UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
CIVILIZAR A CULTURA
Questões de modernização e a afirmação da dignidade entre homens
acusados de violência doméstica e familiar contra a mulher
Marco Julián Martínez-Moreno
Brasília
Março de 2018
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CIVILIZAR A CULTURA
Questões de modernização e a afirmação da dignidade entre homens
acusados de violência doméstica e familiar contra a mulher
Marco Julián Martínez-Moreno
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social do
Departamento de Antropologia, Instituto de
Ciências Sociais, Universidade de Brasília,
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Antropologia.
Orientador: Prof. Dr. Daniel Schroeter Simião.
Brasília
Março de 2018
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CIVILIZAR A CULTURA
Questões de modernização e a afirmação da dignidade entre homens
acusados de violência doméstica e familiar contra a mulher
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Departamento de Antropologia, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia.
Aprovada por:
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Daniel Schroeter Simião (Presidente)
Universidade de Brasília
_________________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Filomena Gregori
Universidade Estadual de Campinas
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional/Universidade Federal de Rio de Janeiro
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Universidade de Brasília
__________________________________________________________________
Profa. Dra. Andréa Lobo (Suplente)
Universidade de Brasília
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Agradecimentos
Após sete anos, desde que comecei a minha pós-graduação, agradeço a paciência e o
apoio de minha família: Julieta, minha mãe, Sofia e Juliana, minhas irmãs, Julio, meu pai e
Lucy, minha avó. Eles deram o impulso inicial para empreender esta viagem que culmina com
a escrita desta tese.
Na Universidade de Brasília, sou grato ao professor Daniel Simião, meu orientador
durante o mestrado e o doutorado, pelos diálogos, o acompanhamento dado a meu trabalho, o
ânimo para poder propor reflexões que aqui apresento e as estimulantes conversações sobre
música. Minha entrada na universidade, voltando às aulas depois de vários anos, foi devido ao
aconselhamento da professora Alcida Ramos, que conheci em Bogotá há vários anos e que me
animou a iniciar esta longa trilha de estudos. Já em Brasília, Rosa Cordeiro, secretária do
Departamento de Antropologia (DAN), foi fundamental para conhecer a universidade e saber
como me relacionar com o corpo docente. Agradeço a elas duas e às professoras e aos
professores do DAN, com os quais conheci diversas perspectivas de pensamento que ajudaram
a enriquecer minha posição intelectual, e a André Muniz Leão do Laboratório de Imágem e
Registro de Interações Sociais, IRIS, pela assessoria na elaboração do ensaio fotográfico sobre
a vida de um dos homens acusados de violência. De maneira particular, faço um agradecimento
às professoras Kelly Silva e Andréa Lobo e aos professores Luís Roberto Cardoso de Oliveira,
Gustavo Lins Ribeiro e Luís Cayón.
Ao CNPq, agradeço pela bolsa de estudos concedida durante meu doutorado.
Ao longo dos últimos anos tive a oportunidade de apresentar avanços do meu trabalho
em variados espaços acadêmicos, como congressos, seminários, grupos de trabalho e aulas.
Gostaria de agradecer às professoras e aos professores Patrice Schuch, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul; Lucia Eilbaum e Fabio Reis Mota, da Universidade Federal Fluminense;
Myriam Jimeno, da Universidade Nacional da Colômbia; Maria Elvira Díaz Benítez, Adriana
Vianna, Luis Fernando Dias Duarte, John Comerford e Kátia Sento Sé Mello, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro; e Sérgio Carrara, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Eles
comentaram meu trabalho, enriquecendo os postulados aqui apresentados.
O agradecimento pelo diálogo também é extensivo a meus colegas e professores Tatiane
Duarte, Carlos Andrés Oviedo, Lediane Felzke, Anderson Vieira, Ranna Mirthes Correa,
Carolina Sobreiro, Krislane Andrade Matias e Nicholas Castro, da Universidade de Brasília;
David Thompson e Ángela Castillo, da Universidade de Califórnia, em Berkeley; Danielle
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Merriman, da Universidade de Colorado, em Boulder; Beatriz Filgueiras, Rogério Brittes Pires
e Bruno Titonelli, da Universidade Federal de Minas Gerais; Elena Nava, da Universidade
Nacional Autônoma do México; Gustavo Onto e Andrés Góngora, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro; Sara Zamora, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, em Buenos
Aires; Sonia Hamid, do Instituto Federal de Brasília; Silvia Monroy e Helka Quevendo, do
Centro Nacional de Memoria Historica da Colômbia; Carlos Jose Suárez, da Universidade de
Guadalajara; Daniel Varela, do Instituto Colombiano de Antropologia e História; e Carolina
Suárez Pabón, da Universidade Nacional da Colômbia.
O diálogo com os alunos do curso de Antropologia das Emoções, da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, foi importante para
desenvolver vários dos argumentos contidos nesta tese. Agradeço a Alexandre Iung Dias, Fábio
de Lima Júnior, João Gomes Rocha, Priscila Cavalcante dos Santos, Vanderleia Barbosa, Ana
Beatriz Nascimento Soares, Davi Cabral e Silva, Felipe Costa Moreira, Flora Villas Carvalho,
Hanna Motta, Mariana Marina Santos de Carvalho, Marina Morena, Matheus Mota, Natalie do
Carmo Carvalho e Oliva Ramalho de Castro.
Chegar ao Rio de Janeiro foi possível pelo apoio permanente de Marcos Nascimento, a
quem agradeço nossos estimulantes cafés e o afeto com que me acolheu. Através dele conheci
a maioria dos protagonistas desta tese: Alan Bronz, Márcia Guinancio, Fernando Acosta, Carlos
Zuma, Thor Rosenfeld, Aline Pires, Milena Gabatteli, Eliana Sousa, Carlos Baldi, Romina
Nigri, Láris Gómes e Roberto Loprete. A eles agradeço a colaboração com minha pesquisa,
bem como aos homens acusados de violência contra a mulher, os quais também são
protagonistas deste texto, particularmente a Heitor Machado, Josué Coelho, Herbert Saraiva e
Leandro Santos Silva.
Ao Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, INCT-InEAC,
agradeço o apoio financeiro para a transcrição e analise de entrevistas. De maneira particular,
agradeço a Rajnia De Vito, mestranda do Departamento de Sociologia da Universidade Federal
Fluminense, pelo seu trabalho na trascripção e comentários às entrevistas do último capítulo
desta tese.
Agradeço aos membros da banca por aceitarem participar deste projeto na sua fase final.
As arguições dos professores Luiz Fernando Dias Duarte, Luís Roberto Cardoso de Oliveira e
da professora Maria Filomena Gregori ofereceram uma outra perspectiva possível de analise
dos dados oferecidos na minha etnografia. Esses outros ângulos projetam uma rica agenda de
reflexão e pesquisa para os anos por vir.
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O foco na categoria de indivíduo é um dos eixos desta tese, noção que fui
compreendendo e sentindo através da minha posição como analisando com as psicanalistas
Almira Rodrigues, em Brasília, e com Juliana Silva, no Rio de Janeiro. A esta última, estou
particularmente agradecido pela relexão metodológica do diálogo entre antropologia e
psicanalise, presentada nesta tese. A compreensão sobre a ideia de indivíduo foi se ampliando
com abordagens “holísticas” através das sessões e do diálogo com o acupunturista e psicólogo
Renato Cutz Gaudenzi e da prática de yoga com os mestres Jaime Esteban Ojeda, Evelyn
Henriquez e Mattia Ribani. A eles estou muito agradecido.
Agradeço o trabalho de revisão do português de Malu Resende, cujas sugestões
ajudaram a compor um texto melhor.
Um agradecimento muito especial vai para André Dumans Guedes, meu companheiro
nos últimos anos, pelo carinho, a paciência e o diálogo intelectual permanentes. A ele e a minha
família na Colômbia dedico esta tese.
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Nemico della Patria?
È vecchia fiaba che beatamente
ancor la beve il popolo.
Nato a Costantinopoli? Straniero!
Studiò a Saint Cyr? Soldato!
Traditore! Di Dumouriez un complice!
E poeta? Sovvertitor di cuori e di costumi!
Un dì m'era di gioia
passar fra gli odi e le vendette,
puro, innocente e forte.
Gigante mi credea...
Son sempre un servo!
Ho mutato padrone.
Un servo obbediente di violenta passione!
Ah, peggio! Uccido e tremo,
e mentre uccido io piango!
Io della Redentrice figlio,
per primo ho udito il grido suo pel mondo
ed ho al suo il mio grido unito...
Or smarrita ho la fede
nel sognato destino?
Com'era irradiato di gloria
il mio cammino!
La coscienza nei cuor
ridestar delle genti,
raccogliere le lagrime
dei vinti e sofferenti,
fare del mondo un Pantheon,
gli uomini in dii mutare
e in un sol bacio,
e in un sol bacio e abbraccio
tutte le genti amar!
Ária de Carlo Gérard, Ato 3,
da ópera Andrea Chénier de Umberto Giordano
com libreto de Luigi Illica (1896)1
1
Inimigo da pátria? / É uma velha história que infelizmente / o povo continua acreditando. / Nascido em
Constantinopla? Estangeiro! / Estudou em Saint Cyr? Soldado! / Traidor! Um cúmplice de Dumouriez! / E poeta?
Corruptor de corações e costumes! / Um dia minha alegria era passar entre os ódios e a vingança, / puro, inocente
e forte. / Gigante me achava... / Sou sempre um servo! / Troquei de senhor / Um servo obediente de violenta
paixão! / Ah pior! Eu mato e tremo, / e enquanto mato, choro! / Eu, filho da Revolução, / fui dos primeiros a ouvir
seu grito pelo mundo / e uni meu grito ao dela... / Tenho perdido a fé / no destino sonhado? / Como estava irradiado
de glória / meu caminho! / Voltar a acordar a consciência / nos corações das pessoas, / recoletar as lágrimas / dos
vencidos e sofredores, / fazer do mundo um Panteão, / fazer dos homens deuses / e em um beijo só / em um beijo
e abraço só / amar a todo mundo!
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Resumo
Esta tese doutoral argumenta que a categoria “cultura”, no contexto da implantação da
Lei Maria da Penha no Rio de Janeiro, evidencia uma relação política que faz referência ao
embate entre diferentes definições da pessoa humana e se expressa em tensões na constituição
dos sentidos de objetos, agências e subjetividades dos participantes de grupos reflexivos de
gênero: os facilitadores desses grupos e os homens acusados de violência doméstica e familiar
contra a mulher que são obrigados a participar deles. As posições dos agentes no campo
emergem da tensão entre ideologias – uma individualista (relativa à civilisation); e uma da
“força” (que remete a uma Kultur). Tal tensão dá conta de um processo de transposição da
ideologia moderna que conforma uma economia moral em torno da categoria de “vítima” e que
aponta à constituição de um sujeito que valoriza a primeira pessoa para afirmar sua existência
e a de “outros”, tomando-os como objeto no qual se busca reconhecer uma singularidade que o
transforme de coisa em pessoa. As racionalidades, lógicas, argumentações, justificações e
diferenças de significado da categoria “dignidade” emanam de configurações ideológicas,
afetivas e relacionais que adquirem significado político na tensão entre civilisation e Kultur.
Essa tensão cria o efeito de alteridade política e permite distinguir o encontro de duas
cronologias morais, que fazem parte da disputa referente ao significado da dignidade para si:
de um lado, uma cronologia moderna e progressiva, que coloca o polo moral ruim no passado,
o presente como um problema para a sociedade civil e o polo moral bom no futuro; de outro,
temporalidades individuais para os acusados, que assim idealizam o passado, experimentam o
julgamento moral no presente e vivenciam a sensação de incerteza diante do futuro. Para
desenvolver este argumento, este trabalho apresenta uma etnografia do processo social
mediante o qual os grupos reflexivos de gênero configuram-se enquanto um mecanismo de
transformação de homens acusados de violência contra a mulher, de modo tal que os homens
acusados comecem se perceber como indivíduos com gênero e passem a estabelecer relações
sociais tendo como referencial a filosofia da dignidade humana.
Palavras-chave: Cultura, Modernidade, Gênero, Violência, Parentesco.
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Abstract
This doctoral dissertation argues that, considering the context of enforcing the Maria da
Penha Act in Rio de Janeiro, the “culture” category shows a political relation referring to the
conflict between different definitions of the human person, being expressed in tensions related
to how agencies, subjectivities and object meanings are constituted in participants of genderreflexive groups, namely, these groups’ facilitators, and men accused of domestic and family
violence against women, whose participation in such groups is virtually mandatory. The
positions of field agents arise from the tension between ideologies – one which is individualist
(referring to civilization), and another which is related to the concept of “força” (referring to
Kultur). Such tension addresses a process of transposing the modern ideology that configures
a moral economy around the “victim” category, and which points toward the constitutions of
individuals that value the first person in order to reinsure their existence as well as that of
“others”, taking them as objects in which one seeks to acknowledge a singularity able to
transform things into people. Rationalities, logics, arguments, justifications and differences in
meaning in the “dignity” category originate from ideological, affective, and relational
configurations that acquire a political meaning in the tension between civilisation and Kultur.
Such tension creates the effect of political alterity and allows one to identify the encounter of
two moral chronologies, which are part of the dispute related to the meaning of self-dignity: on
one side, a modern and progressive chronology, which places negative moral aspects in the
past, the present as a problem for civil society and good moral aspects in the future; on the other
side, individual temporalities of the accused men, which, in turn, idealize the past, experience
moral judgment in the present and the feeling of uncertainty in regard to the future. To develop
this argument, this study presents an ethnography of the social process in which genderreflexive groups are configured as a mechanism that transforms men accused of violence
against women in such a way that accused men start to perceive themselves as individuals with
a gender, and begin to establish social relations based on human dignity philosophy.
Keywords: Culture, Modernity, Gender, Violence, Kinship.
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Resumen
En esta tesis de doctorado se argumenta que la categoría de “cultura”, en el contexto de
implementación de la Ley Maria da Penha (de enfrentamiento de la violencia doméstica y
familiar contra la mujer en Río de Janeiro, Brasil), evidencia una relación política relativa al
conflicto entre diferentes definiciones de la persona humana, que se expresa en tensiones en la
constitución de sentidos sobre objetos, agencias y subjetividades de los participantes de grupos
reflexivo de género: los facilitadores de esos grupos y los hombres acusados de violencia, que
son obligados a participar. Las posiciones de los agentes en el campo emergen de la tensión
entre ideologías – una individualista (relativa a la civilisation); y una relacionada al concepto
de “força” (que hace referencia a una Kultur) – y de la constitución de vínculos afectivos en las
relaciones de parentesco. Tal tensión refleja un proceso de transposición de la ideología
moderna que conforma una economía moral sobre la categría de “víctima”, e que apunta a la
conformación de un sujeto que valora la primera persona para afirmar su existencia y la de
“otros”, tomandolos como objeto en el cual se busca reconocer una singularidad que lo
transforme de cosa en persona. Las racionalidades, las lógicas, los argumentos, las
justificaciones y las diferencias de significado de la categoría “dignidad” surgen de
configuraciones ideológicas, afectivas y relacionales que adquieren significado política en la
tensión enre civilisation y Kultur. Esa tensión crea el efecto de alteridad política y permite
distinguir el encuentro entre dos cronologías morales, que hacen parte de la disputa referente al
significado de dignidad para si: de un lado, una cronología moderna y progresiva, que presenta
un polo moral negativo en el pasado, el presente como un problema para la conformación de
una sociedad civil y el polo moral positivo en el futuro; de otro, temporalidades individuales
para los acusados, que idealizan el pasado, son juzgados moralmente en el presente y viven la
sensación de incerteza en relación al futuro. Para desarollar este argumento, la tesis presenta
una etnografía del proceso social mediante el qual los grupos reflexivos de género se
configuraran como un mecanismo de transformación de hombres acusados de violencia contra
la mujer, de modo tal que eses hombres comiencen a concebirse como individuos con género y
pasen a establecer relaciones sociales teniendo como referencia la filosofía de la dignidad
humana.
Palabras clave: Cultura, Modernidad, Género, Violencia, Parentesco.
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Sumário
Introdução. A configuração de um enfoque: um percurso empírico e teórico ........................ 16
A tese e a organização do texto ........................................................................................ 16
Um ponto de partida na Colômbia .................................................................................... 19
A masculinidade como problema da política de mudança cultural .................................... 21
Uma síntese preliminar: “Transformarse para ser un buen hombre” ................................ 24
Antropologia a partir da cultura e da violência ................................................................. 25
Abrindo o campo: os grupos reflexivos de gênero para homens autores de violência e a Lei
Maria da Penha ................................................................................................................ 28
Cultura, civilisation e Kultur ............................................................................................ 33
Narrativas morais da modernidade ................................................................................... 36
Ideologia individualista, psicanálise e questões de método ............................................... 38
Capítulo 1. “O que é ser homem?”: homens igualitários e pela equidade de gênero .............. 45
1.1 Reconhecimento da experiência de ser homem entre a mudança política e a pesquisa
acadêmica ........................................................................................................................ 46
1.2 Uma alternativa ao autoritarismo ................................................................................ 50
1.3 Um grupo entre amigos .............................................................................................. 52
1.4 “Homens, saúde e vida cotidiana” .............................................................................. 54
1.5 Homens da Zona Sul do Rio de Janeiro ...................................................................... 59
1.6 Campartilhando a experiência com os homens autores de violência ............................ 61
1.7 Uma perspectiva para a facilitação de grupos reflexivos de gênero ............................. 64
1.8 O ativismo pela igualdade e a Lei Maria da Penha ...................................................... 67
1.9 Da autoria para a situação: a violência em processo .................................................... 72
1.10 A judicialização da violência doméstica contra a mulher .......................................... 76
1.11 Primeira síntese ........................................................................................................ 82
Capítulo 2. Aline e sua magia ............................................................................................... 85
2.1 O primeiro encontro: indignação e injustiça ................................................................ 86
2.2 Aline .......................................................................................................................... 95
2.3 Falar das emoções, um presente para a vida .............................................................. 100
2.4 Josué ........................................................................................................................ 105
2.5 A consciência do gênero ........................................................................................... 108
2.6 A violência não tem gênero ...................................................................................... 112
2.7 Heitor ....................................................................................................................... 116
2.8 A violência tem gênero, sim ..................................................................................... 121
2.9 Elaborar a raiva e praticar a gentileza e o cuidado..................................................... 123
2.10 Meu nome é Heitor e sou um agressor .................................................................... 126
12
2.11 Ser uma pessoa reflexiva ........................................................................................ 127
2.12 Segunda síntese ...................................................................................................... 131
Capítulo 3. Thor e sua proposta ética .................................................................................. 135
3.1 Realfabetizando-se no trabalho com violência .......................................................... 136
3.2 Desenhar-se como mulher para se pensar nos sapatos do outro ................................. 141
3.3 A primeira lição de facilitação: implicar-se ............................................................... 147
3.4 Thor ......................................................................................................................... 152
3.5 Sexo para mim é... .................................................................................................... 156
3.6 A honestidade no discurso ........................................................................................ 158
3.7 Eu sou bonito, eu não sou esse corpo gordo .............................................................. 160
3.8 Compartilhando verdades que não se falam a ninguém ............................................. 164
3.9 Eu não fui criado para ser vítima não ........................................................................ 172
3.10 Falar de gênero e ter empatia com a vítima ............................................................. 175
3.11 A última lição: a humanização ................................................................................ 177
3.12 Terceira síntese....................................................................................................... 180
Capítulo 4. Considerações sobre a relação entre um nós-igualitário e um outro-marcado-pelogênero ................................................................................................................................ 185
4.1 A expressão de injustiça ........................................................................................... 186
4.2 Primeiro contraste: o gênero ..................................................................................... 190
4.3 Segundo contraste: a justiça ...................................................................................... 192
4.4 Terceiro contraste: os sentimentos ............................................................................ 195
4.5 A crise moral e o reconhecimento como pai.............................................................. 198
4.6 Afetividade, participação, parentesco e individualismo ............................................. 202
4.7 Honra, cidadania e vítimas ....................................................................................... 210
4.8 Vitimização e responsabilização ............................................................................... 217
4.9 Apercepção sociológica ............................................................................................ 222
4.10 Quarta síntese ......................................................................................................... 229
Capítulo 5. O conhecimento de si e a dádiva da vítima ....................................................... 232
5.1 Vítima, agressor e testemunha .................................................................................. 232
5.2 A formação de facilitadores de grupos reflexivos de gênero ..................................... 234
5.3 Duas posições sobre a postura do facilitador ............................................................. 237
5.4 O sentimento, uma coisa que nos faz humanos ......................................................... 243
5.5 O gênero da vítima e do agressor .............................................................................. 248
5.6 Uma postura ética: reconhecer a própria violência .................................................... 254
5.7 I am a survivor ......................................................................................................... 261
5.8 Quinta síntese ........................................................................................................... 269
Capítulo 6. A força e o pensamento de dois homens acusados de violência ........................ 273
13
6.1 O Barrigudo, “o cara” na comunidade ...................................................................... 275
6.2 Na comunidade ........................................................................................................ 281
6.3 Uma outra conversa entre amigos: “a natureza do homem”....................................... 285
6.4 Uma postura ética: não falar de si ............................................................................. 290
6.5 Herbert, a solitária vida de um “marítimo” ............................................................... 296
6.6 A casa: a história de Lourdes e Mariano ................................................................... 304
6.7 A conformação de uma família: da vida de gandaia à provisão de dinheiro ............... 312
6.8 “O meu ponto de vista”. Como deveria ser a vida para Herbert? ............................... 318
6.9 Sexta síntese ............................................................................................................. 324
Conclusão .......................................................................................................................... 327
Localização em uma narrativa moral antropológica ........................................................ 327
Dignidade, suas temporalidades e objetivações após a acusação de violência ................. 330
As referências da modernização ..................................................................................... 333
Uma pessoa igualitária e uma pessoa com força ............................................................. 336
Coda .............................................................................................................................. 338
Referências bibliográficas .................................................................................................. 341
14
Lista de figuras
Figura 1. Babilônia e Copacabana ....................................................................................... 47
Figura 2. Homens, saúde e vida cotidiana ............................................................................ 57
Figura 3. De cavalos para gazelas........................................................................................ 63
Figura 4. Laço branco ......................................................................................................... 68
Figura 5. A situação de violência ........................................................................................ 74
Figura 6. Lei Maria da Penha .............................................................................................. 78
Figura 7. Detalhe do Fórum de Niterói ................................................................................ 87
Figura 8. Hall da “Violência doméstica” ............................................................................. 89
Figura 9. Grupo reflexivo de gênero de Niterói ................................................................... 93
Figura 10. Aline .................................................................................................................. 97
Figura 11. Planejamento de Aline ..................................................................................... 100
Figura 12. Árvore da vida e do gênero............................................................................... 109
Figura 13. Não é facil não! ................................................................................................ 115
Figura 14. O ciclo da violência .......................................................................................... 129
Figura 15. As barcas ......................................................................................................... 134
Figura 16. Plantinha do Instituto de Práticas Sistêmicas .................................................... 137
Figura 17. Carlos e Celso .................................................................................................. 142
Figura 18. Thor ................................................................................................................. 155
Figura 19. Pedro ............................................................................................................... 162
Figura 20. Juninho Pernambucano .................................................................................... 166
Figura 21. Thor sendo entrevistado por um documentarista ............................................... 184
Figura 22. Definição da violência de Aline........................................................................ 189
Figura 23. Caminhata em Ipanema .................................................................................... 192
Figura 24. Aconselhamento de Thor.................................................................................. 194
Figura 25. Hierarquia versus igualdade ............................................................................. 200
Figura 26. Pai e filha brincando......................................................................................... 204
Figura 27. Matéria de jornal utilizada por Aline no grupo ................................................. 212
Figura 28. Propaganda ...................................................................................................... 219
Figura 29. Pai e filha ......................................................................................................... 225
Figura 30. Iceberg da cultura ............................................................................................. 239
Figura 31. Os sentimentos da situação de violência ........................................................... 248
Figura 32. Berta ................................................................................................................ 252
Figura 33. La cultura y la víctima ..................................................................................... 265
Figura 34. A comunidade .................................................................................................. 282
Figura 35. A jogadora ....................................................................................................... 284
Figura 36. Treinamento ..................................................................................................... 286
Figura 37. Casas do Morro do Estado ................................................................................ 289
Figura 38. A força ............................................................................................................. 299
Figura 39. A Ilha da Conceição ......................................................................................... 304
Figura 40. O ponto de vista ............................................................................................... 322
Figura 41. O pensamento .................................................................................................. 323
Figura 42. O fim de uma jornada ....................................................................................... 326
15
Introdução
A configuração de um enfoque: um percurso empírico e teórico
A tese e a organização do texto
Nesta tese argumento que a categoria “cultura”, no contexto da implantação da Lei
Maria da Penha (que cria mecanismos institucionais para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher), evidencia uma relação política que faz referência ao embate entre diferentes
definições da pessoa humana e se expressa em tensões na constituição dos sentidos de objetos,
agências e subjetividades dos participantes de grupos reflexivos de gênero: os facilitadores
desses grupos e os homens acusados de violência doméstica e famliar contra a mulher que são
obrigados a participar deles. As posições dos agentes no campo emergem da tensão entre
ideologias: uma individualista, relativa à civilisation e aos agentes interessados na implantação
da Lei Maria da Penha; e uma da “força”, que remete a uma Kultur, adjudicada pelos agentes
da civilisation aos homens acusados de violência.
Mostro que a tensão entre civilisation e Kultur faz referência a um processo de
transposição da ideologia moderna que conforma uma economia moral entorno da categoria de
“vítima”, que aponta à constituição de um sujeito que valoriza a primeira pessoa para afirmar
sua existência e a de “outros”, tomando-os como objeto no qual se busca reconhecer uma
singularidade que o transforme de coisa, cativa na tradição, em pessoa com agencia que valoriza
a liberdade e a autonomia. As razões e as lógicas sobre a natureza das relações sociais; as
argumentações e justificações sobre a agressão e a violência e as diferenças de significado de
categorias de gênero, parentesco e emoção emanam de configurações ideológicas, afetivas e
relacionais que adquirem significado político na tensão entre civilisation e Kultur. Essa tensão
cria o efeito de alteridade e permite distinguir o encontro de duas cronologias morais, que fazem
parte da disputa referente ao significado da “dignidade”.
Em primeiro lugar, uma definição de dignidade relativa a uma narrativa moral sobre a
modernidade, que vê no passado a tirania da tradição, no presente o problema social da
violência e no futuro, a utopia do exercício cidadão, democrático e reconhecedor de uma
humanidade universal e atemporal. Outra definição corresponde a uma ética relacional, na qual
o passado é idealizado como um período de tempo que dá sentido à própria existência, o
presente sofre uma ruptura com a acusação de violência (com a consequente estigmatização
16
social) e o futuro é incerto, mas com um resquício de esperança, dada a legitimidade de
discursos institucionalizados (como o da religião) que reforça as convicções do passado, dando
integridade ao homem acusado no decorrer da sua defesa.
O texto retoma um conjunto amplo de dicotomias que dão conta da relação entre
civilisation e Kultur (de maneira similar à formulação “the West and the rest”) na construção
de um “novo primitivo”: o homem autor de violência doméstica e familiar contra a mulher no
marco da Lei Maria da Penha, como um sujeito simétrico e inverso ao ideal de cidadão. Os
capítulos da tese apresentam diferentes dimensões etnográficas, algumas lindeiras, outras
yuxtapostas, que mostram, por um lado, a perspectiva da ação social da institucionalidade da
Lei Maria da Penha entorno na figura dos facilitadores dos grupos reflexivos de gênero. Nesta
dimensão, a lógica judicial trabalha junto com a psicossocial para implantar o processo de
responsabilização dos atos de violência, mostrando o lugar de poder da ideologia individualista
da modernidade, que concebe o complexo mundo de relações de reciprocidade como um
problema social e uma violência. Por outro lado, a segunda dimensão etnográfica descreve os
meandros da vida popular, as configurações sobre gênero, família e parentesco e as posições de
sujeito que viram objeto de governo ou âmbitos da existência humana a serem civilizados
através da transformação de homens, cujo “machismo” estava ancorado na cultura, para
“homens igualitários”, conscientes do gênero, das emoções e da própria violência.
A introdução da tese apresenta a trajetória empírica e teórica pela qual elaborei a relação
entre as categorias de “cultura” e “masculinidade” como objeto de problematização acadêmica
e política, que aqui abordo a partir das antropologias da modernidade e do individualismo em
diálogo com referências das antropologias do direito, jurídica, do parentesco e do gênero. Os
seis capítulos da tese, apresentam a etnografia efetuada entre fevereiro de 2014 e dezembro de
2015, na qual descrevo e analiso a proposta de atuação humana dos facilitadores dos grupos
reflexivos de gênero em relação ao sistema de valores que sustenta a pessoa moral de “bom
pai” que constantemente ressaltam os homens acusados. Nos capítulos etnográficos caraterizo
a tensa constituição de uma fronteira religiosa entre atributos modernos e não modernos para o
reconhecimento da própria violência, a delimitação de um “eu” igualitário e autor dos próprios
atos e a conversão a um sistema de valores igualitários cujo foco é a ideia do indivíduo com
direitos humanos.
Os três primeiros capítulos abordam o ponto de vista dos agentes engajados na
instauração de uma agenda política e de implantação de masculinidades igualitárias e não
violentas no Rio de Janeiro. O primeiro narra uma história social dos grupos reflexivos de
gênero, contada por alguns dos seus protagonistas, mostrando o caminho através do qual eles
17
foram pertinentes para trabalhar processos educativos e preventivos no marco da
“responsabilização do homem autor de violência” da Lei Maria da Penha. O segundo capítulo
apresenta a implantação de um desses grupos no juizado especial de violência doméstica contra
a mulher de Niterói, lugar onde conheceremos Aline Pires, a psicóloga do juizado, e a vida de
Josué e de Heitor, dois dos homens denunciados por suas parceiras sentimentais. No terceiro
capítulo conheceremos Thor Rosenfeld, facilitador de alguns grupos reflexivos de gênero no
Instituto de Práticas Sistêmicas da Zona Sul do Rio de Janeiro, que acolheu homens acusados
de violência do primeiro juizado de violência doméstica do Rio de Janeiro e outros homens que
chegaram a participar dos grupos por “demanda espontânea”.
Como o processo de instauração do projeto moderno nunca é completo e a fronteira
religiosa também é fluida e porosa, chama a atenção a expressão de “indignação” de vários
homens participantes dos grupos, bem como a narrativa sobre parentesco, gênero e direito que
eles traziam, contrastando a categoria mulher com as de mãe, esposa e filha. Tendo em conta a
discussão sobre noções de igualdade proposta por Luis Roberto Cardoso de Oliveira (2009) e
as noções de interdependência e pessoa, o quarto capítulo mostra uma comparação entre a
proposta individualizante dos agentes da Lei Maria da Penha e o posicionamento dos homens
em relação ao estatuto humano da sua parceira sentimental. Este capítulo discorre sobre
questões metodológicas da abordagem da violência e oferece uma resposta à demanda de alguns
dos meus interlocutores no campo sobre a pertinência desta tese em relação à efetivação da Lei
Maria da Penha e ao questionamento de “levar a sério” o ponto de vista dos agressores.
Em meio ao trabalho de campo, finalizados alguns dos grupos tanto no juizado em
Niterói quanto no Instituto no Rio de Janeiro, acompanhei de maneira paralela o trabalho de
Thor no marco de um projeto de promoção de masculinidades igualitárias e de dois homens que
passaram pelo juizado de Niterói. O quinto capítulo descreverá as formações para facilitadores
de grupos reflexivos de gênero, que Thor coordenou para que os aspirantes a facilitador
tivessem a experiência de passar por um grupo e usufruíssem a oportunidade de reconhecer sua
própria violência. Este capítulo se inspira nas formulações de Norbert Elias (1994) sobre o
processo civilizatório e nas de Catherine Lutz (1998) sobre a abordagem das afirmações
emocionais como práticas ideológicas. Ali mostro o gênero e o protagonismo da categoria de
“vítima” na organização do trabalho do facilitador e a importância da fala sobre os sentimentos
para a conformação de um eu igualitário.
O sexto e último capítulo encontra inspiração no livro de Myriam Jimeno (2006), Juan
Gregorio Palechor: historia de mi vida, para a exposição de narrativas sobre histórias de vida.
Nele apresento a vida do Barrigudo e de Herbert, com os quais quis compreender a “sensação
18
de ser bom pai”, como parte do seu amadurecimento como homens com reconhecimento social
por parte de amigos, familiares, vizinhos e colegas. A partir das considerações dos dois, mostro
a diferença hierárquica entre ser bom pai e ser homem igualitário nos contextos nos quais eles
circulam e em relação ao posicionamento entre o valor do indivíduo moderno e fontes
ideológicas que veem na noção de “força” um motor para a agência humana.
A última seção desta tese apresenta as conclusões.
Um ponto de partida na Colômbia
Esta tese responde a um projeto intelectual e a uma problematização da concepção e do
uso social das categorias de “masculinidade”, “violência”, “cultura” e o imperativo de
“mudança dos papéis de gênero” na implantação de um projeto social igualitário, comprometido
com a democracia e os direitos humanos. Esta inquietação começou em 2004, uns meses depois
da minha formação de graduação como antropólogo na Universidade Nacional da Colômbia. O
Departamento Administrativo de Bem-estar Social da prefeitura de Bogotá (DABS) convidou
o núcleo de pesquisa Conflito Social e Violência do Centro de Estudos Sociais, coordenado por
Myriam Jimeno, professora do Departamento de Antropologia dessa universidade, para
desenvolver o componente de “prevenção da violência intrafamiliar contra as mulheres e
crianças” do projeto “Acceso a la Justicia Familiar y Atención Integral a las Violencias
Intrafamiliar y Sexual” (DABS, 2005). O objeto deste projeto, conhecido através do código
administrativo “375”, era estabelecer a “democracia familiar”, conceito de jurisprudência da
Corte Constitucional colombiana que pretendia incidir e erradicar a “cultura da violência” a
partir do lar, assumindo a “família” como “célula de formação de cidadãos”.
O núcleo passou a trabalhar nos conversatorios entre hombres, oficinas dirigidas a
homens usuários de projetos sociais da prefeitura (considerados em risco social), nas quais um
facilitador propunha o debate sobre o gênero, a sexualidade, o exercício dos direitos humanos
e o uso da violência derivada da “cultura patriarcal”. As oficinas eram usualmente
desenvolvidas por mulheres de organizações feministas, mas, como lembrava Rebeca, a
funcionária da prefeitura supervisora do convênio, os homens geravam resistência e se sentiam
repreendidos por elas. Rebeca era uma mulher de cerca de 60 anos que havia trabalhado como
teóloga e educadora popular em regiões de conflito armado no interior da Colômbia e, nos
últimos anos, prestava serviços como consultora para diversos órgãos de governo na área de
assistência social e proteção às vitimas da violência. Rebeca acreditava que o movimento
19
democratizador era inevitável, o qual repercutia no melhoramento da qualidade de vida de
populações de bairros pobres da cidade. Ela considerava que o projeto 375 devia contar com
facilitadores homens, para gerar “empatia e intimidade” e debater “temas sobre os quais os
homens nunca falavam”, por pressão ou censura social causada pelo patriarcado. Rebeca
buscava uma “mudança cultural” para que esses homens deixassem de ser “machistas” e
virassem “pais democráticos”.
Para desenvolver essas oficinas, Myriam Jimeno convocou dois psiquiatras, uma
pedagoga, um psicólogo e um advogado para complementar a equipe de seis antropólogos exorientandos dela, sendo eu um deles. Desenhamos, então, o enfoque teórico e o trabalho técnico.
O documento final (JIMENO et al, 2007) continha uma metodologia chamada “da experiência”,
que procurava fazer uma “intervenção respeitosa”, considerando os futuros participantes como
interlocutores, de maneira similar à noção de informante no campo da pesquisa antropológica.
A metodologia exigia a rememoração das “experiências sociais” relativas à criação ou aos
relacionamentos entre homens e mulheres. O desenho técnico supunha que ao reconstruir as
redes sociais e de sentido seria possível reconhecer “orientação e prática cultural cotidiana” e
iniciar “processos reflexivos” que permitissem valorizar “outras formas de comportamento e
pensamento”. Implantando essa metodologia, o grupo esperava “mudar núcleos culturais
cognitivos e emocionais através da rememoração de certos temas”, de modo tal que os homens
“compreendessem o uso naturalizado da violência [que era] reproduzido nas relações
cotidianas”. A reflexão sobre o “uso da violência” era a maneira de projetar a democracia
familiar.
Nós, facilitadores, deveríamos evidenciar a “transmissão de valores da masculinidade”,
que legitimava a violência como estruturante da “verdadeira forma de ser homem”.
Pretendíamos que os homens participantes dessas oficinas concebessem o “direito como um
bem individual e universal” e não como “privilégio masculino”. Feito isto, promovíamos uma
“nova masculinidade”: reconhecedora da violência dos homens, da igualdade com as mulheres
e dos direitos humanos como referência para se conceberem e se estabelecerem relações sociais.
Os dados emergentes das oficinas foram analisados a partir de três eixos indicados pelo DABS:
“conflito social e violência”, “gênero e sexualidade”, e “corresponsabilidade e direitos”.
Embora as oficinas propusessem “alternativas para resolver os conflitos familiares” (para os
quais o diálogo era idealizado tanto pelos facilitadores quanto pelos participantes), nelas muitos
homens, especialmente os mais velhos, experimentavam um “mal-estar” ao se considerar que
aquilo que os definia como pais, “ter autoridade”, era um atributo desvalorizado pelos
representantes da prefeitura. Para muitos homens adultos, era desconcertante desvincular
20
“autoridade” de “violência”. Falar de democracia familiar para eles implicava responder:
“como exercer autoridade sem bater ou mandar nos outros? Se o homem consulta todas as suas
decisões, onde fica seu poder? Como administrar um lar sem hierarquia?” (JIMENO et al.,
2007, p. 132).
Do ponto de vista da análise de gênero, a masculinidade desses homens estava definida
em oposição aos atributos femininos, negando algum possível desejo homossexual, e como
carência de “responsabilidade”, razão pela qual eles deviam demonstrar que eram “bons pais”.
O papel do dinheiro na manutenção idealizada ou de fato dos vínculos familiares era muito
importante. A ausência dele era um motivo para partir para briga, especialmente pela exigência
por parte das mulheres da casa. Estas imagens corroboravam muitos antecedentes empíricos
relativos ao “machismo latino-americano”, mas também mostravam como as mulheres do lar,
mães, avós e irmãs, tinham um “certo poder” que não era reconhecido pelos gestores
governamentais, que entendiam o poder como participação política e econômica através do
trabalho formal. Este outro poder dizia respeito ao “amor”, ao “carinho” e à “proteção”, que
inspirava a ideia de “ser homem responsável” e também mediava as relações entre os homens,
quando a santidade dessas mulheres estava comprometida. Noções como “direito sexual” ou
“autonomia da mulher” geravam polêmica, mostrando uma diferença, inexplorada na época,
entre o direito construído na relação (no qual o vínculo conformado pelos sentimentos é
importante) e o direito como bem individual, noção promovida nas oficinas.
A masculinidade como problema da política de mudança cultural
Depois desse ciclo de oficinas, fui chamado para trabalhar diretamente no DABS, para
assumir a área de prevenção da violência intrafamiliar e sexual. Por ser antropólogo, Rebeca
considerava que eu podia otimizar o propósito de “mudança cultural” do projeto 375. Virei
gestor de política pública em uma equipe de profissionais em psicologia, assistência social e
direito com os quais devia supervisar o trabalho de outros funcionários que atendiam à “mulher
vítima de violência intrafamiliar e sexual”. As autoras desse projeto, funcionárias e consultoras
que se identificavam como feministas, queriam materializar o artigo constitucional sobre
igualdade entre homens e mulheres e reivindicar o “direito a uma vida livre de violências”,
tendo como referência o bem jurídico tutelado na Constituição Política colombiana da
“dignidade humana”.
Apoiado em argumentos de estudos de gênero e estatísticas de violência contra a mulher,
o projeto 375 assumia a violência como expressão da “cultura da violência” e da “cultura
21
patriarcal”, as quais geravam privilégios para os varões e cujo efeito era a desigualdade. Essas
culturas sustentavam “identidades”, “representações” e “práticas” tidas por “tradicionais” que
impediam o exercício dos direitos humanos na família e a convivência pacífica na ordem social
maior. Também davam conta de diferenças de gênero, que convertiam as mulheres em
“vítimas” que o Estado devia proteger2. Os esforços estatais estavam focados na atenção às
vítimas. De fato, a ideia dos conversatorios era uma maneira de prevenir a violência, quer dizer,
não permitir a existência de vítimas no futuro. Alguns processos que acompanhei na
implantação do projeto 375, como a formação de funcionários na maneira a se fazer uma
“atenção humanizada”, estavam focados na restituição e na garantia dos direitos das vítimas,
nas palavras das quais todos teriam que acreditar.
Paralelamente à minha atuação como gestor, participava da vida universitária. Colaborei
em uma pesquisa da Escola de Estudos de Gênero, financiada pelo Centro Latino-Americano
de Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), que visava conformar um panorama do estado
dos direitos sexuais e reprodutivos na Colômbia (SERRANO et al., 2010). Esta pesquisa fazia
parte de um programa maior do CLAM para configurar o panorama para a Latino-América,
com capítulos em outros países como Peru, Argentina, Chile e Brasil. Os coordenadores do
programa buscavam estabelecer diagnósticos sobre a regulação da sexualidade nos âmbitos das
políticas públicas, a legislação e a jurisprudência em torno de aspetos como o aborto, o HIV, a
homossexualidade, a violência contra a mulher, o trabalho sexual, entre outros temas, relativos
à possibilidade de indivíduos e coletivos exercerem direitos sexuais e reprodutivos. Estes
últimos eram considerados “os mais humanos de todos os direitos” pela reconhecida ativista
feminista e professora universitária Florence Thomas, na Colômbia.
Fui responsável pela parte sobre “violências de gênero e sexuais”, notando que existiam
dois movimentos paralelos na implantação de leis e políticas sobre estes temas. Por um lado,
havia circulação e introdução de conceitos, categorias e legislações internacionais sobre os
direitos humanos das mulheres na estrutura legislativa colombiana que, a partir da década de
1980, davam fundamento jurídico à publicação de leis de combate à violência contra a mulher.
Outro movimento vinha do ativismo feminista que a partir da década de 1970 advogava pela
igualdade, pelo direito a uma vida livre de violência e pela transformação das relações entre os
2
A produção acadêmica e de documentos de política pública a respeito das vítimas da violência na Colômbia é
ampla. Autoras feministas e do campo interdisciplinar dos estudos de gênero têm contribuído para a visibilidade
de condições de vida, variáveis estruturais e contextos que geram risco a mulheres no conflito armado e na cidade.
É possível consultar esses textos no Fondo de Documentación Ofelia Uribe, da Escola de Estudos de Gênero da
Universidade Nacional de Colômbia, ou na internet no site da Biblioteca Digital Feminista da mesma universidade:
http://www.bdigital.unal.edu.co/view/divisions/bib=5Fest=5Ffem=5Fgen/
22
sexos, particularmente no lar, local no qual as mulheres eram maltratadas ou assassinadas.
Ambos os movimentos estabeleciam uma relação entre dificuldade da afirmação cidadã e
cultura, o que explicava “múltiplas manifestações de violência na sociedade colombiana”, a
partir da ordem maior do conflito armado com guerrilhas de esquerda, grupos paramilitares de
direita, passando por escalas menores de delinquência nas cidades, assassinatos, estupros, até
violências na família contra mulheres, crianças e idosos etc. Esta teoria sobre a cultura, que
vinculava estrutura social a comportamento individual, não só era parte do senso compartilhado
por ativistas e funcionários, mas também de uma boa parcela de acadêmicos que durante
décadas analisaram causas, fatores, estruturas e processos da violência no país, conformando o
ramo das ciências sociais e jurídicas na Colômbia reconhecido como violentología.
Para a violentología, a cultura de la violencia era uma maneira de entender o período
da historiografia colombiana de La Violencia, que de 1948 até 1960 registrou o “enfrentamento
fraticida” entre militantes dos partidos políticos Liberal e Conservador nas pequenas cidades e
áreas rurais das regiões andinas e da Orinoquia, a emergência das primeiras guerrilhas de
esquerda e a restauração da “ordem cívica” com o governo militar de Gustavo Rojas Pinilla,
finalizando a década de 1950. Germán Guzmán, autor do clássico estudo La violencia en
Colombia, parte descriptiva (1968), considerava que a cultura da violência era produto do
deslocamento de populações rurais para as grandes cidades por causa dos enfrentamentos
armados, o que gerou um “trauma” entre os jovens que passaram de uma cultura integrada de
maneira harmoniosa com o ambiente rural para um ambiente urbano, pobre e marginal. Esta
ruptura transformou camponeses em delinquentes, conformando estruturas mafiosas que
estimulam a guerra, o tráfico e a violência em todos os âmbitos da vida social. A violência
aparecia como alfa e ômega em uma lógica de causa e efeito que quebrou um passado
idealizado, trazendo como resultado um presente problemático (MARTÍNEZ-MORENO,
2013a).
Desde os últimos anos da década de 1970, esta forma de explicar o conflito foi frequente
no discurso político colombiano para justificar ações estatais de uso da força armada contra as
guerrilhas, as populações rurais e os setores marginais das cidades, bem como para desenhar
políticas e leis para garantir o direito à paz (MARTINEZ-MORENO, 2012a). Por esta mesma
época entraram no cenário acadêmico as análises de gênero e feministas, que introduziram o
conceito de “cultura patriarcal” para demonstrar que as mulheres eram maltratadas e morriam
por causa da guerra e pela manutenção da ordem de gênero, que justificava a “lógica da guerra”
no lar. Nos corpos de legislativos era mobilizada a proteção através da lei penal e foi incluída
a noção de “mudança cultural” por meio da intervenção nas “relações de gênero” para prevenir
23
a violência. A cultura virou problema social e objeto de ação estatal. Ela estava objetivada na
“identidade masculina”, que condensava não só a “rebeldia”, que impossibilitava uma
sociedade civil nos termos das elites nacionais, mas o “patriarcado” que oprimia as mulheres.
Ativistas e agentes governamentais assumiram a “missão” de transformar a identidade de
gênero masculina: tradicional, patriarcal e violenta e, para isto, colocaram no cenário político
nacional a alternativa de uma “nova masculinidade”, geradora de cidadãos reconhecedores da
igualdade (MARTÍNEZ-MORENO, 2013b).
Para autores como Freddy Gómez e Carlos Iván García (2006), influentes na concepção
de políticas e intervenções psicossociais sobre masculinidades, os homens colombianos
compartilham um “ethos guerreiro”, sinônimo de “ser verdadeiro homem”. A partir da leitura
de estudos históricos e antropológicos sobre o período de La Violencia, os autores exemplificam
tal ethos, mostrando o tratamento desumanizado entre opositores políticos. Segundo eles, o
ethos se reproduziu até hoje através da criação e da socialização masculina, modelando o corpo,
reprimindo a expressão emocional, criando hierarquias de mando entre os homens e
configurando a identidade individual. Os homens colombianos eram simultaneamente
“vítimas” do patriarcado e “perpetradores” da violência, sendo colocados no eixo
onipotência/impotência, o qual acarreta tensões e contradições com o valor da “masculinidade
hegemônica guerreira” do país. Isto se traduz em experiências de sofrimento e renúncias
individuais para chegar a ser um homem. Gómez e García veem na possibilidade da contradição
a abertura para uma “nova masculinidade”, assumida como alternativa de recomposição
nacional, possível através da reflexão individual do costume, da experiência presente da dor e
da consideração de se assumir como homem que reconhece a igualdade das mulheres.
Uma síntese preliminar: “Transformarse para ser un buen hombre”
Este percurso entre teorias e práticas acadêmicas e políticas me permitiu iniciar uma
reflexão sobre o uso da categoria de cultura nas políticas de transformação da identidade de
gênero masculina. Em grupos de trabalho em congressos de antropologia na Colômbia e no
Seminário Internacional Fazendo Gênero, em 2006, comecei a problematizar a prática do
antropólogo em processos de intervenção social, bem como os pressupostos epistemológicos
do agente interventor que assumia o “machismo” como um a priori analítico e político. Nesses
espaços de diálogo acadêmico era uma constante observar a distância entre masculinidade local
e a ideia de cidadão, que se traduzia em práticas machistas, emergentes em qualquer contexto
e momento histórico.
24
Considerei o ponto de vista do ativismo e da academia engajada inserido em uma matriz
na qual a constante era a ideia de cidadão, que se cruzava com quaisquer variáveis sociológicas,
demonstrando vulnerabilidade – anos mais tarde soube que esta perspectiva estava relacionada
com a interseccionalidade. Imaginava essa matriz como uma equação representada em um
plano cartesiano ou como uma sonata barroca, na qual um tema era colocado e depois o
compositor elaborava variações cada vez mais complexas. Meu trabalho às vezes era acusado
de ser “relativista” ou “niilista” por não assumir o compromisso com as vítimas do patriarcado
– depois, durante a pós-graduação, minha reflexão foi às vezes qualificada de maneira irônica
como representante de “estudos de gênero patriarcais”, segundo estudantes de graduação e
algumas colegas do mestrado e do doutorado.
Transformarse para ser un buen hombre (MARTÍNEZ-MORENO, 2010) foi um
primeiro momento de “síntese” da minha trajetória profissional. A partir da incerteza de alguns
homens, sujeitos a programas de prevenção da violência, que se viam a si mesmos em um “não
lugar de autoridade”, notei que existia uma moralidade implícita na relação entre igualdade de
gênero, violência e cultura, como a que transforma a diferença em carência de cidadania. Essa
moralidade estava na base de formas de tecnologias com as quais costumes, comportamentos e
identidades “causantes da violência” eram identificados pelo gestor da política pública e
caracterizados como problema. Diante desse posicionamento, as pessoas-alvo dos projetos
sociais não tinham outra opção senão assumir – de maneira retórica – o compromisso de
mudança de si para se encaixar na expectativa dos agentes da lei. Essa moralidade dependia da
noção de cultura, que objetivava a tradição e o costume na mentalidade do indivíduo,
responsabilizando-o pela manutenção da ordem social. Também estabelecia uma escala
civilizatória, na qual havia a maior tradição identificada, o menor grau de desenvolvimento
social e a possibilidade de exercício dos direitos humanos. O ponto de vista do agente da política
ou da lei estava ancorado no evolucionismo e a intervenção social era uma tecnologia de
modernização marcada pelo sociocentrismo.
Antropologia a partir da cultura e da violência
Durante o mestrado em antropologia social na Universidade de Brasília entre 2011 e
2013, a etnografia de Daniel Simião (2015a), As donas da palavra. Gênero, justiça e a invenção
da violência doméstica em Timor Leste, foi importante para compreender que o processo
colombiano estava vinculado a movimentos transnacionais que ligam ideologias sobre a
igualdade e o controle e a definição das relações sociais no âmbito local. A partir do registro de
25
perspectivas em torno da noção de violensia domestika, particularmente de agentes das Nações
Unidas e operadores de justiça locais em Timor Leste, Simião descreve um projeto de difusão
de ideias-valores modernos correlato ao discurso de gender dos agentes internacionais, no qual
as noções de indivíduo com direitos e de igualdade entre homens e mulheres são eixos
ideológicos chaves. Gender pretende um tipo de socialização que produz embates políticos
entre agentes com uma perspectiva universal de humanidade e atores locais classificados como
culturais pelos primeiros. O autor relaciona essas práticas discursivas à ideologia individualista,
retomando postulados de Louis Dumont (1970, 1985), mostrando que estas valorizam o
indivíduo deslocado das suas relações sociais que, em contexto timorense, conformam os
atributos pessoais e a subjetividade e outorgam o valor da pessoa, relativo ao contexto de
relações de reciprocidade no qual ela se inscreve.
Esse processo possibilitou a Simião ver que a definição da categoria de violência
permitiu a criação de pessoas morais com uma sensibilidade moderna. A partir da perspectiva
de gender, todo ato de agressão vira uma violensia, quer dizer, um ato de agressão intencionado
que ofende ou reduz a dignidade humana do interlocutor. Não obstante, na perspectiva de uma
socialidade fundada nas relações, nem toda agressão implica uma violência. O autor argumenta
que o discurso de gender sobre a violensia domestika construiu um plano moral no qual uma
agressão ganhava uma conotação de atitude indevida ou lesiva, permitindo a validação social
de uma gama de sentimentos que de outra maneira não seriam associados à agressão física.
Gender promoveu uma sensibilidade diferente para avaliar agressões, mudando o sentido do
ato. Esse processo de transformação de moralidades é chamado por Simião de “invenção da
violência doméstica” e se relaciona à emergência de um novo sentido de justiça, regulada pelo
Estado, caracterizado por ser um sistema legal de direitos positivos de matriz civilista, que
contrasta com formas de resolução de conflitos vigentes nas aldeias em Timor Leste (mas que
não exclui a construção de práticas híbridas de justiça).
A configuração da nova moralidade tornou possível o reconhecimento de um “insulto
moral”, no qual uma “dor de novo tipo” tornou possível que uma mulher que durante anos
apanhou do marido sentisse “vergonha”, uma vez que incorporou o discurso de gender à noção
de si, após ter relações de trabalho com agentes internacionais. O insulto moral, conceito
cunhado por Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2004, 2008, 2009), remete à interpretação dada
por uma pessoa ao ato de agressão que vá contra a dignidade de um terceiro e diz respeito ao
reconhecimento social da substância moral das pessoas. Também se refere a uma agressão
objetiva de direitos que não podem ser traduzidos em evidências materiais, que implicam a
desvalorização ou a negação da identidade da vítima e um grau de arbitrariedade no exercício
26
do poder institucional. Na etnografia de Simião, o insulto moral permitiu caracterizar a agressão
física contra a categoria “mulher” como ato de violência que contrastava com outros
entendimentos locais que distinguiam o bater com fins pedagógicos do bater abusivo, o qual
também está acompanhado do sentimento de humilhação. Simião chama a atenção para casos
de violência simbólica em agressão física que envolviam insulto moral e que eram de difícil
percepção para o novo sistema de justiça. Esses conflitos eram resolvidos através de outros
mecanismos, que tinham foco na recomposição das relações entre as casas às quais pertenciam
as partes, o qual se traduzia em um maior grau de satisfação e reconhecimento dos envolvidos.
Na minha dissertação de mestrado, Da “cultura de la violencia” à “democracia
familiar”: masculinidade, cultura e conformação da alteridade em uma política pública de
Bogotá, Colômbia (MARTÍNEZ-MORENO, 2013a), abordei o encontro do projeto
democratizador da família com a intervenção dos homens da cidade, que eram o oposto moral
do ideal de cidadão. Esse projeto estava inscrito em um processo histórico que permitiu a
configuração de uma sensibilidade nacional acerca do tipo penal “violência intrafamiliar”, na
tensão entre a “autoridade do Estado” e a “liberdade do indivíduo”. Como na etnografia de
Simião, a violência intrafamiliar era produto de processos internacionais pelo reconhecimento
dos direitos humanos, nos quais a noção de “direito” atuava como operador simbólico na
constituição da legitimidade das reivindicações feministas diante do Judiciário. No plano local,
o tipo penal permitiu o reconhecimento das diferenças sociais como culturais que geravam
desigualdades, possibilitando criminalizar “problemas sociais” através do duplo movimento de
ampliar tipos penais e prevenir “atos de violência” (SIMIÃO, 2015b; RIFIOTIS, 2008).
Na dissertação voltei aos dados das oficinas descritas no início desta introdução, dando
importância aos efeitos inesperados durante o processo. No debate acerca do que significa ser
ou não ser homem e as razões pelas quais um homem podia se comportar de certa maneira, o
facilitador das oficinas pretendia manter uma relativa autoridade como representante do Estado
e da academia. Porém, o que acontecia era a emergência de um conflito, no qual o facilitador
colocava seu sentido da masculinidade e do poder e os assistentes, um outro (JIMENO et al.,
2007). Na relação entre estes dois agentes, foi possível ver, além do projeto de cidadão,
categorias de parentesco, direito e gênero que conformavam pessoas morais em relações
sociais. Quanto a um grupo de jovens moradores de rua institucionalizados em um centro de
acolhida de padres católicos, com os quais trabalhei por quatro meses nessa primeira
experiência como facilitador, dei importância a estas últimas categorias e a como eles
descreviam o conteúdo da “violência intrafamiliar”. Desse modo, mudei minha percepção
27
inicial sobre eles como sujeitos cujas masculinidades subordinadas passariam a ser opressoras
a posteriori.
A partir da proposta governamental, a de esses jovens se pensarem com uma “nova
masculinidade”, a “violência” revelou relações conflitivas que não eram mediadas pela
contratualidade dos direitos, nem pelo fato de um homem possuir direitos sobre os demais
membros da família. Aquilo entendido como violência intrafamiliar abarcava rupturas nas
trocas entre pessoas com diferenças de status e experiência em uma “casa”, descritas através de
uma linguagem sentimental e do dinheiro. Também contemplava a transgressão da santidade
da cucha, categoria para se referir a mães ou avós, mostrando que a noção de responsabilidade
desses jovens estava vinculada à capacidade de dar bem-estar a elas. A violência intrafamiliar
evocava uma conotação moral negativa sobre relações nas quais eles como ñeros 3 eram
subordinados, sempre diante de uma autoridade que julgava seu comportamento em relação a
um estereótipo de muchacho4, que viraria um homem responsável.
Várias das suas exposições lembravam o discurso do dever ser juvenil associado ao
ensino das escolas católicas, sendo o ñero a antítese do muchacho. Eles se pensavam como
homens a partir da incompletude. Chegar a ser um cucho, um pai ou um homem mais velho,
não se esgotava na ideia do indivíduo como cidadão, embora esta última contornasse a
individualidade deles, pois esses jovens anelavam exercer seus direitos em um contexto social
em que a precariedade financeira e a estigmatização social eram permanentes. Eles, como
ñeros, não possuíam os valores para serem muchachos, ao mesmo tempo em que não eram
reconhecidos como cidadãos, representantes de uma nova masculinidade.
Abrindo o campo: os grupos reflexivos de gênero para homens autores de violência e a
Lei Maria da Penha
Durante o doutorado quis seguir a pista deixada por alguns colegas e interlocutores
acadêmicos de quando era gestor de política pública. Entre os anos de 2005 e 2010 conheci
pesquisadores vindos do Brasil que agiam como supervisores da pesquisa financiada pelo
3
Ñero é um termo pejorativo usado pelos moradores de Bogotá para se referirem a alguém mais pobre, sem
educação, de mau gosto e aos moradores de rua. Os jovens com os quais trabalhei se chamavam entre si de mi
ñero, mas não gostavam que outros, alheios, os chamassem desta forma. Era uma questão do tom para passar de
uma identificação a um insulto.
4
Muchacho pode ser traduzido como rapaz, adolescente ou homem jovem e também serve para se referir a
subordinados dentro de uma organização, aprendizes de um ofício ou seguidores de uma autoridade. Por exemplo,
no exército, os muchachos são os soldados rasos. O ex-presidente Álvaro Uribe, envolvido pelos seus nexos
políticos com o paramilitarismo, se referia aos militares implicados em delitos de lesa humanidade como os buenos
muchachos.
28
CLAM, mencionada linhas atrás, ou como consultores para organismos internacionais na área
de violência de gênero. Um deles era Marcos Nascimento, que em 2008 ministrou uma palestra
sobre como vincular homens na prevenção da violência como agentes de transformação social.
Nascimento era articulador da rede internacional Men Engage, que reúne organizações, ativistas
e pesquisadores nos campos da saúde, da sexualidade, da paternidade e do enfrentamento da
violência contra a mulher. Ele conhecia a agenda do CLAM, os professores do grupo de
trabalho do Seminário Fazendo Gênero e era amigo de um colega carioca radicado em Bogotá
há uns anos, Mauro Brigeiro, que no Rio de Janeiro havia trabalhado como facilitador de
“grupos reflexivos de gênero para homens”.
Nascimento estava interessado no monitoramento dos homens que passavam por esses
grupos no marco da Lei Maria da Penha, sobre enfrentamento de violência contra as mulheres.
A proposta dos grupos era que os homens acusados no Judiciário refletissem sobre seus atos de
violência, reconsiderassem sua noção de “ser homem”, se comprometessem a estabelecer
relações igualitárias com as mulheres e virassem pais presentes na criação dos seus filhos – a
proposta era bastante similar à dos conversatorios. Porém, destacava Nascimento, muitos
desses homens apresentavam “resistência” à proposta, manifestando seu “descontentamento”
quando eram interpelados pelas autoridades para participar dos grupos. Em várias das nossas
conversas, Nascimento achava pertinente que eu orientasse meu projeto de doutorado para
compreensão da vida dos “homens autores de violência” após terem passado pelo grupo. Ele
destacava que naquele momento (2013) ainda tinha contato com alguns homens de camadas
populares com os quais trabalhou uma década antes, em temas relativos à saúde sexual e
reprodutiva, quando eles eram adolescentes. Agora, sendo eles adultos, esses homens tinham
estudado e tiveram poucos filhos, sendo estes indicadores de mudança e de diferenciação em
relação a outros pares nas mesmas condições sociais. Nascimento ressaltava o “efeito positivo”
que os grupos reflexivos de gênero tinham nos homens.
A partir da leitura de textos acadêmicos e de matérias em jornais, conversas informais
com colegas na Universidade de Brasília e de presenciar alguns debates, notei que a discussão
sobre a efetividade dos grupos reflexivos de gênero no marco da Lei Maria da Penha era muito
importante no campo. O engajamento político de Nascimento, entre outros interlocutores,
evidenciava o esforço intelectual para definir linhas de intervenção psicossocial na tentativa de
transformação das relações entre homens e mulheres e de como categorias como cultura e
gênero eram usadas para caracterizar o comportamento dos homens que passavam pelo
Judiciário. A situação evidenciava ainda que as pesquisas acadêmicas sobre a implantação desta
lei podiam aportar na sofisticação das metodologias de intervenção jurídica e psicossocial –
29
entre 2014 e 2016, durante meu trabalho de campo, sempre fui questionado acerca de qual seria
meu aporte com minha pesquisa.
Tendo como antecedente o conceito de insulto moral acima referido, no contexto de
implantação da Lei Maria da Penha interessou-me registrar a expressão de descontentamento
dos homens quando convidados a participar dos grupos reflexivos. Esses sentimentos do
demandado seriam a porta de entrada para analisar a relação entre uma moralidade que
procurava a transformação da masculinidade dos acusados e outra que “gerava resistência” à
proposta de cidadania implícita na lei. Meu foco não foi a efetividade da lei, apesar de
Nascimento considerar que era importante para minha futura pesquisa, mas sim compreender
como esses homens se posicionavam diante de classificações com validade institucional
acadêmica, como “homem hegemônico”, política como “machista” ou jurídica como “autor de
violência” ou “criminoso”. No diálogo com meus interlocutores, argumentei que era necessário
vincular esses homens como sujeitos, quer dizer, como agentes com posição no discurso e
racionalidade no argumento (RIFIOTIS, 2014). Esta ideia implicava “levar a sério o discurso
nativo” desses homens e não assumi-lo como manifestação de um “mito” a ser desconstruído.
Nascimento achou pertinente que eu participasse de um seminário sobre feminismos e
masculinidades na Universidade de São Paulo no segundo semestre de 2013. Ele considerava
que tal encontro poderia me oferecer um panorama completo do trabalho com homens e
violência, além de me permitir conhecer pessoas para abrir meu campo, seja no Rio de Janeiro
ou em outra cidade. Aceitando o convite, viajei para São Paulo para fazer um mapeamento
inicial dos debates sobre o lugar dos homens na agenda feminista de combate à violência de
gênero. O seminário era organizado por Eva Alterman Blay, professora do Departamento de
Sociologia da Universidade de São Paulo, e reuniu acadêmicos e ativistas que apresentaram
resultados de pesquisas e de intervenções psicossociais e jurídicas sobre “masculinidades
violentas”5. Dois grandes temas atravessaram as apresentações dos palestrantes: os desafios de
política pública e criminal na implantação da Lei Maria da Penha e a discussão acerca da
efetividade dos mecanismos de mudança dos homens para abandonarem “atitudes antissociais”
e assumirem “relacionamentos igualitários”. O primeiro dos temas era mobilizado por
advogadas e sociólogas, e o segundo, por psicólogos e ativistas vinculados a projetos de
intervenção psicossocial, clínica e terapêutica.
Blay destacava que o trabalho com masculinidades era “recém-nascido na luta
feminista”, que na cidade de São Paulo já tinha uns 50 anos de mobilização das mulheres. Ela
5
Vários dos trabalhos apresentados nesse seminário foram reunidos e publicados em Blay (2014).
30
considerava importante discutir a institucionalização da Lei Maria da Penha, que não tinha
mecanismos claros de implantação em termos de política pública de prevenção da violência e
atenção às mulheres. Para a socióloga, a judicialização e o imperativo de mudança do
comportamento dos homens para assumirem “novos papéis na família” permitiria “a
estruturação de novos contextos de subjetivação” e de reconhecimento do sujeito mulher como
cidadã e sujeito de direitos em igualdade de condições, livre da opressão do patriarcado. Apesar
do otimismo na proposta, para Blay, como para outras conferencistas, a “sensação” era de que
“nos últimos 30 anos nada tinha mudado desde a democratização”, quer dizer, a violência
permanecia sempre igual.
Enquanto a retórica sobre a judicialização era expressiva da “violência sofrida pelas
mulheres”, a que diz respeito à intervenção psicossocial mostrava “a situação da violência”
como uma relação na qual homens e mulheres alternavam a posição de agressor. Alguns
palestrantes argumentavam que falar nas situações de violência permitia focar no processo no
qual homens e mulheres se agrediam, que incluía a trajetória dos involvidos e a manifestação
de formas de violência, que passavam da física à psicológica. Alguns expositores criticaram a
noção de “autor de violência”, própria do linguajar jurídico, para chamar a atenção para a
complexidade das relações de casal. O esforço argumentativo também estava focado em
demonstrar que a “identidade masculina” era aprendida ao longo do ciclo vital e na interação
com outros homens.
Nesse aprendizado, eram transmitidos os valores de uma “masculinidade hegemômica”
da cultura patriarcal. Categorias como sexualidade, raça, idade, classe social ou procedência
regional lhes permitiam falar de “outras masculinidades” que divergiam, contestavam ou
estavam subordinadas ao modelo hegemônico. Essas categorias agiam como variáveis que lhes
possibilitavam ver a diferença na expressão de uma masculinidade forjada sempre na violência.
Para eles, violência e agressividade eram a “marca do masculino no social”, colocando a ideia
de que, apesar dos “marcadores sociais da diferença” citados, a violência era a constante dessa
identidade masculina. Sendo a masculinidade hegemônica superior aos homens enquanto
indivíduos, eles também eram “vítimas” do patriarcado, ora pelos custos pessoais para
“performar” o modelo de maneira bem-sucedida, ora porque, com a dificuldade de afirmar os
valores hegemônicos por meio de práticas, os homens eram colocados em hierarquias cuja
refência era a ideia de “ser homen de verdade”, que excluía os homossexuais, por exemplo.
Em relação às situações de violência contra as mulheres, os expositores descreviam
históricos de violências no casal que colocavam a mulher como partícipe no “ciclo da
violência”. Para vários psicólogos, os homens reagiam quando eram sujeitos a alguma agressão.
31
Uma parcela significativa das participantes no auditório mencionou que não era possível
atribuir o “papel de vítima” a esses homens. Mesmo reconhecendo a violência como uma
“dinâmica relacional e processual”, não era politicamente estratégico utilizar esse argumento,
pois iria contra a luta das mulheres, particularmente se “setores conservadores” se apropriassem
de tal tese. O argumento da “dominação masculina” era um pressuposto não só acadêmico, mas
também político que entrava em contradição com os argumentos de uma “perspectiva
sistêmica” defendida pela maior parte dos psicólogos e terapeutas ali presentes.
A controvérsia indicava um conflito na definição do lugar legítimo da vítima nas
categorias de gênero: nos pares homem-mulher e masculino-feminino, e no reconhecimento do
sujeito de direito a ser protegido pelo Estado. Também mostrava como uma conclusão empírica
que levava a uma posição acadêmica não podia contradizer a retórica política, de maneira
similar aos debates dos quais participei na Colômbia. De todo modo, uma conclusão
compartilhada com gratificação entre palestrantes – homens e mulheres, advogadas, sociólogas,
antropólogas, psicólogos – e a plateia era que a masculinidade implicava sofrimento e dor,
porque a hegemonia era cruel com homens e mulheres. Ora a hegemonia masculina, ora a
cultura patriarcal informavam o “poder” masculino que “forjava” a subjetividade, a identidade
e a ideia de “ser homem de verdade”. O “poder do homem” correspondia à sua capacidade de
se colocar em um “lugar superior” e “hierárquico” nas relações com as mulheres,
desconsiderando a experiência e a posição da mulher. Deste modo, “o poder” permitia
estabelecer o “sacro-santo Reino da masculinidade hegemônica”, como afirmou um dos
terapeutas.
Também era um consenso no seminário que a reflexão e a intervenção na identidade
masculina, que englobava seus papéis de filho, esposo ou trabalhador, permitia a “conexão com
seus sentimentos”, o que possibilitava compartilhar experiências dolorosas e finalmente abraçar
“outras perspectivas” que proporcionavam “se colocar no lugar do outro”. Através de um “olhar
para si”, esses homens assumiriam a “autoria da violência”, sinônimo de “responzabilização”.
Assim, mobilizadoras dos direitos das mulheres e especialistas em masculinidades asseguravam
que era possível “romper o ciclo da violência” e terminar com a reprodução dos “valores
hegemônicos de gênero”.
As posições no seminário pareciam surpreendentemente similares às escutadas por anos
na Colômbia. Primeiro, a referência de como a cultura patriarcal configurava a identidade
masculina e de como esta última se opunha ao valor da igualdade. Segundo, o protagonismo da
categoria da vítima, possuidora da verdade, e a negação de tal status para o poder do homem
ou o do masculino, objetos de punição e de intervenção. Terceiro, o campo acadêmico
32
sofisticando a reflexão sobre o modo inadequado da expressão e do uso do poder masculino em
relação de subordinação ao imperativo político da sociedade igualitária. Mas como era de se
esperar, havia diferenças entre os contextos colombiano e brasileiro. Elas eram: a centralidade
do saber psicológico e o protagonismo dos sentimentos e das emoções na caracterização do
campo das masculinidades, a dinâmica própria da implantação da Lei Maria da Penha, que
instaurava juizados e equipes psicossociais, o precedente do período da ditadura (que pareceria
similar ao recurso da cultura da violência na Colômbia) e os mesmos grupos reflexivos de
gênero. Embora estes últimos parecessem similares às oficinas que desenvolvi e a tantas
intervenções que presenciei em Bogotá, o fato de esses grupos não serem nem uma aula, nem
terem cunho terapêutico despertou minha curiosidade. Minha tarefa foi procurar um contexto
no qual eu pudesse não só conversar com os homens acusados de violência para entender sua
indignação, mas também como era o trabalho feito pelos facilitadores destes grupos, de modo
tal que pudesse registrar a relação entre agentes de responzabilização e sujeito em face da
norma.
Alguns meses mais tarde, esse campo se abriria no estado do Rio de Janeiro, no juizado
especial da violência doméstica contra a mulher de Niterói e no Instituto de Práticas Sistêmicas
da Zona Sul de Rio de Janeiro. Nesses cenários, acompanhei o trabalho de dois psicólogos,
Aline Pires e Thor Rosenfeld, com os quais aprofundei a proposta de responsabilização de
homens autores de violência através de grupos reflexivos de gênero e conheci o posicionamento
de alguns dos homens que passavam pelo juizado. A partir do acompanhamento realizado de
meus interlocutores, facilitadores e homens acusados, apresento nesta tese práticas cujo
objetivo é materializar um projeto de constituição de sujeito moderno e as “resistências” ao
mesmo. Mas antes de continuar com a etnografia, apresento alguns antecedentes teóricos que
foram úteis para abordar meu campo e interpretar os dados emergentes do mesmo .
Cultura, civilisation e Kultur
A categoria de cultura reifica um outro, objeto de políticas de governo, definido pelo
gênero, que explica o comportamento violento, em oposição ao valor do indivíduo enquanto
cidadão. Ao longo do século XX a categoria de cultura tem sido apropriada por diversos
coletivos sociais para reivindicar sua existência diante de agentes colonizadores, representantes
do Estado ou de organizações internacionais para afirmar diferenças ou igualdades em relação
à filosofia da dignidade humana, no processo de consolidação local do ideário da modernidade.
A categoria de cultura é problemática quanto a formas de governo contemporâneas e, dentro da
33
antropologia, está associada a um debate igualmente complexo. Autores como James Ferguson
e Akhil Gupta (1997) ou Lila Abu-Lughod (1991) são críticos desta categoria, considerando-a
produto do imperialismo, ou mesmo o equivalente à noção de raça, o que lhes permite ver a
posição de poder de quem nomeia como cultural um fenômeno político relevante.
Kelly Silva e Daniel Simião (2012) consideram que a denominação cultural dos
costumes locais em Timor Leste se ancora em discursos e práticas coloniais de nomeação e
representação do outro, apropriadas pelas elites locais para legitimar práticas de governo e
permitir o estabelecimento de um Estado-nação, em conformidade com parâmetros
internacionais de direitos humanos representados por agentes das Nações Unidas. Nesse
processo, a ideia de cultura permitiu tornar inteligíveis práticas tidas como “tradicionais” ou
“costumeiras”, como as trocas matrimoniais, dentro de processos com alto julgamento moral
do “local” nas narrativas de agentes de Estado e da modernização social. A kultura, como é
referida vernacularmente em Timor Leste, manifesta uma “ansiedade epistêmica”, conceito
desenvolvido por Ann Laure Stoler (2009), que faz referência à grade conceitual emergente a
partir da necessidade do controle do administrador colonial sobre populações, práticas e formas
de vida que geram incerteza e dúvida. Tendo como base os arquivos relativos ao processo de
colonização da Indonésia pelos holandeses, Stoler observa como essa grade permitia a
inteligibilidade e a delimitação de âmbitos de governança: econômico, religioso, militar,
político, entre outros, ao mesmo tempo em que gerava a presunção imperial de que tudo estava
em ordem e sob controle. A categoria de cultura passa a ser um conceito de uso político,
suscetível de ser analisada como uma nativa, que ajuda a distinguir conceitos e tramas de
significação sobre a alteridade, bem como relações de poder, posicionamentos políticos e
hierarquias sociais daqueles que usam o conceito e daqueles definidos pelos atributos culturais
(ABU-LUGHOD, 1991).
Marshall Sahlins (1997) mostra que antes de ser produto do imperialismo, categoria de
governo e modernização ou mostrar ambiguidades do projeto moderno no presente, a categoria
de cultura aparece como reação de românticos do século XVIII de áreas “relativamente
atrasadas” da Europa: Alemanha e Rússia, tendo como referência o paradigma iluminista
francês e inglês. Os românticos alemães, por exemplo, defendiam as tradições locais e as
particularidades regionais contra o arquétipo de um homem universal e atomizado,
representante da sociedade. Norbert Elias (1997, citado em JIMENO, 2006) argumenta que,
mesmo que a noção de cultura dos alemães projetasse um universalismo relativo à própria
imagem das elites e da classe média no século XVIII, compartilhava a visão dos intelectuais e
das classes médias francesas e inglesas quanto à confiança no futuro através da longa trilha do
34
desenvolvimento humano, que os colocava, de maneiras distintas, no topo desse caminho
ascendente. O caminho ascendente não só dizia respeito a uma cronologia da modernidade, mas
também ao fato de esses grupos sociais se imaginarem substituindo antigas formas de
organização política, localizadas no topo da pirâmide social. A rudeza das sociedades primitivas
ou a arbitrariedade e a opressão dos tiranos da autocracia se opunha ao exercício da liberdade
dos indivíduos, que estava se consolidando com os emergentes Estados nacionais, pensados
como meta histórica da humanidade no seu conjunto. Na história narrada por Elias, a nação foi
equiparada à humanidade, ocasionando uma “nacionalização da cultura”, na qual o passado foi
heroificado e a nação foi projetada como atemporal, eliminando a ideia de processo histórico e
colocando a “cultura nacional” como uma entidade homogênea.
Já na história narrada por Sahlins, o pensamento iluminista, consistente com a
emergente sensibilidade burguesa, considerava que o uso da razão traria a emancipação do
homem e o livraria das amarras e ilusões da tradição, estabelecendo uma linha evolutiva que
leva o homem à civilização. Esse homem do iluminismo tem se manifestado como o sujeito
cartesiano, o homo economicus, homo sapiens, ou como cidadão com direitos e
responsabilidades, do qual deriva o sujeito dos direitos humanos. Diante da ideia de progressão
e universalidade, as teorias da Kultur emergiram como forma de reivindicar as ideias nacionais
alemãs diante do projeto civilizatório francês. Kultur supõe a valorização da diferença,
colocando as expressões nacionais em relação simétrica e igualitária, cujo desdobramento é a
objetivação de variedades de culturas.
Para Sahlins, o termo francês civilisation supõe uma escala valorativa entre as
expressões de diferença, instaurando estágios evolutivos entre as nações, cujo efeito foi
estabelecer graus de civilização, assumindo a Kultur como representante dessa diferença,
sempre inferior hierarquicamente. Kultur tem sido fundamental para as reivindicações étnicas
de povos indígenas, muitas vezes em confronto com a universalidade da retórica dos direitos
humanos, como nos casos de circuncisão feminina ou nos acordos matrimoniais. A categoria
de cultura, quase sempre adjetivada, tem servido para os agentes da civilisation designarem o
outro, objeto da empresa colonial, explicando e determinando seu comportamento e servindo
de acusação para se referir às diferenças morais que desafiam os parâmetros estéticos, éticos e
morais dos modernos. Usualmente Kultur tem sido utilizada pelos antropólogos para refletir
acerca das relações de comunidades étnicas com sociedades nacionais e pretende servir de
parâmetro para interpretar e compreender a racionalidade desses outros, objeto de governo.
Nesta tese, a relação hierárquica e de poder entre civilisation e Kultur é relevante para
analizar o processo de responsabilização do homem autor de violência doméstica e familiar
35
contra a mulher. Os agentes interessados na implantação da Lei Maria da Penha fazem parte do
conjunto de pessoas que assumem a tarefa civilizatória de caracterizar e modificar a Kultur dos
homens acusados, a qual, como veremos nos capítulos a seguir, é usualmente adjetivada como
patriarcal, da violência ou da honra. Essa Kultur do outro, remete a diferenças entre definições
da pessoa humana que criam um conflito enre a definição de dignidade para si dos acusados e
a proposta de indivído consciente do gênero, das emoções e da potencialidade da sua própria
violência, que os facilitadores dos grupos pretendem conformar. Na tentativa de “levar a sério”
aquilo que os homens acusados têm a dizer sobre si mesmos e a situação pela qual estão sendo
julgados, a noção de Kultur também tem o propósito de re-valorizar essas diferenças que desde
o ponto de vista institucional da civilisation, são vistos como problema que faz interferência
com o propósito de consolidar relacionamentos igualitários entre homens e mulheres.
Narrativas morais da modernidade
No estudo sobre o encontro entre missionários calvinistas e indígenas na ilha de Sumba,
na Indonésia, Webb Kaene (2007) argumenta que a designação do outro como “cultural” por
parte dos agentes missionais – da civilisation – se expressa por meio de uma “narrativa moral
da modernidade”. Nela, a ideia de progresso, que está no centro das ideias de modernidade,
busca legitimar a criação de um tipo de agência para libertar e emancipar o sujeito humano das
falsas crenças dos pré ou antimodernos – da Kultur – as quais estão localizadas no passado, mas
que persistem no presente de maneira anacrônica. Para os missionários calvinistas, a libertação
acontecia graças ao desapego material que repercutia no progresso espiritual. Isto implicava
deixar as mediações da vida espiritual na relação entre fiel e Deus, as quais fazem referência ao
ritual, aos santos e às hierarquias do mundo católico (presente no momento da chegada dos
calvinistas em Sumba), e ao “fetiche”: o domínio das crenças religiosas dos indígenas. O
desapego acontecia através da aquisição de consciência do corpo e da sinceridade na recitação
do credo. Estas eram “formas semióticas” que instituíam a humanidade e criavam um self,
disciplinado na crença, que demarcou o sempre inacabado processo de purificação, descrito por
Bruno Latour (citado por KAENE, 2007), entre convertidos e indígenas. Para Kaene, esse
processo criou uma fronteira religiosa e uma relação de poder colonial entre humanos agentes
de sua própria liberação, os quais contrastam com os fetichistas, determinados pela cultura.
Kaene considera que a relação estabelecida entre agentes da civilização e representantes
da cultura é necessariamente de objetivação, sendo esta de interesse analítico para melhor
compreendermos o estranhamento que define a condição da modernidade. Mesmo que no senso
36
comum a objetificação seja tida como uma definição amoral, ausência de agência ou de
movimento, distanciamento do mundo, ausência de autorreconhecimento e abuso dos outros,
entre outras considerações, é de interesse compreender como os agentes da civilização
descolam o seu ponto de vista privilegiado como observadores da realidade, a qual vira uma
coisa no processo de representação. Esta última era parte da narrativa moral que denota um
postulado epistemológico sobre o outro. Segundo Kaene, o uso da representação para se referir
ao outro na modernidade permite que aquele que nomeia identifique objetos com existência
própria além do objeto em si. Como aponta Timothy Mitchell (citado por KAENE, 2007), os
sujeitos fora do mundo se relacionam com os objetos através das representações, que denotam
uma distinção ontológica entre objetos materiais e seus modelos abstratos, vinculados com o
mundo dos signos e outorgando um efeito de verdade, parafraseando a Michel Foucault (1993).
Nesta tese, categorias sobre o gênero e a violência dos homens fazem parte desse processo de
objetificação que vincula a caraterização do comportamento masculino como produto da cultura
patriarcal com uma cronologia moral da modernidade e práticas categorizadas como problemas
individuais e sociais, que impõem uma agenda polítca por parte de promotores de uma
masculinidade igualitária na qual a reflexividade era uma característica do objeto “autor de
violência”.
A narrativa moral da modernidade é uma forma de maestria e controle, relacionada à
ansiedade epistemológica do agente da civilização, estando este último acima da representação
que ele cria sobre o outro. Esta é uma modalidade de descontextualização que cria uma
dicotomia entre as múltiplas diferenças dos outros, as quais são localizadas como opostas a uma
única, grande e benéfica modernidade. No processo de objetificação, essas diferenças muitas
vezes são categorizadas como campos autônomos pertencentes à cultura ou à religião, segundo
aquele que define o outro. Mas também coloca a questão da linguagem como problema moral,
que constitui o objeto contra o sujeito, o qual, como aponta Saba Mahmood (2004), deve
assumir uma forma de agência relativa ao valor da liberdade no Ocidente, ganhando
reconhecimento moral no exercício da sua autonomia.
Mahmood e Kaene argumentam que o sujeito na modernidade concebe sua liberdade
através da sua localização no curso progressivo da história e distinguindo entre modernos e não
modernos, atributos necessários para a criação de um sujeito com consciência política da sua
localização na história da humanidade. O sujeito da modernidade rejeita os valores do passado,
emergentes na sua relação com o outro e que persistem em campos como o da cultura ou da
religião. O sujeito da modernidade também objetifica os valores e as práticas do outro como se
fossem coisas descoladas das suas relações sociais e da sua existência. Daqui deriva a fonte de
37
ansiedade política e moral, relativa à ansiedade epistêmica, para apelar para a mudança do que
é categorizado como não moderno, o que demanda uma forte intervenção através de formas
semióticas, como a oração do credo entre os calvinistas, para produzir a sinceridade e a
emergência do “eu” entre os indígenas de Sumba. Também deriva em um forte modelo de
conversão que coloca a transformação de si e o valor da autoconsciência no centro da autoridade
dos mestres da modernidade.
Como mencionado linhas atrás, na narrativa moral dos missionários calvinistas, o
descobrimento da própria agência inscrevia os indígenas na história humana e desvelava o
“autorreconhecimento”, que caracteriza o passado como um erro, trocando deuses, fetiches,
mitos, crenças, demônios ou autoridades despóticas do domínio da cultura por humanos em
exercício da sua autonomia. O caráter moral da narrativa calvinista implicava devolver a
agência aos sujeitos e a conversão de uma falsa religião a uma verdadeira, de um estado de não
religião para outro religioso, expressando possibilidades dramáticas e virtuosas de
autotransformação, caraterística amplamente valorizada pelos missionários.
Falar de um processo de transformação de si, consciência de si e de individuação através
de formas semióticas como a reflexão – do gênero e da violência, no caso desta tese – é
susceptível de ser comparado com o proselitismo religioso. Este último oferece paradigmas
conceituais e práticos a partir dos quais a transformação de si pode ser praticável, constituindose em um imperativo moral de um projeto de transformação histórica e social que no nível
macro depende da transformação feita salvando indivíduos, quer dizer, incidindo na
subjetividade dos mesmos. Para Kaene, o indivíduo moderno emerge do modo de conversão
cristã, que é definido pela sua capacidade de deliberadamente abandonar o costume, a tradição,
os papéis sociais, os direitos e as obrigações. Também por escrutinizar cada um desses
elementos do passado para formular uma crítica moral e visualizar uma nova ordem, governada
por novas definições de bondade, justiça, estética e ação social na definição da relação entre
indivíduo e sociedade.
Ideologia individualista, psicanálise e questões de método
Estas últimas linhas nos levam na direção do debate sobre a ideologia individualista,
caro ao projeto intelectual de Louis Dumont (1970, 1985), que contrastou o lugar do indivíduo
entre o Ocidente e o sistema de castas indiano e mostrou que, para o primeiro, o indivíduo
constituía um valor que se contrapunha à noção de hierarquia, contemplada no holismo indiano.
O individualismo postula o indivíduo como sujeito moral que representa o social, o qual possui
38
os valores da igualdade e da liberdade que o emancipam da tirania da tradição e da coletividade,
como já temos observado. Desvelando o individualismo, Dumont “desnaturalizou” a relação
entre indivíduo e sociedade como um problema sociológico, mostrando certa “cegueira” diante
do social como produto desta perspectiva. O autor alude ao termo “apercepção sociológica”
para argumentar que noções como pessoa e indivíduo são constructos socioculturais que
imprimem uma visão particular à análise sociológica e que fazem com que os indivíduos do
individualismo moderno sejam o prisma de observação de sociedades etnográficas ou
históricas. Este foco no indivíduo como valor, caro à sociologia britânica da década de 1960,
conferia realidade aos indivíduos e não às relações, aos elementos e não aos conjuntos, e foi
chamado de individualismo metodológico ou nominalismo (DUMONT, 1985).
Luiz Fernando Dias Duarte (2013) chama a atenção para como “nós, os intelectuais
ocidentais” somos agentes (inconscientes) de transmissão da ideologia individualista através
dos nossos textos e colocações públicas, carregados de valor e pressupostos morais próprios
dessa ideologia. Duarte desenvolve a oposição entre holismo e individualismo para explorar o
“ethos privado” e mostrar como as categorias de gênero, sexualidade ou afetos podem divergir
de categorias de “segmentos populares” como o “modelo dos nervos”. Este último, quando
examinado em relação ao modelo letrado do “psicológico”, relativo a segmentos de elite ou
dominantes, às vezes é caracterizado como “retrógrado”, “conservador” ou “tradicional”. O
autor argumenta que a forma moderna do ethos privado dá preeminência aos valores de
liberdade, igualdade e autonomia, à busca de autenticidade pessoal e sinceridade na expressão
dos afetos, e à “consciente vigilância” na defesa da abertura à diferença, da apropriação da
mudança e da disposição de labilidade.
Estes últimos parágrafos nos remetem a algumas considerações de método. A relação
entre um nós – civilizado – e um outro – representante de uma cultura – replica-se na observação
e no registro etnográfico; nela, o antropólogo experimenta uma diferença epistemológica de
ordem afetiva no seu campo (FAVRET-SAADA, 2005; GOLDMAN, 2003). Isto não só remete
a uma face positiva da relação com nossos interlocutores, através dos quais podemos
compreender outros sentidos do mundo e da existência, mas também às implicações de o
antropólogo projetar, no seu objeto de pesquisa, os valores que são caros a si em interlocutores
moralmente questionados, como criminosos, homens agressores de mulheres, estupradores,
entre outras categorias (ROBEN 1996; WALDRAN, 2012; MARTÍNEZ-MORENO, 2016). A
transposição dos valores individualistas para o outro constrói e objetifica sujeitos a partir dos
nossos afetos, ora sendo “empáticos” com eles, como no caso do trabalho com vítimas, ora
construindo um sujeito carente ou faltante dos valores do ethos privado, muitas vezes
39
barbarizando esse outro para o qual transferimos nossa indignação. Assim, certos coletivos e
sujeitos são dignificados nos textos como objetos analíticos possuidores de uma verdade
plausível de ser publicitada, a verdade da vítima, e outros são condenados a partir do parâmetro
de justiça caro ao pesquisador. Uma reflexão mais aprofundada sobre esta questão será
apresentada no quarto capítulo, após a apresentação do tratamento institucional dado a homens
autores de violência em grupos reflexivos de gênero.
Trabalhar com a “violência” como objeto a ser contemplado e analisado não é fácil. Ela
gera angústia e impotência diante de certas situações que vão além da capacidade do
antropólogo de modificar ou intervir na vida dos outros. Esses sentimentos já estavam presentes
quando eu era gestor de política pública em Bogotá, razão pela qual, entre outras, optei por
abandonar esse trabalho e cultivar meu interesse acadêmico. A relação com meus interlocutores
no campo – os facilitadores dos grupos reflexivos de gênero e os homens acusados de violência
contra a mulher – me levou a incluir como objeto de reflexão meus sentimentos, afetos e
emoções, o ethos no qual me configuro como sujeito, no momento de fazer valorações e
julgamentos acerca de posições acerca da pertinência da transformação de uma masculinidade
tida como violenta, por parte dos agentes da civilisation, ou das justificativas sobre as “brigas”,
por parte dos representantes da Kultur. Meu campo é um “politicamente correto”, como
definido por uma parcela dos meus interlocutores, e tomar partido pelas vítimas era uma coisa
“óbvia”.
Uma vez por semana levava meu campo ao divã, lugar no qual estabeleci uma relação
analítica e desenvolvi uma “oficina” para trabalhar a relação entre a proposta
responsabilizadora que está na base da filosofia política da Lei Maria da Penha e os
depoimentos sobre a violência e as relações íntimas e de partentesco dos homens acusados. A
junção de minha bagagem de literatura antropológica sobre a ideologia individualista com a
psicanálise resultou ser um recurso que me ajudou a entender o modelamento de um “eu”,
aquela “neurose” tão desejada por parte dos facilitadores, que começa a se distinguir de um
“outro” através da articulação nas palavras de vivência, trajetória de vida, emoção, pensamento
e julgamento.
Antropologia e psicanálise, uma combinação já comentada por autores como Antonius
Roben (1996) e Henrieta Moore (2007), que aporta na reflexão da posição e do estado anímico
do antropólogo na interpretação de cenários etnográficos sobre a violência, pelo primeiro, e na
formulação de uma teoria do sujeito na antropologia, pela segunda, me ajudaram a trabalhar
sentimentos próprios e afirmações emocionais alheias de variadas intensidades. Permanecer
durante várias horas por dia, às vezes duas ou três vezes por semana, escutando justificativas
40
sobre a violência e narrativas acerca de como deveriam ser as relações de casal, a maioria das
vezes me deixavam esgotado, porque era uma tarefa que exigia muita atenção. Sentimentos
como angústia, raiva, desprezo, nojo, tédio ou, pelo contrário, feeling, interesse, compaixão ou
grande curiosidade por certo tipo de relatos foram objeto de análise não só para entender minha
posição no campo – em última instância, para a psicanálise, tudo o que falamos dos outros é
uma fala sobre nós mesmos – senão também para compreender por que muitas vezes eu
considerava certos depoimentos como expressivos de uma verdade que era desvelada,
particularmente os provenientes de personagens com os quais tive rapport e uma relação, por
assim dizer, de alguma maneira, prazerosa.
Em oposição, com alguns interlocutores, tanto facilitadores como homens acusados,
pelo fato de não estabelecer com eles uma relação de proximidade, eu terminava descartando
certas afirmações ou algumas vezes duvidando delas. A produção de conhecimento
antropológico a partir do “desprazer” foi um desafio que tive que encarar para compreender
melhor certas posições políticas acerca da vida, como ela foi e como deveria ser para agentes
da civilisation e homens autores de violência.
Antonius Robben (1996) desenvolveu uma reflexão sobre os diálogos sobre o terror da
ditadura argentina entre os anos 1960 e 1970 e argumenta que os antropólogos são afetados
emocionalmente pela “sedução etnográfica” dos depoimentos sobre a violência que escutam
durante as entrevistas, tanto de vítimas como de perpetradores. Fenômenos transferenciais,
contratransferenciais 6 e atos conscientes conformam a sedução da narrativa de vítimas e
agressores, o que remete a uma complexa dinâmica na qual nossos interlocutores nos fascinam,
persuadem ou produzem medos que nos cativam. A sedução etnográfica influi na valoração das
interpretações do pesquisador, impedindo reconhecer o viés interessado ou partidário da
posição política embutida no depoimento emocional do “discurso maniesto” e ser crítico dele.
Para Roben, o discurso manifesto é uma espécie de armadilha que remete ao socialmente
compartilhado e que é tido como dado etnográfico que dá conta da realidade dos nossos
interlocutores. Roben considera que o discurso manifesto é altamente testado pelos
interlocutores no campo, que procuram sua efetividade – quase mágica – para transmitir a
imagem de dignidade da vítima e a procura do mesmo valor pelos agressores. Essa
6
Roben descreve os fenômenos de transferência e de contratransferência que remetem à experimentação de
impulsos, sentimentos, fantasias, atitudes e defesas da pessoa no presente, produto da repetição de respostas
originadas por terceiros que foram significativas na infância temprana, inconscientemente deslocadas no presente.
As duas características da transferência são a repetição indiscriminada e não seletiva do passado e a distorção da
realidade.
41
representação de pessoa digna oculta a afetação emocional do antropólogo, que deve ser objeto
de análise na proposta deste autor.
Esta posição sobre o pesquisador de fenômenos de violência não deixa de levantar
polêmica, particularmente pela associação entre depoimento da vítima e sedução, que sugere
que ela é responsável pela situação e pela dor experimentada. Porém, Roben quer ressaltar que
os fenômenos de transferência e contratransferência são “pontos cegos” para o antropólogo,
que não possui uma teoria sobre as práticas de ocultamento (como tem a psicanálise, que fez
das práticas de ocultamento o centro da sua teoria) que transforme essa “obstrução” em uma
compreensão mais profunda das situações etnográficas. Tal profundidade permite avaliar a
partir de outro ângulo o estatuto de verdade que têm os depoimentos das vítimas em face do
véu de dúvida que frequentemente acompanha a justificativa de um agressor. Também,
examinar os sentimentos que o antropólogo muitas vezes enfrenta, como a “culpa”, quando as
vítimas veem no pesquisador um agente capaz de mudar sua condição de vitimização, ou a
“indignação”, diante da tentativa de alguns perpetradores de saírem da categoria de agressor
quando eles narram sua verdade, a qual, a partir do seu ponto de vista, também poderia ser
publicitada, como a das vítimas.
Considero que a afetação produto da sedução etnográfica faz parte dos fenômenos de
apercepção sociológica anunciados por Louis Dumont e fundamenta agendas de pesquisa nas
quais encontrar as causas ou uma solução para a violência é objetivo emocional e politicamente
orientado. Na descrição e na análise da relação entre facilitadores de grupos reflexivos de
gênero e homens acusados de violência, procurei evitar o tipo de pergunta sobre quais teriam
sido os motivos ou as razões para baterem em alguém ou o que legitimou o homem de bater em
uma mulher. Todas estas perguntas são válidas no contexto de reflexão sobre o exercício da
cidadania e das quais não fugi necessariamente. Porém, essa forma de abordar a questão do “ato
violento” remete a uma outra face da análise da violência, sua individualização e
consubstancialização no agente agressor. Com essa abordagem, corre-se o já sabido risco de
patologizar o comportamento, justificar as paixões ou culturalizar a desigualdade de poder
(MARTÍNEZ-MORENO, 2016a).
Como trabalhar a nossa indignação em relação a certos objetos de reflexão? É possível
ou mesmo desejável ignorar os nossos limites morais para analisar aquilo que chamamos de
violência? Quando reconhecemos nosso limite moral, como o relacionamos com os imperativos
morais desses outros com os quais entramos em interlocução? Considero que um passo inicial
está na compreensão da posição desses outros, na qual a análise da conformação do vínculo e
as narrativas emergentes na interação entre categorias jurídicas, de gênero e de parentesco nos
42
ajudam a entender processos de subjetivação, de conformação da noção de si e de
posicionamento no discurso (MOORE, 2007).
Compreender não implica acreditar, pois isto seria cair no jogo de verdade/falsidade que
Michel Foucault (1993, 1999) caracteriza como próprio dos dispositivos de saber/poder que
permitem classificar alguém como anormal. Compreender, neste caso, seria “problematizar”,
também em um sentido foucaultiano, o fato de certo comportamento ou posição no discurso
virar objeto de reflexão moral, científica e política em uma rede de relações de poder que dá
legitimidade às ações de reconhecimento, intervenção, punição e mudança desse objeto: a
masculinidade violenta do outro. Esta é uma questão ampla e complexa, que não tem uma única
resposta, mas àquela que esta tese pretende abordar e expressar uma reflexão que sirva de
contraponto à naturalização da violência na ideia de cultura, que permeia as práticas de
responsabilização que apresentarei nos próximos capítulos. Neste ponto, convido o leitor ou a
leitora a pensar sobre o posicionamento do pesquisador no campo e em como observamos,
escutamos, registramos, pensamos e, em última instância, descrevemos nossos interlocutores.
Dumont faz referência a um alerta epistemológico: a aquisição de consciência por parte
dos pesquisadores para distinguir entre o princípio ideal do analista e o dos interlocutores no
campo (STOLCKE, 2001), coisa que tentei fazer entre as reuniões de orientação, a literatura
antropológica e o divã. Este alerta, além de enfatizar os limites das nossas categorias na
constituição do “outro etnográfico”, faz referência ao registro das mudanças dos “modelos
ocidentais” e suas apropriações pelos “outros”, os quais se posicionam diante de discursos de
poder como os da cultura, do indivíduo ou da sociedade. Deste modo é possível registrar
conflitos entre modelos e atualizações das categorias emergentes no campo acadêmico, como
“gênero” ou “masculinidade”, que não só têm sido apropriadas pelas políticas públicas, mas
sim por esses outros objetos de análise 7 . Como enunciado por Duarte (2013), quando faço
referência ao modelo de Ocidente, estou falando de uma epistemologia que informa discursos
tanto acadêmicos, inclusive os dos antropólogos, quanto os utilizados pelo “cidadão comum”.
Considero que o registro de problemáticas sociais, o olhar etnográfico, a interpretação
sociológica e o agir político a partir de categorias como gênero, cultura ou violência são
susceptíveis à crítica levantada por Dumont, mostrando o seu caráter etnocêntrico e
sociocêntrico.
Aqui faço referência ao Movimiento Machista Casanareño da Colômbia, que se apropria da categoria “machista”
de acusação das feministas para incorporá-la a um discurso sobre identidade cultural do “hombre llanero” e
conformar uma plataforma política que concorre nos termos da democracia participativa com outros partidos
políticos (MARTÍNEZ-MORENO, 2013a, 2016a).
7
43
Dumont (1985) aponta a conformação de uma antropologia da ideologia moderna, a
qual pode ser apreendida através da linguagem, concebida como veiculo de comunicação das
ideias e dos valores. Esta antropologia enfatiza a noção de “diferença” na análise dos fatos
sociais totais, os quais divergem de sociedade para sociedade. Enfatiza ainda as relações
hierárquicas entre diferenças, sendo uma delas a do observador e a outra a dos portadores das
ideias. Estabelece-se uma distinção entre nós e eles, uma diferença de caráter moral que mostra
uma fronteira da compreensão do raciocínio do outro, do qual deriva a necessária explicitação
da posição do observador para efeitos comparativos. O estudo comparativo da ideologia
moderna envolve os níveis de experiência e de pensamento dos representantes de cada
sociedade para refletir sobre a posição relativa dos valores para cada sociedade. Por ser uma
relação de mão dupla, a comparação, além de compor um quadro sobre a posição do outro,
interlocutor no campo (os facilitadores de grupos reflexivos de gênero e os homens acusados
de violência), permite compreender melhor a posição do observador e daqueles que se assumem
como agentes da modernidade (ou da civilisation). A noção de hierarquia, cara à análise
dumontiana, permite comparar a posição de valores, o englobamento de um sobre outro, para
apontar diferenças entre epistemologias. Para Dumont, a posição relativa entre valores mostra
a maneira particular de cada sociedade pensar seu registro moral.
Neste ponto é importante lembrar que a noção de hierarquia segundo um senso comum
do moderno é antônimo de igualdade. Ele se constitui como um antivalor para as sociedades
modernas, de modo tal que o valor da liberdade contrapõe-se ao de interdependência. Isto traz
um diálogo interessante entre agendas de pesquisa interdisciplinares engajadas com a
reivindicação de direitos humanos, no caso, as que configuram o campo das masculinidades, e
“uma tradição sociológica” que a partir de Durkheim coloca o foco analítico na noção de pessoa
e na constituição do elo social na interdependência e precedência entre pessoas, como é o caso
da análise desta tese.
Feito este enquadramento teórico e motodológico, os capítulos a seguir apresentam a
etnografia sobre o processo de responsabilização do homem autor de violência no marco da Lei
Maria da Penha e sobre a tensão entre propostas de pessoa humana entre agentes da civilisation
e representantes de uma Kultur que dão conta de diferenças entre noções de dignidade.
44
Capítulo 1
“O que é ser homem?”: homens igualitários e pela equidade de gênero
In diesen heil’gen Hallen,
Kennt man die Rache nicht.
Und ist ein Mensch gefallen,
Führt Liebe ihn zur Pflicht.
Dann wandelt er an Freundes Hand,
Vergnügt und froh ins bess’re Land.
In diesen heiligen Mauern
Wo Mensch den Menschen liebt,
Kann kein Verräther lauern,
Weil man dem Feind vergiebt.
Wen solche Lehren nicht erfreu’n,
Verdienet nicht ein Mensch zu sein.
Aria de Sarastro, Ato 2, cena 13
da ópera Die Zauberflöte8
Este capítulo tem o propósito de apresentar meu campo de pesquisa e, a partir da
perspectiva de alguns dos agentes promotores de masculinidades igualitárias e ativistas pela
equidade de gênero, dar a conhecer uma história social da conformação dos grupos reflexivos
de gênero na cidade do Rio de Janeiro. Como mostrarei nas próximas páginas, a inclusão atual
dos grupos na implantação da Lei Maria da Penha tem relação com o imperativo de construção
de uma “sociedade civil”, que valoriza “igualdade” e “poder do indivíduo” e se opõe a valores
tidos como próprios do regime da ditadura mlitar, como os de “hierarquia” e “autoridade”.
Também apresento certos valores e ideais éticos de cidadão como parte de uma narrativa moral
sobre a modernidade que se configura na interseção entre mudança de regime político
brasileiro, ativismo pelos direitos das mulheres, pesquisa acadêmica sobre o gênero nos
homens, cooperação internacional para a transformação social e posicionamento crítico de
alguns homens em relação ao que eles consideram expressões da cultura patriarcal e da
masculinidade hegemônica. No final do capítulo, faço menção ao debate sobre judiciarização
das relações sociais, pois ele vincula a narrativa moral sobre a modernidade, o projeto de
construção de sociedade civil, a discussão sobre efetivação da Lei Maria da Penha para a
8
Nestes salões sagrados, / não é conhecida a vingança. / E se um homem cai na infelicidade / o amor o conduz ao
dever. / Então, guiado pela mão amiga, / alegre e contente ele caminha para uma terra melhor. / Nestas paredes
sagradas, / onde o homem ama ao homem, / nenhum traidor pode espreitar, / porque perdoa-se ao inimigo. / Quem
não respeita essas doutrinas, / não merece ser humano. Aria de Sarastro, Sacerdote de Isis e Osiris do Templo da
Sabedoria. A flauta Mágica é uma ópera de Wolfgang Amadeus Mozart com libreto de Emanuel Schikaneder
(1791).
45
mudança social e os limites da conceituação do conflito e da violência como crime suscetível
de ser administrado pelo Judiciário.
1.1 Reconhecimento da experiência de ser homem entre a mudança política e a pesquisa
acadêmica
No fim de 2013 iniciei meu percurso etnográfico na cidade do Rio de Janeiro, uma
cidade que sempre quis conhecer quando criança, motivado principalmente pelo desenho de Zé
Carioca, um papagaio da década de 1940 dos estúdios da Disney e que retrata o “típico
malandro carioca” não só pelo figurino, mas também pelo seu “jeitinho”, que dava conta de
uma brasilidade ao mesmo tempo sedutora, criativa e que podia usar vias “pouco
convencionais” para resolver problemas, outorgando-lhe expertise. O Pato Donald,
coprotagonista em Alô amigos (1942), representava o gringo ingênuo que descobria uma
natureza exuberante na América do Sul junto com Zé, este outro moralmente diferente e que
fazia o contraste necessário para mostrar uma “latinidade” mágica ao ritmo do samba Aquarela
do Brasil, de Ary Barroso.
Chegar ao Rio de Janeiro foi um contraste com minha experiência de alguns anos
morando em Brasília, uma cidade plana, com um céu azul e infinito que outorgava a sensação
de imensidade às linhas retas e à arquitetura modernista, que fazem da capital do Brasil um
experimento do planejamento e da obsessão pelo poder político. Também com a vida
controlada, tranquila e excessivamente monótona para um estudante de pós-graduação várias
vezes classificado como “gringo” ou “latino” – talvez não tão ingênuo quanto o Pato Donald,
ao menos nisto eu gostaria de acreditar – que não tinha carro para se locomover pela cidade,
mas que desfrutava andar de bicicleta respirando o ar seco da cidade. Morando em Brasília,
sempre ouvia como referência o Rio de Janeiro em termos de moda e produção cultural, também
pelas alusões a políticos muito poderosos que dominavam o panorama político federal e pela
produção acadêmica engajada com agendas de direitos humanos não só em termos de gênero e
sexualidade, mas também de combate ao racismo e à intolerância religiosa.
Comentei que era um contraste porque, quando cheguei ao Rio de Janeiro, encontrei um
ambiente excessivamente úmido e uma cidade “caótica”, se comparada com o cartesianismo
brasiliense. Para mim foi marcante, e um pouco chocante, ver o contraste entre bairros com boa
infraestrutura de serviços da Zona Sul, mas tendo como pano de fundo as famosas “favelas”.
No entanto, o contraste não era só estético, era de organização, uso e concepção do espaço.
Zona Sul versus Zona Norte e Oeste; asfalto versus favela; população majoritariamente branca
46
no sul e no asfalto versus negros e nordestinos nas favelas e no subúrbio. Durante o primeiro
ano morando na cidade percebi um “ar aristocrático” na Zona Sul em contraste com uma
“atitude servil” do negro e do nordestino, pelo menos no asfalto, nos seus papéis de faxineiros,
porteiros, motoristas, entre outros ofícios.
Figura 1. No morro, a favela da Babilônia, no asfalto, o reconhecido bairro de Copacabana.
Algumas pessoas comentavam que o carioca estava acostumado a “conviver na
diferença”. Mas como se conformou e se legitimou essa diferença que ainda considero tão
contrastante e chocante para minha sensibilidade “mais igualitária”? Aproveitando a licença
poética dos parágrafos anteriores, e sem maiores pretensões analíticas, ainda hoje considero
que essa diferença mostra o Rio de Janeiro como uma sociedade quase cortesã, na qual todo
mundo tem seu lugar a partir da perspectiva da sua elite econômica e política. Percebo esta
como uma das razões da existência de um forte ativismo e de uma produção acadêmica que
visibilizam essa conformação da cidade e a experiência de cidadania das categorias sociais
subordinadas, que contrasta com o ideal de democracia e igualdade e rejeita valores associados
à ditadura, como veremos neste capítulo. A oposição faz explícitas as contradições políticas de
47
setores populacionais que aspiram à dignificação do seu modo de vida e às mesmas
oportunidades em termos de qualidade de vida, em um contexto em que ainda se respira esse ar
aristocrático do Império.
Estando no Rio de Janeiro, Marcos Nascimento foi fundamental para contatar
pesquisadores, funcionários públicos e ativistas, com os quais tive um primeiro panorama do
processo de “responzabilização de homens autores de violência doméstica contra a mulher” no
marco da Lei Maria da Penha. Graças a ele, reconheci que existia um amplo grupo de
professores, estudantes, consultores e servidores públicos que eram críticos dessa “convivência
na diferença” na cidade, chamando-a de “segregação” e de “violência”. Eles consideravam
problemático o racismo no Rio, as práticas de pacificação da polícia nas favelas e a violência
de gênero, logrando identificar um amplo interesse pela pesquisa e a efetivação da Lei Maria
da Penha. De fato, o primeiro juizado para esta lei surgiu no Rio de Janeiro, sendo a juíza
Adriana Ramos de Mello uma das principais protagonistas na sua institucionalização e também
na de outras leis, como a do feminicidio. Em seminários, workshops ou encontros entre
profissionais, conheci parte do debate em torno da implantação da lei, nos quais os homens
eram apresentados como sujeitos de tratamento psicológico ou punição (como mencionado no
seminário de São Paulo), que compartilhavam junto com os operadores de justiça
“representações de gênero” que não permitiam a percepção da vítima como sujeito de direitos
humanos. Como na Colômbia, várias apresentações recorriam ao recurso da “cultura patriarcal”
para explicar a existência dessas representações que se opunham ao dever filosófico da lei.
Nesses cenários a participação de homens era dada por ativistas, pesquisadores e alguns
servidores públicos das equipes psicossociais dos juizados. O número desses homens era
reduzido em relação à ampla representatividade das mulheres. Muitos deles estavam vinculados
ao trabalho de prevenção da violência com jovens e adultos através de esquemas de reflexão
sobre saúde e paternidade, e faziam questão de ressaltar a importância de ligar os homens com
o caminho que as feministas haviam começado a trilhar décadas atrás, o de alcançar a equidade
de gênero através do empoderamento feminino. Eles ressaltavam que “o trabalho com homens”
era anterior à lei e que na atualidade muitas organizações pioneiras nesse trabalho estavam
apoiando o Judiciário naquilo que eles qualificavam como um desafio: trabalhar com homens
autores de violência contra a mulher.
No segundo semestre de 2014 soube de um seminário dedicado à participação dos
homens na mobilização pela equidade de gênero nas instalações da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Marcos Nascimento era um dos palestrantes junto com Mauro Brigeiro, meu
colega na Escola de Estudos de Gênero anos atrás, também psicólogo e na época doutorando
48
em antropologia. Além deles, o outro expositor era Luiz Costa, psicólogo e educador popular
com trajetória de trabalho em comunidades da Zona Norte da cidade. Brigeiro apresentou um
panorama do “campo das masculinidades” a partir da descrição do projeto de pesquisa e
intervenção psicossocial “Homens, saúde e vida cotidiana”, considerado por ele “histórico”.
Nascimento expôs as duas principais políticas para homens vigentes naquele momento: a
própria Lei Maria da Penha e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem 9.
Costa narrou sua trajetória como facilitador, na qual vinculava seu trabalho político ao
profissional. Com menos ênfase na trajetória pessoal, Nascimento e Brigeiro ressaltaram que
existiam “motivações anteriores ao trabalho com homens” que os levaram a se interessar pelo
ativismo em favor da igualdade. Notei que o trabalho com homens, que conjugava interesses
de pesquisa e de mobilização política, estava fundamentado em experiências pretéritas e na
tensa relação de reconhecimento do masculino no contexto mais amplo das discussões com o
ativismo feminista.
Propus-me a levantar a trajetória de alguns dos agentes interessados na conformação de
grupos reflexivos de gênero, tendo como foco o perfil profissional e as motivações pessoais que
os levaram a esse trabalho. Em algumas ocasiões, gravei apresentações e palestras públicas, em
outras, realizei entrevistas. Na maioria dos casos, levantei informação sobre os dois tópicos, em
outras, não recebi resposta acerca das motivações. No diálogo com meus interlocutores, tentei
desenvolver uma conversa, evitando o formato de questionário ou mesmo de entrevista,
considerando que um relato “mais livre ou espontâneo” me permitiria abordar temas “íntimos”
sobre a trajetória pessoal. Antes de continuar com a descrição dos grupos reflexivos de gênero
no marco da implantação da Lei Maria da Penha, objetivo dos capítulos 2 e 3, apresento uma
história na qual é possível falar deles como um mecanismo de reconhecimento de uma outra
masculinidade que contrasta com concepções do poder localizadas no passado e que dão conta
da assimetria, da desigualdade, da arbitrariedade e da hierarquia como forma estética que não
permite o reconhecimento da dignidade humana. Esta história retoma elementos da trajetória
dos meus interlocutores para conformar uma crónica que se inicia na década de 1970 e culmina
com a implantação da lei.
9
Essa política era coordenada pelo Ministério da Saúde e trabalhava com cinco eixos prioritários: acesso e
acolhimento, paternidade e cuidado, doenças prevalentes na população masculina (como o câncer de próstata),
prevenção de violência e acidentes, e saúde sexual e reprodutiva. Ver em: http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/
connect/agencianoticias/site/home/noticias/2015/ms_poe_saude_do_homem_em_destaque.
49
1.2 Uma alternativa ao autoritarismo
Uma noite, em um pequeno restaurante do Leblon, conheci Fernando Acosta, terapeuta
de família e analista, um dos pioneiros do trabalho com grupos reflexivos de gênero. Ele era
um homem de cerca de 50 anos, bastante sorridente e calmo, que se mostrava disposto a falar
sobre seu trabalho. Essa não era a primeira vez que ele comentava sua trajetória. Acosta era
uma referência no Brasil e só no ano de 2002 deu cerca de 600 entrevistas para emissoras de
rádio, jornais e programas de televisão. Algumas semanas antes do nosso encontro, ele havia
sido entrevistado por outros pesquisadores vinculados ao Instituto de Estudos da Religião (Iser)
para falar da sua trajetória profissional e do trabalho que realizou junto com o instituto na cidade
de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, implantando o serviço de
responsabilização para homens “Ser H” (cf. SANTOS, 2013).
Acosta começou a trabalhar com homens “por questões pessoais”. Ele tinha um
relacionamento conflituoso com seu pai, um militar que, embora não tenha apoiado a ditadura,
não deixava de ser “autoritário”. Era o fim da década de 1970 quando ele estudava psicologia
na Pontifícia Universidade Católica no Rio de Janeiro. Ali foi militante contra a ditadura como
parte do movimento estudantil, no entanto, se recusava a ingressar em algum partido de
esquerda por considerá-los igualmente autoritários. Acosta rejeitava a saída armada proposta
por algumas organizações, achando contraditória essa alternativa política: não era possível
reivindicar liberdades e igualdade de direitos dentro de uma organização “muito vertical que
nem reconhecia a diversidade sexual”. Ele percebia que se fosse gay não o aceitariam nessas
organizações. Só o movimento estudantil considerava importantes as “questões subjetivas [que]
eram políticas”. Militando no movimento, Acosta desenvolveu seu interesse em trabalhar nas
favelas, considerando que os psicólogos deveriam se afastar das instituições e reconhecer as
demandas das comunidades. O encontro com a obra de Wilhelm Reich foi importante para
enquadrar seu enfoque longe dos consultórios. Acosta ressaltava a importância deste autor não
só para o tipo de terapia que realizava nos últimos anos, mas para compreender que, graças a
ele, era possível conceber o que posteriormente se chamou de “perspectiva de gênero”.
Fernando Acosta comentava com entusiasmo que Reich era um discípulo de Sigmund
Freud, que retomou seus estudos sobre sexualidade desenvolvendo uma abordagem
psicoterapêutica com a linguagem corporal: os “grupos de higiene sexual”, descritos no livro O
combate sexual da juventude 10 . Este livro, dizia Acosta, permitiu a conformação de uma
10
Livro originalmente publicado em alemão em 1930, cuja primeira tradução ao português data de 1972.
50
plataforma política para a defesa do direito ao aborto e à liberdade da vida sexual para os
homossexuais, ao mesmo tempo em que constituiu uma ameaça para a psicanálise, para o
nazismo, em ascensão na época, e para o comunismo, razão pela qual ele foi expulso deste
partido. A obra de Reich foi inspiradora para seu trabalho nas favelas, permitindo-lhe questionar
os argumentos sobre o casamento indissolúvel e propor a educação sexual nas escolas da
Rocinha, favela da Zona Sul do Rio, iniciado na década de 1980. Longe dos consultórios,
Acosta organizou mais de 22 grupos sobre saúde sexual e reprodutiva com mulheres, as quais
“sempre traziam o tema da violência doméstica”. “Eu não escolhi trabalhar com violência nem
com masculinidades”, contudo, o tema o “pegou pelas costas”. Ele via que nos grupos “essa
mulher se transforma e começa a ter outros recursos para lidar com os homens”, mas sabia que
se não trabalhasse com os parceiros sentimentais, a mudança não seria completa. A grande
preocupação do jovem psicólogo era como engajar os homens na discussão sobre saúde e
sexualidade.
Fernando Acosta tentou formar o primeiro grupo com homens no início da década de
1980. Ele convidou alguns dos seus amigos, que não eram um “protótipo de masculinidade” –
como ele mesmo, comentando entre risos – para conversar sobre sexualidade. O grupo contou
com poucos participantes e não teve continuidade por diversas razões. De todo modo, apesar
dos poucos encontros, ele notou como foi importante para alguns dos seus convidados. Um
deles comentou, por exemplo, que era “veado”, e reconhecia que o grupo não era ameaçador,
ele podia falar de maneira livre. As falas dos seus amigos lhe deram mais motivos para
conformar um grupo no futuro.
A década de 1970 foi caracterizada por alguns interlocutores como de intensificação do
autoritarismo da ditadura militar, e a de 1980 como de “reação” aos valores herdados desse
período político no Rio de Janeiro, que implicavam uma “transformação” a partir de múltiplas
reivindicações pela liberdade e os direitos civis. Em algumas das nossas conversas no café do
Espaço Itaú em Botafogo, Marcos Nascimento comentava que nos anos 80 aconteciam variadas
manifestações artísticas e “performances”, como recitais de poesia ou peças teatrais,
apresentadas em largos, praças, bares ou universidades11. Nesse contexto, um grupo de homens
de “classe média zona sul carioca”, interessado nos “encontros e desencontros entre o
masculino e feminino”, começou a questionar sua masculinidade e as relações com as mulheres
a partir da pergunta “o que é ser homem?”. Na sua dissertação de mestrado: Desaprendendo o
silêncio: uma experiência de trabalho com grupos de homens autores de violência contra a
11
Mariza Corrêa (2001) narra manifestações artísticas similares relativas ao desenvolvimento do movimento
feminista da cidade de São Paulo para a mesma época.
51
mulher (NASCIMENTO, 2001), a primeira registrada sobre o tema dos grupos reflexivos de
gênero, Nascimento afirma que essas performances iniciais expressavam desejos, sonhos,
projetos de vida, sexualidade e angústias, as questões subjetivas (que mencionava Acosta), mas
sem o compromisso político do movimento estudantil. Para Nascimento, a inquietação de
alguns homens em função de sua “condição masculina” chamava a atenção sobre aspetos da
“vida emocional e afetiva” e dizia a respeito de um “ideal romântico” sobre possíveis relações
mais igualitárias entre homens e mulheres.
Nascimento comentava que, durante seu tempo de estudante de engenharia civil, ele via
cartazes sobre grupos de homens que ofereciam descobrir “seu verdadeiro homem”, virar um
“novo homem”: sensível, afetuoso e emocionado, conectado com uma “energia masculina
profunda” e “cúmplice” do universo feminino. Finalizando a década de 1980 e entrando na de
1990, a ideia de uma “crise da masculinidade” foi tema discutido por psicólogos, psicanalistas
e escritores em encontros de diversos tipos, desde alguns informais até congressos de caráter
acadêmico no Rio de Janeiro. Naquele momento, Nascimento começou trabalhar com homens
de distintas características socioeconômicas em torno de “crenças e valores sobre o que é ser
homem”, para entender o que seria “ser homem de verdade” e a “supervalorização da
masculinidade”. Motivado por esta experiência, ele ingressou no curso de psicologia para “aliar
a inquietude pessoal ... a um aprofundamento acadêmico e profissional” (NASCIMENTO,
2001, p. 1-2). Isto lhe permitiu conhecer “incertezas, angústias e frustrações na relação consigo
mesmo” dos homens com os quais ele se relacionou.
1.3 Um grupo entre amigos
Paralelamente, nos primeiros anos da década de 1990, Fernando Acosta foi chamado
para fazer um grupo sobre sexualidade em uma organização não governamental vinculada à
Igreja Católica. Ali conheceu Gary Barker, psicólogo estadunidense, que trabalhava prevenção
de HIV-AIDS com jovens e meninos de rua, seguindo os postulados de educação popular de
Paulo Freire. Este foi o primeiro contato de Acosta com a “discussão de gênero”, em uma época
em que gênero “significava mais mulher e talvez populações LGBT”. Acosta decidiu retomar
a ideia de fazer um grupo de homens, convidando Barker e outros conhecidos e colegas: um
jornalista inglês e três amigos médicos, os quais continuaram trabalhando com homens
posteriormente, desenvolvendo projetos em organizações não governamentais. “Esse grupo foi
ótimo”, lembrava Acosta com entusiasmo.
52
Para Gary Barker, esse grupo estava inspirado na linha de terapia de grupo que era
trabalhada nos Estados Unidos e na Europa. Nesses primeiros anos de 1990, eles estavam lendo
o sociólogo Victor Seidler, que sistematizou sua experiência de trabalho em grupo com homens
na Inglaterra na década de 1980. Outros referentes foram o sociólogo norte-americano Michael
Kimmel (que dialogava com a interseccionalidade) e na época Robert Connell, hoje Raewen
Connell, também socióloga australiana que cunhou o conceito “masculinidade hegemônica”.
Barker e Acosta começaram a dialogar com a literatura feminista, concebendo os homens como
“marcados pelo gênero” e em “lugares de poder” particulares na sociedade. Estes autores lhes
davam “ideias teóricas” que debatiam dentro do grupo. Barker e Acosta concordaram em
afirmar que o grupo não tinha um “caráter terapêutico”, embora muitas vezes este fosse o estilo
dos encontros. De todo modo, como afirmava Barker, o grupo lhes servia para “questionar o
que eles aprenderam quando crianças e adolescentes sobre o mundo com a ótica de um
homem”.
Gary Barker foi descrito por quase todos os meus interlocutores como um agente
importante na conformação do campo das masculinidades no Rio de Janeiro. Eu já o havia
conhecido em Florianópolis anos atrás, tendo sido ele comentarista do meu trabalho como
gestor de política pública em Bogotá, mas reencontrá-lo pessoalmente foi difícil. Depois de
algumas tentativas de marcar entrevista no Rio de Janeiro, finalmente pude conversar com ele
por videoconferência. Ele estava em Washington, cidade da sede principal de Promundo, uma
organização da qual é fundador e diretor, que trabalha, desde a década de 1980, esquemas de
prevenção de HIV-AIDS e direitos sexuais e reprodutivos com adolescentes e grupos de
homens em comunidades, com recursos do governo brasileiro e cooperação internacional. O
tema de trabalho com violência de gênero era mais recente dentro de sua organização, que
priorizava o das paternidades presentes na criação com o propósito de propiciar masculinidades
igualitárias. Este era o eixo de um projeto internacional: “MenPlus”, desenvolvido
simultaneamente em dois países da África, um no Sudeste asiático e outro no Brasil. O projeto
do Instituto de Práticas Sistêmicas que documentei no meu trabalho de campo desenvolvia
alguns componentes de “MenPlus” no Brasil.
Promundo iniciou atividades no Rio de Janeiro, cidade na qual Barker fez trabalho de
campo para seu doutorado em psicologia do desenvolvimento infanto-juvenil. Seu propósito
com a organização era o de “levar o campo de pesquisa de gênero para o campo da prática”.
Barker afirmava repetidas vezes sobre a importância da “prática” e da “incidência política” dos
projetos de empoderamento, dos documentos de política pública e acadêmicos e das
articulações entre atores interessados na equidade. Para ele, gênero e sexualidade não podiam
53
ser debates restritos aos centros acadêmicos, mas maneiras de possibilitar “transformações das
identidades”, de modo tal que as “masculinidades hegemônicas sejam questionadas”. Para
alcançar este objetivo, Barker priorizou o trabalho da sua organização no desenvolvimento de
metodologias que permitissem “medir o impacto dos projetos ... não só no indivíduo, mas no
sistema”. O grupo reflexivo fazia parte dessas metodologias:
uma abordagem que parte de uma reflexão de como a pessoa aprendeu a ser
homem e, depois, de como ele é nos termos da relação, se usa violência ou
não, qual violência ele viu. A aprendizagem de um grupo reflexivo na parte
política e social parte do pressuposto de que o pessoal é político. Mas isso é o
início, depois o político é político. ... Queremos fazer visíveis iniquidades:
racismo, classismo, iniquidades de gênero, não só mudanças de
comportamento de pais com filhos, mas de entender e mudar os contextos
onde vivem as pessoas.
Em relação ao primeiro grupo para o qual foi convidado por Fernando Acosta, Barker
lembrava que o “espírito do grupo” tinha como referência a maneira “cooperativa” daqueles
formados por mulheres e feministas e dos de empoderamento inspirados na pedagogia freiriana
(que ele trabalhava com meninos de rua). A diferença destes últimos era que eles, como
“homens heterossexuais”, não se encontravam na categoria de “vítima”, como estariam os
homossexuais. No entanto, questionavam a “masculinidade hegemônica” que os colocava em
“situação de poder”, permitindo desse modo “uma reflexão crítica sobre gênero para si mesmo”.
Comparando o grupo com as máscaras de oxigênio em um avião, Barker comentava que “ser
consciente da situação de poder, saber quem sou eu e para onde eu vou como homem” lhe
permitiam, primeiro, colocar a máscara em si para depois “ajudar a pessoa ao seu lado”. O
caráter social e político do grupo devia prevalecer sobre o acadêmico, e um bom facilitador
precisava estar consciente disto.
1.4 “Homens, saúde e vida cotidiana”
Se a década de 1980 foi de questionamento do autoritarismo e de transformação para
uma perspectiva igualitária, a de 1990 foi descrita por vários interlocutores como de alta
mobilização e financiamento de projetos. Gary Barker foi contratado pela Fundação MacArthur
dos Estados Unidos para fazer um mapeamento de organizações que trabalhavam com homens
no Brasil. Fernando Acosta passou a integrar o projeto de pesquisa e ação “Homens, saúde e
vida quotidiana”, financiado pela também norte-americana Fundação Ford. Este projeto foi
54
desenvolvido entre 1998 e 2001 e constituiu um momento-chave na “emergência do campo de
estudos e de intervenção em torno dos homens”, em palavras de Mauro Brigeiro, que começou
sua trajetória acadêmica e militante agindo como pesquisador e facilitador de grupos reflexivos
de gênero para homens neste mesmo projeto.
No seminário da UFRJ ao qual me referi no início deste capítulo, Brigeiro argumentava
que “Homens, saúde e vida cotidiana” permitia compreender as articulações entre militância,
academia e intervenção. O projeto assumia a categoria “homem [como] representante dos
privilégios em todos os contextos sociais e relações de gênero”. Isto pressupunha assumir a
categoria homem como um “sujeito marcado pelo gênero”, que encarnava uma “diferença”
segundo a qual os pesquisdores podiam criticar a associação entre esta categoria e o sentido
genérico de humanidade, tornando-a “objeto” de reflexão e crítica. Brigeiro relacionou “as
condições de possibilidade” do projeto à existência prévia de debates acadêmicos sobre gênero,
já consolidados nas universidades na América-Latina, bem como a “operacionalização” desta
categoria em políticas de Estado. Também pela consolidação do HIV-AIDS como um problema
social que atingia homens homossexuais e que precisava de respostas de diversos sectores. Para
Brigeiro, as categorias de gênero e sexualidade não estavam desvinculadas das discussões
acadêmicas e políticas sobre homens e não era fortuito que elas aparecessem nos roteiros dos
grupos reflexivos conformados durante a implantação do projeto.
Mauro Brigeiro e Marcos Nascimento consideravam que outro fator importante na
consolidação do campo na cidade foi um movimento de política pública transnacional no
âmbito das conferências das Nações Unidas. Nessa instituição, ganhou força o argumento do
movimento de mulheres de que as suas condições de vida e de saúde só poderiam ser
modificadas na medida em que os homens transformassem seus padrões de comportamento e
atitudes. Conferências como as do Cairo, em 1994, e Beijing, em 1995, são indicativas dessa
órbita de produção de documentos políticos e técnicos. Brigeiro e Nascimento destacaram o
papel de agências financiadoras (como as já citadas fundações MacArthur e Ford), pois
permitiram a implantação de projetos sobre masculinidades com jovens em várias cidades
brasileiras, com exigência de trabalhar com a perspectiva da interseccionalidade, bem como
com a formação de “recursos humanos” na área acadêmica e de atuação profissional. Centros
como o CLAM (Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos) foram
beneficiários desses recursos de cooperação internacional, que permitiram estruturar uma
agenda de pesquisa e incidência política em gênero, sexualidade e direitos humanos.
Brigeiro descrevia o projeto “Homens, saúde e vida quotidiana” como o resultado da
articulação de instituições de pesquisa e ensino nas áreas de gênero e saúde: a Escola de Saúde
55
Pública da Fundação Oswaldo Cruz e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, as quais
desenvolveram pesquisa e ações de intervenção por meio de “grupos de reflexão”. Eles foram
pensados como um componente educativo de transformação social inspirado na proposta
política e pedagógica de Paulo Freire, que permitia “pôr em diálogo” temas de sexualidade,
violência, paternidade, identidade masculina, relações entre homens e mulheres, doenças
sexualmente transmissíveis, contracepção, entre outros. O projeto assumia a posição social dos
homens como incompatível com “novos contextos contemporâneos”. Brigeiro destacava que
para o projeto “os homens eram o obstáculo para a conquista de melhores condições no [nível]
social”. Como Barker, ele ressaltou que o estudo do “gênero masculino” estava “a serviço de
uma práxis”: a pesquisa fornecia ao serviço dados dos fins políticos do feminismo de
transformação de situações de desigualdade nas relações de gênero.
A metodologia dos grupos estava focada nas “experiências” dos participantes, às quais
os pesquisadores e facilitadores acediam através da pergunta “o que é ser homem hoje?”.
Brigeiro e seus colegas procuravam tornar evidentes para esses homens “novos e velhos padrões
de conduta, ideologias, estereótipos e representações”. “O velho” era um referente social de ser
homem, “o novo” era um “vir a ser” por necessidade pessoal ou por imposição do meio social.
A metodologia pressupunha que códigos e regras do sistema de gênero fossem configurados
historicamente e pudessem ser questionados no grupo, convidando à crítica da “cultura”. Para
a equipe do projeto, as relações de gênero não se limitavam àquelas entre homens e mulheres
ou outros homens, mas “permeavam as relações do sujeito consigo mesmo” e de outras
categorias sociais, como as crianças.
Mauro Brigeiro afirmava que as mudanças nas relações de gênero tiveram o efeito de
uma “crise da masculinidade”, que era visível nas “inseguranças e incertezas dos homens”. As
mudanças diziam respeito ao fato de que as mulheres estavam ocupando lugares de trabalho
dos homens e à constatação de que epidemias como o HIV-AIDS tinham um perfil masculino,
o que implicava uma “revisão de como esses homens estavam conduzindo sua vida e sua
saúde”. Não só para Brigeiro, mas para Barker também, era necessário identificar “traços da
masculinidade” que fossem nocivos para a saúde do homem e daqueles ao seu redor. Ao marcar
os homens com o gênero, a intenção dos pesquisadores era mostrar como a masculinidade trazia
prejuízos aos homens, sendo eles também “vítimas” de um sistema de gênero que lhes exigia a
expressão permanente de atributos de “dominação” e de “força”, não lhes permitindo
“reivindicar seu lugar como pais” no âmbito privado. Brigeiro afirmava com segurança que
“homens e mulheres eram prisioneiros do seu gênero”.
56
Figura 2. Homens, saúde e vida cotidiana. Relatório de atividades 1998 - 1999 do campo do Complexo da Maré.
A equipe do projeto conformava grupos nos quais os homens “se aglutinavam”, como
espaços de trabalho ou de lazer, principalmente na Zona Norte da cidade. Mas a demanda não
surgia espontaneamente, ela era construída com associações comunitárias, programas de
serviços de educação, saúde ou desenvolvimento social. Para Luiz Costa, o terceiro dos
palestrantes do seminário na UFRJ, a falta de representatividade de homens era um “problema
gravíssimo de potência”. Costa era psicólogo e professor primário no Complexo da Maré e foi
um dos facilitadores do projeto na época. Ele considerava que o fato de os homens não
57
conseguirem se olhar, tocar e “conectar com seus sentimentos” não permitia que
desenvolvessem seu “poder de maneira positiva” nas relações com os outros. Considerava ainda
que a dificuldade de os homens aderirem a programas sociais de gênero se devia ao fato de
serem “prisioneiros do sistema de gênero, que vem de um patriarcado milenar e que se mantém
para que não se mude o sistema”. Por último, Costa argumentou que “uma masculinidade
hegemônica não se traduz em uma experiência de vida satisfatória, ser dominador não quer
dizer que é bom”, o que era politicamente importante, porque permitia intervir nas comunidades
para “ter uma relação prazerosa com a vida”.
Para Costa era muito importante que os homens se olhassem durante os encontros, com
o objetivo de promover uma “compreensão relacional substantiva”. Olhar-se permitia “se
colocar nos sapatos do outro e ver que violência eu tenho em mim” – com este comentário ele
também fazia crítica a algumas feministas que desqualificavam o trabalho com os homens
processados no marco da Lei Maria da Penha. Costa insistia na importância de os homens se
abraçarem e terem contato físico, como uma parte fundamental para provocar a reflexão:
“dificilmente a gente mata ou agride quem a gente abraçou, quem a gente aprendeu a olhar nos
olhos e ter carinho”. Costa queria que os homens experimentassem o “prazer de uma vida livre”
e que, uma vez conformado o vínculo pela “afetividade do companheirismo e do respeito”, eles
pudessem “viver sem medo através do cultivo de uma masculinidade humana”.
Luiz Costa foi o palestrante que narrou sua trajetória de trabalho com homens de
maneira “mais pessoal”, fazendo referência a experiências da sua infância e adolescência, a sua
relação com seu pai e as mulheres da sua família. Ele agradecia a Deus por “ser diferente”.
Também lembrava, sem orgulho, que escutava as tias ou vizinhas dizerem que “todos os
homens eram iguais”, fazendo referência a histórias de abuso ou traição. De maneira calma,
como era sua maneira de falar, Costa narrou que foi abandonado por seu pai quando criança:
“eu cresci com uma enorme vontade de negar isso, não queria ser igual ao outro que eu vejo
que é um destruidor”. Como Fernando Acosta, a relação com o pai marcou um ponto de inflexão
que o fez reelaborar a ideia de ser homem, notando sua “diferença interior” em face de seu
genitor. Mas este não era o único ponto similar. Como Acosta e Nascimento, Luiz Costa
também estudou psicologia e se tornou “mais político”, ativista de direitos humanos, com o
propósito de que os homens fossem “iguais como seres humanos”.
58
1.5 Homens da Zona Sul do Rio de Janeiro
O projeto “Homens, saúde e vida cotidiana” foi implantado em comunidades da Zona
Norte de Rio de Janeiro. Não obstante, Fernando Acosta sempre recomendou que pelo menos
um dos grupos fosse feito na Zona Sul, considerando que os “homens de classe média e alta
também têm os mesmos problemas”. Acosta contatou um dos seus profesores do Instituto de
Terapia de Família, Carlos Zuma, que era fundador do Instituto Noos, reconhecido no Rio de
Janeiro pelo trabalho com violência na família. Antes mesmo da implantação do projeto em
questão, Acosta e Zuma queriam conformar um grupo de homens, agora eles tinham a
oportunidade, e o Instituto Noos virou um dos treze campos de que este projeto precisava.
Fernando Acosta, Luiz Costa e Willer Baungarten foram os facilitadores de um grupo
de profissionais, quase todos psicólogos, que após terminada a pesquisa continuaram se
reunindo e replicando a experiência com outros homens. O exercício era similar àquele feito
por Acosta e Barker alguns anos atrás: falar de si e dos sentimentos experimentados na relação
com homens e mulheres ao longo da vida. Para Costa, o grupo com homens da Zona Sul foi
importante, pois lhe ensinou a “ouvir no outro, a partir da escuta do meu próprio coração, do
meu sentimento de violência, sentimentos que são delicados, difíceis de serem trabalhados no
quotidiano”.
“O que é ser homem?”. Esta era a pergunta com a qual os facilitadores iniciavam o
processo reflexivo e que posteriormente permitiria vincular sentimento com trajetória pessoal.
Para Carlos Zuma, esta era uma pergunta que desconcertava muitos homens, porque para ele
“ser homem” era um dado, uma coisa certa que, quando questionada, possibilitava “parar para
pensar e colocar em palavras o que é isso, [o que] gera uma dificuldade”. Esta era uma
afirmação respaldada por Alan Bronz, psicólogo e terapeuta de família, que junto com Zuma
participou desse grupo da Zona Sul e posteriormente facilitou grupos em projetos dentro do
Instituto Noos e em outras organizações. Bronz definiu sua experiência no grupo como “forte
e muito mobilizadora” e considerou que normalmente homens e mulheres achavam que ser
homem era seguir “padrões de conduta” sem questioná-los. Dentro do grupo, Bronz também
“parou para pensar de forma sistematizada sobre isso”.
Em entrevistas e apresentações públicas sobre seu trabalho com homens, Alan Bronz
várias vezes narrou que “sempre [foi] crítico de um padrão de conduta tradicional”. Em algumas
oportunidades mencionou a relação conflitiva que tinha com seu pai, que era “autoritário e
pouco afetivo”. Como Fernando Acosta, ele se descrevia como um homem que viveu a abertura
democrática, posicionando-se em oposição aos valores do governo militar, que de um modo ou
59
outro representava o seu pai: “patriarcal” e “autoritário”. Nesse primeiro grupo, Bronz
conseguiu dar forma à pergunta “o que é ser um homem?”, transformá-la em uma questão ética
para sua vida, para se posicionar como um “homem diferente” diante de seu pai e de outros
homens.
Como narrado por alguns dos meus interlocutores, a relação com o pai era um tema
importante, discutido em vários encontros dentro desse primeiro grupo de homens da Zona Sul.
Este tema não era só uma questão coletiva, que foi modelada, definindo-se durante os encontros
reflexivos. Conversando com Alan Bronz sobre as motivações que o levaram a trabalhar com
homens, ele mencionou que o tema do seu pai era a “história latente”, como se referiam alguns
psicanalistas aos significados flutuantes que não ficam claros a partir da “história manifesta”,
que era contada em um sonho. Conversar sobre os conflitos de autoridade e a respeito das suas
diferenças com seus pais permitia que os homens desse grupo entendessem “questões mais
primitivas ou atávicas”, que ficavam manifestas e eram discutidas pela coletividade, o que
“enriquecia a experiência dentro do grupo”. Após ter passado pelo grupo e trabalhado o tema
com muitos homens ao longo da última década, para Bronz, a história com seu pai havia ficado
“mais residual”, pela oportunidade de fazê-la explícita e compreendê-la, chegando a ter uma
melhor relação com ele na atualidade.
Bronz também explicou que naquela época, no fim da década de 1990, a ideia de
“desconstrução e reconstrução” – totalmente voluntária – do gênero era uma possibilidade a ser
atingida. Essa possibilidade era tão clara para os facilitadores e os participantes do grupo que
Bronz chegou a afirmar “não sou heterossexual, estou heterossexual”. Seguindo argumento de
Judith Butler, filósofa que então inspirava as discussões grupais, Bronz chegou até a questionar
sua “orientação sexual” na desconstrução da relação entre heterossexualidade compulsória,
masculinidade hegemônica, autoritarismo e hierarquia. A partir das intensas discussões no
grupo, compreendeu que era possível “me reconstruir e adotar outra orientação sexual”. Porém,
ele percebeu que não era assim que funcionava “o desejo” e que a discussão sobre orientação
sexual estava longe de terminar – comentou isto entre risos, fazendo um paralelo entre um
passado otimista e um presente carregado de experiência que lhe permitia ser crítico dos
supostos filosóficos desses primeiros grupos.
Carlos Zuma e Alan Bronz lembraram que todos os participantes ficaram muito
entusiasmados com esse primeiro grupo de homens da Zona Sul e fundaram o Núcleo de Gênero
e Cidadania do Instituto Noos. Fernando Acosta, Luiz Costa, Carlos Zuma, Alan Bronz, entre
outros, continuaram estudando gênero e violência para aprimorar a experiência de trabalho em
conflito familiar e pensar a “violência exercida pelos homens e por eles mesmos por serem
60
homens”, como afirmou Bronz. Os integrantes do núcleo leram textos da socióloga Heleieth
Safioti (considerada um ícone do feminismo no Brasil por Fernando Acosta), que diziam
respeito ao “gênero da violência” como masculino. Os textos da antropóloga Bárbara
Mussumeci Mourão sobre “violência doméstica” também animaram longos debates.
Fernando Acosta comentava que no núcleo não chegavam à conclusão nenhuma, para
eles não era fácil desvelar a relação entre violência e identidade masculina. Tanto Acosta quanto
Bronz manifestaram que a partir dessa época “sentiam um incômodo” com a categoria de
gênero, que estava muito associada à mulher e ao movimento feminista, o qual localizava no
universo masculino a violência. Embora Mourão houvesse trabalhado o tema de
masculinidades, Bronz lembrava que nesses primeiros textos sobre violência “não se procurava
estudar os homens, compreender o lado deles, criar uma epistemologia masculina, digamos
assim”. Para aprofundar a discussão, os integrantes do núcleo decidiram trabalhar diretamente
com os “homens autores de violência”, a fim de reproduzir o que eles viveram no âmbito do
projeto. Para Bronz, os integrantes do núcleo queriam que os homens autores de violência
também tivessem a oportunidade de “parar para conversar sobre ser homem [e] de crescer
pessoalmente”.
1.6 Campartilhando a experiência com os homens autores de violência
Ao final da década de 1990, o núcleo entrou em contato com Luís Eduardo Soares,
antropólogo e cientista político que era secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, e
com Bárbara Mussumeci Mourão (à época conhecida como Bárbara Soares, quando casada com
Luís Eduardo Soares), subsecretária de Segurança das Mulheres do Estado. Os psicólogos e
antropólogos – os primeiros representantes da “sociedade civil” e os segundos “do Estado”,
como lembrava Alan Bronz – formularam um esquema de “prevenção da violência” com os
“homens autores de violência”. Foi nesse período que esta categoria foi cunhada por Fernando
Acosta, pois para ele “sintetizava o pensamento da época”. O esquema de intervenção pretendia
fazer uma “abordagem responzabilizante”, como concebido por Bárbara Mourão, sendo esta
uma proposta “de dentro para fora”, ao contrário da solução punitiva que da perspectiva de
Acosta vinha “de fora para dentro” – tanto Carlos Zuma quanto Alan Bronz faziam questão de
mencionar que eles não foram os primeiros nem os únicos a fazerem grupos com homens
autores de violência; nessa época, outras organizações no Rio de Janeiro e em outros estados
também realizaram grupos com homens considerados violentos.
61
Carlos Zuma, Fernando Acosta e Alan Bronz lembravam do primeiro “grupo
experimental” realizado em 1999 com policiais militares do Nono Batalhão, presos na prisão
de Bangu. Esses policiais estavam desligados do serviço pelo uso abusivo da força. Para Zuma
e Bronz, o conceito de ser homem desses policiais fazia com que realizassem seu trabalho sem
as medidas de segurança pessoal: eles não usavam capacete, luvas ou colete porque se achavam
“machos”. Zuma considerava que para esses policias só existiam duas categorias de homem:
policiais e bandidos e, “se você estava fora dessas categorias, você não era homem”; por esta
lógica, podiam muitas vezes ser tomados como “bandidos dentro de casa”.
Esse grupo foi caracterizado como uma experiência “bem-sucedida” por Zuma, Bronz
e Acosta, particularmente em função do que aconteceu durante a cerimônia de encerramento do
processo. Mal finalizadas as palavras protocolares de Luís Eduardo Soares e Fernando Acosta,
o representante dos policiais falou do “efeito positivo” que ele experimentou após ter
participado do grupo. Este policial comentou que a sua companhia era conhecida no batalhão
como “Cavalos selvagens” pelo fato do uso da agressividade, como ressaltava Zuma, mas que
agora eles se reconheciam como “gazelas saltitantes”. Acosta, Zuma e Bronz comentam esta
história entre risos e com muita satisfação em entrevistas feitas com cada um deles em distintos
momentos. Para Zuma, esses policiais haviam mudado a percepção que tinham do seu trabalho
e das relações com suas famílias: “essa foi a transformação deles, como eles conseguiram
afrouxar muito uma concepção que eles tinham do que era ser macho”. Este episódio pode ser
interpretado como uma grande gozação por parte do policial, o que não deixa de ser uma crítica
ao treinamento recebido, porém os três psicólogos sempre ficavam gratificados ao compartilhar
esta experiência.
Apesar de estar alinhado politicamente com o projeto igualitário do movimento
feminista, esse grupo experimental com os policiais fazia com que Alan Bronz refletisse sobre
o papel dos homens na luta política das mulheres. Para ele, várias organizações de mulheres e
feministas em cargos de governo tinham uma “imagem depreciada do trabalho com homens”.
Bronz vivenciava um conflito porque
ao mesmo tempo em que eu queria que os homens mudassem, que pudessem
abrir possibilidades para se configurarem como homens de uma forma
alternativa à que eles estavam acostumados a ser, eu também procurava
defender, também queria melhorar um pouco a imagem dos homens.
Sem romper as relações com as organizações de mulheres, Alan Broz começava a adotar
um discurso mais próximo ao ativismo da “cultura de paz”, no qual a ideia de mediação de
62
conflitos era central. Durante parte do seu trabalho como facilitador, ele quis que os homens
evitassem a violência nas relações de casal, mais do que a equidade de gênero em si. Com este
novo paradigma, Bronz escreveu sua dissertação sobre terapia de família, refletindo sobre o
dispositivo da terapia de casal em relação à queixa de “serem violentos uns com os outros”. De
todo modo, Bronz enfatizava que durante seu trabalho como facilitador não realizava terapia,
mesmo que alguns homens chegassem no grupo buscando esta alternativa.
Figura 3. De cavalos para gazelas. Matéria de jornal que informa do grupo reflexivo realizado com policiais do 9º Batalhão
da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
63
Na mesma parceria com o governo do Estado do Rio de Janeiro, Fernando Acosta,
Carlos Zuma e Alan Bronz trabalharam com homens encaminhados por instituições estatais,
principalmente do Centro Integrado de Atendimento à Mulher. Este segundo grupo com
homens autores de violência gerou bastante controvérsia e às vezes oposição por parte de
algumas integrantes do Conselho Estadual do Direitos das Mulheres. O grupo foi realizado na
sala de reuniões do Conselho, que era considerado como um espaço das mulheres, sendo
inaceitável que precisamente ali os homens agressores se reunissem para falar e “serem
cúmplices”. Segundo Fernando Acosta, a percepção de algumas feministas era de que esse
grupo “não transformava”. Porém, dado o respaldo da presidente do Conselho, uma reconhecida
ativista, bem como de outras mulheres que consideravam importante a inclusão dos homens nas
transformações de gênero desejadas, os grupos continuaram se conformando e aos poucos
foram recomendados como uma forma de prevenção em documentos de política pública.
1.7 Uma perspectiva para a facilitação de grupos reflexivos de gênero
No marco da Lei 9.099 de 1995, dos Juizados Especiais, o Instituto Noos estabeleceu
uma parceria com o Ministério da Justiça para fazer grupos como pena alternativa, os quais,
depois de finalizada a verba oficial, tiveram continuidade com dinheiro da Fundação MacArthur
e de Promundo. A partir da sistematização dos grupos com homens autores de violência,
Fernando Acosta, Alan Bronz e Antônio Andrade Filho, outro participante do grupo reflexivo
dos homens da Zona Sul, escreveram Conversas de homem a homem: grupo reflexivo de gênero
(ACOSTA; ANDRADE & BRONZ, 2004). Para Bronz, já existia uma proposta consolidada
que valia a pena ser publicitada e difundida. A ideia da publicação era que ela pudesse ser
reproduzida facilmente para pessoas com interesse na facilitação desses grupos, como
efetivamente aconteceu na implantação de projetos posteriores.
Ao longo dos anos, essa publicação virou referência entre educadores populares,
ativistas e equipes psicossociais de instituições de saúde e justiça. O texto incluía aspectos
teóricos e técnicos para a facilitação e o desenvolvimento dos grupos. Porém, como Acosta
sinalizou, o fato de as pessoas interessadas não terem participado da experiência de grupo, um
dos requisitos para se tornar facilitador, colocava em dúvida a capacidade técnica de neófitos
no tema. Caso um facilitador não tivesse “a experiência pessoal”, sua narrativa seria
exclusivamente racional e seu trabalho, “mecanisista”, sem as “dimensões emocionais e
sensoriais”, o que terminaria por distanciar o facilitador do resto do grupo. Marcos Nascimento
estava ciente desta situação, sendo algumas das suas preocupações “quem era o facilitador?” e
64
“qual perspectiva que ele estava assumindo?”. Devido ao antecedente de trabalho de Acosta e
Bronz com a obra de Reich, para eles era fácil conceber certas técnicas de trabalho corporal,
consignadas na metodologia já publicada, e que faziam sentido pelo fato de serem facilitadores.
Porém, Nascimento via que muitas vezes essas técnicas eram repetidas como uma receita,
produzindo efeitos nos participantes que não eram aproveitados na reflexão grupal.
A perspectiva teórica e a metodologia para a facilitação não só estavam informadas
pelos estudos de gênero e feministas ou pela linha de educação popular, mas também incluíam
o trabalho da violência na família a partir da “perspectiva sistêmica” e do “construcionismo
social”, com o qual se procurava restabelecer um “equilíbrio de poder nas relações”. Para Carlos
Zuma, o construcionismo social era um movimento que se recusava a ser chamado de teoria e
tinha como premissa que a realidade era uma construção feita na linguagem e que não tinha
acesso objetivo. Na relação terapêutica ou de facilitação, o foco estava na maneira como as
pessoas descreviam a realidade. Conforme a pessoa expressasse sua experiência, ela teria uma
atitude diferente diante da vida. Zuma pensava que o construcionismo social dialogava muito
com a perspectiva de gênero, dada a consideração do carácter performativo da linguagem: se
as coisas eram construídas na linguagem socialmente, também eram as expectativas criadas em
relação aos homens e às mulheres.
Para Alan Bronz, “o instrumento básico do facilitador ou terapeuta no construcionismo
social é a pergunta”. Perguntar “o que é ser homem?” era o início de uma tentativa de juntar
lembrança, sentimento e trajetória com o objetivo de “abrir”, “elaborar” e “mobilizar” a pessoa.
Para Bronz e Zuma, essa pergunta gerava controvérsia entre distintas as respostas do que seria
ser um homem dentro de um grupo. Do conflito entre descrições, esperava-se a emergência de
outros “pontos de vista” e “posições” sobre a mesma categoria de gênero. Zuma mencionava
que para o construtivismo social sempre há uma “história oficial” que o narrador tem
padronizada e que durante a conversa é contada com pequenas variações, as “histórias
periféricas”, que às vezes contradizem a história oficial: “nesse momento, você coloca a
pergunta, o que a gente chama de abertura”. Bronz e Zuma aproveitavam essas contradições
para “obrigar a pensar a história periférica para incluí-la na história oficial”. Segundo Zuma,
era então que a pessoa mudava a narrativa sobre um tópico em particular: “mudou a narrativa,
mudou a atitude!”, o que necessariamente não implicava que ela assumisse uma atitude melhor
ou pior, mas simplesmente “diferente”12.
O construcionismo social tem entre suas técnicas formar histórias periféricas, “a equipe reflexiva”, que é um
grupo de pessoas observadoras do processo entre terapeuta ou facilitador e os sujeitos à reflexão. Em momentos
determinados, a pedido do facilitador, essas pessoas ingressam na roda de conversa para falar entre si do que
12
65
Mudar de narrativa era o objetivo último do grupo reflexivo, descrever e conceber a
realidade de uma maneira diferente para “transformar tudo”. Carlos Zuma sintetizou tal
propósito neste depoimento:
Um objeto que você nunca tinha visto antes e que você está olhando pela
primeira vez, você não sabe o que é aquilo e de repente alguém te explica qual
o funcionamento daquele objeto. Você pensa: “Ah! Que interessante! Então
serve para isso!”. Então você não tinha nem necessidade daquilo, mas você
começa a fazer uso daquilo, então é uma forma diferente de olhar para aquilo
e utilizar aquilo. Na medida em que você consegue dar outro sentido a um
mesmo significante aquilo abre outro mundo para você. Dar outro sentido a
uma coisa, passar a ver diferente e me comportar diferente. Se eu acredito que
ser pai significa exclusivamente sustentar meu filho, dar dinheiro para que ele
sobreviva, é isso o que eu vou fazer. Se eu me vejo impossibilitado de fazer
isso, eu acho que não tenho mais nada a fazer sobre isso.
Eu estou trazendo um caso concreto com um homem que veio aqui, a gente
trabalhou a questão da paternidade, o grupo inteiro ele calado. No final do
grupo a gente estava se despedindo: “pô você não abriu a boca e tal”, e ele
falou assim, “eu até tenho um filho, mas eu não vejo meu filho há três anos”,
o filho dele tinha cinco. “Por que você não vê seu filho”. “Eu me separei da
minha mulher, e há três anos estou desempregado e eu não tenho dinheiro para
contribuir com a pensão. O que mais eu posso fazer?”. Ele era uma pessoa que
se impôs um afastamento do filho porque o que ele acreditava que era uma
obrigação, ele não podia cumprir. A questão era mudar a visão que ele tinha
da paternidade. De repente, uma pessoa que se vê impotente se vê de novo
potente para alguma coisa.
Ao longo do tempo Bronz aproveitou seu aprendizado “do gênero nos homens” para
favorecer o processo reflexivo. Ele percebia “atributos dos homens no Brasil” que podiam ser
explorados, como a “honestidade”, a “franqueza” ou a “objetividade”. Bronz explica: “a gente
dizia assim, olha o negócio é o seguinte, aqui está correto, vamos ser o mais honesto possível
um com o outro, incluindo falar sobre o que vocês estão sentindo”. Na proposta de falar dos
sentimentos, ele usava a expectativa social da honestidade para que os homens falassem de si:
“é utilizar uma característica que normalmente se atribui aos homens de maneira positiva”.
Outro atributo utilizado de “maneira positiva” era a “brincadeira”. Bronz considerava que
muitas vezes os grupos se tornavam uma coisa “séria e punitiva”, especialmente quando
conduzidos por mulheres, as quais, no intento de afirmarem o programa feminista, assumiam a
brincadeira como “piadas machistas”, uma falta de respeito para com elas, ou como imaturidade
dos homens.
ouviram dos outros. A orientação para essa equipe é que não podem olhar para os integrantes do grupo porque “o
olhar convida para participar da conversa”. Segundo Carlos Zuma, o efeito de ouvir alguém comentando sobre o
que você falou também proporciona uma reflexão, ou seja, um afastamento daquilo de que se fala.
66
Bronz notou depois de vários grupos que brincar, contar piada e “sacanear” era uma
forma de “criar vínculo” e “intimidade com o outro”. Ele conseguiu enxergar este atributo de
gênero no momento em que tomou uma relativa distância da práxis feminista e começou a
experimentar a brincadeira para propiciar coesão do grupo. O papel dele como facilitador era o
de “permitir a confiança” entre os participantes para “produzir a abertura”, necessária para falar
dos sentimentos e de “conteúdos íntimos”. Com isto, Bronz buscava que os participantes
tivessem uma “identificação”: perceberem-se como iguais. O sentimento permitia não só o
igualamento, mas também a “humanização”. Ele é muito importante no processo reflexivo
porque “outorga sentido e concretude para nossa existência, eles nos aterram, é uma âncora no
nosso contexto. Eles nos posicionam e dizem onde estamos”. Bronz afirmava que no processo
reflexivo surgia um tipo de conhecimento de si que não passa pela racionalização ou pela
produção de ideias. Também não seria uma racionalização do sentimento simplesmente, mas
um momento no qual era possível “elaborar o sentimento por meio da lembrança do que a gente
sentia através das relações, fazendo um inventário sobre nós”. Esta seria uma primeira etapa,
para depois produzir um deslocamento da posição de si e fazer uma “crítica de você mesmo”.
1.8 O ativismo pela igualdade e a Lei Maria da Penha
Fernando Acosta mencionava que no início da década de 2000 houve uma “explosão de
grupos pelo Brasil”, momento em que viajou por quase todos os estados da União. Porém, na
percepção de Brigeiro, Nascimento e Barker, para essa mesma década também houve uma
“diminuição de intensidade do campo”: o número de pesquisas, eventos acadêmicos e projetos
caiu em relação à década anterior devido à diminuição do financiamento de cooperação
internacional, que presupunha capacidade já instalada no “nível local”. Mesmo assim, temas
como paternidade, violência de gênero e a saúde do homem continuaram na agenda pública
graças à articulação entre universidades, organizações não governamentais e instituições de
governo. Isto permitiu a implantação de políticas públicas e leis que deram certa continuidade
ao movimento feminista através de práticas estatais.
Marcos Nascimento destacou a chegada ao Brasil da campanha do “Laço Branco”,
oriunda do Canadá, como um momento importante para conformar redes de trabalho e articular
a que seria a maior rede sobre masculinidades no Brasil e do mundo: MenEngage, fundada em
2001. Para Nascimento, essa campanha deu um novo impulso à união entre organizações
brasileiras pela equidade de gênero, estabelecendo o dia 6 de dezembro como o “Dia nacional
67
da mobilização dos homens pelo fim da violência contra a mulher”13. MenEngage ajudou na
institucionalização dos grupos reflexivos focados na prevenção deste tipo da violência através
de projetos, desenho de políticas públicas e a elaboração da Lei 11.340 de 2006, mais conhecida
como Lei Maria da Penha. A colaboração dos homens com o conjunto de ativistas e
organizações responsáveis pela elaboração da lei não deixou de ter controvérsias, tensões e
resistências, particularmente das feministas em cargos de governo, que assumiam uma posição
“mais radical”: a da penalização.
Figura 4. Laço branco. Capa de DVD de capanha institucional do Laço Branco no Brasil.
13
A Campanha do Laço Branco surge por iniciativa de um grupo de homens em resposta ao Massacre de Montreal
na década de 1980, quando um estudante de uma faculdade de engenharia assassinou 14 alunas e a professora em
uma sala de aula. O assassino argumentava que as mulheres estavam tomando o lugar dos homens e eles tinham
que fazer alguma coisa a respeito.
68
Carlos Zuma destacou que ele trabalhou junto com o consórcio que escreveu a Lei Maria
da Penha, liderado por Jaqueline Pitangui e Leila Linhaires, para incluir o trabalho com os
homens. Ele mesmo conversou com a deputada Jandira Feghali para ressaltar a importância
deste trabalho no enfrentamento da violência contra as mulheres. “Quando a lei foi elaborada,
eu não tenho dúvida, mas também não tenho certeza de que nosso trabalho influenciou; pelo
menos elas colocaram a atenção aos homens na lei”, afirmava Zuma, considerando que a
menção aos grupos reflexivos não é explícita, mas deixa uma margem de manobra para que
eles aconteçam. Com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, a “abordagem punitiva” foi
privilegiada, reduzindo o orçamento e as ações de prevenção e “atenção paliativa” aos homens.
Marcos Nascimento e Alan Bronz comentaram que a ideia de serviços dirigidos aos homens,
sem serem eles agressores necessariamente, foram vistos como desnecessários pois, para as
agentes de governo, os homens eram a princípio “agressores”, tanto que Nascimento critica o
fato de os homens só aparecerem como tal na legislação. Para este último, este ponto teve
desdobramentos “ambíguos” na institucionalização da lei, porque não ficava claro se os homens
deveriam ser vinculados a esquemas de reabilitação ou reeducação, como descrito no artigo 35,
e não definia o que se entendia por essas ações.
Marcos Nascimento notou que os grupos reflexivos foram vistos como a alternativa
mais adequada a ser implantada no marco da lei. Porém, eles eram “uma batata quente” que
ninguém queria. Progressivamente, as equipes psicossociais dos juizados especiais de violência
doméstica e familiar contra a mulher adotaram a ideia dos grupos como a maneira mais
apropriada para dar conteúdo ao artigo referente aos homens. Apesar da existência de uma
metodologia publicada, a ambiguidade ressaltada por Nascimento colocava como um ponto de
maior interesse para meus interlocutores a necessidade de uma discussão mais acurada sobre o
enfoque e a formação dos novos profissionais em psicologia e serviço social que entraram na
cena após a institucionalização da lei. Como dito acima por Nascimento, Bronz e Acosta, a
formação do facilitador era importante para garantir os processos reflexivos e os supostos
filosóficos na base do projeto das masculinidades igualitárias. Esses novos profissionais não
eram necessariamente militantes, nem tinham interesse acadêmico nas teorias de gênero,
sexualidade, saúde ou paternidade, nem assumiam uma perspectiva sistêmica e do
construtivismo social. Nascimento advogava pelo estabelecimento de parâmetros claros para o
desenvolvimento dos grupos no âmbito do Judiciário, bem como para a formação desses
profissionais.
Nos primeiros anos da lei, existiu um grupo de trabalho encarregado de instituir
parâmetros sobre o funcionamento dos grupos com representantes da sociedade civil, do
69
movimento de mulheres, da Secretaria Especial para a Política das Mulheres, dos Ministérios
da Saúde e da Justiça e da Organização das Nações Unidas. Em 2011, no estado do Rio de
Janeiro, foram publicados alguns parâmetros técnicos para os profissionais das equipes
psicossociais visando padronizar os processos e os procedimentos. Um deles foi escrito por
profissionais das equipes técnicas (CORDEIRO; VIEIRA; UZIEL, 2011) e outro por Fernando
Acosta e Bárbara Mourão no marco da implantação de um serviço de responsabilização de
homens com o Instituto de Estudos para a Religião, Iser (ACOSTA; SOARES, 2011). Depois,
a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e a Coordenadoria Estadual da Mulher
em Situação de Violência Doméstica do Poder Judiciário do Rio de Janeiro estabeleceram a
Padronização do grupo reflexivo dos homens agressores (2012), documento destinado às
equipes técnicas de profissionais em psicologia e serviço social que procura a “uniformização
de procedimentos para estruturação, funcionamento e avaliação dos grupos reflexivos com
autores de crimes de situação de violência doméstica”. Este documento foi resultado do trabalho
realizado em um workshop facilitado pelo Iser com as equipes técnicas de cinco juizados do
estado.
Na década de 2010 os grupos reflexivos para homens já estavam institucionalizados em
vários juizados do Rio de Janeiro. Eram poucos os grupos realizados por organizações não
gobernamentais, que dependiam do financiamento de agências ou fundações. Paralelamente,
eles viraram objeto de análise acadêmica, tendo várias dissertações e teses defendidas em torno
da sua efetividade como ferramenta de mudança ou penalização dos homens autores de
violência contra a mulher.
Antes da Lei Maria da Penha, Marcos Nascimento foi um dos primeiros a escrever, em
2001, uma dissertação sobre grupos de homens. Ele os caracterizava como um espaço de
homossociabilidade de conexão entre as esferas privada e pública, no qual emergiam discussões
sobre ser homem e fazia-se uma “ação transformadora” que incidia no “sujeito” e nas “relações
sociais” para produzir mudanças no comportamento. Nascimento observava que o masculino
estava relacionado a “silêncios” sobre: os homens e a masculinidade; os próprios homens e sua
intimidade e afetos; e o uso da violência nas relações íntimas. Deste modo, era pertinente
conhecer e compreender a dinâmica dos grupos, para “desnaturalizar comportamentos e
atitudes sobre sexualidade, paternidade e violência” e propor estratégias para “desaprender o
silêncio [para passar] da reflexão à ação” (NASCIMENTO, 2001). Esta dissertação condensou
uma narrativa sobre a efetividade dos grupos em relação ao referente político igualitário que
estou caracterizando a partir dos depoimentos dos meus interlocutores neste capítulo e que vai
se repetir em todos os trabalhos sobre grupos reflexivos de gênero consultados.
70
Posteriormente à publicação da Lei Maria da Penha, uma vasta produção acadêmica
sobre a sua institucionalização caracterizou o debate sobre violência de gênero no Brasil. Tais
estudos retomam a discussâo feminista que a partir da década de 1970 orientava reconhecidas
pesquisadoras na busca por visibilizar identidades, relações e contextos nos quais as hierarquias
de gênero fundamentam o uso da violência, o desconhecimento de direitos, e a dificuldade na
compreensão do estatuto humano do sujeito mulher em sociedade 14. Alguns desses trabalhos
abordam de maneira explícita os grupos reflexivos de gênero dirigidos aos agressores e tentam
responder, com variações, a perguntas já colocadas por Nascimento em 2001 e que são comuns
ao debate dos estudos de gênero nas ciências sociais, jurídicas e humanas no Brasil – e na
América Latina:
O que leva um homem a usar a violência como forma de solução de conflitos?
Isso está relacionado com a produção e a reprodução de um certo modelo de
exercício de masculinidade? Como interromper o ciclo da violência, não
propiciando sua reincidência? (NASCIMENTO, 2001, p. 6).
Autores de diversas áreas15 consideram os grupos reflexivos de gênero no marco da Lei
Maria da Penha como ferramentas, mecanismos ou formas de responsabilização que
possibilitam – ou não – “reais” mudanças no comportamento dos homens, visando evitar a
reincidência de atitudes violentas. Alguns destacam que “a subjetividade do homem”
participante do grupo é apreendida através de representações que emergem da interação entre
homens e o facilitador do grupo. Essas representações dão conta tanto da “cultura” – patriarcal
– quanto de formas de objetificação do sujeito mulher. Tal objetificação só permite o
reconhecimento dos papéis sociais tidos por tradicionais, como mãe e esposa, os quais estão
submetidos ao exercício de poder do homem enquanto pai, esposo ou trabalhador. Também
deriva em opresão e violência em função de esses papeis não abarcarem a experiencia de “ser
mulher”.
Boa parte da análise contida nas teses e nas dissertações visa compreender o mecanismo
do grupo reflexivo em relação a processos burocráticos e práticas de formação de Estado
relativos à administração de justiça e à promoção da cidadania. Também aponta descrever o
14
Para maiores detalhes sobre o debate e seus desdobramentos analíticos e políticos, conferir GROSSI (2004) e
PAZO (2013).
15
Vale mencionar aqui áreas como a de saúde pública (COSTA LIMA, 2008; PRATES, 2013; MISTURA, 2015),
psicologia social (BEIRAS, 2012), estudos sobre mulheres, gênero e feminismos (CARVALHO DE OLIVEIRA,
2012), sociologia (SANTOS, 2012; AMANDO, 2014; MONTEIRO, 2014; LEÓN-AMAYA, 2015), antropologia
(SANTOS, 2013; MACIEL, 2014; LOPES, 2016), medicina social (PAZO, 2013), ciências sociais (SAMPAIO,
2014), ciências criminais (ELIAS, 2014), ciência jurídica (MERLO, 2014), administração pública e governo
(DENÚBLIA, 2015) e medicina preventiva (BILLAND, 2016).
71
alcance do grupo em termos de efetividade para propor avanços teóricos e especialmente
metodológicos para aprimorar o trabalho da responsabilização no processo jurídico. Trago estes
pontos de convergência na análise dos autores não com o intuito de concluir que eles chegaram
a pontos comuns ou que não se aprofundaram no seu campo de conhecimento específico. Cada
um desses trabalhos apresenta complexos debates que envolvem uma variedade ampla de
linhagens de autores de diversas áreas do conhecimento. O que chama a atenção é o pano de
fundo sociocêntrico, que permite perceber a ideia de uma sociedade civil, como anunciada pelos
meus interlocutores, integrada por cidadãos que compartilham o ideário ético proposto pelas
reivindicações feministas, e que se opõe a práticas consideradas anacrônicas e explicadas pelo
recurso da cultura.
Esse background dita as regras que o estado de direito deveria seguir em prol da
administração de conflitos e o reconhecimento de indivíduos como cidadãos com direitos. Esta
sociedade e o conhecimento científico que ela gera aparecem desfasados em face das práticas
do Judiciário, um pouco além, no futuro, nessa cronologia moral que localiza práticas que ainda
visam enquadrar indivíduos nos seus papéis morais como parte do passado. A área de interseção
entre sociedade civil e Estado, que também é uma brecha temporal, permite ver o avanço teórico
no debate e os pontos de crítica, que apontam para a adequação filosófica de processos
administrativos, jurídicos e de intervenção.
1.9 Da autoria para a situação: a violência em processo
Finalizando a década de 2000, fora do “campo acadêmico” stricto sensu, e após a
profusão de metodologias sobre grupos, Fernando Acosta, Alan Bronz e Carlos Zuma
começaram a reconsiderar o alcance da categoria “homem autor de violência” e optaram por
falar “da situação da violência”. Nessa reformulação, homens e mulheres estavam inseridos em
distintos graus e momentos, assumindo e alternando os papéis de “autor”, “vítima” ou
“testemunha”. Esta reformulação foi inspirada na obra da terapeuta familiar argentina María
Cristina Ravazzola (2005), que afirma que, para mudar o “circuito de abuso no sistema
familiar”, devem se fazer explícitas as perspectivas dos atores envolvidos na situação de
violência: agressor, vítima e testemunha. Desse modo é possível compreender como é mantido
esse circuito, as emoções de cada um dos partícipes (conceituadas como variáveis do contexto)
e as diferenças delas entre os atores. Para Acosta e Bronz, uma postura sistêmica permitiria
visibilizar múltiplas posições, perspectivas ou pontos de vista (multiplicidade de selfs, segundo
72
Ravazzola) dos protagonistas da cena violenta para haver maiores recursos de mudança na ação
terapêutica.
Fernando Acosta considerava que, para o momento atual (2014), era melhor falar de
“homem em situação de violência”. Ele explicou que quando se fazia referência ao autor da
violência, dava-se a impressão de que o homem agia de maneira “premeditada”, confirmando
o pressuposto de que “parte da natureza masculina é ser violento”. Sua experiência terapêutica
ao longo da última década (ele parou a facilitação de grupos e focou seu trabalho no
atendimento em consultório), particularmente baseada nas narrativas dos homens que ele
atendia, foi mostrando-lhe que existia “um número significativo de mulheres que agridem
homens”. Acosta começou a questionar a categoria que ele mesmo popularizou, considerando
que havia mulheres que, ao assumirem “posições de poder”, reproduziam o comportamento
masculino que muitas vezes era criticado na retórica feminista. Retomando as considerações de
Reich, Acosta assumiu a violência como “socialmente construída”, não devendo ser confundida
com “agressividade: a força psicológica que está no mundo animal”, e muito menos com um
“projeto de dominação masculina”.
Falar dos atores em situação de violência também permitia questionar a categoria
“mulher vítima de violência”, crítica que não era bem-vinda a algumas ativistas envolvidas na
implantação da Lei Maria da Penha. Fato que foi evidente no seminário de São Paulo, que
descrevi páginas atrás. Fernando Acosta recenhecia que, apesar da discussão em torno da
“vitimização” entre as feministas e da crítica que algumas acadêmicas haviam levantado nos
últimos anos, a categoria de “vítima” seguia associada fortemente à mulher e ao feminino,
particularmente nas políticas públicas. Para Acosta, conceber a “situação da violência”
contribuía para sair do pressuposto da relação entre o agresor e a vítima e problematizar “uma
visão marxista do gênero”, como ele mesmo afirmou, na qual uma classe de sexo masculina se
superpunha à outra feminina, oprimindo-a.
Acosta não estava minimizando o fato de que a maioria dos casos de violência doméstica
era perpetrada pelos homens, “mas um caso praticado pela mulher, isso já é para pensar, como
é que acabam as mulheres nesses lugares”. Ele argumentava que a partir dessa reformulação
seria possível pensar “a vitimização dos homens”, daqueles que eram assassinados pelas suas
companheiras, como uma forma de violência na qual o gênero tem tudo a ver. Mas, como em
todo debate, nem tudo era bem recebido. Acosta lembrava uma anedota, entre risos, mas dita
em tom sério, que em algumas ocasiões ele já fora acusado de “praticar violência de gênero”
por acadêmicas e gestoras das políticas para as mulheres, precisamente por propor essa reflexão.
Ele identificava uma “falha na comunicação” entre as gestoras da lei, pois elas não
73
incorporavam o conhecimento emergente nos consultórios, nem a evidência empírica de
algumas pesquisas. Acosta considerava que o discurso público estava descompassado em
relação às práticas de incidência política.
Figura 5. A situação de violência. Ilustração de uma cartilha para lideranças comunitárias do Instituto Noos para prevenir a
violência intrafamiliar e de gênero a partir de uma perspectiva sistêmica (Noos, 2010).
Apesar de estar mais próximo dos consultórios, Alan Bronz fez alguns grupos com
homens processados pela Lei Maria da Penha, sendo ele facilitador de grupos no marco de
alguns projetos de intervenção. Ele notou que a natureza dos grupos havia mudado, passando
de “por demanda espontânea” a “compulsórios”. A disposição dos participantes era distinta,
pois eles não estavam ali para se pensarem como homens, mas para receberem uma pena pelo
fato de serem homens. Bronz considerava que a “judicialização deve ser revista”. Para ele, a
74
penalização como solução para a violência não era o melhor caminho para propiciar uma
mudança interna que viesse a ressignificar as relações com os outros e a conformar sociedade
de uma maneira igualitária.
Bronz me explicou sua crítica à judicialização baseado no conceito “domínios de
existência” do biólogo chileno Humberto Maturana, que usou na sua dissertação de mestrado
em terapia de família (BRONZ, 2010). Ele argumentou que, nas relações, as pessoas se colocam
mais no lugar em que elas acham que o outro gostaria que elas estivessem: “eu posso ter uma
expectativa de que você quer se relacionar comigo e, se você quiser ser amigo meu, então eu
vou me comportar como um amigo seu”. Bronz considerava que se ele, como facilitador,
tratasse os homens como criminosos, esses homens iriam começar a se relacionar com a
sociedade como se fossem criminosos. “É isso o que a gente quer?”, me perguntava Bronz, para
depois afirmar que a penalização terminava piorando o relacionamento do casal, como já era
bem sabido. Ele considerava necessário sair da lógica dualista: “a da justiça tradicional”, que
muitas vezes atrapalhava os processos reflexivos, que eram conduzidos pelas equipes técnicas
e não pelos agentes do direito: “quem está na ponta ali, quem trabalha diretamente com esses
casos, vê que a fronteira entre vítima e agressor fica muito difusa”. Bronz considerava que, na
maioria dos casos, fazer um recorte entre agressor e vítima era uma tarefa arbitrária, tendo em
conta que a situação de violência era um processo em que os papéis se intercambiavam e as
desconsiderações eram mútuas.
Contudo, Bronz considerava que havia muitos casos nos quais “não tem jeito mesmo”
e precisava-se de “um terceiro com autoridade maior para interromper o ciclo da violência”.
Mas isto não implicava um sentido punitivo de enviar homem para a cadeia. Bronz comentava
que existiam situações agudas em que nenhum psicólogo, assistente social, centro de referência,
amigo ou familiar podia parar a atitude violenta do homem. Nesses casos, nos quais “a diferença
de poder é muito grande na relação entre o homem e a mulher, onde há hierarquia”, tinha que
atuar a Justiça e “ameaçar”. Embora Bronz fosse crítico da realização de grupos no âmbito do
Judiciário, ele reconhecia que era precisamente ali que a proposta dos grupos reflexivos de
gênero havia ganhado amplitude. A esfera da Lei Maria da Penha era uma oportunidade para
promover as “transformações sociais necessárias em beneficio de homens e mulheres”, porque
muitos homens eram encaminhados para os juizados em todos os estados do Brasil. Apesar das
críticas, o sonho prevalecia e Bronz era sempre otimista quanto ao trabalho dos juizados:
No fundo eu acho que os homens dizem: “pô, a gente foi educado para ser
assim, cacete, e agora vocês querem que a gente mude? Por quê? Para quê?
75
Eu sou assim e eu não me considero o agressor, eu acho que ela foi tão violenta
quanto eu fui com ela. Então para que mudar? É assim que eu aprendi, eu
estou acostumado com isso, não vejo maiores problemas em ser assim e nem
me considero violento. Então eu vou mudar para quê?”. Então eu acho que o
grupo é uma oportunidade para que eles possam discutir isso. Eu não quero
mudar eles mais, mas eu acho muito interessante que eles tenham a
oportunidade de encontrar formas de lidar com essa sociedade, que está
mudando e que exige que eles mudem. Homem é muito difícil.
1.10 A judicialização da violência doméstica contra a mulher
A história dos grupos reflexivos, como comentada pelos seus protagonistas,
complementa e coloca contrapontos em outras histórias já existentes sobre a genealogia da Lei
Maria da Penha. Várias pesquisadoras as remontam ao ativismo feminista de finais da década
de 1970 e elas remetem ao debate sobre a “judicialização das relações sociais”, particularmente
do crime de violência doméstica. Esse debate ressalta a criação de institucionalidade voltada
para a atenção à categoría “mulher vítima de violência”, à mobilização social para o desenho e
a implantação de políticas públicas para o combate à violência e à criação de uma “criminologia
feminista”, sensível às diferenças do lugar da mulher na vida social, para reivindicar o direito
a uma vida livre de violência. Também problematiza a distância entre a filosofia política – a
norma como ideal – e as práticas institucionais de proteção a mulheres, a prevenção da
violência, a resolução de conflitos no casal e na família e a punição dos infratores. Essa distância
permite ver representações de gênero, substratos culturais patriarcais, lógicas do Judiciário ou
ausências de compreensão por parte de funcionários e agentes de estado da categoria mulher
como cidadã com direitos humanos (SIMIÃO, 2015b; DEBERT & GREGORI, 2008).
Estas considerações visibilizam assimetrias de poder relativas a gênero, as quais
constituem desigualdades sociais e o desconhecimento da dignidade da mulher em termos
substantivos de igualdade de direito. Como suposto desta perspectiva, está a ideia da liberdade
individual da mulher e sua capacidade de escolha. Em correspondência, o “homem autor de
violência contra a mulher” age a partir de convenções de gênero para não perder sua autoridade
e suas prerrogativas de poder, estabelecendo a subordinação feminina. A Lei Maria da Penha
assume a violência como uma escolha em função da qual o agressor deve ser responsabilizado
individualmente, razão porque criminaliza ao mesmo tempo em que propõe reeducação ou
reabilitação.
Porém, como têm demonstrado pesquisadores sobre a efetivação de leis de combate à
violência (MIRTHES CORREA, 2015; SIMIÃO, 2015b; SIMIÃO & CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2016), da avaliação de casos no Judiciário emerge uma tensão entre a proteção dos
76
direitos da mulher enquanto indivíduo, representante dos valores de um projeto de sociedade
que dá destaque positivo a relações contratuais entre seus integrantes, que aqui temos chamado
de civil, e a procura da harmonia da família como valor social, núcleo de uma ordem social
maior. Nesta última perspectiva, a mulher como uma categoria de parentesco: mãe, esposa,
companheira, e o agressor como marido ou pai, considerando categorias de pessoa em
interdependência, tendo como referência uma concepção holista da orden social. Para autoras
como Guita Debert e Maria Filomena Gregori (2008), o crime de violência doméstica – a partir
de uma perspectiva holista – passa a ser um problema social que muitas vezes é remediado
através de conciliações, amplamente criticadas pelas feministas, bem como de intervenções
educativas e psicossociais, preenchendo o déficit moral dos participantes no conflito, e que, na
prática, não termina por penalizar o agressor.
As autoras relacionam a judicialização à revisão feita pelo movimento feminista do
sistema de justiça criminal para combater não só as práticas sociais consideradas violentas,
criminalizando-as, mas a banalização da dor e do sofrimento das mulheres vítimas da
institucionalidade. Foi assim que surgiram fortes críticas à Lei 9.099 de 1995, relativa aos
juizados especiais, que assumiam a violência doméstica como um “crime de menor potencial
ofensivo”. Esta lei convertia a pena em uma multa a ser paga e permitia o retorno do denunciado
ao lar, o que, muitas vezes, derivava na retaliação deste contra a mulher, vitimando-a ainda
mais. A judicialização propõe uma intromissão cada vez maior da noção de direito através da
lei como regulador e organizador da vida social, passando de maneira progressiva do âmbito
público à esfera privada. Pressupõe, ainda, um senso de justiça igualitário desenvolvido por
juristas, ativistas e acadêmicas para avaliar as desigualdades de poder em relações que antes
eram consideradas íntimas ou de domínio familiar. A Lei Maria da Penha faz parte desse
processo que busca traduzir o ativismo político, a pesquisa acadêmica e a filosofia política dos
Direitos Humanos (bem como convenções internacionais, como CEDAW ou Belém do Pará)
em práticas sociais e de Estado, que dignifiquem a categoria mulher como sujeito de direito.
Debert e Gregori consideram que “violência contra a mulher” como categoria construída
em um processo de três décadas de luta política é produto de deslizamentos semânticos de uma
leitura de gênero das relações sociais e das categorias jurídicas, como violência intrafamiliar,
violência doméstica, violência de gênero e violência conjugal. Violência contra a mulher acolhe
a tensão no Judiciário entre a titularidade da categoria mulher como sujeito hipossuficiente, a
crítica à vitiminação, que considerava as mulheres como sujeitos passivos da dominação
masculina, e a ideologia que as feministas têm chamado de “familismo”, que corresponderia à
visão holista da sociedade acima referida que ditamina os valores para administrar conflitos
77
para os operadores de justiça (SIMIÃO, 2015b). Por último, para Debert e Gregori, violência
contra a mulher contempla abusos, lesões e certas práticas tidas como patriarcais, machistas,
tradicionais ou culturais, que são classificadas como crime.
Com estes antecedentes, a Lei Maria da Penha institui um tratamento severo ao agressor,
prevê a criação de juizados de violência doméstica contra a mulher como espaço adequado para
o julgamento desses casos e cria um aparelho de apoio psicossocial de suporte às vítimas e, em
alguma medida, aos agressores. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, os juizados devem
estimular junto à equipe técnica (integrada por psicólogas e assistentes sociais) a criação do que
denominaram de “Serviço de Responsabilização e Educação do Agressor”, para acompanhar as
penas e as decisões proferidas pelos juizes. Este serviço deve promover atividades educativas,
pedagógicas e grupos reflexivos a partir de uma “perspectiva de gênero feminista” e de uma
“abordagem responsabilizante”, além de fornecer ao juiz relatórios psicossociais do
acompanhamento dos agressores (PAZO, 2013). Particularmente no Rio de Janeiro, há cinco
varas de violência doméstica contra a mulher na capital e outras tantas nas cidades de Niterói,
Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São Gonçalo. Elas conformam a Comissão Judiciária de
Articulação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que oferece as diretrizes às equipes técnicas psicossociais
sobre encaminhamento à rede de atenção às vítimas e trabalho em grupos reflexivos para
agressores.
Figura 6. Lei Maria da Penha. Capa e ilustrações de cartilha com o conteúdo da Lei Maria da Penha do Ministério Público
do Estado do Rio de Janeiro (2015).
78
Daniel Simião (2015b) considera que o campo de implantação da Lei Maria da Penha
tem uma tensão estrutural entre setores favoráveis ao recrudescimento do tratamento legal dos
homens denunciados, que consideram que a privação da liberdade é o caminho para mudanças
de atitudes permissivas a violências contra as mulheres, e setores contrários, que apelam para a
reeducação como parte da responsabilização e da assumção de autoria. Esta tensão remete ao
duplo movimento de 1. redução a termo do ato de agressão, feito a partir do momento da
construção do boletim de ocorrência na delegacia de polícia, que enquadra em categorias penais
a narrativa do acontecido pela vítima; 2. recomplexificação do conflito, que acontece no
atendimento dos profissionais das equipes técnicas ou multidisciplinares.
O primeiro movimento, além de reduzir significados em causa nos processos de
conflitos no mundo real, enquadra o processo em uma “lógica do contraditório”, própria do
sistema jurídico brasileiro, no qual duas teses opostas visam ao estatuto de verdade diante do
juiz, único personagem no Judiciário dotado de autoridade – leia-se poder – para parar a disputa
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 2008, 2009; LIMA, 2012). Esse primeiro movimento também
assume uma “perspectiva tutelar” dos direitos das mulheres, que no Brasil dá conta do amparo
paternal do Estado a sujeitos tidos por “hipossuficientes”, incapazes de autodeterminação,
como as crianças ou as populações indígenas. O segundo movimento procura antecedentes e a
compreensão do “ciclo da violência” que levou o homem ao ato de agressão, para
posteriormente responsabilizar o acusado através da sua consciência do ato de violência. O
segundo está subordinado ao primeiro, mostrando o estatuto das equipes técnicas em relação
aos operadores de direito, e evidenciando que o ato de agressão é o único que importa no
processo jurídico, em detrimento do histórico do casal, que permite compreender não só “por
que ele terminou agredindo”, mas por que muitas vezes o desfecho do caso implica insatisfação
para a demandante (SIMIÃO, 2015b).
Simião (2015b) acompanhou uma equipe técnica, por ele chamada de multidisciplinar,
de um juizado do Distrito Federal e sugere que suas práticas de escuta permitem explorar
dimensões pouco consideradas na prática judicial, como a natureza ou o desenvolvimento
narrativo das interpretações dadas pelas partes ao conflito, que inclui a expressão de emoções
e sentimentos, bem como justificativas das partes. Para o autor, as etnografias na antropologia
do direito têm mencionado a inadequação das soluções jurídicas para conflitos em relações de
proximidade, sejam familiares ou vizinhos, nos quais a redução a termo e o foco no ato de
violência, sem os antecedentes do mesmo, impedem uma percepção de justiça pelas partes.
Daniel Simião e Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2016) verificaram a insatisfação de
muitas mulheres que não viam no Judiciário sua demanda “adequadamente traduzida” para os
79
termos legais, percebendo uma “falha na justiça” e sentindo-se “moralmente ofendidas” pelo
desgaste que significava para elas acompanhar o processo jurídico. Os demandados notavam
haver um “ato de injustiça contra si”, por serem objetos de suspeita durante o processo,
expressando humilhação ou indignação (SIMIÃO, 2015b). A etnografía de práticas de
“suspenção condicional do processo” no Distrito Federal de Daniel Simião e Cardoso de
Oliveira mostra também que as práticas de conciliação não correspondiam a um modelo –
prejudicial – de liberdade de escolha, mas sim a um em que a autoridade do juiz (informada por
concepções de gênero e de família) e a do Ministerio Público definiam e encaminhavam modos
sancionados de agir para homens e mulheres. Os autores argumentam que estas práticas, ao
estarem ancoradas na lógica inquisitorial do Judiciário brasileiro e nas mediações de juízes,
promotores, delegados e defensores, não deixam muita margem de interpretação dos fatos
relativa aos sentidos dos sujeitos envolvidos no conflito e que podem ser pensadas como
estratégias de controle e coersão gramaticais sobre a conduta dos homens, os quais não
assumem o valor da igualdade como fundamental para a socialidade.
Nos dois contextos em que acompanhei grupos reflexivos para homens – o Juizado
Especial de Violência Doméstica de Niterói e o Instituto de Práticas Sistêmicas na Zona Sul do
Rio de Janeiro – também observei tanto o sentimento de indignação por parte de alguns homens
como o de humilhação por outros. Diante do processo de responsabilização, todos os homens
que conheci expressaram que sua versão da história foi desconsiderada. Opto por seguir o
caminho analítico de Simião e Cardoso de Oliveira para compreender a dificuldade de
incorporar a lógica judicial ao espaço para demandas por reconhecimento moral de cidadãos
como pessoas, mais do que indivíduos, através da sua prática de responsabilização com grupos
reflexivos de gênero. Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2008) menciona que a fetichização do
contrato, como categoria que engloba as prescrições jurídicas, descarta a dimensão moral dos
direitos na avaliação dos mesmos, quer dizer, as relações de reciprocidade conformadas entre
pessoas, que colocam a dádiva no centro da reflexão da constituição do elo social. Estas
considerações devem ser contextualizadas no Judiciário no Brasil, que bebe do modelo jurídico
do direito civilista continental. Esse modelo faz uma forte associação entre direito e uma
legislação positiva e codificada, em que o governo é dado pela lei e o Estado se assume fora e
acima da sociedade (GARRAPON & PAPADOPOULOS, 2008).
Roberto Kant de Lima (2012) argumenta que no Brasil esse modelo jurídico é assumido
pelos operadores do direito para “pacificar” a sociedade e conduzi-la a um estado harmônico
do qual foi arrancada pelo conflito. Para o autor, esta noção de direito remete a perspectivas
religiosas, católicas no caso, que enfatizam a harmonia e que contrastam com as perspectivas
80
protestantes, cuja ênfase está no conflito (e em sua administração) e estariam vinculadas ao
modelo jurídico da common law. Este último concebido como constituído dentro da sociedade,
que encontra sua legitimidade na articulação com os fenômenos sociais por ele regulados:
Estado e direito seriam partes da sociedade, tendo como resultado o “governo da lei”
(GARRAPON & PAPADOUPOLUS, 2008). Lima considera que as relações entre religião e
direito trazem como resultado diferentes formas de administração institucional de conflitos e
de controle social, ao mesmo tempo em que remetem a modelos para a sociedade e a
sensibilidades jurídicas (tomando a categoria de GEERTZ, 1998), que muitas vezes se
misturam, especialmente em sociedades que são produtos da colonização, ou como produto de
processos de mundialização, como acontece no Brasil.
Roberto Kant de Lima (2004, 2010) menciona que a common law corresponde a um
modelo paralelepípedo de sociedade (a base é igual ao topo), composta por indivíduos
portadores de interesses diferentes, mas iguais em direitos, o que os coloca em conflito
permanente, regulados por um conjunto de regras universais. A retórica dos direitos humanos,
por exemplo, corresponderia a este modelo de sociedade. De outro lado, o civilismo continental
está associado a um modelo de sociedade piramidal (a base é maior que o topo), composta por
segmentos desiguais e complementares que devem se ajustar de maneira global e harmônica, e
no qual as regras são gerais para todo o conjunto, mas são aplicadas segundo o segmento através
da interpretação de um terceiro com autoridade. Estas considerações sobre modelos de direito
operantes no Brasil permitem compreender expectativas do lugar da pessoa e noções de
indivíduo que estão em jogo não só na administração do processo jurídico no marco da Lei
Maria da Penha, mas também na proposta de grupo reflexivo a ser narrada nos próximos dois
capítulos. Noções de pessoa e indivíduo entram em disputa com a aplicação de uma lei
altamente individualizante que considera as vítimas como “sujeitos de direito”, em um
Judiciário que a aplica segundo o segmento ao qual pertence a pessoa.
Passando de uma dimensão estrutural da análise para outra mais voltada à experiência,
Theophilos Rifiotis (2014) menciona a importância de se pensar a posição do “sujeito de
direitos” diante de processos de consolidação de práticas e discursos dos direitos humanos e da
pacificação social no Brasil. O autor ressalta, por um lado, a necessidade de fazer pesquisa dos
sujeitos sócio-históricos a partir dos quais são construídas as valorizações sobre Direitos
Humanos. Por outro lado, ele destaca a importância de se considerar em que medida os sujeitos
que entram em relação com a retórica dos Direitos Humanos são assumidos como interlocutores
ou como problema no processo de consolidação da cultura de paz. O chamado para analisar as
configurações de sujeito associa-se a uma maneira de estar no mundo, com implicações no
81
exercício da cidadania. Com isto, procura-se compreender a legitimidade (e não
necessariamente a legalidade) dos direitos na noção de si e na constituição das relações sociais
pelas pessoas alvos de leis e políticas públicas. Quando Rifiotis apela para a atenção analítica
e política ao sujeito como operador do direito, que integra múltiplas perspectivas, também
afirma a necessidade de conhecer os modos de agir e avaliar, de estabelecer relações sociais e
a capacidade da agência desse sujeito. O registro dos encontros dos grupos reflexivos procura
resgatar essa experiência da relação entre acusado e filosofia dos direitos humanos, tomando
como ponto de partida a expressão de indignação de alguns dos homens que conheci no juizado.
1.11 Primeira síntese
Este capítulo apresentou uma história dos grupos reflexivos de gênero e o contexto no
qual eles são apresentados como uma alternativa de prevenção e mudança cultural no marco da
efetivação da Lei Maria da Penha. História que se desenrola no contexto de uma cidade onde
se expressa um “paradoxo”, pelo qual um sistema hirárquico de relações, que valoriza o lugar
social das pessoas na composição do todo social, convive com um ideário de sociedade civil,
que assume a responsabilidade individual como princípio de socialização e que é colocado
como totalidade nas pesquisas e trabalhos acadêmicos sobre efetivação da lei.
O ponto de vista dos meus interlocutores neste capítulo, localizados em um ethos da
Zona Sul carioca, assume o ideário de relações igualitárias que se contrapõe fortemente a
princípios de “autoridade” ou “força”, princípios estes vinculados a práticas de
desconhecimento do “subjetivo” que estão relacionadas, no nível da totalidade social
hierárquica, à ditadura e, no nível da socialidade, ao direcionamento vertical do poder na família
através da figura do pai. A ressignificação de uma paternidade e a da relação com a categoria
“mulher” são elementos de reflexão, intervenção e modificação para a emergência do homem
igualitário. Esta ressignificação vincula o interesse acadêmico pela reflexão do gênero dos
homens com a cooperação internacional, que encontra na perspectiva da interseccionalidade,
no construtivismo social e na filosofia de Judith Buttler e Paulo Freire (entre outros, como
Michel Foucault) a inspiração ética que outorga sentido ao modo de vida e ao projeto político
dos meus interlocutores. A ideia de compartilhar a experiência de grupo dos meus interlocutores
com os homens autores de violência corresponderia a uma forma de criar práticas sociais que
permitam materializar os princípios filosóficos que inspiram o engajamento político e a
produção acadêmica.
82
Na passagem da conformação dos grupos a partir do interesse em refletir sobre a
masculinidade e o lugar de poder dos meus interocutores, motivada pela relação com a
autoridade de pais e a ditadura, para um mecanismo de prevenção no marco da implantação da
Lei Maria da Penha, assistimos à transformação da sua natureza: daquela de reflexão e criação
de sujeitos conscientes do seu lugar na sociedade marcados pelo gênero para aquela
civilizatória, na qual marcar o outro com o gênero se faz necessário para contornar a violência
em si e conceber o sujeito mulher com dignidade humana. O autoritarismo passa da estrutura
social para se localizar nos homens autores de violência, objetivando-os como representantes e
contenedores de formas indesejadas de exercício do poder. Formas semióticas, como a revisão
da emoção, a rememoração da trajetória vital e o reconhecimento da própria violência,
procuram fazer emergir o sujeito reflexivo e crítico que se posiciona como indivíduo na
cronologia política da modernidade.
Essas formulações semióticas, que começam com a pergunta “o que é ser homem?”,
pretendem moldar uma atitude questionadora da cotidianidade e contornar uma subjetividade
que, através da descrição de si mesmo de maneira diferente, muda sua atitude de modo tal que
coloca o sujeito em outro lugar, assumindo novo ponto de vista, o da sociedade civil. Nesta
formulação semiótica, o papel dos sentimentos aparece como relevante, porque é o que outorga
ao memso tempo a humanidade e a concretude à própria existência. A identificação e a
objetivação do sentimento eram formulações semióticas de relevância para a reflexividade. O
sentimento permitiria, como a categoria de vítima descrita por Myriam Jimeno (2010), o
vínculo entre a experiência pessoal e a generalização social, além da localização da trajetória
pessoal na história de progresso da humanidade. Também seria o requisito básico para a
afetação de sentir o lugar do outro, igualando a relação por meio da experiência de violência
compartilhada, criando comunhão. A tentativa do grupo reflexivo parece ser a da criação de
comunidade emocional, nos termos descritos por Jimeno (e como afirmado por LOPES, 2016),
em que a categoria de vítima e a criação de um testemunho aparecem como protagonistas para
a criação da reflexividade dos homens marcados pelo gênero. Só que na prática, acontecem
outras coisas, que negam essa criação de comunidade, como veremos nos próximos capítulos.
Para meus interlocutores, a categoria cultura engloba relações de controle social
ditatoriais, o desconhecimento da subjetividade pelas instituições públicas e as relações de
poder no âmbito das relações de parentesco, como um outro que se opõe simetricamente a um
nós igualitário, civil e reconhecedor da experiência individual. A cultura também é objetivada
através de categorias sociológicas, como a de masculinidade hegemônica, que impõe aos
homens um gênero que os coloca como vítimas e algozes de maneira simultânea. Gênero
83
aparece como categoria subsidiária da cultura, passível de ser vista por meio do contraste com
com o lugar de privilegio ou poder que ocupam os homens com a filosofia de reconhecimento
da humanidade do outro, que valoriza o sofrimento da vítima. Este contraste gera, por um lado,
imagens acerca de estruturas que não permitem uma agência individual libertadora que aponte
para a autonomia. O gênero seria como um cárcere que aprisiona indivíduos que buscam a
expressão da sua singularidade, convertendo-os em vítimas.
Por outro lado, o contraste gera considerações sobre justiça importantes e que motivam
a pesquisa acadêmica, a mobilização social, o ativismo e a intervenção social. A vítima e o
agressor, mais do que a testemunha, são protagonistas de uma disputa por legitimidade, quer
dizer, de localização da verdade em meio a práticas de administração de conflitos, de pesquisa
acadêmica e de mobilização política. Dá a impressão que nessa disputa por legitimidade a
vítima ganha, sendo ela um ser que procura sua libertação, enquanto o agressor é uma pessoa
da ordem da cultura, que ainda não descobriu sua singularidade por não ter revisado seu
sentimento. A prática do grupo reflexivo de gênero, emergente, entre outras coisas do contraste
entre estruturas culturais de gênero e filosofia do reconhecimento, também permite a meus
interlocutores criticar a correspondência entre categorias masculinas e comportamento
agressivo, já que no fundo o sentimento como expressão da humanidade também está presente
nos homens.
Os próximos dois capítulos narram o desenvolvimento de um grupo reflexivo no Juizado
Especial da Violência Doméstica contra a Mulher de Niterói, facilitado por Aline, e o de dois
grupos facilitados por Thor e seus estagiários no Instituto de Práticas Sistêmicas, o primeiro de
homens do primeiro juizado do Rio de Janeiro, e o segundo com homens de demanda
espontânea.
Tendo em conta estes antecedentes de teoria nativa acerca da transformação da
masculinidade na consolidação de um ideário igualitário e civil, foco minha atenção na relação
entre facilitadores e homens acusados de violência, partindo das suas considerações e
expressões de justiça para depois aprofundar a maneira como são concebidas as relações de
casal e familiares e a noção de dignidade. Nos próximos capítulos descreverei a tentativa de
criar uma forma de agência humanizada e de inscrição em uma narrativa moral da modernidade
que objetiva a trajetória dos homens, marcando-os com o gênero e com os sentimentos.
Também abordarei o posicionamento de alguns dos acusados diante dessa tentativa de
humanização e de localização na modernidade. Como mencionei na introdução, a demarcação
da fronteira de modernidade não é acabada, razão pela qual também tratarei de como esses
homens se posicionam diante da tentativa civilizatória, que os classifica como violentos.
84
Capítulo 2
Aline e sua magia
–Pamina:
Bei Männern, welche Liebe fühlen,
fehlt auch ein gutes Herze nicht.
–Papageno:
Die süßen Triebe mit zu fühlen,
ist dann der Weiber erste Pflicht.
–Pamina und Papageno:
Wir wollen uns der Liebe freun
wir leben durch die Lieb allein,
–Pamina:
Die Lieb versüßet jede Plage,
ihr opfert jede Kreatur.
–Papageno:
Sie würzet unsre Lebenstage,
sie wirkt im Kreise der Natur
–Pamina und Papageno:
Ihr hoher Zweck zeigt deutlich an,
nichts Edlers sei, als Weib und Mann.
Mann und Weib, und Weib und Mann,
reichen an die Gotter an;
Mann und Weib, und Weib und Mann,
reichen an die Gotter an.
Dueto de Pamina e Papageno, Ato 1, cena 15
da ópera Die Zauberflöte.16
O propósito deste capítulo é descrever o desenvolvimento de um grupo reflexivo de
gênero dentro do Judiciário, tendo como referencial o propósito político de estabelecer uma
sociedade civil e igualitária, as formulações semióticas relativas ao grupo em si e a discussão
sobre judicialização das relações sociais. Durante o processo de acompanhamento de Aline,
psicóloga de uma equipe técnica, vi o protagonismo da categoria emoção, como uma nativa
definia a relação que ela estabelecia com os homens autores de volência doméstica contra a
mulher que passavam pelo centro de atendimento da equipe técnica do seu juizado. Esta
categoria ajudará a compreender “um antes” e “um depois” na atitude dos homens que recebiam
atendimento da psicóloga. Muitos deles chegavam “indignados” e, várias semanas depois,
16
Pamina: Aos homens que sentem o amor, / tampouco lhes falta um nobre coração. / Papagueno: Compartilhar
os doces impulsos, /é então o principal dever da mulher. / Ambos: Alegremo-nos por causa do amor, / só por ele
vivemos. / Tamina: O amor adoça todo sofrimento, / submetendo-se a ele toda criatura. / Papageno: Ele dá sabor
a nossas vidas, / e afeta o ciclo da natureza. Ambos: Sua excelsa finalidade claramente proclama, / não tem nada
mais nobre do que uma esposa e um esposo, / esposo e esposa, e esposa e esposo, / aproximam-se à divinidade.
Pamina é filha da Rainha da Noite e Papageno é um homem comum e caçador de pássaros, personagens da ópera
A flauta mágica.
85
saíam agradecendo-lhe, fenômeno que caracterizei como mágico no meu diário de campo,
porque não entendia a conexão entre causa e efeito. A descrição do trabalho de Aline neste
capítulo pretende dar conta dessa conexão e, ao mesmo tempo, da posição de alguns dos homens
que fizeram parte do grupo reflexivo, os quais, apesar de mudarem sua atitude com a psicóloga,
não reconheceram nem sua “própria violência” e nem a exercida contra a demandante.
2.1 O primeiro encontro: indignação e injustiça
Comecei meu trabalho de campo, no início de 2014, no Juizado Especial de Violência
Doméstica contra a Mulher da cidade de Niterói. Conheci então Catalina León-Amaya, uma
estudante do mestrado em sociologia e direito da Universidade Federal Fluminense que estava
terminando sua pesquisa neste juizado. Ela documentou práticas de “fazer acontecer” a Lei
Maria da Penha, sobre as quais se baseia sua dissertação (LEÓN-AMAYA, 2015). Pouco antes
do carnaval daquele ano, Catalina me convidou para acompanhá-la um dia ao juizado e
eventualmente conversar com o juiz para expor-lhe minha pesquisa. No dia marcado, fui até o
Fórum, um prédio de construção recente, de 12 andares, que contrastava com os edifícios de
décadas anteriores, visivelmente malcuidados, na Avenida Amaral Peixoto, no centro da
cidade. Era um dia muito quente, o verão desse ano foi bastante forte: mais longo e sem chuva,
o que era pouco usual, segundo os locais.
Apesar dos mais de 40 graus centígrados de temperatura, advogados e outros
funcionários vestiam terno e gravata; as funcionárias usavam roupas mais confortáveis para o
ambiente sufocante. Os usuários, pessoal de serviços gerais e outros visitantes vestiam-se de
maneira informal, não obstante os homens sempre estarem de calça, por uma proibição explícita
de vestirem short e chinelos dentro do prédio. O rígido protocolo de vestimenta fazia sentido
no interior das instalações, onde o frio ar-condicionado marcava um forte contraste de
temperatura. No nono andar estava a Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
ou, simplesmente, a “violência doméstica”. Um hall largo comunicava o cartório, o gabinete do
juiz, a sala de audiências e o Centro de Mediação, onde funcionava a equipe técnica de
psicólogas e assistentes sociais. Tanto nos corredores quanto nas salas, música de rock suave e
estilizado servia como um ruído branco, que contrastava com o rosto sério e impaciente de
algumas pessoas que esperavam sentadas.
Catalina León-Amaya agiu como minha porta-voz na entrevista com o juiz. Ela
comentou meu interesse em acompanhar o grupo reflexivo de gênero para “entender a mente
86
masculina, ajudar a transformar a cultura de opressão e melhorar as condições das mulheres”.
O juiz ressaltou a importância de otimizar o trabalho feito pela equipe técnica e não viu
problema em que eu frequentasse um dos grupos, porém, explicou que eu não podia falar com
os homens, pois eles estavam no meio do processo, com “segredo de justiça”. Eu só podia
escutar sem intervir. Ele acrescentou que eu estava subordinado a Aline, a psicóloga
coordenadora da equipe, que determinaria a melhor forma de inserção no grupo. Menos de dez
minutos durou o encontro com o juiz e eu já tinha abertas as portas do juizado.
Figura 7. Detalhe do Fórum de Niterói.
Depois do Carnaval, voltei ao juizado para conversar com Aline. Enquanto esperava na
pequena sala de espera do Centro de Mediação, eram evidentes a tensão e a impaciência das
pessoas que esperavam pelo atendimento das profissionais da equipe técnica. Uma mulher por
volta dos 40 anos, cabelo curto, branca, de roupas coloridas e bastante sorridente saiu de uma
87
pequena sala. Era Aline. Ela estava com muito trabalho acumulado devido ao recesso de fim de
ano e do carnaval. Aline me informou que o grupo começaria umas semanas mais tarde, assim
que finalizasse a convocação, e me explicou como era o processo no juizado, que começava
com o boletim de ocorrência, passava pelo Ministério Público, ia para o juiz e terminava na
equipe técnica. No meio do processo, os homens assistiam ao grupo por recomendação do juiz,
para que “melhorassem como pais”, pensando no bem-estar dos filhos do casal. Aline
recomendou que eu lesse as pastas dos grupos anteriores. Nelas havia documentos
administrativos, como listas de presença e termos de compromisso, bem como alguns
questionários iniciais (requisito das metodologias de grupos para conhecer o homem e
apresentar
a
proposta
de trabalho).
Os
questionários
registravam
características
sociodemográficas e psicológicas que dariam conta do “perfil do agressor” e do “tipo de
violência”.
Enquanto eu lia as pastas, podia ver alguns homens que aguardavam ser chamados por
Aline para serem entrevistados. Eles estavam silenciosos e pareciam de mau humor. Uma hora
mais tarde, saíam calmos, alguns deles bastante sorridentes. Aline comentava que eles
chegavam ao atendimento “hostis e com raiva”, mas durante a entrevista ela os assessorava
sobre o que fazer com o processo e como se conduzir no relacionamento, ou sair dele, com o
menor prejuízo possível. Ela tentava reconstruir o acontecido com o denunciado, permitindo ao
homem “perceber que foi violento”, para depois lhe oferecer a opção de participar do grupo
reflexivo. Aline comentava que durante as entrevistas podia distinguir entre um “suposto
agressor” e um “autor de fato”, detectando a “verdade”, tudo pela “sinceridade das palavras”.
“Sentia” também quando eles se “vitimizavam”, porque sempre justificavam as agressões,
culpando as companheiras de serem igualmente violentas.
Aline sabia que algumas mulheres “aproveitam a lei para atormentar o companheiro”,
porém, na maioria dos casos, ela ficava “afetada” porque elas chegavam muito machucadas
emocionalmente, tendo vários casos nos quais a integridade física da denunciante estava
comprometida. Aline investia muito do seu tempo na conformação do grupo, tarefa nada fácil
que se somava às outras várias administrativas, de seguimento de casos e acompanhamento das
vítimas. Mesmo quando conformado o grupo, garantir a presença dos homens era uma tarefa
que precisava de dedicação, pois nesse juizado a presença deles no grupo não era compulsória.
Aline recomendava a participação dos homens porque “o juiz vê com bons olhos o
compromisso deles com a responsabilização dos seus atos”. Ela considerava que o grupo
funcionava porque podia ver que “o homem evolui e muda” e que, no final do processo, alguns
88
deles lhe agradeciam ou voltavam, solicitando aconselhamento quando começavam um novo
relacionamento.
Umas semanas mais tarde, Aline ligou avisando que já tinha o grupo completo e que
começaria na terça-feira da semana seguinte. Na data marcada, na sala de espera do Centro de
Mediação, sentados em silêncio, estavam alguns homens que evitavam contato visual entre si.
Um deles perguntou “você é do grupo reflexivo?”, outro respondeu “é”, e a sala ficou em
silêncio de novo. Entrou subitamente um homem de barba grande, tendo por volta de 50 anos,
muito agitado, gritando e argumentando com seu advogado que ele não deveria participar do
grupo. Era Josué. O advogado insistia para ele ficar ali, do contrário desacataria a ordem do
juiz, que o condenara por ameaças contra sua ex-companheira. Josué replicava exaltado que era
injusto assistir ao grupo após ter passado pela cadeia por umas semanas. Nesse momento,
entraram na conversa alguns dos homens e disseram que a participação no grupo era uma perda
de tempo e de trabalho. Josué, quase gritando, insistia que “essa tal Maria da Penha era injusta”
e com fúria mencionava que “era mais fácil estar com um veado do que com uma mulher”.
Todos concordaram sorrindo, mas com mau humor.
Figura 8. Hall da “Violência doméstica”.
89
Depois de uns 10 minutos de agitação, Aline convidou todo mundo para entrar na
pequena sala sem janelas onde aconteceria a sessão. Ela parecia um pouco nervosa, mesmo
sendo este seu terceiro grupo (o primeiro com o Iser, aprendendo a metodologia, e o próximo
no segundo semestre de 2013). Aline se apresentou e disse que para aquele momento no Brasil
“existe uma nova configuração de igualdade que deixa no passado a subordinação feminina” e
que ao longo das sessões eles conheceriam melhor a Lei Maria da Penha, como um mecanismo
de proteção à mulher diante da violência exercida nas relações de casal. Mas não só das
agressões físicas, também da “violência psicológica, que deixa marca na alma”. Ela queria que
eles aprendessem a “manejar as emoções e a sair dos conflitos sem agressividade” para
construir “relacionamentos saudáveis”.
Em seguida, Aline solicitou que os homens se apresentassem. Um a um, os sete
participantes disseram seu nome e porque não deveriam estar ali, narrando “a briga” com a
parceira a partir da sua perspectiva, o que os levou ao conflito, como foram pegos pela polícia
e o fato de nunca serem ouvidos durante todo o processo. Para todos eles, estava sendo cometida
uma injustiça. Eu notava a expressão de raiva. A narrativa deles parecia desorganizada, não era
linear e saltavam de um evento para o outro. Depois de alguns minutos de tom furioso, alguns
deles, tristes e de cabeça baixa, narravam a dificuldade de visitação dos filhos e das filhas:
depois da denúncia, não podiam ficar próximos das crianças, dada a medida protetiva da
denunciante. Aline só deixava falar, sem intervir.
O primeiro a se apresentar foi Maykson, um mestre de obra morador do Morro do
Estado, uma favela do centro de Niterói. Sempre olhando para o chão e falando entre os dentes,
ele disse que estava “ofendido” por ter passado pela cadeia por pouco mais de duas semanas
com bandidos e estupradores. Ele comentou furioso que tinha perdido um contrato importante
com uma construtora por estar resolvendo sua vida no juizado – ia ser muito dinheiro a receber
durante o período da Copa do Mundo. Maykson às vezes gaguejava e mudava de um assunto
para outro: falou primeiro da briga com a mulher, depois da sogra, que o defendia, da filha mais
velha, que estava a favor dele, da filha mais nova, que estava contra porque era cúmplice da
mãe. Para mim era difícil entender o que falava, não só pelo sotaque, carregado de gíria, mas
pelos diferentes temas que ele trazia, que davam conta da sua experiência das últimas semanas.
Não obstante, ele foi claro quando assegurou que “a Lei Maria da Penha era uma arma muito
poderosa nas mãos equivocadas”, afirmação que foi respaldada por Josué. Durante uma briga
por ciúmes da esposa, uma de tantas nos últimos anos, Maykson estava se defendendo dos
arranhões e socos dela, quando acidentalmente “ela bateu no seu punho” e terminou com um
machucado no rosto. Aline respirou e passou a palavra para Josué.
90
Josué não se apresentou. Gritando, dizia que a lei era injusta porque o Brasil era um país
que reconhecia a igualdade e a Lei Maria da Penha só favorecia a mulher. Ele não se
considerava um bandido, nem um criminoso, porque não havia feito nada, só xingara sua exmulher por tê-la encontrado na sua cama com outro homem, por tê-lo traído, roubado tudo o
que possuía e manchado seu nome – sua foto aparecia nas buscas da internet, por causa disso,
ele já não tinha mais trabalho. Sua ex-esposa era advogada do Tribunal Superior e estava
alongando o processo para martirizá-lo e castigá-lo. Segundo Josué, ela conhecia o juiz e muitos
funcionários dentro do Judiciário. Ele a acusava de planejar assassiná-lo em cumplicidade com
seu sogro, para roubar seu dinheiro. Também argumentava que seus filhos o haviam
abandonado. Amaldiçoando-a, ele disse que, se alguma vez ela passasse na frente dele, a
mataria. Josué ocupou pouco mais de 30 minutos das duas horas destinadas para o encontro.
Apesar de várias tentativas de Aline para que ele concluísse sua apresentação, Josué repetia
uma e outra vez seu relato, com tom forte, mas sempre de maneira clara, pausada e linear.
Heitor, que como Josué falava pausadamente, mas de maneira mais modulada e sem
palavrões, argumentou que um ato de violência acontecia “sem importar o gênero”. Qualquer
um podia ser violento, não era uma questão associada à masculinidade, senão ao “instinto de
sobrevivência”. Josué concordou. Como os anteriores, ele também não se considerava um
criminoso pelo fato de se defender das “falsas acusações” da sua ex-companheira, Joana. Heitor
a descrevia como uma mulher ciumenta que não lhe permitia contato com sua pequena filha.
Como Maykson e Josué, Heitor comentou que durante as brigas ele foi vítima de agressões,
mas isso nunca foi levado em consideração pela polícia nem pelo juiz. Edinaldo, o seguinte a
falar o fez rapidamente e em voz baixa, olhando sorridente para Aline; disse que se eles
denunciassem as agressões, seriam tratados como veados pelas autoridades. Todo mundo riu,
mas de maneira enfática e séria, Heitor complementou que isso era verdade e que, se o policial
alguma vez levasse em consideração as agressões das quais eles eram objeto, não iriam ter o
tratamento privilegiado da Lei Maria da Penha, no máximo, o caso seria tratado como um delito
comum de agressões pessoais. Heitor ainda argumentou que, se uma mulher fosse realmente
maltratada pelo homem, ela estaria tão aterrorizada que não seria capaz de denunciar. Todos
concordaram. Aline só respirava de maneira profunda e os deixava falar.
Edinaldo se apresentou como um homem alegre, que trabalhava muito para manter sua
família unida. Ele não entendia por que ele fora parar no juizado sendo ele um bom pai.
Edinaldo estava preocupado com a guarda da sua filha, que requeria cuidados que a mãe não
podia providenciar. Atribuía a denúncia aos ciúmes que sua ex-mulher tinha dele, e ao fato de
ela não aceitar seu novo relacionamento amoroso com uma prima da ex-companheira. Edinaldo
91
assegurava nunca ter batido nela. O tom pausado, o sotaque nordestino (ele era do Ceará) e um
sorriso amplo projetavam uma imagem amável. Os outros participantes do grupo consideraram
que ele era inocente.
Herbert se apresentou como um homem humilde que morava no barco onde trabalhava,
uma vez que teve que sair da sua casa por causa da medida protetiva de Izete. Ele era um homem
em torno dos 60 anos, alto, gordo, de mãos enormes e roupas velhas, com um olhar triste, quase
melancólico. “Eu nunca bati nela”, mencionou, adicionando que, na tentativa de afastá-la
durante uma briga, ela se machucara quando caíra no sofá. Herbert destacava que Izete era
“pequena e magrinha” e que ele tinha mãos muito fortes porque trabalhava no leme do barco.
De tempos em tempos, no meio da sua apresentação, Herbert contava alguma piada que fazia
todo mundo rir, Aline incluída, mas depois voltava à sua abatida descrição do momento em que
ele foi acordado por um policial, seu vizinho (que o considerava inocente), e conduzido à
delegacia, sem entender o que estava acontecendo. Ele lamentava o fato de sua filha não
acreditar nele, e achava que ela estava sendo manipulada pela mãe.
Depois os outros participantes se apresentaram de maneira protocolar. Henrique, um
policial militar aposentado que administrava uma loja de conveniência com sua esposa.
Antônio, o mais novo do grupo, um DJ de Niterói. Cláudio, um advogado que assumia sua
própria defesa e que manifestou que não se sentia confortável com a presença de outro homem
na criação da sua pequena filha de 3 anos de idade: a ex-mulher falava para sua filha que o
“verdadeiro pai” era o atual namorado, o que deixava Cláudio “furioso” e “ofendido”. Heitor
manifestou o mesmo incômodo e disse que sua “princesa” de 5 anos não o chamava mais de
pai, tudo pela influência negativa de Joana.
Enquanto um e outro falavam, Aline explicava que durante os encontros eles iriam
conhecer mais do sentido da Lei Maria da Penha e da importância de “elaborar as emoções”
para se saírem bem no processo jurídico. Para ela, os conflitos eram como uma “bola de neve”,
que ficavam maiores na medida em que não eram resolvidos e, por isso, era importante saber
“manejar emoções fortes como a raiva”, um “estado anormal” que não permitia o “equilíbrio
nas relações”. A partir daí fui compreendendo seu papel como facilitadora: ela permitia que
eles desabafassem para depois intervir de acordo com um ponto de vista técnico, colocando
outras maneiras de enxergar conflito vivenciado para posteriormente definir as “qualidades
internas” desejáveis para esses homens. Diante do argumento de Aline, Heitor considerou que
eles já eram “muito controlados e tolerantes” com as exigências das suas ex-companheiras, mas
havia chegado o momento em que eles não aguentaram mais, passando ao grito e ao insulto
92
para parar a “insegurança”, os “ciúmes” e as reclamações delas, ou em defesa própria, quando
se sentiam agredidos e ofendidos.
Figura 9. Grupo reflexivo de gênero de Niterói.
Aline acrescentou que no Brasil existia muito “machismo”, especialmente no Nordeste
e no interior do país, o que não permitia que os homens falassem das suas emoções. Por isso
era bom estar no grupo, para “colocar para fora todos esses sentimentos” que eles não podiam
expressar devido a uma criação que “naturalizava” as diferenças de gênero:
Estamos falando da educação que a gente recebeu e que nós estamos passando
a meninos e meninas na atualidade, o que faz com que sejamos divididos. Que
educação é essa que diz para cada um o que é, o que você pode, o que você
não pode? E que a religião, a igreja, a cultura, a história mostram isso, que
influenciou para que as mulheres sempre fossem ao longo da história vistas
como incapazes.
Heitor e Josué mencionaram que as mulheres nem sabiam o conteúdo da lei e, pelo
contrário, a palavra delas bastava para colocá-los na cadeia, sem a possibilidade de defesa.
Cláudio concordou, acrescentando que a lei era “muito complacente com as mulheres” e que
contemplava os únicos delitos penais que não precisavam de provas, só a palavra delas servia
para condená-los. Aline reiterou que no Brasil a mulher não estava mais submetida ao homem,
93
pois existia a “igualdade”, e ressaltou a necessidade de fazer um pacto pela “não violência”,
porque no meio do conflito estavam os filhos, os que “realmente sofriam”. Aline convidou todo
mundo para assistir o vídeo Acorda Raimundo, acorda17.
O vídeo apresenta o pesadelo de Raimundo, que vivia uma realidade em que as mulheres
exerciam o papel dos homens e vice-versa. Ele era o encarregado do lar, lavava as roupas,
cozinhava para sua mulher, administrava o dinheiro, fofocava com seu vizinho, cuidava dos
filhos e obedecia à sua esposa. Raimundo ficou grávido de Marta, mas ele não sabia como
comunicar a notícia. Ele sabia que Marta ficaria de mau humor. Ele tinha medo dela. Quando
Raimundo contou, Marta o culpou pela gravidez. Ela trabalhava em uma oficina, referia-se às
mulheres de maneira preconceituosa, falando do corpo como objeto de satisfação do seu desejo
sexual. Ela também aparecia bebendo em um boteco com as amigas e depois chegando em casa
procurando sexo, obrigando Raimundo a transar. Finalmente, Raimundo acorda e tudo volta à
normalidade. Ele, com sensação de alívio, solicita a Marta fazer o café da manhã. Ela lhe
obedece de maneira dócil.
Já era um pouco mais de 18 horas, o tempo do encontro havia acabado. Naquele
momento não houve comentários sobre o vídeo. Durante a projeção, alguns deles riam,
especialmente com a notícia da gravidez, mas com as cenas de violência, eles ficaram em
silêncio. Aline disse que o vídeo era “bom para se pensar nos sapatos dos outros” e para “se
sensibilizar acerca das violências cotidianas que experimentam as mulheres”. Todo mundo saiu
da sala, ninguém falava com ninguém.
Aline e eu ficamos na sala organizando a lista de assistência, as ressalvas para alguns
dos participantes e outros documentos que davam registro do grupo. Ela comentou que não se
considerava “feminista” e que “não levava as coisas ao extremo”. De todo modo, ela via que
muitas mulheres chegavam “bastante machucadas emocionalmente” e por isso achava
importante que esses homens controlassem suas emoções cada vez que entrassem em uma
briga. Ela insistia na ideia de resolução dos conflitos por meio de acordos e de pensar as relações
como “trocas” nas quais homem e mulher se apoiavam com habilidades diferentes na criação
dos filhos. Aline estava preocupada com o número cada vez maior de casos de separação, nos
quais, no momento da divisão dos bens, o tema da guarda dos filhos e da visitação das crianças
gerava muita tensão, especialmente pela “alienação parental” que muitas mulheres exerciam
17
Filme dirigido por Alfredo Alves, produzido pelo Ibase com o apoio da Cese. Informações tomadas de
https://www.youtube.com/watch?v=NWDv9QuMtAk
94
para pressionar os homens. Para ela, o “casal conjugal” terminava, mas o “parental” continuava
para sempre, e os homens tinham que saber isso.
2.2 Aline
Não tinha mais ninguém no andar da violência doméstica. Nós dois éramos os últimos
a sair. Aline usualmente saía tarde porque devia deixar prontos os relatórios de atendimento e
os pareceres que entregaria ao juiz antes das audiências. Ela era uma espécie de conselheira do
juiz. Por ser a única servidora concursada da equipe, ela era a responsável pelo seguimento dos
casos e do trabalho realizado pelas duas assistentes sociais e a outra psicóloga, todas
funcionárias terceirizadas. Aline também devia assistir às capacitações para servidores
ordenadas pelo Tribunal de Justiça. Por volta das 19 horas, de segunda a sexta-feira, ela se
encontrava com sua filha adolescente para irem juntas para sua casa, onde estava seu filho de
11 anos de idade e sua mãe.
Aline se considerava uma “mulher religiosa”, “evangélica” e “moderna”, que
compartilhava uma “visão do mundo secular”. Aos 18 anos ela estudou teologia no seminário,
razão pela qual a “questão religiosa está atravessando meu olhar e minha posição como
psicóloga”, não para impor uma visão de certo credo, mas para “debater os discursos religiosos
que subordinam as mulheres e legitimam a violência”. Aline sabia que argumentos bíblicos
terminavam “silenciando as mulheres e machucando-as”. Depois estudou psicologia e fez
estágio em uma organização da Igreja Metodista no Morro da Providência, no centro do Rio de
Janeiro, entre 1995 e 2000. Lá ela foi mediadora entre a comunidade e os religiosos, que
compartilhavam o mesmo espaço físico: um lote que era o lugar de lazer de jovens (fumar
maconha basicamente) e de instrução dos religiosos.
Eu era jovem e tinha coragem para entrar na comunidade e conversar com
esses jovens, eles invadiam o espaço na hora da aula, eu me propus a ensinar
para eles, que tinham que aprender a dividir ... no “Projeto Amanhã” eu
levava os meninos para a igreja para empoderá-los, mas eles começaram a
pixar a igreja e aí passei a trabalhar com mulheres da comunidade; a colocação
era de empoderar com cursos para autonomia financeira. Como começar se
ainda é dependente, né?
Aline admirava sua mãe, que era trabalhadora autônoma e a obrigou a estudar: “Nossa!
Esse exemplo é muito importante para as mulheres”. Essa postura diante da vida contrastava
com a atitude parternalista que tinham os religiosos, a qual ela não compartilhava. Ela saiu da
95
organização e foi trabalhar em um abrigo de meninas adolescentes, fez consultório particular e,
após alguns anos, passou no concurso para ser psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro, fazendo parte, primeiro, da Vara da Infância e da Juventude e, depois, da Vara
da Violência Doméstica. Aline acreditava na mediação de conflitos, posição que a distanciava
da maneira como a Lei Maria da Penha era implantada em outros juizados, em outras
instituições de governo e pelas organizações de mulheres. Ela não podia falar isso em voz alta,
mas ela “sentia” que a postura mais punitivista estava criando uma “guerra contra os homens”,
impossibilitando a compreensão das posições no casal e fechando a possibilidade de recompor
o relacionamento, pedido de algumas mulheres quando buscavam seu aconselhamento.
Em uma ocasião, acompanhei Aline a um seminário sobre relações de gênero e violência
doméstica nas práticas institucionais judiciais e da rede de atendimento celebrado na
Universidade Federal Fluminense. Ela foi convidada para expor seu trabalho como “funcionária
da ponta” em uma mesa da qual também participava a subsecretária estadual da Política para
as Mulheres do Estado do Rio de Janeiro, uma reconhecida ativista feminista. O auditório era
integrado por estudantes, professoras, ativistas, servidores públicos interessados na
institucionalização da Lei Maria da Penha e alguns juízes e funcionários de alto nível do
Tribunal de Justiça.
Baseada na sua experiência de atendimento, Aline destacou que os casos do juizado não
eram somente de “violência contra a mulher”, mas também de “conflito familiar”, nos quais
mulheres e homens experimentavam algum tipo de violência devido a problemas com a guarda
das crianças, disputas de patrimônio e uso abusivo de drogas e álcool (dos homens
particularmente). Esses conflitos “nos vínculos afetivos e familiares” não permitiam um
“caminho cordial de resolução de desejos de homens e mulheres”. Por isso, ela e sua equipe
terminavam atendendo homens e crianças agredidos pelas mulheres. Parte de seu trabalho era
revisar o histórico do relacionamento e os argumentos das partes para obter uma melhor
compreensão de “como um e outra chegaram a se agredir”. A partir desse entendimento, ela
convidava o casal a propor “caminhos possíveis” para sair do “conflito latente” que levou a
mulher a denunciar seu parceiro.
Aline perguntou de maneira retórica se apenas o enquadramento da “violência de gênero
daria conta dos múltiplos fatores e variáveis presentes nesses casos que nós estamos
acompanhando na equipe”. Ela compartilhava a filosofia da dignidade humana contida na Lei
Maria da Penha, referencial que organizava seu trabalho, o qual se complementava com “outros
olhares”, que davam conta “da situação da violência”, como a “abordagem sistêmica”, que
permitia reconstruir o histórico dos relacionamentos afetivos e interpretar os rompimentos das
96
relações como “desconsiderações” e “violências”, entender “a dificuldade de aceitar o fim da
relação” para muitos homens e enxergar que “a mulher também pode agredir”.
Figura 10. Aline.
Aline argumentou que o desejo de controlar e de dominar não era um atributo
exclusivamente masculino, trazendo os processos de “alienação parental” que, por “mágoa ou
por vingança”, muitas mulheres moviam contra os homens para dominá-los. Ela perguntou ao
auditório: “O que eu quero trazer aqui hoje em relação à violência contra a mulher é que também
a mulher tem poder, e como é que ela utiliza esse poder?”. Propôs então “um desafio”: não
trabalhar com a ideia de “poder”, mas de “potencialidades” de homens e mulheres para
“construir pontes e diálogos, outras relações possíveis, porque onde faltam diálogos vem a
violência”. Aline não negava os casos de violência contra a mulher, mas ela afirmava que havia
uma “gama de casos em que singularidades e subjetividades” não deixavam clara a fronteira
entre “vítima” e “agressor”, a qual não era necessariamente útil para “que homem e mulher se
pensem a partir de outro lugar, que não seja o da dominação do outro”.
O que parecia ser a exposição de uma “boa prática” por parte de Aline foi desqualificada
pela subsecretária de Políticas para as Mulheres, mostrando uma expressão da tensão do campo
97
já caraterizada por Daniel Simião e Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2016), narrada no
capítulo anterior. Antes da sua apresentação, a subsecretária apresentou um curta-metragem
institucional, financiado pelo Banco Mundial, que trazia depoimentos sobre o “medo”
experimentado por mulheres de diversos extratos populares por causa das violências exercidas
por pais, maridos, irmãos, chefes e outros homens com os quais elas se relacionavam. Elas eram
“vítimas” que o Estado devia ajudar a “reconquistar a liberdade e a autoestima que as mulheres
tanto merecem”, afirmava a subsecretária. A partir “dessa realidade” trazida pelo curta, a
subsecretária, com tom forte e enfático, argumentou que “conflito” não devia se confundir com
“violência”, devido “à assimetria e má distribuição de poder presentes na relação sempre
desigual entre homem e mulher”, o que gerava medo na mulher, diferente do poder que sentia
um homem. Uma situação conflitiva exigia “simetria”, condição necessária para “poder
expressar o que você pensa e em que o outro pode discordar sem ser oprimido, e não ter receio
de sofrer uma represália”. Para a subsecretária, as mulheres que tinham coragem para denunciar
já haviam sido pressionadas por familiares e pelo marido para serem “a mãe dolorosa” acima
da valorização da sua própria “identidade como mulher”. Dadas essas razões, o trabalho de
Aline devia ser o de escutar e empoderar a mulher para que ela tivesse voz e se colocasse como
igual diante do homem.
A subsecretária reconhecia que “alguns homens sofriam violência”, como os jovens
negros, mas as estatísticas demonstravam que as mulheres eram as “vítimas preferenciais do
patriarcado, que se aproveitava da fragilidade da mulher para afetá-la e fazer com que ela
fosse alvo do sentimento de posse do homem”. Enquanto os homens morriam no espaço público
por disputas, as mulheres, “vítimas de feminicídio”, morriam “por quem um dia jurou amá-las”.
Ela não colocava em dúvida que as relações afetivas eram complexas e tinham uma
historicidade, mas “o afeto masculino” era relativo ao “desejo de dominação”. Em
contrapartida, a subsecretária afirmava que o “afeto nas relações” devia ser de “cuidado mútuo”
e reconhecedor do “desejo da mulher”.
Para controverter a posição de Aline, a subsecretária também trouxe um exemplo de
“alienação parental”. Um homem “com poder aquisitivo de importância” procurava a sua exmulher e filhos, os quais haviam fugido porque ele jurou matá-la: “ela, no desespero, refém de
uma situação de medo, estava escondida e ele alegava que estava sendo vítima de uma situação
de alienação”. Para ela, a “real vítima era a mulher”, como tantas outras “assassinadas,
esquartejadas e estupradas cruelmente”. A subsecretária advertiu:
98
tem que ter muito cuidado, sobretudo quem é assistente social ou psicólogo
que atua no Tribunal de Justiça, que tem um olhar muito valorativo,
desconectado de uma discussão teórica de gênero ... Então, ao fazer
mediação, tem que ser muito cuidadoso, até porque você está dizendo para
essa mulher que é ela que não consegue escutar o outro. Você pode estar
reproduzindo valores e mensagens que fazem com que ela termine retornando
ao lugar de origem, reduzida ... Eu tenho visto pareceres técnicos que dão
vontade de chorar e que acabam no convencimento do juiz e terminam por
cometer mais uma violência contra essa mulher, que está desapropriada de
bens materiais ... então, muito cuidado com essas colocações, com essas
reflexões.
Aline respirava profundamente, fazia anotações e a escutava de maneira atenta.
Em relação aos grupos reflexivos, a subsecretária sabia que o Judiciário implantava uma
metodologia de atendimento a homens (que ela no passado havia ajudado a construir com outras
organizações), que era “positivo, mas nunca suficiente”. Na posição dela, as equipes técnicas
deveriam trabalhar para “desnaturalizar signos, símbolos, lendas e mitos” que construíam
valores que eram reproduzidos em “nome da defesa da família brasileira”, e implicavam
relações de violência, misturavam valores religiosos e desconheciam a autonomia e o “desejo
de liberdade da mulher”.
Uma vez finalizado o debate, Aline e eu caminhamos juntos pelo campus da
universidade para pegar o ônibus. Ela se sentiu “atacada e desrespeitada”, mas não podia falar
nada porque a subsecretária era uma superior na burocracia da Lei Maria da Penha. Apesar de
Aline ser a interlocutora privilegiada entre cidadãs e Estado, ela era só a parte “operativa”, não
“diretiva” da lei. Aline não se considerava “defensora da família brasileira”, mesmo porque sua
família não correspondia a esse modelo e, apesar de se considerar uma pessoa religiosa, ela era
crítica dos dogmas. Aline não desconhecia a gravidade dos casos trazidos pelas expositoras no
seminário: desembargadoras, juízas, ativistas e advogadas defensoras de direitos humanos, que
expunham casos aberrantes, “com um alto grau de crueldade para sensibilizar sobre
feminicídios e violência de gênero”. Ela era sensível à dor das mulheres que chegavam para
seus atendimentos, mas não podia assumi-las a priori como vítimas porque, “para empoderar,
você precisa que ela assuma a responsabilidade da sua vida, do bom e do ruim que já fez”, para
depois “ajudar a mulher a abrir seu próprio caminho”. Ela tinha que colocar em suspenso seu
julgamento sobre quem era vítima e quem era agressor na hora de escutar as partes, a fim de
recompor o histórico do casal e ampliar o significado do conceito de poder implícito na Lei
Maria da Penha como potência.
Aline não era uma funcionária a mais, sem o “engajamento suficiente” para implantar a
lei “como deveria ser”. Ela era uma agente conhecedora e crítica que desafiava o preconceito
99
de alguns ativistas, e que de maneira menos beligerante, mas não menos profunda, fazia
proselitismo da ideia de indivíduo que se pensa a partir do reconhecimento da emoção e se
relaciona com os outros a partir da empatia, estabelecendo a igualdade nas relações tendo em
vista a consideração da diferença na experiência do outro. Ideia não muito distante da noção de
“sujeito de direitos” que a subsecretária para as mulheres propunha como ideal ético, ou de
sujeito reflexivo, que os protagonistas do primeiro capítulo nos apresentaram. Vejamos como
ela modela essa reflexividade nos homens do grupo.
Figura 11. Planejamento de Aline. Sequência de temas para o grupo relexivo de gênero
2.3 Falar das emoções, um presente para a vida
Na terça-feira seguinte, dia do segundo encontro do grupo, cheguei com uma hora de
antecedência. Aline estava atendendo uma mulher e suas colegas organizavam alguns relatórios
para serem entregues ao juiz. Heitor e Herbert conversavam na sala de espera. Herbert estava
com um olhar triste, como sempre. Ele acabava de sair de uma audiência com o juiz na qual
Izete dissera que ele não estava respeitando a medida protetiva. Herbert negou tudo, insistindo
que estava morando no barco no qual trabalhava e que tinha deixado duas casas para ela: o
apartamento que recebeu de herança da sua mãe e uma casa que ele comprou em um bairro
próximo da cidade de São Gonçalo. Por causa da medida protetiva, ele não podia visitar a sua
100
família. O lugar onde eles viveram enquanto eram um casal – uma enorme casa em que Herbert,
sua mãe, seu irmão e duas irmãs moraram – havia sido dividida em quatro apartamentos após
a morte da mãe, um para cada filho. Herbert considerava Izete uma “doente mental [e] doente
de ciúmes”, que precisava de tratamento psiquiátrico, coisa que ele disse para o juiz e para
Aline.
Heitor aconselhava Herbert a documentar e a ter testemunhas cada vez que ele visitasse
a filha, e quando entregasse o dinheiro para a Izete, para demonstrar que estava cumprindo com
a medida protetiva. A intenção era esclarecer para o juiz que eles não estavam passando por
cima da sua autoridade e que cumpriam seus deveres como pais. Heitor colocou seu exemplo:
ele se separou em setembro de 2010, enquanto Joana alegava que a separação fora há mais de
um ano, razão pela qual ele tinha que pagar uma pensão com juros, coisa que considerava
injusta. Meio brincando, meio falando sério, Heitor disse que casar de novo é coisa que ele não
faria:
Deus que me perdoe um comentário muito machista, só tem homem aqui, mas
é muito mais barato pegar R$ 100 ir num bordel e resolver. Pagar para resolver
é melhor que passar por toda essa punição cara, entendeu? É sexo, então você
vai, paga e resolve.
Herbert discordou e, sorrindo, respondeu que ele não era mais um garoto. Para ele o
casamento não era só sexo, mas “companhia e cuidado”, coisa que não tinha da sua ex-mulher:
o homem precisa de apoio, o que uma puta não pode providenciar. O problema para Herbert
era quando o relacionamento virava uma “guerra”, porque nesse momento o cuidado era
inexistente, especialmente na velhice, como na situação dele. Heitor assentia com a cabeça.
Os outros homens iam chegando. Pouco tempo depois, Aline nos convidou para entrar
na sala. Ela colocou uma caixa na mesa “com presentes”, que os homens só podiam pegar assim
que terminasse a música “O que é? O que é?”, de Gonzaguinha. Ela começou a cantar e Herbert
a acompanhava: “[...] A vida é bonita! [...]”. Ele perguntou se o presente ia ser uma “correntinha
dessas para monitorar”. Todo mundo riu, inclusive Aline, mas ela assegurou que o presente não
ia ser uma tornozeleira eletrônica, como as utilizadas em outros estados18. Para tranquilizá-los,
Aline afirmou que era “normal sentir temor e constrangimento” em uma situação de
expectativa. Ela então abriu a caixa para cada um dos homens pegar seu presente. Eram
18
Para maiores referências sobre a utilização de tornazeleiras eletrônicas pelos homens processados pela Lei Maria
da Penha, ver Maciel (2014).
101
chocolates. Aline perguntou o que podiam associar ao ato de desembrulhar o chocolate e a
situação que eles estavam vivendo nesse momento.
Com seu tom forte e enfático, Josué falou de “arrependimento” por ter escolhido a
mulher errada para ser a mãe dos seus filhos. Ele descreveu o chocolate como gostoso, mas que
sempre dava dor de barriga, como sua ex-mulher, que “[era] bonita e cheirosa, mas na verdade
[era] venenosa”. Aline escutava. Josué narrou de novo toda a sua história sobre traição, roubo
de dinheiro, separação dos filhos, a cadeia, a perda dos contatos políticos... Fez uma pausa.
Gritando, ele disse que se “tivesse quebrado a cara dela”, se ele “a tivesse matado”, já estaria
livre: dela e do Judiciário. O tempo que levava o processo era maior do que o tempo de um
assassino no cárcere. Também afirmou que se ele a tivesse matado, a “humilhação” de ter
convivido com bandidos seria merecida. Josué não considerava as ameaças telefônicas nem os
xingamentos como um crime, menos ainda como uma violência, mas o mínimo que sua exmulher merecia pela traição. Por mais de 20 minutos ele repetiu sua história, uma e outra vez.
Aline e os outros homens escutavam um pouco impacientes, olhando entre si como se
quisessem que ele calasse a boca. “Hoje minha vida é um inferno!”, gritava Josué enfurecido.
“Eu sou vítima, eu fiquei sem casa, sem filhos, sem trabalho, sem escritório, e ainda vou
preso?”, perguntava-se indignado e furioso. Aline não tinha uma resposta, só solicitava que ele
se acalmasse, mas sem sucesso.
Em uma das pausas de Josué, Aline aproveitou para continuar com a atividade, não sem
antes pontuar que “a raiva pode fazer com que você cometa um erro do qual pode se
arrepender”, falando para Josué. Ela o convidou a pensar sobre sua atitude para encarar melhor
futuras situações.
Heitor apoiou Josué. Para ele, “as mulheres [sabiam] como provocar”, colocando seus
parentes contra o companheiro. Heitor considerava as mulheres “inteligentes, cautelosas e
cruéis”; elas sabiam criar situações nas quais elas se mostravam como as vítimas. Por exemplo,
Joana foi se aproximando de uma irmã de Heitor, com a qual não falava havia uns anos, depois
de ele descobrir umas fotos na internet nas quais sua irmã participava de uma festa de swing.
Heitor considerou que sua irmã prejudicava a criação dos seus sobrinhos. Joana postava fotos
no facebook com a ex-cunhada com frases como “é bom ter uma família”, ou “adoro meus
sobrinhos”. Heitor, com voz modulada e articulando cada palavra, falava: “Me incomoda o fato
de ela estar fazendo isso, porque é uma opção minha não querer uma aproximação com minha
irmã” – sua voz era muito bonita, ligeiramente grave e clara; quando ele falava, todo mundo
escutava com atenção. Segundo Heitor, Joana jamais havia gostado da sua família, mas só no
momento da separação foi que ela começou a se aproximar da sua irmã. Para Heitor, essa
102
situação estava interferindo em sua relação com a filha, a sua “princesa”, que naquele momento
acreditava que ele não a amava porque só a visitava a cada 15 dias. Heitor fazia todo o possível
para passar tempo com ela e demonstrar que ele realmente a amava, não como a mãe, que a
usava para manter a briga.
Todos ficaram conmovidos com essa história, comentavam seus casos de visitação e a
falta que sentiam dos filhos, particularmente das filhas. Aline os deixou falar por uns minutos.
Depois, sorridente, ela interrompeu e qualificou o encontro desse dia como “produtivo” porque
permitiu que “muitas emoções fortes, como a raiva ou a mágoa”, se manifestassem: isto lhe
permitia compreender melhor o que cada um deles estava experimentando. Ela também disse
que ao longo da vida as pessoas recebiam vários presentes, sendo alguns deles chocolates e
outros, “abacaxis”, em outras palavras, eles iam ter “encontros e desencontros”. Nem tudo era
como eles desejavam ou imaginavam, eles deviam saber que existia “um outro, com diferente
posição e perspectiva de mundo”. O conhecimento desse outro era possível através do
“reconhecimento dos próprios sentimentos”, falando deles, “sem censura”, para que as emoções
não os “dominassem”. Aline convidou os homens para “um desafio”: ter uma “atitude positiva”
e parar de pensar que era possível mudar a cabeça das outras pessoas.
Josué, irônico, só disse que ele devia ter quebrado a cara da sua ex-esposa. Aline ficou
em silêncio, encarando-o. Ele retomou o tema da provocação das mulheres e disse que sua exmulher fazia tudo para que ele virasse um animal, mas que pensando nos seus filhos, ele se
controlava, meditava e se afastava dela. Baseado na Bíblia, Josué mencionou que os adúlteros
e os inimigos deviam ser destruídos, coisa que aconteceria no seu devido momento, porque
agora ele “praticava a paciência”. Um pouco cansada, Aline disse que era melhor colocar em
suspenso essa história para continuar com a atividade: escrever em uma folha branca o que
podem ou não podem fazer meninos e meninas. Josué replicou de maneira provocadora:
“homem é para trabalhar e levar dinheiro para casa, enquanto a mulher deve cuidar dos filhos”.
Aline sorriu cortesmente e, ignorando-o, leu o texto escrito por Edinaldo: “menino não pode
usar calcinha, não brincar de boneca, não usar batom, não bater nas mulheres”. “É mesmo!”,
exclamou ela, “como é que é o ditado? Em uma mulher não se bate nem com a pétala duma...”,
“flor!”, responderam todos em coro, como se fosse uma escolinha. Josué, sarcástico respondeu:
“algumas podem com machado...”.
Com seu tom doce e cadenciado de voz, Aline comentou que “[era] bom pensar na
raiva”, porque isso ajudava a “crescer, mudar e se perceber melhor”, como Josué estava
fazendo, para aprender com a experiência dos outros. Josué ficou em silêncio. Aline prosseguiu:
“ser pai é muito, muito importante e compreendo o conflito interno que vocês estão
103
experimentando”. Depois os parabenizou por quererem estar presentes na criação dos pequenos.
Ela estimulou Josué a não se afastar dos seus filhos e a procurar os meios para manter contato.
Aline não o recriminou, reconheceu o argumento dos homens e mencionou que sabia que
algumas mulheres queriam a guarda dos filhos só para receber a pensão, porque elas
aprenderam que a expectativa de muitas mulheres desde pequenas era a de ser “dona de casa”,
mantidas pelos homens, assim como a de muitos homens era a de serem “trabalhadores e pais
protetores”. Eles a escutavam calmos e um pouco intrigados. Aline abaixou mais o tom de voz
e disse que as “mudanças nos papéis de gênero [deixavam] as pessoas sem capacidade para
lidar com as emoções”, criando tensões, nas quais “fortes emoções podiam desviá-las do
caminho”. Ela afirmou que, para quando esse momento chegasse, eles tinham as ferramentas
para contemplar tais mudanças, como “um presente para a vida”. Nessa ocasião, eles poderiam
falar e reconhecer o que sentiam, para esclarecer a cabeça e lidar com o inesperado com
maturidade.
Josué, olhando para o chão e com tom de voz baixo, disse que a única coisa que queria
era “esquecer essa mulher”, que não significasse nada para ele. Ele perguntou, talvez cansado,
por que sua ex-esposa estava fazendo isso; se ele havia sido um “bom marido e pai”, por que o
submetia a esse “martírio”. Não adiantava apelar à justiça porque sua causa já era perdida: “Ela
soube como alimentar minha raiva e convertê-la em ódio ... ela soube como tirar minha
calma”. Aline, acolhendo-o, lhe agradeceu por “abrir seu coração” e compartilhar com todos o
que sentia.
Finalizando esse encontro, Aline propôs uma reflexão para a semana: que se pensassem
como uma árvore cujas raízes eram o passado, a maneira como foram criados; o tronco, o
momento atual; e os galhos e as folhas, os futuros relacionamentos que eles iriam ter, levando
em conta a pergunta: “o que mudou ao longo dos anos, desde que vocês eram crianças?”. Eles,
rindo e enquanto saíam da sala, falavam ao mesmo tempo de brinquedos, de como o tempo
passado foi melhor e da vida familiar com os pais. Fiquei com Aline arrumando a sala e
organizando a documentação do grupo. Expressei minha inquietação: ver que Josué começava
a falar nos termos que ela propunha, “desde o sentimento”. Ela qualificou como positivo esse
“movimento” de Josué, pois permitia que ele “se desarmasse” e fosse “honesto”, sem se
“vitimizar”.
104
2.4 Josué
Já eram umas 19 horas quando saí do fórum rumo às barcas para voltar ao Rio de Janeiro.
Encontrei Josué na entrada da sede da Ordem dos Advogados do Brasil de Niterói, prédio onde
ele alugava uma sala para trabalhar. Tomamos um café enquanto conversávamos sobre seu
caso. Diferentemente da atitude no grupo, Josué falava comigo de maneira calma, resignada,
mas sempre insistindo que era inocente e que experimentava uma injustiça. Esse foi o primeiro
café de vários, antes ou depois do grupo, para conhecer mais da sua vida. Josué achava que não
adiantava falar nada no grupo, porque ele já estava condenado.
Josué migrou de Salvador, na Bahia, bastante jovem, sem manter contato com a família
de origem. Ele teve uma filha quando era adolescente com a qual pouco conversava. Quando
chegou ao Rio de Janeiro, trabalhou em construção na Barra da Tijuca, o que já fazia na Bahia.
Alguns anos mais tarde, ele se dedicou a ajudar na campanha de um vereador de Niterói, razão
pela qual trasladou sua residência para esta cidade, fazendo alianças com políticos locais e
iniciando seu negócio de publicidade. Ele levava uma “vida classe média” quando conheceu
sua ex-companheira. Segundo alguns integrantes do grupo reflexivo, ela já devia ter dinheiro e
posição social em Niterói e Josué “aproveitou” seu relacionamento como forma de ascensão
social, porque “quem ia querer um ‘paraíba’?”, afirmava Cláudio 19.
Josué e sua companheira se casaram e foram morar em um apartamento que era do seu
sogro. “[Minha vida] deu um pulo muito grande quando entrei para trabalhar na política, eu
cresci muito”. “Ajudando” os políticos, ele ganhou R$ 1 milhão, ou R$ 2 milhões. O casal
viajava pela Europa, acumulava carros, comprava propriedades e tinha uma vida de muito
conforto. Com a ampliação dos seus negócios, Josué precisou colocar propriedades no nome da
esposa e de seu sogro, porque “eu confiava neles”. Ele pagava entre R$ 1 mil e R$ 2 mil por
mês para seu sogro em troca dos favores recebidos: “eu sempre paguei com dinheiro, na política
você vê sempre muito dinheiro”. Devido a contatos políticos, sua esposa começou a trabalhar
no Tribunal de Justiça. Ele ressaltou este episódio como mostra de seu grau de influência na
vida política do estado do Rio de Janeiro. Josué se definia como um homem generoso, que
ajudava seus familiares e amigos. Com a riqueza veio a “inveja”: ele sabia que era um “paraíba”,
mas não se importava, porque ele vivia para trabalhar e sempre tinha dinheiro no bolso. Com o
dinheiro também veio a “falta de direcionamento espiritual”, que destruiu a sua família.
“Paraíba” é uma maneira depreciativa de chamar migrantes vindos da região Nordeste do Brasil, não só no Rio,
mas em quase toda a região sudeste do Brasil.
19
105
Um dia, Josué encontrou sua ex-mulher com um sócio de negócios na sua própria cama.
Ele suspeitava da infidelidade porque havia escutado boatos, mas não queria acreditar que ela
se relacionava com outros homens. Ele foi tomado pela “cólera” e xingou-a em repetidas
ocasiões, como consta na pasta do processo no juizado. Nas provas apresentadas pela
demandante, Josué mandava mensagens via e-mail dizendo que “as cadelas são mais fiéis” e
que nunca esperaria traição de um animal. Isto ele repetiu várias vezes durante os encontros do
grupo reflexivo, o que incomodava Aline e alguns homens. Nos documentos, ela o acusava de
“infidelidade” e de “alcoolismo”, juntando cópia de comunicações via e-mail que Josué
mantinha com outras mulheres e fotos dele bebendo uísque em companhia de algum político
local, usando pulseiras de ouro em clubes e festas. Josué se defendia das acusações
argumentando que a casa onde o casal morava era dele e ela não tinha direito de dormir ali: “Eu
disse para ela: ou você sai daqui ou eu te mato, ou você manda me matar. Mas nunca passou de
uma ameaça. Eu não a ameacei com palavras, só a chamei do que ela é, uma prostituta!”. A exmulher ameaçou denunciá-lo e pouco tempo depois ele acabou preso.
“Dormir na cadeia com bandido, meu amigo, você não sabe o que é isso”. Josué tinha
medo de estar no presídio, mas rapidamente assumiu a liderança do setor onde ele estava
recluso. Graças a seu advogado, ele conseguiu distribuir cigarros e fazer favores para alguns
presos, como auxiliar a família de alguns deles ou ajudar no trâmite processual de outros. Josué
comentou que não foi fácil viver “na imundície e sempre assustado por ser apunhalado a
qualquer momento”. Depois de passar algumas semanas na cadeia com estupradores e ladrões,
Josué perdeu toda a sua fortuna. Pelo fato de ser um homem reconhecido socialmente, viu seu
nome manchado nos jornais e na internet. Ele estava indignado com isso. Agora, ele era um
“ficha suja”, seus contatos políticos lhe deram as costas e não conseguia emprego. Josué só
desejava se vingar. Em todas as nossas conversas, ele repetia insistentemente que se ele a tivesse
assassinado, passaria uns anos na cadeia e agora já estaria livre. A denúncia aconteceu em 2009
e a sentença do juiz foi em 2013, obrigando-o a participar do grupo reflexivo, a assinar um
termo no cartório do juizado periodicamente e a não sair da comarca até 2017: “ela vai ter que
pagar cada dia, não vai ter como escapar, ela vai ter que pagar o que ela me fez”. Josué se
posicionava como “vítima” pelo acontecido porque perdeu tudo o que lhe outorgava prestígio
e que com esforço e dedicação havia conseguido. A tentativa dele era sempre minar a
credibilidade da denunciante enquanto vítima no processo:
Ela é a vítima? Isso é o que não entendo, ela ficou com tudo o que era meu,
com meus filhos, com minha casa. Não tem religião no meio, ela não é
106
inocente, ela é muito mais culpada que eu, tudo é armação dela porque
conseguiu botar no papel.
O homem que aparecia nas fotos da pasta do processo não era o Josué que eu conheci
no grupo reflexivo de gênero, pois agora tinha mais a aparência de intelectual humanista do que
de político local. Após a denúncia, ele começou a assistir ao culto da Igreja do Sétimo Dia, mas
parou de ir porque sempre encontrava sua ex-mulher que, para “torturá-lo”, ia com seu novo
companheiro. “Tive que parar de buscar conforto espiritual nesse lugar”. Josué iniciou seus
estudos sobre cristianismo; embora ele tenha crescido como católico, nunca se considerou
praticante, “mas sempre fui crente”. Após três anos de pesquisa, “descobri minhas raízes
judaicas”, o que fez com que Josué voltasse para a Bahia, para a ilha de origem da sua mãe, a
fim de saber mais sobre os seus avós, que eram judeus expulsos de Portugal. “Descobri toda a
história e aí vi que era judeu, judeu de sangue. Aí me transformei, procurei a sinagoga, fiz o
teshuvá20, fiz a circuncisão e entrei no judaísmo; isto me deu estado de consciência”.
Quando Josué falava dessa transformação, sua narrativa era calma, diferente da
descrição do episódio da traição da sua ex-mulher. Após sua conversão, ele parou de beber
álcool, seguia uma estrita dieta e baseava seu proceder na Torá. Também avaliava suas ações
passadas e presentes como “frutos de escolhas”:
quando a gente começou a sair, eu sabia que ela não gostava de mim. Ela saiu
com um ex-namorado dela quando a gente estava começando, eu soube disso
e, por gostar dela, eu ainda aceitei, ela queria se casar para sair de casa e eu
[estava] apaixonado por ela. Eu aceitei e agora vivo o que vivo.
Josué argumentava que o homem só pode se apaixonar e idolatrar o Eterno, em função
do que não mais podia se apaixonar por uma mulher. Ele também escolheu estar longe dos seus
filhos de 8, 12 e 15 anos, porque não podia forçá-los a amá-lo: “eles têm que se conscientizar e
escolher entre a idolatria de uma mulher adúltera e o amor do pai”. Para contribuir com a
formação dos seus filhos, Josué deu para cada um deles de presente uma Torá, bem como à sua
filha mais velha de Salvador, a quem queria tirar do “espiritismo”.
Com seu novo estado de consciência outorgado pelo judaísmo, “a religião completa”,
ele agia de uma “maneira correta” e reconhecia “a obra do Eterno”, porque em todos os anos
do processo, de ir para audiências, de estar nos tribunais, ele nunca mais vira a ex-mulher. Josué
sabia que um dia ela ia devolver tudo e pagar pelo martírio que o fez passar: “eu não vou fazer
nada, ela vai pagar, como? Eu não sei, mas que vai pagar, vai pagar!”. Também reconhecia o
20
Retorno às origens.
107
Eterno na sua vida porque, apesar de não ele não ter luxos nem confortos no seu pequeno
apartamento em São Gonçalo, emprestado por um amigo da sinagoga que frequentava, ele
sempre tinha dinheiro no bolso para pagar seu advogado e repassar a seus filhos: “as portas
sempre se abriram para mim, o Eterno nunca me deixa passar necessidade”. A vida de Josué
nesse momento era “solitária”. Apesar de ele reconhecer a obra do Eterno, sentia “vergonha”:
ele não era um homem poderoso e não queria que seus filhos o visitassem no seu modesto local
de moradia. Mas ele sabia que devia “revisar esse sentimento para ser livre”. Josué esperava
conhecer uma mulher judia para conformar sua nova família. Ela tinha que “ser obediente e
consciente de que você é o cabeça da família”. Ele, da sua parte, faria tudo por ela, a respeitaria
e a amaria. O casamento seria uma “troca de favores: você vive para ela e ela vive para você”.
2.5 A consciência do gênero
No terceiro encontro, com o propósito de conversar sobre gênero, Aline lembrou a
pergunta sobre a árvore cujas raízes representavam a criação; o tronco, o presente; e as folhas,
os relacionamentos futuros. Ela dividiu o quadro branco da sala em duas colunas: uma para
atributos das mulheres e outra para os dos homens. Depois, colocou umas frases escritas em
cartolinas brancas para que os homens escolhessem, lembrando das “atitudes e experiências
que ouviram de como os outros e eles mesmos deviam se comportar”. Em seguida, eles
deveriam decidir em qual das colunas colocar a frase.
Herbert perguntou para Aline o que significava o “afeto”. “A capacidade de falar o que
as pessoas sentem para outras”, ela respondeu. Herbert colou a frase “ser afetuoso” no meio das
duas colunas. Depois, todos pegaram suas frases também na linha divisória, menos Josué, que
se recusou a participar. Aline ficou interessada nas razões pelas quais eles haviam colocado as
frases no meio, como se fossem características dos dois sexos: “chorar, brincar com os filhos,
ensinar os deveres de casa, conversar com a filha sobre sexo, agressividade, alegria, chegar
tarde em casa, ter amigos do sexo oposto, cuidar de parente doente”. O que significava estar no
meio? Perguntou ela.
Josué, amargurado, respondeu que a mulher não podia ter amigos do sexo oposto porque
seria uma traidora e o homem só teria interesse sexual nela. Para ele, a amizade não existia.
Aline considerava que a mulher tinha direito de sair e beber uma cerveja com amigos sem que
isto fosse motivo para partir para briga, e perguntou para Josué se esse pensamento não seria
um costume regional do Nordeste, porque os homens do Rio de Janeiro consideravam o
108
contrário. Josué respondeu que não era uma questão cultural, mas sim que os cariocas eram
“malandros” e falavam o que ela queria escutar, ao contrário dele, que sempre falava a
“verdade”. Os outros balançaram a cabeça sinalizando assim que não valia a pena prestar muita
atenção ao que havia sido dito. Herbert replicou sorrindo, mas com tom forte, que Josué devia
aprender a ter “confiança em si mesmo” para poder acreditar nos outros, porque o que ele falava
não mostrava mais do que “insegurança”. Aline lembrou que o grupo era para debater, sem
precisar subir o tom de voz, e que ali eles tinham a oportunidade de “repensar hábitos
aprendidos ao longo da vida” que eram “naturalizados”, como se impor gritando, o que era
“próprio dos homens”.
Figura 12. Árvore da vida e do gênero.
Ignorando Herbert e citando a Bíblia, Josué comentou que o lugar da mulher era na casa,
porque devia cuidar dos filhos. Todos concordaram, afirmando que muitas delas nunca
trabalharam. Depois adicionou que a mulher adúltera devia levar pedrada. Aline não gostou do
comentário. Maykson afirmou que o homem também era adúltero e, falando para Josué, disse
que na Bíblia existia a Lei de Moisés, mas também a de Lei de Cristo, que falava de “amar o
outro”. Aline destacou que “a palavra” era importante nas relações humanas e que “perdoar”
devia ser um exercício diário. Dirigindo-se a Josué, ela perguntou: “a gente tem aprendido que
109
as religiões também foram construídas dentro de uma cultura e o grande desafio é, até nas
religiões, o que tem lá que é cultural e o que tem lá que é eterno?”. Josué ficou em silêncio.
Aline voltou à atividade, argumentando que as “diferenças entre homens e mulheres”
eram conhecidas como “gênero”. Transmitido durante a criação, ele modelava o
comportamento dos adultos e mudava segundo a cultura, a geração e a religião. Se existiam
essas divisões, por que eles optaram por colocar as frases no meio, como se fossem
responsabilidades dos dois no lar, destacou Aline, para depois perguntar: “quem de vocês
realmente está presente na criação e faz ofícios domésticos?”. Todos ficaram em silêncio.
O desafio para eles era conceber o relacionamento como uma “troca de afetos”, que
permitia a “estabilidade emocional [e] as potencialidades” que cada uma das partes tinha para
a manutenção do casal, trazendo como resultado “diversos arranjos familiares”, e não só o
modelo de pai provedor e de mãe confinada no lar. Um olhar na “diversidade das trocas”
permitia questionar as “verdades”, como as das religiões, explicava Aline, e finalizando, ela
afirmou que “a gente pode pensar: bem, essa pode ser a minha verdade, mas há outras realidades
no mundo afora, pela história fora”. A tentativa de Aline era tirá-los do “lugar da razão”, da
“última palavra em casa”, lugar que, para ela, esses homens ocupavam e que viram seus pais
ocuparem. Aline queria que eles valorizassem a posição da mulher como parceira e que
parassem de enxergá-la como uma subordinada.
Retomando a definição do conceito de gênero, Aline disse que ele se referia ao caminho
das pessoas para se tornarem homens ou mulheres e aos papéis estereotipados que ficavam
internalizados, conformando a identidade. Disse ainda que a ideia da divisão dos sexos era
muito poderosa e eles precisavam ter consciência disto, colocando exemplos acerca da cor da
roupa para os bebês ou dos brinquedos das crianças. “Qual a razão dessa divisão?”, perguntava
Aline, se o suposto era a igualdade entre homens e mulheres. Heitor feminilizou a voz e disse
que era para “não ter surpresas desagradáveis”. Todos riram. Aline, ignorando-o, perguntou por
que os homens tinham que “levar porrada” e demonstrar que eram corajosos sempre, quando
muitos não queriam isto. O nome para isto era “machismo”. Maykson concordou com Aline e
disse que essas atitudes correspondiam ao passado e que a mente de todos estava no passado.
Ele contrastou o machismo com “o pensamento do presente”, em função do que ele buscava
“mudar”. Aline estava contente, até que Maykson feminilizou a voz e perguntou se podia
brincar de boneca e cozinhar no futuro. A crítica à proposta de se pensar como um sujeito
consciente do gênero feita por Aline não podia ser mais óbvia.
Aline respirou fundo e, com um leve sorriso, disse que o Rio de Janeiro do passado não
era o mesmo de hoje, razão pela qual eles deviam se propor a mudar a “norma de gênero” e a
110
responder às expectativas igualitárias da época. Henrique, o policial militar, concordou com
Aline, considerando que o tema era polêmico porque os homens estavam acostumados a
trabalhar para prover dinheiro e muitas mulheres só se sentiam realmente como tal quando
tinham filhos. Ele pensava na sua filha e não a imaginava com vários namorados
simultaneamente, enquanto ele, como homem, foi estimulado a “pegar” várias mulheres ao
mesmo tempo. Josué, irônico, comentou que era por isso que a mulher não podia ter amigos,
para que não fosse uma “vagabunda”. Havia uma tensão acumulada entre eles dois a partir dos
encontros anteriores. Henrique encarou Josué e respondeu:
O que ela está falando aqui é que o machismo existe, o homem pode fazer
tudo, a mulher não pode fazer nada, se teu pensamento é assim, na boa, o teu
pensamento é assim, cara risos de alguns, você é criado num quadrado, onde
a mulher tem que usar esse negócio de burro que nem olhar para o lado ela
pode21.
Depois de alguns tensos segundos de silêncio, Josué respondeu que era assim mesmo
que devia ser, a mulher só podia olhar para o marido e ele só podia olhar para ela, isso era
demonstração de “respeito”. Henrique, Maykson e Herbert riram alto. Henrique não acreditou
e lhe perguntou se nunca olhava uma mulher na rua. Josué, sereno, respondeu que ele já superou
“a ansiedade de ficar com cada mulher na rua”: “vivo no judaísmo de Adonai desde há dois
anos e tenho outra concepção da minha vida”. Josué explicou que o homem e a mulher tinham
um papel segundo o Eterno: a mulher deve ser submissa ao homem, o que não queria dizer que
fosse escrava, e que era necessário existir respeito mútuo. Por isso ele não olhava para outras
mulheres, “mesmo que andem devassas diante de você”. Josué meditava, contemplava seu
“apetite sexual” e não frequentava a praia, nem andava de sunga. A partir desse novo parâmetro
ético, Josué fez uma “análise crítica de quando vivia no cristianismo”, época em que deu
“liberdade” para sua mulher, considerando-a como uma “igual”. Estes dois atributos só levavam
à “traição” e à “libertinagem”, porque homens e mulheres estavam só pensando no seu
“interesse particular” e não “obedeciam” ao mandamento do Eterno. Havia um ambiente de
aprovação para as palavras de Josué. Ele sabia argumentar e contestar a proposta de Aline, mas
também colocar em palavras a “doxa” que fundamentava as relações e os arranjos familiares
desses homens.
Aline reconhecia o sentido das palavras de Josué, mas enfatizava que existiam “outras
experiências nas quais a mulher tinha outro lugar, com papéis que antes não eram pensados
21
Henrique fazia referência à burca usada pelas mulheres no Afganistão e no Paquistão.
111
para elas”. Ela valorizou o fato de os homens falarem a partir da sua “experiência pessoal”,
apontando “a diversidade e o dinamismo” da conversa desse dia. Ela lembrou que a relação de
casal se construía com “afeto e carinho [para] harmonizar na base da igualdade e do respeito
sem medo” e que não podia confundir-se “amor” com a “posse do outro”. Aline anunciou outro
desafio para aquela semana: “aprender a reconhecer os afetos das mulheres no relacionamento”.
Ela encerrou o encontro e todos saíram em silêncio da sala. “Foi um encontro muito interessante
porque todos saíram mexidos”, comentava Aline. Ela estava satisfeita.
2.6 A violência não tem gênero
Aline teve que reajustar o cronograma dos encontros devido à Copa do Mundo, os
funcionários do estado do Rio de Janeiro estavam liberados para assistir aos jogos do Brasil no
Maracanã e muitos deles foram nas terças-feiras. Duas semanas mais tarde, as conversas na sala
de espera do centro de mediação não eram sobre a Lei Maria da Penha, nem sobre “esse lado
escuro das mulheres” que os levou até o Judiciário, mas sobre futebol. Alegria, entusiasmo,
excitação, interesse e conhecimento erudito sobre futebol podem descrever as conversas entre
os integrantes do grupo reflexivo. Diferentemente dos dias anteriores, o ambiente era
descontraído. Se existia um tema no qual a palavra fluía e havia engajamento entre a facilitadora
e os homens era definitivamente o futebol.
“Mas vamos agora, sim, ao sério”. Aline retomou a discussão sobre as diferenças na
criação e perguntou se isto tinha a ver com a violência que viviam muitas mulheres quando
adultas. Heitor logo no início disse que ele sabia que a tentativa de Aline era relacionar a
“violência” ao fato de “ser homem”, mas como “seres humanos”, “homens e mulheres” eram
ao mesmo tempo “racionais e animais [...] com instintos de defesa que dão origem à
agressividade e com os mecanismos para controlá-la e que permitem a vida em sociedade”.
Todos escutavam atentos. A “agressividade” não podia ser confundida com “força”: atributo
para canalizar a primeira; nem com violência: produto de “provocações”, cujo objetivo era ferir
o outro. A agressividade tinha a ver com a perpetuação da espécie humana e os homens usavam
a força para resolver problemas com outros homens, proteger a família, prover dinheiro e
consertar coisas no lar.
Para Heitor, as mulheres procuravam homens com força e preferiam se colocar “na
posição de dependência”, canalizando seu poder na criação e no cuidado do lar. Elas não
queriam assumir o papel da defesa da família, atributo que denotaria a igualdade entre os sexos,
112
mas “as mulheres querem igualdade de direitos [e] querem conservar os privilégios do
machismo”. Ele ilustrou esta frase com o seguinte exemplo: um homem tem que ceder seu lugar
para uma mulher no ônibus, sem importar a condição da mulher, mas se um homem tiver uma
criança ou um pacote pesado, nenhuma mulher irá ceder a cadeira para ele. Para Heitor, homens
e mulheres estavam caminhando para a “igualdade de poder”, mas a mudança dos papéis de
gênero era exigida só para eles. Respondendo à Aline, ele não acreditava que na sua criação ele
tivesse aprendido a ser violento. Muitas mulheres também foram educadas com violência e
reproduziam isso na sua relação com os filhos e o marido: “então, não é uma questão de gênero
na formação”. A agressividade estava nos dois sexos e a questão da violência não era de força,
mas de “inteligência”, de saber agredir e “ferir no fundo do coração”, coisa que as mulheres
sabiam fazer muito bem. A violência das mulheres era “sutil”, tinha a ver com “pequenas
humilhações periódicas” que eles iam “engolindo” até “explodir”.
Aline concordava com Heitor que homens e mulheres eram diferentes e, por isso, fazia
sentido falar de trocas no relacionamento. Dizia ainda que os homens possuíam “a força”, mas
nem por isso tinham legitimidade para se impor dentro do lar. Ela, ao mesmo tempo em que
afirmava certa complementariedade na relação de casal, que era compartilhada pelos homens,
mencionava que a troca obedecia ao reconhecimento mútuo das diferenças e das
potencialidades das partes. Aline estava preocupada com a incapacidade dos homens de
reconhecerem a “voz das mulheres”, seu “desejo” e, mesmo sabendo que muitas delas queriam
ser mães e ficar no lar, como escutava nos seus atendimentos, isto não significava que “a força
dos homens” lhes negasse escutar as necessidades delas. Aline argumentou que essa noção de
poder como força não lhes permitia reconhecer seus próprios sentimentos e desejos, por medo
de serem ridiculizados como veados. O patriarcado fazia isto: submeter homens e mulheres,
sendo uma pesada carga também para eles. Para ilustrar melhor seu ponto, Aline colocou o
curta Não é fácil não22, “para pensar essas questões de gênero na educação e na criação de
homens que nos fazem infelizes quando adultos e não nos libertam”. Ela recomendou refletir
sobre o que o protagonista sentia e as consequências de não expressar as emoções, de não
chorar.
O curta tratava do conflito que Pedro experimentava pelo fato de sua esposa Kelly
ganhar mais dinheiro do que ele. Sentia-se humilhado e recorria à bebida para esquecer a
situação. No boteco, ele sentia inveja de ver outro homem contente e rodeado de mulheres, que
não tinha que dar satisfação para ninguém e não trabalhava feito um peão para manter o lar
22
Curta produzido a partir de uma pesquisa de Promundo e do Instituto Noos em três locais do Rio de Janeiro.
Pode ser consutado em https://promundo.org.br/recursos/nao-e-facil-nao/
113
(enquanto esse homem sentia inveja de Pedro porque tinha família, ao contrário dele, que
pensava que ia pelo mesmo caminho de seus amigos, presos ou mortos por ser traficantes...).
Uma noite, Pedro chega em casa depois de ter bebido. Kelly o tinha visto instantes atrás no
boteco e fez a devida reclamação. Ele perguntou por que não podia se divertir, ao que ela
replicou que podia se divertir consertando o banheiro. Kelly o acusava de não ter iniciativa,
razão pela qual ganhava menos, comparando-o com o patrão dela, que tinha ela, Kelly (ela
atuando como se gostasse do seu chefe, quase como uma atriz de telenovela, sendo dramática).
Pedro fica bravo por ser comparado com outro homem e levanta a mão para bater nela,
mas para porque vê uma criança, que o julga com seu olhar, e rapidamente desaparece. Tratavase de um fantasma, similar ao do “Conto de Natal” de Charles Dickens. A criança-fantasma,
como se fosse sua própria consciência, fazia lembrar a Pedro a maneira como ele mesmo fora
criado e “aprendera a ser homem”, e de como isto se relacionava com o episódio de violência
contra sua esposa, com a sua ausência nas brincadeiras dos filhos, e com a dificuldade que tinha
em expressar seus sentimentos. A reflexão propiciada pela criança-fantasma permitiu que Pedro
expressasse seus medos, dúvidas e emoções, recompondo a relação e melhorando como pai e
esposo. O curta finaliza com a exposição de estatísticas de uma pesquisa realizada pelas
organizações Promundo e Noos, que demonstravam que a violência era aprendida através do
exemplo de pais e de outros homens, e não como consequência do desemprego ou da bebida.
Heitor, com um sorriso amplo, destacou que no vídeo a mulher sabia como provocar
Pedro. Ela não necessitava ser mais forte, mas sim recorrer aos pontos fracos do homem para
humilhá-lo e diminuí-lo. Episódios como este eram comuns a todos na sala, que apoiaram
Heitor, mencionando que muitas brigas se iniciavam com as “provocações da mulher”.
Henrique assegurou que várias brigas que ele havia escutado tinham começado quando elas
“mandam o homem tomar naquele lugar e o chamam de veado; nenhum homem gosta de ser
chamado para tomar no cu”. Maykson destacou que Pedro chegou silencioso em casa, querendo
descansar depois de um dia frustrante, mas no lar houve uma “inversão de papéis”, sendo ela a
agressiva e demonstrando como, em última instância, quem estava sendo penalizado, o lado
errado da história, era o homem.
Aline perguntou sobre o direito que tinha o homem de atacar quando se sentia
provocado, reação de Pedro diante da acusação de Kelly, afirmando que era preferível reagir à
provocação sem violência. Nesse momento, ela pegou algumas matérias de jornais sobre a
violência contra a mulher, que ressaltavam que este era um fenômeno generalizado. Meninas
sequestradas na Nigéria e as mulheres apedrejadas por causa da honra no Paquistão e na Índia
eram exemplos dessa violência. Voltando ao curta, Aline ressaltou que “a ausência da palavra
114
para comunicar os medos e as frustrações de Pedro” foi o detonador da violência contra Kelly.
Ela perguntou qual era a melhor maneira para o homem reagir sem agredir, lembrando que, no
final do curta, Pedro “se conscientizou e recompôs e lutou por seu casamento”. Sorridente,
Aline perguntou se eles podiam fazer o mesmo.
Heitor, rindo, disse que isto não era possível, pelo menos não com Joana. Ele narrou
que, em uma ocasião, por ciúmes, ela o mordera, tendo ficado 15 dias com um hematoma. Ele
procurou um policial para dar parte, mas não existia um registro específico de violência de casal
contra o homem. Heitor comentou que os homens eram agredidos, mas não faziam registro para
não serem “motivo de piada”. Aline reconhecia que tanto mulheres como homens podiam ser
violentos, porque sabia que elas xingavam os maridos e os filhos, mas ela se perguntava por
que as estatísticas mostravam que a violência contra elas era maior. Para Heitor, se existisse um
registro específico da violência conjugal contra os homens, ela mostraria uma estatística
similar.
Figura 13. Não é facil não!
115
Aline, um pouco cansada, ressaltou que a força dos homens era desproporcional em
relação ao tipo de violência sutil que Heitor descrevia. Ela reconhecia o rancor dele, mas não
admitia mais o “desejo de violência contra as mulheres” no grupo, solicitando colocar “em
suspenso a situação de injustiça” que eles experimentavam. Aline perguntou para cada um deles
se tinham “filhas” e que pensassem o que aconteceria se elas fossem “vítimas de violência”. Os
homens ficaram em silêncio, alguns olhando para o chão, menos Josué e Heitor. Este foi o
momento mais efetivo que provocou uma inflexão narrativa para o resto dos encontros. Daí
para frente o argumento da injustiça não foi tão recorrente.
2.7 Heitor
Fiquei interessado em conhecer melhor Heitor, pois ele e Josué eram referência para os
outros homens dentro do grupo. O argumento colocado por eles era escutado com atenção, seja
para concordar, ou para entrar em confrontação. Assim que Heitor abandonou o grupo, uns
encontros mais tarde, ele me convidou para conversar na sua casa na vizinha cidade de Maricá,
na Região dos Lagos, a leste de Niterói. No quintal e na sala da casa, nós dois conversamos
sobre sua vida, focada no processo jurídico. A mãe dele sempre foi amável comigo, depois de
oferecer um café, ela saía e nos deixava sozinhos. Na sala da sua casa havia muitas fotos dele
com sua “pequena princesa”, várias delas do seu último aniversário, em que a criança aparecia
fantasiada de heroína da Disney, acompanhada do seu pai, sempre sorridente e vestido de
príncipe. Outras fotos eram do seu segundo casamento e dele com sua mãe. A narrativa de
Heitor era bastante precisa em relação às datas e às circunstâncias nas quais aconteciam as
agressões. Sua vida estava marcada pela relação com o Judiciário e sua tentativa de sair livre
da acusação de infrator.
Heitor era filho único e perdeu seu pai quando ainda era uma criança. Ele o descreveu
como um “homem autoritário, grosseiro e desrespeitoso”, que contrastava com a “humildade”
e a “generosidade” de sua mãe. Desde pequeno, Heitor trabalhou para ajudá-la e se destacou
como um aluno exemplar na escola. Conheceu Joana quando ele tinha 15 anos de idade e ela
13, tendo sido ela sua primeira namorada. Aos 17 anos começaram sua vida sexual, fato que
causou problemas com os pais de Joana que, “apesar de [serem] religiosos”, a golpearam em
repetidas ocasiões por “ter perdido a castidade”. Os episódios de violência contra a adolescente
continuaram durante meses, até que ela decidiu fugir de casa. “Eu me sentia responsável pelo
bem-estar de Joana” e chamou-a para morarem juntos em uma comunidade em Niterói. A mãe
116
dela, uma policial civil, fez um registro de “rapto consensual e aí começou essa história com o
Judiciário em 2001”.
Eles viveram juntos “cercados de imaturidade e de medo”. Heitor era estagiário em uma
empresa de construção e ela, sem perspectiva profissional, não se mostrava interessada em
trabalhar nem estudar. Ele foi perdendo seu interesse por ela. O casal brigava frequentemente;
ela era agressiva, mordendo-o e lançando-lhe objetos. Um dia, sua mãe lhe disse que ele
também se mostrava agressivo e que se irritava facilmente com ela, a mulher que mais admirava
e queria bem. Heitor percebeu que o relacionamento com Joana não era bom para ele:
essa não era uma relação para mim, pela maneira que ela iniciou, por conta de
um conflito. Ela, por ter essa história de violência, tentava reproduzir essa
violência comigo em casa. Isso vai te modificando, se você não é violento,
mas é frequentemente violentado, chega um momento em que você acaba
querendo se defender, você acaba agredindo.
Heitor queria se separar, mas ainda se sentia responsável por ela. Heitor não queria que
Joana voltasse para a casa dos pais porque sabia que ia ser maltratada. O jovem casal foi morar
no quintal da casa da mãe e ao longo de alguns meses eles tiveram curtas separações. Joana
voltava arrependida, pedia desculpas e uma segunda chance, que ele sempre concedia, porque
acreditava que em algum momento ela mudaria e focaria no relacionamento. Heitor iniciou seus
estudos em enfermagem e começou sua carreira, mas “eu não estava feliz” e queria sair desse
“ciclo de violência”. Quando decidiu se separar, depois de uma briga no início do ano de 2008,
ela comentou com ele que estava grávida da sua filha. Heitor não teve coragem de abandonála.
Com o nascimento da sua pequena princesa em julho de 2008, “Joana se tornou outra
mulher”. Ele havia passado no concurso para bombeiro militar e tinha plantões de 36 ou 48
horas. Quando ele chegava em casa, não permanecia muito tempo ali, devido às brigas: “ela
não era a mãe exemplar que eu esperava que fosse, se tornou um monstro”. Joana não gostava
da presença da sua sogra, mas ele não podia fazer nada porque dependiam dela; em última
instância, o casal morava no quintal da casa materna. Uma noite, a criança não parava de chorar
e a mãe de Heitor foi ajudar Joana, apaziguando a menina, ela a fez dormir e explicou à jovem
mãe como fazer para que a criança regulasse o sono. Joana se sentiu ofendida e disse para ela
que não precisava da sua ajuda, mandando a sogra embora. Quando Heitor reclamou, Joana
disse para ele que sua mãe foi “mulher de muitos homens, para não repetir como ela realmente
a chamou”. Heitor não acreditava que ela desrespeitasse a única pessoa que os estava ajudando
e a mandou sair de casa. No dia 31 de dezembro, ele estava de plantão por 24 horas e Joana e a
117
mãe dela pegaram a criança e foram à delegacia. Cinco dias depois Joana desistiu da denúncia,
mas “ficou aquela marca, uma pessoa em quem não posso confiar, minha filha tinha seis
meses”.
Um ano mais tarde, ele alugou uma casa e o casal foi morar de novo em Niterói, “com
a esperança de que ela se tornasse uma pessoa melhor”: menos agressiva, mais atenta e melhor
mãe e esposa. Na mesma época o irmão de Joana virou réu de um caso de assassinato de um
homem, do qual ele foi beneficiário de um seguro. Joana solicitou a ajuda de Heitor para pagar
o advogado, mas ele se recusou: “meu dinheiro vem de trabalho suado e honesto”. Heitor não
queria ajudar um “golpista”. Joana “surtou” e o agrediu de novo. Ele voltou para Maricá, mas
a filha ficou em Niterói com a mãe. Repetindo “o mesmo padrão de conduta”, ela pediu uma
segunda chance. Heitor estava cada vez mais inconformado e solicitou ajuda ao psiquiatra do
batalhão. Ele se sentia “irritado” e não conseguia separar os problemas familiares do trabalho.
O psiquiatra diagnosticou “transtorno de ansiedade e depressão”, medicou-o e encaminhou-o
para terapia. Após o período de terapia decidiu se separar:
Eu comecei a tomar consciência de que eu não era o responsável de todo o
drama que ela sofreu na vida dela. Se aquele relacionamento não estava bom,
eu tinha que me desfazer daquilo. Eu não tinha que carregar aquilo comigo.
Eu precisava não ter mais essa culpa, essa culpa não era minha. Eu me sentia
responsável pela vida dela, mas me dei conta que não. A vida é dela.
Com o dinheiro da sua poupança, Heitor comprou uma casa para Joana e sua filha
morarem. Em setembro de 2010 ele se separou, mas ela não quis aceitar. Joana e a mãe foram
para a delegacia. Ele as encontrou fazendo o registro, conversou com o policial e explicou todo
o acontecido com o irmão dela. Passados 15 dias, ela desistiu do processo na promotoria e
voltou às tentativas de retorno. “Agora não, agora não vou voltar, a única coisa que eu queria
era minha filha perto de mim e que pudesse equilibrar o cuidado dela, mesmo separados”.
Durante algum tempo eles compartilharam a guarda da criança, mas “toda essa guerra que me
levou ao Judiciário lá em Niterói, onde você me conheceu, foi a partir do momento em que eu
conheci a minha atual esposa”.
Em dezembro de 2011, Heitor deveria acompanhar sua mãe ao hospital para uma
intervenção ambulatorial. Estando lá, a escola ligou para avisar que a pequena estava com febre
alta e teria que pegá-la, já que não conseguiam localizar Joana; ela estava em um churrasco
comemorando com colegas de trabalho o fim do ano. Heitor pegou a menina, levou-a para o
hospital e depois voltaram para casa. A atual esposa de Heitor, que também era enfermeira e o
namorava havia três meses, chegou para auxiliá-lo. Horas mais tarde, Joana foi pegar a menina
118
e aconteceu o encontro que Heitor estava evitando. Pela experiência de um breve namoro,
meses antes, ele sabia que não era conveniente que Joana conhecesse sua namorada, porque
não pararia de fazer cenas de ciúmes. A mãe de Heitor insistia para Joana pegar a menina e
voltar para casa, mas ela persistia em ficar. Joana empurrou o portão para entrar, ferindo a mãe
de Heitor, que se recuperava de uma biópsia.
Joana começou a ofender minha namorada, arranhou ela no rosto, a minha
mãe, Marco, aquilo foi me dando uma revolta tão grande que eu, nessa
confusão, eu agredi ela, eu peguei ela pelos cabelos e a arrastei até a parte
externa da casa e falei assim: “agora você vai levar aquilo que há muito tempo
está merecendo levar”, e dei uma surra nela. Dei uma surra nela! Levei até o
portão da minha casa, arrastando pelo cabelo, como um animal, como homem
das cavernas, arrastando. Ela se jogou na rua, fingiu que estava desmaiada e,
quando fui fechar o portão, ela levantou que nem uma louca e entrou
novamente para bater na minha namorada. Ela só saiu quando eu falei que ia
entrar em casa para pegar um balde de água gelada. Aí ela foi embora e fez
um registro na delegacia de que tinha sido agredida. E foi agredida mesmo.
No dia seguinte eu fui lá e perguntaram se eu tinha agredido, e eu falei “agredi
sim”. “Você bateu?”. “Bati”.
Heitor falava sereno, sem “culpa”. Seu ato não foi premeditado, mas também não foi
impulsivo. Após várias tentativas de argumentar com Joana que o relacionamento não
funcionava mais, ele não queria escutar a constante queixa e a reclamação sempre insatisfeita
de Joana. Qualquer coisa que ele fazia ou deixava de fazer era motivo para uma briga, e ele já
estava cansado de não ser escutado. Mas foi no momento em que Joana agrediu sua mãe e sua
namorada que ele ficou “revoltado” e partiu para a agressão. Esse era um limite que Joana não
podia traspassar. Naquela hora Heitor só queria deter a maneira com que Joana agia e mostrar
que ele não era “responsável” pela desgraça dela.
Heitor narrou tudo para o policial, reconheceu a agressão e explicou o acontecido. Ele
a acusou de ser a causadora da violência, sendo ele, sua mãe e a namorada as “vítimas nessa
história”. Como no grupo, ele colocou a situação hipotética de que, se ele tivesse ido à casa dela
por estar inconformado com a separação, ele seria preso sem possibilidade de defesa. Joana
abandonou a casa e foi se refugiar na casa dos pais por 45 dias. Após outra briga entre Joana e
seus pais, ela pediu para retornar à casa de Niterói que ele havia comprado. Heitor não negou o
pedido porque pensava no bem-estar da sua “pequena princesa”. Através do advogado dela,
Heitor conseguiu ficar com a criança por um fim de semana, mas “ela não parava de ligar a
cada cinco minutos”, a cada vez que lhe correspondia a guarda da menina. Em um desses fins
de semana, ele desligou o telefone para ter sossego. Ao não localizá-lo, Joana ligou para o
119
comandante do batalhão e disse que Heitor havia sequestrado a filha, estabelecendo uma
denúncia penal militar. “Isso virou um problema enorme!”.
Quando Heitor foi entregar a criança, Joana gritou que corria perigo, que ele ia bater
nela de novo e chamou a polícia militar para conduzi-lo à delegacia. Ele ficou esperando os
policiais do lado de fora de casa, mostrando que ela gritava com a criança no colo e que, pelo
contrário, ele tentava acalmá-la. “O policial ficou sensibilizado com ela pelo fato de ser
mulher”. Na delegacia, Heitor narrou em detalhes as inconsistências desse caso, porque o
agente encarregado de elaborar o boletim de ocorrência pegou a narrativa de Joana e a colocoua como se fosse a do policial. Heitor atribuiu isto ao fato de o policial ser um conhecido da mãe
de Joana. O juiz outorgou a medida protetiva, mas ela a usou “para outros fins”: Joana
abandonou o imóvel e trocou os cadeados. Heitor teve que ir à delegacia para fazer um “registro
de exercício arbitrário” para abrir os portões da sua casa. Joana, acompanhada da sua mãe,
iniciou uma ação de esbulho e reintegração de posse em janeiro de 2012. A juíza, com base na
medida protetiva anterior, deu a reintegração para ela. Até o momento dos nossos encontros
(2015), Heitor estava no processo de recuperação da sua casa.
Sua filha ia ser dama do seu casamento, mas Joana não permitiu, mesmo sendo este o
fim de semana de visitação que lhe correspondia . Ele foi à delegacia e fez o “registro de fato
atípico”, mas o mesmo policial, “de má vontade”, não o fez porque esta era uma “questão de
família” e o direito penal não tutelava esses atos. Heitor argumentou que Joana havia
descumprido uma ordem judicial que lhe permitia a visitação nesse fim de semana e isto cabia
no direito penal. Ele ficou outros 45 dias sem ver sua filha.
Depois, quando lhe correspondia pegar a criança, ele solicitou à diretora da escola que
a mãe se afastasse para não descumprir a medida protetiva. Joana perguntava por que tinha que
se afastar, ele insistia que queria fazer cumprir a ordem que ela mesma solicitou. Heitor falou
para a diretora que sabia como era ela e que iria à delegacia para fazer um registro.
Efetivamente, Joana foi à delegacia e fez o registro de descumprimento e ameaça. O juiz então
encaminhou-o para o grupo reflexivo e colocou mais uma medida: ele não podia ter contato
com Joana em espécie nenhuma. “Eu vou ficar colecionando medida protetiva que eu mesmo
quero, mas que ela vai descumprir”. Heitor teve que documentar cada movimento que fazia,
chegando a acumular cinco volumes do processo de guarda e outros tantos dos outros processos
ainda vigentes, que me mostrava para dar veracidade à sua história: “a cada confusão eu fazia
registro”. Heitor aprendeu a dialogar com o Judiciário para demonstrar sua integridade e se
diferenciar dela que, “com a posse do lugar de vítima”, mobilizava a maquinaria burocrática
para submetê-lo.
120
2.8 A violência tem gênero, sim
No sexto encontro do grupo reflexivo, Antônio, o jovem DJ, havia saído do grupo. Sua
namorada tinha desistido do processo em uma audiência e eles voltaram a morar juntos. Heitor
também deixara o grupo, pois conseguira demonstrar para o juiz que Joana estava
descumprindo a medida protetiva, argumentando que, se ela o procurava e o assediava, ele não
significava perigo nenhum para ela. Heitor gravou todas as ligações que Joana fazia para ele,
guardou as mensagens de texto e se assegurou de ter testemunhas cada vez que ela ia até sua
casa para procurá-lo. A literatura citada no fim do primeiro capítulo mostra que o processo
judicial retira da narrativa a natureza dos conflitos, traduzindo-o em lide processual. Nisso,
instaura-se uma nova gramática para guiar a “resolução” do conflito, em que não interessam
mais as redes de relações e motivações originais, mas sim a capacidade das partes (e seus
advogados) de manipularem as regras do sistema legal a seu favor. Heitor logo notou isso,
aprendeu as regras e produziu as “provas” de que ele não constituía uma ameaça. A estratégia
foi eficaz e ele ganhou o que queria. Em contraste, a lógica “psicossocial”, que orienta uma
política de grupo reflexivo, operava de forma oposta. No grupo, Aline queria que os homens
refletissem sobre a natureza do conflito, buscar sua responsabilização para que houvesse
transformação de atitudes e nova percepção de si e do outro. Ora, nesse sentido, a lógica judicial
trabalha contra a lógica psicossocial e, quando Heitor descobriu como ganhar na Justiça, parou
de “perder tempo” no grupo reflexivo. A saída de Heitor é emblemática disso.
Naquele dia, todo mundo se cumprimentou e entrou direto para a sala de maneira
tranquila. “Eles estavam conformando vínculos”, mencionou Aline, assegurando que era
normal que alguns homens ficassem como amigos após terem passado pela experiência do
grupo. Para essa semana era mais fácil desenvolver temas sem pautar a expressão de injustiça.
Aline colocou um desenho que, visto de um dos lados mostrava uma mulher feia, como uma
bruxa, e do outro, uma moça bonita, como uma princesa. Ela explicou que essa dinâmica era
usada na psicologia para falar de como as coisas podiam mudar segundo “o ponto de vista e a
percepção de cada pessoa”. Em relação ao tema da violência, a ideia não era “desfazer as
compreensões, mas juntar, para ter perspectivas diferentes sobre o mesmo assunto e ter
melhores recursos para avaliar situações”. Aline, amante dos desafios, incitou-os a “expressar
o que vocês estão sentindo ... o que estão vendo”, para que compreendessem a posição
diferente de cada um deles.
Maykson voltou ao recorrente tema da provocação das mulheres, que produzia o efeito
de eles não poderem falar. Ele não devia responder à sua mulher, uma vez que na rua ela fez
121
um escândalo, chamando-o “daquilo”, mandando-o “para aquele lugar”. Ele teve que abaixar a
cabeça e aguentar os comentários de outros homens na rua. Aline parabenizou-o por não ter
entrado na confrontação e reconheceu como eram dolorosos os xingamentos e as humilhações
que às vezes eles tinham que suportar. “Essas violências mexem com cada um de nós e nos
afetam profundamente”, afirmava Aline, trazendo posteriormente comentários feitos por Heitor
e Herbert sobre o tratamento humilhante de suas ex-companheiras. Eles se sentiram
compreendidos, houve um leve momento de satisfação e harmonia na sala. Imediatamente, ela
lembrou que no início dos encontros eles diziam que nunca foram violentos, que só xingaram,
e perguntou qual era a diferença dos xingamentos delas em relação aos feitos por eles. Os
homens ficaram desorientados, não sabiam o que responder. Aline narrou algumas queixas de
homens e mulheres quando eram entrevistados nos seus atendimentos; elas lembravam o
desenho do quadro branco e ambas as perspectivas eram verdadeiras. “Como negociar ambas
as verdades?”, perguntou Aline, convidando para um “movimento de abertura” para pensar o
sofrimento da mulher e valorizar a voz dela.
Josué deu razão a Aline. Diferentemente de todos os dias anteriores, de maneira calma,
ele disse que Maykson era um covarde porque, se a mulher dele o xingou na rua, era porque ela
já havia aguentado muita traição, sendo esta uma maneira de se defender, já que “a fragilidade
da mulher faz com que o palavrão saia com força”. Josué afirmou que nenhum ali podia ser
chamado de santo. Maykson olhou-o desafiante e ficou em silêncio pelo resto do encontro.
Aline não podia estar mais feliz e disse que homens e mulheres tinham formas diferentes de
poder e em intensidades distintas. Reconheceu que o xingamento da mulher era uma violência
e qualificou como desproporcional a resposta do homem que batia nela.
Henrique concordou com Aline, mas lembrou que as mulheres “sabiam cutucar” até que
“a caixa d’água transborde”. Ele comentou que efetivamente a força era diferente porque “a
mulher [era] premeditada e muito racional na hora de agir pro mal. Ela arquiteta porque já sabe
o que vai acontecer”. Aline perguntou se essa violência era aprendida ou natural. Ele respondeu
que era aprendida, porque na medida em que a mulher conhecia o homem, reconhecia seus
pontos fracos. Outro sorriso no rosto de Aline. Henrique disse que as mulheres aprenderam
como gerenciar “o negócio do tráfico [de drogas na favela]” e, sendo mais inteligentes que os
homens, elas aproveitavam a sua “condição feminina”, como ficar grávidas, para se colocarem
no lugar da “vítima” e saírem bem. Contra-argumentando, Aline disse que os homens estavam
envolvidos em mais casos de violência que as mulheres, dentro de uma “cadeia de mando” que,
chefiada pelo governo, passava pelo lugar de trabalho e a competição entre homens na rua e
chegava finalmente ao lar, indo de oprimido para opressor. Os homens se identificaram com
122
essa descrição. Henrique e Herbert concordaram que os homens ficavam irritados pelos abusos
dos chefes e terminavam desabafando em casa sobre os mais frágeis.
Aline retomou o tema da “diferença do poder entre homens e mulheres” e argumentou
que isto também era “gênero”. Ela relacionou as “violências do casal” com as “urbanas” e
“políticas”, mostrando como todas faziam parte da “mesma estrutura nessa cadeia de mando”,
e estimulou-os a “se conscientizarem do lugar” que eles tinham nesse tecido de relações para
“agir e sair do ciclo da violência”. Cabia a eles mudar a sociedade começando por eles mesmos.
Parecia que estava ficando mais claro para eles o significado da categoria gênero e,
aproveitando esse aprendizado, Aline perguntou quais eram as diferenças de gênero em relação
ao termo “vagabundo”. Eles demoraram a responder. Henrique falou que, para um homem,
tinha a ver com a “falta de responsabilidade no trabalho”, ou por ser um “bandido”. Em relação
à mulher, todos rapidamente responderam: “piranha”, “mulher da vida”, “traiçoeira”... Aline
mostrou que essa diferença tinha a ver com o atributo da “responsabilidade dos homens” e com
a “sexualidade das mulheres” e que essa diferença era fundamental para entender o “valor
relativo dos dois xingamentos”.
Essa foi a tarde das inflexões morais, de recolher os frutos do trabalho de Aline. Ela
estava contente porque eles estavam entendendo o fundamento da Lei Maria da Penha. Aline
lembrava alguns comentários de Heitor, como, que a violência não tinha gênero, mas a partir
desse momento eles podiam ver como “as violências são diferentes para homens e mulheres” e
que elas tinham uma relação muito estreita com “a visão mais machista, tradicional de que o
homem é o provedor e a mulher tem que cuidar dos filhos”. Aline estava satisfeita nessa tarde.
2.9 Elaborar a raiva e praticar a gentileza e o cuidado
Uma semana mais tarde encontrei Aline um pouco antes do início do grupo. Ela queria
saber se eu havia conversado com Heitor. Dois dias depois do último encontro, Aline participou
de uma Audiência Pública sobre a Lei Maria da Penha na Câmera dos Vereadores de Niterói.
Depois de vários depoimentos sobre os desafios institucionais para a atenção às vítimas (tema
frequente na maioria dos encontros de caráter acadêmico e político), Heitor tomou o microfone
e se apresentou como “um agressor”, que considerava injusta a lei, pois não atendia aos casos
nos quais o homem era vítima. Aline não acreditava que ele se apresentasse desse modo. “Ele
foi massacrado pelas feministas” e foi acusado de ser um machista que minimizava a situação
de medo da sua ex-esposa, comentava Aline. Ela achou corajosa a participação de Heitor e
123
considerou que elas foram injustas com alguns dos seus comentários. Depois dessa breve
fofoca, tomando um café, Aline chamou os homens para entrarem na sala a fim de continuar o
tema emergente no último grupo: “canalizar a raiva” para que não vire violência.
Josué assegurou que não tinha raiva, com sua conversão ao judaísmo ele aprendera a
“não se deixar afetar por pessoas ou situações exteriores”, que estariam dominando seu
proceder: “a raiva não é mais do que provar para a pessoa que ela ainda manda em você, essa
pessoa está dentro de você, na verdade você não está vivendo, está vivendo a pessoa”. Para
Aline, era bom “deixar fluir a raiva sem controlar”, diferentemente de Maykson, que preferia
evitá-la, reprimindo-a em última instância. Aline lhe recomendou fazer alguma atividade física
e “praticar a tolerância”, para não acumular a raiva, dar abertura à palavra e entender o ponto
de vista do outro.
Havia transcorrido quase uma hora do encontro quando Heitor entrou na sala. Ele queria
se despedir de Aline e dos outros homens. Após sua participação na audiência pública, Aline
solicitou que ele viesse para encerrar o processo. Depois do último encontro de que ele
participou, Heitor refletiu sobre a raiva e começou ler o livro O poder da gentileza. O modo
como você trata as pessoas determina quem você é, da psicóloga espírita “especialista em
relacionamentos e autoestima” Rosana Braga 23. Lendo trechos do livro, Heitor descrevia um
ideal ético de pessoa “assertiva”, “objetiva” e “convicta de seus ideais”, que devia praticar a
“determinação”, a “firmeza” e, sobretudo, a “gentileza” para não perder a “capacidade de
indignação”, argumentar sobre seu ponto de vista e se afirmar com “respeito e delicadeza”.
Estes eram os atributos de personagens históricos, como Jesus, Buda ou Ghandi. Depois de ler
o livro, Heitor começou “um exercício diário de rever várias coisas da minha vida”, para cada
vez em que ele estava “acelerado”, ele se abraçava para se desarmar antes de falar. Ele agora
respirava melhor e dizia: “[não deixo] me afetar quando a pessoa está me cutucando”. Tudo
isso ele conseguiu com a colaboração da sua atual esposa, que sempre lhe falava: “calma, vamos
parar um pouco, vamos alinhar nossos pensamentos, vamos achar o caminho”. Todo mundo
comentava: “essa mulher aí é boa!”.
“Muito bom!”, afirmava Aline contente, “sobre isso estávamos falando”, da importância
de praticar a paciência e de elaborar a raiva para transformá-la em palavra: “toda vez que falta
a palavra o caminho é a agressão”. Eles escutavam com boa disposição. Aline distribuiu
algumas folhas de papel em branco e solicitou desenhar alguma coisa para alguém de quem
eles gostassem muito. Ela colocou música relaxante para meditar e esperou uns minutos. Com
23
Assim ela mesma se apresenta no seu site da internet: http://rosanabraga.com.br.
124
voz suave, Aline mencionou que o exercício era para pensar a raiva e a maneira como eles
lidavam com ela. Alguns se recusaram a desenhar, como Maykson. A pessoa de quem Edinaldo
mais gostava era sua mãe, para Heitor era sua filha. Josué desenhou um dragão para a sogra,
Herbert, uma flor para a filha. Henrique desenhou para sua família. Enquanto eles desenhavam,
Aline comentava que era necessário elaborar a raiva para não deixar marcas na alma dos outros.
Essas marcas eram “violência psicológica”. Para ela, era possível construir novos laços com
“uma palavra que vira gentileza e cuidado”.
Antes de finalizar o encontro, Heitor solicitou ler Desiderato, que para ele continha uma
descrição daquilo a que ele devia aspirar como um “homem gentil”. Com tom calmo e olhando
para todos na sala, ele leu o texto.
Siga tranquilamente entre a inquietude e a pressa, lembrando-se de que há
sempre paz no silêncio. Tanto quanto possível sem humilhar-se, mantenha-se
em harmonia com todos que o cercam. Fale a sua verdade, clara e
mansamente. Escute a verdade dos outros, pois eles também têm a sua própria
história. Evite as pessoas agitadas e agressivas: elas afligem o nosso espírito.
Não se compare aos demais, olhando as pessoas como superiores ou inferiores
a você: isso o tornaria superficial e amargo. Viva intensamente os seus ideais
e o que você já conseguiu realizar. Mantenha o interesse no seu trabalho, por
mais humilde que seja, ele é um verdadeiro tesouro na contínua mudança dos
tempos. Seja prudente em tudo o que fizer, porque o mundo está cheio de
armadilhas. Mas não fique cego para o bem que sempre existe. Em toda parte,
a vida está cheia de heroísmo. Seja você mesmo. Sobretudo, não simule
afeição e não transforme o amor numa brincadeira, pois, no meio de tanta
aridez, ele é perene como a relva. Aceite, com carinho, o conselho dos mais
velhos e seja compreensivo com os impulsos inovadores da juventude. Cultive
a força do espírito e você estará preparado para enfrentar as surpresas da sorte
adversa. Não se desespere com perigos imaginários: muitos temores têm sua
origem no cansaço e na solidão. Ao lado de uma sadia disciplina conserve,
para consigo mesmo, uma imensa bondade. Você é filho do universo, irmão
das estrelas e árvores, você merece estar aqui e, mesmo se você não pode
perceber, a terra e o universo vão cumprindo o seu destino. Procure, pois, estar
em paz com Deus, seja qual for o nome que você lhe der. No meio do seu
trabalho e nas aspirações, na fatigante jornada pela vida, conserve, no mais
profundo do seu ser, a harmonia e a paz. Acima de toda mesquinhez, falsidade
e desengano, o mundo ainda é bonito. Caminhe com cuidado, faça tudo para
ser feliz e partilhe com os outros a sua felicidade 24.
“É mesmo”, dizia Henrique. Todos agradeceram a leitura. Antes de se despedir, Heitor
deu de presente o livro de Rosana Braga para Aline, que agradeceu por ter vindo para se
despedir, sabendo que ele não precisava mais comparecer ao juizado.
24
Existem várias traduções do Desiderato para o português, todas com algumas pequenas variações de palavras.
É possível que a versão aqui apresentada não seja exatamente igual à lida por Heitor. Esta versão pode ser
consultada no site: http://www.luzdegaia.org/oracoes/audio/desiderata.htm
125
2.10 Meu nome é Heitor e sou um agressor
No fim de semana seguinte, conversei com Heitor sobre sua participação no grupo e na
audiência sobre a Lei Maria da Penha na Câmera dos Vereadores de Niterói. Ele gostou do
último encontro com Aline e com os demais homens porque conseguiu falar coisas que
considerava importantes. “Dona Aline é uma mulher muito inteligente”, que sabe como
trabalhar sem estar a favor nem do homem nem da mulher, ela é “imparcial e justa”,
diferentemente dos operadores jurídicos com os quais ele já se relacionara ao longo de seus
processos. Aline falou para ele que havia sido “corajoso” ao se apresentar como um agressor,
porque essas pessoas foram obrigadas a ouvir uma voz diferente, e isto não era fácil para
ninguém.
Heitor soube da audiência pública através de um cartaz “Para mulher! Basta a palavra”,
quando estava de serviço em um posto de saúde. Chamou-lhe a atenção o fato de que uma
delegada com a qual ele se relacionara nos processos com Joana iria ser palestrante. Ele queria
confrontá-la, primeiro, por acusá-lo de agressor sem provas e, segundo, porque queria saber
quais eram os critérios para definir que um homem agredia ou não, já que existiam muitas
mulheres agredidas cujos maridos não eram judicializados. Infelizmente para Heitor, a delegada
não se apresentou na audiência. Ele estava dentro de um auditório formado por pessoas de
“movimentos sociais que são fortes”: negro, LGBT e de mulheres. Heitor escutou as
palestrantes e viu que o ambiente era desfavorável: “eu vou ser execrado aqui, mas meu ponto
de vista também tem que valer”. A audiência já estava terminando quando ele pediu a palavra.
Eu falei assim, olha, eu não escutei em nenhum momento de vocês falando
dos seus pais, do homem, muito pelo contrário, o homem agressivo, o homem
é violento, o homem não presta, o homem é isso, é aquilo, é aquilo outro. Eu
falei assim, meu nome é Heitor, mas ninguém estava prestando atenção em
mim e aí eu disse que eu era um agressor, todo mundo parou e olhou para
mim. Aí eu disse que na plenária tinha mais de 80% de mulheres e que
provavelmente muitas foram vítimas de “alienação parental”, no passado, que
com certeza essa visão deturpada da figura masculina pode ter vindo de terem
sofrido essa violência provocada pelas mães, não que o homem não agrida.
Eu perguntei: “mulher agride?”. Ninguém respondeu. Vocês levam em
consideração a violência física, a violência psicológica, a violência
patrimonial, enfim, se seu marido chega em casa e você chama ele de
vagabundo, você está violentando também, só que ele não vai na delegacia
“ah poxa minha mulher me chamou de vagabundo”. Vou virar piada. Agora,
um homem não tem uma lei que o proteja disso e vocês, mulheres, fazem o
tempo todo, puxam cabelo, mordem, batem panela, vocês fazem o tempo todo.
Se o homem fizer isso vocês se dizem violentadas.
126
“A revolta foi tremenda, elas queriam me matar e fiquei até o final para ouvir a opinião
de cada uma”. Algumas das assistentes o acusaram de ser um machista que não podia entender
o sofrimento das mulheres, outras falaram para ele sair do auditório porque ali também havia
vítimas e elas não podiam estar próximas dos perpetradores, aquele não era lugar para ele. Uma
das palestrantes lhe perguntou sua opinião sobre as mulheres que eram estupradas e
massacradas. Outra disse que o caso dele era excepcional e que na verdade os homens agrediam
e subjugavam as mulheres. Heitor argumentava que a Lei Maria da Penha não trazia proteção
nenhuma, porque “uma mulher que de fato é violentada” teria tanto medo que não denunciaria;
uma medida protetiva não garantia que o marido não a procurasse e não a matasse. Para ele, a
lei colocava a mulher em uma situação de risco pior porque “o homem que de fato é violento
fica irado com essa denúncia”.
Heitor acusou as palestrantes de estarem “perdendo a noção do que é a sociedade”,
porque não existia uma sociedade só de homens, só de mulheres, só de negros ou só de gays.
Ele criticou as cotas para negros na universidade e a reivindicação de serviços de atendimento
em saúde para pessoas LGBT. Heitor se apresentou como filho de uma lavandeira, que morou
na comunidade, estudou em escola pública e conseguiu progredir, até ser profissional
universitário e passar no concurso público. “Uma delas disse para mim que eu era homem
branco e heterossexual e que por isso já tinha privilégios”, ao que ele respondeu que sua raça
não tinha a ver com o fato de “aproveitar as oportunidades [e] trabalhar duro”, o que não via
em alguns meninos que não queriam estar na escola e que depois entravam na universidade por
cotas: “agora, lá na universidade, vocês querem corrigir? Vocês querem privilegiar por ser
negro ou homossexual? Vocês estão dividindo a sociedade, que querem cota para todos. Sua
inteligência é diferente da minha ou inferior que a ela? Não!”. As políticas da identidade haviam
dividido a sociedade, Heitor não entendia a noção de igualdade dentro da diferença, mas via a
igualdade como tratamento uniforme para todos, nesse sentido, a Lei Maria da Penha terminava
discriminando mais do que protegendo.
2.11 Ser uma pessoa reflexiva
A Copa do Mundo já havia terminado e nesse dia seria o último encontro. Aline levou
uns bolos, Herbert uma caixa de suco, Henrique um pacote de biscoitos, Josué, chocolates.
Como todos os dias, café fresco (que eu comecei a fazer a partir do terceiro encontro). O
ambiente era descontraído, como nas últimas ocasiões.
127
Para esse dia Aline trouxe a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, para indicar a importância
de uma “postura reflexiva” como exercício diário ao longo da vida. A partir desse momento,
eles podiam “exercitar a reflexão [para] pensar melhor o lugar da fala de cada um de nós [e
entender] como eu me relaciono com o outro”. Ela fez circular o pequeno livro entre o grupo.
Enquanto um e outro olhavam o livro, alguns com interesse, lendo passagens internas, Aline
comentava que Aristóteles tinha escrito esse diálogo com seu filho para que ele se pensasse
como adulto e definisse sua postura ética a partir das perguntas: “Quem sou eu? Quem somos
nós? O que gostaria de ser? Quais as providências que devo tomar?”. A ideia era reconhecer
aquilo “que não está legal comigo [...] como ser impulsivo, impaciente ou violento [para] ter
uma implicação na própria atitude e [se perguntar]: o que posso fazer para mudar isso?”. Porém,
Aline ressaltava que se fazer esta pergunta requeria “coragem” porque implicava um
“reconhecimento próprio”, do “bom e do ruim de si mesmo”. Todos estavam em silêncio,
interessados pela proposta de Aline.
Ela explicou que esse grupo foi desenhado para que eles pensassem “a violência
cometida contra suas companheiras”, mas não só isso, para reconhecerem e saírem do “ciclo da
violência”. Ele se iniciava com a tensão, produto da raiva, como eles já haviam falado, depois
passava para a explosão, que se expressava com o xingamento ou a violência física, e retornava
para a “falsa lua de mel”, na qual aparentemente tudo voltava à normalidade, sem ter falado dos
conflitos. Esse estágio do ciclo não era mais do que uma armadilha, porque havia mudanças
repentinas de comportamento, juras de amor, arrependimento e a ideia de que “tudo voltará a
ser como antes”. Aline caracterizou como uma “falsa ilusão” esse momento, porque os conflitos
permaneciam.
Para evitar o ciclo, Aline propôs transformar a raiva em palavra e em cuidado do outro
na relação. Para isso, eles deveriam conceber o poder como potência. Como discutido em
encontros anteriores, o poder se referia a uma “força derivada da raiva”, potencialmente
negativa quando mal utilizada. A potência era o “uso positivo” da mesma força. A reflexão os
ajudaria a reconhecer a emergência da raiva, a manipulá-la e focá-la de maneira positiva como
potência através da “intenção”. Desta última dependia a qualidade moral da força, permitindo
ou não o “reconhecimento do outro” e a formação de “relações saudáveis”. “De que forma vou
usar essa potência?”, era a pergunta que Aline lhes deixava para responsabilizá-los pelo seu
proceder. Eles permaneciam em silêncio, escutando atentos, assentindo a cada um dos seus
aconselhamentos.
Aline sabia que as mudanças repentinas dos papéis de gênero geravam tensão neles,
porque no momento atual ambos, homem e mulher, tinham que trabalhar, cuidar dos filhos e
128
serem referência da autoridade no lar. Mas existia outra fonte de tensão que caracterizava a
sociedade moderna: “o individualismo”. Citando Amor Líquido, de Zygmunt Bauman25, Aline
mencionou que os valores do individualismo eram o prazer e a felicidade própria, o que fazia
com que os relacionamentos fossem breves. Herbert fez o paralelo entre o amor e a cerveja, que
evaporava rápido. Todos riram e concordaram. Aline, retomando o exemplo etílico, disse que
o “amor líquido” era aquele que se esvaziava com facilidade, como o álcool da bebida, que só
conduzia a ressacas e arrependimentos posteriores. Esse amor não permitia a “paciência com o
outro”. A lição era: refletir para transformar a raiva em potência positiva e não só considerar a
felicidade para si, mas para o outro, de modo tal que essa potência vire “cuidado do outro”.
Dessa forma, afirmava Aline, os relacionamentos não se evaporariam.
Figura 14. O ciclo da violência.
O ambiente na sala era magistral. Aline estava recapitulando seu trabalho de várias
semanas e sintetizando a postura que eles deveriam assumir assim que esse encontro terminasse.
Agora a lição era “a importância de escutar”, momento no qual eles deveriam “suspender por
um breve instante todos os seus julgamentos”. Eles precisavam escutar além do som físico para
“entender o que o outro está passando para você e, então, você se coloca no sapato do outro”.
Para Aline, a partir desse momento de compreensão, seria possível surgir o diálogo.
25
BAUMAN, Zygmunt. 2003. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar.
129
Uma vez terminadas todas as indicações, Aline propôs uma última atividade: “pessoas
e coisas”. Ela dividiu o grupo em dois, alguns deles iam ser “pessoas” e os outros “coisas”,
dando a seguinte instrução: as coisas “não podem falar nem expressar qualquer sentimento” e
iam ser comandadas pelas pessoas. Herbert imediatamente afirmou: “mas objeto não escuta,
como eu vou dar um comando?”. Ela, tranquila e sorridente, respondia que a coisa só tinha que
obedecer. Herbert percebeu “a intenção” de Aline e disse para Henrique: “faz de conta que a
coisa é tua mulher, você manda nela”. Ele rapidamente replicou que a mulher não era objeto,
porque ele só podia falar se ela quisesse: “eu sou o objeto dela!”. Depois de alguns minutos nos
quais alguns deles se deixaram levar pela vontade dos outros, Aline perguntou como se sentiam
sendo tratados como coisas e convidou-os a pensar como era esse sentimento na relação entre
homens e mulheres. Henrique concordava com Aline que muitos homens tratavam as mulheres
como objetos sexuais, mas isto mudava depois do primeiro filho, quando ela “destrói o corpo
dela ... ela deixa de ser objeto sexual”. Aline reformulou essa afirmação: parecia que eles só
viam a mulher como corpo, mas quando ela passava a ser uma mãe, virava pessoa. Para ela, a
mulher sempre devia ser uma pessoa e esta percepção da mulher era possível quando eles
escutavam realmente o que elas falavam.
Por último, ela perguntou qual era o projeto de vida que eles teriam a partir das reflexões
geradas nessas últimas semanas. Josué, ausente de protagonismo nas últimas semanas,
monopolizou a palavra pelo resto do encontro. Seu projeto era formar uma família, seguir sua
religião e procurar que sua alma gêmea o obedecesse. Aline lhe perguntou se o grupo havia
contribuído para alguma coisa. Ele respondeu que sim, de maneira entusiasmada, mas para fazer
amizades, porque “minha cabeça não mudou”. Ele começou a repetir a mesma história de
indignação, e Aline e os outros homens respiraram fundo. De todo modo, ele reconheceu o
trabalho de Aline, porque era importante para esses homens que reconhecessem seu “coração
impuro”, primeiro passo para serem “sinceros”. Para Josué, não adiantava nada que eles
repetissem “discursinhos” se isso não se traduzia em respeito para com as mulheres. Aline
recomendou a Josué “refletir desde seus princípios espirituais” o que faria com sua força, com
toda essa potência que estava dirigindo em forma de ódio contra sua ex-companheira. Os outros
homens presentes não investiram energia para dar uma resposta para Josué.
Aline agradeceu a presença de todos durante essas semanas, bem como os
questionamentos que eles trouxeram, porque a ajudaram a “crescer como mulher e a ser uma
melhor profissional”. Por último, ela afirmou que “as religiões presentes no grupo precisam
pensar o papel da mulher”. Aline se afirmou como “religiosa”, que conhecia teologia e havia
lido várias versões da Bíblia, bem como outros livros sagrados, para poder distinguir a
130
“orientação eterna” das versões marcadas pela “cultura”. Dirigindo-se a Josué, Aline afirmou
que “eterno” seriam o “respeito e o cuidado pelo outro”, e “cultural” seria “o lugar oprimido
que tinha a mulher em algumas sociedades”, o que faz com que ela seja vista como um “objeto”.
Ela encerrou o grupo afirmando que as religiões precisavam ser questionadas para distinguir e
facilitar a compreensão da mensagem eterna. Todo mundo saiu da sala agradecendo a Aline o
trabalho das últimas semanas.
Aline estava cansada, mas satisfeita com o grupo, que “deu muito trabalho”. Em
algumas ocasiões “eu me senti como se eu tivesse que convencê-los de alguma coisa e eles
querendo me convencer do contrário”, particularmente Heitor e Josué, que estavam
“congelados” e não se preocupavam em compreender a perspectiva das ex-companheiras. De
todo modo ela reconhecia a violência de que eles estavam sendo vítimas, no sentido de não
poderem exercer a paternidade que queriam. Não obstante, “eu saí mobilizada a compreender
mesmo o universo masculino”. Aline estava curiosa com a ideia das “provocações”, que dava
conta do “poder da mulher de desestabilizá-los emocionalmente”. Também queria entender
melhor por que a recepção da Lei Maria da Penha não surtia o efeito esperado, de
responsabilização, pelo contrário, “eles se colocam como vítimas da violência feminina”. Aline
notou uma “inversão” no grupo, porque esses homens eram agressores para o Judiciário, mas
no grupo “eles ocupam o lugar delas, o de vítima”.
2.12 Segunda síntese
Dona Aline era justa, deixava falar, escutava com atenção, ponderava a fala e se
colocava como igual diante dos homens com os quais trabalhou no grupo. Sua magia consistia
na consideração pela posição desses homens, na sua modulação da voz, em utilizar as próprias
categorias dos homens, validá-las e amplar o significado das mesmas, tal como Carlos Zuma
nos ensinou no primeiro capítulo. Vários desses homens foram ficando cada vez menos
prevenidos e abertos às palavras da facilitadora. Explicando e contextualizando categorias de
emoção como medo ou raiva, Aline significava como emocionais certas passagens das brigas
narradas pelos homens, não para diminuir seu conteúdo como “verdade”, mas para
complexificar a agência dos mesmos protagonistas desse conflito que derivou em violência.
Através dessa abertura à dimensão da sensorialidade, alguns dos participantes do grupo
começaram a expressar sua posição e seu estado interno em meio a situações que geravam
desconforto através de categorias emocionais como o medo.
131
O grupo reflexivo mostrou uma série de formulações semióticas que incitavam não só
ao reconhecimento da emoção como constitutiva da trajetória e das relações desses homens,
mas também no sentido de relacioná-la a uma narrativa moral na qual a rememoração da
socialização de gênero durante a criação, a elaboração da raiva no momento presente e a
contemplação da mudança ao longo do tempo permitissem a “consciência do gênero”, como
atributo do sujeito reflexivo que, desse modo, podia argumentar sobre sua posição e reconhecer
a posição do outro. No meio desta formulação, a noção de empatia: “se colocar nos sapatos do
outro”, era necessária para atribuir esse senso de igualdade e humanindade através da emoção.
Porém, essa enunciação foi debatida por Heitor ao exprimir que a base biológica do corpo era
o que outorgava tal igualdade, o que dava a mesma predisposição de agressividade tanto a
homens quanto a mulheres. A diferença para ele, como para outros homens, era de modo, sendo
a mulher tão racional e inteligente quanto o homem no momento de exercer aquela violência
sutil que ao mesmo tempo em que o humilha, torna-a virtuosa como vítima.
Para Aline, a capacidade de expressar as emoções mostrava a “honestidade” dos
homens, sua verdade, o que lhes restituía o lugar legítimo da denunciante no Judiciário como
vítima, deixando para trás a vitimização. A expressão dos sentimentos parecia atribuir uma aura
de veracidade à narrativa dos homens, da qual sempre se duvidara até o momento do grupo
reflexivo. Quando esses homens se posicionavam através da emoção e falando a partir de seu
sentimento, sem deixarem de ser qualificados como agressores, estavam uns passos à frente no
sentido da redenção e se confirmava a correspondência entre categorias de gênero femininas e
o lugar e a verdade da vítima como sujeito a ser protegido pelo Estado.
Acompanhando Aline, conseguimos ver como a categoria de cultura mostrava a relação
entre criação de gênero e força como o que não permitia a elaboração de emoções, bem como
sua temporalidade em face de uma verdade superior, inscrita no domínio da religião, que daria
conta dos valores da modernidade: de igualdade e do reconhecimento da experiência subjetiva.
O domínio cultural não só contemplava “mitos” a serem desconstruídos, que davam conta da
relação entre família e nação brasileira, como também eram parte de um pensamento machista,
conservador e religioso, fonte dos problemas sociais para as mulheres, segundo a subsecretária,
mas como possibilidade, no sentido da civilisation. Em outras palavras como a “verdade eterna”
que esses homens podiam abraçar, contraste que de outra maneira Josué expressava quando
contrapunha sua verdade, ancorada na fé, diante do discurso politicamente correto dos
malandros cariocas.
Essa reformulação do domínio religioso feito por Aline ia acompanhada da ativação dos
sentimentos de culpa e de vergonha, a fim de fazer refletir, a partir de categorias de parentesco
132
como mães ou filha, sobre a violência que pode sofrer a mulher em um sentido mais amplo e
abstrato. Foi apelando ao recurso do parentesco que o sentimento de injustiça parou de ser
evocado como tema nos grupos. Foi a vinculação entre uma verdade eterna e a categoria mulher
que fez com que alguns desses homens conseguissem compreender o conteúdo da categoria
violência contra a mulher. Qual é a ponte entre a linguagem de parentesco e a religiosa que
permite associar mães, filhas e demandantes em uma categoria somente? Por que parece que a
esposa está fora dessas relações de parentesco? Algumas pistas foram dadas nos depoimentos
ao longo dos encontros, como, por exemplo, a noção de que a mulher deixa de ser objeto sexual
quando vira pessoa no momento em que é mãe; ou que a sensação de responsabilidade do
homem enquanto filho e esposo é a contraparte do sentimento de culpa.
Josué e Heitor exerceram uma forte crítica à proposta de masculinidade da facilitadora,
tendo como referente a sensação de ser reconhecido como pai, esposo ou filho. Essa crítica
também estava baseada em uma leitura das emoções através das provocações das esposas ou
parceiras sentimentais e do poder das fofocas, nas quais o nome deles circulava, afetando sua
reputação. Começamos a ver elementos de uma individualidade conformada nas relações
sociais que esses homens estabelecem, além da noção da identidade contida no próprio corpo.
A pessoa moral “ser bom pai” responde às expectativas na constituição dos vínculos com as
categorias de parentesco femininas e a capacidade da esposa de compreender o esforço feito
por eles para a manutenção desse lugar, que também depende do reconhecimento de familiares,
colegas e amigos.
Josué e Heitor justificavam sua posição a partir de discursos com validade institucional,
como o da religião para o primeiro e o da psicologia para o segundo, o que lhes permitia certa
segurança em relação às suas convicções e era a base para uma prática ética que os colocava
como homens virtuosos diante dos outros homens do grupo. A sensação de ser homem
responsável passava por estes referentes institucionais e pelo reconhecimento social, muito
vinculado ao parentesco. Assumir a responsabilidade dos atos de violência e virar um novo
homem implicava um questionamento desses referentes, o que gerava a sensação de se estar
fazendo as coisas de maneira correta. Um certo “mal-estar” surgia quando questionados a partir
da narrativa igualitária, o que não permitia a compreensão da prática ética igualitária proposta
por Aline em algumas ocasiões.
A disposição de “abertura” como descobrimento de novas dimensões da interioridade
dos homens, que Aline propunha, por alguma razão não derivava da ideia de responsabilização
pela autoria de atos moralmente questionáveis. Mas vimos como Josué e Heitor mudaram e
viraram homens reflexivos segundo outros referentes institucionais, precisamente o
133
descobrimento de uma origem religiosa mais virtuosa para Josué e a leitura de literatura de
cunho científico que respaldava o as convicções morais para Heitor, que permitiram a “volta
para si” que Aline tanto procurava. A experiência deles dois não foi tanto uma epifania moral
em função da clareza de um novo horizonte, à maneira de uma conversão, mas a confirmação,
de maneira inicial, de verdades que eram questionadas no âmbito do Judiciário. De todo modo
é possível reconhecer neles dois uma atitude distinta diante da vida, que podemos chamar de
reflexiva, que qualifica a trajetória de pessoas como produto de escolhas e procura reconhecer
as “afetações” que os outros deixam em si, para separar o que é deles e o que é dos outros.
Encontramos um elemento que exploraremos nos próximos capítulos: de como a
transformação de si, a promessa de uma prática ética a partir do referente moral da civilisation,
requer não só conhecimento objetivo e racional, mas também “sentir” essa proposta como boa
para si. A relação entre categorias de gênero, de parentesco e de emoção permite ver os limites
ou os desafios dessa transformação. O próximo capítulo oferece novos elementos de
compreensão das relações entre estes três domínios da vida.
Figura 15. As barcas. Panorâmica da Universidade Federal Fluminense e do Rio de Janeiro desde o porto das barcas de
Niterói.
134
Capítulo 3
Thor e sua proposta ética
–Isabella:
Dite: chi è quella femmina?
–Mustafà:
Fu sino ad or mia moglie.
–Isabella:
Ed or?
–Mustafà:
Il nostro vincolo cara, per te si scioglie:
questi, che fu mio schiavo, si dée con lei sposar.
–Isabella:
Col discacciar la moglie da me sperate amore?
Questi costumi barbari io vi farò cangiar.
Resti con voi la sposa [...]
Andate dunque al diavolo, voi non sapete amar.
–Mustafà:
Ah no... m'ascolta... acchetati... (Costei mi fa impazzar.)
–Elivira, Zulma e Lindoro:
(Ah! di leone in asino lo fe' costei cangiar.)
Excerto do ato 1, cena 13
da ópera L’Ilatiana in Argeri.26
Este capítulo descreve o processo de dois grupos reflexivos de gênero no Instituto de
Práticas Sistêmicas no Rio de Janeiro: um com homens referenciados por um juizado desta
cidade e outro conformado por homens em função de “demanda espontânea” dos serviços do
centro que se assume como representante da “sociedade civil”. Ao mesmo tempo em que
registrava a posição dos participantes, fui observando com maior atenção o trabalho do
facilitador, para compreender melhor a magia que presenciei em Niterói. A informação aqui
consignada, além de aportar elementos para a compreensão da narrativa moral que justifica a
intervenção no objeto masculinidade e o posicionamento dos homens a partir de uma linguagem
de parentesco, destaca uma ênfase diferente de facilitação, que se assume mais próxima do
feminismo e que implica um voltar para si permanente por parte de quem exerce a facilitação.
– Isabella: Diga-me, quem é essa mulher? – Mustafá: Até agora era minha esposa. – Isabella: E agora? – Mustafá:
Nosso vínculo, querida, por ti se quebra: este, que foi meu escravo, com ela se casará. – Isabella: Repudiando tua
esposa esperas conseguir meu amor? Estes constumes bárbaros, eu os farei mudar. Tua esposa contigo ficará [...]
/ Vá para o inferno, tu não sabes amar. – Mustafá: Ah não, escuta, acalma-te. Ela me deixa louco. – Elvira, Zulma
e Lindoro: Ah! De leão em asno ela está o transformando.
Isabella, a inteligente e encantadora italiana, é a protagonista da ópera A italiana em Argeria, de
Gioacchino Rossini com texto de Angelo Anelli (1813). Ela seduce a Mustafá, Bey de Argelia, para resgatar seu
namorado, Lindoro, quem foi escravizado um tempo atrás. Mustafá está fascinado pela italiana e decide deixar sua
esposa, Elvira, de quem já estava aborrecido. Zulma é a escrava e confidente de Elvira.
26
135
Esta prática aponta para uma ética que propicia o encontro entre diferenças para tecer o ideal
de sociedade civil de Thor, nosso protagonista deste capítulo.
3.1 Realfabetizando-se no trabalho com violência
Passadas algumas semanas após a iniciação do grupo reflexivo no juizado de Niterói,
fui convidado para dar uma aula sobre “masculinidades e violência” no Seminário de
Identidades Culturais da professora Kátia Mello, antropóloga da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal de Rio de Janeiro. Ali conheci a Milena, uma das alunas do curso, que
estava fazendo estágio no Instituto de Práticas Sistêmicas como facilitadora de um grupo
reflexivo de gênero com homens autores de violência do Primeiro Juizado da Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, localizado no centro do Rio de Janeiro. Através dela,
entrei com contato com Thor, coordenador do projeto “Melhor Pai”, capítulo brasileiro de um
projeto internacional coordenado por Promundo e referenciado no primeiro capítulo desta tese.
De maneira geral, o projeto se propunha promover as masculinidades igualitárias, vincular os
homens à criação dos seus filhos e prevenir a violência contra as mulheres. Os grupos reflexivos
de gênero para homens são uma das atividades deste projeto, que incluía a formação de novos
facilitadores de grupos e a publicação de uma metodologia para a sua implantação.
Via e-mail, Thor me convidou para conhecer as instalações do instituto e conversar um
pouco sobre nossos trabalhos. No dia marcado, cheguei a uma antiga e bela casa na Zona Sul
do Rio de Janeiro. Após passar por um pequeno hall que se comunicava com uma sala de espera
com a escrivaninha da recepcionista, uma escadaria central permitia o acesso aos consultórios
dos psicólogos associados que faziam atendimentos individuais, a casais e a grupos familiares.
No térreo, uma sóbria sala de espera permitia ver livros e revistas sobre “perspectiva sistêmica”
e “construcionismo social” da editora do instituto, os quais estavam à venda. Cartazes sobre
prevenção da violência contra as crianças, contra a exploração sexual comercial e a favor das
masculinidades igualitárias compunham a decoração das paredes. Depois de alguns minutos de
espera, chegou Thor, um homem em torno dos 40 anos, alto, de óculos e bastante sorridente,
que me convidou para acompanhá-lo à outra sala, na qual conversamos sobre nossos trabalhos.
Thor comentou que, naquele momento, ele e alguns estagiários estavam no meio do
processo de um segundo grupo reflexivo de gênero com homens “em situação de violência”. A
essa altura, eles já haviam feito o “levantamento temático”: lista de temas de interesse para
discutir a cada semana, e o “acordo de convivência”: as regras de interação do grupo, que servia
de pretexto para conversar sobre “relacionamentos saudáveis” no dia a dia. Uns dias antes,
136
havia se conversado no grupo sobre “violência” e, para o encontro seguinte, pretendiam abordar
o tema de “gênero”. A avaliação de cada encontro e o planejamento do seguinte eram feitos nas
reuniões de “intervisão”, que também funcionavam como um espaço formativo para os
estagiários. A intervisão tinha uma “natureza horizontal” de revisão do trabalho feito nos dias
anteriores, tentando, a partir da reflexão efetuada pelos diferentes olhares presentes no
desenvolvimento do grupo reflexivo, produzir “conhecimento ancorado ao sentimento” dos
facilitadores e estagiários. Thor tinha um interesse particular de que outras pessoas mais jovens
assumissem o processo no qual ele já trabalhava há quase duas décadas.
Figura 16. Plantinha do Instituto de Práticas Sistêmicas.
Após comentar brevemente sobre minha trajetória como facilitador e gestor de política
pública na Colômbia, Thor ficou interessado na minha participação como etnógrafo do seu
projeto mas, antes de iniciar meu acompanhamento, ele queria saber como minha pesquisa
contribuiria com seu trabalho. Fui claro ao mencionar que eu não queria ocupar o lugar de
facilitador e que minha experiência nada tinha a ver em relação ao trabalho com homens
processados juridicamente. Considerei importante um futuro feedback da minha etnografia,
137
ressaltando que “uma observação distanciada” contribuiria com a ampla discussão sobre a
efetividade dos grupos reflexivos no marco da Lei Maria da Penha. Com um largo sorriso, Thor
achou interessante a capacidade de se fazerem conexões a partir de um “olhar macro da
antropologia” que contrastava com “a perspectiva micro, mais limitada e convencional da
psicologia”. Ele queria estabelecer um diálogo profissional, como um par, com o qual pudesse
estabelecer trocas simétricas, cuja expectativa de retribuição era de conhecimento sobre a
prática da facilitação e o desenvolvimento dos grupos. Esta postura contrastava com minha
inserção no juizado, marcada pela autoridade do juiz, que esperava uma “avaliação” do trabalho
de Aline.
Thor me convidou para uma próxima reunião de intervisão, que se realizaria na sextafeira seguinte. Ele ressaltou que seria uma reunião extensa porque o grupo atual era “muito
agressivo”, estando conformado por homens já sentenciados, cuja pena era a participação
obrigatória no grupo, de maneira diferente do de Niterói, no qual os homens participavam como
medida preventiva enquanto o processo jurídico acontecia. Thor mencionou que para aquele
momento estava se “realfabetizando”, porque sua experiência prévia era com grupos de homens
formados “por demanda espontânea”: aqueles que queriam revisar sua masculinidade, como ele
mesmo no passado. Thor se perguntava por que esses homens não queriam participar do grupo
reflexivo de gênero, se a proposta era “tão benéfica e enriquecedora”. Essa situação era
problemática para Thor, porque, na metodologia que ele estava aplicando, aquela elaborada por
Fernando Acosta, Antônio Filho e Alan Bronz (2004), referenciada no primeiro capítulo e que
ele apreendera anos atrás, este tipo de situações não estava contemplado. A metodologia partia
do fato da voluntariedade dos participantes. Tendo em conta esses imprevistos, Thor queria que
o ajudasse a documentar os “desafios da facilitação”, para depois propor uma nova metodologia
que servisse de base para o curso de formação para profissionais interessados na facilitação de
grupos reflexivos de gênero. Thor finalizou nosso encontro dando-me as boas-vindas ao
projeto.
Assisti à reunião de intervisão, na qual estava presentes Milena, a estudante de serviço
social, moradora da Tijuca (a Zona Sul da Zona Norte, como ela se referia a seu bairro) e outros
dois estagiários que cursavam psicologia na Universidade Federal de Rio de Janeiro: Carlos,
um paulistano amante da yoga e da meditação, e Eliana, uma dedicada estudante, proveniente
da Zona Norte da cidade. Os três estagiários também caracterizaram o grupo como agressivo e
se perguntavam como fazer para que esses homens falassem, porque sempre ficavam em
silêncio diante das perguntas e dos comentários de Milena e Carlos, os dois facilitadores. Eliana
e Thor faziam parte da “equipe reflexiva”, que estava localizada fora da roda de conversa, como
138
observadores da dinâmica. Thor explicava que este era um recurso utilizado na terapia de
família para brindar outras perspectivas dos conflitos narrados pelas partes. Em relação ao
grupo reflexivo, essa equipe pretendia oferecer distintas narrativas àquelas elaboradas entre
facilitadores e homens no momento em que ela era convidada pelo facilitador para entrar na
roda e conversar sobre o que escutaram e observaram. Thor esperava que esses homens
pudessem “se ver desde fora”, pensassem sua própria fala “desde outro lugar” e, assim, se
sentissem motivados para um “movimento interno” que incorporasse essa narrativa à própria.
Eu faria parte da equipe reflexiva, lugar onde pude fazer anotações.
Uma vez clara minha posição na equipe, começou o planejamento do próximo grupo no
qual se abordaria o tema de gênero. Eliana perguntou qual seria a ponte com o tema de violência
trabalhado no último encontro. Ela “sentia” que não existia conexão entre os dois temas,
colocação que foi rapidamente contestada por Milena, que disse que “a violência sempre tinha
a ver com gênero”. Para esta última, em todas as discussões terminava-se falando da violência
que suas ex-companheiras e outras mulheres experimentavam pela “atitude machista” dos
participantes do grupo. Carlos considerava que “gênero tem a ver com tudo” porque definia o
“lugar de poder dos homens no conflito e sobre as mulheres”, lembrando que Anderson, um
dos participantes, aproveitava esse lugar para “cantar” Milena, atrapalhando a dinâmica do
grupo. Para Milena, ser considerada “gata” e “gostosa” era um problema, porque não era levada
a sério como facilitadora. Ela estava cansada desta situação, e no próximo encontro ela iria se
“colocar como mulher no grupo”.
Thor comentou que tradicionalmente os grupos eram facilitados por homens, mas que
no seu processo de “realbabetização”, no qual estava aprendendo a trabalhar com a violência,
ter a presença de mulheres como facilitadoras era “muito positivo”, pois permitia colocá-las
como “iguais aos homens”, os quais estavam acostumados a “mandar nelas”. Ele convidou os
estagiários a “refletir sobre seu próprio trabalho”, de modo tal que pudessem melhorar a
metodologia já existente. A postura de Thor era de escuta da angústia dos seus estagiários,
animando-os para apreenderem a “prática” e os “sentimentos” emergentes no grupo: os dos
estagiários e os dos homens participantes. Enquanto ele falava, passava as contas da sua
japamala budista, que sempre usava como pulseira. “A questão, meu amigo, é acolher os
imprevistos da melhor maneira possível”, explicava Thor, tranquilizando os estudantes.
Eliana considerava que se devia trabalhar melhor as “questões de gênero”, porque ela
também estava cansada de ser considerada a “chata” do grupo. Mesmo estando na equipe
reflexiva, cada vez que intervinha, suas colocações eram desconsideradas por ela ser
“inteligente demais”. Eliana também queria ser reconhecida como “mulher”, mas aqueles
139
homens só consideravam o “corpo” de uma e desconheciam as “ideias” da outra. “Como
abordar a questão de gênero?”, esta era a grande pergunta do dia. Thor propôs a dinâmica do
“crachá de gênero”, na qual os participantes deviam usar as letras do seu próprio nome para
escrever características masculinas e iniciar a conversa do dia. Milena não estava convencida.
Ela enfatizara em repetidas ocasiões que a discussão devia ser “séria”, o grupo não podia ser
uma “brincadeira”, até porque esses homens estavam condenados pela justiça. Como para Thor
a atividade sempre devia “fazer sentido para o facilitador”, ele lhe perguntou qual seria a sua
proposta.
Eliana queria que os homens se desenhassem como mulheres, a partir da pergunta
“como seriam eles se fossem mulheres?”. Ela assegurou que para eles seria um desafio “se
colocarem no lugar do outro” e “se construírem como mulher”. Milena rejeitou esta proposta,
considerando-a “infantil”, enquanto Thor advertia que o desenho não podia ser usado como
uma técnica de projeção de si, mas como uma oportunidade para conversar. Eliana enfatizou a
importância de “desconstruir os estereótipos sobre as mulheres” que, com certeza, emergiriam
da atividade. Mas antes da atividade era preciso uma “dinâmica de relaxamento”. Carlos tinha
uma proposta de “respiração consciente” que permitisse pensar em um “lugar de paz”, para
depois compartilhar a “experiência da viagem interior”. Milena, ainda sem estar convencida,
disse que realizaria as dinâmicas, mas que precisava de ajuda para que os homens não
questionassem sua autoridade profissional. Carlos concordou, ele também se sentia
“desrespeitado” e queria que esses homens tivessem “engajamento com a proposta” – Carlos,
Milena e Eliana eram estudantes com menos de 25 anos, enfrentando um grupo de homens entre
os 30 e os 60 anos de idade, que não queriam estar ali e que se sentiam como em “sala de aula”.
Thor reconhecia a “ansiedade” dos estagiários e perguntava como fazer para que os
homens não associassem o instituto com o Poder Judiciário, pois para ele este devia ser um
“espaço de liberdade e de reflexão [para esses] homens se sentirem à vontade para falar sem
censura”. Para Milena, o instituto era um “espaço para pensar e não um lugar para sentir
constrangimento”. A reunião finalizou resolvendo questões administrativas do projeto, como
ajustar o cronograma, já que alguns encontros coincidiam com o calendário da Copa do Mundo.
Os estagiários comentaram que os homens dificilmente estariam presentes no grupo reflexivo
nesses dias. De maneira irônica, Thor disse: “se os nossos homens fossem homens mesmo, eles
viriam apesar da Copa”. Todos riram.
140
3.2 Desenhar-se como mulher para se pensar nos sapatos do outro
Na semana seguinte, a equipe de facilitadores se reuniu una hora antes do grupo, como
era habitual, para revisar o roteiro do encontro. Milena queria mostrar um curta francês “de
homens vivendo numa sociedade feminista”, na qual eles agiam segundo os papéis das
mulheres. O objetivo era que os homens se colocassem “nos sapatos do outro” e
compreendessem o conceito de gênero. Para a segunda parte do encontro, Milena conduziria a
atividade de se desenharem como mulher. Carlos se mantinha na expectativa do que derivaria
do desenho, porque facilmente esses homens “vão coisificar a mulher” e desenhariam uma
“loira gostosa” ou uma “globeleza”. Todos afirmaram que esta seria a oportunidade perfeita
para falar de “preconceito e sexismo”. Para Eliana e Milena, o importante era “desconstruir a
mulher enquanto objeto de desejo sexual”. Houve um ambiente de afinidade e sorrisos. Thor
aprovou a proposta e nos dirigimos à sala, na qual já aguardavam alguns dos participantes.
Entramos na sala de aula sem janelas, com algumas cadeiras, quadro branco, data show
e um pequeno notebook. Carlos organizou as cadeiras, deixando só algumas encostadas contra
a parede, destinadas à equipe reflexiva. Seu Francisco, que já estava esperando há uns 20
minutos, era um gari de mais de 50 anos, negro, muito alto e visivelmente cansado, morador de
uma favela próxima do bairro Catumbi, entre o Centro e a Zona Norte da cidade. Pouco depois
chegou Seu José, um serralheiro, também negro e na mesma faixa etária, um pouco mais baixo,
calçando chinelos, vestindo um short e com boné, morador do Complexo do Alemão. Eles
conversavam entre si. Outros três homens chegaram uns minutos mais tarde e se sentaram em
silêncio. Celso, um morador da Tijuca, em torno dos 30 anos, alto, louro, vestindo uma camiseta
Polo cor-de-rosa, com um escapulário de ouro (presente da sua mãe), mexendo com seu celular
Samsung Galaxy. Agustín, um chileno residente no Brasil há 20 anos, que morava em Botafogo,
também alto e forte, entre os 50 e os 60 anos de idade, vestia terno e trazia um pequeno livro
de palavras cruzadas. Ele era o único homem por demanda espontânea no grupo, que procurou
o instituto para responder a uma pergunta que o inquietava desde uns anos atrás: “o que é a
violência?”. Thor considerava importante a participação dele, para dar “outra perspectiva” às
narrativas sobre a violência dos homens referenciados pelo juizado. Finalmente, Alberto, um
migrante vindo do Ceará que vestia calça jeans e camisa formal, morador de Santa Teresa e em
torno dos 40 anos de idade.
Thor, Eliana e eu ocupamos o lugar destinado à equipe reflexiva. Carlos desligou as
luzes da sala e Milena ordenou fechar os olhos – o tom de voz dela era sempre diretivo, forte e
decidido – e falou para imaginar um lugar de paz, tranquilo e confortável. Após alguns minutos
141
de silêncio, Carlos ligou abruptamente as luzes da sala. Milena perguntou sobre o lugar que
eles imaginaram. Seu José, com voz pausada, descreveu uma praia em Cabo Frio, que ele
sempre frequentava para pescar de madrugada, antes do amanhecer. Ele ficava o dia todo lá,
bebia “uma cerveja de leve” e almoçava o peixe que ele mesmo pescava. “Eu trabalho, trabalho,
trabalho. Não dá para ficar tranquilo”, comentava ele, explicando que só nesses fins de semana,
sozinho e pescando, conseguia descansar. Alberto descreveu uma serra perto de Fortaleza, que
era mais fria e verde que o litoral, “nem parece o Nordeste”. A sala ficou em silêncio. Milena
interpelava os outros integrantes do grupo, o estilo parecia de interrogatório. Cada vez que
alguém finalizava sua intervenção, ela perguntava se não tinha mais a acrescentar. Eu via como
eles ficavam em silêncio, alguns intimidados, outros desafiantes. Milena queria estimular a
conversa, mas sua tentativa parecia infrutífera. Os silêncios eram desconcertantes para ela.
Depois de 20 minutos de iniciado o encontro, a tensão no ambiente era palpável.
Figura 17. Carlos e Celso.
Agustín começou falar, comentando que a meditação era “a única maneira de aprender
a se isolar” e o ajudava a focar para alcançar seus objetivos. Ele fazia muitas referências à sua
vida como “bem-sucedida” e a comparava às “formas erradas de viver” que ele viu quando
trabalhou no Nordeste e no norte do Brasil supervisionando a construção de barragens. Agustín
assegurava que nesses lugares a “violência” e o “machismo” eram constantes, razão pela qual
142
eram “lugares com pouco desenvolvimento e com muita injustiça social”. Para ele, o Brasil
deveria organizar a sociedade como no Chile, nos Estados Unidos ou na Alemanha, países com
“maior equidade e participação das mulheres nas decisões familiares”. Muito seguro do seu
depoimento, aconselhava os homens a não bater nas mulheres e a “evoluir como homens”, para
o que eles deviam praticar artes marciais, como ele mesmo fazia. Os outros homens só olhavam
para ele com desinteresse enquanto os facilitadores sorriam, concordando.
Carlos repartiu folhas brancas e algumas canetas para que eles se desenhassem como
mulheres. A proposta gerou risos. Seu José rejeitou a folha, argumentando que ele não sabia
desenhar. Milena insistiu na sua participação, porque “[ia] ser bom para o senhor se pensar
como mulher”. “Eu tô sem óculos, mal posso ver”, respondia Seu José, e de maneira seca e
serena finalmente ele disse que não sabia desenhar nem escrever. A sala ficou em silêncio por
alguns segundos. Mas se ele fosse desenhar, “desenharia um peixe”, disse Seu José sorridente.
Já que não era possível o desenho, Milena perguntou como seria se ele fosse uma mulher. “Não
é possível, não consigo imaginar, não imagino. É tão bom ser homem. Trabalho para uma
mulher não existe não!”, assegurou o idoso. Milena ficou em silêncio, encarando-o. Carlos,
tentando mediar, respondeu que “a mulher também trabalha o tempo todo em casa” para que os
homens possam sair para a rua. Milena o olhou com igual frieza. Seu José concordou, mas
destacou que elas não trabalhavam mais do que o homem. “Realmente o senhor acredita
nisso?”, perguntou Milena com estranheza. Seu José, de maneira muito confiante e tranquila,
respondeu que sim, “e tem algumas que não fazem nada! Como minha sobrinha, que só fuma
maconha”, acrescentou ele. Todos riram nesse momento, menos a equipe de facilitadores.
Nesse momento chegou Rony, um jovem negro de quase 2 metros de altura, também de
shorts, com grandes tênis, similares aos que usam os jogadores de basquete, e camiseta do
Palmeiras. Ele era vendedor de CD no “camelódromo” do Mercado Popular da Uruguaiana, no
centro da cidade. Rony se sentou ao lado de Seu Francisco, a quem cumprimentou de maneira
amável, quase carinhosa. Milena explicou a atividade em curso e convidou-o a se desenhar
como mulher. Rony respondeu gaguejando que não sabia desenhar. Dava para perceber que
ninguém estava interessado pela atividade, excetuando Agustín. Milena comentou que a
atividade era para saber como eles se percebiam como mulheres. Rony riu alto e perguntou: é
para desenhar “minha alma feminina? ou só fisicamente?”. Ele disse que “talvez [fosse]
independente, educado, não feminino”, mas que não sabia como explicar. Milena insistia em
saber como era essa mulher, ao que Rony respondeu: “seria como minha mãe”. Milena ficou
em silêncio e um pouco desconcertada. Com tom pausado e depois de respirar uns instantes,
143
ela o convidou para aprofundar a descrição dessa mulher. Sendo irônico e um pouco desafiador,
Rony respondeu que “seria vítima demais”.
Milena não dava o braço a torcer e perguntou para Rony se “realmente acreditava nisso”.
Rony fazia um grande esforço para responder sem gaguejar e, olhando para o chão, lhe
respondeu que ele não sabia como explicar, mas que existiam mulheres que só pediam dinheiro
e eram muito dependentes dos maridos. Depois ele disse que nunca se imaginou como uma
mulher e que jamais tinha se perguntado como seria se fosse uma. Milena, sempre séria,
explicou que naquele momento ele poderia “fazer o que nunca havia feito”, sendo isso bom
para ele. “Queria ser uma mulher igual a um homem”, respondeu Rony, diante do que alguém
na sala gritou “sapatão!”. Os homens riam enquanto os facilitadores mantinham uma cara séria
e de reprovação. Rony, também sério, disse que seria um “bom homem” e, olhando para a
facilitadora, afirmou que ele não deveria estar nesse grupo se imaginando como mulher. A
discussão entre eles dois era cada vez mais tensa. Finalmente, Rony perguntou para a
facilitadora como ela se imaginava sendo um homem. Milena respirou e levou uns segundos
para responder: “espero que nenhum de vocês passe por uma situação de violência!”.
Depois de uns instantes de silêncio, Agustín começou descrever o desenho dele.
Eu me vejo como uma pessoa comum que não tem destaques. Ela teria 45
anos. Eu seria como minha mãe, profissional, maduro, independente. Minha
mãe foi uma grande guia para mim. Ela queria que eu fizesse meu próprio
caminho. Ela respeitou a minha vontade. Meu pai morreu e um ano depois ela
morreu. Eram um casal perfeito, um casal unido. Eu não conheço meu lado
feminino, sinceramente. É difícil conhecer o lado feminino.
Milena o interrompeu abruptamente e perguntou se ele seria uma mulher que trabalharia
fora da casa. Agustín respondeu afirmativamente: “eu seria médico”. Ela insistia em saber os
atributos físicos dessa mulher: “ela seria morena, alta, loura?”. Agustín descreveu fisicamente
a mãe dele. Por último, Milena perguntou com qual tipo de homem ele estaria casado. Agustín
ficou surpreso com a pergunta e respondeu que isso era difícil de pensar. Carlos lhe perguntou
“em que lugar ou em qual cultura se imagina?”. Agustín se via nos Estados Unidos, pois “na
cultura americana a mulher comanda a família e o homem só respalda suas decisões. Ela é a
verdadeira chefe do lar”, acrescentando que “a cultura negra” era diferente porque era
“machista”, o que causava “problemas de justiça no Brasil”. Os facilitadores o deixavam falar
sem questioná-lo, não pareciam contrariados. Seu José, Seu Francisco e Rony, os três negros
do grupo, se olhavam entre si com reprovação.
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Milena perguntou para Seu Francisco como se imaginava sendo uma mulher. Ele
respondeu que seria uma com casa própria, com condições para educar a família. Agora, com
um tom mais amável, ela perguntou se ele achava ruim ser mulher ou quais seriam as vantagens
de ser homem. “Liberdade!”, respondeu Seu Francisco, acrescentando que para as mulheres
“esse negócio de passar por cima, de não respeitar os homens, agora está foda”. Do lugar de
observação da equipe reflexiva podia ver a cara de indignação de Milena. Ela então propôs
fazer um intervalo de 10 minutos e depois assistir ao curta francês a fim de sensibilizar quanto
ao tema de violência contra as mulheres.
De volta à sala, Milena disse que o vídeo Maiorité opprimé27 tinha a intenção de mostrar
o que “experimentam as mulheres todos os dias”. No curta, de uns 11 minutos de duração, da
diretora Eleonore Purriat, os homens faziam atividades de mulheres: cozinhar, cuidar do lar,
cuidar dos filhos, fazer as compras... E as mulheres faziam o que seria próprio dos homens:
trabalhar, beber no bar, molestar... O vídeo apresentava não só os papéis, mas a atitude: eles
eram femininos e elas, masculinas (o que não acontecia em Acorda Raimundo acorda). Aos
poucos, o vídeo ia desnudando o medo que o protagonista tinha de enfrentar cotidianamente as
cantadas e o fato de ser molestado na rua pelas mulheres. Ao final, ele é estuprado por um grupo
de mulheres depois de rejeitar a cantada de uma delas. Na sequência, ele é levado à delegacia
por sua esposa. Ali, ele é culpabilizado, nas entrelinhas, pelo estupro por andar sozinho à noite.
Depois de assistir ao vídeo, a sala ficou em silêncio. Milena ressaltou que o vídeo era
para que “se pensassem como mulheres”. Alberto comentou que ele nunca se imaginou como
uma mulher e, no caso hipotético de se pensar como uma, seria como a mãe dele. Milena
perguntou se ela seria casada e se teria filhos. Ele respondeu “quinze!”, ao que ela, de maneira
irônica, acrescentou: “seria sua mãe mesmo”. Carlos expressou sua surpresa ao ver que todos
se viam como as mães deles, diante do que Rony observou: “nós somos sortudos de termos
boas mães”. Carlos indagou se gostaram do vídeo ou se acharam fraco. Alberto considerou que
o vídeo “foi extremo porque não existe um lugar assim”. Seu José disse que no início havia
pensado que o protagonista era um veado. Rony não viu “lógica alguma”, achou “sem graça”
e argumentou que “os caras que desrespeitam são caras drogados, doidos de classe média alta”.
Para ele, os homens não se comportavam como as mulheres do vídeo. Alberto respaldou esta
afirmação. Eles dois não atentaram para como o homem personificava uma mulher, mas sim
para como elas agiam ou não como homens. Rony afirmou que “não tem como inverter a
situação, não tem como trocar!”. Para ele, a atitude de gênero não estava descolada do corpo:
27
Curta disponível na internet no site https://www.youtube.com/watch?v=bHJqNpJ8xAQ.
145
“não [era] possível mudar de gênero”. Carlos questionou com tom irônico: “você acha que é
biológico? Que não é cultural?”. Mas Rony insistia que não tinha como trocar de posição.
Voltando ao vídeo, Milena afirmou que as mulheres eram diariamente estupradas ao que
Rony contrapôs que só os “psicopatas” ou os “drogados” faziam isso. O incômodo silêncio
voltou por uns instantes. Agustín também considerou o vídeo “exagerado” e perguntou para os
facilitadores se era verdade que todos os homens terminavam molestando e estuprando as
mulheres, porque ele nunca fez isso. Carlos disse que o vídeo queria mostrar a situação das
mulheres no cotidiano da vida. Agustín discordou, os outros homens também. Milena assegurou
que “esse tipo de situações de violência de gênero acontecem todos os dias a todas as mulheres”:
A gente está numa sociedade machista onde os homens estão acomodados,
então o vídeo mostra o inverso, como as mulheres seriam se tivessem o poder.
Como as mulheres negras e pobres são estupradas. É uma realidade que não
só acontece no Brasil, mas no mundo todo. A sociedade é machista, eu sinto
isso quando estou na rua, eu falo porque sinto isso.
A sala de novo ficou em um tenso silêncio, o argumento de Milena não era fácil de
refutar. Carlos considerava que as palavras de Milena não eram um elogio para eles. Milena
continuou: “sei de amigas que são estupradas. É para a gente refletir melhor sobre o que
acontece na nossa sociedade, eu sinto isso, isso acontece”. Agustín discordou de novo. Para ele,
a própria mulher é a “causadora do machismo”, porque é a mãe que ensina ao filho a se
relacionar com as mulheres, especialmente no Brasil, “uma sociedade não preparada, pouco
culta, é uma questão cultural”. Para Rony, “cantar” era uma coisa e “estuprar”, outra. Nesse
momento, ele começou a admirar o cabelo longo até a cintura, o piercing no nariz e o corpo de
Milena. Para ele, expressar sua “admiração” era um “elogio” e não um “insulto”. Sua fala era
“um presente” para Milena. A facilitadora ficou em silêncio e depois disse que ela “não estava
ali para gostar”, porque estava trabalhando. Milena reiterou que não gostara do que Rony
dissera e lhe perguntou se não achava ruim o assédio. Para ela, esta era uma forma de ser
maltratada. Com tom seguro e sério, Agustín e Celso apelaram ao “respeito” por Milena. Eles
dois foram respaldados por Carlos, que disse que “a cantada é uma atitude machista”.
O encontro terminou e todo mundo saiu em silêncio. Fora da sala, Rony pediu desculpas
para Milena. Ela aceitou. Carlos e Thor estavam contentes, porque finalmente aqueles homens
haviam começado a falar. Para os três estagiários, “tudo foi fluido”. No caminho para o metrô,
Rony comentou comigo que Milena era muito parecida com Aline Riscado, a modelo do
comercial da cerveja Itaipava, e que poucas mulheres eram tão atraentes como ela. Ele tinha
planejado convidá-la para um pagode, ele sabia que ela gostaria...
146
3.3 A primeira lição de facilitação: implicar-se
Na semana seguinte, antes do início do encontro, Thor revisava a lista de assistência dos
homens. Eles só podiam ter duas faltas e alguns deles já acumulavam quatro, como Anderson
e Seu José. Thor ia sugerir ao juizado que Anderson repetisse o processo todo, mas no caso de
Seu José... Ele já havia dado sinais de “implicação”. Citando Adriano Beiras, reconhecido
psicólogo e professor universitário do campo das masculinidades, “implicar-se” era “produto
do processo reflexivo” e estabelecia “novos parâmetros de comportamento a partir da percepção
de que os novos pontos de vista [são] benéficos e [fazem] sentido”:
A partir do momento em que você acredita, é possível replicar o novo
conhecimento com os outros, porque você percebe que é interessante para
você uma mudança, que é importante uma mudança subjetiva, porque você
vai mudar como pessoa. A partir do momento em que você reflete, você
percebe e acaba replicando com outras pessoas, porque você entende que estar
fazendo daquela forma, sentir-se dessa forma, é melhor do que aquela situação
anterior. Nesse momento você acaba acreditando na proposta. Aquilo te move
internamente, subjetivamente. Então a pessoa se percebe diferente, e não só
porque um terceiro lhe diz como se comportar.
Estar implicado era muito importante para Thor e os estagiários, em função do que eles
ignoravam algumas faltas de Seu José. Thor anunciou que, a partir desse dia, ele seria um
facilitador a mais, acompanhando Milena e Carlos. Thor estava preocupado com a implicação
de alguns dos participantes e considerou que sua facilitação ajudaria nesse propósito, dando
exemplo desse modo aos estagiários. Milena não gostou da ideia, e Carlos manifestou ficar
mais tranquilo tendo alguém experiente a seu lado. Carlos sugeriu que, após o relaxamento
inicial, todos lessem uma matéria de Gregório Duvivier sobre violência contra as mulheres,
para em seguida fazerem a atividade do crachá de gênero. Thor gostou da ideia. Milena
continuava preocupada com seu papel como profissional, ela considerava que não a levavam a
sério.
Na sala, Agustín lia uma revista Veja, que considerava “séria e com matérias objetivas”
que mostravam a “bagunça que está vivendo o Brasil hoje”. Thor, sorridente, disse que talvez
Carta Capital lhe oferecesse melhores informações. Para Thor, o conteúdo de “direita” da
primeira revista passava uma “imagem distorcida dos governos progressistas dos últimos anos
no Brasil”. Agustín sorriu cortesmente e, ignorando esse comentário, perguntou “o que é a
violência?”. Ele mesmo respondeu que existiam vários tipos: “física”, “psicológica”, “sexual”,
“humilhante”, “brutal”, “inferiorizante”... Também que existiam “gradações” da “suave até a
sádica” e que a Justiça deveria punir as “formas mais extremas”. Agustín sempre falava com
147
propriedade e com postura professoral – tomando um café em alguma ocasião, Eliana comentou
comigo que “ele deve ser o típico “paizão de família que sempre tinha a última palavra na casa”.
Enquanto Agustín conversava com os facilitadores, os demais homens iam ocupando
seus lugares na roda de conversa, escutando com atenção. Agustín criticava o sistema de justiça
brasileiro porque punia “a violência em geral”, tratando do mesmo jeito todas as suas
expressões. Ele não considera os “xingamentos” e os “golpes leves” como formas de violência
que merecessem o mesmo tratamento que os “furtos” ou os “estupros”. Esta crítica à Lei Maria
da Penha foi compartilhada pelos outros homens, que não se assumiam como “criminosos” que
deviam ser condenados pela Justiça. Rony complementou que a lei colocava a “mulher contra
o homem” e que “um tapinha” não era uma violência que devesse ser punida da mesma maneira
que um “roubo”. Ele considerava que a “degradação” e o “machucado” deviam ser castigados.
Milena e Thor concordavam com a afirmação de que a Justiça devia punir as violências, mas
discordavam sobre as gradações. Thor parou a discussão e perguntou como foi a semana de
cada um deles.
O fim de semana de Seu José foi normal: ele foi à feira, depois ao supermercado, antes
do meio-dia “tomou uma cervejinha” e conversou com seus amigos, até que seu cunhado
chegou, pouco antes do almoço, e derramou um mocotó na camisa dele por ter batido na sua
filha – a sobrinha da esposa de Seu José foi a demandante, a maconheira sobre quem ele
comentara uma semana antes. Seu José ficou “muito ofendido”. Ele respirou e voltou calmo
para casa: “troquei a camisa, peguei um facão da cozinha e voltei para pedir satisfação, mas
não briguei, deixei para trás”. Ele lembrou de Milena e voltou de novo para casa, ligou a
televisão e esqueceu. Thor parabenizou-o por não ter sido violento: “Você teve muita cabeça
para se segurar, então o grupo fez alguma coisa com você, maravilha! Estou muito feliz de
ouvir isso, eu acho que o que senhor fala é muito importante, já que o senhor lembrou de parar”.
Thor considerou que o fato de Seu José não ter brigado lhe dava mais “autoridade no
lar” e agradeceu sua “honestidade”. Seu José queria uma “velhice tranquila” e agora seu foco
era sua pequena neta, que acompanhava todos os dias à escola e ajudava com os deveres de
casa. Os estagiários sorriam.
A disposição dos participantes do grupo mudou assim que Thor assumiu a facilitação.
Eles estavam mais calmos, não mais como na semana anterior, quando estavam na defensiva.
Depois da intervenção de Seu José, todos começaram falar da briga que os levou para o
Judiciário. Thor os deixava falar e eventualmente perguntava pelos “motivos” que levaram a
parceira a insultá-los e também pelos “sentimentos” antes e durante a briga. Como Aline, ele
estava interessado em que esses homens “esvaziassem o copo” antes de iniciarem o processo
148
reflexivo. O fato de “colocar para fora os sentimentos ruins” permitiria a “reflexão” e perceber
a “implicação da própria atitude”. A primeira hora do encontro foi dedicada a escutar os
homens.
Depois do intervalo, Thor perguntou se “bater” era o mesmo que “violência”. Era uma
pergunta retórica. Ele mesmo afirmou que uma sociedade que aprovava castigos na educação
no fundo era uma sociedade violenta, e explicou que bater era uma questão cultural, que
impedia as mulheres de chegarem aos tribunais, sendo esta uma característica de uma
“sociedade machista e patriarcal”. Eles deviam escolher entre continuar com atitudes machistas
ou propor alguma alternativa para não usarem a violência e terem “relacionamentos saudáveis”.
Thor perguntou para cada um deles como se sentia, convidando-os a refletir sobre o que
estavam levando desse encontro para a semana. Rony, Seu José e Alberto estavam felizes.
Milena se sentia “muito gratificada”.
Na semana seguinte, todo mundo estava comentando o jogo em que a Alemanha ganhou
do Brasil na Copa do Mundo. O ambiente era de surpresa, ninguém acreditava “o vexame” que
havia acontecido uns dias antes. Seu José comentava: “eu nasci no 48, no 62 estava com 11, eu
nunca vi isso, desde o primeiro jogo do Brasil, ele nunca estava bem”. Todos acreditavam que
Alemanha ganharia a Copa, o Brasil não merecia ganhar pela péssima campanha que fez. Como
um ritual, Thor perguntou como foi a semana de cada um dos assistentes. Eles falaram da sua
semana de trabalho. Seu José das grades que estava fazendo na sua oficina de serralheria, Rony
dos DVD novos sobre a Copa que estavam “bombando”... Carlos ficou curioso, eles só falavam
do trabalho como se não tivessem vida familiar. Thor gostou da consideração do estagiário, os
demais ficaram em silêncio. Seu José respondeu “sempre é a mesma coisa, minha vida é
simples”. Silêncio na sala.
Depois de uns instantes, Thor propôs ler o texto de Gregório Duvivier intitulado
“Xingamento”28. Carlos leu de maneira pausada:
Puta, piranha, vadia, vagabunda, quenga, rameira, devassa, rapariga, biscate,
piriguete. Quando um homem odeia uma mulher – e quando uma mulher odeia
uma mulher também – a culpa é sempre da devassidão sexual. Outro dia um
amigo, revoltado com o aumento do IOF, proferiu: “Brother, essa Dilma é
uma piranha”. Não sou fã da Dilma. Mas fiquei mal. Brother: a Dilma não é
uma piranha. A Dilma tem muitos defeitos. Mas certamente nenhum deles diz
respeito à sua intensa vida sexual. Não que eu saiba. E mesmo que ela fosse
28
Matéria publicada na Folha de São Paulo em 6 de janeiro de 2014. Disponível em: http://www1.folha. uol.
com.br/ colunas/gregorioduvivier/2014/01/1393513-xingamento.shtml
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uma piranha. Isso é defeito? O fato de ela ter dado pra meio Planalto faria dela
uma pessoa pior?
Recentemente anunciaram que uma mulher seria presidenta de uma estatal.
Todos os comentários da notícia versavam sobre sua aparência: “Essa eu
comeria fácil” ou “Até que não é tão baranga assim”. O primeiro comentário
sobre uma mulher é sempre esse: feia. Bonita. Gorda. Gostosa. Comeria. Não
comeria. Só que ela não perguntou, em momento nenhum, se alguém queria
comê-la. Não era isso que estava em julgamento (ou melhor: não deveria ser).
Tinham que ensinar na escola: 1. Nem toda mulher está oferecendo o corpo.
2. As que estão não são pessoas piores.
Baranga, tilanga, canhão, dragão, tribufu, jaburu, mocreia. Nenhum dos
xingamentos estéticos tem equivalente masculino. Nunca vi ninguém dizendo
que o Lula é feio: “O Lula foi um bom presidente, mas no segundo mandato
embarangou”. Percebam que ele é gordinho, tem nariz adunco e orelhas de
abano. Se fosse mulher, tava frito. Mas é homem. Não nasceu pra ser atraente.
Nasceu pra mandar. Ele é xingado. Mas de outras coisas.
Filho da puta, filho de rapariga, corno, chifrudo. Até quando a gente quer bater
no homem, é na mulher que a gente bate. A maior ofensa que se pode fazer a
um homem não é um ataque a ele, mas à mãe – filho da puta – ou à esposa –
corno. Nos dois casos, ele sai ileso: calhou de ser filho ou de casar com uma
mulher da vida. Hijo de puta, son of a bitch, fils de pute, hurensohn. O
xingamento mais universal do mundo é o que diz: sua mãe vende o corpo. 1.
Não vende. 2. E se vendesse? E a sua, que vende esquemas de pirâmide? Isso
não é pior?
Pobres putas. Pobres filhos da puta. Eles não têm nada a ver com isso. Deixem
as putas e suas famílias em paz. Deixem as barangas e os viados em paz.
Vamos lembrar (ou pelo menos tentar lembrar) de bater na pessoa em questão:
crápula, escroto, mau-caráter, babaca, ladrão, pilantra, machista, corrupto,
fascista. A mulher nem sempre tem culpa.
Nenhum deles entendeu o texto. Seu José disse que só percebeu que a Dilma foi xingada.
Agustín e Celso consideraram que ela merecia os xingamentos porque estava levando o país
para o “abismo”. Carlos perguntou qual era a diferença dos xingamentos para as mulheres e
para os homens, por que “[era] ofensivo chamar a Dilma de piranha e não Aécio de piranhudo”?
Para Rony, o mundo era assim e não tinha uma resposta para esta pergunta. Thor indagou para
Seu José o que achava da colocação de Rony. O velho começou a narrar a história sobre os pais
de um casal adolescente. A mãe da menina reclama que o jovem estava procurando a filha, ao
que o pai dele respondeu: “a senhora prende sua cabra que meu boi está solto”. Seu José
considerava que o pai estava certo, mas a forma de se expressar era incorreta. Rony achava que
“a natureza” era a complementaridade entre o pênis e a vagina, sendo os gays um erro. Thor
perguntou onde estava escrito que era censurável ser gay. Rony rapidamente respondeu que no
150
dicionário, e questionou os facilitadores por que eles sempre respondiam devolvendo com outra
pergunta. Ele queria respostas.
Thor afirmou que a sexualidade não era uma questão certa ou errada, mas tinha a ver
com o “gosto de cada pessoa”. Carlos colocou o exemplo da sua própria irmã, que havia se
assumido como lésbica diante da família: “eu sou heterossexual e eu apoio minha irmã, eu não
sou machista”. Seu José, um pouco indignado, assegurou que preferia ver seu filho na cadeia
antes de saber que ele era gay: “gay é escroto mesmo”. Milena, escandalizada, perguntou se
realmente ele estava afirmando isso, porque a homossexualidade era uma “opção” e nem por
isto os gays deveriam ser enviados para o cárcere. Rony e Seu José concordaram que não era
normal ser gay, porque se fosse, eles poderiam “ter filhos”. Rony queria ter “netos”, um filho
gay impossibilitaria seu sonho. Carlos, muito seguro, afirmou que esta postura era causada pela
“cultura heteronormativa” em que eles foram criados, e Milena advogou pela importância de
considerar a “liberdade sexual” que os gays e as mulheres tinham pelo fato de serem humanos.
Thor ficou preocupado e, dirigindo-se para Rony disse que esse “modelo macho alfa”, no qual
ele acreditava, causava muitas injustiças, razão pela qual ele deveria refletir sobre como essas
atitudes machistas prejudicavam os que estavam no seu entorno. Rony não estava convencido.
Thor finalizou o encontro recomendando refletir acerca das “atitudes machistas que [eles
tinham] cotidianamente com suas parceiras e filhos”, de modo tal que pudessem “optar por
relacionamentos mais igualitários e saudáveis”. Os homens saíram em silêncio da sala.
Na reunião de intervisão, Carlos estava chateado: “eles não pegaram o espírito do texto”,
os homens não comentaram nada sobre os xingamentos contra as mulheres. Thor lembrou que
o “objetivo da facilitação [era] deixar circular a palavra”, as atividades eram só um pretexto
para que isto acontecesse. A ideia não era ser um professor ou falar sobre um tema em
particular, mas “permitir o processo reflexivo”, em outras palavras, “perguntar para deslocar,
criando sensações a partir das quais os homens saíssem do seu lugar de conforto e enxergassem
de maneira diferente”. “Sempre surgem coisas novas da troca e da argumentação”, afirmava
Thor enquanto passava as contas da sua japamala. O fato de “falar” é importante porque desse
modo “os sentimentos são elaborados”, o que permite “construir narrativas diferentes das
verdades interiores que cada homem [traz] para o grupo”.
Para ser facilitador, explicava Thor, era necessário se apropriar do processo, suspender
os julgamentos e os preconceitos próprios e fazer perguntas no momento certo, sem atacar. Esse
exercício não era fácil, porque implicava “um conhecimento de si profundo”, razão pela qual
os facilitadores deviam passar pela “experiência” de participar de um grupo para aprenderem a
“reconhecer os próprios sentimentos [e] aproveitá-los a favor do grupo”. Carlos, Milena e
151
Eliana escutavam silenciosos, quase fascinados. “Uma pessoa que não está empoderada não é
capaz de empoderar ninguém”, assegurou Thor, tanto facilitador quanto homem precisam
passar pelo grupo reflexivo para “viverem a experiência” e “estarem conscientes de seu
movimento interno”, para depois permitirem o movimento dos outros.
Depois de um breve intervalo para tomar café, a reunião prosseguiu com a revisão da
situação particular de cada participante, decidindo-se sobre quem devia repetir o processo. Thor
anunciou que era necessário começar pensar o próximo grupo, que seria com “homens de
demanda espontânea”, bem como a capacitação para profissionais interessados na facilitação
de grupos reflexivos de gênero. Eliana e Carlos precisavam fazer as entrevistas iniciais dos
candidatos ao próximo grupo. Todos ficaram entusiasmados porque consideravam que esse
próximo grupo seria diferente, já que eram homens que de fato queriam “pensar e mudar sua
masculinidade”. Como Alan Bronz ou Marcos Nascimento, Thor via o futuro dos grupos
reflexivos no marco da Lei Maria da Penha. Ele queria escrever uma nova metodologia, que
permitisse a abordagem da violência, mas cujo foco não fosse só este, mas também “trabalhar
a questão de gênero de maneira ampla, com públicos diversos”. Ele esperava que os grupos
fossem mais “preventivos” do que “paliativos”.
Para Thor, o trabalho preventivo proporcionava uma “presença ativa dos homens na
criação e no cuidado dos filhos”, impedindo a manifestação de “iniquidades de gênero”,
“doenças” e “violências”. “Exercer a paternidade permite a construção de uma masculinidade
diferente, reconhecedora da diferença, respeitosa com as mulheres e com o próprio corpo”,
afirmava de maneira serena Thor. Para isso, era importante “reformular a função paterna”,
vinculando os homens à criação dos filhos, bem como as mulheres aos grupos reflexivos, para
gerar “reais diálogos com a outra parte da relação”. Thor sabia que a proposta de grupos mistos
gerava resistência entre as feministas, porque em alguns encontros o tema da violência era
inevitável e as feministas tinham por política apartar as vítimas dos homens. Mas ele acreditava
que nas situações de violência homens e mulheres tinham participação em diversos graus e
formas, e isto devia ser falado, para que ambas as partes da relação fossem “conscientes da sua
posição de poder”. Só desse modo, mencionava Thor, seriam possíveis “relações que não
precisassem da violência para comunicar o desconforto”.
3.4 Thor
Acompanhei Thor fora do instituto em várias reuniões da rede de atendimento às vítimas
de violência doméstica e em seminários organizados por instituições do Judiciário ou do
152
governo estatual que discutiam a implantação da Lei Maria da Penha. Grande parte do seu
trabalho, além do atendimento em consultório, era como gestor do projeto, para o qual ele devia
estabelecer alianças com funcionários e outras organizações não governamentais. Seu objetivo
era captar recursos financeiros, localizar o público beneficiário dos grupos e vincular
“voluntários” que quisessem aprender a respeito da facilitação. Este era o “trabalho em rede”
que Thor considerava fundamental para desenhar ações de prevenção mais concretas em postos
de saúde, feiras de serviços, como as que aconteciam em 8 de março, Dia da Mulher, ou em
marchas contra a violência, no dia 25 de novembro.
Thor era reconhecido por seu trabalho com homens, em função do qual ele era
convidado a dar palestras para públicos vinculados com a implantação da Lei Maria da Penha
ou com a prevenção de violência em serviços de saúde. Ele sempre iniciava suas apresentações
justificando a pertinência do “pensamento sistêmico” e do “construcionismo social”, bases
epistemológicas que lhe permitiam trabalhar as “situações de violência” como relacionamentos
complexos, com uma história, nos quais o papel do agressor mudava dependendo do momento.
Thor aprendeu na sua passagem pelo Instituto Noos essa maneira de abordar conflitos, fazendo
parte das “formações”, das especializações lato sensu que muitos psicólogos faziam para o
aprofundamento em certas áreas do conhecimento e o aprimoraramento de técnicas de atenção.
No mesmo instituto, ele fez parte dos grupos iniciais com Fernando Acosta, Alan Bronz e
Carlos Zuma, e acompanhou o projeto dos policiais militares que passaram de “cavalos
corredores” a “gazelas saltitantes”. Após trabalhar alguns anos nessa organização, Thor fez um
mestrado em terapia de família, como tantos outros psicólogos da sua geração, uma formação
reichiana com Fernando Acosta, e chegou a ser gestor do projeto SerH da cidade de São
Gonçalo, trabalhando intensamente para melhorar o atendimento a homens vinculados a
processos de violência.
Nos últimos meses de 2013, ele ingressou no Instituto de Práticas Sistêmicas, uma
jovem organização fundada por psicólogos terapeutas de família, educadores populares e
sociólogos interessados no trabalho de empoderamento “fora do consultório”. Em parceria com
Promundo e uma agência de cooperação do governo da Holanda, ele foi coordenar o projeto
atual sobre engajamento de homens na prevenção da violência de gênero e na “criação
positiva”. O objetivo do projeto era que, na medida em que os homens se vinculassem
“ativamente” à criação e à construção das masculinidades dos seus filhos, sua relação seria
“mais igualitária e menos violenta”, tendo como resultado o melhoramento da qualidade de
vida individual, familiar e comunitária e, consequentemente, a transformação da cultura
patriarcal.
153
O “encontro com o gênero” de Thor aconteceu quando participava de algumas oficinas
e conferências do sociólogo norte-americano Michael Kimmel, que veio ao Rio de Janeiro
convidado por Gary Barker. Thor comentava quase fascinado como Kimmel narrava o
descobrimento dos seus “privilégios como homem branco”. O sociólogo comentava que nas
oficinas com mulheres nos Estados Unidos era usual uma atividade na qual elas se observavam
em um espelho e o facilitador solicitava para que descrevessem o que viam: “sou uma mulher,
negra, latina, idosa, com x, y, z características...”, parafraseava Thor, mas quando Kimmel
pegava o espelho, “só via um homem”. Naquele momento, afirmava Thor, ele compreendeu
que era o “centro de referência” a partir do qual todo mundo se pensava. Para Thor, isso foi
quase uma revelação, que lhe permitu ver o “lugar de poder dos homens [e] a dificuldade que
muitos deles têm para escutar e reconhecer o outro”. O encontro com Kimmel motivou-o para
indagar mais sobre “as masculinidades” e trabalhar a favor de “outros exercícios de ser
homem”: menos autoritários e, pelo contrário, reconhecedores dos pontos de vista daqueles que
não eram centro de referência.
Nas palavras de Thor, o “gênero dos homens” fez com que elaborasse “meu próprio
processo pessoal” quanto a uma relação conflitiva com o pai: “um homem autoritário e pouco
afetivo”, com quem teve uma relação difícil. Algumas das lembranças da sua infância
correspondiam à “sensação de ter medo do meu pai”. Thor assegurou que seu pai nunca batera
nele, nem em outro membro da sua família, mas às vezes ficava irritado, rasgava as revistas das
crianças e certa vez quebrou coisas, como um instrumento musical, durante uma briga familiar.
Thor era um menino “muito certinho [...], muito chorão e sensível”, que não jogava futebol –
ele nunca era escolhido pelos colegas para fazer parte de um time – e que se entregava “de
forma apaixonada” nas suas relações amorosas. “Meu pai ficava louco com essas coisas todas
... quando eu era criança, adolescente, eu sempre estive em rota de colisão com meu pai”.
Thor era o filho mais velho de um “casal judaico tradicional”, que procurava que o primogênito
encarnasse o “modelo de ser homem” que seu pai representava. Ele tinha que ser “o cara”,
“mais malandro [e] menos entregue a seus relacionamentos”. Para Thor, seu pai representava a
“masculinidade hegemônica”, o que “criou um trauma e também uma sensação de
disfuncionalidade em relação a outros homens”.
Thor também cresceu durante a redemocratização do Brasil e compartilhava o ideário
libertário de alguns movimentos de vanguarda artística e intelectual da Zona Sul do Rio de
Janeiro. Em contraste, seu pai era um homem que “vivera o espírito da ditadura”, acreditando
na “autoridade” como maneira de organizar a vida pessoal, familiar e social. “O ambiente social
de transformação” foi o pano de fundo para o conflito com seu pai. Entre risos, Thor comentava
154
que esse conflito não era mais uma questão para ele. Os grupos dos quais participou, as
referências sobre gênero e outras afirmações de masculinidade o ajudaram a “fazer dessa
história parte de mim, mas não o que me define como pessoa”. Em 2015, Thor se descrevia
como uma pessoa com um “temperamento muito diferente” daquele de seu pai, interessado pelo
budismo, pela medicina ayurveda e recentemente pela psicanálise. Sem se considerar um
ativista, ele apoiava causas, organizações e movimentos interessados na equidade de gênero e
colaborava com o desenvolvimento de projetos focados na resolução de conflitos familiares.
Figura 18. Thor.
A história pessoal de Thor era em alguma medida pública. Em alguns seminários nos
quais ele participou como palestrante, iniciava sua exposição narrando várias passagens da sua
relação com o pai, para depois comentar a “experiência transformadora” dos grupos reflexivos
de gênero. Com isto, ele criava simpatizantes da proposta, demonstrando que era possível
vencer a reprodução do autoritarismo, o machismo e formas de violência relacionadas à
masculinidade, elaborando sentimentos e falando de si mesmo. Esta era uma estratégia que o
ajudava a colocar para plateias resistentes o tema de trabalho com homens, em que a figura da
vítima era valorizada para discutir políticas e formas de intervenção estatal. Falar publicamente
da sua experiência também servia para dar testemunho de como a “transmissão da
masculinidade hegemônica” podia ser interrompida, permitindo a expressão de “formas
alternativas de ser homem”. Ele mesmo era exemplo disto. Uma das mensagens que Thor
enfatizava era que “é possível ser outro homem” e que o investimento no trabalho de grupos
155
reflexivos “[estava] sintonizado com a causa das mulheres. Apesar do ceticismo de algumas
delas, “uma masculinidade não violenta e reconhecedora das mulheres é possível”.
3.5 Sexo para mim é...
O último encontro do grupo reflexivo com homens em situação de violência teve como
disparador de conversa completar por escrito a frase “para mim sexo é...”, com o propósito de
articular gênero e sexualidade. Eliane e Milena lamentavam que de fato em nenhum dos
encontros houve uma “conversa explícita sobre gênero”. Da sua parte, Thor estava preocupado
porque os participantes “não reconheciam seu machismo e sua violência”, com exceção, talvez,
de Seu José. Para Carlos, esses homens sempre tinham uma “justificativa sobre sua violência”.
Thor considerava que esse grupo nunca teve “identidade” nem “sequência”. O ideal seria que
os participantes decidissem a respeito dos temas para conversar e “se apoiassem para mostrar
saídas alternativas aos conflitos vividos”.
Um a um foram chegando os homens do grupo. Nesse dia veio Anderson, o personagem
problemático de encontros anteriores. Ele chegou com cheiro de cerveja e bastante acelerado,
com o queixo tenso, os olhos sempre muito abertos e não parava de mover as mãos – para Rony,
ele estava “tekado”, havia cheirado cocaína. Anderson, morador da Rocinha, reconhecida favela
da Zona Sul, era um homem negro em torno dos 30 anos, calçava chinelos, vestia um short e
boné, e seu corpo era muito malhado – Rony considerava que tomava “bomba”: anabólicos.
Seus pés ainda tinham areia da praia. Ele não parava de olhar para Milena, que era indiferente
às suas repetidas “cantadas”. Houve um momento em que Celso, de maneira firme, solicitou
respeitá-la. Anderson ficou em silêncio, mas não parava de mover o pé e os dedos.
Thor parabenizou cada um deles pela participação nos encontros, embora advertindo
que alguns deles iriam conversar com a equipe técnica do juizado porque, pelo número de
ausências, provavelmente teriam que repetir o grupo. Isto incomodou Seu José, Anderson e
Rony. Para não causar muita polêmica, Thor anunciou que avaliaria caso a caso antes de
notificar o juizado, porque ele reconhecia engajamento de alguns deles no processo. Enquanto
Milena entregava algumas folhas de papel e canetas, Thor explicava a atividade: completar a
frase “para mim sexo é...”. Não era necessário escrever o nome na folha, para evitar a
identificação do autor, porque depois eles iriam ler de maneira aleatória e selecionar alguns
textos.
Anderson, que não parava de bater a caneta contra a mesa, afirmou: “sexo para mim não
é vulgar”. Com fala acelerada, repetindo duas vezes algumas palavras e saltando de um tema
156
para outro, sem aparente conexão, ele narrou que namorou uma atriz pornô uns meses atrás,
mas não considerava o sexo com ela sujo. Para ele, a mulher tinha que “saber cozinhar [e]
ensinar a administração do lar para as filhas”. Thor ficou interessado na última afirmação e
perguntou para os demais como era “essa história da mulher ficar em casa”. Seu José, que estava
de mau humor por causa da morte de um tio, disse que “uma mulher completa é a que ajuda no
lar”. Celso, o único branco do grupo (Agustín, o chileno, deixara de frequentar o grupo umas
semanas atrás) disse que “todo grande homem tem uma grande mulher: a mãe”. Com orgulho,
e um pouco de saudade, narrou que seu pai sempre trabalhou e sua mãe cuidava dele e de seus
irmãos, inculcando o respeito pelas mulheres. Mas “hoje tudo mudou”, porque as mulheres
estavam procurando profissão, sendo “menos colaborativas” com os homens. Celso
considerava que uma “mulher completa bota a gente para cima [...] a mulher que quer, torna o
homem um grande homem, seu marido, independentemente de se cozinha ou não cozinha. Uma
mulher levanta a gente”. Carlos replicou, comentando que tanto homem como mulher deviam
cozinhar, diante do que Celso disse que ele sabia cozinhar e que, quando teve seu filho, também
trocou fraldas e preparou a mamadeira. Thor colocou-o como um exemplo da importância de
os homens estarem envolvidos na criação dos filhos, vinculando-se como “cuidadores”.
Carlos, sorridente, leu um dos textos: “sexo para mim é uma forma profunda de
estabelecer uma ligação com o outro”. Ele nem havia terminado de ler e Anderson já continuava
a descrição do seu relacionamento com a atriz, como se nada estivesse acontecendo: “as
mulheres da vida” não eram suas “cúmplices”, atributo necessário para sentir a “companhia” e
o “apoio”. Todas as mulheres o “traíram” e aspirava se converter em um “playboy” para “pegar
mulher” e ser reconhecido apesar da sua aparência. Ele se descrevia como um “monstro”, razão
que atribuía ao fracasso dos seus relacionamentos. Thor olhava-o com atenção. “Sempre fui fiel
entre aspas, pelo menos até que se demonstre o contrário”, comentava Anderson de maneira
eufórica e rindo alto. Ninguém na sala riu, alguns o olharam com reprovação. Anderson se
colocou na defensiva e começou a cantar Milena: suas pernas eram bonitas, ele a imaginava
dançando na praia... Milena olhou-o com reprovação e exigiu que a respeitasse, assegurando
que não iria permitir mais uma referência dessa ordem. Thor interrompeu e perguntou para
Anderson por que tinha uma imagem “obscena” das mulheres e se podia “assumir o sexo como
uma coisa mais ampla e profunda na relação”.
Celso acreditava que era difícil “encontrar uma mulher bacana para conformar um lar”
e, comparando-se com Anderson, reconheceu o quanto ele havia mudado depois da experiência
de passar uns dias no cárcere. Ele pediu desculpas por ter agredido e disse que o grupo foi de
ajuda para o seu aprendizado. Celso disse que gostaria de voltar ao grupo “mas sem estar
157
obrigado”. Carlos valorizou estas palavras, mesmo ditas depois de muitos encontros. Thor e os
estagiários ficaram gratificados – Rony, no caminho para o metrô, comentou comigo que Celso
sabia como “fazer carinha”, por ele ser “branco e de olho azul”, o que o fazia parecer inocente.
Eliana leu outra frase: “sexo para mim é essencial numa relação, sexo para mim não é
tudo na vida”. Anderson gritou que sexo era tudo porque era a base do namoro e do
relacionamento: “tudo ou nada!”. Para ele, quando o sexo acabava, era porque não existia mais
interesse em manter o relacionamento e porque a atenção já estava focava em outra pessoa. Ele
voltou ao tema de se considerar um monstro: “sou Shrek29 com força no coração, mas feio”.
Para Anderson, a aparência física era importante: ter roupas de grife, celular de última geração
e um bom carro. Como ele não possuía nada disso, as mulheres o abandonavam. Anderson
precisava de “uma mulher fina, elegante e higienizada” que o ajudasse a “transformar o ogro
em príncipe”.
Thor não olhava mais para ele com desdém, mas com certa piedade, e lhe perguntou se
ele mesmo não podia “mudar”. Não era fácil mudar, contestava Anderson, porque era muito
difícil achar a mulher certa. Ele estava na dúvida se podia mudar rápido o suficiente, as
mulheres preferiam homens com dinheiro, afirmava insistentemente. Para Thor, nem as
mulheres nem o dinheiro o fariam mudar se ele mesmo não fizesse o esforço de se envolver:
“se você não compreender que isso é um trabalho que você faz sozinho, não pode mudar,
Anderson”. “Eu estou sozinho por opção”, respondeu Anderson com um sorriso que deixava
passar sua tristeza. Só Seu José e Seu Francisco olhavam para Andersom com certa
consideração.
Finalizando o encontro, Seu José disse que ele aprendeu e refletiu sobre “a confusão”
que teve com sua sobrinha e mencionou que para agora ele pensava mais antes de agir: “no
início a gente fica estranho, achando que estamos perdendo tempo, mas eu gostei”. Seu
Francisco, que sempre estava silencioso, agradeceu a atenção dada pelos estagiários. Alberto
gostou dos encontros e assegurou que voltaria em uma próxima oportunidade. Rony aprendeu
sobre sua alma feminina. Thor estava feliz. Os estagiários, cansados.
3.6 A honestidade no discurso
A seguinte reunião de intervisão foi a última para Milena, que já completara as horas
necessárias de estágio exigidas pela universidade. Ela parecia ser uma espécie de antagonista
29
Um ogro, protagonista de um desenho animado de 2001 do mesmo nome, da Dream Works.
158
da prática de escuta de Aline e de Thor, sempre confrontando os homens e se indignando,
porém, reconhecia a “exigência emocional” que implicava o papel da facilitação dentro do
grupo. A partir dessa experiência, ela conseguiu definir seu tema de trabalho de conclusão de
curso sobre grupos reflexivos, e após conhecer de perto o “comportamento machista” de
Anderson e Rony, a jovem estagiária estava decidida a trabalhar em programas de tratamento
para homens agressores. Milena agradeceu a Thor a oportunidade de trabalhar no instituto e se
despediu de todos.
Carlos, Eliana e Thor consideravam o tema da “honestidade” dos homens no grupo
como muito importante, porque muitos deles falavam o que o facilitador queria escutar, era
difícil que eles “realmente se abrissem”. Thor valorizou a “mudança do discurso” de Seu José,
indicador do seu “movimento para pensar a violência contra a sobrinha”. “O conteúdo do Seu
José foi mudando”, mencionou Thor no início da descrição do seu processo: primeiro, ele disse
que não entendia por que foi parar no grupo já que ele era pacífico, depois, narrou o episódio
do boteco e da faca e, por último, percebeu que tinha que “parar para mudar”. Para Thor, esse
“movimento” era a evidência da mudança, produzindo nele “a sensação de que Seu José foi
honesto”. Carlos concordava e destacou que “pôr em perspectiva seu comportamento trouxe
coisas boas para Seu José”, em contraste com a atuação reativa no episódio do bar, quando
achava que “ser violento era legítimo”. Em relação a Celso, Thor estava satisfeito com o fato
de ele reconhecer que havia batido; com respeito a Anderson, ele e os estagiários consideraram
que o seu “mal-estar” estava na “desconexão entre sexo e sentimentos”.
Revisando o processo grupal, Carlos baixou sua expectativa quanto ao seu alcance
“transformador”. Thor explicou que o importante não era “fazer mudar”, mas “abrir
alternativas”, apontando que o facilitador “planta uma sementinha que pode germinar ou não
na cabeça de cada homem”. Thor não estava preocupado em “convencer” os outros homens,
pois isto seria “pretencioso e altamente frustrante para o facilitador”, mas sim atento às
“mudanças sutis no discurso”, que lhe possibilitavam enxergar como “esses homens assumem
outra perspectiva quando entram em contato com outros modelos de masculinidade”. O
facilitador devia “provocar a fala e ajudar a elaborar as coisas não ditas”, de modo tal que os
participantes do grupo tivessem “clareza desde onde estão falando”. Em outras palavras, o
facilitador precisava fazer com que esses homens fossem conscientes da sua posição no discurso
e, consequentemente, do seu lugar nas relações sociais. Para Thor, esse era o processo de
responsabilização em última instância: assumir a autoria da fala, atribuir valor pessoal ao que é
dito.
159
A partir desse momento, o próximo trabalho para a equipe de facilitadores seria
conformar o grupo com “homens de demanda espontânea”. Para isso, Eliana e Carlos deviam
fazer as entrevistas preliminares com os três homens interessados e marcar uma data estimada
para começar os encontros. Thor, sempre passando as contas da jampala e falando de maneira
pausada, assegurava que esse grupo seria mais tranquilo.
3.7 Eu sou bonito, eu não sou esse corpo gordo
Na semana seguinte acompanhei a entrevista preliminar de Pedro, que aguardava na sala
de espera da instituição lendo um livro de Proust. Ele era um homem em torno dos 60 anos,
baixo e obeso, com roupas sujas, unhas grandes, tanto dos pés como das mãos, pele seca, cabelo
seboso e óculos de lentes grossas e arranhadas. Ele não era muito agradável à vista.
Conversamos um pouco na sala de espera. Pedro havia chegado ao instituto porque se sentia
“muito mal” consigo mesmo, ele queria “mudar sua situação” para “ser feliz” com sua mulher.
Nesse momento, Carlos nos convidou para entrar na sala onde aconteceria a entrevista. Pedro
solicitou uma cadeira metálica, pois tinha medo de romper as de plástico, coisa que já havia
acontecido, deixando-o muitas vezes constrangido em público. Carlos e Eliana sentaram-se em
frente a ele e começaram a ler o questionário inicial, elaborado pela área de pesquisa do instituto
para haver uma primeira aproximação com os futuros participantes dos grupos reflexivos,
caracterizar a situação de violência e apresentar a proposta de grupo 30. Eu acompanharia a
entrevista sem intervir.
Eliana iniciou a leitura do documento, ressaltando que todas as perguntas eram para ser
respondidas voluntariamente e que os dados ali registrados seriam usados com fins de pesquisa,
garantindo a confidencialidade da informação. Ela perguntou o nome e o lugar de residência.
Pedro respondeu e começou a falar da sua história, sem parar. Ele falava e respirava de maneira
agitada. Apesar de Carlos e Eliana interrompê-lo às vezes para voltar às perguntas do
O “questionário inicial para participantes dos grupos reflexivos de homens” incluía dados básicos cadastrais e
socioeconômicos, como nome, endereço, ano de nascimento, telefone, ocupação, cor de pele, religião, posição na
família, estado conjugal, número de filhos, escolaridade, situação laboral, rendimentos financeiros, entre outros.
Outra parte do questionário dizia respeito à chegada no instituto e ao andamento do processo por violência no
juizado. A quarta seção abordava a “situação familiar” em relação à composição da família, estado civil do casal
e a “reação emocional” do pedido de separação. A quinta parte, referente a “Atitudes em face de conflitos e da
violência intrafamiliar e de gênero”, relacionava comportamentos frequentes em situações de desentendimento na
família, reações no estado de “raiva”, exemplo recebido durante a infância para lidar com conflitos, familiares em
relação às que o homem está vivendo no momento presente, fatores que detonaram a “situação de violência”, tipos
de violências físicas, sexuais e psicológicas recebidas ou praticadas e as instituições de referência nas quais acudiu
a vítima de violência. Outras partes do questionário faziam alusão a casos de “negligência” (violência contra
crianças ou idosos), ao estado de saúde do informante, o que incluía o uso de álcool e drogas, e outras informações
de contato.
30
160
questionário, ele continuava sua narração. Pedro se apresentou como um jornalista nascido no
Rio de Janeiro que foi morar em Brasília por questões de trabalho. Ele era pai de “duas belas
filhas” – quando ele se referia a elas e à sua atual companheira ao longo da entrevista, falava
com ternura, de maneira doce e calma. Cinco anos atrás ele começou a procurar “ajuda”, após
ter tido um “episódio de violência” contra sua esposa, uma mulher 19 anos mais nova que ele,
estudante de psicologia na Universidade de Brasília. Pedro gritou em uma briga, coisa que
nunca antes havia acontecido. Sentindo “muita culpa”, ele resolveu “fugir de Brasília,
horrorizado consigo mesmo por ser agressor”. Ela o perdoou, mas “eu não consigo me perdoar”.
Carlos perguntou quais eram os motivos para procurar o instituto. Pedro queria se tornar
uma “pessoa melhor”. Ele teve notícias de um programa de saúde com palestras direcionadas
ao homem agressor e decidiu ligar para o instituto. No início, ele não estava muito seguro,
porque não tinha um processo por violência no juizado, mas ao saber que podia fazer parte de
um grupo por demanda espontânea, decidiu aceitar a entrevista inicial e, desse modo, “exorcizar
seus fantasmas [e] sair da minha zona de conforto”. Pedro continuou seu relato, “eu fiz tudo
para ver minha esposa feliz”, para o que ele se candidatara a uma cirurgia de redução de
estômago e estava se “sacrificando” para poder ter uma vida sexual. Ele acreditava que sendo
magro iria se tornar uma “pessoa diferente”. Pedro disse que havia sido “uma criança muito
ensimesmada”, e acrescentou, “sempre me virei sozinho”. Por se julgar também muito
inteligente e amante dos livros, Pedro se considerava um “intelectual”, o que fazia com que não
tivesse “paciência para pessoas comuns”. Ele sabia que era “arrogante” com sua família e
vizinhos na comunidade de pescadores onde cresceu, perto da Barra da Tijuca. Ele deixou de
ter contato com seus irmãos por considerá-los “comuns demais” e “medíocres”. Agora, aos 62
anos de idade, Pedro queria aprender a “partilhar”, ter contato com seus familiares e finalmente
ter algum amigo.
Eliana ficou interessada no seu desejo de partilhar, convidando-o a explorar melhor esta
ideia. Pedro disse que, depois de gritar com sua mulher, entendeu que devia “partilhar [seus]
problemas com outras pessoas, para não explodir nunca mais desse modo”. Nos últimos dois
anos, ele frequentara um psiquiatra e um psicólogo, conseguindo “se abrir” e ter mais
“autoconhecimento”. Pedro repetia de maneira insistente que quase perdeu o casamento e que
era um esposo ruim, porque “essa mulher maravilhosa” salvou sua vida em duas oportunidades:
primeiro, tirando-o da bebida, segundo, dando-lhe suas filhas. “Meu Deus, que ser humano
horroroso que eu era”, dizia Pedro para os estagiários. Carlos e Eliana não falavam, de quando
em quando davam uma olhada nas folhas do questionário e tentavam prosseguir na ordem das
perguntas, mas sem sucesso. Pedro continuava narrando, quase chorando: “eu não me perdoo
161
pelo que fiz”. Ele tinha “esperança de mudar” porque sabia que era um “pai ótimo”. As cartas
das suas filhas e da sua esposa davam testemunho disso. Ser um bom um pai para suas filhas
lhe dava o impulso para “se transformar em uma pessoa melhor”.
Figura 19. Pedro.
A decisão de Pedro de voltar para o Rio Janeiro também foi motivada pelo estado de
saúde do seu pai. Sendo o “único filho bem-sucedido”, ele ficou encarregado dos cuidados do
idoso. Pedro acreditava que cuidando do seu pai deixaria de ser uma pessoa “difícil, marrenta
e egoísta”, que considerava todo mundo abaixo do seu nível intelectual. Após a morte do pai,
ele percebeu que estava “realmente sozinho”, que seu casamento estava “acabando” e que não
tinha “companhia para [sua] velhice”. Ele não sentia “orgulho” do seu passado e durante toda
a sua vida quis negar ter sido “criado numa casa de palafita, com porcos”. Pedro
propositalmente se afastou da sua família de origem e foi enfático ao afirmar que a razão era
que ele queria “melhorar [sua] condição cultural”, sendo seletivo com suas amizades. Sua mãe
era uma lavadeira negra e seu pai um pescador branco. Ele, por ser “o filho mais branco”, com
162
“cabelo bom” (um pouco mais liso) e o único interessado pelos estudos, recebeu toda a atenção
dos pais. Todo o dinheiro da mãe estava destinado à educação de Pedro, produzindo a “inveja”
dos irmãos.
Mas por ser uma criança gorda e inteligente, Pedro era constantemente objeto de
bullying, e ele teve que “bater para [se] defender”. Ele achava que “bater era bom” porque a
mãe sempre gritava com ele, que assumia “essa violência psicológica” como parte da sua
formação. Carlos e Eliana o escutavam atentamente. Pedro falava usando as mesmas categorias
dos estagiários e dava sentido negativo ao ato de bater, por exemplo, como decorrente do
passado.
Minha mãe queria me ver chorar, minha mãe não considerava isso violência,
mas hoje eu sei que isso é violência. Durante 60 anos acreditei que isso não
era violência; 60 anos é uma vida e eu achava que ela estava certa. Só há cinco
anos sei que não, é pouco tempo.
Pedro repetia várias vezes que sentia medo de morrer sozinho, medo este que se
intensificou quando viu seu pai morrer no seu colo. “Será que eu vou ter alguém para fechar
meus olhos quando estiver morrendo? Será que vou morrer sozinho?”, se perguntava,
provocando a piedade dos estagiários. Eliana só desejava o melhor para ele. Pedro percebeu
que tinha que “ser humilde” e, para isto, virou voluntário em programas humanitários e
começou a se aproximar dos seus irmãos. Ser humilde era o primeiro passo para mudar. Ele se
descrevia como “muito arrogante”, que sua vida era um “melodrama”, com “altos e baixos
muito rápidos e constantes”. Pedro não aguentava mais esse estilo de vida, queria uma forma
mais sossegada de viver; por isso, procurou o psiquiatra, o psicólogo e agora o grupo reflexivo.
Antes de chegar ao instituto, ele foi parar em um juizado, sabendo que ali aconteciam os grupos,
mas não conseguiu entrar porque ele não tinha sido “condenado por violência”. Por meio do
grupo, ele queria “exorcizar o horror da minha alma [e] me curar da violência”.
Carlos explicou que os grupos dos juizados eram diferentes porque estavam
conformados por homens processados pelo delito de violência doméstica contra a mulher.
Pedro, quase sem deixar terminar a frase, colocou: “Não! Eu quero me impor essa pena!”.
Carlos ficou assustado e continuou lendo o questionário, repetindo a cláusula de
confidencialidade. Pedro aceitou os termos e permitiu a leitura das perguntas e das opções de
resposta. Ele não se limitava a escolher uma resposta, sempre descrevia mais e mais porque as
opções não contemplavam tudo o que ele queria dizer. De todo modo, a leitura do questionário
de 11 páginas foi relativamente rápida, se comparada com o depoimento inicial do entrevistado.
163
Finalizada a entrevista, Pedro perguntou para os estagiários se havia respondido bem, se
achavam que era um candidato para o grupo. É verdade que ele não fora denunciado, mas se
considerava um “torturador mental, um intolerante”. Antes de se despedir, Pedro disse para
mim, “eu sou bonito, eu não sou esse corpo gordo!”.
Uns minutos mais tarde Thor perguntou sobre o decorrer da entrevista. Para Carlos e
Eliana, foi difícil diligenciar o questionário porque Pedro não respondia à sequência de
perguntas. Eles caracterizaram Pedro como uma pessoa “autocentrada”, que gostava de
“inventar histórias [e] sentia muita culpa”. Destacaram que para Pedro a mudança partia de fora
para dentro: mudar de cidade, mudar de corpo para depois mudar a mente. Para Thor, o caminho
era na direção oposta, de dentro para fora: “o conteúdo modifica a percepção da forma”.
3.8 Compartilhando verdades que não se falam a ninguém
Algumas semanas depois, o grupo por demanda espontânea estava por começar. Carlos
e eu esperávamos em uma pequena sala e conversávamos sobre o segundo turno das eleições
para presidente no Brasil. Carlos apostava na disputa entre Dilma Rousseff, a presidente na
época, e Marina Silva, candidata do Partido Socialista Brasileiro, ambas representantes de “uma
política mais voltada para a esquerda”. Uma voz grave e forte entrou subitamente na
conversação: “o único que pode salvar este país é o Aécio!” 31. Era Paulo, um dos homens que
conformariam o grupo por demanda espontânea, morador de Copacabana, de aproximadamente
60 anos de idade, com cabelo grisalho, vestido com camisa de linho azul clara, calça jeans e
sapatos de couro sem meias – ele estava muito bem vestido, seguindo as tendências da moda
da época. Para Paulo, as eleições não eram mais do que “um festival de besteira e sujeira [pois]
o PT32 está destruindo o país”. Sem ser questionado, ele falou que estava cansado por causa da
sua separação e sentia “o peso no corpo” depois de tanta traição. Nesse momento chegou Pedro,
que gostara de um cartaz com a imagem de Juninho Pernambucano que estava pendurado na
parede da sala de espera do instituto. Ele achava positiva a atitude do jogador, que contrastava
com “o safado do Neymar”, que não era mais que o resultado da “corrupção da Confederação
Brasileira de Futebol” (CBF). Paulo olhou-o de cima para baixo e disse que a corrupção não
era da CBF, mas do governo de Dilma Rousseff. Carlos só escutava com os olhos bem abertos,
sem saber o que dizer.
31
Aécio Neves era o candidato pelo Partido Social Democracia Brasileira (PSDB), antagonista de Dilma Rousseff
nas eleições.
32
Partido dos Trabalhadores.
164
Thor nos chamou para entrar na sala. Ali esperava Fabrício, o terceiro integrante do
grupo, um homem de pouco mais de 40 anos, morador da Urca, também vestido com camiseta
polo azul (um tom mais escura que a de Paulo) e calça jeans. Ele estava mexendo no seu Iphone.
“Cara, esse grupo só vai ter coxinha!” 33 , falou para mim em voz baixa Carlos, enquanto
organizávamos as cadeiras. Era evidente que o perfil deste grupo contrastava com o dos
processados pela Lei Maria da Penha, que era maioritariamente de homens negros. Todos eram
homens moradores da Zona Sul do Rio de Janeiro, com uma alta renda. Thor cumprimentouos, apresentou os estagiários e pediu para eles se apresentarem. Cada um falou seu nome de
maneira rápida, primeiro Fabrício, depois Pedro e por último Paulo, que perguntou para Thor
se era casado ou solteiro, porque para ele era importante “ter conhecimento de causa para
aconselhar na sua situação [de separação]”. Thor respondeu que era solteiro e que não via
problema em conversar sobre “a vida de casado” em um dos encontros, porque tanto Pedro
quanto Fabrício o eram e podiam compartilhar essa experiência com ele. Paulo foi enfático ao
questionar a legitimidade para “aconselhar” de Thor e a dos estagiários para “ajudá-lo” na sua
situação. Ele precisava de alguém que soubesse “lidar com relacionamentos” e que pudesse
aconselhar sobre “como agir durante a separação”. Paulo estava de mau humor. Várias vezes
perguntou pela confidencialidade do grupo e se seu verdadeiro nome apareceria em algum
registro. Ele estava preocupado com o vazamento de informação para terceiros.
Paulo começou a falar da sua vida para responder à pergunta de como os três haviam
chegado à instituição. Thor e os estagiários não o interromperam durante sua narração. Ele
falava com propriedade sobre sua vida, com voz grave e pausada. Ao mesmo tempo parecia
cansado. A sua não era uma narração linear, ele ia saltando entre episódios da sua vida,
compondo um panorama de traição, solidão e impossibilidade de ser amado. Paulo morou em
Copacabana, no lar materno, até quase os 30 anos, quando foi trabalhar no Mato Grosso do Sul
em uma grande obra como engenheiro. Depois do fracasso do seu relacionamento, voltou para
o Rio de Janeiro, cidade na qual conheceu sua segunda esposa, da qual estava se separando.
Paulo estava “se levantando e saindo do buraco”, por isso buscou a instituição, porque era
“muito penoso e triste estar separado na minha idade”.
33
Categoria de acusação para se referir aos críticos dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff.
Os coxinhas usualmente estão vinculados politicamente ao PSDB, fazem parte das classes médias e altas da
sociedade brasileira, racialmente caraterizados como brancos e são reconhecidos pela sua procedência regional do
sul e do sudeste, especialmente do estado de São Paulo, lugar onde a coxinha, um tipo de salgado, é bastante
popular.
165
Figura 20. Juninho Pernambucano.
Paulo se dirigia a Pedro, Fabrício e Thor, nunca aos estagiários, sempre com voz
modulada. Ele chamava de “puta”, “vadia” e “traidora” a sua primeira esposa, “a mãe dos meus
filhos, uma mulher que por onde passava, essa ninfomaníaca, deixava marca”. Depois de alguns
anos de casamento, Paulo começou escutar fofocas sobre suas traições, mas ele não queria
acreditar. Teve um momento em que os boatos eram muito frequentes e provenientes de
diversas fontes. Ela era vendedora de produtos cosméticos da Natura, razão pela qual ficava
muito tempo fora de casa. Ele suspeitava das suas repetidas saídas, nas quais “ela aproveitava
para pegar os caras”, e começou a segui-la. De maneira tranquila, ele disse que teve “vários
episódios de violência”, sendo ele o perpetrador. “Ela saiu da casa de um cara com o cabelo
molhado”, nesse momento ele comprovou a traição, voltou para casa, pegou sua arma,
ameaçou-a e “dei uma surra nela”. “Ela merecia os insultos e os golpes, mas foi Deus que
interveio para não fazer maior essa guerra”, afirmava Paulo sem remorso.
Thor passava as contas da sua japamala e respirava lentamente ao escutar essas palavras.
Eliana olhava-o de maneira séria. Paulo assegurava que tudo era premeditado por parte da ex166
mulher, porque ele tinha bons emprego e salário. A única coisa que ela queria era uma pensão,
chegando a ficar com 30% de tudo o que ele possuía, além da guarda das duas crianças. Nos
últimos seis anos, seus filhos passaram a morar com ele em Copacabana e ele lhes lembrava
que se alguém os chamasse de “filhos da puta”, eles tinham que “abaixar a cabeça porque era
verdade”. Fabrício sorriu de maneira cumplice.
De volta no Rio de Janeiro, Paulo frequentou um centro espírita, no qual teve
“experiências transcendentais”. Sua mãe havia morrido uns anos antes, mas ele ainda sentia “o
cheiro de amor e seu espírito” no apartamento onde fora criado. “Muito amor senti por um
tempo”, ele comentava em tom baixo e com a voz entrecortada. Sua mãe era “dura, mas
carinhosa”, seu pai era um “homem generoso”. De repente, Paulo parou de sentir sua mãe em
casa. Ele retornou ao centro espírita, fazendo contato com ela por meio de uma médium. Sua
mãe queria que ele “se evangelizasse”, processo no qual ainda ele estava. Uns anos mais tarde,
uma ex-empregada doméstica, sua “mãe preta de alma branca”, psicografou uma carta da sua
mãe, na qual ela dizia que finalmente estava sendo resgatada, só que ela não queria subir para
o céu, porque queria cuidar mais do seu filho. Paulo se sentia “protegido”. A partir desse
momento, ele começou visitá-la no cemitério de maneira frequente. Uns meses mais tarde, no
túmulo, escutou-a pela última vez: “pelo amor de Deus, não volta mais aqui!”.
No fim dos anos 1990, Paulo conheceu a mulher da qual estava se separando, uma
médica 10 anos mais nova do que ele, “culta, inteligente, requintada e doce”, mãe de dois filhos
e moradora no mesmo bairro. “Eu fiquei encantado”, comentava Paulo, com um leve sorriso no
rosto. Eles namoraram por uns anos e depois foram viver juntos, mas nunca se casaram
formalmente, o que ele sempre “desejou”, mas ela “evitou”. No início do relacionamento,
quando sabia que ia ter alguma discussão, ele preferia “sair e evitar o desentendimento”. Porém,
em 2004, Paulo já a achava “muito egoísta”. Em uma ocasião, ela não quis cuidar do seu
cachorro, que o havia acompanhado “fielmente” desde Campo Grande. Ele sentiu “raiva, mas
eu a amava”. Paulo queria que fosse mais atenciosa, mas ela o acusava de querer só uma
empregada. Uns meses depois começaram os ciúmes. Por ocasião de um casamento, um colega
da esposa “tentou beijá-la [e] eu fiquei louco e destruí o carro daquele pateta [...] Isso me custou
R$ 5.000”, comentou Paulo, rindo. Para ele, “estando em família”, ela não podia conversar com
outros homens. Mas “ela era muito liberada”. Pouco tempo depois, ele começou a tomar
conhecimento de boatos sobre a sua infidelidade.
Após uma curta separação em 2010, período em que ele teve um relacionamento “com
uma francesa espetacular”, o casal tentou recompor a família. Porém, Paulo ainda suspeitava
da indifelidade, o que o deixava “inseguro”. Ele não aguentava vê-la sair com colegas e não
167
gostava das suas frequentes viagens de trabalho: “ela me humilhou na Europa, quando
supostamente iria para um congresso na Alemanha. Ela estava me traindo com um vizinho e
foi viajar com ele”. Resignado, Paulo disse que “o castigo foi merecido”, porque ela não gostara
do affair com a francesa. Quando sua companheira voltou da Alemanha, ele propôs fazer uma
cerimónia de casamento, “com a esperança de melhorar a relação”, mas foi rejeitado. “Eu nunca
te traí”, parafraseava as palavras dela, porém Paulo ainda estava “prevenido e desconfiado” em
função do seu primeiro relacionamento. Ele escreveu vários e-mails para ela, manifestando seu
“desconforto na relação”, “mas ela não se defendia”. Esta atitude confirmava sua traição, além
de fazê-lo se sentir “desprezado”.
Naquela época, Paulo já não tinha mais trabalho e o dinheiro estava acabando. “Como
acha que eu me sinto?”, ele perguntava como se estivesse representando um momento com ela.
“Com a autoestima baixa”, ele mesmo respondeu. Ela era uma médica bem-sucedida,
independente e professora universitária e “eu era só um capenga”. Ele quis “tirar satisfação”
com o amante, mas “perdi a batalha”, porque já era velho. Ela não queria morar mais com Paulo
e ele teve que sair do apartamento dela para voltar a morar no lar materno. Mas diferentemente
dos anos anteriores, ele já não sentia o cheiro de amor de sua mãe.
“Somos muito diferentes”, ela lhe dizia, e em 2011 ela pediu o divórcio. “Eu fiquei
louco”. Paulo estava “desesperado, impotente e não sabia o que fazer nem qual caminho tomar”.
Em voz baixa, ele disse que tinha armas e que iria matá-la. Depois, daria um tiro na cabeça.
Thor, os estagiários, Pedro e Fabrício escutavam atentamente. Foi então que ele procurou ajuda.
Primeiro consultou o tarô, depois um antigo psiquiatra que o tratou na adolescência quando seu
pai o internou em uma clínica por ser maconheiro. Como o psiquiatra havia morrido uns meses
antes, foi procurar um psicólogo, de quem não gostou porque não o aconselhava como fazia
sua mãe. Paulo achou-o inexperiente. Finalmente, terminou no instituto.
Thor interrompeu-o e perguntou como ele estava se sentindo nos últimos dias. “Meu
sentimento hoje, além da humilhação que ela fez, é de estar machucado e diminuído”,
respondeu Paulo. O facilitador perguntou o que ele podia fazer para se sentir melhor. Paulo
fitou os olhos de Thor e resignado respondeu: “deixar para trás”. Depois de uma breve pausa,
quando respirou, adicionou, agora um pouco mais exaltado: “ela pode trepar com qualquer um!
Mas com meu vizinho?”. Paulo achava isso inadmissível. Thor voltou a perguntar, “e agora,
como está se sentindo?”. Paulo respirou por uns instantes e disse que ainda estava com uma
“pulga atrás da orelha”, mas que estava ali, no grupo, para pedir ajuda. “No pensamento só
ouço a palavra traição”, dizia ele com ressentimento, e afirmava que não queria ser
“protagonista de um caso de violência doméstica”. Thor assentia com a cabeça. Paulo desejava
168
“equilíbrio para encarar de maneira diferente a vida, porque minha vida não é mole, não consigo
trabalhar”. Thor parabenizou-o por “compartilhar seus sentimentos com o grupo” e perguntou
pelo estado de saúde, pelo sono e o apetite. O sono de Paulo não era reparador: “do mesmo jeito
que durmo de cabeça cheia, acordo de cabeça cheia”. Por esta razão ele procurou outro
psiquiatra porque
eu sou maconheiro desde jovem, mas só que a maconha é meu remédio de
cabeça, só que agora não faz mais efeito, mas não é o que eu quero, eu quero
ter um sono normal. Mas só fumo para dormir, não para outras coisas, porque
dá paranoia, preguiça, pânico de sair na rua.
Todo mundo escutava com atenção. “Porra! Gastei uma hora contando minha história”.
Thor, de maneira calma, disse que todos esperavam que contasse sua história e que para isso
era o grupo. Chegou o intervalo e saímos para tomar um café.
Assim que todo mundo voltou à sala, Fabrício se apresentou. Ele veio por recomendação
de uma psicóloga da vara de família, para “tratar os problemas da separação”, e sua participação
no grupo não tinha relação com seu processo judicial. Fabrício estava separado há nove anos,
mas recentemente houve um “cenário de suposta violência criado por minha ex-mulher, que
desestabilizou minha família por completo”. As filhas de Fabrício acreditavam na sua versão
dos fatos, não obstante no juizado “só a palavra da minha ex-esposa ter sido escutada”. Era uma
narrativa similar à dos homens processados pela Lei Maria da Penha. Thor perguntou por que
procurou o instituto. Fabrício estava então “redirecionando” sua vida. Ele teve que vender seu
apartamento da Barra da Tijuca para repassar dinheiro para sua ex-esposa e foi morar no seu
escritório na Urca, levando “uma vida mais limitada”. Suas quatro filhas, de 17, 15, 13 e 10
anos, moravam com a mãe no Canadá há já alguns anos, quando ela o “abandonou”, começando
um novo relacionamento com outro brasileiro, que também terminou, quando então ela interpôs
a primeira demanda de alimentos em um juizado no Rio de Janeiro. “Cada vez que ela pode,
coloca mais uma demanda na vara de família”, afirmava Fabrício de maneira irônica. Na última,
ela estava exigindo uma cota alimentar de um mês de 2009 que, com o reajuste de juros, somava
pouco mais de R$ 20.000.
Ele estava ofendido porque “eu sempre fui um pai amoroso e responsável, eu nunca
deixei minhas filhas sem suporte”. O problema para Fabrício era que ela queria “sugar todo o
meu dinheiro”. Thor perguntou sobre o acontecido quanto ao episódio de violência contra a exesposa, ele queria saber qual era a violência que Fabrício havia cometido. Olhando direto nos
olhos de Thor e dando ênfase a cada sílaba para mostrar a obviedade das suas palavras, Fabrício
169
respondeu: “eu não cometi violência alguma, Thor”, afirmando que ela inventava histórias
sobre ele. Fabrício não gostava do seu nome circulando em fofocas, e ficou “machucado, tão
sensível e decepcionado” pelo fato de depreciarem sua imagem como pai, tendo reclamado
diante da juíza, “mas como ela é mulher, não ajuda. Ela não é imparcial”.
Thor não se aprofundou no caso de Fabrício e anunciou que para esse dia deveriam fazer
o “acordo de convivência saudável”, para definir as regras de funcionamento do grupo até o
último encontro. Ele enfatizou que o acordo pressupunha “uma relação o mais horizontal
possível” entre os participantes do grupo, incluídos os facilitadores. Para Paulo, era necessário
o “sigilo”, pois no grupo eles iam “exteriorizar argumentos íntimos”. Ele demandou “conselhos
profissionais” de Thor e não queria “ser humilhado” diante dos outros. Fabrício concordou,
complementando que ali estavam comentando “momentos íntimos da vida e essas são verdades
que não se falam com ninguém, nem com os amigos, nem com a mãe, nem com o pai”. Thor
concordou e disse que podiam colocar isso no acordo como “confidencialidade”. Todos
aceitaram. Paulo argumentou que o “respeito” era fundamental porque era a primeira vez que
ele fazia “terapia de grupo” e não estava acostumado a que um estranho dissesse o que devia
ou não fazer. Thor respondeu que todos os grupos eram heterogêneos, em função do que “não
é possível evitar posições diferenciadas”. Por isso, era importante “acolher a fala do outro e
entender sua posição”, enfatizando que “a disposição de compartilhar é necessária”. Thor,
sorridente, convidou-os a “falar daquilo que nunca se fala por medo ou censura” e assegurou
que dentro da instituição ninguém iria julgá-los.
Fabrício agradeceu. Para ele, esse não era o momento de ficar calado, ele tinha o
“compromisso de abertura e transição”. Retomando as palavras de Paulo sobre a humilhação,
ele solicitou que no grupo houvesse “solidariedade na dor”, porque sofria “com muita tristeza
e angústia”. Fabrício se sentia sozinho e não estava dando conta da sua “frustração”; ele queria
ficar “mais leve” e “se equilibrar” para melhorar o relacionamento com suas filhas. Carlos
afirmou que o fato de ele estar falando isso já era “o primeiro passo para mudar, porque
usualmente o homem não se abre e não é espontâneo”.
O acordo de convivência não terminou de ser elaborado, mas Thor e os estagiários
levariam uma proposta para o encontro seguinte. Fabricio pegou o capacete da sua Harley
Davidson, colocou a jaqueta de couro e se despediu de cada um na sala, apertando de maneira
forte a mão. Carlos e Paulo saíram juntos conversando. Eliana estava “horrorizada” com a
história de Paulo, considerando-o um “machista” que devia “considerar o desejo de sua esposa”.
Carlos o percebia como um “paranoico” e, “quando as pessoas tinham problemas internos”,
disse ele, a maconha sempre produzia esse estado. Para Thor, era importante deixar que eles
170
falassem para que não terminassem “cometendo uma locura”. Os facilitadores estavam
contentes porque o grupo “começou bem”: esses homens fizeram “catarse” e estavam
“mobilizados”.
Na reunião de intervisão, Carlos destacou que o “nível intelectual” dos participantes era
“mais alto”, o que lhes permitia que fizessem uma “autoanálise”. Mas isto não implicava que
eles não fossem “violentos”. Lembrando alguns dos comentários de Paulo e de Fabrício, Carlos
considerava que eles tinham que fazer uma “revisão da ideia de ser homem” para se
relacionarem com as mulheres “de um modo diferente”. Carlos os achava uns “machistas”,
particularmente Paulo, que era “um cara aleatório e paranoico”. Todos riram.
Thor explicou que os três participantes do grupo estavam “em um momento de crise”.
O papel deles como facilitadores seria o de deixar que eles falassem para que se engajassem na
proposta do grupo, desse modo poderiam “oferecer esperança [e] um lugar de pertencimentode
onde se agarrar”. Como Thor já dissera em ocasiões anteriores, “o caráter do grupo não [era]
terapêutico” e eles não estavam ali para “curar problemas”. Mesmo que Paulo procurasse ajuda,
eles, como facilitadores, estavam ali para fazer com que “esses homens se implicassem com
sua atitude por meio das perguntas reflexivas”. Através da reflexão, eles deveriam fazer com
que “os homens se responsabilizem por os seus atos”. Carlos considerava que em alguma
medida o grupo era terapêutico porque, por meio dessa autoanálise, eles podiam “sair daqui
como outra pessoa falando dos seus sentimentos”. Thor ficou gratificado.
Eliana não acreditava que o grupo pudesse mudar “a violência que sai através das
palavras deles”. Ela duvidava da capacidade de responsabilização dos participantes e
considerava que, nos grupos com homens procedentes da Justiça, “os problemas de gênero eram
mais arraigados [e] problematizar fica mais fácil”. Parecia que estas questões no novo grupo
não eram “relevantes” porque a questão não era o “conflito”. Para Thor, a “questão de gênero”
também estava presente nesse grupo porque para
falar de si, eles têm que falar da sua socialização como homens e das suas
relações com as mulheres [...] esta é uma questão tanto para homens das
favelas quanto para os da Zona Sul, então é uma questão para os homens de
todas as classes sociais, é um questão típica de gênero.
Thor considerava que o fato de cada homem ser educado de uma maneira diferente
permitia “deslocar o olhar”, mas o gênero sempre estava presente.
171
3.9 Eu não fui criado para ser vítima não
Na sexta-feira seguinte, só Fabrício chegou para o encontro. Paulo não acordara bem
naquela manhã e Pedro estava no médico, preparando sua cirurgia de redução de estômago.
Carlos estava preocupado porque o investimento para conformar o grupo era alto e não sabia
se era possível fazer um encontro com uma pessoa somente. A programação ficaria atrasada,
porque não podiam trabalhar o acordo de convivência. Citando o Talmud, mas em tom de
brincadeira, Thor respondeu que “quando se salva uma alma, você está salvando o mundo
todo”. “Sei”, respondeu Carlos de maneira irônica. Depois, mais sério, Thor disse que eles
também faziam parte do grupo e que, mesmo com uma pessoa só, eles podiam treinar.
Já na sala, após uns minutos respirando em silêncio, meditação guiada por Carlos, Thor
perguntou para Fabrício como fora sua semana. “O que faz uma pessoa da sua geração quando
reage a uma violência moral?”, respondeu ele com voz calma, sem gritar nem se mostrar
furioso, parecendo resignado. Dois dias antes, Fabricio havia recebido um mandado de prisão
pelo processo de pensão que sua ex-esposa havia colocado por um mês não pago uns anos atrás.
Mostrando o documento e os recibos do banco, que demonstravam todos os depósitos de
dinheiro na conta bancária da sua ex-esposa, Fabrício assegurava que ele nunca deixara de pagar
e se perguntava qual era a razão para ela querê-lo na cadeia, “que tipo de direito” ela tinha sobre
ele e sobre suas filhas para que o Judiciário só a beneficiasse, mas sobretudo para “sujar meu
nome, minha honra”. “Essa vagabunda, essa mau caráter!” mencionava Fabrício de maneira
clara, “como você consegue ter sanidade com uma pessoa dessa? Tranquilidade é tudo o que
não tenho, bicho!”.
Como com outros homens que conheci no juizado de Niterói e no primeiro grupo dentro
do instituto, ele opôs “o mau caráter” da mulher às suas próprias qualidades morais. Fabrício
narrou que começou trabalhar a partir dos 13 anos e que nunca teve dívidas com ninguém:
“cada real eu ganhei de maneira honesta, bicho!”. Só uma pessoa que “premeditou tudo com
antecedência” seria capaz de “fazer tanto mal a um pai de família exemplar”, que por 21 anos
contribuiu com a manutenção da sua família. Mas “tudo tem que ter um limite”, concluiu
Fabrício – a mão dele tremia, apesar de a sua voz continuar modulada.
Carlos ficou “impactado” com a situação de Fabrício, compreendendo que a “raiva” que
ele experimentava era acompanhada de um “desejo de vingança”, razão pela qual ele deveria
“estar atento a como vai expressar essa emoção no futuro”, pois isto poderia trazer
consequências ruins para seu relacionamento com suas filhas. Depois, Carlos convidou Fabrício
para falar mais, de modo tal que colocasse seu “sentimento para fora” e pudesse “analisar tudo
172
friamente”. Carlos também lhe recomendou “manter a calma [e] não perder nem a cabeça, nem
a razão”. “Eu me senti angustiada quando te ouvi”, comentou Eliana, porque “no mundo real e
no jurídico” as situações não eram ideais para as pessoas. Ela compreendia a dificuldade pela
qual ele estava passando e convidou-o a “interromper o ciclo de violência e pensar um outro
caminho”, de modo tal que Fabrício pudesse resolver as dificuldades com sua ex-esposa. Thor
explicou que no instituto eles dois poderiam “estabelecer o diálogo e tirar a justiça do meio”,
explicando que, apesar de o “casal conjugal” não existir mais, eles dois tinham que “resgatar o
casal parental, porque vocês dois são responsáveis pelas suas filhas”. Para Thor, a “honra” que
Fabrício manifestava tinha a ver com “uma educação segundo a qual os homens têm que reagir”.
Ele propôs para Fabrício “ver outro caminho para transformar a raiva em palavra [porque] você
está tremendo, está com muita raiva!”.
Mas o problema para Fabrício era outro: “eu não consigo reagir, bicho, eu fico quieto e
calado!”. Ele manifestava um dilema em relção ao que ele supostamente deveria fazer como
homem, expressando suas palavras sempre de maneira pausada, olhando para cada um dos
facilitadores e para mim.
Eu não fui criado para ser vítima não. Minha criação é para ser o atacante e
não defensor. Me angustia que ela faça coisa e eu não reaja. O cobarde age
pela sombra, age pela mentira. Quem tem honra, age na luz. Eu tô sofrendo
por dano moral. Essa pessoa mexendo seus títeres, vai me prejudicar o dia a
dia profissional. Que porra é essa? Tô tentando achar uma solução. O
problema é: tem quatro pessoas em formação e essa filha da puta achando que
o errado é certo! Eu tive que me acostumar ir no fórum e toda vez mexe aqui
com angustia ele aponta para o centro do peito, no coração.
Mas eu não vou me colocar no papel de vítima. Vai virar contra mim? Vai
virar uma bola de neve? A forma como fui educado seria para pedir satisfação,
mas eu não posso, eu não sou assim. Se tem alguém querendo me prender, eu
vou ficar inquieto. Ela foi casada comigo 15 anos. Desde esse acontecimento
minha vida profissional foi um lastre mesmo. O que me faz muito mal no
processo ter que descer no nível dela. Comecei engordar. Pego fotos de antes
e começo a chorar. Agora tudo é uma merda. Ela conseguiu me transformar.
Eu vou agir, não vou ficar parado. O que me fez analisar o que vale a pena.
Eu não quero contato com ela, eu não vejo ela nas audiências, para mim ela
morreu.
Fabrício também se descrevia como um “homem responsável”, em oposição a seu pai,
que o abandonara há 20 anos atrás. Sua mãe o aconselhava para esquecer à ex-esposa, como ela
fez com seu pai. “É o melhor para mim”, afirmava Fabricio respirando fundo. Ele queria “matála simbólicamente” de alguma forma porque não aguentava mais viver essa situação. Fabrício
estava lendo o terceiro livro de Getúlio de Lira Neto (Getúlio 3 1945-1954. Da volta pela
173
consagração popular ao suicídio), e se comparando com o ex presidente, disse que não queria
ter essa “mentalidade covarde”, que não o deixava reagir. “Me sinto impotente, não consigo
resolver tudo sozinho”, por isso procurou à instituição. “Tem quatro sendo criadas com o mal
e isso me preocupa!” e tudo o que ele fazia no juizado era “com muito cuidado, para não afetar
minhas filhas”, afirmava Fabrício. Nesse momento ele começou chorar. Fabrício queria seu
antigo lar de volta no qual tinha “uma família estruturada”e a presença das suas filhas. Ele não
queria ser amado porque “estou pagando [dinheiro]”, mas porque “o cara é foda!”, disse
Fabrício se referendo a si mesmo.
Thor entendeu que ele devia “reagir” e o convidou para continuar falando no seguinte
encontro. Os facilitadores estavam cansados. Eu também estava, após várias semanas
acompanhando de maneira simultânea vários grupos e recebendo toda essa “descarga
emocional”, que me deixava muitas vezes com “tédio” e que pretendia “entender” com Aline e
Thor e posteriormente “elaborar” nas minhas sessões de analise. Todo mundo saiu em silêncio
da sala, se despedindo cortesmente. De caminho para o metrô, Carlos me comentava de maneira
irônica que “classe média sofre, né?” e não entendia o “mimimí” de Fabrício, que “[estava]
acostumado a ter tudo na vida”. Eliana era mais compreensiva da situação jurídica dele, pois
para ela “muitas mulheres de classe alta, que nunca trabalharam só querem o dinheiro do
marido”, mas suspeitava que Fabrício fosse “a vítima dessa história”.
“O que acharam do relato de Fabrício?”, perguntou Thor para os estagiários no início
da reunião de intervisão da semana seguinte. Para Carlos, Fabrício e Paulo “se sentem fora de
qualquer esquema cidadão, não se veem como os vilãos da história e se vitimizam”. Ele
considerava que não estavam assumindo a responsabilidade das suas violências e se perguntava
também de maneira cáustica, “o que sobrou para o homem de classe média nesse mundo de
cotas?”. Thor contou a história de Michael Kimmel, quando o sociólogo percebeu “seu lugar
neutro, a partir do qual pensam os homens” e reconheceu que “seu rosto no espelho não era
mais do que um ser sem gênero, raça ou classe social”. Thor explicou que “os homens são os
seres historicamente beneficiados”, enquanto “as mulheres estavam historicamente oprimidas”.
Esta era a razão pela qual elas podiam “enxergar o lugar de poder desde longe e desde baixo”.
Os homens não podiam “ver seu próprio foco de poder”. A pertinência do grupo reflexivo
consistia em que os homens pudessem “se deslocar do centro de referência [e] enxergar seu
próprio poder por meio da reflexão sobre as suas relações com as mulheres”. “E se colocando
no lugar delas...”, completou Eliana.
174
3.10 Falar de gênero e ter empatia com a vítima
Umas semanas mais tarde, os facilitadores e os homens por demanda espontânea já
haviam revisado o acordo de convivência e feito o levantamento temático. No dia do quinto
encontro, Pedro e Paulo pareciam ter muita intimidade. Durante a semana, Pedro havia
conversado com sua esposa sobre os encontros e sua futura operação de redução de estômago.
Nesse dia ele estava “muito ansioso” e não deixava de pensar no que aconteceria depois da
cirurgia. Ao contrário dos primeiros encontros, Paulo parecia tranquilo. Ele voltou a frequentar
o centro espírita, onde continuava recebendo “bons conselhos”, o que o deixava “feliz”. Isto se
somava à recente notícia do nascimento do seu primeiro neto. Todo mundo o parabenizou.
Porém, ele advertia, com voz mais grave e seca: “quando as mulheres mudam, deixam de amar
e só têm olhos para outros”, o que não lhe permitia “estar em paz”. Thor animou os três
participantes a continuarem na “trilha da saúde, do cuidado e da consciência do corpo”.
Thor propôs a atividade do “crachá de gênero” para eles comentarem “características de
ser homem e de ser mulher a partir das letras do nome”. Cada um deles formulou alguns
adjetivos que Carlos colocou no quadro branco para todos visualizarem.
Participante34
Fabrício
Pedro
Paulo
Thor
Eliana
Carlos
Homem
Masculinidade
Atitude
Redefinição
Rispidez
Solidão
Responsabilidade
Consciente
Afirmativo
Raivoso
Branco
Razoável
Zoador
Rigidez
Individualidade
Concentração
Valente
Instável
Sensível
Mulher
Maternidade
Atenção (carinho, cuidado)
Redefinição
Carinho
Leveza
Tolerância (Thor concorda)
Amorosa
Usurpadora (ele suspira)
Única (Fabrício e Pedro acham
“legal”)
Raçuda
Rigorosa (Pedro e Fabrício vêm nesses
atributos os da mãe)
Amamentação
Sensibilidade
Sutiã
Sociável
Criteriosa
Independente
34
Devido à mudança dos nomes originais, as letras iniciais para escrever as qualidades por sexo, não correspondem
ao nome dado aqui aos meus interlocutores.
175
Eliana perguntou o que eles estavam “dizendo para si mesmos” quando propuseram
essas palavras. Fabrício disse que a mulher sempre tinha a proteção do Judiciário, ela “sempre
é vista como boa e a vítima”. Pedro considerava que “o individualismo estava rompendo com
as relações humanas” e que as mulheres juridicamente ainda eram o “sexo frágil”. Carlos queria
que os homens estivessem presentes na criação para formarem “outro tipo de homens mais
respeitosos das mulheres”. Eliana lembrou de quando usou o sutiã pela primeira vez como “uma
grande marca de crescer como mulher, de perder a liberdade e sentir vergonha”. Paulo
considerava que “a afirmação de ser homem” radicava na “competição”, e isto era o que os
diferenciava das mulheres.
Ele comparou a “liberdade” com a “erotização”: quando um homem começava a “sentir
desejo sexual”, ele tinha que desenvolver seu “critério de liberdade para escolher”. Mas com as
mudanças nos papéis de homens e mulheres, a liberdade estava criando “desrespeito”: agora as
mulheres estavam se “erotizando demais”. Eliana olhou-o com desprezo, mas permaneceu em
silêncio. Thor comentou que existiam culturas nas quais “as mulheres [tinham] maior liberdade
sexual” e que isto não era uma questão da “natureza”, o fato de elas serem “recatadas”. Pedro
considerava que o homem também estava mudando, mas em um ritmo mais lento, levando uma
desvantagem em relação às mulheres. Para Thor, essas mudanças não significavam
“concorrência entre os sexos”, argumentando que era “própria dos homens a competição”.
Fabrício duvidava que essas mudanças apontassem para uma igualdade efetiva,
implicando um “reequilíbrio de forças”, ou que o mundo estivesse “se masculinizando”, porque
os valores e os direitos para as mulheres eram os de “se equipararem aos homens em tudo”. Ele
narrou que o feminismo visibilizou as mulheres e procurou outorga-lhes direitos que antes não
tinham, só que ele não concordava em criar uma “guerra contra os homens”, negando seu
“direito de serem pais” e de se defenderem no Judiciário. Para Fabrício, as feministas “queriam
chegar ao mesmo nível”, criando as concorrências onde não devia havê-las e, paradoxalmente,
valorizando os “valores masculinos que elas queriam destruir do patriarcado”. Este comentário
tomou de surpresa os facilitadores. “Quando uma mulher está no poder, pode ser mais cruel que
um homem”, afirmava Fabrício. Carlos respondeu que esta percepção se devia ao “machismo
interiorizado” que só permitia que as mulheres ocupassem lugares subordinados.
A colocação não respondia à pergunta de Fabrício, pois, para ele, a questão não era de
ocupar os lugares dos homens, mas da atitude das mulheres, pois, quando chagavam ao poder,
eram tão patriarcais quanto eles. Em outras palavras, os lugares sociais de poder estavam
marcados pelo patriarcado, não eram lugares neutros. Paulo apoiou o argumento de Fabrício:
“antes o homem trabalhava e agora a mulher também. Agora, se a mulher não tem emprego, é
176
uma coitada. Se o homem não tem emprego, é um vilão”. Ele não compreendia muito bem por
que, apesar das mudanças nos papéis de gênero e do fato de os atributos masculinos serem
valorizados pelas mulheres, estas últimas continuavam sendo as vítimas. Pedro, com voz suave,
assegurou que “só o amor” ajuda nessas mudanças, porque com ele era possível “reconhecer o
outro como realmente é”, colocando o “caso bem-sucedido de Simone de Beauvoir com Jean
Paul Sartre”. Thor concordou com a cabeça e finalizou o encontro. Eliana e Carlos estavam
surpresos com a novidade de que eles sabiam do conteúdo do feminismo, além da retórica
“políticamente correta”.
3.11 A última lição: a humanização
Na reunião de intervisão que se seguiu ao encontro, Thor considerou que as
características atribuídas aos homens no exercício do crachá de gênero eram “mais cruéis”.
“Isso é inacreditável”, afirmou Romina, a nova integrante da equipe, com voz grave e muito
segura. Ela coordenaria o curso de formação em facilitação, uma velha amiga de Thor, que
trabalhou como facilitadora no projeto de “Homens, saúde e vida cotidiana”. Romina
considerava que a descrição do acontecido no grupo parecia mais uma “psicoterapia” e que os
facilitadores deveriam evitar que virasse um “muro das lamentações” – ela era uma mulher
direta e aguda, com um estilo “pouco diplomático”, segundo Thor.
“Qual é a importância do grupo?”, perguntava Romina para os estagiários. Eliana e
Carlos ficaram em silêncio por uns instantes, pareciam intimidados. Ela mesma respondeu que
era a “humanização!”, que implicava “trocas entre narrativas [e] a preocupação com os outros
para criar vínculos de cuidado pelo outro”. Para Romina, Pedro, Paulo e Fabrício, a importância
está em “compartilhar”, “acolher” e “elaborar” suas experiências, “dando valor à participação
de cada integrante”, de modo tal que “o grupo se consolide e cresça”. Thor assentia com a
cabeça, acrescentando que esses homens precisavam “se apropriar do espaço e do processo [...]
esse [é] o sentido do grupo”. Carlos perguntou se eles, como facilitadores, não estariam agindo
como “meio jesuítas em doutrinamento”. Thor e Romina se olharam entre si e não responderam
nada. Thor sorriu e pegou sua japamala, Romina olhou pro teto como se a pergunta nunca
houvesse sido feita.
Para Thor, os homens do grupo tinham “uma ideia de família tradicional”, embora
Fabrício fosse “mais progressista” que os outros dois. Romina considerava isto irrelevante. Ela
não estava interessada na “narrativa emergente” no grupo, mas sim na “maneira como eles se
relacionam”. Romina considerava que era mais proveitoso “produzir a confrontação entre os
177
homens” e, para isso, ela sugeria perguntar pelas “práticas familiares” e não pelo “ideal de
família”. Sem polemizar, Thor passou ao planejamento do encontro seguinte, o último do qual
eu participaria. O tema era “alteridade”.
Thor propôs uma atividade na qual eles deveriam se “olhar fixamente”, porque esta era
“uma interfase muito forte”. Depois, a ideia era falar “do encontro com o outro”, que
rapidamente ele definiu como um “encontro entre as diferenças”. Thor considerava que “as
pessoas devem ter muita empatia” para manter essa relação porque do contrário “ficam duas
ilhas e o que tem que formar é um continente”. O trabalho da empatia era para que eles
“entendessem o sentir do outro”. Carlos achava que esta seria uma tarefa fácil, porque “o grupo
já tinha vínculos” e, gostando da atividade, mencionou que os homens tinham que “sair do seu
lugar para facilitar o convívio”, ajudando assim a “sair das relações de autoridade”. Thor
concordou e complementou que esta era uma “alteridade ruim”, e o importante do próximo
encontro seria “trabalhar a empatia para criar uma alteridade igualitária”. Depois de se olharem
entre si, os facilitadores deveriam perguntar como seria esse olhar para as companheiras e
solicitariam descrever o “sentimento” que aflorou quando eles foram “autor”, ou “vítima”, ou
“testemunha” de uma violência.
No início do encontro seguinte, os estagiários estavam conversando sobre o suíço Julien
Blanc, que estava publicando na internet as “técnicas violentas para pegar mulher” 35. Thor e os
estagiários consideravam isto inaceitável, porque ele não ensinava a seduzir as mulheres, mas
sim a estuprá-las. Fabrício considerava que esse “filho da puta não tem filhas” e por isso falava
tanta “besteira”. Thor iniciou atividade, Pedro e Fabrício estavam dispostos a se olhar por uns
instantes. Fabrício começou rir e Pedro disse que não podia olhar diretamente nos olhos. Não
houve muito desenvolvimento da atividade. Thor ressaltou quão “difícil é formar empatia entre
as pessoas”, sendo este um trabalho que precisaria ser praticado todos os dias, especialmente
com as pessoas mais próximas.
Eliana explicou a atividade dos sentimentos e dos três papéis do cenário da violência. O
primeiro a falar foi Pedro, que narrou a situação na qual ele foi “vítima da mãe”, a mesma que
ele comentara durante a entrevista inicial. Como já sabemos, Pedro era uma criança que passava
os dias lendo. Um dia a mãe lhe pediu para trazer os irmãos mais novos que estavam fora da
casa, brincando na rua. Ele se recusou. Como castigo, a mãe pegou os livros e colocou-os dentro
de uma caixa d’água. “Eu senti muita raiva dela ter feito isso com meus livros” e, nesse
No seu perfil na wikipedia, Julien Blanc se apresenta como um “expert na arte da sedução”. Ele foi expulso da
Austrália, do Reino Unido e do Canadá por suas “controvertidas” técnicas, que foram equiparadas a estupro. No
Brasil houve petições para impedir o ingresso no país.
35
178
momento, Pedro começou a chorar. Thor passou um lenço para ele secar seu rosto. Os
estagiários se olhavam entre si, pareciam nervosos. Pedro se perguntava se ele poderia algum
dia “perdoá-la”, mas como ela era “negra e favelada”, ele sabia que ela não considerava isto
como uma “violência”. Uns minutos depois ele falou de quando foi “autor de violência”,
voltando a narrar o episódio no qual gritou com sua esposa em Brasília, comentando como
sentia ainda “muita culpa”.
Thor concordou e afirmou que muitas vezes “as pessoas não sabem que cometem
violências” porque as assumem como “formas naturais de relacionaento”. O facilitador narrou
um episódio em que foi “vítima da agressão do seu pai” por namorar uma mulher que não era
judia. Ele sentiu “medo dos gritos do pai” e “raiva” quando não foi reconhecida sua relação.
Como “autor de violência”, disse que ele havia batido no seu irmão mais novo com uma pelota
de baseball e sentira “culpa”. Como “testemunha”, Thor contou sobre uma briga em função de
um acidente de carro, que qualificou como “irracional”. Já Eliana se considerava “vítima a todo
momento por ser mulher [...] não tem dia que não sinta isso”. Ela estava “cansada” das piadas,
cantadas e dos olhares que a “intimidavam” e expressou seu “medo por ser mulher, por ser
violada, por ser estuprada”. Como “autora”, ela disse que, quando criança, respondeu de
maneira grosseira para seus pais.
Para Thor, as mulheres se sentiam em “risco de permanentemente” porque eram tidas
como “objetos” pelos homens. Estando hospedado em um hotel fora do Rio de Janeiro, ele
utilizou o serviço da sauna, sem saber que era um lugar frequentado por homens gays. Depois
de um momento, ele se sentiu “observado e perseguido”. Thor não gostava da “sensação de
assédio” e naquele momento teve a “clareza” de que assim deviam se sentir as mulheres quando
eram acossadas. Para Eliana, esta era uma sensação diária. Essa experiência fez com que Thor
tivesse mais elementos de compreensão da “violência sexual”, entendendo melhor argumentos
do movimento de mulheres. Carlos perguntou se fosse uma mulher que estivesse olhando, se
ele sentiria a mesma sensação de perseguição. Thor, com calma, disse que não. Fabrício
interrompeu para comentar que ficou “desconfortável” quanto teve uma “experiência de assédio
por parte de uma mulher mais velha”, que lhe ofereceu dinheiro para ter sexo. Eliana apontou
que era “diferente a experiência de acossamento entre homens e mulheres”, porque eles não
tinham o mesmo “grau de vulnerabilidade” que uma mulher. Eles nunca poderiam sentir o
“medo” que elas sentiam no dia a dia. Os homens ficaram em silêncio sem poder responder.
Tive que voltar para a Colômbia quase no fim do processo com os homens de demanda
espontânea. Umas semanas depois, já iniciado o ano de 2015, Thor estava um pouco
preocupado com as metas do seu projeto: poucos homens haviam passado pelos grupos e eles,
179
como facilitadores, não conseguiram que os homens se engajassem à proposta do grupo e se
envolvessem. Para o início desse ano, Thor queria investir seu esforço na formação de novos
facilitadores através do curso que iria ministrar e que Romina coordenaria nesse ano. A ideia
era “reclutar voluntários” para formar mais grupos e, desse modo, atingir a meta do projeto,
processo que narrarei no quinto capítulo.
3.12 Terceira síntese
A participação nesses grupos permitiu ver como elementos teóricos e filosóficos
apresentados no primeiro capítulo, relativos à conformação de uma “sociedade civil” que se
opõe a valores tidos como ditatoriais e autoritários e ao Judiciário como instituição punitiva,
ganham vida através da prática do grupo reflexivo de gênero. Mas eles também dizem respeito
à proposta ética do facilitador, sua postura, que Thor queria transmitir a seus estagiários. Esta
postura implicava adquirir uma “consciência do lugar da fala”, em palavras de Thor, no discurso
e nas relações sociais, vendo desse modo o gênero em si mesmo, comum a todos os homens,
sem importar suas diferneças de classe e localização na cidade. Ver o gênero em si era também
pré-requisito para dimensionar a própria violência. Uma vez feito esse reconhecimento, o
propósito moral seria o afastamento desse lugar para se colocar em um outro, que permitisse o
reconhecimento do sentimento e da singularidade dos outros, estabelecendo assim o parâmetro
de humanidade, necessário para a implicação da própria atitude e da construção de vínculos
igualitários.
Para Thor, bem como para os meus interlocutores consultados no primeiro capítulo,
gênero e violência conformavam uma binômio que explicava de maneira estrutural a lógica das
relações de poder entre os sexos na sociedade nacional vigente. Gênero e violência davam conta
do lugar de subordinação do “outro”, “pessoa” de consideração que devia ser reconhecida por
esses homens, estabelecendo assim a “empatia”. Este era o trabalho de humanização, de
transformação de pessoas através do envolvimento com a própria atitude: de homens em
posição de privilégio que se relacionam com coisas para homens atentos à igualdade que
reconhecem pessoas. A reflexão, o deslocamento, a elaboração, o movimento e o olhar para si
implicavam o questionamento de uma “performance” masculina sempre vinculada à violência
e à revalorização de categorias de parentesco, concebendo um problema na humanização, pois
a conformação da pessoa moral do bom pai é protagonista na queixa de reconhecimento de si
tanto dos homens em situação de violência como dos de demanda espontânea.
180
Esse bom pai era muitas vezes assumido como a antítese do homem igualitário por parte
dos faciltadores, o que escondia a verdadeira subjetividade humana desse indivíduo, oculta sob
o papel social que aos olhos dos facilitadores dava conta do patriarcado. Nos dois processos de
grupos aqui documentados fica evidente uma tensão entre, por um lado, as categorias de gênero
relativas à humanização, universalizáveis e abstratas, as quais são apresentadas como projeto
que tem relação com a noção de dignidade humana, definida pela expressão de emoções e por
direitos consubstanciais e, por outro, pelas categorias da linguagem de parentesco, mães e filhas
particularmente, que se vinculam com esse bom pai das relações sociais concretas dos homens
e que outorgam o reconhecimento social que os dignifica (ou não) como homens. Mães e filhas
eram sintetizadas como boas mulheres, bem como a esposa que ajuda o homem a se superar
diante das vicisitudes da vida diária. Isto não implicava que os homens não pensassem na
mulher em abstrato, que incluía tanto a “gostosa”, o “objeto de desejo sexual” quanto a
demandante, que lograva sintetizar as qualidades ruins dos relacionamentos postos em
consideração pelo Judiciário.
No meio desta tensão entre categorias de gênero podemos compreender, por um lado, a
surpresa e o estranhamento dos facilitadores quando os homens se referiam às suas mães e às
suas filhas e, por outro, a dificuldade de enxergar as demandantes fora das relações de dádiva,
para assumi-las como um outro, contraparte de uma ligação contratual. Também podemos
compreender o desafio dos homens participantes dos grupos em se pensarem como homens
igualitários, quando eles estavam consolidando seu lugar moral como pais, reivindicando sua
participação na criação dos filhos, graças a certas inflexões morais ao longo da trajetória de
vida, produto da comparação com seus pais, amigos e colegas de trabalho (o que lhes permitia
o reconhecimento de ser “o cara”), bem como do vínculo de responsabilidade criado com mães,
esposas e filhas. Enquanto eles falam em serem pais em relação às suas mães, filhas, aos filhos
e às esposas, os facilitadores ouvem a respeito de atos de masculinidade de um homem.
Enquanto os facilitadores propunham a ideia de se conceberem como indivíduos com
humanidade, alguns deles criticam “o individualismo” como causador do rompimento dos
vínculos sociais e da ordem hierárquica, que outorgavam sentido às categorias que conformam
sua individualidade.
Aqui a atribuição do comportamento violento dos homens à cultura era mais explícita
que no juizado de Niteroi. Uma postura engajada com o feminismo e com a sociedade civil por
parte de Thor e seus estagiários requeria estabelecer uma fronteira política do indivíduo em
relação ao social. Para além do indivíduo, essa frontera, contornada pelo corpo, mostra a
violência estrutural e absoluta que potencialmente poderia se manifestar em qualquer situação
181
social, abarcando uma variada gama de relações e sentidos da agressão no contexto da
sociedade nacional e do seu valor fundante, a família. No interior do indivíduo implicava um
olhar para si, para a própria emoção, garantindo assim uma vigilância epistemológica da própria
violência, da sua não modernidade. Estabelecer essa fronteira política viria a ser em estabelecer
as relações, a linguagem do parentesco e as crenças que legitimam a ordem hierárquica que têm
nas ideias de nação e família totalidades no âmbito da cultura e, em alguma medida, da religião.
Estabelecer relações, categorias e sentimentos emergentes no parentesco, que criavam
o lugar moral de ser bom pai e que contornavam a individualidade desses homens, no reino
moralmente questionado da cultura, produzia desconforto e desconcerto em vários homens, não
somente por colocar múltiplos elementos que conformam a dignidade desses homens (que foi
descrita como honra por Fabrício) como objeto de dúvida pelo Judiciário e pelos facilitadores,
mas também por ser oposta à verdade da vítima. Esta verdade era afirmada pelas estagiárias ao
relacionarem, por meio do sentimento de culpa, a violência potencial e de fato que elas
experimentavam sendo mulheres com o sofrimento vivido por mães ou filhas na trajetória
individual de cada um dos participantes. A construção desse argumento, cuja base são as
emoções da vítima, era dificil de contestar e implicava um silenciamento das justificativas sobre
a violência que esses homens levavam como argumento ao Judiciário e ao grupo reflexivo. O
silenciamento e a sensação de desconforto que determinavam posicionar-se diante das
categorias de humanidade da mulher e do homem igualitário contrastavam com as de
reconhecimento de ser o bom pai e o cara, que se manifestava não só discursivamente, mas
também no tom de voz, nas cadências do olhar e na expressão das narrativas sobre as relações
que eles estabeleciam com seus familiares – e que é de dificil reprodução através de um texto
escrito, como esta tese.
Não era intenção de Thor nem da metodologia que ele aplicava o fato de culpabilizar,
assumindo que o seu papel era o de convidar à reflexão, porém, parecia ser o caminho para a
implicação da própria conduta e, posteriormente, para a anelada responsabilização pelos
próprios atos. Contudo, poucos tiveram a “abertura”, espécie de epifania moral esperada por
Thor e seus estagiários, entre outras razões, porque muitas das relações qualificadas como
violentas não o eram para os participantes dos grupos. Eles distinguiam graus de violência,
sendo alguns merecedores de judicialização, além de atitudes e comportamentos das suas
parceiras, como colocar para circular o nome deles em fofocas, humilhando-os, ou agressões
físicas de fato. Apesar de Thor reconhecer uma dinâmica na qual homens e mulheres alternavam
o lugar do agressor na relação sentimental, isto entrava em conflito com a proposta de
182
responzabilização pela própria conduta, a qual deveria responder ao imperativo político da não
violência contra a mulher.
Como o trabalho feito por Aline em Niterói, o foco na revisão de si através do
sentimento teve efeito. Mais do que a racionalização da marca do gênero na constituição de
uma masculinidade igualitária nesses homens, as formas semióticas dos facilitadores para
permitir a expressão de uma narrativa de si através de categorias e gestos qualificados como
emocionais permitia a sensação de ter descarregado, liberado ou colocado para fora coisas que
muitos dos participantes não podiam ou imaginavam falar no dia a dia. O objetivo era criar a
palavra para falar, elaborar e permitir o anelado movimento no discurso que esperavam os
facilitadores. O que parece interessante é que não era uma simples junção de razão e emoção,
mas a criação de conhecimento a partir do registro emocional, que passava pela sensação no
corpo. Esse conhecimento é a base para a agência na proposta ética de Thor. O sujeito implicado
é um que sente, expondo seu self, sendo esta uma forma de afirmação política amplamnete
valorizada pelos facilitadores, mais do que a do sujeito que racionaliza ou argumenta. Porém,
não era qualquer tipo de afirmação emocional que era valorizada. Os sentimentos preferenciais
eram os relativos à vítima, negando qualquer tipo de ressentimento produto da quebra da
reciprocidade das pessoas na família, esta última tida como lócus de criação de subjetividades
tanto para os facilitadores quanto para os homens acusados.
Disso é importante, por um lado, a vigilância epiestemológica já anunciada como meio
de contornar uma modernidade consequente com os paradigmas filosóficos que informam a
noção de dignidade humana; por outro lado, a noção de “sensação de si”, que dá conta de uma
individualidade que se reflete no reconheciemnto social das relações estabelecidas por esses
homens e que está relacionada ao parentesco e ao mundo do trabalho. Esta sensação é
fundamental para pensar a postura ética dos homens nos grupos reflexivos e também as
possibilidades da implicação de si para mudar de um sistema moral que valoriza o
reconhecimento por terceiros para outro que assume o poder como qualidade consubstancial do
indivíduo.
183
Figura 21. Thor sendo entrevistado por um documentarista.
184
Capítulo 4
Considerações sobre a relação entre um nós-igualitário e um outromarcado-pelo-gênero
O zittre nicht, mein lieber Sohn,
du bist unschuldig, weise, fromm;
Ein Jüngling so wie du, vermag am besten,
dies tiefbetrübte Mutterherz zu trösten.
Zum Leiden bin ich auserkoren,
denn meine Tochter fehlet mir.
Durch sie ging all mein Glück verloren,
ein Bösewicht, ein Bösewicht entfloh mit ihr.
Noch seh' ich ihr Zittern
mit bangem Erschüttern,
ihr ängstliches Beben,
ihr schüchternes Streben.
Ich mußte sie mir rauben sehen.
⹂Ach helft! Ach helft!“ – war alles was sie sprach.
Allein vergebens war ihr Flehen,
denn meine Hilfe war zu schwach.
Du, du, du wirst sie zu befreien gehen,
du wirst der Tochter Retter sein!
Ja! du wirst der Tochter Retter sein.
Und werd' ich dich als Sieger sehen,
so sei sie dann auf ewig dein.
Ária da Rainha da Noite, Ato 1, cena 8
da ópera Die Zauberflöte.36
O ano de 2014 foi dedicado à documentação dos três grupos reflexivos apresentados
nos dois últimos capítulos, através dos quais conheci melhor tanto a proposta da facilitação de
grupos quanto a forma de os homens acusados do delito de violência contra a mulher se
posicionarem diante de tal classificação. Nesse ano também circulei por diversos espaços
acadêmicos, burocráticos e de ativismo para entender de forma mais clara a rotina de Aline e
Thor, e acompanhei o dia a dia de alguns homens fora do juizado, principalmente o de Herbert.
No ano seguinte, 2015, dediquei minha atenção ao desenvolvimento do projeto do Instituto de
Práticas Sistêmicas, integrando-me formalmente como assistente de Thor. Junto com ele, ajudei
na implantação de uma série de formações para profissionais interessados na facilitação de
grupos e, apesar da minha intenção inicial de não atuar como facilitador, terminei exercendo
36
Treme não, querido filho, / Eres inocente, sábio e piedoso. / Um jovem como tu, es quem melhor pode consolar,
/ este coração de mãe tão profundamente afligido. / Sofrer é meu destino, / pois minha filha não está comigo. /
Com ela, toda minha alegria perdi, / Um malvado, um malvado a tirou de mim. / Ainda a vejo tremer / com medo
estremecida, / seu temeroso tremor, / seus tímidos esforços. / Tive que ver como a roubaram de mim. / “Ah, ajuda!
Ah, ajuda! ” – Foi tudo o que ela disse. / Mas em vão foi sua súplica, / pois minha ajuda foi muito débil. / Tu irás
libertá-la, / Tu serás o salvador da minha filha! / Sim! Tu serás o salvador da minha filha. / E se te vejo voltar
vitorioso, / tua será para sempre.
A Rainha da Noite é antagonista de Sorastro na ópera A flauta mágica.
185
este papel no juizado de Niterói, após um convênio celebrado entre o Instituto e o Judiciário.
Sendo facilitador, conheci o Barrigudo, um gari através do qual entrei em contato com uma
comunidade de Niterói. As histórias narradas por Herbert e Barrigudo me permitiram
compreender melhor as “cenas” e as “queixas” narradas por eles dentro e fora do juizado.
Antes de apresentar as formações para futuros facilitadores e alguns aspetos das vidas
de Barrigudo e Herbert, dedico este capítulo a responder ao pedido de vários dos meus
interlocutores no campo, bem como a colegas e professores, acerca da minha posição sobre a
implantação dos grupos no marco do estabelecimento da Lei Maria da Penha. A partir do
contraste entre a afirmação de injustiça dos homens e o propósito transformador dos agentes da
lei, apresento algumas considerações sobre judicialização das relações de proximidade, a
ansiedade epistêmica do agente da lei para o controle das relações de parentesco, a prática de
acusação de “vitimização” por parte dos agentes da lei e a apercepção sociológica em torno da
ligação entre violência e masculinidade. Estas considerações buscam caracterizar melhor a
maneira como é vivida e exercida a modernidade pelos facilitadores e os homens acusados de
violência.
4.1 A expressão de injustiça
Uma das primeiras situações que me chamaram a atenção durante a implantação dos
grupos foi a manifestação de “ressentimento” contra a demandante, bem como as expressões
de indignação e ressentimento (e às vezes humilhação) de muitos desses homens por serem
acusados e enquadrados na categoria de criminosos, equivalente a “bandido” e “estuprador”,
aqueles que seriam os verdadeiros merecedores da lei. Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2009)
considera que, no Brasil, as expressões de ausência de reconhecimento de demandantes no
Judiciário dão conta de um “insulto moral” relativo à desvalorização ou à negação da identidade
do demandante e mostram uma tensão entre duas concepções de igualdade: uma que a concebe
como tratamento uniforme, segundo preceitos da cidadania liberal, e a outra como tratamento
diferenciado, relativa à aplicação de regras particularizadoras no espaço público. Para o autor,
as demandas de reconhecimento, como um aspecto das causas judiciais, são de difícil
administração pelas instituições de justiça onde quer que estas estejam ligadas ao Estado e ao
direito positivo (incluindo aí a Common Law). Já o tratamento diferenciado no Brasil é
concebido como uma forma de tratamento igualitário no plano da justiça, seguindo a máxima
de Rui Barbosa: “a regra da igualdade é quinhoar desigualmente os desiguais na medida em
que se desigualam”.
186
Para o autor, a tensão entre as duas concepções de igualdade está presente na esfera
pública, o que agrava o problema provocado pela desarticulação entre esta e o espaço público.
Isto permite a existência simultânea dos princípios de isonomia jurídica e tratamento desigual.
Também dá conta de duas éticas simultâneas, uma com “E” maiúsculo, de caráter universalista,
relativa à cidadania moderna, e várias outras com “e” minúsculo, de caráter particularizador e
vinculadas a uma visão hierárquica de sociedade. Diante deste dilema da cidadania no Brasil,
Cardoso de Oliveira recomenda a reconstituição dos conflitos levados ao Judiciário para melhor
compreendermos as concepções de direito que orientam as partes e as ligações entre mundo
cívico, cidadania e igualdade. Nas próximas páginas quero contribuir para essa complexa
relação a partir dos dados relatados sobre os grupos reflexivos de gênero dos capítulos
anteriores.
Diferentemente das oficinas que facilitei em Bogotá, mencionadas no primeiro capítulo,
os homens dos grupos reflexivos de gênero não chegavam ali de maneira dócil, quase passiva,
esperando uma troca em função da sua presença por benefícios sociais de algum programa
governamental. Os homens de Niterói e do Rio de Janeiro reclamavam justiça. Mas eles não
eram os denunciados? Por que negavam tão enfaticamente ter cometido um crime e uma
violência? A princípio, eles eram “pais” responsáveis, “esposos” dedicados e “trabalhadores”,
que alegavam terem sido ofendidos, traídos, enganados, insultados, diminuídos ou humilhados
pela “mãe” dos seus filhos. Na proposta do grupo, “a mulher” havia sofrido tipos de violência
físicas e emocionais, “as que deixam marca na alma”. O trabalho de Aline e Thor era no sentido
de que eles não só fossem empáticos com a “dor” da mulher, mas também assumissem a
“vítima” como figura merecedora de reconhecimento, respeito e consideração. A mulher não
era a vítima para esses homens, mas sim a arquiteta de situações nas quais eles eram vistos
como seres cruéis e desconsiderados quanto ao seu desejo.
Esses homens tinham uma justificativa para o porquê de terem chegado a bater nelas ou
a xingá-las. Essa narrativa era desconsiderada no processo jurídico e só escutada nos
atendimentos da equipe psicossocial do juizado, nas entrevistas anteriores ao início do grupo
no Instituto de Práticas Sistêmicas e no desenvolvimento dos grupos reflexivos. Embora esses
homens expressassem sua “razão” para agredir, eles não reconheciam serem violentos com elas.
Isto parecia um paradoxo para os facilitadores, outros agentes da Lei Maria da Penha e
pesquisadores interessados na efetivação da normatividade. Estes três últimos agentes
enquadravam a justificativa como um descontrole emocional ou a expressão de uma
masculinidade hegemônica, ambas configuradas na cultura patriarcal. Apesar de
argumentarem, as razões desses homens não convenciam e eram qualificadas como uma
187
tentativa de “vitimização” (PAZO, 2013; LEÓN-AMAYA, 2015; BILARD, 2016; LOPES,
2016), quer dizer, de não reconhecerem a responsabilidade dos seus atos e de ocuparem o lugar
legítimo da denunciante no Judiciário.
Para os facilitadores, “assumir a responsabilidade do ato de violência” implicava a
identificação como agressor por parte dos participantes do grupo. Para isso, os acusados deviam
se submeter ao processo reflexivo, no qual revisavam seu proceder, dando relevância às
emoções em experiências e interações sociais específicas. Por meio dessa retrospectiva, o
facilitador destacava que eles aprendiam a “ser homens” na criação e na relação com outros
homens, ocupando assim um lugar de poder privilegiado na relação com as mulheres. Para
Aline e Thor, era importante destacar que o poder que eles possuíam e exerciam era diferente
em intensidade e legitimidade ao das mulheres. As emoções ruins e um uso inadequado do
poder configuravam a “situação de violência”, que os facilitadores procuravam fazer com que
eles as contemplassem para reconhecerem seu lugar como agressores. Uma vez reconhecido o
papel de agressor, os acusados deveriam assumir o compromisso de mudança pessoal, permitir
a expressão de sentimentos próprios de uma masculinidade igualitária e privilegiar o valor da
igualdade substantiva entre indivíduos, o que permitiria ver a mulher com dignidade humana
nas suas esposas, mães e filhas. Isto era sinal de implicação de si.
O trabalho de Aline em Niterói enfatizava o reconhecimento de “emoções ruins”, como
a raiva, enxergando-a como uma potência que podia se transformar em “palavra e cuidado
mútuo”. Esse processo era reconhecido como a “elaboração”, necessário para a posição
reflexiva que ela esperava que os homens tivessem no final do grupo. Dado o valor outorgado
à família como núcleo de convivência do casal, segundo preceitos ancorados no domínio da
religião, particularmente por parte de Josué, Aline relacionou seu trabalho de responsabilização
com a crítica às “verdades dos dogmas”. Para ela, a igualdade e o respeito entre homens e
mulheres eram a “verdade eterna” que deslegitimava as “construções culturais”, que diziam
respeito à subordinação e ao desconhecimento da voz e da posição da mulher no cristianismo,
no judaísmo e no islamismo. O papel da cultura, nesse sentido, tinha um valor negativo, embora
Aline trouxesse elementos quase naturalistas de sociedades indígenas brasileiras, nos quais a
igualdade e a “troca de papéis” entre homens e mulheres permitiam relações mais equânimes.
O bom selvagem era um contraponto ético que contrastava com o estágio bárbaro que esses
homens representavam para o Judiciário.
A abordagem do domínio religioso na vida em família foi tema de debate
particularmente com Josué, o único condenado do grupo de Niterói, que havia passado pela
conversão do catolicismo ao judaísmo no meio do processo jurídico. Para ele, a religião lhe
188
atribuira um chão firme para seguir o sendeiro da sua vida, já que por vários anos parecera
caminhar no instável terreno da institucionalidade da Lei Maria da Penha. A religião não era
um domínio isolável da sua vida, mas o fundamento no qual se pensar e conceber seu mundo.
Para Aline também. Ela não desconhecia essa dimensão de si e dos homens com os quais
trabalhava, mas a sua verdade estava mais próxima da doutrina do “amor entre iguais” e não da
subordinação ao “poder de Deus”. Um debate entre socialidade igualitária e hierárquica
emergiu desse grupo, dando a possibilidade, por um lado, de discutir com Josué o uso
inadequado do poder ou da força como violência e, de outro, de os homens criticarem a noção
de “individualismo” como causadora da queda de um mundo onde os papéis e as relações
estavam definidos.
Figura 22 Definição da violência de Aline
Aline ganhou autoridade diante dos participantes na medida em que escutava e
compreendia as narrativas deles, o que não legitimava necessariamente o “ponto de vista” de
cada um deles. “Dona Aline” tinha uma postura acolhedora e pouco confrontadora. Ela
integrava as categorias usadas pelos homens nas suas descrições, sendo didática nas suas
189
explicações. Além disso, conseguiu que alguns dos participantes do seu grupo entendessem seu
“ponto de vista como mulher”, que incluía as identidades como psicóloga, religiosa e moderna.
Isto não implicava que esses homens adotassem a perspectiva da facilitadora. No final do
processo grupal, era notável a expressão de gratificacão e a calma dos participantes.
O primeiro grupo desenvolvido no Instituto de Práticas Sistêmicas foi menos
afortunado. Thor e os estagiários tinham uma postura próxima do ativismo feminista, apostando
na reflexão em cima da categoria de gênero, para que os participantes desse grupo
compreendessem seu “lugar de privilégio” como homens na sociedade, que lhes autorizava o
uso da violência. Para a equipe de facilitadores, a “violência” tinha a ver sempre com o
“gênero”, em função do qual a masculinidade desses homens devia ser falada, questionada e
colocada em perspectiva. Milena, a estagiária de Serviço Social, adotou uma postura mais
confrontadora para mostrar seu “lugar de mulher”, sempre em risco de ser violentada, o que a
deixava com “medo” permanente. Este argumento, também afirmado por Eliana, não permitiu
o posicionamento dos homens, colocando-os logo como criminosos por serem representantes
do patriarcado. Como os participantes do grupo de Niterói, eles não se assumiam como tal, mas
sim como pais e trabalhadores incansáveis. Na medida em que Thor tomava para si o grupo, os
homens “esvaziaram o copo”, falando de si e elaborando suas emoções, sem, contudo, se
identificarem com a proposta de responsabilização como homem igualitário. Apesar da ênfase
na categoria de gênero, foi uma tarefa difícil reconhecer o outro como igual através da empatia
pela dor e o sofrimento da mulher enquanto vítima. Isto me permite fazer as considerações a
seguir sobre a categoria de gênero no campo.
4.2 Primeiro contraste: o gênero
Gênero não era só um constructo político e acadêmico que dava conta do lugar
diferenciado e desigual da categoria mulher e que apontava para a análise das masculinidades
e o lugar de poder e privilegio dos homens, pré-requisito para projetar o valor do homem
igualitário. Gênero também era uma categoria apropriada e criticada pelos homens no campo.
Os vídeos apresentados em Niterói, Acorda Raimundo Acorda, e no Instituto de Práticas
Sistêmicas, Maiorité Opprimée e Não é fácil, não!, partiam do pressuposto de que era possível
“atuar” um gênero, apesar das qualidades corporais que remetem ao “fato” do sexo. Também
passavam a ideia de um indivíduo que afirmava sua singularidade através dessa “performance”.
Os participantes dos três grupos insistiam que não era possível mudar de posição, “se colocar
nos sapatos do outro” e agir como mulher porque as diferenças biológicas importavam: elas
190
informavam não só o gesto, mas também o pensamento. Isto implicava que eles não
reconhecessem o comportamento violento das mulheres nos curtas como uma generalidade
aplicável a todos os homens. Para esses homens, a violência era sempre circunstancial e
localizada. Ela remetia a situações e histórias sobre brigas, desconsiderações e afetações
emocionais por parte das denunciantes.
Judith Butler (2003) já anunciava que a “performance” coloca como manifesto uma
interioridade na superfície do corpo, que é efeito de discursos públicos das políticas do corpo,
as quais criam a fronteira do gênero, ao mesmo tempo em que criam também a “integridade”
do sujeito. Este argumento tem servido para afirmar a não consubstancialidade das identidades
de mãe e esposa na categoria mulher ou para questionar a norma da heterossexualidade
obrigatória, por exemplo, de tal modo que é possível identificar o discurso da natureza e da
biologia como uma política sobre o corpo histórica e culturalmente localizada. Esta tese nos
ajuda a compreender a filosofia política que inspira os curtas e que é amplamente compartilhada
pelos promotores de uma masculinidade igualitária, ou mesmo a afirmação de Thor, em que ele
considerava que podia “estar heterossexual” e moldar seu próprio desejo. Esses argumentos
eram criticados pelos homens, que consideravam inseparável a biologia do seu corpo do seu
proceder como homens como parte da ordem da “natureza”, das coisas como são e que não
podiam ser explicadas, lembrando as palavras de Rony. A ordem das coisas, das pessoas e das
relações apresentava diferenças corporais que não eram descoladas da relação entre categorias
de parentesco. A capacidade de engendrar um bebê não era só um atributo feminino que
desvirtuava a incorporação e a atuação de papéis femininos pelos homens dos vídeos, era
também parte da definição da “mãe”, colocando os homens do grupo como pais, filhos ou avôs
em relação a essa gravidez.
Estamos diante de uma “noção de si” configurada em grande parte por essa diferença, a
qual trazia muita interferência na compreensão da proposta de papéis de gênero, agenciados por
uns e outras, indistintamente das qualidades corporais. Não era tão fácil se colocar nos sapatos
do outro, porque eles não ficavam grávidos. A partir daí, a estratégia da empatia para identificar
a dignidade da mulher como vítima, cidadã e indivíduo moderno (sujeito valorizado na
exposição de Butler) parecia uma tarefa complicada, pois a dignidade deles como homens era
substancialmente diferente. Quando Heitor falava que “a violência não tem gênero”, ele estava
considerando mais a quebra da reciprocidade, baseada em grande parte na diferença corporal
que institui o casal e a conformação de uma vida familiar. Também se referia à desconsideração
dessa parte de si que circulava na relação com Joana, e não tanto à negação da igualdade
191
substancial de dignidade humana trazida pela lei, base filosófica do conceito “violência de
gênero”.
Podemos entender uma dialética das categorias de gênero nas relações de parentesco
como interdependentes nas relações de dádiva que viram as posições que os denunciados
ocupam como pessoas e em uma visão mais abstrata de ser homem. Essa interdependência entre
categorias localizadas e uma forma abstrata configura não só a “identidade de gênero”, mas
também sua noção de si e sua dignidade no vínculo com outras categorias sociais, que
reconhecem sua agência como correta ou incorreta e que desbordam a capacidade de eles como
indivíduos mudarem o sistema de parentesco vigente.
Figura 23. Caminhata em Ipanema em contra da Violência contra a Mulher no 25 de novembro.
4.3 Segundo contraste: a justiça
A expressão de indignação e de ressentimento – sentimentos ruins para Aline e
expressão de uma masculinidade hegemônica para Thor – foi parte de um repertório de
manifestações sobre a injustiça, produto de ofensas, que esses homens manifestaram até o
último encontro dos grupos reflexivos de gênero. O senso de injustiça criou uma identificação
entre esses homens, que era classificado por Thor e outros ativistas em prol das masculinidades
não violentas como “cumplicidade masculina”, atributo negativo dentro do grupo, relativa à
“tolerância à violência”. Estimulando a falar de si por meio da revisão da própria emoção, Aline
e Thor queriam que eles mudassem de posição no discurso, se mobilizassem e se envolvessem
192
com a própria atitude, de modo tal que o vínculo entre eles não se desse pelo sentimento de
injustiça, mas sim através da empatia pela vítima. Foi interessante notar como no final do
processo reflexivo alguns desses homens perceberam que haviam “descarregado” suas
emoções, o que lhes permitia enxergar de maneira diferente o processo jurídico, sem, contudo,
deixarem de se sentir injustiçados.
O conceito de “insulto moral” proposto por Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2011)
foi uma indicação para o aprofundamento nas manifestações de injustiça. Ele faz referência a
uma agressão objetiva de direitos que não podem ser traduzidos em evidências materiais, que
implicam a desvalorização ou a negação da identidade da “vítima” e um grau de arbitrariedade
no exercício do poder institucional. O autor parte da passagem da noção da “honra” do antigo
regime para a de “dignidade” na sociedade moderna, mostrando sua relação com o
individualismo, para caracterizar a última como uma condição dependente de expressões de
reconhecimento ou manifestações de consideração, cuja negação é experimentada como insulto
pela vítima e por terceiros. Ele inclui a discussão sobre dádiva e reciprocidade de Marcel Mauss
para compreender que os direitos desrespeitados têm a ver com aqueles que dão precedência à
qualidade do elo social e que não estão enquadrados no entendimento dos direitos positivos ou
como bem individual. Para Cardoso de Oliveira, o reconhecimento pode ser concebido como a
outra face do hau do doador na elaboração de trocas. Quanto à questão da violência, o autor
considera que o que define a percepção de uma agressão como violência moral ou atitude de
violência é a leitura da intencionalidade pela parte receptora da agressão: um ato de força ou de
agressão pode não ser sentido como um insulto (não gerando ressentimento).
Na etnografia sobre a invenção da violência doméstica em Timor Leste, Daniel Simião
(2015) observa que à luz da moralidade trasnacional dos direitos humanos dos agentes das
Nações Unidas, entre outros representantes de organizações não governamentais, todo ato de
agressão era qualificado como violência. Porém, na caracterização da noção de violência por
representantes das comunidades locais, participantes da consulta para a construção da política
de combate à violência doméstica, existiam diferenças entre a percepção de uma agressão com
fins pedagógicos, que era legítima, e outras com fins ou intencionalidades diferentes, as quais
eram lidas como violensia, sendo elas vistas como insultos morais, tendo como referente o
sistema de valores locais de uma ou outra comunidade. Inclusive, mesmo atos que não
envolviam uma agressão física podiam ser lidos como tal.
Por exemplo, em Covalima, um dos distritos de Timor Leste, quando uma mulher sentia
que o marido tinha passado dos limites de agressão com fins pedagógicos ou quando ela era
obrigada a obedecer-lhe contra a sua vontade dentro de casa (direito da mulher), podia ativar
193
mecanismos de justiça locais. Para Simião, os agentes internacionais do discurso de gender
consideravam estas percepções sobre a agressão como uma “tolerância para a violência”, para
a qual tentavam construir um plano moral em que outras atitudes de agressão gerassem a
impressão de uma atitude indevida, permitindo a entrada da validação social de novos
sentimentos na caraterização do insulto moral. Desse modo, a mulher da cidade de Díli que teve
cerca de dez anos de convívio com seu esposo, que a maltratava, viu-se envergonhada,
experimentando o insulto moral, conseguindo assim se posicionar como vítima de violência
diante de autoridades adeptas do discurso de gender.
Figura 24. Aconselhamento de Thor.
Assumir o sentimento de injustiça e as expressões de indignação e ressentimento dos
homens que acompanhei representa um desafio, pois estamos nos referindo a pessoas tipificadas
como “agressoras”, antagonistas das demandantes. Como acusados, eles expressaram
sentimentos pela quebra da reciprocidade nas suas relações com suas ex-companheiras,
vizinhos ou amigos e percebem uma alta arbitrariedade da implantação da Lei Maria da Penha,
194
argumentando que ela atenta contra o princípio de igualdade entre cidadãos, pessoa social e
pública em quem a consubstancialidade do direito opera. A partir do material apresentado,
surgem perguntas sobre o entendimento e o exercício dos direitos, e sobre noções de igualdade
e diferença que legitimam formas de ação social que, a partir da perspectiva dos acusados,
fazem parte das trocas e dos reconhecimentos sociais próprios das relações de reciprocidade
que conformam seu lugar moral como maridos, pais e cidadãos. Nelas, as diferenças de
categorias de gênero e de parentesco ajudam a entender os lugares morais desses homens e
como eles configuram a noção de dignidade para si, fenômeno registrado com os ñeros de
Bogotá (MART́NEZ-MORENO, 2013, 2014) e nas aldeias de Timor-Leste (SIMIÃO, 2014).
As justificativas e as narrativas de injustiça dos homens encaminhados para os grupos
reflexivos de gênero permitem propor a ampliação do significado e da aplicabilidade da
proposta de Cardoso de Oliveira sobre insulto moral. Não existe uma correspondência unívoca
entre desconhecimento da dignidade e a figura moral da vítima ou da demandante. O agressor
experimenta a desconsideração, mas seu tratamento era diferente dado o seu lugar moral no
Judiciário: quem é acusado não tem sua dignidade como objeto de reparação. A maneira como
esses homens expressam a injustiça não corresponde ao ideal de empatia anelado pelos
facilitadores nem por outros agentes que falam de ou em nome das vítimas. Tampouco
correspondem ao repertório de “emoções positivas” desejadas para o grupo ou possíveis de
serem expressas no exercício da cidadania: vulnerabilidade, medo, angústia, desconforto, entre
outras. Mesmo que os acusados argumentem inocência ou se posicionem como vítimas
circunstanciais, essa narrativa vira objeto dúbio para os agentes da Lei Maria da Penha. Isto
denota diferenças no tratamento institucional das emoções e dos sentimentos expressados pela
vítima e pelo agressor, nas quais o gênero e o par agressor-vítima são chaves analíticas para
entender a colocação da “verdade” dos implicados e sua legitimidade como “sensação” para as
autoridades, sejam elas os operadores psicossociais ou os jurídicos.
4.4 Terceiro contraste: os sentimentos
Seguindo as pistas fornecidas por Cardoso de Oliveira, e já em contexto brasileiro,
Daniel Simião (2015) demonstra que existe um atendimento diferenciado na prática da escuta
de alguns profissionais da equipe psicossocial de um juizado especial de violência doméstica
no Distrito Federal. O autor ressalta que tais práticas trazem de volta a densidade própria dos
conflitos ao Judiciário, permitindo desse modo compreender melhor o insulto moral que foi
“reduzido a termo” no início do processo jurídico, encaixando em categorias penais toda uma
195
história de desconhecimentos e agressões do casal. Esta recomplexificação motivou a
construção de narrativas nas quais os sentimentos estavam em relação aos sentidos no que diz
respeito à agressão, de modo tal que houve um posicionamento das partes quanto ao ato que os
levou ao Judiciário. Para Simião, isto é importante na medida em que permite o reconhecimento
do insulto moral e uma posterior solução reparadora entre as partes. O autor aponta que na
elaboração das narrativas estava a construção de pessoas morais:
a identificação das pessoas concretas com categorias morais de pessoas
acionadas tanto pelo modo como aquelas [as pessoas envolvidas no processo
jurídico] desejam se apresentar quanto pelo modo como elas são lidas e
categorizadas por quem as ouve (SIMIÃO, 2015, p. 68).
Este esforço no Judiciário trouxe a expectativa de comportamentos que às vezes
reforçavam uma perspectiva tutelar dos direitos da mulher pelos operadores que ali trabalham.
Simião nota que existem diferenças de gênero nas quais a mulher se apresenta como vulnerável
e sacrificada, que aguenta a dor e o sofrimento, impotente e frágil, como forma de valorização
de si mesma como pessoa “bem intencionada”, criando vínculos com a equipe de atendimento
em forma de simpatia: a capacidade de se ligar por meio dos sentimentos de piedade ou tristeza
da vítima. Essa construção da “queixa”, como concebida por Maria Filomena Gregori (1992),
na qual as causas do deterioramento da relação do casal se devem a fatores externos à atuação
da denunciante, era legítima na construção do senso de injustiça experimentado pela vítima
que, de outro modo, coloca a contraparte do conflito na posição moral oposta, determinando
seu atendimento e a possibilidade de elaboração narrativa da sua posição no conflito.
Como elemento de contraste no tratamento institucional, vejamos a abordagem ao crime
passional feita por Myriam Jimeno (2007). Esta autora mostra como esse crime é um dispositivo
localizado nas experiências pessoais e na interpretação normativa que pretende se naturalizar
por meio da reiteração da oposição entre razão e emoção, tendo o efeito de expiar a culpa do
crime e atenuar o castigo para o acusado. Jimeno argumenta que o fato de o crime ser perpetrado
por homens, na sua maioria, coloca o dispositivo em relação às hierarquias de gênero e, em
consequência, as mulheres que assassinam e demonstram frieza e premeditação são vistas como
os piores monstros. Delas é esperado o descontrole, enquanto os homens que expressam sua ira
e sua dor, entre outros sentimentos, são desculpados durante o processo penal. Ao contrário dos
casos de crime passional, a expressão de sentimentos “ruins” pelos homens que acompanhei
confirmava o delito para os agentes da Lei Maria da Penha. Isto pode ser explicado pelas
“sensibilidades jurídicas” (GEERTZ, 1998) em que se ancoram os delitos de crime passional e
196
o de violência contra a mulher. Essas sensibilidades são expressivas do paradoxo legal
brasileiro que Roberto Kant de Lima (2004, 2010) assume como característico do Judiciário no
Brasil e que Roberto DaMatta (1997) relaciona à reafirmação do lugar de autoridade pelo
cidadão no espaço público no Brasil.
Jimeno menciona que no Brasil existiam “códigos morais de honra” nos instrumentos
jurídicos que configuraram dispositivos de castigo judicial, que desde finais do século XIX
outorgam um lugar social diferente ao tratamento dos delitos atribuídos e cometidos pelos
homens. O “crime de honra” era relativo aos homens e a “honestidade da família” era dirigida
às mulheres; ambos diziam respeito à preocupação com a fidelidade da esposa, que garantia a
família como célula básica da sociedade. Esses dispositivos favoreciam que o marido castigasse
a mulher adúltera e seu amante com a morte; caso não fizesse isso, a mulher podia ser recolhida
a um convento e o amante, desterrado. Lia Zanota Machado (2001) argumenta que a expansão
do individualismo no processo de modernização do Brasil teve implicações políticas na
legitimação de direitos para as mulheres como cidadãs ao longo do século XX, particularmente
nas décadas de 1960 e 1970. Para Machado, a Lei Maria da Penha é herdeira desse processo de
instauração de valores individualistas no sistema jurídico brasileiro, o qual produziu conflitos
em face dos preceitos de “honra” e “família”, vigentes nos operadores jurídicos no final do
século XX. Esses preceitos faziam com que os delitos contra a dignidade humana da mulher
fossem enquadrados no referencial da honra, trazendo como resultado um posicionamento
“familista” (ou holista, como mencionei no primeiro capítulo) no reconhecimento dos direitos
das demandas por violência por parte dos operadores jurídicos.
Jimeno e Machado relacionam esta maneira de conceber a mulher no Judiciário ao
paradigma da honra do mundo ibérico, mediterrâneo e arabizado, que no Brasil instituiu a
sociedade colonial escravista e deu pouca importância à cidadania individualizada. O
paradigma da honra afirmou o papel do homem como provedor e como sujeito de direitos que
fazia a intermediação entre o Estado e os membros da família, tutelando sujeitos tidos como
“hipossuficientes”. Do paradigma da honra também derivaria a legitimação do uso da violência
do agente tutelar, que não reconhecia o valor dos direitos individuais da mulher. Segundo estas
autoras, o crime de violência contra a mulher teria uma inspiração individualista, mas estaria
sendo executado em uma institucionalidade desenhada a partir dos códigos de honra. Esta
posição, que compartilho, entra em diálogo com as considerações de Roberto Kant de Lima
sobre o paradoxo legal no qual é valorizada a ideia de igualdade substantiva de direitos no
197
discurso público, mas nas práticas judiciais tal valor se desvanece, privilegiando o status da
pessoa no conjunto social37.
Uma valorização diferente das emoções possíveis de serem expressas por um acusado
no marco do crime de violência contra a mulher é a evidência de uma mudança na sensibilidade
jurídica, passando de uma “hierárquica” ou “holista”, ancorada na honra ou de inspiração
civilista, para uma mais individualizada, relativa à filosofia da dignidade humana e, talvez, mais
próxima da commom law. Essa sensibilidade em consolidação na implantação da Lei Maria da
Penha procura a objetivação do indivíduo como possuidor de direitos inalienáveis, a expressão
de emoções relativas à vítima e uma suscetibilidade da experiência da dor e do sofrimento. O
cidadão é a vítima e o agressor está fora da sociedade: ele é o outro, para quem sua educação
emocional se torna fundamental para trazê-lo à civilidade. Esse outro dará sinais de
amadurecimento sendo “sincero” consigo mesmo, ao mesmo tempo em que “honesto” com as
autoridades.
4.5 A crise moral e o reconhecimento como pai
Esses homens falavam das relações de reciprocidade rompidas pelo casal, que afetavam
outras com familiares, amigos e colegas de trabalho. Eram narrativas carregadas de emoção,
cheias de acusações mútuas, decepções, traições, ciúmes, inseguranças e, especialmente,
ausência de reconhecimento na avaliação dos seus papéis como pais, esposos e trabalhadores.
A essência desses sentimentos muitas vezes foi enquadrada pelos facilitadores nas referências
já feitas sobre a cultura ou a masculinidade hegemônica, privilegiando a forma expressiva do
ato de agressão como uma interdição moral, de maneira similar aos agentes do discurso de
gender no Timor Leste. Enquanto os acusados localizavam o sentimento na agência e na
relação, os facilitadores enxergavam a emoção ruim que emergia do interior de cada um deles,
e que virava violência sem intermediação da palavra. A narração da briga mostrava que os
papéis de vítima e agressor se alternavam entre eles e suas parceiras, dinâmica reconhecida por
Aline e Thor, o que lhes permitia compreender em certa medida a indignação dos acusados.
Porém, tal entendimento, metodológico e acadêmico, não se superpunha ao imperativo da “não
violência”. O fato de os facilitadores compreenderem não significava aceitarem a verdade que
esses homens queriam impor, infundindo um parâmetro ético no qual só certo tipo de emoções
37
Não custa lembrar que existe uma literatura clássica sobre o paradigma ibérico e mediterrâneo que tinha por
objeto o complexo honor and shame. A respeito, ver Marques (1999) e Pina Cabral (1991).
198
era possível de ser exteriorizado. Apesar da emoção descontrolada, da raiva ou da mágoa, para
os facilitadores, essas emoções não eram maiores que a dor física e psicológica que denotava a
humanidade da denunciante.
Quando eu mostrei interesse pela perspectiva das brigas dos participantes dos grupos,
alguns desses homens que conheci se mostraram abertos para conversar e se explicar fora do
juizado ou do instituto. Posteriormente, estando mais próximo deles, não tive dificuldade em
marcar entrevistas. Eles estavam dispostos a colaborar com meu trabalho de campo, para não
serem vistos como sujeitos moralmente questionáveis, cuja “masculinidade” se tornava um
problema institucional e existencial para ser identificado, abordado e modificado. Foquei minha
atenção na trajetória de Heitor e Josué para compreender melhor seus lugares como pessoa na
trama das suas relações sociais, supondo que isto me permitiria ter mais acesso à relação entre
o sentimento de injustiça, a noção de dignidade em si, a vinculação com o paradigma da honra,
que chamei também de relações de reciprocidade, e o trânsito pelo mundo do Judiciário.
Josué e Heitor eram os dois homens com mais poder aquisitivo, melhor educação e
posição social em relação aos seus colegas do grupo (perfil similar ao dos participantes por
demanda espontânea do segundo grupo do instituto). Eles se destacavam porque colocavam
assuntos que criavam a adesão dos demais homens. Eles dois sabiam argumentar e fazer
contrapontos às colocações de Aline. As explicações por eles dadas eram repetidas por outros
participantes do grupo, não sem controvérsias, particularmente quanto às referências de Josué
contra sua companheira, que o apontavam como um homem amargurado, retrógrado e vingativo
em função da religião que professava. Heitor parecia mais um herói dentro grupo. Ele era
carismático, atraente, jovem, com estabilidade econômica e seguro de si. Seus argumentos eram
tidos como bons e esclareciam a posição de outros, o que fez com que ele se tornasse um
referente ético no grupo.
Josué, o único condenado do grupo, mostrava seu ressentimento e não colaborava com
Aline propositalmente. Ele reconhecia o trabalho da facilitadora e, de fato, sabia que aquilo que
ela fazia era um “exercício benéfico” para os participantes do grupo; só que ele estava ali para
cumprir uma pena, não para “aprender”, nem “refletir”. Josué era irônico nas suas afirmações
e duvidava da sinceridade dos seus colegas no grupo, considerando-os “cariocas expertos”. Ele
se colocou como dono de uma verdade que tentava de várias maneiras justificar no grupo, sem
mediações diplomáticas. Algumas vezes concordava com a proposta de falar dos seus
sentimentos, desvelando um ser machucado que perdeu tudo aquilo que o fazia ser um homem
reconhecido socialmente. Para ele, era importante se mostrar como homem íntegro, projetandose como um trabalhador incansável, estigmatizado no universo fluminense por ser um
199
“paraíba”, e também como um religioso disciplinado, cujas convicções espirituais tinham sido
enriquecidas pela conversão ao judaísmo, discurso filosófico que respondia a uma expectativa
de reciprocidade, obediência, respeito e fidelidade no casal que ele reivindicava no Judiciário.
Nessas ocasiões, os outros homens do grupo aderiam à sua narrativa.
Figura 25. Hierarquia versus igualdade. Militar de país afrincano e ativista pela igualdade carioca.
Heitor era filho exemplar e namorado dedicado, decepcionado pela ausência de
iniciativa da sua jovem ex-esposa, Joana, que parecia obcecada por ele. No grupo, ele não se
mostrou nem ressentido, nem indignado, mas sim conhecedor dos procedimentos jurídicos e
dos discursos de acusação que pretendiam enquadrá-lo como um criminoso. Ao se apropriar
das categorias agressor e machista, ele conseguiu fazer uma leitura particular do gênero, bem
como de outros “progressistas”, criticando a suposição de que os homens brancos de meia-idade
eram a encarnação do poder e o centro de referância a partir do qual era pensada a sociedade.
Dono de uma trajetória de superação das adversidades (como Josué), Heitor mostrava para o
mundo que ele não tinha privilégios dados. Ele admitiu a agressão para parar a sempre
insatisfeita queixa da sua ex-mulher. Joana não deixava de ser uma mulher imatura para ele e
200
não lhe permitia um bom relacionamento com as três mulheres que ele admirava e pelas quais
faria tudo para ver felizes: sua mãe, sua filha e sua atual esposa. De fato, na narrativa de Heitor,
ele só admitia a agressão contra Joana no momento em que ela agrediu sua mãe. Como Josué,
Heitor ganhou esclarecimento moral e reforçou suas convicções a partir da leitura de textos
sobre psicologia espírita, cuja inspiração filosófica lhe permitiu enxergar o valor da gentileza.
A impossibilidade de atingir valores para o reconhecimento social como pessoas boas
foi uma constante nos três grupos que acompanhei, mesmo no grupo de homens por demanda
espontânea. Pedro, Paulo e Fabrício, os homens do grupo por demanda espontânea do Instituto
de Práticas Sistêmicas, também experimentavam certa inconformidade com a vida até esse
momento por causa da sua relação afetiva com mulheres. Embora eles não se colocassem como
vítimas, apelavam à consideração dos facilitadores se mostrando frágeis, impotentes, tristes ou
desesperados. A maneira como eles se colocaram no grupo mostrou-os como pessoas que
procuravam redenção através do aconselhamento de Thor. Os três buscavam ajuda e conforto
para sair da situação difícil em que se encontravam. Era um agenciamento diferente e mais
efetivo na tarefa de comover os representantes de uma institucionalidade ancorada em discursos
de cunho científico e político.
Pedro queria mudar seu corpo, “lavar sua alma” e ressurgir como uma pessoa virtuosa.
Ele experimentava uma imensa culpa, que não o deixava ficar tranquilo: abandonar os pais e
sua família, gritar com sua mulher, achar que ele era melhor que o resto da humanidade. Só
uma aproximação no final da vida com seu pai, na qual experimentou o medo da solidão,
motivou-o para iniciar seu caminho de transformação. A narrativa de Fabrício era a mais
próxima à dos homens acusados de violência, não por ele ter cometido uma falta, mas pelo
processo jurídico que estava sendo encaminhado na vara de família. Como as mulheres
descritas pelos denunciados, sua ex-mulher arquitetou o mal de que ele padecia, querendo se
impor a ele. O conteúdo da lei e uma “cumplicidade de gênero” da juíza faziam da sua excompanheira uma oponente poderosa. Fabrício chorou e manifestou seu desconforto diante de
tanta arbitrariedade, mas sem se posicionar como uma vítima. O aconselhamento de sua mãe e
a experiência que ele teve com seu pai (de ausência na vida familiar) lhe deram a motivação
para demonstrar que ele sempre fora um pai exemplar. Paulo estava desesperado, com um
profundo medo de ficar sozinho durante sua velhice, como Pedro. Ele não compreendia a
traição das suas duas companheiras, comportamento que contrastava com o amor incondicional
da mãe, que se manifestava misticamente através das sensações da infância no lar materno,
dando-lhe segurança. Apesar da tentativa desses homens para serem compreendidos,
expressando algumas emoções que Aline e mesmo Thor chamariam de positivas, Thor, Carlos
201
e Eliana sabiam que no fundo uma masculinidade hegemônica deveria ser desvelada, tornandoa consciente através das palavras para transformá-la.
4.6 Afetividade, participação, parentesco e individualismo
Os facilitadores buscavam criar “o grupo” como lócus de reconhecimento, apoio mútuo
e suporte para a esperada mudança e superação dos homens. Porém, sua conformação nos
termos dos agentes da lei foi difícil, prevalecendo muitas vezes o sentimento de injustiça como
catalizador das conversas, mas não de coesão. No grupo, independentemente se atingia ou não
o ideal de horizontalidade ou suporte entre seus participantes, certas verdades eram legitimadas,
debatidas ou construídas. Verdades estas que não dependiam somente da argumentação
racional, mas da expressão de emoções que definiam a credibilidade ou não do emissor. A
verdade emergia no grupo para além da colocação de fatos, que davam conta de uma realidade
ou de uma junção entre razão e emoção como categorias abstratas. A efetividade dessa verdade
estava na expressão de emoções consideradas corretas e que dignificavam, proporcionavam
gratificação ou mostravam o sofrimento da pessoa que manifestara sua posição.
A afetividade é um aspecto dos processos racionais para o “pensamento pré-lógico” e
as “representações dos primitivos”, segundo Lucien Lévy-Bruhl. Para Roberto Cardoso de
Oliveira (2002), o autor em questão transforma a clássica oposição entre razão e emoção em
outra na qual a emoção seria a base sobre a qual as representações coletivas de Émile Durkheim
seriam possíveis. O ato de representar no pensamento pré-lógico não separa a ideia do
sentimento, o que gerou uma crítica ao racionalismo, pois o processo do raciocício implicava a
indistinção entre objeto e suas “propriedades místicas”. R. Cardoso de Oliveira lembra que para
Lévy-Bruhl a mentalidade primitiva, mais do que representar um objeto, “ela o possui e é
possuída por ele [...] ela participa dele [...] Não o pensa somente: ela o vive” (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2002, citando Les fonctions mentales dans les societés inférieures, de Lévy-Bruhl,
1910). A participação não seria só pensada, mas vivida como uma lógica “mística” que informa
o campo da moral, que não é anterior ao pensamento racional moderno em um sentido evolutivo
como se fosse antilógica ou ilógica. “A lei da participação” de Lévy-Bruhl diz respeito ao fato
de que as representações estão carregadas de propriedades místicas que afetam e permitem uma
ligação entre os objetos e os seres ligados através de uma participação. As representações
estranhas ao etnólogo adquiririam sentido na medida em que o pesquisador incorporasse no seu
registro e em sua análise a carga afetiva que permite o vínculo entre sujeito e objeto e entre
sujeitos no ato de comunicar.
202
Além das críticas aos supostos evolucionistas e universalistas de algumas das
afirmações de Lévy-Bruhl, que R. Cardoso de Oliveira lembra ao leitor, a “potencialidade
mística” é uma linguagem cuja estrutura difere da argumentação lógica (contradição
aristotélica) e inclui caracteres apreendidos na experiência da participação que, no senso
comum de Ocidente, podem ser chamados de “intuição”. Ela seria “a única fonte de certeza de
saber sobre o real”, para o qual a “verdade é sentida e não se demonstra” (JIMENO, 2007, em
relação ao pensamento de Lévy-Brulh). No processo de implicação da própria atitude na
responsabilização dos atos de violência por parte dos facilitadores de grupos reflexivos de
gênero, e de justificar a agressão na briga com a mulher por parte dos homens acusados, nós
nos encontramos diante de um fenômeno similar ao descrito por Lévy-Bruhl como participação.
A verdade seria uma categoria da ordem do pensamento pré-lógico que faz sentido na maneira
como os facilitadores no campo sentem a sinceridade das palavras dos homens participantes
dos grupos reflexivos ou estabelecem empatia com a vítima. Também na maneira como Rony,
por exemplo, sabe que ele não pode ser mulher, como muitos homens se ligam em função do
sentimento de injustiça ou na maneira como descrevem a relação com suas mães e filhos. Essa
verdade também seria relativa a uma sensibilidade jurídica em particular, que privilegia certos
tipos de emoções como possíveis de serem enunciadas, emoções que têm uma correspondência
com sistemas de relações de parentesco.
Deste modo, uma determinada sensibilidade jurídica não só permite sentir verdades de
maneiras diferentes, mas também identificar sujeitos cuja individualidade estaria contornada e
conformada por afetos, emoções ou sentimentos diferentes na relação com outros. Uma
sensibilidade jurídica seria expressiva de uma “cultura afetiva” diferente, citando a expressão
de David LeBreton (2013), e estabeleceria um ethos particular, apelando para o conceito
cunhado por Gregory Bateson (2006). Essa afetividade permite não só valorar categorias de
gênero, parentesco e direito a partir de ângulos particulares tidos como verdadeiros, os quais
entram em tensão no grupo reflexivo de gênero, mas também conformar individualidades com
“estados afetivos” que integram o afeto do outro, estabelecendo aquilo que chamamos de
relação ou vínculo social, que está carregado de uma emotividade específica. Como lembra
Myriam Jimeno (2007) em relação à obra de Lévy-Bruhl, a individualidade não seria tanto
aprendida pela consciência e inscrita no corpo, o que se constitui como fronteira entre os
indivíduos, como na tradição racionalista, que separa sentimento de pensamento. Em contraste,
a individualidade não termina na periferia do indivíduo, no seu corpo, iria além, fazendo parte
do outro, segundo a força mística ou mana que tivesse a pessoa (LEENHARDT, 1997).
203
Figura 26. Pai e filha brincando.
Marshall Sahlins (2013) nos lembra que a noção de participação de Lévy-Bruhl é uma
chave analítica para melhor compreendermos o domínio do parentesco como uma mutualidade
do ser (mutuality of being), desenvolvendo o argumento já proposto por Émile Durkheim
segundo o qual a organização do parentesco expressa coisas além das relações genealógicas ou
de consanguinidade, como um fato social que não pode ser reduzido à biologia ou à psicologia.
De acordo com Sahlins, para Durkheim existia um motor oculto que fazia funcionar o
parentesco, as relações de mutualidade entre seres, em outras palavras, a participação de um ser
na existência de outro. A partir destas considerações, para Sahlins, o “ser” no sistema do
parentesco nega a necessidade de independência, bem como a necessidade de substancialidade
e fisicalidade das entidades na relação, permitindo a síntese entre as entidades.
Com a noção de mutualidade do ser, Sahlins não está se referindo à constituição da
identidade como dialética, nem a um self cuja imagem é reflexo dos outros, noções estas que,
fundadas em noções contratuais nas quais cada parte se apropriaria do que o outro tem para
oferecer, mantém a separação entre pessoas em relação e a oposição entre um self e um outro.
Também não está se referindo à noção de “divíduo” de McKim Marriott, popularizada por
204
Marilyn Strathern (1998), que contém uma “socialidade generalizada” dentro dele mesmo e que
dá conta de como as pessoas são construídas como lócus plural e compósito das relações que o
produziram, de tal modo que a pessoa em singular pode ser imaginada como um microcosmo
social. A proposta de um ser mutual não nega a conformação da pessoa a partir da inscripção
dos outros no indivíduo, mas enfatiza mais o caráter da relação, nas relações intersubjetivas que
configuram o vínculo de parentesco.
O parentesco remete à internalização da diferença e a uma existência compartilhada,
que faz com que os parentes possam viver a vida dos outros e morrer na morte dos outros,
seguindo a postura de Janet Carsten (2004) em seu conceito de relatedness. A participação do
sujeito no outro seria não só uma fusão de seres que perdem sua singularidade, mas a também
intervenção na constituição dos seres em relação, sendo imanente à individualidade (SAHLINS,
2013, citando Maurice Leenhardt). O sistema de parentesco para Sahlins são as múltiplas
participações intersubjetivas ou uma rede de mutualidades do ser que considera pessoas em
relações de reciprocidade, os vários meios de conformação de vínculos de parentesco e a
transmisão de “capacidades para a vida” através das pessoas. Esta perspectiva sobre a
mutualidade do ser por meio das participações nas vidas dos outros nos permite pensar que a
verdade é possível de ser sentida porque ela parece ser correspondente às relações constituídas
entre categorias de parentesco e gênero particulares, e que o conhecimento emergente da
revisão de si e da experiência emotiva – o projeto de sujeito que os facilitadores buscam
alcançar através das suas mediações semióticas – procura o estabelecimento de uma relação de
empatia com a categoria de vítima como uma abstração concernente à mulher com dignidade
humana, como se fosse uma nova relação de parentesco.
Para Thor e Aline, seria como modelar um self que privilegiasse a ideia de uma
masculinidade igualitária, na qual algumas das emoções positivas (como se elas fossem uma
coisa interna e correspondente às da vítima) atribuiram validade institucional à afirmação de si.
A empatia parece ser uma categoria do plano da ideologia individualista, dependente do
nominalismo e da contratualidade, que assume ser possível ter ou avocar a experiência
emocional do outro para senti-la e dela se apropriar, porque as emoções como coisas
objetiváveis dariam o parâmetro de igualdade e de humanidade. Esta noção poderia ser lida
como similar à proposta de Carsten, mas diferentemente da proposta da antropóloga, e seguindo
a proposta de Sahlins, o posicionamento diferenciado como pessoas no sistema de parentesco
nos levaria a pensar que é possível falar de afetar um parente ou um related e participar da sua
vida, mas não viver a emoção de uma categoria filosófica abstrata. Não estou negando que não
seja possível aprender a se relacionar emocionalmente com categorias filosóficas, mas sim que
205
a relação seria outra, dado o contexto penal no qual ela é configurada. É diferente reconhecer
afetivamente a dor da mãe ou da esposa do que reconhecer a dor da mulher.
O ambiente institucional do Judiciário não permitiria essa experiência afetiva capaz de
constituir um vínculo através da dor da esposa enquanto demandante e gerar uma
“individualidade igualitária”. Isto remete a uma diferença entre o ethos dos facilitadores e o
ethos dos homens participantes e a maneira como é proposta a participação dos acusados com
a categoria mulher enquanto vítima. De outro lado, a “culpa” correspondente à
“responsabilidade” de Heitor no início da sua relação com Joana, o “amor” da mãe de Paulo no
sentido do “vazio” experimentado após sua primeira separação, ou a “obedência” da hipotética
futura mulher de Josué quanto àquele “ser ou dar tudo para ela” pareciam ser gramaticais,
logrando a mutualidade.
Vemos aqui duas operações simultâneas: 1. de responsabilização do sujeito se
relacionando afetivamente com categorias essenciais, quer dizer, valores como “machista”,
“homem igualitário”, “mulher”, “agressor” ou “vítima”, que o acusado deve “incorporar” para
senti-las e criar uma nova rede de relações com a entidade “o outro” no contexto judicial; e 2.
do mesmo sujeito lembrando, revivendo e reconsiderando (se não esquecendo) a relação com
pessoas na experiência vital. A primeira é relativa à modernização e à individuação e a segunda,
ao sistema de parentesco. Não podemos assegurar uma incomensurabilidade entre essas
experiências afetivas de criação de relações. Facilitadores e homens participantes dos grupos
vivenciam essas formas de criação de individualidades e relações com categorias essenciais e
pessoas. A vítima poderia ser tanto uma categoria essencial quanto uma parente, o que
permitiria gerar narrativas entre o dever ser cidadão e o acontecido nas histórias pessoais de
cada um dos participantes.
A partir da perspectiva dos facilitadores, era claro ver que as práticas políticas estavam
condicionadas pelos conhecimentos, as disciplinas e as teorias que privilegiavam uma
explicação racional (inclusive sobre a natureza das emoções) sobre os seres humanos, as quais
permitiam a possibilidade de cálculo e domínio sobre o comportamento dos homens acusados
a fim de incidir na sua conduta ética. A perspectiva política e o contexto judicial eram fontes
de ansiedade epistêmica, ao mesmo tempo lugar de autoridade a partir do qual os facilitadores
se posicionavam diante dos homens. Argumentos sobre a desigualdade nas relações sociais, o
gênero e o risco da má manipulação das emoções objetivadas como ruins, como a raiva,
contrapostas à expressão e à descrição da vulnerabilidade, do medo, da dor, do sofrimento, da
fragilidade, da impotência e do desalento, entre outras emoções da vítima, representadas por
206
Milena, por exemplo, permitiam o efeito de verdade nesse contexto, que muitos homens não
podiam discutir ou contestar.
Isto nos permite pensar o tipo de vínculo emocional que estava sendo construído entre
facilitadores e homens participantes no grupo, os quais não podiam refutar certos argumentos,
apesar de muitas vezes discordarem da generalização acerca do comportamento violento dos
homens e da vulnerabilidade universal das mulheres, por não remeterem à experiência de cada
um deles ou por não corresponderem às diferenças de classe e de raça expressadas por alguns
homens no grupo (para Rony, jovem homem negro, um camelô, o comportamento abusivo dos
homens fazia referência a um padrão de brancos de classe média e alta). A afirmação pública
da vítima, feita por Milena ou reproduzida através de vídeos ou matérias de jornal, era
políticamente poderosa. Uma tensão entre afetos sucitados pela categorização como homem
hegemônico e a pessoa digna era evidente e indicadora da dificuldade na “incorporação” da
categoria essencial homem igualitário ou agressor como referente permanente de si. No campo,
ser homem aparecia como uma categoria total que ao mesmo tempo era referente público e
contextualmente negava a existência das pessoas morais dos homens no grupo.
A “resistência” à incorporação da categoria essencial de homem machista ou igualitário
por parte dos acusados se expressava através da descrição do esforço por ocupar corretamente
os “papéis sociais” de bom pai, esposo e trabalhador, colados à expressão de injustiça, mágoa,
ressentimento e raiva. Com isto, muitos homens dos grupos projetavam sua verdade como seres
dignos até o momento da denúncia. Para eles, a sensação de ser um bom pai, por exemplo, não
se limitava à relação entre eles e seus filhos ou filhas, mas incluía o reconhecimento dessa
pessoa nas redes de relações possíveis de serem criadas para obter prestígio social com outros
familiares, vizinhos e colegas de trabalho. Porém, a verdade do agressor não era efetiva para a
institucionalidade da Lei Maria da Penha. Os facilitadores podiam compreender essa verdade,
como um ato de afetação, mas não concordar com ela, como um ato consequente com a filosofia
política da lei. Essa diferença se expressava, por exemplo, na distância entre o ideal de pai
afetuoso e presente na criação dos promotores de uma masculinidade igualitária e o ideal de pai
responsável por sua família dos homens acusados, que expressava afetos diferenciados a cada
categoria de parentesco.
A verdade que esses homens tentavam projetar através da palavra, de seus gestos e da
expressão de emoções era colocada em dúvida pelos agentes da lei. Esses homens podiam até
compreender a experiência de dor da vítima, mas ela tinha o efeito de conformar uma
individualidade que era socialmente condenada. Os homens participantes podiam se posicionar
circunstancialmente como vítimas, mas não se pensavam como tal o tempo todo. Eles não
207
antepunham essa categoria essencial ao proceder ético cotidiano e não geravam conflito com
as várias pessoas morais que conformavam sua individualidade. Participar da experiência da
mulher enquanto vítima não tinha a capacidade de ser uma experiência total que outorgasse
racionalidade e esclarecimento através do sentimento no corpo, capaz de produzir uma
conversão ao sistema filosófico dos facilitadores.
As colocações de Milena acerca da sua experiência como vítima, as histórias das
mulheres atendidas por Aline, os filmes acerca da troca de papéis entre homens e mulheres e as
arguições técnicas, baseadas em estudos acadêmicos e matérias de jornais, pretendiam dar
legitimidade à configuração da vítima como referente moral para a “implicação na própria
conduta” e evitar a reincidência de comportamentos agressivos por parte desses homens. Essa
tentativa apelava para uma linguagem abstrata acerca da cidadania e da individualidade que
tentava instaurar a ideia do “outro” como equivalente de si, cuja dignidade estava contida no
corpo. Não obstante, esses homens contestavam essa visão de mundo com argumentos
ancorados na relação afetiva que eles tinham com a demandante, que era contraposta à relação
com outras categorias femininas da rede de parentesco, particularmente mães e filhas. Eles
apelavam para qualidades diferentes acerca do gênero e relativos à diferença na gestação que
não permitiam assumir o valor mulher como equivalente ao de um homem.
Eles não incorporavam o valor mulher colocando-se na sua pele para se pensarem como
uma delas. Rony, o vendedor de CD do mercado da Uruguaiana, no primeiro grupo descrito no
capítulo do Instituto de Práticas Sistêmicas, não podia explicar isto, mas era assim que
funcionava: ele não era igual à sua companheira e, quando imaginava ser mulher, descrevia as
qualidades da sua própria mãe, chegando a se ver, talvez, como ela. Lembremo-nos da surpresa
dos facilitadores que esperavam uma mulher objetivada pelo seu corpo, querendo assim
demonstrar o preconceito, próprio deles por serem homens, apontando desta forma os
mecanismos de vitimização da mulher. Enquanto os facilitadores valorizavam “a identificação
com o outro” através da relação de “empatia”, que supunha emoções equivalentes entre
indivíduos, os homens valorizavam a expressão de sentimentos de desconforto que
conformavam a relação da quebra da reciprocidade. A descrição emocional do bom pai ou do
trabalhador não resultou ser efetiva: os facilitadores viam nesses sentimentos uma amostra de
controle patriarcal, incompatível com a apreciação da dor e do sofrimento como qualidades
dignas, capazes de gerar satisfação nos facilitadores quando enunciadas por algum dos homens
do grupo.
Como experimentado pelos homens acusados de violência doméstica contra a mulher,
a palavra da vítima no Judiciário era a única contemplada como sujeito, sendo ela a dona de
208
uma verdade suficiente para iniciar o processo jurídico e negar ou colocar em dúvida a
perspectiva dos demandados. Esse fenômeno era possível de se perceber na avaliação dos
facilitadores dentro e fora do grupo, os quais consideravam os homens como sujeitos só no
momento da rememoração de relações violentas do passado, para “se pensarem nos sapatos do
outro” e sentirem empatia em face da dor e do sofrimento de suas companheiras. A ideia de
Thor e Aline era criar vínculos por meio das “emoções positivas”, possíveis de serem
reconhecidas no grupo como indicadores de mudança: a vulnerabilidade, o medo ou o
sofrimento, entre outras.
No registro de sentimentos nas relações de parentesco, “a força da mulher”, como uma
qualidadede, podia ser atribuída às demandantes, o que “descontrolava emocionalmente” os
homens para Aline. Isto fazia das esposas “arquitetas” e conhecedoras de situações sociais, o
que lhes assegurava inteligência e capacidade de premeditação e vingança pela “falta de
confiança”, pelos “ciúmes” e pela “insegurança”. A força da mulher permitia a armação de
situações às quais aqueles homens eram expostos, retratando-os como seres ruins diante de
familiares ou amigos, e tinha a capacidade de humilhá-los, fazendo com que posteriormente o
“copo d’água derramasse”. Essa visão da mulher a partir da sua força é diferente da formulação
dos facilitadores a partir da sua objetificação sexual. Vale a pena indagar sobre estes tipos de
situações nas quais a força das demandantes ficava evidente e que não podiam ser dissociadas
da acusação de desconfiança e de ciúmes, para melhor compreendermos o vínculo que está
sendo avaliado no Judiciário, bem como o agenciamento dessas mulheres para ativarem a
institucionalidade da Lei Maria da Penha como um recurso que complementa sua força no
registro do sistema de parentesco.
A tentativa de os homens no grupo escaparem do juízo crítico de agressores por meio
de uma justificativa, em vez de se assumirem como vítimas, ou pelo menos não apelarem para
uma cultura emocional específica acerca da dor e do sofrimento, nos permite ver a distância
entre sensibilidades da “civilisation individualista” e da “Kultur da honra”. Em meio a esses
sistemas de sensibilidades, esses homens podem ter a “sensação” de ocuparem de maneira
correta a pessoa moral valorizada: a gratificação e a satisfação pessoal outorgadas pelo
reconhecimento de mães, esposas, filhos, colegas de trabalho, entre outras pessoas com as quais
eles se relacionam, incluindo as autoridades estatais, que podem determinar uma correta
agência cidadã. A relação entre essas sensibilidades também permite perceber o sentimento de
injustiça, que coloca vários desses acusados na posição de seres deploráveis diante de parentes,
amigos e colegas de trabalho. Podemos sintetizar que estamos em face de uma gramática de
sentimentos interdependentes em relação a arranjos sociais capazes de serem evidenciados na
209
medida em que o regime expressivo de emoções, privilegiado pelos facilitadores e o Judiciário,
é ativado através do grupo. Recorrendo à obra de Victor Turner (1969) sobre o ritual, podemos
dizer que a estrutura que suporta o “pai responsável” se desvela diante da antiestrutura da
“responsabilização” que promovem os facilitadores.
4.7 Honra, cidadania e vítimas
Ser homem não é equivalente a ser pai ou filho. Um valor não engloba os outros.
Machista ou cidadão não equivale ao pai que esses homens reivindicavam ser. Do mesmo
modo, ser mulher não era equivalente às pessoas morais de mãe e filha. Para esses homens,
conceber a violência era possível através da participação na experiência da dor de mães e filhas
(elas eram as potenciais vítimas), experimentando a culpa e incentivando a garantia ou a defesa
da sua dignidade. Os vínculos com elas construídos mostravam lugares morais e de poder
efetivos na produção e na manutenção de relações sociais dentro e fora do lar dos homens
acusados. Mas não só isso, os sentimentos de segurança e regozijo que, por exemplo, Heitor,
Pedro ou Fabrício experimentaram, na medida em que eles protegiam e se sentiam responsáveis
pelo bem-estar das suas parentes, permitem pensar que a desejada transformação do ser e das
relações sociais de um registro “holista”, “mediterrâneo”, “arabizado” ou “da honra” para outro
“individualista”, “democrático”, “não autoritário”, “presente na criação” ou “igualitário” não
está descolada da “sensação” outorgada pela constituição do vínculo afetivo entre categorias
filosóficas e de parentesco e do reconhecimento social dos lugares como pessoa.
De maneira similar às propostas sobre representações do mundo jurídico que informam
o paradoxo legal brasileiro de Roberto Kant de Lima (2004, 2010) ou da atualização de valores
autoritários no espaço público no Brasil através do ritual “você sabe com quem está falando?”
analisado por Roberto DaMatta (1997), Luiz Tarlei de Aragão (2016a) já havia proposto que o
“modelo ético” ou o “sistema de valores brasileiros”, que informa as relações sociais e a
cidadania no Brasil, está conformado por representações de valores nos quais princípios
holistas, como a honra e a reciprocidade, se opõem e entram em conflito com princípios
individualistas, como o utilitarismo, gerando cenários de violência e autoritarismo em função
da resistência à mudança. Para o autor, este modelo seria próprio das elites e das classes médias
brancas, vinculadas à “civilização mediterrânea” em que a organização familiar e as relações
conjugais são fonte de redes de prestígio e poder que se estendem para o conjunto social mais
amplo no domínio do público ou da rua.
210
A partir desta perspectiva, a criação de relações e a administração das mesmas,
incluindo os conflitos, seguiriam a “lógica do lar”, suas precedências de poder e hierarquias,
sendo as dos sexos a fundante do código de “honra do macho”. Aragão considera que esse
código diz respeito ao resguardo da sexualidade das mulheres da casa, que guiará a produção
de relações dos homens nos planos político e econômico. Com o ideário individualista no
espaço público brasileiro, o modelo de autoridade familiar, que se replica na rua, se impõe como
“autoritário”, sendo “a violência” um sistema de relações no qual acontece uma desarmonia
entra escalas de valores e sua eficácia ou operacionalidade quando elas são aplicadas
alternativamente nos espáços público e doméstico (ARAGÃO, 2016b).
Através de uma abordagem amplamente generalizante na qual “a sociedade brasileira”
é informada pelo “modelo ético mediterrâneo”, Aragão (2016c) considera que o valor de mães,
filhas e esposas radica na sua pureza e na sua capacidade de sacrificar seu prazer sexual,
focando o ato sexual para a reprodução social, e na habilidade de se tornarem matronas,
“supermães”, fonte de seu prestígio social e, por extensão, dos homens. Para Aragão, havendo
“mãe em toda parte”, também haverá filhos que procuram ocupar seu papel de maneira correta,
de modo tal que esses homens/filhos farão o possível para estabelecer relações públicas que
garantam o bem-estar das mães no núcleo familiar. Derivaria então que esses homens/filhos
procurariam nas relações de aliança uma mãe, no sentido explícito ou por oposição, de modo
tal que a figura moral da mãe seja estendida à esposa no casamento, o que não implica uma
ruptura do filho em relação à mãe e com a casa materna. Para Aragão, esse esposo/filho recriará
no novo lar um universo do qual nunca quis sair, “marcando a esposa” com a “pureza da mãe”.
Luiz Tarlei de Aragão também afirma que quando uma esposa apresenta um projeto de
autonomia ou propõe uma ruptura do casamento, ela perde sua aura de pureza, ficando
estigmatizada aos olhos do marido e do conjunto de relações que a família estabelece no âmbito
público. Isto representa um conflito para o homem como pai/menino: o sexo fica
dessacralizado. Ele não perde só a esposa, perde também sua mãe, pessoa com a qual nunca
rompeu um grau de dependência afetiva, produzindo “paralisia” no homem ou procedendo à
destruição do “objeto da sua dependência”. Para Aragão, a esposa/mãe tem um alto grau
sintético e relacional da sociedade brasileira, mostrando uma posição à qual se aloca um valor
sacralizado na conformação da instituição familiar, concebida como núcleo de emergência da
sociedade. Para compreender as “dinâmicas das violências no Brasil”, afirma Aragão, é preciso
reconhecer as modalidades de legitimação do poder desse modelo ético ou sistema de valores
brasileiro, segundo recortes de classe, região e período histórico. Essas modalidades fundam a
prática cotidiana, são na sua maioria inconscientes, estabelecem o “discurso moral da nação” e
211
legitimam o “direito geral” (natural) brasileiro, o qual tem preeminência sobre o direito
positivo.
Figura 27. Matéria de jornal utilizada por Aline no grupo.
Como Myriam Jimeno (2007) e Lia Zanota Machado (2001), Luiz Tarlei de Aragão
(2016b) considera que o conceito de honra é central para compreender que existem maior peso
e poder de determinação do comportamento e das representações dos valores domésticos sobre
os públicos para a pessoa adulta masculina que, a princípio, se concebe como um pai/filho. Essa
extensão da honra da casa para a rua permite entender o modo de exercer a cidadania e as
diversas formas de violência que, na época do autor, remetiam ao estado de “anomia” do início
da ditadura e à implantação do capitalismo selvagem após 1964. A honra, também caraterizada
por Aragão como uma “ideologia do paternalismo”, estabelece precedências do pai sobre o
212
filho, do homem sobre a mulher, do patrão sobre o empregado e do doutor sobre sua clientela.
Historicamente reportaria ao modelo de organização social escravagista e colonial, no qual a
cidadania estaria reservada a segmentos de classes altas e médias, enquanto as classes baixas e
trabalhadoras seriam categorias sociais sujeitas à lei. O traço dominante do “sistema [nacional]
brasileiro” seria a interdependência dos dominantes e dominados e corresponderia aos valores
aos quais se opõem os promotores da masculinidade igualitária e da sociedade civil. Não
obstante, para Aragão, existiria outro tipo de dependência, à mãe, “uma força ‘benfazeja e
mansa’”, que busca legitimidade no “sacrifício” e que tem o poder de permear e conformar as
relações dos homens na rua.
Se bem a proposta de Aragão possa ser generalizante demais, no sentido de mostrar uma
sociedade brasileira mediterrânea regida apenas por esses valores, como se ela não fosse o
resultado das relações de conquista de populações indígenas e de escravidão das populações
importadas da África, entre outros processos sócio-históricos (como as políticas, também
modernizadoras, de eugenia) a análise estruturalista aqui resumida me permite pensar as
recorrentes narrativas dos homens participantes acerca dos seus afetos por suas mães e filhas.
Também me permite refletir sobre o argumento de verdade dos mesmos, como um relativo à
ideologia paternalista, que menciona este autor, que articula os âmbitos da casa e da rua através
de relações que procuram garantir um sentido idealizado de bem-estar para as mulheres da casa.
Esses homens se pensam como cidadãos no registro da honra e estão vendo no Judiciário
sua passagem para uma categoria social de sujeito merecedor da lei, despojando-o do seu valor
social como cidadão e da sua “autoridade” diante da família – um argumento similar ao que já
apontei para alguns homens adultos em Bogotá (MARTÍNEZ-MORENO, 2013). Como já
ressaltei, chamou a minha atenção durante o desenvolvimento dos grupos reflexivos o tom
carinhoso em relação a filhos e filhas, especialmente estas últimas. Os meninos eram seres
queridos, parceiros com os quais esses homens brincaram e se veem refletidos no futuro, dentro
de uma narrativa de superação de si, continuando sua própria existência através deles. As filhas
eram sujeitos de amor e de proteção, que permitiam suporte de si, razão para se adquirir “força”
a fim de continuar a vida. Em algumas ocasiões, emergia um ciúme quando alguns deles se
referiam à impotência que experimentavam ao verem os novos parceiros das demandantes
exercendo sua “função como pais”, sentimento que se transformava em raiva e se publicitava
como ofensa quando esses terceiros eram assim chamados.
Qual a relação entre esse fluxo afetivo de carinho, proteção, amor e veneração entre
mães, homens acusados e suas filhas (e seu contrafluxo com os sentimentos de responsabilidade
e culpa) e aquilo que foi chamado da “força da mulher”? Parece-me que nos encontramos diante
213
de um esquema de autoridade, um outro “fluxo de poder” que estaria informando essa “ética
mediterrânea” ou esse “complexo de honra e vergonha”. Com a introdução dos valores
individualistas, da sensibilidade jurídica e dos sentimentos que informam um insulto moral que
valoriza a dor na demandante, como mulher com direitos estaríamos assistindo a uma
intervenção nesse fluxo afetivo que cria o senso de relatedness, a mutualidade entre categorias
de parentesco e as relações políticas e de trabalho desses homens no mundo da rua. O
precedente mostra a capacidade de transformação social da Lei Maria da Penha e evidencia
uma tensão entre o que foi chamado de complexo de honra e a implantação da ideologia
individualista, projeto para alguns segmentos nacionais a partir da institucionalização das
primeiras faculdades de direito no Brasil (SCHWARCZ, 1993). Essa tensão cria efeitos
inesperados em relação à utopia de recomposição social nos termos da dignidade humana e da
sociedade civil. Parece-me que a intervenção social e jurídica para criar um sentido de
relatedness na igualdade implica experimentar emoções que desafiam esquemas conhecidos de
autoridade e a incerteza de como proceder no futuro.
Na representação jurídica brasileira, herdeira de valores imperiais relacionados ao
registro da honra, temos. por um lado, categorias de sujeitos merecedores da lei, como bandidos
ou estupradores, nas quais esses homens pretendem não ser enquadrados. Por outro, sua
contraparte de sujeitos tutelados ou hipossufientes, como mulheres e crianças, no caso das
relações familiares, que constituem as vítimas desses homens. É possível pensar o Judiciário e
a tutela como uma extensão das relações da casa na rua? Talvez sim. Quando afirmamos que a
vítima é um sujeito de proteção do Estado estaríamos vendo a reprodução de uma sensibilidade
que valoriza um relatedness relativo ao registro da honra em uma institucionalidade que
teoricamente é impessoal e valoriza a mulher enquanto sujeito de direitos? Etnografias já
citadas, como as de Simião, nos mostram que agentes da civilisation podem compartilhar a
referência à vítima do registro da honra. De outro lado, alguns homens reivindicam uma
identidade circunstancial como vítimas pela “discriminação de gênero” que eles experimentam
com a Lei Maria da Penha, mas não no sentido de buscar a tutela do Estado, mas sim de não
reconhecimento de direitos inalienáveis, mais próximo do sentido outorgado pela lei para a
categoria mulher. Assim como nos encontramos diante de definições diferentes de categorias
de gênero, correspondentes algumas delas ao registro da honra (parentesco) e outras ao registro
individualista, observamos concepções diferentes da categoria da vítima, relativas a cada um
desses registros? Acredito que sim.
Vítima e cidadão parecem ser duas faces do indivíduo moderno, mas creio que uma
pessoa ao se afirmar como vítima, além de depender da desconsideração, apela à maneira como
214
a noção de vítima é configurada nas relações de parentesco e nas sensibilidades jurídicas, para
as quais apelam tanto facilitadores como homens acusados. A afirmação de si como uma vítima
cria o fenômeno de descompasso entre a esfera pública e o espaço público e a sensação de
arbitrariedade na aplicação da norma que Cardoso de Oliveira narra em relação às duas
concepções de igualdade operantes no Brasil. A queixa dos homens sobre o tratamento
discriminatório da lei pode estar dando conta deste enunciado: o de que as mulheres conservam
seus privilégios como sujeitos de proteção no registro da honra e passam a ser tratadas como
“mulher” no registro igualitário, enquanto eles perdem seu lugar como pais e e se transformam
nos criminosos no segundo registro. Pergunto-me se não opera o mesmo raciocínio quando
Heitor critica as cotas raciais ou a noção de cidadania diferenciada e, por extensão, outros
setores sociais que veem nas políticas progressistas um double standard, no qual a igualação
em direitos implica uma perda de autoridade para esses indivíduos e coletivos (ver MOTA,
2014). Uma análise da agência e dos registros do valor vítima se faz necessária.
A noção de “autoridade” vinculada ao registro da honra, na qual os outros reconhecem
uma arquitetura de relações na qual uma pessoa pode exercer poder, parece ser diferente àquela
de “poder” na ideologia individualista, correspondendo a valor e possessão individual, que
permitia aos facilitadores assumirem relações de reciprocidade como relações de opressão e
subordinação (ver MAHMOOD, 2006). Nos grupos, as narrativas que evidenciavam status,
posições diferenciadas e intercâmbios assimétricos de afetos, materialidade e valores que
constituíam o elo social, em que homens e mulheres alternavam posições de precedência,
tornavam-se resíduo indesejado que escapava à ética igualitária. Esse resíduo foi qualificado
como “tradição” ou “cultura” pelos facilitadores, entre outros agentes psicossociais, jurídicos,
ativistas e acadêmicos, que se posicionam a partir de outro lugar de autoridade, ou dado pelo
conhecimento esclarecido, validado institucionalmente. Esse lugar de poder concebe o
complexo mundo de relações de reciprocidade como um problema social e uma violência.
Quando Aragão afirma que a violência no Brasil é produto do conflito emergente entre
categorias de parentesco da civilização mediterrânea e as filosóficas do individualismo, acho
que está privilegiando o ideário igualitário como projeto, o que não constitui uma crítica, dado
o contexto de emergência dos seus textos durante a ditadura no Brasil. Porém, como outros
autores, ele termina substancializando a violência e os privilégios no sexo masculino. Isto,
talvez, segundo o recorte de informantes masculinos das suas pesquisas e a emergência mesma
da categoria de honra como produto de um olhar nominalista da antropologia britânica. João de
Pina Cabral (1991) já advertia sobre o preconceito dos primeiros etnógrafos do mundo
mediterrâneo que, em contraste com as sociedades da Europa setentrional, constituíam o outro,
215
exótico e anacrônico, objeto de pesquisa. Crítica não muito distante da categoria “machismo”,
que começou a ser utilizada política e analiticamente nos Estados Unidos pelas feministas
brancas para descrever identidades e práticas dos migrantes mexicanos neste país (GUTMANN,
2013).
Honra e machismo são antivalores que explicam relações de gênero e,
consequentemente, de violência contra as mulheres na América Latina. Estas duas categorias
tiveram a potência heurística de explicar desigualdades e desconsiderações quanto à dignidade
humana de mulheres e de homens que não correspondiam a uma masculinidade hegemônica ou
cuja sexualidade não se encaixava na norma de heterossexualidade compulsória. O uso destas
categorias tem sido privilegiado a partir do ponto de vista da ética com ”E” maiúsculo, relativo
a uma cidadania universalista, como referia Cardoso de Oliveira outorgando valor ao registro
da política na análise das relações e das identidades sociais, replicando o nominalismo na
análise, o desejo de transformação social e, especialmente, a relação nós-outros.
Quanto a este último ponto, Claudia Fonseca (2000) anota que no Brasil o uso da
categoria de honra tem privilegiado a abordagem de populações pobres ou camponesas, cujas
diferenças de classe são ordenadas em relação aos valores dos pesquisadores de classe média –
de alguma maneira, representantes da sociedade civil. Para a autora, os estereótipos do “macho
latino” estão na base de várias análises sobre “problemas sociais” (como “mulheres
espancadas”) entre populações pobres, replicando um “colonialismo interno”. Concordando
com Fonseca, vários dos estudos sobre a relação entre violência e masculinidade, não só no
Brasil, mas na Colômbia (e talvez na América Latina), abordam as diferenças de valor de
maneira negativa, levando o pesquisador a negar a alteridade e a identidade dos sujeitos na
pesquisa. Um olhar etnográfico, como menciona esta autora, sobre os valores e as relações de
sujeitos moralmente estigmatizados não implica louvá-los, mas permite compreender outras
dinâmicas de poder nas quais categorias de parentesco femininas e masculinas têm precedência
em determinadas situações de autoridade e criam ligações que fogem do parâmetro de
“normalidade” de uma relação conjugal burguesa.
Seguindo o argumento de Fonseca, honra é uma dessas categorias, produto do que Louis
Dumont denominou de apercepção sociológica, que inscreve, por oposição, valores caros ao
pesquisador nos seus interlocutores e em contextos de pesquisa (de maneira similar a como na
Inquisição o pecado era colocado no outro). Levando em conta os alertas de Pina Cabral,
Gutmann e Fonseca, nesta tese a menção ao sistema de honra não tem pretensões sociológicas
normativas, as quais aparecem quase opostas ao ideal liberal de sociedade, mas são um ponto
de partida para caracterizar e interpretar relações de reciprocidade que estavam descrevendo os
216
homens no grupo reflexivo. Amplio também sua capacidade heurística da análise a partir da
categoria de honra, incorporando “a sensação” que vários homens tinham ao descrever a
“prática da ideologia paternalista”, em palavras de Aragão.
Assim, na pesquisa sobre os sistemas de honra, é importante, por um lado, reconhecer
fluxos de poder e afetos entre categorias de parentesco através das relações de dádiva que, por
sua vez, ajudam a conformar o ser mutual das categorias masculinas, que aqui chamei de
“sensação de si”. Essa sensação é produto da interdependência de categorias de gênero, difíceis
de serem registradas pelo antropólogo e que complementam a dimensão inconsciente que a
partir de Claude Lévi-Strauss, passando pelo mesmo Dumont, o estruturalismo tem apontado
para explicar comportamentos explícitos (ARAGÃO, 2016b). Em outras palavras, dar atenção
às categorias de emoção do sistema – que aqui temos metodologicamente denominado de honra
– nos permite atentar para as razões morais do mesmo, bem como para o posicionamento dos
sujeitos nele inscritos, seus modos de objetivação e agência, sem que isto constitua um ato de
nihilismo ou relativismo cultural, sendo estas as apreciações de um registro individualista.
4.8 Vitimização e responsabilização
A figura da vítima é um valor social poderoso que organiza o trabalho de intervenção
psicossocial no âmbito da implantação da Lei Maria da Penha. Ela é a contraparte do cidadão e
de um indivíduo cuja dignidade não é reconhecida nos termos da filosofia dos Direitos
Humanos. Ela também é sujeito de tutela, como se fosse a extensão das categorias de parentesco
femininas no âmbito público, que coloca a mulher como sujeito hipossuficiente diante do
Estado. Estamos em face de duas concepções da vítima que operam de maneira simultânea no
processo de responsabilização dos homens acusados de serem violentos. Dois registros, um
individualista e modernizante e outro relativo às relações de reciprocidade do sistema de honra,
mostram formas aparentemente iguais, mas com conteúdo diferente, dadas as afirmações
emocionais distintas que os sujeitos acudados estabelecem em cada um deles.
Esta é uma situação similar à méconnaissance, descrita por Emiko Ohnuki-Tierney
(2002) como ausência de comunicação existente pelo fato de as pessoas não compartilharem
necessariamente o significado, mas onde estão em jogo diferentes significados do mesmo
símbolo e ritual. Esse fenómeno também pode ocorrer quando as partes envolvidas não têm
conhecimento do outro ou desprezam os significados atribuídos pela outra parte, como
aparentemente acontece no grupo reflexivo de gênero, seja em um contexto social ordinário,
seja em um esquema sistemático desenvolvido, por exemplo, em um regime totalitário. Como
217
visto neste capítulo, este fenómeno se aplica não só ao conteúdo das emoções, mas também das
categorias de gênero, parentesco e reconhecimento social circulantes no grupo, as quais
produzem desentendimentos e distintas posições de sujeito sobre noções de justiça com a
aplicação da Lei Maria da Penha.
Como argumentei, no processo de responsabilização, o acusado tenta se dignificar em
um registro que não é gramatical para a filosofia política da Lei Maria da Penha. De outro lado,
os agentes da civilisation interpretam este ato como uma tentativa de “vitimização”, categoria
que coloca esses homens na dimensão feminina e de dependência que os converte em objeto de
sanção social pelos seus familiares e pares no mundo social onde eles convivem. Apesar de
alguns deles apelarem para a identificação circunstancial com a vítima de um poder arbitrário,
em função do princípio institucional do contraditório subjacente à lógica inquisitorial do
sistema jurídico no Brasil (MENDES, 2008; LIMA, 2012), isto não implica se dignificar
ocupando esse lugar social. Tanto agredida como acusado experimentaram a desconsideração,
ultrapassando o par moral da vítima e do agressor, que dá conta de uma relação de poder
opressor que serve de base para analisar os fenômenos de violência doméstica contra a mulher
e da interdependência entre lócus familiar e mundo da rua no registro da honra.
Ser vítima não seria só exercer uma agência a partir do lugar de impotência ou
passividade como pensado no registro individualista, mas tornar-se digno diante da
adversidade, demonstrando que a pessoa lutou e mostrando sua inocência como no registro da
honra (ver GREGORI, 1992). Os homens que acompanhei não se dignificaram ou se sentiram
gratificados em nenhum dos registros. Estamos diante de uma importante diferença de gênero
para compreender a possível sujeição desses homens ao discurso dos Direitos Humanos através
da lei penal e dos processos pedagógicos, como os grupos reflexivos de gênero.
A partir do caso de genocídio e posterior revisão da história particular dos envolvidos
no conflito para ocupar o lugar da vítima na Iugoslávia, Theophilos Rifiotis (2014) considera o
“encantamento” da condição de vítima como matriz de subjetividade a partir da qual se pode
agir e reivindicar os Direitos Humanos. Para o autor, há uma “tentação de inocência” diante da
titularidade do estado de direito, criando paradoxalmente uma “desresponzabilização” do
sujeito. O outro sempre é o culpado pela infelicidade e a incompletude da experiência de
sofrimento no presente. Infantilismo, nas palavras do autor. Existiria uma perplexidade do
sujeito contemporâneo diante da liberdade, pois ser sujeito de direito também seria uma
reafirmação da sua minoridade como vítima.
218
Figura 28. Propaganda de projeto para a equidade de gênero do estado do Rio de Janeiro.
No grupo reflexivo, esses homens não querem ser menores diante de agentes da lei que
os destituem do seu “poder pátrio”. Embora eles culpem as demandantes pelo padecimento da
denúncia e do seu trânsito pelo Judiciário, eles não apelam para a inocência para desculpar a
agressão. Infantilismo? Provavelmente sim, levando em conta que eles não deixam de ser
crianças em relação às suas mães... Vitimização e sujeição ao estado de direito? Talvez não.
Dadas as diferenças de gênero acima descritas, relativas às ideologias do sistema da honra e às
relações de reciprocidade que tentam cristalizar o valor da família e sua figura moral como bom
pai e esposo, muitos homens no juizado e no Instituto de Práticas Sistêmicas não se
consideravam como sujeitos com direitos substantivos na relação de casal, o que lhes permitiria
aderir à visão de mundo implícita na Lei Maria da Penha.
O trabalho do grupo reflexivo pretendia produzir “a implicação na própria conduta”,
essa inflexão moral que faria mudar de um sistema moral para outro, que valoriza a noção de
“identidade de gênero” como prisma para enxergar as falsas crenças do passado e a dor
perpetrada por eles à vítima, o que constituía um problema com o Estado, para o qual eles
deveriam ser esencialmente homens igualitários no futuro. Essa narrativa moral entrava em
conflito com as diferenças de gênero e os afetos circulantes nas relações de reciprocidade, que
219
configuram pessoas morais diferentes e complementares, e a sensação de si (emergente na
mutualidade nas relações de parentesco). A partir desta perspectiva, modelar um self marcado
por gênero, cujo valor constituinte é o indivíduo moderno com direitos substantivos, pode ser
uma tarefa bem mais complexa. O “deslocamento” e a “mobilização” induzidos pelos
facilitadores no grupo reflexivo de gênero geravam mais um “mal-estar” para esses homens se
assumirem como entes da filosofia dos Direitos Humanos.
Ressalto a importância de analisar o complexo jogo de configuração da agência nas
relações de gênero e parentesco na sua interseção com a judicialização das relações sociais. Isto
permitiria aos operadores de leis fundamentadas no valor do indivíduo com direitos
substantivos (como as relativas a populações LGBT, étnicas, raciais e até mesmo ambientais)
compreenderem o fenômeno da vitimização e da sujeição ao estado de direito. Estamos diante
de homens cuja noção de responsabilidade se configura na mutualidade e seu self se dignifica
com a criação de lugares morais na relação com parentes, amigos e colegas de trabalho, que
lhes outorgam autoridade e poder, submetendo-os às forças regidas pelo sentimento, e os
distinguem de categorias como criminosos, bandidos e estupradores, verdadeiros merecedores
da lei estatal. Estamos diante de um tipo de cidadania que se baseia na ocupação de lugares
diferenciados e interdependentes de categorias de gênero, de parentesco, âmbitos públicos e
privados e categorias dignas e de criminosos, tipo este que não só responde à ideia de sociedade,
mas também ao sistema de parentesco e à noção de ser vítima.
Como visto nos primeiros capítulos, a categoria de vitimização transita entre o campo
acadêmico, jurídico e político, sendo estruturante da intervenção social e da implantação da Lei
Maria da Penha. Durante as entrevistas preliminares e no transcorrer das primeiras sessões dos
grupos, os facilitadores qualificavam como uma tentativa de vitimização o ato de justificação,
de não assumir a responsabilidade pelos próprios atos de violência e tentar se afastar da
categoria de agressor. O interessante é que esta categoria também era utilizada por vários
autores consultados, que fizeram trabalho de campo ou cujo interesse eram os grupos reflexivos
de gênero para homens autores de violência, com um uso similar ao dado por Aline ou Thor
(ver BILARD, 2016; PAZO, 2013; LEÓN-AMAYA, 2015; LOPES, 2016). Tanto nos textos
acadêmicos quanto nas práticas de facilitação nos grupos, a vitimização denotava também uma
ausência de controle das emoções pela perda do poder, a tentativa de usurpação do legítimo
lugar da denunciante no Judiciário e uma expressão a mais do patriarcado. Autores e
facilitadores vinculavam assim a psicologia do ego com um sistema moral e de relações sociais,
considerado anacrônico e desajustado ao projeto social e de indivíduo que se afirma a partir da
sua emoção, o qual deveria emergir após a participação dos homens no grupo.
220
A qualificação de vitimização por parte de pesquisadores e facilitadores em relação aos
sentimentos expressados pelos demandados metodologicamente exige colocar em suspenso o
par moral e individualizante possível no Judiciário para abordar a demanda de respeito tanto de
demandantes quanto de agressores como indivíduos em dois registros, sensibilidades ou redes
de relações. Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2007) está certo ao afirmar que a análise das
narrativas de reciprocidade desvela evidências simbólicas que permitem compreender não só o
conflito, mas igualmente as pessoas morais de pai, esposo, trabalhador, mãe, esposa e dona do
lar que estão sendo questionadas ou colocadas em dúvida e não correspondem de maneira
unívoca ao par de antagonistas privilegiado pelo Judiciário. O pesquisador deve estar atento ao
fato de não confundir ou misturar o sistema de pessoas morais com o ideal ético de cidadania
na ideologia individualista. Com isto não nego que nossos interlocutores se apropriam ou falam
de valores tão poderosos como os de vítima ou cidadão, que já fazem parte de uma linguagem
de afirmação política nos estados de direito contemporâneo, como bem lembram Myriam
Jimeno (2010) e Didier Fassin e Richard Rechtman (2009). Mas, na medida em que o
pesquisador consegue compreender o que está em jogo na categorização de vitimização, ele
poderá distinguir melhor o tratamento institucional “individualista” dado a conflitos morais
“holistas” e o exercício de cidadania possível em meio à tensão entre sistemas morais.
A partir de casos sobre stress pós-traumático nos Estados Unidos e na França, Fassin e
Rechtman argumentam que durante o século XX a categoria de trauma passou de ser de uso
restrito da psiquiatria e da psicologia, pois era colocada em dúvida a experiência de veteranos
de guerra e trabalhadores que sofriam acidentes laborais para ter uso social mais estendido na
reivindicação de direitos de indivíduos e de algumas populações que mostravam uma verdade
irrefutável sobre a experiência de dor e sofrimento. O uso atual do trauma da vítima se vale do
“sentimento de empatia” como constitutivo do vínculo social e das demandas de compensação
por parte do Estado. Para os autores, o uso da categoria de trauma outorga um sentido universal,
independente de qualquer contexto cultural e autônomo em relação a outros diagnósticos e
sintomas.
Fassin e Rechtman elaboram uma história social na qual, ao longo do século XX,
psiquiatras e psicólogos que dialogavam com movimentos sociais de direitos humanos,
representantes das vítimas da violência, como o feminista, conformaram um ramo de estudos
específico sobre o trauma. A memória do Holocausto é o ponto inicial de manifestação coletiva
do trauma na arena pública, sendo paradigmático em dois sentidos: representa uma forma
extrema de violência, referência da dor e do sofrimento, e aparece depois de um período de
silêncio, o que dá veracidade ao trauma. Os psicanalistas que trataram pacientes sobreviventes
221
do Holocausto associaram os eventos coletivos de dor e sofrimento (a substância do trauma) à
experiência do indivíduo que é narrada como testemunho do drama coletivo, estabelecendo um
vínculo entre cultura e psique. A matriz dolorosa do Holocausto foi universalizada através da
criação de laços de empatia e de comunhão como necessários para a consolidação da noção de
sociedade.
Fassin e Rechtman advertem que, com o tempo, a universalização do trauma derivou
em sua trivialização, no sentido de que uma vítima de genocídio tinha o mesmo status que uma
de estupro ou mesmo de uma briga verbal, por exemplo. Na última década do século XX, a
tensão entre universalização e historicidade (ou gradações) do trauma configurou um fenômeno
contemporâneo ainda pouco estudado, a concorrência entre categorias de populações tratadas
como vítimas para definir, por um lado, quem é a verdadeira vítima (os autores referem a
migrantes, mulheres e árabes na França) e, por outro, a prioridade na reivindicação de direitos
diante do Estado. Para os autores, esse movimento é reconhecido como “vitimização”, sendo
algumas vítimas mais legítimas que outras a partir do ponto de vista de quem avalia o trauma.
Em outras palavras, a vitimização é uma categoria classificatória do agente com poder científico
e político que oblitera experiências individuais ao mesmo tempo em que escolhe quem é a
vítima de verdade, validando sua causa, seu infortúnio ou sofrimento. A vitimização é um
julgamento político que cria uma gradação ou ranking entre boas e más vítimas.
4.9 Apercepção sociológica
A antropologia tem tido dificuldade de lidar com agressores e personagens moralmente
condenáveis, como torturadores, estupradores ou assassinos. Fassin, Rechtman e Rifiotis
argumentam que existe uma fascinação em torno do discurso da vítima, que é tomado como um
dado, universal e atemporal, pelos pesquisadores dos contextos de violência, sem que seja
tomado o devido distanciamento. Como os autores referidos, James Waldran (2012) argumenta
que usualmente os etnógrafos descrevem de maneira “empática” seus interlocutores, o que é
possível dada a estreita relação entre o pesquisador e eles. No campo de pesquisa, eles vivem
uma experiência na qual histórias íntimas ou de cunho privado são compartilhadas por meio do
processo de engajamento moral de escutar e testemunhar as vicissitudes pessoais, muitas vezes
de indivíduos ou de populações vítimas, desempoderadas ou oprimidas.
A habilidade literária do etnógrafo transmite uma sensibilidade sobre o abuso de poder
de terceiros que criam e mantêm iniquidades e sofrimento. Para Waldran, os trabalhos
produzidos na perspectiva do “sofrimento social”, paradigma dominante na antropologia
222
médica feita nos Estados Unidos, que adota uma postura militante para denunciar os vexames
aos quais são submetidos os protagonistas dessas etnografias, têm tido o efeito de persuadir e
comover o leitor a favor dos ultrajados. Em oposição, a descrição dos perpetradores da violência
retratada nesses trabalhos não permite estabelecer um “vínculo de empatia” e muito menos um
esforço de entendimento desses sujeitos. Na introdução desta tese, eu me perguntava como
trabalhar com objetos que colocam à prova nossos “irredutíveis morais”, utilizando a expressão
de Mary Douglas (1991). Waldram, que fez uma etnografia sobre a intervenção terapêutica com
estupradores em um presídio do Canadá, se pergunta se nós, antropólogos, dedicamos o mesmo
esforço para apresentar a perspectiva dos “bandidos” e tornar compreensível aquilo que para
nós é feio e reprovável.
As antropologias feitas na América Latina, incluídas as brasileiras, enfatizam o papel
político do antropólogo enquanto pesquisador e cidadão, com quem a produção acadêmica teve
incidência em processos políticos de reconhecimento de direitos e afirmação de cidadania de
populações e sujeitos tidos por vulneráveis, excluídos ou violentados por ações e omissões na
implantação de políticas de governo ou de grandes empreendimentos, nos quais estão em jogo
vultosas somas de dinheiro. É difícil desvincular o caráter engajado dos antropólogos do seu
trabalho analítico, reconhecendo que a produção antropológica não se assume como apartada
das controvérsias políticas nas quais o antropólogo está imerso. A nossa produção científica
tende a reconhecer de entrada nossos pressupostos políticos, desmistificando a ideia de uma
desconexão entre produção científica e contexto social. Desse modo, a Kultur é apresentada
nos termos da dignidade humana da civilisation, de tal modo que o embate de poder entre
minorias e sociedades nacionais seja, na medida do possível, mais justa no paradigma da
cidadania liberal.
Esta postura faz parte das ciências sociais, dos estudos de gênero e feministas e dos
trabalhos sobre masculinidades: seu caráter não podia ser outro dado seu contexto de
emergência política de consolidação da sociedade civil e igualitária. Myriam Jimeno (2007)
declara que com a afirmação dos Estados nacionais na América Latina aconteceu a instauração
de uma subjetividade vinculada ao paradigma liberal, com o qual as ciências sociais, a partir de
diversas perspectivas teóricas, tenderam a fusionar conceitualmente conflito, agressão,
violência e crime como se caraterizassem uma entidade destrutiva. Em boa parte da sociologia
latino-americana ganhou força a ideia da coesão e da integração social e nacional, relegando o
conflito social ao lugar de mal-estar social. O processo histórico das ciências sociais de
ignorarem o conflito e a violência também ajuda a compreender a moralização das expressões
223
de agressão e outras formas emocionais, vistas como disfuncionais, desestruturantes ou
desagregadoras do projeto social iniciado no fim do século XIX.
A dificuldade da teoria social vinculada ao paradigma liberal para compreender os
conflitos e a sua resolução pela violência seria um efeito do “processo civilizatório” de
autocoerção individual e monopólio da violência pelo Estado, descrito por Norbert Elias (1994).
Ela também tem correspondência com a exaltação histórica dos sujeitos reprimidos pela
agressão e com a desconsideração da “violência”, como uma forma de socialização, nas
palavras de George Siemmel (citado por JIMENO, 2007), que integra ou desagrega. Assim
como Luis Fernando Dias Duarte (2013), que menciona que os intelectuais são portadores e
servidores da ideologia moderna, considero que os cientistas sociais não escapam do “habitus”
moderno de depreciação da expressão de emoções incivilizadas.
Nos últimos trinta anos as abordagens sobre masculinidades na América Latina têm se
caracterizado como um campo interdisciplinar que conjuga estudos de gênero e sexualidade
com a intervenção psicossocial e jurídica. Tanto analistas como gestores de política pública
buscam compreender relações de poder e propor a transformação das identidades masculinas
nas suas relações sociais cotidianas em razão de privilégios, violências e opressões que os
homens exercem sobre as mulheres. Este campo integra trabalhos heterogêneos que respondem
a variadas orientações e a interesses em relação ao desenvolvimento social, à inserção das
mulheres no trabalho formal, ao fim da violência contra as mulheres, à apropriação do corpo
dimensionado pelo gênero, à sexualidade, à saúde e aos direitos e à transformação das relações
entre pais e filhos, promovendo a dimensão do cuidado na criação. Alguns autores tentam
contextualizar a relação entre identidades masculinas e entre distintas formas de violências
históricas e estruturais, produto da colonização europeia, do desenvolvimento do capital, da
dominação de oligarquias e dos regimes militares. Outros, vinculando academia com
intervenção social, tentam sair de lugares comuns relativos à dicotomia agressor versus vítima,
ao mesmo tempo em que vinculam as masculinidades a “complexos culturais” machistas (cf.
panorama do campo em VIVEROS, 2002, 2003).
A contextualização etnográfica permitiu compreender complexas trajetórias em função
das quais alguns homens terminavam ora exercendo, ora participando de “contextos de
violência”, para mostrar como relações e identidades tidas como tradicionais ou culturais
legitimam desigualdades, desvantagens, vexames e vulnerabilidades para mulheres e alguns
tipos de homens. Essa visibilidade dá argumentos a ativistas e gestores para proporem
normativas de proteção, e sofistica procedimentos de intervenção social e atendimento
psicossocial. Porém, precisamente a “violência” aparece como um dado que na análise
224
sociológica conjuga explicações culturalistas que remetem ao passado, às análises das relações
de poder que mostram um presente problemático, e a imperativos filosóficos sobre os Direitos
Humanos que projetam um futuro utópico e incerto. Ela é uma das narrativas morais da
modernidade, em que a ideia de progresso e o contraste com um outro barbarizado são as chaves
para a compreensão histórica da agência humana que, através da aquisição de consciência de
si, se liberta da tirania do passado, da tradição e da cultura.
Figura 29 Pai e filha
Com a emergência de leis e políticas públicas de combate à violência de gênero ou
contra as mulheres nos últimos 15 anos, autores retomaram o par oposição agressor e vítima e
integraram categorias penais, gerando uma “criminologia feminista” com a qual certos tipos,
como violência psicológica, sexual, de gênero, intrafamiliar, patrimonial, entre outras,
começam ser institucionalizados e relações sociais enquadradas na contratualidade. Autores na
225
fronteira entre o ativismo, a intervenção social e a academia conjugam a análise da psicologia
do ego (consciente e reacional) com a sociologia e a antropologia para dar conta da participação
e da autoria dos homens em contextos que desconsideram a pessoa humana da mulher, passando
das relações de casal ao conflito armado 38 , e configurando “ciclos da violência” que não
permitem à vítima romper sua relação com o agressor.
Como ressaltam Adriano Bieras (2012) e Marcos Nascimento (2001), o campo das
masculinidades é produto da reflexão feminista, sociológica e de gênero sobre o lugar social de
homens e mulheres na vida social. O diálogo proposto com este campo tem privilegiado
aproximações com o masculino e com as masculinidades, inspiradas no conceito de hegemonia
de Antônio Gramsci, em postulados pós-estruturalistas e na abordagem da interseccionalidade.
Estas aproximações sociológicas localizam práticas, representações e identidades que mostram
como os homens estão marcados pelo gênero, constroem suas relações de poder e dominação
com as mulheres e outros homens e são vítimas do sistema de gênero, mostrando, por oposição,
seu lugar na estrutura em relação ora ao ideal de cidadão, ora ao projeto individual, nunca
atingido a causa dos imperativos sociais. Para Thor, Aline e os pioneiros das masculinidades
igualitárias, fazia sentido esta forma de entender o gênero nos homens.
Um dos conceitos mais utilizados é o de “masculinidade hegemônica” que, como vimos,
vira um valor no meu campo na caracterização do comportamento dos homens por parte de
Thor, por exemplo. Este conceito foi cunhado por Raewyn Connell (2005 [1995]; CONNEL;
MESSERSCHMIDT, 2005) para problematizar assimetrias e diferenças de jovens
escolarizados na Austrália, e enfatiza os papéis, a mudança e o contexto em que ele é exercido.
Uma noção similar à ideia de estrutura que é estruturada e que é estruturante, na qual a
hegemonia é entendida contextualmente e estabelece duas classes de pessoas: as que exercem
poder sobre os outros que são oprimidos, os quais são caraterizados como “masculinidades
subordinadas”. Nas palavras de Miguel Vale de Almeida (1996), a masculinidade hegemônica
seria um modelo cultural ideal inalcançável pelos homens, exercendo sobre todos eles (as
mulheres também) um efeito controlador, constituído por assimetrias e hierarquias relativas a
uma constante vigilância e disputa na aquisição, na manutenção e na definição do modelo.
A referência à obra de Michel Foucault e Judith Butler permitiu a um conjunto amplo
de autores e interventores dar conta do gênero como uma propriedade do indivíduo em termos
identitários, bem como efeito das performances linguísticas e das relações de poder
institucionalizadas entre categorias femininas e masculinas, e entre homens e mulheres, que
38
Existe um enorme número de trabalhos que abordam a relação entre violência e masculinidade. Para um
panorama mais detalhado do debate, ver Beiras (2012) e Nascimento (2001).
226
definem suas posições no discurso e nas relações sociais. Isto coloca os homens que encarnam
mais fielmente a norma acima das mulheres e de outros homens, como os homossexuais, por
exemplo. Estas posições dependem discursivamente da valoração de certo tipo de
masculinidade que, passando ao plano político do campo, é definida como hegemônica,
violenta, machista ou patriarcal. Esta perspectiva de análise, que dialoga com outras formas de
conceber o gênero, ora a partir das políticas da diferença, ora a partir da filosofia do devir,
permite apreciar matizes, misturas e trânsitos dos indivíduos entre categorias de gênero.
Finalmente, os analistas e os ativistas também outorgam dignidade analítica a indivíduos
e coletivos que desafiam ou contestam as categorias fixas de gênero, os quais, através da sua
agência, se colocam como sujeitos políticos que questionam ordens de poder excludentes
relativos ao sujeito transcendente humanista ou ao homem como representante do patriarcado.
Este sujeito contrasta por oposição com os homens empíricos descritos por “marcadores sociais
da diferença”, permitindo estabelecer uma crítica ao exercício do poder e da realização do ideal
de cidadania segundo variáveis de classe, raça, sexualidade, geração, procedência regional,
entre outras. Estas variáveis sociológicas ao mesmo tempo em que localizam o indivíduo,
conformam-no internamente: marcam sua perspectiva na sua diferença corporal. Como narrado
no primeiro capítulo desta tese, o projeto “Homens, saúde e vida cotidiana” privilegiou esta
perspectiva, a qual também está na base dos primeiros grupos reflexivos de gênero no Rio de
Janeiro.
Estes enfoques privilegiam identidades que se tornam substanciais ao serem marcadas
pelo gênero e que ficam inscritas na relação indivíduo-sociedade. Também apresentam uma
oposição entre indivíduo e pessoas morais inscritas nas relações de reciprocidade, estas últimas
expressões da categoria de cultura. O valor homem termina substancializando e representando
a cultura e o patriarcado, sendo eles carentes de atributos democráticos, liberadores ou
emancipatórios. Uma imagem quase orientalista emana destas representações. Nela, Mustafá
mantém cativa a donzela no seu harém e o cavalheiro é o único capaz de libertá-la.
A antropologia, ao mesmo tempo em que contribui com o campo das maculinidades,
considerando a diversidade de identidades e práticas de homens em relação a outros homens e
mulheres, também problematiza a implantação da categoria masculinidade, no singular, em
contextos etnográficos “não ocidentais” ou em processo de modernização. Como já mencionei,
boa parte da produção acadêmica sobre os homens e as masculinidades emergiu a partir da
crítica dos estudos de gênero e feministas relativos ao lugar da mulher na vida social e dos
desafios de mostrar os homens como marcados pelo gênero. Porém, como argumenta Matthew
Gutmann (1997), a antropologia também tem se preocupado com papéis e posicionamentos
227
diferenciais de homens e mulheres a partir do seu nascimento como campo disciplinar
autônomo, através do exame de categorias tais como “patriarcado”, por Lewis Morgan,
“autoridade” e “pulsão sexual”, por Bronislaw Malinowski, ou “caráter”, por Margareth Mead,
entre outras. E também por implodir categorias de gênero na análise de contextos etnográficos,
mostrando como elas se relacionam com as noções de indivíduo e sociedade, próprias da
epistemologia moderna (STRATHERN, 2006 [1988]; MOORE, 2007), razão pela qual os
antropólogos tenderiam a estar cientes da apercepção sociológica que produz um olhar
individualista.
A ênfase no indivíduo e na sua relação com o ideal cidadão não pode ser descartada na
análise antropológica, porém um vasto material etnográfico sustenta que as categorizações de
gênero estão também baseadas nos papéis, naquilo que homens e mulheres fazem: a ação está
em relação à construção simbólica das categorias e dos valores. A compreensão das diferenças
de gênero também está em relação à afetação entre pessoas nas relações de reciprocidade. Aqui
as noções de mutualidade do ser, participação, pessoa e reciprocidade são importantes para a
análise, pois a partir delas podemos caracterizar individualidades, lugares morais, expectativas
sociais, precedências nas relações sociais e sensações de si ocupando um lugar social. Isto nos
permite compreender o lugar do sujeito no discurso (MOORE, 1994, 2007). Reciprocidade e
pessoa são formulações clássicas feitas por Marcel Mauss (2011) que, a parir do trabalho de
Malinowski (1973), entre outros autores, coloca a dádiva no centro da reflexão da constituição
do elo social e que muitas vezes aparece como um “antivalor” nos estudos sobre
masculinidades, os quais privilegiam a contratualidade e as relações simétricas.
As três obrigações encadeadas de dar, receber e retribuir têm tido potencial heurístico
para a antropologia. Elas mostram como circulam não só bens, mas palavras, valores,
sentimentos e símbolos, que outorgam formas e conteúdos particulares às relações rociais.
Mostram também que o que circula não é a representação da pessoa, mas a pessoa em si,
apontando, por um lado, a inalienabilidade entre a pessoa e o conteúdo da relação social e, por
outro, que o que circula faz parte da noção de si dos doadores. Isto nos permite entender melhor
a noção de participação e de mutualidade do ser. Cabe destacar que, mesmo que as pessoas
sejam interdependentes, isto não significa que não possam ser concebidas como indivíduos, que
não exista uma individualidade ou que não possuam capacidade de agência ou intencionalidade.
Como já descrito, a sensação de ocupar corretamente um lugar moral faz parte da singularidade,
o que permite, por exemplo, avaliar as ações dos homens autores de violência e dos facilitadores
em trajetória ou carreira individual e descartar a oposição ou a precedência evolutiva entre
pessoa e indivíduo. Abordar a reciprocidade junto com a mutualidade permite analisar questões
228
sobre agência e estrutura, hierarquia, assimetria e poder. Com isto, esta tese contribui para o
debate sobre o pressuposto da contratualidade da sociedade, o princípio de interesse do
indivíduo moderno e a noção de sociedade em si (STRATHERN, 2006).
Aquilo que chamamos de cultural – a cultura do outro – possui um ordenamento, uma
lógica, uma forma e um conteúdo de sentimentos e emoções relativos à organização e à
circulação das dádivas que permitem a sensação de ocupar ou não corretamente os lugares como
pessoa no elo social. Mesmo encontrando morfologias sociais similares em contextos
diferentes, elas necessariamente não são as mesmas no seu conteúdo. Por esta razão, afirmo que
valores como o “machismo”, que caracteriza relações de poder no sentido do ordenamento de
categorias de gênero na América Latina, como se ela fosse uma região cultural homogênea, diz
mais respeito à perspectiva moderna de quem categoriza e não tanto à maneira como homens,
mulheres e categorias de parentesco configuram relações em contextos específicos. A proposta
é, por um lado, fazer uma aproximação contextualizada da constituição do elo social e da
individualidade dos homens autores de violência em relação a uma narrativa moral que se
institucionaliza no Judiciário e em organizações não governamentais, a qual assume o valor do
indivíduo moderno como referente ao ordenamento da socialidade e que cria por oposição um
“novo primitivo”, objeto de intervenção social, penal e acadêmica (MART́NEZ-MORENO,
2013b). Por outro, é analisar como esses novos primitivos se posicionam diante da tentativa
classificatória do analista ou do interventor social e como as propostas corretivas ou preventivas
podem apelar para uma “lógica” que faça sentido para os atores envolvidos 39, permitindo a
“mudança social e cultural” através da negociação, da subversão e da redefinição de valores,
categorias e relações sociais (SILVA; SIMIÃO, 2017, 2016).
4.10 Quarta síntese
O exame da implantação do projeto de masculinidades igualitárias através dos grupos
reflexivos no marco da Lei Maria da Penha mostra uma atualização da relação entre um nós
civilizado e um novo primitivo marcado pelo gênero. A análise do uso da categoria de gênero
e da ideia de direito inalienável nas práticas de responsabilização dos psicólogos e dos
facilitadores de grupos reflexivos apresenta uma oposição entre uma ideologia individualista e
ou relações de reciprocidade e estados do ser que a antropologia tem caraterizado como domínio
39
Daniel Simião, em uma comunicação pessoal em 2012, comentava como em Timor Leste os criminosos que
iam para prisão achavam esta pena um momento de descanso, de lazer, talvez. A ausência de uma compreensão
da “liberdade” como entendida pelos ocidentais não surtia o mesmo efeito coercitivo para os timorenses.
229
ou âmbito da constituição dos vínculos de parentesco. A caracterização do outro por meio de
recursos como a noção de honra ou o machismo indica a tentativa de definição de uma fronteira
de modernidade e, consequentemente, de depuração daquilo que chamamos de cultura. A
vontade de intervenção na dimensão emocional do indivíduo para a criação de um sujeito
consequente politicamente segundo o ideal de sociedade igualitária e reconhecedora da
diferença da subjetividade entre homens e mulheres mostra a intensa energia investida para a
demarcação da fronteira de modernidade na afetividade como lócus de conformação da
individualidade, dos objetos e dos sujeitos e do elo social no pensamento individualista.
Chama a atenção a diferença da relação do sujeito de intervenção, o homem autor de
violência, com os dois sistemas, o que fica evidente na sensação para incorporar ou viver
valores despersonalizados do sistema filosófico individualista ou na conformação de uma
relação de mutualidade com pessoas do sistema de parentesco. A definição de um possível
sujeito de direito passa por essa diferença, que muitas vezes foi caracterizada como tensa neste
capítulo. Tal diferença não diz a respeito apenas ao novo primitivo acusado de violento, sobre
o qual a marca da modernidade é colocada para produzir inflexões morais através das
mediações semióticas e das narrativas morais sobre o gênero dos homens. A diferença também
é relativa à vigilância do preconceito do próprio facilitador, a qual é expressiva da sua tristesse
e da não modernidade, citando a formulação de Otávio Velho (2003). Neste caso, ele impõe um
referente moral para a transformação de si, que deve ser coerente com seu ideal de modernidade.
Até este capítulo, meu foco esteve na relação entre esses dois ideários, que
metodologicamente distingui entre o individualista modernizante e outro caracterizado na
literatura e por meus interlocutores como o da honra, machista ou patriarcal, através da forma
semiótica do grupo reflexivo de gênero – e que tem na categoria de “força” um fundamento
para explicar as relações entre os sexos e a agência individual. No decorrer do campo, durante
o ano de 2015, continuei acompanhando a implantação do projeto de Thor, bem como mantive
contato com alguns dos homens que conheci no juizado de Niterói. Dada a oposição emergente
no meu campo entre individualismo e parentesco ou entre modernidade e não modernidade,
passei a registrar a demarcação da fronteira que separa humanos de primitivos, agora de maneira
independente, acompanhando de separadamente os agentes da civilisation e os homens
marcados pelo gênero. Descrevo e analiso o trabalho adiantado por Thor para formar novos
facilitadores de grupos reflexivos de gênero e consolidar uma prática ética de diálogos internos
para o reconhecimento da própria violência, requisito necessário para adquirir a experiência de
grupo e poder facilitar a palavra em outros contextos.
230
No quinto capítulo deste trabalho apresento algumas situações de cursos de formação
para profissionais de juizados e organizações não governamentais, interessados na implantação
da Lei Maria da Penha. O sexto e último capítulo descreve a vida de dois homens que passaram
pelos grupos reflexivos do juizado de Niteroi, sendo ambos de extrato popular. A partir das
narrativas sobre as brigas com as parceiras e outras situações entre familiares e amigos, abordo
a relação entre moralidade, parentesco e individualidade para compreender as maneiras de falar
de si nos contextos sociais nos quais esses homens circulam e o que isso implica em termos de
sociabilidade e avaliação dos valores de uma classe média intelectualizada e psicologizada.
231
Capítulo 5
O conhecimento de si e a dádiva da vítima
–Parsifal:
Nur eine Waffe taugt:
Die Wunde schließt
Der Speer nur, der sie schlug.
Sei heil, entsündigt und entsühnt,
Denn ich verwalte nun dein Amt!
Gesegnet sei dein Leiden,
Das Mitleids höchste Kraft
Und reinsten Wissens Macht
Dem zagen Toren gab.
Den heil'gen Speer,
Ich bring' ihn euch zurück!
Oh! Welchen Wunders höchstes Glück!
Der deine Wunde durfte schließen,
Ihm seh' ich heil'ges Blut entfließen
In Sehnsucht nach dem verwandten Quelle,
Der dort fließt in des Grales Welle.
Nicht soll der mehr verschlossen sein:
Enthüllet den Gral! - Öffnet den Schrein!
–Coro:
Höchsten Heiles Wunder:
Erlösung dem Erlöser!
Cena final da ópera Parsifal.40
5.1 Vítima, agressor e testemunha
Este capítulo apresenta o acompanhamento de meus interlocutores agentes da
civilisation na tentativa de depurar a não modernidade localizada no próprio corpo dos
promotores de grupos reflexivos de gênero. Aqui descrevo algumas situações das “formações”
que Thor desenhou para que pessoas interessadas na facilitação de grupos reflexivos de gênero
pudessem ter “a experiência de grupo”. Essa experiência diz respeito à revisão da “própria
violência”, da prática dos “diálogos internos” e de propriciar uma fala “sem julgamento do
outro”, que convide esse outro a “se desarmar” e deixar fluir suas emoções. Este é um tipo de
prática ética que é pensada por Thor e seus colegas do Instituto de Práticas Sistêmicas
40
–Parsifal: Só uma arma é adequada: / só a arma que a produziu / a ferida fecha. / Fica sano, sem pecado e
expiado, / porque agora eu faço teu Ofício! / Abençoado seja teu sofrimento, / que deu a força suprema da
compaixão / e o poder da sabedoria mais pura / ao tímido louco. / A lança sagrada, / trago-lhes de volta! / Oh!
Qual a maior felicidade deste milagre! / Esta arma que pôde fechar a ferida, / eu a vi derramar sangre sagrado, /
desejando esta fonte similar, / que brota e flui no Graal. / Não deve estar mais fechado: / Descubram o Graal!
Abram o santuário! – Coro: Milagre da salvação suprema! / Salvação ao Redentor!
Parsifal, protagonista da ópera com livreto e música de Richard Wagner (1882), é o inocente louco quem
após uma longa jornada de crescimento espiritual, assume a condição de protetor do Graal.
232
consequente politicamente com o ideário da sociedade civil e igualitária e que é informada por
autores e autoras das psicologias construtivista social e sistêmica. Estas formações recorriam a
mediações semióticas para conceber e contornar a violência, a própria e a do outro, por meio
da análise da afetação emocional de três figuras morais do ideário individualista relativas ao
campo da justiça: a vítima, o agressor e a testemunha, estes três tidos como valores.
Didier Fassin e Richard Rechtman (2002) argumentam na sua história acerca da
economia moral gerada a partir da categoria de stress pós-traumático da vítima que a junção do
ativismo em função do reconhecimento das vítimas do Holocausto e os paradigmas científicos
da psiquiatria e da psicologia permitiu a restruturação das bases morais e cognitivas que
definem o infortúnio, a memória e a subjetividade. O resultado foi a criação de um sistema de
conhecimentos e valores que colocaram a experiência da vítima como protagonista de uma
verdade social irrefutável. Tal verdade estava contida na linguagem das políticas de reparação,
testemunho e elaboração de provas, o que permitiu simultaneamente abordar clinicamente o
sofrimento e reivindicar direitos por parte de funcionários estatais e profissionais da dimensão
social e psicológica do ser humano.
O trauma da vítima emerge do que Fassin (2006) denomina de “ethos da compaixão”:
uma configuração semântica que foca a atenção no sofrimento e dispõe os profissionais a
escutarem o outro, com o objetivo de responder a uma problematização do “social” em
particular. Para o autor, esse ethos é uma característica da organização moral das demandas por
justiça e pela igualdade nas sociedades democráticas contemporâneas, que exige a existência
de uma vítima (mesmo sem saber se ela se considera como tal, afirmam Fassin e Rechtman)
sempre em relação aos profissionais vinculados a programas de governo ou ao Estado. No caso
francês, Fassin se refere à relação entre psiquiatras, psicólogos e trabalhadores sociais e jovens
de bairros marginais involvidos com vandalismo, roubo ou drogas. Na década de 1990, esses
profissionais adotaram um vocabulário que definia a situação delinquencial desses jovens como
produto da pobreza, da exclusão e dadesigualdade, mas, acima de tudo, do sofrimento, em razão
do que os jovens deviam ser escutados com o duplo objetivo de dirigirem suas demandas ao
Estado e melhorarem a sua saúde mental.
A economia moral em torno da verdade social sobre o sofrimento da vítima, emergente
do ethos da compaixão, mostra que o trauma não é só um sintoma do evento doloroso, mas do
testemunho autorizado de agentes institucionais que dão conta da “desumanização” dos
coletivos e dos indivíduos sujeitos às políticas governamentais. Em relação ao atentado do 11
de setembro de 2001 nos Estados Unidos, a movimentação de profissionais da saúde mental
outorgou a prova de humanidade das vítimas, que eram tidos como sujeitos passivos de uma
233
estrutura social que não garantia sua segurança psíquica. Fassin e Retchman anotam que a nova
configuração semântica concebeu três pessoas do saber psicológico que interagem nos cenários
de violência, as quais passam a ser categorias sociais a serem consideradas nas políticas acima
mencionadas: quem sofre, quem comete e quem pode testemunhar.
A história dos grupos reflexivos de gênero para homens autores de violência apresentada
no primeiro capítulo nos mostra que, para incidir na reflexão acerca da situação de violência, o
homem autor deve se envolver partindo da reflexão do seu lugar no momento em que incorpora
os três personagens, o autor, a vítima e a testemunha, em uma situação de violência. A
configuração sistêmica que adotam os psicólogos e os facilitadores dos grupos corresponde ao
ethos compaixonal descrito por Fassin e Rechtman, no qual o trauma precisa de políticas de
reparação, de testemunha e de criação de provas para favorecer o “sentimento de empatia” para
com a vítima, sujeito de proteção da Lei Maria da Penha.
Vale a pena indagar pelos caminhos mediante os quais os promotores de uma
masculinidade democrática adotaram este modelo emergente do tratamento de vítimas do
Holocausto sobre a situação de violência, para posteriormente divulgá-la através das práticas
clínicas e de intervenção social. Por enquanto, este objetivo escapa desta pesquisa. Porém, esse
modelo serve para que meus interlocutores permitam a emergência de uma narrativa de
implicação na própria conduta dos homens dentro do grupo, para que eles coloquem seus
sentimentos “fora de si” e calçem “os sapatos das vítimas”. Para propiciar a implicação na
própria conduta, o facilitador deveria se submeter ao processo reflexivo também, como
recomendaram os pioneiros dos grupos no Rio de Janeiro. Durante o processo, o aspirante a
facilitador tinha que evocar sentimentos em situações nas quais ele era uma das três pessoas do
modelo de violência. Thor insistia neste tipo de preparação, como ele mesmo havia feito anos
atrás com seus mentores Fernando Acosta, Carlos Zuma e Alan Bronz. Só passando pelo grupo,
foi possível ele viver aquela “experiência transformadora” que lhe possibilitou afinar a escuta,
produzir seus diálogos internos e colocar a pergunta certa na narrativa do outro para produzir a
inflexão moral. O projeto que ele coordenadava incluía a formação na facilitação de grupos
reflexivos de gênero. Em seguida descrevo como profissionais de perfil variado passaram pela
experiência de grupo para adotar “a postura do facilitador”.
5.2 A formação de facilitadores de grupos reflexivos de gênero
Thor não estava satisfeito com os grupos com homens encaminhados pela justiça,
realizados no Instituto durante 2015. Os estagiários não davam conta de conduzir os grupos
234
sozinhos e ele não podia facilitar e coordenar as outras atividades do projeto ao mesmo tempo.
Como muitos outros profissionais vinculados a projetos em organizações não governamentais,
Thor tinha outras fontes de renda: sua própria prática clínica, atividade que demandava um bom
investimento de energia, dava mais dinheiro e tinha maior interesse pessoal. Como tantos outros
interlocutores, Thor divida seu tempo entre o trabalho e o mundo acadêmico, sendo estudante
de uma formação em psicanálise e dando palestras e aulas sobre terapia de família e prevenção
da violência de gênero em faculdades particulares. Uma das aspirações de Thor era deixar uma
nova geração de facilitadores preparada para que assumisse seu lugar na instituição, por isso
seu interesse em formar os estagiários, mas também levar a cabo o curso de facilitação de
grupos reflexivos, a outra grande atividade do projeto que ele coordenava. Thor esperava formar
algumas turmas de profissionais durante o primeiro semestre de 2016, para que posteriormente
realizassem um estágio, conformando grupos nos juizados no segundo semestre. Desse modo,
ele buscava atingir a meta de homens participantes dos grupos, deixar capacidade instalada em
outras instituições e se retirar dessa fase profissional para focar na sua prática clínica.
Thor reorganizou sua equipe de trabalho, dispensando os estagiários e chamando
Romina, sua velha amiga, que conhecemos abruptamente no fim do terceiro capítulo. Ela era
colaboradora do Instituto e fiel seguidora dos ensinamentos de Paulo Freire. Socióloga de
formação na década de 1960, ela foi ativista contra a ditadura. Ao ser perseguida no Rio de
Janeiro, fugiu para o Chile, lugar onde poucos meses depois foi dado o golpe de Estado contra
o presidente Salvador Allende. Por esta razão, ela teve que deixar esse país para percorrer vários
outros do centro da Europa e posteriormente Moçambique, lugar onde trabalhou com educação
popular. Após o processo de redemocratização no final da década de 1980, Romina voltou para
o Rio de Janeiro e continuou trabalhando com os ensinamentos freirianos. Durante a década de
1990, ela integrou a equipe de facilitadores do projeto “Homens, saúde e vida cotidiana”,
quando conheceu Thor, e durante vários anos facilitou grupos de mulheres no Instituto de
Práticas Sistêmicas, entre outras organizações.
Thor chamou-a para assumir a atividade da formação de profissionais, para a qual devia
delinear uma proposta de módulos temáticos e, o mais importante, um simulacro de grupo
reflexivo. Romina acreditava que os integrantes dos grupos reflexivos precisavam assumir seu
próprio processo e, para isso, a formação do facilitador era fundamental, do contrário, essa
metodologia facilmente poderia se converter em uma psicoterapia ou em um “muro das
lamentações do qual não sai nada”, como ela disse no terceiro capítulo. Romina era uma mulher
direta e aguda, com um estilo “pouco diplomático”, sem muitas mediações, como os brasileiros,
qualidade que Thor atribui à sua ascendência judaico-alemã. A nova coordenadora do curso
235
queria que os estudantes entendessem que a importância de um grupo reflexivo de gênero era
a “humanização”, o que implicava trocas de narrativas e a preocupação entre os participantes
de criarem “vínculos de cuidado pelo outro”. Em outras palavras, os integrantes de um grupo
deviam trocar suas experiências: compartilhá-las, acolhê-las, elaborá-las e devolvê-las ao
grupo. Este precisava dar valor à participação de cada um dos integrantes, para que o facilitador
não fosse o “coordenador”.
Dada a minha experiência com grupos em Bogotá, Thor considerou que seria uma boa
ideia que eu integrasse seu time para ser facilitador. Eu devia fazer parte da organização dos
cursos de formação para aprender a metodologia e, posteriormente, replicá-la com homens
referenciados pelos juizados. Naquele momento, eu reavaliei minha posição inicial acerca de
“nunca mais ser facilitador de oficinas”. Considerei que o acompanhamento do projeto de Thor
não só como pesquisador, mas como agente ativo na sua implantação, “desde dentro”, me
permitiria obter outro entendimento do trabalho feito pelos agentes de uma masculinidade
igualitária no Rio de Janeiro. Thor sabia que eu fazia análise há uns anos, o que me permitia
compreender melhor a ideia da reflexividade, a tarefa de identificação da emoção e sua relação
com eventos pretéritos, o que configura posição do sujeito no presente diante de outras pessoas,
coisas e situações. Minha passagem pelos grupos reflexivos, documentados nos capítulos 2 e 3,
é informada por essa leitura acerca do sujeito emergente em contextos guiados por experts na
“dimensão psicológica” do indivíduo: a primeira pessoa, o eu. Precisamente a experiência no
divã me permitiu entender a dificuldade ou os desafios para falar de si, a aprendizagem na
criação desse eu posicionado, responsável pelas suas palavras.
Thor e eu tivemos várias conversas acerca da relação de análise, pois ele, como tantos
outros psicólogos que conheci no Rio de Janeiro, tinha seu próprio percurso com analistas de
várias correntes. Ele considerava que eu tinha ferramentas para ser facilitador e me ofereceu
ser seu assistente no que restava da implantação do projeto. Eu deveria acompanhá-lo nas
formações e ajudá-lo a conformar outros grupos. Para mim foi um desafio me “deixar levar”
pelos ensinamentos de Thor e me “deixar afetar”, assumindo uma posição diferente no campo
e, retomando as palavras de Jeanne Fravret-Saada (2005), colocar-me no lugar de aprendiz,
auxiliando o trabalho do expert, para depois replicá-lo.
O curso teve quatro versões, três no Rio de Janeiro e uma em São Paulo. À época existia
uma grande demanda por parte de profissionais das áreas de psicologia, serviço social,
pedagogia e direito, na sua maioria mulheres, interessadas na institucionalização da Lei Maria
da Penha. Poucos homens participaram, mas os presentes estavam envolvidos no ativismo pela
igualdade. As vagas sempre se esgotavam na primeira semana de convocatória e Romina tinha
236
que deixar em uma lista de espera um número significativo de pessoas de vários estados da
União para que pudessem participar de outras edições. Os cursos foram elaborados por ela como
uma “imersão total”, na qual, durante as manhãs, os estudantes teriam aulas sobre temas
sensíveis para a facilitação, sendo eles gênero e masculinidades, rede de atendimento a vítimas
de violência, a implantação da Lei Maria da Penha e recursos de pesquisa dentro dos grupos.
Professores com trajetórias reconhecidas em cada um dos temas assumiriam essa parte do curso.
Às tardes, os estudantes participariam de um simulacro de grupo reflexivo para obter a tão
comentada experiência transformadora, bem como aprender a metodologia de maneira
vivencial. Facilitadores com experiência em trabalho com grupos se ocuparam dessa parte do
curso no Rio de Janeiro. Para a versão de São Paulo, Thor, Romina, Roberto, outro psicólogo
expert no tema de masculinidades, e eu assumimos a facilitação.
5.3 Duas posições sobre a postura do facilitador
O primeiro curso foi realizado nas instalações de uma instituição pública de saúde perto
do planetário da Gávea, na Zona Sul do Rio de Janeiro. O espaço consistia em uma ampla sala
com cadeiras, quadro branco e data show, com janelas voltadas para uma tranquilizante
paisagem de árvores floridas. No primeiro dia, Romina recebeu os aspirantes, inscreveu-os na
sua lista e entregou o material pedagógico, que consistia de algumas publicações sobre
prevenção da violência doméstica e masculinidades, produto de algumas consultorias feitas
pelo Instituto no passado. Ela também lembrava que uma das características do grupo era a
“solidariedade”, que seria praticada ao longo dessa semana: cada um dos participantes deveria
levar comida para organizar um lanche coletivo pela manhã e à tarde. Romina esperava que
esse gesto propiciasse “uma aproximação com o outro mais descontraída”. Logo depois, Thor
deu as boas-vindas ao curso e apresentou o programa para cada um dos dias. Ele reconhecia o
esforço dos participantes de abandonar seus trabalhos para se formarem, particularmente as
pessoas vindas de outros estados. Para ele, isso demonstrava o comprometimento com uma
agenda de transformação da sociedade.
A primeira aula mostrava aos estudantes um cuidadoso mapeamento sobre os serviços
de atenção grupal aos homens autores de violência no Brasil, realizado por Roberto em uma
etapa prévia da implantação do projeto de Thor, em 2013. Roberto era um jovem entusiasta,
psicólogo e professor de uma universidade federal, integrante do staff de psicólogos do Instituto
de Práticas Sistêmicas, membro ativo da rede Men Engage e com um amplo reconhecimento
do seu trabalho por diversos públicos engajados com o ativismo da igualdade de gênero. Na
237
sua aula, além de mostrar aspectos institucionais e históricos destes serviços, Roberto fazia uma
análise pormenorizada dos seus fundamentos teóricos e metodológicos, bem como dos
objetivos de cada programa, dos recursos financeiros, das capacitações para os facilitadores, do
acesso ao programa, do encaminhamento dos homens para redes de serviços e de questões
relativas à avaliação das intervenções. Roberto tinha um amplo conhecimento sobre teorias
feministas e de gênero e seu desenvolvimento em metodologias de intervenção grupais e
terapêuticas individuais, as quais ele expunha de maneira detalhada, demonstrando que era
possível combater a violência de gênero e as variadas expressões de atitudes, comportamentos
e relações machistas da cultura patriarcal – a tese de doutorado de Roberto abordava a
efetividade deste tipo de intervenções e propunha uma “perspectiva pós-estruturalista e
feminista” como altamente adequada para induzir à reflexão por entrar em diálogo com os
pressupostos epistemológicos do construcionismo social.
Roberto fazia questão de se apresentar como um homem a favor da luta feminista e das
mulheres, e problematizava a identidade de “homens feministas”. Ele considerava que os
homens sempre tinham a autorização da cultura patriarcal para exercer o poder, em função do
qual alguns não tinham clareza do pleno significado dessa afirmação, que parecia ser um
contrassentido. Por isso, ele dedicava muito tempo a explicar a genealogia das teorias de gênero
e feministas, oferecendo uma visão acadêmica do projeto político. Roberto considerava que “só
uma postura feminista” tinha os elementos de reflexão necessários para que os homens autores
de violência mudassem e, por isso, os estudantes deviam apreender o sentido da luta e das
reivindicações das mulheres. Roberto explicava a natureza do problema das relações de gênero
com as quais muitos dos estudantes se defrontavam no seu dia a dia nos juizados, postos de
saúde ou projetos de organizações não governamentais. O tom das suas afirmações era certeiro
e confiante. Isto trazia a calma necessária para que os estudantes expressassem sua
“impotência” ao sentirem que suas práticas de atendimento não propiciavam a tão anelada
transformação de uma masculinidade machista em outra igualitária.
O entusiasmo e a densidade teórica das falas de Roberto criaram um efeito de carisma
entre as estudantes, as quais, por diversas trajetórias, compartilhavam o horizonte político que
o docente descrevia. Suas palavras tinham um efeito de verdade, elas geravam certeza para os
aspirantes a facilitador, o que os ajudava a enxergar o homem em situação de violência de
maneira mais definida. Desse modo, Roberto teve quatro turmas de interlocução sempre
simpatizantes da proposta de mudança das expressões da cultura patriarcal.
238
Figura 30. Iceberg da cultura. Material pedagógico utilizado por Roberto
Thor tinha a missão de apresentar a perspectiva sistêmica e o construtivismo social nas
suas aulas (elementos teóricos enfocados ao longo do primeiro capítulo através das palavras de
Carlos Zuma e Alan Bronz). Ele apelava para a “angústia” dos alunos para começar sua aula
acerca da postura do facilitador e do processo reflexivo. Com voz suave e pausada, mencionava
que muitas vezes os grupos dirigidos a homens em situação de violência produziam “raiva”,
“impotência” e “sintomas de esgotamento” no facilitador. Para Thor, estes sentimentos
emergiam em função do “desejo de controle” do profissional, que esperava “modificar” o
pensamento dos outros. “Uma postura reflexiva exige muito de nós”, comentava Thor, porque
iniciar um processo com homens “que já vêm vitimizados do juizado” implicava criar um
“contexto de diálogo que não seja adverso”. Mas, acima de tudo, significava “saber ouvir” o
que o outro está falando, “de verdade e sem preconceito”, para posteriormente fazer com que o
outro reflita sobre sua situação.
Para Thor, a reflexão era um processo de “escutar”, “internalizar”, “articular com a
própria posição” e “devolver para o outro com significados expandidos”, de modo tal que o
239
interlocutor consiga ver o deslocamento do significado original e subsequentemente questionar
os próprios valores e atitudes. Esse processo era anterior àquele da implicação dos próprios
atos, permitia se defrontar com seus valores e buscava “acolher o outro na sua própria posição”.
Em oposição, a ausência de reflexão era uma qualidade “ruim” da pessoa, porque significava
que não havia reconhecimento do outro. Thor colocava um exemplo: “se você tem raiva de um
cara, você tem que pensar porque tenho essa raiva dele e transformar isso dentro de você antes
de publicitá-lo, exercitar uma percepção sobre o outro antes que seja público, esse é um
exercício danado!”. Para ele, a tendência do facilitador era a de rotular, patologizar e, em última
instância, julgar; reconhecer o outro era também “cuidar dele”, acolhê-lo e criar as
circunstâncias para que se sinta à vontade para “falar sem medo [nem] censura”,
para não reproduzir um tipo de conduta violenta com o outro [e] dar uma
perspectiva diferente e mais ampliada, na qual os outros são livres de dar
sentido ou não às nossas palavras. Isso produz novas ideias e é muito rico. Eu
demorei muito para entender isso, para aprender a pensar de forma
colaborativa.
“Se o outro banaliza a violência, como é que eu posso dialogar com esse outro sem
impor o que está errado ou certo, impor minha moralidade ao outro?”, se perguntava Thor,
apontando o desafio que os estudantes deviam assumir para acolher falas alheias e desenvolver
diálogos internos antes de expressarem a própria posição e convidar o outro à reflexão. Com
sua japamala na mão, passando as contas, e com voz calma, Thor disse para a turma que era
necessário não ficar muito atento ao controle do grupo, deixando fluir as situações sem pensar
em chegar a lugar nenhum. O importante era “o processo” e não “o conteúdo” da conversa,
quer dizer, como o facilitador propiciava a conformação de vínculos para o reconhecimento
mútuo. Para isso, os aspirantes a facilitador deviam deixar de lado o “paradigma científico” e
assumir uma outra epistemologia, que “não procurava causas nem explicações para os fatos,
[nem] transformar o outro, [porque] ninguém conseguia convencer o outro de mudar, a menos
que ele quisesse”.
Alguns estudantes pareciam perplexos diante da proposta, tentando entender como
deveriam agir como facilitadores. Carla, uma psicóloga de um juizado do interior do estado do
Rio de Janeiro, apostava na “possibilidade transformadora das atitudes violentas dos grupos” e
estava um pouco incomodada com o fato de “não poder fazer nada” como facilitadora para que
o homem deixasse de ser machista. Roberto também parecia aborrecido, particularmente por
“não impor nada ao outro”, considerando que nos grupos há sim um interesse transformador,
um “objetivo de colocar algo na cabeça das pessoas, no mínimo, que deixe de ser violento”.
240
Thor antecipava este tipo de perguntas, porque sabia que “uma postura militante” muitas
vezes não permita “a escuta do outro”. De maneira muito tranquila, ele respondeu que era mais
importante “formar uma postura reflexiva no outro”, porque daí para frente só haveria ganhos
com o fato de “reconhecer a posição do outro através das palavras”. Roberto não parecia
convencido e perguntou se isto não seria uma “banalização da violência”, como Thor mesmo
havia afirmado antes, argumentando que o “esforço da compreensão” muitas vezes criava
“cumplicidade” e excluía os homens da responsabilidade de assumirem seus atos. Thor
considerava que a condição prévia para a implicação dos próprios atos era “abrir o processo de
pensamento para que os homens pudessem pensar como eles não imaginavam”. Carla ainda
estava se perguntando sobre “o que fazer para poder exercitar o poder que eles tinham como
profissionais de uma forma diferente, sem ser autoritários”.
Aline, nossa protagonista do segundo capítulo, concordava com Thor. Ela considerava
“uma pretensão muito grande” achar que com dez encontros um homem mudasse toda uma
vida de aprendizados e formas de se relacionar com as mulheres. Para aquele momento (2015),
após ter facilitado vários grupos, Aline iniciava cada processo com menores expectativas, não
no sentido de ser pessimista com a proposta de grupos, mas sim quanto ao que ela podia de fato
fazer durante o curto período de quase quatro meses com os homens que passavam pelo centro
de mediação do seu juizado. Ela colocou como exemplo o caso de dois homens que de maneira
separada procuraram o juizado porque de novo estavam incorrendo em atos de violência.
Sorridente, mencionou que esses homens tiveram uma atitude reflexiva: a de saber reconhecer
uma situação de violência e procurar ajuda.
Thor ficou satisfeito com a colocação de Aline e passou a expor em um data show
algumas frases extraídas de livros de vários autores que fazem referência ao tipo de trabalho de
Thor e de muitos outros psicólogos sistêmicos e terapeutas de família do Instituto, máximas
filosóficas que ilustravam de maneira sintética “a postura do faclitador”:
Carlos Sluzki 41 : “o observador é parte de (e necessariamente afeta) o que
observa, e toda a descrição acerca de observações e modelos é
necessariamente uma descrição de quem gera essa descrição”.
Paulo Freire42: “escutar é algo que obviamente vai mais além da possibilidade
auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a
possibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à
41
Segundo o site do autor, sluzki.com, Carlos Sluzki é um psiquiatra social e psicodinâmico, psicoterapeuta
argentino, professor universitário e diretor de departamentos de psiquiatria em hospitais nos Estados Unidos. Autor
de temas de terapia de família, redes sociais, violência e vitimização e direitos humanos.
42
Amplamente conhecido no Brasil, Paulo Freire foi um educador, pedagogo e filósofo pernambucano que
influenciou o movimento chamado de pedagogia crítica.
241
fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. Isto não que dizer,
evidentemente, que escutar exija de quem realmente escuta sua redução ao
outro que fala. Isso não seria escuta, mas autoanulação. A verdadeira escuta
não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar,
de me opor, de me posicionar”.
Tom Andersen43: “o ouvinte não é apenas o receptor de uma história, mas
também, estando presente, um estímulo ao ato de produção da história. E este
ato é o ato de constituir a si mesmo”.
Marcelo Pakman44: “Nenhum de nós é capaz de ver suas próprias costas, do
mesmo modo que o olho não se vê a si mesmo. Mas chegamos ‘a saber’ algo
sobre nossas próprias costas através do que os outros veem, não porque esses
outros tenham uma posição privilegiada, já que eles estão restringidos pela
mesma limitação, mas porque na trama da observação nos enriquecemos uns
aos outros transcendendo, em parte, nossas limitações”.
Tom Andersen: “Conversar consigo mesmo e com os outros é uma maneira
de definir a si mesmo. Neste sentido, a linguagem que usamos faz de nós quem
somos no momento em que a usamos. A conversa dita “terapêutica” pode ser
entendida como uma forma de busca; uma busca de novas descrições, novos
entendimentos, novos sentidos, novas nuances das palavras e, em última
análise, novas definições de si mesmo”.
Tom Andersen: “as conversações abertas que constituem o processo reflexivo
trouxeram para clientes e profissionais uma relação mais igualitária [...]
concluímos que as perguntas são melhores ferramentas para os profissionais
do que os sentidos e as opiniões”.
Tom Andersen: “as respostas para esses tipos de perguntas me ensinam que
sempre existem emoções nas palavras, existem outras palavras dentro das
palavras, algumas vezes sons e música nelas, algumas vezes histórias
completas, algumas vezes vidas inteiras”.
Todo mundo anotava em seus cadernos as frases de autores que inspiravam o trabalho
do Instituto; alguns tiravam fotos com seus celulares, economizando tempo. Depois da leitura
das frases, Thor colocou um último slide, que continha um depoimento de um dos grupos que
ele facilitou anos atrás junto com Romina. Thor, com um amplo sorriso, leu a frase que parecia
a prova de que a transformação era possível:
um fator relevante neste trabalho é a possibilidade de se expressar e de ser
ouvido sem um julgamento a priori, o que favorece uma reflexão sobre os
outros recursos para lidar com o dilema vivido. No grupo se aprende a ouvir
mais e a tolerar opiniões diferentes.
43
Tom Andersen, norueguês, foi professor de psiquiatria social e promotor da prática terapêutica conhecida como
processos reflexivos.
44
Marcelo Pakman é um psiquiatra argentino, professor universtário e diretor de serviços psiquiátricos nos Estados
Unidos.
242
Finalizando sua aula, Thor comentou que “é impossível não ter preconceito”, apesar de
a luta de muitos movimentos sociais ser a de derrubar aqueles fortemente instalados na
sociedade. O “diálogo interno” estava destinado a “reconhecer o limite pessoal [dado] pela
linguagem e a nossa capacidade de atribuir significado às coisas”. A questão era saber como
aproveitar esse limite a favor da reflexão dos outros, em função do que o facilitador não tinha
que assumir uma posição neutra, mas explicitar, de maneira elaborada e modulada, seu “ponto
de vista” diante deles. O importante para Thor era que esses aspirantes tornassem consciente
seu “próprio preconceito”, o que implicava “muita sinceridade e vencer o medo de si mesmo,
escutar o que o outro diz, ter a postura de compartilhar e receber. Esse é um exercício que
humaniza e que facilita a confiança no processo”.
Diferentemente da aula de Roberto, os alunos permaneceram em silêncio, em atitude
meditativa. As perguntas dirigidas para Thor não indicavam saber qual autor seria a melhor
referência teórica, nem saber se eles estavam fazendo bem o trabalho dentro do grupo. As
perguntas tinham por objetivo aprender como direcionar os olhos e os ouvidos para dentro de
si. “Como propiciar esse diálogo? Como reconhecer quando eles exerciam o controle do outro?
E como voltar esse controle para si?”, eram perguntas que alguns dos estudantes formulavam.
Perguntas estas que pareciam ter caráter existencial, que criavam uma nova angústia, a do
conhecimento de si. A ideia era que eles exercitassem esses diálogos internos durante a
simulação do grupo reflexivo de gênero, trabalho nada fácil, segundo Thor, que sabia que em
uma semana de curso esses estudantes não alcançariam uma postura que era produto da prática
e da aprendizagem de lidar com grupos. Mas este era o começo para ele.
5.4 O sentimento, uma coisa que nos faz humanos
A parte da tarde do curso correspondia à simulação do grupo reflexivo de gênero. No
primeiro dia, a turma de estudantes havia feito um acordo de convivência, que enfatizava as
regras de funcionamento do grupo: um mínimo de consenso para uma “convivência saudável”,
em palavras de Romina, que agiu como facilitadora durante os simulacros. No segundo dia,
Romina e Ariadne, uma antropóloga que se apresentou como feminista e especialista em
práticas sistêmicas, deram elementos para a abordagem de temas de violência nos grupos.
Ariadne propôs como “disparador da conversa” que cada um dos ali presentes se lembrasse de
algumas situações em que eles agissem nos papéis de agressor, vítima e testemunha, através de
um diálogo interno. Eles deviam registrar em um caderno a circunstância de maneira muito
detalhada, descrevendo quais pessoas estavam envolvidas, o momento e o lugar. Depois, de
243
alguns minutos, Ariadne pediu para pensar “o envolvimento emocional, os sentimentos e os
afetos” para cada uma delas e deu uns 10 minutos a mais para terminar de compor cada
contexto. Ela pegou um flip chart e fez três colunas onde seriam escritos os sentimentos
associados às três situações.
Ariadne pediu para falar “sem medo” dos sentimentos. Cada participante falou do
momento quando foi vítima, primeiro de maneira tímida, depois rapidamente, quando notaram
que o sentimento era repetido por outros. “Me senti desprotegida”, “frustrada”, “diminuída”,
“fragilizada”, “indignada”, “indecisa”, “eu fiquei nervosa”, “eu senti muito desconforto”,
“constrangimento”, “medo”, “raiva”, “humilhação”, “impotência”... Carla mencionou que
estava pensando na “parte boa dessa situação”, quando viu como a “solidariedade” de terceiros
se expressava através da “proteção” em relação a ela. Ariadne perguntou se outros também
tiveram esse “movimento”. De maneira generalizada, responderam que não, que “estavam
pensando no negativo somente”.
A listagem foi mais rápida para as situações de agressor e de testemunha. Os sentimentos
mais comuns para o de testemunha foram a “impotência”, a “indignação” e a “tristeza”. Outros
sentimentos foram “dúvida”, “aflição”, “medo”, “compaixão”, “desespero”, “vergonha”,
“susto”, “nervosa”, “espanto”, “insegurança” e “desejo de justiça”. Cristina, assistente social
de um juizado da violência doméstica de Goiás, mencionou: “eu me coloquei assim em defesa
da vítima, eu não tive foi uma ação, eu chorei”. Sem maiores comentários, Ariadne perguntou
pelos sentimentos do agressor. A “indignação” foi compartilhada por alguns dos assistentes,
porém, os sentimentos foram mais diversificados para esta circunstância, como ressaltaram os
mesmos participantes: “revolta”, “vergonha”, “raiva”, “arrependimento”, “tristeza”,
“impotência”, “decepção”, “mágoa”, “incompetência”, “egoísmo”...
Jefferson, psicólogo vinculado a uma instituição de ensino médio, mencionou de
maneira sorridente sua “satisfação” quando foi agressor. Nesse momento todo mundo riu e fez
piadinhas sobre como ele era um bom representante do patriarcado. Ironizando, Jefferson
corroborava a afirmação das suas colegas, sabendo que todos ali estavam engajados com o
enfrentamento da violência contra as mulheres. Imediatamente, Lia, psicóloga gestora de um
programa de saúde governamental da Zona Sul do Rio de Janeiro, disse que ela tinha pensado
algo parecido,
uma boa sensação de poder, de domínio; quando você é vítima, você sente
falta da justiça, mas quando você é o autor, é como se você estivesse fazendo
sua justiça [alguns concordaram] [...] quando eu coloquei a sensação de ter o
domínio e de estar me defendendo e de estar fazendo justiça.
244
Dos risos passou-se a um profundo silêncio, com rostos sérios. Ariadne perguntou se
esses sentimentos eram diferentes ou semelhantes. Todo mundo respondeu, quase em uníssono,
que eram semelhantes. “O que se repete?”. “Raiva, vergonha, revolta, medo, tristeza,
impotência...”. Daí para frente a discussão girou em torno de como essa atividade permitia
compartilhar “experiências comuns”, possíveis de serem sentidas por todos. Para alguns
participantes, os sentimentos possibilitavam “se colocar nos sapatos do outro”, tanto no lugar
do agressor quanto no da vítima. Para muitas participantes, os sentimentos de ser autora de
violência ou vítima eram “praticamente os mesmos”, questão que causou perplexidade,
supressa e gratificação em vários deles. De repente, o argumento dos sentimentos como “uma
coisa que nos faz humanos” tomou força e foi comentado por todos no grupo.
Amanda, assistente social e colega da equipe técnica que coordenava Aline em Niterói,
expressou que os homens que passavam pelo grupo reflexivo também ocupavam tais lugares e
experimentavam esses sentimentos que “estão na vida”, os quais eram “muito parecidos e
equivalentes nas três situações”. Para ela, isto permitia uma aproximação entre facilitador e
homem agressor e entre este último e a vítima, pois o sentimento possibilitava transitar sem
rigidez
enquanto autor e enquanto vítima. A gente tem que ter uma habilidade para
colocar eles nesses papéis pelos quais eles já passaram. O sentimento é o
mesmo, mas o papel é diferente, então você se coloca de maneira diferente em
cada situação.
Carla complementou esta afirmação dizendo que era importante não estereotipar os
papéis, pois “a questão é que os sentimentos são humanos, eles são partilhados, eles nos dão
essa condição de humanos, independente do gênero, da forma como a gente se identifica”.
Ariadne lembrou que o papel como facilitador não era só ressaltar aquilo que
compartilhávamos, era também tornar evidentes as diferenças, argumentando que as
desigualdades de gênero eram muito importantes, pois “o lugar da vítima na relação de poder
era o da subordinação”. Para a facilitadora, o sofrimento da vítima “não era comparável com a
sensação de poder do agressor”, lembrando que as “atitudes machistas” baseiam-se em uma
questão do “poder de exercer poder”. Carla complementou: o agressor “possuía a justiça nas
suas mãos”, enquanto a vítima se sentia injustiçada, “ou pelo menos isto foi o que a gente sentiu,
né?”.
Estas afirmações eram avaliadas de maneira positiva por outros assistentes e me
parecem indicadoras de uma ideia compartilhada em outro tipo de situações acerca da
associação entre justiça, poder e sensação do sujeito empoderado e que define o projeto de a
245
pessoa emergir neste tipo de grupo. Tem a ver com ideia de que quem sente poder o tem no seu
interior, permitindo-lhe ter consciência da verdade, legitimar atos de correção dos outros, que
podem ser agressivos ou persuasivos e exercer justiça. Ao contrastar a posse diferenciada do
poder pelo indivíduo, a razão do gênero, com a igualdade dada pela capacidade de ter e de
compartilhar sentimentos, a noção de violência parecia ser uma “entidade”: uma coisa, uma
essência, um espírito ou um fantasma, com existência própria e capacidade de desequilibrar e
estragar qualquer situação social em diferentes escalas e momentos históricos. Boa parte da
conversa girou em torno das situações cotidianas comuns, desde “micromachismos” até
“violências estruturais”, toda ela costurada por reminiscências de um passado no qual a
hierarquia e a opressão eram a pauta de relacionamento em sociedade.
Voltando ao simulacro de grupo reflexivo de gênero, Ariadne recapitulou mencionando
que a
violência que ocorre todos os dias ocorre em vários contextos e com uma
frequência às vezes assustadora, porque se a gente pensar na violência verbal,
a violência que começa só olhando o outro, quanto nós somos violentos e
quanto nós somos violentados.
Renata, terapeuta de família e uma das fundadoras do Instituto de Práticas Sistêmicas,
ressaltou que esse “instrumento reflexivo” de se pensar nos três papéis da violência permitia
que a pessoa “percebesse sua própria violência” e as que ela já praticou no passado, “às vezes
sem saber”, razão pela qual podia se impedir a “reprodução da violência” através da própria
observação. Thor concordava com sua colega. Renata argumentou que o “processo de
elaboração do sentimento” possibilitava sair da “justificativa da agressão” e chegar ao
“envolvimento do homem como autor da violência”, destacando que para alcançar uma
implicação na própria atitude era importante a criação de um contexto para apontar a
responsabilização através da “empatia com a vítima”. A partir da perspectiva do facilitador,
Renata destacou que esse era um “ótimo exercício para a gente não endurecer”, pois o
atendimento às violências produzia uma “perda da sensibilidade [...] uma couraça por viver
frequentemente esse tipo de situações”. A terapeuta via no grupo reflexivo uma oportunidade
para “colocar a raiva e as frustrações para fora”, de modo tal que não se “naturalizassem” tais
sentimentos, ressaltando que era “bom fazer isso, ter consciência dos sentimentos”. Ela
enfatizou como havia sido difícil se colocar na situação de agressora porque, para ela como
mulher, era “mais fácil ser vítima”.
246
Esta última consideração foi expressa em diferentes oportunidades por várias
participantes da roda de conversa. A distinção, que diz a respeito diferenças de gênero na sua
relação com a dicotomia entre a vítima e o agressor, não foi trabalhada nessa situação de
formação, privilegiando-se a retórica que apontava a igualdade. Ela não só foi expressa de
maneira verbal, mas também nas atitudes a respeito das posições de homens e mulheres no
grupo, como, por exemplo, a brincadeira em torno da resposta do psicólogo e o silêncio solene
em relação à resposta de uma das psicólogas.
Finalizando esta simulação de grupo reflexivo de gênero, apresento a dúvida de Tatiane,
psicóloga de um juizado do Distrito Federal, sobre a efetividade da atividade de “se pensar nos
três papéis da violência” com os homens autores de violência aos quais ela atendia. Ela
mencionou que os participantes desse curso estavam treinados para trabalhar suas emoções e
expressá-las de maneira pública. “Este é um grupo muito sensibilizado, aberto a refletir o sobre
trabalho”, dizia a psicóloga, pelo fato de todos serem do “campo do cuidado”. Ela não
encontrava essa “abertura” com os “homens de baixa renda, negros e sem escolaridade” com
os quais se relacionava no seu atendimento. Tatiane ressaltou que todos os homens aos quais
atendia “negavam a violência”, caracterizando-a como “briga” ou uma “discussão”. Apesar de
ela reconhecer o caráter relacional do “ciclo da violência”, era conflitivo porque, no marco da
criação de um contexto para a reflexividade, “essa atitude” dificultava que os homens
reconhecessem a sua própria. Algumas psicólogas concordavam com esta afirmação,
manifestando preocupação com a “honestidade” nas afirmações dos participantes neste tipo de
grupos.
Acolhendo esta preocupação, Roberto mencionou que, apesar de cada grupo ser sempre
diferente, “os homens finalmente iam falar de seus sentimentos [e que], quando a gente fala de
sentimentos, isso pode emergir em qualquer classe social”. Para ele, a questão era se implicar,
para que esses homens gerassem um diálogo no qual as demonstrações de afeto fossem
valorizadas, evitando assim a “autocensura dos homens”. A variável era o processo de
elaboração, mas o fim era o mesmo: através do diálogo os sentimentos “vão saindo realmente”.
No final daquela jornada, duas formas de conceber a violência pareciam circular, mas
não necessariamente dialogar, e que Renata e Tatiane exemplificavam. Uma relativa a um olhar
voltado para si mesmo, do próprio reconhecimento, como apontava Thor, e outra, o mais usual
nas falas e nos depoimentos dos alunos, inclusive de Roberto, que via a violência para fora, no
outro, gerando ansiedade no facilitador. Chamou a atenção que o movimento do grupo foi
considerar o sentimento como aquilo que define a humanidade, que iguala os indivíduos sem
importarem suas diferenças sociais. Poder e vulnerabilidade podem ser experimentados por
247
qualquer um; isso permitia vivenciar a dor da vítima e fazer com que os homens reconhecessem
a violência. Apesar de Ariadne enfatizar as diferenças de gênero como constitutivas da
“experiência de dor da vítima” em contraposição à “sensação de poder do agressor”, o
argumento da empatia prevalecia como aquele que possibilitava transitar entre os papéis da
situação da violência, estabelecendo a humanidade entre a vítima, o agressor e a testemunha.
Figura 31. Os sentimentos da situação de violência
5.5 O gênero da vítima e do agressor
Finalizando o ano de 2015, Thor e Roberto haviam sistematizado as experiências do Rio
de Janeiro e escrito uma metodologia que buscava uma fácil compreensão da proposta de
grupos reflexivos para qualquer pessoa interessada em implantá-los. O texto recopilava os
antecedentes de outras metodologias, citadas algumas delas no primeiro capítulo desta tese,
mas, diferentemente dessas, a escrita por Thor e Roberto não focava só nos homens autores de
violência. Ambos os autores pretendiam que se discutisse “gênero” de modo tal que “qualquer
248
público [pudesse] pensar como eram as relações entre homens e mulheres em qualquer contexto
social”. O texto incluía “elementos teóricos” que ajudavam a posicionar os facilitadores não só
nos temas, mas na sua “postura”: “estudos de gênero e feministas”, “construtivismo social”,
“educação popular” e “visão sistêmica”. Também tinha um “passo a passo” que ajudaria os
interessados a pensar a facilitação, a constituição do grupo, o processo reflexivo e a avaliação
do trabalho. No meu papel de assistente de Thor, tive que organizar alguns grupos focais (em
um dos quais Aline foi partícipe) e avaliações do texto a fim de que a metodologia estivesse
“testada” antes da sua publicação final. Um desses testes incluía o último curso de formação,
realizado em São Paulo, quando Thor, Roberto, Romina e eu pretendíamos “colocar à prova”
as indicações do documento até então consolidado.
Rita, uma reputada terapeuta de família e professora universitária, diretora de uma
organização similar ao Instituto de Práticas Sistêmicas da cidade de São Paulo, propôs para
Thor replicar a experiência do Rio de Janeiro com uma turma de terapeutas de família da sua
organização e outros psicólogos e assistentes sociais de juizados especiais de violência
doméstica contra a mulher, que procuravam cursos de aperfeiçoamento. Como nos cursos do
Rio de Janeiro, esta última formação teria aulas durante a parte da manhã, ministradas por
Roberto, Thor e Romina, e a simulação de grupo reflexivo de gênero, facilitado por eles três e
eu. Diferente dos primeiros cursos, a turma seria dividida em dois subgrupos, que estariam
acompanhados por dois facilitadores, um por Roberto e Romina e outro por mim e Thor. Cada
subgrupo alternaria as posições de grupo e de equipe reflexiva.
Como mencionado em capítulos anteriores, a equipe reflexiva era uma técnica utilizada
pelos terapeutas de família; nela, um grupo de pessoas escutava a conversa gerada entre
terapeutas e clientes. Sendo um desenvolvimento da câmara de Gesell, os integrantes dessa
equipe não podiam intervir na situação que se desenrolava entre terapeuta e clientes.
Posteriormente, os integrantes da equipe entravam na conversação a pedido do terapeuta para
narrar o que escutaram e observaram, dando “outras perspectivas” aos conflitos ou às situações
expostas pelos clientes. O Instituto havia adotado esta prática baseado na experiência
terapêutica de Tom Andersen, um dos autores referenciados no slide da aula de Thor no Rio de
Janeiro, figura bastante prestigiada pelos terapeutas de família e precursor da postura reflexiva
do facilitador. Para o contexto de formação, a equipe reflexiva observaria o desenvolvimento
da conversa entre facilitadores e estudantes em um primeiro momento da tarde. Depois, os
integrantes da equipe ocupariam as cadeiras da roda e conversariam sobre o que observaram e
escutaram uns momentos antes. Os demais só escutariam. No final da jornada, os dois
249
subgrupos voltariam a ser um só para avaliar o ocorrido em termos de apreensão da
metodologia.
Para a tarde do terceiro dia de formação, Roberto e Romina propuseram a mesma
atividade de lembrar o sentimento dos três atores da violência: vítima, agressor e testemunha.
Dois dias antes, os participantes haviam definido o tema da discussão: “o que passa pela cabeça
de um homem e de uma mulher quando agridem?”. A atividade pretendia responder a esse
interesse. Roberto ressaltou a pertinência da atividade, pois “a questão da violência era um tema
que estava sempre presente na questão de gênero”. Essa dinâmica não era nova para algumas
das terapeutas integrantes da turma, mas mesmo assim elas participaram em função do contexto
no qual estava inserida, quer dizer, ela se enquadrava no grupo reflexivo de gênero e elas
estavam muito interessadas em registrar o que aconteceria assim que a equipe reflexiva entrasse
em cena.
Por instrução de Romina, o grupo da roda deveria conformar grupos ainda menores de
três ou quatro pessoas para falar das “situações de violência [e] compartilhar os sentimentos em
um contexto mais íntimo e sem censura”. Depois de alguns minutos, cada grupo escolheria uma
experiência para ser apresentada no grupo maior. Os facilitadores tinham uma matriz em uma
cartolina grande, na qual anotariam os sentimentos. Por instrução da facilitadora, os
representantes de cada grupo narrariam primeiro a experiência de ser agressor. Madalena,
psicóloga de um juizado de Sorocaba, estado de São Paulo, sentiu “angústia e vazio” quando
agrediu seu irmão em uma briga. Janaína, terapeuta de família cujo consultório estava
localizado no bairro Pinheiros da cidade de São Paulo, falou da sua “vergonha” quando teve
uma “atitude de descontrole em uma situação de diferença de classe”. O empregado dela não a
obedeceu e ela experimentou o “privilégio do poder”. Para Roberto, era interessante ver como
a mulher sentia “vergonha e culpa” quando assumia uma “situação de poder”, dada a sua
subordinação social recorrente, o que fazia dela “objeto da dominação masculina” – ele
afirmava isso já que Janaína era uma mulher de “classe A”. Ela era moradora dos Jardins, em
São Paulo, um bairro de alta renda; sua bolsa Gucci, as chaves de um carro BMW, o cabelo
muito cuidado, os óculos vintage e alguns anéis de ouro faziam parte do look geek e “descolado”
da terapeuta, que também vestia uma calça jeans, tênis e um xale de desenho étnico, que cobria
seus ombros.
Berta, psicóloga de um juizado do Distrito Federal, disse que se sentia “muito
mobilizada, culpada e triste” por ter agredido o seu pequeno filho quando ele tinha pouco mais
de um ano. Depois ela agregou: “me sinto muito mal, não encontro uma palavra, não sei,
impotência em mim, eu tenho vergonha, é muito forte”. Os participantes da roda e da equipe
250
reflexiva mudaram sua disposição e ficaram atentos à narração. Mesmo sabendo que não
precisava dar detalhes por instrução dos facilitadores, Berta disse que estava tratando de
acalmar a criança, que não parava de gritar e de se lamentar: “ele estava muito agressivo”. Ela
encena o momento no qual pega o pequeno pelos braços, olha-o de maneira fixa e o sacode para
“colocar o limite”. Berta comentou que não lembrava o que estava pensando, só que “de repente
me vi gritando”, e entendia que então não estava exercendo seu papel de mãe de maneira
correta. Ela definiu esse momento como de “confusão interna”, que ficou “congelado na minha
memória”. Depois de perceber o que tinha feito, “pedi perdão para meu filho”, argumentando
que essa forma de agir estava errada, porém esse ato “não me repara”. Ela quebrou a voz e todos
ficaram em silêncio: “aquilo não resolveu para mim, eu me sinto muito culpada, não adiantou
pedir perdão, eu não consigo me desculpar”. Berta então rompeu em lágrimas.
Alguns abaixaram o olhar, outros mudaram de expressão e olharam para ela fixamente
com compaixão. Uma das integrantes da equipe reflexiva entrou na roda e passou um copo
d’água e um lenço para Berta secar suas lágrimas, mesmo sabendo que ela só podia observar,
sem intervir na conversa nem nas situações do grupo reflexivo. Ela a abraçou por uns instantes
e depois voltou para seu lugar. Berta finalizou afirmando que o lugar de agressora “é difícil pra
caramba. É foda!”. Ela riu e os outros também, quebrando assim a situação constrangedora. As
demais participantes e os facilitadores começaram a perguntar sobre o que ela fez depois, se
falou com seu filho e explicou o acontecido, sobre como era bom que ela falasse e chorasse e
que era necessário que “[ela colocasse] para fora todos esses sentimentos que tinha dentro”.
Umas intervenções mais tarde, Roberto ressaltou que a “violência impede a emoção [e]
incapacita as pessoas”. Depois se perguntou se “se defender e agredir eram a mesma coisa”,
porque estes eram “dois lugares sutilmente diferentes” que dependiam da “intencionalidade do
ato”. Esta intervenção acalmou Berta, que agora disse que estava se defendendo. Mas enfatizou
que ela não tinha “justificativa para a agressão”, afirmação que Roberto aprovou com um sim
feito com a cabeça. O facilitador acrescentou que nessa situação havia uma “diferença de poder”
para a qual “não existia justificativa nenhuma para o fato da dominação”, pois o poder a partir
de esse lugar vinha de “forma visceral e descontrolada”. Romina complementou dizendo que,
“quando faltam as palavras”, eles deviam gerar um diálogo interno. Também ressaltou que era
necessário refletir sempre sobre os eventos de violência para “pensar as justificativas que teve
para uma atitude violenta, por falta de paciência, por não saber lidar, por não conseguir uma
outra coisa”. Berta ficou tranquila. Romina, de maneira sorridente, passou a palavra ao último
subgrupo.
251
Figura 32 Berta
Daniel, psicólogo de uma organização não governamental especializada em projetos de
equidade de gênero com homens de Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, falou da sua
experiência de maneira calma, como as outras colegas antes de Berta. Ele se sentiu
“arrependido” por ter gritado com a irmã para “impor a minha vontade”, mencionando que por
“falta de cultura, fui agressivo”, mas pontuando que ele nunca experimentara “falta de
controle”. Recuperando os argumentos de Roberto acerca da intencionalidade, Daniel disse que
quando ele foi agressivo teve intenção e não “perdi a cabeça”. Roberto questionou a razão pela
qual ele teve que se impor, perguntando quem o autorizava a fazer isso. Daniel respondeu que
ele queria que as coisas fossem feitas de um determinado jeito e que era uma “coisa aprendida,
uma coisa familiar”. Romina duvidou e não acreditou no sentimento de arrependimento do
psicólogo. Ela perguntou se o sentimento naquele momento era “realmente” esse, se o ato de
agressão fora tão refletido assim, se ele teria a mesma atitude com um irmão ou outro familiar
homem e se achava que se impondo sobre sua irmã iria conseguir seu objetivo.
Daniel ficou em silêncio por uns instantes – “meio assustado”, segundo ele comentou
para mim no final do dia, entre risos cordiais. Gaguejando um pouco, Daniel respondeu que
252
não compreendia muito bem as perguntas de Roberto e Romina, mas que ele só queria impor
um jeito de fazer as coisas e que seguramente agiria de forma diferente com um homem. Antes
de finalizar sua resposta, Romina interrompeu-o e perguntou: “você chegou a perceber que
estava sendo violento com isso? Agora percebe que não conseguiu seu objetivo?”. Daniel
repetiu que só queria exercer sua vontade, que não queria nada mais além disso. De novo, a
facilitadora questionou-o e perguntou por que se arrependia. Daniel, agora um pouco mais sério
e com voz mais forte, respondeu que ele não conseguia “identificar se havia uma questão de
gênero” quando gritou, mas que o arrependimento vinha do fato de ela ser sua irmã,
acrescentando que não sabia se experimentaria o mesmo se ele tivesse gritado com um homem.
Romina e os demais integrantes do grupo ficaram em silêncio. Roberto pontuou que “a cultura
nunca justifica uma agressão” e perguntou se pelo fato de a agredida ser uma mulher isto
autorizava Daniel a se impor sobre ela. Daniel, já cansado, respondeu que havia uma
“desigualdade maior” pelo fato de ele não ter um irmão.
Finalizando este episódio, Romina perguntou para o grupo “o que de positivo essas
experiências difíceis traziam em termos de potencial de mudança?”. Berta fez de novo uma
encenação da sua relação com seu filho, mencionando que agora, com 5 anos, ele era
“absolutamente sensível” quando falava para ela “mamãe, tudo bem, não fica assim, não fica
triste, não chora”. Ela chorou de novo por uns instantes e rapidamente disse “Monstro!”, rindo.
Todo mundo riu. Outra terapeuta contou que ela também tinha uma filha de pouco mais de 5
anos e que era “muito doce”, e que ela também ficava “muito culpada”, sendo este sentimento
“maior que a existência da própria criança e a raiva que a gente sente”.
A partir dos casos narrados, Roberto ressaltou que todos “agrediam com boas intenções”
e perguntava-se por que as pessoas só enxergam que “essas intenções não eram boas nem tão
claras” quando depois experimentavam a “culpa”. Retomando o caso de Berta, ele disse que a
“intenção de corrigir” foi desvirtuada pelo fato de que o “meio foi a violência”, condenando
qualquer justificativa possível porque no momento da agressão houve sempre uma
intencionalidade. A roda de conversa finalizou com algumas perguntas do facilitador: “o que
autorizava as pessoas a agredir? Quem autoriza? De onde vem essa autorização? Isso tinha a
ver com um uma questão social e de gênero?”.
Não teve discussão sobre os sentimentos da vítima nem da testemunha.
A partir desta situação ressalto o tratamento diferenciado na “elaboração do sentimento”
entre Berta e Daniel e sua relação com a “performance de gênero” que valoriza a a expressão
de vulnerabilidade na criação do elo social. Considero importante anotar o esforço dos
participantes na roda em acalmar e refletir sobre a experiência de agressão de Berta, que depois
253
de uma conversa relativamente longa percebeu que ela não tivera intenção, posicionando-se
posteriormente “em defesa” diante da agressividade do seu filho. A compreensão do contexto
e da sua posição por parte de facilitadores e assistentes lhe permitiu “elaborar a culpa [para] se
sentir tranquila” em relação aos fatos acontecidos. O argumento de Daniel foi questionado
repetidas vezes, e o esforço de compreensão do seu arrependimento não teve lugar no intento
de desvelar outras razões do ato de agressão contra sua irmã. A posição dos facilitadores foi a
de enquadrá-lo na “cultura”, mostrando seu “privilégio de gênero” e fazendo-o “sentir a culpa”.
Sentir a culpa aparece como condição prévia do arrepentimento e da elaboração do sentimento
diante de uma autoridade com o poder de perdoar e redimir o infrator e posteriormente integrálo na sociedade.
5.6 Uma postura ética: reconhecer a própria violência
Depois desse encontro, durante o jantar, Thor me perguntou se era possível sair do
registro da vítima e do agressor para o trabalho de grupos reflexivos. No momento não tive uma
resposta clara, só lhe disse que estávamos diante de uma dessas “configurações culturais” tão
potentes que conformavam institucionalidade e nossa posição como sujeito. A partir do
momento que nos conhecemos no início de 2014, Thor havia mudado sua atitude com respeito
à relação entre a vítima e o agressor. Thor estava passando da posição de concebê-la dentro de
uma relação de opressão, na qual o poder era exercido pelo homem de maneira vertical, para
uma ideia na qual vítima e agressor construíam um vínculo de reciprocidade, interdependente,
que explicava melhor a ideia da sua perspectiva sistêmica de situação da violência, na qual
mulheres e homens podem alternar lugares de poder.
Thor começava a ver a posição da vítima como aquela de “com poder de outra ordem”,
que mobilizava as pessoas em torno, coisa que ficou um pouco mais clara para ele durante a
última simulação de grupo reflexivo na qual Berta foi acolhida e Daniel condenado. Ele parecia
estar em uma encruzilhada, debatendo-se entre qual dos dois lugares optar quanto à maneira de
construir a empatia pela vítima nos grupos com homens em situação de violência – e de repente,
para Thor, fazia sentido algumas das justificativas dos homens encaminhados pelo juizado, as
quais ele mesmo qualificava como “banalização da violência” ou “tentativa de vitimização”,
mas de todo modo ele não podia assumir essa posição diante da intuição para a qual trabalhava,
diante de Roberto ou Romina e muito menos nas formações pelas quais ele era responsável.
Thor insistia que o fundamental para um facilitador era passar de uma epistemologia
científica, que privilegia as explicações causais em relação a um conjunto limitado de
254
elementos, para uma linguagem que expressasse “a fluidez, a interdependência e as relações
que vão se criando e se desfazendo a cada momento”. Ele me explicava que a leitura de Ludwig
Wittgestein fora fundamental para compreender que “o limite do sujeito era a linguagem”, e
por esta mesma razão, parte do seu trabalho era “expandir os significados”, para criar novas
formas de descrever as coisas e as situações de maneira complexa. Com essa “mudança de
paradigma”, argumentava Thor, sempre contando as bolinhas do seu japamala, o facilitador
ficava menos angustiado para controlar as variáveis dentro do grupo e deixava de procurar ou
apontar a “fonte de culpa”, a fim de dirigir seu olhar para si e revisar sua própria atuação. Isto
era a “responsabilização”, e ela só podia ser apresentada aos outros na medida em que o
facilitador fosse “responsável por si mesmo”, sendo o exame dos sentimentos em relação aos
outros parte dessa delimitação de si. “A gente tem que fazer como um guerreiro samurai”,
comentava Thor, “após aprender e treinar artes marciais, tem que abandonar tudo para aprender
arte, música etc.”. Ele esperava que esses estudantes deixassem seu “lugar de poder como
profissionais” para assumir o “lugar do não controle do outro”.
Após três versões do curso no Rio de Janeiro e três dias do curso em São Paulo, Thor
sentia que os alunos não haviam chegado nesse nível de reconhecimento. Ele precisava de uma
atividade um pouco mais radical. No dia seguinte, durante o almoço, momento no qual Thor,
Romina, Roberto e eu revisávamos o roteiro da simulação do grupo reflexivo, Thor propôs
“assumir um papel” diferente para tirar de lugares comuns os participantes da formação. Nós
quatro suspeitávamos que a conversa sobre “o uso do banheiro unissex em espaços públicos”,
tema definido pelos estudantes dias antes, fosse versar sobre a importância da “inclusão social”
e do “reconhecimento da alteridade”. Nós quatro concordamos que precisávamos trazer um
pouco de “dinamismo às conversas”, para ver como eles lidavam com “uma diferença” dentro
de um grupo relativamente homogêneo.
De volta ao lugar onde acontecia a formação, Thor e eu integramos a roda de conversa
como facilitadores com a metade da turma de estudantes, que no dia anterior agira como equipe
reflexiva. Roberto e Romina fizeram parte da equipe reflexiva com a outra parte dos alunos.
Iniciei a atividade perguntando pela experiência que cada um dos participantes tivera nos
banheiros públicos e se achavam que seria diferente em um unissex. Depois de uns minutos,
Mário, psicólogo de uma organização do ABC paulista, comentou que devia ser difícil mudar
a configuração dos banheiros, especialmente a razão da “sedução” que muitas vezes acontecia
neles por parte de outros homens e da qual ele já fora “vítima”. Mário se perguntava como seria
se mulheres e homens ocupassem esse mesmo espaço, assegurando que os casos de assédio
incrementariam. Marina, uma terapeuta de família de uma prestigiosa associação da cidade de
255
São Paulo, afirmou que teria medo se um homem entrasse no banheiro, qualificando esse espaço
de íntimo e pessoal. Ela sugeriu que teria que ser desenhado um novo tipo de espaço para
“acolher essas diferenças”, porque sabia de casos em algumas escolas onde houve conflitos
entre os estudantes pelo uso dos banheiros por adolescentes trans. Para ela, era prioritário pensar
questões de segurança e de inclusão de maneira paralela.
Depois de algumas intervenções acerca dos desafios da inclusão de pessoas trans, Thor
solicitou a palavra e comentou sobre a sua experiência de assédio por outro homem na sauna
de um hotel. Era a mesma experiência que ele já havia comentado no segundo grupo reflexivo
de gênero com homens por demanda espontânea do terceiro capítulo. “Eu me senti muito mal
e agora sei o que sentem as mulheres quando são cantadas ou acossadas”, afirmou Thor, para
depois perguntar “por que a coisa inclusiva tem que ser unissex? Por que não colocar um
banheiro para gay, trans, mulher? Isto não seria inclusivo?”.
Após um breve instante de silêncio, os participantes continuaram fazendo suas
intervenções, como se Thor não tivesse falado. Parecia não ter havido o efeito desejado pelos
facilitadores. Cláudia, assistente social de um juizado do Paraná, comentou que o inconveniente
de ter banheiros unissex era o perigo dos estupros e do assédio, mas reconhecia que essas
situações podiam acontecer em qualquer lugar e momento. Enquanto Mário insistia no perigo
da sedução, Carlos, professor de psicologia em uma universidade privada de São Paulo,
comentava que já existiam banheiros familiares que permitiam a entrada de homens e mulheres.
Marina problematizou esta afirmação, assegurando que dificilmente seria aceito um casal gay
nos banheiros familiares, pressupondo que as mães eram as cuidadoras.
O tempo para a conversa grupal se esgotou e a equipe reflexiva tomou a palavra. Romina
perguntou como os integrantes do grupo lidariam com as diferentes posições sobre o banheiro.
Berta qualificou como “ótimo o interesse por visibilizar a diversidade e procurar a melhor
solução para um espaço que discriminava as pessoas trans e gay”. Como a sua posição, outros
tantos exaltaram as virtudes da inclusão da diversidade: “achei a conversa super colaborativa”,
afirmou uma, “achei super inclusivo, maravilhoso, foi construído por todos”, disse o outro, “foi
bacana porque todos falavam em primeira pessoa, desde seu eu, e conseguiram se colocar como
elas são”, comentava feliz a outra. Berta concluiu muito sorridente: “é legal quando você
consegue se colocar como você pensa, como você sente, eu acho que é mais difícil porque vem
um respeito maior; as pessoas estavam atentas à escuta do outro”. Romina e Roberto se olhavam
entre si confirmando as suposições das falas “politicamente corretas” dos participantes. Roberto
perguntou de novo como o grupo havia lidado com as diferenças, porque sentia que estavam
falando do conteúdo.
256
Rita, a diretora do instituto que acolheu a formação em São Paulo, solicitou a palavra e
todo mundo ficou em silêncio – suas palavras tinham um tom de autoridade quase sagrada entre
os assistentes, incluídos Thor, Romina e Roberto. Olhando inicialmente de maneira perspicaz
para Thor, com um sorriso levemente malicioso, dirigiu-se aos membros do grupo assegurando
que era muito difícil “sair do papel de sempre, dar alternativas para o outro”. Com voz grave e
modulada, que denotava a experiência dos seus quase 80 anos de idade, acrescentou:
minha sensação neste grupo foi que tem um sujeito que ainda não foi
nomeado, ele quase não foi falado, como se não tivesse uma fala dele, aqueles
que não entram. Quem são esses sujeitos? Eu fiquei pensando. Não tem um
processo de ouvi-los? A gente não deveria ouvi-los? A gente não deveria ouvir
aqueles que não concordam conosco? Por exemplo, vamos lutar pelo
casamento gay, mas tem outro que diz: ‘quem diz que eu quero apoiar isso?’.
E ele fica sendo não ouvido, considerando só o correto para o grupo no
momento. Os integrantes do grupo estavam falando de incluir o outro, mas as
pessoas querem ser incluídas? Em quê? Nós não sabemos como as pessoas
realmente se sentem, você só pode imaginar.
Alguns respiraram fundo, outros abaixaram a cabeça, e outros abriram os olhos como
se tivessem escutado uma revelação. Madalena, com voz titubeante, disse que as pessoas foram
“honestas” no grupo, mas ela não sentiu isso na fala de Thor. Dirigindo-se para Roberto e
Romina, ela perguntou:
o facilitador pode ou deve assumir um papel? Pode atuar dentro do grupo e
assumir uma posição diferente da que você pensa? É um recurso? Eu posso
fazer isso? Nossa! Será? Provocar o grupo para dar uma desestabilizada? Eu
fiquei pensando, eu fui boba, sabe?
Algumas das assistentes pareciam incomodadas. Umas perguntaram se era “ético” fazer
isso, outras se “assumir um papel” não desagregaria o grupo ou interromperia a construção de
consensos, e outros tantos questionaram a “falta de honestidade” de Thor. Roberto interrompeu
e perguntou de novo como eles podiam integrar essas diferenças para conformar um grupo, mas
seu esforço foi inútil por uns momentos, porque a conversa estava centrada na “atuação do
Thor”. Todos duvidavam então das palavras do facilitador e se perguntavam se ele realmente
fora assediado e se achava que os banheiros deviam ser segregados. Madalena considerava que
ambas as situações “pareciam desconectadas, a gente sentiu que [Thor] estava meio forçando a
barra”. Berta pensava que “fazer provocações” era uma coisa, mas “inventar uma situação, aí
eu fico um pouco na dúvida, falar de situações que não vivi, eu já dispenso”.
257
Thor observava da sua cadeira, quando foi interpelado por Romina para que explicasse
sua posição. De maneira pausada, ele disse que a experiência da sauna era verdadeira. Todos
riram nesse momento. Em relação ao banheiro, ele quis fazer um simulacro e, em seguida, ele
perguntou por que ficava confuso para o grupo o fato de ele “estar assumindo um papel diferente
do esperado”. Carolina, assistente social de um juizado da violência doméstica do interior do
estado de São Paulo, que até esse momento permanecera em silêncio, comentou de maneira
séria que a confusão radicava na “questão do papel”, porque ela não sabia se quem realmente
estava falando era Thor ou outra pessoa:
eu tenho a sensação de que você não está falando nessa hora, não é a questão
de que pode ou não pode, mas achei que essa informação não foi legítima e
não teve o efeito de provocar nada em mim, porque a sensação ficou
descolada. Mentir é possível? Eu gosto da provocação, mas não da mentira .
De maneira retórica, Thor perguntava por que sua posição não era legítima. Era porque
ele se posicionara de maneira diferente durante todo o curso ou porque um facilitador não podia
ser politicamente incorreto? Todo mundo ficou em silêncio, alguns com o rosto fechado, como
Berta e Madalena. Ele não recomendava “atuar” em um grupo, mas como estavam em um
contexto de formação, ele queria “provocar uma reflexão mais profunda sobre a inclusão das
diferenças”. Nesse momento todo mundo riu, aliviando o pesado ambiente.
Rita solicitou falar de novo. Ela se sentia incomodada porque a “postura politicamente
correta” dessa turma, “com nossas qualidades progressistas, falando do diferente”, não era
capaz de “acolher o diferente” quando aparecia no grupo. Todo mundo ficou em silêncio e com
atitude séria de novo. Rita se perguntava se todos os presentes tinham a mesma posição sobre
temas polêmicos como o aborto. Ela mesma não conseguia se colocar a favor ou contra, porque
participou do movimento de mulheres a partir da década de 1960, “minha barriga pariu quatro
filhos” e trabalhou experiências muito difíceis de pacientes no consultório. Depois de uma
breve pausa, Rita afirmou: “eu vi que causou um incômodo, que é mais fácil a gente dizer ‘não,
isso é um personagem’ do que dizer ‘entre nós tem um cara que diz eu não quero banheiro
unissex’”. O grupo se manteve em silêncio escutando suas palavras, entre a contemplação e o
constrangimento de serem repreendidos publicamente. Ela finalizou: “espera-se honestidade no
grupo, mas quando as pessoas são honestas não sabemos o que fazer com essa verdade do
outro”. Algum sorriso nervoso se percebia na sala, lá no fundo.
Depois de alguns instantes, Madalena, um pouco perturbada, comentou que ela treinava
há mais de 30 anos para ser “extremadamente politicamente correta” e que a atividade desse
258
dia a fez “sair da nuvem” porque, quando ela fosse conformar um grupo no seu juizado, não
estaria lidando com pessoas como seus colegas nessa sala. Ela adicionou: “eu tenho
pensamentos preconceituosos todos os dias! Pensamentos machistas e homofóbicos todos os
dias! Eu vejo isso em mim agora”. Parecia que Madalena começava a “sair do seu papel”.
Marina tomou a palavra e, sendo “muito honesta”, comentou:
eu senti, eu fiquei me colocando como mulher num grupo de gênero com
homens que foram acusados de violência, eu sou facilitadora mulher em um
grupo com homens autores de violência. É possível? Eu não sei se vou segurar
a onda, eu não sei se vou escutar assim de um homem: “não, eu dei porrada
mesmo, ela mereceu porque ela estava usando saia curta e eu achei isso um
absurdo e desci na porrada para ela aprender”. E eu, enquanto uma, penso que
se a minha vida toda trabalhei do outro lado acolhendo mulheres em situação
de violência, vou conseguir me manter zen, respirar fundo e falar, “não
concordo com você, seu filho da puta desgraçado!” [alguns riem] Eu sou
muito transparente agora, não sei se vou conseguir. Eu acho que vou optar por
fazer grupos com mulheres e não com homens. Será que consigo acolher?
Silêncio de novo. Thor tinha um olhar sereno e de satisfação. Roberto, com um tom de
voz muito suave, ressaltou a pertinência do questionamento de Marina: “é possível? É uma
questão de estômago!”, adicionando que cada pessoa tinha limites que lhe permitiam ou não
trabalhar temas de violência. Mas para ele o problema não era trabalhar com homens, pois
existiam facilitadoras que, pelo contrário, preferiam trabalhar com eles porque “não
aguentavam a posição permanente de vítima de algumas mulheres”. Roberto advertiu que todos
ali deviam estar cientes para não cair em estereótipos, já que muitos homens que terminam nos
grupos reflexivos de gênero também experimentavam o sofrimento, as emoções e a
vulnerabilidade. Daniel não estava tão seguro, ele queria saber “como acolher uma pessoa
reacionária que sai gritando na rua ‘intervenção militar já’ com a camiseta da CBF”, tendo que
respeitá-la, apesar de ele, como facilitador, não concordar com suas crenças e posições. De todo
modo, ele estava convencido de que os instrumentos reflexivos eram “bons” porque o efeito
deles não era imediato. Daniel confiava que essa pessoa que “sai das nossas regras” vai ter um
momento de reflexão posterior, talvez muito tempo depois da sua passagem pelo grupo.
Thor chamou a atenção para a prática dos diálogos internos, para aprender a ouvir-se e
a ouvir o outro como o primeiro estágio de um processo permanente de revisão de si mesmo.
Isto permitiria a conformação de vínculos sociais cientes não só da diferença, mas também
daquilo que não foge da “nossa visão de mundo [e que] mascaramos com uma retórica de
inclusão”. Para Thor, aquilo em que “não acreditamos” também compunha “a sociedade”. O
desafio era “fazer explícitas as violências de cada um”, para que nessa medida fossem
259
“conscientes” do seu lugar no mundo. Esta era a sua utopia. Finalizando o simulacro de grupo
reflexivo de gênero, e desenvolvendo os acordes finais da sua formação, Thor falou de maneira
pausada para o grupo da importância de ouvir o outro:
a gente vive um momento de extrema polarização na sociedade brasileira e o
reflexo disso é o recrudescimento de preconceitos de gênero, quer dizer, cada
um do seu lado defendendo suas
ideias sem possibilidade de diálogo.
Eu acho que o grupo reflexivo de gênero é uma experiência de conviver com
a diversidade e esse processo em si já é interessante. O grupo não é um
momento de estabelecer consenso, mas de poder conviver com a diferença de
uma forma que isto não desuna as pessoas. O que a gente está vivendo no
Brasil hoje é a experiência da desagregação e da extrema polarização. Então,
se a gente vai para um encontro em que existem ideias muito dispares, como
essas ideias podem ser escutadas? Se ao final do encontro as pessoas se
levantam e continuam conversando como pessoas civilizadas que podem,
apesar das diferenças, conviver, isto já é um resultado maravilhoso! Então, um
pouco respondendo à pergunta acerca do que saiu do grupo: em termos de
soluções concretas e consensos não saiu nada! Agora, a gente vai sair daqui
batendo um papo, se encontra no bar da esquina apesar das nossas diferenças.
Isto não é pouco, não é, ainda mais na nossa sociedade.
Uma vez terminado o curso e já de volta no Rio de Janeiro, Thor fez um bom balanço
sobre a experiência de São Paulo. Ele estava satisfeito com o acontecido, porque “é muito difícil
reconhecer que você também é violento, meu amigo”. Para ele, era importante que os futuros
facilitadores percebessem seus limites, do contrário a tendência era que o grupo funcionasse
como um tribunal inquisitorial. Segundo Thor, os inquisidores projetam sua própria violência
no outro, de tal modo que esse outro serve de bode expiatório de tudo o que as pessoas rejeitam
em si mesmas e que terminam mascarando. “A obscenidade está nos olhos de quem vê”,
apontava ele. “Então, todos os grupos reflexivos funcionam como tribunais inquisitoriais?”,
perguntei-lhe. Thor esboçou um leve sorriso e disse que isto não era o que ele queria dizer, mas
que, se um facilitador não olhasse para dentro de si primeiro, dificilmente poderia exigir dos
outros um tipo de comportamento em particular, do contrário, a tendência seria falar a partir de
parâmetros muito abstratos e gerais, de como deveriam se comportar as pessoas, sem ancorar
as propostas de mudança a práticas concretas. Quando Thor falava de tribunais inquisitoriais
estava se referindo à sociedade brasileira como um todo que, para ele, tinha uma tendência de
colocar a culpa no outro da ausência de responsabilidade de si mesmo, tanto esquerda quanto
direita, de forma que no plano da política todos éramos iguais.
260
5.7 I am a survivor
Durante o ano 2015, após a finalização do terceiro curso de facilitação de grupos
reflexivos de gênero no Rio de Janeiro e umas semanas antes do início do grupo de São Paulo,
Thor recebeu um convite para participar de um encontro latino-americano com representantes
de instituições de governo, do Judiciário e de organizações não governamentais que
implantavam políticas e leis de proteção e prevenção da violência de gênero. A ideia desse
encontro, financiado por uma organização não governamental norte-americana de
desenvolvimento social e empoderamento das mulheres, era promover o uso do sistema penal
acusatório nos casos de violência contra a mulher, com o objetivo de dar maior celeridade
processual às denúncias e restituir os direitos das vítimas, contemplando as suas necessidades
e o seu desejo. O encontro, realizado em um grande hotel no centro da Cidade do México,
também era financiado pela Organização Internacional para as Migrações e por Promundo, que
repassava dinheiro para o projeto coordenado por Thor. Como anunciado no terceiro capítulo,
essa agência tinha um programa de promoção das masculinidades igualitárias para erradicar o
Gender Based Violence (violência baseada no gênero) no Brasil e em alguns países de África e
Ásia, dentro de um projeto político de mudança cultural que incluía ações de transformação
individual e comunitária, com foco no exercício de uma paternidade presente na criação dos
filhos.
O convite dirigido originalmente para Thor consistia na apresentação da experiência de
grupos reflexivos de gênero, que era qualificada como uma “boa prática” pelo Promundo e
merecia ser publicitada para ser implantada em outros contextos. Dados os seus múltiplos
compromissos, Thor me encomendou a tarefa de representar o Instituto no encontro
internacional. Como o encontro teria como línguas oficiais o espanhol e o inglês e eu tinha
conhecimento de esquemas de prevenção da violência no Brasil e na Colômbia, Thor
considerou que eu podia ser um bom representante do seu Instituto.
Viajei para Cidade de México junto com Rogério, um psicólogo carioca, coordenador
do Promundo no Brasil. Ele seria expositor e facilitador de alguns encontros junto com Emily,
uma advogada norte-americana, defensora de mulheres e diretora da organização promotora do
evento. O encontro consistiu em outro tipo de “imersão total” de uma semana, no qual participei
de vários grupos de análise e discussão de casos “que podiam acontecer em qualquer país latinoamericano”, como ressaltou uma das auxiliares de Emily no momento da abertura. Os
participantes eram representantes de organizações não governamentais, do Judiciário,
instituições de saúde e funcionários da Organização Internacional para as Migrações de todos
261
os países de América Latina e do Caribe (menos das Guianas, Cuba e algumas Antilhas
menores). Nos casos de violência que deviam ser discutidos grupalmente, mulheres vítimas de
violência intrafamiliar, sexual e de exploração sexual comercial (nesse caso, adolescentes ou
crianças) transitavam pelo sistema de justiça e tinham de se relacionar com funcionários, os
quais precisavam aprender a reconhecer o “desejo da vítima” no processo de “restituição de
direitos”. A ideia era “ajudar a vítima” a se posicionar como “sujeito de direitos” ao mesmo
tempo em que ela se empoderava, para não ceder a “questões culturais”, como ser esposa e mãe
para seus filhos.
Durante a tarde do primeiro dia, foi analisado o caso de María, uma mulher residente
em um bairro popular de Bogotá, que depois de haver sofrido o maltrato físico e verbal de
Pedro, seu esposo, decidiu denunciá-lo. Cada um dos assistentes comentava os procedimentos
de restituição de direitos locais, com o qual ficavam evidentes as diferenas entre os países,
apesar de compartilharem legislações similares inspiradas na Convenção Interamericana para
prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher de Belém do Pará, de 1994, entre outras
políticas e normativas de caráter internacional inspiradas na Convenção sobre a eliminação de
todas as formas de discriminação contra as mulheres, de 1979. Dado que as legislações eram
muito parecidas na maioria dos países, as respostas de cada grupo tendiam a ser genéricas e
focavam na referenciação da vítima entre instituições, o que lhe permitia sair do lar, bem como
ter suporte para ela e seus filhos, longe da presença do demandado.
Diante da generalidade das respostas, Gabriel, um jovem hondurenho residente nos
Estados Unidos há uns anos, ressaltava que os participantes do encontro não estavam pensando
no desejo de María, no que ela “queria de verdade”. Acompanhando esta afirmação, Emily
insistia em perguntar: “What outcome does Maria want? What is it Maria want? Also, is there
anything that Maria doesn´t want? What options are available to Maria that gets her what she
wants and avoid what she doesn’t want?”. As perguntas estavam destinadas a se pensarem
propostas para a adequação de serviços institucionais às necessidades de cada vítima. Depois
de alguns minutos de conversação, Emily fez uma nova pergunta a Gabriel: “Do you feel like
they gave Maria what she wants and avoid what she doesn’t want?”. A resposta de Gabriel foi
negativa, comentando que María ainda estava na “etapa de vítima” e não estava preparada para
ser “sobrevivente”. Para ele, María ainda não havia adquirido a linguagem que lhe permitiria
afirmar seu desejo, apesar de já ter dado um primeiro passo, quando procurou as instituições
para denunciar os abusos de Pedro.
Para muitos das assistentes, era a primeira vez que escutavam a categoria de
sobrevivente, a qual implicava que a vítima tinha poder para sair de sua situação de fragilidade
262
e assumir seu próprio caminho, de maneira independente. Porém, alguns dos participantes
consideravam que em países como México, Panamá, Republica Dominicana, Brasil, entre
outros, muitas vezes as mulheres nem sabiam que eram vítimas de violência, porque “a cultura
naturalizava as situações de vulnerabilidade”, impondo papeis sociais às mulheres, os quais
negavam seu desejo. Tendo em conta isso, elas ficavam pressas de relações de violência, porque
não sabiam o que elas queriam.
O dia seguinte correspondia à apresentação do projeto internacional de masculinidades
igualitárias de Rogério. Como muitas pessoas estavam cansadas em função das exaustivas
jornadas, o psicólogo solicitou que todo mundo ficasse em pé para fazer uma atividade com o
corpo. Ele dividiu o auditório, composto de umas 40 pessoas mais ou menos, em três grupos,
para realizar a dinâmica “pessoas e coisas”, a mesma que Aline fizera uns meses antes com os
homens do juizado de Niterói, vista no segundo capítulo. A intenção do facilitador era a de
aprofundar a reflexão da violência experimentada por María ao longo da sua vida, o que fazia
dela uma coisa em relação a pessoas que a manipulavam. Um dos grupos seria o das coisas,
outro o das pessoas, e o último o dos observadores. Rogério deu a seguinte instrução:
As coisas, vocês não pensam, vocês não sentem, vocês não tomam decisões,
vocês têm que fazer o que ordenam as pessoas. Se vocês quiserem fazer
alguma coisa, vocês têm que pedir permissão às pessoas. Vocês, as pessoas
que pensam, podem tomar decisões, sentir e também podem conseguir as
coisas que desejam. Vocês podem fazer o que quiserem com as coisas. O
terceiro grupo só observa, ninguém pode falar, mas podem tomar notas. A
ideia é que vocês, pessoas, possam circular e fazer o que quiserem com as
coisas. Podem levar as coisas para onde quiserem, podem colocar os braços
como quiserem, acomodar como quiserem. As coisas podem pedir ou falar,
mas as pessoas decidem se aceitam ou não
A atividade começou de maneira tímida. Os representantes das pessoas conduziam os
representantes das coisas pela sala toda, lhes ordenavam fazer certos movimentos, colocavam
nelas outros objetos na cabeça ou nas pernas... Depois de uns minutos, Rogério solicitou que as
pessoas trocassem seu papel para coisas e as coisas para pessoas, invertendo a relação por uns
minutos a mais, de modo tal que as coisas pudessem “se vingar” – ele mencionou isso de
maneira irônica, todo muito riu. Após esta etapa da atividade, o facilitador solicitou que todos
ocupassem suas caderas e perguntou pela experiência de ser coisa, pessoa e observador.
Norma, uma jornalista e escritora mexicana residente nos Estados Unidos, tomou a
palavra. Rogério lhe perguntou como havia se sentido sendo uma pessoa, se se sentira
“poderosa”. Ela respondeu que sim, porque as coisas não podiam dizer “não” e não tinham
“vontade”. Depois, o facilitador perguntou para Danilo, um funcionário do Ministério de Saúde
263
do Peru, como havia se sentido como uma coisa. Ele respondeu que se sentira “mal” e que
conseguiu ver que no dia a dia muitas pessoas são obrigadas a fazer coisas sem seu
consentimento. Por último, Rogério perguntou para a ativista vinda da Guatemala como ela se
sentira sendo observadora da situação. Lucía respondeu que se sentira “indignada” e com
“raiva” ao ver como um dos participantes pegava as roupas da sua colega de trabalho e as
colocava longe dela: “me sentí muy incómoda y me preguntaba, por qué les hacen eso? A pesar
de ser un ejercicio, sí me sentí imposibilitada de poder hacer algo”. Norma concluiu que María
foi tratada como uma coisa porque ela só obedecia. Por esta razão, argumentou a jornalista, os
funcionários ali presentes deviam estar muito atentos ao desejo da vítima no momento de
estabelecer uma denúncia e no seu trânsito pelas instituições, para que desse modo as várias
Marías pudessem passar de vítimas a sobreviventes, virando pessoas.
Rogério retomou a palavra e mencionou que sua organização estava interessada em
visibilizar “situações de poder” nas quais pessoas eram tratadas como coisas, para
posteriormente clarear as necessidades e os desafios que têm indivíduos e comunidades para
atingir relacionamentos igualitários. Para isso, o treinamento de multiplicadores era importante,
porque eles viravam observadores e mobilizadores de práticas igualitárias nos contextos locais.
Citando Michael Kimmel, o mesmo sociólogo referido por Thor no capítulo 3, Rogério disse
que “o privilégio é invisível para aqueles que o têm” e que, por “razões culturais”, muitas vezes
as vítimas não sabiam que o eram. Rogério lembrava que quando todos ali falavam de gênero
estavam fazendo referência a relações entre pessoas, mas que por causa dos “papéis de homens
e mulheres” muitas vezes essas pessoas viravam coisas, criando um trauma que repercutia na
maneira como a vítima se relacionava com o mundo, impossibilitando seu projeto de vida. Esta
era uma das justificativas do seu programa internacional para trabalhar na transformação de
uma cultura que considerava, por um lado, os homens com privilégios e, por outro, as mulheres
como coisas.
Para os autores do programa, sendo um deles Rogério, a mudança cultural se daria por
meio da “vinculação afetiva” dos homens no processo de criação, formando assim homens
igualitários e propiciando ambientes comunitários sem violência. O psicólogo explicou a
estratégia do programa nos seguintes termos:
Lo que nosotros hacemos como una organización que trabaja con prevención
es proponer desafiar las normas de género, y nosotros sólo podemos hacer eso
cuando creamos un espacio para que los hombres puedan hablar. Porque una
de las cosas que tiene que ver con la construcción de la masculinidad es que
los hombres no hablan de los que sienten y de sus dificultades. Los hombres
no quieren mostrarse débiles a los otros. Entonces, en nuestro trabajo,
264
desarrollamos algunas actividades, algunos materiales didácticos que nos
ayudan a preguntar a los jóvenes, preguntar a los hombres cómo se sienten
actuando de esta manera violenta. Los grupos reflexivos de género para
hombres autores de violencia son unas de esas actividades, que tienen buena
repercusión en los juzgados en Brasil.
Desse modo, era possível parar o “ciclo de violências” que estava sempre presente na
sociedade, acrescentando que “um plus dessa mudança” era que muitos homens tinham “melhor
sexo”. Alguns risos se fizeram presentes na sala. As participantes do encontro pareciam
motivadas. Embora a proposta de “trabalhar com os homens” criasse certo ceticismo em
algumas participantes, outras consideravam que era necessário assumir o desafio de
“transformar a cultura patriarcal e opressora das mulheres”, intervindo nos “micromachimos”,
através dos quais se expressava o privilégio masculino. Para Rogério, a melhor maneira de
incidir nas diversas manifestações do machismo era a “vinculação afetiva dos homens nas
comunidades e na criação dos seus filhos”, de modo tal que o caregiving, como projeto, se
contrapunha à “agressividade dos homens” no presente.
Figura 33. La cultura y la víctima. Fotografia utilizada pela representante mexicana na sua exposição sobre exploração sexual.
O último dia do encontro correspondia à apresentação de uma pesquisa da Organização
Internacional para as Migrações sobre o panorama da exploração sexual comercial de crianças
265
e adolescentes nas Américas. A coordenadora da pesquisa demonstrava, através da sua
exposição, a relação entre a “prática do delito” e a “cultura local”, que objetificava mulheres,
crianças e adolescentes. Depois da apresentação geral dos resultados da pesquisa, cada um dos
delegados regionais da organização expunha os capítulos correspondentes a cada país,
mostrando as manifestações locais do delito. Vejamos parte da exposição referente ao México:
para el caso de Guadalajara, Jalisco, es que el proceso de trata en dos zonas
en particular, no están vinculadas con crimen organizado, sino que es una
cultura de la colonia45, de los grupos familiares de someter a las hijas, a las
sobrinas, a explotación sexual comercial y a prostitución forzada. Tiene que
ver más con la cultura comunitaria y la cultura familiar. Esa vinculación
implica diganosticos más especializados para o contexto cultural al que
queremos atender. Inicialmente veíamos la trata parecía que sólo estaba
vinculada con el crimen organizado, y los que terminamos viendo en estas
colonias es que no. Pero sí es una manera cultural de tratar y ver los cuerpos
de las mujeres con esa visión.
Após uma extensa exposição dos capítulos para a América Central e a Colômbia,
Gabriel, o jovem hondurenho, tomou o microfone e com uma tom de voz forte e decidida
chamou a atenção para o propósito desse encontro: vincular o desejo da vítima à atenção das
instituições no processo de restituição de direitos. Para ele, era importante que todas as pessoas
ali presentes “saíssem da caixa para pensar sobre o tráfico humano”. Depois, com um tom de
voz suave e o olhar sereno, ele se apresentou como um “sobrevivente do crime de tráfico
humano”. Isto causou comoção em alguns assistentes, os quais deixaram suas canetas e
cadernos para focar nas palavras do jovem. Eu mesmo fiquei surpreso, parando de tomar notas
enquando escutava Gabriel e via meus colegas na sala. Durante os cinco dias do encontro, todos
os participantes havíam conversado com Gabriel como se ele fosse um colega mais, engajado
em agendas locais de promoção e defesa dos direitos das mulheres. Mas a partir desse momento,
ele expunha “ser mais íntimo” através do seu depoimento.
Gabriel deu testemunho em inglês. Ele foi sequestrado quanto tinha 14 anos em
Tegucigalpa e levado para os Estados Unidos, circulando por várias cidades onde foi forçado a
consumir drogas e a fazer sexo com homens e mulheres. Dez anos mais tarde, isso gerou um
trauma, impossibilitando-o de manter relações afetivas com mulheres. Quando foi resgatado
pelas autoridades, Gabriel foi internado e medicado por ordem do juiz. Ele insistia que não
queria ser institucionalizado, mas ninguém perguntou naquela época para ele o que queria por
ser ainda um adolescente. “I was placed in a system where it was not decided if they cared of
45
Colonia pode se traduzir como bairro para o português.
266
me. It was not decided to understand that I was victim of the human traffic or a sexual crime”.
Gabriel foi entendendo que era uma vítima na sua relação com assistentes sociais, psicólogos,
psiquiatras, autoridades judiciais e um longo staff de funcionários nas 132 vezes que passou
pelo juizado com vários grupos de advogados, sendo Emily parte do último.
Gabriel apelava ser visto como uma pessoa que sobreviveu ao crime. “I’m a hole human
being. I faced in court, the stygma that I faced because when it was decided I was not a man,
that I was a victim of human trafficking”. Ele não queria a “piedade” (pity) dos outros, ele
precisava da compreensão pelo medo que sentia em função do seu trânsito pelas instituições
quando ainda era adolescente, quando ainda não falava inglês e estava desconectado da sua
família. Dois anos atrás, ele decidiu que queria parar de ser uma vítima, superar o trauma e
transformar o estigma em sobrevivência. Isto implicou aceitar o acontecido e empreender um
novo caminho, fortalecendo-se para encarar o mundo sem medo. Integrando a organização de
Emily, ele fez parte da elaboração do encontro, o qual tinha por objetivo não só a reflexão sobre
o sistema penal acusatório, mas a sensibilização dos funcionários que estariam em relação com
as vítimas.
Norma também fazia parte dessa equipe e narrou sua história de vitimização e de
superação da condição de vítima. “I am a survivor”, assim ela começou seu depoimento, com
os olhos fechados, evitando chorar e enfatizando cada uma das sílabas dessa frase, com voz
firme. Norma descreveu sua história de abusos e vexames, que começou com um
relacionamento abusivo com um tio cego e continuou quando ela era ainda adolescente,
momento em que lhe foi oferecida uma carreira como modelo no Japão. Na época, sua mãe e
ela mesma pensavam que essa seria uma oportunidade única para poder ter uma vida melhor,
já que o pai havia morrido uns anos antes e elas estavam passando dificuldades econômicas.
No Japão, a agência de modelos confiscou seu passaporte e encerrou-a em um apartamento,
informando-lhe que ela devia o dinheiro da viagem, a hospedagem e a comida, e que deveria
pagar assim que tivesse um contrato. Mas esse contrato nunca chegou e ela foi enviada para um
clube privado em Tokyo, local onde foi forçada a consumir drogas e a fazer sexo com
desconhecidos. “I was bought by a very prominent person and I became his property”,
mencionou Norma ao se referir ao homem que a enganou. Ela não podia escapar, não falava a
língua, não tinha passaporte e já estava estigmatizada como uma prostituta. Quando foi à
polícia, para denunciar sua situação, ela foi desacreditada.
Norma conseguiu escapar do Japão para o Canadá. Foi parar em Vancouver, cidade
onde conheceu um homem com o qual teve um relacionamento. Porém, ela havia desenvolvido
um problema com o álcool. Isso afetou a estabilidade do seu relacionamento e sua habilidade
267
de manter um emprego fixo. Norma já era mãe de um menino, que aos 11 anos foi diagnosticado
com um problema na retina que afetaria sua visão. Esse foi um período muito duro para ela, ao
sentir que não podia “escapar do seu passado”, lembrando de seu tio cego. No entanto, esse foi
o ponto de inflexão, quando decidiu “to break the cycle”, encarando a situação de uma maneira
diferente daquela de como estava lidando. Norma presisava “estar no presente” para ser uma
mãe para seu filho. Ela começou a correr às noites, momentos nos quais ela podia chorar sem
que sua família a escutasse, ao mesmo tempo em que “canalizava seu stress” através do
“controle do seu corpo”.
Seis meses depois, Norma participou da maratona de Boston e durante os meses
seguintes dedicou-se a escalar as maiores montanhas de cada continente para recolher fundos
para o tratamento da cegueira do seu filho. Em 2014, em associação com um grupo que lutava
contra o tráfico humano, fez a maior corrida de triátlon para “inspirar” outras vítimas a se
tornarem sobreviventes. Partindo de Cancún, Norma correu pela península do Yucatán, nadou
no Golfo de Campeche, dirigiu-se para a Cidade de México e depois foi pedalando até a cidade
Juárez, emblemática pelo assassinato massivo de mulheres, de onde foi cunhado o termo
“feminicídio”. Já nos Estados Unidos, Norma travessou correndo o sul do país até Nova Orleans
e subiu até Washington, cidade onde finalizou sua proeza de quase 6.055 quilômetros em 65
dias, junto com outras vítimas, que a acompanharam para receber o prêmio Guinnes.
Com orgulho, ela mencionou que seu recorde é três vezes superior ao de qualquer
homem na história, e que está filmado no documentário Be Relentless (Seja impactável),
disponível on-line, junto com várias matérias acerca da sua transformação em sobrevivente.
Norma fez várias outras corridas no deserto de Namíbia e na Antártica, escreveu um livro de
caráter autobiográfico e se engajou na agenda contra o tráfico humano. “I try to be as kind to
myself as possible, because the world hasn’t always been that kind”, mencionou Norma ao se
referir ao seu estado quando emprendia esses longos desafios atléticos. Durante suas corridas,
ela “drenava suas emoções negativas”, de tal modo a “ser capaz de controlar as emoções” como
havia aprendido no taoísmo. Norma enfatizou que era necessário “ser capaz de sentir a dor e a
humilhação” para ser ativista e continuar inspirando as vítimas. Finalizando seu depoimento,
ela citou um antigo provérbio chinês: “the journey of a thousand miles begins with a single
step”.
Norma Bastidas queria que sua história pudesse inspirar outras pessoas para saírem da
condição de vítima. Por isso, cito aqui seu nome verdadeiro.
Após um breve silêncio na sala, todo mundo aplaudiu. Emily ressaltou a coragem de
Grabriel e Norma e quão impactantes haviam sido os depoimentos, que também qualificou
268
como “inspiradores”. Dirigindo-se ao auditório, ela perguntou se não seria bom escutar mais
histórias como essas no futuro. Muitas pessoas presentes, eu inclusive, estavam comovidas.
Nesse momento, percebi que várias das minhas colegas tinham ficado “sensibilizadas” e outros
tantos compreenderam a importância de “atender ao desejo da vítima”. Alguns dos
representantes sentiram a inspiração que os motivaria a fazer melhor o seu trabalho assim que
voltassem para seus países.
5.8 Quinta síntese
Neste capítulo constatamos que uma prática ética de conhecimento de si, possível
através do exame da emoção e do reconhecimento da própria violência, é necessária para criar
a empatia com a vítima, protagonista de uma economia moral que organiza o trabalho dos
facilitadores de grupos reflexivos de gênero. É interessante observar que a empatia aparece
como parte de um dispositivo ideológico, que permite imaginar e reificar as emoções positivas
da vítima (que afirmam sua humanidade e cidadania), por parte dos facilitadores, para que ela
sinta que sua verdade é compreendida. Isto não significa que os facilitadores não acreditem
nela, pelo contrário, a expressão de vulnerabilidade, medo, desconforto, entre outras emoções,
dá conta da verdadeira humanidade se manifestando, o que afeta as pessoas que revelam sua
empatia, como nos casos de Berta, Gabriel e Norma. Talvez a empatia seja parte de uma
dimensão ideológica na qual se acredita que é possível sentir o que o outro sente, mas a afetação
derivada da afirmação emocional da vítima gera emoções que comovem, provocam indignação,
compreensão e derivam em práticas sociais que apontam para o suporte, o acolhimento, o
conforto e a criação de vínculos institucionais que mostram um poder outro que se manifesta
nos simulacros de grupo, como no encontro de representantes institucionais.
A objetivação da violência como implicação na própria conduta permite a geração de
diálogos internos para reconhecer emocionalmente a emergência do preconceito como
indicador de uma fronteira moral que deve ser contemplada e a partir da qual o futuro facilitador
pode optar por trabalhar ou não com outros moralmente condenados. A contemplação do
preconceito é necessária para que essa violência vire palavra e não ataque o outro,
transformando assim o facilitador em ser virtuoso. Mas o tipo de vínculo a ser criado com o
outro não está livre de controvérsia. Uma tensão entre uma postura engajada com a agenda
feminista, a de Roberto, que busca a transformação do outro através da confrontação,
considerando a categoria de violência como estrutural à sociedade, se depara com outra
agenciada por Thor, que procura que esse outro, inimigo potencial, se coloque emocional e
269
argumentativamente na relação para poder estabelecer um diálogo a partir do reconhecimento
dos valores que se pretende que sejam convertidos.
O preconceito tem caráter político e também expressa a tensão entre cultura e
individualidade, a qual é vivida como um conflito interno. Esta é a experiência que o facilitador
tem que viver para se afetar e se mobilizar, pensando naquilo que ele não quer para si mesmo,
para posteriormente ter uma postura calma, analítica e de domínio das próprias emoções, précondição para gerar perguntas reflexivas que não projetem um julgamento moral sobre o outro.
Essa expertise do facilitador busca que o interlocutor experimente uma epifania moral sem que
se sinta confrontado, atacado ou pressionado. A efetividade da magia do facilitador radicaria
na sua capacidade de provocar narrativas emocionais que apontem o julgamento do próprio
proceder, levando a que o outro diga coisas através de categorias emocionais, que usualmente
não fala por razões tidas por culturais, conformando um self, base para contornar a própria
integridade. O processo de adquirir um ethos individualista para esses facilitadores passa por
essa leitura da emoção, que não está descolada do corpo e que lhe permite valorizar a sensação
de ter poder e fazer justiça como sensação que conforma a agência do sujeito empoderado.
As mediações semióticas dos três personagens da situação de violência, bem como da
distinção da relação de poder entre pessoas e coisas (atividades que Aline e Thor já haviam
implantado nos seus respetivos grupos, conforme os capítulos 2 e 3) permitem a objetificação
da violência como uma coisa, de maneira similar à emoção, residente dentro de si e que também
define a individualidade. A violência ao mesmo tempo está fora de si, ameaçando a constituição
de um elo social igualitário, equilibrado e reconhecedor da individualidade do outro, criando
uma maneira de falar, de construir a realidade através das palavras e de se relacionar com o
outro, antecipando o preconceito, de maneira similar a como Norbert Elias descreve o processo
civilizatório. Falar reiteradamente da violência e da emoção tem o efeito de transformar uma
sensação difusa em coisa compartilhada ou social através das palavras. Elas dão conta da
singularidade do narrador e da convenção social que permite estabelecer a fronteira moral entre
agressividade e violência, que implica insulto, abuso e humilhação. Essa fronteira é possível de
ser construída porque existe uma valoração da afirmação emocional, sinônimo de interioridade
que é publicitada, porque existe um self que surge na sua afirmação política.
Emoção e violência dramatizadas dão a sensação de igualdade e humanidade, em última
instância, de pertencimento e coletividade em torno da compaixão pela vítima. Parece-me um
tipo de constituição de sociedade civil que desumaniza quem exerce o poder e a justiça, o
opressor, para convertê-lo em humano que deixa de se relacionar com coisas, passando a fazêlo com pessoas. Esse desconhecimento da dignidade do opressor gera conflitos no processo
270
reflexivo, como vimos nos capítulos precedentes. A capacidade de falar de si e de gerar uma
narrativa para descrever a sensação de si, a substância moral da dignidade, seria o marcador da
diferença que denotaria a fronteira religiosa entre pessoas humanizadas e as que não o são.
O valor da vítima, mais do que o valor do agressor ou da testemunha, é chave para
pensar a agência nesta maneira de conceber a sociedade civil. Esta afirmação tem um recorte
de gênero na valoração dos facilitadores, similar ao tipo de atendimento registrado por Simião
(2015) para o Distrito Federal, no qual a vítima tem a possibilidade de elaboração simbólica do
seu conflito, embora ela muitas vezes seja assumida como sujeito tutelado pelo Estado. A
relação dos facilitadores com Berta e com Daniel permitiu ver a diferenciação das ações sociais
para homens e para mulheres em função do lugar que ocupam, como agressores ou como
vítimas, na situação de violência, e as emoções a essas ações atribuídas. Essa configuração
permite a emergência do dispositivo da empatia para a vulnerabilidade e a condenação de
racionalizações dentro do simulacro do grupo, reconhecendo ou não o esforço de compreensão
da experiência por parte da autoridade com poder de legitimar a singularidade publicitada como
uma verdade para o coletivo.
É importante ressaltar como a situação de Berta, que muda de agressora para vítima pela
exposição dos seus sentimentos e desvelando a autenticidade do seu ser, não só contrasta com
a de Daniel, mas também com a situação de “atuação” gerada por Thor. Este último foi acusado
de desonestidade, pois estava ocultando assim suas verdadeiras intenções ao assumir um papel.
A ideia de um papel que mascara a autenticidade do self parece-me estar ligada à noção de
pessoa, vinculada à cultura, e que não permite a emancipação do indivíduo nem sua sincera e
honesta expressão. No primeiro capítulo, Alan Bronz comentava que a honestidade era um
atributo de gênero dos homens com os quais ele se relacionava nos grupos reflexivos de gênero,
sendo este um valor para a “Kultur da honra”, objeto de intervenção. Como vimos neste
capítulo, ele também é um valor para os aspirantes a facilitador. A expectativa de autenticidade
e a expressão de “sentimentos positivos”, valorizados na economia política do trauma da vítima,
permitem compreender o valor da vítima e do sentimento da empatia para essa comunidade de
profissionais, os quais conformam uma verdade irrefutável sobre o estado do ser.
Justiça, gênero, afetividade e parentesco são faces de intervenção política do objeto
“Kultur da honra”. Isto ficou claro na exposição de Rogério, cujo projeto considera como
“estrutura elementar” dessa cultura a relação pai-crianças, e na proposta de trabalho de Emily,
para dar maior celeridade aos processos de Gender Based Violence. A diferença dos grupos
reflexivos do Rio de Janeiro e das formações para facilitador, no encontro com a Cidade de
México, as vítimas estavam presentes. Diferentemente de Thor, que assumiu um papel (e todos
271
em São Paulo sentiram isso), Gabriel e Norma sempre foram eles mesmos. De maneira distinta
de Milena ou Eliana no Rio de Janeiro, os sobreviventes do crime de tráfico humano não
apelaram para a culpa. Ambas as estagiárias no Rio de Janeiro também expressaram seu desejo,
mas o lugar de acusados dos seus interlocutores não lhes permitiu apreciar da mesma maneira
que na Cidade do México seu desejo como mulheres e seu medo como potenciais vítimas.
Gabriel e Norma se abriram e expuseram seu self de maneira genuína diante de um público que
estava ali para aprender a valorizar o desejo da vítima. A afetação e a geração de empatia para
ambos os públicos foi diferente.
Gabriel e Norma decidiram não ficar no lugar de impotência e à mercê de terceiros,
assumindo uma “atitude ativa”, de controle da sua própria vida, saindo de uma situação de
desumanização e voltando a ser pessoa com desejo. Dar testemunho da sua passagem de pessoa
para coisa e depois voltar a ser pessoa mostrou ser possível deixar de ser vítima. Este era como
um “presente” que buscava inspirar os participantes do encontro da Cidade do México. O que
acho interessante é que essa afirmação como sobrevivente foi possível porque descansava no
chão da afirmação emocional da vítima. Esse “presente” gerou uma obrigação para os
representantes institucionais. A inspiração passada pela exposição, essa singularidade única que
dava conta da “verdadeira pessoa” que fazia o testemunho, sem papéis sociais ou máscaras para
serem desvendadas, devia reverter na mudança de protocolos de atenção para as vítimas, mas,
especialmente, no compromisso de fazer com que essas vítimas entendessem qual é seu desejo.
O valor de uma verdadeira singularidade, socializada por meio de narrativas emocionais
de vítimas ou sobreviventes, registrada nos espaços formativos apresentados neste capítulo, dá
conta de instaurar relações de reciprocidade, de constituição de sociedade civil, entre grupos de
pessoas que valorizam o indivíduo moderno. A figura da vítima tem precedência na constituição
do vínculo, afetando e estabelecendo a mutualidade com os profissionais engajados com
relações de gênero equânimes, mesmo que para meus interlocutores a vítima não
necessariamente seja uma “pessoa”, no sentido dado por Marcel Mauss. A vítima é o eixo de
uma economia moral sobre a qual descansa a utopia da sociedade civil e a expressão mais
genuína do desejo, digno de ser contemplado e admirado, através da afetação e de poder se
imaginar nos sapatos da vítima para constituir a própria experiência.
272
Capítulo 6
A força e o pensamento de dois homens acusados de violência
Was duftet doch der Flieder
so mild, so stark und voll!
Mir löst es weich die Glieder,
will, dass ich was sagen soll.
Was gilt's, was ich dir sagen kann?
Bin gar ein arm einfältig Mann!
Soll mir die Arbeit nicht schmecken,
gäbst, Freund, lieber mich frei,
tät besser, das Leder zu strecken,
und liess alle Poeterei!
Excerto do monólogo dos lilases de Hans Sachs, Ato 2,
cena 3 da ópera Die Meistersinger von Nürnberg46
No último capítulo desta tese apresento alguns aspetos da vida de dois homens que
passaram pelos grupos reflexivos de gênero do juizado de violência doméstica de Niterói, que
acompanhei entre 2014 e 2016. Como outros homens processados, protagonistas do segundo
capítulo, o Barrigudo e Herbert queriam explicar sua perspectiva da “briga” e da “violência”
criminalizada. Nossas conversações começavam sempre por estes temas, referentes à queixa
narrada no juizado, à relação com a demandante e aos temas abordados nas sessões dos grupos.
Foquei minha atenção em como eles falavam de si mesmos, narravam suas relações familiares,
amorosas e com vizinhos e amigos e assumiam uma postura reflexiva diante da vida. Tendo em
conta o interesse por conformar um self dos facilitadores dos grupos, também quis ver como
eles narravam uma “dimensão íntima” que outorga elementos de compreensão de códigos
morais objeto de intervenção no grupo reflexivo. Encontro útil o propósito de dar preeminência
à dimensão íntima do Barrigudo e de Herbert, relativa a uma moralidade que dá conta da
“profundidade da sua diferença”, fundamentada na “vivência”, e que se volta para as
formulações de Luiz Fernando Dias Duarte (1987).
Para Duarte, a dimensão da vivência faz referência ao fenômeno da crença, a qual se
expressa por meio de categorias, como a da “– falta de – vergonha” em duas mulheres de classe
popular (abordadas por meio da produção literária das mesmas), que contrasta com um ideário
46
Que fragrância têm os lilases, / tão doce, tão penetrante e intensa! / Isso relaxa meu corpo, / isso quer me dizer
alguma coisa. / De que importa o que eu posso te dizer? / Sou um homem pobre e simples! / Mesmo que não goste
deste trabalho, / deveria me deixar ir, amigo, / será melhor esticar o couro /e deixar atrás a poesia!
Hans Sachs, sapateiro e mestre cantor, é o protagonista da ópera Os mestres cantores de Nurembergue,
com música e livreto de Richard Wagner (1867).
273
individualista acerca da relação entre prazer e sexualidade no desejo do sexo nas clases médias
psicologizadas. Retomando o argumento foucaultiano da História da sexualidade, Duarte
argumenta que sexualidade e sexo seriam crença e verdade na cultura ocidental moderna,
estruturantes de uma religiosidade paradoxal laica do “culto do eu”. Tal religiosidade é relativa
a uma sensibilidade burguesa, que consagra no corpo (mais do que na alma) o referente para
aceder à própria inteligibilidade e à identidade. O autor menciona que a ideologia sobre o sexo
fundamenta o Bildung individual para as “classes dirigentes”, que as singulariza e as diferencia
de classes trabalhadoras que não prezam e temem a “íntima fonte do prazer”, as primeiras
assumindo a cruzada de libertação do “não prazer” das segundas. Sendo objeto de libertação,
as classes trabalhadoras foram cunhadas como “primitivos urbanos”, cuja verdade não era mais
do que uma variação ou uma ênfase da universalidade do sexo. Essa variação era reduzida pelos
dirigentes à “ignorância”, com conotações raciais, mesológicas e psicologizantes no Brasil.
Numa derivação dessa perspectiva individualista, as classes dirigentes constroem no outro o
“não prazer” como marca de seu arcaísmo, ou veem nele o “prazer” no seu estado mais
“natural”.
Seguindo as recomendações metodológicas de Duarte (1986, 1987), o empreendimento
antropológico de compreender essa obscura área do valor do outro através da crença precisa da
abordagem de “fatos sociais totais”, relativos a “configurações culturais” de classes
trabalhadoras, que não mantêm uma relação igualitária com uma “cultura ocidental” ou
“dominante”, mais abrangente. Para o autor, os fatos sociais totais não dão conta de atributos
simetricamente opostos em termos de um “não individuaistmo”, um “não psicologismo”, um
“não racionalismo” ou um “não igualitarismo”, como formulei nos capítulos anteriores. Eles
adquirem sentido no marco de uma teoria da hierarquia, na qual uma “totalidade superior às
unidades individuais, ordenada sobre valores relacionais e diferenciantes que resultassem num
ideal de reciprocidade e complementariedade” (DUARTE, 1987, p. 618). Nesta formulação, o
sexo seria uma “endo-verdade” para o moderno da classe dominante, ilustrada e psicologizada
a moralidade como “exo-verdade” que permitiria a compreensão do significado do sexo para
esse outro. Para esta tese, a categoria filosófica “ser homem” seria a endo-verdade de uma
narrativa moral da modernização das relações de gênero no Brasil, a qual permite a emergência
das narrativas morais acerca das relações de gênero, parentesco e direito, que fazem do
Barrigudo, “o cara”, e de Herbert, um homem que pretende ser um “bom pai” para as mulheres
da sua família.
274
6.1 O Barrigudo, “o cara” na comunidade
Depois de duas edições dos cursos de formação para facilitadores, Thor me perguntou
se eu podia assumir a facilitação de alguns grupos reflexivos de gênero. Ele considerava que eu
tinha a capacidade para conduzir o grupo, dada a minha experiência de Bogotá e os processos
formativos dos quais fui partícipe. Já havia passado um pouco mais de um ano do momento em
que falei para Thor que não me via como facilitador e que meu papel era documentar seu
trabalho. Naquele primeiro semestre de 2015, eu reconsiderei minha posição, contemplando a
possibilidade de registrar de melhor forma a justificativa dos acusados. Após o primeiro curso
de facilitação, Thor e Aline gestionaram um convênio entre o Tribunal de Justiça do Estado e
o Instituto de Práticas Sistêmicas para desenvolver grupos reflexivos de gênero nos juizados de
Niterói e da Barra da Tijuca. Para aquele momento, Thor havia recrutado várias participantes
dos cursos, as quais seriam estagiárias e aplicariam e replicariam a experiência de grupo. Eu
seria o “macaco velho” da dupla junto com Láris, uma psicóloga e terapeuta de casal interessada
em ampliar sua prática profissional com questões “mais sociais”, fora do consultório.
Como definido pelo protocolo do Instituto, antes de conformar o grupo, Láris e eu
deveríamos fazer as entrevistas preliminares com os futuros participantes, com o duplo objetivo
de apresentar a proposta de trabalho e “conhecer as necessidades” de cada um deles. Desse
modo, nós dois emprendemos a dispendiosa tarefa de localizar telefonicamente os homens que
haviam recebido a “recomendação” do juiz para participar do grupo. Das cerca de 30 entrevistas
marcadas, só conseguimos fazer 17. Ao final, só oito dos entrevistados se uniram a nós. Foi
nesse processo que conheci Leandro, o Barrigudo, como seus amigos e familiares o chamavam
na comunidade localizada na periferia de Niterói, na fronteira com o município de São Gonçálo.
Inicialmente eu o chamava de Seu Leandro, mas ele mesmo fazia questão de que o chamasse
de Barrigudo quando comecei a frequentar a comunidade para acompanhar seu projeto de
futebol com as crianças de lá. Sendo assim, aqui me refiro a ele como Barrigudo.
Quase no final da tarde, após quase 30 minutos de atraso, chegou um homem negro de
aproximadamente 1,80 m de altura, efetivamente com uma grande barriga, que se mostrava um
pouco agitado. Após o serviço, o Barrigudo tivera que ir em casa para pegar uma calça de modo
tal que pudesse entrar no Fórum. Nós três fomos para a pequena sala sem janelas onde
aconteceria nosso encontro. Láris se apresentou e começou conduzir a entrevista. Após expor
meu interesse como pesquisador de entender de forma mais clara o ponto de vista dele na briga
que o levara ao Judiciário, e de o Barrugudo não ver problema em que eu documentasse nosso
diálogo, passei a fazer anotações no meu caderno e as apresento aqui quase completas para que
275
se conheça melhor o tipo de caracterização feita pelo Instituto, a qual também nos oferece “o
perfil da violência” do Barrigudo.
– Láris: Você pode comentar para a gente como chegou aqui? O que
aconteceu?
– Barrigudo: Violência doméstica, eu e minha ex-mulher, vou passar pelo
grupo para depois ver a avaliação da assistente social que vai passar para o
juiz. Já é o terceiro grupo que eu começo. Dessa vez eu vou trazer uma calça
depois do serviço para poder entrar no Fórum. Vou precisar duma declaração
que diga qual horário vou estar aqui porque às vezes o serviço termina às 19
horas.
– L: A gente vai começar um novo grupo reflexivo do Instituto em parceria
com este juizado às segundas, das 17 às 19h.
– B: Eu não trabalho nas segundas. Terças, quintas e fins de semana eu dou
aula de futebol das 18 às 20h lá na comunidade.
– L: Vou ler um questionário que aí explica melhor qual é a proposta, tá?
“Você está chegando para participar de um grupo reflexivo de homens que
vivem ou viveram situação de violência intrafamiliar. O objetivo deste
questionário é saber um pouco mais sobre você e sua situação atual. Estas
informações vão nos ajudar a planejar e a avaliar nosso trabalho e entender
melhor você e as suas necessidades. As informações que você vai nos fornecer
neste questionário não serão divulgadas com seu nome. São completamente
confidenciais e não possuem nenhuma relação com o Poder Judiciário ou o
inquérito policial. Algumas das perguntas que vamos fazer são de ordem
pessoal e podem fazer você lembrar momentos difíceis na sua vida.
Gostaríamos que você respondesse a todas as perguntas, mas queremos
enfatizar que é completamente voluntário. Se você não quiser responder a uma
pergunta ou não quiser continuar a entrevista, é só avisar”47. Tudo bem? Como
é seu nome completo?
– B: Leandro Santos Silva.
– L: Você tem quantos anos?
– B: 47.
– L: Nasceu aqui no Rio mesmo?
– B: É, Niterói.
– L: De que cor você se considera? “Branca”, “preta”, “parda”, “amarela” ou
“indígena”?
– B: Moreno... pardo.
– L: Você tem alguma “religião”?
– B: Sou católico.
– L: Qual a sua “posição na família”? “Pessoa de referência”, “Chefe”,
“Cônjuge”, “Filho”, “Chefia compartilhada”?
– B: Família incluindo pai, mãe, irmãos ou só os de casa? [...] Chefe.
47
As citações entre aspas são uma transcrição do texto do questionário utilizado pelo Instituto de Práticas
Sistêmicas lido pela estagiária de maneira literal, como recomendado por Thor.
276
– L: Mora com alguém?
– B: Com minha namorada e meus filhos.
– L: Quantos filhos?
– B: Oito meus, os outros são de criação.
– L: Qual seu “grau de escolaridade”?
– B: Quinta série.
– L: Qual é sua “ocupação”?
– B: Gari.
– L: Qual é o “valor dos seus rendimentos”?
– B: 900.
– L: Faz parte de alguma “organização da sociedade civil”?
– B: Sou do sindicato.
– L: Algum “partido político”?
– B: Sou petista.
– L: Foi sua ex-mulher quem denunciou?
– B: É.
– L: Você já participou de algum outro “atendimento [que abordasse] a
situação de violência” que o trouxe aqui?
– B: Não.
– L: Está separado há quanto tempo?
– B: Uns meses.
– L: Quem pediu a separação?
– B: Ela que abandonou o lar.
– L: Vou falar algumas opções aqui e você me fala qual foi a “principal reação
emocional” que você sentiu quando ela pediu a separação: “raiva”, “tristeza”,
“indiferença”, “susto”, “alívio”, “desamparo”, “angústia”, “depressão”,
“culpa”, “desespero”, “medo”, ou outro?
– B: Ela foi que abandonou... Não pode botar tudo junto, não? [...] A principal?
Bota aí depressão.
– L: Agora vou fazer algumas perguntas sobre “qual é seu comportamento
mais frequente em uma situação de desentendimento na família”. Você:
“busca um acordo”, “busca ajuda”, “se impõe, “se afasta”, “se submete”, “fica
travado”, “passa mal”?
– B: Fico travado.
– L: “Quando você fica com raiva, qual é sua reação mais comum? Agride
fisicamente, agride verbalmente, discute educadamente, não reage, se afasta
ou outro?”
– B: Fico em silêncio...
– L: Na sua infância e adolescência, “qual foi o principal exemplo que você
teve de como lidar com conflitos na família?”: “discutir educadamente”,
“agredir verbalmente”, “agredir fisicamente”, ou outro?
277
– B: Agredir fisicamente.
– L: “Qual foi a forma mais frequente com que você foi educado quando você
errava? “Conversavam e aconselhavam, repreendiam, xingavam e ofendiam,
castigavam com proibições ou tarefas, castigavam fisicamente, ignoravam, ou
outro?”
– B: Como eu fui criado um pouquinho aqui e um pouquinho ali [...] A mais
frequente? Batiam com pau mesmo [...] Como é que é? Ah sim, me castigavam
fisicamente.
– L: “Você já viveu ou está vivendo alguma situação conflituosa com
familiares? Esposa, namorada, ex-namorada, ex-esposa, filho, filha, pai, mão,
irmão, irmã, enteado, padrasto ou madrasta?”
– B: Ex-esposa, irmão, filhos.
– L: Dessas pessoas, “qual foi o conflito mais violento?”
– B: Com meu irmão.
– L: Vou falar algumas “atitudes de violência” nesse conflito e você diz se
você foi “vítima” dessa atitude ou se você foi quem agrediu: “dar um
empurrão, puxar o cabelo, torcer o braço...”
– B: Dei um empurrão, porque ele bateu na minha mãe. Ele bateu com a porta
na cara da minha mãe. Ele estava na porta...
– L: Deixa eu terminar, “dar um tapa ou um soco, bater com um objeto?”
– B: Faca!
– L: Dessas formas de agressão, qual considera que foi a mais forte? A faca?
– B: Não, eu só ameacei com a faca. Empurrei ele para ele cair, só isso.
– L: Naquele momento “você procurou ajuda com um terceiro?”
– B: Pra quê? Tanta pergunta, né?
– L: Agora vou fazer algumas perguntas sobre “negligência”. Você me fala se
você já atuou assim ou se foi vítima quando era criança: “abandono; não
assumir a paternidade; falta de cuidados com a saúde; falta de alimentação
adequada; falta de higiene adequada; fazer usar roupas inadequadas para o
clima; deixar as crianças sozinhas em casa ou na rua expostas a riscos; falta
de afeto, carinho ou suporte emocional; não dar atenção às necessidades; não
dar limites; não mandar para a escola; não tirar documentos; dificultar o
convívio social”.
– B: Já passei fome [...] Eu nunca deixei as crianças sozinhas, a mãe já deixou
[...] eu já passei falta de carinho.
– L: Além de pequenas brigas, você se lembra de ter sofrido alguma “violência
física”, “psicológica”, “sexual” ou “negligência” durante sua infância ou
adolescência?
– B: Não, só briga de irmão mesmo, normal.
– L: Mas você falou que passou fome...
– B: Isso foi até uns 12 anos, até catei lixo na rua mesmo.
– L: Seus pais o abandonaram?
– B: Sim, fui criado pela minha avó.
278
– L: “Você já usou algum tipo de violência contra outra pessoa?”.
“Psicológica, física, sexual?”
– B: Física. Era só me olhar de cara feia: porrada e mancada.
– L: Você teve algum tipo de “ajuda profissional na área de saúde mental”?
– B: Não.
– L: “Você toma algum medicamento?”
– B: Não.
– L: “Você bebe bebidas alcoólicas?”
– B: Só cerveja nos finais de semana com o pessoal.
– L: Quando bebe, “qual é o principal efeito que identifica: relaxamento,
desinibição, agressividade, se coloca em alguma situação de risco?”
– B: Relaxamento, eu bebo é para relaxar.
– L: “Você é usuário de alguma droga?”
– B: Não, só cachaça mesmo.
– L: “A última vez que você foi violento, [tinha] bebido ou usado alguma
droga?”
– B: Não.
O Barrigudo não comprendia a razão de tanta pergunta, já que muitas delas haviam sido
feitas pelas integrantes da equipe técnica do juizado semanas atrás, depois da denúncia de
Dandara. Sua narrativa era descritiva de acontecimentos e situações, que não necessariamente
eram enquadrados de maneira direta nas respostas já determinadas pelo questionário. Este
também operava como o processo de redução a termo judicial, no qual situações, relações e a
intensidade emocional nelas contidas deviam ser enquadradas em umas poucas categorias que
davam conta da “situação de violência” e da “atitude de violência” do Barrigudo. As respostas
alimentariam uma grande base de dados do Instituto, que mostrava um panorama da violência
ao longo de vários anos. Antes de o Barrigudo se despedir, comentou comigo que, se queria
conhecer mais o seu lado da briga, podia visitá-lo na sua comunidade. Eu aceitei o convite,
mencionando que podia fazer isso assim que finalizasse o grupo no Judiciário.
Durante os encontros do grupo reflexivo, dos quais às vezes participava Thor no seu
papel de supervisor, e Aline, como representante do juizado, o Barrigudo permanecia
silencioso, escutando os participantes falarem sobre seus relacionamentos. Por instrução de
Thor, Láris e eu devíamos insistir na ideia de que os relacionamentos eram de “mão dupla”, de
modo tal que a “manutenção” e os “benefícios” dos mesmos cabiam a ambas as partes. Com
isso, Thor esperava que os novos participantes saíssem do esquema de que a culpada do conflito
sempre era a mulher. Diante desta proposta, que eu tentava colocar de maneira pouco hábil, e
279
Láris com maior expertise técnica e argumentativa, os participantes desse grupo perguntavam
por que as mulheres não estavam em grupos como esses. Temas como aguentar as queixas das
mulheres até eles explodirem, considerá-las inseguras ou dementes, colocá-las como agentes
no conflito, reconhecer a agressividade, mas não a violência, e o sentimento de culpa ao
rememorar experiências próprias do passado, deles mesmos ou de seus familiares, apareciam
de novo como se esses participantes tivessem escutado os argumentos dos homens de grupos
de meses anteriores.
Além do Barrigudo, Diogo, um segurança, morador no Morro do Estado, e Wesley, um
cozinheiro, dono de uma pizzaria na mesma comunidade (eles não se referiam à comunidade
como favela), foram meus interlocutores dentro e fora do juizado. Nós conversamos sobre
alguns temas emergentes dentro do grupo, como os ciúmes, o uso do celular, a objetificação
sexual da mulher, entre outros, os quais eles abordavam de maneira protocolar no juizado, ou
como diria Thor, de maneira “politicamente correta”. Como tantos outros homens em vários
grupos que presenciei, eles três sabiam como responder aos facilitadores, demonstrando certo
domínio retórico relativo à Lei Maria da Penha.
Láris foi bem acolhida pelos integrantes do grupo, que gostavam de receber seus
aconselhamentos acerca de como escutar e manter um relacionamento que apontasse para o
entendimento mútuo em situações tensas. Ela não tinha a intenção de que eles assumissem seu
“machismo”, como algumas das estagiárias dos grupos registrados no terceiro capítulo, porém
queria sim que esses homens aprendessem a “escutar a voz dessa mulher”, que era acusada de
ser uma louca durante a briga. Como aprendido na formação, Láris insistia que o importante
não era chegar a um consenso, valorizado pelos homens, mas saber reconhecer as diferenças
nas posições. Ela também queria fomentar o “respeito” como “sinceridade”. Em outras
palavras, que esses homens aprendessem a falar à vontade a sua verdade e a escutar a verdade
da outra, acolhendo-a. Para ela, esse era o segredo para gerar a tão desejada “confiança”, que
muitos desses homens exigiam das suas companheiras como fundamento de um relacionamento
sólido, duradouro e sem violência.
Para o Barrigudo,“ser sincero” às vezes era complicado, porque ele não era “paciente”,
quer dizer, reflexivo o suficiente (a partir do ponto de vista dos facilitadores) para escutar,
elaborar e devolver com palavras suaves e bem organizadas, construindo assim um argumento
que incluísse a posição do outro, a sua própria, a dissonância entre ambas e a proposta diante
dessa diferença.
280
Eu sou assim, eu sou muito do meu jeito, se eu for falar para você que não
gostei de você, eu vou falar. Esse é um tipo de sinceridade. Se aquele pote de
açúcar está me incomodando, eu vou tirar e vou falar que está me
incomodando. “Não gostei desse pote aqui!”. Eu sou assim. Para mim, isso
envolve muita sinceridade. Até aqui na comunidade, onde fui nascido e criado,
as pessoas sabem disso. “Ô, cuidado com o Barrigudo, fala mesmo com ele!”,
“mas pô, a amizade com ele é para toda a vida!”. Mas se eu tiver que falar, pô
se isso ali me incomodar, pô todo mundo me conhece, todo mundo sabe como
eu sou, eu sou muito sincero. Se eu não gostar da pessoa, vou falar “sai fora!”,
senão, fica perto daqui reunido com a galera. Eu sou assim.
Ser sincero não implicava se expor diante dos outros ou falar de questões íntimas, mas
manter uma posição diante dos desacordos ou dos conflitos, e que ao mesmo tempo transmitia
a sensação de autoridade como uma pessoa respeitada na sua comunidade. O Barrigudo falava
sobre sua sinceridade entre gritos e comandos para as mais de 30 crianças, entre meninos e
meninas, no treino de futebol que ele dirigia a cada fim de semana para que os pequenos não
fossem bandidos, ou pelo menos para que não chegassem perto da boca de fumo tão cedo.
6.2 Na comunidade
A primeira vez em que fui à comunidade, o Barrigudo me apresentou como um professor
do juizado que ia explicar a Lei Maria da Penha para as crianças. Todo mundo sabia que ele ia
para o grupo reflexivo de gênero no Fórum, mas isto não parecia motivo para ser estigmatizado.
A comunidade ficava a uns 25 minutos de ônibus do centro de Niterói, perto de um bairro
residencial, desde onde devia se tomar um estreita via que terminava em um pequeno vale, onde
estão localizados o campo de futebol, a escola, duas igrejas católicas, uma batista e outras tantas
de denominação pentecostal. Em torno do campo há três botecos, duas oficinas para carros e
uma padaria. Muitas casas eram de dois andares, a maioria delas pintada com tons pastéis; na
medida em que a casa estava localizada mais para cima do morro, ela parecia ser só
parcialmente construída. A maioria das casas tinha serviços públicos como água e luz. Os
moradores usavam a internet da escola, que oferecia o serviço de wi-fi, razão pela qual muitas
pessoas permaneciam próximas da instituição, para poder entrar no Facebook ou mandar um
“zap” (Whatsapp). Do topo dos morros, ao sul, se vê a baía de Guanabara, a ilha da Conceição,
a ponte que comunica Niterói com o Rio de Janeiro e lá no fundo o Cristo Redentor; ao norte,
algumas comunidades e um setor industrial do vizinho município de São Gonçalo.
A comunidade tinha uma história que permite perceber várias origens. Alguns
reivindicavam que começou a ser construída no início do século XX por trabalhadores dos
281
estaleiros e das indústrias de Niterói. Outros mencionavam que seus pais sempre moraram ali,
na época em que começou ser ocupada por esses trabalhadores, como o avô do Barrigudo. A
maioria da população era negra e contrastava com a dos bairros vizinhos, mais antigos e
consolidados do setor do Fonseca. Alguns moradores desses bairros me advertiram para ter
cuidado se fosse entrar na “favela”, pois era zona de traficantes e eu correria o risco de ser
assaltado. A comunidade também tinha a denominação de Quilombo, sendo este nome mais
recente, produto do trabaho comunitário com crianças e jovens de organizações de
reivindicação de identidade negra.
Figura 34. A comunidade.
Existiam vários grupos de mulheres adultas organizadas em torno das igrejas,
especialmente as católicas, que ajudavam as famílias mais necessitadas com comida e o cuidado
das crianças. A comunidade também tinha a presença de traficantes na zona, como advertiram
os vizinhos do Fonseca e como mencionara o Barrigudo no juizado. A área estava em disputa
entre duas facções há pouco mais de dois anos. Em algumas ocasiões, o Barrigudo me ligava
na última hora para cancelar algum encontro marcado devido à situação de falta de segurança.
Em poucas ocasiões, quando eu descia do ônibus no campo de futebol para me dirigir para a
escola, onde o Barrigudo trabalhava com as crianças e os jovens, alguns adolescentes armados
com olhar de cautela me perguntavam quem eu estava procurando e revistavam minha mochila.
Ao comentar que eu era amigo do Barrigudo e que estava acompanhando seu projeto, esses
adolescentes passavam de um olhar desconfiado para um amplo sorriso, apontando o lugar onde
282
podia encontrá-lo. Sempre era conveniente ser introduzido na comunidade por algum dos seus
moradores, qualquer estrangeiro causava desconfiança.
Dentro da escola, as crianças brincavam e jogavam partidas de 15 minutos, começando
pelas mais novas até chegar às mais velhas. O treinamento se iniciava por volta das 10 horas e
se extendia até pouco depois do meio-dia. Alguns adultos estavam presentes, conversando entre
si. O Barrigudo dirigia os treinos junto com seu filho mais velho, Kleber, que o ajudava a
organizar as mais de 30 crianças presentes em cada fim de semana. No meio do treino, o
Barrigudo pedia para que os mais novos se sentassem nas mesinhas da escola e os mais velhos
aguardassem em silêncio e sentados no chão do campo. Nesse momento, ele repartia os lanches
e pedia para que eu falasse para as crianças se comportarem bem e sobre a importância de
escutarem os conselhos dos adultos. Dado o reduzido número de meninas, minha fala tinha por
objetivo que essas crianças enxergassem as meninas como colegas ou como iguais, supondo
que o futebol era um esporte masculino e que ali se replicariam os estereótipos sexistas. Muitas
crianças riam do meu sotaque, algumas delas pediam para que eu tirasse fotos dos treinos ou
com seus amigos. Depois de alguns fins de semana frequentando a comunidade, de ser “o
gringo” passei a ser “o tio Marcos”, que às vezes jogava com eles de maneira pouco hábil,
ajudava a organizar os lanches ou conversava com algumas mães que ali se encontravam.
Muitas meninas presentes eram excelentes jogadoras, incluídas as duas filhas do
Barrigudo, que faziam parte do time da comunidade que já havia ganhado alguns campeonatos.
O Barrigudo gostava de brincar muito com suas filhas mais novas e suas netas, sempre presentes
nos treinamentos. A maneira um pouco mais rude e direta com que ele as tratava contrastava
com as referências românticas de outras narrativas sobre as filhas de homens no juizado, como
a de Heitor, que chamava a sua filha de “princesa”, assumindo ele um papel protetor. As filhas
do Barrigudo eram fortes, ágeis e treinavam com os meninos, entrando em brigas quando era
necessário. O pai as animava para elas se defenderem e não se deixarem golpear pelos meninos.
Não existia separação de equipes por sexo, as poucas meninas eram separadas por idades para
jogar com crianças de mesma faixa etária.
O Barrigudo estava orgulhoso das suas filhas, bem como de um dos filhos, um muleque
de 16 anos que era um excelente jogador e que já havia sido recrutado pela Escola Guerreirinhos
do Fluminense. Antônio, um motorista de taxi da comunidade, comentava que muitas crianças
vêm na “vida do futebol” uma oportunidade para “se superar” e sair da comunidade, como ele
mesmo no passado. Com orgulho e saudade, Antônio me mostrava algumas fotografias de
quando ela era jogador em times na Bolívia, Malásia e o México. Por meio dessa experiência,
ele conseguiu acumular dinheiro e reconhecimento na comunidade, à qual voltou após ter tido
283
um acidente no joelho, que comprometeu seu rendimento atlético. O futebol era uma
“esperança” para uma vida melhor para muitos dos jovens que treinavam com o Barrigudo, os
quais viam no Antônio, uma prova de que era possível se superar.
O Barrigudo estava à frente desse projeto há mais de 10 anos, quando Seu Arnaldo
morreu, depois de ter trabalhado com várias gerações de crianças por mais de vinte anos. O
Barrigudo era um dos “filhos” do Seu Arnaldo, do mesmo modo que agora ele era o “pai” de
outras tantas crianças. Desse modo, a Tia Juciara caracterizava a relação que o Barrigudo
formara com várias gerações de meninos e meninas na comunidade. Ela apontava com o dedo
alguns dos jovens e adultos que já haviam passado pelos treinamentos semanais. Tia Juciara
era filha de Seu Arnaldo e a amiga mais próxima do Barrigudo. Ela trabalhava na pastoral da
Igreja de São Januário, “ajudando” as mulheres de várias comunidades, distribuindo cestas
básicas, gerenciando a entrada dos filhos na escola e encaminhando as famílias para serviços
de saúde e sociais. Ela, como muitas mulheres espalhadas pela comunidade, fora consumidora
de cocaína por um período não definido, fato que deteriorou sua relação com o pai. Ela
frequentara a boca de fumo em um momento da sua vida em que se encontrava “perdida”. Só
quando Seu Arnaldo morreu, ela percebeu que devia tomar outro caminho, aproximando-se da
Igreja e assumindo uma postura protetora em face de muitas mulheres que passavam por
privações econômicas, consumidoras de drogas ou com filhos presos.
Figura 35 A jogadora
Dandara, a ex-mulher do Barrigudo, ainda estava “perdida”. Tia Juciara havia lhe
oferecido ajuda em várias oportunidades, mas “o gosto pelo vício é maior”, fazendo com que
284
Dandara deixasse de “ser uma mãe para seus filhos”. “O Barrigudo sofreu muito com ela, ele
não merecia”, me explicou Tia Juciara enquanto organizávamos as cestas básicas para serem
entregues às mães que faziam parte da pastoral. O Barrigudo não gostava de falar de Dandara,
a mãe de dois dos seus filhos. Ele não suportava que ela bebesse e chegasse “cheirada” em casa,
o que fazia dela uma pessoa agressiva e descuidada. Dandara desaparecia por dias e isso
“irritava” muito Barrigudo. A última vez, um ano antes, em 2014, quando “ela abandonou o
lar”, Dandara deixou três dos pequenos sem comida durante o dia todo, encerrados em casa, e
vendeu a televisão para comprar cocaína. À noite, ela voltou para casa “toda doida”. Foi então
que ele deu nela uma surra, obrigando-a a sair de casa. Pouco tempo depois, ele foi pego pela
polícia por “violência física” no marco da Lei Maria da Penha.
No mês de outubro de 2015, participando do encontro na Cidade do México, o
Barrigudo me ligava insistentemente pelo Whastapp. Dandara havia voltado à comunidade,
após se ausentar por vários meses, e havia botado fogo na casa do Barrigudo enquanto ele
trabalhava. Ele perdeu quase tudo e teve que ir morar na casa da sua namorada, Joyce, em uma
comunidade próxima do município de São Gonçalo. A polícia não podia fazer muita coisa
porque Dandara estava envolvida com o antigo dono da boca de fumo, que fora assassinado por
integrantes da facção que controlava então a comunidade. Manifestando minha impotência,
recomendei que ele procurasse Aline no juizado. Ela também não sabia como agir, porém
assegurava que iria informar esse antecedente ao juiz, que ainda não havia proferido sentença.
O Barrigudo fez as respectivas denúncias na delegacia e anexou a documentação ao processo
no juizado. A partir daí, Dandara não voltou mais para a comunidade. Tia Juciara prefere não
falar dela, bem como o Barrigudo.
6.3 Uma outra conversa entre amigos: “a natureza do homem”
Com exceção do episódio do incêndio, vários trechos da história do conflito com
Dandara foram narrados pelo Barrigudo entre o quinto ou sexto encontro do grupo, quando o
tema de discussão era “relacionamento entre homem e mulher”. A voz grave, a cadência
pausada e um olhar de resignação ajudaram a gerar “comoção” entre Wesley, o cozinheiro, e
Diogo, o segurança (os outros dois homens que responderam ser de cor “preta” quando
entrevistados por Aline umas semanas atrás). Láris aproveitou essa “identificação” para
introduzir o tema dos “ciúmes” e dos “limites nos relacionamentos”. Wesley e Diogo insistiam
que a “falta de confiança” era a causa dos “ciúmes doentios” das mulheres, o que os deixava
“sem paciência” quando elas “batiam na mesma tecla”, persistentemente. Apesar de, para
285
Diogo, Wesley e o Barrigudo, os ciúmes também denotarem que “a pessoa gosta de você” no
início do relacionamento, uma vez consolidada a parceria, eles eram sinal de “insegurança”,
que virava “loucura” quando elas queriam controlar todos os aspectos da vida deles,
“asfixiando-os”.
Láris considerava que, para evitar a “desconfiança”, eles deveriam “conhecer o desejo
da mulher” através do diálogo. Mas quando o casal não podia fazer isto sozinho, eles
precisavam procurar a ajuda de um profissional. Enquanto Diogo achava pertinente a proposta,
Wesley considerava que “o terapeuta sempre está a favor da mulher”. Ele já havia recebido
aconselhamentos antes de chegar ao grupo reflexivo e considerava que a terapia não servia se
só um dos dois tinha que mudar, no caso, ele. Láris, sorridente, questionava-o se não queria
melhorar seu relacionamento ou se ia desistir da ajuda profissional. Wesley, confiante,
respondeu: “de repente, pai de santo ou pastor resolve...”, como já havia acontecido com outros
conhecidos com problemas com suas parceiras. O importante para Wesley era que as mulheres
não fossem resolver o problema com o traficante, dono da boca de fumo, que “administrava”
problemas que envolviam violência extrema do marido contra sua mulher. Láris não ficou
muito contente com a resposta, porque considerava que esses personagens reafirmavam
“estereótipos de gênero” e não ajudavam a “abrir a mente e a apresentar outro panorama” com
os recursos profissionais que um psicólogo podia oferecer.
Figura 36 Treinamento.
286
Umas semanas depois daquele encontro, assisti ao final de um torneio de futebol no qual
jogou a filha mais velha do Barrigudo, que tinha uns 16 anos. O time ficou em segundo lugar,
perdendo para o do Morro do Estado, onde era celebrada a partida. Após o jogo, encontrei
Wesley e Diogo. Este último entendia o que era conviver com uma usuária de drogas. Sua
primeira esposa também consumia cocaína, fator que ele reputa “à hiperatividade e ao
nervosismo das minhas filhas”. Wesley considerava que a vida do Barrigudo era complicada e
admirava sua “calma” para “não terminar fazendo besteira”. Ele atribuía essa qualidade à “fé”,
que permitia a um homem ter a “força” para se manter íntegro e não virar bandido, como muitos
outros conhecidos:
Eu costumo muito dizer sobre isso: a moral vai, a gente o que mais tem é
história. Acabou um relacionamento e o cara fica doido, então é preocupante,
especialmente quando você tem um filho, quando tem mulher, relacionamento
mais ou menos duradouro. E é o que ele falava, eu fico pensando, até porque
mais ou menos conheço a família dele, tudo o que aconteceu, a mulher,
misturado com tráfico, usando droga, polícia chegando na casa dele, o filho,
na boca de fumo por causa da mãe, já foi preso48, aí está na Lei Maria da Penha
porque bateu na mulher por causa da droga. Aí você vai explicar isso pro juiz,
você acha que o juiz quer saber isso? Quer saber do quê? Que ele bateu na
mulher e que ele está errado. Ele não bateu à toa, a polícia entrou na casa,
chegou lá, achou um quilo de cocaína em cima da mesa, achou que era dele.
Quando viu a mulher toda drogada, então porra... Isso não era do cara não, era
da mulher. No outro dia em que a mulher estava com o cara na boca do fumo,
aí levaram ela presa, ele bate nela, uma confusão danada, e aí o juiz só vê que
o cara bateu nela. Mas é aquilo, bateu? Está certo? Está errado? Não está
errado! Mas ele também teve seus motivos. Pô, eu fiquei muito comovido. Ele
foi parar no juizado mais ou menos pelo que aconteceu com a gente, mas não
vou dizer que ele não é culpado, mas se a mulher dele tivesse ido bem na vida,
de 100% ele é 30% culpado. É muito complicado!
Caraterizando a força do Barrigudo, Wesley também critica um olhar unilateral,
reduzido a termo, que exclui contextos sociais mais amplos para focar só na atuação do homem
batendo na mulher, sem considerar a atuação da mulher. Apesar de a mulher ser a antagonita
dessas histórias, Wesley e Diogo valorizavam mais a companhia das suas esposas e namoradas
e o “ambiente de lar”, que só tinham estando do lado delas. A separação fragmentava a família
e Wesley notava isso muito bem porque seu filho, que era “especial” (com síndrome de Down),
estava muito “inquieto” e “triste” sem a presença do papai em casa, tal como comentava com
ele sua esposa. A mulher de Wesley queria desistir da denúncia, mas isso não era possível,
dados os procedimentos administrativos da Lei Maria da Penha. Diogo, pelo contrário, não
48
Um dos filhos mais velhos do Barrigudo, pai de duas meninas, estava preso em Bangu por tráfico.
287
estava muito entusiasmado de voltar com sua ex-mulher, que considerava muito ciumenta e
briguenta, quer dizer, “com o coração atrelado ao passado”. Porém, reconhecia que morar na
casa de familiares após a separação não lhe proporcionava o ambiente de lar idealizado. O
Barrigudo zombou de Diogo e acusou-o de ser um “safado” e que tinha que aprender a “ficar
quieto”, ou pelo menos “saber como fazer as coisas...”. Para o Barrigudo, o importante era que
suas companheiras ou terceiros não soubessem o que eles faziam fora de casa, para evitar que
seus nomes circulassem em boatos que criariam “raiva” nelas. Para isso, eles deviam manter
“sigilo” do que faziam durante o tempo e no trajeto entre a casa e o trabalho, bem como manter
em segredo as conversas nos aplicativos do celular.
Todos os homens que conheci em todos os grupos que frequentei (seis no total) tiveram
brigas com suas companheiras por causa do uso do celular. Eles as acusavam de olhar e
controlar o uso de um aparelho que era considerado por Diogo como “uma coisa bem particular,
privada, né?”. Eles eram acusados de serem “infiéis”. Wesley assegurava que muitas mulheres
lhe mandavam mensagens através do Facebook, por exemplo, o que fez com que ele tivesse
dois aparelhos. Um sem aplicativos e sem senha, com o qual ele se comunicava com sua esposa,
familiares e colegas de trabalho, demonstrando assim que não tinha “o rabo preso”, e o outro
celular que só era usado antes de terminar o expediente ou quando saía com amigos, através do
qual mantinha comunicação com algumas “amigas”.
Wesley e Diogo concordavam que eles chamavam a atenção de mulheres jovens e de
algumas maduras, ainda solteiras, por serem homens casados, com casa e emprego, sinal de
estabilidade. Eles “jogavam o jogo reto”: não prometiam nada para elas, não comentavam que
tinham problemas com o casamento, nem que estavam se separando. Eles tampouco se “faziam
de vítimas”, pois isso era coisa de adolescente. A questão para eles era “transar”, ter sexo
somente, para o qual procuravam mulheres que concordassem com esta condição. Com isso,
eles dois não queriam que elas criassem expectativas, deixando claras suas prioridades com
suas companheiras e seus filhos. Do contrário, essas amigas anunciariam que estavam saindo
com eles e “todo mundo ficaria falando” que eles preferiam arriscar sua família por uma noite
de sexo.
“A natureza do homem é ser safado. Eu nunca tive uma mulher só”, dizia o Barrigudo
com segurança e tranquilidade. Essa natureza era transmitida como “herança familiar”, de pai
para filho, e muitas mulheres estavam de acordo com isso. O pai de Diogo, por exemplo, teve
oito mulheres e “até dois filhos com cada uma”, sendo alguns dos relacionamentos simultâneos.
“Meu pai era bom de cama, rapaz, aí tipo, toda amiga perto que não fazia com o marido
terminava com ele, e aí ele vai fazendo comercial”, comentava Diogo com orgulho,
288
assegurando que ele era igual ao pai. Wesley também fazia propaganda de si mesmo e lembrava
o ditado do seu tio: “tem duas coisas que você nunca nega a ninguém. Vou falar abertamente.
Se baterem à sua porta e pedirem água, você dá, e se pedir pau, você dá pau também! Até hoje
eu carrego isso comigo”.
Figura 37. Casas do Morro do Estado.
A safadeza é uma categoria ambígua que valoriza aspectos tidos por naturais do “ser
homem”, mas ao mesmo tempo pode mostrar suas qualidades negativas, quando compromete
a dignidade da esposa e dos filhos. Como valor, ela é transmitida de uma geração de homens
velhos relacionados entre si como parentes para outra de jovens. Ela dá prestígio circunstancial
entre pares, amigos e familiares masculinos. A safadeza está subordinada ao valor da família,
o que é definido pela relação com categorias de parentesco femininas e pela geração dos filhos.
Se “ser homem” é “ser safado”, ser safado, no entanto, não engloba o “ser pai, filho ou esposo”,
categorias que outorgam prestígio permanente, adquiridas por meio da “força” e da “fé” que
permitem ao jovem “se superar” e virar adulto.
289
6.4 Uma postura ética: não falar de si
Esse tipo de vida de “garanhão”, “pegando mulher, curtindo um pagode e fumando
maconha”, era “coisa da juventude”, quando o Barrigudo era “o cara” que bancava a farra das
meninas e, em algumas ocasiões, gastos do dia a dia, tudo em troca de companhia e sexo. Bancar
é importante para um homem mais jovem como Diogo e Wesley, que tinham 28 e 34 anos,
respectivamente. Esse gesto lhes permitia não se sentirem “humilhados” quando outros homens
podiam providenciar os confortos que suas amigas procuravam. Bancar cria um tipo de
relacionamento com as mulheres definido pelo prazer sexual mútuo, pela companhia
momentânea para eles e pela garantia de confortos materiais para elas. Mas isso não implicava
necessariamente a procura de um “compromisso”, de construir um relacionamento e
posteriormente uma família. Não se busca uma esposa no boteco nem na boite. Naqueles anos
da juventude, o Barrigudo só queria experimentar “uma liberdade, sem amarras” e
exemplificava seu comportamento contando a história de “um cara amigo de um vizinho que
namorou uma prima dele de Maricá”:
Ele estava separado, um cara maneiro que não queria um relacionamento sério
com ninguém. Aí conheceu essa menina que botou ele para dentro da casa. O
que aconteceu foi que certo dia ela botou ele para capinar o quintal. Aí ela
falou assim: “eu queria comer uma carne seca com abóbora”. Ele falou, “tá
bom, vou tomar um banho e vou buscar”. [entre risos ele comenta] Aí o cara
subiu na moto e meteu o pé na moto e foi parar no Vidigal, onde o pai dele
morava, e ficou uns três meses lá. Pô, ela tava doida para ficar com o cara,
mas a mulher queria que capinasse, que cuidasse dos filhos, que fizesse isto e
aquilo. Mulher dedicadinha, ele não queria compromisso.
O Barrigudo chegou a ter até cinco namoradas simultâneas e isso demandava muito
esforço físico, sexualmente falando, além de dinheiro. Cansado de andar aqui e acolá, com
filhos de relacionamentos passageiros e sem o “suporte de uma mulher que o ajudasse a subir
na vida”, ele decidiu se estabilizar com Dandara, indo morar junto. Como já colocamos, esse
relacionamento não deu certo e, pouco tempo depois da denúncia, ele conheceu “minha preta”,
Joyce, com quem já conversava há uns anos, mas com quem nunca “rolou nada”. Sendo ambos
mais maduros e valorizando uma vida de ajuda mútua, o Barrigudo considerou que era melhor
“ser um cara sério, honesto e fiel”.
Diferentemente de muitas mulheres que o Barrigudo “já pegou” e mesmo da Dandara,
que era cerca de dez anos mais nova que ele, Joyce tinha 43 anos. A pouca diferença de idade,
de quase quatro anos, fazia de Joyce uma mulher “com força para levantar o homem”. Depois
290
da passagem pelo juizado, o Barrigudo estava aproveitando essa “nova oportunidade para
segurar a onda”. Joyce lhe dava “segurança [para] não estar na farra, pegando geral”. Porém,
devido ao seu histórico de pegador, o Barrugudo tinha “medo” que alguém comentasse com
Joyce com quem ele já se relacionara. De igual maneira, ele não queria saber o histórico de
relacionamentos dela. “Não é legal você estar num local e fulano falar para você: ‘pô, tá vendo
aquela mulher ali? Eu peguei ela’. E pra mulher não vai ser legal saber que fulana ficou com o
marido dela”. Esse conhecimento do outro devia estar no passado, deixando que o “coração”
focasse no futuro do relacionamento.
O Barrigudo valorizava as conversas e a companhia da sua preta, com a qual “existe
diálogo porque tem afetos. Quando você acaba se relacionando por muito tempo, você acaba
sentindo falta da pessoa do seu lado, você tem a necessidade de ter alguém com você e se abrir,
como disse a psicóloga”. Com Joyce, ele podia falar dos seus sentimentos, dos problemas com
os colegas do trabalho, da vida na comunidade, do dia a dia, tendo uma interlocutora que o
entendia e que era crítica quando necessário, aconselhando-o. Nos seus 47 anos, o Barrigudo
considerava que “o homem casado [tinha] mais responsabilidade”, porque sabia que a mulher
com quem estava precisava da sua ajuda na criação dos filhos e na manutenção da casa. Porém,
oportunidades sempre surgiam e “se você ficar cutucando onça com vara curta, vai dar
problema, né? Então é legal você manter fidelidade enquanto ninguém sabe, fazer um serviço
sem nota longe de casa para não dar ruim”. Ser um esposo fiel e um homem safado não gera
contradição na medida em que ningém fique sabendo...
A questão de “ser falado” pelos outros era um problema para o Barrigudo, Diogo e
Wesley. Ao mesmo tempo em que eles tinham que “fazer propaganda” entre amigos de quantas
mulheres pegavam em encontros, também tinham que assegurar que seu nome não circulasse
demais nas conversas e nas fofocas entre familiares, vizinhos e amigos. Estar casado não
garantia estar por fora do circuito de rumores e boatos, pelo contrário, podia ser um agravante.
Apesar de o Barrigudo estar tranquilo e contente com sua preta, sendo eles um casal exemplar
diante de amigos na comunidade, ele devia estar alerta quanto à “inveja” de outras mulheres
que preferiam se relacionar com homens casados. Para o Barrigudo, muitas mulheres ficavam
incomodadas quando eram rejeitadas, razão pela qual elas preferiam “destruir a felicidade,
acabando por inventar uma história”. “A pilhação envenena a relação” e era a causa do maior
desentendimento no casal, produzindo a insegurança e a falta de confiança nas mulheres.
Eu já ouvi a pessoa chegar e falar para mim, poxa Barrigudo, eu tenho inveja
do seu relacionamento. O cara falou isso. Quando me separei por um tempo
291
da Preta, a Amanda e meu primo, eles são casados, só que é um casamento
fantasiado. O cara está ali porque arrumou um filho e acabou ficando. Ele não
consegue sair e está doido para sair. Surgiu um boato que uma menina estava
com meu primo e ela ficou puta da vida. E ela, para tirar o foco do meu primo,
jogou para em cima de mim. Rapá, isso foi um inferno. Eu tava separado, mas
tinha contornado a situação, a separação, a briga, o que tinha acontecido. Um
dia eu já estava contornando a situação, e um dia depois aconteceu essa parada
de ela ter ido falar que eu estava há seis meses saindo com aquela mulher. Eu
falei para meu primo, “porra cara, durante seis meses eu saio com você,
trabalhando, quem te falou isso?” [Ele] não quis falar. Larguei isso porque já
estava no cartório com o nome sujo. Deixei isso passar. Eu conversando com
um cara que não tava falando comigo, que ele é muito amigo da minha mulher,
tem uns três anos que não está falando comigo: “eu quero falar com você.
Porra, cara, aquela história que aconteceu entre você e a Amanda, que falou
que você estava saindo há seis meses, foi porque dois dias antes rolou um
boato que o marido dela estava com a Rosa e a Amanda foi falar para sua
mulher, para tirar o foco, dizendo que a Rosa estava com você”. Aí eu falei:
“mesmo? Beleza!”. Aí ele falou: “Sabe por que ela está com o casamento dela
se acabando lá? O marido está querendo ir embora. Ele está querendo ir
embora de casa, quer largar ela lá e, como eu estava separado, ela queria cair
nos seus braços”. Aí eu falei: “tranquilo!”. Encarei Amanda sem falar nada e
ela agachava a cabeça. Tem um dia que ela passou na frente e disse: “você não
cumprimenta não?”. Falei: “não falo com mulher safada!”. Ela virou “poxa,
que negócio é esse?”. Eu falei: “olha só, não precisa falar nada, foi o que
falaram para mim, tu é uma mulher insegura, infeliz, tu é desesperada para ter
um casamento, meu primo tem 40 anos, tu tem 17, olha a diferença de idade”.
Ela “poxa, desculpa se eu causei algum mal”. – “Desculpa? Cara, essa coisa
não se faz não, você não tem que falar a merda que você falou! Porque tu
pilhou a cabeça da minha mulher e agora prova que eu tava com a Rosa, prova!
Cadê a prova?”. – “Ah, porque me falaram”. – “Te falaram nada!”. Então isso
aí acontece, a pessoa tem ciúme da família, tem ciúme do relacionamento, aí
acaba pilhando com ele, comigo e com os outros. Se você não tiver aquele
preparo alí, acontece isso aí. [Para mim,] muitas vezes, a insegurança surge
através do pilhamento, que aí é quando surgem as ideias, fulana, teu marido
está com beltrana, e não está! E geralmente, no meu ponto de vista, não tá,
mas sempre tem aí pra pilhar, entendeu?
Ao contrário da proposta dos facilitadores de rever a própria emoção, objetivando-a em
uma categoria que mostrasse publicamente o estado interno do indivíduo, a “pilhação” nos
apresenta a relevância social de incidir ou produzir sentimentos em pessoas concretas através
de informações de cunho privado que circulam de maneira mal-intencionada. Os boatos, os
rumores e as fofocas tinham por objetivo questionar moralmente o proceder dos outros,
desvelando assim vínculos de amizade e rivalidade, como mencionara Claudia Fonseca (2010).
O boato tinha a capacidade de afetar moralmente pessoas consideradas com autoridade ou com
certo poder em relação àquela que iniciara o rumor. Mas a fofoqueira, no caso, também
mostrava a “verdadeira face da pessoa”, seu mal-estar em relação ao bem-estar dos outros,
ficando em vários casos desprestigiada, quando não alcançava seu intento.
292
Wesley e Diogo concordavam que a “pilhação” era perigosa, para o que era
recomendável evitar dar muita informação privada ou íntima para os demais, quer dizer, é
sempre preferível “não expor seus problemas”. Wesley considerava que não era bom falar da
relação amorosa com colegas do trabalho ou com familiares, particularmente os dela, como a
sogra, cunhadas ou primas, porque “a fofoca e a insegurança começam por aí”. Os familiares
da parceira sempre vão querer ajudá-la, reforçando os boatos e criando um clima de
instabilidade e tensão no lar. Ao contar a vida para alguém, em breve essa outra pessoa contaria
para outra e todo mundo terminaria sabendo intimidades misturadas com invenção: “aí já
começa: ‘ô, fulano está achando que beltrano está com fulana’, ‘é mesmo? Deve estar bem,
porque fulana está andando para cima e para baixo’, mesmo que não esteja”. Diogo
complementava em relação à reputação das mulheres:
você está com esse papo de homem, às vezes nem pega a mulher, nunca pegou,
aí cada um falando um negócio. Você falou para o cara, ele pro outro, ele é
seu melhor amigo, e vai por aí, por aí começa a fofoca, e aí chega onde tinha
que chegar, ela fica puta e aí começa a insegurança.
Barrigudo, Wesley e Diogo concordaram rindo.
Falar de si e expor intimidades, que incluem segredos, sentimentos e conhecimento
sobre os outros, geralmente eram um problema, muitas vezes incompatível com a valorização
da confiança no casal. Aquilo que os outros sabem de você, particularmente sua parceira,
constitui “munições de uma arma” que pode ser usada para realçar sua reputação ou, pelo
contrário, desprestigiá-la. Por isso, um relacionamento sério é importante e procura-se que sua
parceira esteja bem com você, porque ao mesmo tempo em que “ela pode te alçar e levar para
cima, ela com raiva pode usar sua força para te arruinar”, comentava Wesley. E isso era o que
acontecia com a Lei Maria da Penha, aquela “arma nas mãos equivocadas” que era usada para
“fuder o cara” quando a mulher não aguentava mais os rumores de terceiros e terminava por
não acreditar mais nas palavras do seu marido.
O tema da fofoca como causador da insegurança das mulheres e dos seus ciúmes
doentios era abordado tanto por Láris como por Aline no grupo reflexivo como uma ausência
de compreensão da posição da demandante por parte dos homens. Diante disso, ambas as
psicólogas recomendavam revisar a própria emoção para garantir o controle de si e depois
dialogar para saber o que ela estava dizendo, sem golpear. O que esses homens comentavam
era que as fofocas criavam um caminho para descobrir uma verdade potencial, através da
geração da dúvida e da insegurança no outro, com informações ambíguas que eles e elas tinham
293
que comprovar por meio de confrontação dramática entre os membros do casal e a pessoa que
iniciara a difamação.
O valor outorgado à palavra de familiares, vizinhos e amigos era grande, muitas vezes
superior à palavra dos parceiros como constitutiva do valor da confiança no casal. Esse valor
mostra um contraponto entre o “falar sincero”, definido pelos facilitadores de grupos reflexivos
de gênero, e a contenção e o sigilo recomendáveis por quem tem medo da fofoca. Para o
Barrigudo, era preferível se colocar diante de Joyce nos termos em que ela queria vê-lo e ouvilo e não necessariamente como ele queria. O Barrigudo não podia expressar “seu desejo” nem
sua “sinceridade” nos termos valorizados pelos psicólogos do juizado e do Instituto. Em outras
palavras, a confiança no outro, como antídoto da fofoca, se cultivava através da demonstração
de uma vida de acordo com a expectativa ou a idealização que Joyce tinha do Barrigudo:
um outro dia, a minha mulher, essa que trabalha comigo, ela falou: “o que faz
da vida quando você não tava comigo?”. – “ Puteiro”. – “E agora?”. – “Agora
não, porque estou com você”. – “Tem certeza?”. Aí eu respondi: “Você não
confia em mim? Se eu estou falando que não vou mais para puteiro, então
você não está confiando mais em mim, se você não confia em mim, eu não
vou confiar em você. Quando você fala que vai num bar, também vou ficar
desconfiado”. Eu posso até ir num puteiro, mas não vou ter relação. Não? Por
quê? Porque não vou com o mesmo prazer. Porque estou casado e vou ficar
inseguro, beijar e pegar uma bactéria qualquer. Depois vou chegar em casa e
vou passar para ela. Se deitar, vou pensar, será que peguei alguma coisa?
A confiança no outro implicava que a pessoa não podia agir sem saber a maneira ideal
com que o outro o via, para o qual a expressão de certos sentimentos era necessária, como o
ciúme, mesmo que pareça contraditório do ponto de vista dos facilitadores, ou demonstrar a
renúncia e o sacrifício que esses homens faziam ao deixarem para trás uma vida juvenil definida
pelo prazer. Para o Barrigudo, Wesley e Diogo, a expectativa das mulheres era conseguir um
homem maduro, trabalhador e responsável pelo lar, coisa que eles levavam a sério, porque
gerava prestígio. Como nas justificativas da violência no juizado, boa parte da narrativa moral
sobre si mesmo vinda do Barrigudo, de Wesley e Diogo transmitia a ideia de eles serem um
“lutador” diante das adversidades, das privações e da violência da vida na comunidade (causada
pelo enfrentamento entre facções de traficantes e destas com as forças estatais), sempre se
superando para alcançar o reconhecimento social como “o cara”.
As qualidades de “o cara” que atendia às necessidades dos seus familiares e vizinhos
faziam do Barrigudo um homem respeitado na comunidade e um exemplo de como deveriam
agir os jovens. O Barrigudo comentava com orgulho como ele ganhara o respeito dos familiares
da sua Preta, quando auxiliou sua sogra após um acidente no qual ela foi atropelada e seus
294
cunhados estavam trabalhando na vizinha cidade de São Gonçalo, sem capacidade de ajudá-la
imediatamente. O Barrigudo e Joyce estavam morando juntos há pouco tempo, após o episódio
do incêndio da sua casa, e os familiares de Joyce mal o conheciam. Pelo fato de ele acompanhar
a sogra durante a madrugada, “todo mundo ficou falando” e ele ficou “destacado”. A palavra
de terceiros não só tem a capacidade de machucar, mas também de enaltecer quando você faz
o correto, ao demonstrar “desinteresse” e ao ajudar os outros quando precisam.
Esse destaque deu autoridade ao Barrigudo para opinar e intervir em problemas da
família da sua namorada:
Mais de um mês depois, a nora [namorada do filho mais velho de Joyce] teve
neném. Fui eu pro hospital com ela, o dia todo, fiquei até meia-noite. Eu não
tinha nem roupa para entrar com ela porque tinha que entrar de calça
comprida. Fui em casa, peguei uma calça, porque moro perto, voltei, deixei
ela lá e vim no outro dia de manhã, levei ela pra almoçar e depois ela voltou
pro hospital. O filho da Preta só chegou um dia depois porque ele é, vou falar,
preguiçoso, acomodado. Eu falei isso para ela, não me interessa nem a vida
deles, não quero nem saber, meu problema é eu e você. Aí tem gêmeos, eu sei
o filho, conheço o filho e ele me conhece. Aí falei para ele, “vem cá, mano,
vai ficar nessa vida aí sentadinho no sofá? Está chegando a família agora, mas
você está errado”. – “O que foi Seu Leandro?”. – “Sua mulher tem duas filhas,
sua mãe não é obrigada a fazer um serviço e correr pra cozinha para fazer
comida para você, largar a panela e pegar seus filhos. Tome seu filho aqui”.
Eu com a criança no colo e ele todo largado, fumando um cigarrinho, a criança
estava chorando. “Ah, seu filho da...”. Ele ficou olhando pra mim assim [o
Barrigudo fez um gesto de raiva]. “Não estou gostando de ver vocês. Você
tem que reconhecer isso cara. Você está errado rapá”. Ontem cheguei lá,
fizeram aniversário de um mês. Ele era um farrista, a Preta ficou dois dias na
cozinha, começou a fazer comida sábado de manhã e só acabou domingo às
10 horas. Chega na hora da festa. Aí fez um comidaço. Falei: “Preta, tem um
banheiro ali, está entupido”. – “Você não pode desentupir não? Eu desentupi
o banheiro”. – “E seu filho? Você quer que eu vá limpar o banheiro para ele?
Dá licença”. Aí eu falei para ele: “Vá desentupir o banheiro! Você não tem
jeito não!”. Porque ela reconheceu que eu chamo a atenção dele, aí ela começa
a falar: “Sai da minha casa! Não quero estresse na minha casa”. Eu falo para
minha filha, que tem 12 anos e está querendo chamar a atenção: “quando um
mais velho fala para você, você tem que escutar”. E ela nessa coisa fica... vai
respeitar.
A autoridade do Barrigudo dentro da família de Joyce ia além do seu papel como
provedor. Ela era uma mulher madura, com casa e emprego e não precisava da ajuda econômica
do seu namorado. De fato, ela o acolheu, junto com alguns dos seus filhos, para morarem juntos
após o incêndio da sua casa. O Barrigudo, além de ser um homem muito atraente para Joyce,
desejado por várias das suas colegas, era descrito por ela como um homem trabalhador,
generoso, sacrificado por sua família e com carácter para falar a verdade e encarar as
dificuldades da vida. Todo mundo conhecia a passagem do Barrigudo pelo juizado e se
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posicionava a favor dele. Para muitos dos colegas e familiares que conheci no seu 48º
aniversário, organizado por Joyce na sua casa, “o Barrigudo não precisava de tanta humilhação
nem desgraça”. Apesar da minha impressão inicial de que a passagem do Barrigudo pelo
juizado não constituía um estigma para ele ou para alguns dos vizinhos da sua comunidade,
seus amigos e familiares se sodilarizavam com ele e viam na sua passagem pela justiça uma
espécie de afronta pelo fato de ele ter sido tratado como um “bandido”.
As filhas e as netas adoravam “seu coroa” e elas o obedeciam a ele sem maiores
reclamações. A maioria das fotos expostas na casa e no Facebook do Barrigudo é dele com elas,
poucas vezes com seus filhos, dos quais ele quase nunca falava. Para o Barrigudo, “relação
familiar é amor”, procurando gerar confiança no casal e educar o melhor possível suas filhas,
netas e enteados, os quais estavam sempre em risco de virar bandidos ou de se perderem no
vício.
Mas como “você não pode cutucar uma onça com vara curta”, como já nos disse o
Barrigudo, vários meses depois, Joyce o deixou porque não aguentava suas saídas com amigos
e amigas depois do trabalho. Ele voltou para a sua antiga comunidade, após ter reconstruído
sua casa, onde morava com suas filhas e netas. A cada fim de semana, ele continuava fazendo
os treinamentos de futebol com as crianças e participando de torneios com outros times das
comunidades vizinhas. O juiz finalizou seu processo com a Lei Maria da Penha, considerando
que ele não constituía um perigo para a demandante. O Barrigudo continua trabalhando como
gari, torcendo apaixonadamente pelo Fluminense e sendo “o cara” na sua comunidade.
6.5 Herbert, a solitária vida de um “marítimo”
Voltando atrás no tempo, no início do meu trabalho de campo no juizado de Niterói, em
um dos últimos encontros do grupo reflexivo facilitado por Aline e documentado no segundo
capítulo, conheci melhor Herbert, o melancólico “marítimo” 49 que aconselhava Heitor acerca
de como levar adiante um relacionamento baseado na confiança e na companhia, além do sexo.
Herbert foi o único acusado que me procurou para falar e ser entrevistado. Ele fazia questão de
ser gravado para falar não só da “briga por ciúmes doentios” que o levou ao grupo reflexivo de
gênero, mas da sua relação com familiares e amigos e dos seus gostos e posição diante da vida.
Entrevistei-o várias vezes, perto do Fórum, antes ou depois de algum dos últimos encontros do
grupo. Também conversamos em uma pracinha próxima à sua casa na ilha da Conceição, na
49
O termo usual é “marujo”, mas “marítimo” é o termo que Herbert utilizava para identificar sua profissão.
296
casa da sua irmã e no seu local de trabalho, em um dos estaleiros da mesma ilha, perto da ponte
que comunica Niterói com o Rio de Janeiro.
Através dessas conversas, consegui enxergar caminhos mediante os quais Herbert
chegou a ser uma pessoa que “pensa” sobre sua vida. Conheceremos algumas histórias de um
marítimo cujos referentes éticos dizem respeito a intensas relações com seu pai e sua mãe, ao
sexo como prazer, à centralidade do dinheiro na sua relação com sua mãe, sua esposa e filha e
a um posicionamento político que valoriza a ideia de “homem” sujeito do reconhecimento e do
tratamento igualitário, que não dista muito do ideal ético dos facilitadores. Essas histórias nos
mostram o processo de amaturecimento de um homem que reconhecia sua própria “força” ao
longo dos anos.
Em um dos últimos encontros, e como pretexto para falar sobre “paternidade”, Aline
apresentou um material das Nações Unidas que definia a “família” como as pessoas com as
quais se conta para cuidar, proteger e orientar. Depois, ela colocou a campanha institucional
“Quem ama abraça” da Rede de Desenvolvimento Humano e do Instituto Magna Mater, um
vídeo no qual várias crianças recomendam aos adultos não baterem nelas, tentando ressignificar
o castigo com fins pedagógicos. A campanha ampliava o significado da violência doméstica
contra a mulher, abarcando também os filhos. Aline ressaltou que nas brigas do casal não só a
mulher sofria a violência, mas também as crianças, que eram testemunhas dela. Como uma
alternativa ao golpe e ao insulto, a facilitadora lembrava o “poder do abraço [que] transforma a
raiva em calma”. Para estimular a conversação, Aline reconhecia a queixa de “alienação
parental” que muitos dos homens ali presentes tinham em relação à proibição da visitação dos
filhos por parte das demandantes. A partir daí, alguns deles comentaram a dificuldade de visitar
seus filhos e o medo de serem desconhecidos como pais, muitas vezes por causa da medida
protetiva.
Para Herbert, os filhos eram sempre crianças que deviam ser cuidadas. Sua filha, que já
tinha 27 anos na época, ainda era considerada uma menina para ele. Como pai, Herbert sempre
lhe repassava dinheiro e pagava a escola técnica, com a esperança de que tivesse uma vida
melhor. Porém, ela estava “do lado da mãe”. Herbert considerava que a mãe era uma má
influência, fazendo da filha uma pessoa preguiçosa que esperava ser mantida pelos homens.
Isto Herbert comentara com o juiz uns dias antes, na audiência na qual Izete queria que ele
voltasse para casa, e disse de novo dentro do grupo reflexivo naquele dia. Ele não queria voltar
porque Izete era “uma doente de ciúmes que precisa tratamento psiquiátrico”. Sem ser
interpelado para narrar a briga, Herbert comentou que uma noite chegou a casa “cheio de
cerveja” e ela, acusando-o de “gastar dinheiro com puta”, pegou seu celular para verificar a
297
agenda e as últimas ligações. Herbert já estava cansado dos ciúmes de Izete, que de uns anos
para cá deterioraram “a confiança” entre eles. Quando ela o arranhou no rosto, na tentativa de
pegar o celular,
aí bati na mão dela e peguei o celular e a carteira, “você não tem que estar
mexendo em nada e aqui não tem puta não!”. Aí peguei ela pelo cabelo e
joguei no sofá e saí. Entrei para tomar banho. Eu escutei lá ela mexendo no
telefone. Fui lá e tirei o fio do telefone. Aí fui, vesti uma cueca deitei e, quando
estava quase dormindo, estavam batendo na minha porta. Era uma cara me
prendendo. Aí fui preso.
Um policial, seu vizinho, com o qual crescera na ilha da Conceição, foi quem o conduziu
para a delegacia. Herbert reconheceu tudo o que fez, menos o fato de ter batido”: “eu sou muito
macho para assumir o que eu faço, agora o que eu não faço, eu não assumo”. Herbert distinguia
entre pegar pelo cabelo e jogar no sofá e bater no rosto e no corpo. Isto mesmo ele comentou
com o juiz, acrescentando que o policial acreditava nele, insistindo que Izete precisava muito
de tratamento psicológico porque ela ficava “insegura” quando ele visitava sua irmã (a cunhada
dela) e no passado, a sua mãe. Herbert comentou que Izete acusava a cunhada e a sogra de
falarem mal dela, o que a irritva, razão pela qual ela proibia que ele as visitasse. Isto era muito
difícil para ele porque os irmãos moravam na mesma casa: “se eu falar para minha irmã, ela
xinga minha irmã das piores coisas que você imaginar, tanto uma como a outra, entendeu? É
um ciúme doentio, é uma coisa que não entra na minha cabeça”.
Aline deixou que ele falasse por uns momentos, escutando pacientemente a descrição
da agressão, a única narrada dentro desse grupo. Ela perguntou se ele se sentiu melhor depois
de “resolver o conflito dessa maneira”, jogando Izete no sofá, ou se achava que ele podia ter
abordado esse “momento de raiva” de outra maneira. Como em outras ocasiões, Herbert se
descrevia como uma pessoa que sempre se controlava porque conhecia a sua “força”. Ele era
um homem de mais de 1,80m de altura, gordo, com mãos grandes e fortes por estar trabalhando
em embarcações por vários anos.
Eu falei isso para o delegado e falei isso para o juiz também. Olha o tamanho
da minha mão, se eu der um tapa nela, eu desmonto ela. Eu trabalho no leme,
com um timão duma embarcação. Aí, quando estou com a embarcação
carregada, é pesado. Eu faço força, então eu tenho músculo, minha mão é
pesada e grande.
De fato, as mãos de Herbert eram grandes e muito fortes – cada vez que ele me
cumprimentava, sentia um forte aperto e a mão repleta de calos. Fora da sala do grupo, Aline
298
comentou comigo que reconhecia a diferença de tamanho entre Izete e Herbert, sendo ela baixa
e magra. A psicóloga também considerava que ela precisava de uma escuta profissional, pois
percebia uma narrativa de ciúmes contra a mãe e a irmã de Herbert que, para Aline, não eram
justificados. Por causa dos ciúmes e da desproporção do tamanho entre eles, Herbert não queria
voltar para casa, porque ele sabia que em uma próxima oportunidade ele não estaria seguro de
“se controlar”. Igualmente, porque ele teve paciência por um período prolongado da sua vida:
“eu vi minha mãe apanhar do meu pai durante anos e isso daí quando era criança me causava
revolta porque eu não podia fazer nada. Eu estou segurando as rédeas”.
Figura 38. A força.
Aline entendeu que Herbert não queria repetir a história do seu pai: “Doloroso, o senhor
passou a vida evitando justamente aquilo que o senhor via dentro de casa”. Quando ele escutou
essas palavras, rompeu em lágrimas, causando a “empatia” da facilitadora e a comoção nos seus
colegas do grupo. Em meio às lágrimas, Herbert explicava que a casa onde ele e seus irmãos
moravam tinha sido ganha por ele na Justiça após seu pai vendê-la de maneira fraudulenta, para
deixar a mãe e os filhos na rua. Herbert já havia oferecido a Izete morar em outra casa, que
havia comprado em Itaboraí, município ao norte de Niterói, a qual já estava em nome da filha
do casal. Ele se perguntava se isso não era ser um “bom pai” e não entendia as acusações de
299
Izete diante do juiz, em que Herbert era descrito como uma pessoa que gastava dinheiro com
putas, deixando a filha na miséria.
Após ter chorado e ter feito um longo depoimento acerca das razões pelas quais se
controlara, mas no final terminou por puxar Izete pelo cabelo, Aline chamou a atenção para o
“controle da raiva” e a importância da “reflexão” para não perder o controle. Aline procurava
fazer com que ele reconhecesse o “lugar de fala” da denunciante, que muitas vezes se sentia
“diminuída pela violência psicológica” e via na Lei Maria da Penha um recurso para se afirmar.
Voltando ao tom brincalhão que caracterizara Herbert nos encontros anteriores, ele expressou
o que pensava da sua mulher naquele momento:
Izete é agressiva comigo, mas ela não é nada mais para mim agora. Ele é o
cocô de um mosquito que pousou no cocô do cavalo do bandido, de tão
pouquinho que é. Agora avalie para mim isso que eu falei [se dirigindo para
Aline], uma pessoa que é o cocô de um mosquito, que fez cocô no cocô do
cavalo do bandido... é menos do menos, não é nada!
Aline não gostou dessa afirmação.
Uma vez fora do juizado, Herbert e eu conversamos sobre sua audiência com o juiz e
sobre a afirmação de Aline de ele não ter controlado sua raiva. Também explicou o acontecido
após a denúncia de Izete.
Hoje eu estava com raiva não, mas eu fico assim, aborrecido, quando eu me
lembro das desgraças todas. Aí eu choro e o caralho. Mas raiva, raiva mesmo?
Raiva é uma coisa que dá e passa, dá na hora, assim, aquele ódio. Eu não sou
de brigar não, nunca fui de brigar. A mulher deu parte, aí eu fiquei três horas
preso. Aí consegui ligar para minha irmã. Ela foi lá, pagou a fiança e fui
embora. Aí fiquei proibido de chegar na minha casa. Antes da minha mulher
chegar, porque ela tava na delegacia, peguei o carro da minha sobrinha, fui
com ela até a minha casa, peguei essas roupas e fui pra casa dela. Mas aí, ela
com o marido e duas crianças, não dá para ficar. Aí o que acontece? Eu saí e
tô a bordo, tô morando no barco.
Herbert considerava lento demais o trâmite dentro do juizado. Para ele, o juizado deveria
ser como uma unidade de emergência hospitalar, com funcionários especializados em todas as
funções: civil, penal, de família e criminal, articuladas para resolver o processo de maneira ágil.
Então, ele levava mais de seis meses tentando resolver sua situação, para o que teve que pedir
várias permissões no estaleiro, razão pela qual perdeu um emprego bem remunerado. Depois
disso, Herbert teve que aceitar outro emprego na mesma companhia, com piores condições
laborais, sentindo-se rebaixado e humilhado diante de seus colegas pelo tratamento dado pelo
300
seu chefe: “Agora o cara só quer pagar a metade que antes eu ganhava. Eu não sou peão de
trecho não! Aí o cara falou ‘você é muito respondão!’. – ‘Ué, eu sou marítimo, cara!’”.
Herbert dizia que uma das suas qualidades era a “honestidade”. Falar a verdade fazia
dele uma pessoa que assumia suas ações, de maneira similar à noção de “ser autor”, que os
facilitadores tentavam inculcar através dos grupos e à de “ser sincero” do Barrigudo. Sua
honestidade podia ser corroborada pelo policial que o conduziu para a delegacia, que foi
testemunha diante do juiz. Herbert descrevia a audiência:
Aí o juiz perguntou “você conhece ele?”. – “Conheço, que eu já trabalho no
mesmo lugar há 13 anos, tenho que conhecer”. – “Ele é violento?”. – “Não”.
Esse polícia só me viu cantando em karaokê e tomando uma cerveja, que ele
frequentava também. Aí quando ele me via, ele já vinha perto de mim: “deixa
eu cantar com você, que você canta e eu não canto”. Aí o juiz perguntou: –
“Ele sempre é violento?”. – “Pelo contrário, é até tranquilo demais”. O juiz
fez essas perguntas para ele e para mim também. Eu respondi: “foi a mulher”.
Como outros homens no juizado, suas qualidades morais eram descritas em oposição
aos defeitos da demandante. Herbert mostrava Izete como uma pessoa desconsiderada e que
agiu sem pensar nas consequências dos seus atos, prejudicando-o e, desse modo, também o
relacionamento. Ele manifestou seu “medo”, porque reconhecia o poder das palavras da mulher
diante do juiz. Para Herbert, a denúncia não era mais do que uma retaliação para “me ver levar
porrada” e recriminava que ela não tivesse querido chamá-lo para conversar, perdir-lhe
desculpas e retirar a queixa. Herbert explicava o comportamento de Izete devido à “macumba”
que ela praticava, coisa que vinha fazendo nos últimos anos, quando ela começou a manifestar
ciúme e desconfiança. Para ele, esse era um tipo de vingança e perseguição. Herbert se sentia
como “um babaca [e um] burro”, por não ter advertido que Izete frequentava um terreiro. Ele
temia que alguma “bruxaria” viesse a prejudicar a relação com seus irmãos e, pior ainda, que o
fizesse adoecer até morrer! Esses antecedentes faziam com que ele se sentisse “muito
vulnerável [e] totalmente desnorteado, sem saber o que fazer” e o impossibilitavam de voltar
para casa para viver junto com ela: “é maluquice demais!”.
Mas nem tudo era “negativo”. Por passar por essa situação, Herbert pôde “ver de novo
[e] descobrir a libertade”, sentindo que “tirei uma carga das minhas costas”. O valor da
confiança era importante, mas o da liberdade era ainda superior. Herbert comentou comigo que
ele ainda era visto como um homem desejado sexualmente, apesar da sua idade, mostrando para
301
Izete que, finalmente, depois da denúncia, ele conseguia ficar com outras mulheres – quase
como uma vingança...
Agora eu tô com uma namoradinha e tem um monte me querendo. Agora
mesmo é que eu não volto. Agora é que eu não quero. Há muito tempo, desde
que eu estou com ela, há uns 30 anos, que não me sinto livre [...] Ah, quer
saber? Parar com essa porra, não quero saber mais de porra nenhuma. Sozinho
eu tô bom pra caralho. Tô tranquilo. Eu tô me sentindo bem à beça.
Apesar da sua afirmação, o tom das palavras de Herbert não era muito entusiasmado.
Ele sempre parecia triste, cansado e melancólico. Seu relato de liberdade parecia mascarar um
incômodo: o de estar dependente do poder judicial, que desacreditava das suas palavras, e o de
não poder morar na sua casa, tendo que ficar a bordo no desconfortável lugar de trabalho.
Minhas conversas com Herbert usualmente começavam a partir dos temas propostos por
Aline no grupo reflexivo. O interesse da facilitadora por lembrar eventos passados e relações
marcadas pela violência permitiu-me explorar a história familiar, começando pela
“identificação negativa” que Herbert tinha com seu pai, fazendo uso da expressão de Aline. A
partir da descrição sempre emotiva que ele fezia do seu genitor, Herbert definia as qualidades
morais que procurou alcançar durante sua vida adulta em relação a seus amigos, a instituições
públicas, sua relação com Izete e o Judiciário. Provavelmente, sob outras circunstâncias, ele
tivesse ressaltado outros aspectos da sua trajetória que não estivessem submetidos à valoração
da relação qualificada como violência por terceiros investidos de autoridade institucional, como
a de Aline ou do juiz, ou mesmo a do antropólogo, interessado na “perspectiva do conflito do
agressor”.
Assim que terminaram os encontros do grupo reflexivo de gênero, aceitei o convite de
Herbert para conhecer a ilha da Conceição que, do centro de Niterói, ficava a menos de 20
minutos de ônibus. Várias vezes conversamos na pracinha onde ficava o ponto final dos ônibus,
no meio de casas construídas na década de 1970, próximas aos estaleiros e a um centro
metalúrgico da cidade de Niterói. A poucas quadras, caminhando através de estreitas ruas, nos
dirigimos ao apartamento da sua irmã, localizado em um segundo andar e na parte da frente de
uma antiga e grande casa que, como já disse, após a morte da sua mãe foi divida em quatro
apartamentos para cada um dos irmãos, constituindo uma pequena vila. Em um deles, a poucos
metros da entrada principal, uma janela com uma luz tênue indicava a presença de Izete e sua
filha. Herbert apontava com o dedo para mostrar a sala da casa que não podia mais frequentar,
devido à medida protetiva dada pelo juiz.
302
Em silêncio, subimos uma escura escada e, nos esquivando alguns gatos, chegamos ao
apartamento da irmã, Inês. Ela era uma costureira que tinha sua oficina na sala, e nos últimos
meses cuidava do jantar do seu irmão mais velho. Tanto Inês como seu sobrinho, Miguel, não
entendiam por que Izete podia ficar na casa materna enquanto Herbert devia dormir no seu
pequeno barco. Eles dois consideravam que Izete não tinha direito a ficar com a propriedade e
se lamentavam pelos problemas causados pela denúncia. Claramente irmã e sobrinho se
posicionavam a favor de Herbert e contrastavam a “perversidade” de Izete com a forma de ser
“brincalhona” de um homem que algumas vezes foi chamado de “neném” pela irmã. Este fora
o apelido dado na infância por sua mãe e com o qual Herbert era conhecido na ilha da
Conceição.
Tomando um café bastante doce, junto com Inês e Miguel, Herbert começou a narrar
sua vida, que foi complementada durante outros encontros durante minhas visitas à ilha da
Conceição e na ocasião em que o acompanhei a bordo. A casa onde nos encontrávamos foi um
tema durante várias das nossas conversas. Essa casa definia um eixo narrativo que associava a
história da sua família e de sua trajetória, desde que era uma criança, passando por uma etapa
na qual ele andava na “gandaia”, até chegar a ser um homem com família, responsável pelo
bem-estar da sua mãe e, posteriormente, de sua esposa e filha. A história dessa casa oferecia
elementos para compreender o sentimento de injustiça que ele expressava no grupo reflexivo e
que, de maneira perspicaz, Aline notou quando Herbert descrevia a relação entre seu pai e sua
mãe.
A partir das nossas conversas, apresento um texto organizado cronologicamente pelo
antropólogo, no qual, através da primeira pessoa, Herbert fala de si e da sua trajetória. É
importante ressaltar que durante as entrevistas Herbert pulava de um tempo a outro, na medida
em que ele vinculava sentimento com cenário, trazendo vários temas e situações à tona. Por
exemplo, ao lembrar de um sentimento na sua relação com seu pai na infância, ele relacionava
outra situação com uma intensidade afetiva similar. A organização narrativa presente aqui
espera ser fiel às lembraças e aos sentimentos manifestados por Herbert.
303
Figura 39. A Ilha da Conceição.
A trajetória de Herbert e a história da casa permitem apreciar certas inflexões morais,
situações nas quais ele reavaliou seu proceder e conduziu sua vida em direção ao seu
reconhecimento como pessoa honesta, bom pai e filho, em oposição ao qualificativo “safado”.
Em contraste com a narrativa do Barrigudo, ser safado não era motivo de orgulho para Herbert.
Ele se comparava com seu pai, o padrasto e amigos, categorias consideradas como pares ou
iguais, e com categorias femininas de parentesco, com as quais tinha uma relação de diferença
e complementariedade. Isto ficou evidente não só através do seu relato, mas também pela
relação entre o tom de voz e a descrição de certos personagens, que dava conta da intensidade
emocional do momento.
6.6 A casa: a história de Lourdes e Mariano
Eu nasci em 1953, aqui mesmo em Niterói, lá no Largo do Barrado, na casa
da minha avó. Naquele tempo era mais difícil. Só as pessoas com mais posse
era que iam para o hospital. Meu pai, Mariano, era baiano e minha mãe,
Lourdes, era filha de portugueses. A minha avó veio morar em Niterói, criança
ainda, cresceu aqui, casou com um português aqui. Aí nasceu a minha mãe.
Minha avó já tinha outra filha. Minha avó casou parece que umas três vezes.
Aí, desse segundo casamento nasceu a minha mãe, mais três tias, mais dois
tios. Dois morreram. Para a época, era normal ter bastante filhos porque não
tinha anticoncepcional ainda. O anticoncepcional começou a aparecer na
época da minha mãe, mas, mesmo assim, a minha mãe teve quatro filhos.
Desses quatro filhos, um sou eu, duas meninas e dois meninos.
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Eu sou o segundo filho, as duas meninas vieram depois. E eu, na verdade, eu
tive até uma boa infância, até uma boa criação. Porque, apesar do meu pai ser
marítimo, também como eu sou hoje, antigamente um marítimo era diferente
do que é agora... Meu pai viajava muito, ficava pouco em casa e era tudo muito
farrista, muito desinteressado da família. Hoje em dia um marítimo é bem
diferente: são mais instruídos. A Marinha está exigindo mais instrução dos
marítimos, e como os navios são mais confortáveis, o cara também leva uma
vida bem melhor. Antigamente, os marinheiros tinham fama de brutos, de tudo
de ruim. Hoje em dia não, hoje em dia o marítimo está mais adestrado, vamos
dizer assim.
Meu pai nunca me bateu, e em nenhum dos meus irmãos, ele só falava grossão:
“Não faz isso! Procura fazer as coisas direito” [imitando a voz grossa como
fazia seu pai, tendo em conta que a dele já era grave]. Eu, com 7 ou 8 anos,
meu pai botou a gente para trabalhar em casa: “toma, capina aí!”. A gente
sempre trabalhava em casa, e que eu me lembre, eu e meu irmão limpamos
uma área do terreno dessa direção, daqui até ali, do muro, uns 10 metros
quadrados mais ou menos. Limpamos, capinamos, cavamos uma barreira, que
era de um metro mais ou menos.
Esse foi o único momento em que meu pai ficou com a gente, em casa, ele só
viajando, seis ou oito meses. Foi a única vez que eu me lembre de ter ficado
em casa. Ele chegava no sábado ou no domingo e dava dois reais. Só dava
para tomar um refrigerante. Aí ele dava para mim, para meu irmão, a gente ia
lá, na pracinha da ilha, que na época a cidade era pequena. Na época não tinha
quase nada. A gente ia lá, olhava no clube, mas se entrasse no clube, não
tomava o refrigerante. Eu, por exemplo, tomava um refrigerante e ia embora.
Só isso que eu me lembro dele. E o negócio das menininhas, de ir pegar lá as
menininhas, porque meu pai estava viciado...
Meu pai era um boçal danado, era um boçal filho da puta, muito ignorante. Se
bem eu acho que tinha marítimo na época muito pior do que ele. Apesar dos
pesares, ele até comprava tudo para casa, mas meu pai era um bruto. Ele tinha
um problema, só queria garotinha novinha. Por quê? Porque andava viajando
por todo o Brasil. Inclusive esteve viajando pelo interior do país e nesse
interior do país, o cara ou a mãe vendia a filha por conta de um quilo de arroz
ou de um frango congelado. Aqui mesmo no Rio já conheço gente que já falou
que o cara vendia sua filha para os marítimos que chegavam num porto, e um
pai oferecendo sua filha de 10, 11 anos, 12 anos: [de maneira indignada e
enfática] “não, pode ficar com minha filha aí, não vai dormir mesmo, me dá
um frango, me dá um quilo de arroz...”. Não é brincadeira, é coisa difícil. E
meu pai tinha esse vício porque os outros ofereciam com facilidade.
Ele podia até trazer de um estado para outro. Teve duas vezes em que ele fez
isso. Pelo menos de duas eu me lembro. Teve umas duas vizinhas que ele
andou pegando conta, porque a mãe oferecia mesmo. Aí, quer dizer, ele era
um pedófilo. Pela instrução e pelo que outros faziam, eu acho que não era
culpa dele. Se a própria mãe e o próprio pai ofereciam, então, para mim, ele
era um pedófilo, mas a culpa não era nem dele. Ele tinha oportunidade, ele
aproveitava. Eu acho que ele morreu assim, por conta da pedofilia dele, mas
sem ser preso. Ele morreu com 72 anos, isso já tem uns vinte ou vinte e cinco
anos. Uma dessas meninas que ele trouxe e começou a criar como filha, depois
cresceu um pouquinho mais e aí se desmandou. Ela o encontrou no chão. Ela
foi trabalhar num puteiro, se diz casa de massagem, mas é puteiro mesmo. E
depois foi para Grécia e Espanha e voltou pro Brasil. Alguém falou para mim
que ela morreu aos 42 anos, acho que foi por conta de vício ou da AIDS.
305
Para mim foi interessante notar que quando Herbert descrevia o tipo de vida que
reprovava do seu pai, Mariano virava um “ele”, genérico, distante, sério, seco e com
ressentimento. Como a questão do “serviço sem nota”, narrado pelo Barrigudo e seus colegas,
o pai de Herbert não desaproveitava a oportunidade para exercer a “pedofilia”, mas sempre
notando que esse “vício” era possível na medida em que os pais das meninas com as quais
Mariano se relacionava consentiam na prática. Herbert reprovava o comportamento sexual do
seu pai, mostrando um proceder errado, ele o extendia até sua meia-irmã. A “pedofilia” também
dava conta do histórico de agressão contra Lourdes e do abandono dele e de seus irmãos. A
narrativa de “ele” contrastava emotivamente com a de “minha mãe”, que tinha morrido uns
meses antes das nossas entrevistas, durante o processo jurídico. Ele mostrava um polo moral
oposto, o do carinho por seus filhos e o do sofrimento e o da perseverância, que apontava para
as qualidades morais que “as mulheres” – quer dizer, Izete – não possuíam no presente.
A minha mãe teve muita briga com ele, porque a minha mãe gostava muito
dele. Mulher apaixonada é pior do que uma onça! [Herbert comentava isto em
meio a sorrisos que pareciam nostálgicos] Minha mãe amava ele, mesmo com
o que ele fazia com essas garotas, a minha mãe adorava ele. Minha mãe, ela
foi uma pessoa que respeitou o meu pai a vida inteira [chorando por alguns
instantes]. As mulheres daquele tempo eram diferentes de agora. As mulheres
de agora não estão bem de porra nenhuma, essa é a verdade. Antigamente, era
difícil você ver uma mulher que estava com um cara e ficava corneando ele.
Minha mãe nunca corneou meu pai. Foi ele quem tirou o cabaço dela, quem
tirou a virgindade dela, e ela nunca teve ninguém fora ele. Minha mãe morou
com meu pai por uns treze anos, mas não eram casados. Ela, numa dessas
épocas aí, dessas brigas com ele, que ele trazia a garotinha e trazia para dentro
de casa, ela deu parte dele e ele deu porrada nela, e deu porrada mesmo com
vontade [expressando com ressentimento]. Ele foi preso e ela ficou na casa.
Depois disso aí, ele fez mais umas duas vezes, que eu me lembre de que ela
tenha contado, dela dar parte, e ele ainda deu porrada nela, e ficou toda fudida
um tempão.
Quando teve essa última briga, foi a última gota d’água. Foi que apareceu esse
cara russo, pintoso, bonito, também marítimo, diferente do marido dela, um
cara legal, educado [era seu padrasto]. Ela se abriu igual paraquedas e ficou
cinco anos com ele. Ele era mais tranquilo e tratava ela bem. Eu acho que
minha mãe até casou com o cara, porque ela passou a vida inteira respeitando
meu pai e ele só desrespeitando ela. Meu pai não tinha respeito nem pelos
filhos e nem pela mulher.
Eu estava com 9, meu irmão com 11, minhas duas irmãs parece com 7 ou 8
anos quando fomos morar todos juntos. Quando eu estava saindo da infância
para a adolescência, eu acho que foi uma época muito boa, que eu brincava
nas árvores, que eu fui morar na casa da minha avó. Lá tinha muitas árvores,
até mesmo no quintal dela, e eu brincava lá o tempo todo [a voz de Herbert
era nostálgica, de uma lembrança feliz]. Meu padrasto assegurou, o cara
assegurou todo mundo, só porque ele gostou da minha mãe. Foram cinco anos
da vida de criança para adolescente, que freia ela na educação. Se a minha
306
mãe não tivesse ficado com meu padrasto esses cinco anos, a gente tinha
virado bandido. Ele foi uma figura exemplar. A minha mãe não ia poder dar
freio para todo mundo, não ia conseguir segurar a peteca de quatro crianças
adolescentes... e não é só porque você fica na rua, as influências também, né?
A gente com 13, 12 anos quer sair para a rua. Ele marcava horário: “você sai
agora 6 horas, 5 horas, vem jantar, depois sai de novo, 7 horas sai de novo,
mas 9 e meia em casa”. Ele era quem dava um freio na gente. Porque é a época
que a gente fica curioso e querendo fazer as coisas todas. Se não tivesse um
freio, você faz qualquer negócio, e você tendo essas boas influências,
marcando hora, dando um freio, você não precisa nada. Nessa época foi
quando lançaram aquele filme de submarino de Júlio Verne [Vinte Mil Léguas
Submarinas, da Disney]. Eu e meu irmão e dois amigos nossos, nós fomos ao
cinema duas horas da tarde [muito alegre comentando], “quando acabar o
filme, você vem embora!”. Mas vimos todas as sessões. Deu meia-noite e
ninguém chegou. Aí saiu a minha mãe com o meu padrasto, a mãe dos meus
dois amigos [começa rir muito]. Opa! Pegou a gente, “Vamos embora! Eu não
falei para você para ir embora quando acabasse o filme? A gente está maluco
aqui procurando vocês na rua e vocês estão vendo cinema ainda” [imitando o
padrasto, com voz serena]. Até hoje eu lembro disso. Foi muito engraçado.
Mas deu aqueles tapas, umas batidinhas na bunda, mas não para machucar, só
para alertar, uma puxada de orelha. “Eu vou levar vocês em casa pela orelha
para vocês aprenderem a respeitar” [rindo nostálgico]. Hoje em dia se tu fizer
isso, vai ser muito diferente daquela época. Então, por isso é que eu acho, de
repente eu posso estar equivocado, mas eu acho que isso foi muito bom para
a gente. Essa mesma época, esses cinco anos que nós vivemos com ele, foi
muito bom para a gente.
O padrasto de Herbert oferecia o contraponto moral de autoridade que seu pai não lhe
oferecia. Mesmo fazendo uso da agressão com fins pedagógicos, ele não era descrito como
violento. Para Herbert, era de natureza diferente as agressões sofridas por sua mãe na relação
com seu pai se comparadas à “batidinha na bunda” que seu padrasto dava quando ele e seu
irmão não o obedeciam. A partir da narrativa de Herbert é possível ver como duas figuras
morais opostas, que produziam sentimentos diferentes na relação com sua mãe, guiaram seu
proceder ético na sua trajetória como adolescente e adulto. Herbert valorizava o tratamento do
homem que ofereceu certa calma e alegria à sua mãe e irmãos. Mas a questão da casa não era
só a constituída pelas relações entre parentes, um referente morfológico, ainda mais valorizado
pela mãe, era necessário para constituir essa unidade moral...
A gente morava no quintal da casa da minha avó, lá no Largo do Barradas.
Ficamos morando ali, mas meu padrasto querendo comprar uma casa, mas não
podia, não conseguia. Depois de uns cinco anos mais ou menos, o meu pai
falou para minha mãe que queria muito conversar com ela e marcou um
encontro na casa da irmã mais velha dela, que é lá na Ingenhota. Saindo da
casa da minha avó para lá a pé dá uns 15 minutos. Quando ele telefonou, eu
não sei se ele telefonou para minha tia aqui na loja que trabalhava aqui no
307
centro, para no dia seguinte a minha tia dar o recado a ela, ou se ele falou com
meu tio. Eu sei que minha mãe recebeu o recado e foi correndo para lá, mas
ele sabia que meu padrasto estava chegando de viagem também...
E aí meu padrasto, “Cadê Lourdes?”. Lourdes foi encontrar com Mariano na
casa da tia Alice. A briga feita. Meu padrastro e ele quase se mataram, saíram
dando porrada. Mas a minha mãe explicou a meu padrasto, e como ele não
podia comprar uma casa... Como a minha mãe já estava morando há cinco
anos no quintal da minha avó e ela querendo arranjar uma casa para a gente.
Porque a gente, quatro crianças e eles dois, nosso quarto era separado por um
cobertor. Um lado era eu e meu irmão, outro lado eram as minhas irmãs, e do
outro lado eles. Era um quarto com cozinha e banheiro, um quarto grande e
deu para dividir em três pedaços, duas camas dum lado e duas camas do outro.
A minha mãe tinha conversado com meu pai. Meu pai ofereceu a casa da ilha
da Conceição de volta para ela, para ela tomar conta da filha dele... uma dessas
crianças que já estava com 20 anos e que ele já estava criando, mas sozinho,
e estava gastando muito dinheiro para pagar deixando com não sei mais quem.
Ele falou com a minha mãe e a minha mãe aceitou. Aí minha mãe se separou
do meu padrasto e voltou para morar com meu pai.
Eu acho só que meu padrasto e minha mãe não ficaram até o fim da vida por
conta da sacanagem que meu pai armou, da mutreta do velho [Herbert parecia
resignado contando este momento da sua vida]. Ele marcou com ela lá na casa
dessa irmã mais velha para eles conversarem e deu o recado pro meu padrasto,
pro marido dela, pro marido dela ficar sabendo, pensando que ela estava com
meu pai, sacaneando ele, mas não foi nada disso. A minha tia mais velha e o
meu tio depois falaram para mim “foi seu pai que usou de maldade, falou para
o senhor Mário [o padrasto] que ele estava encontrando com a sua mãe lá”.
Quer dizer, meu padrasto achou que era verdade, né? Porra! Que minha mãe
tinha ido enganar ele, mas não era nada disso [bem irritado]. Então, de repente,
eu até acho que a minha mãe foi porque ela perdeu a virgindade com meu pai,
não teve mais ninguém na vida. E como ele armou essa mutreta e ela estava
com os filhos já crescidinhos, já estavam entendendo as coisas, e ela querendo
arranjar uma casa e não conseguia... Meu padrasto ficou desconfiado e
começaram a brigar. Meu padrasto foi embora e minha mãe voltou para ilha
da Conceição. A gente ficou sobrevivendo ali de um pequeno aluguel que
tinha na época, porque tinha nossa casa e ele tinha feito uns dois ou três
quartos mais para alugar lá nos fundos. E a gente ficou recebendo aquilo ali.
Meu padrasto começou a enfiar o pé na cachaça, porque por conta de muita
coisa que estava acontecendo ele foi relaxando e ficou cachaceando. Depois
de dez anos que a gente foi achar ele, porque a gente cresceu e queria saber o
que tinha acontecido direito. Mas meu padrasto, ele foi um cara muito legal
para a gente...
A maldade do pai teve o poder de destruir o momento mais querido da vida de Herbert:
a maldade que cuiculou através de rumores que chegaram aos ouvidos do padrasto, provocando
sua raiva e ciúmes. O objetivo de Mariano, de mandar o recado para Mário, foi bem sucedido,
estabelecendo uma relação entre os dois referentes morais da vida de Herbert, por meio do
rumor e da fofoca, que circulou através dos familiares de Lourdes. Herbert não culpava sua mãe
da separação, reconhecendo que, voltando para casa com seu pai (o primeiro que ela amou),
308
isto permitiu que os filhos tivessem uma casa, garantia de uma vida estável que o amoroso
padrasto não podia oferecer. Em contraposição, o fato de Lourdes e seus filhos terem uma casa
não assegurou uma vida feliz, como a do quintal da casa da avó com seu padrasto. Esse era um
conflito que Herbert expressava, vendo como os abusos prevaleciam apesar da garantia material
do lugar de moradia. Não existia uma correspondência entre lar e casa. A casa mostrava o
sacrifício da relação pessoal da mãe para favorecer seus filhos e a luta de poder entre a mãe e o
pai, que via mais os seus próprios interesses e não tanto o dos filhos (de sangue).
Nesse intervalo de tempo, meu pai foi viajar e, quando voltou, já voltou
querendo encher a casa de garotinha de novo. Minha mãe falou: “não, você
vai lá para casa, toma conta lá, toma conta da menina, que eu vou mandar para
você”. Quer dizer, ela cresceu o olho, né? Falou, vou dar uma casa para meus
filhos e vou botar o safado. Ela foi lá, arrumou a casa, fez tudo bonitinho, mas
na segunda viagem ele chegou acompanhado de novo. Estava trazendo uma
criança com mais uma senhora. A senhora veio com a criança, mas sabia que
a criança era para ele. Já tinha ficado com a criança várias vezes a bordo, no
navio. Aí, porra! Minha mãe virou bicho, ela botou a boca no trombone e deu
parte na delegacia na ilha da Conceição. Como já tinha passado uns anos e o
negócio já estava pior para ele, a polícia já era diferente e ele não podia
comprar mais ninguém, ficava mais difícil para ele chegar para dar uma
propina. Ele foi e pegou no navio e deixou a velha e a garota na casa. Ele teve
que sair fora porque já não era chegar mais tomar isto, tomar aquilo. Depois
arranjou um jeito de alguém vir e pegar a garota. Meu pai teve que enfiar o pé
e sumir por um tempo. E ele não voltou mais pra cá, ficou lá em Nova Iguaçu,
onde tem umas coisas que essa minha irmã também tomou na marra da gente,
mas a gente nem correu atrás e ficou por lá mesmo.
Passou um tempo e a gente ficou sabendo que meu pai tinha vendido tudo,
para a gente ficar na rua [de novo seu tom ressentido]. Só que nesse intervalo
de tempo, eu já com 18, já estava saído do quartel, eu tinha já uns amigos que
eram advogados e eu falei com eles, eles me mandaram vir na prefeitura aqui,
pegar uma certidão. Mandou pegar uma certidão dizendo o que estava
acontecendo com o terreno na ilha da Conceição, e tarará popopó... o terreno
não tem proprietário! Porque quem mora são os posseiros, e são os que têm
direito. Porque aí a minha sorte foi essa, de ser aconselhado por esse amigo
que estava terminando a faculdade de advocacia. A minha irmã também estava
trabalhando. A minha irmã já estava trabalhando aqui na Câmara dos
Vereadores de Niterói, arranjou um vereador para mexer um pauzinho e aí
assegurou. Meu pai não conseguiu, porque o cara estava metendo gente para
correr à força né? Mandava propina, mas com essa certidão era difícil até para
quem tinha propina.
A gente chegava lá, aí nós metemos essa certidão no processo. Ele fez de tudo
e não ganhou a causa, não conseguiu tirar a gente de lá. E, com isso, quando
foi o ano passado, eu vim aqui na prefeitura e tirei, antes da minha mãe morrer,
eu tirei, em 2012, eu tirei a documentação de lá. Quer dizer, nós ganhamos a
causa em 1989 ou 90, nós ganhamos a causa! E quando foi agora nós viemos
aqui na prefeitura, para ficar cada um com seu nome para não ter briga. Eu
não tirei documentação porque ficava muito cara, ficava mais de R$ 20.000,
mas eu fiz o quê? Eu consegui botar para a gente pagar IPTU, porque agora
309
há a escritura, nós temos inscrição do terreno, só que está tudo no nome da
minha mãe. Como é um terreno só e cada um tem a sua casa, eu consegui botar
o IPTU. Cada um paga como se tivesse desmembrado. Fica mais fácil para
tirar documentação e mais fácil para a gente fazer um inventário. Aí eu fiz
isso, no ano passado ou retrasado, e conseguimos!
A luta pela casa foi um sucesso pessoal que enchia Herbert de alegria e orgulho. Não
era só garantir juntar o lar com a casa, era vencer as injustiças praticadas pelo pai. Desse modo,
Herbert e seus irmãos finalizavam o plano original da mãe de obter a casa e excluir da vida
deles a presença do pai. Podemos ver na narrativa de Herbert sobre sua mãe que ela foi mudando
ao longo do tempo. Lourdes passou de uma mulher submissa e apaixonada na juventude para
uma mais decidida e calculadora das situações, com conhecimento dos homens com os quais
se relacionava. Esta descrição parece-me similar à narrativa acerca da “força da mulher”, que
alguns dos colegas do grupo reflexivo de gênero, incluído Herbert, faziam do proceder das
denunciantes, que os colocavam em situações difíceis moralmente, que lhes impossibilitavam
argumentar ou agir. Aqui, o cálculo da mãe era valorizado, em contraposição à mulher como
arquiteta do sofrimento dos demandados (como descrito no capítulo 2), destinado ao
favorecimento pessoal e dos seus filhos, que era premeditado e moralmente repudiado. Izete
havia agido como a Lourdes do passado? Izete amava Herbert, e por isso tanto ciúme, ao mesmo
tempo em que era calculadora para garantir uma casa para ela e sua filha? Não o sabemos. Mas
estas descrições acerca do amor e do sacrifício de Lourdes parecem correlatas à “força da
mulher”, que capitaliza a institucionalização da Lei Maria da Penha, aumentando seu poder.
Antes disso, um dia meu pai levou um tombo num quintal, bateu na cabeça,
quebrou o pescoço, foi no hospital. Fui eu e minha irmã tomar conta dele. Aí
ela pediu uma licença para ficar com ele um mês, até ele se recuperar. Eu
estava desembarcado. Eu fui para lá com ele e fiquei com minha irmã, essa
minha irmã que é uma safada, essa outra irmã, a que não era de sangue, essa
garotinha que meu pai pegava. Essa outra irmã saiu, disse que voltava em dois
dias e demorou 15 dias para voltar [com tom de voz de indignação]. Eu falava
“ô, estou desembarcado e você vai ter que me dar uma ajuda, pelo menos uma
ajuda de custo para eu mandar para minha mulher que está com a minha filha
lá em casa”. E aí ela desapareceu e, quando ela chegou, eu falei “pô, você
furou né? Eu falei para você que queria ir lá em casa para mandar um dinheiro
para minha mulher”.
Quando ela chegou, a gente estava numa escadinha da casa, dessa altura
assim: um, dois, três, cinco degraus assim. Estava eu, minha irmã [de sangue]
e o vizinho bebendo uma cerveja e conversando. E minha outra irmã subiu
pela escada e falou para meu pai que eu sou um cachaceiro, porque eu estava
tomando cerveja com meu amigo, uma cerveja, para três pessoas. Aí meu pai
veio de lá [Herbert fez uma encenação de gestos de gorila e mudou de novo
seu tom de voz para um mais grave] “E aí, Neném, eu não quero mais você
310
aqui, não quero que você tome mais conta de mim, você é um cachaceiro, eu
tô vendo a cerveja aí”. – “Pois não, eu vou embora! Eu não tenho problema.
Então me dá o dinheiro aí que ela ficou me prometendo e não me deu. Porque
eu falei que não quero cobrar nem dinheiro, não estou cobrando porra
nenhuma não, só uma ajuda de custo”. Aí minha irmã levantou, essa minha
irmã que era de sangue: “ele vai embora porque ele é cachaceiro, então eu
também vou embora porque também sou cachaceira, e meu vizinho também
é cachaceiro, só que ele é crente, ele está bebendo só por causa do Natal”.
Meu pai ficou 20 dias sem aparecer. Ele apareceu lá onde a gente mora, lá na
ilha da Conceição: “eu vim aqui para vocês ficar aqui”. – “Ué, não tem lugar
aqui para ficar não papai”, e aí minha mãe querendo dar guarita para ele.
Minha mãe já velha, toda fudida, querendo dar guarita para ele, porque ele
estava com 72 e ela já estava com 68 e já não estava mais inteirona. Aí ela
falou: “Não! Vamos arranjar um lugar aqui para ele”. A gente falou assim:
“Aqui? Não! aqui não!”. Aí ele falou assim para a minha irmã mais nova: “eu
fico aí na tua casa, que a tua casa é lá em cima, aí eu fico longe de todo mundo,
pode me botar até na casinha do cachorro”. Aí ele enfiou o pé e foi embora.
Não passou um mês e ele morreu. Dizem que acabou se matando, não sei, por
conta de que ninguém tomava conta dele. Aí viu como é que era, tomou um
monte de remédio, diz que ele se jogava no chão todo dia, um dia bateu com
a cabeça, como ele já estava debilitado... É a única que ele fez para poder
morrer, é o que dizem. E aí de lá pra cá, essa minha irmã safada sumiu um
tempo e depois apareceu para pedir a pensão do meu pai.
A minha mãe ficou muito tempo tentando receber a pensão dele, depois de
muito tempo ela conseguiu porque não era casada e ela acabou recebendo por
conta de ela ter morado treze anos com ele, e tinha várias testemunhas. Por
conta disso, eu não casei com a minha mulher, mas procurei logo um jeito de
fazer, depois de um tempo, que eu já estava com a minha filha, eu firmei logo
esse documento, como se fosse um casamento, a união estável, para garantir,
para não acontecer com ela o que aconteceu com a minha mãe, por conta desse
problema todo que teve com a minha mãe e com o meu pai.
Minha mãe morreu em março do ano passado [em 2014], já com quase 85
anos. E essa é a história de Lourdes e Mariano.
Herbert chorava a morte da sua mãe e considerava que a do seu pai era a que ele merecia.
Ele não se lamentava por isso, pelo contrário, certo alívio emergia do tom das suas palavras
quando narrava que seu pai já não o atormentaria mais. O reconhecimento das virtudes de
Lourdes na ilha da Conceição fez com que, no final, a mãe tivesse a merecida pensão. Essa
mesma história era a referência e ao mesmo tempo a antítese do tipo de vida como casal que
ele queria viver quando conheceu Izete. Ele não queria mais problemas na sua vida e sim
garantir para sua filha a estabilidade moral que ele viveu por pouco tempo, morando com seu
padrasto, e a estabilidade material que sua mãe lhe possibilitou, adquirindo a casa por meio do
seu sacrifício pessoal.
Enquanto Herbert descrevia o mundo relativo a seu pai com um tom tosco e indignado,
criticando sua ausência de casa e os abusos com sua mãe, a descrição da mãe e a vida com seu
padrasto oscilavam entre a alegria e a nostalgia, sendo este último um homem querido e
311
respeitado por ele. Através do tom de voz de Herbert, era possível contrastar as duas figuras
masculinas exemplares na infância e notar um grande afeto por sua mãe. As qualidades desta
última, sujeito de devoção, contrastavam com as de Izete. A rejeição das qualidades paternas
oferece elementos para compreender a indignação a respeito da acusação de Izete de “gastar o
dinheiro com putas”. A procura do dinheiro e sua administração também foram uma questão
para Herbert. Em seguida ele nos narra a história de como passou de um jovem na gandaia a
um homem responsável pelo bem-estar da sua mãe, de sua esposa e filha. Nesta trajetória, a
circulação do dinheiro permite delimitar fronteira entre parentes e aprofundar no conflito, fonte
da briga de casal entre Herbert e Izete.
6.7 A conformação de uma família: da vida de gandaia à provisão de dinheiro
Outro dos eixos narrativos foi a dedicação de Herbert para virar um homem maduro e
responsável, que deixava de lado o prazer de uma vida de solteiro, com mulheres e bebida, para
se dedicar a formar uma carreira como “marítimo”, constituir sua família e garantir conforto
para três mulheres queridas: sua mãe, sua esposa e sua filha. A possibilidade de se comparar
com colegas e amigos e conhecer Izete permitiu a Herbert “se segurar”. Sua trajetória de vida
aqui é, para dizer de alguma maneira, mais individualizada, e começa com referências à vida
sexual, após conversar sobre sua nova “liberdade”. A separação de Izete lhe possibilitou iniciar
uma relação esporádica com uma velha conhecida, com a qual passava alguns fins de semana,
fora da embarcação. A partir dessa experiência foi possível explorar a tensão entre a vida como
homem solteiro e o valor da família, na qual questões relativas ao prazer sexual, ao
amaturecimento e à conformação de uma pessoa moral reconhecida socialmente são chaves
para compreender o conteúdo de ser um “bom pai” para Herber.
Eu, com 12 ou 13 anos, já agilizava, já fazia saliência com a minha vizinha
[Herbert contava isto entre risos, meio nostálgico]. Eu tinha uma vizinha, filha
de uns portugueses, que gostava de fazer saliência e eu também gostava, e eu
buscava atrás. Mas sexo mesmo, despois que já gozava, essas coisas todas. Eu
tenho uma prima, bem casada, que a mãe dela, eu acho que com 13 anos, botou
ela já para se perder, ninguém aprovou isso, ninguém aprova... Isso já tem 50
anos, ela já até morreu. Então, quando eu tinha uns 12 anos, não fui eu que
peguei ela, foi ela que me pegou, ela botou o pé assim, até hoje eu me lembro,
ela botou o pé assim na árvore, na goiabeira [Herbert fez uma posição de abrir
as pernas]. Aí me mandou entrar por baixo e... [nesse momento fez um
grunhido e uma exclamação,e como tivesse ejaculado]. Eu acho que ela já
tinha experiência com alguém, por causa da mãe que era uma prostituta, se é
que eu posso dizer isso, não sei se eu posso dizer isso. Aí eu, pam! Eu gozei!
Pela primeira vez na minha vida! [rindo, de novo, meio nostálgico e calmo].
312
A primeira gozada que eu dei foi dentro de uma buceta! Olha, eu senti aquela
sensação... Aí eu agarrei e ela apertou e gozei e aí ela “sai, sai, sai, sai!”.
Eu acho que ficou com medo de engravidar, porque naquele tempo as
garotinhas quando estavam começando fazer essas coisas todas não tomavam
como agora. Agora, antes mesmo de começar, já estão tomando
anticoncepcional. Aí ela ficou com medo, ficou com medo e depois acabou
dizendo para a minha avó que criava ela. E minha avó veio em cima de mim
e pum! Aí levei umas porradas, mas isso ficou entre mim e minha avó [rindo,
nostálgico]. Meu tio não podia saber, senão eu ia levar uma porrada brava.
Isso ficou escondido até hoje. Isso aí não tem mais história, porque ela já está
velha e eu também. Mas porra! Agora estou lembrando de tudo isso, uma coisa
que eu já achava que não ia lembrar mais. A minha gozada! É claro que toquei
muita punheta também. O cara que diz que não toca, ele vai passar a dar o cu
ou então não sei, não vai comer nunca. Todo mundo toca uma punhetinha,
todo mundo toca, não adianta. Até com 60 anos, coisa de uns dois ou três
meses, eu toquei uma punhetinha legal. Com 60 anos, porra, está subindo para
tocar uma punheta, está bom pra caralho!
Agora que estou separado de Izete, eu viajei para Iguaba, aí fui pra casa de
uma amiga. Ela diz que tem 55 anos, mas eu acho que tem mais. Cheguei lá
na casa dela e dei uma bambadinha com ela. Aí no domingo dei outra. Tá bom
pra caralho! Pra minha idade tá bom pra caralho! Vou reclamar de quê? E já
marquei para passar outro fim de semana lá, quando eu folgar de novo. Ah!
Até arranjar uma mais novinha, né? Se não arranjar, eu vou ficando. Ela faz
gostoso comigo, eu vou gostando. O importante é que é limpa e cheirosa. Sei
que não vou pegar nenhuma doença. É melhor do que andar em puteiro. Eu já
conhecia ela há muito tempo, só que não tinha comido porque ainda tava com
minha mulher. Além de eu não estar assim, interessado, eu nunca fui
putanheiro. A mulher aparecer e ficar querendo, me dando mole e eu pegar e
comer, nunca fui disso. Mas agora que tô sozinho, quem quiser vir e dar, eu
como, tô comendo, mudei a cabeça [Herbert falava isto resignado, como com
raiva e impotência]. Agora pintou na área, tô comendo. Que se foda! Agora
eu não sei se vou arranjar outra mulher ou continuar assim [risadas]. Só
quando eu arranjar outra fixa vou poder dizer. Porque, na verdade, tá
arriscado, não dá pra comer qualquer uma, só comer o que está em casa.
Porque na verdade eu sou um cara que sempre fui devagar mesmo. Nunca fui
de estar indo em puteiro, estar pegando qualquer mulher. Nem gosto disso,
nem quando era garotão.
A primeira experiência sexual tem uma grata e intensa recordação de um passado nunca
mais vivido. Ter sexo, ao mesmo tempo era fonte de prazer e de medo, não tanto pela evidência
de uma traição, um dos efeitos de ser descoberto, mas pelas possíveis doenças que poderia pegar
e transmitir para Izete, coisa também enfatizada pelo Barrigudo. Herbert se mostrava indignado
pela acusação de Izete, a de ser putanheiro. O tom calmo da descrição das primeiras relações
sexuais e a revolta quanto à descrição da acusação cediam lugar à quase triste, vazia e rancorosa
descrição dos encontros com sua namorada atual de Iguaba. Apesar da sua recente experiência
de liberdade, fora da relação de casal, Herbert não parecia satisfeito nem feliz. A ideia da
vigilância de Izete através da macumba e certa saudade da sua companhia eram como uma
313
sombra que não permitia que ele fosse realmente livre. O relato da infância, marcado pela
primeira experiência sexual, passava para uma extensão do significado do registro do prazer,
que incluía beber e gastar dinheiro com mulheres, e que aos poucos se contrapunha à
responsabilidade que devia ter um homem para conformar família.
Depois da mutreta que meu pai armou, quando a gente foi morar na ilha da
Conceição, eu parei de estudar. Eu estudei até o ginásio, até o segundo ano,
eu com 14 ou 15 anos, uma sétima série hoje em dia. Mas aí eu parei por
minha conta porque era eu mesmo que pagava, era eu mesmo que me
agilizava. Mas aí a gandaia foi mais convidativa, o cervejão, a mulherada...
Aí, eu caí na gandaia [entre risos]. Dessa época até uns 25 anos, eu fiquei só
na gandaia. Dos 17 anos, 18, eu fiquei só na gandaia. Quando estava com 14
anos, no segundo ano do ginásio, eu caí na gandaia, que foi quando aconteceu
a separação da minha mãe e do meu padrasto. Aí com 25, eu comecei a
estudar, eu mesmo trabalhava e pagava. Aí me dei bem, passei. Eu fui para
fazer uma prova num colégio muito conhecido na época, que é lá no Henrique
Lage [no bairro Barreto]. Aí passei, fiz o primeiro ano científico, na época a
gente chamava de científico, que equivalia ao segundo grau hoje.
Comecei fazer as aulas em março. Aí no final de abril eu saí e fui na gandaia
de novo: farriar, beber, sentar na mulherada. Só cai na farra. Andava com uma
e com outra, come uma e come outra... Aí eu conheci a minha mulher, Izete,
no carnaval de 83, 85, 86, um negócio assim. E fiquei com ela por uns seis
meses, mas quando ela viu que eu era muito farrista, voltou para Santos
[estado de São Paulo]. Ela era de Santos. Nessa mesma época eu comecei a
ver que eu estava só na farra e não estava fazendo nada na vida, eu via meus
amigos que já estavam trabalhando. Eu já estava com 30 e tantos anos e meus
amigos já estavam até com filho, de 5 ou 6 anos. Os caras já estão trabalhando
e já têm família e eu estou só de babacagem, só bebendo. E nessa época eu
ainda fumava e gastava o dinheiro só com bebida. Qualquer trabalho que eu
tinha eu gastava o dinheiro só com bebida. Porque a minha mãe em casa, ela
garantia. Quando, sem embargo, eu dava alguma coisa, às vezes ela aceitava,
às vezes não. E eu saindo andar, aí eu me liguei e eu falei “porra! Eu vou parar
para pensar. Eu tô vendo gente aí numa boa e eu estou só na farra, farra, farra”.
Aí Izete escreveu para mim, eu escrevi uma cartinha para ela e coisa... Ela
voltou de Santos, não me lembro muito bem dessa época. Aí foi quando eu fui
ficando com ela, fui ficando e fui ficando. Essa Izete apareceu na minha vida
e eu fui me segurando, tentando fazer tudo de bom e do melhor, e ela acabou
morando comigo e daqui a pouco ela engravidou e consegui montar uma
família e eu assumi legal mesmo. Ela engravidou na época em que meu pai
vendeu tudo. Mas até hoje eu acho que essa gravidez foi uma armação dela.
Logo depois que eu falei que de repente ela engravidasse, ela engravidou. Por
isso é que eu fico desconfiado, mas eu nem esquentei a cabeça.
Herbert reconhecia que o estilo de vida que ele levava o desviava da trilha que seus
vizinhos e amigos haviam feito largando a gandaia, conformando uma família e virando
trabalhadores. A comparação com seus pares permitiu uma primeira reflexão para reconduzir
sua vida. Ter conhecido e engravidado Izete permitiu-lhe “assumir” um tipo de vida pelo qual
era avaliado, o de homem com família, apesar de aparentemente não amá-la, em um sentido
314
romântico do termo. A partir desse momento, Herbert teve que procurar os meios para sustentar
não só sua mãe e irmãs, mas sua nova família. Sua renda como pescador e administrador de um
bar, atividades que realizava há uns anos, não era suficiente para as mulheres que o rodeavam.
Então, Herbert decidiu dar um passo e estudar para ser marítimo, continuando assim sua relação
com o mar, lugar de trabalho do seu pai e de onde chegavam desgraças para sua família. Ao
mesmo tempo, o mar seria sua fonte de renda e, sem sabê-lo na época, seu futuro lar por vários
meses. O dinheiro passou a ser um referente daí para frente. O trabalho para consegui-lo
implicava uma cuidadosa administração na sua utilização, porque devia render para dois lares
e assuntos, digamos, pessoais... O dinheiro era precioso e servia para ajudar seus parentes, como
já vimos no episódio anterior à morte do pai.
A gente tinha um bar sem documentação. Fiquei trabalhando ali, mas como lá
em casa minha mãe estava passando dificuldade e o bar não dava para
sustentar todo mundo, aí apareceu a oportunidade do curso. Aí eu fui trabalhar
embarcado de marítimo por mais de dez anos. Aí foi nessa época que eu virei
marítimo. Em 2000, eu melhorei a minha caderneta, em 2004, melhorei mais
ainda, e em 2006 eu fui a contramestre, ou seja, maior ainda, um salário maior
ainda! Aí eu comecei a melhorar, fui melhorando, melhorando [comentando
de maneira serena e com gratificação]. Aí em 2011 ou 2012 eu comprei essa
casa em Itaboraí. Já com 60 anos, já era para ter pendurando a minha chuteira,
mas eu não consegui porque eu trabalhei na pesca, não assinei carteira. A
única coisa que eu fiz de bem antes de fazer esse embarque foi o documento
do barco. Aí o que tenho que fazer? Só me aposentar por idade e agora devo
esperar mais cinco anos.
Nesse tempo todo, Izete sempre tinha a petulância de pedir dinheiro
emprestado, de oferecer dinheiro emprestado à tia e à sobrinha dela. Meu
dinheiro que eu tinha, porque ela sabia que eu tinha dinheiro no banco, que eu
tinha que emprestar e não cobrar juros, não cobrar porra nenhuma não. Aí eu
emprestei a primeira vez e eu falei, não, não vou cobrar juros não, toma aí.
Emprestei R$ 2.000 e ela me pagou R$ 2.000 em 10 vezes. Para pra pensar
isso, sou maluco, não sou? [muito exaltado]. Quando acabou de pagar, a tia
dela pediu R$ 2.000 de novo, aí eu falei: “ô, os únicos R$ 2.000 que eu tenho
são esses que você vem me pagando e foi depositando, eu não tenho mais
nenhum, aí, como você foi me pagando eu fui gastando, não tem mais
nenhum”. Claro que eu tinha, não sou maluco. Aí eu falei para ela: “mas eu
posso fazer o seguinte, eu vou fazer uma simulação aqui de tirar um dinheiro
e vou passar pra você aqui pelo telefone e vou passar para você, se você aceitar
e pagar, eu tiro o dinheiro no meu nome e você fica pagando, e deposita o
dinheiro por aí mesmo”. Aí fiz a simulação e deu 230 por mês. A tia de Izete
não aceitou e ficou puta, como se eu fosse obrigado a emprestar dinheiro à
família dela. Ela ficou pagando, pagou direitinho, mas quando pagou a última
prestação, falou assim para mim: “olha, muito obrigado, espero não precisar
mais”. Muita petulância né? [indignado]. Porra! Eu fiz um favor e está errado!
Tá legal, ela não me pediu mais e falei: “Izete, ô, se oferecer, eu vou negar,
pagando juros ou não pagando, ô caralho, não peça porque eu vou dar uma
315
resposta feia para você e vou ligar para ela falando coisa feia para ela
também”. Aí pararam de pedir o dinheiro, mas ela ficou puta.
Eu não posso estar com dinheiro ali porque ela vem mexer na minha carteira
achando que não repasso dinheiro para ela. “Não vai mexer na minha mala
não! Não vai ficar me vigiando”. Ela não precisa ficar dizendo que eu tô com
puta porque não passo dinheiro para ela, que estou gastando dinheiro demais.
Não tô gastando. É como se eu fosse um cara que joga o dinheiro fora. Se eu
fosse jogar o dinheiro fora, eu não compraria uma casa igual a que eu comprei
em Itaboraí. Uma casa com cinco quartos, com três closets, três suítes... Eu ia
comprar uma casa desse tamanho todo com a profissão que eu tenho?
Ganhando R$ 5.000 ou R$ 6.000? Agora eu tô ganhando R$ 3.500. Aí
desconta imposto de renda, desconta INSS, eu ganho o quê? R$ 2.500. Estou
passando quase todo o dinheiro para elas, o cartão de crédito e de alimentação.
Quase eu não gasto porque estou dormindo no estaleiro. Não posso gastar
nada.
Eu quero resolver logo esse negócio da separação para ver se Izete tem direito
lá à minha herança. Para ver se eu vou ter que dar pensão para ela. Porque a
casa de Itaboraí vale muito mais e já até botei no nome da minha filha. Ela
está recebendo o valor do aluguel de lá. Só que ela não quer ir para lá com a
minha filha, porque para de receber dinheiro. A casa daqui, da ilha da
Conceição, eu estou querendo vender ela, e dividir o dinheiro com Izete. Só
vou querer o dinheiro para pagar as dívidas que contraí quando fiquei
desempregado para manter o padrão da casa. Eu fiquei apanhando dinheiro no
banco e fiquei endividado. Meu dinheiro, que eu ganho, não dá para pagar. Eu
tiro daqui e boto ali. Tô assim. Aí, porra, eu alugando a casa e ela apanhando
esse aluguel. Já vou receber esse dinheiro sozinho, já vou me aliviar.
É isso o que estou pensando. Aí dou uma parte para minha filha, para ficar
muito mais tranquila, né? Se bem eu acho que não tenho obrigação porque ela
já é adulta, mas vou dar, porque filho é para isso. Parente e filho é para isso,
pra gente ajudar, né? E não quero fazer igual o meu pai fez, largar todo mundo
de mão e sumir na poeira. Não quero fazer isso. E é isso o que eu penso. Eu
acho que eu não penso errado não. Eu acho que só penso o melhor para minha
filha, sabe? Eu acho que eu só penso o melhor. Tanto é que eu já botei a minha
casa que eu comprei lá, já botei no nome dela. Tô pagando ainda, mas já botei
no nome dela. Agora é só ir lá e gastar uma merreca para legalizar tudo, fazer
a documentação toda da escritura definitiva da casa. Isso não é um presente
não! É uma obrigação mesmo! Eu tenho obrigação porque, porra, eu fiquei
com raiva quando meu pai vendeu a casa de lá, onde a gente mora.
Ficamos 13 anos brigando na Justiça. Tô com raiva do meu pai até hoje que
ele já tem mais de 20 anos morto. Ele vendeu tudo e não quis saber da gente.
E para minha mãe conseguir o recibo da pensão foi uma merda, demorou pra
caralho. Se eu tô com raiva dele, por que eu vou fazer o mesmo que ele fez?
Não posso. Se eu tô com raiva dele, não posso fazer a mesma babaquara, a
mesma safadeza que ele fez. Eu arranjo um barraquinho qualquer pra cair e tá
bom. Agora elas, eu tenho que deixar elas numa casinha boa, né? Qualquer
lugarzinho que eu ficar, eu, homem, qualquer lugar tá bom. Pra mim é mais
fácil do que pra elas. Mesmo porque eu tenho profissão e elas não têm. Eu
quis dar um curso técnico para minha filha, mas a mãe disse que ela não
precisa trabalhar. E aí é foda. A mãe é piroquinha da cabeça, é maluca mesmo.
Mas não sou eu que vou convencer minha filha a trabalhar. Ela tem que se
conscientizar. Às vezes tem acidente feio no mar e você não volta. Então é
melhor ela meter na cabeça que ela tem que trabalhar.
316
A raiva contra seu pai virou um motivo para direcionar sua vida, pensando e fazendo
coisas que considerava boas e necessárias, tendo em conta o lugar diferenciado que sua mulher
e filhas têm em sociedade. Herbert sabia que elas sozinhas mal poderiam garantir um padrão
de vida como o que ele lhes dava. Apesar do ressentimento contra Izete, ele se sentia obrigado
a garantir seu bem-estar. Essa obrigação era maior em relação à sua filha. Como no relato da
vida do Barrigudo, bem como em tantas outras referências sobre a sexualidade de homens,
Herbert se apresentava como um pegador, ainda ativo e como um homem desejado. Mas sua
nostálgica narrativa deixava entrever sua solidão. Ele não quer mais sexo por sexo, e como em
algumas outras conversações, o que valorizava em um relacionamento, em última instancia, era
a companhia. Herbert sentia saudades da companhia de Izete, a mulher que o tirou da gandaia
e lhe possibilitou assumir uma família. Izete lhe permitiu desacelerar e virar um homem focado
no trabalho. Já sua filha fez com que pensasse em como juntar casa com lar e não repetir a
história vivida com seu pai.
O triângulo casa, mãe/esposa/filha e obtenção de dinheiro permitiram que Herbert
virasse adulto, alcançando o valor da família. Em outras palavras, a família podia ser definida
como um lugar no qual categorias de parentesco femininas tinham um padrão de vida, graças
ao dinheiro obtido, produto de relações de trabalho e da comparação com outros homens, vistos
como pares. O local, as mulheres, o dinheiro produto do trabalho e seus pares possibilitaram
que Herbert construísse seu lugar como bom pai e homem responsável. O processo de
conformação de uma família implicava a configuração de relações econômicas entre a casa e o
mar, o que levava Herbert a sentir satisfação de agir bem no seu papel como filho e pai. No
estabelecimento dessas relações, a circulação e o uso do dinheiro são uma chave analítica para
melhor compreendermos o conflito entre Izete e Herbert, bem como os limites das relações de
parentesco, definidas em termos de ajuda e obrigações entre familiares. A ausência de um
devido reconhecimento do empréstimo à tia de Izete por parte da esposa e seus familiares
enfraqueceu a relação de casal. Herbert não sentia a obrigação de emprestar-lhes mais dinheiro,
e o fato de Izete começar a pegar dinheiro da sua carteira mostrava o limite da reciprocidade na
relação de casal.
Uma coisa era o dinheiro destinado para a casa e outro para a gandaia. Não sabemos se
Herbert gastou o da casa com outros fins e tampouco se Izete pegou posteriormente dinheiro de
Herbert para ajudar a sua família, mas está em questão o destino do dinheiro e como isso gerou
muita tensão no casal. André Dumans Guedes (2012) narra a preocupação das mulheres de
Minaçu, no norte de Goiás, quando o dinheiro da casa é alocado na farra e com prostitutas pelos
317
esposos e filhos que “rondaram no trecho”, virando homens em virtude do garimpo ou do
trabalho itinerante para firmas ligadas a grandes projetos de desenvolvimento. Quando o
dinheiro saiu do seu devido fluxo ou finalidade virou um problema para Izete e Herbert. Izete
o acusa de andar com putas e ele a acusa de ser passiva demais, de não fazer funcionar a casa
como deveria. Dar dinheiro de maneira legítima, como uma obrigação que se faz de maneira
desinteressada, definia a proximidade entre parentes, conformando a família e delimitando a
casa, domínio da família e das categorias femininas, que eram diferentes das mulheres da
gandaia. Ao mesmo tempo, não dar dinheiro diferenciava os parentes de Izete, com os quais ele
não queria partilhar ou formar um vinculo de maior proximidade convertendo-os em seus
parentes.
6.8 “O meu ponto de vista”. Como deveria ser a vida para Herbert?
Num dia de outubro de 2015 foi o último em que vi Herbert. Acompanhei-o no seu
barco para levar a peça de um motor do estaleiro para um barco cisterna no meio da baía de
Guanabara. Nesse dia, um dos colegas de trabalho estava preocupado com a moradia de
“Neném”, pois já era a terceira ou quarta vez que o via dormindo na embarcação. Herbert há
vários meses vinha dormindo na estreita e dura cama do barco. Após tomar um café e escutar
músicas de Belchior e Raul Seixas, iniciamos uma jornada mais de trabalho um pouco depois
das 10 horas. Da janela da embarcação, um pouco resignado, ele apontava para a casa na qual
crescera. Era difícil distingi-la entre tantas outras casas que conformavam um paredão acima
dos estaleiros. Acompanhavam-nos dois jovens tripulantes, que estavam encarregados de
coordenar a entrega da peça. Herbert parecia cansado e de mau humor. Em meio a gritos e
palavrões, ele dirigia o trabalho dos jovens marujos. Não conversamos mais sobre Izete, o
conflito ou sua família, senão sobre suas preferências, sobre como ele via o mundo no qual
vivia e sobre como deveria ser a vida... De todo modo, nossa conversa estava enquadrada pela
“violência”, este era o tema com o qual ele começava quase todas as suas falas nas ocasiões em
que marquei para entrevistá-lo. A seguinte narrativa deixa ver, a partir de outro ângulo, o
sistema de valores de Herbert.
O ser humano, o ser humano, ele tem que se consertar muito ainda. O mundo,
o mundo ainda está como hoje, no meu ponto de vista, atrasado. O ser humano,
o homem ainda está cometendo muito crime, fazendo muita violência, fazendo
muita coisa errada, é por causa do próprio homem, por quê? pergunto eu a
você. Você vê uma criança fazendo uma coisa errada, praticando uma
violência, se você não corrige, você não ensina ela a não andar com arma, a
318
não ser violento, você vai deixando ela usar. Aí, quando cresce, vira um
bandido, sai matando todo mundo. Então é assim, sucessivamente, um milhão
de coisas que o homem pode se autocorrigir, então uma pessoa ensinar outra
e a outra aceitar, mas ela não aceita. Se os homens, e estou falando do homem
e da mulher, se o homem e a mulher aceitassem as correções dos outros,
analisassem e até concordassem... Porra! Estou errado mesmo, vou me
comportar melhor, o mundo seria melhor.
A violência é do ser humano, ele é o pior bicho do planeta. Ele é capaz de se
autodestruir. Depois que começaram a fazer as UPP50, essas coisas todas, veio
muito bandido aqui para Niterói. Niterói era uma cidade tranquila. Eles estão
espalhados aí por tudo e qualquer canto agora. E eu, no meu ponto de vista,
eu sou contra esse negócio da UPP. Por quê? Porque isso tem a ver com
político. Porra! É que nem aquele político que fez “Favela-bairro”51. Ou é
favela, ou é bairro. Você acaba com a favela e monta um condomínio, um bom
bairro, ou então não existe a favela-bairro. Só melhor um pouquinho a favela
para os políticos comprarem o voto. Mas ninguém fala disso na televisão.
Ninguém fala. Por quê? Porque todo mundo é corrupto ali. Tanto os que estão
fazendo “favela-bairro” quanto os que estão se elegendo junto com ele. E uma
coisa que eu acho interessante é que os repórteres, por exemplo, eles não
podem falar nada, senão está arriscado de até caçarem o mandato deles. E só
falam o que as televisões querem que eles falem. Você não vê nenhum
repórter, nenhum artista cagotear na cara de pau.
É como esse cara candidato à Presidência que morreu no acidente do avião em
São Paulo52. Agora tô ouvindo falar por causa de uma morte estranha, um
avião caindo, morrendo gente à beça. Muito estranho. Mas eu não posso falar
não, porque eu estava desconfiado. É que seria coisa do PSDB, do PT, que
isso, que aquilo. Eu tava até desconfiado quando porra, de repente, isso daí é
até montagem dum outro partido porque o cara tava bem visto pela maioria e
de repente é uma montagem num acidente que não é acidente.
A única coisa que eu falo é que o Brasil é um país de dimensão continental.
Tem riquezas naturais que o mundo inteiro inveja. Principalmente o país mais
safado do mundo, na minha opinião, os Estados Unidos. É o país mais
corrupto do mundo e é o menos acusado. É os Estados Unidos. Ele taca fogo
na palha, faz guerra e diz que os outros estão fazendo. Tanto é que ele só ficou
milionário vendendo arma pros outros. Inclusive na Argentina, aqui mesmo
na nossa América do Sul. Comenta-se que a guerra da Argentina, a guerra
explodiu por causa dos Estados Unidos. Porque o argentino conseguiu
diplomaticamente convencer a Inglaterra a entregar as ilhas Malvinas em dois
ou três anos... Num tempo aí determinado, só na diplomacia. E me parece que
os Estados Unidos foi lá e acendeu um paviozinho. Ele falou que a Argentina
tinha botado uma bomba lá em cima do porta-aviões deles, da Inglaterra. Um
monte de coisa assim. Eu não sei direto porque é só história, não entrei a
fundo. Aí começou a guerra e eles só vendendo arma. Em tudo quanto é lugar
no mundo os Estados Unidos está sempre por detrás de alguma coisa
vendendo arma.
O meu ponto de vista é que o Brasil é tão rico naturalmente que até o clima
do Brasil é bom para o mundo inteiro. A nossa América do Sul é boa para o
mundo inteiro. Mas o Brasil não é um país do primeiro mundo, por quê? Por
50
Unidade de Polícia Pacificadora.
Programa das prefeituras de Niterói e Rio de Janeiro para integrar a favela à cidade; financiado pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento.
52
Eduardo Campos, candidato à Presidência da República em 2014 pelo Partido Socialista Brasileiro.
51
319
causa da corrupção, por causa dos políticos. Na verdade não é por causa dos
políticos, é por causa do ser humano. Ele é incapaz de cuidar dessa árvore ali.
Se bem vive por causa da árvore, ele não tá nem aí. Então, na verdade, não é
o político não, é o ser humano mesmo.
Talvez por causa do seu cansaço acumulado, Herbert não se mostrava muito otimista.
Ele se posicionava de maneira crítica à forma como sua sociedade estava organizada e dirigida
por pessoas com poder, mas sem legitimidade para governar. Todos os políticos eram
igualmente corruptos, estavam motivados pela obtenção do lucro, sem importar os meios. A
violência, essa qualidade própria do gênero humano, formava pessoas safadas e manifestavase através de práticas que ele criticava e que terminavam destruindo o universo. Esta era uma
descrição da violência bastante similar à dos psicólogos nas formações dos grupos reflexivos
de gênero. Ela tinha a capacidade de estragar o indivíduo e suas relações sociais. Diante desse
panorama, Herbert apelava para o valor da igualdade, que repercutia na conformação de uma
sociedade sem distinção de classes profissionais, contraposta à necessidade de lucro e que
dignificava as relações entre os homens, entendida como consideração do pensamento e do
tratamento respeitoso. Essa utopia derivaria no progresso da humanidade e na materialização
do projeto de Deus, além da religião institucionalizada.
O que tinha que acontecer nesse mundo para ver se o ser humano se consertava
era um comunismo de fato. Comunismo de fato quero dizer o quê? O que é
comunismo? Comunismo é todo mundo comum. Todo mundo é igual, não só
economicamente. Quer dizer, você é antropólogo, eu sou marítimo, mas você
é um ser humano igual a mim. O meu trabalho tem tanto valor quanto o seu.
Vamos pensar assim. Um pedreiro, um engenheiro, um médico, se todo
mundo ganhar igual e puder gastar igual, o que vai acontecer no planeta? É
simples. O dinheiro vai jorrar igual à chuva que cai. Ninguém vai querer
dinheiro. E se você é pedreiro, você engenheiro, você antropólogo e eu
marítimo, mas o cara te trata com dignidade, você vai melhorar a sua mente,
vai melhorar o seu corpo, vai melhorar o seu pensamento.
Por exemplo, você vê um policial, você pensa o que da polícia? Isso é um
safado, isso é um ladrão, é um corrupto. Tô falando mentira? Não tô não. Todo
mundo só pensa isso. Ô, eu prefiro lidar com um bandido do que com um
policial. Ele fala isso da boca para fora, mas, na verdade, 99% das pessoas
pensam assim da polícia. E nós temos polícia boa. Assim como em tudo, em
todos os ramos, temos os bons médicos e os médicos safados, os bons
professores e os professores safados. Em tudo quanto é ramo se tem o que não
presta. Mas se as pessoas forem tratadas por igual, isso aí já vai melhorar em
tanta coisa! Porque o próprio ser humano vai falar assim: “Porra! Nós somos
uns seres altamente avançados!”. Porque a gente vai passar a considerar mais
os outros. Tá arriscado eu ir mais longe ainda. É, o homem sendo tratado por
igual, ele vai melhorar tanto que religião... Religião ensina a gente a se
comportar, mas não a pensar.
320
Eu fui criado como católico e eu nunca fui de frequentar igreja. A minha avó
era portuguesa e ela sempre falou para a gente: “você tenha sua fé, você não
precisa ir para igreja, você reza em casa, você pede a Deus em casa”. Mas eu
nunca fui nem uma coisa nem outra, porque meu pai falava: “que religião!
Religião não serve para nada!” [imitando a voz grave do pai]. Porque devido
ele ter viajado por algumas partes do mundo, ele ficou com a cabeça, e o cara,
ele vê, ele enxerga, aprende mais e aprende errado. Tudo, por exemplo, tem
uma outra opinião, então eu fiz a minha própria opinião. Eu disse eu sou
católico, mas não pratico, mas tenho minha fé em Deus e, nas dificuldades, eu
fico puto com ele porque acho que ele não está me dando uma cobertura
adequada, mas quando melhora, obrigado! [risadas].
É tipo um filme que eu vi, agora não tô lembrando do nome, mas lembro da
cena, que o cara falou que até os católicos diziam que não vale a pena ser
católico porque eles pedem a Deus, pedem a Deus, mas nunca acontecia nada.
Aí ele larga tudo pro caralho. Mas eu tenho, eu tenho uma pontinha de crença,
né? Porque se eu não me apoiar em Deus, eu vou me apoiar no quê? Então eu
penso assim, eu acho que tem alguma força maior e a gente não vê, e a gente
não consegue definir e que as coisas acontecem com a gente na hora certa. Eu
já vi tanta coisa acontecer comigo e consegui me levantar, que aí uma hora
dessas acontece um milagre que você não sabe. Porque com as coisas que eu
já passei na vida... Eu vejo sozinho sem ninguém me falar, eu vejo que estava
me perdendo na vida. É nesse lance que eu falo. Quer dizer, será porque eu
sou inteligente? Será porque eu tenho uma cabeça diferente das dos outros?
Será que eu sou macaco e eu gosto de imitar? Como esses asiáticos andam
dizendo da gente. Será que eu sou inteligente? Ou é Deus que está me dando
uma boa?
As considerações sobre a religião me permitiram escutar o único momento no qual seu
pai foi apresentado como uma pessoa de cabeça aberta, coisa que Herbert valorizava. A religião,
esse campo da obediência, não permitia exercer a prática do “pensamento” e estabelecer uma
relação direta com Deus. Uma ideia não muito distante da proposta dos calvinistas na ilha de
Sumba, descrita por Webb Kaene ou sobre as práticas dos diálogos internos e dos processos
reflexivos apregoados pelos facilitadores de grupos reflexivos de gênero. “Pensar” parece ser a
marca da modernidade que os facilitadores querem colocar como “reflexão”. Pensar permitia
que Herbert refletisse sobre suas vicissitudes, relacionando-as com uma divinidade, sua
“crença”, essa “força” indefinida que ele podia contemplar no seu diálogo consigo mesmo.
A “força” não era só uma questão física, que dizia respeito ao grande empenho que o
marítimo fazia para controlar o leme; a mesma força que foi empregada para puxar pelos
cabelos e empurrar Izete contra o sofá, mas não para bater nela, porque ele sabia que as
consequências seriam piores. A força permitia a Herbert continuar a vida, apesar das
dificuldades, e redefinir seu caminho para atingir seus sonhos. Parece que foi essa força que
permitiu que Herbert renunciasse à gandaia e assumisse sua família e que virasse um homem
atento às necessidades da sua mãe, de sua esposa e filha. Essa força, que ele não sabia se era
321
sua inteligência ou Deus, era seu apoio no momento de dificuldade que ele estava vivendo e o
distinguia das demais pessoas, permitindo-lhe valorizar sua singularidade e o acaso dos
acontecimentos. A violência, sendo também uma qualidade interna do indivíduo, que definia
moralmente suas ações, não pode ser caracterizada propriamente como uma “força negativa”,
que daria conta de uma “potência” que era boa ou ruim segundo a intenção do agente, como
assumiriam os facilitadores. Força e violência eram dimensões diferentes. A força é única e
singular no indivíduo. A violência é um traço comum da humanidade.
Figura 40. O ponto de vista.
Nesse último dia, encontrei um Herbert focado em si, meditativo e bastante presente. A
impressão inicial que tive sobre seu “mau humor” do dia ia mudando na medida em que
escutava suas palavras. Herbert passava por um momento de revalorização da sua vida, uma
inflexão moral, na qual procurava pensar o que fazer e como daí para frente.
322
Se a gente se tratar como seres humanos, não vai ser mais preciso religião.
Porque religião é pra quê? Para a gente se consertar. A gente usa religião para
se consertar. Deus vai vir aqui e falar assim: “Porra! Vocês me superaram,
porque vocês estão fazendo tudo igual, vocês me superaram! Não preciso
cuidar mais de vocês não. Vocês podem se cuidar, se autocuidar”.
Com estas palavras Herbert fechava a última entrevista no barco, enquanto os marujos
terminavam de entregar a encomenda ao grande barco cisterna, que precisava de uma peça para
seu motor. Pouco antes do pôr-do-sol voltamos para o estaleiro. Acompanhando-o nesse dia de
trabalho, notei o esforço físico de Herbert para manobrar a embarcação. Do mar, Herbert
apontava para a casa na qual crescera e que não podia mais frequentar. O mar marcou sua
infância de maneira negativa, mas também deu-lhe os meios econômicos para virar um bom
pai. Apesar da proximidade, ele estava longe da casa pela qual havia lutado tanto, para que sua
mãe e depois sua esposa e filha tivessem um lugar para ficar. Contemplar o mar levava-o a
reavaliar sua vida. Por detrás dos vidros sujos pela maresia, era visível a solidão de um homem
que não tinha mais casa nem família. Herbert parecia buscar retomar o controle de si mesmo
para superar sua melancolia.
Figura 41. O pensamento.
323
6.9 Sexta síntese
As histórias dos homens que conhecemos no segundo e no terceiro capítulos, o
Barrigudo e Herbert, mostram um duelo de versões: as deles como bons pais de família contra
as da vítima, mediadas pelos agentes da Lei Maria da Penha. Ao mesmo tempo, estas duas
narrativas entravam em relação com uma narrativa moral da modernidade sobre a cidadania e
o dimensionamento do indivíduo segundo a consciência do seu gênero, o direito positivo e
consubstancial, a emoção como atributo do seu self em conformação, sua contemplação da
própria violência e sua capacidade de se libertar da cultura, posicionando-se como um sujeito
político na história da humanidade. Qual dessas histórias em confronto é a verdadeira? A de
Izete ou a de Herbert? A de Dandara ou a do Barrigudo? Não saberemos. Essa definição
depende do agente de poder institucionalizado que define limite moral acerca de como gestos,
atitudes, intencionalidades e palavras viram uma afronta contra a dignidade de pessoas
específicas. As narrativas sobre si, que não estão descoladas dos sentimentos produtos das
relações com parentes, amigos, vizinhos etc., que dizem respeito a ser “um cara bem falado”
ou “um bom pai para uma filha”, fornecem parâmetros para entender a indignação e o
ressentimento expressados no âmbito do grupo reflexivo de gênero no Judiciário.
Esses sentimentos e o “estado interno” do indivíduo não podem ser desligados de
arranjos históricos entre pessoas morais, casas, âmbitos públicos, categorias de gênero e de
parentesco, o estabelecimento de relações econômicas e formas de ser prestigiado ou mal
falado. Esse sistema de referências morais remete a uma maneira particular da agência na qual
falar de si aparece como inconveniente, ao mesmo tempo em que nos mostra os caminhos pelos
quais o Barrigudo e Herbert tiveram inflexões morais e pensaram para se tornarem homens
adultos. O ponto de tensão entre estas referências morais e uma grande narrativa que exige a
composição de um self, promovido pelos facilitadores de grupos, parece ser precisamente como
a pessoa explicita seus sentimentos e para quem. Para o Barrigudo e Herbert, falar de si parece
ser um ato realizado com as parceiras sentimentais que, através da sua força e de seus
aconselhamentos, lhes dão a possibilidade se serem melhores como homens. Também constitui
um ato que sai do seu controle como pessoas e que pode eventualmente ser uma “arma” contra
eles. Fofocar e pilhar denotam um mecanismo fundamental de agência, de constituição de
pessoas e de reconhecimento de uma outra forma de individualidade e de formação do vínculo
social. A questão da fofoca e de adquirir prestígio através de atos desinteressados de ajuda a
familiares mostra como uma ideologia individualista da modernidade nos cega para a
324
importância desse contexto relacional, como já anotaram Max Gluckman (1963) e Claudia
Fonseca (2010).
O Barrigudo e Herbert são homens mais velhos que pararam para conversar comigo
sobre sua situação no Judiciário. Através das suas histórias e acompanhando-os nos seus locais
de moradia, enxerguei como eles viraram homens adultos, que “param para pensar”, fazendo
uso da expressão dos promotores da masculidade igualitária e reflexiva, como homens com
prestígio: o cara com autoridade na comunidade ou um bom pai em relação a categorias
femininas de parentesco em uma casa. A narrativa moral sobre si mostra esse processo
caracterizado como de aquisição de força e de renúncia de qualidades juvenis por meio da
prática do pensamento, cada vez que surgia uma vicissitude relativa ao lugar moral deles como
homens no seu meio social. Parece-me similar à prática da reflexividade exigida pelos
facilitadores de grupos. A reflexividade não é só uma marca da modernidade, que dá conta de
um grupo ou classe social que se assume civilizado(a), ela mostra um momento da trajetória do
Barrigudo e de Herbert em que adquiriram paciência e autoridade, distinguindo-se entre outros
homens pela calma que manifestam, a devoção pelas suas filhas e pela valoração da companhia
das esposas, com as quais é possível se abrir afetuosamente.
Existem diferenças entre ambos os protagoniostas deste capítulo. O Barrigudo ama suas
filhas, mas não as trata como princesas, enquanto Herbert ainda vê sua filha, já adulta, como
uma menina. Ser safado para o Barrigudo não implica uma contradição com sua posição de um
cara reconhecido na comunidade, embora ele tema o poder da fofoca que compromete seu nome
e a estabilidade do seu relacionamento com Joyce. Para Herbert, a safadeza é fonte de conflitos
que permitem estabelecer uma conexão entre a história com seu pai e a acusação de putaneiro
de Izete, podendo se perceber o seu esforço para sair da gandaia e concretizar o valor da família.
A valoração da categoria mulher é diferente para o Barrigudo e para Herbert. De todo modo,
uma boa mulher, como Joyce, é a aquela que com sua força – também singular – ajuda o homem
a se superar e a virar um sujeito com reconhecimento social. Nessa relação, o coração não pode
estar no passado, mas apontando para um futuro trascendente, no qual o amor cristaliza o valor
da família.
A força surge como uma categoria importante que permite ver a motivação da agência
no reconhecimento de uma individualidade contornada por categorias sociais de parentesco,
gênero, direito e trabalho. Podemos perceber uma “economia moral da força”, que não é oposta
a uma “economia moral do trauma da vítima” do capítulo quinto, mas diferente na sua forma e
organização interna. Mulheres e homens possuem força e ambos também podem ser violentos,
por serem humanos. A força possibilita um jovem a virar homem, colocando um limite à
325
safadeza ou saindo da gandaia, ao mesmo tempo em que se individualiza, reconhecendo sua
singularidade e as qualidades únicas da mulher que será sua companheira. A força, produto da
reflexão, permite o controle de si e não se deixar afetar pelas emoções dos outros. A força é
contemplada como valor que define a fé em Deus e em si mesmo.
Figura 42. O fim de uma jornada.
326
Conclusão
Localização em uma narrativa moral antropológica
No século XIX, cientistas que mais tarde seriam reconhecidos como antropólogos
sociais focaram sua reflexão em torno das regras do parentesco e de como esse campo amplo,
difuso e estranho remetia a formas de organização social, a sistema de direitos e autoridade, à
divisão do trabalho por sexo e ao comportamento dos indivíduos imersos em culturas
particulares. Tais culturas estavam hierarquizadas em graus, cuja referência comparativa eram
formas de organização, comportamento, estética e moral da Europa setentrional, burguesa e
capitalista. Estava em debate a natureza da unidade psíquica do ser humano e a manifestação
de costumes e diferenças, ancoradas algumas na biologia, outras em processos históricos que
davam conta do espírito dos povos, as quais ampliavam o conceito de humanidade para seres
de cuja racionalidade se duvidava, lá nas antípodas, ou, pelo contrário, o restringiam, colocando
em cheque a capacidade de progresso de populações racialmente diferenciadas. No meio dessa
história toda, como já é bem sabido através de leituras sobre teoria, história e pensamento
antropológico (e como já foi referido na introdução desta tese), a categoria de cultura foi central
para definir a alteridade e a política dos outros, objeto, entre outras coisas, da empresa colonial.
Alteridade e política foram contempladas, analisadas, teorizadas e muitas vezes heroificadas
através das etnografias ao longo da existência da antropologia como campo disciplinar
autônomo ao longo do século XX53.
A reflexão sobre a produção de conhecimento antropológico, emergente na relação entre
um agente representante de um nós, civilizado, e uns outros, representantes de um modo de
vida diferente, foi passando paulatinamente da discussão sobre o comportamento, que remetia
a um diálogo com a psicologia, para as relações políticas, particularmente durante os
movimentos de descolonização em meados do século XX. Isto permitiu que objetos de
pesquisa, os selvagens, virassem interlocutores e adquirissem um status humano como iguais
com posição política sobre sua própria existência. A categoria de cultura, além de ser criticada
como conceito analítico, caiu em desuso e a alteridade aos poucos foi sendo definida em escalas
organizacionais cada vez menores, privilegiando etnias e populações e afinando a observação
53
Seria grosseiro tentar resumir em poucas linhas a história do pensamento antropológico, que reúne várias escolas
de pensamento e abordagens para explicar a complexidade do ser humano, a sociedade e a cultura. Não é intenção
nesta conclusão elaborar uma história da antropologia, mas sim evocar uma das linhas de leitura dessa história
através da categoria de cultura, como foi a tentativa na introdução desta tese.
327
para as micropolíticas e posições subjetivas, não só nas sociedades exóticas, mas também nas
antropologias feitas em casa.
De maneira paralela, nas metrópoles, os movimentos sociais para a reivindicação da
igualdade, aquela promessa da modernidade, incidiram, como também é bem sabido, na
ampliação do conceito de cidadania e no exercício dos direitos civis e humanos nas sociedades
nacionais. Em vários contextos em processo de modernização, como aconteceu no Brasil (e na
Colômbia), a luta pela revalorização do sujeito mulher como constituinte da sociedade
implicava a crítica à tradição e aos papéis que a submetiam a exercícios autoritários por parte
dos homens que as tutelavam. Isto trouxe repercussões na produção de conhecimento
antropológico, particularmente com a inclusão da categoria de gênero nas análises de dados
etnográficos e dinâmicas sociais, problematizando, desse modo, a relação entre conhecimento
antropológico, posição do pesquisador, como sujeito com gênero, e constituição do tecido social
(ver MOORE, 2007). Mesmo que não tenha sido objeto desta tese levantar um histórico do
papel do movimento de mulheres na configuração do meu campo, meus interlocutores se
inspiraram no movimento feminista para conduzir suas práticas de transformação dos papéis de
gênero nos homens autores de violência, com a disposição de reconstituir vínculos sociais nos
termos de uma sociedade civil que contesta o antivalor do autoritarismo, que eles viam como
representativo de uma sociedade nacional (CORRÊA, 2001).
Autoras como Mariza Peirano (1981) e Lilia Schwarcz (1993) observam a estreita
relação entre processos históricos de produção e reconhecimento de alteridade e políticas de
inclusão de setores marginalizados como parte do desenvolvimento do projeto de modernidade
em contexto brasileiro. Agentes modernizadores estabeleciam um contraponto intelectual a
uma estrutura social herdeira do império português, que disputava os critérios na definição da
nação e de quem estava incluído ou não como cidadão, participante da sociedade. Junto com
estas autoras, Roberto Cardoso de Oliveira (1998) e Otávio Velho (2007) nos mostram como a
institucionalização da antropologia permitiu conceber o extenso território brasileiro em termos
de uma constante “fricção”, para utilizar o conceito de R. Cardoso de Oliveira, entre agentes da
sociedade nacional (que carregavam consigo o “paradoxo” de conceber a sociedade em termos
hierárquicos e algumas vezes acreditar em um ideário individualista) e outros que se agregavam
à sociedade nas margens do Estado.
A alteridade no processo de colonização interna do Brasil durante o século XX criava
objetos de contemplação acadêmica e política como outros simétricos e opostos, como no caso
dos indígenas (RAMOS, 2004), como protagonistas de problemáticas sociais, como no caso
das populações negras (na época das primeiras políticas de eugenia), e camponesas (no período
328
de práxis de um marxismo militante que se contrapunha ao avanço de um capitalismo
autoritário). A criação de uma alteridade, nos termos de uma sociedade civil, também
visibilizava sujeitos, cuja dignidade humana precisava ser reconhecida no conjunto social,
dados os arranjos familiares que terminavam apagando a voz daqueles tidos por muito tempo
como hipossuficientes, como no caso das mulheres e dos outros sujeitos tutelados.
Concordando com Peirano, a antropologia no Brasil contribuiu para a conformação da
nação e colocou o pesquisador necessariamente como um cidadão cujo conhecimento se apoia
entre um interesse pela inclusão de populações excluídas da sociedade, a crítica a estruturas
sociais precedentes e que fazem parte do contexto de pesquisa e o diálogo com escolas de
pensamento metropolitanas. Este último, nas palavras de R. Cardoso de Oliveira (1998), fez
com que a antropologia no Brasil se movimentasse entre vários polos, sendo um deles o enfoque
etnológico, próximo da ideia de Kultur, que procurava explicar a alteridade nos seus próprios
termos, e outro que apontava para uma reflexão mais sociológica, que problematizava relações
de poder entre os outros e os termos com que era pensada a nação, questionando a inclusão dos
outros na civilisation. O resultado, antropologias feitas no Brasil que geram debates acerca da
articulação de produção do conhecimento e mobilização política para a inclusão social de
setores marginalizados pelo Estado, cuja singularidade muitas vezes desafia, confronta ou
controverte ordens morais das quais também participam os antropólogos como sujeitos
políticos, que procuram materializar um projeto social e de reconhecimento civil.
As antropologias feitas no Brasil sugerem um debate sobre ética na produção de
conhecimento, do qual eu participo com esta tese, querendo com ela compreender o lugar de
fala de agentes que compartilham o horizonte político igualitário, que não dista muito da
maioria dos antropólogos neste país e no qual me incluo, mesmo sendo estrangeiro, pois ele
integra um ideário transnacional. Essa compreensão diz respeito às posições dos facilitadores,
mas também à de alguns homens acusados de violência que reivindicavam um tratamento
igualitário diante da lei, mostrando um conflito acerca do significado de igualdade, dignidade
e justiça dentro e fora dos grupos reflexivos de gênero. As relações entre agentes da sociedade
civil com esses outros, objeto da lei, mostraram uma ausência de reconhecimento da identidade
dos acusados, a qual se referia a posições morais configuradas nas diferenças e nas relações
assimétricas. Isto, a partir de uma sensibilidade igualitária, parecia ser uma posição antagônica,
em que se deveria intervir e ser transformada.
329
Dignidade, suas temporalidades e objetivações após a acusação de violência
Meu propósito de compreender as posições em uma relação de modernização não
significava acreditar na verdade defendida por uns e outros, embora elas façam parte do embate
político produto da implantação da Lei Maria da Penha, como mencionei no quarto capítulo,
mas analisar uma relação na qual duas formas de entender a construção da dignidade ao longo
de distintas temporalidades estavam em jogo. Em primeiro lugar, uma definição moderna de
dignidade, que vê no passado a tirania da tradição, no presente, o problema do reconhecimento
da singularidade individual e no futuro, a utopia do exercício cidadão. Uma outra definição
corresponde a uma ética relacional, na qual o passado é idealizado como um período de tempo
que outorga sentido à própria existência, o presente sofre uma ruptura com a acusação de
violência e o futuro é incerto, mas com um resquício de esperança, dada a legitimidade de
discursos institucionalizados (como o da religião) que reforça as convicções do passado,
outorgando integridade ao sujeito no decorrer da sua defesa da acusação. Chegar a caracterizar
essas outras narrativas morais, emergentes após a acusação, implicou captar o sentido das
palavras desses outros, objeto de reprovação moral, que ao ser projetado como um “novo
primitivo” – simétrico e inverso ao ideal de cidadão – gerava a surpresa do moderno ao
reconhecer que “o agressor não é um monstro”, mas “dorme no homem comum” 54.
Ao trazer este breve panorama sobre a categoria de cultura e a trama da qual emerge o
conhecimento antropológico, tento situar meu trabalho na relação tensa, conflitiva e de fricção
entre uma narrativa moral de modernização e pessoas e coletivos que a contestam com
afirmações sobre a natureza das relações sociais e a dignidade, que também se afirma como
humana. Isto implicou resgatar as noções de processo, de percurso, de cronologia e de
temporalidade: da constituição da legitimidade dos grupos reflexivos como uma ferramenta
preventiva a serviço da Lei Maria da Penha, das trajetórias de facilitadores e de alguns homens
que passaram pelo Judiciário e do próprio pesquisador, como agente localizado entre os campos
político e acadêmico.
Esta tese surgiu a partir de um interesse de questionar as políticas de produção de objetos
acadêmicos e problemáticas sociais derivadas da relação analítica entre estudos de gênero e
54
Aqui faço referência a matérias de internet sobre grupos reflexivos de gênero para homens autores de violência
(bem como a algumas teses e dissertações citadas no primeiro capítulo) que descrevem as dinâmicas destes grupos,
trazem depoimentos dos participantes e dos facilitadores (que desqualificam moralmente as masculinidades dos
homens participantes dos grupos através das suas categorias classificatórias, descrevendo-as como “tóxicas”) e
apresentam a novidade de que os criminosos poderiam ser quaisquer uns na rua ou nas relações familiares. Ver:
https://www.geledes.org.br/o-agressor-dorme-no-homem-comum/
e
http://www.
huffpostbrasil.com/2016/08/11/maria-da-penha_n_11459574.html
330
violência social, que tradicionalmente buscam explicar comportamentos tidos como
antissociais através do recurso da cultura ou da tradição. Essa “cultura” era a “natureza” do
outro, objetivada na identidade masculina, para o agente civilizador. No decorrer do trabalho
de campo e após a análise dos dados emergentes, o diálogo com o campo da psicologia, que
tem na interioridade do sujeito seu objeto de reflexão e intervenção, foi necessário para entender
a proposta e a prática da responsabilização no marco da Lei Maria da Penha. Um retorno àqueles
clássicos da escola sociológica francesa – que se questionavam pela natureza do
comportamento humano em diálogo com os psicólogos da época – me permitiu colocar em foco
a categoria de emoção na minha etnografia. Como vimos nesta tese, emoção e sentimento
viraram categorias nativas centrais para entender a fronteira de modernização, os depoimentos
sobre justiça, as relações de gênero e familiares, as acusações e as justificativas acerca da
violência. Se a narrativa moral relativa à política é linear e progressiva, a acadêmica parece ser
espiralada, para o que retomar velhas perguntas ajuda a iluminar fenômenos etnográficos
contemporâneos (PEIRANO, 2004).
Para os promotores das relações sociais igualitárias, a cultura, localizada no passado,
mas presente de maneira anacrônica como um problema, era um antivalor que informava a
análise sociológica e psicológica e a construção do objeto moral masculinidade. Essa maneira
de conceber a cultura me fez ver como, na interseção de procedimentos, práticas, saberes e
instituições do direito e da psicologia, foram criados dispositivos de classificação e intervenção
sobre o reino do parentesco. Como conceituado no quarto capítulo desta tese, o parentesco
remete à qualidade da conformação e da manutenção dos vínculos legais, afetivos, econômicos,
de autoridade, religiosos e por que não, mágicos, entre esposos, filhos e outros parentes, amigos,
vizinhos, colegas de trabalho e agentes do Estado. As afirmações feitas por meio de categorias
sobre o gênero e a emoção adquiriram significado ideológico e status político na tensão entre
uma ideologia individualista com pretensões civilizadoras e uma ética relacional, que dá conta
de uma Kultur que reúne diferentes horizontes ideológicos, mas que veem na noção de força,
ao mesmo tempo interna ao indivíduo e manifestação divina, o motor da agência. Essa tensão
mostra a dificuldade na revalorização de categorias de parentesco por parte dos homens
acusados de violência para a constituição do elo social, porque a mutualidade, característica dos
vínculos de parentesco, cria a experiência da sensação de si e da constituição de sujeitos morais.
Com a abordagem das posições políticas emergentes nos grupos reflexivos de gênero,
nas formações dos facilitadores e no meu acompanhamento dos homens acusados, foi possível
compreender os horizontes ideológicos dos meus interlocutores, mostrando não só como o
individualismo constrói pessoas com agência produto do exercício da autonomia e de coisas
331
presas à tradição, mas também como o ideário relativo à força relaciona categorias filosóficas
abstratas como homem ou mulher com categorias de parentesco por meio de relações de
reciprocidade. Aqui vale a pena mencionar que a tentativa de compreender o ponto de vista nas
brigas de personagens como Heitor, Josué, Pedro, Fabrício, Paulo, Herbert ou o Barrigudo
pretendia resgatar a agência e as políticas no diálogo entre essas ideologias, que a partir do
ponto de vista do individualismo metodológico eram rejeitadas como relações de opressão,
portanto, moralmente desqualificadas.
Vale a pena mencionar que é difícil reunir em uma categoria sociológica só as diversas
vivências dos homens acusados retratados nesta tese. O trabalho classificatório feito pelos
ativistas e promotores de relacionamentos igualitários reúne-os sob o rótulo de homens autores
ou em situação de violência. Mas os acusados se posicionavam de maneiras diferentes diante
desta tentativa e não se consideravam como iguais entre si dentro e fora dos grupos. Os homens
que conheci participaram de maneiras diferentes nos grupos, onde alguns colocavam certos
temas ou controvertiam as afirmações dos facilitadores, e outros se limitavam a escutar ou a
concordar com afirmações de certas “lideranças”, como Josué ou Heitor, por exemplo. Estes
dois últimos exerceram um papel de protagonistas, se contrapondo às afirmações de Aline, mas
eles tinham uma posição diferente sobre o papel idealizado da esposa, estando Heitor mais
próximo do ideal igualitário do que Josué, que considerava a mulher indiscutivelmente
subordinada à autoridade dele como esposo. Paulo, apesar de não ter sido acusado de violência,
compartilhava este último horizonte sobre as relações maritais. O Barrigudo e Herbert, apesar
de pertencerem ambos a classes populares, não tinham muito em comum, particularmente sobre
o valor de “ser safado” como definidora do virtuosismo de um homem adulto, que remete a
diferenças relativas à sexualidade e a raça entre eles dois. O fato de considerarem as filhas como
princesas e de idealizarem a mãe une, por exemplo, Herbert, Heitor, Fabrício e Pedro, os quais
provavelmente reprovariam o tratamento menos adocicado que o Barrigudo dava às suas filhas
e às outras meninas que frequentavam a escola de futebol na comunidade.
Porém todos compartilhavam duas coisas: a expressão de indignação no Judiciário
(excetuando Pedro e Paulo, que não estavam judicializados), que se opunha a um ideal de bom
pai e trabalhador, e a idealização da mãe como uma boa mulher, cuja força permite que o
homem seja uma pessoa melhor. Mas essas respostas comuns devem ser vistas como
posicionamentos, produto das mediações semióticas dos facilitadores e de uma agenda política
de pesquisa e intervenção que constrói a classificação de homem autor ou em situação de
violência, que tem na ideia de indivíduo com direitos e emoções consubstanciais um valor, e
não como conceitos, justificativas ou representações próprias de uma masculinidade –
332
hegemônica, patriarcal, tradicional, machista, tóxica etc. – configurada na cultura. Ao
questionar um outro, objeto da lei, pela sua individualidade através da acusação, este último,
por contraste, mostra o conjunto de relações no qual ele se configura como sujeito digno. Isto,
a partir da perspectiva do promotor da igualdade, foi muitas vezes interpretado como uma
tentativa de vitimização, que terminava despolitizando o proceder do acusado.
Como entendimento das objetivações que medeiam as relações entre promotores da
igualdade e acusados de violência é possível abordar fenômenos como a crítica e a reação
(muitas vezes violenta, no sentido de eliminação do opositor) a políticas assumidas como boas
e universais, como a mesma Lei Maria da Penha, as cotas raciais ou o reconhecimento da
cidadania de pessoas gays, lésbicas bissexuais e trans, por parte de setores qualificados como
conservadores ou tradicionais, que apelam para a volta da autoridade vertical, a ditadura e o
desmonte do Estado de direito. O grupo reflexivo de gênero permitiu ver em micro um conflito
de natureza maior para a luta pela definição das sociedades nacional e civil no Brasil55.
As referências da modernização
No primeiro capítulo apresentei uma história social em que homens cariocas contavam
a pertinência dos grupos reflexivos de gênero como uma maneira de refletir sobre sua própria
masculinidade em um contexto social no qual a ditadura era um recurso contextual, similar ao
uso de “cultura da violência” na Colômbia. Para os promotores de uma masculinidade
igualitária, a ditadura e o patriarcado informavam relações de caráter autoritário de parentes,
homens mais velhos e setores políticos e governamentais no Brasil, contra as quais eles se
posicionam intelectual e afetivamente, motivando o ativismo e a pesquisa em torno da
masculinidade no Rio de Janeiro. Se os grupos reflexivos sobre a masculinidade tinham como
referentes esses homens, objetivados sociologicamente como representantes de masculinidades
hegemônicas, cujo poder estava localizado acima da estrutura social e familiar, com a
institucionalização da Lei Maria da Penha, em um contexto no qual o Judiciário procura a
harmonia social e restabelecer o lugar das pessoas morais, houve um movimento de localização
desse poder opressivo em homens de periferias da cidade: negros, nordestinos e favelados, na
sua maioria. De um exercício de ressignificação de si e de resistência à hegemonia, a reflexão
55
Pensando em termos do conceito de cismogênese, de Gregory Bateson (2006), após acusações de machismo de
agentes da sociedade civil para uma variedade de setores nacionais (incluídos políticos e empresários), uma
apropriação e interpretação dos acusados da “perspectiva de gênero” vira agora acusação e volta como “ideologia
de gênero”, sendo esta última, ao mesmo tempo, índice de uma crise moral e da grande capacidade de incidência
do feminismo na reformulação do conceito de sociedade.
333
sobre o gênero nos homens por parte dos facilitadores passou a ser uma tecnologia civilizadora
e legitimadora de uma filosofia política que discute a diferença hierárquica como desigualdade
substantiva dentro do inacabado projeto de modernização.
No registro de uma história social dos grupos reflexivos de gênero e sua posterior
implantação no juizado de Niterói e no Instituto de Práticas Sistêmicas da Zona Sul do Rio de
Janeiro, para mim não foi importante avaliar se os facilitadores eram fiéis às afirmações de
Judith Buttler ou de Raewyn Connell, mas sim como as teses destas autoras (entre outros
escritos de sociólogos, filósofos, psicólogos e antropólogos que serviam de fonte de inspiração
filosófica e legitimidade científica) faziam sentido para vincular a trajetória pessoal dos
facilitadores e pioneiros dos grupos à história política nacional, ao mesmo tempo em que
justificavam o desejo de transformação de ordens sociais consideradas injustas e opressoras por
parte de personagens como Aline, Thor ou os psicólogos citados no primeiro capítulo.
Como as trajetórias dos homens acusados, é difícil reunir em uma categoria só a
experiência dos promotores de uma masculinidade igualitária. Thor pode ser caracterizado
como mais fiel a um ideário laico e feminista, que lhe permitia ser empático com a experiência
emocional de mulheres molestadas e assumir uma militância através do seu testemunho de
ressignificação da sua própria masculinidade. Por outro lado, Aline não vê como contraditório
se assumir como uma mulher moderna, reconhecedora das reivindicações da luta feminista, que
procura fazer com que a voz da mulher seja escutada pelos homens que passam pelo juizado, e
uma religiosa, que lhe permite interpelar e controverter a crença acerca da natureza das relações
entre homens e mulheres, de muitos dos acusados que participam nos grupos.
Mas ambos os facilitadores, como os pioneiros das práticas reflexivas sobre o gênero
nos homens no Rio de Janeiro, têm em comum a habilidade de vincular, através das suas
práticas classificatórias e mediações semióticas, o contexto político nacional, o conhecimento
acadêmico, a trajetória familiar e o ideário individualista. Essa habilidade está em relação a,
primeiro, uma ansiedade epistêmica para caracterizar, intervir e modificar esses outros, cujas
políticas familiares e sobre noções sobre si mesmos eram muitas vezes vistas como antagônicas
ao projeto de sociedade civil; segundo, uma vigilância epistêmica da própria violência, como
recurso para garantir a própria modernidade; e, terceiro, a formulações semióticas para moldar
um sujeito que valoriza a primeira pessoa para o reconhecimento da sua própria existência.
Minha passagem pelo consultório como analisando foi um recurso – inesperado por
sinal – que me permitiu juntar minha própria revisão afetiva e somática à lógica do meu
proceder, me outorgando um ângulo de observação e interpretação do meu campo que juntei à
minha bagagem intelectual como antropólogo. Com isto, consegui “elaborar” entre as reuniões
334
de orientação, as apresentações em grupos de trabalho e o divã a proposta individualizante dos
facilitadores, as queixas dos homens, as identificações (transferências e contratransferências)
com meus interlocutores e considerações sobre minha posição no campo e aquela que era a dos
outros no campo. Seguindo o argumento de Antonious Robben (1996), por uma ausência de
conhecimento dos processos de sedução etnográfica dos nossos interlocutores no campo, muitas
vezes o pesquisador toma como dado o discurso ou a representação dos interlocutores com os
quais “sente empatia”, colocando essa informação, produto do rapport, como uma verdade
etnográfica.
Como vimos nesta tese, a verdade dos meus interlocutores, particularmente para os
facilitadores, aparece como uma categoria em face da capacidade de senti-la, o que nos remete
à somatização da ideologia, à constituição afetiva do vínculo entre o agente com categorias
filosóficas e de parentesco e ao estabelecimento de relações políticas na alteridade, sendo esta
última uma relação hierárquica. A verdade dos meus interlocutores resultou ser uma porta de
entrada para abordar questões que não passam necessariamente pela representação (mas que
não a excluem), como a magia dos facilitadores para conduzir na direção do exame emocional
e das linguagens de parentesco dos homens acusados, apresentadas nos capítulos segundo,
terceiro e quinto, estas últimas constitutivas de políticas que causam ansiedade epistêmica ao
agente modernizador.
A conformação da pessoa moral, seja ela cidadão, homem igualitário, bom pai ou autor
de violência, tem como “chão” essa sensação de verdade, produto do reconhecimento de
terceiros e de discursos com validade institucional. Isto proporciona uma grande diferença entre
um “ser agressor” permanente e estigmatizante e um “estar agressor” circunstancial, que não
engloba nem define a identidade do acusado. Essa diferença entre ser e estar se expressa como
um conflito entre sensações de reconhecimento social que são publicitadas através das
narrativas de indignação, por exemplo. Daqui deriva a dificuldade de vários desses homens de
se afirmarem como vítimas ou de serem empáticos com elas, apesar da acusação de vitimização
por terceiros diante das justificativas da briga ou da própria afirmação como vítima de Josué,
por exemplo, dentro do Judiciário, onde faz sentido sair da categoria de criminoso, verdadeiro
merecedor da lei penal. A diferença entre ser ou estar agressor também permite pensar sobre a
possibilidade da “conversão” desses homens de machistas para cidadãos, pois a sensação e o
reconhecimento de construir um “ser bom pai” é gratificante, se comparada com o
desencantamento das contraprestações nas quais o sujeito está envolvido dentro das relações de
parentesco, o que parece ser necessário para passar a estar na posição de homem igualitário.
335
Uma pessoa igualitária e uma pessoa com força
Gostaria assim de comparar a implantação dos grupos reflexivos de gênero ao
proselitismo religioso dos missionários calvinistas estudados por Webb Kaene (2007) na ilha
de Sumba, na Indonésia. Estes missionários encontraram indígenas, os fetichistas, os quais já
tinham tido um contato prévio com missionários católicos, cujo ritual era visto pelos calvinistas
como uma intermediação hierárquica e desnecessária entre o agente orador e Deus.
Metodologicamente este triângulo de relações me foi útil para abordar a implantação dos grupos
reflexivos de gênero no âmbito do Judiciário. Em algum momento pensei os homens acusados
como se fossem acusados de fetichismo: sua crença na autoridade que se revertia no fenômeno
da violência; o Judiciário (e a sociedade nacional herdeira do império e da ditadura) como a
institucionalidade católica que administrava conflitos restaurando pessoas morais na ordem
social, e os promotores de uma masculinidade igualitária como os calvinistas, que apontavam
para a individuação.
Agentes de uma masculinidade afim com o ideário feminista e calvinistas compartilham
a ideia de uma agência humana baseada na sinceridade consigo mesmo. Essa sinceridade
expressa uma interioridade através das palavras e mostra uma relação direta do sujeito falante
com o próprio poder (para o caso dos facilitadores) ou com Deus (para os calvinistas). A oração
como uma formulação semiótica que permite a constituição de um “eu orador” tem um paralelo
com a resposta pessoal à pergunta “o que é ser homem?” e com a revisão do sentimento como
uma maneira de responsabilizar um “eu autor de violência”. Em ambos os casos, essa criação
de um sujeito falante na primeira pessoa indicava que os indígenas se afastassem do fetiche da
cultura e que os homens autores ou em situação de violência enxergassem seu privilégio de
gênero relativo à cultura patriarcal.
Aline e Thor, os facilitadores dos grupos do juizado de Niterói e do Instituto de Práticas
Sistêmicas, respectivamente, propunham um olhar para si, de maneira similar à recitação do
Credo apresentada pelos missionários calvinistas, para formar um “eu” com potência
individual, que estabelecia o parâmetro de igualdade com um “outro”, também definido por
possuir emoções e direitos. Potência, emoção e direito são qualidades intrínsecas à pessoa
humana para os facilitadores; são qualidades que definem sua dignidade, também
consubstancial. O gênero é aquela estrutura perturbadora que delimita papéis sociais, as
máscaras que ocultam o verdadeiro self, comuns à humanidade toda, como também o é a
violência, esta quase entidade com a capacidade para estragar qualquer situação social, como
concebida pelos facilitadores e os homens acusados.
336
As máscaras do gênero não deixam exercer a honestidade nem permitem a igualdade ou
o equilíbrio de uma ordem – quase – divina, definida pelo reconhecimento da interioridade de
si e do outro. O desequilíbrio transforma os indivíduos em vítimas, as quais demonstram sua
humanidade se afirmando politicamente através de emoções valorizadas no reconhecimento
cidadão e para o gênero feminino, operando a prática ideológica da empatia. Tal afirmação
emocional, como descrito no quinto capítulo desta tese, é uma dádiva da vítima para as suas
testemunhas, que devem virar seus redentores no futuro. Ela também tem o poder de criar uma
economia em torno da valorização do trauma, estabelecer um precedente hierárquico entre a
vítima e seus futuros redentores e criar o efeito de igualitarismo, dada a prática ideológica da
empatia.
O encontro entre diferentes maneiras de conceber a pessoa em sociedade tem relação
com a noção de direito, com a administração dos conflitos no Judiciário e com o modo como
são narradas e interpretadas as brigas e as queixas dos homens dentro e fora do grupo reflexivo
de gênero. A abordagem das relações entre civilisation e Kultur permitiu ver propostas e
valorizações para conceber o poder, a individualidade e as pessoas nas relações de
reciprocidade, em um processo de modernização que, através do trabalho dos promotores da
Lei Maria da Penha, valoriza um tipo de pessoa similar à pessoa protestante, o que contrasta
com a noção de indivíduo e sociedade do mundo católico. Esse contraste é relativo ao paradoxo
legal brasileiro (DAMATTA, 1997; LIMA, 2004, 2010), às duas concepções de igualdade no
mundo jurídico (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2008, 2009), ou à invenção da violência
doméstica em Timor Leste (SIMIÃO, 2015a), e informava uma fronteira moral – e religiosa –
que reifica a tensa relação entre esse “nós igualitário” e um “outro hierárquico” marcado pelo
gênero na definição do projeto moderno.
Assim como o grupo reflexivo nos permite pensar o conflito social e político mais amplo
no Brasil, ele também parece ser uma atualização dessa antiga clivagem do mundo cristão, da
qual se distingue um mundo católico de outro protestante, que fundamenta o projeto moderno
e define o conteúdo do cristianismo como perspectiva de mundo – mas este último ponto fica
mais como provocação ou agenda de pesquisa que no futuro permita vincular outros contextos
etnográficos, como os revivalismos religiosos ou o modelamento emocional de fiéis em igrejas
evangélicas e pentecostais, com processos históricos mais abrangentes, inspirados no processo
civilizador de Elias ou na gênese do individualismo de Dumont.
Acompanhar alguns dos homens acusados me permitiu reconhecer outros ideários e
maneiras de organizar a própria vida em função dos outros, que chamei, a princípio, de uma
ideologia da força, que remete à hierarquia e vincula a singularidade dos homens acusados com
337
as coisas que não se controlam, quer dizer, com o poder de Deus, e que se adquire no processo
de amadurecimento por meio, entre outras coisas, da prática do pensamento. Esse ideário
descreve em parte a natureza das relações entre homens e mulheres, e legitima (mas não define
necessariamente) a conformação dos vínculos de parentesco, que outorga um papel importante
ao vínculo afetivo entre esses homens com suas mães e filhos. A mulher, também possuidora
de força, pode destruir o acusado, expondo informação íntima adquirida durante o
relacionamento, ou pode levantá-lo, fazendo dele uma pessoa melhor, como visto no sexto
capítulo e, em menor medida, no segundo e terceiro.
Esse ideário da força e do conhecimento das práticas de categorias femininas objetiva
uma mulher ativa, que se distingue do seu próprio conteúdo em relação ao ideário
individualista, que a vê como sujeito passivo e muitas vezes sinônimo de vítima. Individualismo
e ideologia da força não são excludentes, mas servem como referentes aos quais esses homens
recorrem, sendo o primeiro ideário ativado preferencialmente para se referir à vida no âmbito
público e para se relacionar com a institucionalidade e o Estado, e o segundo, para atribuir
sentido às relações do dia a dia em casa, no trabalho e na comunidade. Segundo a vivência
desses homens, primeiro, o Estado está integrado tanto por representantes da sociedade nacional
quanto da civil e está acima dos vínculos familiares, comunitários e laborais que geram
pertencimento e, segundo, a lei é vivida como uma forma de governo, externa e não
necessariamente legítima, de categorias contaminantes da ordem social, que geram estigma.
Coda
Esta tese descreveu uma longa jornada que iniciou anos atrás na Colômbia, viajou
através dos livros pelo sudeste asiático e teve como referentes empíricos posições e práticas de
interlocutores no Rio de Janeiro. Nesses três lugares, tão afastados geograficamente, podemos
observar processos de transposição da ideologia moderna e de constituição de um sujeito que
valoriza a primeira pessoa para afirmar sua existência e a de “outros”, tomando-os como objeto
no qual se busca reconhecer uma singularidade que o transforme de coisa em pessoa. Pensar o
processo reflexivo a que são submetidos homens acusados de violência doméstica e familiar
contra a mulher como o de implantação de uma moralidade moderna implicou abordar a
linguagem como problema moral, que desqualificava as afirmações de prestações entre outro
tipo de pessoas, inseridas em relações de dádiva, retratando-as como signo da cultura e de uma
desigualdade substancial. Como vimos ao longo dos capítulos desta tese, desqualificar a dádiva
338
é desqualificar como esses homens criam seus vínculos sociais, conformam suas pessoas morais
e configuram sua afirmação como sujeito com dignidade, que vai além da qualificação
circunstancial como agressor. Nesse sentido, uma prática moderna de intervenção social, via
grupo reflexivo de gênero, e de concepção de objetos acadêmicos sob categorias como gênero,
parece refletir uma política pública (que não distingue entre sociedade nacional e civil), que
desconhece os vínculos de pertencimento e não cria condições para o reconhecimento da
singularidade do sujeito, pré-requisito para a constituição de sociedade civil nos termos do
ideário moderno.
Pensar o processo reflexivo proposto pelos agentes da civilisation implica não só um
“voltar o olhar para si” dos homens ali envolvidos, mas do próprio sujeito moderno, de modo
tal que tenhamos a consciência dos pressupostos morais das concepções filosóficas e científicas
que estão na base das práticas de constituição de sociedade civil, “pontos cegos” ou “centro de
referência” de um posicionamento individualista diante da vida. Essa reflexividade passa pelos
movimentos de redução a termo do mundo jurídico brasileiro, pela qualificação de vitimização
da justificativa do ato de agressão, que invalida o argumento do acusado, e pela promoção da
reflexividade, que implica tanto a recomplexificação do conflito quanto o reconhecimento da
agência da vítima na “situação da violência”. Essas maneiras de conceber a situação do
indivíduo-marcado-por-gênero na institucionalidade estatal mostram disputas de poder entre as
exigências dos discursos político e militante, com as dos mundos jurídico e científico, pela
definição dos sujeitos de reconhecimento e punição estatal.
Esse “volta para si” permite explorar melhor esse plano cartesiano ou essa sonata
barroca que mencionei na introdução, na qual o indivíduo é a constante e o social, as variáveis.
Assim, diferenças como as de classe e raça (apelando a categorias analíticas de alguns dos meus
interlocutores) entre facilitadores e acusados e entre os próprios homens participantes dos
grupos mostram maneiras diferentes de qualificar um estado e um evento como emocional e se
afirmar como sujeito com dignidade. A partir daí, é pertinente aprofundar na reflexão sobre por
que, apesar da Lei Maria da Penha ser considerada “a mais democrática das leis”, pelo menos
no Rio de Janeiro, sua institucionalidade termina acolhendo – e incidindo nas relações de gênero
constituídas em relações de dádiva diferentes – de negros, favelados e pessoas de setores
populares, preferencialmente. A explicação é mais complexa do que pensar que setores de
classes médias e altas têm poder aquisitivo para lidar com os conflitos por meios alternativos à
justiça formal e poderia incluir explorando o inacabado e forte projeto de governo pela lei,
herança de uma estrutura social imperial e de consolidação de uma república nos termos das
339
suas elites (com corolários aristocráticos e eugenistas), da qual, por variados e inusitados
registros, os agentes da civilisation não escapam.
Civilizar a cultura, com o objetivo de constituir uma sociedade civil, constitui um
“desafio”, retomando as palavras de Aline. Se a cidadania contemporânea está fundada em uma
ética do reconhecimento, isso implica escutar – e levar a sério – esses outros, como um ato
“revolucionário”, tomando-os como sujeitos que se posicionam de maneira crítica aos termos
da inclusão cidadã, como afirmaram Rita e Thor. Isto nos conduz a uma interpretação do
conhecimento do outro a partir do nosso “desprazer”. A sociedade, como valor para a ideologia
moderna, é mais do que uma mera formulação retórica a ser aprendida; ela é vivida e sentida
para gerar pertencimento e engajamento. O desconhecimento da maneira como esses homens –
e mulheres – de setores populares constituem sua noção de dignidade nas suas relações de
dádiva não favorece a conformação nem a constituição de um self igualitário, nem a
constituição de vínculos sustentados em uma filosofia da dignidade humana universal e racional
que admite a expressão de certas emoções como “positivas”. Nesse sentido, a expectativa de
conversão ao individualismo mostra um campo de pesquisa complexo e abarrotado de tensões,
que espero ter caracterizado com alguma propriedade. Esta tese se soma a um conjunto variado
de posições políticas e acadêmicas, buscando ampliar o horizonte interpretativo de fenômenos
que demandam um esforço intelectual considerável. Sendo o processo de demarcação da
modernidade um projeto sempre inacabado, muitas das questões ficam aqui em aberto como
trilhas a serem perseguidas por futuros projetos interessados em melhor compreender as
dinâmicas próprias das relações entre cultura e civilização.
340
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