joe Mack.
Com menosprezo proposital, Joe Makatozi respondeu:
- Duvido que ele consiga descobrir sequer o rasto de um cachorro enlameado num
assoalho limpo.

Alekhin ergueu-se do banco num movimento �gil e fluido, p�s afastados, as m�os
prontas. Joe Mack virou-se, calmo e insolente, pronto para enfrent�-lo.
Zamatev teve a sensa��o de estar na pr�-hist�ria: De s�bito, na sala pequena e
vazia, dois selvagens se encaravam, cada um o exemplar perfeito da esp�cie. Por um
segundo sentiu-se fortemente tentado a deix�-los lutar.
Sua voz no entanto irrompeu, cortante:
- Alekhin! Sente-se!
Voltou-se para Joe Mack:
- Procure entender sua posi��o, major. Voc� � nosso prisioneiro. Para todos os
efeitos, est� morto. Do ponto de vista do seu pa�s, voc� e seu avi�o se perderam no
mar. Nenhuma busca at� agora, nem h� a menor probabilidade de virem a faz�-la. Se
voc� ainda est� vivo, deve isso a mim; e o seu futuro, se � que voc� tem algum,
depende exclusivamente de como responder� a minhas perguntas. O m�nimo que
aceitarei � absoluta coopera��o. Quero, ali�s, um relat�rio completo de todas as
suas opera��es como piloto das aeronaves experimentais. Voc� � um homem
inteligente... Tem vinte e quatro horas para avaliar a situa��o. Se for razo�vel,
chegaremos a um acordo, Poder� manter sua patente militar, com os devidos
privil�gios... Ou voc� resolve trabalhar para n�s, ou morre.
- Um traidor nunca � respeitado por ningu�m. Nem mesmo por aqueles que lucram com
sua trai��o. Est� perdendo seu tempo, coronel Zamatev.
O russo estava assombrado.
- Ent�o, voc� me conhece?
- Tamb�m temos nossos dossi�s, coronel.
Uma f�ria g�lida sacudiu o coronel, que, no entanto, se manteve calmo.
- � casado, major?
- N�o.
- Fam�lia?
- Ningu�m.
- Quantos anos?
- Trinta e um.
O coronel remexia alguns pap�is sobre a mesa.
- Major, para seu pa�s voc� � um homem morto. Para n�s pode ser �til. Um homem com
a sua capacidade pode se dar muito bem por aqui, e voc� n�o parece ser o tipo de
pessoa que escolheria morrer espontaneamente. N�o deixou nenhum v�nculo para tr�s.
- Deixei o mais importante deles, coronel, meu pa�s.
Zamatev dirigiu-se a Suvarov:
- Tenente, leve esse homem de volta a seus alojamentos. Volto a cham�-lo quando ele
tiver tido tempo para avaliar melhor sua posi��o.
Quando sa�ram, Zamatev inclinou-se para tr�s na cadeira. Orgulhava-se da pr�pria
frieza, mas havia qualquer coisa naquele americano que o deixava muito irritado.
Talvez fosse sua absoluta falta de medo e de inseguran�a. Mas isso poderia ser
considerado normal? O natural numa situa��o dessas n�o seria ter medo? Acovardar-
se? Sentir-se inseguro, preocupado? Naquele r�pido encontro o major Makatozi
mostrava-se inteiramente � vontade. O que ser� que ele tinha de diferente?
Era �ndio. Que significado isso teria? Zamatev registrou: Estudar um pouco sobre os
�ndios. Mesti�o de Sioux e Cheyenne. Guardou bem esses nomes. Mas e os olhos azuis?
Talvez algum sangue branco?
Tirou da pasta o dossi� Makatozi e examinou-o mais uma vez. O homem eram um piloto
not�vel, audacioso... Al�m de t�cnica, possu�a intelig�ncia. Cursara universidade
gra�as a uma bolsa que o obrigava a praticar atletismo: Uma forma de se pagar o
atleta supostamente amador. Na R�ssia tamb�m era assim, s� que competiam pelo pa�s,
n�o pela universidade.
O Projeto Makatozi era muito mais ousado que os precedentes, seus superiores
contavam obter bons resultados em troca. At� ent�o, tinham dado completa liberdade
de a��o a Zamatev, mas havia aqueles que queriam tomar seu lugar. Sucesso nas
opera��es Pennington e Makatozi seria decisivo; tudo fora minuciosamente planejado.
As experi�ncias anteriores, todas bem-sucedidas, serviram-lhe de teste, ensaio,
reconhecimento do terreno. Pennington, a primeira tentativa mais ambiciosa, n�o era
um homem conhecido. Na verdade, com exce��o de um c�rculo restrito, poucas pessoas
imaginavam o que ele pudesse estar fazendo. Devia ser alguma coisa relacionada com
qu�mica; sempre tivera jeito para isso. Na Inglaterra, apenas tr�s pessoas sabiam
que ele fizera uma descoberta completamente inesperada, a qual, em alguma
inst�ncia, poderia revolucionar toda a estrat�gia de uma guerra qu�mica.
Somente tr�s homens na Inglaterra. Um deles, por�m, era casado com uma mulher
loquaz.
- Alguma coisa bem secreta - disse ela -, de modo que o almirante n�o poder� vir.

O almirante vinha sempre, o assunto portanto deveria ser mesmo importante. A


baronesa, que tinha um padr�o a manter, retrucou:
- Certamente ele est� aqui para as finais, n�o?
- Pouco prov�vel - respondeu-lhe a mulher loquaz. - Viajou para algum lugar perto
de Glasgow. Ele vai sentir muit�ssimo.
Algumas horas mais tarde, a baronesa estava ao telefone.
- Sim, o almirante - uma pausa. - S� o fim do mundo seria capaz de mant�-lo longe
daqui.
O homem no outro lado da linha conhecia o suficiente a respeito do almirante para
saber que ela estava certa. E ele era uma autoridade m�xima em guerra qu�mica. Nos
arredores de Glasgow havia uma f�brica de produtos qu�micos pesquisando
inseticidas... Uma f�brica sem nenhuma significa��o do ponto de vista militar.
Em menos de uma hora, o Homem no Outro Lado estava indo de trem para Glasgow. Na
manh� seguinte � chegada, estava bebendo num pub pr�ximo � f�brica de produtos
qu�micos, e j� sabia onde o almirante se hospedara. Ali no pub os oper�rios da
f�brica costumavam beber alguma coisa no fim do expediente, antes de voltarem para
casa.
- Muita agita��o - ouviu um homem dizer. - Parece que caiu algu�m num vespeiro.
- � o tal do contrato novo - observou um outro aquele com a Comunidade Brit�nica.
Est�o dizendo que vamos ter trabalho por muitos meses.
- Quem era o outro, aquele de cabelo branco? Do jeito que estava sendo tratado,
parecia que era a pr�pria Comunidade.
- Que nada - retrucou o primeiro -, ele veio encontrar com Pennington. Duvido que
Pennington tenha alguma coisa a ver com a Comunidade. O neg�cio dele � pesquisa
cient�fica.
- �, mas tinha os outros dois tamb�m, que eu nunca vi por aqui... E quem lida com a
Comunidade � Parkins.
O Homem no Outro Lado n�o precisava de mais nada. Mesmo assim, terminou o aperitivo
e pediu mais um. O de cabelo branco era o almirante. Os outros dois vieram ver
Pennington, o da "pesquisa cient�fica".
Assim tudo come�ara. A baronesa recebera na sua caixa de cartas um ma�o de notas
novinhas, colocadas dentro de uma caixa de bombons - alguma coisinha para ajud�-la
a manter sua posi��o social. Ter um posto de escuta no local onde se encontravam os
poderosos ajudava bastante a enfrentar a vida, t�o cara ultimamente...
Estava no bar do hotel em que o almirante se hospedara, quando este entrou, Dois
homens o acompanhavam. O Homem no Outro Lado reconheceu um deles - outro manda-
chuva em guerra qu�mica. Era mesmo interessante confiar sempre na baronesa. Sua
intui��o era das melhores.
Tr�s semanas depois, Pennington desaparecia.

CAP�TULO 2

Dentro do edif�cio da pris�o, uma fileira de oito portas de celas dava de frente
para uma parede branca. Cada porta tinha uma pequena janela, cruzada por duas
barras verticais. As janelas ficavam sempre abertas.
Cada cela tinha uma estreita cama de armar, uma pequena mesa, cadeira, pia e
privada. Sabia que, se n�o cooperasse, uma cela bem diferente o aguardava.
As paredes eram de troncos de madeira aparados, que se ajustavam com perfei��o. A
fechadura da porta de entrada do edif�cio era de modelo bastante simples. A da
porta da cela, um pouco mais complicada. � claro que, em termos de seguran�a, os
russos contavam com as torres de vigil�ncia e com a cerca el�trica. Um pouco
adiante do arame farpado estendia-se uma terra imensa e hostil.
Nunca tinha vivido em reserva ind�gena. Seu �nico av� de ra�a branca deixara de
heran�a para a fam�lia Makatozi um peda�o de terra no munic�pio de Snake River, no
estado de Idaho. A maior parte ficava nas montanhas, regi�o de pequenos prados,
corredeiras e florestas.
Distante das estradas importantes, dif�cil de se atingir no ver�o e no inverno,
completamente isolada, era uma terra que ningu�m queria, e que ningu�m visitava.
Uma vez ou outra tinham aparecido ca�adores em busca de peles de animais, mas logo
foram expulsos. Certa vez, um minerador simp�tico garantira � fam�lia de Joe que
nas terras havia ouro e prata, mas ningu�m lhe dera maior aten��o. Em outra
ocasi�o, negociantes de madeira ofereceram quantias modestas. Diante da recusa,
contudo, resolveram n�o insistir. O acesso era mesmo muito dif�cil, construir uma
estrada ficava caro. O pai de Joe achava que daquele jeito estava bom. Gostava da
solid�o das montanhas e do isolamento em que viviam. Mesmo assim, quando Joe
completara cinco anos, seu pai mandou-o para uma escola, longe dali.
Sempre houvera livros na casa, seu av� branco fora um escoc�s de boa fam�lia e
armazenara uma boa centena de livros naquele seu esconderijo solit�rio. Mais tarde,
quando um posto de correio de Hudson Bay foi abandonado, apossara-se do
consider�vel estoque de livros deixado para tr�s. Ensinara a fam�lia a ler e sempre
lia em voz alta, mesmo sozinho. Acostumaram-se �quele som pela casa, e Joe crescera
ouvindo tanto hist�rias de seus ancestrais ind�genas quanto das montanhas
escocesas.
O velho morrera aos cento e um anos, num final de outono. No �ltimo ano de vida,
alfabetizara Joe e lera para ele os Contos de um av�, de Walter Scott, assim como
os romances da s�rie Waverly.
Joe dirigiu seus pensamentos para a situa��o presente. Dava para calcular uma
posi��o aproximada da pris�o, mas n�o a localiza��o exata. Tinha certeza de estar
perto do lago Baikal e de que ao norte, leste e sul estendiam-se floresta, p�ntano
e tundra. N�o sabia nada quanto �s terras a oeste.
A taiga, como a chamavam, era uma das principais regi�es madeireiras do planeta,
centenas de quil�metros de largura e outro tanto de comprimento. Pelo menos era o
que ele ouvira contar.
Desde o momento de sua captura, tivera uma �nica id�ia: Fugir, fugir na primeira
oportunidade.
Deitado na cama, olhando para o teto, considerou as possibilidades. Certamente
atirariam nele. Talvez acertassem. Uma vez ultrapassado o arame, poderia cobrir a
dist�ncia at� a floresta em cinco ou seis segundos. Com as metralhadoras atr�s, at�
menos. Se desse para distrair um pouco a aten��o dos guardas, ele n�o teria mais de
tr�s segundos de fogo cerrado.
Poderia ser morto ou gravemente ferido, mas n�o era o momento de pensar nisso. Se
acontecesse uma ou outra coisa seria enterrado ou tornar-se-ia um prisioneiro
completamente desamparado. Toda a concentra��o tinha de ser para a fuga.

Ent�o era isso. E se chegasse at� as �rvores? Teria de correr como nunca.
Precisaria ganhar uma dist�ncia tal do campo de prisioneiros que os contingentes
enviados em sua captura ficassem bem para tr�s.
Se corresse mais longe e mais depressa do que eles calculassem, isso talvez pudesse
acontecer. Portanto, a primeira coisa era conseguir uma boa dist�ncia, depois
enganar seus perseguidores quanto � dire��o tomada.
A fronteira mais pr�xima era a da Mong�lia; mais adiante, a da China. N�o sabia
praticamente nada a respeito da Mong�lia, a n�o ser que era um pa�s mais ou menos
aliado dos sovi�ticos. Imaginava tamb�m que fosse uma regi�o dos morros ondulantes,
campos e desertos, cuja fronteira com a China seria vigiada com o m�ximo cuidado. E
era essa fronteira mais pr�xima que ele tentaria cruzar.
Ao norte se encontrava o �rtico, a leste e a nordeste uma vasta extens�o de taiga,
tundra e temperaturas extremas. Mais al�m, o mar de Bering e o Alasca. Se os
antrop�logos estivessem corretos, seu pr�prio povo seguira essa rota migrat�ria em
busca de ca�a, rota esta que o levara a atingir uma liga��o por terra - existente
na �poca - com o continente americano. Se seus ancestrais conseguiram, ele tamb�m
conseguiria.
� noite o campo seria um s� clar�o, tal a quantidade de luzes, mas e se desse para
cortar a luz? Claro que a� entraria em funcionamento um circuito de emerg�ncia. Mas
ser� que n�o dava para ele demorar um pouco a funcionar?
Se ficasse ali, encontrariam um jeito de quebrar-lhe a resist�ncia e obteriam a
informac�o desejada, como algu�m que extrai o fruto depois de ter partido a casca.
N�o temia a dor. J� a suportara e podia faz�-lo outra vez. Chegou a manh� e com ela
uma fatia de p�o preto e um ralo mingau de aveia. Informaram-lhe que haveria um
per�odo de exerc�cio, de quinze minutos, durante os quais deveria ficar sempre
andando. Se parasse, atirariam. Os prisioneiros deveriam manter uma dist�ncia de
dois metros da cerca de arame. Uma linha branca no ch�o marcava essa dist�ncia. N�o
havia restri��es quanto �s conversas, mas n�o podiam deixar de caminhar.
Mal dera alguns passos quando um homem surgiu a seu lado, esguio, o rosto fino,
olhos acinzentados.
- Continue andando - disse o outro prisioneiro. - Eu sou Pennington, um qu�mico
ingl�s.
Ao chegarem ao canto de um dos edif�cios, Pennington disse:
- Est�o ouvindo. Temos tr�s passos agora em que n�o d� para nos ouvirem, mas
somente tr�s passos.
Passado aquele canto, Pennington continuou:
- Dormiu bem?
- Deu para dormir.
- Os dias s�o longos esta �poca do ano.
N�o respondeu. Ent�o o ingl�s perguntou:
- Qual � seu nome?
- Joe Mack. Oficialmente, major Joseph Makatozi, da For�a A�rea americana.
- Voc� � muito moreno para um americano.
- Sou �ndio. Sioux.
- Puxa vida! Um pele-vermelha. Eu nunca tinha visto um antes.
O homem podia ser dedo-duro e a conversa, uma armadilha. Quando estavam outra vez
no canto onde n�o podiam ouvi-lo, Pennington continuou:
- Se voc� estiver pensando em fugir, tem de ser agora! Imediatamente! A alimenta��o
� pobre em vitaminas. As for�as diminuem e, com elas, a coragem.
Ao voltarem ao alcance dos aparelhos de escuta, Pennington falou:
- Dizem que as coisas melhoram para quem coopera. Mais comida, mais liberdade. Por
enquanto ainda � ver�o, mas, perto daqui, se encontra o lugar mais frio da Terra.
Setenta graus abaixo de zero.
- O m�ximo que eu j� senti foi cinq�enta abaixo.
- Poxa! Isso � que � frio! Onde foi?
Mais uma vez no canto, Pennington completou:
- O campo est� cercado de estradas patrulhadas. A primeira a uns dois quil�metros,
a seguinte a mil e quinhentos metros, a outra a tr�s mil.
Havia cinco edif�cios e um sexto em constru��o. O pr�dio novo seria de madeira. As
pranchas e toras estavam empilhadas no ch�o, ao lado de canos bem finos, pr�prios
para encanamento, pregos e algo que se parecia com sacos de cimento.
- Se eu puder ajudar - sugeriu Pennington.
A id�ia era maluca, mas n�o havia outra op��o. Al�m do mais, id�ias malucas s�o t�o
inesperadas que acabam dando certo.

Talvez fosse ingenuidade, mas mesmo assim resolveu confiar no ingl�s. Embora fosse
imposs�vel lev�-lo junto.
Era a �ltima vez durante aquela caminhada que passariam pelo lugar em que n�o os
ouviam.
- Voc� pode me ajudar sim. Preciso de uns minutos de escurid�o. D� para voc� sair
da cela?
De novo na cama, revia os planos. Aquela oportunidade talvez nunca mais se
repetisse. Algu�m n�o tinha pensado direito, ou tinha se descuidado, A instala��o
el�trica do pr�dio novo talvez n�o estivesse conectada com a rede do campo,
entretanto estava ali ao alcance, no pr�dio mais pr�ximo.
Uma vez em liberdade, precisaria de armas, comida e roupa.
Dormiu, alimentou-se e esperou. Em primeiro lugar, guardar dist�ncia, depois achar
um esconderijo e a�, mais dist�ncia. A Manch�ria pertencia � China e estava a uma
dist�ncia razo�vel. Iria nesta dire��o.
Quando chegou novamente a hora do exerc�cio, j� estava preparado.
- Ningu�m est� sabendo deste lugar - informou-lhe Pennington. - Eu entendo um pouco
de russo, ouvi o que disseram. Se conseguir escapar, diga onde estou. Tente me
tirar daqui.
Parou um instante.
- Ser� preciso ter uma resist�ncia e uma coragem que eu n�o tenho.
Zamatev, ou seja l� quem fosse que supervisionava a constru��o, confiava demais no
isolamento do campo, no arame farpado e nos guardas.
Havia mais tr�s prisioneiros, que se mantinham distantes. Um deles era alem�o,
conforme Pennington dissera. Pelo menos assim se apresentara. Desconfiado,
Pennington o evitara, pois o homem perguntava demais.
- Eu n�o acredito que seja alem�o - acrescentou.
Os outros eram um sueco, oficial da Marinha, e um diplomata franc�s de pouca
import�ncia, detentor de informa��es tamb�m pequenas.
- Havia mais um - completou o qu�mico, apontando. Est� enterrado ali adiante.
Joe Mack n�o se surpreendeu. Seja l� o que fosse, Zamatev era eficiente e n�o
desperdi�ava tempo. Conseguia o que buscava ou se livrava de quem n�o quisesse
colaborar. O homem era frio, inflex�vel e sabia aonde queria chegar.
Enquanto estavam sendo observados e ouvidos, Pennington conversava � vontade.
Vivera em Weymouth, antes de ser transferido para a Esc�cia. Tinha um irm�o, duas
irm�s e a mulher.
- Filhos?
- Um estava para nascer, j� deve ter uns tr�s meses agora. - Virou-se para Joe
Mack. - Estou aqui h� quase seis meses.
- Tudo isso?
- Eles s�o muito pacientes comigo. Essa regi�o Yakut est� em franco progresso.
Precisam de cientistas de todas as �reas. Trabalho com inseticidas e toda a parte
leste da Sib�ria � infestada de moscas e insetos. Est�o trabalhando, mas ainda h�
muito o que fazer. - Fez uma pequena pausa - At� ofereceram trazer minha mulher e a
crian�a.
Caminhavam em sil�ncio quando Joe Mack comentou:
- Pode demorar muito tempo.
Pennington concordou:
- Voc� � a �nica chance que eu tenho.
- Ningu�m gosta mesmo de moscas e insetos - disse Joe Mack. - Quando ia ca�ar, me
incomodavam bastante.
- Vai ser um frio de matar. Pense nisso.
- J� pensei.
- As noites s�o curtas. No ver�o, se voc� estiver acima do C�rculo �rtico, n�o
existe noite.
Passado o canto do edif�cio, Joe Mack falou:
- Esta noite, ent�o?
- Certo.
Combinaram uma hora e voltaram para suas celas. Aquela noite, e que Deus os
ajudasse!
N�o havia nada que preparar. Simplesmente n�o havia nada para fazer at� o momento
da fuga.
A luz da lanterna bateu-lhe no rosto quando o guarda verificou sua presen�a atrav�s
da janela.
Restavam menos de duas horas de escurid�o. Amarrou os sapatos e reviu mentalmente o
lugar em que estava o cano. Ouviu os passos do guarda parando em cada cela. A
pr�xima seria a sua. Enrolou-se no cobertor.
O feixe de luz da lanterna iluminou outra vez sua cela. O guarda prosseguiu adiante
e logo Joe Mack levantou-se.

CAP�TULO 3

Os respons�veis pela pris�o contavam com outros recursos al�m de cadeados ou


fechaduras. Qualquer prisioneiro encontrado fora de seus alojamentos seria morto na
hora. Isso resolvia a quest�o da seguran�a. A �nica movimenta��o permitida aos
prisioneiros era durante o per�odo de exerc�cio, ou ent�o quando escoltados pelos
pr�prios guardas.
Nas montanhas de Idaho, em que fora criado e onde voltara muitas vezes depois, os
consertos da casa eram feitos pela pr�pria fam�lia. Nem mesmo havia telefone para
chamar algu�m. Todos adquiriram pr�tica e consertavam qualquer coisa. Uma simples
olhada bastou para Joe Mack perceber que as fechaduras seriam abertas sem
dificuldade.
N�o demorou mais de um minuto para saltar da cama e abrir a cela. Silencioso como
um gato, esgueirou-se em dire��o � porta de fora. Ali ficou parado, atento.
Pennington ouvira-o, e ent�o sussurrou:
- Diga para minha mulher que eu n�o fugi de casa, que eu sinto muita saudade.
- N�o se preocupe, eu direi.
Pensou consigo mesmo: "� imposs�vel. Isto � loucura! Se pelo menos tivesse tido
tempo para planejar um pouco". J� estava do lado de fora quando percebeu algo
mover-se. Era Pennington.
Joe Mack grudou o corpo � parede, ouvindo, aguardando o momento exato para avan�ar
at� o cano fino que queria. J� sabia quantos passos o separavam do material de
constru��o e quantos havia at� a cerca de arame.
As luzes se apagaram. Das torres ouviam-se gritos nervosos de comando, passos
apressados. Ele j� estava em plena a��o. Ao sentir o rosto �mido, percebeu que
havia neblina.
Correu �gil at� a pilha de material de constru��o, agarrou o cano, ergueu-o e saiu
correndo. A ilumina��o de emerg�ncia estaria ligada a qualquer momento.
Atrav�s da neblina, divisava-se uma das torres de vigia. Ouviu-se algu�m gritar
alguma pergunta. A boca do cano fincou-se no ch�o erguendo-lhe o corpo no solo.
Muitas vezes j� saltara mais de cinco metros, mas usando roupas leves e uma vara
flex�vel que lhe aumentava o impulso.
Estava no ar, flutuando. Cada vez mais alto... Soltou o cano e sentiu o corpo subir
e depois descer.
Durante um breve e terr�vel momento, quando se viu por cima do arame eletrificado,
sentiu medo. Se ca�sse ali...!
Ao atingir o ch�o, apoiou-se na ponta dos p�s, joelhos flexionados. Inclinou-se
para a frente, os dedos contra o ch�o e logo se p�s a correr. Assim que o cano
bateu contra o solo, houve uma rajada de fa�scas, e as luzes se acenderam de novo.
Ali, bem � sua frente, estava a orla da floresta.
Galhos molhados bateram-lhe no rosto, enganchavam-se em seu corpo. Deu uma volta,
divisou um barranco, desceu por ele at� um declive, ouvindo as balas rasgarem as
folhas das �rvores mais altas. Em seus tempos de atleta chegara a fazer um
quil�metro e meio em quatro minutos e quinze segundos. Tempo suficiente para
coloc�-lo entre os campe�es. Mas agora, movendo-se num terreno desconhecido, entre
�rvores e arbustos, que velocidade conseguiria atingir?
Quando achou que j� tinha corrido uns oitocentos metros, reduziu a velocidade para
passo r�pido. Quanto mais longe melhor, mas era preciso tamb�m economizar energia.
Deu uns cem passos r�pidos e voltou a correr.
Alcan�ou uma estrada, uma esp�cie de trilha j� meio apagada. Olhou para os lados,
atravessou-a correndo e cruzou um riacho. Sentia o cheiro forte dos pinheiros.
Passariam bem uns cinco minutos at� que a fuga fosse descoberta. Veriam o cano no
ch�o junto � cerca; ser� que lhes ocorreria que fizera salto com vara por cima do
arame? Mais uns cinco minutos, digamos, para organizar a busca e porem-se em
movimento. A noite e a neblina criavam uma situa��o desvantajosa aos perseguidores;
de certo fariam uma busca apressada, provavelmente colocariam patrulhas nas
estradas pr�ximas ao campo de prisioneiros.
A neblina dissipou-se por um instante, e Joe p�de observar o c�u. N�o estava muito
fora da dire��o que pretendia seguir. Um pouco longe, � direita, ouviu �gua
correndo. Tateando, desceu por um barranco, entrou na agua e come�ou a andar riacho
acima. V�rias vezes parara, agu�ando os ouvidos mas o som da �gua abafava qualquer
outro.
Chegou at� uma plataforma de pedra junto � margem, subiu, saindo da �gua sem deixar
rasto. Pulando de pedra em pedra, atingiu uma trilha, por onde correu uns cinq�enta
metros. Atravessou mais uma estrada, mergulhou de novo na floresta, correu por
entre as �rvores. Ouviu um ronco de motor atr�s.
Um carro passava pela estrada que acabara de atravessar. Parou subitamente, im�vel,
at� ouvi-lo afastar-se.
Tudo � sua volta era taiga, a floresta caracter�stica da Sib�ria. Ouvira um guarda
falar em Malovsky, com certeza algum vilarejo ou cidade, mas sobre o qual n�o sabia
coisa alguma. Sabia que a pris�o estava em Transbaikal, na Sib�ria. Lera a respeito
o suficiente para saber que a regi�o estava mudando. Completamente selvagem,
permanecera inexplorada at� alguns anos atr�s, quando ent�o os russos descobriram
ali um verdadeiro tesouro de riquezas minerais. Por isso estavam sendo constru�das
novas estradas e os neg�cios com ind�stria madeireira e de minera��o cresciam dia a
dia. Isso queria dizer que, a qualquer momento, poderia topar com alguma dessas
atividades. Precisava ir com toda a cautela.
O campo de prisioneiros situava-se em uma depress�o com raio de uns dez
quil�metros, coberta de densa floresta, a n�o ser em volta do campo. Fugira em
dire��o oeste, inclinara-se para o leste e agora seguia por um terreno rochoso e
ondulado coberto por florestas de pinheiro. Procurou n�o ser visto, estava ficando
claro e seus perseguidores estariam logo esquadrinhando o terreno com bin�culos.
Descendo um pequeno morro, chegou a um riacho que descia das montanhas a leste.
N�o havia sinal de vida, nem madeira cortada, nem vest�gios de minera��o.
Caminhando pelas pedras, deixara poucos rastos atr�s de si, embora duvidasse que j�
estivessem no seu encalce. Inicialmente fariam apenas uma busca ampla. N�o o
encontrando, procurariam rastos para descobrir o caminho que seguira.
N�o correu mais, andava de maneira a mais firme permitida pelo terreno. Acompanhou
o riacho, que virava para norte. De uma pequena eleva��o, vislumbrou o rio em que
desaguava. Era o caminho mais f�cil, embora pudesse tornar-se mais e mais perigoso,
j� que as pessoas costumam viver perto dos rios ou us�-los como meio de transporte.
Resolveu arriscar a sorte e continuou descendo com o riacho. De longe via o rio
dirigir-se para leste e oeste. Quando chegou at� ele certificou-se de que corria
para o leste.
Junto �s margens, debru�ava-se uma floresta cerrada. Descobriu um tronco cheio de
galhos que flutuara at� encalhar num banco de areia na borda do rio. Arrastou-se
entre os galhos at� chegar ao tronco. Empurrou-o de volta � correnteza e escondeu-
se, agachando, torcendo para n�o ser visto.
Viu muitos cervos e at� um urso-marrom. O animal olhou-o sem curiosidade; depois,
parecendo t�-lo farejado, arrastou-se para dentro da mata. O urso era quase t�o
grande quanto os da Am�rica.
O sol ia alto, num c�u sem nuvens. Com um galho que ainda conservava algumas
folhas, dirigiu o tronco at� a margem. Calculou que flutuava numa velocidade de
tr�s quil�metros por hora e quando finalmente encalhou o tronco na ribanceira,
tinham-se passado pelo menos oito horas. Cambaleante, pisou em terra firme, as
pernas adormecidas depois de tanto tempo na mesma posi��o. Sentia fome, mas j�
sentira fome antes. De volta � floresta, improvisou uma cama com musgo e folhas e
deitou-se para dormir.
Acordou algumas horas depois, tomou �gua num riacho ali perto e sentou-se para
avaliar a situa��o.
N�o sabia muito bem onde estava, embora tivesse uma no��o vaga de sua localiza��o.
Encontrava-se a leste ou nordeste do lago Baikal, eventualmente na regi�o conhecida
como Yakutia, cujo desenvolvimento nesses anos estava sendo acelerado. Portanto, a
qualquer momento poderia encontrar outras pessoas. E isso devia ser evitado.
Seria preciso viajar com o m�ximo cuidado para n�o ser visto e sem deixar atr�s o
menor vest�gio que pudesse despertar a curiosidade dos habitantes da regi�o.
Precisaria de comida, roupas mais quentes, uma arma e, se conseguisse, um cobertor.
Tinha de haver um jeito de descobrir sua localiza��o. De imediato, o principal era
conseguir distanciar-se do campo. A viagem pelo rio fora lenta e arriscada, por�m
n�o deixara vest�gio nenhum de passagem. Continuar seguindo pelo rio era o caminho
mais f�cil, embora cada vez mais perigoso.
Podia esperar por comida. Algumas vezes passara dias e dias sem comer. Por que n�o
tamb�m agora?
No meio de troncos ca�dos e galhos quebrados, achou um que lhe serviria
perfeitamente de bast�o. Facilitar-lhe-ia a caminhada, como apoio, e tamb�m se
preciso, como arma. E ele sabia como lutar com bast�o.
Retomou a caminhada, indo em dire��o oposta ao rio. Depois de alguns metros chegou
a uma trilha, obviamente feita por algum animal, mas talvez percorrida tamb�m por
ca�adores. Prosseguiu num ritmo constante, ouvidos e olhos atentos a tudo.
Muito tempo atr�s assistira � confer�ncia de um oficial do servi�o de informa��es
do Ex�rcito a respeito da Sib�ria e sua geografia. Tinha boa mem�ria para esse tipo
de coisa. Procurou lembrar-se do que fora dito e mostrado no mapa. Havia montanhas
baixas, muito p�ntano e um sistema fluvial relacionado. Apesar do frio, nevava
pouco em quase toda a regi�o Transbaikal.
Lembrava-se do lago Baikal como sendo um dos sistemas lacustres mais interessantes
da Terra. Com uns seiscentos e cinq�enta quil�metros de extens�o, oitenta de
largura em alguns trechos, mais de mil e quinhentos metros de profundidade,
continha uma boa parte de toda a �gua existente na Terra. Local de turismo para os
russos, era uma verdadeira mina para os japoneses, que, ajudando os russos a
desenvolver a ind�stria na Sib�ria, esperavam por sua vez obter na regi�o Trans-
Baikal as mat�rias-primas de que precisavam.
Desde que fora capturado, vinha tentando reconstruir mentalmente o mapa apresentado
na confer�ncia e lembrar-se do que ouvira ent�o. Para sua sorte, gostava de ler, e
muitos dos livros, que seu av� trouxera do posto de correio de Hudson Bay, tratavam
do Canad�, do estreito de Bering e da costa sovi�tica.
Quatro dos maiores rios da Terra se achavam na Sib�ria. Se estivesse mesmo onde
imaginava, o rio Lena correria ali perto e o Amur mais para o sul, marcando a
fronteira da Manch�ria.
V�rias vezes parou, im�vel, para escutar alguma coisa, mas s� percebia o suave
ru�do do vento entre as �rvores. De vez em quando aparecia algum p�ssaro. Muitos
galos silvestres e um tipo de cotovia que n�o vira antes.
Agachado, procurou desenhar no ch�o, de mem�ria, o mapa que estudara. O Amur ao sul
e o Lena ao norte. Encontrava-se a leste do lago Baikal e ia em dire��o � costa,
ainda longa, ao estreito de Bering e ao mar de Okhotsk. Entre ele e o estreito de
Bering, serras n�o muito altas, v�rias florestas, pantano e tundra, logo abaixo do
c�rculo polar �rtico.
Ainda antes de atingir seu objetivo ficavam os montes Yablonovyi, Stanovoy e
Verichoyansk e, como se isso n�o bastasse, algumas das regi�es mais frias da Terra.
Viajando a p�, tendo de se esconder, seria imposs�vel estar fora da Sib�ria antes
do inverno. Tampouco dispunha de recursos para sobreviver ao inverno.
Faltavam-lhe roupas, abrigo, mantimentos...
Abaixo de quarenta e cinco graus negativos, a borracha dos pneus chega a rachar e
at� metal quebra com facilidade. Com muita sorte, numa temperatura dessas, um carro
dura dois, no m�ximo tr�s anos.
Chegaria o inverno, com temperaturas que oscilariam entre quarenta e cinco e
sessenta e cinco graus abaixo de zero. Ergueu-se do ch�o e com a seda da bota
apagou o mapa grosseiramente delineado. Retomou a caminhada. Mais adiante, sobre os
montes, o frio o aguardava.
Frio glacial, implac�vel, mortal.
CAP�TULO 4

Quando Pennington entrou na sala, o coronel Zamatev estava sentado em sua mesa. No
banco, lado a lado, sentavam-se o tenente Suvarov e Alekhin, o �ndio Yakut. Uma
cadeira, pr�xima � mesa, estava de frente para os tr�s.
Zamatev indicou a cadeira:
- Por favor, sente-se.
O coronel fora adido militar em Londres e Paris. Falava fluentemente tanto ingl�s
quanto franc�s.
Pennington sentou-se, apreensivo. N�o sabia o que estava para vir. Saberiam que
ajudara o americano?
- O major Makatozi fugiu e voc� foi visto conversando com ele.
- Apenas trocamos algumas palavras, no per�odo de exerc�cios.
- Contudo, voc�s conversaram. Contou-lhe que planejava fugir?
- Imposs�vel. Ele n�o ia confiar num estranho. Ele � �ndio. Eles n�o costumam falar
muito. Pelo menos n�o com um homem branco e desconhecido.
Makatozi j� tinha mesmo fugido, se falasse alguma coisa agora, n�o o prejudicaria.
- Para dizer a verdade - acrescentou, sorrindo -, acho que n�o estava satisfeito
com as acomoda��es. At� mesmo um �ndio espera coisa melhor.
Zamatev ignorou o coment�rio. Parecia disposto a uma certa afabilidade. Queria
mesmo era informa��es. Foi o que concluiu Pennington, enquanto aguardava outra
pergunta. Sabia que nada do que dissesse afetaria as chances do americano e, al�m
do mais, queria provocar um pouco.
- Qualquer coisa que voc� disser poder� ajud�-lo - sugeriu Zamatev. - Tenho certeza
absoluta de que o major n�o sabia exatamente para que tipo de regi�o estava
fugindo. Veja bem, t�nhamos planos para o major, como ali�s temos tamb�m para voc�.
Tanto um quanto outro podem arranjar trabalho por aqui, viver com todo o conforto e
seguran�a, levar uma vida bem melhor do que em seus pa�ses.
- Escapar da Sib�ria � imposs�vel. O inverno chegar� logo. Um homem n�o sobrevive
sem comida, roupas ou abrigo.
- Se tiver sorte de conseguir nos despistar, ainda assim a Sib�ria o liquidar�. J�
vi alguns homens morrerem congelados, mas isso � raro... Os animais selvagens
costumam chegar antes. Se pudesse ajudar-nos...
Pennington n�o tinha a menor inten��o de colaborar, tampouco sabia coisa alguma do
americano, que n�o se dera ao trabalho de mencionar seus planos depois de ter
saltado o arame. Entretanto, h� muito tempo atr�s tinha elaborado um trabalho a
respeito dos �ndios Sioux. Na �poca hesitava entre a qu�mica, seu primeiro amor, e
um interesse crescente pela antropologia.
- O major Makatozi � um Sioux - observou -, um bravo guerreiro, not�vel por sua
coragem e capacidade de suportar grande dor f�sica sem desanimar. O guerreiro Sioux
era treinado para ag�entar longos per�odos de fome e perigo. Fazia parte de sua
cultura considerar mais honroso morrer lutando do que de velhice.
Pennington tornou a sorrir:
- Seu antagonista � algu�m de enorme capacidade de luta, coronel Zamatev.
- Contava com sua colabora��o, com a dele tamb�m - falou Zamatev, incisivo. - Se
voc� pode nos ajudar, � um tolo em n�o faz�-lo. N�s temos algo em que utiliz�-lo;
se n�o fosse assim, n�o haveria a menor preocupa��o pela fuga: A Sib�ria resolveria
o problema para n�s.
Ergueu-se, ereto.
- Tenente! Leve o prisioneiro para a cela - e acrescentou: - Tenho a impress�o de
que o senhor Pennington n�o anda com muito apetite. Dois dias sem comida talvez o
fa�am compreender melhor a situa��o do major.
Pennington sa�ra, Zamatev sentara-se. N�o esperava mesmo obter mais do que aquilo,
mas sempre havia a possibilidade de Makatozi ter sugerido alguma coisa ou mesmo
confidenciado com Pennington.
At� aquele momento, Zamatev se encontrara numa posi��o s�lida. Sua capacidade era
reconhecida e respeitada. Tanto que lhe permitiram a execu��o daquele projeto. Era
tamb�m um homem ambicioso, ainda que dissimulasse cuidadosamente. Era pessoa de
confian�a no Partido, um oficial competente; e at� ent�o n�o cometera erros.
Iniciara aquele projeto com alguns sucessos, pequenos, e agora subitamente
encontrava-se numa situa��o que poderia arruinar-lhe a carreira.
Dispensou Alekhin e recostou-se na cadeira. Queria pensar.
O americano usara um cano fino como vara e saltara por cima do arame. N�o havia
outra explica��o poss�vel, mas quem podia imaginar uma fuga assim? Havia tamb�m o
corte na luz, isso porem n�o precisava ser investigado. A maneira com que fora
conseguido era completamente �bvia. Falta de cuidado, apenas!
O americano fugira. A busca completa na �rea n�o dera em nada. Em apenas quatro
minutos, j� o estavam procurando, mas o americano parecia ter evaporado.
Ser� que tinha recebido alguma ajuda de fora da pris�o? Ningu�m sabia de sua
captura e ficara ali como prisioneiro muito pouco tempo para que alguma coisa desse
tipo ocorresse.
Rapidamente tinham feito o rastreamento da �rea, uma busca organizada em c�rculos
conc�ntricos. N�o viram nada, n�o encontraram sinal algum.
A rota mais �bvia de fuga, rumo � China, estava coberta. As tropas da fronteira
foram colocadas em estado de alerta e prevenidas da fuga do prisioneiro. Aquela
fronteira era altamente guarnecida, pronta para defender qualquer incurs�o ou mesmo
invas�o dos chineses.
Havia tamb�m a estrada de ferro Transiberiana. N�o ficava muito longe e poderia ser
uma das maneiras mais r�pidas de abandonar o pa�s. Mas o viajante precisaria
passagem, passaporte e visto. Embora o americano n�o possu�sse nada disso, outras
pessoas assim mesmo tinham conseguido escapar por ali. N�o era portanto uma
possibilidade a ser descartada, O coronel Zamatev tinha suas ambi��es, como tamb�m
seus inimigos, ansiosos por desacredit�-lo. Assim, em hip�tese alguma queria
divulgar aquela fuga. Isso n�o seria um problema, j� que apenas uma meia d�zia de
oficiais conhecia a exist�ncia do campo de prisioneiros. Por�m, tudo dependia ainda
da recaptura imediata do americano.
Considerou a possibilidade de o prisioneiro ter seguido o rumo leste. N�o, nem
pensaria nessa alternativa. Era tudo muito longe, in�spito e frio. O americano n�o
possuia armas, nem roupas adequadas, mesmo para aquela �poca do ano. Tampouco
conhecia o pa�s. Ainda assim avisaria as guarni��es a leste tamb�m.
Acreditava piamente que Makatozi seria recapturado. Aquela fuga era imposs�vel e j�
se passara mais da metade do ver�o. Se aquele homem n�o fosse encontrado, entregar-
se-ia ou seria morto pelo frio intenso.
At� aquele momento, nada resultara das buscas. Na floresta para onde fugira
imediatamente, encontraram alguns rastos que nada revelavam al�m da necessidade
premente de abandonar aquele local.
Embora nascido na Sib�ria, o coronel Zamatev pertencia a uma antiga fam�lia
ucraniana, e tanto o pai quanto o av� tinham sido generais. O pai, que trabalhara
diretamente com o marechal Vasily Blucher, fora talvez o maior g�nio militar da
Uni�o Sovi�tica. Mas Blucher tornara-se excessivamente conhecido e popular, por
isso desaparecera em um dos expurgos stalinistas da d�cada de 30.
Usando o pseud�nimo de Galin, Blucher servira na China, treinando o Ex�rcito
nacionalista chin�s, quando os comunistas chineses ainda solicitavam o apoio
sovi�tico. Juntamente com Michel Borodin, fora expulso da China. Mais tarde, por�m,
numa guerra n�o-declarada contra os japoneses, derrotara-os naquela que foi uma das
maiores batalhas com o uso de tanques.
Procurando ficar o mais distante poss�vel da aten��o de Stafin, o general Zamatev
apresentara-se, voluntariamente, para servir na Sib�ria e l� permanecera. Mantivera
por�m antigas amizades, que muito ajudaram em sua ascens�o profissional.
O coronel Zamatev considerava-se um homem realista. Mesmo desejada por todos, a paz
era uma ilus�o, pairando num horizonte long�nquo, com remotas possibilidades de se
concretizar, pelo menos enquanto os homens permanecessem os mesmos. Nenhuma guerra
fora declarada pela Uni�o Sovi�tica, contudo ela existia, uma guerra pela
supremacia militar e tecnol�gica, cruel e impiedosa. Encontrava-se em sua linha de
frente e ali pretendia ficar.
Sabia que j� pensavam em promov�-lo. Se fracassasse com Pennington e Makatozi, a
promo��o n�o viria, ou s� dentro de muitos anos. J� estava com trinta e cinco, e
queria ser marechal-de-campo quando chegasse aos cinq�enta. O resto n�o importava.
Pennington talvez nunca passasse para o lado sovi�tico. Fosse l� o que soubesse
sobre guerra qu�mica, nada revelaria. Disso Zamatev tinha certeza. N�o poderia ser
for�ado a aderir aos sovi�ticos, mas podia ser obrigado a falar, Certas drogas
seriam excelentes, e havia ainda alguns m�todos mais antigos, bem menos delicados.
Pennington, entretanto, era muito menos importante do que o americano. Makatozi n�o
lhes podia escapar de maneira alguma.
Zamatev recapitulou o que fora feito at� ent�o. As tropas da fronteira alertadas,
assim como os oficiais de pol�cia em toda a regi�o Transbaikal, especialmente em
Chita, Nerchinsk e em vilarejos como Romanovka, Bagdadarin, Vitimkon e Vershina.
Os campos de avia��o tamb�m foram avisados, pois o fugitivo era piloto e poderia
tentar roubar algum avi�o.
N�o havia muito mais a fazer, apenas aguardar a captura do americano.
Zamatev saiu da sala. Era um desses dias claros e luminosos, t�o freq�entes no
Transbaikail. Olhou para as montanhas a leste, onde alguns picos atingiam dois mil
metros. Era uma regi�o �spera e rude, dif�cil de se atravessar e, pelo que sabia,
n�o havia trilhas cruzando as montanhas; se bem que nunca tivessem explorado a
regi�o pr�xima ao campo de prisioneiros. Sua fisionomia crispou-se, numa express�o
irritada. Devia conhecer melhor a regi�o.
Voltou para a sala ao ouvir o telefone tocar. Talvez o tivessem pego! Talvez...
Era Shepilov. KGB.
- � verdade? Houve mesmo alguma fuga?
- Em plena Sib�ria? S� se for piada.
- � que eu ouvi dizer...
Ent�o a not�cia j� estava circulando. Ser� que n�o havia mais segredo naquele pa�s?
- N�o � nada n�o - retrucou num tom casual. - Uma pequena dificuldade, nada al�m
disso.
De certo modo, Shepilov era seu superior, s� que em outro departamento. E Shepilov
n�o gostava dele. Ressentia-se das amizades de Zamatev em Moscou e de sua
influ�ncia nas altas esferas de comando.
- Se precisar de alguma ajuda...
- Muito obrigado, est� tudo sob controle. - Desligou o telefone e sentou-se.
Col�rico, murmurava entre dentes. Isso tinha que acontecer logo agora! Agora que
tudo ia t�o bem!
Quem jamais ia supor que aquele homem escapasse por cima do arame?
Amanh� ele ser� encontrado, amanh� sem falta.
Pensou um pouco, pegou de novo o telefone. Fez mais tr�s chamadas, mobilizando
contingentes de busca ainda maiores. Desgra�ado! Onde � que estava? Por que n�o
fora ainda capturado?
Iria participar de uma reuni�o na noite seguinte e certamente surgiriam perguntas,
ainda que com um ar casual. Sabia-se muito pouco de suas atividades. Conversas a
respeito n�o eram bem recebidas, ainda que pairasse sobre elas uma acesa
curiosidade. Alguns, Shepilov por exemplo, sabiam um pouco. A intensa busca que
ordenara certamente suscitaria todo tipo de coment�rio.
Irritado, Zamatev foi at� a janela e observou as montanhas baixas. Apesar de suas
ambi��es - que, bem-sucedidas, o levariam para Moscou -, amava a Sib�ria,
descontando-se uma ou outra vez o inc�modo daquelas maneiras mais informais, como
se parecesse, ou houvesse de fato, menos respeito. Para que o pessoal t�cnico fosse
se instalar na regi�o, davam-lhes alguns privil�gios, al�m de sal�rios mais altos.
Isso levava para l� gente inovadora, pensadores, pessoas cujas id�ias nem sempre
estavam de acordo com o que se costumava pensar em Moscou. Nenhum problema surgira
at� ent�o, tampouco Zamatev achava que aquelas pessoas fossem muito longe. Contudo,
um pouco daquele livre-pensamento precisava de freio.
Tornou a pensar no americano. Onde podia estar? Que faria? Tinha de alimentar-se.
Ia precisar de roupas mais quentes. Roubaria. Mas de quem? Algum minerador
solit�rio, ca�ador de peles ou posto de pesquisa cient�fica? Um roubo seria
imediatamente comunicado e a� o localizariam com certeza. Zaniatev voltou para sua
mesa e sentou-se pesadamente.
Logo, tinham de peg�-lo logo. Era imposs�vel continuar assim invis�vel.
Por que o telefone n�o tocava?

A uns cem quil�metros dali, n�o muito longe do local em que o rio Tsipa des�gua no
Kalar, Joe Mack escondera-se numa densa floresta de pinheiro-japon�s e lar�cio, de
onde podia observar uma cabana constru�da de encontro a um rochedo. Dois homens
moravam ali e um deles acabara de sair, levando nas costas uma mochila vazia.
Tomara uma trilha em dire��o sul e, pela maneira com que acenara ao se despedir,
pretendia ir-se por bem mais do que apenas algumas horas. Dirigia-se provavelmente
para a cidade mais proxima.
O outro homem viu-o afastar-se. A�, pegando algumas ferramentas, desapareceu na
entrada de um t�nel de mina.
Joe Mack esperou mais um pouco, depois desceu cuidadosamente morro abaixo por um
caminho que o mantinha encoberto at� uns cem metros de dist�ncia da casa.
Aguardou, procurando recuperar o f�lego. Ainda correndo o risco de ser descoberto,
tinha de tentar. Ponderou um instante, em seguida cruzou a dist�ncia que o separava
da casa e entrou.
Olhou rapidamente em volta. Suspensas em ganchos na parede, roupas quentes. Apanhou
um su�ter grosso. Foi �s prateleiras. Fileiras de comida enlatada. Escolheu uma
meia d�zia da fileira da frente, colocando em seu lugar as latas detr�s para que
ningu�m desse falta. Fez um saco do su�ter e p�s as latas ali dentro.
Podia pegar muito mais coisas, mas n�o queria perder tempo, Deu mais uma olhada
r�pida em volta: Uma faca de ca�ador! Estava embaixo de uma mesa, sobre alguns
peda�os de lenha.
Tomou-a, deu mais uma olhada e saiu em seguida, atravessando o espa�o aberto ao
redor da casa. Parou um instante e olhou para tr�s. Ningu�m � vista. A terra por
ali estava bem dura e parecia-lhe n�o ter deixado rastos. Carregando a sacola
improvisada, subiu um pouco mais. Quando chegou num ponto de onde podia ter uma
vis�o das redondezas, agachou-se e abriu uma lata.
Uma esp�cie de peixe que n�o conhecia. Comeu com cuidado, estava h� dois dias em
jejum. Peda�os bem pequenos, aos poucos. Engoliu um pouco do �leo que estava na
lata. Aguardou um pouco, seu est�mago parecia estar bem, nenhum problema. Comeu um
pouco mais. Bebeu �gua de uma nascente na pedra. Arrastou-se para debaixo de alguns
galhos ca�dos e adormeceu.
Assim que o dia nasceu, comeu o resto do peixe e observou o rio que seguira com
atenc�o. De onde estava o via desaguar em outro maior, que corria para nordeste.
Guardou as latas restantes nos bolsos e dentro da camisa, e vestiu o su�ter pesado.
Caminhando sem que pudesse ser visto, desceu a montanha at� o rio.
Era o rio Tipsa, mas ele n�o sabia. Arrastando-se sob uns salgueiros, chegou at� a
margem e ficou olhando.
N�o tinha botas, equipamentos, nada.
Esperou uma meia hora at� ver um tronco que lhe parecia bom para descer o rio.
Passado um tempo suficiente, entrou na �gua e impulsionou o tronco. Embora o rio
n�o fosse largo, corria devagar. De repente, escutou o ronco de um pequeno motor.
Um barco subia o rio.

CAP�TULO 5

Voltar era imposs�vel. S� podia cruzar o rio no sentido da correnteza, e o tronco


n�o era suficiente para escond�-lo. Escorregou para dentro da �gua e, agarrando um
galho, abra�ou-se ao tronco, mantendo o nariz e a boca fora da �gua.
O ronco do motor continuou. N�o ousou tirar a cabe�a fora da �gua para olhar, nem
procurou direcionar muito o tronco. Ouviu o motor aproximando-se. Pelo som, era um
motorzinho de popa.
O cora��o batia-lhe devagar, pesado. Tomou bastante ar, preparando-se para
mergulhar, caso necess�rio. Tinha certeza de que at� ent�o n�o fora visto, de que
n�o deixara sinal nenhum para tr�s, pelo menos da primeira hora de fuga. Portanto,
qualquer busca que fizessem teria de cobrir uma �rea extensa, n�o poderia ser
concentrada. Perderia essa vantagem se algu�m o visse e denunciasse.
Mesmo que o desconhecido no barco o visse apenas de relance, teria de ser morto.
Sabia que poderia estar armado e mat�-lo imediatamente.
Seria algu�m no seu encal�o? Algum ca�ador? Pescador? Algum viajante retornando �
casa?
Entre ele e o barco estava o tronco, cuja parte fora da �gua n�o chegava a mais de
quinze cent�metros. De repente o barulho do motor mudou. Aproximava-se mais e mais.
Respirou fundo e mergulhou. O barco chegou mais perto e a� passou por cima, t�o
perto que deu para sentir as marolas da h�lice. Com todo o cuidado, p�s a cabe�a
fora da �gua.
O barco seguia rio acima. Conduziu o tronco em dire��o perpendicular � corrente, de
modo a ter cobertura at� chegar � margem, Era uma ribanceira baixa, cheia de
salgueiros. Arrastou-se para a terra, tremendo, satisfeito de sentir o calor do
sol. Deitou-se ali por alguns minutos, deixando que o sol secasse um pouco a �gua
que lhe encharcara a roupa.
Perdera seu bast�o mas encontrou outro, um galho firme, agora aperfei�oado pela
faca roubada.
Inquieto, ansioso em prosseguir, abandonou o rio, tomando rumo leste. Deixou os
salgueiros e choupos das margens do rio e come�ou a andar por uma floresta de
lar�cios, misturados com abetos e pinheiros de uma esp�cie diferente. Havia
arbustos de cereja silvestre - que lhe lembravam a inf�ncia - e alamedas de
choupos.
Seguia sem pressa, velocidade n�o era mais o essencial. Agora o que tinha a fazer
era n�o ser descoberto e cuidar de sobreviver. Ao meio-dia, num pequeno bosque de
abetos, abriu uma segunda lata. Era peixe tamb�m.
Achou aqui e ali algumas cerejas do campo, mas o fruto em torno da semente era t�o
fino que s� dava para sentir o gosto, meio agridoce.
Aos poucos sua roupa foi secando.
Movia-se cuidadosamente, j� que a qualquer momento poderia topar com algum ca�ador
ou grupo de explora��o de min�rios. Queria evitar ca�adores, embora um grupo de
explora��o pudesse fornecer-lhe o que mais desejava: Um mapa.
Nenhum ge�logo iria fazer trabalho de explora��o sozinho, em plena Sib�ria.
Provavelmente faria parte de um grupo mandado pelo governo e certamente teria todo
tipo de mapas do terreno em que fosse trabalhar.
Depois de ter andado umas duas horas, cobrindo uma dist�ncia que calculou ser de
uns dez quil�metros, deu de novo com o rio maior, que corria em sua dire��o.
Continuou andando, mas escondendo-se. Viu rastos humanos mas nenhum de animal. O
rio ficava entre duas serranias e, quando as sombras come�avam a se alongar, virou
e subiu o flanco da montanha mais pr�xima. O ar quente sempre sobe; meio caminho
acima, na montanha, estaria mais quente do que no sop�.
No pequeno declive que lhe serviria de cama, havia algumas frutinhas silvestres que
os �ndios denominavam kinnikinic.

Comeu algumas, nutritivas, mas que n�o tinham gosto nenhum. Sob os arbustos colheu
algumas folhas secas para fazer um ch�.
Uma casca de b�tula serviu-lhe de recipiente, acendeu um pequeno fogo e ferveu
�gua, cuidando para que as chamas n�o atingissem a casca acima do n�vel da �gua. O
ch� ficou bom, embora tivesse um gosto meio amargo.
Fizera a pequena fogueira com galhos secos que quase n�o soltavam fuma�a e sob um
abeto, de modo que a fuma�a, ainda que pouca, se espalharia, ao subir entre a
ramagem cerrada.
Manteve o fogo baixo e colocou uma pedra ao lado para refletir o calor. Enrolou-se
ali perto e pensou naquela situa��o toda.
Era um homem que estava sendo perseguido no maior pa�s do mundo. Achava-se numa
regi�o quase totalmente selvagem. Teria de viajar a p�, portanto vagarosamente.
Decerto o inverno o apanharia; e caminhar no frio naquelas condi��es era
impens�vel.
com a faca roubada e o su�ter, a situa��o melhorara um pouco, mas s� um pouco.
Precisava de uma arma que fosse silenciosa e com a qual pudesse, a dist�ncia,
atingir alguma ca�a. Bem, esse tipo de problema seu povo j� resolvera h� muito
tempo, com o arco e a flecha.
J� fizera muitos arcos e sabia us�-los com perfei��o. Muitas vezes estivera nas
montanhas selvagens de Montana, Idaho e na Col�mbia Brit�nica com essa �nica arma.
Por�m precisava de tempo para fabricar um bom arco. Assim, tinha de achar um
esconderijo seguro.
Necessitava de carne. E mais do que isso, de gordura, que � sempre a coisa mais
dif�cil de se conseguir na natureza. At� ent�o seu �nico objetivo fora distanciar-
se ao m�ximo de seus perseguidores; agora, por�m, a �rea de busca alargava-se ainda
mais e eles estariam espalhados por todo canto. O jeito era seguir em frente, mais
devagar, procurando um esconderijo onde pudesse esperar e ca�ar algum animal.
Tamb�m precisava de algum tipo de couro. Mas principalmente de peles. Tinha de se
agasalhar.
Contudo, devia-se encarar a realidade. Era praticamente imposs�vel um suprimento de
comida que durasse todo o inverno, come�ando j� no meio do ver�o.
Pensou nele pr�prio. Desde crian�a, sempre que podia ia ficar no mato. Vivera - e
sobrevivera - nas condi��es mais adversas. Ca�ara ou colhera sua comida, sabia
fazer roupas e fizera at� muitos mocassins, algo que nem todo �ndio sabia fazer.
Joe Mack cercou bem o fogo e deitou-se nas folhas secas sob os abetos. Fazia frio e
ventava, mas ele j� passara por isso antes.
Subitamente, arregalou os olhos.
Alekhin! Alekhin nunca deixara de encontrar um prisioneiro foragido. Alekhin era
Yakut, contrapartida do �ndio americano. Conhecedor profundo da natureza, saberia o
que pensar sobre ela. Saberia exatamente como Joe Mack tentaria sobreviver, saberia
do que mais precisava.
Seu primeiro e maior inimigo era Alekhin, e n�o Zamatev. Zamatev dirigia, dava
ordens, podia at� convocar todo o Ex�rcito sovi�tico estacionado na Sib�ria para
achar um �nico homem. Alekhin, entretanto, adivinharia a maneira de outro �ndio
pensar. Alekhin, mais do que ningu�m, compreendia o significado da palavra
sobreviv�ncia. Mais cedo ou mais tarde Joe seria visto e sua presen�a levada ao
conhecimento das autoridades.
Alekhin era um rastreador inigual�vel e Joe Mack sabia que n�o poderia enganar por
muito tempo um homem assim.
O Yakut descobriria seu rumo e segui-lo-ia. Podia at� j� ter suspeitado para onde
se encaminhava e estar l� a esper�-lo.
Joe Mack n�o tinha amigos na Sib�ria. Pelo menos nenhum que conhecesse. Supunha que
deveriam existir dissidentes. De fato, chegara a ouvir falar deles. Havia tamb�m
muitas pessoas na Sib�ria que aspiravam por um modo de vida mais livre, menos
autorit�rio, mas isso n�o queria dizer que pudessem ser desleais ao governo.
Durante o governo do czar, chamaram-na a "m�ezinha R�ssia" e muitos ainda a viam
assim. Podiam n�o concordar inteiramente com o governo, mas era seu governo, al�m
disso as not�cias que recebiam dos EUA eram somente as piores.
Se fosse visto seria denunciado, capturado e morto. Embora pudesse haver gente
compreensiva ou amistosa, n�o as conhecia nem sabia onde encontr�-las. Tinha de
considerar como inimigos todo e qualquer homem ou mulher.
Acima de tudo, n�o podia esquecer Alekhin.
No trig�simo segundo dia de busca, Alekhin chegou � distante cabana de Alexei
Vanyushin. Alexei - cujo companheiro voltara a Chita - estava s� e contente de ter
visita, mesmo que f�sse a de um Yakut.
Alekhin era um homem paciente. O pessoal em busca do americano foragido vasculhara
a Sib�ria durante tr�s semanas antes de ele ter recebido ordens para participar,
mas o tempo todo estivera ouvindo e observando. Divertia-se em pensar que o
americano desaparecera completamente, enquanto ele era o �nico a saber como e por
qu�.
A busca abrangera as cidades, as fronteiras, a estrada de ferro Transiberiana,
enfim, todos os lugares, menos os certos. Alekhin respeitava Zamatev, embora n�o
gostasse dele. O russo era incrivelmente perfeito, Tamb�m era cruel e totalmente
impiedoso, e isso o Yakut entendia e admirava. O problema de Zamatev era, al�m de
ser Zamatev, ser russo.
Um russo n�o pensava como um Yakut. Al�m disso, n�o pensava como um sioux. Zamatev
fazia tudo sempre certo, mas nesse caso enganara-se ao deixar de perceber que tipo
de homem estava perseguindo.
Quando o Yakut recebera ordens de integrar-se � busca, sabia que todo vest�gio de
rasto j� teria sido destru�do pelos pis�es de botas e carros em velocidade. Todo
aquele esfor�o desperdi�ado.
Para se capturar um prisioneiro foragido, � preciso pensar como um prisioneiro
foragido. E, se esse prisioneiro � �ndio, � preciso pensar como �ndio.
Alekhin n�o tinha pressa. O americano n�o ia mesmo sair da Sib�ria antes do inverno
e este provavelmente o mataria. N�o adiantava ficar correndo de l� para c�. Em
primeiro lugar, era preciso entender o que o americano fizera.
A primeira busca fora completa e rapidamente organizada, mas sem sucesso. Portanto,
o americano j� ultrapassara os limites daquela busca antes mesmo de ela ter
come�ado. Sendo atleta, podia correr, e assim o fizera.
Fracassara a primeira busca. A segunda utilizara um n�mero maior de soldados, mas
tamb�m sem o menor conhecimento a respeito do homem que procuravam.
Dia ap�s dia, lentamente, Alekhin vasculhou a regi�o em torno do campo. Esteve em
todos os campos de explora��o, conversou com ca�adores, pescadores e barqueiros.
Nada ouviu que pudesse significar alguma coisa at� o dia em que visitou o distante
campo de Vanyushin.
Vanyushin fez um ch�. Era um jovem ge�logo e engenheiro de minas que encontrara um
importante campo de explora��o em que agora trabalhava. Pelo menos at� o ponto de
pass�-lo para um engenheiro de projetos e para os mineradores. Gostava do trabalho
em plena natureza e, assim que term�nasse aquela explora��o, partiria em busca de
outra.
- Me lembro daquele dia, sim! Foi quando Paul foi at� a cidade, ou talvez no dia
seguinte. Me deixou duas semanas aqui sozinho e quase sem mantimentos. - Enrugou a
testa. - Pens�vamos que havia mais mantimentos. Eu pensei pelo menos.
- Quer dizer que voc�s deram por falta de alguma coisa?
- N�o, n�o � isso - apontou para as prateleiras com a lataria enfileirada
cuidadosamente. - Achei que tiv�ssemos mais do que t�nhamos. Achei que havia tr�s
fileiras de lataria, mas estava enganado.
Alekhin olhou pela janela. Tinha um ar sonolento.
- Paul foi � cidade naquele dia. E voc�, o que fez?
- Fui trabalhar, � claro. Estava perfurando junto ao t�nel. N�o temos energia
el�trica por aqui, � trabalho manual mesmo, o tempo todo.
Alekhin empurrou sua ch�cara em dire��o a Vanyushin.
- Ent�o n�o havia ningu�m na cabana?
Vanyushin encolheu os ombros.
- N�o havia raz�o para ter algu�m. Estamos trabalhando a maior parte do tempo, mas
n�o tinha ningu�m por perto para roubar alguma coisa.
- Mas voc� deu pela falta de algumas latas.
- Mas isso foi um erro de contagem! Provavelmente foi Paul quem as colocou nas
prateleiras. T�nhamos uma d�zia de peixe enlatado. Peixe do Baikal, meu favorito -
encolheu os ombros. - Vai ver que ele mesmo comeu.
- Tem gente que faz isso. J� vi soldados escondendo comida. - Alekhin bebeu um gole
do ch�. Fazia calor, num daqueles dias de claridade fora do comum, freq�entes em
Yacutia. - Notou a falta de alguma outra coisa?
- N�o, acho que n�o. - Vanyushin enrugou a testa. Pensando bem, notei sim. Minha
faca. Minha faca predileta. Mas foi o Paul! Ele usa as coisas e nunca p�e de volta
no lugar.
Vanyushin fizera um excelente ch�, pensou Alekhin. Um excelente ch�. Seus olhos
esquadrinharam a colina coberta de �rvores e depois voltaram-se para a cabana.
Terminou o ch� e se levantou.
Vanyushin olhou para ele. Puxa! O homem era grande. N�o era s� alto, era grande
mesmo. Forte, entroncado e sem muita gordura. E movia-se com a agilidade de um
bailarino profissional. Vanyushin j� vira alguns homens assim, n�o muitos por�m. O
que eles tinham era simplesmente poder.
Mais uma vez os olhos de Alekhin varreram a cabana.
- Aconchegante - disse -, mas n�o � um lugar para se passar o inverno.
- N�o � n�o, you descer para Chita por causa disso. Pode ser at� que eu v� para
Irkutsk. - Vanyushin tamb�m levantara-se. - Sinto n�o ter podido ajud�-lo.
O olhar de Alekhin deu com as roupas dependuradas nos pregos na parede da cabana.
Algumas delas bem empoeiradas. Se tirassem alguma coisa dali, quanto tempo levaria
at� que percebessem?
- Voc� me ajudou - disse Alekhin. - E obrigado pelo ch�.
Saiu da cabana, olhou para o morro em frente e sorriu. Agora sabia.
Alekhin n�o costumava sorrir, mas agora sabia n�o apenas o rumo tomado pelo
americano como tamb�m alguma coisa a respeito de sua pessoa. Fora t�o habilidoso no
roubo da comida que Vanyushin nem percebera; provavelmente tamb�m alguma roupa
quente. A faca fora seu �nico passo em falso, mas era uma necessidade. Um homem
sobrevive com uma faca. Se ele for bom mesmo, n�o precisa de mais nada. � claro que
podia estar enganado, mas Alekhin tinha certeza. Seu pr�prio instinto dizia-lhe que
Makatozi passara por ali.
Algumas horas mais tarde, estava sentado na sala do coronel Zamatev.
- Leste! O homem � completamente louco! � longe demais! Ser� muito frio! Por que
n�o a China? Esse � o caminho mais f�cil, mais l�gico.
Alekhin observava Zamatev atrav�s das p�lpebras ca�das, com olhos que pareciam sem
express�o, sem emo��o.
- Ele � um homem do mato, da natureza. Voc� nunca poderia agarr�-lo.
Zamatev teve um �mpeto de c�lera. Alekhin tomava muita liberdade por conta dos anos
de trabalho em comum. Como o Yakut ousava dizer isso para ele? O que estava
pensando?
- Ele � um �ndio. Para pegar um �ndio, voc� tem de pensar como �ndio.
- Arre! Ele � um homem civilizado! Um oficial da Aeron�utica do seu pa�s! � formado
em universidade!
- Ele � um �ndio. - O Yakut p�s a m�o sobre o cora��o. - Eu sinto isso aqui. N�o
importa no que tenha se tornado, ele ainda � um �ndio.
- E da�? Voc� o entende, ent�o? Que ele far� agora?
- Tentar� fugir. Viver� como �ndio. Se surgirem complica�oes, morrer� como �ndio,
antes por�m tentar� fazer mais uma coisa.
- Que coisa?
O Yakut olhou para o coronel Zamatev, n�o sem satisfa��o.
- Matar voc�.

CAP�TULO 6

No dia em que Alekhin tomara ch� na cabana de Vanyushin, Joe Mack se encontrava a
uns cem quil�metros dali, agachado sob um pinheiro. O pinheiro pertencia a um
bosque no alto de um morro que dava para o rio Kalar.
l� comera a �ltima das latas de peixe e armara v�rias armadilhas sob alguns
arbustos l� perto. Estava observando o rio. N�o era uma escolha muito boa como meio
de fuga: teria de ir contra a forte correnteza. Melhor seria seguir ladeando o sop�
das montanhas, guiando-se por ali, e sem correr o risco de encontrar algu�m no rio
ou nas margens.
A sorte o acompanhara at� aquele momento, mas n�o ia durar para sempre. A comida
n�o fora suficiente, entretanto estava acostumado a lidar com a fome. Quando era
menino, nas montanhas, muitas vezes vivera do que conseguia ca�ar ou colher na
floresta. Estava preparado para fazer o mesmo agora.
Ladeando as montanhas, progrediria com lentid�o, mas protegido, pois duvidava que
pudesse encontrar algu�m na floresta.
Notara com certa freq��ncia rastos de lobo, mas principalmente de veado e alce, e
s� por duas vezes rastos de um urso grande. No entanto, pelo pouco tempo de que
p�de dispor, suas armadilhas n�o tinham apanhado nada. Assim, amarrou os cord�es do
sapato e continuou ao longo das montanhas. De vez em quando encontrava frutas
silvestres e colhia algumas.
Pouco ajudavam a matar-lhe a fome, mas, pelo sabor agrad�vel, davam-lhe ao menos a
ilus�o de estar comendo algo nutritivo. Cortou um peda�o da casca de um choupo,
raspou e comeu a polpa macia, �mida e carnuda, alojada entre a casca e a madeira.
L� tinha fejto isso v�rias vezes quando menino. Depois continuou a andar.
N�o alimentava ilus�es. Zamatev nunca desistiria da busca. Podia acionar todo o
poder da Uni�o Sovi�tica, com homens, avi�es, carros e helic�pteros, todos
equipados com r�dio. As For�as Armadas seriam alertadas, e as organiza��es civis
convocadas transmitiriam por r�dio sua descri��o. E o inverno se aproximava, com
sua foice fria e terr�vel.
Sua vantagem, a �nica, era que n�o sabiam onde se encontrava e assim n�o podiam
concentrar a busca numa s� �rea. Quando descobrissem, suas chances se reduziriam
sensivelmente.
O ar era claro e frio. O sol brilhante, Havia pouca chuva na Sib�ria, neve menos
ainda e, naquela regi�o pelo menos, raras nuvens. Contudo, numa cadeia de montanhas
a sua frente, em algum lugar, registraram-se as temperaturas mais baixas fora da
Ant�rtida.
At� ent�o caminhara devagar, escondendo-se quando pressentia algum movimento e
evitando deixar qualquer sinal. Dormira em pequenos per�odos intercalados quando o
sol estava quente, mas o tempo j� ia esfriando. Logo teria de parar e tentar pegar
algum animal na armadilha, por causa da pele. Precisaria agasalhar-se.
O vale do Kalar estreitava-se numa ravina. Joe Mack, cambaleando, quase caindo de
cansa�o, apoiou-se no tronco de uma �rvore morta e fitou o rio, correndo
quil�metros abaixo. Percebia ocasionalmente um brilho de �gua, nada mais.
N�o estava cansado, mas a falta de comida consumia-lhe a for�a. Calculava ter
percorrido pelo menos uns trezentos quil�metros, a maior parte do tempo faminto e
com frio, at� ficar naquele estado. Tinha de parar. Recuperar-se. Preparar-se para
o inverno.
Sobrevivera os �ltimos sete dias � custa de frutas silvestres, polpa extra�da da
casca de choupo, v�rios lag�podes que conseguira matar, alguns esquilos, um rato-
da-montanha e um peixe que fisgara. Ficou ali por muito tempo, fitando o rio,
desanimado. Depois virou a cabe�a, examinando o terreno a sua volta. Mal se podia
ver o penhasco �s suas costas, coberto por uma densa floresta de pinheiros. Quase
impenetr�vel. Abaixo dele, choupos e b�tulas cobriam a colina e por entre as pedras
um fio de �gua descia at� o rio, ao longe. De repente algo lhe despertou a aten��o.
Sob os pinheiros, algumas sombras escureciam-se mais. Olhou de novo, adiantou-se,
ajoelhou-se: Parecia ter visto uma caverna.
Arrastando-se sob os galhos mais baixos, chegou a uma cavidade na rocha, de uns
tr�s metros de di�metro. Ali descansaria um pouco.
Antes j� vira l� fora estrume de veado e de carneiro montanh�s. Os dois quase com a
mesma apar�ncia. Se matasse um carneiro montanh�s obteria tanto a carne quanto o
couro.
A lan�a que fizera j� n�o servia mais. Precisava mesmo era de um arco e algumas
flechas. Mesmo se tivesse um rifle, seria in�til, pois certamente um tiro chamaria
aten��o. Podia tamb�m fazer uma funda. Os �ndios a usavam e Joe desde crian�a fora
um ex�mio atirador.
Seu av� fora um homem tanto r�spido quanto bondoso. "Aprenda a viver da natureza",
uma vez lhe dissera. "Como seus ancestrais, aprenda a conhecer as raizes, as
folhas, as castanhas e as sementes. Hoje voc� n�o precisa saber disso para viver,
mas quem pode prever o futuro?"
Os her�is de sua juventude n�o foram George Washington, Abraham Lincoln, Jim Thorpe
ou Babe Ruth, mas Nuvem Vermelha, Cavalo Doido, e outros tantos. Sua av� narrara-
lhe a guerra entre brancos e �ndios, os ataques contra os Arikara, Kiowa, Crow e
Shoshone. Durante toda a sua inf�ncia e juventude, fascinaram-no as aventuras dos
grandes guerreiros da na��o Sioux, as escalpa��es, os ataques surpresa, todas as
hist�rias, enfim, daqueles homens que preferiam morrer a entregar-se.
Sempre nas f�rias de ver�o ia para o mato com v�rios amigos, procuravam fazer como
os �ndios de antigamente: ca�avam, montavam armadilhas, aprendiam a viver da
natureza.
Tremendo de fome e frio, dormiu em sua caverna ao lado de uma pequena fogueira. No
dia seguinte, ciente de que deveria permanecer ali at� que tivesse ca�ado para
alimentar-se e agasalhar-se, tratou de fazer uma funda e juntar pedras como
muni��o. Sabia, por outro lado, da necessidade de arco e flechas.
Avivou a fogueira com cascas de �rvore, depois com galhos maiores. Ent�o, armado de
lan�a e funda, come�ou a subir a montanha.
Durante muito tempo ficou ouvindo atentamente, em busca de algum som que n�o fosse
o da taiga, a floresta siberiana.
Procurou um ponto de observa��o e de j� examinou o rio, mas nada viu. Sentou-se sem
mover um m�sculo, todos os sentidos agu�ados. Precisava de carne, precisava de
roupa. E tamb�m de tend�es para fazer a corda do arco. Nos velhos tempos, fazia-se
com tend�o de b�falo. Teria de improvisar. Nos vales e encostas, chegara a ver
algumas renas selvagens, mas n�o tinha como abat�-las.
Se conseguisse chegar perto o bastante, a lan�a serviria, assim como a funda, caso
a pedra fosse lan�ada com precis�o. Os minutos escoaram-se lentamente, e ele
parado, observando. Passou um carcaiu, esp�cie de texugo americano, mas n�o quis
atacar uma criatura t�o extraordin�ria e in�til. Contudo, a pele poderia servir e,
em outra ocasi�o...
Um urso enorme arrastou-se montanha acima, coberto pelas folhas dos choupos bem
abaixo do lugar em que Joe estava sentado. Sem a arma adequada era imposs�vel
enfrentar um animal daquele porte, mesmo sabendo que o bicho tinha toda a gordura
de que ele precisava.
O ar frio da manh� fez Joe Mack tremer. Era agosto, "A Lua das Ameixas Maduras",
mas j� estava no fim, dando lugar � �poca das folhas amarelas.
Pouco antes do meio-dia, matou uma raposa, tirou a pele e assou a carne. Esticou a
pele e raspou-a. Deixou-a esticada na caverna e foi de novo observar a trilha.
No dia seguinte, desceu at� o rio e, com a lan�a, espetou tr�s peixes. Carregando-
os de volta para a caverna, encontrou uma pequena concavidade numa pedra onde o ar
era bem mais quente e at� mesmo a vegeta��o um pouco diferente. �s vezes nas
montanhas encontravam-se microclimas como aquele, lugares, por raz�es variadas,
mais quentes ou mais frios do que outros. Cacando nos bosques, descobriu v�rias
plantas mais caracter�stias da Manch�ria ou Jap�o do que da Sib�ria. Alertado por
este fato, procurou com afinco e encontrou uma meia d�zia de freixos. De um deles
cortou um pedaco que parecia servir para um bom arco. Depois, por um percurso
tortuoso, voltou � caverna.
Durante todo o dia seguinte trabalhou o arco, lixando-o com pedras e afinando-o
cuidadosamente. De vez em quando tentava flexion�-lo. Entalhou dois dentes embaixo
e um em cima.
Contudo, estava preocupado. Porque, ficando muito tempo num mesmo lugar, n�o podia
evitar de deixar sinais de sua presen�a.

No quinto dia matou um carneiro montanh�s. Tirou-lhe a pele, comeu bem e foi curtir
o couro. Ao meio-dia, resolveu descansar um pouco l� fora. Sentou-se numa pedra e
ficou observando o rio.
De repente captou um som que de imediato decodificou: era uma embarca��o deslizando
pelo rio. Embora estivesse longe demais para ver todos os detalhes, parecia estar
lotada de pessoas. Sob um determinado �ngulo, percebeu o reflexo do sol em barris
cheios de rifles.
Soldados! No m�nimo, um pelot�o completo.
Voltou para a caverna preocupado. Ser� que descobriram onde estava? Teria de alguma
forma tra�do sua presen�a? Era uma equipe de busca ou apepas uma movimenta��o
regular de tropas?
N�o podia aceitar essa �ltima hip�tese. Ali n�o havia fronteira a proteger, nenhuma
fortaleza, nem acampamento. O grupo era pequeno demais para fazer parte de alguma
manobra. Ent�o, para onde se dirigia?
Cortou a carne do carneiro montanh�s em tiras bem finas, defumou-as e secou-as,
depois limpou alguns tend�es e tran�ou tr�s deles para fazer a corda do arco. Pegou
ent�o o arco, a corda - que ainda n�o estava pronta para uso - e um pequeno pacote
com carne, embrulhada na pele, e subiu a montanha.
Abandonando as margens do Kalar, seguiu para o norte sobre um espig�o que dava para
um rio menor, viajando em dire��o nordeste. N�o parou para ca�ar ou descansar,
continuando sempre em frente, protegido pela floresta e pelos rochedos. Durante o
dia esfor�ava-se para andar uns quarenta quil�metros e, ao cair da noite, acampava
ao lado de alguma �rvore grande ca�da no solo, no ar aberto e sem fogueira. Pela
manh�, removia todo o sinal de sua presen�a. Tomando nas m�os um punhado de folhas
secas, deixava o vento suave espalh�-las sobre o lugar em que dormira.
Ao atingir uma pequena plan�cie entre o pico mais alto e um longo espig�o,
cuidadosamente come�ou a descer em dire��o ao vale.
Encontrou abrigo num cerrado bosque de pinheiros. Ali continuou a trabalhar o couro
do carneiro, para dele fazer uma roupa, usando tiras de couro cru para amarr�-la.
Era uma tarefa lenta e exigia paci�ncia, mas do local em que se sentara podia
observar toda a cadeia de montanhas. Assim, trabalhava e vigiava ao mesmo tempo.
N�o queria roupas pesadas, mas em camadas leves que tanto aquecessem quanto lhe
permitissem liberdade de movimentos.
Antes de escurecer, prosseguiu ao longo da inclina��o da montanha, atrav�s de
choupos, at� chegar a uma depress�o no terreno, cheia de folhas secas. Deitou-se
ali, um acampamento seco, sem fogueira.
Ouando acordou, viu embaixo, n�o muito longe dali, torres de retransmiss�o de
tel�grafos, ou alguma coisa desse g�nero, e uma pequena aldeia. Estava
suficientemente pr�ximo para perceber as pessoas se mexendo l� longe, mas n�o tanto
para deduzir quem ou o que eram. Voltou para a parte mais fechada da floresta,
sobre um espig�o �ngreme onde mais uma vez acampou. Ali, escondido pela vegeta��o e
pelas pedras, continuou a trabalhar a roupa de pele de carneiro e o arco. Come�ou a
procurar por madeira adequada para as flechas. N�o gostou da corda de arco que
fizera, mas tinha que servir, pelo menos at� que achasse algo melhor.
L� embaixo, percebeu pessoas caminhando ao longo de uma estrada e, mais longe, ao
sul, um fio de fuma�a bem fino, talvez proveniente de um vilarejo. Em qualquer
vilarejo, haveria cachorros. De onde estava, podia ver que o Kalar inclinava-se
para o sul e depois, noutra curva, voltava a correr em dire��o norte. Sem d�vida
teria que cruzar o rio de novo, e isso n�o era exatamente o tipo de coisa que mais
desejasse fazer. Cruzar um rio significava expor-se, al�m do desconforto de molhar-
se, quando o tempo j� ficava mais e mais frio.
Levantando-se, prosseguiu pela montanha, � sombra do espig�o, e andou para leste,
procurando n�o ser visto. Contudo, as �rvores rareavam, deixando a maior parte da
encosta da montanha a descoberto.
As noites estavam ficando cada vez mais longas. E ele continuava a caminhada, muito
cansado, trope�ando �s vezes. Finalmente sentou-se, incapaz de prosseguir sem
descansar um pouco.
Sentou-se com as costas apoiadas numa pedra, mais ou menos escondido por um arbusto
e uma �rvore. O sol j� ia alto, e mesmo um pequeno calor era melhor do que nada.
Largou o corpo contra a pedra, os olhos fechados.
Se tivesse andado mais uns quinhentos metros veria uma trilha bastante apagada, mas
ainda assim, uma trilha.
A uns quatro quil�metros dali, vindo do norte, corria o rio Kalar, aquele rio que
tanto temia atravessar. E alguns quil�metros al�m, um outro rio muito maior ainda e
mais perigoso.
Muitos dias de caminhada ininterrupta, pouca comida, nenhum descanso, levaram-no �
mais completa exaust�o. Lentamente foram se relaxando os m�sculos, os olhos cedendo
ao sono. Ent�o, caiu adormecido.
Cortando os pinheiros, ouvia-se a navalha fria do vento. Uma folha seca caiu junto
� trilha. Um tordo pousou num galho. Depois voou.
Na trilha ouviu-se um leve ro�ar de folhas secas e surgiu um homem. Baixo,
entroncado e meio gordo, usava um gorro de pele, um velho casaco tamb�m de pele,
comido pelas tra�as, e cal�as grossas enfiadas no cano de uma bota meio esquisita.
Vinha vindo por uma pequena curva na trilha, quando viu um p�.
Parou imediatamente, sondando a sua volta., Mais ningu�m. Pelo menos ali por perto.
Agu�ou os ouvidos, um ronco leve. Tirou de dentro do casaco um rev�lver AK-47, que
cintilou de t�o lustroso. Suas roupas podiam estar mais ou menos rasgadas, mas o
rev�lver estava perfeito.
Contornando a �rvore percebeu um homem adormecido contra a pedra, um homem
emagrecido, acabado. Viu o pacote de carne defumada, a lan�a, a funda e o arco sem
corda nem flechas.
Bem devagar, Yakov foi at� uma pedra em frente e sentou-se. Apanhou um seixo e
atirou-o no rosto do homem.
Joe Mack acordou e, embora sonolento, com todos os sentidos em alerta. Seus olhos
entreabertos deram com o cano do AK-47.

CAP�TULO 7

O homem era bochechudo e parecia gordo, mas Joe Mack n�o se enganou. J� vira antes
outros homens assim e sabia que aquilo que parecia gordura eram os m�sculos
naturais de algu�m por demais poderoso, naturalmente forte.
Durante um momento mediram-se mutuamente. Ent�o o homem falou, numa l�ngua que Joe
Mack sabia ser russo, embora dela n�o conhecesse sen�o uma meia d�zia de palavras.
- N�o falo sua l�ngua - retrucou.
Para sua surpresa, o rosto do homem iluminou-se, bem humorado.
- Ingl�s! - exclamou at�nito num ingl�s prec�rio.
- Fala ingl�s?
O AK-47 im�vel.
- Quem � voc�?
- Sou um americano - respondeu lentamente - viajando pelo seu pa�s.
O homem examinou-o, de alto a baixo, sem disfar�ar.
- Com essas roupas? � moda de turista?
Joe Mack sorriu de repente e o rosto do homem iluminou-se mais uma vez.
- Turista que n�o procura conforto - disse loe.
Por um momento o homem ficou intrigado, depois sorriu outra vez.
- Por que voc� aqui? Este lugar distante.

Joe Mack sentiu-se confuso. O homem n�o era soldado, mas carregando um AK-47, era
�bvio que saberia us�-lo prontamente. Pelas roupas indescrit�veis e pela maneira
t�o defensiva quanto a dele pr�prio, n�o seria ele tamb�m um foragido?
- � melhor viajar por lugares distantes - acrescentou vagarosamente. - A comida eu
tiro da natureza mesmo.
Os olhos do estranho procuraram os seus.
- Sou Yakov - apresentou-se.
- E eu, Joe Mack.
- Onde voc� mora?
- Estados Unidos. At� voltar para l�, vivo como posso, onde puder. Logo vem o
inverno. N�o tenho casa para inverno.
- Ah!
Yakov estava a uns tr�s metros de dist�ncia e o AK-47 continuava im�vel. N�o havia
jeito de cobrit aquela dist�ncia e tomar o rev�lver sem antes levar uns quatro ou
cinco tiros; o homem n�o era nenhum bobo.
- Por que n�o vai embaixo? - Yakov apontou para o vilarejo distante, Joe Mack
arriscou. Afinal de contas, o que estaria fazendo Yakov nas montanhas com um AK-47?
- Eles me p�em na casa com grades.
- Ah! Americano? Prisioneiro? Na Sib�ria? A R�ssia n�o estar em guerra com os EUA.
- N�o - Joe Mack ergueu uma sobrancelha. - Diga isso para o coronel Zamatev.
O homem alterara-se instantaneamente:
- Zamatev? Voc� falou com Zamatev?
Pela primeira vez o cano do rev�lver abaixara-se.
- Onde falou com Zamatev?
- Muitos quil�metros daqui, a oeste. Eu era seu prisioneiro.
- Voc� fugir? Ele procura voc�?
- Procura.
Yakov ficou em sil�ncio, pensativo. Apontou a vestimenta r�stica, de pele de
carneiro:
- Voc� fazer?
- Sim.
Yal�ov mostrou o arco.
- O que aquilo?
- Um arco. Eu estou fazendo um arco. Depois as flechas, Preciso ca�ar.
Joe Mack mostrou a funda. Pegou no embrulho um peda�o de carne de carneiro seca e
defumada. Ofereceu-o a Yakov.
Yakov aceitou-o e Joe Mack pegou outro peda�o no pacote. Mastigaram em sil�ncio.
- Voc� n�o cara americano.
- Eu sou �ndio, �ndio pele-vermelha.
- Ah! Eu ver �ndio no filme. Cinema.
- E n�o sou �ndio de cinema - Joe Mack retrucou, irritado.
Yakov olhou em sua dire��o.
- Logo frio, frio muito - hesitou. - Eu tamb�m fugido. Fugiu faz tr�s anos.
- Tr�s anos? - Joe Mack observou-c, com interesse redobrado. - Como voc� vive?
- Vivo.
Hesitou um pouco, como se estivesse pensando em voz alta.
- Meu pai - prosseguiu - era l�tuano. Exilado para Sib�ria. Minha m�e mulher
Tungus. Tungus povo das renas. Levantou-se. Melhor a gente ir embora.
- Eu viajo sozinho - disse Joe, levantando-se tamb�m. Yakov retrucou, por sobre os
ombros:
- Vem frio, voc� morre. Precisa comida muita no frio. Melhor vem comigo.
Relutante e desconfiado, Joe Mack seguiu-o. Yakov foi � frente, num passo r�pido,
fazendo o percurso inverso na trilha por onde viera. Logo depois acelerou a marcha,
olhando atr�s para ver se Joe Mack o acompanhava, Correram durante uma hora. Depois
Yakov diminuiu o ritmo, voltando a andar. Apontou diante de si:
- O Kalar.
O rio corria a sua frente, a uns quinhentos metros. Yakov movia-se agora com tanto
cuidado quanto Joe, dirigindo-se por entre as �rvores para a margem do rio. Ali,
cuidadosamente camuflada, Yakov guardava uma canoa.
Numa pequena enseada, escondidos no meio de cani�os, ficaram parados, escutando. A
uma palavra de Yakov, Joe Mack mergulhou o remo fundo, acompanhando o movimento do
companheiro. Em menos de vinte minutos estavam na margem oposta, escondendo a canoa
num lugar que Yakov conhecia. Foram em frente, atrav�s da mata.
Pararam numa pequena clareira.

- A leste Olekma. Rio grande. Muito perigoso atravessar. Muita gente, barcos. �s
vezes ningu�m, melhor esperar.
Yakov desenhou no barro o esquema de um caminho e de marcos geogr�ficos mais a
leste do rio. P�s o dedo num lugar do mapa:
- Aqui pessoa como eu, como voc�. Se gostam voc�, fica durante inverno. Se n�o
gostam, voc� vai embora.
Colocou-se em p�.
- Eu voltar agora. Lugar � longe. Voc� fala meu nome - encolheu os ombros. - Eu n�o
sabe. Mulher fala sim ou n�o - fez um gesto com a m�o. - Voc� vai.
Joe Mack viu-o distanciar-se, mas Yakov n�o olhou para tr�s. Olhou mais uma vez
para aquele mapa grosseiro desenhado na lama, depois apagou-o.
Yakov, um estranho. Transportou Joe Mack atrav�s do rio, indicou-lhe um rumo e a�
voltou, para fazer n�o se sabia o qu�. Fosse o que fosse, exibia um AK-47.
Um mulher que diz sim ou n�o? Que tipo de mulher? Lera a respeito das lindas
mulheres russas, mas isso fora nos tempos do czarismo. As �nicas mulheres
sovi�ticas que conhecera eram atletas, de feminilidade no m�nimo duvidosa. Vira
outras em fotografias mas, com as roupas que vestiam, era dif�cil dizer se eram
bonitas ou n�o.
De qualquer forma, era uma quest�o que n�o pretendia averiguar. Em algum lugar ao
leste encontraria abrigo, e de alguma forma atravessaria o inverno.
Yakov ajudara-o a cruzar o rio e por isso sentia-se grato. Agora, precisava
sobreviver. De noite, ao lado da fogueira, trabalhou mais o arco, afinando-o um
pouco, dobrando-o sobre o joelho para testar-lhe a flexibilidade. E aquela era uma
noite fria, muito fria, muito fria mesmo. Uma pequena amostra do que estava por
vir.
De manh�, fez as flechas, escolhendo com cuidado a madeira leve, endireitando-a e
amaciando-a. Dois dias depois seguiu em frente, carregando as flechas numa aljava
tosca, enquanto n�o pudesse arranjar coisa melhor.
Em algum lugar adiante, ficava o rio Olekma e ele conhecia aquele nome, pois
convivera com pilotos que conheciam ou tinham estudado a Sib�ria.
Sabia que quatro dos maiores rios do mundo nasciam na Sib�ria: O Ob, o Yenisei, o
Leria e o Amur. Sabia que os Estados Unidos tinham mais de nove milh�es de
quil�metros quadrados de superf�cie, enquanto a Sib�ria mais de quinze milh�es, com
�reas imensas ainda desconhecidas, a n�o ser para alguns povos nativos.
Na segunda noite depois de ter se despedido de Yakov, encontrara pedras obsidianas,
que usou para fazer as pontas das flechas, verdadeiras obras de arte. Ao mesmo
tempo que trabalhava, ia estudando a regi�o em volta. O lema era manter-se sempre
alerta, observando o pa�s, atento a qualquer mudan�a de ar ou de vento, por mais
sutil que fosse.
Pela primeira vez, desde que em crian�a sa�ra de casa para estudar fora, sentia-se
s�. N�o era a falta de pessoas, mas de alguma outra coisa. Despontava nele uma
ang�stia vaga, indescrit�vel, algo que vinha de dentro, um vazio estranho.
Percorreu com o olhar a imensid�o que se estendia a sua frente, montanhas nuas e
geladas ao redor; cortando a floresta, os picos nus e agudos que pareciam perfurar
o c�u... E a vaga ansiedade n�o o deixava.
Se morresse naquela noite, quem se lembraria dele? Quem o enterraria? Queimariam
seu corpo? Serviria de comida para lobos, carcajus, urubus e formigas. Teria
passado por esta Terra sem deixar nada para que fosse depois lembrado. N�o tinha
mulher nem filhos.
Era para aquilo que os Sioux eram treinados: Ser guerreiros. Das quatro virtudes
guerreiras, possu�a duas - bravura e fortaleza. Mas teria generosidade? Sabedoria?
Quando era menino e ca�ava, n�o tinha com quem dividir a carne. Mas quando sa�ra de
casa para estudar, dera seu cavalo predileto para um amigo. Na universidade, a n�o
ser na hora do futebol ou do atletismo, vivia sempre s�. Gra�as �s in�meras
leituras e aos ensinamentos do av�, era um aluno atento e s�rio. Al�m de ser
estudioso, aprendia com facilidade. Sabia que as mulheres sentiam-se atra�das por
ele; e sabia que dan�ava bem, mas n�o se interessava por nenhuma garota em
particular. Era muito fechado e, quando vinham as f�rias, desaparecia nas
montanhas. N�o sentia inimizade pelo homem branco. Tinham armas superiores e uma
melhor estrat�gia, admitia isso. O homem branco ocupava a terra, mas os Sioux
tinham tomado Black Hills dos Kiowa e estes, por sua vez, de outros.
Orgulhava-se de si. Andava de cabe�a erguida, orgulhavase de ser �ndio, orgulhava-
se do lugar que ocupava no mundo do homem branco. Sabia desde crian�a que ia ser
soldado; a pilotagem viera depois. Descobriu que era capaz de assimilar com rapidez
os mecanismos de v�o e tinha um prazer natural em comandar uma maquina bem
ajustada. Gostava de voar, gostava dos testes. Gostava de levar a m�quina um pouco
al�m de seus limites. Sua habilidade e seus ouvidos agu�ados permitiam-lhe detectar
o menor sinal de defeito na m�quina.
Logo percebera por que tinha sido feito prisioneiro dos russos e determinara-se a
n�o revelar coisa alguma do que sabia. Seu primeiro e �nico pensamento fora a fuga,
ficara alerta para qualquer oportunidade. Medira com os olhos o arame, a dist�ncia
at� a floresta, o tempo necess�rio. Notara o cano fino e lembrara-se de ter usado
um igual quando menino. N�o tinha a flexibilidade das varas atuais, por�m n�o
diferia muito daquelas utilizadas nas primeiras competi��es.
Soubera de imediato como e o que fazer. A ajuda do ingl�s fora algo a mais com o
que n�o contara, e que fizera enorme diferen�a. Fugir era uma coisa, permanecer
vivo era outra bem diferente. Se morresse ou fosse morto antes de voltar aos
Estados Unidos, teria conquistado uma meia-vit�ria.
Se fugisse da R�ssia e sobrevivesse, sua vit�ria seria completa, incontest�vel.
Sobrara ainda um pouco de carneiro, mas precisava ca�ar alguma outra coisa. Agora
tinha um arco e flechas.
Quando a manh� chegou, levantou-se e subiu a montanha. Naquele momento os fantasmas
de Nuvem Vermelha e Cavalo Doido seguiam-lhe lado a lado, Talvez tamb�m fantasmas
de �ndios mais velhos ainda, aqueles primeiros a trilhar o caminho rumo � Am�rica,
saindo da �sia atr�s de ca�a e chegando ao que tolamente chamamos Novo Mundo.
Era novo para os primeiros europeus, por�m um mundo velho, muito velho para aqueles
que j� l� viviam, provindos de caminhos antigos, profundamente vincados na floresta
e na profundeza da tundra.
Joe Mack, "um oficial e um cavalheiro", ressuscitava ali o selvagem que seus
ancestrais tinham sido, incluindo-se aquele nobre escoc�s cujos antepassados
ensang�entaram as espadas no corpo dos inimigos do cl�.
Com o cair da tarde, desceu para um pequeno riacho onde abateu uma rena que ali
bebia �gua. No frio do entardecer, tirou a pele do animal, escolheu os peda�os de
carne e cozinhou-os sobre o fogo. Cortou em tiras outros peda�os, secou-os numa
pequena fogueira, como fizera sua fam�lia em outros tempos. Noite alta e fria
raspou o couro que fora estirado em estacas e cortou alguns tend�es da rena para
fazer uma corda melhor para o arco.
Junto ao fogo protegido por pedras e troncos, para que n�o escapasse nenhum brilho,
cantou baixinho as can��es do seu povo, �ndio e branco, �s vezes silenciando, para
ouvir.
O vento aumentava seu gemido frio, a�oitando os pinheiros na floresta, agitando as
folhas de choupo ca�das no ch�o. As estrelas brilhavam e, ao norte, distinguiam-se
vagos sinais da aurora boreal. Fantasmas antigos povoavam a noite, como ele ali,
espreitando as pequenas chamas dan�antes. Elas mal o aqueciam, mas refletiam a
poesia de sua gente.
Alguma coisa mexeu-se na escurid�o, n�o era o vento, mas algo imenso e de mau
agouro. Toe Mack falou bem alto.
- Urso Velho, volte de onde veio. Eu quero sua carne, seu couro e sua gordura, mas
n�o esta noite. Urso Velho, v� embora e diga a seus filhotes que nesta noite voc�
viu um guerreiro Sioux e que ele deixou voc� vivo porque j� tinha matado uma rena.
A manh� raiou escura e fria. Ati�ou as brasas, friccionou os m�sculos para ativar a
circula��o. O mesmo vento que gemera durante a longa noite continuava. Os riachos
corriam para o sul, apressando suas �guas em dire��o a terras mais quentes.
- Esquente-se, meu corpo - disse Toe Mack -, ainda vai sofrer muito mais frio do
que isso.
Dobrou o couro da rena, juntou o arco e as flechas.
As pedras do caminho tinham gasto e furado seus sapatos. Disse a si mesmo: "Esta
noite farei mocassins".

CAP�TULO 8

A tardinha, desdobrou o couro de rena e desenhou nela o contorno de cada p�.


Deixando um espaco de sobra para as laterais, cortou o molde cuidadosamente. Depois
ergueu as duas partes e costurou com tiras de couro, no calcanhar e no ded�o.
Experimentou um p� e ent�o fez os buracos para os cord�es de couro cru.
Aquele couro facilmente renderia uns nove pares de mocassins, mas fez apenas
quatro, pois, mesmo sabendo que logo se gastariam, necessitava do resto do couro
para os cord�es.
Precisaria de cal�ados melhores para quando o frio aumentasse; contudo, pensaria
nisso depois. Mocassins como aqueles, feitos em pele mal preparada, n�o durariam
muito. Mas por enquanto tinham de servir. Tivera pouco tempo, e era urgente
continuar a viagem, por isso n�o tratara a pele devidamente., Mocassins feitos em
couro bem curtido durariam muito mais.
De manh� o ar era l�mpido e frio. Do lugar em que se sentou podia com um s� olhar
varrer o territ�rio. Era uma terra coberta por floresta, montanhas nuas e longas
extens�es pantanosas. Por causa delas n�o poderia seguir em linha reta; teria de
caminhar com todo o cuidado.
Joe Mack abandonara a lan�a, ficando com o arco e a aljava de flechas, a funda e um
saquinho com pedras de tamanho adequado, A faca que roubara era de muito boa
qualidade.
Deliberadamente escolhera o percurso sobre as montanhas. Mantendo-se na orla da
floresta, raras vezes achou vest�gios de seres humanos; por�m, conforme prosseguia,
foi-se dando conta de que, se pretendesse sobreviver �quele inverno, teria de tomar
uma dire��o mais para o sul, assim como para leste. Ao sul estava a regi�o de Amur,
onde haveria mais ca�a, mas o risco de ser descoberto seria maior.
J� era meio-dia quando retomou a caminhada; mas antes enterrou as solas gastas e os
saltos de suas botas, para que ningu�m os encontrasse.
Para oeste espraiava-se o Olekma, um rio largo. Yakov dissera-lhe que poderia ser
perigoso atravess�-lo, mas tinha de faz�-lo.
De acordo com o mapa desenhado por Yakov no barro, o rio correndo de sul para norte
ali naquele ponto, estaria exatamente a sua frente. Em algum lugar mais ao sul, o
Olekma fazia uma grande curva, passando a correr rumo oeste e aumentando de
largura.
Yakov o intrigava. Para onde ia armado daquele jeito? Ser� que na Sib�ria havia uma
resist�ncia armada, anti-sovi�tica? Duvidava. Ou ser� que era algum ladr�o, membro
de uma quadrilha? Na Uni�o Sovi�tica havia roubos e assaltos tamb�m, alguns deles
at� espetaculares; por�m, a n�o ser por uma ou outra not�cia publicada pela
imprensa local e reproduzida na Am�rica e Europa, ou por alguma informa��o vazada
durante os julgamentos, ele n�o sabia absolutamente nada sobre o assunto.
Manteve-se sempre escondido pelas �rvores. A terra estava coberta de pequenas
agulhas ca�das dos pinheiros, formando um piso macio sobre o solo. De um ponto alto
entre as �rvores vislumbrou o Olekma correndo e dali estudou o que conseguia
avistar do rio.
Naquele momento escutou o ru�do de um motor e logo divisou uma lancha a vapor.
Subia o rio e levava pelo menos uma d�zia de soldados.
Ser� que estavam atr�s dele? Mas como iam saber que se encontrava naquele local?
Ser� que n�o tinha apagado direito todos os sinais de sua passagem? Ou ser� que era
uma busca ampla, cobrindo todo um vasto territ�rio?
Observou o barco dirigir-se para a margem, os soldados desembarcarem, e
imediatamente come�arem a armar acampamento.

O sol estava quente e Joe Mack sentou-se para espreitar a montagem do acampamento.
Doze soldados - contara-os mais uma vez - e um oficial, talvez designado
especialmente para aquela miss�o. As armas luziam. Mesmo que n�o fosse ele o objeto
da busca, tudo indicava que aqueles soldados procuravam algu�m ou alguma coisa.
O barco a vapor ancorado junto � margem n�o tinha mais de doze metros de
comprimento. Da dist�ncia em que se encontrava n�o podia perceber os detalhes, mas
parecia um barco velho, provavelmente em uso h� muito tempo naquele rio. Urgia
prosseguir, mas queria antes ter alguma id�ia quanto � dire��o que tomariam.
Contudo, assim que desapareceram sob a copa das �rvores, tornou-se imposs�vel
acompanhar-lhes os movimentos.
Erguendo-se, sempre sob as �rvores, rumou para o norte, seguindo a lombada da
montanha. L� embaixo, n�o muito longe do acampamento, dois riachos desembocavam no
Olekrna, um de cada lado. Fazia um vento frio, e Joe ficou contente de afastar-se
dele ao mergulhar mais fundo na floresta. Esgueiravase entre as �rvores, cuidando
para n�o quebrar nenhum galho que denotasse sua passagem. Os mocassins leves quase
n�o deixavam marcas sobre as agulhas dos pinheiros.
Ignorava o que o aguardava al�m do Olekma, lentamente por�m voltavam-lhe � mente
coisas h� muito tempo esquecidas, coisas que lera, os cursos de orienta��o no
Ex�rcito...
Como cruzar o Olekma?
Encontrou uma trilha de animal e seguiu-a ao longo dos flancos da montanha, parando
uma vez ou outra para escutar � sua volta. Nada ouvia.
Depois de ter caminhado mais ou menos tr�s quil�metros, parou para descansar e
ouvir. Enquanto esperava, mastigou um pouco de carne de carneiro montanh�s.
Se aquele grupo de soldados estivesse atr�s dele, certamente haveria outros. De
alguma forma, denunciara sua presen�a ou fora visto.
O rio estaria vigiado. N�o ia ser t�o f�cil atravessar o Olekrna quanto o Kalar.
Tentariam peg�-lo vivo? Pouco importava. Preferia morrer a ser novamente
prisioneiro. Mas e se fosse capaz de atravessar o rio � noite? As noites estavam
ficando mais longas. Se pudesse descobrir um jeito...
Desceu por um declive entre os pinheiros, numa rota diagonal, ainda pelo flanco da
montanha. � sua frente corria um pequeno riacho. Antes de aproximar-se, parou mais
uma vez para ouvir. Ent�o desceu at� a �gua e foi acompanhando a corrente em
dire��o ao rio, sempre com os ouvidos atentos.
Era um �nico homem, solit�rio numa terra hostil, e sem ter ninguem por amigo.
Estava pronto para matar tanto quanto para morrer.
Mas, acima de tudo, tinha de manter-se alerta. Embora o territ�rio � sua frente
fosse praticamente despovoado, sempre havia a possibilidade de aparecer algum
ca�ador ou algu�m fazendo explora��o de min�rios. Se n�o se enganara, os russos
estavam construindo ent�o uma nova estrada de ferro naquela regi�o. A linha
Transiberiana seguia ao longo do Amur, proxima demais da China para inspirar
seguran�a.
Sentou-se numa pedra sob uns abetos, resguardada atr�s por um arbusto denso.
Daquela pedra achatada, olhando para baixo, podia ver o rio Olekma e observar o
tr�fego por ele. Daquela altura, a correnteza parecia lenta. Durante meia hora
esquadrinhou-a com o olhar, e tamb�m o que lhe era poss�vel ver das margens e da
regi�o em torno. Al�m do rio havia uma faixa estreita de �rvores mais baixas e
vegeta��o rasteira cerrada, mais adiante montanhas com as encostas desertas.
Percebeu um sombreado na garganta profunda que se abria em frente e pensou ver um
caminho pelo cume da montanha que talvez o encobrisse com perfei��o. Aparentemente
havia um pequeno rio entre as montanhas, na dire��o oposta, e que corria para
noroeste. Se pudesse acompanhar-lhe o curso at� a nascente, na orla da floresta,
manter-se-ia escondido at� o momento de atravessar a encosta do rio.
Voltou para dentro da floresta e deitou-se para descansar. L� no alto, os galhos
das sempre-verdes entrela�avam-se numa trama verde-escura.
Seus m�sculos foram aos poucos se relaxando e ele come�ou a descansar melhor.
Aquela noite atravessaria o Olekma. Depois teria de lan�ar-se at� as �rvores baixas
para chegar ao pequeno rio e dali dobrar para sudeste, seguindo o rio at� a orla.
E pensar que h� apenas algumas semanas dirigia seu carro da base da For�a A�rea de
Edwards para Beverly Hills, onde ia almo�ar com amigos antes de viajar para o
Alasca!... Agora era um foragido, escondendo-se para salvar a pr�pria vida na
imensid�o da Sib�ria.
Tinha um metro e noventa de altura e, quando partira para o Alasca, pesava oitenta
e cinco quilos. Um sorriso obl�quo. Devia estar com uns oitenta quilos no m�ximo e
provavelmente teria ainda muito menos quando tudo aquilo terminasse.
As noites iam ficando cada vez mais longas e frias. Precisaria de agasalho e, mais
ainda, de um lugar onde pudesse abrigar-se e esperar o inverno passar.
Mas onde? Como?
Adormeceu. Mas logo um leve movimento no mato o despertou. Sentou-se, buscando as
armas.
O movimento cessou. Alguma coisa por�m continuava ali, como que o observando. Ficou
em p�, pegou o arco, ajeitou uma flecha, esperando. Nada aconteceu.
A noite chegava. Ignorando o que pudesse estar escondido ali no mato, foi-se
embora, seguindo o riacho que corria para o Olekma. Um animal, pensou, talvez um
lobo atr�s de presa. Mas n�o atr�s dele, Subitamente o rio estendia-se � sua
frente, as �guas escuras refletindo a luz bem fraca. Havia muitos salgueiros ao
longo da margem e algumas �rvores maiores, quase indistingu�veis naquela semi-
escurid�o. Olhou em dire��o � margem oposta. Era um bom nadador, n�o chegava por�m
a ser �timo. Nunca ficara um tempo maior dentro da �gua. Na sua terra, entre as
montanhas, os riachos eram estreitos, quase nunca profundos, e corriam velozes.
Inutilmente buscou algum tronco boiando rio abaixo. Havia alguns peda�os de
madeira, mas eram quase todos muito leves para o que queria, a n�o ser alguns
troncos imensos, encalhados na lama, as ra�zes estendidas para fora como imensas
aranhas negras.
At� que achou o que procurava. Desta vez era uma prancha grossa, com dois metros e
meio de comprimento, que descera o rio de alguma serraria ou constru��o. Empurrou-a
at� a �gua, fazendo-a deslizar por cima de um tronco. Quando a ponta da prancha
caiu do tronco, num sonido, esparramou �gua. Imediatamente um cachorro latiu perto
dali.
Uma moradia pr�xima? N�o vira nenhum sinal. De repente, a menos de cinq�enta
metros, uma porta se abriu e um ret�ngulo de luz feriu a escurid�o. Unia voz
en�rgica mandou o cachorro ficar quieto.
Por um minuto manteve-se em sil�ncio, depois voltou a se dirigir ao animal, agora
num tom mais suave, e entrou. Joe Mack esperou que o cachorro se afastasse, fosse
deitar na soleira da porta. Com cautela tirou o casaco e a camiseta, enrolou neles
o arco, as flechas, a funda, e deslizou para dentro da �gua, procurando n�o fazer o
menor ru�do.
A �gua estava um gelo, a noite quieta. Apesar do cuidado, a prancha fez barulho e
ent�o o cachorro veio correndo, at� a margem, latindo furiosamente. Joe empurrou a
prancha para dentro da �gua. Ouviu-se a porta bater e o homem gritar, bravo.
Resolveu ir at� a beira do rio com uma lanterna na m�o.
Estava mais para baixo, na dire��o da correnteza, do que Joe Mack e, quando o facho
de luz iluminou a superf�cie do rio, foi a uns quinze metros de dist�ncia. Com uma
das m�os agarrada �quela prancha pesada, Joe Mack nadava atrav�s da correnteza,
tentando atravessar o rio. Mas era �nexoravelmente puxado para baixo, em dire��o
�quela luz espi�.
Com o cora��o acelerado, virou a prancha a favor da corrente, para nadar com mais
for�a e cruzar o rio numa diagonal. O foco de luz passou por cima dele, hesitou e
voltou, como se o homem tivesse encontrado algo suspeito. Joe afundou, pondo entre
ele e a luz a prancha, com o embrulho de roupa em cima. O facho de luz o atingiu,
mas muito t�nue. Aos poucos, a favor das �guas, Mack ia conseguindo atravessar num
ritmo mais r�pido do que se nadasse perpendicularmente � correnteza. A luz da
lanterna bateu no embrulho, mas, pela dist�ncia em que se encontrava, visto da
margem, aquilo pareceria alguma sujeira levada rio abaixo.
A luz recuou e Joe ouviu o homem chamar o cachorro, a lanterna balan�ando enquanto
voltava para a casa. Pareceu-lhe que um bom tempo se passara at� atingir a margem
oposta e, quando finalmente se arrastou para a terra por uma ribanceira enlameada,
j� segurando seu embrulho, viu que estava pelo menos a uns mil e quinhentos metros
mais abaixo do que pretendia.
Tremendo de frio, tentou se enxugar um pouco com um punhado de mato que arrancara
do ch�o. Vestiu de novo a roupa e, embora n�o estivesse completamente seca,
transmitiulhe uma sensa��o de calor quase imediata.
Voltou para a ribanceira e empurrou a prancha de volta para dentro da correnteza.
N�o tinha tempo para apagar as pegadas que deixara na lama.
Caminhando ligeiro, atravessou os salgueiros e chegou a um pequeno bosque de
b�tulas. Em ziguezague pelos troncos brancos e finos, subiu o morro, afastando-se
do rio. Entrou numa floresta em que se misturavam b�tulas, sorveiras-bravas,
cereja-mi�da e uma esp�cie de choupo. Quando estava a uns mil e quinhentos metros
longe do rio, diminuiu o passo. Logo teria de parar, descansar e preparar alguma
comida. Melhor ainda, faria uma coisa quente para beber.
Apesar de cansado, seguiu em frente, mantendo-se na orla da floresta e voltando,
rumo norte, at� alcan�ar o riacho que antes vislumbrara correndo da encosta. O
leito era sulcado na rocha, podendo nele se esconder para escalar a pedra nua.
S� se viam alguns poucos arbustos mas muito musgo. A subida morro acima agora se
tornava �ngreme e o dia j� raiava. Ou se esconderia no leito do riacho, ou
atravessaria o cume da montanha � luz do dia, com a esperan�a de que n�o fosse
visto.
Se ficasse no leito do riacho, seria imposs�vel v�-lo, a n�o ser que algu�m
sobrevoasse o cume da montanha ou ent�o aparecesse algum ca�ador ou explorador de
minerais. Tampouco sabia o que o esperava do outro lado da montanha.
Encontrando uma pequena colina recoberta de musgos e ao abrigo do vento, deitou-se
no ch�o para que o calor do sol o aquecesse um pouco. Muito tempo atr�s, aprendera
a relaxar, de modo a descansar o corpo completamente. Foi o que fez ent�o.
O c�u era de um azul profundo, o vento frio, mas suave. Dormiu ali, a c�u aberto,
por alguns minutos e depois acordou sentindo-se recuperado.
Colocou a corda de volta no arco, p�s a aljava no ombro e lentamente come�ou sua
caminhada pelo leito do riacho, at� a nascente, perto do cume da montanha. Subiu
devagar, indo por entre peda�os de granito que o escondiam um pouco.
Estava atr�s de uma enorme pedra, quando ouviu de repente o ronco de alguma m�quina
pesada, depois um grito e novamente o ronco. O cora��o acelerado, agachou-se mais,
esperando, ouvindo. O barulho se repetiu.
No vale l� embaixo, algum tipo de trabalho pesado estava sendo feito. Ouviu o ronco
que parecia o de um trator. Esgueirando-se um pouco para a frente, posicionou-se
num ponto de onde poderia espionar o vale sem ser visto.
Outro rio! Soltou um palavr�o. Mas entre o lugar que estava escondido e o rio,
havia gente trabalhando. Num raio de uns mil e quinhentos metros, que era o que sua
vis�o abarcava, havia pelo menos tr�s unidades de equipamento pesado em atividade.
Um guindaste, um trator e outra m�quina irreconhec�vel. De cinq�enta a sessenta
homens e mulheres, com p�s, preparavam o leito de uma estrada de ferro.
Soltou outro palavr�o, olhando para as montanhas embaixo. De algum jeito, teria de
atravess�-las. Teria que atravessar o leito da estrada de ferro em constru��o,
cruzar o rio e chegar at� as montanhas do outro lado.
De algum jeito, mas qual?
Pegou no embrulho mais um peda�o de carne, agora dura e seca. Enquanto comia,
estudava o que fazer.
De noite! � claro que iam parar o trabalho de noite! J� tinha ouvido falar dessa
estrada de ferro; sabia que ela estaria em algum lugar adiante. S� n�o sabia
exatamente qual.
De repente alguma coisa se moveu! Virou-se imediatamente, ficando meio em p�. Viu-
se diante do cano de uma pistola. O homem que a empunhava encontrava-se a uns nove
metros dele, os p�s separados, encarando-o. Tinha um rosto estreito, ar de
intelectual, cabelos ruivos, olhos de um azul-acinzentado, Joe Mack olhou para o
rev�lver, calculou a dist�ncia. Seus m�sculos enrijeceram-se. Inclinou-se um pouco
para a frente.

CAP�TULO 9

O coronel Zamatev fazia a barba. Ao ver-se ao espelho, n�o conseguia ser muito
condescendente consigo mesmo. Ainda havia for�a nos m�sculos rijos dos ombros e do
t�rax, mas tamb�m um ar de fraqueza, e disso ele n�o gostava. Terminou a barba e
limpou o aparelho. Pelo espelho podia ver a mulher sentada na cama, observando-o.
Kyra era a melhor de todas, refletiu. Essa tinha cabe�a. Daria uma boa esposa. O
problema � que, nos seus planos, n�o havia lugar para ela. Casar-se-ia com a mulher
certa, filha ou irm� de algum homem importante. Por isso evitara propositadamente
envolvimentos que pudessem sugerir perman�ncia.
Arkady Zamatev sabia onde queria ir e como chegar l�, N�o cometera erro algum at�
ent�o. Tudo tinha dado certo, menos o desgra�ado daquele americano. Sua fuga podia
arruinar-lhe tudo.
- Voc� � um homem bonito, Arkady.
Ele olhou para ela e fez uma pequena rever�ncia:
- Agrade�o-lhe.
Al�m da beleza, havia nela algo de diferente, de especial. Ou seria seu instinto
sexual falando? Olhou-se ao espelho obliquamente e disse para si: "N�o seja bobo".
- Eu acho - ela acendia um cigarro - que voc� vai longe, t�o longe quanto quiser. -
Fez uma pausa. - Se voc� pegar o americano.
- Voc� sabe dele? - por um momento sentiu-se irritado.
- Todo mundo sabe. Quando o Ex�rcito entra em prontid�o, todo mundo fica sabendo.
Eu acho que voc� vai peg�-lo. Como � que ele ia conseguir escapar?
Zamatev n�o gostava de falar sobre esse assunto. Kyra era discreta, j� tinha se
assegurado disso. Mesmo assim...
- Ele j� pode ter morrido. Como e que iria sobreviver? Sem comida? E est� fazendo
frio.
Arkady disse uma coisa que, embora estivesse h� muito em sua cabe�a, n�o a dissera
a ningu�m.
- Esse � diferente, mas n�s o pegaremos.
- Shepilov tamb�m est� atr�s dele.
- O que voc� sabe de Shepilov? - O olhar de Zamatev era frio. - Eu n�o sabia que
voc�s se conheciam.
- Eu trabalhei no seu escrit�rio.
- Disso eu sabia, mas...
Ela sorriu de maneira provocadora:
- N�o, se � isso que voc� est� imaginando, n�o. Mesmo porque Shepilov n�o d�
confian�a para as mo�as. Ele morre de medo da mulher. Ela � um terror. Pelo menos
foi o que eu ouvi dizer.
Zamatev sabia tudo a respeito de Masha, a esposa de Shepilov. As pessoas evitavam-
na, e o marido, pelo menos uma vez, deixara de ser promovido por sua causa.
Associe-se a um homem e voc� estar� automaticamente associando-se tamb�m a sua
mulher. Esse erro Zamatev n�o pretendia cometer. Disse isso mais de uma vez para si
mesmo.
- Shepilov - ela bateu a cinza do cigarro - est� atr�s dele. Quer que todos saibam
quem perdeu o prisioneiro e que foi preciso o esfor�o dele, Shepilov, para a
recaptura.
- Eu you peg�-lo.
- Claro que vai. Eu espero que sim. Voc� � um homem bom, Arkady, bom para a R�ssia,
mas tem inimigos. Voc� atrapalha o caminho de muita gente. Shepilov, por exemplo.
Antes n�o havia nada que pudessem dizer; agora corre um burburinho entre eles.
Amanh� ou depois, se Shepilov peg�-lo...
- Eu sei - admitiu Zamatev.
Guardou o aparelho de barbear e apanhou a camisa. Ela sa�ra da cama, ele virou o
rosto. De algum modo, ficava sempre envergonhado de ver uma mulher vestir-se. Era
uma coisa est�pida nele, principalmente depois de tudo o que acabara de se passar
entre os dois. Mas era algo incontrol�vel.
- Como � que ele �, esse americano?

Zamatev parou de abotoar a camisa. Olhou-se ao espelho, mas lembrou-se do


americano.
- Alto - respondeu. - Forte. Arrogante - fez uma pausa, fechou mais um bot�o. - Ele
n�o estava com medo. Os outros, todos os outros, estavam com medo, mas ele n�o.
- Ouvi dizer que ele � �ndio.
- �.
- Mas s�o uns selvagens! Primitivos! - Encolheu os ombros.
- J� foram, n�o s�o mais. Agora parece que dirigem companhias de petr�leo. Suvarov
me disse que um deles foi vice-presidente dos Estados Unidos.
- Mas ele � um �ndio? Shepilov est� errado ent�o. Est� procurando nas cidades, ao
longo do Amur.
- Onde voc� acha que n�s dev�amos procurar?
- Na taiga, se ele � �ndio...
- Alekhin tamb�m pensa assim.
- Alekhin tamb�m est� atr�s dele? - fez um gesto de avers�o. - Ele me d� medo.
Existe alguma coisa aterrorizante nele.
Zamatev sabia o que ela queria dizer, por�m encolheu os ombros:
- Ele � Yakut.
- Eu conhe�o muitos Yakut. Minhas duas melhores amigas s�o Yakut. E elas tamb�m
sentem medo dele.
Zamatev terminou de se vestir e apanhou o casaco. Alekhin sempre encontrava um
foragido. O �nico problema � que quando eles chegavam l� o homem j� estava morto.
Era freq�ente isso, freq�ente mesmo. Todo mundo podia matar algu�m quando
necess�rio, mas Alekhin parecia que gostava disso. Bem, precisava falar com ele.
Queria o americano vivo. Morto n�o lhe serviria para coisa alguma.
O mais estranho naquilo tudo era que n�o fora visto por ningu�m, nenhuma
informa��o, Alekhin achava que tinha uma pista, tinha certeza que sabia onde o
americano estava, mas nem assim o descobrira.
Pessoalmente Arkady Zamatev n�o nutria a menor vontade de ir para a taiga. Seria
dar aos seus inimigos uma oportunidade boa demais. Enquanto permanecesse ali,
continuaria temido. Era exatamente o que queria.
Ela abotoava a blusa:
- Arkady? Voc� quer que eu ajude?
- Voc�? Como poderia ajudar? - Olhou para ela, surpreso.
- Posso ajudar - sorriu para ele. - Trabalhei tr�s anos naquele escrit�rio.
- E voc� acha que aprendeu o suficiente - ironizou gentilmente.
- Aprendi que a maior parte deles perde tempo. S�o quase todos uns caxias, meio
burros. N�o t�m nenhuma intui��o, nenhuma id�ia. Se ele est� foragido h� tanto
tempo, � preciso fazer alguma coisa nova.
Zamatev concordava inteiramente. Todavia, como poderia ela ajudar?
- Talvez um novo ponto de vista - sugeriu -, deixe-me trabalhar com voc�.
Ele balan�ou a cabe�a em negativa:
- N�o. Isto aqui - indicou o quarto e a cama - � uma coisa; trabalho � outra.
- Eu n�o quero favor nenhum - retrucou ela friamente. Espero apenas ser tratada
como os outros. - Seus olhares encontraram-se. - Eu tamb�m sou ambiciosa. Por voc�
tanto quanto por mim. Pode chegar um dia em que voc� tenha de ir embora e eu ent�o
posso continuar por aqui. Al�m disso, conhe�o bem o camarada Shepilov.
Zamatev ainda negava, por�m com menos decis�o.
- Pense um pouco - completou ela, entrando no banheiro.
Durante um minuto, ele n�o sabia o que decidir. Aquilo era contra tudo o que
acreditava; mas ter um aliado naquele escrit�rio era tentador. Ou ser� que o
pr�prio Shepilov a enviara? Afinal, ela trabalhara em seu escrit�rio, Na rua fazia
frio. Parou um momento olhando a avenida, os carros estacionados. Era um velho
h�bito dos tempos de adido militar em Londres e Paris, onde j� se podia prever que
seria seguido. Parecia meramente estar abotoando o pesado sobretudo, levantando a
gola para proteger-se melhor do frio, mas seus olhos estavam muito ocupados, Outra
vez estava ali aquele carrinho pequeno. Fez um sinal para seu motorista ir embora e
come�ou a andar pela avenida, vigorosamente.
Ao virar a primeira esquina, parou abruptamente, puxando as luvas.
Em seguida, o carro pequeno ultrapassou-o. Deu uma risadinha, atravessou a rua e
entrou no escrit�rio.

Na mesa de trabalho, aguardava-o o mesmo de sempre: pap�is para ler e assinar,


outros para ler e descartar. Foi lendo a pilha metodicamente at� chegar aos
relat�rios referentes � busca do major Makatozi. Formavam quatro pilhas, bem
alinhadas. Nada... Nada... Em Albazino, perto da fronteira do Amur, os guardas
atiraram e mataram um Buriat tentando escapar para a China... Um rastreador Yakut
seguira uns sinais por alguma dist�ncia, apenas para v�-los desaparecer de repente.
As botas do americano deixavam primeiro uma marca bem distinta, quando achavam sua
trilha. Depois desapareciam, como se o homem tivesse sido apanhado e levado embora
por aquilo que os americanos chamam de disco voador.
Zamatev soltou um palavr�o. Talvez precisasse mesmo de Kyra. � claro que precisava
de algu�m inteligente. Todos os foragidos poss�veis j� deveriam ter sido
capturados. Nas outras vezes fora sempre uma quest�o de horas apenas, �s vezes de
dias.
Mas, afinal, o que Kyra poderia fazer que j� n�o estivesse sendo feito? O que ele
poderia fazer? Cuidadosamente, ponto por ponto, reviu tudo o que fora tentado at�
ent�o.
Primeiro a busca r�pida, imediata, que sempre apanhava oito entre dez fugitivos,
Depois a mais ampla, completa, as ordens de alerta para as tropas do Amur, grupos
organizados nos mais diversos locais, pessoas atentas em toda parte. Ningu�m vira
coisa alguma.
Alekhin dizia ter uma pista, no m�ximo insignificante. O poss�vel roubo de uma
faca, sem provas; o poss�vel roubo de mantimentos enlatados, tamb�m sem provas. Os
restos de um carneiro que, segundo Alekhin, fora morto por um ca�ador, antes de os
animais selvagens terem descoberto a carca�a. Isso era no m�nimo question�vel.
A verdade era que tudo estava nebuloso. N�o viram nada, n�o sabiam de nada. O homem
podia at� estar morto. Podia ter se afogado ao atravessar um rio, ter sido morto
pelos animais selvagens ou estar morrendo de inani��o.
Naquela terra vasta e nua poucos seriam capazes de sobreviver. O homem n�o tinha
armas, nem como obter alimento. N�o conhecia o pa�s. N�o encontraria aliados entre
o povo. Qualquer russo real o denunciaria. Interrompeu seu pensamento: Isso n�o era
a R�ssia. Era a Sib�ria. Havia pessoas ali que n�o gostavam do governo,
independente de quanto pudessem amar a M�ezinha R�ssia.
Zamatev descartou essa id�ia. A possibilidade de o americano encontrar esse tipo de
gente era muito limitada.
N�o, se o homem ainda estivesse vivo l� fora, sentiria o frio, a fome e o medo de
ser capturado.
Zamatev levantou-se e foi at� a janela. O carro pequeno estava ali embaixo, na rua.
Deu uma risadinha. Como Shepilov era �bvio! Contudo, franziu as sobrancelhas:
Saberiam a respeito dele e Kyra? Se soubessem, e se ela ainda n�o estivesse
trabalhando para eles, descobririam um jeito de faz�-la colaborar. Ou pelo menos
tentariam convenc�-la.
Zamatev pegou na gaveta da escrivaninha uma folha em branco e nela escreveu o nome
Makatozi. Acrescentou em seguida "Alternativas": Norte, sul, leste, oeste.
Norte era imposs�vel: Frio, um mar congelado, nenhuma possibilidade de escapar.
Oeste, toda a R�ssia pela frente: Altamente duvidoso. Sul, em dire��o ao Amur e �
China: Prov�vel. Leste, rumo ao estreito de Bering ou ao mar de Okhotsk: Poss�vel,
mas improv�vel.
Melhor �rea para concentrar buscas: Regi�o do Amur. As tropas ali j� estavam de
prontid�o, o Partido conduzia uma busca discreta mas total e todos os oficiais
tinham sido avisados. O homem precisaria de comida, n�o ficaria muito tempo em
plena natureza. Mas, como sugerira Alekhin, e se o homem conseguisse ca�ar? E se
ele tivesse mesmo matado o carneiro cuja carca�a fora encontrada?
Tudo bem, levaria esse dado em considera��o. E se por hip�tese, como pensava
Zamatev, ele ainda estivesse vivo? Qualquer um com um m�nimo de racioc�nio sabia
ser imposs�vel sobreviver ao inverno naquele lugar. A maior parte da ca�a iria para
o sul, em busca de regi�es mais quentes e o que sobrasse seria dif�cil de achar,
pois quase n�o se moveria de um lugar para outro durante o frio. Nos rios
congelados a camada de gelo seria espessa demais para se fazer um buraco e pescar,
a menos que a pessoa ficasse num �nico lugar, removendo o gelo que se formasse no
mesmo buraco anterior.
Assim, o fugitivo iria para o sul, para a regi�o do Amur. Tentaria talvez as
montanhas Sikhote Alin, ao longo da costa do mar do Jap�o. O lugar era famoso pela
ca�a abundante.
A fronteira estava sob controle. O Ex�rcito era confi�vel. Faltava agora vasculhar
a regi�o ao norte e a leste do Olekma, do rio Amur at� a serra Stanovoy.
Foi at� a porta e abriu-a para o escrit�rio cont�guo.
- Yavorsky? Quero falar com a camarada Lebedev.

Ema Yavorsky levantou-se. Era uma mulher gorducha, n�o muito limpa, mas eficiente.
- A funcion�ria nova? Ela � bonita. - Seu olhar esfriou.
- Talvez. � tamb�m muito esperta. Eu tenho um trabalho para ela.
Yavorsky era muito bem relacionada. Costumava tamb�m dizer o que pensava. Sua
reprova��o era �bvia, o sorriso era quase insultante.
Zamatev completou friamente:
- Vou mand�-la para Aldan.
Yavorsky ficou perplexa, a imagina��o voou longe.
- Para Aldan?
- � uma mulher muito inteligente. Preciso de algu�m l� que possa supervisionar as
buscas.
Fez uma pequena pausa e encarou-a fixamente:
- Gostaria de ir em seu lugar, camarada? � assim que devo interpretar seus
coment�rios?
- Para Aldan? N�o, n�o, � claro. Eu estava s� pensando...
- � um lugar da maior import�ncia - acrescentou Zamatev. - Preciso ter algu�m l�
para estar seguro de que o clima frio n�o tornar� todo mundo pregui�oso. - Nenhum
homem mandaria para Aldan uma mulher na qual estivesse interessado. Percebeu que
tomara a atitude mais correta. - Mande-a entrar assim que chegar.
Voltou para sua sala e parou diante do mapa da Sib�ria. Aldan era talvez longe
demais, mas precisava sacudir um pouco aquele pessoal, p�-los atr�s do fugitivo.
Percorreu com o olhar os rios, verificando as cidades localizadas ao sul de Aldan.
Algu�m bateu na porta. Era Kyra Lebedev. Seu cabelo castanho, preso atr�s, dividia-
lhe a testa. Estava vestida correta e simplesmente. Medindo-a de alto a baixo,
sentiu que podia confiar nela. Fez uma breve explica��o. Esperava alguma
reclama��o, mas n�o veio nenhuma.
Indicando o mapa, exp�s seus planos:
- A �rea � imensa, n�o posso estar em todos os lugares. V� at� l�, verifique se
est�o fazendo uma busca s�ria. Pe�a relat�rios detalhados. Verifique se interrogam
todos os ca�adores e ge�logos, os engenheiros do projeto BAM, os trabalhadores.
Verifique qualquer coisa suspeita, mesmo que m�nima.
- Voc� quer que eu mesma v� atr�s dele.
- N�o, n�o, claro que n�o! Se ele est� l�, n�s temos de encontr�-lo! Temos de
traz�-lo de volta. Quando voc� pode partir?
Ela olhou pela janela.
- Agora j� � muito tarde. Posso ir amanh� de manh�.
- Leve Stegman junto, � um bom motorista e sabe lidar com o carro no frio. � tamb�m
um homem forte e nada bobo. - Houve um minuto de sil�ncio.
- Sentirei sua falta.
- Eu tamb�m. Mas fui eu quem pediu para ajudar.
- Era isso mesmo que eu queria.
- V� de avi�o. L� em Aldan voc� arranja um carro. - Levou-a at� o mapa e discutiu
diversas possibilidades. Suas perguntas foram poucas e inteligentes.
- E se eu encontr�-lo?
- Traga-o de volta acorrentado. � isso mesmo que eu quero dizer, acorrentado. Se
n�o houver jeito de traz�-lo vivo, mate-o. Confio na sua decis�o.
Fez outra pausa.
- Se for preciso, Stegman poder� faz�-lo. - Sua express�o era fria.
- Eu n�o preciso de Stegman para isso. Eu mesma posso mat�-lo.

CAP�TULO 10

A pistola estava firme, ainda que o olhar n�o fosse o de algu�m pronto para matar.
Era um olhar frio, examinador e interessado. O homem disse alguma coisa em russo;
parecia uma pergunta, e Joe Mack sup�s que queria saber quem era ou o que fazia
ali.
- Eu sou um homem que quer ficar sozinho. - Para sua surpresa, o homem respondeu,
em ingl�s.
- Quem � voc�? O que faz aqui?
- Estou escalando montanhas.
Joe Mack mentiu com naturalidade.
- Dando uma volta ao redor do mundo. Por causa de uma aposta, uma brincadeira. Devo
sair vencedor em junho. S� preciso chegar at� Los Angeles.
Joe Mack n�o tinha a menor id�ia se o homem estava acreditando ou n�o. O que
importava era ganhar tempo, achar uma sa�da, uma sa�da que o livrasse do rev�lver.
- Voc� tem autoriza��o para isso?
O homem parecia c�tico, a pistola continuava im�vel.
- N�o, n�o tenho. Eu n�o tenho nenhum trabalho aqui. N�o incomodo ningu�m; vivo da
pr�pria natureza.
- Se voc� planejar andar, tem de ir muito longe. Inverno vem. Melhor vir comigo. Eu
arranjo abrigo.
- N�o - disse Joe Mack.
- N�o? - fez um gesto com a pistola. - N�o quero atirar.
- Ent�o n�o atire.
Joe Mack estava em p�, bem apoiado, aguardando.
- Continue andando e me esque�a. Afinal de contas acrescentou -, se me levar l�
para baixo, ter� de responder muitas perguntas. E uma delas vai ser o que estava
fazendo aqui em cima a essa hora.
No mesmo instante o olhar daquele homem adquiriu um ar de preocupa��o.
- Eu vim verificar a rota da estrada de ferro - fez um gesto com a pistola. - Sou
engenheiro. Queria ficar distante para poder observ�-la melhor.
- E algu�m vai acreditar nisso? Ser� que n�o v�o achar que voc� veio at� aqui para
encontrar-se comigo?
- Encontrar-se? Do que est� falando? Como ia saber que estava aqui?
- Eu � que pergunto, como? Com tanto lugar, voc� veio logo aqui, onde eu estou. Eu
n�o vou dizer que o encontro tinha sido combinado mas tamb�m n�o vou neg�-lo.
Considerou aquela possibilidade e n�o gostou da id�ia. A KGB faria muitas perguntas
e nunca aceitava explica��es simples.
- Voc� fala bem, morou nos Estados Unidos?
- Canad�. Estudei no Canad�.
- Sente-se, relaxe. O Canad� � um �timo lugar, tenho muitos amigos l�.
N�o se sentou.
- Preciso voltar. Voc� vem comigo.
Joe Mack balan�ou a cabe�a, negativamente:
- N�o, se voc� for inteligente. Voc� pode me levar mas a KGB vai desconfiar. Far�o
perguntas. V�o querer saber como eu vim parar aqui. Podem achar que eu vim porque
tinha algum amigo, afinal, em toda a Sib�ria, por que eu viria exatamente para este
lugar? Eu vou dizer que n�o o conhecia antes, vou negar que tenha vindo aqui porque
voc� me ajudaria. - Joe Mack deu um pequeno sorriso. - E eles v�o acreditar em mim.
� melhor voc� ir andando, como se nada tivesse acontecido.
- Mas se eu levar voc�? Um prisioneiro? Eles v�o acreditar em mim.
- Eu posso sugerir que n�s dois fomos vistos juntos e que voc� ficou com medo. N�o
vou dizer exatamente isso, mas eles entender�o. Ser� que na R�ssia � bom saber
demais? Voc� � engenheiro e viu a estrada aqui de cima. V� embora como se nada
tivesse acontecido.
- E quando eles te pegarem? Porque no fim v�o te pegar mesmo.
- Pode ser. Se me pegarem, n�o direi nada, n�o ter�o motivo nenhum para fazer
perguntas sobre este nosso encontro. Nem v�o desconfiar.
A pistola abaixou-se lentamente. Joe Mack permaneceu im�vel. Um tiro naquele
momento, acidental ou n�o, estragaria tudo.
- V� embora, n�o se apresse, deixe que os outros vejam voc� aqui, observando a
estrada de ferro. Eu desaparecerei sem deixar vest�gios.
- Mas eu serei um traidor.
- Como assim? O que que eu, um homem s�, poderia fazer contra o seu pa�s? A �nica
coisa que eu quero � voltar para casa, para minha fam�lia - acrescentou.
O engenheiro olhou para ele. Guardou o rev�lver e foi-se embora. Apesar do frio e
do vento, o suor brotava da testa de Toe Mack. Num instante estava de novo
afastando-se rapidamente para baixo, em dire��o � floresta de lari�os. Achou uma
trilha feita por animal e come�ou a correr. Correu suavemente, mantendo o ritmo,
durante v�rios minutos, diminuindo depois at� come�ar a andar. Quando de novo as
sombras se alongaram, seguiu em dire��o das obras da estrada de ferro.
De longe podia ver as luzes e os barrac�es. Tudo quieto. Atravessou a linha em
constru��o sem problemas e chegou � margem do rio. Mais abaixo havia uma ponte,
obviamente para transporte de material de constru��o e equipamento. Duvidava que
estivesse vigiada. Ningu�m pensaria nisso ali, em plena Sib�ria. Mesmo assim toda
cautela era pouco.
O vento batia frio. Tremendo, procurou um lugar que o abrigasse do vento direto.
Achou um barrac�o de material de constru��o e agachou-se atr�s, observando a ponte.
Contra o c�u, ela delineava-se com nitidez. N�o viu movimento, nenhum sinal de
vida. Ficou ali, esperando, continuando a observar a ponte.
E o barrac�o que o protegia? Nenhuma luz, nenhum barulho. Sem d�vida era um
dep�sito de materiais, mas e se fosse o escrit�rio do engenheiro? Ouviu e olhou
bem. A uns cem metros dali estava o que parecia ser a cantina e um pouco al�m uma
constru��o quadrada e comprida que j� lhe chamara a aten��o. Via-se luz nos dois
locais e no edif�cio quadrado ouvia-se m�sica.
Esgueirou-se no canto do barrac�o e experimentou a porta. Abriu-a com facilidade.
Esperou um pouco e entrou. Na estufa via-se um t�nue brilho avermelhado. Ficou ali
� espreita, os olhos se acostumando � luz fraca.
Sobre uma mesa viu mapas, plantas, um esquadro, compassos e canetas. Na extremidade
da mesa, dependurada num prego, uma esp�cie de mochila cheia de bolsos. Estava
repleta de mapas e pap�is. Abriu a porta da estufa, para obter mais ilumina��o, e
folheou os mapas e papeis, Um era o mapa do Transbaikal, que abrangia a regi�o em
que se encontrava. Colocou-o dentro da camisa, voltou para a porta, esperou um
momento e deslizou para fora. Tivera o cuidado de fechar a porta da estufa assim
como tamb�m a porta do barrac�o e imobilizou-se ali, observando, prestando aten��o
em algum ru�do. Nada.
O vento frio gemia atrav�s das frestas do barrac�o. Do que supunha ser a cantina,
veio o som de uma gargalhada. Andou at� a ponte. Se algu�m olhasse pelas janelas
acharia que era simplesmente um homem cuidando de alguma coisa.
N�o havia guardas na ponte, pelo menos daquele lado. In�ciou a travessia, o arco
armado, pronto para us�-lo quando necess�rio.
Duas cristas de montanha desciam paralelas at� o rio. Havia no meio delas um
riacho, ao longo do qual Toe subiu, atrav�s de uma pequena trilha, em dire��o
nordeste.
Sob a luz p�lida do c�u, andou ritmadamente, sem parar para descanso. Quando o dia
come�ou a surgir, entrou numa floresta mais densa de b�tulas e lari�os, encontrando
uma pequena cova no ch�o, protegida do vento. Deitou-se para descansar. Antes de
adormecer, tirou o mapa da camisa e exam�nou-o atentamente.
Concluiu estar em algum ponto da vertente ocidental da chamada serra Stanovoy.
Seria imposs�vel sair agora da Sib�ria, como j� antes calculara. Teria de descobrir
um lugar onde pudesse se esconder durante o longo inverno. E, como suspeitara, as
chances de encontr�-lo estavam mais ao sul. O mapa deixava toda a situa��o mais
clara.
Por todos os lados havia inimigos. Naqueles dois breves contatos, tivera uma sorte
fora do comum. Dificilmente se repetiria.

O mapa que roubara era geral demais para ser de alguma utilidade a um engenheiro,
portanto havia uma boa possibilidade de n�o lhe notarem a falta. E, se o dono do
mapa fosse o homem que encontrara na montanha, sabia que n�o falaria nada. Mesmo
assim Joe Mack sentia a necessidade de afastar-se ao m�ximo.
No abrigo, sombreado e protegido, enrolou-se e adormeceu. Acordou algumas horas
depois, tremendo de frio. Levantou-se e procurou aquecer-se girando os bra�os para
aumentar a circula��o. Sua pequena reserva de carneiro terminara, agora precisava
de novo ca�ar. Precisava de comida e roupas mais quentes, S� quando saiu da cova,
percebeu o que lhe sucedera. Sua caminhada em dire��o nordeste, levara-o, at� um
beco sem sa�da, um local cercado por altas montanhas. S� escaparia escalando
aqueles picos gelados, escorregadios. Erguiam-se abruptamente a uns oitocentos
metros de onde se encontrava. N�o seria nada f�cil.
Subitamente vislumbrou algo entre as �rvores, n�o muito longe dali. Era o canto de
um telhado - algum tipo de constru��o! Olhou, virou-se e tornou a olhar. Continuava
l�, mas sem nenhum sinal de fuma�a. Por entre as �rvores, chegou at� mais perto.
Era uma estrutura de bom tamanho, quase quadrada, feita de troncos. Caminhando
ainda entre as �rvores, desceu pela trilha que ia at� l�. N�o viu sinais no ch�o
que indicassem a passagem de algu�m por ali recentemente. Com o inverno quase
chegando, era muito dif�cil que viesse algu�m por aqueles lados. Evitou a trilha,
escondendo-se sob as �rvores.
Passo a passo, lentamente contornou aquela estrutura. Havia quatro janelas e uma
porta que dava para os fundos, n�o se percebendo nela qualquer marca de uso
recente.
Esperou um pouco, examinando a casa. Atr�s havia uma tina para onde corria a �gua
de uma nascente. Podia ver e ouvir a �gua caindo de um cano. Enquanto observava,
das �rvores em frente saiu um veado, aproximando-se da tina. Com uma flechada
certeira, matou-o e tirou-lhe a pele em pouco tempo. Separou os melhores peda�os de
carne, sempre atento e perscrutador.
Fora a casa, o lugar lembrava-lhe um trecho da regi�o chamada Seven Devils, no
interior do estado de Idaho. Algumas vezes, acompanhado pelo velho Cougar Dave, seu
pai cruzara as montanhas para ir l� ca�ar.
Voltou � porta dos fundos, experimentou o trinco, estava trancada. Deu a volta e
tentou a porta da frente, que se abriu com facilidade. Parou na soleira, examinando
o interior detalhadamente.
De um lado, uma fileira de bancos nos quais caberiam umas doze pessoas sentadas.
Uma estufa e uma lareira bem mais antiga. Alguns utens�lios espalhados, roupas
velhas penduradas em pregos pela parede. Tudo muito empoeirado, nenhum sinal de que
o lugar fora usado nos �ltimos anos.
As roupas estavam rasgadas e velhas, a maioria imunda. Imaginou que alguns
condenados tivessem sido mandados para trabalhar ali, talvez em alguma mina, pois
descobrira algumas ferramentas e uma lanterna de mineiro. N�o havia mais nada que
pudesse aproveitar. Saiu da casa e fechou a porta atr�s de si. Cercado de
montanhas, como estava, resolveu arriscar e acender fogueiras para defumar a carne
e sec�-la. Ficou tr�s dias ali, limpando a pele do veado e descansando. No quarto
dia enterrou o que sobrara da carca�a, escondeu as varas em que espetara a carne
para secar, varreu todos os sinais que deixara no ch�o, espalhando depois folhas e
terra por cima. S� a� voltou para o riacho.
Subindo ao longo, chegou � nascente onde se viu diante de uma pequena faixa de
terra que fazia liga��o entre duas montanhas. Dormiu ali e na manh� seguinte
prosseguiu atravessando aquele trecho.
Era uma manh� fria, nas margens do riacho formara-se gelo. Esfor�ando-se em frente,
n�o viu ca�a alguma. Andara v�rios quil�metros quando percebeu um som fraco de
zumbido. Ficou im�vel. Era o ru�do distante e inconfund�vel de um helic�ptero!
Agitado, olhou em volta. Ao longo do riacho, misturados aos lari�os, cresciam
alguns abetos baixos. Correu e mergulhou sob um deles, encolhendo-se junto ao
tronco. Os galhos batiam no ch�o, fazendo um esconderijo perfeito.
Ser� que fora visto? Ele n�o vira o helic�ptero, nem tinha esperado para poder v�-
lo. Ser� que eles o viram?
Estava agora exatamente em cima, voando em c�rculo. Tomou altura, voando mais alto,
fez uma meia-volta sobre a bacia e afastou-se, seguindo o riacho. Atrav�s dos
galhos percebeu-o baixar, parecia ter aterrizado perto da estrutura de madeira.
Talvez eles venham correnteza acima, procurando? Eram uns dez quil�metros de
caminhada �ngreme, mas podiam vir de helic�ptero e descer perto de onde estava.
Tinha de sumir dali. Uma vez fora dos abetos, estaria sem cobertura caso voassem de
novo por ali.
Ir ou n�o ir? Esperou, ouvindo, pensando.
Espreitando pelos galhos do abeto, estudou bem o terreno a sua frente. A uns
duzentos metros acumulavam-se placas de granito, pelo visto peda�os que tinham sido
partidos pelo gelo ca�do de cima da montanha. Se chegasse at� ali, estaria coberto,
al�m de sua roupa confundir-se bem com a paisagem. Saiu do abeto, correu um pouco,
depois foi devagar para olhar e ouvir em volta. N�o viu nem ouviu nada.
Estariam ainda na casa de madeira? Teriam descoberto algum sinal de sua presen�a,
alguma pista que deixara escapar? Prosseguiu num passo r�pido, em ziquezague entre
os peda�os de pedra, at� chegar �s placas de granito, escondendo-se ali. Som
nenhum, nada.
Estava para sair daquele abigo e dar mais uma corrida quando tornou a ouvir o
helic�ptero aproximar-se. Vinha baixo, exatamente entre a garganta que decidira
atravessar. As lascas de granito espalhavam-se sobre o solo, oferecendo-lhe abrigos
prec�rios. Arrastou-se para debaixo de uma delas e aguardou.
O helic�ptero veio t�o baixo que dava para sentir o vento das p�s da h�lice, mas
continuou atravessando a garganta e virou para o norte, para desviar-se do pico,
alguns quil�metros mais a leste.
Levantou-se e prosseguiu, atrav�s do desfiladeiro. Havia pouca cobertura ali, mas
sabia que tinha de assumir o risco. Percebeu rastos de animais, muitos de lobo.
Levava consigo a carne que, apesar de defumada e salgada, poderia atrair os lobos.
Acampou aquela noite sob uma mancha de b�tulas raqu�ticas e adormeceu, tremendo de
frio, sem fogueira nem cobertas quentes. A manh� chegou como um al�vio. Ele ent�o
continuou a caminhada, o corpo duro de tanto frio. Demorou muito at� sentir-se um
pouco aquecido, o medo rondava-o como um monstro do qual n�o conseguia livrar-se.
Atravessou a faixa de terra entre as duas montanhas e ao meio-dia estava de novo em
dire��o sul, deixando para tr�s o pico mais alto. Seus p�s estavam adormecidos,
movia-se com dificuldade. N�o via nenhum abrigo que o protegesse do vento, que o
escondesse. Cambaleava, com frio e cansado, pois dormira mal.
Precisava desesperadamente encontrar algum animal que lhe fornecesse um casaco mais
quente ou alguma coisa para se enrolar, quando dormisse.
Dia ap�s dia, foi vencendo a dist�ncia rumo ao sul. Vira alguns avi�es e dois
helic�pteros. Estariam procurando-o ou teriam alguma coisa a ver com a constru��o
da estrada de ferro? Pouco importava: �quela altura, a Sib�ria toda j� devia ter
sido informada da fuga do prisioneiro.
O frio n�o passava mais. Precisava de alimenta��o melhor e tamb�m de gordura
animal, sempre a coisa mais dif�cil de se obter da natureza. L� gastara outro par
de mocassins e seus p�s incharam-se da caminhada sobre o terreno pedregoso. Com
mais e mais freq��ncia tinha de parar para descansar. Vez ou outra ca�ou mam�feros
pequenos e pescou. O tempo deixara de correr. A �nica coisa que tinha na cabe�a era
seguir em frente.
Foi quando ele viu o urso.

CAP�TULO 11

Era um enorme urso marrom, uma bola de gordura. Joe Mack agachou-se ao lado de um
tronco ca�do e estudou a situa��o. Precisava do urso, precisava muito, mas como o
mataria s� com um arco e flecha? A possibilidade existia, sabia de gente que
conseguira. Mas ele nunca tentara.
Achou em volta uma �rvore de galhos baixos. Talvez precisasse subir correndo nela
para ficar a salvo, j� que era muito pouco prov�vel um urso daquele tamanho escalar
�rvores. Raramente os ursos maiores sobem em �rvores, sabem instintivamente do peso
que t�m.
Olhou de novo para a �rvore, decidiu que galhos usaria, tornou a olhar para o urso.
Quase n�o havia vento. Joe Mack pegou da aliava uma flecha, preparou-a e esperou um
instante. Depois pegou mais duas. Ergueu o arco. A dist�ncia era boa.
O urso de frente, o lado esquerdo claramente vis�vel. Estirou a corda e soltou a
flecha.
Atingiu o alvo, pegando o urso no lado, na coxa esquerda.
O urso deu um urro de dor, j� quase em p�. Virou-se para tr�s, tentando pegar ou
morder a flecha. Joe Mack ergueu-se e, devido � ansiedade, errou a segunda flecha.
Esta mal conseguiu arranh�-lo, mas foi o suficiente para fazer o urso virar-se e
perceber Joe. Ent�o avan�ou, ainda urrando. Quando pulou sobre um tronco ca�do, Joe
acertou-lhe na garganta a terceira flecha. Mesmo assim o animal ainda avan�ava.
Deu um giro e estirou todo o corpo, pulando para a �rvore. Bateu de frente no
caule, as longas garras rasgando a cal�a de Joe e puxando-lhe o mocassim.
Joe Mack subiu mais alto. O urso dava patadas furiosas na �rvore, quebrando os
galhos mais baixos. Quando come�ava a subir, Joe acertou-lhe outra flecha atrav�s
da bocarra vermelha, no fundo da garganta.
Mesmo sufocado e encharcado de sangue, o urso continuou com as patadas, sacudindo a
�rvore e ainda tentando subir. Joe, desequilibrado, errara outra flechada e ent�o,
em desespero, conseguiu chegar num galho mais alto, a �rvore balan�ando com
viol�ncia, a ponto de derrub�-lo.
Aquele esfor�o todo mais a perda de sangue foram minando a resist�ncia do urso.
Seguidamente ele ca�a e se levantava na luta ag�nica contra a morte. At� que, os
olhos parados, quedou-se enfim estirado no ch�o.
Joe Mack esperou um minuto. Depois desceu com todo o cuidado. Cutucou o urso com a
ponta do arco. Nenhuma rea��o.
Recuperou a flecha perdida e uma outra que atingira o urso de lado, j� que era
dif�cil consegui-las. Olhou em torno, atento.
A �rea estava exposta ao vento e tinha um aspecto �spero. N�o longe dali, um
pequeno riacho corria entre as pedras, um pouco de gelo junto �s margens, Os
pinheiros, castigados pelas tempestades, conservavam poucas folhas. Alguns cresciam
entre as pedras.
Debaixo de algumas b�tulas que se espalhavam, recolheu gravetos para fazer uma
pequena fogueira oculta pelas �rvores em volta. E come�ou a trabalhar a carca�a do
urso.
A tarefa era demorada e cansativa, e suas for�as estavam longe do ideal. Tirou fora
a pele do urso e come�ou a recolher a gordura, separando os melhores peda�os de
carne. Assou um pouco deles sobre o fogo e ia comendo enquanto trabalhava. Daria
tudo por uma boa x�cara de caf�.
O sol frio desaparecia por detr�s do cimo gelado de uma montanha. O vento
insinuava-se desfiladeiro abaixo, agitando as folhas do ch�o e os galhos secos das
�rvores. Joe Mack varou a noite no trabalho, esquentando as m�os na fogueira,
construindo um suporte onde secar e defumar a carne. Limpou um lugar bem plano no
ch�o, esticou a pele do urso, prendendo-a com estacas nas pontas, e come�ou a
rasp�-la para eliminar qualquer vest�gio de gordura ou de carne.

No meio da noite ouviu o uivo de um lobo. Outro respondeu de algum ponto mais
distante. Farejaram o sangue fresco do urso e chegariam at� ali. Deixou o arco e as
flechas ao alcance das m�os. As centelhas da fogueira subiam pelo ar entre os
pinheiros e os galhos nus e vigorosos das b�tulas. Aqueceu os dedos gelados. Tinha
a impress�o de que nunca mais na vida sentiria o corpo quente.
Ati�ou bem o fogo e, quando diminuiu, espalhou as cinzas e deitou-se no ch�o
aquecido. Dormiu um pouco e acordou com a aurora gelada. A �gua do riacho estava
t�o fria que fez doerem-lhe os dentes. Mesmo assim bebeu-a muito.
Os lobos n�o foram embora. Percebia, entre as �rvores, aquelas sombras cinzentas e
r�pidas, � espera do que sabiam que lhes pertenceria.
- Vou deixar um pouco para voc�s - disse Joe. Depois, em p� ao lado do esqueleto,
com a m�o sobre o cr�nio do urso, murmurou:
- Pe�o-lhe perd�o, urso. Eu o matei n�o por raiva. Precisava de sua carne.
Precisava da gordura entre suas costelas. - Comeu um pouco mais de carne e tamb�m
uns bons peda�os de gordura. Era disso que precisava para sobreviver.
Por fim come�ou a juntar a quantidade de carne que conseguiria carregar, embrulhou
a que tinha defumado e secado. Terminou de curtir a pele e por fim dobrou-a para
lev�-la. Ia pesar um pouco, mas em compensa��o ficaria quente, quente.
No terceiro dia foi-se embora, deixando a cabe�a do urso numa forquilha de �rvore e
a carca�a para os lobos. Retomou a caminhada sobre os cumes desertos daquelas
montanhas, que pareciam morder o c�u, distanciando-se dos pinheiros esqu�lidos,
descendo a correnteza em busca de terras mais quentes.
Dois dias depois, recuperada a vitalidade, encontrou um sinal de vida humana: Um
entalhe fino na �rvore com um outro menor por cima. Devia ent�o estar perto do povo
de que lhe falara Yakov. Sentou-se junto a um riacho para limpar as feridas
deixadas pela pata do urso. Estavam cicatrizando bem. Num canto de �gua parada viu
sua imagem refletida. O cabelo em desalinho, como que amarrotado, as roupas
imundas. O dia estava um pouco mais quente, o que lhe possibilitou lavar e secar a
camisa, limpar o cabelo, tirar do casaco de carneiro as folhas e gravetos que se
prenderam ao atravessar as florestas. Como acontecia com a maioria dos �ndios,
tinha poucos p�los no rosto. Assim, n�o precisava barbear-se. Os escassos sob o
queixo, poderia arranc�-los se come�assem a incomodar.
Lavou bem o rosto e as m�os, depois verificou sua bagagem. Devia ou n�o procurar o
povo de que lhe falara Yakov? Em quem confiaria? Em grupos assim sempre havia um
informante ou algu�m em busca de benef�cio ou privil�gio para si pr�prio. Mesmo
assim, precisava de um abrigo. E obviamente eles tinham recursos para sobreviver
durante o inverno. Com eles suas chances melhoravam muito.
Desde que fugira da pris�o, perdera a conta dos dias. N�o lhe restava muito tempo.
Tinha de encontrar um lugar onde passar o inverno. Naquela terra vast�ssima, com
quil�metros de floresta e tundra, com montanhas sombrias, gargantas rochosas, tinha
de conseguir um lugar.
Contudo, preocupava-se com os refugiados de que ouvira falar. Como conseguiam
existir fora da lei? Como se mantinham? Como se escondiam? Haveria alguma
coniv�ncia oficial? Ser� que ele, um homem t�o procurado, seria bem recebido?
No c�u cinzento, um sol p�lido, distante, enfraquecido pela dist�ncia. A floresta
era densa, so se viam as montanhas atrav�s de clar�es entre as �rvores. Viu alguns
veados e, uma vez, os rastos de um felino de grande porte.
Tigres? Mais ao sul havia muitos, na regi�o do rio Ussuri e das montanhas perto da
costa. Quanto j� teria avan�ado em dire��o sul? A vegeta��o mudara um pouco. Tornou
a ver os entalhes nos troncos, mais fracos por�m. Nenhum sinal de trilhas. Aquela
em que estava era usada muito raramente.
Na trilha, coberta pelas agulhas dos pinheiros, seus mocassins n�o faziam o menor
ru�do. Aqui e ali, evitava algumas folhas ca�das das �rvores. Farfalhavam quando se
pisava nelas, quebravam-se quando secas, Aquela n�o era a floresta de Idaho, Oregon
ou Washington mas era uma floresta. E isso o fazia sentir-se em casa. Tinha carne,
uma pele quente - que cortaria no tamanho que lhe ajustasse melhor - e iria
descobrir um lugar em que pudesse esperar pela primavera com suas aguas correntes e
brilhantes.
De repente, sentiu um leve cheiro de fuma�a, um odor quase impercept�vel.
Imobilizou-se no meio de um passo, dirigiu-se para debaixo das �rvores e esperou,
ouvindo, cheirando.
Voltou a senti-lo imediatamente e ent�o foi se afastando daquele lugar, agora bem
mais devagar. Descia por uma alameda de choupos. Quase todas as folhas tinham ca�do
ao ch�o, cobrindo o solo da floresta como um tapete de pequenas moedas de ouro.

Em algum lugar adiante havia uma fogueira, vinha dela o cheiro de madeira queimada
que sentira. Fogueira significava pessoas, vida, alguma coisa perigosa para ele.
Como um fantasma, ia avan�ando por entre as arvores, pisando folhas mortas,
evitando a trilha. As vezes hesitava, esperando que seus sentidos percebessem algum
cheiro, algum som. Nada ouviu.
De repente, l� estava um abrigo entre as �rvores, de formato bizarro, fuma�a saindo
de uma chamin� meio achatada, a porta aberta e uma voz de mulher que soava fria,
igual. Era o tom de algu�m enxotando outra pessoa. N�o precisava conhecer a l�ngua
para entender isso.
Um homem surgiu na soleira da porta, grande e entroncado, vestido de maneira quase
t�o r�stica quanto o pr�prio Joe. O homem respondia num tom amea�ador, ainda que
fosse se afastando. Foi quando uma mulher surgiu na porta, cabelos loiros sob um
gorro de pele. Tinha um rev�lver na m�o.
N�o estava com medo. Demonstrava uma raiva fria. Joe n�o entendia a fala, mas o tom
era autorit�rio. Fez um gesto com o rev�lver e o homem partiu, resmungando,
descendo por uma trilha. Uma �nica vez voltou-se para tr�s. Parou, cuspiu no ch�o e
prosseguiu.
Seriam essas as pessoas que procurava? Yakov. Falara sobre uma mulher que diria sim
ou n�o e essa parecia capaz de faz�-lo. Deu uma risadinha, divertido, e ela, que
voltava para dentro do abrigo, deve t�-lo ouvido, pois parou subitamente e olhou em
volta com aten��o.
De onde estava podia ver seu antagonista - se e que se podia cham�-lo assim - indo
embora, j� meio longe. Olhou para ele, tornou a olhar em volta. Perguntou alguma
coisa, como que querendo saber se havia algu�m ali.
De repente Joe sentiu um aroma diferente. Caf�! Levantou-se, mas os olhos dela
foram r�pidos. Viu-o imediatamente e falou alguma coisa, perguntando.
- Eu gostaria de uma x�cara de caf� - falou Joe pausadamente, n�o muito alto.
Surpreendentemente, ela respondeu em ingl�s:
- Ent�o venha tomar.
Quando saiu fora das �rvores, percebeu o rev�lver apontado para ele. Atravessou um
caminho estreito e, passando por troncos ca�dos, aproximou-se dela, na soleira do
abrigo. Era alta e media-o com os olhos.
- Quem � voc�?
- Meus amigos chamam-se Joe Mack.
Parecia surpresa, mas n�o amedrontada. Percebeu imediatamente quem era ele. Sabia
identificar um problema quando se via diante de um. Se viesse gente atr�s dele,
seriam descobertos, estariam arruinados. Tudo o que tinham constru�do estaria
perdido.
Primeiro o caf� prometido, depois livrar-se dele. Ela esperava que fosse f�cil.
Era alto, empertigado. Movia-se com facilidade e seus olhos varreram o local assim
que entrou. Parou junto � porta onde um tronco serrado pela metade servia de
cadeira. Desamarrou o pacote e colocou-o ao seu lado, no ch�o.
- Tenho carne - disse ele. Seu olhar era uma interroga��o. - Carne de urso. Se voc�
gosta...
- S� comi uma vez.
Aceitou um peda�o e virou-se para o fog�o, tirando algumas panelas. Quando a carne
j� estava no fogo, trouxe-lhe o caf�. Joe sorveu-o lentamente e sorriu. Seus dentes
eram muito brancos.
- �timo! Estava sentindo falta.
- Para onde voc� est� indo? - Olhou para ela.
- Sabe quem eu sou?
- N�o, s� sei que h� uma busca, uma busca importante. Querem ach�-lo de qualquer
jeito.
Deu mais um gole no caf�.
- Eu n�o tenho como sair desse pa�s antes da primavera. At� l�, preciso de um lugar
para ficar.
- Como veio at� aqui? - Ele encolheu os ombros.
- Um pouco por acaso. Encontrei um homem, disse que se chamava Yakov. Falou de
pessoas que viviam na floresta.
- Vivem? Escondem-se � a palavra correta. N�o vieram atr�s de n�s porque n�o est�o
interessados. N�s n�o significamos nada, mas �s vezes podemos ser valiosos.
- Valiosos? Como? - Seu olhar voltou-se rapidamente para ela.
- Wulff. Esse � o homem que manda aqui. Com os animais que pegamos com nossas
armadilhas consegue algum dinheiro. Todo ano ele fica com uma certa quantidade de
peles, as melhores, e finge que n�o v� nada.
- Voc�s s�o muitos?
- Agora vinte e nove.

Olhou para ele com um olhar frio, inquisidor.


- Alguns de n�s descendemos de antigos exilados, ainda do tempo do czar. Outros,
terminada a pena, n�o tinham para onde ir. Alguns simplesmente conheciam as pessoas
indesej�veis. Nenhum de n�s est� sendo procurado, por�m.
- Entendi. Assim que terminar de comer eu vou embora. N�o quero deixar voc�s numa
situa��o perigosa.
Tomou mais um gole de caf�. Percebeu-a observando-o de lado.
- Meu nome � Natalya - d�sse-lhe. - As pessoas por aqui me chamam s� de Talya.
- Bonito nome.
N�o lhe respondeu. Terminou o caf�, enquanto ela foi at� o fog�o virar a carne.
- E aquele homem que eu vi indo embora? Ele estava bravo com voc�.
Ela encolheu os ombros.
- � um idiota. Mas � tamb�m perigoso, Vai nos arruinar. Seu nome � Peshkov. Era
soldado, aprendeu o of�cio de a�ougueiro, - Fez uma pausa. - Ele diz chamar-se
Peshkov. Eu acho que � mentira. N�o confio nele.
Observou-a enquanto preparava a carne. Era esguia e graciosa, uma mulher bonita.
Nunca sabia perceber muito bem a idade de uma mulher. Devia ter uns vinte e poucos
anos. Tinha um ar decidido e firme.
- O que foi que Yakov disse para voc�?
- Nada, s� que voc�s viviam aqui, alguns poucos.
- Por que ele lhe contou isso?
- O inverno vem vindo. Ele sabia que eu ia precisar de um lugar onde passar o
inverno, mas n�o fique preocupada. N�o vou ficar aqui.
Olhou para seus embrulhos.
- O que � que tem a�?
- Carne, uns cento e trinta quilos, e uma pele de urso.
- Voce carregou esse peso todo?
- Isso n�o � nada. Carrego pacotes assim desde crian�a - sorriu um pouco. - Se voc�
fosse americana teria ouvido falar dos �ndios do Alasca que carregaram um piano
pela garganta do Chilkoot, durante a corrida pelo ouro, na Calif�rnia.
- Por aqui tamb�m temos uns carregadores. Os Yakut ag�entam pesos imensos. - Ela
lhe deu mais um peda�o de carne e serviu-lhe mais caf�.
- Ent�o voce e ca�ador? Sabe tamb�m preparar armadilhas?
- Tenho tamb�m aqui uma pele de raposa. N�o foi muito bem curtida, por falta de
tempo.
- Voc� estaria disposto a dividir o que ca�asse?
- Eu sou �ndio, �ndio sioux. � tradi��o do meu povo repartir tudo. Mas eu n�o quero
lhe dar problema. Vou embora, para longe daqui e, quando voltar a primavera, parto
para a Am�rica.
Ela ergueu uma sobrancelha, com um ar c�nico.
- � t�o f�cil assim?
Ele tornou a encolher os ombros.
- Eu n�o estou dizendo que � f�cil, estou dizendo apenas que vou voltar para a
Am�rica.
Mastigou em sil�ncio. A carne estava bem temperada. Parecia nunca na vida ter
comido algo mais saboroso. Sem falar no caf�.
Ela ficou em p�, de repente. - Quieto! Vem vindo algu�m.

CAP�TULO 12

Ouviam-se passos cada vez mais perto. Joe Mack continuou comendo, sem pressa,
saboreando cada peda�o. Pelo som, era uma pessoa s�, provavelmente um homem e Joe
Mack sabia muito bem o que ele poderia fazer. A porta abriu-se. Natalya deu um
passo para tr�s, dizendo em seguida:
- Est� tudo bem. Conhe�o esses passos. � meu pai.
Surgiu na soleira um homem magro que aparentava ser mais alto do que era de fato.
Tinha um rosto fino, ar intelectual, n�o usava barba. Ao ver Joe Mack, parou,
abruptamente.
Natalya dirigiu-se a ele, depois escutou-o. Com um ar solene, mas falando ingl�s, o
pai disse:
- Voc� � bem-vindo aqui. N�o � sempre que temos visitas - Joe Mack sorriu. Gostou �
primeira vista daquele homem.
- Imagino que n�o, mas a minha n�o demorar� muito. N�o quero criar problemas.
- Talya disse-me que voc� � ca�ador.
- Sei ca�ar e montar armadilhas.
- � uma boa vantagem. O �nico dinheiro que conseguimos vem das armadilhas. O que
havia de boa ca�a por aqui terminou. Precisamos de carne.
Joe Mack indicou seu embrulho.
- � sua, um urso gordo.
- �? Eu achava que seu povo n�o matasse ursos - enrubesceu ligeiramente. - Quer
dizer, o povo ind�gena.
- S� quando h� necessidade. E explicamos isso para o urso.
- Entendo. - Virou-se para a filha. - Precisamos explicar-lhe como funcionam as
coisas por aqui. - Voltou-se para Joe Mack. - Somos deixados em paz, mas, caso seja
feita uma busca, temos nossos esconderijos. At� agora Wulff ainda n�o descobriu que
somos tantos. Al�m disso, somos �teis para ele. Cada dois meses deixam um monte de
peles perto do seu alojamento. Ele s� aceita as peles de melhor qualidade.
Joe Mack dirigiu seu olhar at� Natalya.
- Se voc� quiser, posso dividir a carne com voc�s. - Olhou para o pai. - � aqui seu
pa�s?
O velho deu um sorriso.
- Por enquanto. Esperamos voltar um dia para o nosso pa�s. Somos da Litu�nia, um
pa�s absorvido pela R�ssia depois da Segunda Guerra Mundial. Voc� conhece nossa
hist�ria?
- Um pouco. Na cidade em que eu morava, quando ia a escola, havia alguns mineiros
lituanos. Eu ia muito � casa de um amigo meu da escola e o pai dele estava sempre
recitando poemas de Martin Lap.
- � claro. � um dos nossos maiores poetas. Engra�ado - balan�ou a cabe�a - ouvir
esse nome de um americano! Sabe - fez uma pausa -, eu era professor numa
universidade, mas a �nica coisa de que os russos se lembram � que eu fui viver na
floresta, como guerrilheiro.
- Voc� lutou contra os alem�es?
- Lutei, e os russos s� lembram disso, que eu resisti. Pessoas assim como eu
tornam-se suspeitas. T�m medo de que elas voltem a lutar, desta vez contra eles
pr�prios. Mas acho que j� estou velho demais para isso. Meu �nico desejo agora e
voltar para a minha terra, ter paz.
- Ser� que ela ainda estar� l�? Ser� que as coisas ser�o as mesmas?
O velho homem abanou a cabe�a.
- Acho que quase nada � igual. Ainda assim � minha terra, meu pa�s. Eu queria que
Talya a conhecesse.
Joe Mack fez um gesto indicando o aposento.
- Isto aqui � sua casa? Sua casa por enquanto?
- Ali n�o - sorriu -, isto � um velho est�bulo. Deram uma ajeitada nele para que
uns trabalhadores dormissem aqui.

Quando estamos em viagem, o usamos um pouco. Ningu�m mora aqui.


Experimentou a carne servida por Talya e comeu com prazer.
Est� muito boa olhou para Joe Mack. - Voc� matou um urso com isso? Indicou o arco.
- Por que n�o? Antes da chegada do homem branco, meu povo n�o conhecia outra arma.
Mat�vamos at� animais maiores com ele.
O vento soprava pelo vale estreito, gemendo pelas calhas do abrigo e agitando os
galhos dos pinheiros. Descreveram-lhe a vida ali, os riscos que corriam naquela
verdadeira pris�o que era a Sib�ria inteira, - Muitos daqueles que vieram para c�
degredados n�o quiseram regressar, mesmo quando podiam. Foram ficando, se casaram,
estabeleceram fam�lia aqui. Muitos de n�s preferimos ficar afundados na floresta.
Ningu�m nos incomoda. Como eu j� disse, algumas pessoas sabem que vivemos aqui, mas
n�o sabem exatamente onde, e n�s n�o incomodamos ningu�m. Longe dos olhos, longe da
lembran�a, como se costuma dizer - ficou em p�. - Vamos! J� est� na hora. Vamos
dividir nossas cargas.
L� fora fazia muito frio. Joe Mack, tremendo, observou o desfiladeiro gelado.
Seguiu atr�s de Natalya e de seu pai, cujo nome, como dissera antes, era Stephen
Baronas. Saindo da garganta estreita, subiram por uma pequena trilha, quase
apagada, serpenteando pelo meio das �rvores. Ali estavam mais resguardados do
vento, um pouco mais aquecidos.
A aldeia onde chegaram n�o passava de um amontoado de cabanas escondidas dentro da
floresta. Nenhum esfor�o fora feito no sentido de limpar a floresta e fazer uma
clareira na mata. S� havia as cabanas, algumas delas n�o passando de meros abrigos
cavados na terra, cobertos de troncos que quase n�o se viam al�m de alguns metros,
pois estavam tgmb�m camuflados com �rvores e arbustos.
- Esse tal de Wulff que voc� falou � alguma esp�cie de oficial do distrito? Mora
perto daqui?
- Ele fica a quil�metros daqui, em Aldan. Certa ocasi�o, pegaram um dos nossos
vendendo as peles. Agora, se deixamos as peles com ele, n�o fala nada. O dif�cil �
corresponder � sua expectativa.
A cabana onde finalmente pararam era um abrigo revestido de troncos. Era pequeno,
quente e quase invis�vel. Tinham se escondido muito bem.
- Mas voc�s vivem do qu�?
- Ca�amos, colhemos. Aqui e ali, espalhadas pelo bosque, cultivamos pequenas
planta��es de milho. E tamb�m legumes, verduras e cevada. � bastante dif�cil, mas
damos um jeito. Para dizer a verdade - acrescentou -, vivemos melhor do que muita
gente nos vilarejos.
- Divida a carne com os outros - sugeriu Joe Mack. Ca�arei de novo amanh� de manh�.
- � muita bondade de sua parte. Passar� a noite conosco?
- Esta noite. Depois preciso achar um lugar para mim. N�o quero me intrometer na
vida de ningu�m.
Apesar do sil�ncio daquela noite, dormiu muito mal. Acostumara-se ao relento e ao
barulho das �rvores, dos animais se mexendo. Ali era quieto demais, confort�vel
demais.
Haveria outra sa�da para fora? Melhor n�o perguntar. Todavia ficou inquieto de n�o
saber a resposta. Ser pego num lugar assim... Era uma perfeita armadilha. Ou
poderia ser.
Chegou � conclus�o de que gostava de Stephen Baronas. Era um homem quieto,
agrad�vel, demonstrava for�a de car�ter. Quanto a Talya, era de uma beleza serena.
Ambos estavam � vontade no meio da floresta. Estavam aprendendo a viver com ela,
pensou, aprendendo a mover-se com o vento, a aceitar a natureza em vez de lutar
contra ela. E essa era a chave da sobreviv�ncia.
Finalmente adormeceu e, quando amanhecia o dia, acordou com a movimenta��o de
Talya. Sentou-se num movimento r�pido.
- Estava cansado - disse ele -, n�o tinha percebido o quanto estava cansado.
O caf� ficou pronto, saboroso. Deu um gole e procurou n�o ficar olhando para Talya
enquanto ela andava pelo abrigo. Seu pai acompanhou-os no caf�.
Eu vou descobrir um lugar - disse Joe Mack - mas antes quero deixar v�rias
armadilhas montadas. De tipos diversos - acrescentou, diante dos olhares
interrogativos. - Foi com armadilhas assim que eu paguei meus estudos. Nas
montanhas dos Estados Unidos h� muitos animais selvagens.
At� que era bom n�o ter de pensar em fugir, e, pelo menos por enquanto, n�o se
preocupar em ser descoberto. Baronas, � medida que ia praticando, falava bem
ingl�s. Disse que conhecia tamb�m polon�s, franc�s e alem�o, al�m de russo.
- O lituano � mais pr�ximo do s�nscrito do que qualquer outra l�ngua, somos um povo
indo-europeu. A maioria protestante, luterana ou calvinista.
- Ajudaria muito se eu falasse russo - sugeriu Joe Mack.
- Eu ensino, se houver tempo - respondeu-lhe Baronas. Joe Mack encontrou o abrigo
que estava procurando numa parte densa da floresta, formada de b�tulas e choupos.
Aqui e ali conjuntos de lari�os e pinheiros. Como ocorre nas florestas de lari�os,
peda�os de troncos e galhos ca�dos, misturados � vegeta��o rasteira, formavam um
espesso emaranhado. A medida que se aprofundava floresta adentro, planejando
construir um abrigo com os troncos ca�dos, descobriu uma fenda na pedra de um
penhasco que ficava um pouco al�m dos lari�os. Sua largura mal dava para algu�m
passar, por�m h� muito tempo aprendera a n�o julgar pelas apar�ncias. Esgueirou-se
para dentro da fenda um meio metro quando parou de repente, im�vel. � sua frente
havia um buraco negro, sinistro, que parecia continuar para dentro da montanha.
Atirou uma pedra, ouviu-a rebater nos lados do buraco e finalmente, bem embaixo,
cair na �gua. Estava para sair daquele lugar quando notou � esquerda uma sali�ncia
na pedra. Com cerca de um metro e pouco, dava para outra muito mais larga.
Acendeu uma tocha e esgueirou-se de novo pela fenda. Viu uma �rea extensa de pedra
lisa sob uma proeminencia um pouco mais alta do que a cabe�a de uma pessoa. Era uma
caverna que desembocava no buraco em que ouvira a �gua, parcialmente abrigada pela
parede de pedra de um lado e por um denso conjunto de lari�os de outro. Era um
�timo esconderijo e um excelente abrigo. Valia a pena explor�-lo melhor.
Passou toda a tarde montando armadilhas junto a alguns c�rregos, perto dos quais
divisara pequenas pegadas de animais. Fazia muito frio, a �gua estava gelada.
Deixou as armadilhas montadas em v�rios riachos que corriam em dire��o ao rio,
tendo o cuidado de verificar se n�o havia sinais de outras pessoas na �rea fazendo
o mesmo.
Por mais hospitaleiros que pudessem ser Baronas e a filha, Joe Mack sabia que entre
alguns membros da comunidade haveria resist�ncia a sua estada, mesmo por um pequeno
per�odo de tempo. Portanto, precisava demonstrar ao grupo que sua presen�a entre
eles podia ser valiosa, de forma que tivessem de aceit�-lo, mesmo que com alguma
relut�ncia. Em qualquer lugar naquela �rea ele conseguiria passar o inverno, com ou
sem as outras pessoas, mas, para conseguir escapar de uma vez, tinha de saber um
pouco de russo e arranjar alguns rublos.
Voltando aquela noite ao abrigo de Baronas, apanhou sua pele de urso e os outros
pertences.
Baronas disse-lhe:
- N�o precisa ir embora, gostamos de sua companhia. N�o � sempre que temos visitas
e eu n�o converso com um americano a uns quarenta anos. Desde a guerra.
- Amanh� � noite - prometeu. - Esta noite tenho trabalho para fazer.
V�rias pessoas sa�ram � porta de suas casas para v�-lo passar. Fez um simples aceno
com a cabe�a e foi cuidar da vida. Sabia que, quando ausente, sua situa��o seria
discutida. N�o queria interferir.
De volta � sua caverna, ajuntou lenha e armazenou-a. Trabalhou duro, limpando um
pouco os troncos e galhos ca�dos na trilha que usaria. Enquanto isso, descobriu
outra entrada para a caverna, bem escondida por detr�s do tronco de uma �rvore
velha, imensa. Fez uma cama no ch�o com ramos de pinheiro e ajeitou um lugar para
acender a fogueira de onde a fuma�a seria disfar�ada pela folhagem.
A caverna era uma simples sali�ncia na pedra, com o buraco profundo em frente,
tapada pelo penhasco onde estava a fenda por onde entrara a primeira vez. O resto
do lugar ficava escondido por uma densa folhagem de lari�os sobre o buraco.
Estava abrigado por cima e protegido do vento. Num canto da caverna poderia
aquecer-se com uma fogueira. Com o tempo poderia deix�-la ainda mais protegida do
frio. Mais cedo ou mais tarde, seus vizinhos saberiam onde estava morando. Mas
ainda n�o pretendia mostrar-lhes, a n�o ser para Steplien Baronas e Talya.
Talvez pudesse ficar escondido ali todo o inverno e na primavera; quando tivessem
desistido de captur�-lo, poderia escapar. No terceiro dia, ca�ou.
A vegeta��o ali era uma mistura daquela do Transbaikal e da regi�o do extremo
leste, que lhe parecia semelhante tamb�m � da Manch�ria. Ao subir por uma montanha
mais baixa, viu e encurralou um goral, esp�cie de ant�lope pequeno, de p�lo
encrespado. Mais tarde, voltando para a floresta, matou tr�s galos silvestres de
bom tamanho. Em cada caso, utilizara a funda, pegando um de cada vez, j� que o
primeiro a ser abatido n�o se assustara.
Retornou � comunidade sob as �rvores, pendurou a carne do goral e guardou a pele.
Quanto aos galos, comeu-os junto com os Baronas.
Quando foi ver as armadilhas, onze, das trinta que armara, tinham pegado alguma
coisa. Dois arminhos, cinco esquilos e quatro raposas-azuis. Nada mal. Preparou de
novo as armadilhas e retornou ao seu esconderijo onde limpou as peles e guardou um
pouco de carne para servir de isca. Aquela noite come�aram as aulas de russo,
primeiro as coisas mais simples, cumprimentos e respostas e algumas palavras:
Quente e frio, perto e longe, alto e baixo e os termos para floresta, p�ntano, rio,
lagoa, casa e cidade.
- Amanh� - comentou Baronas - vou at� Aldan. Ficarei fora alguns dias. Estamos
levando para Wulff um monte de peles e tem outra pessoa l� que compra e n�o faz
perguntas...
- Posso contribuir com algumas peles para Wulff e outras para vender.
- �timo! Eu estava mesmo contando com isso. Traga-as aqui bem cedinho e veremos o
que � poss�vel fazer.
Na manh� seguinte, antes de o sol nascer, levou as peles para Baronas. Entregando-
as, disse-lhe:
- Volte logo. Tenho muito o que aprender.
Outros dois acompanhavam Baronas, um homem baixo e gordo chamado Botev e seu
companheiro, Borowsky. Quando tinham desaparecido na dist�ncia, Talya o convidou:
- Tenho caf� pronto. Quer entrar?
Quando ele estava sentado, a x�cara nas m�os, ela come�ou:
- Voc� se saiu muito bem com as armadilhas.
- Eu n�o fazia outra coisa quando era menino. Meu povo � assim.
- N�o sei nada do seu povo.
- Somos uma na��o de guerreiros - afirmou com simplicidade. - Conquistamos mais
territ�rio do que Carlos Magno. Talvez, se n�o fosse o homem branco, tiv�ssemos
conquistado tudo. - Fez uma pausa. - Havia tamb�m, claro, os Blackfeet, guerreiros
tamb�m.
- Voc�s foram derrotados pelo homem branco?
- Pela nossa ignor�ncia e nossos costumes. O �ndio considerava a batalha como se
fosse uma guerra. N�o raciocinava em termos de campanhas. Por isso ficou em
desvantagem. Havia tamb�m a quest�o dos suprimentos. N�s n�o t�nhamos um plano
extenso. O homem branco pensava em termos de uma s�rie de batalhas at� que o
inimigo fosse derrotado. N�o lutava pela gl�ria mas pela vit�ria. O �ndio n�o podia
se adaptar a essa mentalidade.
Joe continuou:
- Tampouco estava acostumado a lutar durante o inverno. Quando o homem branco
atacou seus acampamentos de inverno, pegou-os desprevenidos, tiveram de fugir em
plena neve.
Ficaram em sil�ncio por alguns instantes. Talya perguntou:
- E quando vier a primavera, o que vai fazer?
- Voltar ao meu pa�s.
- Deve ser lindo seu pa�s. Ouvimos falar muito dele, gostaria de conhec�-lo, mas
tenho medo dos g�ngsteres.
Ele deu uma risada.
- Eu morei l� muitos anos e nunca vi um g�ngster. H� ladr�es, traficantes de droga,
a esc�ria que vive sempre na periferia daquilo que desejamos ser uma civiliza��o.
S�o coisas que existem e com as quais e preciso lidar da melhor maneira possivel,
como voc� aqui na Uni�o Sovi�tica tamb�m.
Fez uma pausa.
- Meu pa�s � lindo, a maior parte dele. Temos nossos pontos fracos, como todo pa�s,
mas � meu lugar, minha terra natal.
- Quem sabe um dia eu possa ir at� l�. Gostaria muito.
Ele olhou para ela.
- Voc� poderia ir. Se conseguisse sair da R�ssia, seria bem-vinda l�. Talvez algum
dia os russos tamb�m possam viajar para onde quiserem. Tudo muda. Os russos seriam
bemvindos como visitantes. Antigamente, muitos russos se estabeleceram nos Estados
Unidos, tornaram-se bons fazendeiros, bons cidad�os.
Ele se levantou.
- Tenho muito o que fazer. Posso vir de novo tomar caf�?
Quando chegou � porta, parou.
- Eu acho que � melhor ningu�m ficar sabendo exatamente onde eu moro, a n�o ser
voc� e seu pai, se voc�s quiserem.
- Talvez.
Foram interrompidos por uma voz rouca.
- Ent�o quer dizer que voc� est� com visita... Era aquele homem, Peshkov.
- � - respondeu-lhe Joe Mack. Peshkov fez um ar carrancudo.
- N�o o conhe�o.
De repente, Joe Mack sentiu-se bem.
- Mas vai ficar conhecendo! N�o se preocupe.

CAP�TULO 13

Peshkov resmungou alguma coisa para Talya, enquanto media Joe. Era um homem muito
forte, atarracado, de sobrancelhas grossas e olhos protuberantes. Tinha um jeito
pr�prio de abaixar a cabe�a e olhar por debaixo das grossas sobrancelhas.
Joe Mack entendeu o sentido das palavras e logo atinou por que a l�ngua lhe soava
familiar. Ser� que aquelas crian�as, os filhos dos mineiros lituanos, n�o falavam
russo? Se fosse isso, podia perfeitamente lembrar uma palavra ou outra.
Peshkov continuou falando com Talya, agora r�pida e asperamente. Joe nada entendeu
daquela troca de palavras, mas percebeu que surgira algum problema. Continuou onde
estava, n�o dando nenhuma indica��o de que sairia.
Por fim, obviamente nervoso, Peshkov foi-se embora pisando firme. Resmungando.
- Problemas? - perguntou Joe Mack.
- N�o passa de um animal, insuport�vel - respondeu ela -, mas precisamos dele. � um
de nossos melhores ca�adores.
- Ele n�o gosta de mim.
- Ele n�o gosta de ningu�m. Ele gostaria de ser o l�der por aqui, mas � a meu pai
que as pessoas sempre procuram. - Ela encolheu os ombros. - Peshkov quer mandar.
Al�m disso, ele me quer para ele.
- Eu estava achando isso mesmo - Joe Mack virou-se para ir embora. - Se surgir
algum problema, pode deixar que eu resolvo.
Na semana seguinte n�o tornou a ver nem Peshkov, nem Talya. Ca�ou um uapiti que deu
mais de cento e trinta quilos de carne. Pegou tamb�m bastante coisa nas armadilhas.
Na sua caverna j� tinha feito dois pacotes de peles, um para Wulff e o outro para
ser vendido. Pelo que percebeu, havia um mercado negro de peles.
Com o tempo de que dispunha, preparou as peles com esmero, como aprendera. Sempre
que encontrava algu�m da comunidade procurava expressar-se em russo, tentando
lembrarse de uma ou outra frase. �s vezes escutava e conseguia reconhecer alguma
palavra pronunciada pelas pessoas do vilarejo. Na escola as crian�as falavam
ingl�s, mas, entre elas, usavam a l�ngua a que estavam acostumadas.
Na terceira semana, abandonou o riacho em que estivera montando as armadilhas e
subiu mais a montanha, em dire��o norte, armando-as junto �s nascentes de v�rios
c�rregos. Ali, longe do vilarejo, n�o notou vest�gio algum de outras pessoas. As
armadilhas deram resultado. Apanhou muitos esquilos e marmotas, cujas peles,
segundo Baronas, eram bem procuradas. E tamb�m arminhos e raposas-azuis. V�rias
vezes cruzou com pegadas que, pelo tamanho, deviam ser de um urso pardo.
Num fim de tarde, sentado junto a um riacho, fez um balan�o da situa��o. Se
vendesse as peles, juntaria um pouco de dinheiro para gastar na viagem quando
preciso. Estava fazendo progressos no seu aprendizado de russo. Ficara tamb�m
sabendo que grande parte da popula��o abor�gene - e ele podia passar por um membro
- n�o falava quase nada de russo. Os povos Koriak, Yakut e Lamut tinham um
conhecimento apenas superficial da l�ngua. At� a primavera, precisava inventar
alguma hist�ria suficientemente plaus�vel para ser aceita de in�cio. E, enquanto
pensavam o que decidir, ele j� estaria bem longe.

Kyra Lebedev era uma linda mulher que fazia todo o poss�vel para esconder sua
beleza. H� muito tempo descobrira que as mulheres bonitas n�o progrediam t�o
depressa quanto as mais feias. Uma boa apar�ncia podia ser vantajosa num homem, n�o
numa mulher. Os homens em geral achavam que por tr�s da beleza havia falta de
intelig�ncia; enquanto as outras mulheres tinham inveja. Para ela, o sucesso era
importante. Por isso rapidamente avaliara suas possibilidades com o camarada
Shepilov, inteligente mas de pouca energia, que tamb�m desejava o sucesso, embora
apenas o esperasse, em vez de busc�-lo. Havia progredido sem obst�culos at� o dia
em que se viu superado por Arkady Zamatev. Desde o in�cio percebera a amea�a.
Pregui�oso, �s vezes um pouco irrespons�vel e amante intransigente do conforto, era
no entanto homem de confian�a do Partido.
Zamatev, por sua vez, n�o tomava conhecimento das armadilhas, das vantagens.
Executava seu trabalho de maneira eficiente, perfeita. Havia pouco desperd�cio no
seu departamento, que funcionava com menos funcion�rios do que qualquer outro da
Sib�ria Central. Toda a tarefa que lhe era confiada, cumpria-a com rapidez e
precis�o. Cuidadosamente, removera os alco�latras e os pregui�osos. Kyra Lebedev
pressentira que Zamatev tinha muito futuro. Ent�o decidiu incluir-se nele.
Estava apaixonada por ele? Olhando-se ao pequeno espelho do quarto de hotel, sorriu
ao pensar nisso. N�o estava. Ser� que acreditava no amor? Encolheu os ombros.
Respeitava Zamatev, admirava sua intelig�ncia fria conduzindo as coisas. Com ele,
tinha-se sempre um quadro realista da situa��o. Tudo se relacionava, tudo fazia
parte de um conjunto maior. N�o lhe fizera promessa alguma quanto ao futuro. Ela
por�m o inclu�ra nos seus planos.
Tamb�m sabia que ele lhe serviria de trampolim para alcan�ar os altos escal�es
governamentais. Assim a t�tica era n�o pedir nada, n�o esperar nada, compreender
sempre, ser prestativa e t�o eficiente quanto ele pr�prio.
N�o podia saber se Zamatev realizaria ou n�o suas ambi��es. No fundo, achava que
n�o. Um homem como aquele incomodava os superiores. N�o que temessem seu sucesso,
mas aquela estupenda efici�ncia for�ava-os a ir bem mais depressa do que
pretendiam. As pessoas em posi��o de comando, em todo o Ex�rcito, raramente
chegaram ali gra�as a sua capacidade e sim por n�o criarem problemas, permitindo
uma f�cil conviv�ncia. Homens em posi��o de comando n�o est�o atr�s de
personalidades fortes. Querem pessoas aceit�veis socialmente, eficientes at� certo
ponto, sem exageros.
Zamatev poderia talvez chegar a alguma posi��o de import�ncia. Afinal, isso
acontecia �s vezes. Gorbatchev conseguira; outros, por pouco, e s� falharam por
serem por demais autoconfiantes.

Ainda assim, Arkady Zamatev estava em ascens�o e poderia ir ainda muito longe. Kyra
pretendia ir junto, at� o ponto em que pudesse abandon�-lo e prosseguir por conta
pr�pria. Se Zamatev recapturasse o americano, seria com certeza transferido para
Moscou. Por isso tinham de encontr�-lo de qualquer jeito.
Wulff era a pessoa respons�vel ali. As informa��es que recebera a seu respeito n�o
eram das melhores. Seu departamento era mal administrado. Os resultados estavam
longe de ser os melhores, todavia, acontecesse o que acontecesse, tudo ficava
confinado �quela regi�o, ningu�m estava disposto a criar problemas onde eles
simplesmente pareciam n�o existir. A disciplina era bastante rigorosa e, de acordo
com os boatos, seus superiores tiravam um bom lucro da situa��o toda. Apesar disso,
ele tinha bons contatos e um excelente controle de tudo. Se ela quisesse obter sua
coopera��o, precisaria de uma certa habilidade.
Wulff conhecia Arkady Zamatev o suficiente e assim procurava evitar qualquer
problema com o coronel. O que ela queria era coopera��o e uma atitude de n�o-
interfer�ncia da parte de Wulff. Chegou � conclus�o de que n�o era um homem
ambicioso. Tinha conseguido aquilo que queria e n�o almejava mudan�a alguma da
situa��o. Estava segura de que ele n�o ia querer algu�m balan�ando um barco que
navegava t�o suavemente.
Recebeu-a sentado em sua mesa de trabalho. Era um homem gordo, mas de aspecto
s�lido, meio careca, olhos redondos e cautelosos. Apesar do sorriso nos l�bios, o
olhar examinava-a esperando algum problema.
- N�o ouvi nada a respeito - garantiu-lhe ap�s ela terminar a explica��o - e teria
ouvido, com certeza. � claro que a �rea � enorme e, se voc� estiver certa e ele
tiver vindo nesta dire��o, n�s temos de encontr�-lo.
- Eu preferia n�o incomod�-lo, nem ao seu departamento - sugeriu ela. - Quero estar
livre para ir a toda parte. Acredito que sei o que � preciso ser feito.
- Claro, mas precisa estar preparada. A regi�o � completamente in�spita. Acho que
seria melhor se voc� ficasse aqui na cidade. Estamos numa regi�o distante de tudo,
mas a vida aqui pode ser agrad�vel e ter�amos todo o prazer em inici�-la nela -
sorriu. - Minha mulher ficaria especialmente contente, j� que recebemos
pouqu�ssimas visitas.
- Gostaria muito de conhec�-la, mas h� tanto que fazer e - ela sorriu - quero estar
no centro dos acontecimentos.
Era uma mulher de personalidade, pensou Wulff. Trabalharia para Zamatev? Ser� que
havia alguma coisa entre os dois? Bem, por que n�o? Arkady era um homem solteiro.
Por�m duro, pensou, muito duro.
- Ouviu alguma coisa dos ca�adores? Ge�logos? Engenheiros? Quer dizer, alguma coisa
de diferente? Algum estrangeiro? Algum roubo?
Ele sorriu, fazendo um gesto negativo com a cabe�a pesada.
- Nada. J� pensamos nisso tudo e andamos fazendo buscas por toda a regi�o - sorriu
- como voc� tamb�m.
Seu sorriso foi um pouco nervoso.
- Sobrevoando a regi�o vimos um lugar...
- Eu sei - respondeu -, meus homens estiveram l� algum tempo atr�s.
N�o queria ningu�m de fora se metendo ali, quanto mais cedo conseguisse livrar-se
dela, melhor. Precisava no entanto usar de cautela, ela parecia uma mulher viva e
inteligente.
- Quem � esse homem que voc�s est�o procurando? Parece que � um americano? Foi o
que eu ouvi dizer...
- Eu ouvi isso tamb�m - respondeu. Percebeu um certo desconforto em Wulff e
concluiu que ele n�o queria pessoas de fora examinando a regi�o muito de perto.
Bem, era isso mesmo que ele tinha de fazer, era sua fun��o. Mas a dela era
recapturar o major Makatozi. Wulff n�o era nenhum idiota e certamente j� possu�a
todas as informa��es principais.
- � um piloto, com informa��es que nos interessam. Nada al�m disso. � muito
importante que o capturemos imediatamente.
- J� passou muito tempo - disse Wulff. - Provavelmente, j� est� morto. - Fez uma
pausa. - A vigil�ncia na fronteira foi redobrada. Meus homens examinaram cada
cidade, aldeia ou acampamento ao longo do Amur. O Ex�rcito est� em absoluto estado
de alerta. Se ele estiver vivo, n�s o encontraremos.
- N�o seria nada mal se eu o encontrasse - disse ela. - Ou se fosse entregue a mim
depois de capturado. Garanto-lhe que o coronel Zamatev ficaria muit�ssimo
agradecido.
- Sem d�vida. Admiro muito o coronel. Desejo-lhe todo o sucesso - girava na
cadeira. - Essa captura pode significar muita coisa para o coronel, poderia at�
lev�-lo para Moscou.
Uma transfer�ncia, pensou Wulff, que deixaria muita gente satisfeita. Zamatev era
muito r�spido, muito duro de se lidar. Ou talvez o problema fosse justamente que
ele n�o se dispunha a tratar com as pessoas. Se n�o capturasse aquele americano,
provavelmente teriam de ag�ent�-lo para sempre. S� isso j� era uma boa motiva��o. O
coronel Zamatev tinha diversos admiradores, por�m seria bem mais f�cil admir�-lo se
estivesse em Moscou.
- O que n�o consigo entender � como foi pego esse piloto. A GRU...
- Foi o coronel Zamatev o �nico respons�vel - sorriu - ali�s, como em tudo o que
costuma realizar.
Wulff levantou-se. Terminara o encontro.
- Se puder ajudar, disponha. Mas acho que seu americano morreu. Para onde iria?
Como sobreviveria? O inverno praticamente j� chegou, a natureza l� fora � vasta e
selvagem. Quando era mo�o...
- Esse homem � diferente. � um pele-vermelha.
Wulff ficou boquiaberto. Um �ndio? Pensava que estivessem todos mortos. Nunca mais
tinha ouvido falar de �ndio pele-vermelha, pelo menos desde quando era menino e
assistia �queles filmes americanos. O assunto era mais interessante do que
imaginara.
- Mas ser� poss�vel? Pelo que eu entendi, � um oficial da For�a A�rea americana.
- Tamb�m - Kyra voltou-se em dire��o � porta. - O que voc� precisa ter bem claro �
que esse homem sabe como viver na taiga.

L� fora, Kyra percebeu que estava irritada. N�o tinha conseguido nada. O que � que
o Wulff ia fazer? Ser� que ia cooperar? Ou ia querer capturar o americano por sua
conta? Ou ia trabalhar com Shepilov? Apertou o cinto, o vento soprava com for�a.
Ele faria aquilo que lhe fosse mais conveniente.
Stegman aguardava-a com o carro. Era um homem magro e forte, de uns quarenta anos,
aparentando trinta. Era um dos melhores auxiliares de Zamatev.
- Nada de concreto - disse-lhe. - Seja l� como for, teremos de agir por nossa
conta. - Fez uma pausa. - Ele conhece voc�?
- Acho que n�o.
- Vou a p�. Mas gostaria muito de saber o que far� em seguida o camarada Wulff.
Isso poderia ser muito �til.
Stegman entrou no carro e deu uma volta no quarteir�o; depois estacionou a uma
certa dist�ncia, de onde controlava a porta para o escrit�rio de Wulff. Kyra
Lebedev voltou para o hotel, pegou os mapas que trouxera consigo e espalhou-os
sobre a cama. Sentia-se assombrada. At� ela, que sempre vivera e trabalhara na
Sib�ria, n�o deixava de se impressionar com a imensid�o daquela �rea toda. Tentar
achar algu�m naquela vastid�o... Era assustador.
Tantos rios! Tantas florestas! Como era �ndio, saberia ca�ar, procuraria viver da
pr�pria natureza. Se bem que, durante o inverno, seria praticamente imposs�vel.
Wulff devia estar com a raz�o. Aquele homem, se j� n�o estivesse morto, devia estar
para morrer.
De todo modo, queria ter certeza. Estudando o mapa, come�ou a pensar, tentando
imaginar o que fizera o prisioneiro foragido.
Primeiro foi para longe da �rea da pris�o sem que o vissem. O rumo que tomou depois
era uma inc�gnita. S� Alekhin achava que era o leste, no entanto baseava-se em
dados muito discut�veis... A falta de uma faca que podia ter sido simplesmente
perdida. Umas latas de comida faltando, que podiam nunca ter estado l� ou terem
sido abertas por um trabalhador faminto qualquer.
Ainda assim, j� ouvira muitas hist�rias sobre Alekhin, que Arkady e dois amigos
Yakut contavam. Ningu�m gostava dele. Era um bruto, conhecido pela crueldade, meio
animal, n�o falava com ningu�m. Contudo era opini�o geral que n�o havia outra
pessoa melhor do que ele na captura de pr�sioneiros foragidos. Precisava falar com
ele. Mas onde � que estava?
Tentar o helic�ptero mais uma vez... Era o meio mais rapido de se realizar uma
busca, al�m de Stegman ser excelente piloto.
Ouviu uma batida na porta.
- Assim que voc� saiu, ele foi at� um pr�dio pequeno, numa rua lateral - era
Stegman, informando-lhe esbaforido.
- O homem que trabalha l� � um negociante de peles.
- Ah!... Peles. Algu�m portanto que pode conhecer os ca�adores. E Wulff n�o mandou
ningu�m... Ele mesmo foi at� l�... Interessante.
- �.
- Eu acho que you ter uma conversa com esse comerciante. Voc� pegou o nome dele?
- Zhikarev, Evgeny Zhikarev, h� cinq�enta anos no neg�cio, naquele mesmo lugar.
- Um homem persistente, hein! Bem, veremos.
Seu cora��o batia mais depressa. Talvez Wulff soubesse alguma coisa, talvez
estivesse apenas sondando, mas um negociante de peles?
Talvez fosse por a� a pista que procurava. Se fosse... Tinha de agir com toda a
rapidez, Se fosse a informa��o que precisava, podia pegar Makatozi antes de a
semana terminar. Talvez naquele mesmo dia!
Quando chegou ao carro, estava praticamente correndo.

CAP�TULO 14

Evgeny Zhikarev estava alvoro�ado. Era um homem pequeno, o cabelo grisalho e


emaranhado, um grosso bigode negro. Usava �culos com aro de metal, sempre na ponta
do nariz, parecendo prestes a cair a qualquer instante. Vestia naquela manh� uma
camisa cinza e um casaco de veludo pu�do, bordado de arabescos vermelhos, dourados
e verdes.
Na loja, cal�ava chinelos. Quando jovem, fora torturado v�rias vezes pela Cheka, a
pol�cia secreta na �poca, tendo por isso os p�s meio deformados. S� punha sapatos
quando sa�a da loja. Como sua casa ficava nos fundos, raramente sa�a dali.
Na �poca do czar, o pai fora um homem rico, dono de uma firma bem-sucedida que
negociava peles, na ent�o S�o Petersburgo. A Revolu��o destru�ra tudo aquilo. O
velho Zhikarev fugira para a Sib�ria, onde seus fornecedores continuavam
trabalhando. Na R�ssia sempre haveria mercado para o com�rcio de peles, sem falar
na China e Manch�ria. Pai e filho sa�ram-se bem, viviam discretamente, numa zona
meio pobre, por fora comportando-se segundo as regras vigentes, mas operando com
uma margem de lucro confort�vel.
Ficara estabelecido que pessoas ligadas ao governo, tais como Wulff, sempre
poderiam comprar-lhes peles por pre�os baixos. No caso de Wulff, isso significava
um casaco de pele para ele, sua mulher e pelo menos outros dois femininos,
praticamente de gra�a. Al�m disso, um ou outro casaco para pessoas que Wulff
desejasse impressionar. Por isso fazia vistas grossas para alguns dos outros
neg�cios de Zhikarev. Pegava o que lhe oferecia, vez ou outra sugeria alguma coisa,
discretamente, mantendo um bom relacionamento com Zhikarev, sem dizer quase nada.
N�o prometia nada, n�o oferecia nada. Seus coment�rios eram poucos, mas bem
compreendidos. Dizia simplesmente: "O camarada fulano de tal est� atr�s de um
casaco. Sabe, alguma coisa de boa qualidade. Perguntou se eu n�o teria algum
peleteiro para recomendar". Era assim que eles se entendiam A loja cheirava um
pouco � comida que Zhikarev preparava em seus aposentos. Tinha tamb�m cheiro de
couro novo, com o que ele tamb�m trabalhava, numa escala mais modesta por�m.
Mesmo as paredes da loja, e dos c�modos atr�s, sendo bem grossas, nunca se estava
muito aquecido ali dentro, pois Zhikarev mantinha a temperatura um pouco baixa para
conservar as peles. Em geral havia pilhas de couro e de pele espalhadas, amarradas
e soltas.
Sem que Wulff ou algu�m mais soubesse, Eveny Zhikarev mantinha uma conta aberta num
banco de Hong Kong. Fizera isso, como todo o resto, discretamente, com efici�ncia e
habilidade.
Evgeny Zhikarev considerava-se um russo leal. Amava seu pa�s. S� n�o gostava de
algumas pessoas do governo. Sobrevivera � Revolu��o, aos v�rios expurgos e a uma
quantidade de inqu�ritos e interrogat�rios. Aleijaram seu corpo, mas n�o a mente.
Tudo correra bem nos �ltimos doze anos e j� pensava em se aposentar. Isso
significava abandonar a R�ssia, mas tamb�m estar livre de inqu�ritos, ter tempo
para descansar, ler. Acabara nunca arranjando tempo para ler todos os livros que
queria, muitos deles dif�ceis de serem obtidos na R�ssia.
Ultimamente vinha pensando em ir morar num apartamento em Hong Kong, Jap�o ou
talvez at� na Calif�rnia. Seus p�s estavam doendo mais nos �ltimos tempos e isso o
preocupava. Seria algum tipo de aviso?
Voltou aos seus c�modos miser�veis, colocou o repolho na t�bua de cozinha. Comeria
mais uma vez sopa de repolho. O cheiro, de certa forma, tranq�ilizava os
funcion�rios do governo. Era um odor de inoc�ncia.
Desde que abrira o �ltimo pacote de peles, sentira-se preocupado. Eram de uma
qualidade acima da m�dia, especialmente o arminho e a raposa-azul. As peles de
esquilo eram sempre abundantes, mas as outras...
P�s a �gua no fogo, juntou o repolho e umas fatias de cenoura. Enquanto mexia o
caldo, ia pensando, ruminando sobre a visita de Wulff.
O pacote de peles estava aberto, sobre a mesa, mas Wulff olhou-o apenas de relance.
Foi direto ao assunto.
- Camarada, h� um americano solto por a�. � um �ndio pele-vermelha e tem de ser
capturado. Voc� � a pessoa que mais conhece os ca�adores. Avise todo mundo. N�s
queremos esse homem. Eu quero! E quero ele com vida. Se n�o o encontrarmos, a
regi�o ficar� coalhada de soldados. Ningu�m vai ter descanso enquanto n�o o
encontrarmos. Qualquer coisa que voc� ou�a, ou veja, ou desconfie, procure-me
imediatamente. Imediatamente! Entendeu?
Fez uma pausa e acrescentou, um pouco mais gentil:
- N�o quero que nada lhe aconte�a. Tamb�m n�o quero ningu�m lhe fazendo perguntas.
Entendeu? Descubra-o! Descubra-o imediatamente! Avise todo mundo. O homem � um
inimigo do Estado Sovi�tico.
Wulff sa�ra pisando firme, Zhikarev continuou a cozinhar a sopa de repolho mas
preocupado. Era raro o camarada Wulff falar de maneira t�o radical. Nem precisava,
todo mundo sabia o que ele podia fazer e faria, se fosse necess�rio.
Zhikarev afastou uma mecha de cabelo grisalho que lhe ca�a na testa. Examinou a
sopa. Gostava dela mais grossa. Hesitou, ouvindo algu�m na porta da rua. Virando-
se, olhou em dire��o � fachada da loja.
L� estava uma mulher jovem, atraente e inteligente. Conhecia a ra�a. Racioc�nio
r�pido e claro, exigente a ponto de se ser quase imposs�vel agrad�-la. Enxugou as
m�os num pano de prato, deixou-o na pia e foi para a parte da frente, at� a loja.
Ela examinava as peles.
O comerciante passou os dedos entre o cabelo grisalho. Ela se virou para olh�-lo.
Zhikarev pensou se estaria com a roupa muito suja.
Pela janela, notou um carro estacionado na rua; ao lado dele, em p�, um homem alto,
com jeito de forte. Aquilo queria dizer problemas!
- Sou a camarada Lebedev. Voc� � Evgeny Zhikarev?
- Sou.
- Ouviu falar do prisioneiro foragido? Do americano?
Ele balan�ou os ombros.
- As pessoas andam falando, mas eu vejo t�o pouca gente. Estou sempre �s voltas com
as peles, entende...
- E, eu sei. Voc� tem contatos com os ca�adores de pele? - Ele balan�ou de novo os
ombros, piscou os olhos com um jeito vago.
- Se eles t�m peles para vender. Geralmente meu contato � com algum intermedi�rio
que vai at� a taiga e compra as peles. Eu n�o vejo os ca�adores propriamente, eles
nunca v�m � cidade.
- Trabalho para o coronel Zamatev. Estamos � procura do americano. - Apontou o
pacote de peles, aberto sobre a mesa. - Voc� acabou de comprar isso?
- �. Vieram de muito longe.
- Quem vendeu?
Uma pergunta direta, dif�cil de contornar. Encolheu os ombros.
- Um ca�ador de peles que...
- Eu quero o nome dele. Onde localiz�-lo. - Seu olhar era frio. - Quero isso tudo
j�!
Zhikarev piscou.
- Ele s� vem de vez em quando, raramente. Eu negocio com tantos ca�adores. Esse -
enrugou o rosto - acho que era o camarada Borowsky.
- Conte tudo o que sabe sobre ele.
Zhikarev acautelou-se. Aquela mulher jovem era muito inteligente e se o coronel
Zamatev estivesse mesmo metido na hist�ria...
- A gente sabe t�o pouco. Tenho certeza que o camarada Wulff tem um dossi� sobre
ele. Claro, sempre h� os boatos. Dizem que foi soldado, que combateu os alem�es com
bravura mas seu pai era judeu e ele queria sair do pa�s. Estabeleceu-se aqui, junto
com a fam�lia. Ningu�m queria Borowsky em lugar nenhum, ent�o ele foi trabalhar com
as armadilhas. N�o sei se tudo isso � mesmo verdade.
- Ele vem muito aqui?
- Uma ou duas vezes por ano.
- Onde mora?
Zhikarev encolheu os ombros.
- Esses ca�adores de pele quase n�o falam nada. T�m medo de que outras pessoas v�o
ca�ar na sua regi�o. Acho - mentiu - que ele ca�a no Sinyaya, ao norte daqui.
Desconfio - acrescentou - que vende a maioria de suas peles em Yakutsk.
- Abra todo o pacote.
Evgeny Zhikarev pegou uma faca e cortou os barbantes, desfazendo parcialmente o
pacote. Ser� que ela entendia de peles? Espalhou-as sobre a mesa e afastou-se um
pouco. Seu cora��o batia com for�a.
Ela ia virando as peles, rapidamente, examinado uma ou outra. Observava-a e o medo
aumentou. Ela entendia alguma coisa, entendia sim, dava para notar.
De repente, mostrou-lhe um arminho.
- Esta pele n�o foi tratada pela mesma pessoa que tratou as outras. Est� diferente.
Olhe. Muito melhor trabalhada, como algu�m que sente prazer em ver uma pele bem-
tratada.
Ia virando uma a uma, examinando-as. Agora n�o tinha mais jeito. Ela concluiu o que
ele mesmo tinha conclu�do.
Ela afastou-se da mesa, virou-se para ele. Olhou-o com uma curiosidade inteiramente
fria. Andou at� a porta e chamou algu�m. Em seguida o homem alto estava junto �
soleira.
- Stegman, quero saber tudo o que esse homem sabe de um ex-combatente, um judeu
chamado Borowsky. Quero saber tudo a respeito dessas peles tamb�m - mostrou-as,
virando-as rapidamente. - Espero que ele diga o que sabe aqui mesmo, assim n�o
teremos de lev�-lo...
- Ele vai colaborar - disse Stegman. - Eu e o camarada Zhikarev somos velhos amigos
- sorriu, mostrando seus enormes dentes brancos. - Como v�o os p�s, camarada?
Zhikarev estava apavorado. Apoiou-se na mesa. Por que esperara tanto? J� podia
estar longe dali. Todo aquele dinheiro em Hong Kong, e sabia como sair da R�ssia.
Sabia exatamente COMO.
- O que puder fazer para ajud�-los - disse calmamente - eu farei. Os ca�adores de
pele por�m n�o costumam revelar sua �rea de trabalho.
- Essa remessa de peles - perguntou Kyra -, quando foi que a comprou?
- Ontem mesmo - n�o adiantava mentir sobre isso, podia ser verificado facilmente. -
Borowsky as trouxe at� aqui. N�o sei muito bem, mas parece que, quando ele vem,
traz peles de outros ca�adores tamb�m. Essas que voc� apontou s�o novas para mim.
H� muitos anos eu n�o via nada parecido. Esse ca�ador - e nisso foi honesto - �
muito habilidoso, tanto no jeito de preparar as armadilhas quanto no tratamento da
pele. - Apontou-as. - Veja s�! N�o usou armadilhas de a�o, as peles n�o sofreram
dano algum.

Kyra Lebedev entusiasmara-se, por�m escondeu seus sentimentos. Ali estava uma boa e
nova pista. Precisava agir com cautela. Se chegasse ao come�o da hist�ria toda,
recapturar o americano...
- Voc� disse o Sinyaya, n�o foi?
- � um afluente do Lena. Ele des�gua bem desse lado de Yakutsk.
- Eu sei - retrucou incisiva. - Conhe�o aquela regi�o muito bem - o olhar era frio.
- N�s vamos procurar. Se n�o encontrarmos nada, estaremos de volta. Sugiro - seu
olhar era duro - que voc� puxe um pouco pela mem�ria, camarada. Que tal se
come�asse a lembrar-se de tudo o que sabe sobre esse tal de Borowsky e suas peles,
hein? Quem mais veio at� aqui com ele? Exatamente quantas vezes por ano traz as
peles? Por que desconfia do Sinyaya? Sempre achei que n�o houvesse mais ca�a
naquela regi�o.
Deu um sorriso e, por mais bonita que fosse, era um sorriso feio.
- Sabe o que �, tenho um tio com quem eu morei uns tempos, quando era crian�a. Ele
era peleteiro e tamb�m negociante de peles.
Encaminhou-se para a porta.
- Venha, Stegman. Em algumas horas, vamos at� o Sinyaya e voltamos - tornou a
sorrir. - S� espero que n�o seja uma perda de tempo.
Sa�ram e Stegman fechou a porta atr�s de si, cuidadosamente. Zhikarev ficou im�vel
alguns segundos. Teria dito alguma coisa errada? Reviu depressa todo o di�logo.
Esperava t�-los despistado, torcendo para que de fato houvesse algumas armadilhas
no Sinyaya e afluentes. Antigamente fora uma �rea f�rtil para os ca�adores, talvez
tivesse se recuperado durante esse intervalo de tempo.
N�o sabia de onde vinha Borowsky. Estabelecera uma regra de n�o perguntar nada. N�o
queria saber nada que n�o fosse o essencial para fazer os neg�cios, sabia muito bem
que havia foragidos, al�m de outras pessoas que n�o queriam ser descobertas. Wulff
tamb�m sabia disso.
Essa gente l� na taiga tinha de sobreviver. Eram inofensivos. Alguns estavam l� h�
muitos e muitos anos, sem fazer mal a ningu�m. Tudo que queriam era viver na
floresta, em sossego.
Wulff aos poucos fora enriquecendo com as peles que lhe traziam, certamente n�o
queria ver as pessoas da taiga incomodadas. Mas, para o coronel Zamatev, quem era
Wulff? Bastaria uma ou duas palavras de Zamatev para que Wulff se visse um mero
escrevente em algum lugar distante. Zhikarev j� vira acontecer coisas assim.
Que fazer, ent�o? Esperar para ver, e se preparar. N�o havia muito o que fazer. H�
muito tempo tinha isso na cabe�a, decidira nunca mais passar por um interrogat�rio
da KGB ou de quem quer que fosse. Era daquelas poucas pessoas em condi��es de
organizar sua pr�pria fuga, trabalhada cuidadosamente, anos a fio, atrav�s do
com�rcio de peles.
Num posto remoto, isolado, junto ao Amur, estabelecera discretamente um contato
para compra de peles da Manch�ria. O oficial no Posto de guarda deixava que as
peles cruzassem a fronteira e, em troca, recebia alguns pequenos favores. Depois de
mais de um ano assim, o oficial deixava Zhikarev cruzar a fronteira e pegar ele
mesmo as peles. Atualmente isso se transformara na mais perfeita rotina, tudo o que
Zhikarev tinha a fazer era atravessar a fronteira e n�o mais voltar.
Ser� que estava sendo vigiado?
N�o sabia coisa alguma desse estranho, esse homem que mandara as peles junto com as
de Borowsky e dos outros. Ele poderia ser o tal americano. Por causa de sua maneira
de tratar as peles, Evgeny Zhikarev sentira afinidade com o tal estranho. Tratava-
as com respeito. Fazia as coisas com capricho, e n�o de qualquer jeito querendo
terminar logo com a coisa. Borowsky conhecia o estranho e era um homem bom. Podia
estar agora numa situa��o bem complicada. Ser� que havia uma maneira de alert�-lo?
Zhikarev pretendia fugir da R�ssia, mas n�o tra�-la. Amava seu pa�s, ainda que n�o
gostasse de alguns dos seus governantes. Pelo menos as pessoas do governo local.
Daqueles de Moscou, nada sabia. Pelo menos nada al�m do que todo mundo sabia, o que
n�o era muito.
Bastou pensar um pouco para ver que nada poderia fazer por Borowsky. Nem sabia como
chegar at� ele e em hip�tese alguma pensava em deixar a cidade. A n�o ser que fosse
para abandon�-la de uma vez. Pensou: "Se n�o estivesse sendo vigiado..." Nada no
Sinyaya, se n�o encontrassem descobririam que mentira. Voltariam.
Tinha de fugir naquela noite mesmo.

CAP�TULO 15

Joe Mack abandonou a trilha quase apagada que viera seguindo e desceu por um morro
bem inclinado, entre os choupos. Cresciam t�o perto uns dos outros que tinha de
contorn�-los, �s vezes, virando-se de lado para poder passar. Praticamente n�o
deixava pegadas no ch�o coberto por folhas �midas e �rvores ca�das. Parava,
sobressaltado e atento, quando alguma coisa se mexia ou fazia barulho.
Seu esconderijo era o mais seguro poss�vel. Camuflara-o de todos os lados, de tal
forma que um ca�ador andando pela pedra l� em cima n�o suspeitaria existir aquela
sali�ncia. Mesmo assim, sempre que voltava ao esconderijo fazia um percurso
diferente, precavido. Se come�asse a se sentir confiante demais, poderia come�ar a
se expor.
Queria ir at� a aldeia. Baronas, junto com Borowsky e Botev, j� devia ter voltado.
Trariam not�cias e talvez algum dinheiro.
Parou, abruptamente. Na floresta, passara uma sombra. Ficou parado, ouvindo. O
ru�do fora quase impercept�vel seguido de um movimento. Aquilo n�o era animal
selvagem.
Joe Mack tirou uma flecha da aljava e esperou, arco na m�o.
De novo, um movimento, t�mido e cauteloso. Joe Mack estava numa posi��o alta no
morro, entre os choupos. Espreitava entre as folhas, aguardando. A vegeta��o era
t�o densa que seria imposs�vel fazer mira e acertar alguma coisa com a flecha.
Havia alguns poucos galhos baixos, j� mortos, pretos e sem folhas. Esperou. Como
bom �ndio, sabia ser paciente, sabia reconhecer a ca�a e tamb�m ca�adores.
Outro movimento, alguma coisa negra movendo-se com m�xima cautela, esgueirando-se
quase.
A sombra moveu-se novamente, num lampejo entre as �rvores. Era um homem. Era
Peshkov.
Estava procurando o esconderijo de Joe Mack.
N�o estavam a menos de oitocentos metros de dist�ncia dele, mas isso Peshkov n�o
tinha como saber. Ou estava procurando o esconderijo, ou andava atr�s de alguma
coisa. Certamente, n�o de um animal, dif�cil de se encontrar naquele trecho de
�rvores cerradas e �quela hora do dia.
Peshkov moveu-se mais uma vez, passando pela frente de Joe, a uns noventa metros.
Como as �rvores naquela dist�ncia formavam quase uma parede, misturando-se umas �s
outras, vira-o apenas em breves relances.
O homem chegara at� uma pequena clareira. Observando-o melhor, Joe Mack concluiu
que Peshkov estava s� dando uma olhada, buscando alguma pista. Dali onde estava n�o
encontraria coisa alguma, por�m, se Joe Mack estivesse apenas alguns minutos mais
adiantado, teriam topado um com o outro.
Agora estava indo embora e Joe Mack viu-o distanciar-se. Pelo menos ficara sabendo
que tinha algu�m atr�s dele; dali para a frente teria de redobrar a aten��o quando
estivesse fazendo o percurso do vilarejo at� o esconderijo. Ficou im�vel mais
alguns minutos, depois seguiu montanha abaixo, apoiando-se de �rvore em �rvore.
De volta ao esconderijo, guardou as peles e foi at� o vilarejo. Stephen Baronas
aguardava-o com uma boa quantidade de rublos. Disse:
Sa�mos-nos muito bem, mas estou achando que surgiu algum problema.
- Que tipo de problema?
- Ficamos fora da cidade at� o escurecer, ent�o vimos aterrizar um helic�ptero.
Sa�ram duas pessoas l� de dentro, um homem e uma mulher.
Baronas apanhou o cachimbo e calmamente encheu-o de fumo.
- N�o � nada comum aparecerem helic�pteros por aqui. Geralmente s�o usados para
coisas importantes, como a constru��o da BAM. Algumas vezes desembarcam grupos de
ge�logos, mas, conforme o tempo vai esfriando com a aproxima��o do inverno, os
helic�pteros praticamente n�o aparecem mais.
- Voc� reconheceu as pessoas do helic�ptero?
- N�o, mas o homem, apesar de parecer um subordinado, dava-se uns ares de
import�ncia. Sabe como �. Eu podia jurar que ele � algum da KGB, ou alguma coisa
desse g�nero. Borowsky teve a mesma impress�o.
- N�s j� t�nhamos vendido nossas peles, mas Borowsky quis voltar. H� muitas coisas
que n�o podemos comprar n�s mesmos. Zhikarev ent�o costumava arranj�-las para n�s.
�amos voltar para encontr�-lo...
- E a�?
- Ele n�o estava mais l� na loja. O lugar estava escuro, em sil�ncio. O que � muito
estranho, porque ele tamb�m mora l�. J� �amos saindo quando parou um carro na
frente. Eram aquele homem e a mulher, os dois do helic�ptero, s� que dessa vez
Wulff vinha junto com eles. Bateram na porta umas tr�s vezes. O tal com cara de
agente da KGB ent�o a for�ou e entrou. Ficamos olhando, meio de longe. N�o dava
para ouvir quase nada. Fecharam a loja entraram no carro e sa�ram em disparada.
Baronas ficou alguns instantes em sil�ncio, fumando o cachimbo e pensando.
- Viemos embora depressa, pegamos um caminho diferente para chegar aqui. N�o temos
a menor id�ia do que aconteceu, tampouco por que Zhikarev sumiu daquela maneira.
- Est�o me procurando. - Baronas encolheu os ombros.
- Pode ser.
- Peshkov tamb�m est� atr�s de mim.
- Voc� conhece Peshkov? Ah, � claro! Estou me lembrando. Talya me contou do seu
encontro com ele. Tome cuidado. � um homem perigoso, trai�oeiro.
Joe Mack olhou para fora. Soprava um vento g�lido. Logo deveria voltar para o
esconderijo. Ser� que Peshkov pretendia roub�-lo? Mat�-lo?
Ali dentro estava quente e agrad�vel. Talya chegou. Fez um gesto de levantar-se,
mas ela disse que permanecesse sentado.
- Fique para jantar; fiz um cozido. Logo vai estar na mesa.
Baronas come�ou a aula de russo para Joe Mack. Ele ouvia tudo, e repetia as
palavras e frases. Logo veio um caf�, a aula continuou. Na hora do jantar, Barowsky
chegou, dizendo:
- Acho que Zhikarev fugiu. Uma vez ele me disse que preferia morrer a ter de ser
interrogado novamente. Por isso acho que ele simplesmente abandonou tudo e foi
embora.
- Como � que ele ia conseguir fugir? - Borowsky encolheu os ombros.
- Muita gente j� conseguiu sair do pa�s e ele � um velho muito esperto. Um
negociante de peles acaba estabelecendo os contatos mais estranhos. Ele conhece
muita gente. Na maioria das vezes, ele sabe exatamente onde encontrar as peles. Se
n�o souber, pode supor com muita precis�o. Afinal certos tipos de animais t�m seu
habitat e a pele de certas regi�es � melhor que a de outras.
- Espero que tudo lhe corra bem - completou Joe Mack. - Vai precisar que reze por
ele.
Borowsky dirigiu seu olhar para Talya.
- Eu acho que vou sumir por uns tempos... Agora, nessa �poca do ano? Ir para onde?
- Eu fui visto entrando na loja de Zhikarev. Se foram atr�s dele, vir�o tamb�m me
procurar.
Olhou para Baronas.
- Tome muito cuidado, Stephen. Nunca descobriram aqui esse nosso lugar porque
tamb�m n�o procuraram muito... At� agora tudo correu bem com Wulff, mas, entre o
pesco�o dele e o nosso, evidentemente escolher�o o nosso. - Joe Mack acabou de
comer. Olhou para Talya, que viera sentar-se junto deles.
- Meu esconderijo � dif�cil de achar, voc�s poderiam ir para l�.
- N�o se preocupe, estamos bem. - Ele se levantou.
- Digo-lhes onde fica e, se puderem, venham.
- � melhor voc� procurar um outro esconderijo, Joe Mack. Mais longe daqui. Fa�a um
estoque de lenha e de carne. Nessa epoca, a carne se conserva, com o gelo que se
forma no solo. Cave alguns metros e ter� uma geladeira melhor do que essas que
voc�s t�m nos Estados Unidos.
- O gelo permanente?
Joe Mack j� ouvira falar a respeito. A terra cobria-se de uma camada de gelo, que
durava ano ap�s ano. Ficava dif�cil construir em terreno assim, pois qualquer coisa
mais quente poderia derreter o gelo, inundando a �rea em volta da constru��o.
Conversaram durante muito tempo e ele mais ouviu, pouco falando. N�o era seu
costume falar muito, gostava mais de ouvir, aprendia muito.

Baronas sugeriu: - Passe a noite aqui. O frio l� fora est� terr�vel.


N�o gostou muito da id�ia, menos ainda de andar pela floresta com aquele frio.
Resolveu ficar, ali estava quente e agrad�vel. Borowsky foi-se embora um pouco mais
tarde e eles ficaram conversando. Fez diversas perguntas, e eles mais ainda. Como
eram as coisas nos Estados Unidos? Contou-lhes um pouco, n�o muito, para n�o
pensarem que estivesse mentindo. Mostrou-lhes o mapa que roubara e estudaram-no
juntos. Baronas p�de ent�o informar-lhe muito sobre a regi�o. Parte dela conhecia
por viagens, o resto de ouvir contar. Falavam numa mistura de russo e de ingl�s.
Baronas perguntou de repente:
- Fala franc�s? Ouvi dizer que � ensinado nas escolas americanas.
- Falo, sim.
- Em meu pa�s � muito comum as pessoas falarem diversas l�nguas, O pa�s � pequeno,
muita gente fala polon�s e russo, alguns falam sueco tamb�m, outros franc�s ou
alem�o. Antigamente, quando era menino, viajava-se muito. Meu pai ia sempre a
Copenhague e a Oslo. Um primo dele tinha emigrado para os Estados Unidos. Eu me
lembro de algumas de suas cartas. Cartas maravilhosas! Morava no estado de
Minnesota.
- Gente do meu povo tamb�m morou l� - observou Joe Mack.
- Voc� disse que era �ndio, n�o �? Mas seus olhos s�o claros.
- Meu av� era escoc�s, das montanhas. Alguns dos meus ancestrais lutavam junto com
Bormie Charlie, enquanto, no outro lado do Atl�ntico, outros lutavam ao lado de
Crazy Horse quando este derrotou o general Custer.
- Eu j� ouvi falar dele!
- Ele � muito conhecido. Foi um grande guerreiro, admirado por muitas pessoas, at�
come�arem a ler os livros que o homem branco escreveu sobre ele. Lutamos contra ele
e ele lutou contra n�s. Foi um soldado, como eu sou. Cumpriu sua miss�o, como eu
fiz e procuro fazer. O soldado tem de cumprir a miss�o que recebe da melhor maneira
possivel.
Joe Mack prosseguiu contando:
- A �nica diferen�a � que o �ndio escolhe sua miss�o. Ningu�m jamais obrigou um
�ndio a escalpelar algu�m. Ele o fazia pela honra, pelo prest�gio da tribo. Quando
era crian�a, receb�amos a visita de velhos guerreiros que tinham conhecido Custer.
Eles o admiravam. S� n�o gostavam de homens fracos. Tempos depois, alguns
guerreiros come�aram a dizer que tinham matado Custer. A verdade � que nem sabiam
identific�-lo. Antes daquela �ltima marcha ele havia cortado os cabelos e os �ndios
estavam atr�s de algu�m de cabelos compridos. At� hoje n�o se sabe quem o matou,
nem quando. Um velho guerreiro, que costumava visitar-nos, achava que ele tinha
sido morto logo no come�o da luta.
Fez uma pausa.
- Pouca gente entendeu que aquela n�o foi a primeira batalha. Apenas alguns dias
antes, os Sioux encurralaram o grande general Crook. Os Sioux achavam que tinham
vencido a batalha. Crook achava que ele � que tinha, mas seus homens foram
obrigados a bater em retirada. Muitos feridos, a muni��o acabara... Os Sioux
estavam melhor armados naquela luta e seu contingente era superior ao dos soldados.
Os Sioux tinham rifles Winchester e Remington, de repeti��o, muito melhores que os
Springfield do Ex�rcito, de um s� tiro. Havia �ndios Shoshone lutando do lado do
homem branco. Isso acontecia muito. Os Shoshone eram velhos inimigos dos Sioux.
Individualmente, n�o nos temiam, mas como povo, sim.
- N�o sabemos quase nada sobre as guerras contra os �ndios. E o pouco que sabemos
s�o lendas, inven��es, quase nenhum fato. - observou Baronas.
Joe Mack concordou, acrescentando:
- Conosco tamb�m � assim. Poucos se d�o ao trabalho de procurar entender os Estados
Unidos, ver o pa�s dentro da nossa perspectiva. E n�s, americanos, gostamos de nos
sentir culpados de alguma coisa. Contudo, nunca sou eu mesmo o culpado, mas os
outros americanos, os outros governos - ou o atual -, o outro partido pol�tico. Os
americanos quase nunca acham que os outros pa�ses tenham alguma culpa. A culpa �
sempre nossa, ou de nossa suposta influ�ncia sobre outros pa�ses.
A lenha do fogo estalou. Natalya disse:
- Esta noite foi a mais fria deste ano. - Joe olhou para ela:
- Voc� sabe alguma coisa sobre a regi�o antes do estreito de Bering?
- Seria tolice escolher esse trajeto. S�o centenas de quil�metros de floresta,
montanha e p�ntano, muitos rios congelados para atravessar, fora a tundra. N�o h�
lugar para se esconder. Quil�metros e quil�metros de campo aberto. Sua melhor op��o
� seguir rumo � Manch�ria.
- Pode ser.
- Talya est� certa. Por esse caminho, n�o existe a menor esperan�a de sucesso.
Quase nenhum povoado, a n�o ser na costa. Se voc� encontrar algu�m, ser�o nativos
ou gente do governo que controla os radares dos poucos campos de avia��o... E, como
ela disse, n�o h� lugar onde se esconder.
- Pode ser que voc� esteja com a raz�o.
- Ainda assim pretende tentar?
- Pretendo. E justamente por todas essas raz�es que voc� mencionou. Como � absurdo
ir por esse trajeto, v�o achar que eu fui por outro.
Joe Mack p�s lenha no fogo. O vento aumentara de velocidade e a temperatura ca�ra
mais ainda. Bastava se afastar um pouco do fogo que dava para sentir. Imposs�vel
esquentar um espa�o grande, s� um menor, e com ventila��o, por causa do mon�xido.
N�o podia esquecer isso.
Improvisou um colch�o para ele, junto ao fogo, outro para ela. Seu pai ficaria
entre o fogo e a parede de fora, mais pr�ximo ao fogo, mas com uma pele de rena
pendurada alguns cent�metros atr�s de suas costas, para refletir o calor. Apesar do
fogo, o gelo ia se formando na parede.
Os dois continuaram falando, mas ele ficou quieto, ouvindo. Sua mente estava no
nordeste, rumo ao estreito de Bering e os milhares de quil�metros que deveria
percorrer. Partiria assim que a pior parte do inverno tivesse passado. N�o ia
esperar a primavera. Com o tempo mais quente, haveria mais pessoas viajando.
Observou-a, o rosto iluminado pelas chamas tr�mulas do fogo. Era linda, parecia t�o
pequena e fr�gil, por�m fora en�rgica com Peshkov. N�o sentia medo.
- Voc� n�o conhece nada al�m disto aqui? - Ela olhou em torno.
- Antes, quando era crian�a, mor�vamos na cidade. Uma cidadezinha pequena, mas boa.
Eu gostava de l�. T�nhamos flores no ver�o, havia uma igreja.
- Voc� ia � igreja?
- N�o era seguro. Quem ia � igreja era investigado ou chamado para alguma
repreens�o. Vez ou outra, um pastor vinha � nossa casa para conversar. Era
luterano, morava na cidadezinha e trabalhava num moinho. Me lembro muito bem dele.
- Era um bom homem - disse Baronas.
- Voc� trabalhava com o qu�?
- Agricultor. Uma esp�cie de pequeno sitiante. Plantava cevada e ruibarbo. Ruibarbo
era muito usado como rem�dio e tamb�m para se comer - desviou o olhar do fogo. -
Aprendi a cultiv�-lo, aprendi um pouco mais sobre o cultivo em geral. Certas
especies crescem muito bem aqui. A esta��o, por�m, � muito curta. Muitas vezes a
geada vem cedo demais, e tudo se perde.
- Nunca plantei nada. Nas montanhas, plant�vamos algum milho, �s vezes eu ajudava
um pouco.
O vento l� fora ficava cada vez mais forte.
- Conheci certa vez um marinheiro - disse Baronas - e, numa noite como esta,
repetia sempre o que diziam as mulheres dos pescadores. Quando o vento gemia e as
grandes ondas quebravam-se contra as rochas, exclamavam: "Deus tenha piedade dos
pobres marinheiros numa noite assim!
- Am�m - disse Joe Mack.
- Psiu - Natalya fez um gesto com a m�o Vem vindo algu�m.

CAP�TULO 16

Ficaram em sil�ncio. O vento gemia pelas calhas, a madeira estalava no fogo. Um


peda�o caiu, espalhando fagulhas pelo ar. Joe Mack sentia aquele cheiro bom de
madeira e esperava, os ouvidos agu�ados.
Chegou. Ouviu-se um passo no cascalho l� fora. Um pessoa apenas. Joe Mack relaxou,
olhando para a porta, como os outros dois. Viram o trinco da porta mexer-se. O
rec�m-chegado batia os p�s no ch�o para limp�-los da lama antes de entrar. A porta
abriu-se.
Era Yakov.
N�o trazia consigo nenhuma arma. Chegou perto do fogo, tirou as luvas, esticando os
dedos sobre o fogo. Disse:
- Est� frio, muito frio. - Percebeu Joe Mack.
- Ent�o... O que voc� fez n�o foi nada f�cil. Vir at� aqui, encontrar este lugar.
Ningu�m respondeu, todos pareciam esperar alguma outra coisa. Joe Mack olhou para
Baronas.
- Devo ir embora? H� alguma coisa que voc�s queiram discutir...?
- N�o, fique por favor. Voc� agora � um dos nossos. - Yakov olhou para Baronas,
esfregando as m�os para aquec�-las.
- N�o adianta. N�o est� mais em Nerchinsk. Foi levado da pris�o durante a noite.
Cutucou o fogo com um graveto,
- Demoramos muito - sussurrou - muito...
- Mas estar� vivo? - perguntou Baronas.
- Estava vivo. E, quando foi levado da pris�o, ainda conseguia andar. N�o sei para
onde o levaram. Vamos esperar. - Dirigiu seu olhar para Joe Mack. - Est�o atr�s de
voc�. Alekhin foi designado para procur�-lo.
- Alekhin! - exclamou Baronas. - Isso � p�ssimo!
Yakov encolheu os ombros:
- N�o passa de um ser humano.
Ficaram todos em sil�ncio. L� fora, o vento continuava. Natalya perguntou:
- Voc� j� comeu? - Ele deu um sorriso.
- Hoje n�o. S� um pouco ontem.
- Sente-se a� mesmo. Vou preparar alguma coisa.
- Temos ch�, enquanto isso - disse Baronas, olhou para ele e acrescentou: - Deve
estar cansado.
Yakov apontou Joe Mack.
- A regi�o toda est� em polvorosa por sua causa. Voc� deve ser importante.
Joe Mack encolheu os ombros, aceitando uma x�cara de ch�.
- Eu fugi, escapei. Eles n�o gostam disso.
Yakov jogou um graveto no fogo.
- Voc� n�o escapou. A Sib�ria � uma pris�o e suas paredes s�o de gelo. Ningu�m
escapa da Sib�ria.
- Eu escaparei.
- Voc� conhece bem a floresta - admitiu Yakov. - N�o deixou sinal algum de
passagem, pelo menos que eu percebesse, mas eu n�o sou Alekhin.
- Quer dizer que ele � bom mesmo?
- O melhor de todos. Ningu�m � melhor do que ele, nem t�o bom. Na mata, � um
verdadeiro fantasma, consegue ver coisas onde aparentemente n�o existe nada.
Ningu�m jamais escapou dele, nunca.
A conversa continuou entre eles, mas as poucas palavras que sabia de russo n�o
bastavam. Se falassem devagar, utilizando palavras simples, conseguia entender.
Muito do que aprendera com os filhos dos mineiros voltava � sua mem�ria. Al�m
disso, Stephan Baronas era um professor muito paciente. Mas, quando falavam entre
eles, s� pegava uma ou outra palavra. Sentia-se bem ali, n�o tinha vontade de ir
embora.

O conforto por�m podia ser perigoso. Tinha de retornar ao frio do seu pr�prio
esconderijo, onde, n�o se sentindo t�o bem, ficaria mais alerta.
Vinte e nove pessoas, disseram-lhe. Ate agora n�o conhecera mais de meia d�zia e
n�o vira muito movimento pelo vilarejo. Sabia que sua presen�a ali provocaria
discuss�o entre aqueles que temiam os problemas que pudesse causar, e os outros,
interessados na ca�a com que contribu�a para a sobreviv�ncia do grupo.
- Eu vou - disse Joe, levantando-se. Saiu.
L� fora o vento era duro e cortante. A terra congelada. Apesar de muito improv�vel
que algu�m o espionasse �quela hora, naquele frio, sentia-se preocupado. Quando
voltou ao esconderijo de pedra, acendeu uma pequena fogueira e preparou um lugar
para se deitar. Se n�o fizesse roupas mais quentes, congelaria. Por�m, apesar
daquele frio todo, sua sa�de era boa, alimentava-se com as ca�as. Era uma vida em
plena natureza, para a qual nascera. Cercou bem o fogo, enrolou-se na pele de urso
e olhou para o teto de pedra da caverna. Fechou os olhos. Logo teria de ir-se
embora. Era um perigo para aquelas pessoas. Ainda um pouco mais, para aprender a
l�ngua, s� um pouco mais.
Abriu os olhos novamente. Ser� que era por isso mesmo que estava ficando ali? Ou
ser� que precisava das pessoas muito mais do que imaginara?
O vento gelado soprava entre as �rvores, um galho se quebrou. Joe puxou a pele de
urso junto ao pesco�o, tentando proteger a cabe�a de um vento que vinha do alto.
Para poder dormir, tinha de esquentar a pedra com a fogueira. Com um bra�o fora do
calor da cama, alcan�ou um galho pequeno e atirou-o sobre o carv�o da fogueira.
Lembrou-se dos cumes rochosos por onde viajara, dos rios e florestas para
atravessar na fuga. Pensou ent�o em Alekhin, o rastreador, que estava l�, em algum
lugar, procurando algum sinal de sua passagem, tentando pacientemente encontr�-lo.
At� ent�o pensara que desconheciam sua localiza��o completamente; nas �ltimas
semanas, por�m, vira v�rias equipes de busca. Seria um mero acaso? Ou deixara
alguma pista?
Alekhin era um especialista naquilo. Todo cuidado era pouco.
Durante dois dias permaneceu afastado daquilo que passara a considerar um vilarejo,
mas no terceiro dia levou a carne de um goral para ser compartilhada.
Foi at� a casa dos Baronas, mas n�o havia ningu�m por l�. Desapontado, fez meia-
volta, preparando-se para voltar. Antes reavivou o fogo e deixou a carne. Ent�o
saiu.
Caminhando sobre folhas �midas, entre choupos e b�tulas, tinha j� atingido o
cora��o da floresta quando a viu.
Ela estava em p�, parada numa alameda natural formada por fileiras de b�tulas e
choupos. O capuz do seu agasalho estava para tr�s, sobre os ombros, e uma faixa de
sol refletia-se nos cabelos loiros. Ele se deu conta de que era mesmo uma linda
mulher. N�o que isso mudasse alguma coisa. Os dias acumulavam-se em semanas e logo
estaria partindo.
Veio vindo pela floresta, ao seu encontro, e parou a alguns metros de dist�ncia.
- Voc� n�o foi nos ver.
- Eu reavivei o fogo e deixei carne em sua casa.
- Obrigado. Vimos a carne e logo achamos que tinha sido voc�. N�o ficamos muito
tempo fora - hesitava. - Houve uma reuni�o.
Ele esperou, sem dizer nada. Ali perto, um leve ru�do sobre as folhas mortas.
- A reuni�o foi por sua causa. Peshkov quer que voc� v� embora, Rusinov tamb�m.
Eles s�o importantes aqui entre n�s. Meu pai falou a seu favor e Yakov fez o mesmo.
Depois de uma breve pausa, ela continuou:
- Yakov disse que voc� n�o tinha para onde ir, por causa do inverno. Peshkov
argumentou lembrando que voc� era um perigo para todos n�s. Mas meu pai insistiu,
dizendo que s� est�vamos comendo carne gra�as a voc�.
- Vou embora logo, logo.
- Para onde? N�o h� meios.
- Vou para onde estava antes de vir at� aqui. Voltarei para a floresta.
Um vento muito frio agitava as folhas secas.
- Meu pai diz que voc� pode ficar. Peshkov n�o � nosso porta-voz.
Depois de balan�ar-se no galho, uma �ltima folha dourada desprendeu-se do choupo e
caiu-lhe nos cabelos. Joe Mack virou o rosto em outra dire��o. Aquela sim era uma
mulher de verdade.
- Como est�o aqui? Me procuram mesmo com o frio? - Ela encolheu os ombros.
- Acho que n�o. Mas continuar�o depois. Zamatev est� envolvido e Alekhin tamb�m. �
a primeira vez que isso acontece. Acho que alguma busca vai haver, mas s� isso -
fez uma pausa para refletir. - Acho que v�o verificar alguns lugares. Tentar�o
eliminar algumas possibilidades, localiz�-lo um pouco melhor. Depois, quando chegar
a primavera, v�o se por em movimento. - Fez outra pausa. - Havia tamb�m uma mulher
em Aldan. Era ela que dirigia tudo. N�o sei quem �.
- Uma mulher? Que esp�cie de mulher?
- Algu�m disse que ela � muito atraente, n�s por�m n�o a conhecemos - olhou para
ele. - H� maneiras... Quer dizer, �s vezes conseguimos descobrir certas coisas.
Essa mulher estava em Aldan, onde as peles foram vendidas. Conhecemos o homem que
est� com ela. Chama-se Stegman. Sabemos quem �. Trabalha ou trabalhou na KGB. Quem
o designou foi o coronel Zamatev, pontanto a mulher tamb�m trabalha para ele. Eram
eles que estavam no helic�ptero.
Lembrou-se do helic�ptero que passara sobre ele. Seria o mesmo? Era poss�vel. Seja
l� quem fosse que estivesse pilotando, tinha ido examinar a constru��o abandonada.
- O que ficou decidido na reuni�o?
- Por enquanto, pode ficar. Ganhou alguns amigos com a ca�a que nos trouxe. Durante
o inverno, a vida aqui � muito dif�cil. No calor, todos podemos sair e arranjar
comida. Plantamos alguma coisa na floresta. No inverno � muito dif�cil, e voc� nos
trouxe carne.
Continuaram pela trilha quase apagada, andando juntos.
O ch�o estava coberto de troncos ca�dos, �s vezes cruzados um sobre o outro, quase
negros, por causa da umidade. Era um caminho trai�oeiro. O olhar dele estava em
permanente alerta, observando, procurando. Na floresta fechada havia alguns poucos
animais. Era mais comum encontr�-los perto de riachos, nas clareiras ou pequenos
prados. A floresta era t�o cerrada que, mesmo ao meio-dia, era sombreada, quase
escura. Os dias eram cada vez mais curtos, as noites longas e o frio cortante.
- Voc� deve falar com Yakov. A m�e dele � do povo Tungus. Eles criam renas, s�o
grandes viajantes e ca�adores. At� hoje vivem livres, como bem entendem, h� muitos
deles a nordeste daqui. N�o seria dif�cil voc� encontr�-los.
Andaram mais um pouco, em sil�ncio. Ao passar por cima de um tronco ca�do, ela
cruzou um p� no outro e escorregou. Agarrou-se no bra�o dele e espantou-se:
- Como voc� � forte!
- Havia muito trabalho pesado l� onde eu morava. Al�m disso, na faculdade... Voc�
conhece o declato? � um tipo de esporte que exige uma completa habilidade por parte
do atleta. Ganhei v�rias competi��es na faculdade, mas n�o passei nas eliminat�rias
para os Jogos Ol�mpicos. Eu n�o era bom o suficiente.
- Logo Botev estar� de partida para Yakutsk. Vai levar algumas peles para vender.
- Terei algumas j� preparadas. Mas n�o � muito longe?
- N�o podemos ir sempre ao mesmo lugar. Stegman e a mulher foram vistos em Aldan,
na loja. Seria perigoso voltar l� agora.
- Ele ir� sozinho?
- N�o. Algu�m deve ir junto. Talvez n�o tenham de ir at� Yakutsk. �s vezes
encontram, pelo caminho, outros ca�adores de pele e negociam ali mesmo. Ganhamos um
pouco menos; em compensa��o, o risco � bem menor.
Continuaram andando, lentamente, como se n�o quisessem que aquele momento
terminasse. O vento gemia entre os lari�os e os abetos.
- Venha nos ver de vez em quando, Joe Mack. Quero que voc� me conte das cidades e
das mulheres - olhou nos seus olhos, - Desde crian�a, n�o fui a lugar nenhum. N�o
sabemos de nada, por aqui. �s vezes, na Voz da Am�rica...
Surpreso, perguntou:
- Voc�s ouvem a Voz da Am�rica aqui?
- Quando temos pilhas. N�o h� for�a el�trica. Yakov est� trabalhando numa roda-
d'�gua que talvez d� para gerar energia, mas ainda falta muito.
- Eu sou a pessoa errada para falar a respeito das cidades - seus olhos encontraram
os dela e ele encolheu os ombros. - Eu n�o sa�a muito, As pessoas da minha ra�a
bebem muito quando v�o para a cidade e eu n�o queria me arriscar.
Ela sorriu, bem-humorada:
- Isto tamb�m � um problema aqui. Ouvimos falar de campanhas para diminuir o
consumo alco�lico, at� agora sem nenhum resultado.
- Eu n�o sei quase nada sobre a R�ssia.
- Meu pai diz que nada mudou, que a R�ssia de agora � a mesma dos czares. Os
russos, enquanto na��o, sempre desconfiaram dos estrangeiros. Foi um povo que
sempre viveu isolado da comunica��o de na��es. O que est� acontecendo agora no
Afeganist�o j� tinha come�ado h� muito tempo. Releia Kini, de Kipling, e tamb�m
alguns dos contos. Os russos nunca puderam viajar livremente, nem para o exterior,
nem dentro do pr�prio pa�s. Balzac, que tinha uma amante russa, teve de encontrar-
se com ela na Su��a, j� que n�o se permitiam estadas prolongadas na Fran�a.
- � uma pena. V� tanta coisa bonita aqui, mesmo escondido como estou.
- A pen�nsula Kamchtka � uma beleza: Vulc�es, picos nevados, quedas-d'�gua e
florestas lind�ssimas. Acho que seu povo gostaria de v�-la. Sei que viajam muito. -
Ela tremeu. - Est� ficando frio. Esse inverno promete.
- Voc�s nunca s�o incomodados aqui? - Encolheu os ombros.
- Estamos longe de tudo e nunca fazemos nada que possa atrair a aten��o. Wulff sabe
da nossa exist�ncia. Em troca, fica rico com as peles que ca�amos. Ainda assim, se
cri�ssemos algum problema, nos mandaria prender, ou matar. Acho que ele s� sabe que
existimos, mas n�o sabe onde e nem quer saber. Tamb�m n�o sabe quem est� aqui, ou
quantos... Sabe como � - olhou para ele outra vez -, ningu�m passa por aqui. Pode
ser que algum dia...
Continuavam andando.
- � verdade que todo mundo tem carro nos Estados Unidos?
- Algumas fam�lias t�m at� dois ou tr�s. Um carro n�o � considerado luxo, mas
necessidade. Algumas pessoas guiam quil�metros para chegar ao trabalho. Algu�m sem
carro ou que n�o saiba dirigir � considerado ave rara.
- E voc�?
- Antes de guiar eu j� sabia pilotar avi�o. Prefiro isso. Nas montanhas, onde fui
criado, n�o havia estradas, pelo menos n�o perto de onde mor�vamos. Meu av� e meu
pai n�o queriam nenhuma estrada por perto, n�o queriam que ningu�m chegasse at� l�.
Quando deixei as montanhas para ir � escola, fui morar com uns parentes escocesses.
Foi quando andei de carro pela primeira vez.
- Os �ndios t�m carro tamb�m? - Ele deu uma risada.
- A perua pick-up substituiu o cavalo. Acho que quase todo �ndio tem uma.
Ficaram alguns minutos em sil�ncio.
- A vida nos Estados Unidos muda muito depressa. Quando os carros ficaram mais
acess�veis para a popula��o, todo mundo come�ou a dirigir. Surgiram ent�o campings
para turistas, lugar onde podiam passar a noite acampados. Geralmente havia s� uma
constru��o central, com chuveiros e local para fazer a comida. Depois vieram, nos
campings, os pequenos quartos de aluguel, com �rea na frente para estacionar o
carro. Isso deu lugar aos mot�is, que j� come�am a desaparecer. Hoje a maior parte
dos americanos prefere viajar de avi�o. Antes havia um posto de gasolina em cada
esquina e quase tantos mot�is. Agora diminuem ano a ano. Acho que logo haver�
regi�es em que s� vai passar gente que mora por ali mesmo. De avi�o � muito mais
r�pido.
- Mas voc�s t�m tamb�m as estradas de ferro.
- Sim, � claro, e foram muito importantes durante quase cem anos. A cada ano por�m
v�o ficando menos importantes.
Joe Mack n�o foi adiante. Sentia uma inquieta��o que interpretou como um aviso.
Despediram-se ali, perto de onde come�avam os abrigos. Ela afastou-se, sem olhar
para tr�s. Ele ficou parado um longo momento, observando-a.
Aguardava-a uma vida sombria. Uma mulher realmente bonita, condenada a viver na
mata, num abrigo r�stico, sempre com medo de ser descoberta e do que pudesse vir
depois. Quanto a ele, nunca fora dado a lugares como festas ou reuni�es comuns a um
oficial. Ia sempre embora, mesmo sabendo o tipo de efeito que causaria. Sentia-se
melhor nas florestas ou pilotando, sozinho no c�u. Porem, pensando em Natalya,
imaginava-a num vestido de noiva, em alguns dos bailes ou jantares que tivera de
ir. Aquele seria o mundo dela, n�o este.
J� de volta, no meio da floresta de b�tulas, parou um pouco e olhou bem em torno.
N�o podia ser seguido de forma alguma. Sentia que j� era tempo de se preparar para
fugir. Embora aquele fosse o melhor lugar para enfrentar o inverno, tinha de estar
pronto para ir embora rapidamente, a qualquer momento.
A busca continuava, sem tr�guas. Lembrou-se de Alekhin, sabia que seria t�o
impiedoso quanto persistente. Algum dia encontrar-se-iam inevitavelmente. Em algum
lugar, de algum jeito, tinha certeza desse encontro.
De homem para homem, cara a cara e a morte para um deles, ou para ambos.
Sentiu um calafrio ao lembrar-se do olhar frio de Alekhin entre as p�lpebras
ca�das.

CAP�TULO 17

O coronel Zamatev sentia uma f�ria contida. Estava tamb�m amedrontado.


Estivera � noite em uma reuni�o no apartamento do camarada Shepilov onde, quase
imediatamente depois de chegar, fora cercado por pessoas curiosas a respeito do
americano que fugira.
Quem era ele afinal? O que acontecera, exatamente? Onde estava? Algumas das pessoas
presentes eram importantes. Claro que a convite de Shepilov. Havia tamb�m outras
que sairiam de l� imaginando coisas, fazendo perguntas. A torre que constru�ra t�o
solidamente comecava a apresentar rachaduras.
S� havia uma solu��o: Recapturar o americano, sem demora. Mas n�o era exatamente
isso que, desde o come�o, vinha tentando fazer? N�o tinha alertado todo mundo? N�o
tinha tentado absolutamente tudo o que podia imaginar? E, no entanto, nem uma
resposta sequer... Claro que havia a intui��o de Alekhin e aquelas indica��es em
que acreditava, mas nada de concreto.
Zamatev sentou-se e, mais uma vez, p�gina por p�gina, reviu os relat�rios de campo
que recebera. Negativos.
O homem desaparecera como um fantasma. Sem armas e sem comida naquela terra imensa,
explorada apenas parcialmente. N�o falava russo. Era imposs�vel que conhecesse a
regi�o o suficiente para sobreviver. Fora aquela hist�ria de Alekhin, bastante
vaga, n�o surgira nenhuma queixa de roubo. Se ainda est� vivo, como estaria se
alimentando?
Acorrentaram Pennington, trataram-no mal, mas era �bvio que n�o sabia de nada.
Afinal, ficara pouqu�ssimo tempo com o americano e o di�logo dos dois
cuidadosamente ouvido, fora dos mais rotineiros. Como dissera Pennington, aquele
homem n�o tinha raz�o nenhuma para confiar nele. E o informante na pris�o tampouco
sabia coisa alguma.
Enquanto tomava um ch� bem forte naquela noite, Zamatev estudava os mapas mais uma
vez. Primeiro o maior, da regi�o Transbaikal e das terras a leste. Aquela por��o da
Sib�ria, a leste do lago Baikal, entre a fronteira do rio Amur com a China e o
oceano �rtico, constitu�a um territ�rio imenso. Quanto �quele bra�o de terra, fino,
estendendo-se em dire��o ao estreito de Bering, mal o considerou. Atravess�-lo
seria imposs�vel, absolutamente imposs�vel. Montanhas, rios e a tundra. Poucos
vilarejos, quase ningu�m, muitas serras, p�ntano e o frio intenso.
Sul, rumo ao Amur; s� podia ser isso. Ou talvez em dire��o leste, ao sul de
Magadan?
Estava ainda estudando o mapa, quando algu�m bateu na porta. Sentiu-se num
instante, duro e empertigado.
Seria a KGB? Geralmente vinham � noite. Acontece que a KGB era ele mesmo, Zamatev,
ou pelo menos a GRU, que era quase a mesma coisa.
Bateram mais uma vez. Muito leve para ser a KGB. Foi at� a porta:
- Quem est� a�?
- Kyra.
Abriu-a.
- Entre! Entre! Como vai?
Seu beijo foi r�pido. Os l�bios dela estavam frios do ar da noite.
Parecia n�o ter tempo a perder. Encaminhou-se diretamente para a mesa. Colocou
sobre o mapa um relat�rio datilografado.
- A� est� tudo o que fiquei sabendo, mas acho que tenho uma pista.
Sentou-se e inclinou-se para tr�s na cadeira.
- Diga-me, ent�o - pediu Zamatev.
- Vasculhamos toda a regi�o sem achar coisa alguma. Fizemos perguntas, exatamente
relat�rios, e nada. Por�m, h� em Aldan. Um negociante de peles. Um homem chamado
Evgeny Zhikarev.
- J� ouvi esse nome antes.
- Certo. Uma vez Stegman interrogou-o.
- E a�?
- Um comerciante de peles, como disse, e um pequeno embrulho com peles rec�m-
chegadas. Ele estava obviamente nervoso e isso devido �s peles. Havia uma n�tida
diferen�a de tratamento entre as melhores. Algumas foram tratadas habilmente por
uma pessoa que conhece e gosta do of�cio. Zhikarev tamb�m percebera essa diferen�a,
embora negasse saber quem as tratara. E eu acredito.
- Acredita nele?
- �. As peles s�o trazidas da floresta, l� s�o ca�adas e depois tratadas por
ca�adores diferentes. Seria imposs�vel conhec�-los todos e esse tal � novo.
- Voc� verificou isso?
- Ele jura, e nisso eu acredito. Examinei muitas das peles expostas a venda. N�o vi
uma que tivesse sido t�o bem trabalhada quanto algumas daquelas rec�m-recebidas.
Tirou fora seu gorro de pele e sacudiu os cabelos.
- O camarada Wulff tem um lindo casaco de pele e sua mulher - que fiquei conhecendo
- tamb�m. Nada de extraordin�rio numa regi�o em que as peles s�o t�o comuns.
Supondo todavia que o camarada est� bem de vida. Acredito que haja favores
rec�procos entre ele e os negociantes.
- Portanto...?
- Sabemos que coisas assim sempre acontecem e Wulff parece muito satisfeito com sua
posi��o.
- � um bom funcion�rio e tem amigos - o olhar do coronel continuava distante,
inexpressivo. - Alguns desses amigos, em altos postos de comando, tamb�m t�m bons
casacos de pele. Nada de extraordin�rio nisso...
- N�o estou criticando ningu�m. Apenas fiz um coment�rio. Imagino, por exemplo, que
Wulff sabe muita coisa a respeito das peles e de suas origens. Acredito que, se
quisesse, poderia nos fornecer algumas informa��es.
- Sei.
Zamatev pensou um pouco a respeito. N�o tinha a menor d�vida de que Wulff recebia
algumas peles por fora. Tamb�m era prov�vel que, em troca, fizesse vista grossa
para uma ou outra coisa. N�o achava que, de uma forma ou de outra, tra�sse seu
governo. Se soubesse onde estava o americano, Wulff prend�-lo-ia ou, no m�nimo,
notificaria imediatamente seus superiores Mas e se talvez fosse um pouco
negligente? Ser� que conhecia um lugar em que o americano pudesse possivelmente
estar escondido? Wulff j� fora um homem din�mico. Naquela �poca, estava sempre nas
regi�es mais in�spitas. Agora tornara-se administrador e, pelo visto, estava bem
satisfeito assim.
- Falou com ele?
- Procurou colaborar. Foi comigo de volta � casa de Zhikarev, que j� tinha sumido.
- Sumido?
- N�o estava em casa.
- Foram l� dentro?
- Fomos. Tudo estava do mesmo jeito. S� as peles do pacote tinham sido desamarradas
e guardadas junto com as outras. Nada que demonstrasse pressa. Parecia que ele
tinha simplesmente sa�do um pouco.
- Mas voc� n�o acredita nisso, n�o?
- N�o, claro. Acho que Stegman o assustou. Acho que ele foi embora. Posso estar
enganada, mas duvido que volte. Ou, digamos, n�o me parece que tenha planos de
retornar.
- Mas pode ser que volte.
- Como precau��o, sugeri que trocassem, por alguns dias, o oficial comandante da
tropa na fronteira. Que dessem folga para aqueles guardas e colocassem outros no
lugar - sorriu. No caso de Zhikarev ter feito alguns amigos na fronteira...
- �timo! Excelente! Um amigo de Zhikarev poderia tamb�m ajudar outra pessoa, a
pedido de Zhikarev. Mandou prender Zhikarev?
- Mandei.
Zamatev foi at� a janela e olhou para fora. Aquela noite o carro tinha parado um
pouco mais longe na rua. Olhou apenas de relance. De fato, surgiu uma verdadeira
pista, ainda que fraca, mas um pouco mais palp�vel que a de Alekhin.
Se o americano era �ndio, saberia ca�ar animais de pele, preparar armadilhas. N�o
eram todos eles ca�adores? Se fosse assim, estaria juntando o dinheiro das peles
para poder pagar pela fuga. De qualquer forma, n�o podia ignorar aquela pista.
- Est� cansada?
- N�o muito. - Ele sorriu.
- V� para casa e procure descansar um pouco. Isto aqui vai estar muito agitado esta
noite.
- N�o sabemos praticamente nada ainda - Kyra preveniu-o. - � s� a hist�ria das
peles.
- E o tal de Zhikarev que desapareceu? S� foge quem � culpado.
- �s vezes ser meramente suspeito de alguma coisa j� pode ser muito perigoso -
disse ela. - Zhikarev foi interrogado antes por Stegman.
- E por outros tamb�m. Ele fez uma pausa e refletiu. - Precisamos encontr�-lo.
Wulff deve saber alguma coisa. Ele � o tipo de pessoa que sempre sabe mais do que
diz e, � claro, usa isso a seu favor. Dessa vez vai usar o que sabe em meu
benef�cio.
- Cuidado com ele, n�o se esque�a de que tem amigos influentes.
Depois de ela ter sa�do, tirou mais alguns mapas e come�ou a estud�-los. Kyra e
Stegman tinham ido at� Sinyaya e n�o acharam nada. As peles foram vendidas em
Aldan. Ser� que estariam nas proximidades? Ou porque l� encontrariam um comprador
que n�o faria perguntas indiscretas? � claro que com o lucro obtido n�o seria
dif�cil descobrir outros compradores discretos. Mas supondo-se que vivessem perto
de Aldan? Mentalmente, imaginou um c�rculo em torno da �rea e comecou a examinar os
rios. Ao se sair da cidade propriamente dita a regi�o era completamente selvagem. O
Sinyaya ficava longe de Aldan. Pensando melhor, ficava at� mais perto de Yakutsk do
que de Aldan.
Pensou nisso um pouco. Talvez um comprador em Yakutsk? � claro que numa cidade
daquele tamanho haveria, pelo menos, um comprador. Stegman saberia disso. Tinha
trabalhado em Yakutsk uns tempos, conhecia todo mundo por l�.
Quando Alekhin chegou, j� eram tr�s horas da madrugada. Chegou silenciosamente,
sentou-se e ficou ouvindo.
Acabara de chegar da taiga e, quando Zamatev contou-lhe tudo a respeito das peles,
sua express�o continuou impenetr�vel, internamente, por�m, sorria. Mas era �bvio! O
homem era �ndio. Era perfeitamente capaz de ca�ar e preparar armadilhas. Se tivesse
descoberto mesmo um bom esconderijo e uma maneira de vender as peles que ca�asse,
at� a primavera certamente teria juntado algum dinheiro. Com dinheiro no bolso,
mudaria de roupa e ent�o seria mais dif�cil ainda encontr�-lo. Nessas condi��es,
podia at� sair da floresta.
Zamatev fez um sinal negativo com a cabe�a. Makatozi, n�o. Permaneceria na
floresta. Al�m do mais, n�o falava russo. Quanto tempo para aprender? Mesmo que
fosse s� um pouco, no m�nimo alguns meses.
- Voc� n�o acredita na hist�ria das peles? - perguntou Zamatev.
- Acredito. O homem sabe ca�ar com armadilhas muito bem... Acho. Tamb�m acho que
vc� est� perdendo tempo. Alekhin acha ele. S� Alekhin.
- Eu quero ele vivo. - Alekhin encolheu os ombros.
- Sempre morreu algu�m. Pessoa gosta de lutar comigo, eu mato ent�o. Por que n�o?
- Trazendo as peles, vinha tamb�m um homem chamado Borowsky. Ele e outros. Foram
at� Aldan.
Alekhin pensou um pouco. Teriam deixado sinais pelo caminho. Borowsky n�o era o
americano, que sabia apagar t�o bem os sinais de sua passagem. Borowsky teria
deixado algum sinal. Por�m, o dif�cil seria descobrir por onde chegara at� a
cidade.
- Eu procuro - Alekhin encarou Zamatev. - Esse vai lutar. Se luta, eu mato.
- Eu n�o quero ele morto! Voc� entendeu? Eu quero ele vivo! - fez uma pausa. - Voc�
� um homem esperto, Alekhin. J� pegou muitos animais com armadilhas. Por que n�o
preparar uma armadilha para o americano? Pegue-o, traga-o para mim. Depois que ele
me disser o que quero saber ser� todo seu.
Alekhin considerou a proposta. Preparar uma armadilha? Seria divertido. Gostaria
muito de ver o americano preso numa armadilha, indefeso.
- Pode deixar.
Alekhin levantou-se, virou-se e foi embora sem olhar para tr�s. Zamatev ficou
irritado, mas precisava do Yakut. Ele era diferente, at� ent�o ningu�m lhe
escapara. O americano tamb�m n�o ia escapar.
Pediu e recebeu o dossi� de Evgeny Zhikarev. Deu uma lida r�pida. Nada de errado
com ele, a n�o ser uma suspeita de negociar peles ilicitamente. Isso era mais ou
menos comum. A maioria das peles era vendida atrav�s dos canais legais. Outras, no
entanto, de melhor qualidade, eram desviadas para o mercado negro.
Ser� que tinha mesmo fugido? Tornou a examinar o dossi�. Fora interrogado por
Stegman, e Stegman gostava de trabalhar nos p�s. Zhikarev n�o iria muito longe se
tivesse que andar. Assim, seria encontrado e diria de onde vinham as peles.
Zamatev pensou em Kyra. Era como se fosse uma extens�o dele pr�prio. Uma mulher
inteligente e esperta. E trabalhara antes no departamento de Shepilov. N�o devia
confiar demais nela, ainda n�o. Talvez nunca.
A melhor coisa era n�o contar seus planos para ningu�m. Ningu�m sabendo, voc� est�
mais seguro.
Foi mais uma vez at� a janela, pensando no imenso territ�rio l� fora. Era �bvio que
Alekhin tinha raz�o. De algum jeito. O homem estava ca�ando. Se tivesse vendido
peles, j� teria algum dinheiro. Mas como teria feito para vend�-las? Provavelmente
contratara algu�m que negociava as peles e que, ent�o, o apresentou a Zhikarev.
Urgia desvendar essa conex�o. Kyra dera o primeiro passo. Descobrira Zhikarev. �
claro que estavam sendo um pouco otimistas. Aquelas peles podiam n�o ter sido
ca�adas pelo americano. As evid�ncias eram ainda as mais t�nues. Ser� que o homem
tinha conseguido desaparecer assim completamente, de repente?
Sobravam raz�es para se preocupar. Surgiram problemas recentemente em toda aquela
regi�o, n�o apenas junto �s fronteiras de Yakutia. Houvera at� um movimento para
criar ali uma na��o independente e o Ex�rcito interviera.
Idiotas! Como pretendiam existir, situados em pleno territ�rio russo? � claro que
ainda havia dissidentes por l�, e nunca se sabia para que lado se inclinariam as
simpatias em Yakutia. A revolta - se � que poderia ser chamada assim - fora
imediatamente sufocada com rigor, por�m o sentimento persistia, escondido no fundo
do cora��o de alguns. Qualquer erro poderia reavivar esse sentimento de novo, o
que, no m�nimo, diminuiria bastante o ritmo de produ��o.
Sem d�vida havia em Yakutia pessoas que, sem nunca terem agido durante o movimento
nacionalista fracassado, estariam mesmo assim dispostas a ajudar algu�m a fugir.
Gente do seu pr�prio povo estava na pris�o.
Disse um palavr�o, com raiva. Por que isso ia acontecer justamente quando tudo
corria t�o bem? Seu futuro podia estar amea�ado. Tudo o que fizera, os anos de
trabalho, o cuidadoso cultivo das pessoas certas, tudo isso podia ser jogado fora
s� por causa desse �nico homem, o tal americano!
Voltou a examinar o mapa. Alekhin o encontraria. Nunca falhara e esta era a
primeira vez que seu envolvimento fora oficializado. Investigara, fizera perguntas
aqui e ali, Zamatev sabia disso. Estava agora completamente envolvido, tinha de
descobrir o americano.

Muitos quil�metros ao sul, um caminh�o pesado rodava atrav�s da noite. A estrada


era ruim, cheia de buracos e ondula��es no asfalto. Construir e depois conservar
estradas era dif�cil na Sib�ria por causa do solo permanentemente congelado, A
cabine do motorista estava escura, s� a fraca ilumina��o do painel destacava os
tra�os mais salientes das faces e as sombras profundas nos olhos.
- Desta vez s� posso lev�-lo at� Zavintsky - dizia o motorista - e peg�-lo de volta
daqui a seis dias.
- Est� bem assim - concordou Zhikarev -, pagarei como sempre. Metade quando me
deixar em Zavintsky e o resto quando chegarmos de volta a Aldan.
- Prefiro! Foi o mesmo que me pagou Potanin quando eu o levei at� Yakutsk.
Zhikarev pensou que fosse desmaiar. O cora��o batia descompassado, demorou um pouco
para voltar � respira��o normal.
- Potanin? Voc� levou o tenente Potanin at� Yakutsk?
- Primeira licen�a em dois anos. Precisava descansar um pouco. Aquele trabalho de
vigil�ncia na fronteira n�o � f�cil n�o! Ningu�m sabe o que esses chineses podem
estar preparando. - O motorista olhou para ele. - Est� tudo bem com voc�?
- Sim, tudo bem - Zhikarev suspirou fundo, sem esperan�a. - Quem ficou no seu
lugar?
- Tenente Baransky. Com aquele n�o d� para facilitar! � s�rio mesmo! Faz tudo que o
regulamento manda. - Olhou-o novamente. - Se est� pensando em fazer algum neg�cio
do outro lado do rio, pode ir desistindo...
Zhikarev apoiou a cabe�a contra a parede da cabine. O cora��o batendo pesado,
devagar. Tinha viajado toda aquela dist�ncia! E l� em Aldan...

CAP�TULO 18

Encolhido junto ao fogo, Joe Mack desenrolou o mapa que roubara no barrac�o da
estrada de ferro. Embora fosse muito geral, para uso rotineiro, permitia-lhe ter um
quadro daquilo que estava tentando fazer.
Seu problema seria aquele que se apresentasse no come�o de cada dia, como dizia
sempre o av�: "A cada dia basta sua pena". Cada dia devia ser encarado como uma
unidade; cada dia tinha de ser vivido cuidadosamente; se fizesse isso, na seq��ncia
dos dias, tudo daria certo.
O amanh� deveria ser como uma sombra presente no pensamento, alguma coisa
subjacente, na qual tinha de pensar e ao mesmo tempo viver o momento.
Era preciso um outro mapa, mais detalhado. Tinha de estabelecer uma rota e, ao
mesmo tempo, estar pronto a adapt�-la no caso de alguma mudan�a de planos. E ainda
defumar e secar carne para depois poder seguir rapidamente, uma vez iniciado o
percurso.
Antes de partir, precisava ter em mente todos os objetivos bem organizados, para
depois, conforme os fosse atingindo, elimin�-los um a um. Mais do que tudo, tinha
de estar preparado para sair dali a qualquer instante. N�o podia se dar ao luxo de
criar v�nculos emocionais... Mas por que estava preocupado com isso?
Sacudiu a cabe�a, procurando clarear as id�ias. N�o tinha criado v�nculos e era
muito pouco prov�vel que viesse a cri�-los. Pelo menos n�o ali, na Sib�ria.
Sabia que estavam mobilizados no seu encal�o. A busca inicial fora aleat�ria, pois
tinham certeza de sua imediata captura. Naqueles primeiros dias, vasculharam a
�nica �rea em que poderia estar. N�o o acharam porque correra muito e depois
ganhara mais tempo ainda descendo o rio. O importante por�m � que o tempo todo fora
por lugares os mais in�spitos. Portanto, agora o procurariam minuciosamente, metro
por metro, �ngulo por �ngulo.
Pensava que n�o imaginariam onde estava. Algumas d�vidas por�m o molestavam. E se
eles soubessem? Tinha de considerar tal possibilidade.
Durante o dia ca�ava, � noite secava a carne. E dividia entre as pessoas no
vilarejo, proporcionando-lhes uma vida melhor do que at� ent�o tiveram. Pelo menos
era o que elas lhe diziam. Por isso, muita gente queria que ficasse at� a
primavera.
Voltou muitas e muitas vezes � casa de Stephan Baronas e toda noite aprendia um
pouco mais de russo. J� conseguia fazer perguntas mais simples e estava come�ando a
formar algumas frases. �quela altura, isso j� lhe serviria, pois na Sib�ria havia
os mais variados grupos �tnicos, a maioria dos quais tinha sua l�ngua pr�pria e se
expressava raramente em russo, na verdade considerado uma l�ngua estrangeira. Desse
modo, seria mais f�cil entend�-los com um russo elementar.
Tinha j� mais de vinte quilos de carne seca e defumada e, com aquele frio todo, n�o
havia a menor d�vida quanto � sua conserva��o.
Seu plano era descer o rio Gonam, at� o ponto em que ele des�gua no Uchur,
atravessar este �ltimo e seguir por terra at� Maya e depois at� o Kolyma. Tratava-
se simplesmente de um esquema geral, era muito pouco prov�vel que o seguisse �
risca. Seja como for, era a rota que teria de palmilhar.
Se tivesse um pouco de sorte, parte daquela dist�ncia enorme poderia ser vencida
pelos rios, com a ajuda das correntezas. Isso por�m, al�m de ser um fator de sorte,
implicava riscos. Havia outra possibilidade a ser considerada, ainda que nem
quisesse pensar nela: Talvez, antes de conseguir escapar, tivesse de passar mais um
inverno na Sib�ria.
Bobagem se preocupar com isso agora. Importavam os problemas imediatos. Precisava
de roupa.

Precisava de roupa russa, daquela usada na Sib�ria. Seu aspecto atual chamaria
imediatamente a aten��o, o que n�o desejava. Mais cedo ou mais tarde, chegaria o
momento de misturar-se com as pessoas e ent�o deveria assemelhar-se a elas. Ali,
sua pele mais escura n�o era incomum. Os Yakut, Tungu, Gold e Buriat tinham todos a
pele t�o escura quanto a dele.
Enquanto isso, preparara um caminho, caso precisasse fugir de repente. Andando pela
floresta densa, descobrira um percurso relativamente livre de obst�culos, por onde
poderia correr. Visualizara mentalmente cada gesto, cada movimento, cada passo
necess�rio. Era pouco prov�vel que tivesse de fugir por esse caminho. No momento da
fuga, ningu�m saberia onde estava exatamente, mas se acontecesse perto do vilarejo
ou em algum outro local fora do seu esconderijo teria o roteiro claramente definido
em sua mente.
A muitos quil�metros de dist�ncia, perto da nascente do rio Ningam, preparou um
esconderijo de emerg�ncia. Era uma regi�o bem isolada, com muita ca�a. N�o matou
nenhum animal ali, pois poderia precisar deles depois. Descobriu um lugar em que
v�rias �rvores tinham tombado sobre os galhos de outras ao lado. Sob uma delas, um
pinheiro-alvar, com pesados galhos que varriam o ch�o e, mais abaixo, v�rios outros
na mesma situa��o. Outras �rvores tinham ca�do de um jeito que dificultava qualquer
aproxima��o. Tudo era um emaranhado de arbustos e �rvores ca�das.
Fez ent�o ali debaixo um esconderijo camuflado. E tamb�m ali planejou uma rota de
fuga, em caso de necessidade. A vegeta��o cerrada em cima e os pinheiros
recentemente tombados ofereciam uma perfeita cobertura. Em cantos protegidos,
juntou e armazenou lenha de um jeito tal a que parecessem ter ca�do naturalmente.
Se tivesse de fugir de repente, sem levar nada consigo, poderia se abrigar ali. Ou
tamb�m passar a primeira noite, se nada ocorresse de anormal no seu percurso.
� noite, na cabana, disse a Baronas:
- Preciso de algumas roupas. Ser� que algu�m aqui seria capaz de faz�-las?
- Qualquer um de n�s, de certa maneira - respondeu-lhe - mas n�o o que voc�
precisa. Isso teria de ser comprado. Voc� tem contatos?
Claro que sim, mas voc� � maior que as pessoas aqui, a n�o ser Peshkov; s� que ele
� mais gordo. - Fez uma pausa enquanto tomava um pouco de ch�. - Voc� precisa
entender que essas pessoas que costumam nos vender roupas em segredo ficariam
imediatamente de sobreaviso se suspeitassem que voc� est� refugiado aqui. Somos
considerados russos, mesmo que fugitivos. Voc� seria nosso inimigo.
- N�o � f�cil comprar roupa. Significa aguardar em longas filas - completou
Natalya. - Seria imposs�vel. J� � bastante dif�cil para um cidad�o comum comprar as
roupas de que precisa. Nunca h� o suficiente.
Olhou para ele pensativamente.
- Poderia lhe fazer uma camisa.
- J� ajudaria um pouco - disse Joe Mack. - Sei fazer alguma roupa, s� que pr�pria
para a floresta. Numa cidade, chamaria imediatamente a aten��o.
- Menos do que voc� imagina - contestou Baronas. Na Sib�ria, as pessoas vestem
aquilo que t�m. Sua roupa parece com as dos Ostyak. Os Ostyak s�o tamb�m ca�adores.
Junto aos rios, vivem de pesca.
- Eu lhe fa�o uma camisa - repetiu Natalya. - Tenho um pouco de pano.
Saiu da sala.
Baronas olhou-o, sorrindo levemente.
- Voc� percebe o significado disso, meu amigo? Esse tipo de material � muito
dif�cil de obter.
- � melhor ela n�o fazer - preocupou-se Joe Mack. - H� outras solu��es.
- Talvez. Voc� ainda n�o avaliou o quanto tem tido sorte. N�o foi visto ainda. Se
algu�m o visse, seria imediatamente descoberto como estrangeiro e como fugitivo. Os
espi�es est�o por toda parte, mas, no seu caso, qualquer um pode ser o espi�o.
Comunicar sua presen�a ou captur�-lo n�o seria s� um dever, mas algo lucrativo,
pois colocaria a pessoa que o fizesse em posi��o de pedir favores. Por exemplo, seu
amigo, o coronel Zamatev, conseguiria in�meros benef�cios para o delator. A camisa
- ressaltou - ajudaria muito. Daria a voc� um aspecto mais de russo.
- Preciso descobrir um jeito de conseguir roupas - afirmou Joe Mack. - Antes da
primavera quero ter arranjado cal�as e um palet�.
Baronas fez um gesto negativo com a cabe�a.
- Imposs�vel! At� aqueles que est�o do seu lado por causa da carne que voc� nos
traz ficariam verdes de inveja se o vissem com roupas que eles n�o conseguem obter.
- Ainda assim... Eu sei.
Baronas encolheu os ombros.
- N�s o ajudar�amos de todas as maneiras poss�veis. Por�m, todos precisamos de
roupa. Natalya precisa tanto quanto eu. Se j� � dif�cil para os outros, imagine
ent�o para n�s que vivemos na floresta. � quase imposs�vel. Quer dizer ent�o que
nos Estados Unidos � simples assim arranjar o que vestir.
- � s� comprar. H� muitas lojas, alfaiates tamb�m. Se a pessoa tiver dinheiro, n�o
h� problema nenhum.
- E o dinheiro?
- Quase todo mundo tem algum emprego. Claro, h� tamb�m gente pobre. Nosso mundo
est� mudando, assim como o seu. Surge a necessidade de novas especializa��es,
treinamento e aprendizado. Profiss�es que at� algum tempo atr�s garantiam um bom
n�vel de vida para um homem e sua fam�lia, hoje em dia j� n�o funcionam mais.
Quando meu pai era crian�a, um amigo seu queria ser engenheiro especialista em
maquinas a vapor. A maioria das m�quinas para colheita, naqueles dias, era movida a
vapor. Alguns anos depois passaram a ser a gasolina. E hoje tudo isso tamb�m j�
mudou. Os lavradores - continuou Joe Mack - costumavam seguir a colheita de trigo
do Texas at� o Canad�, cortando e debulhando trigo. Hoje em dia tudo isso �
mecanizado, essa m�o-de-obra deixou de ser necess�ria. Numa certa �poca isso foi
n�o s� um meio de ganhar a vida mas tamb�m uma esp�cie de aventura para um jovem
descobrindo o mundo. Tudo isso por�m acabou.
- H� muita gente que vive de pele de animais, assim como voc�?
- Peles? Pouqu�ssima gente. Existem algumas pessoas que vivem junto � natureza, mas
a maioria das peles � ca�ada por garotos juntando dinheiro para pagar os estudos.
N�o � mais uma atividade comercial importante nos Estados Unidos. Antes havia muito
castor, e os gorros feitos de suas peles estavam em voga. Depois a moda passou para
chap�us de seda e o pre�o das peles caiu drasticamente. Os ca�adores de pele
tiveram de descobrir outra maneira de ganhar a vida.
- Aqui � a mesma coisa - comentou Baronas. - A pessoa tem de se adaptar para
conseguir sobreviver.
Natalya voltou � sala, ajoelhou-se junto ao fogo e colocou alguns gravetos. Serviu-
lhes ch� e sentou-se perto da chamin�. Joe Mack prestava aten��o aos ru�dos da
noite l� fora. Se surgissem passos, perceberia logo.
- V�o me procurar - preveniu-os. - Pode ser que cheguem at� aqui. N�o quero lhes
trazer nenhum tipo de complica��o.
- Sabemos que um dia seremos descobertos. Este dia n�o chegou simplesmente porque
n�o est�o interessados. N�o fizemos nada de errado, nem pretendemos fazer.
- O que far�o se os encontrarem? - Baronas deu de ombros.
- Talvez um campo de trabalhos for�ados. Se acharem que somos algum tipo de amea�a,
um dos campos de exterm�nio, trabalho em minas de ur�nio, limpeza de submarinos
at�micos. Sempre descobrem alguma coisa.
- E voc� - perguntou Natalya -, como veio para aqui?
Ele olhou para ela.
- Era major na For�a A�rea, estava pilotando um modelo experimental. Testando-o,
por assim dizer. � claro que eles ficaram sabendo disso. Achavam que eu iria
cooperar e dizer aquilo que estavam tentando saber. Um dos avi�es que eu ia testar
estava sendo planejado para opera��es nas condi��es �rticas extremadas, portanto eu
estava me aclimatando. De repente, ao sobrevoar o mar de Bering, meu r�dio n�o
funcionou mais. Fui obrigado a descer at� o mar e ent�o me capturaram. Tudo fora
cuidadosamente planejado e concatenado antes. Os detalhes n�o t�m import�ncia.
- E se voltar aos Estados Unidos? - Encolheu os ombros.
- Saio da For�a A�rea. Podem at� entender tudo o que fiz, mas n�o poder�o aprov�-
lo. Ser� melhor que eu me torne um agente aut�nomo.
Ela o observou, pensativa. Falava t�o �s claras, com simpatia, mas havia alguma
coisa de diferente. �s vezes ficava calado por muito tempo e raramente sorria.
Sentia-se ao mesmo tempo atra�da e amedrontada por ele.
- Tenho amigos que emigraram para os Estados Unidos - disse Baronas. - Alguns em
busca de mais liberdade, outros com a esperan�a de fazer fortuna e voltar com
dinheiro. S� um deles voltou, e s� a passeio.
- Eu fui criado nas montanhas - continuou Joe Mack - num lugar remoto. A casa era
grande e ao lado corria um riacho. Fora constru�da de pedras junto � encosta da
montanha e dela contemplava-se uma paisagem magn�fica. Havia lareiras enormes e
us�vamos o mesmo tipo de lenha das florestas daqui. Havia tamb�m v�lios tapetes
ind�genas. Meu av� escoc�s constru�ra a casa com a ajuda de alguns homens que
contratara para o servi�o. N�o havia nenhuma estrada at� l�, s� umas pequenas
trilhas. Tudo o que viesse de fora era transportado em lombo de cavalo. Anos
depois, muitas vezes fui at� minha antiga casa de helic�ptero. Ali se estava em
plena natureza. Do nosso terra�o v�amos o vizinho estado de Washington e, ao norte,
estendia-se o Canad�.
- Parece tudo t�o bonito! - exclamou Natalya. - Eu gostaria de tornar a viver numa
casa de verdade, mesmo que fosse assim isolada.
- Para n�s n�o parecia remota. Era nosso mundo, a �nica coisa que mudava eram as
esta��es. N�o muito longe, ficava a casa de madeira das pessoas que trabalhavam
para n�s. Eram �ndios.
- Sioux?
- N�o, ali n�o era terra dos Sioux. Nunca fora. Havia sempre uns quatro ou seis
trabalhando para n�s, eram geralmente Kutenai ou Nez Perce. Uns tempos depois, meu
pai contratou tamb�m uns pastores bascos.
- Havia cidades por perto? Onde estavam as pessoas?
- �s vezes desc�amos pelo rio Priest, mas o mais comum era ir pelas montanhas,
sempre evitando estradas e cidades, at� chegarmos � casa de uns amigos, na regi�o
central do estado de Idaho. N�o d�vamos nenhuma import�ncia para as cidades. S�
para uma ou outra compra.
Levantou-se.
- J� est� ficando tarde, voc�s devem estar cansados.
- Deve ser muito bonito seu pa�s - comentou Natalya pensativa. - Gostaria muito de
conhec�-lo.
- Deixariam voc� sair da R�ssia?
Ela fez um sinal negativo com a cabe�a.
- Acho que seria muito dif�cil. Muito dif�cil mesmo.
Saiu para a escurid�o da noite e, por uns momentos, ficou parado junto � parede,
esperando que seus olhos se acostumassem.
O vento agitava as folhas secas, no ch�o. No frio, um galho rangeu. Percebeu alguma
coisa se mexendo na floresta e ficou quieto. Depois, avan�ando junto � parede,
abaixou-se sob a janela iluminada e, ao chegar ao ponto em que come�ava a floresta,
ficou indeciso, Peshkov? Talvez...
Prosseguiu na escurid�o, sob as �rvores, e foi subindo um morro. L� em cima,
agachou-se e esperou.
Vinha algu�m. Algu�m que o seguia.
Por que iria algu�m segui-lo � noite? Para captur�-lo ou talvez mat�-lo. N�o podia
ser outra a raz�o. Ou ent�o para entrar no esconderijo e roubar as peles e a carne.
Na terra congelada ouviu-se o som de um passo pesado. Uma sombra enorme movia-se.
Joe levantou-se, ficando em p� atr�s do homem.
- Se tentar se virar, mato-o na hora - falou firme.

CAP�TULO 19

Joe Mack mantinha sua faca encostada nos rins de Peshkov.


- Voc� me segue - disse em russo. - N�o gosto. V� embora. Mas se me seguir e me
espionar de novo, vou atr�s de voc� e o mato na hora.
Peslikov comecava a recuperar o autocontrole, que com o susto perdera
completamente.
- Ou talvez eu � que o mate - retrucou enfurecido. Joe Mack recuou um passo, a faca
pronta.
- �timo! Estamos conversados. V� embora sem olhar para tr�s. Posso mudar de id�ia
se vir seu rosto.
Saiu correndo e trope�ando. Depois de estar a alguma dist�ncia, virou-se e gritou
algumas palavras que se perderam no vento.
Vendo-o ir-se embora, Joe Mack percebeu que logo estaria na hora de deixar aquele
lugar. Um �nico inimigo j� bastava para lhe trazer complica��es e tamb�m para toda
a pequena comunidade, que t�o bem o recebera. Precisava poup�-la.
Passaram-se semanas, perdera a conta dos dias. Quanto tempo ainda at� a primavera?
Quanto at� o tempo estar de novo quente o bastante para poder viajar? N�o queria
morrer na neve. Uma pessoa congela depressa, quase instantaneamente se cair dentro
de algum riacho congelado ou mesmo se ficar um pouco �mida.
Caminhando entre as �rvores, dirigiu-se ao esconderijo, parando e ouvindo. O frio
era cortante e seu rosto estava todo coberto, menos os olhos. Quando estava seguro
na caverna, acendeu uma pequena fogueira. N�o se aqueceria, apenas sobreviveria ao
frio.
Onde estaria Zamatev e o que fazia? O mesmo frio podia tornar a busca um pouco mais
lenta, mas n�o seria suspensa. O coronel russo era impiedoso, incans�vel. Onde quer
que estivesse haveria tamb�m planos, esquemas, manobras.
E Alekhin? Onde estava ele?
Havia tamb�m aquela mulher em Aldan. Na R�ssia as mulheres trabalhavam como os
homens e podiam ser encontradas desempenhando qualquer func�o. Essa devia estar
numa posi��o hierarquicamente alta, talvez imediatamente abaixo � do pr�prio
Zamatev. Ela exigia um cuidado especial, pois as mulheres s�o mais intuitivas que
os homens. A mente funcionando num outro canal, ela poderia descobrir respostas
mais depressa que Zamatev e seus ajudantes.
O pior de tudo � que talvez estivesse se esquecendo de levar em conta alguma
alternativa importante. Pensou nisso enquanto estava deitado, enrolado na pele de
urso. Talvez fosse bom discutir o assunto com Natalya. Ela poderia prever alguma
coisa que n�o estivesse percebendo.
O que tinha a fazer era muito simples: fugir da Sib�ria e retornar aos Estados
Unidos. O problema deles, igualmente simples: impedir sua fuga e recaptur�-lo.
Seu percurso mais l�gico seria em dire��o � China, por�m tinha certeza de que n�o
conseguiria transp�-lo, pois as fronteiras estariam vigiadas atentamente. Mais cedo
ou mais tarde comecariam a achar que estava se dirigindo para o leste e, quanto
mais avan�asse naquela dire��o, mais estreita a faixa de territ�rio para seus
movimentos, mais fechado o c�rculo de busca.
Mesmo agora estariam reunidos, trocando id�ias, com um s� objetivo: Captur�-lo.
Acordou descansado e, quando saiu para ca�ar, deu com um alce jovem, em boas
condi��es. Matou-o com uma �nica flechada e, com medo de que congelasse,
rapidamente lhe tirou a pele e tamb�m os melhores peda�os de carne. Mal tinha se
afastado uns cinq�enta metros, quando os lobos come�aram a estra�alhar a carca�a.
Levou a carne para Baronas distribuir e ficou's� com um pouco para si.
Baronas ficou satisfeito.
- �timo! Isso vai acabar com certos coment�rios que andam fazendo.
- Coment�rios?
- Algumas pessoas est�o ficando nervosas. Botev est� aqui, Lermontov j� voltou de
Yakutsk. L�, ficou sabendo de certos detalhes a respeito de helic�pteros prontos
para levantarem v�o assim que o tempo melhore. As pessoas aqui est�o assustadas.
- Levantou-se. - Vou levar-lhes a carne. Enquanto estiverem comendo, n�o ter�o
tempo para coment�rios.
Depois de ele ter sa�do, Joe Mack olhou para Natalya e a bonita camisa que estava
costurando para ele.
- Terei de ir embora - disse-lhe.
Ela fez com a cabe�a um sinal afirmativo.
- Eu sei.
Moveu o rosto em sua dire��o e seus olhares se encontraram.
- Foi bom ter voc� aqui.
- �, para mim tamb�m foi bom...
Houve um longo sil�ncio, cortado por alguns gravetos que ele atirou ao fogo.
- Quando voc� estiver nos Estados Unidos, vai se lembrar de mim?
- Como poderia esquec�-la? - respondeu, admirando-se com as pr�prias palavras. -
Como � que foi dizer isso?
- � muito longe e todos estar�o contra voc�.
- N�o poderia ser de outra forma. Se russos e americanos pudessem sentar-se e
conversar sobre suas fam�lias, a lavoura, o emprego... N�o haveria mais problema
nenhum. Nossos governos � que est�o sempre se provocando, cada qual querendo levar
vantagem. A R�ssia n�o confia nem no seu povo. Constru�ram uma muralha para ficar
todo mundo dentro, n�o deixam ningu�m viajar.
- No seu pais as pessoas viajam para onde bem entendem?
- � claro que sim e na maior parte do mundo tamb�m � assim. Cada ano, milh�es de
americanos viajam pelo seu pa�s ou para o exterior e pessoas de outros pa�ses v�m
visitar os Estados Unidos. Podem ir a qualquer lugar que quiserem, menos a algumas
bases militares onde, ali�s, ningu�m quer ir mesmo. Tiram fotografias de tudo e n�o
nos importamos. Turista gosta mesmo de tirar fotografia. E os americanos fazem
exatamente a mesma coisa quando v�o para a Inglaterra, Fran�a, Jap�o... Seja l�
onde for. O engra�ado disso tudo � que a Uni�o Sovi�tica gasta milh�es tentando
roubar informa��es que poderia obter de gra�a se fosse um pa�s mais hospitaleiro.
A madeira estalava no fogo; um peda�o caiu, numa explos�o de fagulhas.
- Pode ser - continuou - que eu tenha de deix�-los de repente, sem poder me
despedir. N�o pense por isso que fui ingrato.
- Meu pai j� me preveniu quanto a isso. - Ergueu a camisa com os bra�os e a
examinou. - N�o consigo imaginar como vai sobreviver ou fugir. Examinar�o toda a
�rea e, quanto mais se aproximar da costa, mais intensa ser� a busca. Como
escapar�? Como poder� atravessar o mar?
Ele encolheu os ombros.
- Esse problema pertence ao amanh�. Penso sempre a respeito, mas procuro resolver o
dia de hoje.
, - H� muito pouca gente nessa regi�o para onde voc� vai. Se for visto, saber�o
imediatamente quem � voc�.
- Preciso me aperfei�oar na arte da invisibilidade.
- N�o quero que se v�.
Olhou para ela e permaneceu em sil�ncio. O que poderia dizer? Tinha de ir. Ficar
seria a morte. Ficar seria aceitar a derrota e ele era um Sioux. Sozinho, podia
lutar contra eles. Sempre fizera tudo sozinho. Essa era uma das raz�es por que
gostava de pilotar avi�o. S� ele l� em cima, sem depender de nada al�m de si
pr�prio.
Quando menino, perambulava pela floresta, sempre sozinho. Quando partiu para
freq�entar a escola, o �nico �ndio, estivera s�. Nunca se importara. Era o mais
forte por causa disso.
Apesar de gostar de gente por perto, com suas vozes, seus gestos e suas atividades,
nunca se integrava. Ou raramente. Era sempre um observador atento e, quando agia,
era sempre s�.
Sentia-se bem ali, naquele momento, naquele lugar tranquilo. Gostava de ter Natalya
por perto, gostava de observ�-la, gostava da maneira como suas sobrancelhas
erguiam-se ao fit�-lo, gostava de ver os movimentos de suas m�os. Era uma mulher
bonita, graciosa, encantadora, presa naquele lugar sem futuro algum.
- No que est� pensando? - ela perguntou subitamente.
- Em voc�.
- Em mim? O que de mim?
- De como voc� � bonita, de como toda essa beleza � desperdi�ada neste lugar
solit�rio. Voc� deveria estar nos Estados Unidos.
- Eu acho que gostaria. J� pensei nisso, muito antes da sua chegada. � um sonho que
tenho.
- Eu poderia voltar, por voc�.
- Para c�? Para a Uni�o Sovi�tica? Para a Sib�ria? Voc� est� louco.
- Eu voltarei, n�o me importa - retrucou calmamente, fazendo-a observ�-lo,
surpreendida. - Fui atacado. Fui tirado de meu pa�s e trazido para c� como
prisioneiro. E quem me amea�ou e me capturou n�o me enfrentou sozinho, face a face,
de homem para homem.
- Mas isso � absurdo. � claro que ele nunca o far�. As coisas n�o s�o como voc�
est� pensando.
- Ele talvez n�o tenha outra escolha.
Natalya olhou para ele espantada. Estaria louco?
- Se voc� tiver muita sorte e conseguir escapar - e as possibilidades s�o de um
para um milh�o -, � melhor ficar longe daqui.
- Eu n�o tenho seus princ�pios, nem sequer os do meu pa�s. Sou um Sioux, sou um
selvagem.
Fez um gesto largo com a m�o.
- Esta floresta? Voc� acha que ela � estranha para mim? A floresta � meu lar. Eu
sou parte dela tanto quanto o tigre, o urso e o lobo. Meu lugar � na floresta,
nunca me enganei quanto a isso. � que eu nasci fora do meu tempo. Eu devia ter
cavalgado junto com Crazy Horse. Devia ter sentado em conselho com Red Cloud ou
John Grass. Eu devia ter estado l�, comandando a guerra contra os Crow, os Shoshone
ou quem mais fosse nosso inimigo. Sempre, sempre senti isso.
Ele abriu a camisa, mostrando-lhe o t�rax.
- Est� vendo estas cicatrizes? Eu passei pela prova da Dan�a do Sol. Tiras de couro
cru foram colocadas sob minha pele e depois fiquei dependurado nelas at� que se
partissem. Antigamente, esse era um costume de meu povo. Hoje n�o fazem mais isso.
Para mim foi necess�rio. Uma vez, muito antes da batalha de Little Big Horn, que
derrotou o general Custer, um guerreiro chamado Rain-in-the-Face foi feito
prisioneiro por Tom Custer, irm�o do general. N�o somente aprisionado, mas
fisicamente derrotado por ele, que era um homem de uma for�a fora do comum. Rain-
in-the-Face nunca o perdoou. Dizem que durante o massacre arrancou o cora��o de Tom
Custer e o comeu.
- Que horror!
- Pode ser. Ele por�m nunca perdoou, nem eu perdoarei. - Permaneceu alguns minutos
em sil�ncio e ent�o completou: - O capit�o tom Custer era um homem muito corajoso.
Muito poucos receberam a Medalha de Honra, nossa mais alta condecora��o militar.
Tom Custer recebeu-a duas vezes. Comer o cora��o de outro homem? Isso � horr�vel.
Para o nosso modo de pensar. Mas para Rain-in-the-Face era a maior homenagem que
poderia prestar a um homem de coragem. Segundo sua maneira de ver, tinha de
compensar a ofensa sofrida no proprio corpo de Tom Custer. N�o sabemos se Rain-in-
the-Face foi quem o matou. Alguns at� negam esse epis�dio do cora��o, mas para
Rain-in-the-Face era a maior honra que poderia lhe demonstrar, pois comer o cora��o
de um homem ou de um animal significava que voc� queria obter um pouco de sua for�a
e coragem.
Ele encolheu os ombros.
- Eu nem sei se acredito nisso ou n�o. N�o importa. Pelo tipo de homem que eles
foram, isso podia ter acontecido. Era o tipo de coisa que Rain-in-the-Face teria
feito. No auge da batalha, teria ido buscar Tom Custer para mat�-lo enquanto este
tamb�m o estaria aguardando. Pode ter certeza. Rain-in-the-Face podia odiar Tom
Custer, mas respeitava-o tamb�m, Quanto a Custer, duvido que odiasse Rain-in-the-
Face, mas sabia que estava diante de um guerreiro.
- E voc� ainda se acha um selvagem?
- O coronel Zamatev, sentado em seu escrit�rio, deu uma ordem para que me for�assem
a descer no mar e destru�ssem meu avi�o depois, me capturassem e me levassem at�
ele. Isso n�o foi s� um golpe contra meu pa�s, mas um insulto para mim, algo
pessoal.
Sorriu, mas sem muito bom humor.
- Eu quero s� ver se ele � capaz de ficar cara a cara comigo em algum lugar isolado
na floresta ou mesmo numa rua escura, onde n�o haja mais ningu�m.
- Voc� � muito bobo. Se conseguir escapar, fique longe, em seguran�a.
- Posso parecer bobo para voc� e para mim tamb�m, de certa forma. Mas sou assim. J�
lhe disse que sou primitivo e me sinto muito bem desse jeito. Ah! Como gostaria de
t�-lo do outro lado da mesa, em alguma negocia��o diplom�tica. Nada melhor do que
isso. Infelizmente as possibilidades de isso ocorrer s�o m�nimas. Assim, se
conseguir escapar, voltarei.
Ela abanou a cabe�a, incr�dula.
- Meu pai nunca vai acreditar nisso.
- Pois eu acho que sim. N�o concordar�, mas compreender�. Natalya, eu n�o sou deste
s�culo, nem do �ltimo. Sempre soube disso.
- Voc� n�o tem �dio dos americanos brancos?
- E devia ter? Meu povo chegou ao oeste vindo da fronteira dos estados de Minnesota
e Wisconsin, conquistamos ou destru�mos tudo o que estivesse em nosso caminho.
Fomos para Dakota, Montana, Wyorning e Nebraska. Os Kiowa tinham vindo do norte e
ocupado Black Hills, expulsando aqueles que estavam ali antes deles. Depois n�s os
expulsamos. Pod�amos ter derrotado o Ex�rcito. Lutamos, algumas vezes vencemos,
outras n�o. Foi s� no fim que nos agrupamos em numerosos guerreiros, como nas
batalhas de Rosebud e Littie Big Horn. Pod�amos ter derrotado o Ex�rcito, n�o os
lavradores. Eram muitos. Mas isso tudo foi h� muito tempo. Os Estados Unidos s�o
nosso pa�s tamb�m e, se n�o aproveitamos disso ao m�ximo, � por nossa culpa. Muitos
de n�s souberam aproveitar. H� �ndios na pol�tica, nas artes, nos neg�cios, por
toda parte. Muitos t�m nomes americanos e quem ouve falar deles, sem conhec�-los,
nem sabe que s�o �ndios. Muitos dos nossos ainda preferem a vida antiga, s� que, em
vez do cavalo, montam na perua pick-up.
- Voc� � um homem estranho - observou Natalya. - Acho que nem consigo entend�-lo.
- Sou um anacronismo, mas n�o me importo. Desde menino sonho com a vida de
antigamente. Meu av� me entendia, sempre dizia que eu teria gostado de viver na
Esc�cia na �poca em que os cl�s tinham poder, antes de os senhores mudarem para
Londres e come�arem a criar ovelhas em suas terras. Ele era um homem de car�ter
forte, fora do comum.
Foi at� o local em que estava armazenada a lenha e voltou com uma bra�ada.
- Amanh� cortarei um pouco de lenha para voc�. - Continuaram conversando sobre
diversos assuntos. De repente, Joe Mack fez um coment�rio:
- Se tivesse um filho, iria cri�-lo do mesmo modo em que fui criado. O mundo mudou
e continua mudando e devemos estar preparados para enfrent�-lo. Mesmo sonhando em
cavalgar pelas plan�cies de Dakota, sou capaz de pilotar um avi�o, e ainda
contribuir na constru��o de alguns modelos mais avan�ados. � preciso saber lidar
com a realidade. A civiliza��o � simplesmente uma organiza��o desenvolvida pelo ser
humano para poder viver em paz com seus vizinhos. As leis formam a moldura dessa
estrutura e, se um homem decide ir contra a lei, n�o h� lugar para ele na
organiza��o.
Limpou da manga alguns pedacinhos de madeira.
- Esta noite vai fazer muito frio e eu ainda tenho de ir longe.
- Papai vai chegar logo em casa.
- � bom isso... Ficar aqui com voc�, sentados perto do fogo.
Ela ergueu os olhos para ele.
- � sim.
- Eu queria que isso continuasse assim para sempre.
- Eu tamb�m.
- N�o posso mais continuar aqui. V�o acabar descobrindo. - Fez uma pausa. - Tive um
certo problema com Peshkov - explicou. - � um homem amargo, vingativo, pelo menos
me parece ser assim. Preciso partir.
- � uma pena. Levantou-se mais uma vez.
- Com tempo bom, voc� seria capaz de viajar uma dist�ncia longa?
- Sim, seria.
- Conhece os Sikhote Alins?
- S� de ouvir falar. S�o montanhas, n�o s�o? Junto � costa do mar do Jap�o?
- H� um lugar l� chamado ba�a Plastun. Voc� gostaria. � bem mais quente do que
aqui.
- O que voc� est� querendo dizer?
- Fa�a com que seu pai a leve at� l�. Eu irei encontr�-los.
- Mas isso � imposs�vel! A costa est� toda vigiada! Al�m disso, h� os radares!
Qualquer avi�o que for al�m dos limites estabelecidos ser� imediatamente derrubado.
S�bito a porta se abriu, deixando entrar uma rajada de vento frio.
- Joe Mack! Voc� deve partir imediatamente! - exclamou Baronas, entrando
nervosamente. - Lermontov acabou de chegar, veio o mais depressa que p�de. N�o sei
como, mas desconfiam que voc� esteja aqui. Eles v�m vindo!
- Obrigado.
Chegando � porta, hesitou alguns segundos.
- N�o se esque�a, Natalya. Poder� demorar um ano, talvez dois, mas eu irei
encontr�-los.
Ela se levantou, fitando-o. Ele se lembraria dela naquele momento, esguia, alta e
loura, em p� junto ao fogo, estendendo-lhe a camisa.
- Eu estarei l�.

CAP�TULO 20

Ele foi r�pido para dentro da noite e da floresta. N�o perdeu tempo no esconderijo.
Pegou o pacote de carne e deixou-o junto aos p�s. Enrolou a pele de urso e colocou
o embrulho nos ombres. Ao pegar o arco e as flechas, deu uma olhada em torno. A n�o
ser pela cinza das fogueiras que acendera, n�o ficara nenhum sinal de sua presen�a.
Saiu pela noite e correu pelo percurso escuro que preparara e conhecia j� de cor.
N�o chegava a ser uma trilha, era apenas uma escolha dos espa�os vazios entre uma e
outra �rvore e que lhe permitiam ir r�pido sem medo de trope�ar. O frio era
intenso. Sua respira��o estalava, congelando ao sair-lhe dos l�bios.
Quantos graus negativos? Uns quarenta e cinco, pelo menos. Provavelmente mais.
Precisava ter todo o cuidado para, embora movendo-se com rapidez, n�o suar. O suor
podia congelar-se, deixando uma camada de gelo junto � pele.
A terra congelada endurecera e havia gelo sob seus p�s. Diminuiu a velocidade,
cuidadosamente, pois chegara a uma �rea pela qual passara antes uma �nica vez. Iria
at� o esconderijo que preparara, junto � nascente do rio Ningam.
Movia-se com todo o cuidado para n�o deixar rastos. N�o havia neve. Ao contr�rio do
que muita gente imagina, em v�rias regi�es da Sib�ria quase n�o neva. O clima �
muito seco, Atravessou um riacho com toda a atenc�o, cutucando antes o gelo �
frente para se certificar se n�o era fino demais para seu peso.
Para encontr�-lo, n�o precisariam segui-lo. Poderiam literalmente cobrir a �rea com
pessoas atr�s dele. Poderiam sobrevoar a regi�o. Tinha de afastar-se de constru��es
abandonadas, trilhas e de qualquer lugar que pudesse ser avistado com facilidade.
Parou para ver se escutava alguma coisa. Nada. Prosseguiu, mais precavido ainda. De
tempo em tempo tapava o nariz com as luvas em concha, embora j� estivesse protegido
pelo gorro de pele que vestia.
Aqui e ali encontrou um pouco de neve, quase uma geada. Oue dist�ncia j� teria
percorrido? Hesitou um pouco antes de tomar a dire��o certa. N�o podia esquecer que
aquilo que para ele formava uma grande dist�ncia um helic�ptero percorreria em
quest�o de minutos. Al�m disso, do alto, qualquer rasto seria facilmente detectado.
Continuou em frente, andando num mesmo ritmo, evitando a neve sempre que poss�vel,
metendo-se debaixo das �rvores quando podia. Ao surgirem os primeiros e fracos
raios de sol, j� estava bem avan�ado no seu percurso. Viajara j� umas sete horas,
mas duvidava que em algum momento tivesse feito mais de seis quil�metros por hora,
pois obrigava-se a andar com cuidado quando em terreno rochoso, livre de neve. Mais
uma hora e estaria pr�ximo ao esconderijo preparado.
O ronco abafado de um helic�ptero distante permaneceu v�rios minutos no seu
inconsciente at� chamar sua aten��o, Apressou-se para debaixo das �rvores,
misturando-se habilmente a um tronco. Esperou, ouvindo. O frio continuava intenso.
Bateu uma m�o na outra e tentou esfregar as pernas, para manter a circula��o.
Enquanto isso, o ru�do do motor chegava mais e mais perto. �quela dist�ncia, e no
frio, podia apenas ouvi-lo, demorando um pouco at� poder v�-lo.
Ouando o viu, voava muito baixo, mal atingia a altura do cume de montanha mais
pr�xima. Aquele tipo de helic�ptero levaria uns tr�s homens.
Voando a n�o mais de trinta a cinq�enta metros do ch�o, seguindo o mesmo riacho por
onde viera, quando chegou verticalmente at� ele foi-lhe poss�vel ver os homens,
embora n�o distinguisse as fisionomias. O ru�do se afastou um pouco, em dire��o ao
cume que Joe teria que atravessar para chegar ao esconderijo.

Esperou, mais uma vez os p�s contra o ch�o para mant�-los aquecidos. E se
aterrizassem? Quase n�o crescia mato por ali, seria descoberto num instante.
Raciocinou com clareza. Se aterrizassem, tentaria matar o piloto. Se n�o desse para
fazer pontaria nele, tinha de pegar o primeiro que aparecesse na porta do
helic�ptero.
Precisaria de tr�s flechadas bem r�pidas, e depois daria o fora. Seu acampamento
secreto n�o ficava a mais de dez quil�metros e era um bom lugar para ficar
escondido. � claro que, se mandassem tropas para uma busca exaustiva, estaria
liquidado.
Aguardou, as flechas prontas, o racioc�nio n�tido e claro.
O helic�ptero vinha voltando. Fez um c�rculo amplo e baixo sobre toda a �rea.
Teriam visto algo? Algum rasto? Movimento?
De repente, come�ou a baixar, numa eleva��o a menos de quarenta metros de
dist�ncia. N�o havia arbustos para se esconder, s� algumas pedras e umas poucas
�rvores mais baixas.
O helic�ptero foi balan�ando mais baixo at� chegar ao ch�o, as l�minas da h�lice
agitando o ar. Assim que aterrizou, a porta se abriu. Esticou o arco. Um homem com
um AK-47 p�s uma perna para fora e, quando ia se virando, Joe Mack soltou a flecha.
A pontaria era f�cil: atingiu-o direto na espinha. Enquanto o homem tombava, Joe
Mack soltou a segunda flecha.
N�o dava para ver muito bem o alvo: Um homem dentro do helic�ptero, talvez o
piloto. Ao perceber, numa fra��o de segundo, a luz brilhando num cano de rev�lver,
atirou-se ao ch�o. O homem no helic�ptero come�ou a atirar. As balas chicoteavam os
troncos de �rvore. Foi se arrastando at� ficar em p� e ent�o correu em dire��o ao
helic�ptero.
L� dentro teriam um r�dio! Quando estava quase junto � traseira, soltou outra
flecha atrav�s da porta, completamente aberta.
L� dentro ouvia-se algu�m gritando. O homem ca�do continuava im�vel.
A h�lice come�ou a girar mais depressa e o helic�ptero foi se erguendo do solo.
Aguardou, observando. Havia alguma coisa errada. O piloto estava ferido ou ent�o...
O aparelho ganhou uma pequena altitude, fez um c�rculo amplo e logo deu uma guinada
aguda, antes de se estatelar contra o cimo de uma montanha a menos de mil metros de
dist�ncia. Um barulho de metal se partindo contra as �rvores; uma chama alta
ergueu-se da explos�o, e depois tudo ficou em sil�ncio.
Joe Mack correu em dire��o ao homem que alvejara na espinha. J� estava morto.
Puxou-o e apressadamente revirou-lhe os bolsos. F�sforos e uma faca de cintura.
Empurrou o corpo para um barranco e espalhou folhagens por cima. N�o pegou o AK-47
porque estava sem muni��o. Escondeu-o tamb�m para que n�o vissem o reflexo l� de
cima. Feito isso, se foi.
Ia correndo, corria com todas as for�as.
Seu esconderijo na nascente do Ningam estava a menos de dez quil�metros. Quando
chegasse l�, seria quase noite. Ser� que o piloto chegara a pedir ajuda pelo r�dio?
Enquanto corria, ia pensando. Se o piloto tivesse enviado alguma mensagem,
vasculhariam a �rea toda e ele n�o teria a menor chance. Do contr�rio, achariam que
o helic�ptero ca�ra por puro acidente. As flechas estariam queimadas e, a n�o ser
que fizessem uma investiga��o muito minuciosa, n�o descobririam as pontas, que com
a explos�o teriam ficado no solo.
Depois de examinar atentamente a �rea, cruzou o topo da montanha e foi descendo, do
outro lado, por um curso de �gua seco. Estava bem escondido pelas �rvores e, num
passo acelerado e ritmado, dirigia-se para o esconderijo. A noite estava quase ali
e ainda n�o chegara. At� ent�o, nenhum ru�do de avi�es, embora as montanhas em
volta abafassem um pouco os sons.
Diminuiu um pouco a marcha e foi escolhendo o caminho. A floresta era t�o fechada
que ficava dif�cil encontrar as marcas que deixara antes para orient�-lo.
O cora��o s� faltava estourar de t�o forte que batia, quando finalmente Joe desceu
a colina entre as �rvores e chegou � sua toca, arrastando-se para dentro.
N�o fora poss�vel ver o que acontecera dentro do helic�ptero. Sabia que as flechas
foram certeiras. Era evidente que feriram um deles, talvez dois - no espa�o
apertado do pequeno aparelho isso n�o era completamente imposs�vel. A possibilidade
de terem escapado sem ferimentos era muito pequena.
O piloto, pelo menos, foi gravemente ferido; se n�o morreu, provavelmente perdeu os
sentidos enquanto pilotava.
E os que viriam investigar, quanto saberiam? Ser� que o piloto chegou a transmitir
alguma informa��o de que tinham sido atacados? Pelo que Joe p�de ver, n�o parecia
estar usando o r�dio. Mas n�o tinha certeza.

E agora, o que fazer? Ficar ali e esperar n�o ser encontrado? Ou tentar fugir,
embora correndo o risco de ser visto em espa�o aberto?
Ao norte, em Chagda, havia um aeroporto. Talvez um importante campo de aterrizagem.
A busca provavelmente se localizaria l�, mas seu conhecimento da regi�o era
bastante vago. Baronas mencionara Chagda.
Havia tamb�m um vilarejo, ou cidade, chamado Algama a menos de quarenta quil�metros
dali onde estava. Pelo que conseguia se lembrar, ficava mais ou menos a leste.
Ficar quieto, esperar, isso seria o mais dif�cil, se bem que para um �ndio a
paci�ncia era algo intr�nseco � luta. Ali perto n�o havia nenhum outro esconderijo
que se equiparasse ao seu.
O melhor seria ficar ali mesmo, mais seguro do que viajar, quando a regi�o, por
causa da queda do helic�ptero, estaria sendo varrida por avi�es.
O frio era intenso. Arriscou acender uma fogueira pequena. Preparou um pouco de ch�
que Baronas lhe dera e adormeceu, Horas depois foi acordado pelo zumbido de um
avi�o que sobrevoava o esconderijo.
Enrolado em sua pele de urso, ficou quieto, aguardando os acontecimentos. Era o
zumbido de um avi�o pequeno, n�o um helic�ptero. Teriam descoberto o desastre? Com
o fogo e a explos�o n�o devia ter sobrado muita coisa que desse na vista. Era o que
podia deduzir do pouco que de fato presenciara, j� que o helic�ptero, ap�s
incendiar-se, ca�ra na floresta.
Durante todo o dia, com intervalos, ouviu o barulho dos avi�es de busca. Durante
tr�s dias, tremendo sob o frio cortante, permaneceu escondido. Finalmente, quando
v�rias horas se passaram sem que ouvisse sons de aeronaves, deixou o esconderijo,
embrulhando toda a carne que ainda restava e seguiu em dire��o ao rio. O Ningam
desaguava no Gonam e este, uns cem quil�metros adiante, se encontrava com o Uchur.
Ali havia um vilarejo. Tudo isso soubera atrav�s das conversas com Baronas e Botev.
O rio lhe serviria apenas como orienta��o, pois decerto j� estava congelado.
Confiar na camada de gelo sobre a corrente n�o fazia parte do seu plano. Nevara a
noite anterior e o gelo do rio estaria coberto de neve. Geralmente o gelo sob a
neve derrete-se, deixando lugares em que a camada de gelo pode facilmente se
quebrar.
Joe Mack, correndo n�o muito depressa, foi seguindo uma trilha quase apagada ao
longo do rio, aproveitando aquele percurso relativamente f�cil. Horas e horas se
passaram sem que visse ou ouvisse algu�m. Em determinado momento, mais � frente e
do outro lado do rio, ouviu c�es latindo. N�o por sua causa, j� que estavam muito
longe.
O Uchur devia estar em algum ponto � sua frente. Com um pouco de sorte poderia
alcan��-lo na noite seguinte. Era um rio bastante largo, a travessia seria dif�cil.
Passou a noite numa pequena caverna, aquecido por uma fogueira. Dormiu mal, o frio
o acordava a todo instante. Durante todo o dia, tivera o cuidado de manter o nariz
e as orelhas bem cobertos, pois sabia do risco de se congelarem. At� aquele momento
tivera uma sorte fora do comum.
Estava brutalmente cansado, tinha a sensa��o de que nunca na vida estivera
aquecido. � sua frente elevava-se uma montanha. Trope�ando, gelado, procurava
manter-se a leste dela. Bem ali no sop� o Gonam desaguava no Uchur.
Quando chegou finalmente � margem do rio, era mais de meia-noite. Mal equilibrado,
quase congelando, ali observando o gelo. Ser� que cobria toda a extens�o, de uma a
outra margem? Era imposs�vel saber. Foi caminhando pela ribanceira, por uma
estradinha velha. Um pouco adiante, podia ver abrigos constru�dos por pescadores
que pescavam atrav�s de buracos cortados no gelo. Havia luz em alguns deles.
A estrada que percorria desmanchava-se numa trilha e esta descia at� o gelo. V�rias
pessoas tinham andado por ali. Pegando uma vara, foi tateando � sua frente. Ia
seguindo trilhas que conseguiu perceber na fina camada de neve sobre o gelo. Muito
tempo depois, escalou, arrastando-se, uma ribanceira ingreme, escorregou e caiu
duas vezes antes de ter sucesso. Exausto, congelado, olhou em torno, os olhos
piscando vagarosamente, procurando ver alguma coisa, qualquer coisa que pudesse
servirlhe de abrigo.
Comecou a andar, escorregou e caiu. Sentia que devia ficar ali no ch�o, desistir de
tudo...
- Levante-se e saia j� da� - era uma voz de mulher, falando russo, dura, en�rgica.
- Eu j� disse para voc� se levantar, sen�o vai morrer.
Conseguiu ajoelhar-se e depois, com tremendo esfor�o, ficou em p�.
- Venha para dentro, seu louco, antes que congele de uma vez!
Empurrou-o para dentro de um barrac�o achatado e feio, entre as �rvores. Ele quase
caiu l� dentro, em seguida endireitou-se. Dentro estava quente, quase fazia calor.
Era um barrac�o bem abrigado, com uma estufa, o brilho vermelho das brasas, uma
mesa, duas cadeiras, uma cama de armar e um banco largo. Na parede algumas
prateleiras e roupas dependuradas em ganchos.
Ele voltou o rosto em sua dire��o e se observaram. Era uma mulher grande, de ombros
largos e estranhos olhos azuis.
- �, sou mesmo uma mulher - disse-lhe -, n�o precisa ficar me encarando desse
jeito. Tamb�m sou casada e n�o estou procurando homem, se � isso que voc� est�
achando.
- N�o estou achando nada, n�o - respondeu simplesmente -, s� estou com frio e com
fome.
- D� para perceber. Sente-se. - Ajudou-o com seu pacote.
- O que � que tem a� dentro?
- Carne - respondeu-lhe.
- Voc� podia repartir um pouco comigo. O que tenho aqui � muito pouco, meu marido
n�o est� e n�o tenho dinheiro.
- Sirva-se - retrucou.
- Tem ch� no fogo. - Ele remexia o pacote. Vou preparar um pouco para n�s dois.
- Pegue um pouco para voc� - disse ele. - Vou embora assim que o dia raiar. Fique
com um pouco. Se voc� estiver sem carne, ajudar�.
Ela agradeceu e depois, ignorando-o, preparou a comida. Conforme foi se aquecendo,
come�ou a examinar o barrac�o.
O lugar estava arrumado e em ordem mas era tudo muito velho. Eram evidentes os
sinais de extrema pobreza.
Ela estendeu-lhe uma x�cara grossa, com ch� quente.
- Beba isto - ordenou. - Voc� est� acabado, hein?
- Obrigado - respondeu.
Ela virou-se para observar-lhe a fisionomia.
- O que � voc�? - perguntou. - Quem � voc�?
- Um viajante - respondeu - que n�o quer ter nada a ver com as autoridades. Eles
nem v�o agradecer-lhe por ter me dado comida.
- Eles que se danem - exclamou, amarga. - Levaram meu homem embora deixando-me
sozinha, sem nada.
Ela observou-o melhor.
- O que voc� �? Voc� � russo, �?
- Minha m�e era Ostyak - mentiu.
- � gente boa. Uma �poca, eu morei em Baltshara. Havia muitos deles que viviam nas
florestas por l�. N�o incomodavam ningu�m, se n�o fossem incomodados. - Encarou-o.
- Voc� est� fugindo de alguma coisa.
- Fugindo n�o - retrucou levemente -, apenas evitando. Ela deu uma risada, bem-
humorada. Depois colocou a carne num prato.
- Coma isso. Est� um pouquinho mais quente?
- Estou sim, obrigado. Voc� � uma boa mulher.
- Sou e continuarei sendo - afirmou, brusca. - Guarde isso muito bem.
Comeram em sil�ncio. Ela encheu-lhe mais uma vez a x�cara.
- Para onde est� indo?
Encolheu os ombros.
- Embora.
Ela reparou no arco e na aljava com as flechas.
- Nunca vi nada assim, desde crian�a.
- Costuma vir algu�m aqui?
- Aqui! - fez uma careta. - Nunca. - Mostrou o banco.
- Durma ali e, quando raiar o dia, suma.
- Est� certo - concordou Joe.
Ela tinha pegado pouca carne. Ele deixou mais, uns cinco quilos.
- Pegue mais isso. Voc� � uma excelente mulher e repartiu comigo o que tem.
Dormiu bem, sem interrup��es e, quando chegou a aurora e seus olhos se abriram, ela
j� estava junto ao fogo.
- Aqui tem ch�. Beba e v� embora.
Ela ficou em p�, parada, olhando para ele.
- Tive tempo para pensar e j� sei quem voc� �, embora com algumas pessoas voc�
consiga passar por um Ostyak.
Ele comeu, tomou o ch�, p�s o casaco e ajeitou o pacote nas costas.
- Voc� � uma boa mulher - repetiu. - Rezarei por voce e pelos seus.
- Rezar, �? Faz muito tempo que n�o ou�o falar disso. Desde que era menina, no
lugar onde eu morava havia igreja e padres. Bem, se voc� quiser, reze. Uma reza
sempre ajuda. Agora suma e, se disser que me viu, direi que est� mentindo.
- � claro - sorriu de repente. - Mas n�o se esque�a de que h� um homem, caminhando
na dist�ncia, que a guardar� na mem�ria.
Saiu do barrac�o e andou r�pido, tomando uma trilha pela floresta. Ao olhar para
tr�s, viu-a em p�, acompanhando-o com o olhar. Ergueu uma m�o para despedir-se, mas
ela virou-se e entrou em seu barrac�o, seu aquecido barrac�o.
CAP�TULO 21

O coronel Zamatev estendeu o mapa sobre a mesa.


- Mostre-me - pediu.
Kyra Lebedev p�s o dedo num ponto determinado.
- Nessa �rea. Temos um relat�rio. Foi visto l�, nesse lugar. Com uma mulher.
- Uma mulher?
- Se formos r�pidos - prosseguiu Kyra -, podemos peg�-lo. Nosso informante disse
que ele n�o mora junto com os outros, mas num lugar ali perto. Ele n�o tem certeza,
mas acha que pode ser quem procuramos.
- E esse informante? Podemos confiar nele? - Ela deu de ombros.
- Quando for do seu interesse, sim. J� entrou em contato conosco antes, mas acho
que isso � s� quando ele pr�prio tem alguma desaven�a com esse tal grupo de
pessoas.
- H� muitos assim. Contudo, se formos r�pidos, n�s...
- Vai perder seu tempo.
Era a primeira vez que Alekhin dizia alguma coisa. Kyra se achava importante e ele
n�o gostava de mulheres assim. Realmente n�o gostava da tal Lebedev.
- Como assim? - inquiriu Zamatev.
- Se alguma vez esteve l�, n�o est� mais. Sumiu.
- Como � que voc� tem tanta certeza? - irritou-se Zamatev.
Alekhin levantou-se, aproximando-se da mesa. Apontou com o dedo grosso uma cadeia
de montanhas perto da nascente do Ningam.
- O que aconteceu a�?
- Nada, que eu saiba - respondeu Zamatev. - Ah! Sim! Perdemos um de nossos
helic�pteros de busca. Bateu contra a montanha ou algo assim. Tenho o relat�rio.
Apontou uma caixa sobre a mesa.
- E isso a�?
Alekhin fitou-o, as grossas sobrancelhas franzidas.
- Fui eu que achei.
- E tamb�m os corpos dos aviadores. E ent�o?
- De dois aviadores.
- Dois?
Olhou em dire��o ao relat�rio.
- Ainda n�o o estudei em detalhe, mas naquele helic�ptero havia tr�s homens.
- E somente dois corpos. Irreconhec�veis de t�o queimados.
- No helic�ptero havia tr�s homens - Zamatev respondeu, com paci�ncia. - Tr�s. O
terceiro corpo ser� encontrado a qualquer momento.
- Eu o encontrei - disse, incisivo, Alekhin.
- Bem... E da�?
- Encontrei-o a seis quil�metros do local do acidente. Tinha sido coberto com
arbustos e galhos. Estava morto. Algu�m o tinha matado.
Zamatev sentou-se e ficou observando Alekhin atentamente. Kyra come�ou a falar, mas
num gesto, ele a fez calar.
- O que � que voc� est� dizendo? Foi o americano, o �ndio. - Indicou o mapa. - O
helic�ptero aterrizou aqui. Um homem saiu para fora. Foi morto, atingido nas costas
por uma flecha.
- Uma flecha?
De repente, Zamatev come�ou a ficar impaciente.
- Que hist�ria � essa. Morto com uma flechada?
- Acertou na espinha. Ent�o o piloto atirou. O �ndio correu e disparou outra flecha
pela porta aberta, acho. O piloto foi atingido. Levantou v�o bateu na montanha e
caiu na floresta.
Zamatev ficou em p�, apoiando os dedos dobrados sobre o mapa.
- Bem, deixe-me entender tudo isso melhor. Voc� est� dizendo que o �ndio derrubou
um de nossos helic�pteros com um arco e flecha? Os homens foram ao local do
acidente depois que eu o descobri. Examinaram tudo, recolheram alguns ossos
queimados e algumas outras coisas. Depois foram-se embora.
- Mas eu n�o fui. Fiquei tr�s dias. Olhei bem para ver se entendia o que tinha
acontecido. Revirei a terra queimada e as folhas. Encontrei duas pontas de flecha.
- Uma delas j� fora encontrada pelos homens. Acharam que n�o era nada de
importante, s� uma ponta de flecha antiga.
- Acontece que n�o era antiga. E nunca na Sib�ria foram feitas desse tipo. Achei
duas, n�o uma. Acho que o �ndio atirou duas flechas pela porta do helic�ptero.
O coronel Zamatev tornou a sentar-se. Alekhin n�o era nenhum bobo, sabia reconhecer
muito bem os sinais deixados na natureza por animais e pelo homem. E afirmara que o
terceiro corpo fora encontrado a uma certa dist�ncia do local do acidente.
- Voc� tem certeza de que o terceiro homem foi morto assim, como disse?
- Tenho. Havia sinais no local onde aterrizou o helic�ptero. Marcas no ch�o do
homem que saiu do helic�ptero. Saiu de costas, com um rev�lver. Estava se virando
quando foi atingido pela flecha que, certeira, atravessou-lhe fundo a espinha. E
acho que era um homem forte. De dentro do helic�ptero algu�m atirou. Vi os sinais
das balas nas �rvores, mas o �ndio j� tinha corrido. Descobri o caminho que fez.
Foi r�pido, chegou at� a traseira do helic�ptero e de l� atirou mais duas vezes. A
m�quina decolou mas com defeito. Uma pe�a junto � roda, sei l� o nome, estava
enterrada na terra. O �ndio pensou que o piloto talvez tivesse pedido ajuda. Cobriu
o corpo e foi-se embora depressa.
- E agora, onde est�?
Alekhin encolheu os ombros.
- Acho que fugiu para longe e bem r�pido. - Fez uma pausa. - Talvez se voc�
alertasse seus soldados entre Oymyakon e Magadan.
- Voc� percebe o que est� dizendo, Alekhin? Isso � uma �rea imensa! Imposs�vel!
Alekhin fez um gesto incisivo.
- Se quer encontr�-lo, vigie essa regi�o. � por a� que ele vai tentar fugir; se n�o
agora, mais tarde. Conhe�o ele. Sinto aqui dentro - tocou o cora��o. - Esse homem
n�o pensa em tempo. N�o pensa em dist�ncia. A floresta � sua pr�pria casa.
- Esse homem - retrucou Zamatev pacientemente - � aquilo que os americanos chamam
de "um oficial e um cavalheiro". Formou-se pela universidade com dintin��o. � um
piloto altamente capacitado, com um conhecimento consider�vel sobre mec�nica e
ci�ncia de v�o. Ele �...
- Ele � um �ndio. Eu o percebo claramente. Tudo o que voc� diz � verdade, mas aqui
- Alekhin apontou novamente o cora��o - ele � �ndio. Foi para a floresta, que � seu
lugar natural. N�o procure por ele nas cidades. A pr�pria floresta lhe fornecer�
tudo o que precisar.
- L� ele vai morrer congelado - objetou Kyra.
- J� est� l� h� algum tempo. Sobreviveu,
Alekhin esticou-se.
- Eu vou encontr�-lo. Vou mat�-lo.
- Voc� n�o vai mat�-lo! Isto � uma ordem! Quero-o aqui de volta! Quero-o na pris�o.
Tem informa��es de que precisamos e you obt�-las. Se voc� quiser pode deix�-lo
aleijado ou cego, mas tem de poder falar.
Quando a porta se fechou atr�s de Alekhin, Zamatev voltou-se para Kyra.
- Voc� consegue acreditar? Um helic�ptero destru�do por aquele �ndio?
- O relat�rio sobre o desastre j� foi entregue - Kyra falou com cuidado. - J� foi
para outro departamento.
Zamatev apertou os l�bios, virando-se para olhar pela janela. Como era mesmo aquele
antigo ditado? "Deixe dormirem os cachorros que dormem." Bem, por que n�o? Melhor
isso do que os intermin�veis relat�rios e a enxurrada de perguntas que o assolariam
se a informa��o de Alekhin fosse acrescentada ao relat�rio j� entregue. Al�m do
helic�ptero, teria de responder pela morte de tr�s homens. Seria mais um problema
somado ao que ele j� tinha de sobra naquele momento.
- Voc� consegue acreditar? Oymyakon at� Magadan? � imposs�vel.
- Alekhin acha que ele est� se dirigindo para norte e leste.
- Absurdo! � imposs�vel!
Fez uma pausa, soltou um palavr�o. Quem podia pensar que um homem conseguiria fugir
daquela pris�o e depois desaparecer? Mesmo agora, ser� que sabiam mesmo de alguma
coisa? Dirigiu-se a ela:
- Est� pronta para outra viagem? Quero que leve Stegman e quem mais achar
necess�rio e descubra o tal vilarejo. O lugar em que ele esteve, segundo o
relat�rio. Quero que descubra a mulher - se � que existe - e a interrogue. Quero
saber a respeito de Joe Makatozi.
- Terei de ficar algum tempo fora. - Fitou-a.
- Bem, n�o precisa partir esta noite. Segunda-feira. Afinal - sugeriu - voc�
precisa de algum tempo para se preparar.
- � claro. Partirei na segunda-feira ent�o.
Levantou-se, apanhou as luvas e a bolsa.
- E o carro? Da �ltima vez que sa� foi me seguindo.
- Isso � o pessoal de Shepilov. Tamb�m est�o me seguindo. N�o me importo. Assim n�o
ficar�o imaginando coisas.
Depois de ela ter sa�do, foi de novo at� a janela e observou o carro seguindo-a.
Deu uma risadinha. Ela daria conta deles. Era bastante esperta, bastante dura para
eles.
De volta � mesa, observou o mapa. De Oymyakon at� Magadan? Imposs�vel! Franziu a
testa, colocou o dedo em Nel'kan. Suvarov estava ali, cuidando de outros assuntos.
Que ele ent�o fosse �til para alguma coisa.
Nel'kan ficava mais perto. L� havia alguns homens de confian�a e, se descessem do
norte, poderiam talvez interceptar o americano.
Alekhin podia ter raz�o. Talvez estivessem perdendo tempo em procur�-lo nas cidades
e vilarejos, em vigiar as fronteiras. Se o homem tinha voltado a viver como �ndio,
estaria mesmo na floresta. Claro que era frio, mas os abor�genes tinham vivido l�
por milhares de anos. Por que n�o agora?
Ent�o? Qual era o quadro? Kyra descobriria o vilarejo onde, segundo as informa��es,
havia uma mulher. Suvarov podia entrar em ac�o saindo de Nel'kan. E Alekhin estava
buscando a trilha do �ndio a partir do local do acidente com o helic�ptero.
Imagine s�! Tr�s homens perdidos e um helic�ptero! Kyra, como sempre, estava certa,
melhor deixar o relat�rio do jeito que estava. Para que criar mais problemas ainda?
� claro que havia tamb�m Shepilov, mas que ele se danasse!

Evgeny Zhikarev ficara s�, no meio da noite, vendo o caminh�o desaparecer pela
estrada esburacada.
Potanin estava de licenca e tinha ido para Yakutsk. No seu lugar, um certo tenente
Baransky, inflex�vel, pelo visto. Em p� na escurid�o, os p�s aleijados, pensou no
que deveria fazer.
Nem pensar em voltar para a loja. Seria interrogado, j� passara por isso antes.
Sentia-se aflito com a fuga adiada enquanto um monte de dinheiro o aguardava em
Hong Kong. Que situa��o!
Mas n�o adiantava pensar nisso agora. Tentar passar por Baransky seria arruinar
tudo o que planejara. Baransky, se n�o o prendesse, o denunciaria se suspeitasse
dos seus neg�cios al�m da fronteira. Seria preso, interrogado...
N�o, fora de quest�o. Ent�o, que fazer? Bem, era um comerciante de peles e de
outras coisinhas e conhecia outros do mesmo of�cio. Por causa dos neg�cios, era
muito importante que se conhecessem. Ent�o, que fazer?
Precisava de tempo. Duas semanas, talvez um m�s at� que Potanin estivesse de volta
na fronteira. Voltaria sem um tost�o, como todo soldado depois de uma licen�a. Sem
dinheiro e pronto pra fazer neg�cios. Portanto, era s� quest�o de esperar. Mas
onde?
Khabarovsk? Tinha um primo l�, com um pequeno neg�cio de peles e tamb�m um emprego
no governo. Na costa tamb�m havia outro primo, num lugar chamado ba�a Olga. L�
estaria bem mais seguro, mas ficava mais longe, quase o dobro de dist�ncia.
Mancando e se apoiando numa bengala, tomou uma rua que o levaria a um local
conhecido. A rua estava vazia. Que diria se viesse uma patrulha?
Ouviu atr�s de si um emaranhado de vozes. Apressou-se e se escondeu num v�o entre
dois edif�cios.
Era um bando de desordeiros. Se o encontrassem, o roubariam e o surrariam. Podiam
at� mat�-lo. Esses bandos tornaram-se comuns na R�ssia. Havia pouco tempo
espancaram um engenheiro at� a morte s� para roubar seu jeans. Felizmente n�o o
viram. Seguiram adiante sem rumo certo, gritando palavr�es.
Quando chegou onde queria, v�rios caminh�es se preparavam para partir. Como
conhecia diversos motoristas, logo conseguiu uma carona at� Khabarovsk.
O motorista gostava de uma boa prosa. Zhikarev teria preferido dormir, mas sabia
que poucas fontes de informe��es eram t�o boas quanto esses motoristas, sempre
circulando de um lugar para outro, contando e ouvindo not�cias.
- Como est�o as coisas no litoral?
- Tudo em paz. Dizem que a pesca anda boa. Fez com a cabe�a um gesto para tr�s.
- L� para tr�s tem problema. Um prisioneiro escapou e parece que � algu�m
importante. Est�o fazendo todo o tipo de perguntas. Eu n�o digo nada. Eles que
descubram, se forem capazes. Khabarovsk est� agitada. Cheia de soldados.
Construtores tamb�m. Sempre muitas obras em Khab.
Continuou falando, num tom mon�tono, um pouco de tudo. Zhikarev ouvia, prestando
parcialmente aten��o. Queria mesmo era descansar um pouco.
- Desta vez vou seguir adiante. S� paro em Khab para p�r gasolina. Depois you para
o litoral.
Os olhos de Zhikarev abriram-se imediatamente.
- Para o litoral? Tenho um primo na ba�a Olga. Estava pensando...
- Pode ficar. Eu o levo at� l�.
- Gostaria muito, muito mesmo.
- Vai custar... - O motorista olhou bem para ele, imaginando quanto valeria o
homenzinho. N�o muito, pelo jeito. Talvez fosse melhor deix�-lo nas montanhas e...
N�o, n�o. Ele tinha contatos. Se n�o aparecesse onde estava sendo esperado,
ficariam sabendo. Talvez at� a KGB ou, com certeza, sua pr�pria gente mesmo. Esse
mexia com peles, e comerciantes e ca�adores de peles sempre trabalham juntos. Se
arrumar encrenca com eles, seu caminh�o termina em algum barranco e voc� com a
cabe�a esmagada. N�o com ele; ainda tinha pela frente muitas estradas escuras e
solit�rias para percorrer.
- A �ltima vez que viajei para o litoral - disse - vi um tigre. Dos grandes. Bem no
meio da estrada. Grande que nem uma vaca. Pulou fora quando o caminh�o chegou
perto. Muito bonito l�, depois dos Sikhote Alins. Gostaria de morar l� quando me
aposentar, se � que chegar� esse dia.
O caminh�o inclinou-se numa curva larga. N�o havia tr�fego nenhum pela estrada.
- Minha garota n�o quer. Gosta de viver na cidade. Quer ir morar em Khab.
Movimento, diz ela.
O motorista continuou, agora ironizando:
- Movimento! Se ela dirigisse um pouco este caminh�o, a� � que ia ver o que �
movimento. Ontem � noite, por exemplo. A KGB por todo o lado. Estavam se preparando
para vasculhar algum lugar na floresta. Havia pelo menos uns cinq�enta deles, al�m
dos soldados!
Zhikarev ia ouvindo, meio adormecido. Pelo visto, resolvera ir embora no momento
exato. Havia todas aquelas peles na loja, mas deixara um documento consignando-as
todas para Wulff. Deu uma risadinha. Wulff que depois explicasse tudo.
- Onde exatamente voc� quer ir?
- Olga - respondeu. - Meu primo mora l�.
- Ah! Claro. Era um lugarejo de nada. Estive l� uma vez. S� uma alf�ndega e alguns
barrac�es. Agora melhorou muito... Comida do mar! A melhor que h� por ali. Peixe
pescado fresco direto da ba�a ou do mar do Jap�o! A ba�a Tetyukhe � logo ali na
costa. Conhe�o bem. A ba�a Plastun tamb�m. Todo mundo come bem por l�! Peixe de
todos os tipos, pato, ganso, veado, o que voc� quiser tem. Essa minha garota gosta
de luzes brilhantes, de dan�ar! Eu n�o, gosto mesmo � de comer bem! E tamb�m de
pescar. Tenho de procurar convenc�-la a vir comigo.
Zhikarev adormeceu, desconfort�vel, balan�ando na estrada cheia de buracos e
ouvindo a voz do motorista. Estava quente na cabine e o motorista cobrira o assento
com pele de carneiro.
De repente, muito tempo depois, o caminh�o parou na sombra de umas �rvores. O
motorista cutucou Zhikarev no ombro.
- V� para l�, debaixo das �rvores. Vai estar frio, mas espere l�.
Zhikarev se recomp�s, abotoou o palet� pesado. Pegou a bengala e, desajeitado, saiu
da cabine.
- Pego voc� na volta de Khab. - O motorista hesitou um pouco, depois completou: -
Se fosse voc�, ficava escondido. Est�o atr�s de um homem como voc�, com defeito nos
p�s e que podia estar usando bengala.
O caminh�o se distanciou, criando um facho de luz � sua frente. Quanto tempo
viajara? Parecia que h� dias e noites j�. Ent�o estavam procurando por ele. Bom,
esperava isso mesmo. O motorista parecia um sujeito honesto. Se pelo menos
conseguisse chegar ao litoral... Ningu�m sabia da exist�ncia desse primo ou, pelo
menos, ele achava que n�o. Podia ficar l� at� as coisas se acalmarem um pouco e
ent�o voltar para a fronteira e atravess�-la para Hong Kong.
O frio era de matar! Com ajuda da bengala, cruzou mancando a estrada e foi para
debaixo das �rvores.

CAP�TULO 22

Peshkov encontrou-se com eles em Aldan. O coronel Zamatev antipatizou com ele de
imediato, mas isso fazia parte naqueles assuntos. Encontravam-se muitos tipos assim
e era bom ter todo o cuidado com eles. Afinal, podiam saber alguma coisa. Havia
tamb�m sempre o perigo de tratar-se de uma emboscada, como a que acontecara alguns
meses atr�s, quando v�rios oficiais da KGB foram atra�dos at� uma armadilha e l�
assassinados. Eram muitos os crimes. Nunca sa�am nos jornais, a n�o ser que
houvesse um processo e o julgamento fosse noticiado.
Peshkov os levaria at� a aldeia. Stegman encarou-o com seus frios olhos azuis.
- Se acontecer alguma coisa de errado - amea�ou -, eu mato voc� primeiro.
Peshkov engoliu em seco.
- N�o vai ter problema nenhum. Essas pessoas n�o v�o resistir. S�o quase todos
velhos e crian�as.
Horas depois cercaram o vilarejo. Entraram rapidamente, de todos os lados. E n�o
acharam nada.
Em um velho barrac�o havia um homem sentado ao sol, com v�rios netos brincando em
volta. Dentro da cabana r�stica estava uma velha mulher, com um samovar, fazendo
ch�.
Todas as casas estavam vazias.

- Eu estou lhe dizendo - falou Peshkov desesperado eles estavam aqui! Stephan
Baronas morava aqui com a filha! Todos os dias eu os via.
Alekhin examinou a cabana. Pegou um pouco de cinza nos dedos.
- Fria - observou.
Sabia que poderia descobrir algurna coisa, mais tarde examinaria melhor. N�o
gostava de Peshkov, queria v�-lo sofrer um pouco.
- Eles foram embora - gaguejou Peshkov. - N�o consigo entender.
Estava perplexo.
- Aonde teriam ido? Como?
- Voc� nos indicou uma pista falsa - concluiu Zamatev, friamente. Caminhou at� o
homem sentado ao sol.
- Avozinho - apontou -, onde est�o as pessoas que moravam naquela casa?
O velho tinha um olhar vago e distante. Sua voz era tr�mula.
- Salischev? Foi-se embora. Eu n�o... N�o lembro quando. Acho que h� muito tempo.
Tem gente que vem aqui e acampa.
Seu olhar ficou mais vivo, parecia sentir raiva.
- As pessoas v�m e v�o ficando, matam nossa ca�a, tiram nossa comida. Ficam naquele
lugar - fez um gesto com a m�o ou num daqueles outros. Roubam. Pessoas maldosas...
- Estamos procurando Stephan Baronas e sua filha ou ent�o um tal de Borowsky.
O velho abanou a cabe�a, num sinal negativo.
- Nunca dizem seus nomes. V�m e v�o. S�o jovens e fortes, deveriam estar no
Ex�rcito ou trabalhando no BAM. BAM? Essa n�o � a nova estrada de ferro? Quando eu
era crian�a tinha uma estrada de ferro. Ficava perto do Amur. - Balan�ou a cabe�a.
- Nunca gostei dela. Muito perto da China! Aqueles amarelos desgra�ados! N�o d�
para confiar neles! Eu n�o confiava!
- Baronas - repetiu Zamatev pacientemente. - Nos disseram que ele morava naquela
cabana ali.
- Estamos sozinhos aqui. Sozinhos! N�o quero estar s�! Quero conversar! E s� h�
esses estrangeiros. S�o baderneiros, todos! Baderneiros!
- Voc� conheceu Stephan Baronas? - Zamatev estava sendo paciente.
- Eles v�m e v�o. �s vezes falam alguma coisa, outras vezes n�o. - Enrugou a testa
e olhou de trav�s. - Baronas? Isso � nome russo? Acho que n�o �. - Zamatev irritou-
se.
- Peshkov? Conhece esse homem? Quem � ele? - Peshkov suava frio.
- N�o sei. Fica a�. Est� sempre a�. N�o h� motivo para...
- Voc� me trouxe aqui para encontrar o americano. Falou desse tal Baronas. N�o
existe nenhum Baronas, nem filha. Voc� mentiu para n�s.
- N�o! N�o, por favor! N�o menti! Eles estavam a�. Tinha muito mais gente, mas foi
todo mundo embora!
- Ningu�m mora naquele lugar - Zamatev indicou provavelmente h� muitos meses!
Alekhin, sentado num tronco, acompanhava o di�logo. Claro que tinha gente morando
at� h� pouco tempo, mas como n�o lhe perguntaram nada... Tentaram grosseiramente
esconder o fato, N�o se preocupava com nada daquilo, era perda de tempo. Logo
estaria a caminho e encontraria o americano. Sabia para onde se dirigia naquele
momento e, quanto mais adiante no percurso, mais f�cil apanh�-lo. N�o havia pressa.
Chegado o momento, iria captur�-lo. Enquanto isso aquele velho louco estava fazendo
todo mundo de bobo. Mesmo que o torturassem, aquilo era tudo o que tinha a dizer.
Alekhin desprezava Peshkov, sentia prazer em v�-lo aflito. Era �bvio que as pessoas
ali tinham se espalhado e retornariam assim que tudo se acalmasse. O que o
interessava era descobrir onde o americano tinha morado e certamente n�o fora ali.
Levantou-se e atravessou a pequena clareira. Se tivesse estado com a fam�lia
Baronas, ent�o teria sa�do dali mesmo. Ficou em frente � cabana de Baronas, olhando
em volta. Depois foi at� o canto da casa e olhou por entre as �rvores.
Para recolher lenha, tinham quebrado os galhos nas partes mais baixas dos choupos.
Tinham tamb�m catado tudo o que tivesse ca�do ao ch�o.
Sob as �rvores havia algumas trilhas bem antigas. Umas marcas quebradas de salto de
sapatos, que identificou como sinais deixados por Peshkov. Sinais menores, mais
antigos, evidentemente deixados pela mulher. Foi caminhando entre as �rvores. As
pegadas de Peshkov tinham j� alguns dias, mesmo assim ninguem mais tinha passado
por ali depois.

Alekhin parou e estudou o ch�o. Alguma coisa levemente pegajosa por cima das
pegadas de Peshkov. Examinou-as pensativo e continuou andando. Peshkov parara, os
p�s paralelos, bem apoiados no ch�o, os rastos ficavam um pouco menos n�tidos, como
se tivesse se mexido um pouco. Alguma coisa o fizera parar bem ali, abruptamente.
Atr�s dele havia manchas. Rodeou um pouco, voltou �s pegadas e examinou-as mais uma
vez. Algu�m se esgueirara por detr�s de Peshkov, parando-o. Uma faca ou um rev�lver
encostado nas costas. O americano provavelmente n�o tinha rev�lver nem queria ter.
Se quisesse, teria pegado o AK-47 do soldado que matara no helic�ptero.
Nenhuma muni��o, claro, mas n�o era s� isso. O americano queria matar
silenciosamente. Um rev�lver sempre faz muito barulho. Chama demais a aten��o.
Por que n�o matara Peshkov? Esse americano parecia meio fraco. Devia t�-lo matado,
levado o corpo para longe e enterrado. Um homem como Peshkov, quem � que ia se
importar?
Prosseguiu, subindo a pequena colina, entre as �rvores. O americano cal�ava alguma
coisa mole, suave. Provavelmente o que chamam de mocassins. Seus sapatos gastaram-
se e ent�o usara a pele de algum animal para fazer aqueles.
N�o era um rasto f�cil de seguir, j� que de muitos dias. No entanto ningu�m mais
pisara ali. Por v�rias vezes perdia e achava as pegadas, at� que, finalmente,
descobriu a caverna.
Um �timo lugar. Ah! Um excelente lugar. Na pedra, manchas de gordura deixadas pela
comida e a cinza das fogueiras. Fogueiras bem pequenas de madeira seca. Pouca
fuma�a e pouco fogo. Mesmo assim, o suficiente para deixar o lugar aquecido.
Alekhin saiu da caverna e examinou ao redor. Dava para ouvir o som distante de
vozes, provindas daquilo que resolverara chamar de aldeia. O americano teria
desejado uma sa�da que lhe permitisse abandonar o local rapidamente, se necess�rio.
Alekhin observava tudo sem a menor pressa. Estava compondo um perfil do perseguido
� medida que descobria sinais de sua presen�a. Os homens, assim como os animais,
criam certos h�bitos, uma maneira pr�pria de fazer as coisas; depois de examinado
um ou dois acampamentos, dava para intuir como seria o pr�ximo e tamb�m que tipo de
coisa aquela pessoa estaria mais desejando... De fato, o americano era um homem
muito cauteloso.
E Alekhin se sentia satisfeito com aquele homem que usava a cabe�a. Qual seria seu
passo seguinte? Dispor de um percurso em caso de fuga. E tamb�m um segundo
acampamento e talvez um terceiro. Se tivesse permanecido ali algum tempo mais,
teria certamente preparado a fuga.
Quando chegou � clareira entre as �rvores, sentiu um pequeno arrepio na nuca. Ah!
Ent�o! Aqui e ali descobriu uma leve mancha e um vest�gio de caminho. Parou e olhou
para tr�s.
Muito esperto! O americano escolhera um percurso de fuga que conhecia muito bem. O
caminho n�o era reto; ia fazendo curvas o tempo todo, sem no entanto perder o rumo
desejado. Percorrera o caminho � noite, quase n�o deixando vest�gios.
Pouco a pouco, Alckhin ia acumulando informa��es sobre o americano. Se planejara
uma rota de fuga assim, seria capaz de faz�-lo uma outra vez. Isso era ponto
pac�fico.
Alekhin deu meia-volta e caminhou at� o vilarejo. Os soldados estavam se reunindo.
Zamatev estava de p�ssimo humor. Olhou zangado para Alekhin.
- Onde andou esse tempo todo?
- Olhando, por a�. Esteve aqui. Preciso descobrir o que ele fez por aqui.
- Aquele velho idiota n�o sabe de coisa alguma! Peshkov mentiu, acho que esperando
receber alguma recompensa.
- N�o mentiu. � um idiota e um traidor, mas n�o mentiu.
- Quer dizer que o americano esteve aqui?
- �, esteve sim. E descobri seu esconderijo, um �timo local. - Como Zamatev ia
dizer alguma coisa, Alekhin interrompeu-o: - N�o tem nada l�.
Zamatev fez uma pausa.
- Voc� olhou bem?
- Ele agora usa mocassins. Suas botas gastaram-se, ent�o ele est� usando mocassins.
- Mocassins! Onde iria consegui-los? Precisamos descobrir...
- Ele � que fez os mocassins - adiantou Alekhin. - Como �ndio, sabe fazer esses
calcados macios. E tamb�m roupa para vestir. Consegue tudo o que quer da pr�pria
natureza.
- Voc� consegue acompanhar sua trilha?
- Claro. Nem preciso come�ar daqui. Vou at� o local do acidente com o helic�ptero.
Descubro a trilha dele de l�.
Foram andando juntos de volta, passando pelos soldados que os iam seguindo atr�s.
Um deles, um oficial extraordin�rio, fez contin�ncia e perguntou:
- � para queimar as cabanas, coronel?
- N�o. Deixe-as como est�o - respondeu Zamatev. Eles voltar�o e ent�o n�s os
apanharemos.
Quando os soldados se foram, Alekhin pegou um helic�ptero com mais quatro homens e
dirigiu-se ao local do acidente.
- Fiquem sempre atr�s de mim - disse-lhes - e fiquem atentos. Prestem toda a
aten��o. Talvez n�s o vejamos.
- Voc� n�o acha que ele ainda esteja por perto, n�o?
Alekhin encarou o soldado com seus olhos amedrontados at� que este come�ou a suar e
voltou atr�s na sua pergunta.
- N�o sabemos o que ele est� fazendo. Nem imaginamos.
- O homem � perigoso - olhou-os com firmeza. - Um homem j� morreu aqui e dois l�
adiante. Ele � um s�, mesmo assim j� h� tr�s mortos e um helic�ptero estra�alhado e
queimado.
Depois, com um certo desprezo:
- � bom voc�s ficarem com os olhos bem abertos, sen�o acabam tamb�m mortos.
Perambulou pelo local do acidente, atr�s de alguma trilha deixada pelo �ndio. Pelo
passo largo, era sem d�vida um homem alto. Bastava primeiro descobrir uma pegada,
depois era s� ir comparando-a com outras. E aquele americano nem sempre ia pelo
caminho mais f�cil. Muitas vezes caminhava sobre as pedras. Nem precisava querer
ser cauteloso. Na floresta, agiria sempre com cautela. Era parte de sua natureza.
Ao cair da tarde, aprendera um pouco mais sobre o modo do americano viajar.
Embora n�o tivesse parado para ca�ar, tinha um estoque de comida. Defumara e secara
carne l� atr�s. Alekhin n�o descobriu o suporte usado, mas percebeu os buracos no
ch�o para sustent�-lo. Carregava um pacote grande. Alekhin podia dizer isso porque
notara um aumento na profundidade das pegadas, na sa�da da caverna. Era uma
diferen�a m�nima, mas que permitia tal conclus�o.
No lugar em que Joe Mack matara o soldado, Alekhin deduziu, corretamente, a raz�o.
Um homem ali em p� estava completamente vis�vel, sem cobertura. Portanto, o soldado
o veria.
Naquela noite, junto � fogueira, Alekhin repassou todas as alternativas do seu
racioc�nio. Para seguir os rastos de algu�m, era preciso sempre imaginar a inten��o
do perseguido.
Fugir? Claro, mas para o qu�? Para onde? Era muito dif�cil que o americano tivesse
amigos por ali; portanto, seu �nico objetivo seria ir embora, sair da Sib�ria,
retornar ao pa�s de origem. Alekhin nunca levara a s�rio a alternativa da fronteira
com a China. Esse homem era um �ndio. Seguiria aquela antiga rota migrat�ria, o
caminho percorrido por aqueles antigos ca�adores que, atr�s de animais, foram dar
no continente americano.
O caminho mais curto para se cruzar o mar era o estreito de Bering. Certamente
escolheria esse trajeto. Zamatev nunca acreditara nessa possibilidade, mas porque
era um homem citadino.
O americano era �ndio. Iria onde houvesse ca�a, pois assim sobreviveria. N�o ousava
ir at� as cidades, mesmo porque n�o conhecia a l�ngua. Zamatev que fizesse como bem
entendesse. Alekhin n�o tinha interesse nenhum pelas cidades.
Zamatev tirou a rolha da garrafa e encheu dois copos.
- Eu vim o mais depressa que pude - disse.
- Sinto muito. Quando mandei cham�-lo, pensei que fossem estar todos l�.
Localizamos o vilarejo, n�o imaginei que estivesse abandonado.
- Algu�m deve ter falado - suspeitou Zamatev. Ela ergueu o copo.
- Pode ser. Mais prov�vel que tenham entrado em p�nico e fugido. Em todo o caso,
acho que o americano j� tinha ido embora.
- Alekhin descobriu suas pegadas. Agora vai alcan��-lo.
- Talvez.
- N�o acredita?
- Sei l�. Esse � diferente dos outros.
Do outro lado da mesa, ela fixou nele seu olhar.
- Voc� volta amanh�, de avi�o?
- Preciso voltar.
- Vou para Magadan. Talvez de l� d� para fazer
alguma coisa.
Fez um sinal de aprova��o com a cabe�a.
- Grigory est� l�. Ele � de confian�a.
- Estava pensando nele.
Fez uma pausa como se n�o soubesse o que dizer em seguida.
- Shepilov tamb�m est� l�.
Zamatev pousou o copo sobre a mesa.
- Shepilov? Em Magadan? Por qu�? - Ela deu de ombros. - Sabe de alguma coisa, ou
ent�o acha que sabe. Voc� o conhece bem.
- Por isso mesmo � que estou indo para l�. Ele n�o faz nada que n�o tenha que fazer
mesmo. Precisa haver alguma coisa de fato importante para que tenha ido at�
Magadan. Ele n�o gosta de mim nem um pouco.
- Como � que voc� sabe?
- J� trabalhei com ele. N�o se lembra? Era a fofoca do departamento. N�o gostava de
Magadan. Certa ocasi�o, h� muito tempo, fora transferido para l�.
- Ent�o, talvez tenha amigos por l�? - Zamatev ficou alguns instantes pensativo. -
Talvez algu�m de l� tenha lhe passado alguma informa��o? � isso que voc� est�
pensando?
- Grigory saberia.
- Claro. Acha que ele � leal a mim?
- Ah! Sim! J� me disse isso e sei que odeia Shepilov mortalmente. Ainda que n�o
seja do seu temperamento.
- O �dio obscurece o racioc�nio. Quando se trata de trabalho, � melhor n�o ter
emo��es. Deve-se fazer aquilo que tem de ser feito e com frieza.
Logo que Kyra saiu, Zamatev tornou a pegar o mapa. A rede tornava-se aos poucos
mais fechada. Sabiam onde ele estava. N�o exatamente ainda - isso viria depois -,
mas j� sabiam onde estivera e Alekhin seguia-lhe os rastos. Kyra estaria em Magadan
e Grigory saberia o que fazer. Suvarov estava em Nel'kan, mais perto ainda.
O que teria levado Shepilov a Magadan? Ele s� sairia de seu conforto se tivesse
certeza de alguma coisa. Por�m Makatozi n�o podia ter ido t�o longe, a n�o ser que
tivesse roubado um avi�o ou ent�o conseguido uma carona com algu�m.
Claro que Shepilov ficaria encantado em prender o americano. Zamatev podia at�
imaginar a express�o satisfeita naquele rosto. Zamatev tornou a estudar o mapa. Que
idiota tinha sido em n�o ter acorrentado aquele prisioneiro. Agora tudo o que
realizara, at� ent�o, dependia unicamente da captura do americano.
Seu olhar fixou-se no mapa, na �rea em que ele deveria estar, como se pudesse faz�-
lo surgir ali na frente, em carne e osso.
Tinha de captur�-lo. Era a �nica soluc�o. Custasse o que custasse.
N�o havia tempo a perder.
Por que Shepilov fora at� Magadan? Por qu�?

CAP�TULO 23

Alekhin n�o tinha pressa nenhuma. A Sib�ria era imensa e o americano ia a p�. Para
se perseguir um homem com bons resultados, a melhor coisa a se fazer era comecar
pelo seu racioc�nio. Como viajou? Onde dormiu? Foi habilidoso ao seguir uma trilha?
Que tipo de lugar escolheu quando quis esconder-se?
O que comeu? Como ca�ou? Qual o seu conhecimento da floresta? Como atravessou os
rios? O que fez para evitar encontros com outras pessoas? O que sabia a respeito da
regi�o que percorria? Qual seu eventual destino? Ser� que poderia altera-lo? O que
planejava fazer quando o alcan�asse?
Essas eram perguntas que, entre muitas outras, fazia a si mesmo. Pouco a pouco,
juntando um vest�gio aqui, outro acol�, ia tendo uma id�ia do tipo de pessoa que
era o foragido. E j� come�ava a gostar dele.
Em primeiro lugar, o homem era bom mesmo. Nunca antes Alekhin tinha rastreado as
pegadas de um �ndio, somente de algumas pessoas de sua pr�pria ra�a e de outros
siberianos. O problema � que essa gente estava ficando muito civilizada. Os Yakut,
os Ostyak e os outros estavam perdendo o conhecimento que tinham da natureza.
Trabalhavam em f�bricas, entravam para o Ex�rcito, viviam nas cidades, onde
freq�entavam cinemas, teatros e dan�as modernas. Somente alguns, os mais antigos,
ainda eram capazes de conhecer a floresta.

Alekhin n�o era dado a introspec��es. N�o costumava examinar seus motivos pr�prios.
Tinha um trabalho a fazer e fazia.
O que se passava com a pessoa depois de apanhada n�o tinha para ele a menor
import�ncia. Era filiado ao Partido, mas nem pensava nisso. Pouco sabia de
filosofia comunista e se importava menos ainda em saber. Marx e Engels, para ele,
eram nomes como quaisquer outros. Lenin, sim, era algu�m com quem poderia se
identificar, Stalin mais ainda.
Todos esses homens, suas id�ias e realiza��es eram coisas muito distantes para ele.
Gostava era da floresta, mas s� como um lugar onde sobreviver. N�o tinha nada
contra a matan�a de animais ou a derrubada de �rvores. N�o tinha conhecimento
suficiente nem sequer pensava no futuro. A possibilidade de que chegasse o dia em
que n�o existiriam mais florestas era o tipo de coisa que nem imaginava. A floresta
sempre estivera ali e sempre estaria. A id�ia de que, um dia, o homem tivesse que
viver num planeta sem florestas era-lhe completamente estranha. Que as �rvores
purificam o mon�xido de carbono do ar, transformando-o em oxig�nio, era o tipo de
coisa a que reagiria piscando ou encolhendo os ombros. Era algo que n�o podia
compreender e que n�o lhe dizia respeito. Juntava lenha para suas fogueiras e
ca�ava para comer. Isso era o que pensava da natureza.
Sentia desprezo por todos os moradores das cidades. N�o tinha sensa��o de
inferioridade em rela��o a ningu�m, nem a coisa alguma. Na natureza, nas �rvores,
nas montanhas, disso ele sabia, havia os esp�ritos. De vez em quando ofertava-lhes
alguma coisa de pequena import�ncia. Respeitava-os sem pensar muito neles.
Era t�o prim�rio quanto um animal. Possu�a a for�a de um gorila e os movimentos de
um felino. Pensava em gin�stica ou treinamento tanto quanto pensam um urso-cinzento
e um tigre. A for�a que tinha nascera com ele e usava-a constantemente.
Quando Zamatev dissera que queria o americano com vida, Alekhin n�o deu muita
import�ncia. Vivo ou morto, tanto fazia, embora fosse sempre mais f�cil matar do
que levar o prisioneiro at� alguma rodovia ou estrada de ferro.
Quanto a pegar o americano vivo, Alekhin tinha suas d�vidas. O foragido estava se
revelando atrav�s dos rastros. Tamb�m no acidente com o helic�ptero mostrara um
pouco de sua personalidade. Para Alekhin, s� um ponto o intrigava: Por que o
americano n�o matara Peshkov? Por que deixara que tudo ficasse daquele jeito mesmo?
N�o fora dif�cil decifrar os rastos que indicavam que o americano deixara Peslikov
livre para ir delatar sua presen�a no vilarejo. Portanto, parecia ter alguma coisa
de idiota.
Claro, n�o um idiota completo. Consider�-lo assim seria perigoso. O fato � que
hesitara em matar...
Alekhin n�o perdeu tempo tentando descobrir motivos para essa atitude. Cada um faz
aquilo que � necess�rio e o americano tinha de ter matado Peshkov.
N�o ia ser f�cil agarrar o �ndio. Se fosse encurralado, certamente lutaria e
Alekhin teria de mat�-lo.
Simplesmente, n�o tinha escolha.
Aqueles soldados estavam com ele n�o s� para ajud�-lo como tamb�m para proteger o
prisioneiro depois de capturado. Portanto, se necess�rio, mat�-los-ia tamb�m.
Tr�s dias depois da passagem de Joe Mack pelo local, Alekhin e os soldados chegaram
ao barrac�o da mulherona de olhos azuis. N�o sabia nada, n�o vira nada.
Seu jeito foi um pouco agressivo e um dos soldados n�o gostou muito disso.
- Voltarei aqui - amea�ou ele - e a interrogarei mais detalhadamente.
- Ah! - resmungou ela, com desprezo pelo soldado. Quando ele ia voltar, Alekhin
impediu-o com uma ordem r�spida. - N�o seja cretino! Ela pega sua espingarda e te
d� uma surra com ela. Est� pouco ligando para voc� ou para seu uniforme.
O soldado reclamou alguma coisa e Alekhin prosseguiu:
- Olhe um pouco para este lugar. Ela mora aqui. Voc� seria capaz de viver num lugar
assim? Ia morrer de fome, de frio. Mulheres como aquela voc� deixa em paz, ou
ent�o, se fala com elas, � com toda a educa��o.
O soldado continuou reclamando e Alekhin completou:
- Se houvesse tempo, deixaria voc� ir at� l� s� para me divertir um pouco. E, se
voc� continuar resmungando desse jeito, mando voc� de volta.
Alekhin descobriu o acampamento no sop� do monte Konus. Os ramos de abetos usados
como leito, os restos de uma pequena fogueira e um peda�o de casca de b�tula que
servira de vasilha e que, embora deixada no fogo, n�o se queimara completamente.
Num canto daquilo que sobrara da vasilha percebeu uma folhinha de ch�.
Ent�o ele tinha ch�? Onde ser� que arranjara? Ou ser� que tinha trazido do tal
vilarejo?
Os rastos desciam por um desfiladeiro, sombrio e assustador, cheio de �rvores
ca�das, seixos, entulhos e enormes lajes de pedra, muitas delas cobertas de uma
espessa camada de musgo verde, trai�oeiro sob os p�s. Parecia f�cil caminhar sobre
ele, mas em alguns trechos era arriscado, pois havia uma camada de gelo sob o
musgo. Assim, um passo desatento e uma pessoa perderia completamente o equil�brio.
Um tombo que poderia causar at� mesmo a morte, se junto � borda de um penhasco.
Avan�avam muito lentamente, apoiando-se nas m�os quase tanto quanto nos p�s; os
soldados estavam amedrontados. Eram russos, garotos camponeses das estepes, com
exce��o de um que viera da cidade.
O americano chegara at� ali e, depois, nenhum sinal. Quase nenhum mais. Alekhin
achou um lugar em que apoiara a m�o ao passar pelo canto estreito de um penhasco.
Descobriu tamb�m a pegada quase impercept�vel de um unty, isto �, um mocassim.
Os rastos desciam pela montanha abruptamente. Cada passo exigia o m�ximo cuidado.
Uns quinhentos metros abaixo, Alekhin percebeu um lugar em que o americano
escorregara. O musgo na pegada estava espremido, deixando um peda�o de terra �
vista. Sobre ele o gelo formara-se novamente.
A que dist�ncia se encontraria daquele local? Alekhin tornou a examinar o sinal
deixado no musgo e encolheu os ombros. Uns dois dias talvez. Estavam se aproximando
dele.
Agora tinha certeza de que o americano se dirigia para o norte e para o leste. Era
claro que planejava tentar atravessar o estreito de Bering.
Mas n�o teria a menor chance. A �rea, al�m de intensamente patrulhada, era varrida
por radares. Simplesmente, chance nenhuma, Contudo, o americano, que n�o era nenhum
bobo, avan�ava naquela dire��o.
Ser� que por desespero? Por n�o ter outra sa�da poss�vel? Era um piloto e mesmo
assim n�o fizera tentativa alguma para se aproximar de um aeroporto, onde poderia
roubar um avi�o. Pelo que diziam dele, seria capaz de pilotar qualquer tipo de
aeronave que achasse.
Alekhin sentia-se irritado com os soldados. Estavam indo muito devagar. N�o sabiam
se movimentar pelo mato, eram desajeitados e excessivamente cautelosos.
Suvarov encontrava-se em Nel'kan, que imaginava deveria estar a uns cem quil�metros
mais ao norte e a leste. N�o conhecia Nel'kan, mas sabia que Suvarov controlava a
�rea e, em especial, a travessia do rio Maya, severamente vigiada.
Desciam agora por uma floresta queimada. Sem d�vida um raio provocara o inc�ndio
que se alastrara por muitos quil�metros quadrados. Os troncos carbonizados daquelas
�rvores sem galho algum pareciam dedos escuros apontando para o c�u. Era um lugar
mal-assombrado, estranho, solit�rio. Os soldados caminhavam mais pr�ximos de
Alekhin, como se buscassem prote��o. Volta e meia olhavam em torno, as vezes
viravam-se, temendo estarem sendo seguidos. A terra estava congelada. A neve ca�da
formara uma camada fin�ssima, cobrindo o solo carbonizado e as �rvores tombadas.
Nenhum animal por ali, nenhuma ave, somente um vazio absoluto. Sentia-se a morte
naquele lugar. As pegadas eram bastante n�tidas. Como se o �ndio assim fizesse de
prop�sito ou ent�o n�o se importasse com isso. Mas n�o sabia que estava sendo
seguido? As pegadas mostravam claramente um percurso sinuoso entre os troncos
carbonizados e as �rvores negras. Talvez simplesmente percebera a futilidade de
querer disfar�ar pegadas num lugar como aquele.
Era estranho, a trilha virava de repente para oeste, depois leste, a� norte de novo
e ent�o de volta para leste. Alekhin parou e com raiva olhou em torno. O que � que
o americano estava querendo fazer?
De repente percebeu e admirou-se. Havia lugares em que o vento ou o fogo, ou ambos,
derrubaram grandes fileiras de �rvores e a trilha, intencionalmente, os for�ava a
passar por cima, escalando-as, ou a se arrastar por debaixo. Por isso iam num ritmo
lento, exasperador e cansativo. Os soldados cada vez mais se mostravam exaustos.
Seguiam em frente com todo o cuidado. Temendo alguma artimanha, Alekhin decidira
ater-se � trilha. Um dos soldados, achando um caminho mais f�cil, deu a volta em
torno de um tronco ca�do, em vez de passar por cima. Ao olhar para tr�s, Alekhin
viu a coisa acontecendo. Aquele soldado era o �ltimo da fila e, tomando o que lhe
parecia ser o percurso mais f�cil, mal dera um passo e trope�ou, caindo. Deu um
berro sufocante enquanto os outros soldados come�aram a correr em sua dire��o.
- N�o! - gritou Alekhin. - N�o! N�o!
Sem obedec�-lo, correram at� o companheiro ca�do e, subitamente, outro trope�ou e
caiu. Gritou, sangrando, debatendo-se para ficar em p�. Seus companheiros tinham
parado, observando-o. No lado esquerdo do pesco�o havia um ferimento profundo que
sangrava, e ele tentava estancar com a m�o.
- Cuidado - preveniu-os Alekhin. - H� armadilhas por a�!
Pisando cuidadosamente, socorreram o homem ferido. Alekhin passou por ele e foi at�
o soldado que ca�ra primeiro. Trope�ara numa raiz que fora amarrada sobre a trilha
e, ao cair, espetara-se numa estaca de madeira, com ponta afiada. Ela penetrara
direto em seu corpo. Quando Alekhin parou em p� a seu lado, o homem exalava o
�ltimo suspiro.
Prevendo que sua queda atrairia outras pessoas, mais uma raiz fora cuidadosamente
amarrada, colocada na altura do tornozelo. O segundo homem fora golpeado no pesco�o
pela estaca afiada. Apenas alguns cent�metros mais para o lado, lhe teria perfurado
a garganta.
Alekhin estava desgostoso. Mandaram quatro homens acompanh�-lo. Agora um deles
estava morto, outro ferido e incapacitado, de quem um terceiro precisaria cuidar.
Tinham de alguma maneira que conseguir ajuda. Embora n�o soubesse o alcance do
r�dio que levava consigo, tentou estabelecer contato.
� claro que as armadilhas faziam parte do jogo e o americano sabia que estava sendo
seguido. Talvez tivesse deixado para tr�s outras armadilhas das quais se desviaram
por puro acaso. Alekhin estava bravo consigo mesmo. Devia ter tomado mais
precau��es. Conhecia o tipo de homem que perseguia.
Mas ser� que conhecia mesmo?
N�o obtinha resposta alguma das chamadas que fazia pelo r�dio.
- Preparem uma maca - ordenou. - Arranjem duas varas bem fortes e amarrem nelas o
casaco do homem morto. O camarada precisa ser carregado.
Os dois soldados voltaram-se para ele, encarando-o.
- At� onde? - perguntou um deles.
- At� onde for preciso - respondeu-lhe Alekhin. - At� onde voc� gostaria de ser
carregado se estivesse nessa situa��o. - Um minuto depois acrescentou:
- H� um vilarejo a uns trinta quil�metros daqui.
- Trinta quil�metros!?
- Talvez mais at�. J� perdemos muito tempo. Mexam-se!
Alekhin consultou o mapa. O vilarejo chamava-se MarKyuvel e ficava perto de uma
estrada. Olhou para o homem ferido. Seu estado n�o era nada bom. Perdera muito
sangue antes da hemorragia ter sido estancada com peda�os de pano. Da pr�xima vez
levaria junto algu�m que soubesse fazer melhor os primeiros socorros.
Pr�xima vez? Sua fisionomia obscureceu. Estava pouco se importando com aqueles
soldados, o que detestava era sentir-se derrotado, confundido. Sentia que, antes de
encontrar o americano e captur�-lo, perderia ainda muitos homens.
O pior de tudo � que Suvarov tinha chances de peg�-lo primeiro. Alekhin n�o admitia
isso, teria de ser ele o primeiro. Colocaram o homem ferido sobre a maca
improvisada e retomaram a caminhada. Alekhin ficou um momento parado, refletindo.
Deveria acompanh�-los ou ent�o seguir buscando o americano sozinho?
Exigiriam um relat�rio. Sempre um relat�rio para qualquer coisa. Na R�ssia impera a
mentalidade burocr�tica, que n�o entende nada que n�o esteja escrito ou desenhado.
E, al�m do mais, sabe-se l� o que fariam esses soldados sem ningu�m para comand�-
los?
O coronel Zamatev estava em sua mesa de trabalho quando recebeu a not�cia de que
mais um homem fora morto e outro se encontrava gravemente ferido.
Pelo menos o major Makatozi n�o estava em Magadan. De certa forma, era um al�vio
saber que Shepilov n�o estava na frente.
Por outro lado, talvez estivesse. Makatozi podia estar se dirigindo para Magadan e
Shepilov, quem sabe, at� soubesse por qu�. Ficava no litoral. E se a CIA tivesse um
plano de resgat�-lo naquele local?
Um pouco estranho, mas n�o imposs�vel. Como fariam a coisa? Talvez o americano
tivesse conseguido se comunicar com seu pa�s.
E se realmente algo tivesse sido planejado e Shepilov estivesse sabendo? Assim ele
os pegaria, todos juntos, e o enganaria completamente, ficando com todos os
pr�mios. Se n�o fosse por isso, que outra raz�o para ir at� Magadan?
Ningu�m jamais queria ir at� Magadan. Ningu�m ia at� l� se n�o fosse mesmo muito
necess�rio. E Shepilov fora de livre e espont�nea vontade. � claro que estava
sabendo de alguma coisa e queria estar l� mesmo, no lugar em que pudesse
reivindicar todo o m�rito para si.

Mas Kyra tamb�m andava por l� e descobriria o que acontecia.


Podia confiar em Kyra?
Inclinou-se para tr�s na cadeira e tentou ordenar os pensamentos. Gostava das
coisas em seq��ncia, claras e arrumadas. Detestava mudancas.
Fato um: Shepilov s� sa�a do seu lugar de trabalho por algum motivo muito
importante. Preferia o conforto acima de tudo. E tinha ido para Magadan.
Fato dois: Makatozi encontrava-se em algum ponto ao norte do Uchur e encaminhava-
se, de maneira geral, para Magadan. Fato tr�s: Seguindo naquela dire��o, Makatozi
fugiria pelo mar, pois Magadan era um porto mar�timo.
Fato quatro: A zona sovi�tica coberta pelos radares era considerada impenetr�vel,
mas e se os americanos usassem seus avi�es � prova de radar? Podia ser um teste
para eles e, se conseguissem, que golpe!
Fato cinco: Se isso acontecesse, cabe�as rolariam e a sua estaria entre as
primeiras. Se Shepilov estivesse em Magadan e se a CIA conseguisse tirar Makatozi
do pa�s, seria ele, Shepilov, o liquidado.
Se bem que nunca se colocava numa posi��o de vulnerabilidade. Se estava em Magadan
era por alguma raz�o muito bem definida e porque tinha certeza de ser bem-sucedido.
Kyra telefonaria, mas o aparelho certamente estaria grampeado. Era certo que
Shepilov saberia de sua presen�a naquela cidade. Ali�s, provavelmente j� fora
informado quando ela se preparava para tomar o avi�o.
Suvarov. Tinha de manter contato com ele. Se conseguissem pegar o americano antes
de ele chegar a Magadan, ent�o n�o tinham mais com o que se preocupar.
Levantou-se da mesa e come�ou a andar pela sala, de um lado para outro. Era
humanamente imposs�vel colocar avi�es sobrevoando uma regi�o de milhares de
quil�metros quadrados em busca de um �nico homem. Mas e se o homem estivesse
limitado a uma �rea muito menor? Como entre aquela em que os homens de Alekhin
tinham sido atacados e a de Suvarov? Abriu a porta da sala.
- Ema - chamou. - Ema Yavorsky, mande uma mensagem para o tenente Suvarov. Quero
alguns avi�es prontos para decolar.
Verificou as coordenadas e entregou-as para ela.
- Quero os avi�es voando sobre essa �rea. Uma busca minuciosa.
Os l�bios de Ema Yavorsky contra�ram-se num sinal de reprova��o.
- Vai custar muito caro - disse. - N�o v�o dar permiss�o - encarou-o. - O camarada
est� sendo tolo nessa quest�o, Esse homem vai morrer por l�. A pr�pria Sib�ria vai
mat�-lo; deixe-o sozinho, deixe-o morrer.
- Seus conselhos costumam ser bons, n�o desta vez. Muita gente morre l�, muita
gente n�o sobrevive, mas n�o esse homem em particular.

CAP�TULO 24

J� estava na hora de mudar de dire��o. Joe Mack esfregou as m�os frias e olhou para
tr�s a trilha que seguira. Algo se moveu, provavelmente algum animal, por�m
instinto e senso comum diziam-lhe que estava sendo seguido.
�quela altura j� teriam descoberto seu plano e se preparariam para sua chegada.
Montara armadilhas, fora pelos caminhos mais dif�ceis propositalmente, fizera todo
o poss�vel para tornar a busca mais lenta, para desencorajar quem ia no seu
encal�o.
A primavera vinha chegando, mas ainda demoraria algumas semanas. Se fosse em
dire��o ao litoral encontraria um clima mais quente, por�m correria um risco bem
maior, pois l� os vilarejos e as aldeias eram muito mais numerosos. Dar uma guinada
para o interior afast�-lo-ia demais do objetivo final, portanto, caminharia rumo �s
montanhas ao longo da costa.
Necessitava achar o lugar adequado para fazer a mudan�a de percurso. Agachado,
examinou o solo com aten��o, procurando alguma plataforma rochosa, relativamente
sem neve. Ao mesmo tempo em que com o olhar buscava o rumo a seguir, mantinha-se
alerta para o menor movimento. Na vastid�o da taiga havia homens e animais, e
naquela regi�o selvagem todo homem carregaria uma arma consigo. Muitos eram
ladr�es, agindo individualmente ou em bandos e roubando algum viajante menos
prevenido.
Joe Mack ia carregando a pele de urso num embrulho, junto com a camisa feita por
Natalya, que estava cuidadosamente dobrada. Vestia tr�s roupas leves, a �ltima
feita de intestinos de rena, que foram limpos e depois cortados em tiras costuradas
com tend�es. O casaco o protegia da chuva e da neve quase t�o bem quanto uma capa
de chuva. Junto � pele vestia o su�ter roubado e por cima um colete largo, feito de
pele de lobo. Por for�a das circunst�ncias, Joe Mack tinha que vestir o que
conseguisse arranjar e n�o aquilo que preferisse.
No fim da tarde, desceu pela montanha e dirigiu-se para leste, andando sobre rochas
cuja superf�cie fora aplainada pelo gelo. Ia num ritmo marcado, entre arbustos e
algumas �rvores. Fazia muito frio, mas o ar era l�mpido. Apesar do frio, aquela
parte da Sib�ria tinha mais dias azuis do que qualquer outra regi�o do imp�rio
sovi�tico. Viu muitos veados mas um �nico alce que, imenso, ergueu a cabe�a para
observ�-lo. Esperava encontrar algum mesmo, pois vira marcas de dente de alce nos
troncos de choupo.
Abandonando a rocha subiu uma encosta �ngreme; pisava com todo o cuidado, pois n�o
queria que alguma pedrinha fora do lugar denunciasse sua passagem. Evitava os
galhos junto ao ch�o, arrastando-se ou passando sem encostar neles. Alguns tinham
uma leve camada de neve prestes a cair, outros podiam romper-se ou deixar alguma
folha fora do lugar, o que denunciaria sua passagem para algum rastreador
experiente. Ao voltar a uma superf�cie rochosa, tirava cuidadosamente dos mocassins
a terra, a areia ou as folhas antes de pisar de novo na pedra, para n�o deixar
qualquer vest�gio. Fazia essas coisas sem pensar, tanto j� haviam se tornado um
h�bito.
Cruzando o declive da montanha, desceu por uma garganta coberta por densa floresta
de pinheiros e foi caminhando em ziguezague, com todo o cuidado. N�o parou para
deixar armadilhas, isso ficaria para depois, mais adiante, quando quem o seguisse
j� estivesse mais cansado e, portanto, menos atento. Aquela noite dormiu dentro de
uma enorme �rvore oca. O tronco serviu de chamin� para a fogueira. O lugar era
acolhedor e, com o fogo aceso, ficou aquecido por alguns poucos minutos. A abertura
em cima, no tronco, fora coberta naturalmente por uma arma��o de galhos de
pinheiro.
Ao raiar o dia, usou um pouco da carne-seca para fazer um guisado, preparou um ch�
e descansou um pouco, sem pressa. H� muitas semanas n�o dormia t�o bem e h� dias
n�o fazia uma refei��o quente.

A vegeta��o ia ficando diferente. Come�avam a aparecer cedros, alguns freixos,


carvalhos e nogueiras. Havia tamb�m muito mais p�ssaros, e os rastos de veados
estavam por toda parte.
Enquanto caminhava, sua mente funcionava em ritmo acelerado, n�o somente para
observar a regi�o, mas procurando imaginar o que fazia Zamatev. Sabiam a �rea onde
se encontrava naquele momento, claro que n�o numa exata dist�ncia em quil�metros.
Aquela s�bita altera��o de percurso rumo ao leste poderia atrasar a busca por um
breve espa�o de tempo, n�o mais do que isso, por�m. Teria o efeito tamb�m de
restringir ainda mais a �rea em que iriam procur�-lo. Tinha que evitar a qualquer
custo ser visto ou encontrar algu�m, e isso seria cada vez mais dif�cil. Duas
vezes, j� naquele mesmo dia, encontrara restos de fogueiras e sinais de
acampamento; certamente havia ca�adores por aquelas florestas. Seu pensamento
continuava voltado para Natalya. Como estariam? O que acontecera depois de sua
partida? Conseguiram chegar ao litoral? At� as Mar�timas? E, ainda assim, ser� que
ele conseguiria ir at� l� sem ser visto e lev�-la consigo? A pr�pria id�ia da coisa
j� era rid�cula, mas talvez pudesse tir�-la de l�. Para o interior? Imposs�vel, n�o
haveria a menor probabilidade de sucesso.
De repente, estancou a marcha. Ia seguindo a trilha de um animal de ca�a e
subitamente a sua frente estavam as pegadas de um grande felino.
Um tigre!
Como se j� n�o tivesse problemas de sobra! O rasto era recente, talvez nem mesmo de
uma hora. Havia tamb�m leopardos por ali ou mais para baixo, nas Silchote Alin,
perto da costa. Mas aquele rasto era bem maior do que o deixado por um leopardo, e
ele sabia que os tigres perseguem uma presa por uma dist�ncia muito maior que os
leopardos, al�m de suportarem melhor o frio. Aquela �rea era h� muito tempo famosa
pelos tigres de grande porte e ferocidade, e os chineses, tanto quanto a popula��o
sovi�tica antiga, tinham sofrido com isso, Continuou andando, tentando calcular o
tamanho do animal pela dist�ncia das passadas e a profundidade das pegadas, embora
isso fosse mais dif�cil por causa da camada de gelo. Mas aqui e ali, em alguns
poucos lugares, as marcas eram n�tidas. O tigre era dos grandes. Logo, por�m, as
pegadas deixavam a trilha quase apagada e iam montanha abaixo, no sentido leste.
Os meses haviam transformado Joe Mack. Ficara magro, rijo e ainda mais musculoso.
Tornava-se mais e mais um �ndio, um homem da natureza. Deixara de ser um estranho
naquela regi�o passara a conhec�-la em detalhe, a viver ali.
Com a aproxima��o da noite, dirigiu-se a um lugar alto na montanha, para pegar
algum ar mais quente que porventura houvesse subido do vale embaixo.
Chegou at� um local em que v�rias lascas enormes de pedra tinham ca�do de modo a
formar um abrigo embaixo delas, onde poderia fazer uma fogueira e n�o ser
descoberto. Estava juntando lenha para a fogueira quando viu a estrada.
Embora estivesse a muitos quil�metros de dist�ncia, n�o podia ser outra coisa, pois
via as luzes de um comboio que viajava para leste. Eram tr�s caminh�es em fila.
Borowsky dissera-lhe que era muito comum os caminh�es viajarem assim, para evitar
assaltos. As mercadorias que transportavam eram t�o valiosas no mercado negro que
os assaltos eram bastante freq�entes.
Voltou para seu esconderijo na caverna sob as plataformas de pedra e preparou
alguma coisa para comer. N�o fez ch�, pois s� tinha o suficiente para uma vez e
preferiu guard�-lo. Caf� ent�o, era um luxo quase esquecido.
Mais tarde, ao sair da caverna para fazer uma �ltima coleta de lenha, tornou a
observar a estrada.
N�o havia luzes. Estava se virando para ir embora quando percebeu um conjunto de
far�is movendo-se na escurid�o. Ficou parado, observando.
Parecia que havia qualquer coisa de errado. O caminh�o diminuiu a velocidade, foi
para o acostamento e os far�is ficaram im�veis um certo tempo. Alguns minutos
depois tornaram a mover-se devagar. O caminh�o fez uma volta em sua dire��o e
parou. Os far�is se apagaram.
Um pouco surpreso, observou a estrada ainda por alguns minutos e a� voltou para sua
fogueira e para a cama. Quando acordou, ainda era noite. A primeira coisa em que
pensou foi no caminh�o.
Aparentemente, havia engui�ado. Podia tamb�m ser alguma outra coisa. Deveria ir at�
l� embaixo para ver? Qualquer coisa que um caminh�o daqueles estivesse
transportando poderia serlhe �til.
Contudo, poderia ser visto por algu�m. Achou melhor n�o correr o risco, foi
descendo a montanha e dirigindo-se para leste. A estrada, se � que poderia ser
chamada assim, acompanhava o rio que ele atravessara alguns dias antes. O rio fazia
uma curva para o norte e depois...
Joe Mack parou mais uma vez. Exatamente a sua frente havia uma estrada! Era de
terra e tinha duas m�os, como muitas que vira em seu pr�prio pa�s. Na estrada,
havia sinais recentes de pneus, em dire��es opostas. Curioso, dobrou � esquerda,
seguindo os sinais. Percebeu o rasto de um animal pequeno que cruzara a marca dos
pneus ainda recente, al�m de manchas de �leo, meio pastosas por causa do frio.
O caminh�o que vira na noite anterior devia ter abandonado a outra estrada e tomado
esta. O segundo sinal de pneu mostrava o caminh�o voltando. Incr�dulo, ainda que
curioso, foi seguindo a estrada, escondido entre as �rvores.
L� adiante pairava alguma coisa escura e sombria. Aproximou-se um pouco mais. Uma
constru��o, um monte de entulho e uma estradinha que vinha de um terreno pantanoso.
Durante alguns minutos, examinou o local; parecia deserto, uma mina abandonada.
Por que ser� que o caminh�o sa�ra da estrada principal para ir at� aquele lugar?
N�o estava quebrado como imaginara, parara um pouco para descobrir a sa�da da
estrada no meio da escurid�o.
Nenhuma fuma�a, nada, Foi at� a edifica��o mais proxima, onde terminava a estrada,
e se esgueirou para dentro. Caixotes, cestos e barris, todos em pilha, bem
arrumados! Descobrira o dep�sito secreto de um chofer de caminh�o trabalhando no
mercado negro. As caixas e cestos n�o eram todos iguais. Era poss�vel que o
motorista sozinho ou com a ajuda de outros, viesse pegando carga extra nos
dep�sitos para descarreg�-la ali e ser apanhada por outros.
Ser� que havia algu�m por perto, para vigiar todo aquele material roubado? Ou ser�
que o local era afastado o bastante para nem ser preciso um vigia?
Embora tivesse aprendido a falar um pouco de russo, n�o sabia ler. Al�m do mais n�o
acreditava que as poucas palavras escritas nas caixas tivessem alguma rela��o com o
conte�do. Mais uma olhada pela janela para ver se vinha algu�m e, com um martelo
que estava por ali, abriu a caixa mais pr�xima.
Comida em lata! Abriu uma segunda e uma terceira. Comida na maior parte e, depois,
v�rias caixas com roupas. Correu at� a janela para uma olhada r�pida para fora, fez
uma trouxa com as roupas e a lataria e levou tudo at� a floresta. O que queria era
encontrar alguma arma e tamb�m muni��o, por�m n�o tivera essa sorte e j� ficara
muito tempo ali dentro para procurar mais. Colocou as caixas de volta em seus
lugares, pregou-as e, apagando as eventuais pistas que tivesse deixado, esgueirou-
se para o meio das �rvores.
Calculando o tempo todo que ficara no dep�sito, achou que mal haviam passado vinte
minutos. J� na floresta, percebeu o som distante de um caminh�o.
Pegando o pacote, esfor�ou-se para subir mais alto a montanha. Olhando para tr�s,
n�o conseguia ver nada da constru��o nem sinal algum da estradinha que levava at�
l�. Um caminh�o seguia pela estrada principal. E Joe embrenhou-se na floresta,
afastando-se da estrada. Parou ao entardecer, fez uma pequena fogueira e comeu como
n�o fazia h� v�rias semanas. Depois de comer, quando o fogo se reduzira a algumas
brasas vermelhas, tornou a olhar as roupas que apanhara. N�o tinha tido tempo de
prov�-las, achou que o casaco serviria, pois o havia estendido sobre a caixa e
parecia ser do tamanho adequado. Pegou tamb�m a cal�a que o completava e
experimentou. Dava para usar, era melhor do que esperava, ainda que n�o fosse l�
grande coisa. A cal�a ficou larga demais na cintura, mas isso n�o era problema. Um
cinto um pouco mais apertado e pronto.
Dobrou o terno cuidadosamente, fazendo o menor volume poss�vel, e colocou-o junto
com a camisa feita por Natalya. Se tivesse que entrar em alguma cidade, estaria
preparado, a n�o ser por uma coisa: N�o tinha sapatos nem botas. Seus mocassins
chamariam a aten��o de qualquer pessoa que olhasse para ele.
Seguiu em frente, caminhando pela floresta. Daquele local em que vira o caminh�o
pela estrada, percebera tamb�m alguma coisa que, de longe, parecia uma fazenda
grande. Sabia que havia muitas assim em Yakutia e, embora j� tivesse ultrapassado a
regi�o caracter�stica, aparentemente se aproximava de outra �rea com fazendas.
Mantendo um passo firme e ritmado, foi vencendo o caminho na dire��o leste pela
densa floresta, evitando estradas e sinais de terra cultivada. De vez em quando
vislumbrava outras pessoas, quase todas com agasalhos de pele como ele, pelo menos
de acordo com o que conseguia perceber. Dali para a frente seria cada vez mais
dif�cil permanecer escondido; tampouco podia deixar armadilhas montadas. Joe Mack
n�o tinha o menor plano de machucar casualmente algu�m que n�o tivesse nada a ver
com quem o procurava. Os que lhe estavam no encal�o assumiam um risco e sabiam
disso, por�m, se deixasse alguma armadilha para apanh�-los, algum ca�ador ou
qualquer outra pessoa poderia trope�ar nela.
Numa floresta de b�tulas, bem fechada, percebeu um canto junto a uma imensa �rvore
ca�da e ajeitou-se para descansar. Era dia bem claro ainda, mas tinha que viajar s�
� noite. N�o se esquecera, por�m, dos rastos de tigre que encontrara.
Armado apenas de arco e flecha n�o tinha inten��o alguma de encontrar-se com um
tigre pela frente.
Sentia-se s� e cansado. N�o fisicamente, mas cansado de estar sempre fugindo,
sempre se escondendo. O c�u era de um azul bem p�lido e os choupos formavam uma
silhueta escura, quase negra, contra o c�u. Olhava aquela paisagem e se perguntava
se ali, naquela terra distante, encontraria a morte.
O que era ele, no final das contas? �ndio, homem branco? Que diferen�a fazia?
Embora seu sangue fosse de �ndio, o mundo em que vivia era igual ao de todos os
homens, n�o tinha nada a ver com ra�a nem cor. Existir � adaptar-se, quem n�o se
adapta morre ou deixa lugar para outros mais capazes.
O terrorista vive em fun��o do pr�prio terror e n�o pelas mudan�as que ele afirma,
a si mesmo, desejar. Por tr�s da cortina de uma causa justa a defender esconde seu
desejo de morte e destrui��o. Quer destruir, n�o criar.
Uma revolu��o sempre destr�i muito mais do que cria. A Uni�o Sovi�tica tinha
demorado trinta anos para reconstruir o que a Revolu��o destru�ra, e o governo que
resultou disso n�o era diferente. Mudaram-se apenas nomes, tanto das pessoas quanto
das institui��es.
Era um Sioux, e para todos os Sioux, assim como para a maior parte dos �ndios, a
guerra fora um modo de vida. Mais de um �ndio j� tinha dito que sem guerra n�o
podia viver. Mas fora exatamente a mesma coisa com os vikings, cujo nome � logo
associado a assaltos e pilhagens. N�o fora diferente com as Cruzadas, que encobriam
sua paix�o pela guerra sob a bandeira de uma causa sagrada.
Quando o Sioux encontrou pela primeira vez o homem branco, dedicava-lhe o maior
desprezo. N�o passava de um negociante que comprava e vendia peles. Se valia alguma
coisa como homem, por que ent�o n�o ca�ava ele pr�prio as peles de que precisasse?
Seu povo n�o tinha meios para perceber o poder enorme que havia por tr�s daquele
movimento do homem branco desbravando o oeste americano ou ainda seu desejo de ser
propriet�rio de terras, de viver da terra. Somente os primeiros brancos eram
aventureiros, como os �ndios; os outros eram colonos que chegaram, constru�ram
casas, araram a terra e plantaram milho.
S� muito tempo depois � que os �ndios foram perceber o que acontecera com sua
terra. Joe Mack, assim como alguns brancos, lamentava a matan�a de enormes manadas
de b�falos, por�m, ali onde antigamente viviam milh�es de b�falos agora havia
fazendas capazes de produzir alimento para quase metade do planeta; havia
hospitais, universidades e lares.
Era um guerreiro dos velhos tempos. Era a vida que sempre desejara, que melhor
conhecia, mas, ainda assim, sabia apreciar as mudan�as que se passaram. Nada
permanece igual, a �nica lei inexor�vel � a da transforma��o.
O major Joseph Makatozi, antes um atleta e piloto conhecido por Joe Mack, andava
mais uma vez pela floresta, como �ndio.
Meditar sobre como as coisas seriam ou deveriam ter sido n�o servia para nada.
Existir, sobreviver, fugir, esses tinham que ser seus �nicos pensamentos, seu �nico
desejo, sua necessidade.
Aquela n�o era uma guerra entre os Estados Unidos e a Uni�o Sovi�tica; era uma
guerra entre o coronel Arkady Zamatev e ele.
Era tamb�m uma guerra com Alekhin, l� longe, procurando-o. Sabia que algum dia, em
algum lugar, iriam encontrar-se.

CAP�TULO 25

Natalya Baronas encontrava-se em p� junto � borda do pequeno e profundo vale em que


se tinham estabelecido e olhava em dire��o � ba�a Plastun.
Seu pai saiu da choupana e caminhou at� ela.
- Fico imaginando onde ele pode estar - disse ela. Baronas fez um gesto
interrogativo com a cabe�a.
- Quem � que sabe? Ele � um homem da floresta, como voc� sabe. N�o luta contra ela,
como n�s; conhece a floresta e vive com ela.
- Est�o procurando por todo canto. N�o vejo como ele pode conseguir escapar.
- Voc� o ama?
Permaneceu v�rios minutos em sil�ncio, o olhar em dire��o � ba�a, alguns fios de
cabelo suavemente agitados pelo vento.
- Como posso saber? Nem sei o que � o amor. S� sei que me sentia bem quando ele
estava por perto, inquieta quando ele se ia. Acho que � um homem forte, mas n�o sei
se � um homem s�bio.
- O que � sabedoria? - indagou Baronas. - Sempre me perguntei isso e at� hoje n�o
encontrei resposta. Compreens�o da vida e dos homens, suponho... Alguma coisa que
vai al�m do simples conhecimento, assim como o conhecimento vai al�m da mera
informa��o.
- Esse seu jovem aprendeu a sobreviver pelo menos num mundo. O coronel Zamatev n�o
teve sabedoria para perceber que capturara alguma coisa selvagem, que n�o
suportaria ficar aprisionada. Seu amigo � um ser elementar, b�sico. Seus
pensamentos s�o simples e diretos, parece-me, pois afinal n�o o conhe�o o bastante
para saber com certeza. Tenho a impress�o de que ao captur�-lo Zamatev se viu �s
voltas com muito mais do que podia imaginar. Capturou aquele homem para tirar dele
toda informa��o que conseguisse e depois livrar-se dele. Acho, por�m, que para
Makatozi a captura tornou-se um insulto pessoal e mortal. Alguma coisa que s� podia
ser lavada com sangue.
- Ele disse que voltaria. Acha que seria t�o tolo?
- Para ele n�o seria tolice. Penso que seu amigo age segundo um c�digo antigo e
muito simples.
Fez uma pausa, observando as �guas escuras da ba�a.
- As vezes me pergunto se algu�m jamais chegou a entend�-lo. Tenho certeza de que
nenhum de seus companheiros oficiais da For�a A�rea logrou isso. Provavelmente
aceitavam o que viam na superf�cie do homem e n�o se preocupavam com o resto.
Ademais, nem todas as pessoas se dedicam a estudar seus companheiros. Est�o mais
preocupadas � consigo mesmas, seus empregos, a fam�lia. Raramente se perguntam a
respeito das motiva��es dos colegas, a n�o ser que isso, de alguma forma, afete
suas vidas.
- Eu gostava dele.
- Eu tamb�m, mas acho que voc� n�o deve se prender durante muito tempo a um mero
sonho. Ele se foi, h� uma probabilidade em um milh�o de que n�o seja capturado,
morto ou ent�o que morra na taiga. Voltar para voc� � praticamente imposs�vel. Cada
cent�metro deste litoral est� vigiado por radares, al�m de constantemente
patrulhado - Baronas fez uma pausa.
Por�m, h� ainda outra coisa, n�s poderemos talvez escapar. Surpresa, virou-se para
olh�-lo de frente.
- Mas como?
- N�o quero que voc� crie falsas esperan�as, mas o americano fez com que eu
come�asse a pensar em fugir. At� ent�o eu s� queria sobreviver e permanecer bem
distante do pessoal do governo. Ele me levou a pensar no que pode ser feito. N�o
disse nada para n�o criar expectativas a que eu n�o poderia depois corresponder,
mas a fuga � uma coisa contagiosa: Mesmo que seu amigo n�o tenha feito muito por
aqui, pelo menos fez com que eu come�asse a pensar nisso. N�o estamos longe da
China.
Ela completou com um gesto:
- E o Jap�o fica logo ali.
Ele balan�ou a cabe�a, num gesto negativo.
- N�o podemos pensar em sair pelo mar. N�o temos barco. Al�m do mais n�o entendo
nada, nem de mar, nem de barco. H� tamb�m os radares e as patrulhas. Estava
pensando mais na fronteira.
- Mas tamb�m � vigiada.
- Claro, mas os guardas s�o seres humanos, t�m suas fraquezas. Onde quer que haja
homens, sempre haver� algum tentando melhorar de vida. E para isso � preciso
dinheiro.
- Mas n�o temos o suficiente.
- Quanto seria suficiente? Vamos pensar nisso, pensar onde estamos, qual � a
fronteira mais pr�xima, e vamos fazer amizade com alguns desses soldados. �s vezes
eles obt�m permiss�o para vir at� aqui pescar.
- E ent�o?
- Temos que comprar um barco pequeno, para pescar na ba�a, e poderemos emprest�-lo
aos soldados. Eles s�o seres humanos como os outros e gostam de conversar, ainda
mais com uma mo�a bonita. A� ficaremos sabendo como � patrulhada a fronteira, as
fofocas a respeito dos colegas, dos oficiais. Descobriremos quem s�o aqueles com os
quais poderemos tentar algum tipo de persuas�o. Pode ser at� que a gente descubra
um guarda que deixe a fronteira descoberta por alguns minutos.
Sorriu para ela.
- Talvez, n�o podemos deixar tudo por conta do seu jovem. Por que deveria ele
arriscar a pr�pria vida, voltando para voc�, enquanto podemos tentar fugir por
nossa conta e encontr�-lo depois?
- Mas como conseguir�amos encontr�-lo?
- N�o se esque�a de que � um oficial da For�a A�rea. Uma vez nos Estados Unidos,
acho que d� para encontr�-lo. - Andaram juntos de volta � cabana.
- N�o falei nada antes, mas, quando estivemos em Olga para vender as peles, vi
Evgeny Zhikarev.
- Zhikarev? Aqui?
- Conversamos um pouco. Foram l� fazendo perguntas. Seu amigo tem um jeito muito
especial de trabalhar as peles, eles perceberam a diferen�a. Ent�o come�aram com as
perguntas e Evgeny j� tinha passado por um interrogat�rio quando fugiu.
- N�o sei n�o, mas, pelas coisas que ele contou, desconfio que tinha planos de
fugir pela fronteira que acabaram n�o funcionando muito bem. Voc� sabe que n�s
somos velhos amigos. Percebi que a hist�ria era essa. Senti tamb�m que n�o perdeu
as esperan�as. Est� ganhando tempo, esperando alguma coisa.
- Ele sabe muita coisa a respeito da China e tem amigos entre os chineses. A
maioria dos habitantes da Manch�ria n�o gosta dos russos. Est�o sempre na
expectativa de algum incidente junto � fronteira.
- Perguntei-lhe muitas coisas e ele n�o hesitou em me contar tudo que sabe sobre a
China. Ele tem uma fixa��o por Hong Kong e acho que � para l� que pretendo ir. De
l� n�o seria dif�cil irmos para os Estados Unidos, desde que consigamos regularizar
a situa��o no consulado americano. Tenho amigos l� que s�o professores
universit�rios. Sei que me ajudariam.
Ela adiantou-se um pouco e abriu a porta da cabana. O lugar era pequeno, um pouco
afastado de tudo, e quase ningu�m se interessava por ele. Alugaram-na por uma
pequena quantia. Era uma cabana aconchegante, de dois c�modos, uma lareira e a
floresta logo atr�s, onde podiam abastecer-se de lenha. Sempre que sa�am, traziam
de volta consigo galhos de �rvores que tinham ca�do. Para lenha mais pesada, usavam
o machado.
A pesca era abundante num riacho que descia das montanhas e, com uma caminhada de
cerca de cem metros, chegavam � ba�a embaixo.
A vida ali naquela pequena cabana n�o era dif�cil, o clima era bem mais ameno do
que em sua moradia anterior, contudo n�o tinham amigos, raramente falavam com
outras pessoas, a n�o ser de vez em quando, um ou outro ca�ador ou pescador. Talya
perguntou:
- O que pensam a nosso respeito? - Ele minimizou.
- Deixo eles pensarem que eu me aposentei por problemas de sa�de. Mas n�o vai
demorar muito para que algu�m do governo resolva fazer investiga��es. � com voc�
que eu me preocupo.
- Ent�o, vamos fazer nossos planos. Vamos conversar melhor com Evgeny Zhikarev e
comprar o tal barco. Acho que n�o vai ser dif�cil achar um j� usado, e temos o
dinheiro das peles.
- Deixei algumas armadilhas - disse ela. - H� raposas por aqui.
Dentro da cabana estava quente. Enquanto fazia ch�, pensava nele. Onde estaria Joe
Mack naquele momento? Ser� que estava tudo bem? Estaria protegido do frio? Estaria
ainda em liberdade? Jamais conseguiriam saber. Esse tipo de informa��o n�o
costumava circular pela R�ssia, embora nesse caso, em torno do qual se armara tanta
confus�o, talvez acabassem sabendo alguma coisa. Quando a persegui��o terminasse,
saberiam da captura.
Alguns dias depois, tr�s soldados chegaram � foz do rio para pescar. Eram bem
jovens, quase adolescentes, e ela mostrou-lhes o melhor lugar onde pescar. Mais
tarde foram at� a choupana para tomar ch�. Eram meio quietos, quase t�midos.
- Temos ch� - disse um deles. - � parte de nossa ra��o.
- Obrigado. Temos que ir t�o longe para compr�-lo e �s vezes nem tem para vender.
- No Ex�rcito nunca falta - comentou um deles, orgulhoso.
- Mas todo o peixe que comemos � enlatado - completou o outro. - E na minha cidade
natal a gente sempre pescava. - Eles eram simp�ticos e logo perderam a timidez. Os
tr�s estavam h� muito tempo longe de suas casas e sentiam-se s�s. Serviam em Iman,
na fronteira.
Stephan Baronas continuou a conversa e fez com que falassem das fam�lias, dos
planos que tinham. Um pretendia continuar no Ex�rcito; outro queria voltar para a
vida civil e estudar engenharia. Servira junto � nova estrada de ferro que estava
sendo constru�da e observou os trabalhos. Era bom em matem�tica e um dos
engenheiros conseguiu sua designa��o como ajudante, aprendendo ent�o bastante
coisa. J� tinha encaminhado toda a papelada e seu comandante recomendara-o.
Chamava-se Bocharev, e falou tamb�m a respeito de descer as correntezas do rio
Iman.
- O capit�o n�o vai deixar - temeu um dos garotos.
- Vamos ver - desafiou Bocharev. - J� fiz isso antes.
- � muito perigoso. S� os nativos conseguem faz�-lo. - Voltaram duas semanas depois
e dessa vez levaram ch�. Bocharev colocou-o sobre a mesa.
- Voc�s foram muito bons conosco - falou-lhes. N�o temos ningu�m com quem
conversar.
- Obrigada - respondeu Natalya.
Eram ainda muito jovens e aquela era a primeira vez que se encontravam longe de
suas casas.
- Meu pai tem problemas de sa�de, por causa disso precisa morar perto do mar. Mas
ele ainda tem esperan�a de poder um dia lecionar de novo.
- Meu pai talvez possa ajudar - disse Bocharev. Ele trabalha para o governo. Tem
muito a ver com a designa��o de pessoas para determinados lugares. Depois que eu
entrei para o Ex�rcito, ele mudou de fun��o, para uma mais importante, embora eu
n�o saiba exatamente o que faz.
- Estou satisfeito em poder descansar durante algum tempo - retrucou Baronas. - A
vida aqui n�o � m�. Estamos muito agradecidos pelo ch�.
- N�s voltaremos aqui - agradeceu Bocharev. - Voc�s s�o gente boa.
Duas semanas depois, estava morto, afogado nas correntezas do rio Iman.
Os outros dois trouxeram essa not�cia e tamb�m mais ch�.
- Ele j� tinha arranjado este para voc� - olhou-a maliciosamente. - Da parte do
comiss�rio.
- Eu sinto muito - lamentou Baronas. - Era um bom rapaz.
Quando eles foram embora, Baronas dirigiu-se a um lugar na colina onde gostava de
ficar. Era uma enorme pedra, plana, sob alguns cedros, de onde se tinha uma bela
vista da ba�a. Natalya tamb�m foi at� l�.
- Sinto-me bem aqui - disse ele. - Se pudesse ficar... Por�m, mais cedo ou mais
tarde v�o perceber que n�o somos daqui e a� nos mandam embora.
- E n�o podemos ent�o partir antes que isso aconte�a? - Ele fez um gesto de d�vida
com a cabe�a.
- Precisamos ao menos tentar. Irei outra vez � ba�a Olga falar com Evgeny. � um
homem muito esperto e talvez possa ajudar-nos.
- Fico pensando onde ele estar� - murmurou a filha. - Temo pelo que lhe possa
acontecer.
- Ele n�o quer que pense assim. Se h� algu�m capaz de sobreviver na taiga, essa
pessoa � Joe Mack - fez uma pausa. - Talya, se conseguirmos fugir, entraremos em
contato com a unidade a que pertence, com seu oficial comandante, e contaremos o
que aconteceu. Dessa forma, descobriremos se l� sabem de alguma coisa. Acredite-me,
eles t�m maneiras de saber e talvez at� de ajud�-lo.
Virando-se, ela caminhou de volta � cabana. Havia muito trabalho e isso lhe dava um
certo prazer. O mar tornara-se cinzento e o vento soprava com maior for�a. As ondas
violentas quebravam junto � praia, o vento gemia entre os �speros pinheiros. Uma
tempestade estava a caminho, e as tempestades de inverno podiam ser longas e
penosas. O pai deixou seu lugar na pedra e foi apanhar lenha para acender o fogo de
que iriam precisar.
Ia andando sob as �rvores e pegava galhos ca�dos, juntava peda�os de cascas de
�rvore mortas no ch�o. E essas cascas serviriam para fazer pegar o fogo. Tirou
alguns peda�os de um tronco de pinheiro que estavam cheios de resina.
Por enquanto estariam aquecidos e com um certo aconchego; al�m do mais, tinham
comida suficiente. Acostumaram-se a viver com muito pouco.
O pai entrou com os bra�os cheios de lenha, que depositou numa caixa. Ficou por
alguns instantes em p� junto � porta, observando a ba�a onde batalh�es mar�timos
marchavam continuamente contra a praia, atacando-a em intermin�veis alinhamentos de
espuma. O vento tornara-se mais violento. Fechou a porta e aproximou-se do fogo.
- Tenho alguma coisa cozinhando - disse Natalya. - Logo estar� pronto.
Seu olhar perdia-se nas chamas.
- Tenho fome de livros, n�o de comida - comentou. - Tenho t�o poucos - fez um gesto
em dire��o � porta. - Est� acontecendo tanta coisa l� fora e eu n�o sei quase nada
a respeito. Estudiosos descobrindo coisas novas, publicando, fazendo confer�ncias.
E eu, aqui, n�o sei nada disso. Mesmo n�s, na Uni�o Sovi�tica, sabemos de t�o
pouco, quase tudo que acontece nos escapa. O conhecimento � feito para ser
compartilhado, e a maior parte dele est� sendo. H� tanto que se aprender, mas o
tempo � t�o pouco! Quando era jovem e estava passando um ano em Paris... Que
maravilha! And�vamos pelas salas, pelas ruas, discutindo, recitando poesias entre
n�s, discutindo todas as poesias, tudo que estava acontecendo. Fal�vamos de
Tolstoi, Balzac, Cervantes e Fielding! Que maravilha! Beb�amos litros de caf� e, �s
vezes, quando o dinheiro dava, vinho; discut�amos a respeito de tudo! Foi uma �poca
maravilhosa aquela! E depois, quando era um pouco mais velho e n�o vivia mais em
Paris, costum�vamos nos reunir em casa ou �s vezes em um caf� e conversar a
respeito de livros, do movimento das id�ias. Mesmo naqueles dias, em que �ramos
pobres, sempre havia livros. Havia livrarias, pod�amos ler de tudo. A mente livre
para navegar em qualquer dire��o; o mundo das id�ias � um imenso universo de mundos
ainda n�o explorados, e t�nhamos liberdade de ir para onde bem entend�ssemos!
Continuou, saudoso: - Mas isso � coisa do passado. Contudo, gostaria de sentar com
homens como eu e ouvir deles o que fizeram, o que est�o fazendo. A cada suspiro que
damos, novos caminhos est�o sendo descobertos. Nos Estados Unidos, na Inglaterra,
Fran�a, Alemanha Ocidental, as pessoas s�o livres para pensar o que quiserem e
escrever o que pensam! A R�ssia tem tanto que oferecer e ao mesmo tempo tanto ainda
que aprender! Dev�amos ser parte disso tudo em vez de estarmos assim confinados,
como se fosse numa pris�o. Eu n�o sou russo, mas vivi, pensei e trabalhei tanto
neste pa�s que me sinto parte dele. Nosso crescimento, por�m, est� sendo impedido
por restri��es, regulamentos feitos por uns idiotas que se defendem contra sombras
que s� existem nas suas cabe�as! Quantos de nossos melhores bailarinos fugiram,
indo para a Europa e Estados Unidos. N�o � que amem menos a R�ssia; � que,
simplesmente uma arte precisa crescer. Querem fugir deste casulo que � a R�ssia e,
como uma borboleta, esticar as asas em um mundo maior, com maiores desafios. O
artista precisa ser livre, precisa poder inovar, precisa de oportunidades, precisa
criar. - Balan�ou a cabe�a, meio sem jeito.
- Eu falo demais, Talya! Mas temos de fugir! Temos de ir para um mundo maior, onde
possamos respirar fundo, esticar nossos m�sculos mentais e ver o que acontece em
volta de n�s!
Em algum lugar na floresta l� fora uma �rvore rachou-se ao meio, quebrada pelo
vento que bramia sobre suas cabe�as com for�a descomunal. Felizmente a cabana era
pequena, solidamente constru�da e aninhada entre as pedras. As ondas quebravam com
for�a na praia, e ela finalmente adormeceu.
A tempestade soprou durante tr�s dias seguidos. Choveu, chegando a nevar nos
lugares mais altos. Quando finalmente o tempo limpou, sa�ram de manh� para catar os
galhos ca�dos e todos os restos deixados pela tempestade.
L� na praia surgiu um barco naufragado e a sua volta juntaram-se algumas pessoas. A
proa estava firme na areia, somente a popa encontrava-se ainda na �gua. Durante
alguns instantes, Baronas ficou a observar o barco. Era de bom tamanho, quase uns
vinte metros de comprimento, e fora constru�do para enfrentar o alto-mar. O mastro
quebrara-se, mas mesmo daquela dist�ncia, n�o parecia por demais avariado.
Mais tarde, quando j� tinham apanhado a lenha que queriam e voltado para casa com
mais combust�vel para o fogo, virou-se para fechar a porta.

Um carro modelo Volga vinha subindo pela estradinha �ngreme que ia at� o vilarejo.
Havia um motorista e, no banco traseiro, um homem com casaco de pele.
Stephan Baronas sentiu a boca secar e uma opress�o no t�rax.
- Talya - falou suavemente. - Acho que estamos numa enrascada.
Era um carro oficial. Naquele terreno s� passava mesmo um Volga.
- Talya - pediu. Venha c�. Precisamos estar juntos quando chegarem.

CAP�TULO 26

As florestas eram escuras e silenciosas. Ca�a uma neve pesada e n�o se ouvia nada
al�m de um murm�rio, vago, mas percept�vel.
H� dois dias, atravessara o rio Maymakan e escondera-se no fundo da floresta. Achou
uma esp�cie de abrigo constru�do por algum ca�ador, um lugar r�stico, escondido,
desocupado h� muito tempo, mas bem protegido.
Quando se aproximava do Maymakan, ouviu um ronco de motor no c�u. Por um instante,
ficou im�vel sob uma �rvore. Havia poucas �rvores ali, muito espalhadas, um ou
outro riacho, alguns quase s� lama, e filas de montanhas erguendo-se acima da
floresta. Ficou atento ao ru�do. N�o apenas um, mas diversos avi�es sobrevoavam a
floresta. Aquela busca era mais intensa que todas as anteriores, e at� que os
avi�es se afastassem n�o fez o menor movimento; a�, correu em dire��o a um conjunto
mais denso de �rvores. Vinham vindo mais avi�es, e ele sabia que as margens do
Maymakan estariam estreitamente vigiadas.
Mal tinha andado uns mil metros quando ouviu outro som, uma ordem de comando dada
num tom r�spido. Colado a um tronco, observou. Mais abaixo, a pouco mais de cento e
cinq�enta metros de dist�ncia, um pelot�o de soldados armava seu acampamento.
Esgueirou-se para tr�s, de volta � floresta, e andou em linha reta uns oitocentos
metros, na dire��o oposta ao acampamento.

Ao ouvir um helic�ptero, foi para baixo de um choupo e agachou-se na neve.


Tinham descoberto sua localiza��o. N�o iam autorizar aquela busca se n�o soubessem
com alguma certeza que estavam perto dele; caso contr�rio, n�o iam desperdi�ar
for�a humana nem combust�vel. Ficou parado, aguardando.
Teriam percebido as pegadas sobre a neve? O helic�ptero estivera voando
suficientemente baixo para isso.
N�o tinha import�ncia. Assim que o pelot�o tivesse comido, espalhariam-se numa
frente de escaramu�a e penetrariam a floresta. Sem d�vida havia outros grupos como
aquele procurando-o. Mover-se agora seria um erro, por�m, quando ca�sse a noite...
Atravessara o Maymakan congelado, andando sobre o gelo, e dirigira-se imediatamente
para aquela floresta onde encontrara o abrigo abandonado. A neve que ca�a apagaria
as pegadas e, se permanecesse im�vel, n�o deixaria outras. Era muito pouco prov�vel
que algu�m soubesse daquele lugar, ficaria escondido ali o maior tempo poss�vel.
Era j� o terceiro dia e a busca parecia ir-se afastando um pouco daquela �rea. Seu
esconderijo ficava sobre uma pequena colina, cercada dos dois lados por um vale
completamente coberto pela mata e um riacho no fundo de cada um. Bem perto havia
ainda uma nascente; seja l� quem fosse que tivesse constru�do o abrigo, escolhera
muito bem o local. Comida n�o era problema, ainda sobrava um pouco daquela que
roubara no dep�sito de mercado negro junto � mina abandonada. Sentou-se bem quieto,
esperando que n�o o encontrassem.
Do jeito que s�o os soldados, duvidava que algum deles resolvesse subir o flanco
inclinado da montanha para chegar aonde se encontrava. Dariam uma olhada e o lugar
lhes pareceria vazio e suficientemente inofensivo. Mais e mais Joe Mack pensava a
respeito da pessoa que constru�ra o abrigo. Obviamente, n�o queria que fosse
descoberto, pois o escondera com muita habilidade. Na tarde do quarto dia, retomou
sua caminhada.
O ch�o estava todo coberto pela neve, afora um ou outro peda�o de onde o vento a
levara embora. Nos dias em que permaneceu escondido, pela terceira vez tornara a
fazer mocassins, dessa vez dos cascos do �ltimo alce morto. N�o seria f�cil andar
com eles, tampouco poderia mover-se com velocidade; eram feitos de modo a poder
prend�-los sobre o cal�ado que estivesse usando. Um rastreador experiente
provavelmente perceberia rapidamente a inten��o, mas para um homem comum os rastos
pareceriam os de um alce.
Atravessava um campo coberto pela neve, usando os cascos de alce. Tirou-os ao
chegar a um trecho sem neve.
Fora um dia vagaroso, cheio de cuidados, que terminava na escosta de uma montanha
que dava para uma estrada e uma torre transmissora de eletricidade.
Observou a estrada por mais de uma hora. O movimento era m�nimo. Calculava estar no
m�ximo a cem quil�metros do mar. Estava na hora de tornar a se afastar do litoral,
pois sua �rea de operac�o ia se tornando excessivamente limitada. Logo poderia ser
visto sem que se desse conta. Havia ali movimento demais, todas as probabilidades
lhe eram desfavor�veis.
Ficou parado, escutando. Mantendo-se coberto desceu a montanha, viu passar um
caminh�o, depois um carro. Agu�ou os ouvidos e nada percebeu, a neve ca�a r�pida e
pesada. Saiu do mato, cruzou a estrada, passou sob os fios de eletricidade e
escondeu-se no mato novamente. A neve estava alta no ch�o, exceto sobre a estrada,
onde o tr�fego a dissipara.
Andando no rumo norte, afastando-se da estrada, seguiu por uma floresta t�o densa
que n�o via mais que alguns metros � frente. Durante o dia ainda, sob um frio
cortante, deitou-se em uma caverna que cavara dentro de um monte de neve acumulada,
socando bem os lados com as m�os e cortando um bloco de neve para servir de
entrada. Com o arco empurrou a neve no topo para fazer um buraco de ventila��o e
deixou-o ali para manter o buraco aberto.
Escorregando para fora da caverna de neve, pegou dois galhos do tamanho apropriado,
levou-os de volta � caverna e tirou as folhas, deixando as duas estacas bem lisas.
Esquentou-as no fogo, lentamente, dobrando-as um pouco de tempo em tempo. Quando
estavam suficientemente macias, dobrou-as numa forma ovalada, amarrando as pontas,
e fez um tran�ado com tiras de couro cru que guardara, para prender os dedos e o
dorso do p�.
Durante dois dias permaneceu na caverna, aperfei�oando os sapatos para neve e
simplesmente aguardando. A busca prosseguia, de vez em quando ouvia avi�es
sobrevoando e, uma vez, um helic�ptero indo bem baixo, junto � copa das �rvores.
Nevara muito e qualquer vest�gio que tivesse deixado j� fora coberto h� muito
tempo. Na tarde do terceiro dia, saiu da caverna, destruiu-a e retomou a caminhada
atrav�s da floresta, balan�ando o corpo ao andar com os sapatos de neve.

Evitava as trilhas, caminhando pelo flanco das montanhas, alerta a qualquer ru�do,
a qualquer grupo de busca. A temperatura ca�ra mais ainda e o frio era penetrante.,
Gradualmente, seu corpo fora se acostumando ao frio, ainda assim tomava cuidado
para n�o suar e para n�o cair no ch�o.
Pelo que conseguiu calcular, percorrera mais uns trinta quil�metros, at� chegar �
outra estrada. N�o havia marcas de pneu sobre a neve. Hesitou por um momento.
Cruzar a estrada significava deixar pegadas, e a neve n�o estava caindo mais t�o
seguidamente; contudo, n�o tinha alternativa. Atravessou a estrada e entrou na
mata.
Embora estivesse muito bem agasalhado, com apenas uma abertura para os olhos, seu
rosto enrijecia de frio. Estava h� muito tempo exposto ao frio e a comida ia
diminuindo. Logo teria que ca�ar alguma coisa. Carne, especialmente gordura, era
fundamental.
At� ent�o, viajara pelas florestas cerradas, geralmente � noite, mesmo assim fizera
uns �culos de casca de �rvore, com umas frestas por onde pudesse olhar. Poderia
us�-los para proteger-se da intensa luminosidade refletida pela neve.
Andava lentamente floresta adentro quando se voltou para olhar atr�s. N�o ouvira
barulho algum, por�m um carro parara e dele descera um homem para examinar as
pegadas. O homem olhou para cima e descobriu-o imediatamente. Joe Mack se achava
justamente no come�o da floresta, mas devia estar bem vis�vel, pois o homem correu
em dire��o ao carro. Suas inten��es eram �bvias, Joe Mack rapidamente pegou uma
flecha da aljava. Enquanto o homem virava-se em sua dire��o, esticou o arco e
soltou a seta. Ao ser atingido, o homem come�ava a apontar o rifle para Joe Mack.
Cambaleou, as m�os agarradas � garganta, o rifle disparando ao cair sobre a neve.
Joe Mack aproximou-se Correndo, parou e estirou mais uma vez o arco, pois o outro
ainda tentava ficar em p�. A flecha atingiu-o certeira, a menos de vinte metros de
dist�ncia, Rapidamente retirou as flechas do corpo, perdeu a ponta de uma e guardou
a outra de volta na aljava. Estava quente dentro do carro. Havia um embrulho e um
rev�lver num coldre, al�m de cartuchos e um estojo com comida de emerg�ncia. Pegou
tudo e parou subitamente.
Inclinando-se, apanhou o corpo do homem morto e jogou-o dentro do carro. Colocou
junto o rifle. O motor continuava funcionando. Tirou os sapatos de neve, sentou-se
e saiu dirigindo. Adiante deveria encontrar um vilarejo.
Dirigiu sem parar. Nenhum outro carro. J� era tarde. Ao pensar nisso olhou para o
corpo a seu lado e parou o carro. N�o precisou mais de um minuto para tirar-lhe o
rel�gio de pulso e o pouco dinheiro do bolso. Abandonaria o carro e o cad�ver,
talvez pensassem que fora assaltado por marginais.
O vilarejo - quando l� chegou depois de dirigir uns cinq�enta quil�metros - n�o
passava de um grupo de casas e cabanas. Obviamente, tratava-se de algum posto
avan�ado, ainda que n�o houvesse eletricidade. Levou o carro at� a sombra de uma
cabana, desceu e pegou os sapatos de neve, os mantimentos e seu embrulho. A�
caminhou para a noite e a neve que o vento fazia girar em redemoinhos.
Amanh� encontrariam o carro. Se tivesse um pouco de sorte, n�o se lembrariam dele
imediatamente. Se fizessem uma aut�psia - o que duvidava - encontrariam sua ponta
de flecha. Saindo da estrada, embrenhou-se pela floresta no sentido noroeste.
Era tudo branco e silencioso; a neve ca�a mansamente e poderia cobrir qualquer
rasto que porventura deixasse. De qualquer forma, tinha que arriscar. Seguiu em
frente, dentro da noite, caminhando num ritmo regular.
Agora tinha comida suficiente para um ou dois dias, al�m do rev�lver, que usaria s�
em caso de extrema necessidade. N�o quisera o rifle para n�o chamar a aten��o,
podia ca�ar igualmente bem com arco e flecha.
Uma hora depois de o dia ter clareado, fez uma caverna de neve e engatinhou para
dentro. Adormeceu quase imediatamente.
O homem que matara n�o hesitara em atirar. Poderia ter sido ferido ou at� mesmo
morto. O que o preocupava � que o homem n�o vacilara, o que significava que sabia
quem era ele e provavelmente estava envolvido na sua captura.
Estavam chegando mais e mais perto. Era a �nica forma de explicar o que tinha
acontecido. Fechavam o cerco e sabiam que estava precisamente naquela �rea. A
resposta para isso era sair dali o mais depressa poss�vel.

A comida que pegara do carro durara tr�s dias. Depois disso matara um veado. Estava
agora na taiga e desde que abandonara o carro n�o encontrara mais vest�gio algum de
seres humanos. Acampou, fez uma caverna de neve e assou carne de veado. Na medida
em que se afastava do litoral, terminavam seus abrigos improvisados no gelo, pois a
neve n�o era t�o densa mais para dentro do territ�rio.
Ao anoitecer, abrigado na caverna, acendeu um pequeno fogo, com um refletor que
levasse o calor para dentro, e avaliou sua situa��o.
Conduzido por outro Volga preto, Alekhin chegou a Topka ao anoitecer daquele mesmo
dia. Peter Petrovitch aguardava-o no escrit�rio da fazenda coletiva.
- N�o tenho a menor id�ia de quanto tempo ficou l� - disse ele. - Fazia muito frio
e n�o havia ningu�m andando por a�, a n�o ser da casa para o celeiro. Seja l� como
for, o homem estava morto j� h� algum tempo.
Foram andando at� o carro. N�o havia sangue nenhum no assento e o corpo estava ao
lado do motorista. Seu rifle tinha sido disparado, por�m n�o havia nenhum cartucho
vazio no carro. A comida de emerg�ncia que levava consigo desaparecera, assim como
o rev�lver, o rel�gio de pulso e o dinheiro.
- Ladr�es - observou Peter Petrovitch. - Roubam qualquer coisa de que consigam
chegar perto.
Alekhin abriu as roupas do homem morto para examinar o ferimento. Era redondo e n�o
muito grande. Poderia ter sido feito por uma bala, por�m alguma coisa prevenia-o de
que n�o fora esse o caso.
Em uma mesa, no interior da casa, tirou do corpo o casaco e a camisa. Nas costas do
homem morto havia um protuber�ncia. Fazendo um corte com sua faca, Alelchin
descobriu uma ponta de flecha.
Peter Petrovitch estava boquiaberto.
- Uma flecha! N�o � poss�vel! Aqui n�o h� selvagens!
- Existe um, sim! O americano.
- O americano? Voc� est� brincando comigo. Como � que ele ia viver esse tempo todo
na taiga? O frio, uma regi�o completamente in�spita, e principalmente o frio
glacial...
- Acontece que ele existe, e esteve aqui.
Alekhin refletiu sobre os ind�cios, remoendo-os na cabe�a. Era evidente que o homem
morto vira Makatozi, apenas errara a pontaria.
Seu rev�lver desaparecera, junto com a muni��o apropriada, mas o rifle tinha
ficado.
- Voc� quer dizer que esse tal americano esteve aqui? Est� achando que foi ele quem
o matou?
Alekhin ignorou-o. O americano tinha um arco, uma flecha e n�o precisava, nem
queria, de um rifle. Matara aquele homem com uma flechada e depois o arrastara para
dentro do carro que dirigira at� ali. � verdade que aquela estrada n�o ia a lugar
nenhum, a n�o ser que se desse uma grande volta ou indo at� Nel'kan. E o americano,
mais uma vez, caminhava para o norte.
Por que teria ido para leste? Encontrar algu�m? Ficar por algumas semanas num clima
um pouco mais quente? Se quisesse ir at� o litoral de carro, seria muito f�cil e
provavelmente poderia entrar dirigindo em Nel'kan sem que ninguem o notasse.
Kurun-Uryakh? L� havia um bom campo de avia��o, uma boa base para alguma aeronave.
O americano encontrava-se a leste do rio Maya e vivia na floresta. A comida que
levara consigo n�o ia durar muito tempo ainda, o que o obrigava a matar algum
animal para obter carne.
- A gente pega ele - murmurou Alekhin. - Agora a gente pega ele.
Suvarov! Aquele idiota! Sentado ali com todos aqueles soldados, o americano
simplesmente passara-lhes ao redor e eles ficaram l�, sentados. Alekhin deu uma
risadinha. Suvarov fracassara, ele, por�m, ia capturar o americano. Entrou no
carro. Leve-me at� o helic�ptero - ordenou.
- Podemos ajudar em alguma coisa? - perguntou Peter. Fiquem longe do nosso caminho
- retrucou bruscamente Alekhin. - N�o precisamos de voc�s.
O helic�ptero o levaria at� Kurun-Uryakh. Lembrou-se de que l� havia tamb�m uma
mina de ouro e que provavelmente disporia de comunica��o com outros locais.
Quando o helic�ptero iniciou o v�o, Peter Petrovitch dirigiu o carro de volta at�
Totta. Era um jovem calado, estudioso, que trabalhava seriamente procurando evitar
complica��es. Era um administrador competente, sempre se impacientava com as
limita��es que lhe eram impostas pela burocracia, mas, ainda assim, tratava-se de
um cidad�o sovi�tico leal. Lera muito a respeito dos Estados Unidos e v�rias vezes
ouvira no r�dio a Voz da Am�rica e transmiss�es da BBC, preferindo estas �ltimas.
N�o gostava dos Estados Unidos. Seu governo parecia-lhe muito confuso, fraco at�.
Como habitante da R�ssia, jamais conhecera outra coisa diferente de um governo
central forte. Tampouco seus pais, av�s e bisav�s. Antes de Lenin e Stalin,
existiram os czares.
Tinha dois pares de jeans americanos, alguns discos de rock e at� alguns livros
americanos traduzidos para o russo.
Lera tudo que conseguira encontrar de Jack London, e por isso tinha uma enorme
simpatia por aquele americano solit�rio errando pela taiga. Se o visse,
imediatamente avisaria as autoridades, mesmo assim simpatizava com ele. Algu�m lhe
dissera que o homem era um �ndio Sioux e Peter Petrovitch tinha lido um relato
sobre a batalha de Little Big Horn.
Diziam ainda que o �ndio era piloto, mas isso ele n�o conseguia imaginar. Parecia
imposs�vel. Por�m, havia pilotos Yakut e at� um de seus escritores favoritos era
Yakut. Ele mesmo era de Kiev. Oferecera-se para trabalhar na Sib�ria por causa do
excelente sal�rio e pelas melhores possibilidades de progredir.
Dirigiu de volta para casa e guardou o carro na garagem. Estava pensando em tomar
uma boa x�cara de ch�, talvez com um pouco de Vodca para afastar o frio.
Abriu a porta e fechou-a cuidadosamente. Agora, relaxar! Tomar o ch�, um pouco de
vodca e ler!
Ao virar-se para dentro da sala, deu com um cano de rev�lver apontado para ele.
O homem que segurava o rev�lver era o americano. Era ele o �ndio. E o rev�lver
estava firme; nos olhos cinzentos, g�lidos, nenhuma piedade.
- Antes de mais nada - disse o americano vamos comer.

CAP�TULO 27

Peter Petrovitch estava surpreso, n�o s� com a presen�a do americano mas tamb�m com
sua pr�pria rea��o. N�o sentiu medo. N�o ficou nem sequer nervoso.
- Tamb�m estou com fome - respondeu em ingl�s. Pode baixar esse rev�lver.
- Obrigado, mas tenho uma afinidade irresist�vel por esse rev�lver. Tome muito
cuidado, porque n�o quero mat�-lo.
- Com o homem do carro voc� n�o teve toda essa compaix�o.
- Ele ia atirar em mim, n�o me deixou alternativa. Um de n�s dois ia morrer e voc�
pode imaginar como fiquei em d�vida...
- Voc� sabe muito bem que n�o vai conseguir fugir. Est�o perto de voc�. O pr�prio
Alekhin esteve aqui.
- Aqui?
- �, aqui mesmo. Foi para o norte, de helic�ptero, achou que voc� tivesse ido nessa
dire��o. Foi para Kurun-Uryakh, junto ao rio Maya.
Peter estava esquentando um pouco de ensopado. O cheiro era muito bom.
- Prefere ch� ou caf�?
- Qualquer um est� bem. Tenho tomado muito ch� aqui neste seu pa�s.
- Eu tamb�m - Peter observou-o melhor. - Me disseram que voc� � �ndio.
- Sioux. A palavra �ndio � muito vaga. � a mesma coisa que dizer europeu.
- Mas, e os olhos cinzentos?
- Um av� meu era escoc�s. Mas isso n�o � t�o raro assim. Crazy Horse tinha olhos
cinzentos e cabelo arruivado.
Estava quente na sala. O aroma do caf�, do ensopado e o calor atra�ram-no para o
conforto. Para reagir, p�s-se de p�.
- Pode vir algu�m aqui?
- N�o. Sabem que eu leio muito durante a noite. A n�o ser que venha algu�m a sua
procura.
- Se vier algu�m, por favor, fique fora. N�o gostaria de matar um bom cozinheiro.
Peter sorriu.
- N�o sou nenhum her�i. Assim que tiver ido embora, avisarei imediatamente as
autoridades. Est� claro?
- Perfeitamente - colocou o rev�lver na cintura. - Estavam todos me esperando mais
ao norte, por isso, dei esta volta. Duvido que algu�m fosse achar que eu voltaria
at� aqui.
Continuaram conversando calmamente e Joe Mack se esfor�ava para continuar falando.
O calor e o conforto estavam fazendo com que ficasse sonolento. Se adormecesse,
estava liquidado. N�o achava que aquele jovem fosse atac�-lo, mas certamente
tentaria captur�-lo. Ou pelo menos tomar-lhe o rev�lver.
Quando ficou pronto o ensopado, sentaram-se � mesa, um defronte ao outro, Joe Mack
olhando a porta de entrada. A janela estava coberta de neve e gelo, algu�m de fora
n�o conseguiria ver coisa alguma.
- N�o seja ambicioso, - avisou Joe Mack - s� porque o rev�lver est� na cintura. Sou
muito r�pido no gatilho.
- J� ouvi falar dos cowboys e sua rapidez. Ent�o � verdade mesmo? Aquelas disputas
que a gente v� nos filmes aconteciam pra valer?
- Muito mais ainda. � claro que isso tamb�m acontecia por aqui, s� que voc�s as
chamavam de duelos. Seu poeta Pushkin foi morto num deles.
- Conhece Pushkin? - Peter estava surpreso.
- Mas � claro. Li muitos escritores russos.
A comida estava boa e durante um certo tempo comeram em sil�ncio. Joe Mack tinha os
ouvidos atentos a qualquer ru�do de fora, mas esperava que n�o houvesse nenhum.
Com os olhos examinou bem aquela sala. Esse sujeito lia muito. Havia mapas tamb�m.
Daria uma olhada depois. Terminou de comer e serviu caf� para ambos.
- Voc� n�o parece um selvagem. - Joe Mack sorriu.
- A maioria dos �ndios n�o � selvagem. S�o pessoas civilizadas, trabalhadoras.
Seus olhos encontraram-se com os de Peter Petrovitch.
- Eu n�o sou como eles. Eu sou selvagem.
- Mas...
Fez um gesto circular.
- Tudo isso aqui em volta... A floresta, a natureza... Isso a� � meu lar. Cada dia
eu percebo que estou regredindo. E aqui - levou a m�o ao cora�ao - sou �ndio puro.
Para todos os efeitos, estou fugindo, devo vencer essa batalha, escapar disso aqui.
Por�m, por v�rios motivos, preferia ficar aqui.
- Tornar-se um russo? Mas tenho certeza de que isso pode ser resolvido.
- J� me fizeram algumas propostas. Mas voc� n�o est� entendendo. Estou tentado a
desistir da fuga, ficar aqui na floresta e declarar minha guerra pessoal contra a
Uni�o Sovi�tica.
- Mas isso � uma loucura!
- Pode ser, talvez at� seja. Mas o seu povo declarou guerra contra mim. Obrigaram
meu avi�o a descer no mar, me prenderam e tentaram me interrogar. E, quando isso
tivesse terminado, iam me matar, acho - terminou o caf�. - Sinto-me aviltado e
insultado.
Peter Petrovitch tornou a encher as duas x�caras.
- Voc�s, os americanos, est�o se preparando para a guerra. Mas temos que descobrir
como est�o se preparando.
- Os americanos n�o desejam a guerra. Nenhuma pessoa sensata deseja. Para qu�?
Temos tudo de que precisamos. E aquilo que n�o temos podemos fabricar ou ent�o
comprar. Podemos viajar para qualquer lugar do mundo. N�o temos nenhum muro de
Berlim para nos impedir.
- Muitos russos tamb�m viajam - afirmou Peter.
- � claro. H� milhares de russos no Afeganist�o e muitos est�o morrendo l�. Talvez
as viagens fa�am mal aos russos. - sorriu - Mas nem precisamos discutir; tenho
certeza de que jamais concordar�amos. E se convers�ssemos a respeito de livros?
- Tenho muita curiosidade a seu respeito.
- O coronel Zamatev tamb�m tem. Mas eu n�o era nada para ele, s� uma coisa para ser
usada e jogada fora. Isso � uma ofensa contra meu pa�s, contra a minha pessoa, e
isso ele vai ter que pagar.
Peter Petrovitch sorriu incr�dulo.
- Pagar? Como � que voc� vai faz�-lo pagar? Voc� n�o pode nem encontr�-lo. N�o pode
ir at� onde est�; n�o tem maneira alguma de chegar at� ele. Voc� n�o passa de um
prisioneiro, entre muitos outros.
- Mas eu sou diferente. Sou o prisioneiro que fugiu.
Peter desdenhou.
- D� na mesma. Escute, por que n�o se entrega aqui mesmo? Posso ver se consigo
algum tratamento especial.
Joe Mack voltou a ficar em p�. Sentia repulsa pela id�ia de sair mais uma vez para
o frio, de ter que achar um lugar para dormir num monte de neve, mas n�o tinha
escolha. Se dormisse ali, teria um sono muito pesado. Mesmo se amarrasse Peter
Petrovitch bem amarrado n�o estaria seguro. O sujeito podia conseguir desvencilhar-
se.
- Fa�a um embrulho, com comida. Mexa-se com todo o cuidado e procure n�o cometer
erro nenhum.
Mostrou com o dedo as coisas que queria e ficou olhando o pacote ser feito, os
olhos indo de um para outro lado, atentos ao menor detalhe.
- Tem um rev�lver?
Peter demorou um pouco para responder.
- Na floresta � preciso andar armado. H� animais selvagens e tamb�m os assaltantes.
- Assaltantes, na Uni�o Sovi�tica?
- Eles sempre estiveram aqui. � sua forma de vida. Assaltam, roubam e �s vezes at�
matam.
- Mais uma raz�o para eu levar outra arma ou, ent�o, mais muni��o para esta aqui.
Fez um gesto com o cano do rev�lver.
- Depressa, n�o tenho mais tempo,
- Vai congelar l� fora. Est� mais de quarenta abaixo de zero.
- j� esteve muito mais frio do que isso.
Apanhou o embrulho e foi andando de costas at� a porta. De repente disse:
- Ponha as m�os para tr�s.
- O que � isso? Espere um pouco...
- Ou ser� que prefere o cano do rev�lver na sua cabe�a?
Quando terminou de amarrar Peter, ergueu-o e colocou-o na cama. Ent�o p�s bastante
lenha no fogo.
- Para voc� n�o congelar. Quando terminar de queimar j� ser� dia claro e vai
aparecer algu�m.
Vasculhou as gavetas at� encontrar o que queria: Muni��o de sobra para o rev�lver,
que ali�s era de um tipo bem comum. Apagou as luzes, pegou suas coisas e saiu para
a noite. Rapidamente, deu a volta na casa, rumou para leste, colocando, enquanto
andava, seus r�sticos sapatos de neve. Caminhava ligeiro, mantendo sempre o mesmo
ritmo, em dire��o ao mar.
Horas depois, virou para o norte, mudou de dire��o diversas vezes e por fim pegou
novamente o sentido norte. Retirou os sapatos de neve e pendurou-os nas costas,
sobre a carga, e chegou a uma trilha no meio da floresta por onde p�de correr com
facilidade, por um bom tempo. Ao raiar o dia calculava estar a uns trinta
quil�metros al�m do vilarejo.
�quela hora Peter j� se teria soltado, ou ent�o estaria tentando, a todo custo,
atrair a aten��o de algu�m. No m�ximo dentro de uma hora estariam atr�s dele.
Ia agora por um trecho de floresta muito mais denso, com todo o cuidado para n�o
quebrar nenhum galho, para n�o deixar o menor sinal de passagem. Quase n�o havia
neve no ch�o, mas a terra estava congelada. Pisava de leve, evitando folhas e
gravetos.
Achou uma arvore grande, com o tronco oco, que fora derrubada por um raio, e
entrou; acendeu uma pequena fogueira e fez um pouco de ch�. Depois, enrolou-se para
dormir. Duas horas mais tarde, o fogo apagado, acordou com o frio e mais uma vez
retomou a caminhada, andando ligeiro.
Correu os trinta quil�metros seguintes num ritmo quase de maratona, parou um pouco
para descansar e retomou a corrida, s� que num compasso um pouco mais lento. Ao
cair do sol do dia seguinte, achou uma sali�ncia no lado de uma pequena colina
rochosa e ali descansou e se alimentou. Desde que deixara Peter Petrovitch,
percorrera mais de cento e vinte quil�metros. Com madeira bem seca e que n�o fazia
muita fuma�a, acendeu uma pequena fogueira bem escondida e dormiu durante quatro
horas seguidas.
A pequena colina onde acampara estava cercada por um p�ntano ao norte e a leste. Ao
norte havia ainda um rio. Dificilmente conseguiria atravessar o p�ntano, que se
estendia por quil�metros e quil�metros.
Imaginava estar a menos de oitenta quil�metros a leste de Kurun-Uryakh e seu
aeroporto.
� noite, p�r-se-ia mais uma vez em movimento, seguindo aquele rio a uma dist�ncia
segura at� onde desaguasse no Maya.

Tr�s vezes durante o dia surgiram avi�es sobrevoando a �rea e uma s� vez um
helic�ptero foi e voltou, obviamente num trajeto de busca. Uma vez, ao longe, al�m
do rio, pareceu-lhe estar vendo um grupo de soldados! Sem bin�culo n�o dava para
saber, por�m pareciam estar avan�ando em forma��o, numa linha atrav�s da floresta e
dos campos. Pelo mapa que pegara de Peter Petrovitch, tinha certeza de que o rio
era o Nudytni. Logo em seguida ao p�r-do-sol, viu um alce cruzando o p�ntano e o
rio e guardou bem na mem�ria o percurso que fizera o animal.
Cal�ando os mocassins com a sola de casco de alce, desceu e seguiu o mesmo
percurso, logo depois do crep�sculo, quando parecia n�o haver ningu�m por perto.
Com o arco pronto para qualquer eventualidade, cruzou o p�ntano e depois o rio,
seguindo-o correnteza abaixo. Ao romper o dia, chegara at� o Maya. Mantendo-se
escondido, foi indo na dire��o norte, buscando um local em que pudesse cruzar o rio
com seguran�a.
Quatro dias depois escondeu-se num abrigo improvisado rapidamente, junto �
cabeceira do rio Del'Ku. Nada comera durante dois dias seguidos e o frio era
cortante. Se quisesse continuar vivo, tinha que se alimentar. Passar fome em clima
quente era uma coisa, com frio era simplesmente imposs�vel. Sem comida para repor
as energias consumidas pelo organismo, o calor desapareceria rapidamente e ele
congelaria. Do flanco da montanha podia ver um pequeno vale quase sem �rvores. Mais
abaixo na correnteza, a floresta era bem mais cerrada. Durante todo aquele dia n�o
vira rasto nenhum de animal, nem sinais de moradia humana. Ao mesmo tempo, sabia
que n�o se encontrava distante da zona de minera��o.
Agora que se ia afastando da regi�o costeira, havia muito menos neve. Quase todo o
ch�o estava congelado e duro, e onde havia alguma neve n�o era mais do que uma
camada fin�ssima. Dali em diante, n�o poderia mais contar com as cavernas feitas na
neve.
Nem se lembrava mais do tempo em que n�o sentia frio; ao raiar o dia seus p�s
tinham ficado t�o duros que trope�ou. H� muito tempo vinha pondo mato seco dentro
dos mocassins para proteger um pouco mais os p�s. Ia vencendo penosamente a
dist�ncia, faminto, exausto, os sentidos como que amortecidos pelo frio.
Mais de sessenta quil�metros atr�s, Alekhin e seus homens chegaram a um pequeno
rio. Um dos soldados, que fora na dianteira examinar o terreno, retornou para
inform�-los.
- Rasto nenhum - disse. - Nada que n�o sejam pegadas de alce.
Alekhin ignorou-o. Olhou � volta, pensativo, e andou at� uma clareira na floresta.
"Faz j� meses que ele est� correndo", pensou consigo mesmo. "Vai come�ar a agir com
imprud�ncia." Examinou as pegadas.
- Voc� � um idiota - gritou ao soldado. - N�o passou alce nenhum aqui.
- Mas e o rasto? Bem a� na sua frente.
- S�o rastos de um homem cal�ando cascos de alce. Percebe a largura do passo? E
passou reto por plantas onde o alce teria parado.
O soldado n�o parecia estar convencido.
- Mas como � que ele ia...
Alekhin fez que n�o ouviu. Foi andando pela trilha e, ao chegarem perto de uns
arbustos, disse ao soldado:
- Voc� vai na frente. Vai aprender alguma coisa sobre trilhas.
"Al�m disso", pensou, "se houver alguma armadilha, voce � que ser� pego, n�o eu".
Por�m, quando ela apareceu, at� Alekhin foi surpreendido. As pegadas de alce deram
lugar a outras que reconheceu pertencerem ao americano. Estava andando muito mais
depressa, correndo, dando passos bem mais largos, e o rio se encontrava diante
deles. O soldado come�ou a andar mais depressa, orientando-se pelas pegadas.
Os outros seguiram-no, Alekhin por �ltimo. Parou e olhou para tr�s, a examinar o
caminho que tinham percorrido. Estava confuso. O americano ia seguindo um rumo mais
ou menos n�tido, por que ent�o tinha virado assim t�o de repente? Olhando entre as
�rvores, Alekhin percebeu o rio e um peda�o de �gua congelada coberta pela neve.
"Idiota", ser� que n�o percebera ser aquela uma armadilha mortal? Que nunca se pode
confiar no gelo sob a neve? Ser� que n�o sabia que a neve funcionava como uma
esp�cie de cobertor, aquecendo o gelo embaixo, e que a �gua corrente derreteria
quase todo o gelo?
Alekhin gritou, tornou a gritar. O soldado, com as orelhas tapadas por causa do
frio, n�o o ouviu. S� via as pegadas do americano a sua frente, via at� a marca de
p�s na neve ali em frente. Alekhin bradou de novo e saiu correndo, fazendo gestos.
N�o entendiam o que acontecia e o soldado que ia na frente sentia-se em total
seguran�a. Via perfeitamente as pegadas diante de si e at� onde elas...
Sua bota passou pela neve, atravessou o gelo e chegou � �gua. Trope�ou para a
frente, deu um grito e foi para dentro da �gua, - Fiquem para tr�s - alertou
Alekhin. - N�o cheguem perto, sen�o cair�o tamb�m.
- Mas temos de salv�-lo.
Um soldado come�ou a avan�ar em dire��o ao rio, mas Alckhin agarrou-lhe o bra�o,
puxando-o para tr�s.
- Voc� n�o tem como salv�-lo. Est� morto.
- Mas estou vendo! Ele est� vivo! Eu...
Fazia for�a, tentanto libertar-se da m�o de Alekhin.
- Est� fazendo menos de cinq�enta graus negativos - disse Alekhin. - Dentro da �gua
ele dura um minuto, no m�ximo dois. Est� completamente encharcado. Se voc� tir�-lo
para fora, congelar� instantaneamente. N�o podemos fazer coisa nenhuma.
O soldado debatia-se para conseguir chegar at� o gelo. Lutou como um louco e
conseguiu sair, rolando. Os outros adiantaram-se.
- Voc�s v�o cair tamb�m - preveniu-os Alekhin. Ficaram parados. Seu companheiro n�o
se mexia mais.
- Est� morto - disse Alekhin. - Era uma armadilha. Eles chegaram mais perto, a sua
volta.
- Armadilha? Mas o americano foi por aquele caminho. N�s vimos as pegadas.
- Pegadas at� a borda do gelo, depois uma ou duas marcas em frente, parecendo
pegadas. Provavelmente feitas com uma vara ou galho de �rvore para dar a impress�o
de ter ido naquela dire��o.
Alekhin afastou-se um pouco, buscando com o olhar a trilha verdadeira deixada pelo
americano.
- Sabia muito bem o que estava fazendo. Sabia que mataria um de voc�s ou at� mais.
Tremiam sob o frio cortante, olhando o corpo completamente rijo de seu camarada.
- E o que faremos dele?
- Est� morto. N�o podem fazer nada por ele. Se tentarem chegar perto, pode ser que
caiam tamb�m no rio. Alekhin explicava, enquanto iam embora:
- Se por acaso um p� entrar na �gua coloque-o imediatamente dentro da neve. A neve
� um absorvente perfeito. Se voc� ficar molhado, n�o tem jeito.
Um dos soldados voltou-se para tr�s e olhou. Seu companheiro l� estava, uma coisa
cinzenta e dura sobre o gelo do rio. Aturdido e amedrontado, o soldado seguiu
Alekhin.

CAP�TULO 28

Stephan Baronas, em p� ao lado da filha, aguardava. O medo sufocava-o, mas procurou


reagir. De dentro do Volga saiu um homem grande e forte que caminhou at� junto
deles. Por um momento, ficou apenas a encar�-los.
- Podemos entrar? - perguntou-lhe num tom suave.
- Claro, por favor - disse Baronas. - Desculpe-me, mas � que nunca recebemos
visitas.
L� dentro, o homem tirou seu sobretudo pesado e o chap�u. Olhou em volta.
- Bem protegido, quente - comentou, olhando para eles. - Est�o bem aqui neste
lugar?
- Sim, estamos - Baronas fora pego de surpresa pela pergunta. - Obrigado.
Depois de sentar-se, estendeu as m�os para aquec�-las junto do fogo.
- Sou Nicholai Bocharev - explicou.
- Ah! - penalizada, Talya aproximou-se. - Era seu filho...?
- Era sim. Meu �nico filho.
- N�s sentimos muito - lastimou. - Parecia um excelente rapaz. Veio aqui nos ver
umas vezes.
Bocharev olhou para ele.
- Eu sei, ele me escreveu contando. Voc�s foram muito bons para com ele. Disse que
gostava muito de vir aqui. Era como se estivesse num segundo lar.
Ficou em sil�ncio alguns instantes e acrescentou:
- T�nhamos muito pouco tempo para estar juntos. Estava crescendo ainda, come�ando a
me considerar como um amigo, mais do que um pai dominador. T�nhamos longas
conversas.
- Gostaria de tomar um ch�? - Talya estendeu-lhe uma x�cara que aceitou. - Foi ele
quem nos trouxe.
- Obrigado - deu um pequeno gole. - Meu filho disse-me que voc�s abriram-lhe as
portas desta casa. Tenho a impress�o de que se sentia muito solit�rio, embora n�o
quisesse admiti-lo.
Tornou a olhar para os dois.
- Voc�s lhe porporcionaram a �ltima felicidade que teve na vida. Acolheram-no e
trataram-no como filho e como irm�o.
- Ele mereceu tudo isso. Quando morreu, para n�s tamb�m foi uma perda.
- Ele adorava navegar nessas correntezas fortes e era muito habilidoso nisso -
disse Bocharev. - S� que chegou num lugar em que a correnteza empurrou o barco
contra uma pedra. Ele n�o viu a tempo. Foi atingido bem na cabe�a.
- Sentimos muito. Ele vai fazer muita falta.
Bocharev tomou mais um pouco de ch� e tornou a examinar o lugar.
- Posso ajud�-los em alguma coisa? Sou-lhes grato por meu filho ter sido um pouco
feliz em seus �ltimos dias. Voc� fez isso por ele e tamb�m por mim.
- N�o foi nada - respondeu Baronas. - Nada mesmo.
De repente, a express�o de Bocharev alterou-se, e ele sorriu.
- Ora, ora, Baronas. Conhe�o voc�. Examinei seu dossi�. N�o era para ter sido
preso. Foi apenas uma medida de precau��o, numa epoca em que os problemas internos
eram intensos. Foi um medo injustificado.
Estendeu a x�cara.
- Um pouco mais?
Depois de ter dado um gole, insistiu:
- Voc� � um homem que estudou, Baronas. Claro que pode fazer muitas coisas por
aqui, por�m...
- Aprecio sua considera��o, mas nem todos s�o t�o compreensivos assim - Baronas fez
uma pausa. Era um risco que tinha de correr. - Para dizer a verdade, senhor,
gostaria de emigrar. Queria ir embora para Hong Kong. Eu e minha filha.
Bocharev fez um sinal afirmativo com a cabe�a.
- Era mais ou menos isso que esperava. Bem, n�o h� nada em seu dossi� que o indique
como inimigo de nosso povo. Para onde prefere ir?
- Para Hong Kong ou mesmo para a Manch�ria. - Bocharev levantou-se.
- Vamos ver. - Pousou a x�cara vazia. - Meu filho representava muito para mim.
Sabe, era tudo que eu tinha. Agora estou s�.
Talya colocou a m�o em seu bra�o.
- Por que n�o vem nos ver mais vezes? Enquanto estiver por aqui, ser� sempre t�o
bem-vindo quanto foi seu filho.
Ele balan�ou a cabe�a.
- Estarei muito ocupado. H� muito o que fazer. �s vezes penso que demos aten��o
demais ao que est� fora do pa�s e n�o o suficiente para melhorar as condi��es de
vida aqui dentro. For�a interna � da maior import�ncia.
Dirigiu-se para a porta.
- Verei o que pode ser feito. Enquanto isso, se me permitir, mandarei algumas
pequenas coisas, que meu filho gostaria que voc�s recebessem. Chegou mesmo a me
falar sobre isso.
Ficaram em p� na soleira da porta at� que o Volga desaparecesse na dist�ncia.
- N�o devemos alimentar esperan�as exageradas - considerou Baronas. - Mas isso pode
nos ajudar muito.
Talya n�o respondeu. Poderia ajud�-los, mas n�o ajudaria Joe Mack, que estava l�
longe, em algum lugar ignorado por eles. L� naquele frio polar, sozinho em plena
floresta, talvez at� agonizando.
Disse isso ao seu pai, que balan�ou a cabe�a.
Uma coisa de cada vez. Se conseguirmos sair do pa�s, ele n�o vai ter que arriscar a
vida para voltar para voc�. Se tivermos a oportunidade, devemos ir. Se descobrirem
que o conhecemos, que tivemos at� uma certa intimidade, nunca mais permitiriam
nossa sa�da. Podemos ser at� colocados na pris�o.
- Mas eles sabem - disse Talya.
- Sem d�vida; mas uma das vantagens de se lidar com esse pessoal do governo � que
raramente um sabe o que o outro anda fazendo. Mesmo assim, s� podemos esperar que
tudo d� certo.

Kyra Lebedev virou a cabe�a de lado para evitar um pouco a for�a do vento e
respirar melhor. O vento parecia empurrar-lhe a respira��o para dentro da garganta.
A porta ficava logo ali perto, correu os �ltimos metros at� l� e entrou
rapidamente.
Estaria sendo seguida? Nem parara para ver. Era muito pouco prov�vel. Contudo,
Shepilov estava na cidade e quase nada lhe escapava. Empurrou a porta para fech�-la
e esperou um pouco at� retomar o folego. Naquele pequeno hall de entrada o ar era
abafado e havia um cheiro de corpos sem banho e de comida velha. Caminhou at� uma
terceira porta no corredor, parou e bateu. Depois de alguns instantes, atendeu uma
voz de mulher:
- O que voc� quer?
- Katerina? Por favor, abra!
A porta abriu-se alguns cent�metros e depois, subitamente, a mo�a l� dentro abriu-a
toda. Vestia um sobretudo como se estivesse pronta para sair. Era magra, tinha um
cabelo de um ruivo desbotado e grandes olhos azuis.
- Kyra! Em Magadan? O que foi que aconteceu?
- Por enquanto, nada. Acabei de chegar. Trabalho, sabe.
- Ali! Por um instante cheguei a pensar que tivesse sido exilada para c�.
- Ostap est� aqui? Preciso falar com ele.
- Est� dormindo, ali�s foi dormir agora mesmo. Trabalhou a noite inteirinha e est�
exausto.
- Ostap? Achava que ele n�o trabalhasse nunca.
Um jovem com os cabelos desalinhados veio de dentro do c�modo at� a porta,
apertando o cinto da cal�a.
- Trabalho, sim, embora um pouco contra minha vontade. Achei que tinha reconhecido
sua voz, Ky. O que est� fazendo aqui?
- Sente-se! E n�o me venha com coversa. Preciso muito falar com voc�. Sabe de tudo
que est� acontecendo em Magadan, n�o? E h� certas coisas que preciso saber de voc�.
Envaidecido, sentou-se numa cadeira. Precisava barbear-se e pelos olhos dava para
se perceber que andava bebendo demais.
- Tudo bem, o que � que quer saber? Se � para voc� mesma, � de gra�a. Se for para o
governo, quero dinheiro. Esfregou os dedos.
- Muito dinheiro.
- H� uma certa pessoa na cidade... Shepilov. Tenho que saber onde est� alojado e o
que est� fazendo aqui.
Ostap acendeu um cigarro.
- Shepilov? � isso mesmo, est� aqui h� uns dois dias j�. Cara importante, voc� vai
notar logo. Est� com o velho Kuzrnich, e Kuzrnich significa uma coisa s�, peles.
Voc� conhece o tipo. Compra dos ca�adores, � a pessoa mais bem informada que existe
a respeito desse neg�cio de peles.
- E o que mais? Quer dizer, que mais al�m das peles?
Ostap encolheu os ombros, expelindo a fuma�a do cigarro.
- Armadilhas, ca�adores, suponho que ele conhe�a todos os ca�adores desta regi�o.
Est� sempre em contato com eles. Seu pessoal ca�a em toda a regi�o ao norte e ao
sul do Kolyma.
- E para oeste tamb�m? Em dire��o a Oymyakon?
- Eu diria que at� l� perto.
Tirou o cigarro da boca, jogou a cinza no ch�o.
- O que � que est� acontecendo?
- � o americano, aquele que fugiu da pris�o.
- Ah! Achei que a essa altura j� tivesse sido apanhado. Ah! Agora estou come�ando a
entender. Esse tal de Shepilov est� vendo se consegue a colabora��o dos ca�adores
de pele! A id�ia n�o � nada m�. Conhecem a sua regi�o e s�o muito melhores do que a
KGB. Quer dizer, conhecem aquela regi�o. S�o capazes de achar qualquer coisa por
l�, enquanto a KGB ou mesmo o Ex�rcito ficariam dando voltas, sem descobrir coisa
nenhuma - fez uma pausa. - H� certas pessoas que gostariam muito de saber da
presen�a de Shepilov em Magadan. Quer dizer, ele n�o tem muitos amigos por aqui,
n�o. Tem muita gente condenada a trabalhar na minera��o de ouro s� por causa dele.
- Bem, enquanto eles estiverem presos nos campos..
- A� � que est�. Alguns est�o fora, andando por a�, s� n�o podem � sair da regi�o.
- Ostap, voc� pode me ajudar. Quero ser a primeira na captura do americano.
- Voc� quer, �? Bonita desse jeito, acho que podia conseguir pegar um homem sem
isso.
- Deixa de ser bobo. � meu trabalho. Agora estou trabalhando com o coronel Zamatev.
Ostap assobiou.
- Quem diria, hein! � o tal que chamam "Homem de Ferro". Se voc� � de confian�a
dele, est� por cima mesmo.
O que posso fazer para ajudar?
- Voc� tamb�m conhece esses ca�adores de pele. Vende vodca para eles, n�o �? Ah! Eu
estou sabendo de tudo, n�o adianta negar. Eles v�o atr�s de voc�, que eu sei.
- E da�?
- Se esses ca�adores conseguirem localizar o americano, quero ser a primeira a
saber.
Ostap deu uma tragada forte, jogou o cigarro no ch�o e apagou-o com o p�.
- Como eu ia dizendo, tem muita gente aqui que n�o gosta de Shepilov. Pode ser que
eu possa fazer alguma coisa por voc�.
Olhou para ela, com um sorriso malicioso.
- A gente sempre precisa de alguma coisa, n�o �? Eu inclusive. Tem uma por��o de
coisas de que estou precisando.
- O coronel sabe ser grato. Ele entende de favores muito bem.
- Deixe-me dormir algumas horas e depois vou dar uma circulada. Agora n�o h�
ningu�m mesmo para procurar - fez uma pausa. - Shepilov sabe que voc� est� aqui?
Ainda n�o, tenho certeza. Mas vai acabar sabendo. Ent�o n�o venha mais aqui. Onde
vai ficar?
- No Vanya.
- � um bom lugar. Pode deixar, vyou ver o que d� para fazer.
Levantou-se, puxando a cal�a para cima, voltou para o quarto e fechou a porta.
- Kyra? Por favor, n�o o meta em complica��es. Ele se arrisca demais. O pior � que
nem acha que sejam riscos! Eu � que sei, est� sempre �s voltas com essa gente, esse
pessoal do mercado negro e todas essas pessoas vivendo numa situa��o semi-
clandestina.
Ela encolheu os ombros.
- Katerina, Ostap � assim mesmo, Voc� sabe disso, esse � o jeito dele. Voc� sabia
disso antes de se casar com ele. Sempre foi meio marginal mesmo, � assim que ele
sabe viver.
- Mas, e Shepilov? Ele � vingativo, Kyra. Voc� tamb�m deve tomar todo o cuidado.
Ao sair, encontrou uma rua deserta, parou um momento, observando, Era um dia
cinzento e deprimente e a rua caindo aos peda�os n�o melhorava em nada a paisagem.
Era uma caminhada meio longa at� o Vanya, mas tinha que faz�-la. Evitou a pra�a
Lenin, foi por ruas secund�rias, esperando n�o ser notada. Vanya morava numa rua
lateral, em uma pequena casa de madeira. Vivia de modo simples e ali seria o lugar
perfeito para algu�m que n�o quer ser observado ficar. Vanya era um escritor que
estava trabalhando numa hist�ria da ocupa��o da Sib�ria. Anteriormente, escrevera
sobre a vida dos animais. Era um primo que freq�entemente visitava em sua dacha
pr�xima ao mar Negro. Ele pouco se importava com conforto, preferia viver perto da
natureza e dos animais. Estava terminando a pesquisa para um livro sobre ursos,
al�m daquele outro trabalho maior, sobre a Sib�ria.
Saudou-a com satisfa��o aut�ntica.
- Mas isso � �timo! Estava come�ando a me sentir solit�rio e, de repente, a� est�
voc�!
Fechou a porta da casa e ajudou-a a tirar o casaco.
- O que a traz at� Magadan?
- Trabalho para o coronel Zamatev.
- Entendo.
Vanya sabia de tudo a respeito do coronel Zamatev, encontrara-o diversas vezes e
sabia que era um homem em plena ascens�o. Sabia tamb�m que n�o se faziam perguntas
quanto ao que estivesse fazendo ou fosse fazer.
- Espero que possa ficar algum tempo.
- Acho que alguns dias, se voc� puder me ag�entar.
- Aqui n�o estamos apertados, como em Moscou. A maior parte das pessoas vem morar
em Magadan porque � obrigada a isso. Toma ch�? Ou prefere vodca?
- Ch� - olhou para ele do outro lado da mesa. - Vanya, voc� costuma ir muito at� a
floresta?
- Eu andei escrevendo a respeito dos ursos e, afinal, � l� que eles est�o. �
verdade, j� passei diversos meses na floresta, mas principalmente bem a oeste e sul
daqui. Parte dessa regi�o � bel�ssima. Tudo muito selvagem ainda. Algumas minas,
bem espalhadas, a maioria delas abandonadas nesta �poca do ano, a n�o ser que haja
prisioneiros trabalhando nelas.
- Ouviu falar do americano? - Ficou impass�vel.
- Muito pouco. O tenente Suvarov e eu somos velhos amigos. �s vezes ele aparece por
aqui e sei que essa � sua miss�o no momento. Mas parece que n�o est�o tendo muita
sorte n�o.
- Temos de peg�-lo. Isso � da maior import�ncia para n�s; o camarada Shepilov est�
aqui tamb�m e � pela mesma raz�o.
- Esse americano deve ser importante mesmo. Mas pensei que j� tivesse sido pego h�
muito tempo. Afinal de contas, o frio � insuport�vel na taiga e, francamente, n�o
entendo como conseguiu sobreviver at� agora.
- Ele � um �ndio, �ndio americano. - Vanya estava fascinado.
- S�rio? Um �ndio americano na Sib�ria? Dizem que eles teriam ido da �sia para a
Am�rica por um bra�o de terra atrav�s do estreito de Bering. Aparentemente,
seguiram esse trajeto atr�s de ca�a, isto �, n�o tinham a menor id�ia de estarem
imigrando de um continente para outro.
- Parece que � isso que est� tentando fazer, seguir essa mesma rota.
Maravilha! Deve ser um homem fora do comum, em primeiro lugar por ter conseguido
fugir da pris�o e em segundo por ter sobrevivido. Mas tem certeza de que ele
continua vivo?
Enquanto tomavam ch�, contou-lhe do desastre com o helic�ptero e do agente da KGB
encontrado morto perto de Totta.
- Ent�o quer dizer que ele vem vindo nesta dire��o? acomodou-se melhor na cadeira.
- Kyra, voc� percebe o que esse homem est� tentando fazer? Fugir atrav�s da
floresta, sendo que a maior parte dela � desconhecida, nem foi sequer explorada
ainda. Por nada neste mundo queria estar em seu lugar, ainda assim ele me desperta
uma certa inveja.
- Inveja? Voc� est� ficando louco, Vanya?
- � mesmo um homem fora do comum! Sozinho na floresta imensa! Sabe se ele est�
armado?
- Achamos que esteja usando arco e flecha. O homem encontrado morto dentro do carro
foi atingido por uma flecha. Parece que ele nem precisa de arma. A noite passada
soubemos da morte de mais um soldado, caiu num rio congelado. Mas era uma
armadilha.
- Como � que foi?
- O soldado achou que estava seguindo uma pegada sobre o rio. Elas iam em dire��o a
um pouco de neve sobre o gelo. Eu n�o sabia disso, mas parece que o gelo debaixo da
neve fica bem fino.
- Eu tamb�m n�o sabia - depositou a x�cara. - Esse seu americano � mesmo um homem
espantoso. Desejo-lhe muita sorte.
- Vanya! Como � que voc� diz uma coisa dessas! Ele � um inimigo do povo russo!
Vanya deu com os ombros.
- Um inimigo assim n�o vai causar grandes danos. Pelo que voc� me contou, o melhor
a fazer seria deix�-lo em paz. Se n�o morrer l� na taiga, nunca conseguir� cruzar o
estreito. Mesmo para um homem como esse, � imposs�vel. Quando escrevia o livro
sobre os ca�adores de cavalo-marinho, fiquei conhecendo alguma coisa sobre os
radares. Cruzar o estreito de Bering �... N�o tem jeito, � imposs�vel.

CAP�TULO 29

Andava com dificuldade por causa dos p�s duros de frio. Sobre a terra congelada,
uma fina camada de neve; as poucas �rvores espalhadas n�o bastavam para proteg�-lo
contra o vento. Agora ia deixando rastos, mas n�o tinha mais tempo para apag�-los:
Precisava desesperadamente de comida e de abrigo.
A intensidade do frio diminu�ra-lhe a capacidade de racioc�nio. N�o pensava mais
com tanta clareza. Tinha que fazer planos, tinha que engan�-los. Precisava deixar
algumas armadilhas para retardar-lhes a marcha. Tinha que amedront�-los, torn�-los
cautelosos.
Se pelo menos conseguisse esquentar-se um pouco! Uma s� vez j� seria bom!
Ouviu os lobos uivando e brigando entre si antes de v�-los. Tinham matado um veado
e agora estra�alhavam o corpo. Gritou e eles se voltaram, observando-o. Tentou
assust�-los com gestos para que se fossem, mas os lobos tamb�m estavam famintos,
Eram tr�s, dos grandes, e sem a menor disposi��o de abandonar sua presa.
Tornou a gritar, correu na dire��o deles. Eles recuaram um pouco, os dentes �
vista. Em outra situa��o, teriam fugido, mas na taiga a carne era algo bastante
raro.
com os dedos desajeitados, endurecidos pelo frio, colocou uma flecha e estirou o
arco. Soltou-a em dire��o ao lobo maior, que n�o estava a mais de vinte e cinco
metros de dist�wia. A flecha atingiu-o no ombro e ele virou-se para tr�s tentando
tir�-la com a boca, ganindo de dor. Os outros reagiram afastando-se um pouco.
Agora, sacara o rev�lver. N�o queria gastar muni��o, mas aquele era um momento em
que arriscaria tanto o barulho do rev�lver quanto a perda de uma bala.
O lobo que atingira com a flecha estava morrendo. Aprox�mou-se mais alguns passos.
Nunca atirara antes com aquele tipo de rev�lver, mas desde crian�a acostumara-se
com armas, pois nas montanhas onde fora criado quase ningu�m andava sem um
rev�lver. � medida que chegava mais perto, os lobos se afastavam um pouco. Um deles
parecia que ia avan�ar sobre ele, mas era s� amea�a. Ouando, continuou, eles
recuaram mais uma vez.
Guardou a flecha e cortou um peda�o de carne do veado que acabara de ser morto;
recuou com cuidado, devagar, observando os lobos, com a carne em uma m�o e o
rev�lver na outra.
Depois de ter caminhado quase uns tr�s quil�metros floresta adentro, descobriu um
lugar ao abrigo de uma �rvore gigantesca, ca�da ao ch�o. Encontrou alguns peda�os
de galhos e cascas de madeira bem grossa, juntou tudo isso sobre a neve para servir
de base para uma fogueira. Debaixo de outra �rvore, ca�da por cima daquela maior,
pegou cascas mais finas e quebrou-as com as m�os. Dos troncos das �rvores em volta
pegou alguns brotos secos, pequenos galhos que come�aram a nascer dos troncos e
morreram depois.
Acendeu o fogo com um arco e um graveto, assoprou cuidadosamente at� que a chama
crescesse um pouco mais. Ent�o, com peda�os de madeira espalhados por perto,
aumentou a base da fogueira, juntou as cascas de �rvore e fez com que a chama
subisse alto. Sentira-se tentado a comer cru mesmo, mas � muito comum haver
parasitas na carne crua; somente com fogo s�o destru�das; assim, assou a carne
sobre o fogo, espetada num graveto.
Terminando de comer, levantou-se e juntou peda�os de �rvores para improvisar um
abrigo, feito �s pressas e meio prec�rio, por�m suficiente para a noite que se
aproximava. Interrompeu suas atividades para aquecer as m�os sobre o fogo e
colocou-as aquecidas junto aos ouvidos e nariz. Tentou lembrar-se em que m�s
estava, mas n�o conseguiu. Os dias transformaram-se em semanas e as semanas em
meses. Concluiu que a primavera estaria ainda a um m�s pela frente, talvez at�
mais.
Um pouco de calor, um pouco de comida e j� se sentia bem melhor. As necessidades
humanas s�o t�o simples, pensou, mas o homem est� sempre querendo mais e mais.
Ao recolher a lenha, reparara no pico da montanha em frente. Naquela regi�o de
montanhas relativamente baixas, aquela ali era bem mais alta do que as outras e o
flaneo que conseguia ver, bastante �ngreme. Principalmente havia neve no cume,
bastante neve na verdade. Uma certa quantidade desabara e a colina �ngreme logo
abaixo estava repleta de �rvores ca�das e pedras pequenas. Calculou a dist�ncia e
concluiu que no caso de uma avalanche estaria fora de alcance, mas por muito pouco.
Fez uma tela para refletir o fogo no lugar em que se abrigara, mais protegido do
vento, depois uma cama com galhos de pinheiro, e juntou mais lenha. Aquela noite
seria muito fria.
E mesmo com o fogo fazia frio, um frio glacial. Alimentou a fogueira e pensou em
Natalya, t�o longe naquela hora, esperando que estivesse num lugar aquecido,
protegida do vento.
Abanou a cabe�a, perplexo com ela e consigo mesmo. N�o haviam trocado palavras de
amor, nem feito promessas, nenhuma fora pedida. A n�o ser que tentaria voltar para
ela, que nunca questionou seus motivos para agir assim. Fora alguma coisa que
surgira entre eles, um entendimento desde o in�cio. Agora, junto ao fogo, tentava
descobrir o momento em que aquilo tudo surgira e n�o conseguia encontr�-lo.
Estivera ali desde o come�o, simplesmente, uma compreens�o muda de alguma coisa que
se passava entre os dois.
Ao contr�rio dos outros homens, nunca se apaixonara, nem sequer imaginara estar
apaixonado.
As noites ali chegavam repentinamente e eram longas. J� escurecera, n�o conseguia
mais ver o cume da montanha com a neve que desabara. Enrodilhado junto ao tronco da
�rvore ca�da, procurava absorver o m�ximo calor do fogo, mas, a n�o ser que ficasse
praticamente em cima dele, o calor que chegava era pouco.
Mordeu um osso que sobrara do veado assado na fogueira e adormeceu, um sono leve e
interrompido.
O dia, quando finalmente raiou, era muito frio, uma luz t�nue, de um amarelo p�lido
atrav�s da atmosfera cinzenta. N�o havia sol nem calor, a �nica diferen�a para com
a noite era a maior visibilidade. Um vento rasteiro veio vindo entre as poucas
�rvores, gemendo pelas pedras e picos gelados. Joe Mack, tremendo de frio, procurou
aquecer os dedos nas luvas. Por entre algumas pedras, viu um pequeno riacho, e
examinou, desesperado para encontrar alguma ca�a. Nada.

Prestou aten��o aos sons, nenhum barulho de homem, nem de motor. Esgueirando-se
entre as pedras, desceu uma pequena colina, escolhendo um percurso obl�quo. Ali n�o
havia trilha alguma, nenhum sinal humano.
Intelig�ncia e instinto preveniam-no de que uma busca maci�a estava em andamento,
que o menor passo agora tinha que ser dado com enorme cuidado. L� tinham descoberto
sua trilha, j� havia pessoas mortas. Os soldados que o procuravam estariam muito
mais dispostos a mat�-lo e os outros, alertados de sua poss�vel chegada, n�o
perderiam tempo.
Chegou a um campo aberto e por isso apressou a marcha. Sua resist�ncia f�sica
aumentara com aquela luta pela sobreviv�ncia. A carne trouxera-lhe de volta a for�a
antiga, mas n�o se arriscava, seguia pisando cuidadosamente, atento a algum gelo
sobre as pedras ou ao gelo negro, presente mas pouco vis�vel. Correu durante uma
hora, circulando entre pedras, seguindo trilhas de animais quase apagadas ao longo
de pequenos riachos, at� que, por fim, entrou na floresta novamente.
Come�ou a andar mais devagar e pegou o arco nas m�os. Precisava de carne mais uma
vez. Sempre necessitava de carne. Ainda tinha um pouco do ch� que pegara do jovem
engenheiro, ou fosse l� qual fosse sua profiss�o. Aquela noite, enrolado junto �
fogueira, obrigou seu c�rebro gelado a funcionar.
O que exatamente eles saberiam? Tinham j� uma id�ia do local para onde se dirigia e
sabiam como avan�ava e alguma coisa do que estaria pronto a fazer. Tentariam
agarr�-lo ao norte. Podia contar com uma busca mais cerrada. Estariam vigiando as
margens do Kolyma. Mais al�m, estavam as montanhas Chersky.
Baronas falara muito sobre elas; ainda que nutica as tivesse visto pessoalmente,
sabia muito a respeito. Tinham; esse nome por causa de um lituano que fora exilado
para a Sib�ria depois do levante polon�s de 1863. Chersky estudara a regi�o e,
posteriormente, fora mandado de volta, pela Academia de Ci�ncias, para prosseguir
com os estudos. Baronas lera seus livros e chegara mesmo a conhecer alguns jovens
que tinham sido seus auxiliares na pesquisa. Chersky morreu em 1892, em algum local
na regi�o do rio Kolyma.
Uma das coisas contadas por Baronas era sobre os grandes desfiladeiros da regi�o,
no fundo dos quais corriam os rios Indigirka e Kolyma; dizia-se que alguns
desfiladeiros tinham quase dois mil metros de profundidade.
E se fugisse para um deles e ficasse escondido l� dentro at� que a busca fosse
suspensa? At� que desistissem, dando-o por morto? Mas ser� que chegariam a
desistir?
Zamatev nunca, nem Alekhin.
Iriam atr�s dele l� ou em qualquer lugar que fosse: De um jeito ou de outro,
acabariam por encontr�-lo.
No fundo, sabia muito bem que o descobririam um dia, e a� seriam somente eles. Em
algum lugar, no meio daquela natureza selvagem, iriam encontrar-se face a face,
homem a homem.
Estava sonhando. Tinham ex�rcitos. N�o contavam somente com eles mesmos; podiam
atravessar quil�metros e quil�metros com seus jovens soldados, examinando cada
trecho, procurando o menor vest�gio de passagem. Mais cedo ou mais tarde,
terminariam por alcan��-lo. Seria ca�ado como um cachorro.
Sobrevivera at� aquele momento, porque, a princ�pio, n�o acreditavam que fosse
capaz e tamb�m porque era um homem s�, na vastid�o da Sib�ria.
Agora tinha que optar. Seguir em frente seria cair numa armadilha. �quela altura,
j� tinham uma id�ia razo�vel de sua localiza��o e do que pretendia fazer; portanto,
tinha que confundi-los, fazer alguma coisa para desvi�-los de sua trilha.
Talvez os desfiladeiros fossem uma sa�da, ficavam a oeste e tamb�m ao norte. Pelo
menos, seria uma mudan�a de dire��o. Ou, ent�o, Magadan. Magadan, uma cidade na
costa, n�o muito distante dali. Abanou a cabe�a. Seria uma burrice. Estaria
completamente exposto l�. Isto �, n�o saberia nada quanto �s pequenas coisas do
cotidiano, conhecidas por todo habitante, coisas muito simples at�. Acabaria
cometendo enganos e se revelaria.
At� mesmo para chegar perto de Magadan teria de passar por �reas mais povoadas,
onde seria visto por diversas pessoas inclinadas a suspeitar, j� avisadas de sua
presen�a na regi�o. Mesmo com a camisa nova e o terno que roubara, estaria em
perigo.
Agachado na encosta de uma montanha, as faces do rosto duras de frio, examinava os
pinheiros rasgados pelo vento sobre o cume mais distante e o vale plano que ficava
bem abaixo. A morte estava ali, em toda a parte, morte pelo homem, morte pelo frio.
Se escorregasse e quebrasse uma perna, congelaria em poucos minutos.

O frio g�lido esperava o menor passo em falso para mat�-lo. Procuravam-no por toda
a parte, tentando encontr�-lo, tinha que usar aquela terra, us�-la contra eles.
Estava na terra dos Tungus, o povo das renas. Contudo, n�o vira ainda nenhum deles.
A qualquer momento poderia cruzar com um.
Seguiu em frente, caminhando sob os pinheiros, tornando a olhar atrav�s do vale na
dire��o dos picos sombrios, onde batalh�es maci�os de pinheiros o aguardavam, cuja
escurid�o podia representar tanto um esconderijo quanto emboscadas de seus
inimigos, prontos para mat�-lo ou mutil�-lo. A neve rangia sob os mocassins, deixou
os pinheiros, descendo a montanha pelo espa�o aberto, onde o vento soprava mais
g�lido, aumentando mais ainda o frio.
Cada passo tinha que ser dado com cuidado, n�o confiando em nada. � esquerda, um
pequeno vale em forma de ta�a; � direita, desabava num outro mais profundo. Nada se
movia dentro de seu campo de vis�o. Cruzou o vale menor e iniciou a caminhada rumo
ao topo da montanha, at� que parou subitamente: A seus p�s, uma fenda se abria na
encosta rochosa, t�o funda que n�o se alcan�ava onde terminava. Um passo em falso
ali...
Uma passada bem larga era suficiente para atravess�-la. Do outro lado havia neve
endurecida sobre pedras. Cruzou a fenda, depois virou-se e, com a faca, deixou uma
pedra meio solta sob a camada de neve. Ao seguir adiante, deixara uma armadilha
mortal para quem seguisse aquela trilha.
Um homem alto poderia tentar passar por cima, um mais baixo daria um pequeno salto.
Bem, j� que tinham decidido ca��-lo, que pagassem o pre�o.
Esguio como um lobo da montanha, um ar selvagem no rosto devido ao frio e �
exaust�o, subiu a encosta gelada, atra�do pelo ref�gio junto aos pinheiros. Buscava
um lugar onde pudesse abrigar-se, e o c�u parecia dan�ar com aqueles �stranhos
reflexos verdes e amarelos, caracter�sticos da luminosidade nas latitudes norte. A
neve rangia sob seus p�s enquanto procurava desesperadamente um local adequado, sem
sucesso. Os troncos dos pinheiros eram negros, contra a brancura da neve. O vento
gemia sobre as �rvores, dobrando-lhes a copa. Agachou-se, apoiando-se num tronco, e
examinou aquele territ�rio em volta, atento ao menor detalhe: As longas e
silenciosas alamedas de pinheiros, um floco de neve sobre o galho, quase caindo,
dobrando-o. Logo cairia ao ch�o, cobrindo a trilha.
Demorou alguns segundos at� entender o que estava vendo. Al�m da encosta coberta
pelos pinheiros, um vale comprido e depois uma montanha e, descendo por ela, em
forma��o, uma linha de soldados.
N�o eram dez nem vinte, mas pelo menos uma centena, espalhados por uma grande �rea,
vindo em sua dire��o, separados entre si por uma dist�ncia de menos de vinte
metros, cada qual levando um rifle, pronto para disparar.
Ficou im�vel por um momento, os olhos fixos nos soldados que avan�avam. Progrediam
lentamente, com cautela, mas formavam uma frente longu�ssima. Atr�s deles, com uns
cem metros de dist�ncia entre cada um, vinham dois oficiais.
Era aquela estranha meia-luz, t�o freq�ente em tais latitudes. Fascinado, viu os
soldados se aproximarem; em seguida levantou-se e desapareceu na floresta, cuidando
para pisar somente em terreno em que o vento levantara a neve, deixando apenas a
terra congelada. Tinha que descobrir um esconderijo ou ent�o fugir deles. Olhou
mais uma vez para tr�s. Mais distante no vale, outra linha de soldados emergira das
�rvores. Varriam detalhadamente a �rea e ele se encontrava bem diante de seu
percurso.
Vagarosamente, foi recuando para dentro da floresta, olhando atentamente a sua
volta.
Nada. Lugar nenhum onde pudesse se esconder, somente os troncos escuros e lisos e
aqui e ali uma �rvore maior, mais antiga E se subisse numa? Os galhos eram muito
poucos, afastados demais uns dos outros. Cobrir-se com a neve? Em quase todos os
lugares a camada era fina demais para permiti-lo.
Viu os soldados que avan�avam, ainda a uma certa dist�ncia. Alguns pareciam
observar tudo em volta, com o m�ximo cuidado, outros simplesmente marchavam,
olhando apenas para o que estivesse diante deles.
Virou-se e correu, veloz e silencioso, saltando pela fenda na pedra ao atingi-la.
Subitamente, lembrara-se de alguma coisa que tinha visto, uma esperan�a, ainda que
remota!
Lan�ando-se dentro da floresta, olhou � direita e � esquerda. Aquele conjunto de
�rvores velhas, enormes. Foi correndo entre elas, evitando os lugares em que havia
neve. At� que encontrou aquela de que se lembrara, uma velha �rvore, imensa,
atingida por um raio e cuja copa desaparecera j� h� muito tempo. Arrastou-se para
dentro do tronco oco, apoiou-se numa reentr�ncia e ergueu-se, buscando um apoio
para as m�os. L� dentro a escurid�o era total, em algum lugar acima conseguia ver
um pequeno c�rculo de c�u claro. Descobriu um apoio, experimentou-o e al�ou-se,
empurrando as costas contra um lado, um joelho contra outro e foi subindo,
cent�metro por cent�metro. Muitas vezes, quando escalara montanhas, subira por
chamin�s de pedra exatamente daquela maneira. Aos poucos, indo mais e mais alto,
chegou a um ponto al�m do qual n�o podia mais avan�ar. Procurou um apoio para as
m�os, agarrou-o e permaneceu est�tico.
Quanto tempo poderia permanecer ali? Por enquanto, sua posi��o era relativamente
segura. Imaginava estar a uns dez metros acima do solo, talvez pouco mais.
Tudo quieto. Estariam chegando? De repente ouviu um grito selvagem, um grito de
horror e o ru�do de alguma coisa que se arrastava, caindo na dist�ncia. Atrav�s do
ar frio e parado, uma s�rie de ordens irritadas e avisos.
Algu�m ca�ra na sua armadilha,
Esperou, enquanto buscava um apoio melhor para os p�s. "Pelo amor de Deus",
murmurou, "que eles cheguem logo"! Surpreendeu-se ao notar que, abrigado do vento,
fazia bem menos frio.
Sentiu-os perto. Vinham vindo pela floresta, pelo menos alguns deles. Ouviu uma
ordem r�spida e o ru�do de p�s na neve seca; algu�m estava olhando dentro da �rvore
oca.
Algu�m que se encontrava exatamente abaixo dele. Prendeu a respira��o, rezando para
que nenhuma madeira apodrecida ca�sse pelo ch�o.
Percebeu um grunhido e uma negativa, como se algu�m dissesse que n�o havia nada
ali.
Agora seguiriam em frente. Poderia sair daquela posi��o prec�ria e fugir.
De repente percebeu outra determina��o en�rgica e o barulho de madeira sendo
quebrada. Mais uma vez o mesmo ru�do. Estavam fazendo uma fogueira! Iam acampar
ali!
Por um instante, sentiu-se asfixiado de puro terror. N�o podia ficar mais l� em
cima. N�o ag�entaria muito tempo mais, naquela posi��o for�ada. Tinha que descer;
tinha que se mexer, sen�o congelaria.
Podia ouvi-los conversando; mais alguns ru�dos de madeira sendo quebrada e a� o
fogo, a madeira estalando.
Lentamente, com toda a cautela, foi descendo pelo interior da �rvore oca. Assim que
seus p�s se apoiaram no ch�o, enrijeceu os m�sculos e relaxou-os, for�ando a
circula��o do sangue pelo corpo. Foi trabalhando os diferentes grupos musculares,
ao mesmo tempo em que prestava aten��o aos movimentos no acampamento. Pelo que
conseguia ouvir, s� pensavam em agarr�-lo.
Ouvia-os juntarem lenha para a fogueira, ouvia-os xingarem e algu�m lamentando a
perda de um companheiro, quando algu�m falou a respeito do americano em tons
amea�adores.
- Ele que espere - dizia - at� o pegarmos! Vou quebr�-lo osso por osso!
N�o ousava bater os p�s contra o ch�o para aquec�-los. N�o ousava fazer movimento
algum que pudesse ser ouvido. Tinha que ficar absolutamente im�vel at� que se
deitassem para dormir; ent�o podia arriscar fugir.
Apoiou-se contra o interior da �rvore, que, ali onde estava, tinha quase um metro e
meio de largura; o buraco por onde entrara ficava junto ao ch�o, com no m�ximo um
metro de altura na parte maior da abertura. Um p�ssimo lugar por onde sair sem
arranhar a madeira e sem ser ouvido.
Estava encurralado.
Sentia-se muito cansado. Os olhos se fecharam e tornaram a se abrir. Algum calor de
fogueira era levado at� ele, pouco, quase nada, por�m, no meio daquele frio
cortante, dava para sentir. Ouviu algu�m jogando lenha na fogueira.

CAP�TULO 30

Um deles dizia que gostaria de estar em Khab; outro lembrava-se da namorada em


lrkutsk.
Dentro dos mocassins, Joe Mack procurava movimentar os dedos dos p�s. Tinha que
arranjar mais mato para colocar dentro. Muitas e muitas vezes tornou a exercitar os
m�sculos. Sentia frio, estava geladol A conversa aos poucos fora morrendo. Estavam
comendo e alguns j� iam entrando nos sacos de dormir para passar a noite.
Quantos sentinelas deixariam? Um com certeza, talvez mais. E onde ficaria colocado?
Ser� que Joe Mack conseguiria arrastar-se para fora da �rvore oca sem tocar nos
lados da abertura? No sil�ncio absoluto da noite, um som daqueles seria facilmente
percebido e reconhecido instantaneamente como um ru�do n�o natural, em plena
floresta.
Tornou a ouvir a voz do oficial, obviamente designando sentinelas, alguns passos se
afastando, lenha jogada no fogo e um maior crepitar da chama. Percebia atrav�s da
abertura a luz intermitente do fogo.
Quanto tempo ainda? Quanto tempo at� o sentinela ficar meio tonto, por causa do
sono e do frio? Quanto tempo at� ele pr�prio come�ar a se sentir da mesma forma?
Muitas e muitas vezes, tornou a enrijecer os m�sculos. Estava cansado, muito
cansado! Ele tamb�m queria dormir, descansar; qualquer tipo de descanso.
Independente do que acontecesse, ainda teria que esperar muitas horas para
repousar. Procurou a faca com as m�os, o rev�lver, estavam ali, prontos para serem
usados numa emerg�ncia.
Ajoelhou-se e espreitou para fora. Tudo que conseguia ver era a luz do fogo,
tr�mula, refletida no tronco da �rvore em frente.
Aguardou. N�o vinha mais som nenhum da fogueira. Se come�asse a apagar, o sentinela
colocaria mais lenha.
Ser� que havia uma pilha ali perto?
Joe Mack esperou. Estirou-se mais uma vez para ativar a musculatura, abaixou-se,
apoiando-se num �nico joelho, e dessa vez colocou a cabe�a fora do oco o suficiente
para ver o que havia l� fora.
Tinham se deitado ali perto, havia duas fogueiras acesas, pelo menos era o que dava
para ver, e um sentinela bem em frente dele. O homem estava sonolento, volta e meia
seus olhos se fechavam brevemente.
Parecia ser um jovem rude e forte. Seus olhos voltaram a fechar-se, dessa vez por
um pouco mais de tempo. Percebendo que estava com muito sono, o sentinela levantou-
se, mexeu-se um pouco, p�s mais lenha no fogo. Em p�, de costas para Joe Mack,
ficou observando as chamas.
Ousaria tentar naquele momento? Esperou, n�o sabendo se conseguiria se movimentar
com a velocidade suficiente Ou se movimentar sem ser ouvido. Por fim, o sentinela
sentou-se de novo.
O homem esfregou os olhos, deu uma risadinha pensando em algo distante e encostou-
se no tronco da �rvore, sorrindo para as chamas.
"Espero que seja alguma lembran�a muito boa, seu desgra�ado", disse Joe Mack para
si mesmo. "Agora durma, pelo amor de Deus!"
At� que os olhos do sentinela se fechassem de novo, teve a impress�o de um tempo
intermin�vel. "Esse era um bom homem", pensou Joe Mack. Ia cochilar um pouco,
embora n�o mais de um ou dois minutos.
A cabe�a do sentinela tombou para a frente. Com um leve rumor, Joe Mack deslizou
para fora do tronco oco e ficou em p�. R�pido, deu a volta na �rvore, de forma a
t�-la entre si e o sentinela.
Deu com outros corpos dentro de sacos de dormir e outra fogueira, esta mais
distante. L� tamb�m havia um sentinela. O homem estava em p�, olhando o fogo.
Aquele era um erro cometido por muitos. Ficar olhando o fogo ofusca a vis�o,
exatamente no instante crucial em que for preciso acostumar-se � escurid�o,
desviando o olhar rapidamente do fogo para um inimigo ali perto. Um bom sentinela
deve sentar-se sempre de costas para o fogo, nunca olhando direto as chamas. Mas
era uma tenta��o e uma rea��o muito natural. Uma rea��o que podia custar a vida de
um homem.
Joe Mack tinha aprendido isso com um velho Sioux que era seu tio. O velho �ndio
ensinara-lhe mutas coisas, no fundo do cora��o ainda continuara um guerreiro, t�o
selvagem quanto o pr�prio Joe Mack.
Subitamente, moveu-se veloz em dire��o a outra �rvore, misturando sua sombra �
folhagem.
O sentinela foi pegar mais lenha, desaparecendo na escurid�o, e Joe tornou a mover-
se, um pouco mais adiante. O homem voltou, colocou mais gravetos na fogueira, todo
concentrado nisso; Joe Mack esgueirou-se entre as �rvores e sumiu.

Como um fantasma, confundia-se com a floresta, caminhando sempre, descendo uma


colina, por entre �rvores, livre mais uma vez, mas por juanto tempo ainda?
Tivera sorte, muita sorte mesmo. Uma sorte dessas n�o podia durar muito tempo.
Tinha que descobrir um jeito de escapar daquela busca, achar um lugar para se
esconder.
Alguns dos soldados eram recrutas, verdes ainda, jovens das mais variadas cidades
russas. Aquilo n�o podia durar muito. Logo se encontraria com algum deles que
tivesse vindo da floresta, da Sib�ria, dos Urais ou de qualquer outro lugar
selvagem. Aprofundou-se na escurid�o, correndo para oeste numa passada firme, por
uma trilha quase apagada.
Fugiu em dire��o noroeste, procurando sempre manter-se escondido pelas �rvores,
usando trilhas j� existentes pelo menor tempo poss�vel e com o m�ximo cuidado.
Ca�ado como um animal selvagem, tornara-se arisco como se fosse um deles. "Tinha
que ser como o le�o da montanha", dizia consigo mesmo. Em todos os anos que passara
nas montanhas, os �nicos le�es que vira haviam sido obrigados a subir em �rvores,
acuados pelos cachorros. Mas estavam l�; vira seus sinais e pegadas, de vez em
quando alguma ca�a. Os felinos, propriamente, quase nunca eram vistos. Se eles
podiam fazer isso, ele tamb�m o faria.
Aquele destacamento de tropas, do qual escapara por um triz, n�o podia ser o �nico.
Poderia encontrar outros a qualquer momento. De cada flanco e cume de montanha,
estudava o terreno a sua frente, sempre deitado ou agachando-se coberto por alguma
vegeta��o, misturando seu corpo com o meio ambiente. E s� quando tinha certeza de
que nada o aguardava pela frente prosseguia.
O uso daquelas armadilhas preocupava-o de uma certa forma, pois Alelchin devia
estar em algum lugar por perto e ele entendia dessas coisas. Agachado sob uma
�rvore, o rosto tenso, pensou um pouco nisso.
Onde estava Alekhin? Claro que n�o estaria descansando. Afinal, sua pr�pria
reputa��o de rastreador estava em jogo. Percebendo a fuma�a de um acampamento
distante, mergulhou mais fundo na floresta, descrevendo um enorme c�rculo. Chegou a
uma encosta quase sem �rvore e, olhando para o vale onde percebera a fuma�a, viu um
grupo de homens em volta de duas fogueiras.
Soldados! Desapareceu num bosque cerrado e foi seguindo em frente, no sentido
sudoeste, antes de dar uma guinada para o norte.
Nalgum lugar l� adiante, encontraria e se embrenharia em um daqueles desfiladeiros
de que ouvira falar.
O tenente Suvarov sentou-se junto ao fogo, estudando o mapa aberto sobre os
joelhos. Como representante do coronel Zamatev, tinha de tratar com oficiais de
hierarquia superior a sua, procura gui�-los na busca, da maneira que Zamatev queria
v�-la conduzida. Era um jovem de tato e at� ent�o fora bem-sucedido, embora pelo
menos um oficial com quem tratara estivesse contrariado com a posi��o de autoridade
assumida por Zamatev.
O coronel Nicolai Rukovsky era um oficial de compet�ncia indubit�vel. Era tamb�m
bem-relacionado e ambicioso. Seu comando era sem d�vida um dos mais bem treinados
em todo o Ex�rcito sovi�tico, al�m de estar constantemente aperfei�oando-o,
procurando melhor�-lo ainda mais, em diferentes aspectos. Assim, foi com prazer que
viu surgir a possibilidade de levar seus homens para o campo, numa missac, que
ultrapassava muito os limites de uma simples manobra.
- Diga ao coronel Zamatev que se ele estiver de fato nessa �rea, como voc� sugeriu,
n�s o encontraremos. Deixando o rio Kolyma estreitamente vigiado, organizou uma
linha de mil homens, com intervalo de uns trinta metros entre cada um, para
vasculhar a floresta, os prados e vales que se encontrassem ao sul daquele rio.
- Senhor - sugeriu Suvarov -, parece-me que o intervalo � grande demais. Esse homem
� como um fantasma, senhor. Pode escapar pelo meio.
- Imposs�vel! N�o passar� pelos meus homens; eles o pegar�o.
- Ele � sorrateiro, senhor.
Suvarov, estudando o mapa, examinou o problema. L� estavam na area h� tr�s dias,
percorreram quase cinq�enta quil�metros e n�o encontraram coisa alguma.
Devido �s irregularidades do terreno, a linha se encontrava mais avan�ada para o
sul, na ponta leste. Apesar do esfor�o incans�vel dos comandantes, aqui e ali o
intervalo de trinta metros mostrara-se impossivel de manter. Apesar disso, Suvarov
tinha de reconhecer que o exame da �rea fora o mais completo poss�vel. Contudo, n�o
surgira nenhum sinal do homem que buscavam, Um ca�ador Udehe, que estava entre os
soldados, dirigiu-se a Suvarov.
- Percebo rastros - disse ele.
Suvarov olhou com impaci�ncia e, reconhecendo-o, perguntou:
- Pode mostr�-los?
O Udehe era um rastreador experiente. Indicou alguma coisa no solo que escapara �
aten��o de Suvarov e conduziu-o acima de uma longa colina, por entre �rvores.
Ao perceber um som de motor, pararam. Era o coronel Rukovsky.
- O que �, tenente?
- Esse homem parece que descobriu alguns sinais, � um excelente rastreador. Diz que
o americano passou exatamente por aqui na noite passada.
- N�o pode ser - exclamou Rukovsky. - Nossos homens passaram a noite ali acampados,
ocupando quase toda a encosta.
O Udehe seguira um pouco adiante. Essas discuss�es n�o queriam dizer nada para ele.
No canto de um montinho de neve encontrou uma marca curva de calcanhar. Mostrou-a a
Suvarov.
- Unty, - explicou - sapato feito de pele. Foi por ali. Apontou com o dedo em
dire��o ao acampamento. Rukovsky saiu do carro e o acompanhou atentamente, estava
fascinado. Passara quase toda a vida naquele eixo formado por Moscou, Kiev e a
Crim�ia. Agora, em sil�ncio, observava o Udehe com enorme interesse.
Quando chegaram � �rvore oca, o Udehe parou. Abaixou-se para olhar dentro do tronco
e desapareceu no seu interior. Alguns peda�os de madeira podre nos lados do tronco
tinham ca�do na terra dentro do oco. Rukovsky aproximou-se.
- Ele, aqui - disse o Udehe, mostrando-lhes os locais em que algu�m raspara na
madeira. - Subiu l� alto quando pessoa procura ele.
Rukovsky soltou um palavr�o e depois, dirigindo-se a Suvarov, disse:
- Tinha toda a raz�o, tenente. O homem � sorrateiro. Saiu da �rvore atrav�s daquela
pequena abertura e, erguendo-se, limpou a roupa dos peda�os de madeira e casca de
�rvore.
- Passou bem pelo nosso meio, n�o foi? Vamos ver isso um pouco melhor - olhou para
o Udehe. - Esse � um bom soldado. Quero-o por perto. Precisaremos dele.
Bateu as luvas contra a cintura.
- A quest�o �: Para onde foi? Onde se encontra neste momento? O coronel Zamatev
sup�e que o fugitivo esteja tentando repetir aquela antiga rota percorrida
eventualmente pelo seu povo quando migrou para o continente americano atrav�s do
estreito de Bering. Se for isso mesmo, estar� indo para nordeste. De fato -
Rukovsky repetiu o gesto com as luvas. Por�m, a nordeste daqui est� o Kolyma. Um
rio dif�cil de se atravessar e, al�m do mais, muit�ssimo bem vigiado. Voc� disse
que esse homem era major na For�a A�rea americana, n�o �? Portanto, al�m de
conhecer bem a natureza, deve ser tamb�m bastante inteligente. Suponho que tenha
ido para oeste.
- Oeste, senhor?
- Sim, � claro. O Kolyma est� bem vigiado. Se avan�ar mais ainda no sentido leste,
restringir� seu arco de movimenta��o. Voc� disse que � um homem perfeitamente �
vontade no ambiente natural. Muito bem, ir� para oeste. Tentar� desaparecer nas
montanhas.
- Sup�e que ele conhe�a t�o bem assim nosso pa�s?
- Devemos raciocinar como se conhecesse. N�o se esque�a, tenente Suvarov, nunca se
deve subestimar um inimigo.
- Deverei me comunicar com o coronel Zamatev.
- Sem d�vida - concordou Rukovsky. - Diga-lhe que estou pronto para colaborar
integralmente. O homem me interessa de maneira especial e gostaria de estar
presente quando for capturado.
Suvarov hesitou um pouco e sugeriu, reticente:
- H� outras pessoas em campo, senhor. O camarada Shepilov tamb�m est� atr�s dele,
quer captur�-lo antes dos outros.
- Shepilov, �? - a fisionomia de Rukovsky assumiu um ar af�vel. - Naturalmente! Mas
o coronel Zamatev pertence � GRU, n�o? Admiro imensamente o camarada Shepilov e
desejo que seja bem-sucedido, mas n�s, os militares, devemos antes de mais nada
trabalhar juntos, n�o acha?
Rukovsky olhou em dire��o ao soldado, o Udehe aguardava ordens.
- Vamos coloc�-lo examinando os rastos, Suvarov. Parece ser bom nisso.
- Sim, senhor. O camarada Alekhin tamb�m est� na captura, senhor.
- Alekhin? E onde est�?
- Ningu�m sabe, a n�o ser, talvez, o coronel Zamatev. Alekhin s� se comunica com o
coronel, por�m sei que est� empenhado em ser o capturador do americano. Parece que
h� uma quest�o pessoal entre os dois.
- Como assim?
Suvarov contou-lhe a respeito daquele r�pido encontro entre os dois, logo depois de
o americano ter sido aprisionado. Dentro do carro, o coronel Rukovsky abriu os
mapas.
- Suvarov? Vamos chamar de volta nossos homens e transport�-los para oeste. Vamos
fazer nossa base de opera��es em Oymyakon - dobrou o mapa. - Esse americano � capaz
de percorrer grandes dist�ncias, como ser� que consegue?
- Ele � �ndio. Dizem que alguns dessa ra�a s�o os melhores corredores do mundo. E
esse era tamb�m atleta.
- Venha, tenente, vamos embora - virou-se em dire��o a Suvarov. - Vamos fazer disso
uma opera��o do Ex�rcito, tenente. J� sobrevoei essas montanhas e conhe�o-as um
pouco. Vamos captur�-lo n�s mesmos.
- O coronel Zamatev certamente apreciar� sua colabora��o.
- Ele a ter�. Sinto-me intrigado com esse americano, gostaria de captur�-lo - fez
uma pausa, dando lugar para Suvarov no carro. - Shepilov, �? Um homem muito
competente, tenente, por�m n�o � l� muito simp�tico para com o Ex�rcito, nada
simp�tico, na verdade.
Num ch�o pedregoso, agachado sob um pinheiro baixo, castigado pelo vento, Joe Mack
observava o vale que se estendia l� embaixo. �quela dist�ncia n�o conseguia ver
muita coisa, porem percebera os soldados levantando acampamento. Vira o carro e at�
mesmo percebera seu ru�do, atrav�s do ar frio.
Provavelmente era algum oficial, talvez um oficial comandante levando seus homens
para outro lugar.
Por qu�?
Enganara-os, mas teriam descoberto como? Os russos eram bons jogadores de xadrez e
agora estavam acompanhando mais uma jogada. Devia haver uma boa raz�o para estarem
deixando a �rea assim de repente. Claro que n�o estavam desistindo da ca�ada;
portanto, deviam estar mudando de dire��o. Ser� que lhe tinham adivinhado os
planos?
Ser� que quando chegasse ao local para onde se dirigia iria encontr�-los l�,
esperando-o?

CAP�TULO 31

Os ventos vinham vindo mais fortes, g�lidas rajadas de al�m do c�rculo �rtico. Na
pequena casa sobre a ba�a Plastun, Stephan Baronas passava a maior parte do tempo
na floresta, recolhendo lenha. Ali, junto ao mar do Jap�o, algumas vezes a neve
chegava a uns bons cent�metros de altura.
Entrou na cabana, vindo do frio e, sacudindo os p�s.
- Est� um gelo - disse, aproximando-se do fogo. - Se continuar mais um dia assim,
precisarei ir at� o vilarejo, atr�s de comida.
- Eu vou.
- A neve est� alta, Talya.
- Sou forte e bem mais jovem do que voc�. - Sentou-se perto do fogo. - Fico
pensando onde ele estar�.
Baronas sacudiu a cabe�a.
- Est� l� fora, em algum lugar; isso � tudo o que sabemos. Parece que ainda n�o
conseguiram captur�-lo. Como voc� sabe, as not�cias correm. Algu�m comenta alguma
coisa e isso vai passando de uma pessoa para outra. O problema � que quando essa
informa��o chega at� n�s j� pode ter sido muito alterada.
- O que voc� ouviu dizer?
- Foi um pouco antes de come�ar a tempestade. Tinha ido at� a praia, atr�s de
alguma madeira trazida pelo mar. L� encontrei esse pescador que conhe�o e que
acabava de chegar de Magadan, onde fora vender peixe. Dizem que est�o organizando
uma busca com os ca�adores de pele, pessoas que conhecem muito bem a regi�o.
- Pai? Temos que esperar?
- Esperar? Quer dizer, at� o Bocharev fazer alguma coisa? Temos, sim. O que ele
pode fazer eu n�o sei, mas com certeza poder� mais do que ningu�m. Quem se importa
conosco? Bocharev, � por causa do filho. Pode ser que esse sentimento de gratid�o
desapare�a ou, ent�o, que at� para ele seja imposs�vel nos ajudar.
- Mas ser� que n�o pod�amos pelo menos tentar? E aquele outro homem, o tal
comerciante de peles? Voc� desconfiava que ele estivesse planejando chegar at� o
outro lado da fronteira? Poderia nos levar junto.
Baronas balan�ou a cabe�a.
- Zhikarev � um bom homem, mas n�o nos deve nada. Al�m do mais, j� ter� problemas
de sobra tentando acertar sua fuga. Tenho a impress�o de que estava com tudo pronto
quando surgiu algum problema, completamente inesperado.
- A fronteira n�o fica longe, e eu estou com medo.
- Voc�? Voc� nunca foi medrosa, Talya.
- Eles podem tentar me usar para conseguir captur�-lo seu olhar refletia medo e
preocupa��o. - Isso me ocorreu ontem � noite. Far�o qualquer coisa para peg�-lo.
- Mas como � que ele ia ficar sabendo? Digamos que nos prendessem agora, como � que
fariam com que ele soubesse disso? � imposs�vel, voc� est� se preocupando � toa.
- Quanto tempo ainda poderemos ficar aqui neste lugar? Quando chegar a primavera,
n�o poderemos mais ficar com a casa.
Ele vinha sentindo esse problema mas procurava afast�-lo do pensamento. Aquela
casa, por mais pequena e solit�ria que fosse, era um lugar aquecido, bem protegido.
Era um ref�gio, um esconderijo no meio de toda aquela multid�o l� fora. Por menos
que fosse, n�o suportava a id�ia de abrir m�o daqueles dias de paz. O lugar era
aconchegante, uma vista linda, e ningu�m que pudesse alertar as autoridades passava
por ali.
Temia uma nova caminhada pelo pa�s, os problemas para proteger a filha. Tudo
correra bem at� ent�o, mas havia os bandos de jovens marginais, "desordeiros",
segundo a linguagem jur�dica, e ele n�o era homem de briga. Logo estaria
completando setenta anos, e com a idade fora ficando mais fr�gil, embora depois de
terem ido morar na taiga a sa�de tivesse melhorado bastante e ele ficado mais
forte. N�o havia muitos germes naquela regi�o ao norte e o ar era mais puro.
Estavam muito distantes das f�bricas, da polui��o, dos cabos de eletricidade.
- Temos que pensar nisso, Talya. Est� certo, precisamos ter um plano alternativo,
caso Bocharev se desinteresse ou n�o possa fazer nada mesmo. Concordo que tenhamos
que partir, � s� uma quest�o de tempo at� que resolvam nos prender.
- Ainda estamos em liberdade porque, neste momento, est�o preocupados com outras
coisas. Como diz o ditado, t�m peixes maiores para fisgar. Mas, assim que quiserem,
podem nos pegar.
- Acho que devemos fazer nossos planos agora; quando a neve tiver derretido, a�
podemos ir embora.
"Para onde?", perguntava-se. O ponto mais pr�ximo da fronteira chinesa ficava al�m
de Voroshilov. N�o conhecia bem aquelas cidades, teria que estudar melhor os mapas.
Iman talvez fosse melhor, ainda que mais distante. Haveria menos gente por perto.
Vestiu seu pesado sobretudo e tornou a sair para recolher lenha. Era uma luta
intermin�vel contra o frio. Se tivesse chegado ali antes, teria armazenado lenha
para o inverno, mas isso n�o fora poss�vel.
Caminhou entre as �rvores enormes que formavam uma alameda atr�s da pequena casa. O
sil�ncio era total, sent�a-se andando por uma imensa catedral ou pelo templo de
Luxor, do qual vira algumas fotografias. Era um bom lugar para se refletir.
Claro que Natalya tinha raz�o. N�o podiam prolongar demais aquela perman�ncia. Como
cruzar a fronteira? N�o tinha a menor id�ia. Tudo que podiam fazer era chegar l�
perto e examinar as alternativas. Sabendo o quanto a KGB estava em todos os
lugares, surpreendia-se por n�o terem ainda sido presos e interrogados.
A mera presen�a deles ali no litoral era suficiente para levantar suspeitas.
Pensativo, recapitulou tudo que ficara sabendo dos jovens soldados quando estes os
visitavam. Tinham falado muito a respeito da fronteira e de suas obriga��es l�, em
parte para impression�-lo, e a Natalya, com a import�ncia de suas atividades. Isso
era normal com os jovens; e suas experi�ncias, al�m de interessantes, foram
informativas. Embora existissem alguns lugares em que as tropas de cada lado se
encontravam numa situa��o hostil, prontas para o confronto, noutras as rela��es
eram at� amistosas, com troca de comida e roupas. Em lugares assim poderia haver
uma toler�ncia que n�o encontrariam em outros.
Juntando lenha para encher o r�stico tren� que constru�ra, Baronas procurava pensar
em todas as poss�veis alternativas de fuga.
Obviamente que ir embora significava abandonar toda ajuda por parte de Bocharev.
Assim, tudo que podia fazer era esperar que essa ajuda viesse antes de fugirem
dali. E o tempo era terrivelmente curto.
Significava atravessar os montes Sikhote Alins, baixos por�m maci�os, e as
florestas cerradas habitadas por ferozes tigres, h� muito temidos pelos chineses
das margens do Amur.
Como sempre, havia assaltantes naquelas florestas, homens ferozes que roubavam e
estupravam, levando o terror aos viajantes e habitantes dos vilarejos da regi�o.
Contudo, era urgente fugir; tinham que faz�-lo e talvez conseguissem arranjar
transporte. Stephan Baronas estava come�ando a aprender que havia muitas maneiras
de sobreviver e que havia todo um mundo clandestino de cuja exist�ncia nunca
soubera, um mundo subterr�neo formado de refugiados, criminosos e outros que se
misturavam, ajudando-se e roubando uns aos outros, que se locomoviam pelos dois
lados da fronteira sem que as autoridades percebessem.
A natureza humana � tal que mesmo entre pessoas cujos interesses oficiais s�o
opostos podem se desenvolver amizades e, nesses dias de comunica��o instant�nea,
tal entendimento entre os indiv�duos pode evitar conflitos capazes de desencadear
at� uma guerra. Muitas vezes a confian�a baseia-se em nada mais que a vis�o que se
tem a respeito do ser humano.
Carregou de lenha o treno e puxou-o sobre a neve at� a cabana. Ao chegar l�,
decidira-se: Tinham que escolher v�rios roteiros de fuga e deix�-los preparados.
No vilarejo talvez pudesse entrar em contato com algum motorista de caminh�o que os
levasse a seu destino ou, pelo menos, at� perto. Tamb�m tiraria uma pagina do livro
de Joe Mack e tra�aria uma trilha pelas montanhas, em dire��o � fronteira.
O problema era que teriam de esperar at� o �ltimo minuto pelo que Bocharev talvez
pudesse fazer, enquanto naquele mesmo instante, sobre alguma mesa, provavelmente j�
havia uma ordem de pris�o contra eles, aguardando cumprimento.
Felizmente n�o tinham nada que precisassem carregar, al�m de roupas e alguma
comida. Stephan Baronas come�ava a perceber o quanto as posses tiram a liberdade
das pessoas, quase como as grades de uma pris�o.
Ao chegar � cabana, puxando o tren�, estava cansado. Parou um pouco, do lado de
fora junto � porta, at� recuperar o f�lego, pois n�o queria que Natalya percebesse
sua dificuldade de respirar.
Teriam que atravessar montanhas para fugir. Como � que ia resolver isso? N�o
importava, descobriria uma maneira, e as montanhas, afinal, n�o eram assim t�o
altas.
Quando a respira��o voltou ao ritmo normal, abriu a porta e tomou uma bra�ada de
lenha para deixar junto ao fogo. Depositou-a e limpou-se dos pedacinhos de madeira
na roupa.
- Talya?
N�o houve resposta. Olhando em volta, notou um bilhete no canto da mesa em que
trabalhava, onde ficavam os tr�s livros que conseguira conservar: Fui at� o
vilarejo.
Exasperado, disse um palavr�o. Sabia que ele tinha inten��o de ir, al�m do mais n�o
queria v�-la subindo de volta por aquele caminho t�o �ngreme. Fazia muito frio
naquele morro que descia at� a ba�a, e na praia tamb�m, Al�m disso, no vilarcio
havia um bando de b�bados briguentos.
Colocou mais lenha no fogo, tirou o sobretudo e sentou-se. Aquela seria uma longa
espera.
Natalya acomodou as poucas coisas que comprara numa sacola que levava nas costas.
Percebeu que muitos dos homens que ficavam zanzando por ali a observavam, trocando
coment�rios em voz baixa. Ia colocar a sacola nas costas quando a porta se abriu,
trazendo para dentro uma rajada de ar frio da ba�a.
Assim que bateu os olhos no rec�m-chegado, percebeu que conhecia aquele homem.
Sabia, porem, que n�o deveria cham�-lo pelo nome antes que ele pr�prio se
identificasse. N�o era nada imposs�vel que naquele momento tivesse decidido adotar
um outro nome.
Ele lan�ou-lhe um olhar, foi at� o vendedor da loja e comprou fumo.
Pegando a sacola, encaminhou-se para a porta, quando um dos desocupados dirigiu-se
a ela.
- Quer ajuda com as compras? - Estendeu as m�os para pegar a sacola.
- N�o, n�o � preciso, obrigada.
- Espere a�, n�o posso deixar uma mulher levar isso sozinha - gritou o homem. -
Deixe que eu levo. - com a m�o agarrada � sacola, puxou-a com for�a de Natalya. O
movimento foi t�o brusco que ela quase caiu, mesmo assim conseguiu ficar com a
sacola na m�o.
- N�o quero ajuda nenhuma! - exclamou. Ele deu uma risada e empurrou-a de lado.
- Vamos ver o que comprou - murmurou, sarc�stico. Talvez tenha alguma coisa que
eu...
- Deixe-a.
Yakov falara num tom de voz baixo, por�m en�rgico. Lentamente, a m�o ainda na
sacola, o homem virou-se.
- Falou comigo? - retrucou, amea�ador.
- Eu disse para voc� largar o pacote e deixar a senhora em paz - Yakov sorriu. -
Acho que n�o you precisar repetir isso.
Yakov estava a pouco mais de um metro de dist�ncia, o cotovelo apoiado no balc�o, o
cachimbo na boca.
- Afaste-se, Natalya - pediu Yakov. - Quando ele cair, n�o quero que seja em cima
de voc�.
Dois outros homens se levantaram, entreolhando-se incertos de que atitude tomar.
- Cair? Quem � que vai cair?
Yakov falava com os dentes cerrados, prendendo o cachimbo.
- Largue a sacola - ordenou - e afaste-se. A senhora � uma conhecida minha.
- E quem � voc�?
O cotovelo de Yakov continuava apoiado no balc�o, a m�o direita pousada na
superf�cie plana de madeira. Sorria.
- Essa senhora, e as compras, v�m comigo - desafiou o homem, lan�ando um olhar em
dire��o aos companheiros.
- Se ele criar algum problema, agarrem-no. Eu divido ela com voc�s.
De uma maneira quase negligente, Yakov deu-lhe um chute de lado, no joelho. Deu
para se ouvir o barulho de alguma coisa quebrando. O homem cambaleou e caiu
gritando de dor. Yakov encarou-os.
- Ele agora tem uma perna quebrada. Voc�s v�o querer que eu quebre o qu�? - falou
num tom de polidez. Espantados, olhavam o homem estendido no ch�o e tornavam a
olhar para Yakov; o outro gemia agarrando-se � perna quebrada.
Encarando-o ainda, foram se afastando. Yakov apanhou as compras de Natalya.
- J� vamos indo, mas lembrem-se bem de uma coisa, nunca mais quero ver esta senhora
ser incomodada, estamos entendidos? Ela � uma amiga minha. Se tiver que voltar
aqui, vou pegar cada um de voc�s; sozinhos ou em grupo, n�o vai fazer diferen�a.
Voltou-se para Natalya.
- Venha, chega disto aqui.
Sa�ram e Yakov fechou a porta atr�s de si. O homem ca�do no ch�o gemia e dizia
palavr�es. Os outros atravessavam o c�modo em sua dire��o.
L� fora, disse Yakov:
- Mora longe daqui? - Ela apontou a dist�ncia.
- L� em cima, na floresta, a alguns quil�metros daqui.
- Ser� que h� lugar para mim? - perguntou. - N�o quero incomodar ninguem e, seja l�
como for, sempre posso descobrir algum canto na floresta mesmo.
- Claro que h� lugar.
Foram andando e depois de um certo tempo ela disse:
- Yakov, muito obrigada.
- N�o foi nada. Conhe�o bem esses tipos. � tudo conversa fiada, especialmente
quando j� est�o entupidos de vodca. - Baixou o tom de voz.
- S� voc� e seu pai est�o aqui? Que aconteceu com os outros?
- Eles se espalharam, n�o sei onde.
Tinham chegado � praia da ba�a. Ela parou, olhando para tr�s. S� se viam algumas
luzes na dist�ncia.
- Yakov? Ouviu alguma coisa dele?
- De Joe Mack? - Deu uma risadinha. - Quem � que n�o ouviu? N�o se fala em outra
coisa. Metade do pessoal do governo que trabalha na Sib�ria est� atr�s dele. Uns
t�m medo que os outros o encontrem em primeiro lugar. Escapou para nordeste e est�o
mandando tropas para l�. Se eu tivesse um jeito, iria l� ajud�-lo, mas j� est�
fazendo at� demais, mesmo sozinho.
- Quem � voc�, Yakov?
- � melhor voc� nem saber. Digamos que eu amo a m�ezinha R�ssia, mas n�o os seus
governantes. N�o gosto de estar amarrado a um �nico tipo de trabalho. Sou um
andarilho, uma alma livre, voc� poderia dizer. Como sabe, j� ajudei muita gente a
fugir deles. Talvez eu seja at� um desses malditos capitalistas, de que eles falam
tanto, s� que n�o tenho capital.
- Mas n�o � s� voc�, �?
- Ah, n�o! H� outros como eu, mas n�o nos mostramos muito, n�o, Aquele probleminha
agora h� pouco, por exemplo; n�o gosto de coisas desse tipo porque acabam chamando
a aten��o.
Reparou na trilha �ngreme.
- Voc� sobe sempre por a�? Com a sacola?
- N�o, geralmente � meu pai quem sobe, mas n�o quero que ele continue fazendo isso.
Seu cora��o n�o anda l� muito bom, Yakov, embora ele pense que eu n�o saiba de
nada. Antes de entrar em casa, ele fica parado do lado de fora, junto � porta, at�
recuperar o f�lego. Se eu n�o tivesse ido hoje at� l�, ele iria amanh� de manh�.
Foram subindo pela trilha at� chegarem ao topo, de onde se avistava a cabana.
- Yakov, n�s vamos tentar sair do pa�s.
Explicou-lhe os planos resumidamente, incluindo a hist�ria de Bocharev e do filho.
- Bocharev? - surpreendeu-se. - � um bom homem, Natalya, e poderoso tamb�m. Se ele
quiser, pode conseguir; pode mand�-los para o outro lado da fronteira. Nem Zamatev
tem poder para isso, ou Shepilov - concordou com a cabe�a.
- � melhor mesmo voc�s partirem. Ali�s, � por isso que estou aqui.
- Por qu�? Por que est� aqui? O que quer dizer com isso?
- Zamatev deu ordem de pris�o para voc� e seu pai. Voc�s n�o poder�o esperar,
ter�o que partir esta noite.

CAP�TULO 32

Ao entrarem, Stephan Baronas ergueu-se subitamente. Saudou Yakov com um sorriso


caloroso nos l�bios.
- Venha! Sente-se ao fogo! Que bom tornar a v�-lo!
- Acho que n�o h� muito tempo para sentar, camarada, H� uma ordem de pris�o.
Precisam abandonar esse lugar imediatamente.
- Abandonar...
- N�o h� escolha. Zamatev mandou que voc�s fossem presos. Est� prendendo todos os
que tiveram algum contato com o americano. Voc� e sua filha s�o os primeiros da
lista.
Natalya juntava as roupas em trouxa, pegava toda a comida que tinham. A bagagem
seria um pouco pesada, mas a comida logo desapareceria, aliviando-os do peso.
Dirigiu o olhar para o pai. Ser� que ele iria conseguir? Cruzar as montanhas, em
pleno inverno? Pelo menos n�o morreria no fundo de uma pris�o.
N�o podia morrer! Tinha tanto ainda para dar de si, era um homem bom demais, al�m
de ser seu pai; era a �nica pessoa que tinha realmente no mundo.
A �nica mesmo? Lembrou-se de Joe Mack. Ser� que havia mesmo alguma coisa entre
eles? Seria tudo um sonho? Um sonho imposs�vel?
O que se passara entre os dois? O que fora dito, prometido? Balan�ou a cabe�a,
surpresa com ele e consigo mesma.
De fato, n�o houvera nada. Nada que se pudesse indicar e dizer onde e quando
acontecera.
N�o trocaram palavras de amor, n�o se abra�aram com paix�o... Apenas um
entendimento mudo, alguma coisa rica, calorosa e bela. De uma maneira que n�o sabia
explicar, desde que se conheceram tivera essa certeza. N�o chegara a pesar a
situa��o, pensar melhor a respeito ou imaginar que acontecesse alguma coisa. De
repente estava tudo ali, e ela sabia.
Naquele instante, empacotando as coisas, espantava-se com tudo aquilo. O que fora
dito? O que fora feito? Como despertaram nela aquelas emo��es? Sempre fora uma
mulher sens�vel, mas ele era um fugitivo, um homem de uma ra�a estranha, de outro
povo.
Era um �ndio, aquilo que fora considerado um povo selvagem. Ele dizia que isso
deixara de ser verdade quanto ao seu povo, mas era verdade quanto a ele pr�prio.
Ser� que ele podia ser um selvagem? Pensou um pouco e admitiu ser perfeitamente
poss�vel. Sen�o, como � que conseguiria sobreviver em plena natureza in�spita? Na
neve? E agora, quando metade daquele inverno terr�vel j� se fora, sobrevivia ainda,
em algum lugar, fugindo de seus perseguidores.
Voltou-se para Yakov.
- N�o d� para ser amanh� de manh�? Com algumas horas de sono, estar�amos mais
preparados.
Encolheu os ombros.
- Quanto mais longe voc�s estiverem, melhor. S� poderei acompanh�-los durante um
pequeno trecho. N�o posso ser encontrado aqui, nem em lugar nenhum - e acrescentou,
sombrio: - S� poderei ajud�-los por alguns quil�metros, depois tenho que ir em
outra dire��o.
- Pai? Durma um pouco. Precisamos todos descansar um pouco - virou-se para Yakov. -
Ent�o, um pouco antes do nascer do dia?
Encolheu outra vez os ombros.
- � um risco.
Yakov ati�ou o fogo, tirou seu AK-47 e verificou se estava em ordem. O barulho que
fazia com a arma tomou conta de toda a cabana.
Pela rapidez com que adormeceu, percebia-se a preocupa��o do pai. Viu quando Yakov
olhou para ele e balan�ou a cabe�a.
Natalya deitou-se com a mesma roupa que vestia. N�o haveria tempo para se trocar
pela manh�. O olhar fixo no teto, pensava no que deveriam fazer. Havia uma pequena
trilha floresta adentro que s� come�ava mais adiante, depois de algumas clareiras.
Nunca se afastara mais que uns dois quil�metros, embora soubesse que aquele caminho
levava � parte mais densa da floresta. No ver�o, teria explorado melhor o local,
mas, com aquele tempo, em pleno inverno...
Na cabana havia alguns sapatos de neve, pertenciam � casa. N�o importava, tinham
que lev�-los. Se escapassem, mandariam o dinheiro depois.
Se escapassem...
Ficou ainda muito tempo acordada, olhando para a escurid�o, quebrada apenas pela
luz das chamas tr�rnulas do fogo morti�o.
Como conseguiriam escapar? Um velho e uma mulher jovem, um velho que nunca se
dedicara �s atividades f�sicas.
Mesmo quando chegassem � fronteira, como a atravessariam? Chegariam a um rio que
n�o seria o Amur, mas o Ussuri; ainda assim, um rio bastante largo e que estaria
patrulhado.
A porta aberta despertou-a, pois trouxe para dentro uma rajada de frio. Sentou-se
imediatamente. Era Yakov.
- Est� na hora, temos que nos apressar.
Quando ia espalhar os vest�gios de fogo, ele a impediu.
- O fogo j� se apagou, as cinzas est�o frias. Deixe assim e n�o saber�o que
partimos.
Ela estava pronta. Seu pai se vestiu depressa, pegaram os embrulhos e deixaram a
cabana. Estava nevando, uma neve suave, que parecia murmurar ao cair, cobrindo tudo
silenciosamente.
Ela foi na frente, caminhando entre as arvores por onde colheram lenha, atrav�s de
uma esp�cie de clareira, at� a trilha que n�o passava de um peda�o plano entre
alguns arbustos baixos.
Yakov virou-se para olhar para tr�s. A neve j� ia cobrindo suas pegadas.
- Em alguns minutos - disse - ter�o desaparecido. Vamos em frente.
O ar era frio e cortante. Foi avan�ando, procurando ir devagar por causa do pai. A
trilha serpenteava entre as �rvores e ela percebeu que se lembrava bem daquele
trecho inicial.
"Podia virar �ndio", pensou consigo mesma. "Podia at� morar na floresta," O rio
Todzihe ficava � direita e a floresta por onde caminhavam era cortada por um riacho
que desaguava naquele rio. Yakov passou-lhe � frente.
- Deixe-me ir descobrindo a trilha - disse. - N�o sabia onde ela come�ava.
Sob as �rvores, a neve era profunda. O que conseguiam ver do c�u eram nuvens
pesadas e um cinza apagado. As �rvores, contra a brancura da neve, eram nuas e
negras. A floresta im�vel, nenhum vento soprava. Percebeu um p�ssaro deslizando
entre as �rvores, seguindo a mesma trilha deles pela floresta.
Diversos carvalhos maci�os e pl�tanos misturavam-se �quelas �rvores que seu pai
dissera serem pinheiros coreanos; e, naturalmente, as b�tulas que ela reconhecia
com facilidade. Pouco a pouco iam subindo a montanha pela trilha sinuosa. Junto aos
riachos havia choupos-do-canad�, num tamanho que nunca vira.
A manh� era fria, mas n�o muito; depois de terem percorrido o que ela calculava
serem uns tr�s quil�metros e meio, pararam para descansar um pouco. Aquele tempo
todo, com exce��o do p�ssaro, n�o viram nenhuma coisa com vida. Agora, bem perto
uns dos outros, falavam em voz baixa.
Virou-se para o pai, seus olhares se encontraram e ela sorriu.
- Estou bem, Talya. You conseguir.
- J� nos afastamos - disse Yakov. - Podemos ir mais devagar. Essa trilha �
conhecida?
Ela meneou a cabe�a.
- Duvido. As pessoas do vilarejo quase nunca v�m para estes lados. Alguns sabiam da
exist�ncia da cabana, mas o caminho at� l� era �ngreme e n�o viam raz�o para subir.
Eu acho que quando v�o at� a floresta fazem o caminho pelo rio. Quase todos l� s�o
pescadores - acrescentou. - H� alguns ca�adores tamb�m, mas vivem na floresta.
Antigamente os chineses vinham aqui colher ginseng, mas agora, com as fronteiras
patrulhadas, quase nunca v�m.
Yakov acenou concordando.
- Eu j� trabalhei com ginseng. Os chineses pagam um bom pre�o por ele. Se
estiv�ssemos no ver�o, diria para voc�s procurarem algum para levar - deu uma
piscadela. - Um suborno precioso, sabe! As vezes s�o capazes de fazer, por ginseng,
coisas que n�o fariam por dinheiro nenhum, Iam andando mais devagar. De vez em
quando ela parava um pouco para observar o rosto do pai. Estava bem; n�o parecia se
esfor�ar mais do que poderia ag�entar.
- Logo vamos parar um pouco e fazer um ch� - sugeriu Yakov.
Continuaram at� que ele parou de repente. Chegaram a uma grande �rvore ca�da ao
ch�o. As ra�zes expostas numa massa misturada com a terra congelada formavam uma
parede protetora. Ao lado crescia um cedro cujos longos galhos estavam vergados
pela neve acumulada.
- Aqui - apontou Yakov. - Vamos parar aqui.
Foi na frente, saindo da trilha e indo para debaixo do cedro. Era um lugar
aconchegante, um abrigo natural, e cuja massa de raiz e terra serviria como um
refletor para o calor do fogo.
- Procure sempre prestar aten��o - alertou Yakov. Um homem na floresta presta
sempre aten��o e descobre muitos lugares como este. Sempre se lembra e assim, se
voltar por aquele caminho, j� sabe onde existe um lugar para acampar.
Logo tinham um fogo aceso e �gua fervendo no pequeno bule. Pegou peda�os de casca
de uma �rvore ca�da para se sentarem.
- Se precisar de fogo, tenha sempre alguma coisa que pegue com facilidade: Um ninho
velho, casca de �rvore bem seca, enfim, alguma coisa para come�ar o fogo. Sempre h�
galhos secos nos troncos de �rvores mortos h� muito tempo. As �rvores ca�das sempre
atingem diretamente o solo e a casca debaixo pode estar bem seca - voltou a olh�-
la. - Logo terei que ir e voc�s ficar�o s�s. Preste aten��o em tudo e pense muito.
Sempre procure um lugar para acampar antes de escurecer, enquanto ainda existe um
pouco de luz. Acenda uma fogueira pequena e fique perto.
Colocou mais alguns gravetos na fogueira e serviu ch� para todos. Sorriu para ela.
- Os ursos s�o espertos. Durante o inverno, como n�o h� nada para comer, eles
dormem. N�o havendo mais frutas silvestres, as ra�zes todas enterradas no fundo da
neve e nenhum animal pequeno � vista, ent�o eles v�o dormir. Muito inteligente da
parte deles.
- Voc� tem mesmo de ir? - Fez que sim com a cabe�a.
- H� quatro pessoas que fiquei de encontrar longe daqui. Estamos ajudando um
prisioneiro a escapar da pris�o Sovetskaya Gavan - olhou para ela. - N�o posso
chegar atrasado, eles precisam de mim, entende?
- � claro que sim.
Respondeu assim e de fato entendia, por�m, por dentro, sentia-se amedrontada. Ser
deixada sozinha naquelas montanhas! O que iria fazer! O que poderia fazer?
Contudo, n�o era num lugar como aquele que estava Joe Mack? N�o fora num lugar
assim que ele passara meses e meses? O que � mesmo que Yakov dissera? Observar bem
e pensar.
"Estaremos bem", disse consigo mesma.
Tirou um mapa de seu estojo e abriu-o, protegendo-o de alguns flocos de neve que
chegavam at� o abrigo.
- Aqui estamos, v�? Fa�a uma linha perpendicular aqui, esta outra transversal, e a�
encontra esse rio correndo para noroeste. � o rio Vagou. Corre at� perto de Iman,
na fronteira. Tentarei voltar e encontr�-los. Mas n�o conhe�o muito bem essa
fronteira ao sul de Iman. N�o me procurem. Se conseguir voltar, encontro com voc�s
depois. Mas, se for morto, falem com seu amigo Bocharev, � um bom homem e talvez
possa ajud�-los, n�o sei.
Ficou em p�.
- Agora � melhor seguirmos. Encontrarei um lugar para voc�s passarem a noite e
depois irei embora.
Cal�ou os sapatos de neve e aguardou at� que eles fizessem o mesmo. Foi andando na
frente e, quando chegaram de volta � trilha, olharam para tr�s: N�o deixaram
pegadas. A trilha j� estava branca e lisa, como se nunca tivesse sido tocada por
p�s ou patas.
Algumas horas depois e trezentos metros acima, descobriu uma grande sali�ncia de
pedra, parcialmente protegida por cedros.
- Para esta noite, � um bom lugar - disse ele. Voltou-se para ela: - Pela manh�, j�
terei ido. N�o gosto nem um pouco de ter que deix�-los, mas j� est�o me esperando,
est� tudo planejado e cronometrado. O prisioneiro estar� num determinado lugar, por
alguns poucos minutos. � a� que o ajudaremos na fuga; se eu me atrasar, est� tudo
estragado, nem sei se teremos outra oportunidade de entrar em contato com ele;
talvez nunca mais tenhamos.
- Eu compreendo. - Natalya resignou-se.
- � claro - concordou Baronas. - N�s estaremos bem, n�o se preocupe.
O acampamento era bem protegido, por�m frio, incrivelmente frio. Estavam agora num
lugar mais alto, quase mil e duzentos metros acima do n�vel do mar. As montanhas
Sikhote Alin, na parte mais sul da serrania, em nenhum ponto atingiam mais de mil e
seiscentos metros de altura, mas nas partes mais altas, durante o inverno, o frio
era intenso.
Natalya podia ver muito bem que Yakov estava preocupado. Olhava para ela, para o
pai, tornava a olh�-los e diversas vezes ficou andando para l� e para c� na neve,
resmungando sozinho.
- N�o se preocupe - tranq�ilizou-o enquanto tomavam ch�. - Estaremos bem.
- Mas estamos em pleno inverno - protestou. - Faz frio! E o lugar para onde v�o
fica longe daqui, um longo caminho por uma regi�o totalmente selvagem.
- Estaremos bem - tornou a repetir, e no fundo gostaria de acreditar no que dizia.
Morria de medo de ser deixada sozinha, ou quase sozinha, naquela imensa floresta.
- Eu s� pretendia avis�-los a respeito da ordem de pris�o - explicou. - E depois ir
imediatamente embora; agora tenho de ir muito depressa mesmo, sen�o chegarei tarde
demais.
Enquanto a noite ca�a, o pai adormecido, conversaram longamente. Explicou-lhe
in�meras vezes como deveriam viajar, que coisas deveriam temer, como preparar o
acampamento.
- N�o pensem em tempo - preveniu-os. - O melhor para voc�s ser�o percursos
pequenos. Acampem cedo para que quando escurecer j� estejam bem protegidos. No
escuro n�o conseguir�o achar coisa nenhuma. Retomem a caminhada bem cedo, mas n�o
se cansem demais. Muita gente morre congelada porque gasta todas as reservas de
energia; porque n�o pensa em parar para descansar e guardar um pouco para combater
o frio. Nunca cheguem a atingir a exaust�o. Tenho um pouco de carne-seca que
repartirei com voc�s. Posso arranjar mais depois.
Colocou alguns gravetos no fogo.
- S�o mais de cento e sessenta quil�metros - calculou. Meio longe, n�o?
- Estaremos bem - repetiu, desejando ela mesma acreditar.
Quando surgiu o dia, foi-se embora; partiu com relut�ncia e muitas vezes voltou-se
para tr�s, enquanto se afastava. Natalya, em p� na orla da floresta, viu-o
distanciar-se pela trilha rumo ao norte, uma trilha t�o sombria quanto aquela que o
pai e ela teriam de seguir.
Quando retornou ao acampamento, encontrou o pai sentado junto ao fogo.
- Ent�o, ele se foi mesmo?
- Sim, pai.
Natalya aproveitara para empacotar as coisas enquanto ele dormia, assim n�o
perceberia que ela estaria levando quase todo o peso.
- N�s tamb�m temos que nos mexer.
- Sim, sim, � claro.
Ela colocou a carga no ombro e, depois de olh�-lo apreensiva, sa�ram, ela na
frente. Estava com medo. O aspecto do pai n�o era nada bom naquela manh�. O frio, a
comida racionada, subir a montanha, tudo aquilo era muito dif�cil para ele.
Um pouco antes do meio-dia pararam e ela preparou um ch�. O sol brilhou por um
breve momento e, apesar dos raios fracos, sentiram um pouco do calor. Ela acendeu
uma pequena fogueira e falaram de casa, de Joe Mack e da trilha.
- A principal cadeia das Sikhote Alin parece que corre paralela ao litoral -
explicou ela -, por�m Yakov me disse que h� uma outra cadeia que segue no sentido
noroeste e que vai quase at� Iman. Logo a alcan�aremos e seguiremos at� que seja
poss�vel descer na bacia do Vaku.
Ele nada respondeu, o olhar perdido nos cumes nevados e nas copas das �rvores,
cobertas de neve.
- Isso � muito duro para voc�, Talya - disse finalmente. - De alguma maneira, ao
coloc�-la nesta situa��o, sinto que fracassei como pai.
- Voc� � o melhor pai que existe - retrucou -, e um dia olharemos para tudo isso
apenas como um momento de transi��o.
Andaram por tr�s dias, mas ao final do terceiro ele pediu:
- Talya, acho que hoje teremos que parar mais cedo. Sinto que preciso descansar.
A temperatura subira alguns graus e o lugar que encontraram aninhava-se entre os
cedros, um lugar em que um barranco formava uma reentr�ncia. Ali na sua base, sob a
sombra dos cedros, acenderam uma pequena fogueira. Tomaram ch�, mas quase toda a
carne que Yakov tinha deixado com eles, para suplementar aquela pobre dieta,
terminara, a n�o ser tr�s tiras fininhas.
- Guarde-as para voc� - disse-lhe o pai. - Tomarei um pouco de ch�, mas estou
completamente sem apetite.
Quando raiou o dia, a neve ca�a suavemente. Avivou o fogo e chamou:
- Pai?
Como ele permanecia im�vel, ela levantou-se lentamente e foi at� junto dele
deitado, os olhos azuis abertos diante da neve.
- Pai? - insistiu.
Seu pai estava morto e ela sozinha.

CAP�TULO 33

Na manh� do dia em que Bocharev foi at� a cabana defronte � ba�a Plastun, Peshkov
voltou ao vilarejo no meio da floresta.
O dia era frio e sombrio e ele percorreu a trilha que levava at� l� sem que
encontrasse pegada nenhuma sobre a neve. Tampouco havia fuma�a saindo das chamin�s.
Encolhendo os ombros por causa do frio, foi primeiro at� a cabana de Baronas.
Bateu, sem esperar ouvir resposta, abriu a porta e entrou. Dentro estava frio e as
cinzas na lareira estavam mortas h� muito tempo.
Olhou em volta, irritado com o fato de terem ido embora, mas estranhamente
sentindo-se tamb�m abandonado. Um por um, examinou todos os outros buracos,
cavernas e barracos. Ningu�m. Todos se foram.
Que se danassem! Bem feito se tivessem sido todos mandados para a pris�o.
Especialmente aquela mulher, aquela Natalya!
Deixassem com ele. Saberia como se vingar. Odiava-os todos, todos menos Yakov.
Temia Yakov.
Sentira medo naquela noite em que o americano surgira com uma faca bem atr�s dele.
"Desgra�ado!" Como conseguiu fazer aquilo? N�o importava, ia mostrar com quem
estavam lidando! Agora estava fugindo, com metade do Ex�rcito atr�s. Ia acabar
sendo apanhado. Gostaria de estar presente quando isso acontecesse. S� queria que o
americano o visse ali naquele momento, sorriria para ele. Pensar que nunca
encontrara o lugar em que se escondera o americano!
Foi de novo at� a cabana de Baronas, a neve seca rangia sob os p�s. Encontrou lenha
l� dentro e acendeu um pequeno fogo. Assaria um pouco de carne no fogo e depois
daria uma olhada. Irritava-se com o fato de n�o t�-lo encontrado. Podia ter ficado
de tocaia do lado de fora e atirado assim que sa�sse. Podia at� ter recebido uma
boa recompensa por isso. N�o recebera nada por dizer-lhes onde se escondia.
Na cabana abandonada h� algum tempo estava frio e o aspecto era miser�vel. Olhou ao
redor e sentiu raiva. Enquanto eles ali estiveram, fora sempre um local aquecido e
at� confort�vel.
Fez ch� e tomou-o agachado no ch�o. Todo mundo fora embora, portanto, n�o tinha
cabimento permanecer no local. Nunca gostaram dele, nenhum deles, mas pelo menos os
conhecia. A� � que estava. Conhecia-os e eles o conheciam. Ficavam sempre alegres
com a carne que lhes conseguia. Fazia com que pagassem por isso, de uma maneira ou
de outra, at� que apareceu o americano, que dava para eles, de gra�a, toda a carne
que arranjava ca�ando.
Para onde iria agora? Para onde podia ir? Sempre achou todos ali uns coitados,
Baronas e Natalya inclusive. E se achavam muito importantes, achavam mesmo. E da�?
Todo aquele estudo, para que serviu? Estavam todos no mesmo barco, s� que agora ele
estava por cima. E eles tinham desaparecido. Desaparecido.
A palavra soava-lhe vazia. N�o gostava deles, conhecia-os, contudo. Suas
fisionomias eram-lhe familiares. E, ainda que os desprezasse, sentia-se bem em seu
meio. E agora, para onde iria? Tinham todos sumido, se espalhado como neve levada
pelo vento, mas, se parasse um pouco para pensar, talvez descobrisse para onde
tinham ido. Baronas n�o sabia ca�ar, portanto, n�o seria capaz de ir para o meio da
floresta. Ouvira-o comentando qualquer coisa a respeito de irem para um lugar mais
quente, onde o clima seria melhor para sua sa�de.
Um lugar mais quente. S� podia ser o litoral do mar do Jap�o. Pelo menos aquele era
o lugar mais pr�ximo, e o �nico, para onde podiam ir. N�o teriam coragem de voltar
para a R�ssia. E, afinal, n�o eram russos mesmo.
Peshkov era um homem cheio de �dio e rancor. Pela primeira vez na vida percebeu
isso. Nunca gostara de ningu�m.
Vagara aqui e ali com v�rias pessoas, mas s� porque isso lhe facilitava a vida.
Fora junto, abandonando-as depois se a ocasi�o pedisse. Era ca�ador, ca�ava peles
tamb�m, assim como era capaz de executar pequenos roubos, pegando qualquer coisa
que lhe pudesse ser �til, sem sentir nenhum remorso. Maior e mais forte que a
maioria dos outros homens, era raro encontrar problemas pela frente. Pouca gente
andava armada e quase todo mundo podia ser levado na conversa; quanto aos
restantes, aprendera a evit�-los.
Stephan Baronas ignorava-o, de uma forma educada. Natalya, discretamente, comandava
o pequeno agrupamento e ele, desde o in�cio, ressentira-se disso. Em primeiro lugar
porque n�o passava de uma mulher, e em segundo por ser lituana. Seu pai tinha um
certo prest�gio entre os refugiados, por�m n�o era do tipo que se sentia atra�do
pelo comando ou pela autoridade. Pouco a pouco, Natalya fora respondendo a essa
demanda de lideran�a da pequena comunidade. Os esfor�os de Peshkov para assumir o
controle simplesmente foram ignorados por todos, e isso ele nunca conseguira
engolir. In�meras vezes fizera tudo para estar s� com ela, achando que a� lhe
mostraria quem era e o que ela era para ele. Infelizmente, quando enfim conseguira,
ela mostrou que tinha um rev�lver consigo e que estaria pronta para us�-lo.
Sentado junto ao fogo, naquilo que fora a cabana de Baronas, decidira-se. Iria
encontr�-la e mostrar quem � que mandava ali. Seria capaz de feri-la, mat�-la at�,
se achasse que seria melhor assim.
Encontr�-la n�o seria um problema insol�vel. Era um homem errante e conhecia outros
como ele. Uma mulher bonita como aquela n�o seria esquecida. Sorriu olhando o
interior da x�cara vazia. Depois ficou em p�, apagou o fogo, ajeitou sua bagagem e
saiu.
Em primeiro lugar, para sua pr�pria satisfa��o, descobriria o local em que o
americano estivera escondido. Depois sairia atr�s de Natalya e Baronas.
Ria sozinho, pensando no horror que sentiria ao reencontr�-lo. Iria atr�s dela
quando estivesse catando lenha, ent�o podia derrub�-la e, antes que recobrasse a
consci�ncia, j� estaria amarrada e indefesa. A� ela iria ver uma ou duas
coisinhas...
Demorou umas duas horas e foi ficando cada vez mais irritado e impaciente.
Recusava-se a acreditar que o americano pudesse engan�-lo- daquele jeito e somente
ao passar pela terceira vez por ali � que decidira explorar melhor aquela fenda na
pedra. Era um homem bem pesado e a entrada era estreita, mesmo assim conseguiu
passar e ver a plataforma adiante. Atrav�s das �rvores chegava um pouco de sol, o
suficiente para que tivesse certeza de ter chegado ao esconderijo.
Logo em frente, a um ou dois passos, viu o lugar em que uma fogueira tinha sido
feita e...
Foi se esgueirando pela fenda estreita e deu um passo r�pido. Afinal, queria estar
longe dali antes que escurecesse. Ele...
No instante em que dera o passo, ouvira a �gua caindo l� embaixo, por�m tarde
demais.
Sentiu-se caindo e, apavorado, deixou cair o rifle e agarrou-se selvagemente. Os
dedos agarraram-se � borda e mantiveram-no suspenso no vazio.
Era um homem forte, mas pesado, vestindo um casaco tamb�m pesado. Ficou dependurado
por um momento, sufocado de medo, tentando puxar-se para cima.
N�o conseguia. Os dedos pareciam escorregar na pedra e ele gritou, pedindo socorro.
N�o havia ningu�m para ouvir, a aldeia estava deserta. Lutou para vencer o p�nico.
Conseguiria chegar at� em cima, tinha que subir at� l�. Usando toda a for�a que
tinha, foi puxando at� conseguir colocar um cotovelo na borda.
Tivera �xito. Com o cotovelo apoiado na orla, subiu um pouco mais e jogou uma perna
para cima.
Durante um instante terr�vel, sentiu que a pedra sob o cotovelo cedia, e a� caiu.
Parecia estar caindo durante muito tempo, at� que, ap�s um violento impacto, sentiu
uma agonia penetrante e uma dor brutal, insuport�vel. Ca�ra nas pedras, metade do
corpo dentro da �gua gelada; ficou ali deitado, vendo uma luz fraca l� em cima e
sabendo que quebrara a espinha.

Evgeny Zhikarev esperara e planejara muito tempo; n�o aceitaria derrota.


Cuidadosamente, atrav�s de seus amigos negociantes e comerciantes de peles, fora
construindo uma rede de informa��es. Aos poucos, daqui e dali, come�avam a chegar
not�cias. Fora dada uma ordem de pris�o para Stephan e Natalya Baronas. Zamatev
estava atr�s de todas as pessoas que tiveram contato ou se encontraram com o
americano, que continuava solto, ali�s. A aldeia fora abandonada, Botev e Borowsky
estavam desaparecidos, assim como Baronas e a filha. Evgeny sabia que seu pr�prio
tempo era curto. Sem d�vida, logo viria uma ordem de pris�o tamb�m para ele.
N�o era o tipo de homem que entrasse em p�nico. N�o tinha a menor inten��o de ser
novamente preso para interrogat�rio. J� passara antes por isso, seus p�s aleijados
eram a prova, al�m de outras cicatrizes.
Seu primo come�ara a ficar nervoso, sabia que preferia que fosse dali. Fora uma
visita formid�vel e calorosa, mas, na medida em que se prolongava, a paci�ncia do
primo parecia diminuir. Tudo bem, iria embora.
Partiria de repente, sem avisar, pois, nesses dias, quem � que ia confiar nos
parentes? O sistema sovi�tico estava todo baseado na suspeita e na desconfian�a.
Fora at� a cidade, sem pressa, mesmo porque s� conseguia andar devagar. Estava
quente ao sol e na cidade n�o havia neve, embora nas montanhas ainda pudesse v�-la.
Aprendera a agu�ar olhos e ouvidos e a prestar aten��o, de forma que num curto
espa�o de tempo sabia tudo a respeito dos neg�cios e atividades da maioria das
pessoas que ia encGntrando pelas ruas. Caminh�es e peruas iam at� l�, descarregando
mercadorias e levando peles, e ele estava atento, buscando algum rosto conhecido.
De repente, percebeu algu�m que conhecia. Foi se aproximando, cauteloso, e a�
relaxou. O motorista de caminh�o, seu amigo, estava envolvido com o mercado negro e
talvez preferisse n�o ser reconhecido. Contudo, notando-o, o motorista aproximara-
se.
- Por aqui, ainda? Quem diria! Outro dia vi o Potanin.
- Potanin? - Zhikarev escondeu sua emo��o. - Onde?
- Est� agora num posto perto de Iman - baixou o tom de voz. - Fazendo seus
negocinhos de sempre, tamb�m. Se tiver algumas peles...
- Est� indo naquela dire��o?
- � meia-noite - olhou ao redor. - Peles, Potanin e eu. O problema � que ainda n�o
temos ningu�m do outro lado do rio, est� entendendo?
Evgeny Zhikarev esfor�ou-se para manter a express�o neutra.
- H� uma pessoa em Hulin logo do outro lado do rio sugeriu.
- Como se chama? - o motorista entusiasmara-se. Exatamente a pessoa de que preciso!
Zhikarev balan�ou a cabe�a.
- N�o � t�o simples assim. Ele n�o � chin�s e tem alguns parentes em Yakutia. Se
desconfiarem de que esteja envolvido com alguma coisa, seus parentes sofrer�o. Ele
faz neg�cio, mas s� com quem j� conhece h� algum tempo.
- Voc� pode vir? Afinal, conhece Potanin tamb�m. E ele tem confian�a em voc�. O
neg�cio � mais ou menos grande e � claro que haveria alguma coisa para voc� tamb�m,
algum bom lucro por fora.
- Bem... - fingiu hesitar - estou bem aqui, mas... Enfim, gosto de negociar. Isto
aqui... - fez um gesto largo com a m�o - � meio sem gra�a mesmo.
- Est� certo ent�o, � meia-noite? Aqui?
- Est�. Aqui mesmo.
- Pode me esperar - disse, e foi pela rua mancando. Iman! Ficava exatamente na
margem do rio! Seria muito pouco prov�vel que n�o conseguisse um jeito de cruzar a
fronte�ra e fechar o neg�cio. Agora ou nunca, aquela seria sua �nica chance. Tinha
que tomar cuidado para n�o revelar seus planos ao primo ou � fam�lia dele.
Claro que sempre havia o risco de o caminh�o ser parado e fazerem uma inspe��o. As
estradas eram poucas e sempre havia fiscaliza��o, ainda que n�o fosse rigorosa.
Quando retornou para casa, seu primo, a mulher e o filho aguardavam-no, uma
express�o fechada nos rostos.
- Evgeny Ivanovitch - disse o primo. - Tenho que pedir que abandone esta casa.
Evgeny Zhikarev tentou uma express�o de espanto.
- Abandonar? Mas por qu�?
- Acabamos de saber, h� uma ordem de pris�o. A KGB est� a sua procura. N�o podemos
correr o risco de...
- Mas � claro - retrucou. - Irei imediatamente. N�o quero coloc�-los numa situa��o
complicada s� por minha causa. N�o sabia de nada, por�m...
Estavam esperando por uma discuss�o desagrad�vel, estavam ao mesmo tempo espantados
e satisfeitos.
- Por favor, nem pense mais nisso. Voc� � meu primo, tem uma mulher e filho, uma
fam�lia para cuidar! Mas - fez uma pausa - se me pudesse arranjar algumas
provis�es. Um pouco de comida, talvez. Algo que me ajude a sobreviver.
- Mas � claro! Sonia?
Ela apressou-se enquanto juntava seus pertences. Aquilo fora f�cil, f�cil at�
demais. Ent�o sabiam sobre a ordem de pris�o? Onde � que estava ent�o a KGB? Ou
seria a GRU? Tinha que tomar o m�ximo cuidado, se conseguisse escapar seria em cima
da hora.
- Mas como...? - perguntou o primo.
Colocou um dedo sobre os l�bios e fez um ar malicioso.
- Conhe�o um pescador, excelente pessoa! Ele me levar� at� Magadan, no litoral.
� meia-noite em ponto, quando o caminh�o estacionou, estava pronto, aguardando numa
soleira mal-ilum�nada.
Antes de chegar aonde estava, ouvira o ru�do no cal�amento da rua e se preparara.
Apesar dos p�s aleijados, assim que a porta se abriu entrou no caminh�o com
agilidade. Mal se acomodara na cabine e o caminh�o j� sa�a, roncando o motor.
- � um risco que estou assumindo, meu amigo - disse o motorista. - Se fosse um
outro qualquer, n�o faria isso; mas j� colaboramos algumas vezes, talvez fa�amos
outras coisas juntos, agora est�o a sua procura. Se o encontrarem no meu caminh�o,
serei preso imediatamente, portanto, sente-se bem para tr�s e o mais baixo que
puder. Quanto menos gente o vir, melhor. Ouviu alguma coisa, �? Est�o a sua
procura. Buscando por toda parte - o motorista voltou-se para ele. - Devem achar
voc� muito importante.
- Quem eles est�o procurando � o americano. Talvez algumas das peles que comprei
tenham sido ca�adas por ele. Pelo menos � isso que eu estou imaginando. N�o sei de
nada! Nunca vi esse homem! Algumas das peles... Bem, digamos que elas eram
diferentes. Digamos que sei reconhecer um trabalho que sai do comum. Agora, saber?
N�o sei coisa nenhuma, absolutamente nada! S� n�o quero ser interrogado, isso �
tudo.
- Iman, ent�o, est� bem para voc�? Espero que sim, pois n�o posso me arriscar a
lev�-lo mais longe.
- Voc� disse que Potanin est� l�?
- �, est�. Fizemos alguns neg�cios, coisa pequena. Mas aquele l� � ganancioso.
Arranjou uma mulher e parece que ela exige muito! Tenho uma proposta a fazer e
prometo que ele vai ouv�-la.
O caminh�o foi sacolejando por uma estrada �ngreme e sinuosa, Evgeny recostara a
cabe�a, os olhos fechados, rezando para um Deus quase esquecido.
- Por favor, meu Deus! S� esta vez! Fazei com que eu consiga fugir deles! Fazei com
que eu atravesse o rio at� a China! Minhas for�as est�o chegando ao fim!"
Murmurava mentalmente essas ora��es, implorando, temeroso do que poderia encontrar
pela frente e do que deixara para tr�s.
As paredes escuras da floresta cercavam-nos por todo lado. Gra�as a Deus n�o estava
l� fora, andando por aquela floresta escura, coberta de neve!
Onde estaria o americano? Como conseguiria escapar de seus perseguidores? Quando
era crian�a, viajara por aquelas desoladoras matas de pinheiro, a taiga da Sib�ria
ocidental. Sentira medo, um terr�vel medo dos ursos, embora nunca tivesse visto um.
E nas florestas orientais sentira medo dos tigres, e vira um deles pegar uma mulher
que trabalhava no campo.
"Havia tigres ali naquela floresta." Disse isso em voz alta e o motorista
concordou.
- Na minha �ltima viagem vi um bem grande parado no meio da estrada, quando foi
iluminado pelos far�is do caminh�o. Agachou-se e por um instante pensei que ia
pular em cima de mim, passando por cima dos far�is. Virei bruscamente o caminh�o,
quase derrapei para fora da estrada, mas quando o endireitei de novo o tigre n�o
estava mais l�.
Foram sacolejando noite adentro, Zhikarev dormia, acordava e tornava a dormir.
Uma vez pararam no alto de uma montanha e o motorista acordou-o. Tinha uma garrafa
t�rmica.
- Olhe aqui, tome um pouco!
- Uma garrafa t�rmica!
O motorista sorriu com ar superior.
- Fa�o bons neg�cios e com as pessoas certas. Consigo tudo o que quiser, qualquer
coisa! Qualquer coisa mesmo! Bateu com a palma das m�os na direc�o.
- � isso que ele faz por mim! Tenho um caminh�o e posso me locomover por a�! As
pessoas sempre querem alguma coisa! Mesmo os chef�es pol�ticos! Acredite em mim, se
eu parasse de dirigir, tem gente que ia sentir muita falta. Est�o todos acostumados
com meu fornecimento, todos!
- At� mesmo Zamatev?
O motorista meneou a cabeca.
- N�o, ele n�o! Ningu�m se mete com ele! Bastou oferecer algum tipo de suborno para
ser imediatamente enviado para um campo de concentra��o. Aquele l� tem seus
pr�prios planos! Eu vejo isso muito bem nele! Ele pensa que algum dia vai ser muito
importante e poderoso e n�o quer ningu�m puxando-o pelo bra�o, lembrando-o de que
lhe deve algum favor! - Continuou dirigindo em sil�ncio.
- Nunca cruze seu caminho. Ou�a o que lhe digo, ele vai atr�s de voc� e manda mat�-
lo! J� vi isso acontecer! Quando ele come�ava a subir na vida, um homem que o
conhecia viu-o num momento de covardia e botou a boca no mundo. Esse homem
simplesmente desapareceu.
Estalou os dedos.
- Assim! Desse jeito mesmo! Todos t�m medo dele! Tem ouvidos imensos! Se algu�m
respira em Magadan, ele fica sabendo em Yakutsk!
O caminh�o diminuiu a velocidade.
- Veja! Algu�m a p�! E estamos a mais de oitenta quil�metros da cidade! N�o
acredito, � uma mulher!
Ela se voltou para o caminh�o.
Pare! Exclamou Zhikarev. Eu a conhe�o.

CAP�TULO 34

Joe Mack estava deitado no alto de uma montanha, sob um cedro castigado pelos
ventos, os galhos retorcidos e nodosos, quase t�o grossos quanto o tronco. Era um
cedro muito velho, sobre o qual sopraram muitas ventanias geladas; agora, por�m,
nada se mexia no cume da montanha e Joe Mack permanecia quieto tamb�m, deitado
sobre a terra gelada.
N�o muito longe, havia um mont�o de neve que na parte mais baixa, � direita,
mostrava um peda�o escuro, sinal de que ali a gelo come�ara a derreter.
A primavera se aproximava, e at� ent�o sobrevivera ao inverno. Sua vis�o, que
sempre fora excelente, parecia ter melhorado com a constante exig�ncia. Agora era
capaz de enxergar bem longe a fuma�a de uma fogueira. Pelo que conseguia ver, nada
se movia na vastid�o. Sabia, por�m, que l� estavam soldados, homens que o ca�avam.
Em algum lugar l� longe estava Alekhin; e Alekhin era um rastreador. Um homem com a
sua capacidade conseguiria descobrir qualquer tipo de trilha existente. Era muito
esperto. Rastreara lobos, assim como seres humanos, e conhecia todos os segredos da
natureza. Ainda assim, valia a pena experimentar alguns contra ele. O que mais
precisava agora era de um esconderijo bom e seguro. Uma vez num lugar assim,
ficaria quase im�vel; afinal, se n�o deixasse pegadas, n�o haveria trilha a ser
descoberta. Podia ficar l�, esperando que fossem embora.
Para dar certo, tinha que ser um lugar com suprimento de �gua. Precisaria tamb�m de
carne para se alimentar por algumas semanas, se necess�rio.
Vinham com for�a total e a busca seria exaustiva, por�m era Alelchin a quem temia
de fato, Alekhin ou a possibilidade de ser descoberto por acaso por algum soldado
que de repente topasse com ele.
L� embaixo, por onde viriam os soldados, sua caminhada definida pelo pr�prio
relevo, dera-se ao trabalho de deixar montadas algumas armadilhas. Esses homens n�o
seriam os mesmos da outra vez, portanto, repetira alguns estratagemas.
Num local em que era preciso um passo largo para cruzar um pequeno riacho, deixara
algumas estacas afiadas, escondidas pelas folhas e pela neve. Um homem que desse o
passo necess�rio para cruzar o riacho poria o p� direito sobre a estaca colocada em
�ngulo, pronta para receb�-lo.
Em outros pontos, preparara cordas feitas de ra�zes para que o perseguidor
trope�asse e ca�sse sobre uma estaca afiada ali escondida. Fizera isso tamb�m com
troncos que provocariam trope��es perigosos. � claro que nada disso suspenderia a
busca, mas faria com que os soldados ficassem cautelosos e assim avan�assem com
lentid�o, faria com que tivessem menos pressa em encontr�-lo. Num outro lugar, um
ponto natural de observa��o sobre o desfiladeiro, soltara uma lasca de pedra bem
plana e depois a colocara de volta em seu lugar. Bastaria um leve pis�o para que a
lasca ca�sse pelo desfiladeiro, levando junto quem pisara nela. O desfiladeiro a
que chegara poderia ser o do Kolyma, tanto quanto o do Indigirka; pensava ser este,
embora o mapa n�o fosse muito claro, e nem ele conhecesse muita coisa da regi�o. O
desfiladeiro tinha pelo menos mil e seiscentos metros de profundidade,
provavelmente mais. Era selvagem, solit�rio e pitoresco. Agora, necessitava achar
um esconderijo.
Joe Mack conhecia bem os desfiladeiros. Passara algum tempo nos desfiladeiros dos
rios Snalce e Salmon, ambos no estado de Idaho e mais profundos que aqueles do
Colorado. Passara meses explorando as poucas trilhas existentes, descendo aquelas
paredes rochosas, abrigando-se em cavernas.
Encontrava-se num planalto selvagem, varrido por ventos gelados. Alguns poucos
cedros espalhados, quase nenhuma neve, muitas pedras quebradas, assim como
pedregulhos e lascas reviradas. Tomando cuidado para n�o pisar em algum galho no
ch�o, foi avancando sobre a superf�cie plana, aproximando-se da beirada do proprio
desfiladeiro. Felizmente, tinha tempo.
De uma pequena eleva��o que se projetava, examinou os dois lados do desfiladeiro e,
bem l� embaixo, talvez a uns trezentos metros do topo, percebeu um conjunto de
cedros, entre uma alameda de choupos. As �rvores pareciam crescer em terreno plano.
Uma pequena queda d'�gua ficava logo ao lado. Como o ar era muito limpo, sabia que
o lugar era de fato mais distante do que parecia visto dali. Para um olhar menos
atento, seria apenas uma pequena plataforma em que as �rvores se tinham alojado.
Avan�ou lentamente, buscando trilhas de animais. Logo descobriu a de um goral,
esp�cie de ant�lope caracter�stico do Himalaia, e seguiu-a. Perdia-se dentro da
floresta, e ali buscou outras. Por fim achou o que queria, sinais de cabra
montanhesa e depois de um urso pequeno. A trilha continuava pela crista da montanha
estreita e ladeada de �rvores, at� cair de repente por um barranco salpicado de
neve. Contornando um velho cedro, as pegadas desciam pela borda do penhasco. Uns
bons seiscentos metros mais abaixo, podia ver o rio, cuja correnteza esbranqui�ava
a �gua. A trilha era estreita, foi caminhando junto ao precip�cio, �s vezes um
pared�o de pedra de mais de dez metros, apoiando-se precariamente com as m�os.
Quando podia olhar para baixo, via um pouco de gelo junto � margem de pequenos
bra�os do rio, este por�m j� descongelara.
Duas vezes cruzou pequenas �reas abertas com algumas �rvores espalhadas e retomou a
trilha, avan�ando pouco a pouco. Duas vezes ainda atravessou alguns hectares
cobertos por pedras espalhadas, ca�das dos picos e penhascos acima. Passou atrav�s
de uma fenda, no fundo da qual corria �gua. Depois, abaixando-se sob uma sali�ncia
na pedra, surgiu de novo junto ao flanco do penhasco. Por um momento, ficou ali,
esquadrinhando a borda do desfiladeiro em frente e voltando-se para olhar aquele
ponto de observa��o de onde escolhera seu objetivo.
Nada. Ningu�m � vista. Insinuou-se fora da trilha e descobriu que poderia caminhar
com relativa facilidade. A beirada ficava perigosamente pr�xima, mas passara grande
parte da inf�ncia em lugares assim.
Quando chegou � �rea que buscava, achando que talvez fosse o esconderijo que
queria, viu-se quase impedido de prosseguir por um riacho que descia com for�a e
formava mais adiante a queda-d'�gua que vira l� de cima.

Procurando um pouco, encontrou um lugar em que podia atravessar e logo estava em p�


num pequeno vale, cercado por pinheiros e cedros, o fundo entupido de choupos. Mas
havia dois pequenos prados e um laguinho meio lamacento na margem. Esta parte ainda
permanecia congelada e coberta aqui e ali por montinhos de neve.
O pequeno vale n�o tinha mais de dezesseis hectares de �rea e, pelo que avistava
dali, n�o oferecia nenhuma outra sa�da, por�m sempre podia haver uma, bastava
paci�ncia para buscar e habilidade para escalar.
Havia diversas trilhas, tanto de veados quanto de cobras montanhesas, todas
recentes. Ca�ou um galo silvestre junto ao laguinho e pesquisou um lugar onde
montar acampamento. Podia ser que o encontrassem; no entanto, duvidava.
Alekhin, e se estivesse por perto? Bem, talvez.
Em lugar nenhum achou vest�gios de outras pessoas. Ca�ou uma cabra da montanha,
tirou a pele e toda carne que queria.
O que mais precisava era da pele, seu casaco j� estava completamente estragado e
velho devido �s condi��es de uso, e o couro de cabra da montanha � o mais macio e
quente dos animais das regi�es ao norte. Depois de ter trabalhado o couro e a
carne, foi at� a extremidade daquele vale nas alturas, numa parte um pouco mais
baixa que oferecia total seguran�a, onde n�o seria visto. Acendeu uma fogueira e
assou um pouco de carne. Sentou-se junto ao fogo e examinou a paisagem. Tinha que
achar um abrigo, mas tamb�m descobrir uma outra sa�da, caso existisse, se
precisasse fugir de repente. Examinando os flancos do vale, cobertos de mata,
concluiu que poderia subir por ali, apoiando-se nas �rvores, penhasco acima.
A pele da cabra precisava ainda ser trabalhada e, assim que terminou de comer,
come�ou a limpar a parte interna, raspando-a. O p�lo era inteiramente branco,
exceto se colocado ao lado da neve, quando se percebia que tinha uma tonalidade
creme. Com um pouco de couro que sobrara de um alce ca�ado anteriormente, cortou um
par de mocassins para substituir os que tinha, que j� estavam bastante gastos.
Do local em que trabalhava via o final da trilha por onde chegara. Estava
parcialmente escondida pelos choupos crescendo junto ao penhasco, �rvores que se
tinham curvado ao peso da neve, agora derretida. Vira muitos lugares assim em seu
caminho pela parte frontal do penhasco.
Enrolando-se junto � fogueira, pensou na melhor maneira de utilizar aquelas
�rvores. Em outras ocasi�es armara diversas armadilhas para animais selvagens,
muitas vezes utilizando armadilhas de mola. Dessa vez haveria uma pequena varia��o.
Tinha que lutar com o que encontrasse.
Onde estaria Natalya agora? Ser� que continuavam na aldeia, onde os encontrara? Ou
j� teriam iniciado sua caminhada rumo � ba�a Plastun? E como conseguiria cumprir a
promessa que fizera de lev�-los embora de l�?
A zona coberta pelos radares estendia-se por toda a costa, qualquer avi�o que
tentasse atravess�-la seria abatido imediatamente. Os russos j� demonstraram sua
prontid�o ao derrubar um avi�o inocente que, por acidente, invadira seu espa�o
a�reo. Por�m descobriria um jeito. De alguma forma, acabaria descobrindo.
Um vento gelado descia pelas encostas nuas e uma leve rajada de neve trazida de
outros lugares atingiu-o, part�culas geladas que derretiam no rosto. Voltou para as
arvores, juntou troncos ca�dos para improvisar um abrigo e galhos para servirem de
cama. O c�u apresentava uma transpar�ncia espantosa. As estrelas pareciam lustres
brilhantes, pendurados junto � extremidade do desfiladeiro. L� embaixo, percebia um
ru�do de �gua, um som muito distante.
Se n�o se movimentasse, n�o deixaria pegadas. Se poss�vel, ficaria diversos dias
ali, mas primeiro tinha que encontrar uma sa�da, em caso de fuga, e tamb�m ficar
atento a avi�es ou helic�pteros sobrevoando o vale.
Esses desfiladeiros eram lugares selvagens, completamente inexplorados, a n�o ser
por um ou outro ca�ador; desde que chegara �quela regi�o, n�o vira sinais de outros
seres humanos, absolutamente nenhum.
Ao romper do dia voltou � trilha por onde viera, se � que se podia cham�-la assim,
n�o passando de um caminho junto ao penhasco, de um lado ao outro. Encontrando um
lugar onde os choupos cresciam quase perpendicularmente � encosta, escolheu um e
puxou-o at� dobr�-lo, como se fosse um arco. Prendeu-o com um cal�o, que seria
removido por um fio atravessado na trilha; disfar�ou o fio da melhor maneira e
afastou-se para observar a armadilha. O choupo era ainda pequeno e, bem esticado,
quando solto pelo fio, viria com toda a velocidade, como um chicote, jogando a
v�tima da trilha para o fundo do desfiladeiro, se n�o lhe quebrasse a cabe�a ou o
pesco�o.
Uma cabra montanhesa, passando por ali, se acionasse o dispositivo, ficaria abaixo
do c�rculo descrito pela �rvore.

Naquelas regi�es do hemisf�rio norte, a primavera chegava com a mesma rapidez com
que desaparecia, mesmo assim ainda demoraria algumas semanas para chegar, embora
aqui e ali o gelo derretesse um pouco durante o dia.
Com toda a cautela, p� ante p�, explorou o pequeno vale. Quando encontrou um
caminho para fugir, foi gra�as � ajuda dos animais selvagens, como imaginava que
seria. No fundo daquele lugar em que acendera a fogueira, havia uma depress�o
coberta por um denso conjunto de b�tulas. A trilha deixada pelos animais rodeava o
pared�o rochoso e mergulhava por uma fenda, descendo �ngreme at� outra depress�o de
pedra, onde havia uma sali�ncia abrupta, formando um parapeito bem justo,
obviamente muito antigo. Em outras eras, ali se abrigara alguma pessoa ou grupo de
pessoas. No ch�o da sali�ncia n�o havia sinais de fogo, h� muito tempo tinham
virado p�. Mais em cima havia pedras escurecidas pela fuma�a.
Prosseguindo pela estreita trilha deixada pelos animais, chegou ao ponto em que ela
se bifurcava para cima e para baixo. Concluiu ser utilizada pela mesma pessoa que
fizera o abrigo. Em alguns lugares, peda�os da trilha tinham ca�do desfiladeiro
abaixo; em outros, pedras vindas de cima quase bloqueavam o caminho; ainda assim
dava para ir at� o planalto. Percebeu isso dali mesmo e n�o prosseguiu, pois n�o
queria deixar pista alguma. A trilha parecia misturar-se a uma pequena alameda de
b�tulas, muitas tendo crescido sobre a pr�pria trilha. Retornando, preparou
diversas outras armadilhas, das quais se lembrava, e que seriam mortais para algu�m
que se aventurasse a explorar a �rea.
Durante quatro dias, comeu, dormiu e explorou a regi�o. Descobriu ser poss�vel
escalar o flanco da montanha por dentro da floresta at� uma eleva��o que ficava
sobre o pequeno vale e de l�, por um caminho �ngreme usado pelas cabras, ir em
dire��o �s profundezas do desfiladeiro.
No quinto dia, um avi�o sobrevoou aquelas montanhas, um avi�o pequeno, desses que
podem ir bem devagar, examinando o terreno. Joe Mack ficou escondido, vendo-o
passar, satisfeito por ter sido esperto o bastante para nunca ter cruzado mais de
uma vez a mesma trilha e assim n�o deixar sinal algum que pudesse ser visto. A
busca fora de novo acionada e agora, por mais frio que fizesse, n�o poderia acender
fogo nenhum.
Claro que a busca seria feita tamb�m por terra, pois sem d�vida obtiveram alguma
informa��o que os levara para l�. Podia ser tamb�m simples rotina, mas n�o
acreditava nisso.
Trabalhou no preparo dos mocassins e no casaco de pele de cabra.
Duvidava que descobrissem ter chegado at� ali ou mesmo que percebessem a exist�ncia
daquele local. Visto do avi�o, seria apenas mais um lugar estreito, entre as pedras
rochosas coberto de �rvores. Havia muitos outros lugares do desfiladeiro alguns
acess�veis, outros n�o como aquele. L� no estado de Idaho vira muitas minas
abandonadas e cabanas quase agarradas a pared�es de pedra que pareciam
completamente inacess�veis. Tinha de ser ali mesmo. N�o havia nada naquele local
que chamasse a aten��o.
Ficaria bem quieto mais uns tr�s ou quatro dias, possivelmente mais. Seu maior
inimigo seria a falta de paci�ncia, ainda que tivesse muita coisa a fazer pela
frente.
Ser� que com o tempo mais quente poderia faz�-lo mais depressa? A �gua dos rios
costuma descongelar em abril para congelar de novo l� pelo fim de agosto. Parecia
que n�o haveria jeito de cobrir aquela enorme dist�ncia no pequeno espa�o de tempo
dispon�vel, ainda mais que atingiria uma regi�o progressivamente mais exposta, com
muita tundra e quase nenhuma cobertura. Pelo menos at� as montanhas Anadyr, estaria
bem coberto. Teria de cruzar de algum jeito o rio Kolyma e, depois, o Omolon. Mais
al�m, haveria poucas �rvores.
Agachado sob as �rvores, ouviu o avi�o sobrevoando outra vez. Teriam encontrado
alguma coisa? Ou ser� que iam por acaso?
outro longo inverno? Numa regi�o ainda mais in�spita? A id�ia dava-lhe calafrios.
At� quando ag�entaria? �s vezes tinha a impress�o de nunca ter estado num lugar
quente e confort�vel. Noite ap�s noite, dia ap�s dia naquele frio glacial,
inacredit�vel, quando nem ousava relaxar, ainda que por poucos minutos, e tampouco
cometer algum erro, por menor que fosse. Um �nico erro bastaria, por mais trivial
que fosse.
Pensar em mais um inverno deixou-o quase desesperado. Poderia sobreviver? Como? Ali
seria infinitamente pior do que mais para o sul. Quando chegasse outro inverno,
estaria dentro do c�rculo �rtico.
Desanimado viu cair a noite. E onde estava Natalya? Seu pai? Teriam conseguido
viajar? E o que acontecera a Yakov? Ou Botev e Borowsky?
Estavam acontecendo tantas coisas das quais n�o tinha a menor id�ia, Supondo-se - a
id�ia lhe ocorreu de repente - que tentasse passar o inverno numa cidade?
Precisaria de sapatos, mas j� tinha terno e camisa.
Supondo-se, apenas por hip�tese, que isso funcionasse? Onde moraria? Como faria
para arranjar comida?
Contudo, essa era uma hip�tese a se considerar; �quela altura, j� estariam
convencidos de que ele era essencialmente um homem da natureza, um selvagem.
Qual cidade? Magadan? Era a mais pr�xima, por�m significaria ir diretamente para o
territ�rio do inimigo. Era um �ndio, a natureza era o seu territ�rio. Fazia parte
dela. Ali tinha seu lugar. Mas, numa cidade...?
Balan�ou a cabe�a e voltou para a pequena eleva��o que encontrara. L� poderia ter
um abrigo, escondido pelas �rvores. � noite soprou uma ventania, �rvores ca�ram ao
ch�o, pedras rolaram montanha abaixo, despeda�ando-se l� embaixo no desfiladeiro.
Enrolando-se para se proteger da ventania, ouvia atentamente, protegido mas
assustado com a viol�ncia da tempestade. Caiu uma chuva fria, que se transformava
em gelo ainda no ar, cobrindo as trilhas e fazendo as �rvores parecerem uma
floresta de cristal, que se chocavam umas contra as outras, partindo-se no fundo da
noite.
Em algum lugar, caiu uma grande pedra; ouviu-a saltando de uma protuber�ncia para
outra no penhasco, at� cair no fundo do desfiladeiro.
A tempestade se foi t�o de repente quanto chegara. Um enorme sil�ncio abateu-se
sobre a montanha, um sil�ncio que por fim o fez adormecer, exausto.
Dormiu, e de dentro da tempestade e da noite veio um homem que parecia um imenso
urso, tateando, sentindo o caminho entre os penhascos. Por fim, impossibilitado de
prosseguir na escurid�o, parou. "Estava perto", disse a si mesmo, "o americano
estava em algum lugar perto dali". Amanh� o teria nas m�os.
Amanh�...

CAP�TULO 35

Ostap estava parado na rua, o cigarro preso no canto dos l�bios. As pessoas se
apressavam rumo ao trabalho. Passaram alguns carros e um caminh�o velho e pesado.
Era a manh� de um dia cinza e deprimente. Do outro lado havia o esqueleto de uma
grande constru��o, uma estrutura in�til come�ada meses atr�s e depois largada.
Talvez na primavera terminassem a obra.
O frio fez com que encolhesse os ombros. Era pouco prov�vel que estivesse sendo
seguido. Ele era arraia-mi�da e pretendia continuar sendo, pelo menos na opini�o
dos outros. Quando chegasse a oportunidade, saberia aproveitar; talvez essa
hist�ria toda com o americano fosse um bom come�o. Ostap era do tipo de pessoa que
se movimenta com desenvoltura pelos mais diversos ambientes.
Um pouco aqui, outro l�. Uma entrada aqui... Nunca pretendia obter o m�ximo,
esgotar alguma coisa; isso deixa as pessoas vulner�veis. Mas peda�os apenas, a� �
outra hist�ria. Tudo que pedia era porcentagem.
Tinha uma certa lealdade para com as pessoas de sua esp�cie, e elas n�o gostavam de
Shepilov. Ficaria satisfeito se pudesse "aprontar" alguma com ele, coloc�-lo numa
situa��o dif�cil. Ao mesmo tempo, Shepilov era da KGB e, portanto, perigoso.
Esperou que passasse um caminh�o grande, depois atravessou a rua, desceu por uma
viela e entrou num pr�dio inacabado. No t�rreo, em um c�modo que fora terminado,
tr�s homens conversavam, sentados em volta de uma fogueira.

Estava acesa diretamente no ch�o de concreto, com restos de madeira como


combust�vel. Lev estava l� e Kraslov tamb�m. E junto com eles um terceiro homem, um
estranho.
Percebendo-lhe a hesita��o, Lev disse: - Este � o Botev. � de confian�a.
Lev encolheu os ombros. Apesar de ser ainda muito jovem, sua fisionomia era de
algu�m muito mais velho. Os olhos azuis continuamente injetados, a boca meio ca�da.
Ostap n�o gostava dele, mas ele tinha bons relacionamentos. Era meio aparentado com
v�rios oficiais e mimado pela m�e e pela tia. Sabia sempre quando haveria algum
expurgo ou investigac�o e sempre sabia quem queria o qu�. Aproximara-se de Ostap
por saber que sempre poderia obter dele alguma informa��o inesperada.
- Botev ca�a peles - disse. Vive na floresta.
- Shepilov est� em Magadan - anunciou Ostap, aproximando as m�os do fogo.
Lev olhou com o canto dos olhos.
- Bem. Como � que sabe disso? Afinal, acabou de chegar. - Ostap esquivou-se.
- Tenho minhas fontes.
Melhor que pensassem que tamb�m tinha conex�es. Afinal, tinha mesmo algumas, ainda
que menores.
- Kuzinich est� recrutando ca�adores e peleteiros para procurarem o americano -
explicou Lev. - Pediram a Botev que colaborasse.
Ostap olhou para Botev.
- Zamatev est� atr�s dele tamb�m. E Zamatev paga. - Kraslov mostrou indiferen�a.
- O que voc� sabe sobre Zamatev?
- Ele paga. Quer o americano de qualquer jeito. - Botev tomou a palavra.
- Ele tem raz�o. � Zamatev quem mais precisa dele, Shepilov gostaria de ach�-lo
primeiro. O homem fugiu de Zamatev.
Agachou-se junto ao fogo.
- Se voc� se tornar um empecilho para Zamatev, ele quebra sua espinha.
Ostap olhou rapidmente para Botev.
- Voc� vai se meter na floresta, atr�s do americano?
Botev sorriu, - vou dar uma olhada - disse, acrescentando: - Ele � um �ndio pele-
vermelha.
Ficuram fascinados, como previra.
- Um pele-vermelha mesmo? Usa penas na cabe�a?
- Isso foi h� muito tempo. Alguns deles, hoje em dia, s�o capitalistas. Esse era
piloto.
- Imaginem s�! �ndio pele-vermelha e piloto ao mesmo tempo! Como foi que fugiu?
- Quem � que sabe? Eles contam alguma coisa? - Ostap abrira os dedos da m�o, perto
do fogo.
- Zamatev paga - repetiu. - Shepilov vai dar uns tapinhas no ombro, dizendo: Que
coisa formid�vel voc� fez pelo Soviete.
Olhou para Botev.
- Voc� consegue encontr�-lo? Voc� e os outros9
- Que outros? Eu encontro ele.
Ostap esfregava uma m�o na outra.
- Posso entrar em contato com Zamatev. Pagar� bem. Se conseguir peg�-lo, - falou
para Botev - �timo. Mas fale tamb�m com outras pessoas. Espalhe a not�cia. �
Zamatev quem paga.
Ostap olhou para o fogo, depois para os homens em volta.
- Eu � que n�o you criar problema com Zamatev levantou-se. - Peguem-no pela R�ssia,
mas entreguem-no a Zarnatev.
- Voc� n�o tem a menor chance - disse Kraslov para Botev. - Alekhin est� atr�s
dele.
Houve um sil�ncio e Botev sugeriu:
- Poder�amos peg�-lo primeiro.
- � melhor mesmo, se � que querem alguma coisa dele. Se o Alekhin chegar primeiro,
s� ficar� um cad�ver. Apertavam-se em volta do fogo e Ostap pensava a respeito de
Botev. O homem dur�o, mas bom. Como � que Lev o conhecera? Botev era um homem com
quem poderia trabalhar, mas ousaria confiar nele? Enfim, pensando bem, n�o se podia
confiar em ningu�m, muito menos em Lev e Kraslov.
Ostap observava Botev quando Kraslov come�ou a falar.
- Acabaram de prender um homem na estrada para Semychan, um homem chamado Yakov.
Est�o trazendo ele para c� esta noite.
Ostap olhava Botev e percebeu-lhe a express�o no rosto. De repente, tinha
compreendido. Era por isso que Botev estava ali. Estivera buscando informa��o.
Por qu�? Por que aquele interesse nesse Yakov? Falou como quem n�o quer nada:
- Nunca ouvi falar dele.
- Mas quem � que jamais ouve alguma coisa? - indagou Kraslov, impaciente, - O que �
que falam pra gente? Nada!
- Eles nem t�m que falar - completou Lev, divertindo-se. - As not�cias correm.
Algu�m conta para o colega, este fala com a namorada, ela conta para a m�e... E
logo todo mundo est� sabendo.
Ostap estava pensando. Claro, todo mundo acaba sempre falando mais do que deve,
por�m h� lugares onde se fica sabendo mais, aquele ali, por exemplo, onde se pode
ficar sabendo de coisas das quais as outras pessoas nem falam. Como � que Botev
ficara conhecendo Lev? Ser� que atrav�s do trabalho no mercado negro? Botev era
peleteiro e Lev trabalhava com qualquer coisa que desse dinheiro. Mas por que Botev
se interessara pelo prisioneiro Yakov? E, pelo visto, estava bem interessado. Ostap
vira bem a express�o. Gostaria de conversar a s�s com Botev.
Ningu�m ficava muito tempo ali, mesmo assim Ostap j� vira neg�cios de milhares de
rublos serem fechados naquele mesmo local. N�o se falava em pre�o, apenas encontros
casuais, algumas palavras a respeito do que tinha de ser feito e de quem pagaria
at� que, de repente, uma quantia era mencionada. Se ningu�m falasse nada, tinha que
ser mais. Ostap levantou-se, certo de que o movimento atrairia o olhar de Botev.
Quando os olhares se encontraram, Ostap fez um gesto com a cabe�a para indicar que
se encontrariam l� fora.
- Zamatev pagar� - repetiu Ostap. - E pagar� bem. Se eu soubesse onde est� o
americano, poderia arranjar um bom dinheiro para n�s.
Ostap saiu, examinando a rua dos dois lados. Apesar do aspecto ousado ao falar com
Katerina ou Kyra, era muito cauteloso tanto em seus movimentos quanto em suas
rela��es. Viu Kraslov se afastar pela rua, Lev ainda ficou por ali, como se ainda
tivesse alguma coisa para dizer. Quando falou, fez um gesto com a cabe�a em dire��o
a Kraslov.
- N�o confio nele.
- Em quem se pode confiar?
- Camarada Ostap, eu confiaria em voc� - o tom de Lev era sincero.
- E eu em voc� - Ostap hesitou um momento e acrescentou: - Mas � melhor guardar
para si mesmo certas coisas. Por que um iria criar complica��es para o outro?
Depois de Lev ter ido embora, Botev retornou. Onde estivera naquele meio-tempo?
Ostap n�o sabia.
Botev aproximou-se e parou, olhando ao redor, apreensivo.
- Queria falar comigo?
- Zamatev quer o americano. Mas, antes de mais nada, n�o quer que o camarada
Shepilov o descubra primeiro. Voc� vai estar l� com eles e parece que existem no
meio pessoas que poderiam trabalhar para n�s - fez uma pausa. - Temos que encontrar
o americano. � um inimigo do povo.
- � claro - retrucou Botev, num tom levemente ir�nico.
- Ele n�o pode fugir. Para onde est� se dirigindo agora n�o h� lugares em que possa
se esconder. � uma regi�o muito descampada.
- J� esteve l�?
- N�o, n�o, claro que n�o. Mas me disseram que...
- N�o acredite em tudo que lhe digam - olhou em volta. Mesmo assim, verei o que
posso fazer.
Ostap virou-se e desceu pela rua, tentando imaginar o que mais podia ser feito.
Sentia-se satisfeito pelo fato de Kyra ter procurado sua ajuda. Era inteligente, de
racioc�nio r�pido e dura; com ela n�o se podia brincar. Se algu�m tentasse engan�-
la, acabaria por se dar mal. J� a observara agindo, a dist�ncia, e vira bem o que
fizera. E agora se associara a Zamatev; logo quem! Podia chegar o dia em que
precisasse de sua influ�ncia.
Era um homem meio marginal, vivendo quase de expedientes, num pa�s que praticamente
n�o oferecia oportunidades a esse tipo de vida.
Se pelo menos conseguissem apanhar o americano, tudo se acomodaria de novo. N�o
gostava nem um pouco da presen�a de Shepilov ali, menos ainda de ver todos t�o
empenhados daquela maneira. Fizeram umas doze pris�es que, se n�o fosse pela busca
ao americano, nunca teriam acontecido.
De volta aos dois c�modos que dividia com Katerina, reviu mentalmente a situa��o. O
americano n�o tinha a menor possibilidade. Apesar de at� aquele momento ter
conseguido escapar dos perseguidores com muita habilidade, aos poucos ia sendo
encurralado. A �rea pela qual poderia movimentar-se ia ficando mais e mais
estreita. Ali havia tundra, mais campos abertos e menos �rvores. Mais ao norte, at�
as montanhas Anadyr, a regi�o era completamente descampada.
Botev n�o tinha a menor inten��o de colaborar com Shepilov, nem com Zamatev. Apesar
de s� ter estado duas vezes com o americano, gostava dele. Era um aut�ntico homem
da floresta, e Botev n�o conseguia acreditar que sua fuga fizesse tanta diferen�a
assim. Talvez para Shepilov e Zamatev, mas n�o para a R�ssia. � claro que pouco
sabia do que estava em jogo realmente, mas o que � que um homem sozinho pode fazer?
Ostap caminhava com firmeza, virou diversas esquinas e chegou aos limites da
cidade. Foi por um atalho, entre pilhas de m�quinas enferrujadas, at� chegar �
floresta.
Quando Ostap chegou e atirou o chap�u sobre a cama, Kyra estava conversando com
Katerina.
- Falei com eles - comentou - que Zamatev pagaria bem para pegar o americano
primeiro.
- Isso eu garanto.
- �timo! Acho que eles v�o conseguir encontr�-lo. Afinal, para onde ele poderia ir?
Ela se levantou. Estava na hora de conversar com Arkady. Estava fora j� h� muito
tempo, refletiu, tempo demais naquele lugar tamb�m. Vestiu o casaco.
- Se ouvir alguma coisa...
- Pode deixar, voc� ficar� sabendo.
Fechou a porta e atravessou rapidamente o correder. Ia entrar no hall, quando
percebeu um carro parado em frente � casa. Rapidamente, virou-se e correu pelo
corredor at� a porta de tr�s. Junto � porta da frente estava parado um homem forte,
vestindo um sobretudo cinzento.
Virara-se depressa, sem ser percebida. Foi at� o fim do corredor e abriu a pequena
porta. N�o fora � toa que estivera antes naquela casa. A pequena porta dava para um
quartinho onde se guardava o carv�o para aquecimento da casa. Havia ali uma pequena
porta por onde o carv�o era depositado, e esta dava para uma ruazinha.
Abriu com cuidado, ningu�m � vista. Mais em frente, um velho p�tio que dava para
outro e depois um pr�dio, abandonado fazia tempo. Magadan estava cheia de lugares
assim, estruturas abandonadas de repente por ordem de algu�m ou por capricho
burocr�tico.
Quando o t�xi a deixou, Stegman aguardava junto ao helic�ptero.
Agora mesmo! - ordenou. - Imediatamente. At� estarem voando, n�o perguntou nada.
- O que foi?
- O camarada Shepilov est� prendendo gente - contou - mas nosso trabalho j� est�
terminado.
Ser� que pegariam Vanya? Esperava que n�o. Afinal, o que fizera? Contudo, sabia que
n�o era necess�rio que alguma coisa fosse feita, bastava ser suspeito.
- Suvarov est� com os soldados - disse Stegman. - Em algum ponto ao norte. Tenho um
mapa, se voc�...
- N�o. Vamos retornar a Khabarovsk. Alguma not�cia daquela mulher? Aquela Baronas?
- Por enquanto, nada. Quando nossos homens chegaram � cabana, tinham ido embora, h�
algum tempo j�. O fogo apagado, a cinza fria. Acho que voltaram para a floresta.
Mudando um pouco de dire��o, seguiu rumo a um pico a dist�ncia, - Camarada Lebedev?
Surgiu uma complica��o.
- Complica��o?
- �, parece que o camarada Bocharev se interessou pelo assunto Baronas. Andou
fazendo algumas investiga��es. Foi necess�rio transmitir isso ao coronel Zamatev.
Ela franziu a testa. Bocharev? O que tinha a ver com isso tudo?
- Nosso informante o tal de Peshkov, desapareceu. Ningu�m tornou a v�-lo. Os outros
se espalharam por a�. Foram feitas algumas pris�es, mas aquele sujeito, Zhikarev,
tamb�m desapareceu.
De repente, seu tom de voz adquiriu um tom raivoso.
- N�o entendo o que est� acontecendo! Tem havido muito trabalho malfeito! Aquelas
pessoas tinham que ter sido presas imediatamente! Imediatamente! E aquele
Zhikarev!...
Se Baronas e a filha tinham deixado a ba�a Plastun, teriam ido pelo litoral ou,
ent�o, tentariam cruzar a fronteira com a China. Pelo mar seria imposs�vel. Nada
poderia passar pela zona coberta pelos radares e a vigil�ncia cerrada mantida sobre
as �guas do mar do Jap�o. Portanto, tinha que ser pela fronteira.
Tirou um mapa de sua pasta. Uma passagem pelo rio Ussuri seria o caminho mais
pr�ximo. Assim que chegassem a Khabarovsk veria o que podia ser feito. Se estivesse
tudo bem com Arkady, iria ela pr�pria. Iria de avi�o at� Iman.
Pela primeira vez comecava a duvidar. E se Arkady falhasse?
A tentativa com Pennington n�o dera certo. Garantira-lhes que sua �nica
especialidade eram os inseticidas, comprometera-se a dar toda a ajuda poss�vel
nesse campo. De fato, sabia muito a respeito de infesta��o de mosquitos e moscas-
pretas e estava disposto a colaborar. Garantiu-lhe que tinham pegado a pessoa
errada, que at� gostaria de ter encontrado o almirante, mas que este nem chegara
perto de seu setor, na f�brica. Ela n�o sabia coisa alguma quanto aos detalhes do
interrogat�rio ou dos m�todos utilizados, s� sabia � que nada conseguiram, al�m do
fato de ele conhecer muita coisa sobre inseticidas e de estar disposto a ajud�-los
nos seus problemas. Como podia ser �til nesse aspecto, talvez houvesse alguma
d�vida em prosseguirem os interrogat�rios; todavia, conhecendo o coronel, duvidava
ser esse o caso.
Ver todo aquele projeto fracassar e, como se n�o bastasse, a fuga daquele homem.
Sua captura come�ava a lhe parecer imposs�vel...
As coisas n�o andavam nada bem para Arkady, para o coronel Zamatev.
Diriam que fora inepto. Descuidado. Que fracassara.
Se ele fracassasse, ela ia junto. E ele era sua passagem para Moscou, a porta para
um futuro.
Mas, supondo que conseguissem capturar o americano? Supondo-se que de fato tivesse
havido alguma coisa entre ele e a filha de Baronas? Se a pegassem, poderia servir
de isca numa armadilha. Balan�ou a cabe�a. N�o, n�o ia dar certo. Claro que n�o.
Aquele homem n�o ia...
Mas sempre ouvira falar que os americanos s�o rom�nticos. Ser� que esse pele-
vermelha tamb�m? Voltaria para tentar salvar sua namorada? Se conseguissem peg�-la,
valeria a pena tentar.
� claro que ele n�o voltaria. Repetia isso para si mesma, embora n�o se sentisse
inteiramente convencida.
Primeiro peg�-la, depois pensar no que fazer. Num interrogat�rio, contaria tudo que
desejassem saber. Mas como fazer com que o americano soubesse de sua pris�o? Ostap
descobriria uma maneira; ele sempre sabia esse tipo de coisa.
Por�m Ostap fora preso. Sem d�vida tinha sido levado. Acontece que n�o. Como ela
mesma, Ostap fugira. Estava livre e tinha ido para a floresta.

CAP�TULO 36

Ao raiar o dia, Joe Mack estava s� no alto da montanha. Seu cabelo estava bastante
comprido e, em vez de tentar cort�-lo com a faca, fizera duas tran�as que lhe
desciam sobre o t�rax. "A �nica coisa que ainda est� faltando", disse consigo
mesmo, "� um colar de garras de urso".
Ao examinar a regi�o abaixo e em torno, tinha um sorriso amargo no rosto. Contudo,
sua imagina��o ia longe, pensando na hist�ria daquele apache, o �ndio Massai, que
fora deportado para a Fl�rida depois da rendi��o de Jer�nimo, em 1886. Fugira assim
que o trem se afastara de St. Louis e cruzara toda a regi�o, voltando para o
Arizona sem ser visto por ningu�m, a n�o, ser por um outro �ndio a quem se
identificara e que o ajudara a prosseguir. Viajara mais de tr�s mil e duzentos
quil�metros, a maior parte do tempo por regi�es povoadas. Ningu�m ficara jamais
sabendo da hist�ria completa, mas, ainda assim, valia a pena ser contada.
Nos velhos tempos, os apaches cantaram can��es sobre sua habilidade e coragem. Hoje
em dia n�o cantavam mais, e muitos �ndios iam esquecendo as antigas can��es, as
antigas hist�rias. Ele, por�m, conhecia muitas, contadas por sua av� e sua m�e, mas
tamb�m por seu av� branco, que conhecia mais hist�rias que os pr�prios �ndios.
Vivera junto aos velhos e sabia o valor daquelas can��es e hist�rias. Anotara
muitas delas, outras simplesniente as repetira para Joe Mack quando ele ainda era
uma crian�a.

Mais para baixo aquela imensa garganta, com o rio ro�ando no fundo, limitada por
rochas dentadas, como surgidas de um pesadelo surrealista, pedras retorcidas pelo
vento, partidas pelo gelo em expans�o, camadas e lascas de pedra. Mais abaixo da
borda, �rvores selvagens fustigadas pelo vento estendiam seus galhos como ossos de
um esqueleto junto �s estreitas eleva��es l� embaixo.
Conhecia aquela paisagem, conhecia pela lembran�a que tinha do Hell's Canyon e dos
rios Snake e Salmon, no estado de Idaho. Aquilo ali era parecido, s� que mais
selvagem de alguma maneira diferente. Mais e mais, sentia-se virando p�ginas muito
antigas no tempo. Seus dias de treinamento para oficial pareciam dissolver-se,
obscurecendo-se na mem�ria, todos aqueles anos como piloto, os uniformes esticados
e, antes de tudo isso, as aulas na escola. Agora sentia-se de volta �s montanhas da
inf�ncia, �s lembran�as da vida livre e selvagem das montanhas.

Fora um homem civilizado apenas na superf�cie. Sabia disso, como sabia, ou achava,
que podia retornar � vida civilizada. Agora n�o tinha mais essa certeza. Tornara-se
um homem da natureza, vivendo como sempre sonhara. Sua vida era selvagem, dura,
fria e perigosa, mas se sentia pronto para viv�-la assim.
"Talvez seja eu o �ltimo �ndio", pensou em voz alta, "a viver da maneira antiga, a
pensar as antigas id�ias".
N�o escolhera seus inimigos. Eles o escolheram. Arrancaram-no da vida que levava
para ser usado, sugado e jogado fora. Restariam apenas os tristes farrapos de
homem, o que sobrasse depois de torturas, depois de interrogat�rios intermin�veis,
humilhantes. Assim era melhor. N�o tinha medo da morte. Toda sua vida fora uma
prepara��o para a morte, por�m para uma morte digna de guerreiro. Mas n�o morreria.
Morrer seria conceder-lhes a vit�ria. Viveria, fugiria e jogaria isso na cara
deles. Mostrar-lhes-ia do que um homem � capaz.
Estavam l� agora, em algum lugar, procurando-o. Muito, bem, que o encontrassem
ent�o, que encontrassem a morte. Fora Alguns poucos morreram, sabia disso. A busca
n�o nada f�cil para eles. Quantos tinham sido mortos pelas suas armadilhas? N�o
tinha como saber; sabia dos tr�s no helic�ptero e alguns mais. Tudo bem, se queriam
pagar o pre�o, dar-lhes-ia o que buscavam.
Agora n�o mais fugiria simplesmente. Agora lutaria contra eles.
Quando Stivarov chegou dirigindo, Rukovsky esperava junto � fogueira.
- Est� em algum lugar l� em cima - disse Rukovsky. Vai ser duro, mas vamos
encontr�-lo - fez um gesto. Tenho doze patrulhas espalhadas por esse vale. Quando
terminarmos de comer, come�aremos a subir as montanhas. Diga para o seu coronel
Zamatev que n�s o pegaremos.
Stivarov fez que sim com a cabe�a, mas intimamente duvidava.
- H� meses que o perseguimos. Gostaria muito que fosse pego.
- N�o se preocupe. Meus homens v�o conseguir. - Virou-se de costas para o vento que
descia da montanha. N�o era um vento forte, por�m frio, muito frio. - Ser� para
eles um bom exerc�cio. V�o ficar em forma, preparados para coisas mais importantes.
Isso n�o podia acontecer em melhor ocasi�o.
Suvarov olhou para o alto das montanhas. Havia neve em alguns picos e num deles uma
grande extens�o nevada.
- Voc� � da Ucr�nia? - Stivarov tornou a observar as montanhas. - j� andou por elas
durante o inverno?
- Muito pouco, mas n�o importa, meus homens sabem como enfrentar as montanhas, s�o
capazes de enfrentar qualquer coisa.
Olhou ao redor.
- Pessoalmente, gostaria de estar naqueles morros, sair deste vento aqui.
Rukovsky virou-se para Suvarov.
- Tenho uma garrafa no carro. Que tal um traguinho de vodca?
- Por que n�o? - Stivarov ergueu-se nervoso. - Tive a impress�o de sentir cheiro de
fuma�a.
- Pode ser. S�o as fogueiras dos meus soldados; est�o fazendo ch� e alguma coisa
para comer - verificou o rel�gio de pulso. - N�o t�m muito tempo.
Stivarov tomou um gole da garrafa e passou para Rukovsky.
- Ouvi dizer que o camarada Shepilov recrutou ca�adores de pele para procurarem o
americano.
Rukovsky sorriu.
- N�o importa. N�s o pegaremos antes.
- Aquela regi�o para cima n�o � f�cil, n�o - Suvarov apontou. - N�o estive l�
pessoalmente, mas j� ouvi muitas hist�rias.
Deu outro gole de vodca e buscou a x�cara de ch�. Encheu-a e levantou-se.
- Estranho, estou achando que � muita fuma�a. Rukovsky levantou-se tamb�m. Era
fuma�a demais. De repente, ficou bravo.
- Deixaram que o fogo escapasse das fogueiras!
Disse um palavr�o e foi at� o r�dio. Perguntou alguma coisa e come�ou a gritar
ordens.
- Entre. Vamos ver o que est� acontecendo.
Correram para dentro do carro. O motorista deu a partida, mas o carro n�o pegava. O
motorista tentou mais uma vez, mas naquele instante uma nuvem de fuma�a chegou at�
eles; quando se deram conta, viram um muro de fogo correndo em sua dire��o, na
frente do vento. O mato naquele pequeno vale estava seco e o fogo aproximava-se com
rapidez.
- Dane-se o carro!
Rukovsky jogou-se ao ch�o e foi em dire��o �s pedras. Suvarov e o motorista iam
logo atr�s.
Correram trope�ando pelas pedras acima, onde quase n�o havia mato, enquanto as
chamas cresciam pelo vale. Elas atingiram o carro at� chegar � gasolina que se
derramara do tanque. As chamas cresceram subitamente, pareciam saltar, quando o
carro explodiu. Voaram para o alto e rodopiaram, enquanto a gasolina restante
queimava.
Rukovsky disse outro palavr�o.
- Vou descobrir quem foi o respons�vel por isso e a�...
A linha formada pelas chamas desceu pelo vale, deixando para tr�s o carro
carbonizado. Apenas alguns soldados sofreram pequenas queimaduras, a maior parte
deles tentava salvar equipamento e comida.
- Senhor?
Rukovsky olhou em volta, impaciente. Suvarov disse:
- Antes de culpar algu�m, talvez fosse bom se lembrar do americano.
- Como assim?
- Ele pode ter colocado fogo no mato.
- Imposs�vel! - retrucou Rukovsky, fazendo uma pausa para reconsiderar. - Mas ser�?
Tentaria uma coisa dessas?
Suvarov repetiu a hist�ria do helic�ptero, das in�meras armadilhas.
- � uma aut�ntica guerrilha, e ele sabe faz�-la muito bem.
- Venha! Vamos ver onde o fogo come�ou.
Os soldados come�avam a descer das pedras onde tinham buscado ref�gio. Quase todos
levaram suas armas e alguns tamb�m as ra��es. Tr�s ve�culos foram destru�dos, o
�ltimo deles um caminh�o, logo al�m da linha de fogo.
- Este se incendiou logo depois de o fogo ter passado, coronel. V�? Estava l�, na
eleva��o, fora da vista de quase todo o comando.
- Est� faltando alguma coisa?
V�rias caixas de ra��o tinham sido abertas, faltava comida e muni��o. Desaparecera
um AK-47.
As informa��es foram chegando aos poucos, Quase todo o suprimento de comida fora
queimado, muito equipamento tinha sido estragado. O fogo fora repentino e
inesperado e avan�ara r�pido, � frente do vento. Quase todos os soldados puderam
salvar suas armas; alguns, um pouco de ra��o; outros se reuniram entre as pedras,
fora do alcance das chamas. Os que ficaram n�o foram em n�mero suficiente para
manter o comando em prontid�o.
Algu�m o viu?
Ningu�m vira coisa alguma, mas era �bvio que as chamas surgiram em pontos
diferentes.
- Flechas em fogo - disse algu�m.
- O qu� - Rukovsky voltou-se para o soldado.
- No cinema, senhor. Vi quando era crian�a. Os �ndios usavam flechas assim para
incendiar as caravanas e algumas vezes as atiravam por cima das paredes dos fortes.
Rukovsky disse um palavr�o.
- H� algum r�dio funcionando? - perguntou. - Quero que se fa�a um racionamento de
comida e que sejam trazidas novas provis�es. Eu vou l�, atr�s dele.
O tenente Suvarov n�o disse nada. Era apenas um oficial de liga��o ali e bem que
gostaria de estar noutro local. Estava frio e l� em cima, nas montanhas, seria pior
ainda. Era um homem da cidade, sentia-se � vontade em casa de oficiais superiores,
nas embaixadas, n�o ali. Por que n�o fora designado para o Jap�o, sua segunda
op��o, j� que n�o conseguira Paris? Seu pai fora um homem importante, bem
relacionado. O problema � que havia outros tamb�m com pais importantes e bem
relacionados, mas que ainda estavam vivos. E o coronel Zamatev o tinha requisitado,
o que era uma grande honra, por�m uma honra que come�ava a questionar.
O r�dio ainda funcionava e, depois de algum tempo, conseguiram captar uma resposta.
Nada poderia ser feito antes do dia seguinte ou talvez at� mesmo do outro dia.
- N�o importa - disse Rukovsky. - Podemos equipar alguns esquadr�es e mand�-los na
busca. N�o vamos ficar parados.
Abrigados sob uma grande sali�ncia de pedra, acenderam uma fogueira enquanto dois
soldados preparavam um abrigo para o coronel Rukovsky e Suvarov. Estava frio, mas a
primavera j� se aproximava. Stivarov observou e Rukovsky resmungou:
- Neste pa�s? Ser� que existe primavera aqui?
Apoiou as costas no tronco de uma �rvore que servia de parede do abrigo.
- Tenente, esse homem � mesmo �ndio?
- �, senhor. Excelente piloto tamb�m, de acordo com diversos relat�rios. Entre
outras coisas, estava testando um dos avi�es americanos mais recentes. - Ningu�m
imagina um �ndio pele-vermelha fazendo esse tipo de coisa, no entanto, sei muito
pouco sobre eles.
- Alekhin est� atr�s dele, senhor. Em algum lugar por aqui, ali�s.
- Gostaria que ele o pegasse. Ou quem quer que fosse. N�o, pensando bem, gostaria
eu mesmo de faz�-lo. Um piloto, voc� disse? Oficial?
- Um major, senhor.
- Onde est�o os outros homens?
- Embaixo, no vale, senhor. Isto �, aqueles que n�o est�o fora, em patrulha. Havia
�reas mais seguras para eles. Mas temos tamb�m sentinelas a postos.
- Sentinelas? Aqui?
- O americano est� em algum lugar por aqui, senhor. E n�o sabemos exatamente onde.
Esta regi�o � enorme.
Fazia mesmo muito frio, mas um dos soldados encontrara alguns cobertores num
caminh�o que n�o fora completamente destru�do. O coronel Rukovsky percebeu que
come�ava a se sentir bem no acampamento, junto ao fogo, e disse-o.
Suvarov concordou:
- Sim, senhor, � agrad�vel.
Contudo, n�o pensava assim, longe disso. Afinal, como � que fora se meter naquela
hist�ria? Se n�o podia estar em Paris ou T�quio, por que n�o em Moscou?
Tomou um pouco do ch� preparado pelo guarda e colocou o bule de volta junto ao
fogo. O coronel estava quase dormindo, portanto, Stivarov puxou o cobertor e se
enrolou perto do fogo.
Estava dormindo h� algum tempo, parecia-lhe, quando abriu os olhos e viu aquele
homem sentado, do outro lado da fogueira.
- Bom dia, tenente. Dormiu bastante?
O coronel Rukovsky levantou-se e abriu os olhos. O homem do outro lado do fogo
vestia peles de animais, pareciam de cabra, e tinha um AK-47 nos joelhos. A m�o
direita segurava o rev�lver. Na esquerda, uma x�cara de ch�.
- Espero que n�o se importe, coronel. Seu ch� � excelente.
O homem tinha duas tran�as caindo-lhe sobre o peito. Sua fisionomia era comprida e
escura, com olhos cinzentos, penetrantes. Talvez o contraste com a pele escura os
tornasse t�o penetrantes.
- Voc� � o americano?
- Major Joseph Makatozi, a seu dispor. - O americano sorriu. - � muito estranho
lembrar disso. Acho que voltei a ser da maneira que meu povo foi.
- Vai ser capturado, n�o sabe? Meus homens est�o por todos os lados.
- Deitados por a�, deveria dizer, coronel. Lamento, mas tive que amarr�-los. N�o
devemos nos demorar, caso contr�rio, congelar�o.
- Veio se entregar?
O americano deu uma risada.
- Quando eu mesmo estou comandando? Claro que n�o. Para falar com franqueza, estou
justamente pensando como poderia us�-lo, assim como o tenente, por�m, infelizmente,
acho que voc�s s�o mais um problema do que propriamente vantagem.
Prosseguiu, ironizando:
- N�o, apenas parei um pouquinho para tomar uma x�cara h�. Logo irei embora. Para
dizer a verdade, comecei a ficar cansado de falar sozinho - olhou para Suvarov. -
Afinal, o que est� acontecendo?
Stivarov titubeou e Rukovsky disse:
- Diga-lhe, se quiser. Afinal, logo o pegaremos mesmo. Por falar nisso, major, como
chegou at� aqui?
- Esta noite, quer dizer? Ora, andando. Seus homens estavam t�o entretidos,
conversando...
Balan�ou a cabe�a.
- Precisa de siberianos, coronel. Esses jovens s�o quase todos da cidade. Quase
peguei suas armas, s� de brincadeira. Voltou-se para Suvarov.
- Voc� dizia...
- N�o sei o que � que voc� gostaria de saber. A busca tem sido bastante ampla. O
camarada Shepilov reuniu um grupo de ca�adores de pele para encontr�-lo, vindo do
norte. � um oficial da KGB. Foram feitas algumas pris�es. Encontraram os corpos do
piloto do helic�ptero e seus companheiros. Tamb�m o do agente da KGB, encontrado
morto no autom�vel.
Terminado o ch�, Joe Mack levantou-se subitamente.
- Coronel, se fosse voc�, pegaria meus homens e voltaria para casa. N�o est�o
acostumados com as montanhas, sofrer�o um bocado. Perder� homens, equipamentos que,
para voc� ou para a Uni�o Sovi�tica, valem muito mais do que eu.
O AK-47 estava pronto nas suas m�os. Deu um passo para tr�s rumo � escurid�o.
- Encontrei alguns civis pelo caminho - continuou. - Nenhum deles chegou a me
ajudar, mas n�o quero que se prejudiquem por minha causa, Foi esse o motivo da
minha pergunta.
- N�o sei nada quanto a isso, a n�o ser pelo vilarejo onde dizem que voc� ficou
algum tempo, entre uns pilantras que foram morar escondidos na floresta.
- E o vilarejo?
- Quando os homens chegaram l�, haviam ido todos embora. Para onde, n�o sabemos.
No limite entre a luz e a escurid�o, Joe Mack abaixou-se, apoiado num joelho, e
apanhou um pacote com ra��es de emerg�ncia.
- Voc�s me desculpam, n�o? O sistema de abastecimento nas montanhas � um pouco
prec�rio, para dizer o m�nimo. Como um fantasma no meio da noite, desapareceu no
momento seguinte.
Rukovsky ergueu-se num pulo e, tirando a pistola que trazia na cintura, atirou na
dire��o em que o amer�cano desaparecera. Atirou, praguejando.
- Tenente! Encontre seus homens e coloque-os imediatamente em a��o! Quero uma busca
completa! Imediatamente.
Imediatamente, pensou Suvarov, quando j� � tarde demais. Porque n�o puxara a
pistola quando o americano ainda estava � vista?
Ali�s, j� que era assim, por que n�o puxara ele sua pistola?

CAP�TULO 37

Rukovsky estava furioso. As ra��es que levara eram as suas, um pacote feito
especialmente para ele, segundo instru��es que dera com todo o cuidado.
- Tenente! Coloque seus homens em a��o! Quero que seja iniciada uma busca
imediatamente!
- Claro, senhor, por�m temo que n�o consigam enxergar muita coisa nesta escurid�o.
Talvez dentro de uma hora...
- Agora! - retrucou Rukovsky. - Antes que consiga distanciar-se.
Sabia perfeitamente bem que n�o encontrariam nada com aquela escurid�o. Um homem
que era capaz de se infiltrar no seu acampamento, amarrar os sentinelas, tomar ch�
com eles e escapar certamente n�o iria ser capturado por um bando de jovens da
cidade por ele comandados; por�m, seria de bom tom constar, no relat�rio que teria
de enviar, que uma busca fora iniciada instantaneamente.
No fundo, estava maravilhado com a ousadia daquele homem. Depois de ter esfriado
sua raiva por causa da ra��o, riu consigo mesmo. Pele-vermelha ou n�o, o homem
tinha estilo. Voltou-se para Suvarov.
- Um homem interessante, tenente. Bem interessante. Pena n�o termos conversado mais
tempo.
- Os homens do acampamento mais abaixo est�o trazendo comida, senhor. Um pouco de
ch� e vodca tamb�m.
- �timo! E j� est� ficando mais claro.
Voltou-se para observar melhor a colina. Podia ver seus homens, formando uma linha
de ataque, subindo e chegando �s �rvores espalhadas. "Era um bom exerc�cio para
eles", pensou consigo mesmo. "Seria bom que sentissem um pouco como � uma regi�o
selvagem e in�spita."
No alto do morro, Alekhin observou-os com desprezo. N�o encontrariam nada nem
ningu�m. Desde o in�cio, soubera que ele � que encontraria o americano. Que os
outros ficassem girando por ali, sem rumo. Nunca o apanhariam. Nem desconfiavam do
tipo de homem com que lidavam. Contudo, estavam perto, desceria para tomar com eles
um ch�. Assim n�o teria que prepar�-lo. Al�m disso, j� sabia onde estava o
americano e como peg�-lo.
Reunir os ca�adores de pele at� que fora uma boa id�ia, mas n�o ia funcionar.
Conhecia-os muito bem. Alguns poucos tentariam; outros receberiam o pagamento e
fariam o m�nimo necess�rio. A maioria deles admirava o americano e o considerava um
dos seus. Se chegassem at� ele, podiam captur�-lo ou atirar nele, por�m, poucos
tentariam realmente se esfor�ar.
Ali�s, ultimamente ningu�m se esfor�ava para valer. Os ca�adores vendiam quase
todas as peles no mercado negro e alguns iam at� a China para negociar. O pr�prio
Alekhin j� fizera isso. Sabia como eram as coisas melhor at� do que a pr�pria KGB,
embora alguns agentes fossem muito bons e uns poucos excelentes.
Quando chegou � fogueira, Rukovsky e Suvarov estavam comendo. Aproximou-se, ficando
no limite do acampamento v�rios minutos, at� que Rukovsky o visse. A vis�o daquele
homem em p� ali, t�o pr�ximo, enfureceu Rukovsky, que j� tinha tido sua dose de
pessoas se infiltrando pelo acampamento sem aviso.
- Voc� a�! - exclamou. - Quem � voc�?
O sol batia contra o rosto de Rukovsky, que nada enxergava.
- Sou Alekhin.
- Como?! - aquele homem era lend�rio em toda a Sib�ria. - Venha! Aproxime-se!
Aproxime-se! Junte-se a n�s.
Rukovsky percebeu que era um homem grande, que se movia como gato. Alekhin foi at�
a fogueira e sentou-se no ch�o, as pernas cruzadas.
- Est� procurando o americano?
- Sei onde ele se encontra.
- Como? Ent�o por que n�o o pegamos? Se voc� sabe...
- Saber, eu sei, mas apanh�-lo n�o � nada f�cil. Voc�s v�o com esse povo todo e ele
some, puf! Eu you peg�-lo! Eu.
- Mas onde est�?
Alekhin estirou a cabe�a para tr�s.
- L� em cima. Se forem atr�s dele, seus homens morrer�o. S�o idiotas. N�o sabem
como procur�-lo.
Rukovsky pensava mais ou menos isso, por�m, n�o podia admiti-lo.
- Esteve aqui esta manh�, de madrugada ainda.
Alekhin encarou-o por tr�s das p�lpebras ca�das. Rukovsky surpreendera Alekhin,
como previra.
- Esteve aqui, tomou ch� conosco. Amarrou tr�s dos meus homens. Depois apanhou um
pacote de ra��o e sumiu.
Alekhin sorveu um gole de ch�. Por dentro estava furioso, uma raiva fria e amarga.
O americano ousara fazer isso com ele ali por perto? Iria pagar bem caro por isso.
- Eu you peg�-lo - repetiu. - Agora, vou peg�-lo logo, logo! - Atrav�s do fogo,
olhou para Rukovsky. - Se for atr�s dele, seus homens morrem. Re�na os soldados e
volte para casa. Ser� melhor assim.
Os m�sculos das costas do coronel Rukovsky enrijeceram-se.
- Seu conselho � desnecess�rio - seu tom de voz era frio. - Se pretende pegar o
americano, sugiro que ande logo com isso.
Deliberadamente, virou-se para Suvarov e come�ou a falar de outros assuntos. Mas
fervia por dentro. Quem era esse palha�o para dizer-lhe o que deveria fazer?
Alekhin ignorou-os. N�o tinha pressa em terminar a pequena refei��o e o ch�. Quando
terminou, levantou-se e foi embora, sem olhar para tr�s. Pouco se importava com o
que fizessem. Se morresse algu�m, para ele n�o tinha a menor import�ncia. Quando
atingiu a borda da floresta, j� os esquecera por completo. N�o alertara Rukovsky
por motivos humanit�rios, mas simplesmente porque aqueles soldados todos apagariam
os rastos, destruiriam todo sinal de passagem que porventura deixasse o americano.
Ent�o estivera ali aquela manh�? Algum sinal devia ter ficado. Foi caminhando para
a frente e para tr�s. J� conhecia a extens�o da passada do americano, conhecia
tamb�m alguns de seus m�todos de viagem. Logo saberia tudo. Aguardara de prop�sito,
queria que o homem se cansasse, queria que adquirisse um excesso de confian�a e
ent�o se descuidasse, queria que os outros abandonassem a busca.
O americano estava em algum lugar pr�ximo � cabeceira do Indigirka ou do Kolyma,
achava que mais provavelmente junto ao primeiro. Os desfiladeiros eram um excelente
lugar para se esconder, mas o homem tinha que comer e, se ca�asse para isso,
deixaria para tr�s algum peda�o da carca�a. E isso atrairia os comedores de restos
de animais.
Era uma regi�o selvagem, cheia de pedras quebradas, escarpas cinzentas parecendo
cascatas petrificadas e algumas poucas arvores acanhadas. Alekhin parou para
observar uma ferida profunda no flanco da montanha, uma reentr�ncia bem grande,
coberta de pinheiros. Para descer ali seria um percurso muito �ngreme, mais dif�cil
ainda subir de volta se n�o encontrasse nada, ou se terminasse, como era comum,
numa queda abrupta at� o fundo do desfiladeiro. Foi em v�o que buscou algum
vest�gio da passagem do americano. Nada encontrou al�m de esterco de cabra e
algumas manchas de neve.
Al�m do desfiladeiro, reparou num canto de neve sobre a ribanceira que observara
antes. Trai�oeira aquela regi�o, bastaria um empurr�o para que toneladas de neve,
pedra e �rvores mortas come�assem uma avalanche. Se ningu�m mexesse, a neve
derreteria aos poucos, mas se algu�m tentasse atravessar, ou se houvesse algum
barulho repentino, toda aquela coisa vinha abaixo.
Balan�ou a cabe�a pesada. Rukovsky era um idiota! Devia voltar para a regi�o que
conhecia! Um homem daqueles arriscava a vida nas montanhas, a sua e a dos outros.
Alekhin pouco se importava com os outros, desde que n�o estivesse entre eles. N�o
gostava de Rukovsky. Muito inteligente, eficiente demais, um desses tipos "oficial
e cavalheiro". N�o gostava desses tais, preferia trabalhar com Zamatev. O homem era
cruel, duro como gelo, impiedoso. Alekhin tampouco gostava dele e, se o americano
decidisse voltar atr�s para mat�-lo, mereceria esse fim.
Zamatev dissera que viria para encarregar-se pessoalmente da opera��o. Idiota! O
que podia fazer? Encarregar-se do qu�? Por�m, Alekhin sabia que Zamatev pegara
repentinamente um avi�o para Moscou, fora e voltara em seguida. Voltara estufado de
confian�a. Shepilov seria chamado a sua posi��o, mandado de volta para as coisas
que eram de sua responsabilidade. Zamatev e a GRU se encarregariam do americano.
Como se pudessem!

Alekhin parou. Um seixo, empurrado na lama ainda �mida, fora chutado daquele
encaixe na lama seca h� muito tempo. Algu�m ou alguma coisa passara por ali. Se
tivesse sido o americano, passara � noite, quando avan�ava com velocidade. N�o era
pr�prio dele deixar aquela pista.
Ainda parado, Alekhin olhou ao redor, com aten��o. Dezenas de vezes encontrara
armadilhas deixadas aos perseguidores e vira diversos homens morrerem nessas
armadilhas. Outros ficaram aleijados, mesmo que temporariamente.
Parecia estar tudo bem, contudo sentia-se preocupado. Com esse homem, voc� errava
uma �nica vez.
Ouviu passos atr�s de si e resmungou com raiva. Como ia conseguir alguma coisa com
esses imbecis pisando por toda a montanha?
Era Rukovsky de novo.
- Estamos vasculhando esta colina, Alekhin - disse ele. Se encontrarmos alguma
coisa, avisaremos voc� imediatamente.
- Voc�! - exclamou Alekhin, agressivo. - O que � que conseguiria encontrar?
O coronel Rukovsky manteve o autocontrole.
- Podemos achar muita coisa. Cem olhos s�o sempre melhores do que apenas dois -
apontou. - Tenho uma patrulha naquela outra parede do desfiladeiro. Estamos
exatamente onde ele come�a, portanto, mandei-os atravessar para o outro lado.
Alekhin olhou atrav�s do desfiladeiro. Percebeu uma linha fina e cinzenta de
soldados andando e depois, enquanto os observava, espalhados numa linha de ataque,
para cobrir todo o terreno.
Alekhin n�o estava nem um pouco preocupado, por�m disse:
- Espero que nenhum deles tenha fam�lia.
- O qu�? Como assim?
- V�o morrer - disse Alekhin friamente. - Acabaram de ser condenados � morte.
Rukovsky olhou-o de frente. Aquele homem n�o era apenas arrogante, estava
completamente louco!
O olhar de Alekhin revelava desprezo. - Voc�! Que grande idiota! Seja l� o que
queira realizar, est� liquidado. Voc� est� liquidado.
Alekhin virou-lhe as costas e saiu andando antes que pudesse responder. Rukovsky
viu-o afastar-se. Alekhin era homem de confian�a de Zamatev e ningu�m cruza seu
caminho impunemente. Ainda assim...
Olhou a sua volta. Os soldados se espalhavam pelo flanco rochoso da montanha, entre
pinheiros e cedros, as armas prontas, avan�ando para o alto numa linha irregular.
Havia alguns choupos espalhados pela colina e v�rias manchas de lari�os da esp�cie
Dahurian. Rukovsky ficou parado, observando im�vel a beleza selvagem e despojada
daquela regi�o.
Era uma pessoa que tinha lido muito, refletido muito, que gostava de boa m�sica e
que fora criado num ambiente de arte e de artistas. Sua irm� menor pertencia ao
bal�, j� com uma carreira pela frente.
De repente, quis que ela pudesse ver aquilo: Essa enorme montanha cinzenta com
manchas de neve, as negras colunas dos choupos e os soldados que avan�avam. Virou-
se para examinar o outro lado do desfiladeiro. Os homens tinham se espalhado mais,
precisou de bin�culos para perceb�-los. Estavam andando sobre um terreno de pedra,
como aquele em que estava, e se aproximando de uma larga mancha de neve j� antiga.
A mancha chegava at� a borda do desfiladeiro, sendo que um pouco dela escorregava
em dire��o ao abismo l� embaixo.
Aquele grupo era comandado pelo capit�o Obruchev, excelente oficial e um bom amigo.
Alekhin desaparecera! Irritado, Rukovsky olhou em volta. Onde � que podia ter ido?
N�o passava de um tolo desaforado! Fora avisado de que Alekhin n�o respeitava
autoridade. Simplesmente n�o se importava com isso. N�o queria nada deles, n�o
temia ningu�m. Zamatev usava-o, precisava dele para aquele tipo de -situa��o e
sempre lhe dissera que, quando Alekh�n quisesse, poderia simplesmente sumir no
interior selvagem, desaparecer. Assim como aquele americano parecia ter feito.
Bateu as luvas contra a cintura, irritado. Olhou em volta e avan�ou, buscando com
os olhos.
O que ser� que um rastreador como Alekhin procura encontrar? Claro que n�o podia
haver nada que Alekhin visse e ele n�o!
Por�m, naquela encosta nua e pedregosa, nada conseguia encontrar. Olhou em frente
e, pela crista da montanha, percebeu algumas pedras dentadas, como serras, uma ou
outra formando torres, em alguns lugares quase como muralhas de defesa de um
castelo. Exatamente diante dele havia um conjunto de �rvores selvagens fustigadas
pelo vento que pareciam um grupo de bruxas, com seus cabelos selvagens agitando-se
ao vento. S� que n�o havia vento, apenas aquelas �rvores rasgadas.
Pisava com todo o cuidado, um escorreg�o naquela pedra quebrada poderia ocasionar
uma queda fatal.
O que Alekhin quis dizer com "estava liquidado"? Que sua carreira chegara ao fim?
Diabo, se tudo corresse bem, seria um general antes do final do ano! Sabia que
estava na linha de promo��o, as pessoas certas tinham sido contatadas e tinham
demonstrado interesse.
Sorriu, levemente divertido. No final das contas, t�o pouco mudara desde a �poca
dos czares! Apenas os nomes. No lugar da antiga nobreza, havia os membros do
Partido; no lugar dos gr�o-duques, o Politburo. A diferen�a era que os gr�o-duques
detinham menos poder.
Gorbachev era mais habilidoso do que qualquer czar e esperava-se que fizesse alguma
coisa para fortalecer o pa�s internamente, o ponto fraco do sistema. Todavia para
qualquer um seria dif�cil lidar com a total in�rcia em que viviam entranhados os
funcion�rios do estado, sem a menor disposi��o para mudan�a e temerosos de perderem
seus privil�gios.
Apesar de selvagens e trai�oeiras, aquelas montanhas possu�am uma rara beleza.
Estava contente com aqueles breves momentos de solid�o. Para conhecer bem as
montanhas, era preciso estar a s�s com elas, como com uma amante.
A s�s como se encontrava agora. O coronel Rukovsky olhou para tr�s, para aquelas
dist�ncias enormes, perdendo-se de vista. Bem abaixo, via um helic�ptero
aterrissando. Tr�s caminh�es sacolejavam pela estrada bastante prec�ria, n�o
pareciam maiores que formigas, embora soubesse que a parte de cima dos radiadores
ficava na altura de sua pr�pria cabe�a.
Independente do que o foragido americano tivesse feito, pelo menos o levara at�
ali, at� aquela beleza indescrit�vel que, n�o fosse essa circunst�ncia, jamais
teria conhecido.
Um vento frio descia a montanha e ele tremeu. Havia fantasmas trazidos naquele
vento, estranhos fantasmas gerados por aquela terra estranha, quase deserta. Bem
distante, a oeste, na linha do horizonte, havia a cordilheira Verkhoyansk.
Parou ao ouvir um p�ssaro nos arbustos pr�ximos ao lari�o. Era um quebra-nozes,
conhecia-os da inf�ncia.
O que queria dizer Alekhin com estar liquidado? Por mais absurdo que fosse, as
palavras ficaram ali, ecoando. Entranharam-se em sua mem�ria, n�o conseguia livrar-
se daquele aviso sinistro.
Aproximara-se novamente daquelas �rvores que lhe lembravam um bando de bruxas; de
perto o aspecto era pior ainda. Um dos troncos estava arruinado, destru�do, fora
atingido por algum objeto duro at� a casca ter sido reduzida a fiapos. De repente,
lembrou-se de um irm�o oficial, ca�ador de grandes animais, que lhe contara a
respeito de carneiros destruindo �rvores assim, dando cabe�adas no tronco in�meras
vezes, por simples ostenta��o e desejo de luta.
Parou outra vez para recuperar o f�lego. Era grande a altitude e o ar rarefeito,
al�m de frio e cortante.
Bem distante, pareceu-lhe ouvir algu�m gritar. Olhando por perto, nada viu.
De repente, no alto da montanha, surgiu Alekhin, apontando com os bra�os. Rukovsky
correu para diante, olhando atrav�s do desfiladeiro.
Seus soldados prosseguiam movendo-se em linha de ataque sobre o vasto campo de
neve, junto � borda do desfiladeiro. Ent�o, de algum lugar do fundo do
desfiladeiro, veio um tiro.
O coronel Rukovsky viu ent�o uma cena que lhe ficaria para sempre gravada na
mem�ria. Seus homens, mais ou menos vinte deles, estavam sobre o campo de neve
quando das profundezas do desfiladeiro ecoara aquele tiro. Houve um instante de
sil�ncio nervoso depois do som do tiro ter reverberado pelo despenhadeiro rochoso.
A seguir, horrorizado, viu todo aquele enorme campo de neve come�ar a se mexer!
Houve um instante de suspens�o congelada enquanto a neve se movia, a� os homens se
dispersaram, alguns correndo para a frente, outros para tr�s, alguns se agachando
no lugar em que estavam, buscando alguma coisa a que se pudessem agarrar. E n�o
havia absolutamente nada. Parecia que todo o flanco da montanha escorregava; ent�o,
com um ronco profundo como de trov�o, a neve ganhou velocidade e avan�ou para a
borda do desfiladeiro.
Escorrendo pela extremidade do precip�cio, caiu para as profundezas, como um
Niagara de neve.
Por um instante viu seus homens agitando freneticamente os bra�os, lutando para
resistir � corrente; depois foram caindo junto e, apesar da dist�ncia, ouviu seus
gritos de desespero, gritos que jamais esqueceria. E entre os que cairam estava o
capit�o Obruchev, noivo de sua irm�.
Depois do ronco surdo da avalanche, sil�ncio.

CAP�TULO 38

Agachado sob um enorme pinheiro, o major Joseph Makatozi olhava para cima do
desfiladeiro. Estava protegido do vento, sua constante preocupa��o, e, o casaco de
pele de cabra montanhesa era bastante quente. O p�lo de cabra � o melhor que h�,
macio e sem d�vida mais quente que o de qualquer outro animal. Sendo branco,
misturava-se com as ocasionais manchas de neve. As cal�as eram feitas do mesmo
material.
Ali, debaixo do pinheiro, vira a patrulha avan�ar em dire��o ao campo de neve.
Aquilo era uma guerra e ele estava sendo ca�ado para ser morto ou aprisionado. E
ser aprisionado significava acabar sendo morto.
Exasperado, viu-os moverem-se sobre a neve. O que � que estava pensando seu
comandante? Claro que n�o era da Sib�ria; mesmo assim, qualquer russo acostumado a
viajar pelas montanhas saberia do perigo de se andar por um declive, obviamente
inst�vel.
Flagrou-se torcendo para que conseguissem passar, por�m, se o fizessem, ficariam em
posi��o de observar seu vale escondido, poderiam talvez at� perceber seu
esconderijo. Certamente algu�m com bons bin�culos seria capaz de localiz�-lo. E,
�quela altura dos acontecimentos, estava cansado de tanto correr.
Joe Mack sabia que em situa��es assim, com a neve pronta para deslizar, um tiro
repentino ou at� mesmo um grito bastariam para desloc�-la, ainda mais naquela �rea
estreita do desfiladeiro.
A simples movimenta��o dos soldados pelo campo de neve poderia ser suficiente para
desencadear a avalanche, mas n�o podia contar com o acaso. Ergueu o AK-47 e atirou.
N�o fizera pontaria, pois n�o pretendia atingir coisa nenhuma. N�o conhecia o
alcance preciso da arma, embora alguns rev�lveres atingissem dist�ncia muito maior
do que se possa imaginar; mas os homens estavam a uns bons mil e duzentos metros de
dist�ncia. Simplesmente atirou e nunca saberia se a avalanche fora provocada pelo
tiro ou pela passagem dos soldados, o fato � que a avalanche come�ara.
Pelo menos dois soldados na retaguarda atiraram-se para tr�s, conseguindo sair fora
da neve, enquanto dois ou tr�s n�o tinham chegado at� ela; para os outros, por�m,
n�o havia a menor chance de sobreviver.
Quando cessou o ronco da avalanche e a neve formava uma nuvem pesada, apoiou-se na
�rvore e aguardou. Estava relativamente seguro. Daquele lado do desfiladeiro n�o
havia local nenhum de onde fosse vis�vel seu esconderijo, tampouco havia acesso at�
l�, exceto por cima, do lado onde estava, e mesmo ali n�o seria nada f�cil.
Calculou que a patrulha que vira era apenas uma entre v�rias. Sem d�vida planejaram
trabalhar pelos dois lados do desfiladeiro; somente um oficial que desconhecesse
aquelas montanhas teria feito um plano assim. Nos desfiladeiros geralmente h�
v�rios n�veis formados pela eros�o da �gua, atrav�s da pedra, escavando o penhasco.
Podia-se fazer uma busca exaustiva em um n�vel, mas no pr�ximo sobrariam sempre
outros esconderijos. Claro que muitos deles, como o seu pr�prio, seriam vis�veis do
outro lado do desfiladeiro caso a patrulha tivesse atravessado o campo de neve. O
declive inclinado, bem � frente, ficava um pouco mais alto e nele quase n�o havia
neve. Percebeu alguns homens amontoados em confus�o, parecendo em estado de choque.
N�o os culpava. O campo de neve se estendera por algumas centenas de metros acima e
atr�s dele. Devia ter parecido que todo o flanco da montanha se movia. Enquanto
olhava, os homens se viraram e foram voltando pelo caminho por onde vieram, �s
vezes olhando para tr�s, mal acreditando no que acabara de acontecer.
Foi para a pequena depress�o no vale e acendeu uma fogueira, com madeira-bem seca,
para n�o fazer fuma�a. Preparou ch� e um caldo bem grosso com raspa de carne e neve
derretida. De vez em quando espiava atrav�s das �rvores, o ouvido sempre atento.
Alekhin estava em algum lugar por ali.
Todos aqueles meses exposto ao frio e � neve aumentaram-lhe a resist�ncia. Come�ava
a se esquentar e, apesar dos trinta graus abaixo de zero, estava quase quente.
Lembrou-se de h� muito tempo ter lido um relato de Byrd a respeito de pessoas na
Ant�rtica retirando neve com p�s, sem camisa, a uns dez graus abaixo de zero. O
corpo humano, se for necess�rio, tem uma espantosa capacidade de adapta��o �s
condi��es mais extremas de temperatura.
Sem d�vida, daquele lado do desfiladeiro tamb�m estaria vindo uma patrulha.
Conhecendo o terreno, sabia que a �nica maneira de cobrir toda a �rea seria os
soldados se espalharem bastante. O relevo do terreno deixava poucas alternativas de
percurso.
Sua posi��o atual n�o era vis�vel mais abaixo. Se olhassem para cima, veriam apenas
o flanco da montanha coberto de �rvores e �ngreme demais para ser escalado. Dali
debaixo, como ele pr�prio notara, n�o havia a menor indica��o da exist�ncia da
pequena plataforma de pedra onde fizera acampamento.
A �nica maneira poss�vel de v�-lo seria do outro lado do desfiladeiro, exatamente
para onde se dirigiam os soldados arrastados pela avalanche. Tinha carne para comer
e resist�ncia para ficar sentado im�vel o tempo que fosse necess�rio. Por mais
dif�cil que fosse permanecer assim, era a �nica coisa a fazer. O risco era grande,
mas tinha necessidade daquele pequeno descanso.
Os tipos de armadilha que deixara para tr�s impediam que soubesse se tinham ou n�o
funcionado. No m�nimo, fariam os perseguidores avan�arem bem mais devagar e com
muito maior cautela. Naquele local, por�m, encontrava-se a uns cem metros de
dist�ncia de pelo menos duas armadilhas daquelas.
Ali estava protegido do vento e de observa��o, a n�o ser que fosse por algum
aeroplano; se estivesse sob as �rvores, poderiam ver seu esconderijo, mas n�o ele
pr�prio. Contudo, a descoberta do esconderijo poderia levar a alguma busca
detalhada da �rea. Haveria comunica��es por r�dio com as for�as no solo? Tinha de
supor que sim, ainda que possivelmente n�o houvesse.
Sob as �rvores descobriu um ponto de observa��o que lhe tornava vis�veis ambas as
entradas para o vale suspenso, logo abaixo de onde se encontrava.
De repente, na trilha em frente, surgiu um soldado. Estava a uns dois ou tr�s
passos de dist�ncia da pedra achatada que Joe Mack deslocara.
O soldado parou, a arma pronta. Examinava cuidadosamente aquilo que conseguia ver
do surpreendente valezinho. Virou-se e dirigiu-se a algu�m mais atr�s, quando
apareceu outro homem. Joe Mack n�o distinguia seu uniforme, mas deduziu que fosse
um oficial especialmente designado para a busca.
A �nica maneira de verem alguma coisa a mais do vale seria descendo at� ele. Como
se comandasse, o soldado foi em frente; movimentando-se com rapidez, primeiro subiu
um degrau na pedra e depois desceu, pisando para baixo com for�a sobre a pedra
achatada e branca, pois esta se encontrava num n�vel inferior ao normal. No mesmo
instante a pedra balan�ou e escorregou, levando consigo o soldado para baixo com
toda a for�a. A queda mal chegava aos quatro metros de altura, mas dava para ver
que o soldado que ca�ra quebrara a perna.
Outros fizeram um c�rculo a sua volta, enquanto dois ou tr�s desciam at� o vale
para investigar. Melhor um homem ferido do que morto, pois seriam necess�rios pelo
menos dois homens para acompanh�-lo at� onde pudesse ser cuidado.
Improvisaram uma maca enquanto outros dois soldados tentavam consertar o degrau que
se quebrara na trilha. Escondido entre os arbustos, Joe Mack esperava e observava.
Passaram-se apenas alguns minutos at� que aparecesse um helic�ptero. Fez um c�rculo
no ar e sobrevoou o vale suspenso, mas pareceu n�o descobrir o esconderijo que,
ali�s, visto de cima n�o devia parecer mais do que uma pequena proje��o no lado da
montanha, dando para o vale, um lugar sem import�ncia. A n�o ser que Alekhin,
estivesse naquele helic�ptero. Tinha que se lembrar sempre de Alekhin.
Os soldados cuidavam do retorno por aquela trilha e ele continuou quieto,
observando-os. Por fim se foram e ele acrescentou galhos de pinheiro a sua cama.
Arriscando a sorte, fez uma pequena fogueira de madeira bem seca e cozinhou um
pouco de carne da cabra montanhesa. Comeu bem, tomou o ch� e apagou o fogo. Tornou
a perscrutar ao redor e voltou para a cama.
Deitado de costas sobre os galhos, olhava fixamente os ramos acima. Fizera as
coisas certas, as decis�es certas. Mesmo assim, tivera muita sorte, muita sorte
mesmo, e n�o podia esperar que ela durasse eternamente.

Sentou-se � luz do entardecer e estudou os mapas. A sua frente encontraria


montanhas mais baixas e em n�mero menor al�m de diversos lagos e tundra. Seriam
poucos os lugares em que poderia se esconder e na maior parte do tempo viajaria por
descampados.
Durante tr�s dias permaneceu no pequeno patamar que sa�a da montanha, frio a maior
parte do tempo, raramente podendo acender o fogo, a n�o ser para fazer ch� e assar
a carne. N�o tornou a ver soldados, embora duas vezes sobrevoassem avi�es e uma vez
um helic�ptero. Uma vez, no lado extremo do vale suspenso, percebeu movimento nos
arbustos, por�m nada surgiu. Se fosse algum animal selvagem, n�o sa�ra do meio da
folhagem.
S� acendia fogueira quando o vento soprava a fuma�a em dire��o ao desfiladeiro.
Usava sempre madeira seca para diminuir os sinais do fogo.
No terceiro dia decidiu movimentar-se. Cuidadosamente, num esconderijo entre as
�rvores, estudou os poss�veis rote�ros que poderia seguir, mantendo-se em
cobertura. Selecionou uma destina��o poss�vel, mesmo que esta pudesse variar em
fun��o do que por acaso encontrasse pelo caminho. Ainda no acampamento, duplicou o
suprimento de flechas e encontrou dois peda�os de pedra met�lica para acender o
fogo, os quais cobriu parcialmente com couro cru para ficarem f�ceis de manusear.
No quinto dia saiu antes da aurora, impaciente para prosseguir. Foi para o norte,
mantendo-se sob a cobertura das �rvores. Fazia um esfor�o ainda maior para n�o
deixar rasto algum. E, embora n�o gostasse daquele peso a mais, ficara com o AK-47.
Na crista de um morro, olhou para a vasta paisagem montanhosa, floresta e vale que
se estendiam na dire��o leste e sul. Outras cristas cobertas por �rvores pareciam
marchar numa prociss�o infinita com bacias ocas, flancos de pedra, manchas de neve
e, aqui e ali, algo que tinha o aspecto de geleiras. Mais al�m havia enormes
penhascos e as formas c�nicas de antigos vulc�es. Evitando uma trilha mais f�cil
que seguia pela floresta, foi por uma de cabra, que subia pelos penhascos, e ali
agachou-se para estudar o terreno. Quanto mais via, mais inclinado sentia-se a
pegar um atalho para sudeste e tentar manter-se longe das regi�es de tundra e
pequenos lagos. Seria um percurso muito mais longo, mas que oferecia melhores
possibilidades de cobertura e de ca�a.
Aquela noite decidiu seguir para sudeste e tentar alcancar as montanhas Kolyma
sobre Magadan e de l� dar meia-volta para nordeste.
De minuto em minuto verificava as pegadas atr�s de si. Tinha certeza de estar sendo
seguido, come�ou a pensar numa armadilha, alguma muito sutil, capaz de enganar at�
mesmo Alekhin.
Descendo por uma passagem estreita entre dois penhascos aterradores, completamente
cinzentos, caminhou por um solo arenoso, engatinhou sob forma��es de pedra e
dirigiu os passos atrav�s de uma floresta de pedras roladas. Aqui e ali havia
pequenos campos de neve e fendas estreitas nas quais um homem podia trope�ar,
quebrando o tornozelo. Quase n�o havia vegeta��o, afora alguns poucos liquens.
A n�o ser pelo ch� preservado, com economia, a comida estava praticamente
terminada; portanto ficou atento a qualquer tipo de animal que pudesse ca�ar.
Diversas vezes vislumbrou galos silvestres, por�m s� ao meio-dia conseguiu,
utilizando a funda, matar um deles. Acabara de descer um pared�o �ngreme, de pedras
escuras; na base, dera com uma pilha de madeira trazida pelas �guas de um riacho e
que com o tempo havia se acumulado junto �s pedras na margem. Acendeu uma pequena
fogueira, comeu o galo silvestre e cuidadosamente cobriu as penas e os ossos.
Olhando para tr�s, via acima a estreita garganta por onde viera e ficou espantado.
Certamente descera mais de trezentos e cinq�enta metros e, prestando aten��o, n�o
percebeu sinal de movimenta��o alguma atr�s ou nos rochedos ao alto. Descobrindo
uma passagem na parede do desfiladeiro, entrou por ela e foi subindo, passando por
um terreno coberto de pedras escorregadias que lhe davam a impress�o de caminhar
sobre pilhas de garrafas vazias. Chegando mais em cima, encontrou um trecho de
alguns cent�metros de largura que lhe permitia andar junto ao rochedo. Vistas de
cima, aquelas pedras enormes por onde come�ara a escalada pareciam pedregulhos.
A longa fenda por onde avan�ava estava repleta de �rvores. Principalmente
pinheiros, um pouco de lari�os e um ou outro cedro retorcido. Havia no ch�o muitos
galhos quebrados, �rvores ca�das, troncos que tinham virado simples estacas nuas.
Achou casca de �rvore h� muito tempo seca e juntou gravetos para acender uma
fogueira, assim que pudesse parar.
Olhando para tr�s, imaginou que ningu�m que o estivesse seguindo fosse descer pelo
desfiladeiro. Duvidando que um ser humano escolhesse percurso t�o absurdo, voltou-
se e seguiu em frente, subindo como se estivesse numa escadaria �ngreme. Logo a
fenda estreitou-se tanto, que com as m�os podia tocar ambas as paredes. L� em cima
um corvo voou, batendo as asas lentamente. Chegando ao local em que come�ava a
fenda, teve que usar as m�os para al�ar-se para fora. Primeiro, s� o suficiente com
a cabe�a, para olhar o que havia.
A menos de quinze metros, uma cabra montanhesa das grandes; calculou que pesase no
m�nimo cento e quarenta quilos. Olhava para ele, sem d�vida espantada pela s�bita
apari��o daquela estranha criatura numa area que supunha dominar de maneira
absoluta! O animal n�o parecia em nada assustado ou sequer incomodado.
com cuidado, ciente de que suas m�os estavam ocupadas e portando impossibilitado de
usar alguma arma, Joe Mack esgueirou-se para fora da fenda e sentou-se na borda.
Precisava de carne, mas, calculando a dist�ncia, achou que suas chances n�o seriam
das melhores.
Ele se ergueu, com cautela. A cabra era surpreendentemente branca, os chifres de um
negro profundo e de pontas afiadas como agulhas. Seu corpo era como o de outros
animais da esp�cie, entroncado e forte, mais apropriado para escalar e saltar do
que correr, algo que quase nunca teria oportunidade de fazer, vivendo unicamente em
locais como aquele, de grande altitude.
Joe Mack apanhou o arco e, percebendo alguns lari�os n�o muito distantes, foi em
dire��o a eles. A cabra observava-o com interesse, �s vezes jogando a cabe�a para
baixo e torcendo-a.
Como j� tinha visto cabras montanhesas em a��o, sabia o quanto podiam ser
perigosas. Geralmente avan�avam com os chifres baixos e com toda a for�a,
procurando rasgar o ventre do que quer que estivesse atacando. Chegando �s �rvores,
Joe Mack foi subindo pelo pequeno bosque. Quando saiu, tinha chegado ao topo de uma
montanha e a vista era espl�ndida: Uma seq��ncia intermin�vel de encostas, picos e
montanhas estendia-se diante dele. Estava voltado para leste e um pouco para o sul
contemplando uma das regi�es mais selvagens e rudes que j� vira. Lembrava-lhe um
pouco a serra Sawtooth, no seu estado de Idaho.
Subindo a um promont�rio, estudou a regi�o atr�s de si. N�o percebia movimenta��o
alguma, nada que indicasse estar sendo perseguido, embora tivesse a certeza de
estarem em algum lugar. Duvidava um pouco que os soldados persistissem; mas dentro
em breve poderia encontrar algum ca�ador ou peleteiro mandado por Shepilov em sua
captura.
Desceu de onde estava e foi caminhando cuidadosamente sobre as pedras nuas do cume
da montanha. Aqui e ali, lascas soltas de pedra, manchas de neve no ch�o, algumas
delas extensas.
Ia descendo uma colina �ngreme de granito quando os viu. Tr�s homens, ca�adores ou
peleteiros pelo aspecto, bem l� embaixo, na base da montanha. Se olhassem para cima
conseguiriam v�-lo, a n�o ser que a dist�ncia confundisse o branco de sua roupa com
neve. Esses homens levavam rifles consigo e certamente seriam todos bons
atiradores.
com cuidado, foi se esgueirando para perto de uma pedra enorme. Se escorregasse
alguma pedra...!
Estavam exatamente abaixo dele e a pouco mais de trezentos metros, mas ainda no
sop� da montanha abrupta. Foi descendo, usando as m�os para avan�ar numa posi��o
quase sentada. A pedra era escorregadia e em alguns lugares havia at� gelo. Estava
aos poucos se aproximando dos tr�s homens.
Chegou numa rocha grande e solta, levantou os p�s, apoiou-os contra ela e, com as
costas contra o pared�o da montanha, empurrou-a com toda a for�a.
Por um instante a pedra pareceu apenas oscilar um pouco; tornou a empurr�-la com
todo o vigor das pernas. A pedra balan�ou como se pegasse embalo e por fim come�ou
a rolar lentamente.
Pesada, quase majestosa, come�ou a tomar impulso; de repente, ganhou velocidade e
rolou montanha abaixo impetuosamente.
Atingiu uma reentr�ncia, caiu e arremessou-se para cima. Quando come�ou a cair, os
ca�adores quedaram im�veis, olhando para cima, o olhar congelado de pavor.

CAP�TULO 39

Aterrorizados, os ca�adores fugiram aos trope��es.


A pedra aterrissara a alguns poucos cent�metros do local em que se encontravam,
atingindo o solo num tremendo impacto. Depois rolou para tr�s alguns metros e se
encaixou noutra pedra menor.
Dois dos homens tinham ca�do no ch�o. Levantaram-se, bastante assustados, e olharam
para cima da montanha. N�o conseguiam ver nada.
Abrigaram-se depressa sob algumas �rvores pr�ximas. N�o eram muitas, mas pareciam
lhes oferecer algumas prote��o.
- Isso n�o foi acidente - disse um deles.
Durante alguns minutos permaneceram em sil�ncio, ent�o Hymoff disse:
- J� pensou em tudo o que pode fazer contra algu�m que o est� seguindo pelas
montanhas?
- Quem � que j� n�o pensou nisso?
- Eu nunca gostei de Shepilov mesmo - lembrou Hymoff.
Aquele fora um coment�rio perigoso e todos sabiam disso. Se um coment�rio daqueles
passasse adiante, significaria complica��es para quem o fizera.
- Bem, a gente sempre pode ca�ar alguma pele. Acho que h� muito tempo ningu�m monta
armadilhas por aqui. H� muito trabalho - acrescentou.
- Como � que ele foi acabar prisioneiro, afinal? Meu av� vendeu peles para um
negociante americano em Emina's Landing, muitos anos atr�s. Disse que era um homem
honesto, como costumam ser esses comerciantes de pele.
- Ele n�o tem jeito de escapar, enfim. � imposs�vel atravessar o estreito de
Bering.
- �, mas os Chukchi cruzaram durante anos a fio, s�culos at�, eu acho.
Isso foi antes dos radares e do patrulhamento a�reo. Uma vez eu o atravessei quase
todo, pelo gelo. Estava com meu pai e devia ter uns doze anos de idade.
Do alto da colina, Joe Mack observava-os. N�o sabia que tipo de pr�mio fora
oferecido pela sua captura ou que outra vantagem, se � que tinham proposto alguma.
N�o planejara matar nenhum deles, mas, enfim, isso acabava n�o sendo problema seu.
Se quisessem segui-lo, teria que par�-los de uma forma ou de outra.
Levantou-se, voltou para a crista da montanha e foi seguindo-a no sentido sudeste.
A caminhada por ali era f�cil, algumas poucas �rvores, pedras espalhadas pelo ch�o
e acima de sua cabe�a unicamente o c�u, l�mpido e azul como costuma ser naquelas
regi�es do pa�s. Com alguns intervalos de dist�ncia, parava para observar o caminho
deixado atr�s. Alekhin estaria l� em algum lugar; ou talvez, tendo previsto o
percurso que faria, aguardava-o mais adiante. Essa fora uma das raz�es para mudar
de dire��o de maneira t�o dr�stica.
Mais tarde, naquele dia, ca�ou um veado mocho e assou um peda�o de carne na
fogueira. Seu apetite era enorme, comeu como seus ancestiais tinham comido na �poca
em que n�o havia maneira de conservar a carne e outra ca�a s� pudesse ser
encontrada a dias e dias de dist�ncia.
Ao terminar a refei��o, apagou a fogueira, eliminou tanto quanto poss�vel os sinais
deixados e caminhou pela montanha mais uns tr�s quil�metros, em busca de um abrigo
para dormir.
Em algum lugar em frente, ao longe, corria o Kolyma e um pouco mais al�m ficavam as
montanhas de mesmo nome. Quando l� chegasse, seguiria por elas na dire��o nordeste.
Sentia-se tentado a ir para Magadan, pelo menos para uma mudan�a de card�pio, se
n�o fosse por mais nada. Afinal, tinha um terno e a camisa branca feita por
Natalya. E naquela �poca do ano podia at� usar os mocassins sem maiores problemas.
Balan�ou a cabe�a. N�o com o terno, justamente um terno novo. Chamaria a aten��o, o
que menos queria. Apesar disso tudo a tenta��o era grande.
Por onde andava agora n�o havia trilhas nem atalhos; mantinha o olhar atento para
perceber alguma pista de animal e segui-la. N�o conhecendo a montanha, � f�cil o
sujeito de repente se ver num beco sem sa�da. Mas se for por uma trilha est� indo
por um caminho j� percorrido antes por algu�m ou por algum animal.
O frio era penetrante e ia ficando cada vez pior. Antes de cair a noite, teria que
abandonar o topo da montanha por onde caminhava. Como o ar mais quente sobe, se
encontrasse um lugar em alguma colina mais abaixo poderia ficar ali ainda que fosse
cedo.

Foi apenas um momento antes de surgir o helic�ptero que ele percebeu seu barulho; e
n�o havia lugar algum onde se esconder. Esperando n�o ter sido visto, atirou-se ao
ch�o entre algumas pedras achatadas, confiando que do alto o confundissem com um
animal morto ou talvez um pouco de neve. Permaneceu absolutamente im�vel, mas
dentro do casaco suas m�os agarravam-se ao AK-47.
O helic�ptero descreveu um c�rculo, n�o exatamente em cima dele, e depois seguiu
numa linha reta em frente; logo virou e voltou voando baixo.
Viram alguma coisa. Vinham atr�s dele. "Tudo bem, Joe Mack", disse baixinho.
"Pegue-os logo da primeira vez." Ficou quieto enquanto o helic�ptero balan�ava a
menos de quinze metros do solo, exatamente em cima de onde se encontrava.
Rolou o corpo para o lado, o helic�ptero continuava ali e disparou logo que ele
come�ou a virar. Fazia uma curva fechada, a menos de cinq�enta metros de dist�ncia;
pensavam que tivesse somente o arco e a flecha. O que levaram foi uma surpresa
total.
O helic�ptero embicou direto e esborrachou-se no ch�o, primeiro balan�ando um pouco
e depois ficando im�vel. As h�lices ainda descreveram algumas �ltimas voltas e
foram rodando mais e mais devagar, at� pararem completamente.
Escondido atr�s das pedras - uma cobertura bastante prec�ria, pois estavam voando
baixo -, Joe Mack observava, pronto para tornar a atirar.
Nada ocorreu. Ningu�m se mexia.
Esperou contando lentamente at� vinte e ainda nada se mexia. Cobrindo o lado do
helic�ptero com o rev�lver, ficou em p�. Venceu a dist�ncia que o separava da
cauda, manteve o rev�lver apontado e, bem devagar, aproximou-se do corpo da
m�quina. Ouviu um gemido ofegante como de algu�m que tentara mover-se e fora
impedido pelo simples fato de entrar em agonia. Com a m�o esquerda abriu a porta.
O piloto tombara para a frente, morto evidentemente. O homem mais proximo ao piloto
tentou um esfor�o bastante fraco para alcan�ar a arma.
- N�o!
A voz de Joe Mack soou en�rgica, o cano do rev�lver encostado no flanco do russo.
Era um soldado jovem, rosto de menino, mas com o aspecto de um homem competente e
duro. Perguntou-lhe em russo:
- Que tipo de ferimento?
- Acho que minhas pernas se quebraram.
De maneira r�pida e eficiente revistou-o, arrancando-lhe a pistola. Depois, com
enorme cuidado, puxou-o do assento e colocou-o no ch�o. Tirou do helic�ptero seu
sobretudo e diversos cobertores. Havia tamb�m uma barraca de emerg�ncia, pegou-a e
deixou-a no ch�o.
- N�o h� muito que eu possa fazer - lamentou. - N�o sou cirurgi�o. Chegaram a pedir
ajuda pelo r�dio?
- N�o.
Joe Mack acreditou na resposta. N�o houvera tempo nem possibilidade.
- Quando � que v�o come�ar a buscar por voc�s?
- Assim que n�o obtiverem resposta no r�dio.
- Tudo bem. Vou acomodar voc� de maneira que fique o mais quente poss�vel e a� vou
embora. Sinto muito, mas voc�s n�o deviam estar me ca�ando assim desse jeito.
- N�s n�o est�vamos. Quer dizer, at� o momento em que percebemos alguma coisa no
ch�o. �amos capturar um prisioneiro, um dissidente.
Joe Mack recolheu todos os cobertores e casacos de dentro do helic�ptero, para
deixar o ferido o mais agasalhado poss�vel. Enquanto conversava, fez uma prote��o
contra o vento com algumas pedras achatadas.
- Um dissidente, �? N�o sabia que voc�s tinham esse tipo de problema - falava com
um tom de sarcasmo na voz.
- Tamb�m sobra algum para n�s. Esse � perigoso. Tentou libertar outro prisioneiro.
De fato, chegou a libert�-lo, mas ele foi pego.
- Dur�o.
- �, dur�o, como voc�s dizem. Homem muito forte e sem medo de nada. Pena que tenha
virado dissidente. Precisamos de homens assim na R�ssia.
- Todo pa�s precisa.
De repente ocorreu-lhe uma id�ia, um pensamento maluco, completamente ao acaso. Mas
por que n�o?
- Como se chamava?
- Yakov. N�o sabemos o sobrenome. A KGB tem a ficha dele.
- Voc� n�o � da KGB?
- Sou um soldado - explicou o homem, retrucando: Como v�o me encontrar?
- Vou fazer uma fogueira e deixar alguma lenha, tem bastante por a�. Encontrei
tamb�m uma lanterna dentro do helic�ptero.
Encontrara duas, de fato. Pretendia ficar com uma. Achara tamb�m ra��es de
emerg�ncia, dessas que aeronaves em todo o mundo costumam ter, e f�sforos.
Fez uma fogueira pequena e preparou ch�, quente, bem preto e forte.
- A melhor coisa contra choque, � o que dizem.
Bebeu um pouco e moveu um pacote de ra��o para perto do homem ferido.
- N�o poderei ficar, como voc� sabe. Ali�s, j� tenho mesmo que ir.
- Agrade�o-lhe muito. Podia ter me matado.
- Voc� � um soldado, eu tamb�m sou. Num combate, podia mat�-lo ou ent�o ser morto,
mas voc� est� ferido. � outra situa��o.
- Dizem que voc� � um pele-vermelha. - Joe Mack sorriu.
- Sou.
Obviamente sentindo uma dor intensa, o soldado mordeu os l�bios, crispou-se,
fazendo for�a para resistir. Depois perguntou:
- Os �ndios n�o costumam escalpelar?
Joe Mack encolheu os ombros.
- Isso foi h� muito tempo, num outro mundo praticamente. �, era uma maneira de
descontar. Eu nunca escalpelei ningu�m, embora numa ou noutra ocasi�o chegasse a
ter vontade...
Juntou suas coisas, vasculhou o helic�ptero atr�s de muni��o, encontrou-a e pegou
todas as outras ra��es que havia. Em seguida trouxe mais lenha para o fogo. Lenha
n�o faltava, era s� catar.
- Vou deixar uma fogueira acesa, l� de cima a ver�o com facilidade. Agora tenho de
ir - contudo permanecia ali. Voc� disse Yakov? Onde � que iam peg�-lo?
- Perto de Khonuu. N�o fica longe - caiu em si e ficou alguns instantes em sil�ncio
- de avi�o.
Fez outra pausa.
- A KGB est� com ele no campo de avia��o - olhou para cima. - Tenho impress�o de
que v�o ser duros com ele.
- E quando � que n�o s�o? N�o conhe�o este pa�s. N�o pensei que aqui existissem
rebeldes.
O piloto n�o se alterou.
- E n�o existem, ou melhor, s�o muito poucos os que se manifestam. � claro que h� a
corrup��o e o mercado negro. Muitos est�o descontentes, mas acham que um dia as
coisas v�o se ajeitar.
Joe Mack foi recolher mais lenha. Havia algumas poucas �rvores espalhadas, mas
muitos peda�os de madeira ca�dos pelo ch�o, al�m de �rvores mortas, derrubadas pelo
vento ou por raios. Puxou para junto do ferido alguns peda�os mais pesados.
- Voc� n�o vai conseguir escapar - disse o soldado. - Alekhin sabe onde voc� est� e
vai encontr�-lo, com certeza.
- Estarei a sua espera.
- N�o tem medo?
- Ele � um homem, eu sou um homem; vamos ver o que acontece.
Juntou alguns gravetos � fogueira.
- Boa sorte, russo. Da pr�xima vez, diga ao piloto para n�o se meter em assuntos
que n�o s�o da sua conta.
Saiu andando e desapareceu na escurid�o.
Claro que se demorou demais ali. Quando n�o houvesse comunica��o nenhuma por parte
do helic�ptero, come�ariam a procur�-lo. Assim que localizassem o aparelho saberiam
que ele estava por perto, ainda que n�o exatamente onde.
Khonuu? Era uma cidade junto ao Indigirka e Yakov tinha sido feito prisioneiro l�.
Yakov, que o ajudara, que sa�ra do seu pr�prio caminho para gui�-lo. Yakov, um
homem de esp�rito livre, cujo sangue era em parte da ra�a Tungus. Yakov, que
recusava ser amorda�ado, tolhido. Pois Yakov estava prisioneiro. Mas o que ele, Joe
Mack, podia fazer? N�o conhecia a cidade nem o campo de avia��o. Contudo, era
bastante prov�vel que Yakov fosse mantido no campo, aguardando ser transportado
para onde quer que pretendesse mand�-lo a KGB. Depois de interrogado, Yakov seria
morto. Quanto a isso n�o havia a menor d�vida.
Khonuu n�o ficava assim t�o fora do seu percurso, por�m evitava distritos mais
povoados por saber que seria logo reconhecido.
Quando j� estava claro o bastante para ver melhor, come�ou a correr. Corria sem
esfor�o, suave, consciente de cada passo. �rvores negras, sem folhas, esticavam
seus bra�os negros e lisos contra o c�u que prenunciava a aurora. Correu rumo �
aurora, um �ndio, sentindo-se um �ndio, e quando achou uma trilha, quase apagada,
seguiu-a, montanha abaixo.
Aqueles meses longos e penosos deixaram-no esguio e forte. Quando um sol frio
surgiu entre nuvens distantes, correu em dire��o a ele e a trilha conduziu-o rumo
ao norte. Estava indo na dire��o que tinha que ir. Seria destino? N�o acreditava no
destino, mas alguma coisa parecia gui�-lo enquanto corria.
Era um guerreiro, e um outro guerreiro, uma alma irm�, estava envolvido em
complica��es. Sabia do risco, sabia que mesmo a chance de encontrar Yakov era
m�nima, mas assumiu livremente o risco.
Certa vez, muito tempo atr�s, vira um jovem chin�s no pat�bulo onde seria
enforcado. Pensara ent�o: "Tem gente que gasta o dinheiro que acabou de ganhar,
dinheiro novo. Eu gasto vida nova".
"Se � necess�rio, eu o farei", disse consigo mesmo. "Sou s� no mundo, n�o h�
ningu�m a minha espera."
Ningu�m? Mas e ela? E Natalya? Estaria aguardando-o em algum lugar? Ou j� o teria
esquecido, como algo que passara por sua vida como uma nuvem que se desmancha no
c�u?
O que prometera ela? Nada. O que oferecera ele? Ir at� ela, quando ambos sabiam ser
uma promessa em v�o, desesperada, que nenhuma pessoa manteria em s� consci�ncia.
Todavia, nesse aspecto n�o se considerava s�o: Esperava de fato retornar, alcan��-
la junto � praia, na ba�a Plastun.
Ilus�o? Claro, por�m h� certas coisas que valem a pena ser feitas, ainda que para
os outros parecam tolice, pare�am absurdas.
Sob os raios cinzentos daquela manh�, correu descendo a montanha at� chegar �
sombra dos pinheiros, aqueles guardi�es negros que se entrela�avam sobre o caminho.
Cruzou riachos congelados e correu por trechos ainda cobertos por uma fina camada
de neve, onde seus mocassins praticamente n�o deixavam marcas.
Quando o sol esquentou um pouco, procurou um lugar junto aos salgueiros e
adormeceu, acordando logo que o sol estava mais alto. Ficou ali parado um bom
tempo, escutando o vento, ouvindo o que se movia, observando o v�o das aves. Elas
pareciam serenas, despreocupadas. Mais uma vez voltou a correr, pois tinha um longo
caminho pela frente e n�o sabia de quanto tempo disporia.
N�o viu ningu�m e nada ouviu, a n�o ser uma �nica vez o som distante de um machado
cortando lenha.
A manh� se abria larga a sua frente e mais uma vez a mata foi ficando rala. Viu ao
longe fuma�a de chamin�s saindo de casas cujos moradores n�o conhecia e, al�m de um
rio, uma cidade contra o horizonte.
Diminuiu bastante a velocidade e prosseguiu andando. Um homem correndo seria
facilmente visto e provocaria perguntas para as quais n�o teria respostas. Agora
tinha de localizar o campo de avia��o. Estava pensando, calculava que Yakov seria
mantido prisioneiro at� que chegasse algum transporte para lev�-lo embora.
Precisava patrulhar o campo e descobrir onde aquele homem estava sendo mantido. E
depois disso?
Era um guerreiro, e para um guerreiro qualquer dia � um dia bom para morrer.
Deixara de ser um "oficial e cavalheiro", n�o era mais um piloto da For�a A�rea
norte-americana; tornou-se um �ndio e tinha inimigos.
Havia casas espalhadas. Um homem carregando uma bra�ada de lenha olhou para ele e
entrou numa casa.
Continuou andando. Viu um avi�o pequeno decolando e descobriu imediatamente onde
ficava o campo de avia��o. Mudou de direc�o, caminhou entre algumas casas e
atravessou uma ponte. Seu cora��o batia acelerado, a boca seca. O AK-47 estava
escondido dentro do casaco e o arco podia ser tomado por um cajado, apenas isso.
Ainda era muito cedo e fazia frio. Num dia assim ningu�m sa�a de casa sem precisar.
� sua frente caminhavam dois homens, enrolados em sobretudos e com gorros de pele
na cabe�a. Andavam com passo firme, sem olhar para tr�s; a passada de um, por�m,
era-lhe familiar. Desamarrou o fio que prendia o casaco e deixou seus dedos tocarem
a coronha. Estava preparado, mas deu passadas mais largas para ir mais depressa sem
dar a impress�o de estar acelerando o passo.
O homem se virou. Era Botev.

CAP�TULO 40

Botev ficou parado um instante, depois estendeu o bra�o e tocou seu companheiro.
Este virou-se tamb�m, era Borowsky, Deveria consider�-los amigos ou inimigos? Eram
russos, afinal de contas. Contudo tinham suas diferen�as com o governo. Aproximou-
se.
- Voc� continua livre! - exclamou Botev. - Merece parab�ns!
- Yakov est� prisioneiro.
- Por isso estamos aqui.
- Est� no campo de avia��o?
O olhar de Botev esquadrinhou a �rea para ver se estavam atraindo aten��o. N�o
havia ningu�m � vista.
- Est� l�, sim. H� quatro homens da KGB junto com ele. Est�o numa pequena sala de
espera junto ao centro controlador de v�os. Est�o aguardando o avi�o que ir� lev�-
los. Parece que vem um helic�ptero para isso.
- Tem algum plano? Botev mostrou des�nimo.
- Como �amos fazer planos? Sabemos muito pouco. Est� l� e desejamos libert�-lo. Se
conseguirmos, podemos fugir pela taiga. Temos amigos espalhados por l�. Temos
amigos tamb�m em Magadan.
- N�o sabia que voc�s eram tantos assim. Borowsky ficou impass�vel.
- Somos poucos, camarada, bem poucos. N�o pretendemos derrubar o governo, mesmo que
isso fosse poss�vel. S� queremos um pouco de liberdade para n�s mesmos e para
proteger os nossos. Yakov � um dos melhores. Precisamos dele. J� nos ajudou em
diversas ocasi�es.
Nossa escolha � limitada - lembrou Botev. - A taiga ou o campo de prisioneiros; no
meu caso e no de Borowsky eles nos mandariam fazer algum tipo de trabalho que logo
nos mataria. Isso se n�o nos torturassem at� morrermos. � o m�nimo que devemos
esperar, e com Yakov � a mesma coisa.
- � melhor a gente sair daqui - interrompeu Borowsky. N�o tem cabimento, num frio
desses, ficar assim de p�, conversando. Vamos chamar a aten��o.
- Voc� falou quatro homens, n�o? E haver� outros por perto?
Borowsky encolheu os ombros.
- Talvez. A maioria deles n�o gosta da KGB, mas ainda assim n�o d� para prever o
que far�o.
Continuaram andando em sil�ncio pela estrada coberta de neve. Passaram por uma
constru��o comprida parecendo um armaz�m e por outras constru��es menores. Chegaram
a um lugar de onde se avistava o campo de avia��o. Havia v�rios hangares, um
pr�dio, que provavelmente seria o da administra��o, com uma torre e um outro menor
ali perto com um Volga estacionado bem em frente.
Joe Mack disse:
- H� um helic�ptero se aproximando. Ser� que � esse que est�o esperando?
- Acho que sim. Quando estiverem indo em dire��o a ele, a� podemos peg�-los.
- N�o - contestou Joe Mack. - Vamos tomar o helic�ptero, eu sei pilotar.
- Bem...
- Conseguiremos pelo menos sair da cidade. Haver� avi�es atr�s de n�s, mas podemos
abandonar o helic�ptero e fugir para a floresta.
Pararam ao lado do hangar, batendo os p�s contra o ch�o para aliviar o frio,
tremendo e observando a movimenta��o.
- Se nos virem - alertou Borowsky - v�o se perguntar por que estamos aqui, em p�,
neste frio.
- � um risco que temos que assumir - replicou Botev. -Yakov faria isso por n�s, -
recordou Borowsky.
- Ele me tirou fora de Kirensk. Arriscou sua vida para faz�-lo.
- E eu de um dos campos de trabalhos for�ados de Sovychegodsk - completou Botev, O
helic�ptero vinha se aproximando bem baixo. Aterrissaria perto do hangar.
A m�o de Joe Mack estava colada ao AK-47. Ouviu o Volga saindo e, no canto do
hangar, dois homens surgirem de dentro do pr�dio com um prisioneiro entre eles. As
m�os, algemadas, estavam presas nas costas.
- Deve haver mais dois l� dentro do pr�dio. Talvez estejam olhando.
- N�o faz mal - Joe Mack viu o helic�ptero tocar o solo suavemente no campo e ouvir
a partida de motor do carro. Abriu-se a porta do helic�ptero, saiu um homem por ela
que desceu e ficou ao lado. Era um aparelho bem maior do que aqueles que vira antes
e seria capaz de transportar um pelot�o, pelo menos. Por dentro, rezava para que
n�o houvesse nenhuma for�a desse tipo a bordo. Se houvesse, ningu�m sairia vivo
dali.
- Vamos - comandou. E come�aram a andar, n�o em grupo, mas espalhados pelo campo
como se fossem curiosos da regi�o.
O Volga deu uma volta e parou ao lado do helic�ptero. O motorista permaneceu na
dire��o. De dentro do carro sa�ram tr�s homens que viram Yakov virar um pouco a
cabe�a, o olhar baixo, e perceb�-los. Subitamente, caiu de joelhos.
- N�o! N�o! - gritava. - Tenho medo de andar nisso a�! Eu...
O agente da KGB agarrou Yakov, balan�ando-o com raiva para for��-lo a se levantar,
toda a aten��o voltada para o prisioneiro. At� o motorista virara a cabe�a para ver
o que estava acontecendo. Borowsky se aproximou do carro e foi andando junto a ele
at� abrir a porta do lado do motorista. Este virou-se surpreso, para ver uma
pistola apontada para si.
- Saia cuidadosamente - disse Borowsky com toda a calma. - N�o quero mat�-lo.
Botev dera a volta no carro e surgira atr�s dos dois homens tentando erguer Yakov.
Yakov era um homem forte e conseguira, com uma puxada de corpo, desequilibrar um
deles.
O outro, xingando, lutava para ergu�-lo. Botev se posicionou atr�s dele enquanto
Joe Mack ia para o helic�ptero. Dirigiu-se ao piloto.
- Poderia sair, por favor? Estou muito nervoso e um tiro, desta dist�ncia, furaria
seu est�mago.
O piloto come�ou a sair, com cautela. Apesar de ser um homem corajoso, queria
continuar vivo: O AK-47 estava bem perto e o homem que o apontava tinha um jeito
que nunca vira antes, os olhos cinzentos, penetrantes, num rosto de �guia, o cabelo
amarrado em duas tran�as. O piloto saiu cuidadosamente.
- Cuidado com isso a� - avisou. - Tenho dois filhos.
- Voc� � um homem de sorte. Filhos precisam de um pai, portanto, continue vivo,
camarada, e n�o cometa erros. Quero este seu helic�ptero.
- Sabe pilotar?
- Sei pilotar qualquer coisa. - Cutucou o piloto com o cano do rev�lver para faz�-
lo avan�ar. - E esse se parece muito com os nossos.
Botev tinha controlado os dois homens da KGB que estavam de costas, as m�os
apoiadas no Volga. Dali n�o eram vistos do pr�dio. Todavia, um dos agentes da KGB
sa�ra e estava olhando na dire��o deles.
- Pegou a chave da algema? - perguntou a Botev. Ent�o desarme-os e coloque-os no
helic�ptero.
Borowsky estava perplexo.
- Vai lev�-los conosco?
- Por que n�o? H� lugar de sobra e se os deixarmos para tr�s imagino que tipo de
hist�ria n�o saber�o inventar. Rapidamente, os quatro homens, o piloto, o motorista
do Volga e os dois agentes da KGB foram empurrados para dentro do helic�ptero.
Yakov, com as m�os livres da algema, pegou os rev�lveres tomados dos dois agentes e
entrou no aparelho. Logo estavam no ar.
Joe Mack olhou para o rel�gio. Toda a opera��o durara exatamente seis minutos.
Meia hora depois aterrissavam num rude planalto das montanhas Chersky.
- Yakov? Vamos deix�-los a�. Afrouxe os n�s para que possam libertar-se quando
formos embora. N�o h� motivo para deix�-los congelarem at� morrer.
- Que se danem - esconjurou Yakov. - Quero que eles congelem mesmo!
- O piloto n�o lhe fez mal algum - respondeu Joe Mack. - Al�m disso, tem uma
fam�lia para cuidar. Vamos deixar que eles se desamarrem e encontrem o caminho de
volta. Contudo - completou -, tive j� alguma experi�ncia com essas montanhas.
Sugiro que a primeira coisa a fazer seja acender uma fogueira e um protetor contra
o vento. Al�m de se preparar para passar a noite. Hoje j� � muito tarde para se
chegar a algum lugar.
Quando tornaram a subir, descreveu um c�rculo com o helic�ptero. Os homens estavam
em p�, lutando para se libertarem. Virou o aparelho e dirigiu-se para oeste; quando
j� estavam a alguma dist�ncia do planalto, girou outra vez, rumando para leste.
- Para onde? - perguntou a Yakov.
- Para as montanhas a leste de Semychart - sugeriu. Tenho um lugar por l� - pegou
um mapa de bordo. - Aqui, posso mostrar-lhe - olhou para o Piloto. - Como estamos
de combust�vel?
- Uma hora de v�o, no m�ximo. Talvez menos, you o mais longe que der.
Manteve o helic�ptero bem baixo, quase tocando a copa das �rvores, indo por
desfiladeiros e terrenos baixos, sempre que poss�vel. J� estariam sendo perseguidos
�quela altura e se fossem vistos seriam imediatamente derrubados. Mas, enquanto n�o
apanhassem os quatro homens deixados para tr�s, os perseguidores n�o saberiam quem
estava envolvido naquela hist�ria toda. E o homem da KGB n�o o conhecia, a n�o ser
que a descri��o coincidisse com uma que j� tivesse. As tran�as poderiam denunci�-lo
facilmente. Era muito pouco prov�vel que mais algu�m estivesse usando esse tipo de
arranjo de cabelo. Por�m, que podia fazer? N�o havia barbeiros na taiga e j� fazia
mais de um ano que cortara o cabelo.
A atmosfera era l�mpida, excelente visibilidade. Deixara para tr�s o lndigirka e
voava agora em dire��o ao Kolyma. Aterrissou numa pequena clareira entre as
�rvores.
- N�o devemos nos arriscar mais adiante - advertiu. - Agora j� estar�o nos
procurando. Vamos camuflar o helic�ptero. Assim demorar�o muito mais para nos
encontrar.
Como em todas as aeronaves voando por aquela regi�o, havia ra��es de emerg�ncia
dentro do helic�ptero.
- Voc� fica com a metade - disse Yakov. - Temos amigos perto daqui onde poderemos
conseguir mais comida. Boa sorte, camarada.
- Para voc� tamb�m. - Yakov deu um largo sorriso.

- Voc� sabe, claro, se eu o encontrasse no meio de uma guerra, atiraria em voc�.


N�o gosto muito do nosso governo, mas sou russo.
� claro - retrucou Joe Mack. - Sou um americano. Vamos esperar que essas coisas n�o
cheguem a acontecer. Afinal de contas - acrescentou -, n�o queremos nada daquilo
que voc�s t�m. Nada al�m de viagens livres e comunica�ao. H� milh�es de americanos
que gostariam de conhecer o lago Baikal e a pen�nsula Kamchatka. Se a R�ssia
colocasse a KGB trabalhando na lavoura e fazendo alguma coisa de produtivo, como
derrubar o muro de Berlim ou construir melhores hot�is, n�s americanos inundar�amos
seu pa�s, gastando muito dinheiro, fazendo novas amizades, conhecendo as belezas da
R�ssia, tornando rid�cula toda a despesa que os dois pa�ses fazem com armamentos.
E continuou:
- Se os Estados Unidos tivessem alguma inten��o de agress�o � R�ssia, poder�amos
ter atacado quando �ramos os �nicos a possuir a bomba at�mica. N�o o fizemos e
nunca o far�amos, portanto, n�o se preocupe com isso, Yakov.
Yakov deu uma risadinha.
- Gostei do trecho de p�r a KGB para trabalhar na lavoura. Duvido que conseguissem
plantar o bastante para se alimentarem.
Ergueu a m�o.
- Ent�o, adeus!
Foi-se embora, seguido por Botev e Borowsky. Joe Mack esperou um pouco vendo-os se
afastar e tornando a olhar para o helic�ptero rec�m-camuflado. Seria descoberto,
mas ia demorar um pouco.
juntou as ra��es adicionais ao seu pacote, ajeitou o casaco de pele de cabra e se
afastou do local, seguindo para o norte. Nada se movia a n�o ser o vento. A neve
grossa tremia no solo congelado. A primavera vinha chegando, mas a terra parecia
n�o saber disso, mantendo-se escondida, aguardando que um pouco do gelo derretesse
na superf�cie adormecida. Depois da primavera viria o curto ver�o. Seria bom voltar
a sentir-se aquecido. Quase se esquecera dessa sensa��o.
Onde estava Natalya agora? Ser� que tornaria a v�-la? Tornaria a segurar-lhe as
m�os entre as suas, a olhar em seus olhos? Ou ser� que ela o esqueceria? N�o podia
culp�-la. Afinal, quem era ele? Um estranho jovem que surgira da floresta para
tornar a desaparecer naquela misteriosa floresta. Um homem cujo destino cruzara
rapidamente com o seu e que agora devia parecer-lhe um sonho. Sorriu naquele fim de
tarde.
"Ou quem sabe um pesadelo", perguntou-se em voz alta. Ainda havia floresta, embora
as �rvores n�o fossem t�o altas, a vegeta��o rasteira era menor e havia mais musgo,
liquens e tundra. Logo estaria a descoberto e teria que procurar outra maneira de
se manter escondido.
Na parte mais densa que p�de encontrar, construiu um abrigo bastante r�stico,
acendeu uma fogueira com dois peda�os de pedra met�lica, fez um caldo bem grosso e
ch�. O v�o com o helic�ptero dera-lhe uma longa vantagem sobre seus perseguidores.
Agora, at� mesmo Alekhin teria dificuldade em descobrir sua pista.
Duas vezes durante o dia vira pegadas de alce e concluiu que seria bom matar um e
conservar o m�ximo de carne poss�vel. Naquele frio n�o era problema conservar a
carne. Ficava dura, congelava logo depois de morta a ca�a. Amanh� ca�aria um alce,
amanh�...

Arkady Zamatev olhou para o Yakut em p� diante de sua mesa.


- Por que ainda n�o o encontrou? - perguntou-lhe. - Enganou-o mais uma vez?
- N�o, tenho que ir atr�s dele. Sei onde est� indo. Estarei l�.
- Onde agora?
- Eu you para Gizhiga. De l�, entro no continente. Ele vai passar por l� e a� eu o
pego.
- Foi isso mesmo que voc� disse antes.
- E vou peg�-lo.
Alekhin encolheu os ombros, impaciente.
- Esses outros se meteram no caminho.
Franziu a testa, em seus olhos inchados percebia-se o desprezo.
- Ele fez o coronel Rukovsky de palha�o, destruiu-o, arruinou-lhe a carreira. Como
� que ele vai explicar a perda de tantos homens sem ter nenhum resultado para
apresentar em troca? Rukovsky foi um idiota de se envolver nessa hist�ria. N�o era
preciso, e eu estava l�. Ia peg�-lo, mas ficou tudo muito mais complicado depois da
avalanche. Eu sabia onde ele estava se escondendo.
- E n�o falou nada?
- Para Rukovsky ou Shepilov ficarem com a vantagem de capturar o americano? Ele
custou vinte e nove homens a Rukovsky, que agora tem que explicar essa perda.
- O americano n�o teve nada a ver com a avalanche.
- Isso � o que voc� diz. Eu digo que ele conhecia a �rea em que se escondia. Sabia
como deveriam orientar a busca, preparou algumas armadilhas e levou-os para outras.
Claro que sabia. Tinha planejado tudo assim.
Continuou, com raiva:
- E o fogo, que destruiu todo aquele equipamento? O americano provocou o fogo. E as
armadilhas pelo caminho que mataram e feriram os soldados? Preparou essas tamb�m.
Esse americano n�o � bobo, n�o, mas desta vez eu o pego.
Encarou Zamatev, olhando-o astuto sob as sobrancelhas.
- Ainda o quer com vida? Seria mais f�cil morto.
- Preciso dele vivo. Quero uns tr�s ou quatro dias a s�s com ele. A� vai me contar
tudo que desejo saber.
- N�o vai contar coisa alguma. Nada. L� devia ter percebido isso, a esta altura.
Voc� pode mat�-lo, mas ele n�o dir� coisa alguma. Esse a� n�o sente medo da dor
f�sica. E sabe o que � capaz de ag�entar.
Zamatev balan�ou a cabe�a.
- Traga-o aqui, s� pe�o isso.
- Ele foi um dos que libertaram Yakov. - Zamatev enrijeceu o corpo.
- Voc� est� sabendo disso? Como � que n�o me disseram nada?
- Pois estou dizendo agora. - Zamatev soltou um palavr�o.
- Ent�o ele conta com russos que o est�o ajudando! Quero que sejam detidos,
trazidos para c�, todos eles!
Alekhin examinava seus dedos grossos, as unhas quebradas, e olhou-o sob as
sobrancelhas.
- Tome muito cuidado, camarada. Esse a� j� destruiu Rukovsky. Tome cuidado para que
n�o o destrua tamb�m. - Zamatev bufou de raiva.
- Eu, destruir-me? Isso � completamente rid�culo!
Alekhin olhou para fora, atrav�s da janela.
- Pois vai destru�-lo - falou num tom de desprezo e depois voltar� aqui s� para
mat�-lo.
- Ah! - retrucou Zamatev, impaciente. - Como e que ia chegar perto de mim? Se est�
t�o preocupado em me matar, por que � que nem tentou ainda?
A primeira coisa que ele quer � escapar - disse Alekhin. Mas s� escapar n�o chega.
Ele foge para humilh�-lo. Depois quer derrot�-lo jogando o seu pr�prio jogo.
- Mas isso � uma coisa infantil! Um absurdo! Por que havia de se preocupar tanto
assim? E depois, como � que voc� pode saber disso tudo?
- Ele � �ndio. Eu sou Yakut. Ele n�o � como voc�. � como eu. Esse a� sabe como
odiar. Sabe como vencer. Vai fazer voc� de palha�o, destru�-lo e aparecer de volta.
- Voltar para a Sib�ria? Voc� est� louco! N�o pode nem escapar, mas, se pudesse,
para que iria voltar?
- Para mat�-lo - repetiu Alekhin. - Esse a� tem orgulho. N�o est� querendo
recompensa. N�o se importa se seu governo fica ou n�o sabendo. N�o se importa se a
R�ssia fica sabendo. A �nica coisa importante � ele ficar sabendo - Alekhin sorriu
e n�o era um sorriso animador. - E isso voc� sabe. Quando ele o matar, voc� vai
saber que � ele que o est� matando.

CAP�TULO 41

Evgeny Zhikarev estava amedrontado, Do outro lado do rio era a China, menos de mil
e seiscentos metros de dist�ncia de onde se encontrava, olhando atrav�s de uma
janela suja, manchada de mosquitos mortos grudados no vidro. Agora que estava t�o
perto, parecia que sua coragem se esgotara, pela primeira vez come�ava a se
considerar um homem velho.
Antigamente seria capaz de atravessar o rio a nado. Antigamente seria capaz de se
esquivar e se esconder, se fosse necess�rio, para conseguir escapar. Agora n�o
tinha mais agilidade, e aqueles p�s quebrados, aleijados. Mover-se com velocidade e
equil�brio era totalmente imposs�vel.
0 pior de tudo � que prometera �quela linda jovem ajud�-la a sair da Sib�ria.
Como pudera ser t�o tolo? N�o bastava j� ter ele mesmo que fugir, sem ter que
ajudar mais ningu�m? E depois, o que � que ela representava para ele?
Nada, n�o representava nada. Mal a conhecia. Na verdade, n�o a conhecia mesmo. Era
filha de Stephan Baronas, a quem conhecera, ainda que mal; respeitava-o como homem
e como erudito.
Tremeu. Estava t�o perto da fuga, desejava tanto passar os �ltimos meses de vida
num clima mais quente, livre de preocupa��es. Desejava ver-se livre daquele medo
permanente das autoridades, de interrogat�rios, de amea�as. Queria poder sentar-se
calmamente ao sol, cochilar um pouco, ver os barcos deslizando na ba�a, qualquer
ba�a que fosse, onde se sentisse em liberdade.
Queria comer bem de novo, sentar-se num caf�, escolher um prato, conversar com as
pessoas das mesas em volta. Queria ler um livro, um jornal, alguma coisa que fosse
simplesmente o que era e n�o algo previamente aprovado pelo estado.
l� era velho e estava cansado.
No dia anterior, pela primeira vez aventurara-se a sair �s ruas. Foi parar num
lugarzinho em que os homens do rio iam para comer ou beber e onde �s vezes
apareciam tamb�m ca�adores de pele, embora ca�adores livres fossem agora bastante
raros. Soldados apareciam tamb�m �s vezes e ouvira-os conversando entre si. O
tenente Potanin estava servindo ali e os soldados pareciam gostar dele. Facilitava
a vida de todo mundo, s� pedia a m�xima aten��o quando os oficiais estivessem por
perto ou ent�o a pr�pria KGB.
Permanecia tudo calmo junto � fronteira. Os chineses estavam l� do outro lado, mas
n�o incomodavam ningu�m e um pouco de com�rcio ilegal sempre era feito atrav�s do
rio. Os chineses tinham verduras, frutas e muitas outras coisas imposs�veis de se
obter daquele lado do Ussuri.
Toda fruta que pudesse ser encontrada na margem russa do rio era empacotada e
mandada para outro lugar.
Ouviu a porta abrindo-se �s suas costas e virou-se. Era Natalya. Como era bonita!
Podia ter sido a filha que nunca tivera, a fam�lia que desejara um dia.
Ela aproximou-se da janela. Ele apontou.
- L� est� a China. Agora estou com medo.
- Eu sei.
Permaneceu em sil�ncio por alguns minutos e disse:
- Agora n�o precisamos sentir medo, apenas o m�nimo necess�rio para n�o sermos
imprudentes. Acho que vamos conseguir escapar, voc� e eu.
A estrada que passava em frente � casa estava coberta de neve socada, cheia de
marcas de p�s, pneus e cascos.
Ao longo das cal�adas empilhava-se neve suja. Tinham se transformado em meras
trilhas, ligando os edif�cios aos montes de neve. Havia fuligem espalhada sobre a
neve, p� e sujeira. Logo a neve desapareceria, com a chegada da primavera. O gelo
no rio j� come�ara a partir-se.
- Potanin est� aqui?
- Est�. Ouvi os soldados falando dele e dos outros. Est� aqui agora e tenho que
achar um jeito de falar com ele, mas n�o em seu posto. Tem que ser aqui na cidade,
discretamente se poss�vel.
- Sabe onde ele mora?
- N�o e nem posso perguntar. Preciso observar tudo, ouvir bem e esperar alguma
palavra ou encontrar algu�m que conhe�a. Esse motorista de caminh�o, que nos trouxe
at� a cidade, conhece Potanin.
- Mas ele j� foi embora!
- Sim, � claro. Mas vai voltar. - Evgeny olhou para a rua.
- N�o estou gostando disto. Tem alguma coisa errada! Sinto alguma coisa de errado!
Estou com medo - voltou-se para ela. - N�o pense que eu seja covarde, mas � que
estamos t�o perto, e essa sensa��o, esse pressentimento... N�o gosto disso nem um
pouco.
- Aquele motorista de caminh�o? Foi bondoso em nos dar carona, mas o que � ele para
n�s? Nada! Suponha que fosse detido pela pol�cia e, s� para se ver livre, contasse
a nosso respeito? Suponha que algu�m nos tenha visto sair do caminh�o? Sei que era
de noite, mas sempre tem algu�m acordado, andando por a�, e as pessoas denunciam
seus vizinhos, suas pr�prias fam�lias at�! Ent�o, o que somos n�s? Ningu�m, n�o
somos ningu�m! Podia informar a nosso respeito, com a consci�ncia livre de culpa. �
melhor n�o confiar em ninguem.
- Mas, e Potanin?
- N�o me preocupo com ele. N�o muito. Ele acha que pode ganhar algum dinheiro
negociando comigo. Vai me deixar cruzar a fronteira, pensando que eu voltarei com
sua parte de seja l� o que for que eu traga de volta. Aquele l� leva uma boa vida.
Come bem, sempre tem alguma coisa para presentear �s namoradas, manda sempre alguma
coisinha para a fam�lia em Irkutsk. Gra�as a ele, tamb�m vivem bem.
Um caminh�o grande, marca Kama, passou roncando por ali, com seu pesado
carregamento sobre a rua congelada.
- Preciso ter cuidado, - murmurou - com esses meus p�s, s� consigo andar muito
devagar e acho que est�o me procurando. Acho que est�o procurando um homem com os
p�s aleijados.
- Eu posso ir em seu lugar. N�o tenho medo. - Ele n�o sabia o que decidir.
- Mas � um risco que corre. E se for detida...?
- A� terei problemas - respondeu, - Mas sem risco n�o se consegue nada e, depois,
quanto tempo poderemos ainda continuar aqui?
� claro que ela tinha raz�o. N�o tinham direito de estar ali. Ele sabia que o
propriet�rio era um homem doente que se encontrava longe, num hospital em
Khabarovsk. Tinham feito alguns neg�cios e algumas vezes armazenara peles. Por�m,
se voltasse e os encontrasse, mandaria que fossem imediatamente embora. O risco era
grande demais.
- Seja l� o que fizer - preveniu-a Zhikarev -, n�o chegue perto do posto. E n�o se
aproxime do rio al�m do necess�rio. Eles s�o muito desconfiados, atiram primeiro e
depois v�o fazer perguntas ao cad�ver.
- Potanin gosta de viver bem e existe um pequeno lugar - desenhou com o dedo um
diagrama imagin�rio - aqui. H� uma mulher que faz doces e tem ch� tamb�m. Al�m
disso - olhou-a de frente -, faz tamb�m um ou outro negocinho. Tem sempre um pouco
de queijo, peda�os de carne e um excelente borscht.
- Potanin costuma ir l� - continuou. - Foi isso que me contou nosso motorista
enquanto voc� dormia. Todo dia, antes do trabalho, vai at� l� comer alguma coisa.
Aquele l� l� um pouco. Tem um rosto bem redondo, cabelos negros e estar� com um
livro nas m�os.
- Um livro?
- Leva sempre um livro consigo. L� os cl�ssicos: Pushkin, Gogol, Tchekov...
Fez uma pausa. - Converse com ele sobre livros. Imediatamente ganhar� sua aten��o.
Est� entendendo? Ele � simp�tico, mas meio desligado. O que eu quero dizer � que
n�o faz amizade muito facilmente n�o. N�o � desses jovens oficiais que enchem a
cara de vodca antes de voltar para casa.
- � claro que ele vai tomar alguma coisa; por�m, todo mundo que chega perto dele �
para pedir algo. Os outros, aqueles que nem se aproximam, t�m medo porque ele � um
soldado, veste uniforme. Quanto ao fato de aceitar coisas trazidas do outro lado da
fronteira, acontece que muitos de seus superiores v�o at� ele em busca de alguma
novidade, de algum contrabando mesmo. Mas puxe conversa com ele a respeito de
livros e tenho certeza de que n�o ser� ignorada. Vai sentir curiosidade, conhe�o-o
muito bem.

Ela vestiu o sobretudo e o gorro de pele. Sabia que estava mal vestida. Sua roupa
j� estava velha e bastante usada. Contudo, melhor assim, pois estaria igual �
maioria das mulheres e n�o chamaria a aten��o. Tinha que aparecer o m�nimo
poss�vel.
- Tem alguns rublos?
- Tenho o suficiente. Reze por mim, paizinho. Precisarei das suas ora��es.
Ela saiu, fechando a porta atr�s de si. "Ah!", pensou Zhikarev, "chamou-me
paizinho! Gostaria de ser seu pai. Teria orgulho de ter uma filha assim". Por�m,
continuava amedrontado. H� muito tempo que ela n�o ia � cidade, que vivia isolada
das pessoas, e as coisas na R�ssia tinham mudado bastante.
Ela caminhava decidida, pisando com uma certa cautela por causa do gelo e n�o
querendo chamar a aten��o pela pressa excessiva. Ao mesmo tempo que caminhava,
prestava aten��o a tudo que estava a seu redor.
Passou um Volga, diminuindo um pouco a marcha nos lugares mais escorregadios, por
causa do gelo. Numa esquina havia um Karna estacionado. Sentiu-se uma an�,
comparada com o ve�culo. Havia poucas pessoas pela rua. O Volga seguira em frente,
ultrapassando-a, e estacionara � porta de um edif�cio com apar�ncia de pr�dio do
governo, feito de concreto, baixo e feio.
Teria que passar bem ao lado dele. Manteve a cabe�a baixa e seguiu caminhando. Duas
pessoas sa�am do Volga, um homem corpulento que batia os p�s no ch�o, procurando
aquec�-los, e uma mulher. Era jovem, muito bem vestida, mas com certeza algu�m do
governo.
Ao passar pelo Volga, a mulher virou-se. Tinha uma apar�ncia bem delineada, era uma
morena muito atraente. Os cabelos estavam presos para tr�s e os olhos eram grandes.
Por um breve momento, seus olhares se encontraram e ela percebeu uma express�o de
d�vida na fisionomia daquela mulher. Natalya seguiu andando, o cora��o batendo
forte.
Teria sido reconhecida? Mas como seria isso poss�vel? Quem a conhecia ou se
importava com ela?
Evitando a custo olhar para tr�s, continuou andando, virou uma esquina e seguiu por
outra rua. Finalmente chegou ao pequeno lugar de que lhe falara Evgeny.
Entrou, havia v�rias pessoas ali, por�m nenhum jovem oficial. Pediu ch� e um prato
de borscht, que para sua surpresa estava muito bom.
Tomou a sopa vagarosamente e pediu mais uma x�cara de ch�. Ele n�o apareceu. Por
fim desistiu, levantou-se, pagou a conta e foi embora. Demorou-se um pouco junto �
porta para arrumar o casaco, vestir as luvas, ao mesmo tempo que examinava a rua l�
fora. Saindo para a cal�ada, olhou bem dos dois lados e decidiu-se por um trajeto
em que n�o seria obrigada a passar por aquela mesma rua pela qual viera. Seu
cora��o batia mais depressa, e era tudo o que podia fazer para resistir � tenta��o
de olhar em volta para ver se estava sendo seguida.
Mudou v�rias vezes de dire��o, ainda que as ruas naquele quarteir�o estivessem
praticamente desertas. Apressou-se, retornando enfim ao quartinho no canto daquele
antigo pr�dio.
Evgeny Zhikarev esperava-a l� dentro. Acolheu-a com os dois bra�os estendidos,
puxando-a para dentro rapidamente e fechando bem a porta.
- Voc� nem imagina o quanto fiquei preocupado! Imaginei todo tipo de coisa que
pudesse ter acontecido! Enfim, est� tudo bem como voc�,?
- N�o se preocupe; estou bem, mas ele n�o apareceu. Seu tenente que gosta de
literatura n�o apareceu. Sentei-me e fiquei esperando. Tomei meu ch� bem devagar,
mas ele n�o foi l�.
Tirou o casaco e o chap�u, ajeitou o cabelo at� ent�o preso pelo chap�u.
- Passei por um carro, um Volga com duas pessoas dentro. A mulher olhou diretamente
em meu rosto. Por um minuto pensei que...
- Duas pessoas? Como era essa mulher?
- Cabelo escuro, muito atraente; uma mulher bonita. Tinha atitudes de oficial do
governo. Olhou para mim de modo bastante direto.
Zhikarev podia sentir o cora��o batendo e no est�mago uma s�bita sensa��o de enj�o.
- E o homem? Era alto, com ar de militar? Muito forte?
- Esse mesmo. Voc� os conhece?
- Conhe�o, sim.
Evgeny Zhikarev deixou seu corpo cair numa cadeira.
- Ela � a camarada Kyra Lebedev, trabalha com o coronel Zamatev. O homem era
Stegman.
Fez um gesto indicando os p�s aleijados.
- Foi ele que me deixou assim.
Foi mancando at� o fogo e colocou o carv�o que havia num balde. A� esticou-se.
- Ent�o, n�o temos mais tempo. Que outra raz�o para estarem aqui que n�o n�s
mesmos?
- Ela seria capaz de reconhec�-lo?
- Claro. Esteve na minha loja. Conversamos a respeito de peles. Ela me reconheceria
na hora.
Permaneceram um longo tempo em sil�ncio, pensativos, procurando entender o que os
amea�ava.
- N�o temos escolha - admitiu ela. - Devo retornar �quele lugar. Tenho que
encontrar Potanin.
Ele fez um sinal negativo com a cabe�a.
- N�o gosto nada disso. Se ela reparou em voc�, a essa altura j� sabe quem �. Ela a
viu, e e uma jovem mulher incrivelmente astuta. J� ouvi comentarem que � o bra�o
direito de Zamatev. Todo seu futuro depende da captura do americano. Se acharem que
voc� o conheceu, tentar�o descobrir o que sabe ou, ent�o, ir�o deix�-la detida para
for��-lo a vir aqui.
- Como � que ele ia ficar sabendo?
- Creia-me, eles descobririam uma maneira, pode ter certeza.
Zhikarev voltou-se para ela.
- Ser� que ele voltaria por sua causa? Se entregaria para salv�-la?
Ela balan�ou a cabe�a.
- N�o sei, mas espero que n�o. Eles mentem, fazem promessas mas n�o cumprem, fazem
o que bem entendem. N�o posso deixar que isso aconte�a. Se me prenderem, eu me
mato. Ele encolheu os ombros.
- Isso n�o � t�o f�cil assim. Deixam voc� sem nada. Ser capturada por eles n�o �
nada bom, especialmente para uma mulher. N�o - prosseguiu. - Temos de fugir, temos
de fugir agora.
- Tentarei encontrar Potanin mais uma vez. Esta tarde...
- E eu estarei pronto para partirmos. Tem que ser hoje, no m�ximo esta noite. N�o
importa o que ele disser, insista.
Quando Kyra Lebedev percebesse quem era ela, a busca come�aria imediatamente? Ou
ser� que tentariam localiz�-la atrav�s de outros meios? Ou, ent�o, simplesmente
alertariam as pessoas para que a observassem, para que descobrissem com quem ela se
associava, onde se escondia?
Quando voltou � rua, a tarde chegava ao fim.
- Se eu n�o chegar logo depois que tiver escurecido, esque�a-se de mim - preveniu-
o. - Farei tudo que for poss�vel, mas pode ser que me prendam e eu n�o possa
voltar.
Ele acompanhou-a at� a porta.
- Est� vendo l� em frente? - apontou-lhe. - Aquela alameda de b�tulas junto ao rio?
Se tiver de sair daqui, vou para l� e a espero at� meia-noite. De qualquer maneira,
n�o devemos tentar atravessar com a luz do dia.
- Mas e os chineses? Deixar�o que entremos?
- � um risco que precisamos assumir. Tenho o nome de um chin�s que pode nos ajudar,
nunca se sabe.
A pequena rua estava deserta. Caminhou depressa at� a esquina, atravessou e foi
para a rua do caf�, se � que poderia ser chamado assim, evitando a rua mais
movimentada, em que encontrara Kyra Lebedev.
Quando entrou no caf�, havia apenas quatro mesas ocupadas; identificou
imediatamente o tenente Potanin. Estava sentado junto � porta e lia, enquanto bebia
seu ch�. Desviou os olhos do livro quando ela entrou e cruzou a sala at� a mesa em
que estava. Surpreso, levantou-se.
Ela disse:
- Lembra-se de Ivan Karamazov, que n�o queria milh�es de rublos mas apenas
respostas para suas perguntas?
Ele sorriu.
- Li Dostoievsky - retrucou -, mas voc� tamb�m teria perguntas?
- Muitas - sentou-se. - Mas pouco tempo. Trago-lhe lembran�as de um amigo que
negocia peles. Ele n�o pode andar muito bem.
Ele sorriu, balan�ando a cabe�a.
- Toma um ch�?
- Trago-lhe tamb�m - tirou um livro debaixo do bra�o - Le P�re Goriot, de Balzac.
Este exemplar era do meu pai.
- Um presente? - seus olhos buscavam os dela. - O que deseja?
- Meu amigo, como sempre, tem um carregamento de peles esperando. Gostar�amos de
apanh�-lo esta noite.
- Gostariam? Precisa de mais de uma pessoa?
- �, precisa - sorriu para ele. - N�o gosto de ser precipitada e sei que as coisas
n�o devem ser feitas assim, mas n�o tenho escolha.
Seus olhos buscaram os dela e o sorriso desapareceu.
- Entendo.
Apanhou o livro que ela colocara sobre a mesa.
- Felizmente, conhe�o franc�s.
Falou ent�o suavemente, olhando-a nos olhos, o rosto levemente virado contra a
sala, embora ningu�m parecesse estar prestando aten��o.
- Quinze para a meia-noite, ent�o? Nem mais cedo, nem mais tarde.
- Obrigado - ela se levantou. - At� l�, ent�o - disse e virou-se, indo em dire��o �
porta.
A n�o ser pelas luzes que sa�am da janela do caf�, a rua estava escura.
Rapidamente, atravessou-a e escondeu-se nas sombras de uma soleira.
A rua estava vazia e a neve ca�a suavemente. Hesitou um instante antes de
desabrigar-se. Foi a� que ouviu o carro. Vinha com os far�is acesos, como um dedo
apontando em sua dire��o. Imediatamente deu um passo para tr�s, tornando a
esconder-se na soleira.
O Volga parou em frente ao caf�. Uma porta se abriu e a mulher desceu. Do outro
lado, o motorista tamb�m sa�ra. Era um homem grandalh�o, de ombros largos. A mulher
virou-se em sua dire��o, o rosto iluminado momentaneamente.
Era Kyra Lebedev.

CAP�TULO 42

Joe Mack sabia como esperar, enquanto a aurora desbotava as cores do c�u e ele
contemplava o horizonte atrav�s dos bra�os agonizantes das �rvores retorcidas,
esticados contra a manh�. Ca�ara o alce, tirara-lhe a pele, comera a carne e
reservara o resto para os longos dias que estavam por vir.
Sabia como esperar e observar o menor movimento. A floresta era agora mais esparsa,
a n�o ser por um ou outro bosque mais fechado de �lamos da Mong�lia, salgueiros
junto aos riachos e alguns lari�os espalhados. Encontrou uma sombra adequada e
ficou aguardando para ver o que se movia na dist�ncia.
L� longe, uma sombra azul contra o c�u mais p�lido. Era outra serrania, tinha que
examin�-la � luz do sol e tamb�m � sombra para perceber onde poderia haver
passagens e onde ficavam os desfiladeiros.
J� percorrera uma enorme dist�ncia, por�m ainda havia muito mais � frente e agora a
terra se estreitara, a ca�ada seria um cerco cada vez mais fechado. Alekhin sabia
que ele evitaria a tundra em campo aberto, pela total aus�ncia de cobertura, e que
se manteria junto das montanhas ao longo da costa.
Alekhin ficara mais para tr�s de prop�sito, ouvindo o que se dizia, estudando a
trilha e planejando sua pr�pria estrat�gia. Joe Mack sabia disso muito bem, como se
o pr�prio Alekhin lhe tivesse contado. Alekhin estaria impaciente devido ao
fracasso, at� ent�o, de todos os seus esfor�os. Saberia exatamente o que fazer
quando chegasse o momento, e esse momento era agora.
Ocorreram muitos fracassos. Em primeiro lugar Zamatev, que n�o quisera anunciar a
fuga de um prisioneiro, nem sequer que tinha prisioneiros. Preferira aguardar,
contando com uma captura imediata do americano.
Levar soldados na busca fora tamb�m um erro. Se fosse para colocar soldados, tinham
que ter convocado um destacamento de siberianos e nunca homens da Ucr�nia. Bons
soldados, sem d�vida, por�m homens das estepes, sem a menor experi�ncia com as
montanhas da regi�o �rtica.
A utiliza��o dos ca�adores de pele, diante das circunst�ncias, fora uma decis�o
inteligente, mas, como o pr�prio Alekhin estava cansado de saber, esses ca�adores
tinham muita simpatia pelo americano. N�o que fossem de alguma forma desleais, o
fato � que o consideravam simplesmente um dos seus, um ca�ador que se comportava
como tal, e no fundo sentiam-se satisfeitos vendo-o mais esperto que os homens da
cidade que organizavam a busca. O americano usara a natureza como eles pr�prios
teriam usado; portanto, quando sa�ram no seu encal�o, n�o se empenharam tanto
quanto poderiam.
Joe Mack estudava a dist�ncia com todo o cuidado, seus olhos esquadrinhavam a �rea
peda�o por peda�o, sem deixar passar coisa alguma, guardando tudo na mem�ria. Era
capaz de ler um terreno assim como um erudito decifra um documento antigo ou um
ourives estuda um diamante antes de cort�-lo. Grande parte de sua vida, passara-a
em plena natureza e agora, j� h� mais de um ano, vivia na taiga, aprendendo seus
humores, seus caprichos. Muito tempo atr�s aprendera que n�o se pode guerrear com a
natureza, era preciso viver com ela, nunca contra.
Em algum lugar, adiante ou atr�s dele, estava Alekhin, aproximando-se mais e mais,
preparando-se para captur�-lo ou mat�-lo. E Alekhin tivera tempo para estudar seu
comportamento, enquanto ele pouco sabia a respeito do Yakut. Agora, se n�o
aprendesse, morreria.
Joe Mack sabia que qualquer movimento que fizesse tinha que ser calculado, mesmo
assim nunca devia estabelecer um padr�o de comportamento. N�o podia permitir que
Alekhin deduzisse sua posi��o em qualquer momento que fosse. Tinha de variar os
locais de acampamento, ser extremamente cuidadoso com as ca�adas e mudar sempre de
rumo.
Acima de tudo, tinha que estar preparado para uma luta de vida ou morte. Alekhin
n�o entenderia nada que n�o fosse isso. Cuidadosamente, na sua sombra sobre a
crista da montanha n�o muito alta, estudou o terreno e definiu um percurso. Logo em
frente havia boa cobertura, portanto tinha que evitar esse trajeto. Seria o melhor
caminho, o mais prov�vel, ent�o tinha que escolher um outro. Mas at� esse
procedimento n�o podia ser transformado em padr�o.
Os criminosos s�o invariavelmente burros a esse respeito. Se escapam da lei,
retornam ao ambiente que lhes � familiar, para estar junto das pessoas que
conhecem, que poderiam ajud�-los ou escond�-los, e com as quais se sentem �
vontade. � claro que a pol�cia sabe disso; sabe, portanto, onde procur�-los, quem
interrogar, e sempre h� algu�m que bebe demais e acaba falando.
Willie Sutton, o habilidoso fugitivo, verdadeiro artista, nunca cometera esse
engano. Desaparecia num meio completamente desconhecido onde ninguem o conhecia e
onde nunca seria procurado.
At� ent�o mantivera-se nas regi�es montanhosas. Agora, pelo menos por um pouco de
tempo iria para lugares mais baixos. Portanto, teria que evitar ser visto de cima.
Sentado naquela sombra, trabalhou na pele do alce, raspando peda�os de carne que
ainda tinham ficado, colocando-a ao sol quente. Aquela pele daria excelentes
mocassins e talvez fosse mesmo precisar deles.
No terreno a sua frente, tudo permanecia im�vel. Trabalhando com a pele do alce
aproveitava para observar, pronto ao menor movimento. N�o viu nada, afora um ou
outro p�ssaro. Um pouco antes de o sol se p�r, viu tr�s alces virem dos salgueiros
e atravessarem lentamente o terreno. Interrompeu o trabalho para observ�-los, pois
se ficassem assustados durante o trajeto seria sinal de alguma presen�a humana.
Cruzaram a �rea e desapareceram entre as �rvores. Enrolando o couro de alce,
juntou-o ao pacote, colocou-o nos ombros, deixou o local sob as �rvores e desceu
at� o leito seco do riacho que ia em dire��o ao rio.

Naquela noite descobriu uma plataforma sobre o rio onde as pedras haviam se
aquecido um pouco pelos raios de sol. Ali deitou-se e adormeceu. Antes de raiar o
dia, j� estava em p�, andando novamente.
Um riacho estreito corria para o norte, atrav�s da tundra. Havia uma fina camada de
gelo junto � ribanceira e nada mais.
Aqui e ali, algumas manchas ralas de neve. Havia muitos salgueiros e um ou outro
�lamo ou lari�o. Prosseguiu sua caminhada, parando de vez em quando para ouvir,
acompanhar o v�o dos p�ssaros ou o movimento dos animais. N�o encontrou trilha
alguma deixada por seres humanos, apenas de animais.
Tudo estava muito parado, o ar im�vel, nenhum vento ou brisa. Caminhou durante todo
o dia. � noite encontrou um lugar sob alguns lari�os, junto a uma encosta voltada
para o sul. Alguns anos antes uma forte ventania derrubara diversas �rvores que
agora se estendiam sobre a ribanceira do riacho, formando um verdadeiro teto. L�
embaixo achou um lugar para acampar.
O coronel Arkady Zamatev aterrizou em Chersky. Quando o avi�o pousou, aguardava-o o
tenente Suvarov, que o conduziu at� o Volga estacionado pr�ximo ao campo de
avia��o.
- N�o h� a menor d�vida, coronel Zamatev. Ele foi visto na floresta. Um avi�o que
voava bem alto localizou-o cruzando uma clareira.
- Comunicou isso a Alekhin? - Stivarov cerrou os l�bios.
- O camarada Alekhin diz que n�o era o americano, mas quem mais poderia ser?
- Por que acha que n�o era ele? - Suvarov encolheu os ombros.
- Diz que o americano n�o atravessaria a clareira nesta �poca, que daria a volta
por ela. Isso � absurdo! Por que dar uma volta t�o grande quando est� com tanta
pressa?
Zamatev nada disse. O Volga conduzia-os por uma rua esburacada, ainda cheia de
gelo. Grandes pr�dios de concreto, a maioria de cinco andares, pairavam ao longo da
rua. Olhava para eles, odiando aquela fei�ra sombria. Enfim, o que se podia esperar
de um lugar desses? Era espantoso que tivessem chegado mesmo a construir alguma
coisa nessa terra desprovida de tudo.
No escrit�rio preparado para ele, havia diversos relat�rios sobre a mesa. Examinou-
os r�pido. Um por um, apesar das palavras cuidadosamente selecionadas, n�o passavam
de relatos de fracassos. E n�o apenas fracassos na captura do americano, mas perda
de homens e equipamento.
- Algum recado da camarada Lebedev?
- Sim, senhor. Est� em Iman. A filha de Baronas tamb�m est� l�. N�o h� sinal nenhum
do pai.
- Prendeu-a?
- Ainda n�o, mas tem certeza de que se encontra l�, possivelmente com projetos de
atravessar a fronteira em dire��o � China. Pretende peg�-la ao cair da noite.
Zamatev sentou-se abruptamente. Sentia-se exasperado. Essa filha de Baronas n�o era
t�o importante assim. Por que Kyra estava perdendo tempo? Devia estar ali,
coordenando as coisas, nisso era muito mais capaz do que esse Suvarov. Bom rapaz,
mas n�o tinha a menor imagina��o, sempre pronto a aceitar a solu��o mais �bvia,
mais f�cil.
Viajara �s pressas para Moscou porque recebera ordens para ir at� l�. Fora chamado
com urgencia, e seu amigo no Politburo explicara-lhe muito bem, sem meias palavras:
"Capture o americano imediatamente, sen�o ser� removido do comando".
- Voc� foi burro, Arkady - dissera-lhe o amigo. - Come�ou muito bem, devia ter
continuado com uma s�rie de pessoas obscuras. Mas tornou-se ambicioso em excesso.
Capturar esse americano foi um risco tremendo. Mesmo supondo, por hip�tese, que
tivesse corrido tudo bem, havia sempre o risco de o caso adquirir repercuss�o
internacional. E a�, como se n�o bastasse, deixou que ele fugisse.
- Ningu�m podia imaginar, nem em sonho, que o homem ia tentar uma coisa dessas...
- �, mas acontece que ele tentou e agora est� fazendo todos voc�s de palha�os. Ou�a
o que estou lhe dizendo, Arkady, se n�o capturar esse homem nem tiver alguma coisa
para mostrar que justifique tudo o que aconteceu, voc� estar� liquidado. N�o haver�
mais nada que eu possa fazer. Meus amigos n�o admitir�o um fracasso na opera��o.
- Shepilov...
- Estou informado a respeito de Shepilov. J� foi chamado de volta a seu posto. Tem
muito o que fazer por l�, sem ter que se meter nessa hist�ria absurda - fez uma
pausa. - E o que � que h� com esse tal de Stephan Baronas e a filha? O que t�m a
ver com a hist�ria toda?
Zamatev fora pego de surpresa. Como sabiam a respeito dele? Mas o que saberiam?
Respondeu, medindo as palavras:
- Houve uma den�ncia de que o foragido permanecera algum tempo no mesmo vilarejo em
que morava Baronas. Parece que ele e a filha ficaram conhecendo o americano, por
isso quer�amos det�-los para interrogat�rio.
- H� quanto tempo foi isso?
- Bem, muitos meses atr�s..
- Est� desperdicando seu tempo, Arkady. Como disse, foi h� meses atr�s. Seja l� o
que for que pudessem saber, n�o se aplica ao que est� ocorrendo agora. O homem
percorreu centenas de quil�metros desde ent�o. Deixe-os em paz.
Zamatev titubeou um pouco e arriscou:
- E se tiverem auxiliado o inimigo?...
- N�o temos nenhuma informa��o de que tenham ajudado. Seja l� como for, a �nica
coisa importante � recapturar esse americano.
O amigo voltou-se para Zamatev e seu olhar n�o era nada amistoso.
- Arkady, voc� sempre foi um homem muito competente. Em v�rias ocasi�es, mostrou-se
valioso para v�rias pessoas e para mim mesmo. Todos reconhecemos isso, por�m est�
come�ando a parecer que voc� perdeu o rumo. Vivemos num mundo impiedoso, Arkady.
Meu sucesso depende muito do sucesso de meus protegidos, como voc�, por exemplo.
N�o pode falhar.
Apanhou o cachimbo que estava no cinzeiro.
- Quero que voc� compreenda muito bem uma coisa, Arkady. Baronas e a filha t�m
amigos, amigos muito importantes. Deve deixar que saiam do pa�s.
- Sim, senhor.
Zamatev estava perplexo, mas esperava que isso n�o transparecesse em sua
fisionomia.
- Amigos muito importantes... E como n�o t�m nenhum valor especial para n�s, est�o
permitindo sua partida. N�o interfira, est� me entendendo?
Entendera perfeitamente bem, por�m Kyra estava agora em Iman a ponto de prender a
filha de Baronas. E se Natalya Baronas e o pai fossem presos agora, isso
significaria muitos problemas. Ele, e Kyra junto, podia ser obrigado a passar o
resto da vida trabalhando em algum lugar parecido com Chersky.
- Suvarov? Consegue fazer uma liga��o com a camarada Lebedev em Iman?
- Creio que sim, senhor.
- Ent�o fa�a-a. Diga que Baronas e a filha n�o devem ser presos de maneira nenhuma,
que n�o se fa�a absolutamente nada com eles, que � para serem deixados em paz. Est�
me entendendo? E diga tamb�m que quero que esteja aqui imediatamente!
Zamatev foi at� a janela e olhou para aquela rua sombria, para os blocos cinzentos
de concreto que se perdiam naquela dist�ncia tristonha.
Baronas? Quem podia imaginar? O homem era lituano, se estava bem lembrado, alguma
esp�cie de professor. Bem, homens assim �s vezes fazem amigos poderosos.
Encolheu os ombros; aquilo n�o era problema seu. Enfiou as m�os nos bolsos. Seu
amigo deixara tudo bem claro, dolorosamente claro. Capturar o americano, obter as
informa��es, sen�o estava liquidado. Todos os sonhos, ambi��es, para nada. Uma vez
que algu�m tinha uma marca dessas contra si, tornava-se imposs�vel qualquer
progresso que fosse.
N�o tinha d�vidas a respeito de Kyra. Tornara-se o rabo de seu papagaio; mas e se o
papagaio n�o voasse?...
Foi at� a porta e olhou para a outra sala.
- Avise-me assim que tiver falado com a camarada Lebedev.
- Deseja falar com ela?
- N�o, apenas transmita meu recado.
Foi de volta para a mesa e sentou-se pesadamente. Tinha que sair na captura ele
mesmo. N�o podia simplesmente deixar tudo nas m�os de Alekhin, embora o Yakut
parecesse estar bastante confiante.
Na parede havia um grande mapa mostrando a vasta por��o de territ�rio que se
estendia entre Chersky e o estreito de Bering. Tudo o que se encontrava a leste de
Magadan. Permaneceu um longo tempo estudando o mapa, as m�os para tr�s. Suvarov
colocara um alfinete indicando o local em que o homem fora visto.
Mas, e se n�o fosse mesmo o americano? Como seria poss�vel? E o que poderia estar
fazendo naquele lugar in�spito �quela �poca do ano?
Foi de novo at� a porta que dava para outra sala.
- Suvarov? Quero um helic�ptero. N�o foi um MIL-4 que eu vi l� fora? Quero esse e
mais tantos soldados quantos possa levar, junto com seus equipamentos. Quero tudo
pronto para amanh� bem cedo. Eu mesmo irei no seu encal�o. E - acrescentou - voc�
vai comigo.
Tudo bem, iria mostrar a todos eles do que era capaz. Dentro de horas, teria o
americano nas m�os.
Voltou-se para Suvarov.
- Esse homem que foi visto na clareira? Quero que seja detido, n�o me importa quem
seja. Quero que seja trazido at� mim. Coloque helic�pteros na �rea. Fa�a uma busca
completa. Alekhin disse que esse n�o � o americano, mas quero ver com meus pr�prios
olhos. E quero falar com ele tamb�m.

Andando de volta a sua mesa, deixou-se cair numa cadeira. N�o gostava dessa
correria toda. Havia outros para fazerem isso, mas j� tinham desperdi�ado tanto
espa�o, tanto tempo perdido! Ningu�m estava muito preocupado mesmo, esse � que era
o problema.
N�o, estava enganado, muita gente se preocupava e trabalhava com seriedade, por uma
ou outra raz�o, mas eram poucos.
O grande problema era a in�rcia.
A essa altura, era prov�vel que o americano j� estivesse em algum ponto da regi�o
Chukchi ou talvez naquela linha em dire��o ao Koryak. Era uma regi�o selvagem, mas
havia poucas florestas e as montanhas eram descampadas e com neve. O homem estaria
obviamente mais exposto.
Agora iam peg�-lo. Tinham que peg�-lo de qualquer jeito.
O problema era que l� em Moscou eles nem imaginavam as dimens�es daquela regi�o em
que trabalhava. Encontrar algu�m nessa vastid�o era praticamente imposs�vel, ainda
mais algu�m que queria esconder-se e era capaz de fazer isso com habilidade
incr�vel.
Suvarov surgiu na porta.
- Senhor? N�o consegui ainda me comunicar com a camarada Lebedev. Talvez, se
pegasse um avi�o at� l�...
"� exatamente isso que voc� est� querendo, n�o �?", perguntou-se Zamatev.
- N�o - reconsiderou. - Preciso de voc� aqui, junto comigo. Entre em contato com a
camarada Yavorsky, no meu escrit�rio. Diga-lhe que Baronas e a filha n�o devem ser
presos, de maneira nenhuma. � para deix�-los rigorosamente em paz. Diga-lhe que a
camarada Lebedev se encontra neste momento em Iman com o prop�sito de prend�-los e
que deve ser impedida, a qualquer custo.
Ema Yavorsky nunca gostara de Kyra Lebedev, por�m tinha, de alguma maneira, de
entrar em contato com ela, que estaria longe dali, procurando o americano. Era uma
pena. Kyra era uma mulher t�o bonita, t�o inteligente. Mas, diante das ordens
recebidas, deixar as coisas correrem seria um verdadeiro suic�dio. Ema Yavorsky n�o
somente impediria a pris�o a tempo como tamb�m teria todo o prazer em faz�-lo.
Talvez depois conseguisse acertar as coisas. Agora, por�m, tinha que fazer com que
Kyra parasse, a qualquer custo.
E se por acaso chegasse a prend�-los, e se Stegman os interrogasse?

CAP�TULO 43

Esperaram o dia inteiro. Diversas vezes passaram carros por ali, mas quase sempre a
rua permanecia deserta. N�o levava a lugar nenhum, e havia caminhos mais f�ceis
para algu�m que fosse numa ou noutra dire��o. Natalya passara boa parte do tempo
junto � janela suja, cheia de insetos mortos grudados no vidro, olhando para o
outro lado do rio onde estava a China e a liberdade. Ou, pelo menos, o que esperava
que fosse a liberdade.
Apesar do frio, n�o ousaram acender o fogo. O pr�dio em que se encontravam era,
para todos os efeitos, um velho armaz�m.
- Essa mulher que voc� viu? Acha mesmo que era a camarada Lebedev?
- Pela descri��o que me fez, e do homem que a acompanhava...
Ent�o, est�o a nossa procura. N�o haveria outra raz�o para estarem aqui.
Fechou melhor o casaco sobre o corpo, cruzando os bra�os por cima. Do outro lado da
rua havia outros armaz�ns e alguns pr�dios abandonados junto ao rio. Alguns velhos
embarcadouros e um pontilh�o por onde, muito tempo atr�s, eram carregadas as
embarca��es no rio. Tinham se tornado cinzentos, nus, castigados pelo vento. Era
uma paisagem sombria, como seriam suas expectativas caso Potanin falhasse.

Onde estava Joe Mack? N�o soubera nada a seu respeito, mas ela s� estivera em
lugares em que seria imposs�vel mesmo ouvir alguma coisa. Sempre h� coment�rios; e
preciso estar por perto, ouvindo tudo, nos lugares em que correm as not�cias.
Como seria poss�vel sua fuga? Tremia ao lembrar da floresta. Por alguns breves
momentos, gostara dela, momentos em que seu pai ainda estava vivo e em que
caminharam para ver as flores, os passarinhos, observar os pequenos animais... Mas
os invernos eram de um frio t�o brutal, era uma luta intermin�vel para se conseguir
lenha, mesmo para sobreviver. Chegaram a passar fome muitas vezes. Por algumas
semanas tinha sobrevivido com menos comida do que uma crian�a comeria. Por�m, de
alguma maneira, sobreviveram, e ent�o ele aparecera.
Ser� que o amava realmente? Ou ser� que levara alguma estranha m�gica para aquelas
suas vidas t�o sem cor, t�o vazias? Dera-lhes carne, mas acima de tudo levara-lhes
esperan�a. Se ele, perseguido por todos, acreditava que conseguiria escapar,
acreditava num futuro depois de tudo aquilo, ent�o era poss�vel que eles tamb�m
acreditassem.
O que a atra�ra nele? Sem d�vida, como homem, tinha uma figura impressionante, mas
era alguma coisa al�m disso. Quando estava com ele, sentia-se t�o bem, em
seguran�a, protegida. N�o era como os outros, sempre meio atordoados, desejando,
reclamando, sem esperan�a. Ele, n�o, queria chegar a algum lugar, sabia onde e
como, e de repente ela tamb�m passara a sentir o mesmo.
Fora ele quem dera esperan�a para seu pai. Agora via isso claramente. Resignara-se
ao sofrimento, resignara-se �quela vida na taiga, t�o sem perspectivas. Ou ia aos
poucos se resignando.
Agora viera parar ali, logo al�m do rio, a China. Se pelo menos seu pai tivesse
vivido para ver aquele momento! Mesmo que n�o conseguissem escapar, tinham pelo
menos tentado, tinham vislumbrado a liberdade.
N�o sabia o que os aguardaria na China, por�m, de alguma forma, sentia que no fim
daria tudo certo.
- Tenho medo - Evgeny aproximou-se dela. - Estou arriscando tudo nisto. Se n�o der
certo, n�o haver� outra chance para mim. N�o sobreviverei a outro interrogat�rio!
- N�s conseguiremos. Tudo vai dar certo, pai. - Chamava-o assim porque percebera o
prazer que sentia nisso. Afinal, o que tinha atualmente que lhe desse algum prazer?
- Vamos conseguir fugir, sim.
De repente, ele come�ou a falar:
- Acho que devemos sair daqui. Tenho um mau pressentimento em rela��o a este lugar.
Ela sentia tamb�m a mesma coisa. H� v�rios minutos que vinha achando o velho pr�dio
opressivo.
- Podemos ir para l� - disse ela, indicando o pontilh�o. - Podemos ir para l�, onde
n�o vai ninguem.
- Agora - ele concordou. - Vamos agora mesmo.
Ela apanhou sua pequena trouxa e esperaram, observando a rua estreita dos dois
lados e por fim fazendo uma r�pida averigua��o para ver se n�o deixavam nada para
tr�s. Depois sa�ram pela porta e atravessaram a rua. Soprava um vento frio e
apressaram-se para chegar ao abrigo junto �quela velha estrutura, do outro lado da
rua. Ouviram o carro aproximar-se assim que chegaram ao pontilh�o, grande e vazio.
A parede do velho edif�cio a sua frente era nua, sem entradas. De repente, ela
percebeu um pequeno caminho que seguia o rio, embaixo do pontilh�o.
- Depressa - murmurou ela, quase correndo para l�. Jogaram-se debaixo do pontilh�o.
Ali estava escuro, um lugar cheio de sombras, com apenas um ou outro foco de luz
que penetrava por buracos da estrutura. Havia uma ribanceira �ngreme de terra que
descia at� a margem do rio, coberta ainda de gelo, e dois barcos velhos amarrados,
um deles coberto de �gua at� a metade, sobre a qual havia uma leve camada de gelo.
No outro s� havia algumas redes velhas.
- L� - indicou Evgeny. - Entre e cubra-se com as redes.
Rapidamente entraram no barco e puxaram as velhas redes sobre si, permanecendo
im�veis.
Ouviam perfeitamente o ronco do motor, o barulho dos freios e uma porta sendo
fechada com for�a. Natalya permaneceu quieta, mal respirava, os ouvidos atentos ao
menor ru�do.
Ouviu uma porta rangendo e vozes. Depois uma porta fechar-se. Teriam encontrado o
quarto frio, mas n�o deixaram nada para tr�s que lhes denunciasse a presen�a. O
lugar estava exatamente como quando chegaram.
Ouviu as botas rangendo no pedregulho e depois em cima do pontilh�o. Os passos
pareceram distanciar-se. No momento seguinte percebeu as botas descendo pela
pequena trilha e parando; em seguida, viu a sombra de um homem, parecendo olhar
embaixo do pontilh�o. Tornou a ouvir os passos distanciarem-se.

Pouco tempo depois veio o som de motor e pneus se afastando. Come�ou a se mexer,
por�m Evgeny colocou a m�o em seu ombro.
- Ainda n�o - pediu-lhe.
Ficaram quietos, esperando que o tempo passasse, e ap�s um per�odo que lhes pareceu
intermin�vel, de mais ou menos uma hora, ele finalmente se sentou. Sa�ram do barco
com cuidado, deixaram as redes do jeito que as encontraram. Ele sentou-se na
ribanceira, num peda�o de madeira para evitar a terra congelada. Ela sentou-se ao
lado.
- Devemos aguardar - refletiu. - Quanto menos movimento melhor, e n�o falta muito
agora.
Quando sa�ram do esconderijo sob o pontilh�o, estava escurecendo. Do outro lado do
rio havia algumas luzes espalhadas. Com os p�s quase congelados, ela pisou no ch�o
com for�a para aquec�-los novamente. Evgeny olhou as horas.
- Ficaremos mais um pouco aqui - murmurou.
- O tenente Potanin disse quinze para a meia-noite - ela lembrou-lhe.
Concordou com a cabe�a.
- Temos ainda um caminho a percorrer e n�o devemos nos precipitar. L� naquelas ruas
silenciosas estaremos melhor.
- E os chineses? E se n�o nos aceitarem?
Encolheu os ombros.
- Temos que tentar, geralmente costumam receber bem quem est� fugindo dos sovietes.
Esta � uma fronteira antiga, muito antiga, e h� s�culos existem problemas aqui. Em
outra �poca isto foi parte da China e em alguns mapas ainda aparece assim.
Algumas luzes perfuravam a escurid�o, refletidas nas �guas do rio, nas ribanceiras
e bancos de gelo.
- Agora - disse ele. - Vamos agora.
Deixando a margem do rio, pararam um minuto, olhando para o edif�cio do outro lado
da rua, que lhes servira de breve ref�gio. Seu aspecto era frio, cinzento e triste.
Juntos, foram andando pela rua. Ele apoiava-se na bengala, caminhava devagar. Ela
pensou que poderiam ser facilmente reconhecidos, se estivessem procurando um homem
velho e aleijado e uma mulher jovem...
Ela comentou isso.
- N�o - ponderou -, eles n�o esperam encontrar voc� junto comigo. Pensam que est�
acompanhada de seu pai.
- Sim, sim, � claro.
Seu pai? Enterrara-o ela mesma. Sem for�a para abrir uma cova na terra congelada,
cobrira-o com galhos de pinheiro e depois conseguira cavar parte de um barranco que
estava bem acima dele. Dissera-lhe uma vez, muito tempo atr�s: "Quando morrer,
lembre-se de que aquilo que conheceu de mim a acompanhar� para sempre. O que est�
enterrado � somente uma casca daquilo que j� existiu. N�o lamente a casca, lembre-
se do homem. Lembre-se do pai...
Havia luzes na ponte e na guarita; uma porteira sobre a ponte, para os ve�culos, e
outra menor para pedestres. Na outra extremidade distinguiam outra guarita. S�
perceberam o Volga quando estavam pr�ximos da ponte. Estava parado na escurid�o, um
pouco antes da passagem, bem em frente a eles. O motor ligado.
- Evgeny...? - sussurrou.
- Continue andando - respondeu-lhe. - N�o olhe para os lados.
Dali at� a guarita n�o havia mais de trinta metros, porem, aquela parecia-lhe a
maior dist�ncia que jamais percorrera. Por que as pessoas dentro do carro n�o os
fizeram parar? O Volga continuava estacionado, o motor ligado, escuro e amea�ador.
Tinha a sensa��o de que poderia sair andando a qualquer momento e ir em cima deles.
O que deveria fazer? Parar e esperar? Correr de volta para a cidade? Correr para o
outro lado da ponte? J� ouvira falar de pessoas que foram mortas a tiro ao tentarem
fugir, ainda assim, era isso o que faria. Correria como nunca antes correra na
vida. Talvez a deixassem passar, talvez atirassem nela, mas n�o se importava,
correria.
- N�o se apresse - murmurou Evgeny. - Estamos quase l�. Seu tenente est� em p�,
observando-nos.
- E se n�o estiver em servi�o?
- Tentaremos assim mesmo.
Agora que estavam t�o perto, o velho homem parecia ter recuperado as for�as.
Desapareceram os temores.
- Tenho dinheiro - acalmou-a - em Hong Kong. N�o lhe faltar� nada, eu lhe garanto.
- Quero ir para os Estados Unidos - animou-se.
- N�s arranjaremos isso - respondeu confiante. - Agora fique calma. Deixe que eu
falo.
Quando se aproximaram, o tenente Potanin saiu da guarita. Podiam ver outros dois
soldados l� dentro, aquecendo as m�os sobre uma estufa.

Olhou rapidamente para um e para o outro.


- Isso pode me criar problemas - disse-lhes -, mas farei assim mesmo.
Voltou-se para o port�o dos pedestres.
Naquele momento, ouviram o barulho de um carro. Estava ainda a alguma dist�ncia,
mas se aproximava com rapidez. Enquanto estava �s voltas com o cadeado, o carro
entrou pela ponte.
Kyra Lebedev desceu rapidamente. Stegman saiu do outro lado.
- Doutor Baronas! O senhor est� preso!
Evgeny virou-se, de maneira que seu rosto ficasse iluminado.
- N�o sou o doutor Baronas - explicou. - Sou Evgeny Zhikarev.
- Ali! Ent�o � voc�! Voltou-se para Natalya.
- Mas voc� � Natalya Baronas, n�o �? Onde est� seu pai?
- Est� morto. Morreu ao cruzar as montanhas.
- Ah! Que pena. Venham ent�o, voc�s dois. Voc�s... Ouviu-se o ru�do de uma bota no
pedregulho e uma voz grave e forte que comandou:
- Deixe-os!
Kyra Lebedev virou-se com raiva. Um homem grandalh�o, vestindo um pesado sobretudo,
encarou-a. Ela parou, a boca secara-lhe subitamente e estava com medo.
- Sou Bocharev - disse o homenzarr�o.
- Mas temos uma ordem - objetou Kyra, uma ordem de pris�o.
- Estou perfeitamente informado a respeito. Houve uma contra-ordem.
Seu olhar era frio.
- Pode ir embora - ordenou, - sua presen�a aqui n�o � necess�ria.
Kyra Lebedev ainda vacilou.
- Mas o que direi ao coronel Zamatev?
- Ele j� foi devidamente informado, como ficar� sabendo. Ela n�o vacilou mais.
Stegman j� estava dentro do carro. Bocharev tirou um ma�o de pap�is do bolso e
entregou-os a Natalya.
- Seu passaporte e o visto de sa�da. Olhou para Evgeny.
- Esse n�o � seu pai?
Ela explicou e ele fez um gesto afirmativo.
- N�o se preocupe, providenciarei para que seu corpo seja devidamente sepultado.
Tornou a olhar Evgeny.
- E quanto a voc�, camarada?
- Tenho os pap�is em ordem, camarada - a voz tremia-lhe. - Eu...
- Voc� protegeu essa jovem senhora - retrucou Bocharev. Voltou-se para Natalya: -
Algumas vezes, de vez em quando, lembre-se de meu filho.
- Nunca o esquecerei - respondeu Natalya. - Nem ao senhor.
- Agora v�o, r�pido! - Bocharev dirigiu-se ao tenente Potanin: - Deixe-os passar,
tenente. Seus pap�is est�o em ordem.
- Sim, camarada!
Bocharev permaneceu ali em p�, vendo-os se afastar, as m�os colocadas no fundo dos
bolsos. At� que por fim andou de volta at� o Volga.
Na outra extremidade da ponte, aguardava-os um oficial chin�s. Natalya virou-se e
olhou para tr�s, acenando com a m�o, despedindo-se. Percebeu os far�is do carro se
distanciarem e desaparecerem numa esquina.
- H� homens bons em todos os lugares - emocionou-se, aludindo a Bocharev.
- Sim - concordou Zhikarev. - Apenas gostaria que suas vozes soassem mais alto.
Cruzaram a fronteira, rumo a um destino incerto. Em sil�ncio, Natalya idealizava
chegar aos Estados Unidos, onde ousava ter essa esperan�a - Joe Mack, de alguma
forma, estaria esperando por ela para que juntos compartilhassem o sonho que
aspirara.

CAP�TULO 44

Apenas algumas horas depois de sua chegada a Chersky, o coronel Zamatev colocara
patrulhas motorizadas dirigindo bem devagar pela estrada - se � que podia ser
chamada assim - que ligava Chersky a Talovka e, depois, de Talovka at� Ust'chaun,
no litoral norte. As duas etradas cruzavam a regi�o a leste do rio Omolon.
Diversas patrulhas deveriam percorrer as estradas continuamente at� segunda ordem.
Havia patrulhas tamb�m junto ao rio, e nas poucas pontes os guardas tinham sido
alertados.
Na manh� seguinte, chegou Kyra Lebedev, completamente desarmada, para apresentar-se
a Zamatev. Ouviu-a com impaci�ncia, a mente voltada para outras coisas. Quando
terminou seu relato, dispensou-a com um gesto de m�o.
- Tudo bem. N�o ser�o necess�rios. Seja l� o que tenha se passado entre eles, n�o
tem mais import�ncia. Essa tal de Baronas n�o tem a menor import�ncia para n�s.
Nosso homem - p�s o dedo num ponto do mapa - est� em algum lugar nesta �rea. H�
patrulhas motorizadas nestas estradas, rodando sem parar. Se for visto, ser�
seguido e preso.
Continuou, triunfante:
- Mandei que o tenente Suvarov fosse pessoalmente a todos os portos de pesca e
aldeias ao longo do mar de Bering e do estreito, e em algum canto por l� est�
tamb�m Alekhin. H� muito poucos lugares para se esconder, por isso n�s o pegaremos.
Fez uma pausa.
- Um homem foi visto nas montanhas Kolyma, ao norte de Magadan. Mandei helic�pteros
a sua procura, para traz�-lo aqui.
- Acredita que seja o americano? - Duvidou.
- Quem � que sabe? Quem � que poderia estar numa regi�o daquelas?
Foi at� a janela e ficou ali em p�, as m�os apertadas nas costas.
- Temos de estar de sobreaviso, Kyra - a voz abrandara-se. - Isso significa muito,
para n�s dois. Esse prisioneiro tem que ser capturado. Minha carreira depende disso
- voltou-se para ela: - E, como j� deve ter percebido, a sua tamb�m. Voc� est�
muito envolvida nisto tudo, ainda que por livre op��o.
Apertou os l�bios sem nada dizer. Era verdade. Insistira para ficar envolvida e
agora desejava apenas que nunca tivesse aberto a boca.
- N�o pode escapar - disse ela. - Se n�s falharmos, n�o conseguir� ultrapassar a
zona coberta pelos radares.
- N�o tenha tanta certeza assim. Esse homem � como se fosse um fantasma. Dezenas de
vezes pensamos t�-lo apanhado e, em todas, ele simplesmente sumia. Quando se trata
desse americano, n�o tenho certeza de mais coisa alguma. Ele n�o � um ser humano, �
um fantasma!
Kyra aguardava, apreensiva por�m determinada.
- Arkady? - falou suavemente. - Precisamos conversar. Aconteceu uma coisa terr�vel.
Ele virou-se, surpreso com o tom da sua voz.
- O que foi agora?
- Minha irm� foi presa pelo camarada Shepilov. Em conex�o com a fuga do americano.
Explicou tudo, em detalhes. Que Zamatev ficara irritado, podia perceber muito bem.
Obviamente, n�o queria ter mais nada a ver com Shepilov; agora, entrar em contato
com ele, pedir um favor, estava quase fora de quest�o.
- O que ela sabe?
- Nada, a n�o ser...
- A n�o ser o qu�?
- Seu marido, Ostap. Est� sempre envolvido com pessoas que est�o na marginalidade,
gente que trabalha com mercado negro e outras coisas assim. Fui procur�-los por sua
causa. Ostap sempre sabe tanta coisa, tudo que est� sendo comentado pelo povo.
Claro que na maior parte s�o coisas absurdas, mas sempre que alguma coisa est� de
fato acontecendo ele sabe. Pensei que ele poderia nos ajudar a encontrar o
americano. Achei tamb�m que podia nos contar o que estava fazendo Shepilov. Sabia
tudo a esse respeito.
- Sabia, �? - o tom de voz de Zamatev era c�tico.
- Voc� precisa entender, Arkady, que as pessoas assim sempre sabem o que est� se
passando. Quase nada � segredo para elas. E, voc� sabe, sempre h� algu�m que acaba
falando mais do que deveria.
- Foi ele quem me informou que Shepilov estava utilizando os ca�adores de pele e
que estes n�o estavam muito empenhados em ajudar. Claro que, se quisessem, podiam
ter feito muito mais. Mas n�o gostam do camarada Shepilov.
- E onde est� esse Ostap agora?
- Quando Katerina foi presa, escondeu-se na floresta. Depois n�o tive mais not�cias
de nenhum dos dois.
Ele contemporizou.
- Agora, n�o posso fazer nada por sua Katerina. Shepilov simplesmente diria que n�o
sabe nada a respeito dela, e eu nada poderia fazer. � melhor n�o demonstrarmos
interesse. Vai acabar descobrindo que n�o h� nada nela que possa interess�-lo e
ent�o pode ser que a libere. Se for mandada para a pris�o, bem, a� talvez possa
fazer alguma coisa.
De repente, soltou um palavr�o. Quando ela olhou-o, surpresa, ele disse:
- Provavelmente � esse Ostap que est� nos causando problemas. Agora estamos
buscando um homem que foi visto na floresta perto de Magadan e que alguns acreditam
que possa ser o americano.
- Ele poderia ajudar-nos. Conhece os ca�adores de pele. Sabe o que est� acontecendo
entre os dissidentes, entre os judeus...
- N�o quero nem ouvir falar de judeus. Significam problema. N�o quero ter nada a
ver com eles.
- Esse homem que est�o procurando? Se for Ostap, poderia conversar com ele? Talvez
saiba de alguma coisa e poderia dizer-me.
Mostrou-se indiferente.
- Tudo bem. Se n�s o apanharmos.

Joe Mack n�o tinha a menor pressa. Cada quil�metro vencido significava agora uma
vit�ria, mas cada um adiante significava perigo. Observava do alto uma enorme
plan�cie em que havia diversos lagos pequenos, uma �rea a ser evitada. Ali de cima
distinguia os lagos com clareza, assim como o espa�o que havia entre eles. Uma vez
l� embaixo, no mesmo n�vel, podia facilmente cair numa armadilha nas bordas dos
lagos. O gelo, se ainda restasse algum, seria trai�oeiro.
Pelo mapa, podia ver que estava em algum ponto ao norte de um vilarejo denominado
Gizhiga. Embora na �rea que tinha � frente houvesse poucas estradas, com certeza
estariam patrulhadas. A �rea de busca estreitara-se e essa, por sua vez,
intensificara-se muito mais.
Encontrava-se agora no meio de um pequeno conjunto de lari�os, examinando com
cuidado a regi�o que se estendia a sua frente, escolhendo uma rota a seguir e outra
alternativa, caso acontecesse alguma coisa que o obrigasse a mudar o percurso.
O ar estava incrivelmente l�mpido, nenhuma nuvem no c�u, nenhuma neblina nas partes
mais baixas. De vez em quando, bem longe, percebia o brilho de alguma coisa que
poderia ser o sol batendo num p�ra-brisa. Se fosse isso, havia um tr�fego bem acima
do normal pelas estradas.
Mais abaixo nada se movia, salvo junto ao lago mais pr�ximo, onde estavam v�rios
alces. Pareciam estar pastando junto � margem do lago.
O que n�o sabia � que, apenas algumas horas antes, Alekhin descera em Gizhiga.
Outra coisa que ignorava era que a uns cento e oitenta metros dali, escondido num
arbusto, um homem o observava.
Ostap n�o tinha experi�ncia de viver no mato. Fugira de Magadan quando sua mulher
fora presa, escapando por um triz. Fora para a mata, num local em que costumavam
reunirse os ca�adores de pele. Nenhum estava l� quando chegou ao local, no entanto
encontrou comida, lenha e roupas para o frio.
Estava metido numa complica��o bastante s�ria e Katerina tamb�m. Ela n�o sabia de
nada, mas isso n�o era bom para ela, pelo contr�rio, podia at� provocar um efeito
negativo. Ostap h� muito tempo descobrira que � sempre melhor ter alguma coisa para
contar.
Naquela manh�, explorara um pouco a floresta e escalara uma pequena colina. L� em
cima, num lugar protegido do vento, sentou-se para estudar a regi�o. Vira o
americano quase imediatamente; ao primeiro relance, n�o tivera a menor d�vida
quanto � identidade daquele homem.
Sua cautela extrema j� o denunciava. Amedrontado e ao mesmo tempo curioso, Ostap
teve o bom senso de ficar quieto no mesmo lugar. Se desse um passo, revelaria sua
presen�a. O cora��o come�ou a bater-lhe mais pesado.
Isso � que era sorte! Ali estava o homem que todos queriam. Se ao menos conseguisse
captur�-lo...!
Mas isso era pura fantasia. Ostap podia ser de tudo, menos um lutador. Era um
negociante, �s vezes uma esp�cie de conspirador, um velhaco mesmo. Tentar capturar
o americano estava fora de cogita��o. Claro que lhe ocorrera essa id�ia, mais sa�ra
de sua mente t�o logo surgira.
O importante � que agora sabia onde estava o americano. Ele sabia! E esse tipo de
conhecimento valia dinheiro. Valia alguma barganha, seria a oportunidade para
salvar Katerina. Vacilou por um instante: Katerina ou o dinheiro? N�o, tinha que
ser Katerina. Havia uma coisa a que dava mais valor que dinheiro, e essa coisa era
o conforto pessoal. Katerina cuidava dele. E, acima de tudo, compreendia-o.
Aceitava suas fraquezas, sua malandragem, cuidava dele, enfim. Sabia que poderia
conhecer outras mulheres. Ali�s, isso j� acontecera uma ou outra vez, mas exigiam
muito dele, queriam dinheiro, queriam seu tempo. Katerina n�o, aceitava-o assim
como era, e portanto n�o havia pre�o que pagasse essa fidelidade. "Claro", dizia
consigo mesmo, "que podia conseguir alggn dinheiro por fora tamb�m".
Mas com quem deveria falar? Agora se encontrava muito distante de Magadan, sem
nenhum contato com as pessoas de l�. Al�m do mais, se retornasse � cidade seria
imediatamente preso.
Tinha que ser algu�m mais pr�ximo, algu�m que estivesse ligado � busca. No entanto,
se tivesse de negociar a liberdade de Katerina, tinha que ser com algu�m em posi��o
de comando. Algu�m capaz de na hora dizer sim ou n�o. E isso significava, para ele,
ou Shepilov, ou Zamatev.
N�o havia possibilidade de conversa com Shepilov. Aquele l� o deteria para
interrogat�rio e ele seria torturado at� dizer tudo o que soubesse. Com Zamatev,
por�m, podia negociar. Al�m do mais, tinha um canal de acesso a ele, tinha Kyra
Lebedev.
Esperaria um pouco mais para ver que dire��o tomaria o americano e a� se dirigiria
para Evensk.
Permaneceu im�vel, � espreita. Ser� que o fugitivo atravessaria a plan�cie,
caminhando entre os lagos? O caminho seria bastante longo e havia muito terreno
pantanoso por l�, sendo que parte dele ainda estaria congelada.
Joe Mack foi andando pela borda da floresta e tomou a dire��o norte. Ostap esperou
apenas mais alguns minutos, Levantou-se e correu colina abaixo, descendo por uma
trilha quase apagada que o conduzia at� a estrada. � medida que se aproximava
percebia o ronco dos motores; viu quatro ve�culos vindo pela estrada, em dire��o a
Evensk. Quando o viram, os carros diminu�ram a marcha e pararam; o homem no carro
da frente fez sinal para que se aproximasse.
Temeroso, mas impossibilitado de evitar aquele encontro, foi at� o homem que fizera
o gesto. Nunca o vira antes, por�m logo percebeu estar diante daquela figura
lend�ria: Aquele s� podia ser Alekhin.
- Onde est� indo?
- Para Evensk. Tenho que falar com o coronel Arkady Zamatev ou com a camarada
Lebedev.
Alekhin olhou para ele pensativo; olhos achatados e as p�lpebras ca�das n�o
revelavam nada.
- Por que precisa falar com Zamatev?
Ostap hesitou. Se contasse para Alekhin, n�o obteria nada, coisa nenhuma.
- Tenho informa��o sobre o americano - e completou com firmeza: - E essa informa��o
s� pode ser dada a uma pessoa, a mais ningu�m.
Alekhin encarou-o. Podia retorc�-lo com as pr�prias m�os se quisesse. Podia rasg�-
lo como a um peda�o de pano velho, mas ningu�m intercepta informa��o dirigida a
Zamatev.
Inclinando-se no assento, ordenou ao motorista:
- Boris! Leve esse a� at� Evensk! Telefone para o coronel Zamatev! Se n�o
conseguir, fale com a camarada Kyra Lebedev! R�pido! E a� traga-o de volta para
mim, a n�o ser que o coronel mande que fique por l�.
Voltou-se para Ostap.
- Fale com ele. Conte para ele. � melhor ter boa informa��o, sen�o vai se entender
comigo depois. Agora v�.
Em Evensk, a liga��o n�o estava muito boa, no entanto Boris o p�s em contato com
Kyra.
- O que pode nos dizer, Ostap? - Sua voz era abrupta e impaciente.
- Eu o vi - n�o escondia a satisfa��o - o americano.
- O qu�!?
- Quero que Katerina seja libertada - acrescentou - e alguma coisinha pelo trabalho
todo. Est� entendendo?
- Mas voc� o viu mesmo?
- Garanto que n�o est� a sua espera - retrucou -, mas, se forem r�pidos, n�o pode
estar mais do que a alguns quil�metros de dist�ncia.
- Descreva-o. - Ostap era bom observador. Sua descri��o foi r�pida, precisa e
sint�tica.
- Quem telefonou foi um dos homens de Alekhin. Como o encontrou?
- Alekhin foi para o norte, � procura do americano. N�o contei nada para ele. Quero
que Katerina seja libertada.
- J� sei - respondeu brusca -, e alguma coisinha para voc�?
- Podia ter falado com o camarada Shepilov - lembrou-lhe.
- Katerina ser� libertada. Leve Alekhin at� o local em que o viu. Estarei l� dentro
de uma hora. Se isso for conversa mole...
- N�o �.
Assim que saiu da sala, disse a Boris:
- Leve-me at� Alekhin. Sei onde est� o americano.
- Ouvi voc� falando - comentou Boris. - Devia ter dado a informa��o l� mesmo na
estrada.
- Katerina � minha mulher. Shepilov mandou prend�-la. Quero que seja solta.
- Al�m de alguma coisinha para voc� - completou Boris. - Tudo que a Uni�o Sovi�tica
precisa � de alguns patriotas assim como voc�.
Ostap enrubesceu, mas n�o disse nada. Boris era o tipo de homem competente e dur�o.
Quanto menos se diz para uma pessoa assim, melhor.
Boris estava dizendo alguma coisa no r�dio. A seguir, saltam no carro, dirigindo
com velocidade. Ostap se segurava para n�o cair nas curvas fechadas, o carro
pulando pela estrada esburacada que em alguns trechos era pouco mais do que uma
trilha.
Alekhin aguardava-o parado junto � estrada. Enfiou a m�o dentro do carro e puxou
Ostap para fora.
- Diga-me! Onde?
- L� adiante, onde come�am as �rvores.
- Fique para tr�s! - ordenou Alekhin, que seguiu andando. Ostap observava-o e
disse:
- Junto �quela �rvore velha! A esquerda!
Amedrontado, Ostap conduziu-o at� onde estivera e apontou. Alekhin andou um pouco
por ali, parou e come�ou a olhar para os lados, muito devagar, com todo o cuidado.
O americano deixava escassos sinais de passagem. Deu um passo, continuou olhando
bem, olhou de novo.
Sim, havia uma min�scula marca no musgo, ao p� da �rvore. Algum animal ou ser
humano estivera ali. Vagarosamente, com o m�ximo cuidado, come�ou a pensar no sinal
deixado. Como sempre, era muito pouco o que o americano deixava em passagem.
Caminhou de volta at� o local em que ficara Boris e ordenou o que devia ser feito.
- H� estradas em tr�s dire��es! Quero patrulhas, patrulhas bem vagarosas! Dia e
noite! N�o pode escapar desta �rea! Est� me entendendo?
- E ele? - Boris apontou um dedo para Ostap.
- Deixe-o a� mesmo. N�o h� tempo para lev�-lo de volta. Al�m do mais, o coronel
quer falar com ele.
Alekhin fez uma pausa, refletindo um pouco, e completou:
- Se n�o o tivermos pegado at� a noite, quero carros pela estrada com luzes
especiais. Quero que seja pego. Quero-o detido. Se precisarem atirar, atirem nas
pernas. Quebrem suas pernas, mas n�o o matem.
L� pelo meio-dia, Joe Mack sabia estar encurralado. Por uma falha nas �rvores
espalhadas, percebera in�meros ve�culos na estrada abaixo. Andando para o norte,
vira mais carros ainda, impedindo que avan�asse naquela dire��o. Ent�o sabiam que
estava ali. De alguma forma, tinham-no visto. De alguma forma, sabiam com toda a
certeza que estava ali. Cauteloso, cConseguiu avan�ar um pouco mais para noroeste,
por um terreno in�spito. Fora encurralado num dos poucos locais em que havia
estradas pelos tr�s lados em volta, ainda que fossem apenas um pouco melhores do
que simples trilhas.
Num passo r�pido, que n�o chegava a ser de corrida, dirigiu-se para o norte. Sabiam
onde estava, desta vez n�o iriam deix�-lo escapar. Tentaria, por�m suas chances
eram m�nimas. Iam peg�-lo mesmo, portanto, o que podia fazer?
Claro que, mais uma vez, podia tentar fugir, mas agora n�o lhe dariam a menor
oportunidade. Deixariam-no aleijado, ou ent�o seria preso com algemas t�o apertadas
que n�o poderia escapar. Mas, e se pudesse?
Esconderia seu arco e as flechas. Esconderia a faca. Esconderia o pouco de comida
que tinha secado e defumado. Esconderia seu casaco de pele de cabra ou, melhor
ainda, o terno e a camisa.
Logo estariam varrendo a �rea com helic�pteros e tropas pelo solo. Ele,
naturalmente, lutaria at� mat�-los ou at� ser morto.
Essa era a �nica maneira.
Embrenhou-se pelo mato avan�ando mais ao norte, mas, quando tinha ido apenas um
pouco adiante, percebeu da crista da montanha, ao longe, o brilho do sol no p�ra-
brisa dos carros. Poderia tentar correr entre eles, mas deviam estar preparados
para isso e certamente atirariam.
� medida que caminhava, buscava com os olhos um lugar onde pudesse se esconder,
qualquer lugar que fosse em que n�o pudessem ach�-lo.
Nada havia ali que n�o fossem pedras lisas, �rvores espalhadas e um ou outro
conjunto de b�tulas. Ao norte, ouvira dizer, n�o havia �rvore alguma.
Diminuiu o ritmo dos passos. Tinha consigo o AK-47 e alguma muni��o. Tinha o
rev�lver. Deixaria a pistola de reserva. Mas tinha que ser logo.
"Muito bem, Joe Mack", disse consigo mesmo, "voc� conseguiu criar alguns problemas
para eles. Agora veremos. Resistir ali, onde posi��es de defesa eram raras, seria
um esfor�o perdido. Podia, talvez, matar alguns antes de ser pego, mas n�o
liquidaria aqueles que mais desejava."
Agora caminhava, escolhendo com cuidado o percurso, sempre atento para algum
eventual esconderijo. Nada encontrou que n�o pudesse ser descoberto em menos de
cinco minutos. Alguns lugares como aquele costumavam ter bons esconderijos; al�,
por�m, n�o encontrava nenhum.
Ent�o, estava tudo terminado? "Talya", disse consigo mesmo, "voc� n�o ia gostar de
ver isso aqui. Por�m, tivemos nosso sonho. E o tivemos durante algum tempo."
N�o podia desistir. N�o podia se entregar. Aqueles n�o eram os homens que queria.
Zamatev era um, Alekhin, o outro. Esses a� n�o passavam de joguetes utilizados
pelos dois. Bons soldados alguns deles, soldados prontos a executar ordens, da
melhor maneira poss�vel.
Fez um tremendo esfor�o para manter-se calmo. Agora tinha que pensar com frieza,
planejar. A noite vinha chegando, e com ela talvez houvesse uma possibilidade.
Da encosta de uma montanha, observou a estrada l� embaixo. Dois carros tinham
parado e os soldados conversavam entre si. Havia outros espalhados pela estrada,
que n�o passava de uma trilha, Agachado ao p� de uma �rvore, tentava pensar em
alguma coisa que pudesse fazer, qualquer coisa.
Nada. Absolutamente nada a fazer. Fora encurralado! Podia contar com maus-tratos,
podia contar com tortura. Agora n�o se permitiriam o menor risco com ele. Pensou na
fam�lia de Pennington, que nunca ficaria sabendo que o qu�mico n�o os abandonara.
Nunca, por nenhum momento sequer, havia se esquecido deles ou da mensagem que tinha
para lhes transmitir.
Alekhin! Aquele formid�vel Yakut venceria finalmente. Muito devagar, com toda a
cautela, desceu a montanha, mantendo-se encoberto. Sabia que Alekhin estaria bem
atr�s. Sabia que sua trilha estava sendo lentamente descoberta e que Alekhin teria
soldados consigo. Nos tr�s lados, agora, havia soldados alinhados e ve�culos em
movimento, e ele ia se dirigindo para baixo, para o norte. Atr�s dele, vinha
Alekhin.
Olhou para os carros, para os soldados. Ser� que atirando conseguiria ultrapass�-
los? Imposs�vel. Havia soldados demais, espalhados por todos os lados.
Agachou-se junto a uma �rvore para estudar um roteiro a seguir e a� percebeu uma
longa fenda na rocha. De repente, p�s-se em movimento. Depositou o arco e as
flechas na fenda, colocando a pistola e a muni��o dentro da aljava. Quando estava
tudo bem escondido, colocou casca de madeira e algumas folhas secas por cima. A
terra estava por demais congelada para ser utilizada.
Tinham-no visto com o AK-47, portanto, mantivera-o. Podia descer at� l� e chegar
atirando, mas duvidava que dessem ordens para os soldados atirarem, a n�o ser que
fosse em suas pernas. Queriam-no com vida, mas ele n�o desejava ficar aleijado. Se
ficasse, sua �ltima e �nica oportunidade estaria perdida. Ia precisar muito
daquelas pernas.
Zamatev n�o estava l� embaixo. Nem Alekhin. Desceu pela colina e pisou em campo
aberto.
- Est�o me procurando? - perguntou.

CAP�TULO 45

Ficaram todos perplexos. Lentamente, os rev�lveres apontados, foram fazendo um


cerco a sua volta. Um arrancou o AK-47 de suas m�os; outro, um homem em trajes
civis, atingiu-o nos rins com a coronha de um rifle. Come�ou a cair, recuperou o
controle e permaneceu em p�. Puxaram-lhe as m�os para tr�s e prenderam-nas com
algemas.
V�rios homens se movimentavam a sua volta, afastando os soldados. Eram agentes da
KGB e pelo visto havia uma certa animosidade entre eles e os soldados, que
observavam aquela movimenta��o com fisionomias neutras. Joe Mack permanecia com o
olhar fixo, a mente trabalhando febrilmente.
Que outra coisa poderia ter feito? Estava cercado, havia um grande n�mero de
soldados chegando cada vez mais perto; e l� em cima n�o existia esconderijo algum.
Nem sequer um lugar para aguard�-los numa posi��o que lhe fosse favor�vel. Tudo ali
eram pedras nuas, uma ou outra �rvore espalhada, algumas manchas de neve no ch�o.
Sabia que ia apanhar. Esperava at� ser torturado. Era capaz de resistir bem � dor.
J� passara por tudo isso antes, mas o que tinha de fazer era fugir outra vez. Se
tivessem atirado em suas pernas, n�o teria a menor chance. Agora podia pelo menos
ter alguma esperan�a.
H� muito tempo, quando os de seu povo foram aprisionados por outras tribos �ndias,
tinham resistido � tortura e, como dissera o poeta, "n�o piscaram nem choraram em
voz alta".

Os �ndios sabiam como resistir � dor, como rir de seus torturadores. Muitas vezes,
se demonstrassem valentia, a tortura era interrompida e o �ndio admitido na tribo
que o fizera prisioneiro. Alguns dos homens da montanha tinham sobrevivido ao mesmo
tratamento. Joe Mack estava jogando o maior jogo de toda sua vida e suas chances de
fuga eram uma contra mil; por�m, se fosse ferido por uma bala ou aleijado, n�o
teria nem mesmo essa chance.
Um oficial estava falando ao r�dio. Os soldados permaneciam em volta, curiosos.
Ignorava-os, a postura ereta, o olhar fixo nas montanhas onde desejava estar. O
cora��o batia-lhe com toda a for�a e se perguntava se seria suficientemente
corajoso e valente, se era de fato o homem que desejava ser, o homem que treinara
para conseguir ser. "Agora", murmurou consigo, "voc� vai ficar sabendo". Tinham-lhe
contado a hist�ria de um bisav� que fora capturado pelos guerreiros Blackfeet,
torturado e por fim queimado, preso numa estaca. E, mesmo quando as chamas cresciam
a sua volta, continuava rindo dos que o torturavam. Cantara sua can��o de morte
numa voz firme e os Blackfeet ficaram maravilhados. Um antigo guerreiro de sua
tribo lhe contara a hist�ria. Seria ele um homem de qualidade?
Um dos agentes da KGB aproximou-se dele.
- Alekhin vem vindo - disse. - Se sobrar alguma coisa, teremos nossa parte.
Joe simplesmente olhou-o e o homem, furioso, deu-lhe um tapa na boca. A fisionomia
de Joe Mack permaneceu impass�vel. Com mais raiva ainda o homem empurrou-o, chutou-
lhe os p�s e, quando ele caiu, chutou-lhe as costelas com viol�ncia. A� chegou mais
perto, afastando uma perna para outro chute. Joe Mack rolou o corpo no ch�o,
desviou-se do chute e o homem caiu, desequilibrado. Os soldados riam.
Enfurecido, o agente ergueu-se, alcan�ou um peda�o de pau pesado e come�ou a bater
em Joe Mack, descontrolado. Atingia-o na cabe�a, ombros e costas. Desviando a
cabe�a, Joe Mack evitara os golpes mais fortes, mas tinha um corte no couro
cabeludo e o sangue escorria-lhe sobre o rosto.
De repente, um carro fez uma curva fechada e parou. Dele desceu Alekhin. Joe Mack
reconheceu-o imediatamente por causa da pequena mecha branca, onde o cabelo perdera
a cor sob uma velha cicatriz.
Alekhin caminhou at� ele.
- Ent�o! Temos voc� mais uma vez! Agora veremos! - Voltou-se para os agentes da KGB
e indicou um antigo est�bulo que ficava ali perto. - Levem-no l� para dentro.
Um oficial russo come�ou a dizer alguma coisa, mas Alekhin deu-lhe as costas,
dizendo sobre os ombros:
- Sua presen�a n�o � mais necess�ria. V�.
Ostap desceu do Volga. Viu o sangue no rosto de Joe Mack e sentiu n�useas. N�o
sabia o que fazer. Ningu�m o mandara embora e n�o havia como pudesse ir por sua
conta. Tinha que ficar e esper�-los. Estava com medo, O oficial afastara-se
furioso. Seus homens estavam entrando em forma��o e dirigindo-se para os caminh�es.
Ostap gostaria de ir com eles, mas n�o fora dispensado e temia desagradar Alekhin.
Fazia muito frio, queria estar de volta a Magadan. Ser� que Katerina fora solta?
Cumpririam o acordo que fizera? Por que iam querer mant�-la na pris�o, afinal? N�o
sabia coisa alguma.
Encolheu os ombros contra o vento que soprava frio e afundou as m�os no fundo dos
bolsos. Havia diversos agentes da KGB em p� por ali, conversando entre eles.
De repente ouviu um barulho surdo que vinha de dentro do est�bulo, depois outro e
mais outro. N�o ouvia gritos. Um dos agentes da KGB aproximou-se dele sorrindo.
- Desta vez ele aprende! Esses homens s�o uns artistas! Sabem como espancar algu�m.
Voc� vai ouvir os gritos! - N�o gritou. Logo depois sa�ram dois homens do est�bulo,
o suor pingando do rosto, os punhos sujos de sangue. Dois outros entraram. Ostap
virou-se de lado, sentindo enj�o. Ele provocara aquilo. Ele dissera onde estava o
americano. Muitas vezes antes, ao ouvir hist�rias desse tipo, dera risada,
encolhera os ombros.
- Assim eles aprendem.
Dissera isso ent�o, dissera isso in�meras vezes. Afastou-se um pouco, tr�mulo,
desejando ter coragem para sair daquele lugar ou pelo menos achar um jeito de sair.
Os carros da KGB eram os �nicos que tinham ficado.
Alekhin surgiu, dando ordens. Zamatev vinha chegando. Deviam montar uma barraca
para ele. Pretendia fazer certas perguntas ali mesmo. Depois levariam o americano
embora, para ser conduzido mais tarde de volta � pris�o.
Alekhin sorria.
- Parem com tudo! - gritou. - � preciso deixar um pouco de sobra para o coronel!
Agora vamos beber alguma coisa! A barraca estava sendo armada rapidamente e algumas
cadeiras de dobrar e uma mesa foram levadas para dentro. Alekhin respirou fundo,
sentindo o ar da montanha. De repente, seu olhar percebeu Ostap.
- Ah! � voc�! Venha tomar alguma coisa conosco, depois eu o mando de volta para
Evensk! Eu at� que iria junto, mas nosso bom coronel deseja encontrar-se com o
namorado antes que seja removido - deu uma risadinha. - N�o que haja muito ainda
para remover.
- Eu n�o o ouvi gritar - soltou Ostap, sem querer. - Pensei que...
Alekhin deu de ombros.
- Ele n�o gritou. Esse a� � dur�o mesmo.
Sorriu, observando Ostap com seus olhos escuros, amendoados.
- Mas Zamatev vai encarregar-se disso e, depois de Zamatev, eu novamente - deu um
tapinha no ombro de Ostap. - Muito bem! Sem sua colabora��o n�o o ter�amos pego!
Talvez demor�ssemos ainda algumas semanas!
Ostap voltou-se em dire��o ao est�bulo. A porta fora fechada e um pino de ferro,
colocado numa corrente curta, mantinha fechado o anel em volta da ma�aneta.
Havia dois agentes da KGB perto do Volga em que viera Alekhin. Um terceiro estava
junto ao outro Volga.
- Mikhail, - disse Alekhin - vou servir uma bebida a este jovem. Depois voc� pode
lev�-lo de volta no carro, est� bem? N�o precisaremos dele aqui, nem de voc�.
Alekhin puxou Ostap pelo bra�o.
- Venha! Um copo de vodca antes de enfrentar a estrada! - Alekhin cutucou-lhe o
bra�o. - Quem sabe dois copos!
Uma hora depois, meio alto j�, saiu para a escurid�o fora da barraca. Os dois
agentes da KGB estavam sentados dentro do Volga de Alekhin, compartilhando uma
garrafa.
Ostap tinha que passar diante do est�bulo para chegar ao outro Volga onde Mikhail
parecia estar adormecido, aguardando.
O que o fez agir daquela forma, n�o sabia dizer mas ergueu o pino e deixou-o cair
junto � porta. Soltou a corrente.
"Agora!" Disse, e caminhou at� o Volga. Mikhail despertou.
- �timo! - exclamou. - Queria mesmo ir at� a cidade - olhou para Ostap. - Tenho uma
amiga l� e talvez ela tenha uma amiga para voc�. Tem alguns rublos a�?
- Um pouco. Gostaria de conhecer sua amiga.
Amoleceu o corpo no banco, procurando n�o pensar em absolutamente nada. Por que
fizera aquilo? O homem estava liquidado, mas... Balan�ou a cabe�a para afastar o
pensamento. Se eles descobrissem, a� ele � que teria problemas bastante s�rios.
Ca�do naquele ch�o imundo e frio, o corpo amortecido de tanta dor, Joe Mack ouvira
o pino cair, ouvira a voz baixa e a palavra "agora!"
O c�rebro estava obscurecido pela dor. Um pensamento vago dizia-lhe que tinha uma
contus�o. O que significava aquele agora!? De repente, um raio de luz pareceu
cruzar as n�voas de seu c�rebro.
Agora! E o barulho da corrente. Balan�ou a cabe�a e quase desmaiou de dor.
Agora! Dobrou-se, aproximando o tronco dos joelhos, procurou vencer a dor que a
movimenta��o lhe provocava e desceu os punhos algemados sobre as n�degas. Rolando
sobre o corpo, colocou os joelhos no tronco e fez com que os p�s passassem pelo
c�rculo formado pelos bra�os e algemas, que assim ficariam a sua frente. Algu�m
erguera o pino. Talvez a porta abrisse. Prestou aten��o nos sons, nada ouvia sen�o
vozes baixas e, em algum local um pouco mais afastado, sons de risada.
Agarrou-se a um dos postes que apoiavam o teto do est�bulo e usou-o como suporte
para erguer-se. Ficou ali em p�, escorado, o c�rebro formigando. Cambaleou e caiu
de encontro ao poste em frente. Segurou-se nele, esfor�ando-se para ouvir alguma
coisa. Sentia seu rosto duro, meio estranho. Ergueu as m�os at� ele e tocou-o com
cuidado. O rosto estava empapado de sangue, misturado ao seu cabelo. Quando se
mexeu, a dor foi lancinante. Pensou que estava tamb�m com uma costela quebrada.
Fazia um esfor�o tremendo para clarear as id�ias, o c�rebro amortecido. Tinha que
raciocinar, tinha que agir. Havia algu�m l� fora. Algu�m mantendo guarda. Achavam
que tivessem batido nele de forma a deix�-lo incapaz de qualquer a��o. Talvez
tivessem mesmo. S� podia saber tentando. Deu um passo at� a porta, tr�mulo e
cuidadoso. Delicadamente, tocou-a com os dedos. Apareceu um fio de luz.
Com mais cuidado ainda, alargou aquele fio de luz. Do outro lado havia uma barraca
em forma de pir�mide, com luz dentro e diversos homens sentados. Podia perceber
suas sombras contra a luz. Viu o Volga com os dois homens sentados dentro, de
costas para ele, conversando. A m�o de um deles, fora do carro, segurava uma
garrafa. Mais adiante, estacionados lado a lado, tr�s caminh�es.
A cabe�a pesada de dor tinha mesmo dificuldade em fazer com que seu olhar se
mantivesse em foco. Dentro dele, alguma coisa o impulsionava para diante, alguma
coisa que dizia Agora! Agora! E outra coisa que o prevenia de que se n�o fosse
agora, nunca mais seria.
Deu um passo, cambaleou e quase caiu, recuperou o equil�brio e foi em dire��o ao
Volga. A porta do carro estava aberta e a m�o ainda segurava a garrafa, estendida
para fora. Podia ouvir o homem resmungando e um ronco. O outro estava dormindo!
Um passo mais perto. Outro. Seu antebra�o deslizou sobre a garganta do homem e a
outra m�o escorregou para o lugar certo. O agente da KGB tentou erguer-se, reagiu
brevemente, mas entregou-se. Erguendo-o para fora do carro, Joe Mack revistou-o
rapidamente, com experi�ncia. Pegou o rev�lver e a muni��o. Dando a volta no carro,
Joe puxou o b�bado para fora do seu lugar na dire��o e atirou-o ao solo. Quando o
homem come�ou a se levantar, deu-lhe um chute.
Por um instante, Joe Mack permaneceu im�vel. A cabe�a girava, a vis�o fora de foco.
Endireitou-se e, ajoelhando-se, revistou o homem que chutara, conseguindo mais um
rev�lver e muni��o.
Procurou as chaves no carro. Estavam no contato. Sentia-se meio zonzo, quase como
se tamb�m estivesse b�bado, por�m alguma for�a interior impelia-o � a��o. No
assento de tr�s havia um rev�lver, algo diferente mas semelhante ao AK-47. Pegou-o
e virou-se em dire��o � barraca. Naquele exato momento o pano que ficava na entrada
da barraca fora empurrado e sa�ra um homem. O c�rebro fervilhando, Joe Mack apontou
o rev�lver para a barraca e atirou, produzindo uma s�rie de explos�es cont�nuas.
Depois, voltando-se para os caminh�es estacionados, disparou uma rajada. Atirou no
tanque de gasolina mais pr�ximo e viu as chamas ganharem altura e serem agitadas
pelo vento.
Entrando no Volga, virou o carro em dire��o � estrada e saiu com velocidade. L�
atr�s ouviu um estouro surdo quando explodiu o tanque de g�solina.
Uma estrada bem ruinzinha seguia em dire��o ao norte e ele se decidiu por ela. Os
olhos estavam t�o inchados que mal se abriam, eram apenas dois c�rculos atrav�s dos
quais procurava enxergar alguma coisa. Tentou com os dedos for�ar as p�lpebras a se
abrirem mais, sem muito sucesso. A cabe�a latejando, o corpo estourando de dor a
cada movimento, foi guiando para o norte. A�, como se estivesse b�bado, come�ou a
cantar The Frozen Logger.
A estrada era sinuosa e cheia de buracos, quase uma trilha a maior parte do tempo,
mas continuou guiando e, depois de um certo tempo, apagou os far�is. A lua surgira
e conseguia ver o suficiente para poder dirigir.
Esfor�ava-se para raciocinar com alguma clareza, todavia a cabe�a estava meio
amortecida. Onde estava? Na Sib�ria. Dirigia um Volga, numa estrada que ia para...?
N�o sabia onde. A preocupa��o come�ava a se fazer presente. Havia algo que tinha de
fazer, algo que tinha de descobrir. Era...
Tinha que abandonar aquele carro. Era uma maneira t�o f�cil de viajar, por�m o
mantinha preso � estrada e estariam procurando justamente pelas estradas. Logo,
logo, estariam procurando.
N�o tinham tomado seu rel�gio. Revistaram-no atr�s de alguma arma. O resto ficara
para Alekhin, E Alekhin provavelmente estava morto, N�o, n�o sabia se Alekhin
estava morto. Disparara um ou dois tiros em dire��o � barraca. A luz se apagara,
percebera a confus�o l� dentro e a barraca pegara fogo. Muitos deles podiam ter
escapado.
H� quanto tempo dirigia? N�o sabia. H� muito tempo, talvez. Logo mandariam
helic�pteros a sua procura. Os quil�metros rolavam sob o carro. N�o ia depressa;
seria imposs�vel, naquela estrada.
Havia um rio logo adiante. Podia ver o luar refletido no gelo. Parou o carro e
examinou cuidadosamente o que havia dentro. Ra��es de emerg�ncia para duas pessoas,
duas garrafas de vodca fechadas e ainda mais muni��o. Encheu os bolsos, virou o
carro na dire��o do rio e levou-o at� alguns chor�es debru�ados junto � margem.
Deixou-o l� e dirigiu-se para leste, rumo �s montanhas.
Precisava descansar. Suas pernas, a cabe�a, o corpo todo estava contundido,
machucado. Cada passo era uma verdadeira agonia, mas seguia em frente. Quase n�o
havia mais neve, mas a terra permanecia congelada e �spera. Havia poucas �rvores.

Ia ser dif�cil encontrar esconderijo. Continuou lutando para prosseguir, zonzo de


dor, a cabe�a tonta pelas pancadas, "Talvez uma contus�o grave na cabe�a", dizia
consigo mesmo. Esperava que n�o fosse verdade.
Devia ter pegado um sobretudo dos agentes da KGB. Estava frio e tudo que tinha era
uma manta de pele que pegara no Volga. Apertou-a bem junto ao corpo e prosseguiu,
claudicante. Caiu duas vezes e, em cada uma delas, levantar-se exigiu um esfor�o
tremendo.
N�o conseguia raciocinar direito. Tinha ainda suficiente consci�ncia para perceber
isso. Continuava pensando em Talya, esperando encontr�-la. Mas como faria para que
seus destinos se cruzassem novamente?
N�o tinha mais nenhum mapa. Que rio seria aquele em que deixara o Volga? Era um rio
grande. Podia ser o Omolon. Caiu mais uma vez, apoiando-se nas m�os, cujas palmas
ficaram laceradas pela aspereza da terra congelada. Levantou-se. Era imposs�vel
prosseguir. Olhou para as algemas. Tinha de se ver livre delas.
Olhou em volta, piscando devagar. N�o sabia onde estava. Sabia o que fazer com as
algemas. Tinha um peda�o de arame. Leste, tinha de ir para leste. Fora esse o rumo
seguido por aqueles seus ancestrais antigos em busca de ca�a at� o continente
americano, naqueles tempos em que o estreito de Bering ainda n�o existia.
Estreito de Bering? O que era isso? Uma necessidade interior, alguma coisa para se
buscar. Seguiu cambaleando at� o leito seco de um riacho, num lugar em que a
ribanceira oferecia-lhe um abrigo contra o vento.
Faria uma fogueira. Precisava de uma fogueira. N�o queria congelar. Mas uma
fogueira chamaria a aten��o. N�o, n�o chamaria se n�o houvesse fuma�a.
Madeira seca. Precisava de madeira seca. Desajeitado, conseguiu reunir o tanto que
queria. Encontrou um pouco de musgo seco, catou um pouco de mato ressecado e juntou
tudo isso. Fez em cima uma esp�cie de cone com os gravetos e riscou um f�sforo.
Enrolando-se perto da fogueira, retirou a tira de metal bem fina e come�ou a lidar
com as algemas. Eram de um modelo bem antiquado, mas suas m�os estavam esfoladas e
sem destreza. Depois de t�-las retirado, colocou vodca sobre os cortes. Enxugou
tudo com um len�o e com a pele de sua roupa. Tampou a garrafa, encolheu-se de
encontro � ribanceira e procurou dormir um pouco.

CAP�TULO 46

Tr�s semanas mais tarde, Joe Mack estava encolhido dentro de uma caverna sobre um
dos afluentes menores do rio Oman.
O terr�vel espancamento que sofrera n�o lhe diminu�ra a coragem, mas alguma outra
coisa. Nem sabia muito bem o que era, sabia apenas que estava muito doente.
Dia ap�s dia, labutara atrav�s de sol e tempestades, vencendo a dist�ncia, quase
sempre � noite, quando havia alguma, no rumo leste. Acampara no frio, dormira em
galhos sobre o solo congelado. Seus p�s estavam em p�ssimo estado, precisava de
mocassins com urgencia.
Quando se acabaram as ra��es de emerg�ncia tiradas do Volga, subsistira pegando
alguns ratos-da-montanha.
Logo depois de ter abandonado o Volga, a regi�o fora varrida por helic�pteros e
avi�es; durante a maior parte do tempo ficara encolhido atr�s de um barranco de
argila, perto de alguns �lamos mortos e poucos salgueiros dispersos, um lugar
sobrevoado in�meras vezes pelos avi�es, mas onde seus perseguidores n�o imaginariam
que sequer um rato selvagem conseguisse se esconder. Durante tr�s dias, ficara sem
comer nada; depois pegara algum peixe numa armadilha que tecera com a fibra de
diversas plantas.
A primavera chegara, a tundra rebrilhava com o colorido das flores silvestres. Era
o mesmo tipo de flores que em seu pa�s cresciam junto ao tronco das �rvores.
Construiu novo arco e flechas, assim como uma funda, mas era esta que acabava
servindo melhor. Achara a caverna por acaso, ao se ajoelhar numa pedra gelada,
perto de um pequeno riacho. Quando estava se levantando, percebera a abertura. N�o
tinha mais do que um metro de altura e um pouco menos de largura. A entrada estava
escondida por alguns pinheiros an�es, e quando entrou para examinar o local
descobriu uma caverna espa�osa com o ch�o arenoso.
N�o seria o primeiro a utiliz�-la. Algu�m mais, muito tempo antes, fizera fogueiras
ali. Percebeu uma rachadura que servia de chamin� e juntou v�rios peda�os de
madeira trazidos pelo pequeno riacho, al�m de galhos quebrados que encontrara sob
os pinheiros.
Pela primeira vez em muitos dias, sentia-se aquecido. Num desfiladeiro a uns
oitocentos metros dali, encontrara algumas b�tulas. Recolhera algumas cascas para
fazer uma capa de chuva, aproveitando as folhas para misturar com a vodca que assim
serviria para esfregar nas pernas machucadas.
Apesar de a primavera j� ter chegado, as noites eram de um frio cortante, o c�u
l�mpido e as estrelas incrivelmente brilhantes. Estava sempre com frio, encolhido
junto � fogueira, como alguma criatura da idade da pedra. Fizera mocassins com a
pele dos ratos selvagens, mas gastavam muito depressa e ainda n�o pudera encontrar
algum animal maior. Uma vez ou outra notara estrume de cabras da montanha, todavia
n�o chegara a ver nenhuma. Uma vez chegou perto dos rastos de um urso bem grande,
um enorme animal, a julgar pelo tamanho das pegadas. Tranq�ilizava-se com a id�ia
de que nenhum urso daquele tamanho conseguiria agora entrar em sua caverna, embora
a abertura j� tivesse sido bem maior, em tempos anteriores. As enchentes tinham de
tal forma acumulado areia e pedra que grande parte da abertura original fora
coberta.
Vivia como se fosse um animal, mas um animal fraco, sempre com pouca comida, nunca
com fogo suficiente para sentir-se realmente aquecido. Havia pouca lenha e logo
teria que seguir em frente, Tinha que prosseguir. Repetia isso para si mesmo,
encolhido, tremendo junto � pequena fogueira. Tinha que prosseguir, descobrir um
outro lugar, tentar ca�ar animais maiores, para comer. H� quanto tempo n�o comia
at� sentir saciada a fome? H� quanto tempo que s� tomava refei��es das mais pobres?
Contudo fazia j� muitos dias que vira um avi�o, dias e dias sem que passasse nenhum
helic�ptero. Sem d�vida tinham desistido dele, certos de que tinha morrido e,
afinal, era para estar morto mesmo. Fora chutado e socado, apanhara de pau e cintos
de couro duplo, mas sabia que isso n�o representava absolutamente nada, comparado
com o que o esperava se fosse recapturado. Esses espancamentos eram brutalidade
pura, sem o refinamento da tortura que podia esperar de Zamatev.
Tinha horror � id�ia de movimentar-se. Tinha horror ao frio, ao vento, �s noites
sem fogo, �s chuvas frias, geladas. Seria, talvez, muito mais f�cil deitar-se ali e
morrer.
Por que lutar numa batalha perdida? Mesmo que conseguisse atingir o litoral, como
seria poss�vel cruzar o estreito de Bering ou mesmo o mar Chukchi?
No entanto, quando a manh� chegou, apanhou seu arco, as flechas e mais uma vez
retomou a caminhada. Nunca voltara para pegar as coisas que escondera. Tivera medo
de perder aquela oportunidade, de atrasar-se em rela��o aos seus captores, por
isso, dirigira o Volga at� que a gasolina estivesse quase terminada.
Teriam encontrado o carro? Sem d�vida, embora o tivesse deixado escondido entre os
salgueiros e sobre gelo que j� teria derretido �quela altura.
N�o pensava mais em Alekhin, nem em Zamatev. Nem sequer pensava mais em Natalya.
Todas essas coisas faziam parte agora de um outro mundo, de um mundo distante, um
mundo onde havia carne de sobra para comer, onde havia calor. H� algumas semanas
vinha meramente sobrevivendo, nos limites de resist�ncia de um ser humano, mas para
que tudo isso? Se fosse encontrado agora n�o estaria em condi��es de resistir, nem
sequer de tentar uma fuga.
Caminhava por um terreno plano que ia dar na crista de um morro n�o muito alto. Ia
escolhendo o caminho por aquelas pedras nuas. Nos lugares mais sombreados, restava
ainda um pouco de gelo; embaixo de uma fenda profunda da pedra corria um fio
d'�gua, que seguia morro abaixo. Por for�a do h�bito, aproximou-se da crista do
morro com o m�ximo cuidado e espionou para ver o que havia.
Esperava encontrar o mesmo terreno. Em vez disso, dera com um vale formid�vel, com
muitos e muitos quil�metros de largura, e no meio do qual corria o que era
obviamente um rio. N�o conseguia distingui-lo a dist�ncia, mas podia calcular sua
localiza��o e ver tamb�m v�rios lagos pequenos. Logo abaixo havia uma trilha, ou
estrada, e uma dezena de quil�metros adiante, uma cidade e um campo de avia��o.
Entre o local em que se encontrava e a cidade, estava a tundra, sem muitas �rvores
de porte, salvo junto aos c�rregos menores, onde havia conjuntos de �lamos da
Manch�ria e moitas cerradas de salgueiros. Simplesmente n�o havia caminho nenhum
que pudesse fazer para percorrer aquela dist�ncia sem ser visto. Fatigado e sem
�nimo, voltou as costas para o vale, desceu a montanha e foi vencendo a dist�ncia
atrav�s dos morros mais baixos, em dire��o ao norte.
Teria agora que ser duplamente cuidadoso, pois estava numa �rea pr�xima �s
popula��es locais e, uma vez ou outra, haveria avi�es indo ou vindo do campo de
avia��o.
Lembrando-se do mapa, imaginou que o rio pudesse ser o Penzhina, que descia das
montanhas que tinha � frente: portanto, teria que atravess�-lo.
Aquela noite, descendo a montanha, topou com tr�s cabras entre algumas pedras.
Estavam acostumadas a se defenderem de agressores vindos de baixo, mas, como o
vento vinha em dire��o a ele, sua presen�a n�o foi percebida.
Sua primeira flechada foi de pontaria perfeita. Uma das cabras fugiu, mas o velho
carneiro ficou firme, a cabe�a abaixada como se fosse atacar. Era um animal
grandalh�o e mal humorado, mas � medida que Joe Mack foi chegando perto, ele se
afastou.
Tirou a pele da cabra para aproveitar o couro e cortou toda a carne que achou
necess�ria. Descendo para uma concavidade no terreno, encontrou um canto bem
escondido e ali fez uma fogueira, assando a carne. Era sua primeira refei��o
decente depois de algumas semanas. Guardou o resto da comida e ficou ainda algum
tempo trabalhando com o couro antes de enrol�-lo. Duvidava que aquela pequena
fuma�a tivesse chamado a aten��o, por�m, na eventualidade de ter sido notada, tinha
que sair daquela vizinhan�a.
Joe Mack estava s� sobre as montanhas e ia ao acaso entre aquelas enormes lascas de
pedra inclinadas, mantendo sempre o rumo norte, evitando os poucos vilarejos, as
poucas casas. Tornou a se alimentar de carne e sentia que suas for�as iam voltando.
Num riacho em que corria �gua quente, tomou um banho, sentindo-se bem com aquele
calor. Aquela tarde, antes do anoitecer, matou um veado e renovou sua reserva de
carne.
Procurava ficar o maior tempo poss�vel em terreno mais baixo e caminhava pelas
florestas de lari�os ao cruzar o Mayn. Novamente aproximava-se do mar. Algumas
vezes, pela manh�, quase chegava a sentir o gosto de sal, trazido pelo vento. Por
dias e dias, nada vira de humano, tampouco passaram avi�es. Contudo sabia que n�o
desistiriam. Continuariam a procur�-lo, talvez at� com muito mais empenho.
Suas feridas tinham cicatrizado. A mand�bula voltara ao formato normal. J�
conseguia fixar a vista sem dificuldade e a dor no cr�nio parecia ter passado. �s
vezes parava um pouco e se punha a erguer pedras para recuperar a for�a muscular
que perdera.
Fez uma cal�a de couro de cervo e um casaco de pele de cabra, al�m de um cinto para
carregar as armas e uma aljava para as flechas. Carregava o arco na m�o e andava
com uma passada solta e segura.
Quanto tempo se passara desde sua fuga? Viera a primavera, o ver�o, agora era
outono e outro inverno se aproximava, esperando o momento para mat�-lo.
"N�o ser� dessa vez, velho amigo", pensou em voz alta. "J� estarei longe daqui, ou
ent�o terei sido morto."
Por duas vezes naquele dia observara aves mar�timas, primeiro algumas gaivotas e
depois o que lhe parecia uma andorinha-do-mar. Caminhava por uma montanha e podia
ver o reflexo do mar no c�u. Estava chegando perto: do outro lado, al�m do
horizonte, ficava o Alasca, os Estados Unidos, seu pa�s, de onde estava fora j� h�
tanto tempo.
Esse fora o caminho percorrido pela sua ra�a. Sabia somente o que os estudiosos
diziam, pois seu povo n�o tinha escrita e as hist�rias narradas ao p� do fogo se
alteram com o tempo, �s vezes crescendo demais, outras diminuindo ou at� mesmo
preterindo determinados fatos. De qualquer modo, aquilo l� adiante na dist�ncia era
sua terra, seu lar. L� estavam ainda as montanhas que o viram nascer e o solo pelo
qual sua gente derramara o sangue, sacrificara a pr�pria vida. Naquela �poca,
tinham sido os melhores guerreiros, venceram muitas batalhas, foram vencidos em
poucas, mas, quando chegara sua hora, tinham sabido morrer bem.
"Que seja assim como voc� tamb�m", pensou. "A medida da grandeza de um homem � sua
capacidade de morrer bem."
Ele caminhava pela floresta sobre a montanha, quando os viu.
Encontrava-se a menos de duzentos metros de dist�ncia do soldado quando este se
virou e o viu. O soldado n�o disse uma palavra, por�m, com um ar de triunfo, ergueu
o rifle e certamente teve tempo de ver apenas a flecha reluzir � luz do sol antes
que atravessasse sua garganta. Era o �ltimo homem da fila e caiu ao ch�o, as m�os
agarradas � seta, os olhos arregalados.
Na orla da floresta, Joe Mack corria suavemente sobre o musgo. Assim que o pr�ximo
soldado surgiu entre as �rvores, disparou outra flecha. O soldado gritou e caiu. O
homem que estava bem � frente virou-se com impaci�ncia e viu horrorizado a flecha
que vinha em sua dire��o, depois caiu ao lado do companheiro.
Havia seis soldados naquela patrulha, conduzidos por um homenzarr�o que mais
parecia um urso. Joe Mack continuou correndo e, quando eles pararam junto a um
riacho, soltou outra flecha. O soldado em quem tinha feito a mira virou-se e a seta
atingiu-o no ombro.
Gritou e os outros tamb�m se viraram. Joe Mack deixou cair o arco no ch�o e sacou a
pistola.
Deu um tiro, pegou o arco e desapareceu entre as �rvores, sem esperar para ver o
resultado.
O dia chegava ao fim e havia uma luminosidade intermedi�ria, nem dia nem noite,
pr�pria daquela regi�o; e ele desapareceu entre as �rvores.
Sobre o musgo macio, seus mocassins n�o faziam o menor ru�do. Movia-se entre as
�rvores, atento a qualquer som. O �nico que havia era o murmurar distante de um
riacho.
Alekhin sobrevivera, ent�o? Estava ali.
- Agora, meu amigo - Joe Mack disse em voz alta - n�s nos encontramos finalmente, e
eu estou pronto para enfrent�-lo.
Circundou o que pensava ser um acampamento, mas n�o havia nem fogueira.
Espreitavam-no em algum lugar no meio do mato.
Foi se aproximando e ficou im�vel entre a vegeta��o. "Quantos siberianos", pensou,
"al�m de Alekhin?" Olhando em volta, atirou uma pedra, fazendo-a descrever um arco
bem largo no ar. Ela caiu entre a vegeta��o. Estariam aguardando, estariam
atemorizados, pois, afinal, tr�s ou talvez quatro de seus companheiros tinham sido
mortos.
Onde estava ele? Eles n�o sabiam.
Ser� que isso queria dizer que ele estava por ali? Ou em algum lugar por perto?
Atirou mais uma pedra, para ouvi-la cair ao ch�o.
Nenhum som, n�o esperava mesmo som algum. Permaneceriam onde estavam at� a manh�?
Ou ser� que um, ou mais, entre eles tentaria escapar para algum local mais adiante?
Imaginava que preferiam ir embora, mas teriam que ficar.
Esperou, apoiado confortavelmente no musgo, os ouvidos atentos a qualquer ru�do,
por menor que fosse. Atirou outra pedra. Desta vez ouviu uma respira��o profunda,
perto de onde ela ca�ra. A luz era muito vaga e alguma coisa moveu-se nas sombras.
Atirou uma flecha, e ouviu o barulho de sua batida e depois um ru�do na folhagem.
Ele disparou outra flecha. N�o acertara o alvo, mas parecia-lhe ter errado por
muito pouco.
Com enorme cuidado recuou para um barranco que havia atr�s, desceu e cruzou um
riacho. Subiu pelas pedras at� um lugar que notara anteriormente. E ali parou para
repousar.
Uma hora antes de o dia raiar, preparou diversas armadilhas e quando voltou deixou
v�rias trilhas, mais ou menos n�tidas. N�o muitas, para n�o levantar suspeitas,
por�m em n�mero suficiente para serem vistas. Depois, desceu a montanha em dire��o
a praia.
O major Joseph Makatozi caminhava pela praia naquela manh� cinzenta, observando as
ondas que vinham quebrar na praia rochosa. Olhou para aquelas enormes ra�zes
empilhadas, junto a uma pequena enseada onde um homem consertava algumas redes.
Caminhou at� ele e ficou parado um instante, olhando.
- Vim de muito longe - disse por fim, tentando ser compreendido em ingl�s -, para
ver o local em que Olaf Swenson negociava. Ele era um americano, eu acho.
- E um homem honesto - retrucou o velho Chukchi. - Eu o conheci quando eu ainda era
crian�a. Ele negociou com meu pai e com meu av�.
- Meu av� era escoc�s. Uma ocasi�o, muito tempo atr�s, ele navegou at� esta praia e
negociou aqui com Swenson.
- Isso foi muito tempo atr�s. Ningu�m mais se lembra de Olaf Swenson. N�o se
lembram mais daqueles bons tempos do comercio, nem que os Chukchi cruzavam os mares
estreitos at� o Alasca algumas vezes, mais de uma vez por ano at�.
- Voc� pescou salm�o l�?
- Nunca mais. Tudo isso � passado. N�o nos deixam mais ir at� l�. Mas, �s vezes...
�s vezes penso que gostaria de voltar l�, mas estou velho, muito velho.
- Eu iria - sugeriu Joe Mack - se tivesse um caiaque.
O velho olhou fixo para ele. Sua face marrom, a pele profundamente vincada sob a
alva cabeleira. Tornou a olhar para Joe Mack e reparou nas tran�as. Prestou de novo
aten��o a sua fisionomia.
- Seria preciso um homem que conhecesse muito bem o caiaque para conseguir
atravessar. Essa viagem n�o � nada f�cil.
- Mas, com um caiaque, n�o perceberiam a pessoa. � uma embarca��o muito pequena,
feita apenas de couro.
- D� para fazer. Eu estou velho e nunca tentei.
- Mas eu ainda sou jovem e minha terra � l�, daquele outro lado. Quero voltar para
l�, vov�.
- Tenho um caiaque, muito bom at�. Para o neto de algu�m que navegou com Olaf
Swenson... N�o sei. Talvez.
- Tenho alguns rublos. Sei o quanto � valioso um caiaque. Para fazer um � preciso
t�cnica e habilidade que pouca gente ainda tem. Posso pagar.
- O que representam rublos para um velho? O mar garante minha sobreviv�ncia, em
troca, reverencio o mar.
- Dizem que muito tempo atr�s meu povo seguiu esse caminho, atravessando quando
ainda n�o havia �gua aqui. Eu sigo sua trilha.
- J� ouvi sobre isso, j� encontrei mesmo pontas de flecha e ossos. �, acredito que
seja verdade. - O velho desviou os olhos da rede, olhando para ele. - Aqueles que
observam t�m olhos para enxergar o que os outros n�o v�em. T�m asas para voar.
- Partirei � noite, vov�.
- Ah! A viagem sempre foi feita durante o dia. � preciso compreender o caiaque.
- N�s nos conhecemos. J� o utilizei no mar e em rios de correnteza forte.
- Quando vai?
- Esta noite, se sobreviver.
O velho tornou a encar�-lo.
- Ouvi alguns tiros, l� pelo lado da montanha.
- �, eu sei. E hoje voltarei l� para encontrar algu�m que me procura. N�o quero
desapont�-lo.
- Haver� tiros?
- Espero que n�o. Quero que tudo seja feito com isto aqui - e Joe Mack ergueu as
m�os. - Meu povo j� foi uma ra�a de guerreiros. Como posso ser menos do que eles j�
foram?
- Se chegar aqui ao entardecer, com o sol j� baixo, encontrar� o caiaque ali, junto
�quelas ra�zes. Depois, o que fizer ser� por sua conta.
- Fale aos esp�ritos do mar, vov�. Minha voz � solit�ria esta noite.

CAP�TULO 47

Ele sentiu primeiro o cheiro da fuma�a, antes de ver a fogueira; quando Joe Mack
veio andando por entre as pedras, Alekhin o aguardava.
Os olhos de Joe Mack varreram de um lado a outro aquela pequena concavidade no
terreno, mas o Yakut disse:
- Eles foram buscar os corpos que voc� deixou para tr�s.
- Vim a sua procura.
- Aqui estou.

O coronel Zamatev pegou o pequeno embrulho que o soldado colocara sobre sua mesa.
Lentamente, com gestos cuidadosos, come�ou a desfazer os n�s.
O pacote era muito leve e embrulhado com a pele de algum animal pequeno, por�m
havia alguma coisa dentro que parecia casca retirada de uma �rvore.
Afrouxou o �ltimo n� e o pacote se abriu. O coronel Zamatev sentou-se im�vel, a
boca ressecada, o cora��o batendo com for�a. O que estava sobre a mesa a sua frente
era, sem sombra de d�vida, um escalpo humano, no qual se destacava uma pequena
mecha branca em um dos lados, num lugar em que, por causa de uma cicatriz junto ao
couro cabeludo, o cabelo perdera a cor.
Junto a ele, numa tira de casca de b�tula, estava escrito em letras bem delineadas:

"ISTO J� FOI O COSTUME DE MEU POVO.


DURANTE A MINHA VIDA FAREI DOIS.
ESTE � O PRIMEIRO."

Fim

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