Academia.eduAcademia.edu
iii figueirinhas Outras obras coordenadas pelos mesmos autores: Ensaios de Geografia Cultural. Porto: Figueirinhas (2006), com artigos de Paul Claval, Denis Linehan, Michael R. Curry, Ana Francisca de Azevedo, José Ramiro Pimenta e João Sarmento. Geografias Pós-coloniais. Porto: Figueirinhas (2007), com artigos de Ana Francisca de Azevedo, James D. Sidaway, João Sarmento, José Ramiro Pimenta, Marcus Power, Matthew Gandy e Richard Phillips. GEOGRAFIAS DO CORPO  Ana Francisca de Azevedo cria a ideia de desgeografização do corpo como mobile através do qual emergem novas políticas de lugar, declinando uma visão da terra ‘naturalizada’ pelos sistemas de signos geográficos que sustentam as modernas espacialidades, propondo a ruptura com uma geografia do sujeito único. Benedict Hoff aborda a complexidade de estéticas alternativas postas em jogo por filmes ‘art house’, para indagar o grau de eficiência de novas técnicas fílmicas usadas para a aproximação a problemáticas específicas como o corpo e a sexualidade, manifestadas de modo diferente em diversas culturas. Chris Philo analisa, através da descrição e análise minuciosa de prisões e instituições similares, a importância das proposições biológicas sobre a vida e a morte e a exposição crítica das múltiplas formas como têm sido constrangidamente manipuladas por ‘soberanos’ com o poder de dexiar viver ou fazer morrer. Eduardo Brito-Henriques apresenta uma reflexão sobre as geografias particulares que as múltiplas possibilidades do corpo trans- ou pós-humano geram nas sociedades contemporâneas, apoiando-se no conceito de utopianismo na hipermodernidade e nas correspondentes novas práticas biomédicas e biotecnológicas de produção do corpo. Joana Lima argumenta que perceber o corpo e a linguagem em Moon Palace de Paul Auster implica, necessariamente, pensar a Viagem e o Lugar; sustenta que as viagens físicas traduzem momentos de exploração individual e obrigam ao reconhecimento da condição fragmentária da identidade; olham e ensaiam o próprio processo da escrita. João Sarmento discute a espacialidade e performance do seu próprio corpo numa viagem forçada à América do Norte e explora a diferença, inquietação e marginalidade que a cor da pele provoca na Lisboa pós-colonial, partindo de um jogo de futebol amigável. José Ramiro Pimenta defende que pode detectar-se uma configuração opositiva entre Foucault e Said (sexualização e des-sensualização) no que diz respeito à corporealização do tempo nas respectivas teorias históricas, em ambos os casos se pretendendo criar um contetxo eficiente de afirmação da própria individualidade intelectual e política. Roberta Gilchrist descreve e interpreta documentos arqueológicos e históricos com o intuito de penetrar o mundo da afectividade das mulheres religiosas da Idade Média; uma inesperada personalização e transposição interior do erotismo e da sexualidade em situações de absoluta clausura. Teresa Mora revela as vozes de um percurso de resistência aos ‘mandamentos’ que regulam a cultura científica, arriscando avançar com um conjunto de impressões pessoais associadas aos modos recorrentes de expressão territorial do conhecimento científico e à problemática específica da articulação do corpo com a razão. A. F. de Azevedo, J. R. Pimenta e J. Sarmento Neste livro: iii Coordenação de Ana Francisca de Azevedo José Ramiro Pimenta João Sarmento GEOGRAFIAS DO CORPO Ensaios de Geografia Cultural Ana Francisca de Azevedo Benedict Hoff Chris Philo Eduardo Brito-Henriques Joana Lima João Sarmento José Ramiro Pimenta Roberta Gilchrist Teresa Mora iii figueirinhas GEOGRAFIAS DO CORPO © (2009) Livraria Figueirinhas Geografias do Corpo. Ensaios de Geografia Cultural Coordenação: Ana Francisca de Azevedo, José Ramiro Pimenta, João Sarmento Autores: Ana Francisca de Azevedo, Benedict Hoff, Chris Philo, Eduardo Brito-Henriques, Joana Lima, João Sarmento, José Ramiro Pimenta, Roberta Gilchrist, Teresa Mora Capa: Fotografia: árvoremãe, de Jorge Correia Ribeiro © Arranjo gráfico: Cisca, Pfeffer & Séan. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob qualquer forma sem a permissão do editor e coordenadores. Depósito legal: ISBN: Coordenação de Ana Francisca de Azevedo José Ramiro Pimenta João Sarmento GEOGRAFIAS DO CORPO Ensaios de Geografia Cultural Ana Francisca de Azevedo Benedict Hoff Chris Philo Eduardo Brito-Henriques Joana Lima João Sarmento José Ramiro Pimenta Roberta Gilchrist Teresa Mora iii figueirinhas Autores Ana Francisca de Azevedo Universidade do Minho Benedict Hoff University of Liverpool Chris Philo Univerity of Glasgow Eduardo Brito-Henriques Universidade de Lisboa Joana Lima Universidade Lusófona do Porto João Sarmento Universidade do Minho José Ramiro Pimenta Universidade do Porto Roberta Gilchrist University of Reading Teresa Mora Universidade do Minho Índice As geografias culturais do corpo A. F. de Azevedo, J. R. Pimenta e J. Sarmento 11-30 Desgeografização do corpo. Uma política de lugar A. F. de Azevedo 31-80 Fausto entre nós. Geografias pós-humanas E. Brito-Henriques 81-98 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média R. Gilchrist 99-122 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências. B. Hoff 123-144 Corpo, identidade e linguagem nas cavernas de ‘Moon Palace’ J. Lima 145-164 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta T. Mora 165-186 População acumulada: corpos, instituições e espaço C. Philo 187-226 O corpo, lugar do tempo J. R. Pimenta 227-260 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar J. Sarmento 261-282 As geografias culturais do corpo Ana Francisc a de A zevedo José R amiro Pimenta João S armento A contaminação do corpo pela teoria e pela prática científica implica frequentemente o acto de despojamento das emoções e dos afectos, implica, tantas vezes, pôr-nos de fora de nós próprios, despir-nos da nossa carne, até um ponto em que a experiência material do mundo e da existência se encontra ontologicamente truncada. A consciência de nós próprios turva-se, o ‘sentimento de si’1 é aplanado, divorciando-se da sua própria biografia e de uma teia de significados que permite a organização de cada momento quotidiano. A negligência crónica relativamente aos processos de formação da auto-consciência enviesa não somente a estruturação do Eu mas também a sua auto-percepção, o que inevitavelmente enviesa o intuito de aproximação ao Outro, transformado em objecto de pesquisa. Sobre esta base se ergueu uma metageografia dos corpos passivos. O acto de abstracção em que se estriba a produção do conhecimento cientifico moderno tem subjacente a descorporização do sujeito, a subtracção da experiência sensorial no seu conjunto em detrimento da experiência ocularcêntrica. A mente como palco de representações e o olho, e respectivos aparatos e próteses de visualização, como aparelho que devolve à mente uma visão objectiva dos fenómenos, legitima um sem-número de textos e discursos que partem de um quadro relacional assente sobre a fractura entre sujeito e objecto de conhecimento. Desestabilizando este quadro relacional a presente obra expõe-no. De capítulo a capítulo abre-se para os desafios de um conhecimento Geografias do Corpo háptico, interceptando um conjunto de geografias liminares que as suas autoras e autores vão desvelando. A atenção que crescentemente tem vindo a ser dedicada ao corpo no seio das ciências sociais dividiu-se por variadas formas de abordagem das relações que estabelece com as outras instâncias da produção da subjectividade. Do mesmo modo, e ainda que a divisão que vamos seguir force talvez um pendor analítico que não deve ser mais do que o necessário para permitir uma ilustração coerente do conjunto de fenómenos e modalidade de pesquisa associadas, tentaremos apresentar as características mais importantes de uma pesquisa de espacialidade do corpo e de corporealidade do espaço segundo três áreas complementares: poder, representações e práticas. O que defendemos neste livro é uma centralidade maior do corpo nas geografias que fazemos, apreciando o poder, as representações e as práticas do corpo no emaranhado das modernas espacialidades. Poder São inúmeros os exemplos de debates epistemológicos e tomadas de posição intelectuais e políticas em redor das questões do corpo que se tornaram disponíveis no seio das ciências humanas sobretudo a partir do anos setenta; os estudos das relações entre corpo, espaço e poder não são exclusivos da disciplina da Geografia, razão que esteve, de resto, na concepção deste mesmo livro, em que pretendemos reunir vozes oriundas de diversas áreas de investigação, geográfica, arqueológica, literária, sociológica. Como é natural, a Geografia não desenvolveu por si mesma a gama variada de teorias sociais, com origens muito diversificadas, a que hoje faz recorrentemente uso, embora o seu contributo não tenha sido despiciendo no seu enriquecimento dialéctico. Não seria ajustado a uma introdução de uma reunião de textos que versam o tema comum do corpo e do espaço, explorar minuciosamente as diversas fontes intelectuais e políticas de estudos sobre as relações entre o poder e o corpo. Ainda assim cremos que é importante referir alguns nomes que contribuíram decisivamente para a constituição de uma problemática do corpo nas ciências sociais, genericamente e, especialmente, na importância decisiva que vieram a ter para estudos de Geografia e corpo do ponto de 12 Introdução vista da organização do poder e das políticas de exclusão e violência a elas associadas. Nesse sentido, referiremos alguns nomes que são ainda assim perfeitamente incontornáveis e cuja omissão impediria de mais bem compreender as dinâmicas recentes da disciplina da Geografia. Fá-lo-emos seguindo uma ordem de apresentação que se poderia chamar de ‘histórica’, porquanto contempla a eclosão sequencial da sua expressão como forma de contestação e afirmação de políticas activas de identidade: classe, raça, género e sexualidade, contextos que, como referiremos mais à frente, usaremos também para a definição dos contributos específicos da geografia do poder e do corpo, assim como para a apresentação de algumas passagens dos próprios artigos deste livro. Os estudos das relações entre espaço, corpo e poder não se resumem à disciplina da Geografia. Esperamos que este livro ajude a demonstrar que tais estudos assumem as mais diversas formas de expressão epistemológica e metodológica, detendo características comuns que permitem ser associados numa categoria de pesquisa com algum grau de similaridade. Cremos que a principal marca de uma relação espacializada da relação entre corpo e poder é certamente a identificação (e contestação) dos ‘dispositivos’ (e usamos esta palavra com o sentido que lhe dá Foucault e que remete para o carácter claramente instrumental dessa relação) postos em prática no sentido de fazer cumprir regras implícitas, explícitas e violentas de inclusão, exclusão ou reclusão do corpo individual e concretamente considerado. A reteorização do corpo é relativamente recente na história da Geografia, em consonância com o que sucedeu com inúmeras disciplinas das ciências sociais. Até à década de setenta, a presença do corpo, da sexualidade, do género, reduzia-se a análises de estruturas demográficas em que as características descritoras de variáveis biologistas eram tomadas em consideração numa qualificação mais vasta da sociedade encarada pelo seu aspecto exterior. Este ‘instrumentalismo’ devia muito ao contexto epistemológico geral positivista e humanista em que a disciplina se inseriu desde a sua origem, e apenas viria a conhecer uma metamorfose radical com as transformações sociais que acompanharam a sociedade ocidental a partir dos 13 Geografias do Corpo finais dos anos sessenta (Brito-Henriques, neste livro). A abordagem do corpo como elemento activo de identificação, opressão e contestação social ficou a dever muito aos trabalhos de Foucault sobre a história da modernidade, e ao conceito associado de ‘poder sobre a vida’ que o autor tentou recolher de vários exemplos historicamente concretos e geograficamente situados. Este ‘poder sobre a vida’, que consiste num conjunto de dispositivos e técnicas com o objectivo de obter a subjugação do corpo individual e do conjunto da população expressa-se espacialmente em redutos de exclusão mais ou menos opressiva e violenta, sustentada discursivamente como a representação do próprio funcionamento natural da comunidade (Philo, neste livro). Neste sentido, Foucault está especialmente interessado em designar e explicitar as qualidades morais e políticas de um poder assim estabelecido e o modo como tal processo resulta na criação concreta de individualidade, subjectividade e corporealidade, domínios que em muitos autores viriam a ser considerados indispensáveis em estudos interseccionais de raça, género e sexualidade. A produção de subjectividade assim estabelecida seria feita primordialmente por redes de intervenção mais ou menos explícita por parte dos centros de poder, e especialmente o Estado, mas tornando-se eficientemente presente em espaços de alienção da individualidade corpórea e de incarnação da própria assimetria das relações de poder – é justamente este o poder ‘geográfico’ das propostas foucaultianas que não deixará de ser aproveitado fertilmente em estudos da disciplina da Geografia, a que faremos referência um pouco mais à frente. A concepção foucaultiana de espaços fácticos e discursivos de exercício de poder veio a conhecer um enorme sucesso na disciplina da Geografia, dando origem a tradições de pesquisa variadas, estando presente em todas as propostas intelectuais e políticas críticas como o feminismo, neo-marxismo ou pós-colonialismo. Uma vez que se fará referência às dimensões da raça, género e sexualidade, bastará talvez, neste momento, referir aquelas que mais directamente dizem respeito à relação opressiva do Estado e do discurso dominante com alguns segmentos que compõem o todo social. A incorporação dos pressupostos de teorias localistas-discursivas pode solver-se nas manifestações de ‘copresença’ que induzem e estruturam relações de 14 Introdução poder e nas quais, por exemplo, a time-geography, desenvolvida por Hägerstrand, mau grado algumas dúvidas pós-estrutralistas a posteriori, parece enunciar a primeira tentativa endógena da Geografia. Em todo o caso, a noção de que a biografia espacial de um indivíduo é estruturada (reprimida) pela copresença dos diversos actores sociais (e a diversas escalas) com que interage não deve permitir que se pense (e essa foi talvez uma das críticas mais prementes ao esquematismo da fase inicial da escola de Lund) que existe uma concordância absoluta entre os limites físicos de um espaço e os contornos sociais de um ‘locale’ – a este respeito o próprio Foucault deixou claro que o efeito ‘capilar’ da organização do poder lhe atribuía uma permeabilidade à qual nenhum limite físico podia eficientemente opor-se. Assim, podemos ver na Geografia uma multiplicidade de estudos que tomam em consideração o poder regulador do espaço na formação de subjectividades concretas e corporealizadas e em que tomam especial relevo os estudos que contemplam fracções do todo social que estão especialmente dependentes das relações assimétricas do poder. A discriminação pela idade levou ao reconhecimento de um domínio tradicionalmente invisibilizado na prática geográfica que é o reconhecimento de lugares e espacialidades de discriminação, institucionalização e ocultação dos elementos mais idosos das comunidades, e o modo como os espaços público e privado são especial e dominantemente ‘do adulto’. Esta mesma característica permite reconhecer um domínio análogo da prática geográfica que diz respeito às crianças e adolescentes. Já presente na expedição de Bunge aos bairros desfavorecidos de Detroit, este é um tema que tem vindo a ganhar um peso crescente nos estudos de Geografia humana, que cada vez mais reconhece a produção pré-adulta de espaços de resistência, de contestação ou simplesmente alternativos. Finalmente, tem vindo a tomar um peso crescente nos estudos de ‘poder sobre a vida’ aqueles que se debruçam sobre as pessoas com deficiência, parte da comunidade em que mais se fazem sentir os processos de discriminação espacial; neste contexto, de resto como também acontece em alguns estudos sobre a vida em estabelecimentos prisionais (Philo, neste livro), a tendência epistemológica tem sido a de fazer substituir os modelos ‘instrumentalistas’ (médicos e 15 Geografias do Corpo legais), que caracterizam um fenómeno como algo puramente ‘funcional’ e mensurável, por uma concepção ‘social’ e ‘cultural’ que exige a presença discursiva dos dois pólos da relação de poder assim mantida – neste sentido, qualquer estudo das espacialidades associadas à ideia de deficiência remete não apenas para a vivência dos actores sociais portadores de limitações de mobilidade ou sociabilidade mas também para as regras públicas de definição dessa mesma limitação. A fusão dos dois pontos de vista tem vindo a dar origem a propostas que se enquadram já nos limites do activismo académico que assim se associam a políticas de identidade com vista não apenas à reabilitação médica (ou legal) dos indivíduos mas também à instabilização dos parâmetros de aptinormatividade. A representação do corpo é um dos temas centrais da teoria saidiana de denúncia e exposição crítica do orientalismo, ou seja a representação estereotipada do Oriente na cultural ocidental. A atribuição de características binariamente opostas entre os dois pólos desta relação, levou Said a reconhecer que o Oriente é apresentado e representado como um símile de femininidade, dócil, erotizado, violável, aos olhos de um Ocidente que a si mesmo se representa como masculino, dominador, violento. A teoria orientalista e toda a gama de procedimentos de pesquisa dela derivados tiveram um enorme sucesso na Geografia e a abordagem pós-colonial culturalista assim definida veio mesmo a tornar-se um dos domínios de investigação mais importantes das duas últimas décadas,3 embora tenha vindo a ser crescentemente posto em causa por justamente favorecer a replicação epistemológica do próprio fenómeno que pretende expor e denunciar. Mais radicais são as propostas em torno da abordagem psicanalítica levadas a cabo por Frantz Fanon que vieram a conhecer um sucesso mais duradouro que as de Said nos espaços que lutaram pela independência política e económica de territórios previamente colonizados. Não estando isento de críticas por alguns sectores epistemológicos, nomeadamente pela ‘queer theory’ que entrelê nos escritos de Fanon alguns traços de homofobia e heterosexismo, ainda assim é inegável a importância deste autor no contexto da afirmação dos movimentos de política identitária pós-colonial, ou a eles associados por parte de minorias migrantes em países ocidentais. Não se 16 Introdução pode deixar de referir, contudo, que em muitas situações pós-coloniais mais consolidadas parece cada vez mais privilegiar-se modalidades de investigação que pretendem visibilizar as comunidades concretas de que partem (cujo carácter híbrido é cada vez mais exibido como identidade cultural) e assim fugir à oposição estereotipada entre o agressor colonial e o resistente colonizado. Sendo a Geografia uma ciência historicamente associada, e com óbvias implicações funcionais, com a instalação e exploração colonial do mundo não-ocidental, não é de admirar a enorme quantidade de trabalhos que a crítica pós-colonial favoreceu no seio da disciplina. No contexto do pós-estruturalismo e da teoria cultural saidiana, é dada especial atenção às representações racializadas do encontro colonial e ao modo como elas estruturaram a identidade metropolitana; neste contexto não pode mesmo deixar de referir-se a ‘antecipação’ epistemológica em que consistiu o ‘luso-tropicalismo’, ao erigir o carácter híbrido como uma (geo)política de identificação cultural (porém, não deve esquecer-se que esta era uma identidade baseada numa relação assimétrica do poder, em que o lado imperial e masculino daquele encontro era especialmente favorecido). Mais especificamente, a Geografia não deixou de fazer referência aos dispositivos espaciais de discriminação racial, entre os quais a experiência do ‘apartheid’ na África do Sul foi a mais ilustrativamente reconhecida e politicamente valorizada; posteriormente o mesmo tipo de estudos evoluíram para análise de espacialidades, em que as relações de ‘raça’/etnicidade sustentam situações particularmente tensas ,como no Médio Oriente,ou justificam propósitos de limpeza étnica como sucederia na guerra da antiga Jugoslávia. Do ponto de vista do encontro pós-colonial em contextos do mundo ocidental, a Geografia inclui cada vez mais estudos de política identitária das minorias étnicas nas grandes cidades do mundo ocidental e, sobretudo, numa perspectiva ‘interseccionista’, exibir e denunciar o modo como a representação geopolítica da alteridade tem vindo a favorecer medidas de crescente repressão por parte dos estados, sendo a côr da pele e a suposta pertença étnica um factor relevante da sua aplicação. O corpo sempre foi um tema central na tradição dos estudos geográficos de género, especialmente os oriundos da tradição dos 17 Geografias do Corpo estudos feministas, tradição esta que desde o início desenvolveu especiais ligações com a teoria psicanalítica e tentou integrar o papel da identidade ‘feminina’ (entendida também e fulcralmente como política de corpo e de sexualidade)4 na definição das relações sociais. Neste contexto tomou particular relevo o estudo do regime patriarcal e masculinista de organização social e do papel especial que nele toma o corpo como lugar de identidade e prática, especialmente na configuração dos papéis atribuídos ao elemento dominante (masculino), dominado, (feminino) e ausente (infantil), associado intimamente a uma idêntica imposição heteronormativa. A atenção dos estudos feministas e a exibição da identidade de corpo e de género para o centro das procupações epistemológicas levou a que se desenvolvessem linhas de pesquisa directamente orientadas não apenas para a denúncia dos mecanismos de determinação do regime patriarcal e masculinista mas também para a natureza performativa e reiterativa das identidades de género, a anatomia dos mecanismos inconscientes de natureza ‘abjectiva’ que os sustentam, bem como a exibição e provocação do carácter instável das suas fronteiras, através de práticas de subversão e trangressão. A Geografia acompanhou e desenvolveu as linhas dominantes dos estudos de género que se foram desenvolvendo trandisciplinarmente.5 Assim, deu especial atenção ao modo patriarcal de produção, e às relações sociais e económicas que visam assegurar a sua reprodução, bem como as espacialidades directamente associadas com ela e que nela tomam um papel de primeira importância, nomeadamente a distinção geográfica sócio-cêntrica e sócio-periférica que a modernidade atribui aos papéis de género na divisão social do trabalho. Muito especialmente, dedicou muita da sua energia à pesquisa da estruturação espacial da violência masculina, nomeadamente através dos dispositivos físicos e simbólicos de reclusão ou oclusão da mulher em escalas que variam entre o bairro da cidade e lugares liminares até à esfera íntima da domesticidade. Finalmente, sempre privilegiou os estudos que procuravam determinar o poder de reprodução da estrutura patriarcal nos diversos níveis de organização social, desde o funcionamento do aparelho do estado às várias 18 Introdução instituições sociais e culturais promotoras da regulação de papéis sociais. Os estudos feministas são também responsáveis pela introdução da temática da sexualidade como tema central de investigação em ciências sociais e essa será também a via privilegiada por que chegarão à Geografia.6 Variando nos temas e metodologias, os estudos feministas sobre sexualidade contiveram sempre uma marca teórico-metodológica de nítida filiação psicanalítica, por um lado e, por outro, uma marca activista política e social acentuada, relacionada com a denúncia e exposição do regime patriarcal e maculinista na organização dos papéis e relações de género, especialmente na reprodução mútua das modalidades de exploração e violência social e sexual. Para além dos contributos centrais da teoria pós-estruturalista e feminista, as abordagens da sexualidade e do corpo têm vindo recentemente a ser objecto directo de várias teorias não-representacionais e performativistas, entre as quais se destaca a ‘queer theory’.7 Inicialmente originária do activismo das minorias sexuais rapidamente se generalizou a uma epistemologia duplamente baseada no papel central da sexualidade na identidade social e formação da subjectividade, por um lado, e por outro no carácter desafiador de normas e limites na atribuição da subjectividade. A Geografia desenvolveu diversas linhas de estudo que tomam em consideração os efeitos recíprocos do espaço e sexualidade. Desde logo, em consonância com o trabalho seminal de Castells,8 tentou determinar as expressões espaciais dos modos de vida e cultura popular exibidas por comunidades de orientação homossexual, à escala global (turismo) e urbana (residência e gentrification). Também, alguns estudos dedicar-se-iam à exposição e denúncia do carácter implícita ou explícitamente heteronormativo da vida quotidiana e da cultura popular, no seio do qual as expressões de dissidência podem ser alvo de uma gama variada de acções, desde a simples marginalização à exuberante e violenta opressão.9 Historicamente relacionadas com os anteriores, uma série de estudos de geografia e sexualidade debruçar-se-iam sobre a difusão de doenças sexualmente transmissíveis, especialmente a SIDA, se bem que muitos dos estudos levados a cabo sobre a difusão da doença tenha sido alvo 19 Geografias do Corpo igualmente de estudos tradicionais, de construção e teste de modelos de difusão espacial. O activismo associado a muitos dos estudos de geografia e sexualidade podem ainda ser vistos em dois géneros de estudos que nos úlitmos anos se vêm tornando dominantes no que concerne aos temas de sexualidade e geografia: as expressões complementares das geografias ‘queer’, e dos modos de vida associados a uma concepção performativa e propositadamente instabilizada da identidade de género e de sexualidade, e, por outro lado, o ordenamento moral das paisagens sexualmente normativas do espaço associados à disrupção cultural das práticas associadas (Hoff, neste livro). Finalmente, e tal como sucede nas outras instâncias de classe, raça e género, também a Geografia como sistema de prdução científica tem vindo reflexivamente a questionar os evntuais dispositivos que obstam, do ponto de vista da sexualidade, a uma plena equidade de tratamento dos geógrafos em termos de carreiras de investigação e temas de publicação.10 Representações O modo como o corpo, ou os diferentes corpos são representados diz muito sobre a sociedade em que se vive (Mora, neste livro). A representação cultural do corpo pode ser perspectivada de diversas formas. Se atendermos à representação do corpo humano, verificamos, por exemplo, que a cultura ocidental moderna estabeleceu uma história das representações corporais que remonta à Antiguidade Clássica, à arte minóica e à escultórica greco-romana. Encontramos, não obstante, diversas ramificações que ligam a representação visual do corpo às culturas do Neolítico e mesmo do Paleolítico, deslocando cronologias apriorísticas de linearização do corpo como representação. Associada ao desenvolvimento das técnicas e tecnologias de representação, a representação do corpo encontrou-se desde muito cedo ligada a valores espirituais e religiosos que indivíduos e grupos desejaram deixar gravados em variados materiais. A variação destas representações no espaço é sobejamente explorada pela História da Arte, Estética e Filosofia, entre outros campos do saber que têm vindo progressivamente a focar a atenção nas relações entre corpo e representação (Lima, neste livro). 20 Introdução Um olhar diacrónico sobre as representações do corpo na cultura ocidental mostra que, entre experiências e variações iconográficas, a tendência para a dessacralização do corpo é apanágio do período moderno. A fronteira entre o sagrado e o profano desvanece e a formação social das representações é alterada (a contrario, para a Idade Média, cf. Gilchrist, neste livro). A conexão entre a representação do corpo e a morte é desmitificada e a ênfase na celebração dos ‘corpos das elites’ é transferida para a celebração de ‘corpos ordinários’, operando no acto quotidiano. A apoteose da imagética corporal, durante o século XX, aconteceu num momento muito concreto em que a cultura visual tomou conta dos mecanismos de organização da experiência, um momento em que Heidegger anuncia a transformação do próprio corpo da terra em retrato. Diversos autores debruçaram-se sobre este fenómeno, desde Merleau-Ponty a Roland Barthes, mas a problemática da representação do corpo extravasou largamente a componente visual colocando a literatura e a ciência como médiuns cruciais a operar no moderno processo de construção de imaginários corporais. Como poderemos ignorar o tratamento do corpo por Anaïs Nin, Marguerite Duras ou Franz Fanon, e, de outro modo, como poderemos deixar de atender ao trabalho antropológico de inventariação, classificação e hierarquização dos corpos e respectivas representações? Impossível, se abraçamos a tarefa crítica de recolecção dos retratos de que somos herdeiros. Os estudos canónicos de Aby Warburg em torno do movimento das imagens no tempo, ao serem revistos, proporcionam um valoroso contributo para a compreensão do modo como a arte da representação se encontra intrinsecamente implicada com a expressão das emoções codificadas numa peripatética da paixão e do desejo que as figuras enunciam. Ao desvelar o movimento dos corpos no tempo, a iconologia possibilita a compreensão do acto de retratar como um acto situado num tempo e espaço específicos dependente do autor ou autora e da sociedade que os produziu. Porém, o acto de retratar condensa em si mesmo uma miríade de associações culturais que se organiza em camadas para a produção de uma representação. Muito frequentemente, estas fazem ressonância a textos e discursos não oficiais operando subliminarmente nas fissuras de significação. 21 Geografias do Corpo Cada retrato e cada discurso sobre o corpo é sempre resultado da ideologia e política reinantes, ora celebrando-as ora contestando-as. Muitas vezes, só a interpretação atenta das fissuras de significação possibilita a emancipação do corpo ou corpos representados dado o modo como a figuração tem subjacente complexos processos de codificação cultural. Integrando sistemas simbólicos, a figuração dos corpos tem servido como modo de legitimar políticas hegemónicas de representação dentro das quais corpo humano e corpo da terra são apresentados como um todo orgânico. Neste percurso, a essencialização dos corpos e da paisagem por via das representações funcionou como processo de ‘naturalização’ da diferença. A indexação de tipos fisionómicos a paisagens ‘naturais’ configura um dos mais graves mal-entendidos da modernidade, tendo aberto caminho para a cristalização no espaço e no tempo dos processos de formação de subjectividade. Encapsulados em sistemas de signos geográficos, tais processos encontram-se ainda enredados na falácia do Eu/Outro forjados pelos regimes nacionalistas e imperiais. Uma estética de representação está, assim, associada a uma ética de representação. Ao sermos confrontados com a representação de um corpo o nosso sistema emocional e afectivo é activado e, paralelamente, somos transportados para uma geografia ‘concreta’. Ao não ser inocente, a arte de cenarização dos corpos operou até um limite em que o próprio corpo já dispensa o ‘cenário’ por remeter para um imaginário geográfico de que somos prisioneiros. Encarada como uma potentíssima arte cenográfica, a ciência geográfica moderna escreveu mundos e inscreveu corpos nos mundos, ditando as relações entre eles (Azevedo, neste livro). A leitura destas geografias foi-nos cautelosa e perseverantemente ensinada por forma a que cada um de nós pudesse encontrar (?) o ‘seu lugar’ num tão ardiloso sistema de signos. Deste modo, foramse configurando os corpos, modelados, torcidos, ocultados, obliterados, disciplinados, os corpos da Lei no espaço da Razão. Práticas Se é certo que não podemos aqui traçar uma genealogia completa das práticas do corpo na Geografia, queremos pelo menos esboçar 22 Introdução uma trajectória de preocupações que conta já algumas décadas, endereçando as formas como as práticas do corpo se articulam com o espaço, o produzem e o constituem. A corrente de pensamento da time-geography, desenvolvida na Geografia sobretudo por Torsten Hägerstrand, incorporava a ideia de que os pulsares da cidade, os fluxos das pessoas em rede, os limites do tempo e movimento, constroem ritmos corporizados que se deviam tentar cartografar, ultrapassando o limite das duas dimensões estáticas dos mapas convencionais. Se é certo que a nossa natureza corpórea nos faz vivenciar o espaço a partir de diferentes lugares, a vontade de Hägerstrand em ‘transcender o mapa’ resultou em larga medida numa abstracção, representação e desmaterialização dos movimentos corpóreos no tempo, e numa geografia de ‘meras’ trajectórias. Se o facto das linhas nos diagramas não estremecerem não significava a ausência e consideração da importância da violência na teoria como um todo,11 a sua visão da corporalidade do sujeito tinha no entanto uma relação mais forte com a construção de um sistema de representação objectivo e neutro, do que com o confronto da subjectividade das práticas corpóreas. Enquanto a time-geography frequentemente se confinou a lidar com o mensurável e o visível,12 a rhythmanalyse de Lefebvre sugeriu actividade, e tentou dinamizar e abrir as representações da cidade aos conhecimentos itinerantes e tácteis dos seus participantes. Para Lefebvre,13 no contexto da sua trialéctica espacial, o espaço vivido pertence à carne, às práticas espaciais, aos gestos corporais, à actividade sensual. A diferença entre este espaço vivido e o abstracto reside precisamente em que este último se tenta dissociar das práticas, dos ritmos e texturas do corpo, mesmo quando não há uma oposição firme entre ambos. Em todo o caso, esta trialéctica perde a sua ressonância política e analítica quando tratada meramente em abstracto, pois necessita de ser corporizada com os tecidos da vida, com as relações da vida real e com eventos. Mais do que qualquer outro teórico social contemporâneo, Michel Foucault dirigiu a sua atenção para o corpo, estudando-o como o alvo da operação de formas modernas de poder, entendidas como partes integrantes das micro-práticas do quotidiano. Os estudos de 23 Geografias do Corpo Foucault sobre os regimes da prisão (ver Philo neste livro), do asilo e da clínica, bem como a história da sexualidade, foram fundamentais para a compreensão do corpo como um objecto de processos de disciplina e normalização. Através da sua obra, ainda que centrado sobretudo nas práticas discursivas, o corpo passou a ser entendido como uma metáfora para a discussão crítica que liga poder, conhecimento, sexualidade e subjectividade (ver Pimenta neste livro). Numa visão em que o corpo humano não é percebido como uma entidade separada do resto do mundo, a sua ontologia reside justamente na forma como co-evolve com outros objectos, incorporandoos em diferentes partes do corpo biológico. Esta é uma perspectiva significativamente diferente da defendida por várias feministas, na qual se equaciona a carne com uma espécie de distinção primordial. Assim, se por um lado é ingénuo ignorar as características específicas da carne (ver Haraway14 e Sarmento neste livro), é também necessário ultrapassar a noção construtivista de que o corpo é simplesmente uma superfície de inscrições, frequentemente reduzido a uma ‘imagem’. Consequentemente, o espaço do corpo pode ser entendido como tendo múltiplas camadas, cada uma das quais contendo as relações e práticas do corpo com objectos e outros espaços. No contexto de um ‘performance turn’ nas ciências sociais, a recente reorientação da geografia cultural em direcção às práticas, folgando as amarras do comprometimento às representações, tem constituído um exercício entusiasmante que tem implicações profundas na forma como os geógrafos vêem, percebem e estudam o corpo. Há como que um regresso a vários ‘outros’ ‘scapes’ sensoriais do palato, da audição e do olfacto, relativizando o avassalador império da visão (ver Azevedo neste livro). Deste modo, um dos mais interessantes desenvolvimentos da Geografia humana na última década prende-se com o avanço da ‘teoria não representacional’ ou ‘teoria das práticas’,15 que, fortemente inspirada em Michel de Certeau e Walter Benjamin, tenta compreender os nossos ‘mais do que humanos’ e ‘mais do que textuais’ mundos multi-sensoriais.16 O ‘representacional’ e a epistemologia construcionista, bem definidos pela escola da geografia cultural da paisagem, têm vindo assim a ser criticados com base numa suposta fixação, enquadramento e mumi- 24 Introdução ficação de tudo o que agora se defende que deve transparecer como bem vivo. Para Thrift,17 é a acção corporizada, com o seu carácter incompleto e em constante transformação, que oferece a mais poderosa fonte para uma poética wittgensteiniana das práticas. Esta inflexão liga-se fortemente ao movimento das ciências sociais que se foram inspirar nas artes performativas e na dança, nos estudos de teatro, trazendo não só a ideia de que os imaginários sociais não podem ser contidos dentro de explicações científicas rígidas, mas também uma nova abordagem do corpo em que, no contexto de um ‘affective turn’, se procura um equilíbrio entre este desenvolvimento e a permanência de um certo humanismo. Ainda que seja impraticável condensar aqui as ramificações da ‘teoria não representacional’ na Geografia, no contexto da Geografia cultural e da Geografia do corpo em particular, é importante destacar o papel de uma certa inflexão metafórica e substancial de ‘texto’, ‘discurso’ e ‘representação’, para ‘prática’ e ‘performance’, e para as micro-geografias do quotidiano. O argumento que defende um registo de afastamento da desconstrução das representações (note-se no entanto que a teoria não é anti-representacional), e uma exploração próxima do não-representacional baseia-se no facto de o ‘texto’ valorizar o escrito e falado em detrimento das práticas e experiências multissensoriais.18 A metáfora do performativo, hoje uma das mais persistentes nas ciências sociais, recupera e robustece análises fenomenológicas, e permite uma forma de perceber o significado não como residindo em algo, mas como gerado através de processos quotidianos.19 No entanto, a entrada da performatividade na geografia e do retorno, pelo menos em parte, da fenomenologia, pode implicar um possível (e pouco desejável) afastamento da economia política do género.20 Esta inflexão inspirou-se mais no trabalho feminista sobre o corpo, e sobretudo nas teorias da performance do género e da sexualidade de Judith Butler,21 do que em trabalhos sobre estudos da dança (a dança usada extensivamente por Thrift como constituinte de identidade e identificação social através da performance). O regresso ao corpo e às práticas do corpo aparece assim em duas direcções. Por um lado há uma tentativa de compreensão e desnatu- 25 Geografias do Corpo ralização da diferenciação social de corpos através de práticas. Por outro lado há um ensaio da noção mais genérica e celebradora da natureza corpórea da existência humana. Os artigos deste livro Ana Francisca de Azevedo cria a ideia de desgeografização do corpo como mobile através do qual emergem novas políticas de lugar. Enfatizando a enunciação de práticas generativas do espaço assentes sobre quadros relacionais alternativos, este capítulo convoca vozes diferenciais como as de Donna Haraway, Bruno Latour ou Irit Rogoff para a construção de um texto que rejeita quadros analíticos fundados sobre o binómio primeiro espaço/segundo espaço, ou natureza/cultura. Falando desde o seu próprio corpo, entendido como superfície de resistência e negociação, a autora declina uma visão da terra ’naturalizada’ pelos sistemas de signos geográficos que sustentam as modernas espacialidades, propondo a ruptura com uma geografia do sujeito único. Eduardo Brito-Henriques apresenta uma reflexão sobre as geografias particulares que as múltiplas possibilidades do corpo trans ou pós-humano geram nas sociedades contemporâneas. Apoiando-se no conceito de utopianismo na hipermodernidade, o autor percorre as ideias do corpo como objecto de consumo, das novas práticas biomédicas e biotecnológicas sobre corpos prontos a esculpir, e do papel da intromissão tecnológica no esbater e fragmentar da ontologia e das fronteiras entre corpos. Roberta Gilchrist, uma das primeiras investigadoras a desenvolver uma abordagem feminsta em estudos de Arqueologia, descreve e interpreta documentos arqueológicos e históricos com o intuito de penetrar o mundo da afectividade das religiosas da Idade Média; uns e outros parecem apontar para a existência de um verdadeiro mundo de afectos das mulheres em situações de clausura através da personalização e transposição interior do erotismo. Resgatando-nos para o mundo das geografias fílmicas, Ben Hoff aborda a complexidade de estéticas alternativas postas em jogo por filmes como ‘art house’, analisando o caso específico da obra Sexual Dependency de Rodrigo Bellott. Aquilo de que se trata é pois de 26 Introdução indagar o grau de eficiência de novas técnicas fílmicas usadas para a aproximação a problemáticas específicas como o corpo e a sexualidade, manifestadas de modo diferentes em diferentes culturas. Mas o grau de problematização proposto pelo autor inclui a relação entre as técnicas fílmicas e as técnicas de tradução, na medida em que as questões de interpretação e compreensão das temáticas tratadas encontram-se em dependência directa com as culturas das audiências e a cultura ‘original’ de cada filme. Em “Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon Palace”, Joana Lima analisa o plano das representações espaciais propostas por Paul Auster, argumentando que perceber o corpo e a linguagem em Moon Palace implica, necessariamente, pensar a Viagem e o Lugar. A autora sustenta que as viagens físicas protagonizadas por Marco Stanley Fogg e Thomas Effing, na geografia urbana e no deserto, e as suas experiências nas cavernas de Central Park e do Utah traduzem momentos de exploração individual, trajectos nas coordenadas da história e do mito, percursos pela escrita, procura de sentidos, ou seja, obrigam ao reconhecimento da condição fragmentária da identidade, propiciam reflexões sobre a matriz mítica e cultural na qual assenta o pensamento norte-americano, olham e ensaiam o próprio processo da escrita. Arriscando avançar com um conjunto de ‘impressões pessoais’ associadas aos modos recorrentes de expressão territorial do conhecimento científico, Teresa Mora revela-nos um percurso de resistência aos ‘mandamentos’ que regulam a cultura científica. Juntando-se a outras vozes, como a de Judith Schlanger, que entendem a linguagem do conhecimento como uma linguagem inerentemente espacial, o vasto caminho abraçado pela autora vai desde uma profunda análise da geografia da razão kantiana a uma contundente aproximação à utopia social de Gabriel Foigny, com o propósito de aprofundamento de uma problemática específica; a da articulação do corpo com a razão. Chris Philo apresenta um texto em que analisa a importância para a Geografia humana, e para a Geografia da população em particular, do que Foucault designa por ‘arte das distribuições’. Começando por analisar os textos do sociólogo Krantowitz, o autor debruça- 27 Geografias do Corpo se no trabalho de Foucault, e em específico nas suas proposições biológicas da vida e da morte (‘corpos cheios de vitalidade, tristemente decadentes ou prematuramente levados a um termo’), e na exposição crítica das múltiplas formas como estas proposições têm sido constrangidamente manipuladas por ‘soberanos’ com o poder de deixar viver ou fazer morrer. Philo defende que é no escavar as minúcias das actuais prisões e instituições similares no passado e presente, que os geógrafos devem analisar as marcas sobre corpos acumulados em população através do espaço, enquanto exercícios de geografia micro-populacional aplicada. José Ramiro Pimenta defende que pode detectar-se uma configuração opositiva entre Said e Foucault no que diz respeito à prática corporeal do tratamento do Tempo nas respectivas teorias históricas; se a questão da exibição da sexualidade se revelou central na determinação dos pressupostos existenciais da teoria foucaultiana, vemos igualmente que em Said um ponto recorrente da sua argumentação passa pela des-sensualização ‘activa’ do estereótipo do ‘oriental’, em ambos os casos se pretendendo criar um contexto eficiente de afirmação da própria individualidade intelectual e política. João Sarmento apresenta um artigo bipartido: numa primeira parte centra a discussão na espacialidade e performance do seu próprio corpo numa viagem forçada pela América do Norte; na segunda parte explora a diferença, inquietação e marginalidade que a cor da pele provoca na Lisboa pós-colonial, partindo de um jogo de futebol amigável. A ideia principal que o autor tenta destacar é a de que ao mesmo tempo que o corpo tem uma geografia histórica a partir da qual se pode tentar compreender a produção do poder, do território e da desigualdade, a nossa própria tentativa de cartografar estas mesmas geografias é corporizada e inescapável. Notas 1 A. Damásio (2000). 2 G. Valentine (2007). 3 Pimenta, J. R., J. Sarmento e A. F. Azevedo (2007). 4 J. Butler (1993). 5 H. Nast (1998). 6 D. Bell e G. Valentine (1995). 7 A. Jagose (1996). 8 M. Castells (1983). 9 R. Phillips (2007). 10 D. Bell (1995). 11 M. Gren (2001). 12 M. Crang (2001). 13 H. Lefebvre (1991). 14 D. Haraway (1991). 15 N. Thrift (2008). 16 H. Lorimer (2005: 83). 28 Introdução N. Thrift (1997, 2008). 18 C. Nash (2000). (2000). 21 J. Butler (1990, 1993). 17 19 N. Thrift (2008). 20 C. Nash Referências bibliográficas Azevedo, A. F. 2008. A Ideia de Paisagem. Porto: Figueirinhas. Bell, D. 1995. [Screw]ING GEOGRAPHY. 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Embora (ou talvez porque) tradicionalmente definida como ciência que se preocupa com as relações entre o Ser Humano e o Meio Ambiente, a ciência geográfica tem descurado sistematicamente a problemática do corpo e do sujeito. Trago-a aqui e agora, por me parecer absolutamente crucial para o movimento actual de recolocação do âmbito, práticas, conceitos e problemáticas geográficas. Pensar o espaço através do corpo, por mais óbvio que seja, foi aquilo que a ciência geográfica não fez, pelo menos nos últimos dois séculos. Para ser entendida como ciência, a moderna ciência geográfica dispensou o corpo, ou, posto de outro modo, aproveitou aquilo que dele julgou interessar; essencialmente a mente e a visão (o instrumento da Razão e o instrumento usado para confirmação da Razão). Tal como aconteceu no conjunto da ciência moderna, o desenvolvimento de toda uma parafernália de próteses da visão para a legitimação da Razão culminou com uma crise das representações a que hoje não sabemos bem o que fazer. Tal acontece também com uma metageografia para a qual se esgotaram conceitos como Norte ou Sul Global. Tal acontece, de igual modo, com o nosso corpo, Geografias do Corpo entre projectos de bioestética e rotas de comercialização. Não por acaso, a crise das representações ser frequentemente entendida (e designada) como crise do sujeito. Entendido como uma das mais poderosas representações produzidas na modernidade pela cultura ocidental, o mapa político mundial ‘naturaliza’ esta crise. O mapa da diversidade tornou-se (se alguma vez terá sido algo mais) o mapa da desigualdade e esta construção panorâmica reflecte-se antes de mais no nosso corpo é, por si mesma, uma geografia claramente incarnada. Como estrutura epistémica, a Geografia foi responsável pela organização de uma ordem de conhecimento estabelecida nos centros de poder, os mundos metropolitanos imperiais. Funcionando paralelamente como ‘teoria da cognição e como sistema de classificação, como modo de localização e como arena de histórias colectivas nacionais, culturais, linguísticas e topográficas’,1 a Geografia é responsável pela produção de um espaço homogéneo que se tornou ordem de conhecimento através de medidas universais de indexação da terra. A teorização crítica de um corpus de conhecimento geográfico, dentro do qual a ideia de paisagem detém importância crucial, remete para o repensar dos modos através dos quais se ‘naturalizaram’ questões de posicionalidade, de poder e de autoridade para nomear ou para submeter ‘outros’ a categorias identitárias hegemónicas. Inúmeros autores têm vindo a dedicar-se à revisão do conhecimento disponibilizado pela Geografia por forma a trazer à superfície as estruturas de poder que se escondem sob os discursos científicos, e que afectam as relações entre os sujeitos e os lugares. Perspectivadas neste quadro, noções como paisagem, lugar e espaço constituem exemplares riquíssimos de aproximação ao pensamento moderno, dentro de um horizonte revisionista. Através delas, operou-se a espacialização de relações sociais e de convenções epistemológicas, pela acção de narrativas sócio-culturais geograficamente informadas. Ao longo deste capítulo, tentarei abordar este conjunto de problemáticas, apresentando algumas das mais relevantes abordagens que têm contribuído para a recolocação do corpo na actividade de construção científica. 32 Desgeografização do corpo, uma política de lugar 1. Das relações entre espaço, visão e produção de um conhecimento descorporizado A análise das estruturas de subjectividade que informam a Geografia pode, em grande medida, ser efectuada pela desconstrução do modo como conceitos-chave em Geografia participam num processo activo de espacialização que se encontra associado às práticas de retratar e designar as propriedades físicas dos lugares. Neste sentido, o processo de espacialização geográfica desenvolveu-se pelo trabalho de estruturas de conhecimento e de imagens situadas circulando sob a ilusão de um ‘campo de transparência’.2 Este campo tem vindo a ser legitimado pelo trabalho conjunto da ciência, arte e tecnologia. Como forma de territorialização do conhecimento, o estabelecimento de campos disciplinares como o da Geografia permitiu a afirmação do domínio lógico-positivista e de um campo de representação estruturado em torno da moderna noção de espaço e da centralidade da visão. A centralidade da visão para a determinação empírica do mundo percebido, é discernível nos discursos filosóficos e científicos que asseguraram continuidade ao projecto ocidental do Humanismo. Integrando um modelo de subjectividade, a determinação de um campo de visão em que um ‘olho objectivo e inocente’3 assegura a afirmação de um observador não situado, foi legitimada pelos credos de verdade científica e pela posta em prática de um campo ‘neutro’ de percepção em torno do qual se organizaram o sujeito conhecedor e o objecto conhecido. Neste quadro, o espaço surge como uma superfície de representação em que se projectaram identidades de lugar e em que se articularam práticas culturais que usaram a imagética como forma de mobilização de discursos ideológicos comprometidos com a ilustração da sua própria legitimidade. Activando respostas estéticas e científicas, assim como éticas e emotivas, a moderna ideia de paisagem activou uma arena de negociação cultural das relações entre ser humano e território promovidas por um crescente conjunto de fragmentos representacionais (pictóricos e verbais, entre outros)4. Apesar da descontinuidade e da heterogeneidade das suas manifestações, tais geografias imaginativas vieram robustecer a superfície de visualização que mediava a relação entre 33 Geografias do Corpo sujeito e objecto, afirmando a convicção num espaço homogéneo e absoluto, a ilusão de um espaço transparente independente dos diferentes corpos e sujeitos. Como ‘aparato de investigação, verificação, vigilância e cognição que serviu de suporte às tradições de cientificidade ocidental pósiluminista e às tecnologias modernas’,5 a superfície de visualização que se produziu sob o efeito da ilusão de um espaço transparente e unitário integra as práticas espectatoriais responsáveis pela mediação entre o mundo material e as subjectividades psíquicas. Ao integrarem uma superfície de visualização, a linguagem e a prática geográficas recodificaram a paisagem como sistema de significação e como experiência, com base nessas mesmas práticas de observação. Entendidas como imagens credíveis do mundo físico ou como relíquias de lugares que pontuam um retrato pitoresco ou sublime do mundo,6 as representações espaciais puseram o observador em contacto com o território construído forjado pela acção de um imaginário geográfico dominante, um espaço cultural profundo que a viagem, o movimento e as tecnologias especializadas na produção da ilusão do real nutriram avidamente. Subjacente a este espaço, está o desejo de tomar posse implicado nas inúmeras estratégias de visualização e aparatos tecnológicos para reprodução de imagens. Corpo do território, corpo do sujeito e corpo do conhecimento viram-se unidos por uma peculiar construção de espaço, a qual opera sob o efeito mediador de uma superfície de visualização disposta como modo de aceder ‘com distância’ à experiência de lugar. Engendrada como modo de aceder à distância ao Outro desconhecido e não ocidental e paralelamente como modo de cristalizar a territorialização da mesmidade do Eu ocidental, uma superfície de observação em que se especializaram as mais diversas técnicas e tecnologias colocou a percepção visual como mecanismo central para se aceder à Verdade e à Razão. Mas, como se estruturou esta superfície de observação gerada pela cultura ocidental moderna? Como se interceptaram tecnologias da percepção e mecanismos de representação por forma a engendrar tão poderoso aparato epistémico? Quais as relações entre uma obsessão cultural pela ‘luz’ e pelo sentido de iluminação pela Razão e a construção de um espaço 34 Desgeografização do corpo, uma política de lugar abstracto cartesiano como elemento estruturante das modernas espacialidades? O regime de poder e conhecimento que se preparou com recurso às tecnologias como a câmara obscura, encontra-se em íntima ligação com a paixão setecentista pela matematização da natureza associada à prática de inventariar o território7. Isto terá levado a uma normalização do espaço transformando-o num plano abstracto, espaço em que as relações entre pontos permitiam identificar as posições relativas dos lugares e explorar novos modos de representação. Ao enfatizar o papel hegemónico da visão na cultura ocidental, Martin Jay8 salienta que ‘a chegada deste regime dominante foi preparada por uma constelação de inovações sociais, políticas, estéticas e técnicas no princípio da era moderna, que se combinaram para produzir o que em retrospectiva veio a chamar-se a racionalização do campo de visão’. O autor situa as origens do regime ocularcêntrico moderno na ambiguidade criativa da filosofia cartesiana, embora encontre antecedentes para esta tendência tanto nos períodos medievais como na Antiguidade Clássica. Ao perpetuar a hegemonia da visão (em detrimento dos outros sentidos), o código visual definido pelo humanismo renascentista situava a visão humana no centro dos sistemas de representação. Tratava-se portanto de desenvolver uma ideologia visual que respondesse aos postulados do Humanismo9. Esta ideologia visual associada à tradição ocidental centrada num ponto de vista privilegiado, é também explorada por Norman Denzin10 que sugere que por ser intensamente realista este código visual teve o efeito de substituir outros sistemas de conhecimento e representação. Criando uma presença fixa para o sujeito (observador), tal forma de perspectivar o mundo veio centrar a ‘verdade da experiência’ no aparelho ocular e tecnologias decorrentes, tornando-a o centro daquilo que se pretendia representar. Deste modo reproduziase, segundo Denzin,11 a ideologia do sujeito humanista, um sujeito que corporizava o culto renascentista do individual’. De acordo com estes autores, tal atitude terá dado lugar a um ‘olho descorporizado’, um olho espectatorial mais do que incarnado, ‘o olho não pestanejante de uma superfície fixa de contemplação’.12 A celebração da visão como sentido inaugural da percepção foi acompanhada nas artes 35 Geografias do Corpo por uma separação do figurativo da sua tarefa textual, por aquilo que Jay designa como a ‘desnarrativisação do ocular’. Este facto parece ter acarretado uma grande mudança no modo de ler o mundo como texto inteligível (o ‘livro da natureza’), passando este a ser encarado meramente como objecto observável na lógica de uma ordem visual dominante estabelecida pelos sistemas de racionalidade científica. Para James Duncan,13 funcionando como mecanismo de ‘naturalização’ das representações, todo este processo veio enfatizar a ênfase no visual e nos discursos da mimese, produzindo uma marginalização progressiva de outros modos de representação. A este propósito Jonathan Crary14 defende que a ‘posição assegurada ao sujeito no espaço vazio interior (da câmara obscura) era pré-condição para o conhecimento do mundo exterior’. Tal posição era legitimada pela distensão de um espaço isotrópico e por um ponto de vista ‘vantajoso’ que garantia o controlo da representação pelos grupos autorais dominantes. Este tipo de função autoral e jurídica, enfatiza Derek Gregory,15 assegurava a possibilidade de uma certo policiamento do visual relativamente ao funcionamento da ordem social, funcionando como meio de visualizar espacialmente os objectos e de estabelecer a correspondência entre mundo exterior e representação16. Donde Duncan17 insistir na importância da evolução das tecnologias da visão e da percepção, nomeadamente a perspectiva linear, a câmara lúcida e outros subterfúgios tecnológicos que visavam a replicação fiel da natureza, perspectivados como instrumentos cruciais para o desenvolvimento de uma tradição de objectivismo na cultura ocidental. Entendidas metaforicamente por Duncan como um ‘catálogo de documentos da razão’,18 as tropes de ilustrações produzidas com o auxílio destas tecnologias funcionavam como testemunhos rigorosos da estética moderna ocidental e das novas políticas de lugar subjacentes ao acto de retratar e catalogar o mundo. Entre elas, as representações de paisagem como forma de estruturação ideológica do território adquiriram papel crucial, tornando-se ‘expressão significativa de uma tentativa histórica de associar a imagem visual e o mundo material’.19 Implicando o aperfeiçoamento tecnológico e sensorial de um determinado ‘modo de ver’20 que veio a tornar- 36 Desgeografização do corpo, uma política de lugar se colectivo pela ‘naturalização’, a ideia de paisagem integrou o acto de visualizar o espaço e a relação com uma superfície de observação-contemplação. Como parte integrante de uma ideologia do Humanismo, esta nova relação entre o ser humano e o território tinha subjacente um conjunto de acções sociais e culturais que contribuíram para o projecto de representar o mundo numa superfície plana. Os modos de presença associados à concepção volumétrica de espaço proposta por autores como Lock, Newton, Descartes e Gassendi, parecem ter vindo legitimar esta ideologia, assim como a natureza do logocentrismo ocidental e dos mapas políticos que se foram definindo dentro das representações de um espaço universal. Neste contexto, a legitimação de um espaço uniforme e isotrópico pelo sistema de valores oitocentista teve como resultado a absorção do lugar pelo espaço como categoria analítica fundamental e como forma de inventariar o mundo redescoberto.21 A distensão de um espaço homogéneo e cartesiano estaria, então, profundamente associada àquilo que Gregory22 designa por apropriação visual do mundo característica da cultura ocidental, entendida pelo autor como uma máquina de representação (e apropriação) do real. Segundo Gregory,23 a evolução do regime ocularcêntrico da modernidade veio servir os poderes económico e político em consolidação, numa era em que os mecanismos imperialistas passaram da colonização territorial à colonização generalizada das representações. Neste sentido, a narrativização do espaço através dos cadernos de viagem e outras crónicas de lugar, assim como a esteticização da paisagem enfatizada pelas mais diversas técnicas de representação, afirmaram-se como dois centros performativos cruciais dessa ‘máquina’ propagadora do imaginário geográfico europeu sobretudo a partir do século XVIII. Profundamente codificada através das artes da paisagem, a experiência de lugar encontrou no espaço matemático da geometria euclidiana subterfúgio para a ‘naturalização’ do domínio do conhecido, bem como para a formação social que subjaz a ideia de paisagem como poderosa construção cultural. 24 Implicada com as ilusões de transparência que encontram nas regras da geometria e no ponto de vista descorporizado formas de 37 Geografias do Corpo tratar o espaço como objecto rigorosamente inteligível, a ideia de paisagem constituiu-se integrando a ‘naturalização’ de estruturas epistémicas e respectivas práticas significantes como domínios de uma visão totalizadora ou de uma meta-visão que operou, em grande medida, pela mobilização de um regime ocular em que se especializou a cultura ocidental moderna. Neste processo, a normalização do espaço pela sua transformação conceptual num plano abstracto, um plano geométrico constituído por formas ideais, permitiu a experimentação e a exibição das novas relações espaciais. Tais formas eram por sua vez perspectivadas de acordo com um ponto de vista cuja essência era a própria posição abstratizada de um ponto exterior ao plano. Neste sentido, Edward Casey25 salienta que a idealização transcendental do espaço característica da cultura ocidental e radicalizada pelos sistemas racionais de pensamento tornou o espaço num sistema universal de coordenação e medida. Transformado numa entidade homogénea e planiforme, ‘este espaço é sujeito à estriação linear por trajectórias precisas e é projectado como é visto – como numa perspectiva monofocal – permitindo a reprodução dos seus conteúdos indiferentemente em lado nenhum’.26 Volumétrico e puramente relacional, este espaço cartesiano alicerçou uma espécie de primazia da posição do observador na lógica de uma teoria moderna do espaço que estruturou as novas formas de ver o mundo. Uma teoria que tinha subjacente o ponto de vista alegadamente privilegiado do observador27. Tal ponto de vista determinava, por sua vez, toda a organização do espaço no plano, um espaço cenográfico e volumétrico, um espaço de representação. Para Martin Jay verificou-se, neste processo, ‘um assalto ao significado substantivo do espaço, para este se tornar num sistema uniforme e ordenado de coordenadas lineares’.28 De acordo com este autor, foi este espaço infinito do plano que diferenciou a visão dominante do mundo moderno das predecessoras, uma noção congénita não apenas à ciência moderna mas também ao sistema económico capitalista emergente. Erguida com base na reificação de um espaço descorporizado, enquanto característica estruturante das modernas convenções da cultura ocidental, uma concepção moderna do espaço unitário apreendia separadamente os seus elementos constitutivos, não permitin- 38 Desgeografização do corpo, uma política de lugar do a compreensão profunda das relações entre a componente física (natureza), a componente mental (abstracções formais de espaço), e a componente social (o espaço de acção e conflito humanos).29 Tendo subjacente um modo capitalista de produção, as espacialidades modernas estruturaram-se com base numa perspectivação do espaço como objecto inerte e homogéneo.30 Ao denunciar a tendência moderna para espacializar e o modo de pensar em termos de espacialidade, como resultado de uma estratégia capitalista de acumulação, Henry Lefebvre31 contesta a ideia de espaço uniforme como superfície passiva para a acção de reprodução social a qual é veiculada pelo trabalho das representações. Para Lefebvre,32 a reconsideração deste espaço implica a ‘reconstituição do processo desde a sua génese ao desenvolvimento do seu significado’, indo de uma consideração dos fenómenos no espaço para uma consideração da própria produção do espaço. Assim, as representações de espaço são concebidas como o domínio simbólico do espaço do capital. A relação entre este tipo de espaço e a formação de uma superfície de visualização em torno da qual se estruturam as relações entre o ser humano e o território remete para a conexão entre os regimes de poder, verdade e conhecimento que se organizaram durante o período moderno. Na sua tese historicista do espaço, Michel Foucault analisa as relações entre os mecanismos de poder e conhecimento e a constituição de superfícies estáticas de visualização. Para o autor, a constituição de superfícies ou corpos espaciais como expressão da acção das instituições sociais dominantes, faria parte dos mecanismos de controlo e vigilância accionados pelas convenções de uma ordem racional com o objectivo de impor as suas categorias epistémicas. Nesta senda, o aperfeiçoamento dos regimes scópicos modernos respondia a esta necessidade e o Panóptico de Bentham (como paradigma das superfícies espaciais oitocentistas) é apenas um entre os inúmeros mecanismos passíveis de objectivar todo um mundo social constituído espacialmente através de nódulos e canais de dispersão não hierarquizáveis e mutuamente irredutíveis. De facto, a visão tornou-se o modelo ocidental de cognição, encontrando-se absolutamente associado ao desenvolvimento da ciência. Dentro deste modelo, a observação do mundo ‘natural’ tem papel determinante para um 39 Geografias do Corpo quadro de legitimação empírica da verdade perceptiva. Como uma série de constructos conceptuais sem verificação ‘real’ a não ser pela acção de um Olho transcendental (o olho observador da ciência baconiana), a história da ciência ergueu-se sob o artifício da experiência visual como ‘percepção natural.’33 Um regime visual específico legitimou pois uma série de categorias culturais que posicionaram uma noção ocularcêntrica de Razão como verdade universal. A cumplicidade entre uma razão ‘iluminada’ (uma fé intensa na evidência visual) e o controlo ocular dos indivíduos ou o domínio visual, viria a objectivar-se com a passagem para o século dezanove e pela transferência da ideia de um espectador ideal-transcendental (subjacente à superfície transcendental de observação da filosofia cartesiana) para a ideia de uma totalidade de observadores (subjacente à superfície empírica de observação da ciência moderna).34 Ao convocar um conjunto de teorias que advogam o papel dominante de uma superfície de visualização para a produção de conhecimento científico, tento clarificar as instâncias de produção de subjectividade que operaram em consonância com um modelo de cognição para a construção do conhecimento descorporizado. Já na década de 1970, Foucault chamava à atenção para o facto de que, o ‘poder soberano’ da superfície empírica de observação que se articulou em torno desta ideia (a de uma totalidade constitutiva de observadores), advém da sua capacidade de se sobrepor às superfícies ‘sólidas e opacas’ do corpo. Proporcionando um contexto de objectividade que suplantava as verdades ideais que compunham a ‘claridade clássica’ do Iluminismo, esta superfície empírica de observação é paralelamente a superfície de individualização celebrada pelos românticos. Erguida como um poderoso campo epistémico dentro do qual através desta superfície uma realidade objectiva se abre a um olho inocente, ‘o mito de uma superfície de visualização pura como linguagem pura’35 alicerçou um regime de conhecimento assente sobre a ideia de um olho absoluto. A complexa interacção entre linguagem e visão que estrutura a ciência moderna, estabelece assim uma dialéctica entre palavra e imagem como forma de aceder ‘à mudez dos objectos’.36 De resto, uma dialéctica que legitimou a ficção humanista de um sujeito constitutivo. Através dela, justifi- 40 Desgeografização do corpo, uma política de lugar cou-se uma ‘coerência’ espacial que urgia mapear para um suporte bidimensional, tarefa que a representação em paisagem com as suas qualidades miméticas exponenciava, transformando o espaço num trompe l’oeil universal para consumo doméstico. Neste processo, aquilo que um campo anónimo de visão anunciava (a superfície empírica de visualização) era a própria descorporização deste Olho absoluto da ‘carne do mundo’ e da experiência vivenciada.37 Arreigado à ‘verdade’ da observação, o discurso científico moderno encontrou na superfície empírica de visualização recurso para alcançar a ‘transparência genuína’ do conhecimento. Como dispositivo que se dissolve em invisibilidades por forma a revelar uma verdade unívoca ou um sentido não ambivalente dos factos analisados, a superfície empírica de observação estabeleceu um regime de conhecimento empenhado com a legitimação da unidade da palavra e da imagem.38 Dominado pela fé no poder da observação directa assim como da observação mediada pela tecnologia, o discurso científico comprometeu-se com a ordenação taxonómica dos fenómenos organizados no espaço visível do plano. Tornada num registo transparente da superfície de observação, a linguagem científica integrou o conhecimento visual como ordem dominante resgatada a um conjunto de ‘testemunhas ausentes’; o sujeito observador e soberano que apenas pode ser inferido pela representação. O campo epistemológico visualmente constituído transformou-se, deste modo, no domínio de um meta-sujeito do conhecimento, um sujeito alegadamente neutro que percebia o mundo do exterior e que perseguia uma visão pura dos fenómenos, a qual ‘deveria ser transcrita na materialidade do espaço’.39 Este sujeito da representação, o meta-sujeito observador característico das Ciências Naturais e das Ciências Humanas, encontrou-se implicado na construção de um projecto antropocêntrico legitimado pela posição de um sujeito sintético e unificado como o proprietário de uma visão universal. A ontologia de uma superfície de observação que requeria um sujeito observador e um Outro objectualizado (observado), justificava, assim, uma metafísica da presença alicerçada sobre uma episteme que era nutrida pelo poder de objectificação de um regime ocular específico. Neste quadro, o policiamento visual dos corpos e dos es- 41 Geografias do Corpo paços efectuado por meio de uma superfície de observação, respondia à necessidade de representação de um sistema auto-suficiente. A criação de configurações espaciais ‘consistentes’ que sustentavam a alegada coerência de um regime visual dominante assegurava, assim, a criação de uma arena de representação passível de albergar os contextos de mesmidade do sujeito humanista, protegendo-o da alteridade e da ambiguidade criativa de diferentes modos de ver e dos desafios dos outros sentidos como o olfacto e o tacto. Espaço, corpo e lugar vêm-se portanto enredados num regime de conhecimento de que somos herdeiros, regime este alicerçado sobre a primazia de um sistema cognitivo e perceptivo responsável pela produção da subjectividade. Detenhamo-nos pois, seguidamente, sobre o modo como tem vindo a ser questionado este modelo de conhecimento pela ênfase em modelos alternativos assentes num conhecimento corporizado que reclamam diferentes posições de sujeito. 2. Do corpo como contentor de identidades essencializadas ao corpo como lugar de criação de subjectividades A revisão dos ‘humanismos’ que percorrem as tradições discursivas ocidentais, sendo central para a construção de teorias alternativas, promove a construção de discursos passíveis de suplantar as tendências de apropriação, de totalização e de integração que subjazem o conhecimento moderno. Por isso, configura parte significativa dos esforços que nas últimas décadas se têm desenvolvido no âmbito dos estudos em torno da cultura científica. Efectivamente, se parte significativa da teoria cultural das últimas décadas se tem orientado para a revisão de conceptualizações drasticamente antropocêntricas, isto acontece em grande medida porque o repensar das subjectividades implica ter em conta as relações de poder que permeiam a sua própria formação e experiência. A análise da história da subjectividade, tem mostrado que as posições de sujeito são construídas em grande medida através dos discursos do corpo e do lugar, do desejo e da sexualidade, os quais alteraram as percepções da subjectividade e da sociedade, delimitando a afirmação de ‘outras’ identidades.40 Perspectivada como arena de conflito e contestação, dada a multiplicidade e a natureza mutável das relações que nela são tecidas, a 42 Desgeografização do corpo, uma política de lugar ideia de lugar tem vindo a ser reconceptualizada como construção dinâmica e fluida. Ligados por específicas formas de habitação, corpo e lugar são mobilizados através de construções simbólicas cujos significados são frequentemente alvo de narrativas inaugurais que favorecem a perpetuação de visões metafísicas ou míticas sobre o mundo e os espaços que o constituem.41 Estruturando e simplificando as relações entre o ‘aqui’ e o ‘ali’, ‘nós’ e os ‘outros’, tais visões ou perspectivas são alicerçadas sobre a ideia de uma estética não opressiva e evidenciam uma coerência aparente. Obscurecendo as particularidades do lugar, estas perspectivas são fundadas numa hierarquia social do ambiente de representação e diferenciais no ‘capital posicional’42 dando origem a agudas contradições e a tensões associadas às fronteiras simbólicas, sociais e físicas incorporadas no espaço. A contestação da ideia de identidades únicas e permanentes, embora não implique a negação do carácter único de um lugar, fez com que se passasse a analisar esse carácter enquanto ‘consequência da múltipla intersecção de fluxos generalizados, estruturas de poder, discursos e subjectividades’.43 Produto social e dos mais diversos imaginários geográficos, o lugar é constantemente criado e recriado veiculando forças de inclusão e de exclusão que participam na forma de habitar cada mundo de experiência. Por isso, a ideia de lugar constitui frequentemente fonte de paradoxo, ambivalência e contradição. Aliás, a reconceptualização do lugar como área circunscrita para um agregado de redes de relações sociais abertas e porosas, veio reforçar, de acordo com Doreen Massey,44 a ideia de que as identidades de lugar são múltiplas pelo que a imagem dominante de qualquer lugar é mutável através do tempo e é sempre alvo de contestação. Para a autora, o estudo do lugar encontra-se para além das tradicionais polarizações conceptuais a que tem vindo a ser votado, tais como objectividade/subjectividade ou acção/estrutura, pelo que não existem características fixas de lugar ou fronteiras espaciais fixas, sendo os lugares definidos tanto pelo interior como pelo exterior constitutivo. Reflectindo a sensibilidade contemporânea das orientações críticas humanistas, a tentativa de compreensão do significado de lugar pas- 43 Geografias do Corpo sou a ter subjacente a preocupação com problemáticas tão diversas como a memória individual ou colectiva, a conexão entre imagens, o sentido idealizado de lugar e o fabrico de comunidades específicas. Mas, tal esforço passa ainda pela busca das complexas relações entre o corpo e as instâncias de produção de poder e autoridade, surgindo como terreno para a escolha ética e moral. Denunciando as visões parciais e incompletas que se escondem sob cada sentido de lugar, desvelam-se os silêncios políticos e sociais alojados em cada paisagem material indagando-se as diversas formas em que se cumpriu a sua representação. Neste sentido, o debate em torno da fisicalidade da paisagem (e as interpretações complacentes de lugar) tem vindo a ser incrementado tendo em conta narrativas que denunciam o envolvimento com a natureza não como abstracção mas como elemento determinante no que respeita à definição das experiências pessoais. Como modo de exercer o controlo disciplinar sobre os corpos dos sujeitos, decorrente da afirmação do conhecimento científico moderno, a descorporização do prazer e do desejo associa-se aos processos interligados de identificação e desidentificação que operam na formação do sujeito (do humanismo). Daqui decorre que os processos de construção de identidades que se desenvolveram no mundo moderno apresentam uma frágil e contraditória constituição, funcionando as categorias engendradas como meio de estigmatização do Outro e de ‘outros lugares’ sobre os quais se recolocaram as características rejeitadas pelo sujeito do humanismo. Funcionando como ‘superfície de inscrição e como fronteira entre o sujeito individual e aquilo que é Outro para ele’,45 o corpo funciona ainda como fronteira maleável que nos põe em contacto com um exterior autodeterminado. A ênfase no trabalho de um ‘exterior constitutivo’,46 remete, nestes termos, para a necessidade de ruptura com a noção de identidades puras e de fronteiras rígidas entre os sujeitos47 e com a ideia de lugares dos sujeitos. Activamente constituídos através de ideologias e de metateorias de localização, os corpos e os sujeitos são modelados por formações discursivas tanto como por contextos materiais e determinantes biológicas, possibilitando e delimitando, uns e os outros, as práticas sociais. Como salienta Rob Shields,48 ‘(o) acto selvático de ‘fazer 44 Desgeografização do corpo, uma política de lugar o espaço’ e de pôr em prática códigos espaciais é indicador de uma qualidade social mais lata orientada para a codificação espacial, para as práticas espaciais, para as nossas representações de espaço e para a nossa geografia imaginária, em que tudo tem um lugar e um tempo’. Enquanto elemento cultural que legitimou uma lógica de identificação ‘natural’ e respectivas hierarquias, o sistema moderno de conhecimento assenta, como já foi referido, sobre a ideia de uma corporização abstracta do sujeito.49 Esta, dispersa-se em categorias espaciais através das quais se organizou uma muito concreta rede de poder de uns indivíduos sobre os outros. É que, a formação dos sujeitos individuais e colectivos encontra-se na dependência da construção e ‘naturalização’ de categorias não-inocentes de localização que serviram para legitimar uma epistemologia e uma ontologia de policiamento da diferença.50 Iludindo as múltiplas realidades corporais, as identidades parciais e os pontos de vista contraditórios, a ideologia que subjaz o constructo de identidade universal iludiu a constituição histórica geográfica e social de categorias como género, raça ou classe, autorizando a apropriação dos corpos e identidades como parte de um trabalho político de organização de uma rede de poder eurocêntrico. O desafio de superação dos dualismos como corpo e mente ou sujeito e objecto, configura um modo de indagar os processos conflitivos e fragmentados de formação de identidades, encontrando-se em íntima ligação com os processos correntes de redimensionamento da análise social do espaço. Paralelamente, este configura um modo de contestar o pendor antropocêntrico das prescrições teóricas e metodológicas de um conhecimento descorporizado, implicado com a ‘naturalização’ de categorias convencionais como corpo, sexo e etnia. Como superfície para a produção do conhecimento, sentimentos, emoções, geografias e histórias encaradas como elementos centrais para a o acto de ‘sujeição’,51 o corpo não pode ser pensado como entidade fechada pois o seu carácter é iminentemente relacional. O recurso a uma renovada noção de corpo tendo em conta a sua (des)geografização serve como forma de declinar uma série de dualismos que estruturam as categorias convencionais de sexo e género, classe e etnia, como forma de romper com uma construção 45 Geografias do Corpo de corpo como contentor de identidades essencializadas. Encarar o corpo como cultural e discursivamente construído, representa um passo a diante no caminho da desestabilização das suas convencionais formulações; biológica, histórica, geográfica, antropológica ou sociológica. Apelando à necessidade de clarificação da linguagem geográfica por forma a suplantar a noção tradicional de espaço empírico onde as categorias sociais em que o espaço é concebido e percebido estruturam os aspectos mais elementares da nossa interacção com o mundo físico, Rob Shields salienta a necessidade de desenvolver uma sensibilidade para as operações de codificação do espaço topográfico ‘onde se produzem materialmente sites e regiões, para o nosso sentido de espacialidade e reflexividade, e para o modo como percebemos o espaço geográfico’.52 Aquilo que o autor põe em causa é o próprio processo de codificação topogenética do espaço, associado à ideia de produção social do espaço. Analisado nesta perspectiva, o processo de codificação topogenética evidencia negligências relativamente ao carácter reflexivo da ‘produção’ e ao modo como as espacialidades construídas informam os comportamentos e práticas corporais. A necessidade de superação da noção de ‘objectos-noespaço’ é crucial, argumenta o autor, dado permitir a interpretação da codificação do espaço como parte de um sistema de categorias filosóficas criadas culturalmente. Ora esta perspectiva é tanto mais importante se pensarmos que o corpo tem vindo a ser comumemente entendido como um ‘objecto-no-espaço’. Porquanto, a análise da espacialização dos valores e práticas sociais integra a ideia de espaço como artefacto cultural, permitindo a interpretação da codificação do espaço como parte de um sistema de categorias filosóficas criadas culturalmente. Como área de enfoque crítico estratégico, a problemática da espacialização sócio-cultural descentra a análise do historicismo, em que o espaço social detém o estatuto de produto de relações sociais mais vastas e em que é reduzido a um reflexo das características sócio-económicas. Este esforço de descentração, encaminha a análise para uma reexaminação do espaço enquanto dimensão constituinte (uma entre muitas outras) do ‘edifício social de espacialização’53 46 Desgeografização do corpo, uma política de lugar colocando-nos em direcção a uma perspectivação da sociedade e da cultura como entidades espaciais. Esta viragem é central para a compreensão das problemáticas aqui analisadas. E é central sobretudo se tivermos em conta a revisão que está a ser operada às categorias sociológicas tradicionais (como classe, género e etnicidade) e às categorias geográficas convencionais (como nação, região e cidade). Tudo isto, como salienta John Urry,54 num momento em que se desafia a tendência para pensar a sociedade em termos reificados como ‘estrutura social’ ou ‘sistema social’, e em que autores como Patrick Joyce55 tentam substituir a solidez ontológica da noção de sociedade por uma compreensão mais fluida ‘do social’. Então vejamos. Constituído através de práticas específicas, materialidades e seres corporizados, ‘o social’ é perspectivado por Bruno Latour56 como aquilo que circula dentro do ‘mundo das coisas’, sendo entendido em termos relacionais. Dentro deste ‘mundo das coisas’, inclui este autor as formas disciplinares de conhecimento. Dada a profunda ligação entre o repensar das categorias sociais e espaciais, a ênfase nas metáforas de rede, mobilidade e fluxos associa-se à necessidade de pôr sob escrutínio os processos que estabelecem a ligação entre diferentes corpos e lugares (a uma enorme variedade de escalas), mais do que analisar os sentidos fixos e circunscritos de lugar57. Mas, voltaremos adiante e, mais amiúde, a esta questão. Fixemo-nos, por ora, na tentativa de compreensão ‘do social’ e da cultura como entidades espaciais, para podermos perceber mais claramente a passagem da perspectivação do corpo como contentor de identidades essencializadas para o corpo como lugar de criação de subjectividades. Dona Haraway poderá ajudar-nos nesta tarefa. Refutando as perspectivas alicerçadas sobre a ideia de ‘vista de lado nenhum’ e um conhecimento descorporizado produzido pela ciência moderna (engendrada por um sujeito abstracto detentor da razão), Donna Haraway defende a validade de um conhecimento que é alicerçado sobre a ideia de ‘vista do corpo’, com a sua posição específica. A ‘colocação’ do sujeito gerador de conhecimento num corpo específico, e a consequente passagem do paradigma da simplificação para o paradigma da complexidade, implica a aceitação do acto de ‘corporização do conhecimento’, e a atenção relativamente 47 Geografias do Corpo às subliminares maquinações de uma instância, ‘contraditória, estruturada e estruturante como é o corpo’.58 Refutando uma teoria social estática59 que apresenta inúmeros sujeitos como recipientes passivos de processos de normalização, teorias alternativas como a de Haraway insistem na formulação de que o corpo proporciona um conhecimento-chave sobre o trabalho da subjectividade mostrando como os indivíduos tem vindo a ser alvo de práticas que decorrem de aparatos ideológicos que as tornam sujeitos nos termos desses aparatos. Como enfatiza a própria autora, a consciência de género, raça ou classe foi-nos forçada pela terrível experiência histórica das contraditórias realidades sociais do patriarquismo, colonialismo e capitalismo. Mas esta foi-nos ainda forçada pela ambivalente experiência geográfica de territorialização de identidades. A ideia de vista de nenhum lugar donde imana o conhecimento científico, serve para mascarar a própria rede de lugares em que se opera a produção científica. Indagando as identidades que fundam o mito político do ‘nós’,60 Haraway explora a construção histórica e social das vozes políticas alicerçadas sobre a ideia de um ponto de vista natural ou orgânico como condição de legitimação da autoridade cultural de uns grupos sobre os outros. Ora, indagar a constituição de corpos histórica e socialmente constituídos implica indagar a constituição geográfica desses mesmos corpos, nomeadamente pelo acto de detonar as ideias de uma origem ‘natural’ e de um lugar original, passíveis de explicar a condição de subjugação desses mesmos corpos. As questões políticas e analíticas aqui levantadas, ao endereçarem as problemáticas decorrentes das práticas de deslocalização entre fronteiras das identidades e comunidades raciais e sócio-sexuais, interceptam desde um ponto central as questões epistemológicas e as dinâmicas de formação e de territorialização dos indivíduos. Ao passar pela superação das convenções de auto-invisibilidade do sujeito produtor do conhecimento, tais questões forçam a substituição de uma cultura da verdade transcendental por uma cultura dos factos contingentes, passível de integrar uma polissemia de figuras e de vozes. Se os discursos emergentes se vêem implicados com a ruptura das metanarrativas da subjectividade, isto acontece precisamente pela 48 Desgeografização do corpo, uma política de lugar necessidade de autorização das figuras e lugares da alteridade e da diferença. Nestes termos, a reescrita das histórias e das geografias dos corpos, passa pela criação de narrativas da experiência do corpo e de identidades diferenciais, uma fissura que é alcançada através de um trabalho de conhecimento íntimo ou percepção interna, bem como pela acção de ‘sujeitos revolucionários pós-humanistas’.61 A estratégia adoptada passa pelo desenvolvimento de narrativas do conhecimento íntimo que promovam a relevância dos diferentes lugares da experiência bem como de ‘outros’ sujeitos, uma estratégia que vai muito para além de um conhecimento alicerçado sobre um sistema cognitivo e perceptivo convencional. O desmantelar de categorias absolutas de pertença, tidas como coerentes e homogéneas, configura pois a irrupção dessa fissura que advém da urgência de afirmação de um conhecimento háptico, um conhecimento assente sobre todos os sentidos (e não sobre o domínio da visão). Tal forma de conhecimento reflecte linguagens alternativas através das quais se enunciam os processos de formação identitária em permanente fluxo. A tentativa de afirmação de geografias hápticas associa-se, portanto, à enunciação do corpo como o mais próximo lugar da experiência, um lugar através do qual se articulam os sistemas cognitivo, afectivo e emotivo que nos conecta com uma miríade de outros corpos em relação. Decorrente dos processos de desnaturalização epistemológica das categorias e sujeitos herdados,62 esta fissura que ameaça os sistemas convencionais de percepção e conhecimento, representa uma oportunidade para a exploração de novos modos de escrita cultural alojados na intercepção de corpos e lugares. Tais políticas e epistemologias de posicionalidade, associam-se à prática da desterritorialização e subsequente reterritorialização dos corpos e sujeitos do conhecimento, uma prática que assenta na recusa de qualquer tipo de posicionamento perspectivado como final ou estático. Isto caracteriza significativamente a mudança epistemológica que se vem desenhando. Tal mudança é marcada pela libertação do acto de sujeição operado pela Razão, construído como se evoluísse de forma linear de um lugar estável de origem em direcção a um presente substancial, abrindo caminho para um indivíduo liberto que rejeita uma construção linear 49 Geografias do Corpo única e que se encontra em permanente tensão, numa oscilação entre margem e centro. Nestes termos, a reescrita de geografias e de histórias baseadas em especificidades culturais alternativas (por exemplo emergentes nas zonas de fronteira de género ou raça), desenvolve-se através de processos espaciais que rompem com os posicionamentos dominantes determinados por barreiras culturais artificialmente impostas, por forma a definir a centralidade e a marginalidade cultural dos diferentes sujeitos e grupos. Desafiando o carácter alegadamente concreto das dimensões geográfica, histórica e cultural que informam a construção social das categorias de sujeito engendradas pelo Humanismo, estas aproximações encontram-se implicadas com a renegociação das representações de corpo tendo em conta a experiência desde o próprio corpo, de acordo com as múltiplas narrativas que potenciam a transposição cultural dessa mesma experiência. A insistência na ideia de que tanto os sujeitos como os corpos das práticas da construção do conhecimento devem ser situados, decorre da preocupação com a abertura para a aceitação de inúmeras instâncias através das quais é gerado o conhecimento, nomeadamente das entidades espaciais. E, neste ponto, suspendo momentaneamente a minha narrativa, num ponto em que corpo e mente se esgrimem como partes amputadas do mesmo organismo, denunciando uma crise semiótica em que os signos correm o risco de falhar a própria articulação da narrativa em que se encontram envolvidos. Tomando de empréstimo a sugestão de Derrida,63 de que os signos marcam o lugar da diferença, é, desde este ponto, o ponto da enunciação da crise de significados como o espaço paradoxal da emancipação do sujeito, que deixo em aberto a passagem para o momento seguinte da presente discussão. Antes, fornecerei apenas um ordenador, notando que este será um momento em que a ideia de paisagem servirá como instrumento de indagação das geografias da ambivalência. Desde aí, tentarei, por um lado, compreender a complexidade de uma das mais reclamadas permanências geográficas e, por outro lado, acrescentar mais uns traços ao ‘meu’ esboço de uma relação de geografias impuras,64 as quais autorizam o corpo do sujeito diferencial feminino com a sua particular poética e com uma específica ética de lugar. Como cenário 50 Desgeografização do corpo, uma política de lugar ‘inerte’ que recodifica inexoravelmente a minha actividade textual, a paisagem torna-se o devir, a singularidade solicitada. 3. Do conhecimento situado às paisagens de afectação como instâncias de co-produção do mundo Associada à tentativa de superação de um dualismo estrutural que permeou o pensamento ocidental,65 a reteorização do corpo tem subjacente o refutar do carácter descorporizado de um conhecimento que não é alicerçado na experiência vivenciada do quotidiano. A tentativa de tornar aparente o trabalho dos corpos (a espacialização dos corpos pela teoria), os seus contextos e suas implicações, decorre da necessidade de suplantar o paradigma dos corpos como resultado acabado dos processos de formação identitária cuja performance se desenvolve de acordo como normas pré-determinadas (o corpo como entidade discreta da ciência moderna)66. A definição dos sujeitos como entidades corporizadas e a referência às formas culturais assumidas por identidades e subjectividades múltiplas e específicas, associo-as à tentativa de perceber a construção social do corpo, bem como a uma significativa reorientação das escalas de análise através das quais ‘o social’ e ‘o cultural’ têm vindo a ser compreendidos e interrogados. Desenvolvendo os contributos das teorias pós-estruturalistas e das teorias culturais contemporâneas, assim como das teorias pós-coloniais e psicanalíticas, inúmeras abordagens indagam a construção das posições femininas geradas em enquadramentos ideológicos que promovem relações de poder desiguais, as quais vieram a ser ‘naturalizadas’ por normas de género.67 O trabalho científico é pois orientado para a concepção de novos tipos de sujeito, uma vez que a ideologia opera em grande medida pela construção da subjectividade. A proposta de concepção de novos sujeitos, nomeadamente ‘sujeitos constituídos no género não simplesmente por diferença sexual, mas antes através de linguagens e representações culturais’,68 alia-se à preocupação com a produção de subjectividades perspectivadas como produto e processo de práticas individuais. A importância dos estudos críticos da ideologia de género é fundamental para se compreender as problemáticas aqui analisadas, na medida em que enfatiza a construção de sujeitos conscientes das 51 Geografias do Corpo operações da ideologia. Ainda que inconfortável, tal esforço é necessário para a inclusão da experiência vivenciada como entrada crítica para a teorização da subjectividade.69 Desde este ponto, em que a ideologia não é encarada como um sistema fora de nós próprios mas que integra as nossas práticas e a nossa vida quotidiana, Teresa de Lauretis remete para os aspectos da vida que estão fora do enquadramento dos discursos dominantes, considerando as dimensões da experiência vivenciada que ficam ‘fora de campo’. A sua noção de espaço fora de campo, ‘o espaço que não é visível no enquadramento mas que se pode inferir por aquilo que se torna visível pelo enquadramento’,70 remete para as ‘micropráticas’ que estão na dependência das diferentes representações culturais, incluindo as práticas políticas dos sujeitos múltiplos.71 Para a autora, é nestes espaços que os termos de uma diferente construção de género pode colocar-se. Tendo efeito e acontecendo ao nível da subjectividade e da auto-representação, os termos de uma diferente construção de género alojam-se nos espaços intersticiais das micropolíticas da vida quotidiana e da resistência diária, através dos quais se alcança a acção colectiva e se estabelecem as fontes do poder.72 E aqui é importante sublinhar dois aspectos: a necessidade de nos reconhecermos como sujeitos generificados numa sociedade em que as representações culturais dominantes excluem o outro não-heterossexual; e a necessidade de criar condições para a afirmação de subjectividades alternativas. Para um e para o outro a ideia de espaços fora de campo funciona como modo de explorar a subjectividade, perspectivada como prática e como processo em que a realidade material e a ideologia, as representações dominantes e as nossas próprias auto-representações se articulam para a construção de identidades contraditórias, parciais e fragmentadas. A exploração de metáforas como a dos espaços fora de campo, associa-se à tentativa de superação de um projecto anterior perpassado por exclusões e distorções relativas a diferentes formas de alteridade (mulheres ou sujeitos não-europeus, entre outras), evidenciandose através destas abordagens a criação de novos sujeitos culturais. Através delas, indagam-se as práticas e as políticas de representação que veiculam estereótipos de género na sua relação com as estrutu- 52 Desgeografização do corpo, uma política de lugar ras dominantes de conhecimento e com um mundo de imagens em proliferação que reforça a produção de significados de acordo com uma ordem de valores estabelecidos. Trata-se de indagar as construções de género e os contextos heteropatriarcais em que a vida quotidiana toma lugar, bem como as respectivas políticas culturais, tratando-se ainda de contestar as categorias herdadas por forma a integrar os múltiplos eixos da diferença que operam na formação de identidades. Neste sentido, a premissa do direito à diferença representa muito menos um apelo circunstancial à particularidade de vozes específicas dentro de um quadro de valores estabelecidos do que o confronto entre práticas e narrativas que competem para a dissolução do centro (a grelha opressiva de uma geografia e história totais e da moderna epistemologia). Atendamos, pois, ao modo como se têm vindo a consubstanciar estas práticas e narrativas. A construção de formas alternativas de conhecimento, configura a base de algumas práticas científicas, sendo paralelamente uma estratégia de acção político-intelectual e um modo de declinar a apropriação masculinista da sexualidade feminina, perspectivada como um trabalho do sujeito do Humanismo. Tomando conta de um debate cultural mais vasto, sobretudo desde a década de 1980, a desconstrução da dicotomia feminino/masculino e respectiva representação visual é particularmente significativa na teoria e crítica contemporâneas. Rejeitando qualquer metalinguagem pela sua incapacidade de deixar falar a diferença, e como tal de falar pelas mulheres e por outros grupos tradicionalmente subalternizados, uma série de discursos antiocularcêntricos reclama uma linguagem da proximidade mais do que uma linguagem da distanciamento.73 Literalmente reflectida no campo visual, a dimensão genérica da experiência transforma o espaço numa arena de visão mediada por uma superfície masculinista de observação. Transformado numa superfície voyeurística de contemplação (masculina), o espaço viu-se transformado em espacialidade pela distância ao sujeito, numa apoteose filosófica em que a mulher permaneceu como uma espécie de caixa negra e como objecto de incompreensão. De facto, a ênfase no poder de uma superfície hegemónica de observação e num sistema dominante de representações intercepta todo o campo da cultura visual implicado 53 Geografias do Corpo com a análise crítica do trabalho das imagens e com a centralidade da visão na cultura ocidental. Longe de se encontrarem alojadas em campos disciplinares discretos, as imagens apresentam-se como valiosas fontes de exploração da normativização heterosexista, funcionando como base para a teorização crítica da cultura e do espaço. A análise das estratégias representacionais mobilizadas pela cultura moderna remete para o modo como as construções sociais de género, sexo ou raça são ‘naturalizadas’ através de diferentes discursos. A mobilização de constructos como ‘mulher’ e ‘paisagem’ através da linguagem visual é veiculada por específicos sistemas de significados ancorados sobre uma relação entre corpo e espaço. O papel destes sistemas de significação tem constituído uma das problemáticas centrais cada vez mais discutidas dado o poder da imagem nas sociedades contemporâneas. Denunciando as maquinações de uma superfície de observação que é estabelecida pelo efeito dos aparatos e tecnologias da visão desenvolvidos pela cultura moderna ocidental, autoras como Irit Rogoff74 exploram as problemáticas do corpo sexualizado nas representações dominantes de espaço. A análise crítica de Rogoff ao modo como as imagens potenciam a ‘naturalização’ de construções hegemónicas mostra claramente como mulher e paisagem são representadas por forma a legitimar uma retórica político-ideológica em que ‘corpos enfáticos’ são mobilizados como vestígios de uma relação transcendental entre o ser humano e a terra. E isto acontece por sermos herdeiros de um sistema de significação engendrado sob a acção de aparatos nacionalistas e imperialistas a que a ciência forneceu base ‘objectiva’ de legitimação. Para a autora, aqueles ‘são os corpos de uma geografia tradicional em que a unidade entre lugares e sujeitos foi fundida até ao ponto em que temos corpos marcados ideologicamente que significam a especificidade das relações entre um povo e um lugar’.75 Donde a sua ênfase na geografia e espacialização como categorias epistémicas, pela necessidade de averiguar como um campo de conhecimento e uma ordem de conhecimento assentam em questões de posicionalidade, em questões que têm que ver com quem tem o poder e autoridade para nomear e para sujeitar ‘outros’ a fórmulas identitárias hegemónicas. 54 Desgeografização do corpo, uma política de lugar O poder apelativo das representações em paisagem e o seu potencial no que respeita ao fixar de uma tradição idealista de pensamento em que a verdade se equaciona na relação com uma economia da ‘presença’ (do visual) dentro da qual a mulher teria sido acomodada como uma ‘falha’ ou ausência, é alvo de severo escrutínio. O reclamar de experiências subjectivas e diferenciais de paisagem, sonda-se na contestação desta superfície de observação como instrumento privilegiado para devolver ao ‘objecto’ feminino a sua própria imagem. Donde a necessidade de desenvolvimento da percepção interna da não-existência de um sujeito único e respectivo objecto de apropriação, excepto como produto do desejo masculino,76 o que remete para a necessidade de suplantar o quadro de objectificação-apropriação sexual com base numa doutrina da experiência feminina do espaço. Aquilo para que chamo à atenção, é para o modo como superfícies ‘inocentes’ de inscrição se encontram implicadas com versões ‘inferiores’ de sujeito aprisionadas numa economia de signos e imagens forjadas pelo sujeito da Razão. A colocação da paisagem como uma arena crucial de refutação da lógica do pensamento ocidental com ‘a sua predominância do visual, da discriminação e da individualização da forma’,77 denuncia, pois, a ‘colocação’ da mulher numa economia scópica dominante, ‘a sua cedência à passividade, destinada a ser um objecto belo de contemplação’.78 Refuta-se, porquanto, um movimento de exibição (do objecto) orientado para a satisfação do desejo do sujeito do humanismo. Servindo paralelamente o desejo sexual masculino e o desejo de auto-representação do sujeito do Humanismo, a moderna ideia de paisagem perpetua um movimento cultural que afasta os corpos das mulheres de mecanismos que lhe são mais particulares. Tais mecanismos, como as formas femininas de erotismo que encontram o prazer em outros sentidos que não apenas na visão, assim como as formas de identificação diferentes da auto-representação, encontramse associados à ‘auto-afeição’.79 Reclama-se, deste modo, uma outra participação do corpo e das identidades femininas na experiência de paisagem, contrapondo, a um bloco monolítico do desejo masculino, formas mais fluidas e menos unificadas que irradiam de identidades que não podem ser divididas dentro de categorias simplificadas 55 Geografias do Corpo de interior e exterior. Perspectivadas como extensões contínuas do idealismo ocidental, as representações em paisagem encontram-se implicadas com a produção de um observador masculino, burguês, branco e heterossexual, o qual, arreigado a uma particular visão (feminização) do corpo-terra, adquire um poder e coerência ilusórios nesse acto de subjugação. Este mesmo acto, decorre da ‘naturalização’ de uma superfície de observação forjada pela acção de um sujeito unitário, tornado abstracto pelo poder de inúmeras tecnologias em que a modernidade se especializou. Tais tecnologias da representação, que auto-legitimam o sujeito do Humanismo autorizando as suas práticas de domínio e subjugação, penetraram os campos da esfera pública e privada fazendo-nos crer no seu poder edificante no que respeita à organização da experiência quotidiana. O poder totalizador que irradia desta superfície hegemónica de visualização é desafiado por um conjunto de posicionalidades subalternas, que lutam pelo desmantelar das lógicas, linguagens e práticas do Humanismo, bem como dos pólos difusores da construção da categoria cultural ‘corpo’ criada pelo capitalismo industrial. Pamela Moss e Isabel Dick fazem parte do conjunto de autoras que lutam por posicionalidades subalternas, encontrando-se implicadas com a construção de um conhecimento que teoriza dos corpos (e não pelos corpos). Estas privilegiam os modos materiais em que os corpos são constituídos, experienciados e representados, através das práticas do conhecimento situado. Como conhecimento situado, advogam, o conhecimento corporizado desafia abstracções que são divorciadas da materialidade e de espacialidades específicas através das quais o poder é exercido e contestado. Remetendo para ‘os espaços vivenciados em que os corpos se localizam corporal e conceptualmente, concreta e metaforicamente, material e discursivamente’,80 a corporização emancipa um universo heterogéneo de sujeitos (e identidades) que se encontram ‘escondidos’ sob a capa dos discursos universalizantes que actuam como entidades discretas fragilmente envolvidas com o seu ambiente material e simbólico. E aqui é pertinente evocar a celebração lefebvriana de espaço qualitativo, um espaço que não obedece às leis de consistência e coesão social mas sim à vivência directa estruturada por ‘centros afectivos’, dado abraçar 56 Desgeografização do corpo, uma política de lugar ‘o locus da paixão, da acção e das situações vivenciadas’.81 O espaço vivenciado directamente e articulado em sistemas representacionais, constitui em grande medida o domínio da experiência, tendendo para sistemas menos coerentes de símbolos e signos não verbais. Como espaço qualitativo que é, argumenta o autor, este espaço celebra a particularidade, e embora superficialmente possa não parecer diferente, tal celebração, da particularidade corporal e experiencial que irradia do seu âmago, faz dele um ‘espaço diferencial’. Propiciando o acto da enunciação cultural (o lugar da pronunciação, da elocução, enfim, da utterance),82 o espaço diferencial da experiência quotidiana de sujeitos múltiplos articula as estruturas da representação simbólica por forma a destruir as lógicas de sincronicidade e evolução que tradicionalmente autorizam o sujeito do conhecimento científico moderno. Perspectivada por Moss e Dick83 como uma noção de ‘diferenciação enquanto processo’, a corporização do conhecimento associa-se à ideia de corpo e às suas múltiplas e variadas formações discursivas inscritas em espaços concretos. A corporização como experiência vivenciada, remete, pois, para a esfera de acção de espaços diferenciais, para todo um campo operativo que intercepta as ligações entre as conceptualizações de corpo e identidade, experiência de lugar e actividade corporal. Mas, a corporização do conhecimento, remete ainda para a substituição da ideia de cultura unitária por uma ideia de políticas culturais activadas por sujeitos da diferença. Estes conceitos são fulcrais para ‘a teorização da experiência humana, subjectividade e relações de poder através das quais a diferença é construída e regulada’.84 As possibilidades políticas dos sujeitos da diferença85 que lutam por emancipação radicam na construção de redes de afinidades e conexões onde possa sediar-se, pela interacção e partilha, para a construção do carácter colectivo da prática cultural. O processo de corporização da teoria torna-se, pois, uma questão metodológica e epistemológica, dado que a teorização do corpo surge como dimensão crucial para a experiência vivenciada. Para aquelas autoras, a problematização da ligação entre corpo, corporização e teoria passa pela análise de como a corporização é usada para denotar aspectos constitutivos do corpo (como identidade, 57 Geografias do Corpo poder e materialidade), concebido o corpo como entidade material que é complexamente constitutiva de noções, ideias e inscrições. A negociação criativa dos espaços diferenciais, toda uma superfície não mapeada que se situa entre categorias e discursos, bem como nos interstícios dos espaços físicos que são essencialmente resultado da actividade performativa de identidades definidas de acordo com categorias culturais homogéneas, configura uma dessas práticas86. Ao configurarem-se paralelamente como superfícies de inscrição do Outro subalterno ou do Outro reprimido, esses espaços reflectem as batalhas em torno das identidades emergentes ou das identidades que no presente buscam visibilidade sócio-cultural. O recurso a modelos paradigmáticos de conhecimento científico que assentam ‘nas ciências e políticas de tradução, (...) do parcialmente compreendido’,87 servem como instâncias geradoras da legitimação de práticas capazes de exprimir a experiência de sujeitos múltiplos. Tal orientação inscreve-se nos termos mais vastos de acção científica como política cultural, uma acção que luta pela autorização de identidades heterogéneas, daquilo que Trinh Minh-ha88 designa por ‘outros inapropriados’. A noção de outros inapropriados tem subjacente a ideia de figuras móveis e excessivas de ‘sujeitos excêntricos’ empenhados na refutação da ideia de uma comunidade humana total e implicados criticamente com os desafios de uma humanidade imaginada cujas partes se articulam pela diferença e através da tradução. Como base para o diálogo, assim como para uma nova racionalidade e objectividade, a tradução é sempre interpretativa, crítica e parcial, pelo que a transferência e partilha dos diferentes mundos assenta na ideia de indivíduos cujas narrativas ‘reconfiguram os sujeitos, os objectos e o comércio comunicativo da tecnociência, (...) uma figura (que) corporiza sentidos partilhados em histórias que habitam as suas audiências’.89 Nestes termos, o apelo à interpretação comprometida, encontra-se em relação directa com as propostas de desenvolvimento de uma reflexividade crítica, como forma de compreender e indagar a complexidade dos mundos materiais e inter-subjectivos em que as políticas de corporização surgem como condição para a articulação dos espaços da diferença. Mas este encontra-se ainda em relação com a utilização discursiva 58 Desgeografização do corpo, uma política de lugar da metáfora da difracção em vez da metáfora de reflexão, argumenta Haraway. As tecnologias de interpretação crítica que caracterizam tais epistemologias, ao assentarem numa ‘relacionalidade corporizada’90 enfatizam o carácter relacional do mundo; ‘nada vem sem o seu mundo’.91 Configurando um enredo cuja narrativa se desenvolve no sentido da progressão da sexualidade através da identidade (e em que a diferença é tida como desvio), o debate em torno das questões de género desloca-se em direcção a uma crescente sensibilidade relativamente aos significados e ícones que operam para a construção de identidades para lá das categorias convencionais de sujeição. Concomitantemente, o incremento das estratégias de conhecimento íntimo dos indivíduos colocados discursivamente dentro dessas categorias, potencia a reflexão relativamente à natureza artefactual e não original-natural das suas práticas identitárias. Aqui, a corporização dos discursos alusivos à sexualidade (dominantemente alicerçados sobre a categoria da hetero-sexualidade) define a arena material das actividades performativas dos sujeitos, dentro de um quadro de produção e reprodução social que tem subjacente a ideologia político-económica do capitalismo. Num momento em que os desafios da sobre-modernidade respondem às novas condições estabelecidas pelo desenvolvimento da sociedade da informação, da cibernética e da biotecnologia, o repensar das fontes de posicionamento (da colocação de sujeitos e identidades), remete para uma releitura e uma reescrita de uma miríade de narrativas por forma a alcançar guiões alternativos de navegação que permitam aos indivíduos movimentar-se no espaço artefactual da mudança.92 Ora esta situação levanta inúmeras questões das quais isolei duas delas por me pareceram as que mais claramente sintetizam o complexo universo das problemáticas aqui invocadas. Primeiro, se a identidade não é definitiva mas antes transitória e parcial, a necessidade de modelos alternativos e formas alternativas de ler e escrever o mundo passíveis de articular os mecanismos de auto-reconfiguração do sujeito tem de ser perspectivada para além do paradigma do relativismo cultural, o qual se afigura insuficiente ao proporcionar uma base de análise circular para a autorização do 59 Geografias do Corpo sujeito da diferença. De facto, se os modelos e narrativas convencionais alicerçados sobre a autorização transcendental do sujeito humanista falharam pela sua incapacidade de incorporação das políticas da diferença, os modelos pós-modernos do relativismo cultural pecam pela incapacidade de articular as políticas de resistência dos diferentes grupos dada a ênfase na descorporização dos indivíduos e práticas. Especificamente no que respeita às questões de género, a revisão de um quadro estático de discursos masculinistas de legitimação do carácter heterossexual do sujeito participa num movimento mais vasto de revisão dos correlatos de auto-identificação e de toda uma história de delimitação dos jogos do desejo e da sexualidade operado pela cultura moderna ocidental. Parte integrante desta história são as geografias imaginativas do corpo e do género que configuram arenas de inscrição de práticas abstractizantes de corpos individuais e específicos. Sediadas discursivamente no desejo heterossexual (em grande medida o desejo ‘de outro’), tais práticas modelaram a constituição do sistema semiótico-material que ocupamos.93 Criadas as condições semiótico-materiais para o alojar desse desejo, a sua reprodução auto-alimentou-se através de um sentido de naturalização nutrido pelos mecanismos de autorização das vozes dominantes do sujeito moderno. A saber, a autorização de um espaço e de um tempo únicos e homogéneos responderam em grande medida à necessidade de ‘domesticar’ os espaços e os tempos particulares do desejo e da razão do ‘outro inadequado’.94 Actuando através do corpo, o desejo desse ‘outro’ é sempre alojado em espaços específicos cujas fronteiras foi necessário delimitar (reprimir). Como elementos cruciais do estabelecimento destas fronteiras, a heterossexualidade e o domínio da domesticidade configuram as arenas de vigilância dos espaços convencionais do desejo para lá das quais se situa o território de conflito da sexualidade (e da feminilidade) não controlada. E não estaremos a interceptar directamente o próprio contexto histórico de estigmatização social do desejo da mulher? A estigmatização social (e espacial) do desejo da mulher, representa cabalmente um vasto conjunto de estratégias sociais orientadas para o controlo das teias femininas de poder, estratégia complexa- 60 Desgeografização do corpo, uma política de lugar mente negociada através da codificação da figura feminina com um potente capital simbólico.95 O esforço de reconfiguração do ‘sujeito feminino’ à luz de paradigmas alternativos passa, por isso, pela afirmação de vozes passíveis de exprimir os laços de afinidade que ligam indivíduos e grupos empenhados na autentificação dos processos de corporização do desejo. Porém, passa ainda pelo reivindicar da validação sócio-cultural e científica de todo um conjunto de conhecimentos, práticas e teorias femininas (ex. as ‘teorias do tomar conta’), alojados nas texturas de espaços disciplinares como ‘a casa’. Isto, como modo de fortificar todo um conjunto de geografias intersticiais que historicamente tomaram lugar na clandestinidade e que funcionaram como fontes de ansiedade e opressão, associandose frequentemente a práticas de violência e marginalização. Neste sentido, se as perspectivas críticas mantém sob escrutínio a revisão de todo um quadro Humanista de valores e ideologias, elas debruçam-se significativamente sobre as narrativas e histórias da ciência e tecnologia perspectivadas como paradigmas do racionalismo que operaram agressivamente para a ‘naturalização’ desse mesmo quadro, pelo modo como possibilitaram a autentificação das redes de poder, verdade e do sujeito masculino, branco, burguês e heterossexual. Um segundo grupo de questões, que sintetiza o complexo quadro das problemáticas aqui convocadas, prende-se também com os aspectos da identidade sexual e da cultura heterossexual na sua relação com ‘os corpos direitos da teoria’.96 Tal diz respeito, muito concretamente, ao modo como se configuraram os actores na construção das categorias etno-específicas de natureza e cultura. Ao potenciarem o reconhecimento do indivíduo e dos grupos em categorias identitárias específicas, as teorias convencionais de reinscrição das conexões entre desejo-género-sexualidade enfatizam a consistência comunitária orientada por narrativas de uma história única e de uma geografia única que excluem a parcialidade e que não fazem sentido das descontinuidades e dos movimentos de fronteira. A necessidade de uma genealogia crítica que integre as diferentes comunidades sexuais assim como as identidades descontinuas e de contacto, prende-se com a urgência de revelação das contradições do desejo 61 Geografias do Corpo que saturam qualquer história cronológica da identidade heterossexual. E isto, para além das profundas contradições que emergem da própria ontologia das identidades heterossexuais, estruturada sobre a ideia de um compromisso político, moral e económico perpetrado sobre os corpos individuais alegadamente homogéneos.97 Arriscarei uma explicação mais aprofundada deste ponto de vista. Como forma de documentar a complexidade do momento presente, o esforço de clarificação das formações discursivas em que a heterossexualidade é usada para manter um sentido claro das fronteiras entre identidades sexuais ‘reconhecíveis’, funciona como meio de contestar o modo como foi secularmente posta à distância a sexualidade feminina. Tal esforço, funciona ainda como meio de contestar os mecanismos usados para silenciar as fissuras entre identidade e desejo que turvaram o conhecimento íntimo ‘da mulher’. Integrando uma tensão sexual que mutila as relações de género e que fragiliza a comunicação entre os indivíduos de sexo feminino, esta fissura encontra no mundo das representações substância compósita de sedimentação. Dentro deste mundo, ideias como a de paisagem (‘natureza original’ ou ‘mãe-natureza) funcionam como suturas culturais, como construções dispostas para alojar os novelos do inconsciente onde se animam as batalhas dos corpos e das representações. E é para a relação entre as construções culturais de paisagem, natureza e corpo feminino que chamo agora à atenção. Apresentando nas histórias do sexismo, racismo e colonialismo, uma constituição discursiva de Outro, a ideia de natureza tem sido alvo de reificação e possessão, oferecendo o sentido de uma origem e de uma matriz de recurso para exploração humana. A ideia de paisagem funciona aqui como substrato onírico de celebração de um mundo original, uma essência ou instância transcendental98 que o ser humano contempla por via da representação, num momento em que a descontextualização tecnológica configura uma radical experiência de desnaturalização da natureza.99 Uma experiência em que os mais diversos artefactos se tornaram matéria maleável de decisões estratégicas e em que uma particular produção da natureza colocou este Outro no topo da cadeia de produção mercantil.100 O esforço empreendido por diferentes movimentos político-intelectuais no senti- 62 Desgeografização do corpo, uma política de lugar do de demonstrar como um tipo de relação estabelecido no período moderno entre os seres humanos e o mundo não humano e objectual configura um quadro insustentável de violação da natureza (e da mulher), remete para o espectro antropocêntrico (e androcêntrico) dessas mesmas relações. Uma particular espacialidade configurou-se no período moderno por via das representações culturais de natureza, lugar e paisagem e sob o efeito de uma crescente instrumentalização do ‘outro não humano’. Como construção cultural, a ideia de natureza emerge legitimada por um quadro imperialista de valores alicerçado na separação dos actores-agentes de produção do mundo. A separação entre actores de produção passivos e activos configura um dos mais graves mal entendidos da construção ideológica ‘do Ocidente’, construção alicerçada por formações discursivas cuja particularidade histórica remete para uma espacialidade nutrida pela especificação estanque dos lugares do sujeito e do objecto, perspectivados os últimos como corpos passivos de acção. De uma maneira muito clara, a definição de paisagem cultural estabelecida pela Escola de Berkeley reflecte este posicionamento; ‘a cultura é o agente e a natureza o médium’.101 Passou-se pois, e subliminarmente, de um quadro de determinismo ambiental para um quadro de determinismo cultural. Exprimindo o papel privilegiado (e actuante) do ‘agente’ sobre o ‘médium’, assim como a instrumentalização do segundo pelo primeiro, a antinomia natureza/cultura ilude o estatuto de co-actuação dos diversos agentes sócio-materiais. Minuciosamente analisado por Bruno Latour,102 o carácter de co-produção do mundo por uma miríade de ‘actuantes’ remete para a constituição mútua da experiência vivenciada e para o papel dos agentes humanos e não-humanos nesse processo. A ênfase na redistribuição da acção pelos mais diversos actuantes responsáveis pelo fabrico sócio-material do mundo, remete para o exame das distinções categóricas entre humanos e não-humanos, assim como para as redes de figuras, corpos, documentos e sistemas de codificação que através das suas performances definem hoje os contornos formais e operativos desse sistema.103 Forçando a revisão de um imaginário geográfico centrado sobre as categorias exclusivas de natureza e cultura, o debate emergente 63 Geografias do Corpo em torno de um novo nexus entre natureza e cultura debruça-se sobre o significado da materialidade desde uma perspectiva relacional. Implicado com a exploração da existência ontológica da natureza, este debate indaga os modos de participação mútua da natureza e cultura, contestando uma tradição filosófica alicerçada sobre os dualismos humano/não-humano, mente/corpo, ideal/material, representação/realidade.104 O cerne deste debate prende-se com a condição inter-mediática da natureza e cultura, uma vez que a fisicalidade da primeira é deslocada através de formações discursivas que informam as práticas culturais e, concomitantemente, ao informar essas práticas, o domínio da materialidade inaugura as versões construídas que dela recebemos. As políticas de uma ‘primeira natureza’105 veiculadas pela cultura moderna antropocêntrica assentam sobre a ideia de que as relações entre as instâncias do humano e do nãohumano são mutuamente exclusivas e determinadas culturalmente. Neste sentido, um determinismo cultural/natural subjaz as políticas e ideologias dominantes, impedindo que se tenha em conta uma série de relações mutuamente constitutivas que se estabelecem continuamente entre os diversos actuantes sócio-materiais. Tentando detonar tais políticas, outras abordagens contrapõe-lhes as políticas de habitação e de errância, defendendo que o acto de habitar o mundo não é uma questão que diga respeito apenas aos humanos, pois não se trata simplesmente de ‘um conjunto de interacções sociais entre objectos previamente constituídos’.106 Indagando as diferentes formas de habitar o mundo, as políticas de habitação e de errância associam-se às políticas de representação como estratégias mobilizadas pelas instâncias críticas para superação dos modernos paradigmas de cognição do mundo. A ênfase na constituição semiótico-material do espaço é extremamente relevante para o aprofundamento deste debate, pois invalida a convencional formulação dos corpos-no-espaço e rompe com o dualismo cultura/natureza. Efectivamente, se insisto nesta formulação, faço-o apoiada pelo trabalho de inúmeros autores e autoras que defendem que o significado não diz respeito apenas a instâncias culturais ‘puras’ mas que inclui igualmente os fenómenos materiais. Neste sentido, a semiótica material funciona como meio de expan- 64 Desgeografização do corpo, uma política de lugar dir ‘o registo da semiótica para lá da sua preocupação tradicional com a significação como ordenamento linguístico, (uma expansão que inclui) todos os tipos de ‘condutores de mensagens’ e processos materiais tais como dispositivos técnicos, instrumentos e grafismos, assim como capacidades corporais, hábitos e competências’.107 Abrindo caminho para a compreensão dos ‘modos como os significados estáveis são construídos através de um vasto conjunto de acções e agentes’,108 a semiótica material permite-nos concentrar sobre as formas de construção dos mundos tendo em conta a ligação que é estabelecida entre os diferentes sistemas. No campo das práticas de construção do conhecimento científico como cultura pública, a semiótica material funciona como técnica de tradução que abre campo para a explanação parcial. A ênfase nas ligações entre os diferentes espaços como sistemas semiótico-materiais, dá origem a uma análise orientada para as relações em rede, uma análise que rejeita as leituras baseadas na divisão entre sujeito e objecto e nos tradicionais quadros de sujeição. Explicando a co-constituição dos mundos por autores humanos e não-humanos,109 a semiótica material ‘reconhece cadeias de tradução-transferência de tipo e extensão variados que entretecem som, visão, gesto e olfacto através de todas as espécies de corpos, elementos, instrumentos e artefactos’.110 Através dela, explicitam-se as políticas de residência tendo em conta as redes que articulam a produção humana e não-humana. Deste modo, desestabilizam-se as divisões entre sujeito e objecto, presença e ausência, e isto como forma de aproximar o conhecimento íntimo dos sujeitos-objectos do conhecimento e acção.111 Orientada para uma visão do mundo como uma multiplicidade de diferentes conexões (traduções, associações, mediações), a teoria dos actores em rede112 profundamente alicerçada pelos trabalhos de Bruno Latour e Michel Serres é referência crucial para o presente debate. Apesar de não dispor de espaço suficiente para uma explanação aprofundada desta teoria e respectivas repercussões, para a tarefa que persigo de desgeografização dos corpos, gostaria tão somente de concluir este capítulo deixando no ar algumas ideias centrais passíveis de conduzir a uma discussão futura mais ampla. 65 Geografias do Corpo Empenhadas com uma reescrita do mundo, diversas autoras e autores colaboram hoje no projecto político-intelectual de reescrever a ‘constituição’ do conhecimento, propondo uma epistemologia renovada em grande medida assente na teoria dos actores em rede. A semiótica material é parte integrante deste projecto, constituindo um corpo teórico-prático debruçado sobre a problemática de uma ‘engenharia heterogénea’113 como instância de fabrico de conexões com base numa imensidade de materiais físicos e semióticos. Para Nigel Thrift114 a constituição do conhecimento proposta pela teoria dos actores em rede assenta, antes de mais, na recusa das fronteiras convencionais dentro das quais se constituiu o conhecimento ocidental, entre elas as fronteiras entre humanos e não humanos e natureza e cultura. De acordo com esta proposta, tais divisões ‘impossibilitam a visão do mundo de acordo com aquilo que ele é: uma compilação de actividades heterogéneas constantemente em formação’.115 Perspectivado como uma série de actos de engenharia heterogénea, o mundo é constituído por diversas redes de associação que, por seu turno, são constituídas pelas ligações mais do que pelos nós dessa rede. Mas, o mundo é também constituído pelo tráfego através dessas ligações, pelo que, a rede é constituída ‘na passagem’ e os diversos actuantes que configuram essa passagem constituem a fonte da acção no mundo, uma acção de conexão parcial entre múltiplos actuantes envolvidos num momento de partilha.116 Dependente da circulação e dos fluxos que se organizam ‘na passagem’, a existência (e continuidade) da rede de actuantes assenta em toda ‘uma série de ‘mobiles imutáveis’ – instrumentos, tipos de pessoas, animais, capital, entre outros, que podem ser transportados de um local para o outro sem mudar de forma’.117 Isto assegura a continuidade das redes em associação com o trabalho dos ‘mediadores e intermediários’,118 uma figura equivalente aos ‘mensageiros’ de Serres,119 por si encarados como os elementos mais importantes que operam para assegurar a conexão entre as redes. Funcionando como meio de compreender as relações entre natureza e tecnologia, a teoria dos actores em rede problematiza o acto de representação, encarando essas relações como ‘um caleidoscópio de diferentes modos representacionais que interferem entre si e que 66 Desgeografização do corpo, uma política de lugar apenas podem ser brevemente estabilizados’.120 Mais, esta proporciona ainda meio de entender os fenómenos como ordens de conexão parcial dado que os próprios fenómenos são encarados como ‘consequência do modo como os corpos se relacionam uns com os outros’.121 Entendidas como estratégias de aproximação aos espaços de alteridade e procurando versões de teoria social menos centradas no sujeito humano, a teoria dos actores em rede, a semiótica material e a análise relacional, buscam a ligação entre fenómenos para além do seu estatuto ontológico aparente.122 Neste contexto, a superação de uma ‘ontologia da divisão’ (sujeitos humanos e objectos não humanos), passa pela aproximação a uma ‘mesmidade residual’, uma susceptibilidade partilhada pelos actuantes latourianos que lhes proporciona base de ligação.123 Daqui se vislumbram as possibilidades de mudança de um nexus cultura/natureza para um nexus culturanatureza, tendo em conta uma diferente semiótica em que não são apenas os elementos presentes que contribuem para a construção da ordem social pois os elementos ausentes ou colocados fora dessa ordem integram essa mesma construção. Tendo em conta as propostas de Latour e um nexus teórico alicerçado sobre a ideia de separação material entre humanidade e natureza, desvela-se uma ilusão que serviu para potenciar o poder orientado para um conhecimento especializado da natureza com vista à sua exploração124. Com uma longa história de promiscuidade material, humanidade e natureza são sujeitos às dinâmicas da produção capitalista, num momento em que a ciência moderna e a tecnologia intervêm activamente na própria produção da natureza. Dentro de um nexus de culturanatureza, em que o ‘construcionismo artefactual’125 define os contornos básicos deste complexo, indagam-se os processos históricos de sujeição e o modo como as nossas experiências são por estes profundamente estruturadas. Pensar os mecanismos de formação da subjectividade num quadro em que a natureza é perspectivada como ‘co-construção de humanos e nãohumanos’126 implica, portanto, a revisão dos legados fundacionalistas que colocam a subjectividade como pristina, intocada pelo corpo e matéria. Dentro deste quadro crítico e revisionista, denuncia-se a metaforização da natureza nos termos do feminino nomeadamente 67 Geografias do Corpo pelo modo como consolida o ‘desejo persistente de domesticação do espaço, por forma a trazê-lo para um horizonte humano e, mais importante ainda, para ‘contê-lo’ dentro deste horizonte’.127 Integrando diferentes formas de poder através das quais as noções de natureza foram feminizadas até um ponto em que o domínio da natureza reflecte o domínio ‘da mulher’ na sociedade,128 a formação social da natureza inclui um conjunto de políticas culturais que funcionaram como modo de obscurecer e marginalizar as forças activas de uma e outras. Expandindo as categorias daquilo que conta como material (daquilo que é visto como material e daquilo que não é), tal desafio encontra-se associado ao trabalho político do conhecimento, tentando fazer-se com que a teoria opere em contextos políticos por forma a contrariar a tendência pós-moderna de diluição de um sentido claro de contexto.129 Neste sentido, a ênfase nas abordagens relacionais em que a natureza é perspectivada como artefactual e integra os circuitos de produção cultural incluindo as metáforas e narrativas, os corpos biológicos e os sistemas de codificação digital,130 prende-se com a necessidade de refutar uma longa história de pensamento em que a matéria e o corpo foram encarados como entraves à Razão. Conclusão O reclamar dos ‘espaços-fora’, dos ‘espaços diferenciais’ ou de um ‘espaço paradoxal’ encontra-se associado à tentativa de gerar espaços de emancipação dos corpos de sujeitos múltiplos. Espaços que se pretendem libertos dos sistemas de significação que percorrem o pensamento moderno estruturado sobre conceptualizações binárias como Eu/Outro, natureza /cultura . Tal ‘estética masculinista’,131 satura a superfície de observação na qual se especializou a cultura ocidental, uma superfície que opera através de geografias imaginativas que inibem a emancipação dos espaços da subjectividade. Para Doreen Massey,132 estes espaços são integralmente conceptualizados em termos de espaço-tempo, da ideia de que o mundo vivenciado é uma simultaneidade de espaços nos quais as relações sociais são experienciadas e interpretadas diferencialmente. Como figuras orientadas para o detonar das modernas espacialidades articuladas por discursos oficiais masculinistas e respectivos sistemas de signi- 68 Desgeografização do corpo, uma política de lugar ficação, os espaços paradoxais dos corpos femininos estribam numa ‘geografia da ambivalência’,133 uma arena de explanação e de acção que integra o imaginário e as práticas das mulheres e que rompe com uma geografia do sujeito único. Propõem-se, assim, a passagem de uma geografia dos corpos enfáticos (a geografia com G maiúsculo) que replica as exclusões masculinistas do Eu e do Outro, para uma geografia dos corpos ambivalentes que potencia múltiplos eixos identitários passíveis de operar na estruturação de sistemas de significação alternativos.134 Se, a primeira, potenciava a circulação de imagens de ‘outros’ essencializados em que os corpos funcionavam como modo de consolidar sentidos de pertença e laços identitários, a segunda afirma-se como potencial arena de resistência a toda uma política de representações profundamente nutrida pela mobilização ideológica dos corpos femininos ao serviço de utopias políticas de pertença cultural. A sugestão de Rogoff de estudo das representações dos corpos femininos como arenas de ambivalência geográfica em que se fundem as quimeras de ocidentalidade e masculinidade, prende-se com a necessidade acusada de superar uma filosofia alicerçada sobre a potente fissura entre corpo e mente (natureza/cultura). Uma fissura através da qual se definiram os termos de subordinação do primeiro pelo segundo, estabelecendo-se, dentro de uma dinâmica de expulsão-negação, as fronteiras e as margens do sujeito.135 A leitura dos corpos ambivalentes não através da ideologia oficial mas pelos contextos da sua própria subjectividade, permite a abertura de um espaço paradoxal baseado numa inteiramente nova ‘geometria da diferença e da contradição’,136 um espaço em que as identidades de lugar são múltiplas e dinâmicas, produto da presença assim como da ausência, mas sempre resultantes de uma subjectividade hegemónica.137 Como salienta Doel,138 a ‘(d)iferença, assim, é a condição da (im)possibilidade da identidade’, a qual não se coaduna com debates em torno da integridade de espaço ou lugar associados aos modos de um ‘pensamento sedentário’. Para este autor, o diferencial de espacialização da alteridade encontra-se mais na vibração da singularidade, da multiplicidade, encaradas como instâncias que continuamente desafiam qualquer percepção mitologizada de um mundo 69 Geografias do Corpo unitário habitado por corpos disciplinados tornados paralelamente instrumentos do trabalho e do desejo de um ‘outro’. Neste mundo unitário em que ‘a mulher subsiste e transpira através de uma identidade fluida, prisioneira de (um) lugar, ou antes disseminada ao longo do espaço-tempo inteiro, como um fantasma na máquina falocêntrica’,139 o sentido de pertença à categoria do feminino encontra-se prisioneiro de uma série de nostalgias crípticas avidamente derramadas no aparato imagético ocidental que a tecnologia desmultiplica. A chamada de atenção para o modo como o espaço é generificado tem funcionado, para muitas geógrafas, como forma de sublinhar a complexa construção dos corpos sexualizados e do desejo através de narrativas totalizadoras que se vêm recodificadas pelo trabalho de imagens e representações. Daqui, auscultam-se as ambivalências da subjectividade e da pertença, e põe-se sob escrutínio toda uma tradição filosófica e de representação que operou na cultura ocidental e significativamente através do corpo feminino. No meu caso, ao apelar à necessidade de desgeografização do corpo, faço-o, tendo em conta os processos de corporização da teoria, como questão metodológica e epistemológica central para a reorganização do conhecimento científico, percebido como cultura pública. As práticas de desgeografização do corpo, dentro das quais incluo o método de desconstrução dos modernos conceitos geográficos, os actos quotidianos de tradução e a semiótica material, funcionam como práticas científicas e como formas alternativas de construção de um conhecimento situado. Formas que, ao partirem da explanação parcial, têm em conta os mecanismos de auto-afeição e de afectação recíproca de corpos e sujeitos, engendrados nos espaços intersticiais da diferença. Emergindo daquilo que Susan Sontag designou por uma erótica de intersubjectividade, estes são os espaços de enunciação das dinâmicas generativas do sistema emotivo, bem como das pulsões geopsíquicas, da sexualidade e do desejo. Deste modo, persigo a tarefa de emancipação do meu corpo como lugar de contacto, através do qual reclamo a participação do Outro na experiência vivenciada de co-construção do mundo. 70 Desgeografização do corpo, uma política de lugar Notas I. Rogoff (2000:21). 2 H. Lefebvre (1991). 3 M. Jay (1994). 4 O desenvolvimento aprofundado desta questão pode encontrar-se na obra de A. F. Azevedo, (2008). A Ideia de Paisagem. Figueirinhas: Porto. 5 I. Rogoff (2000:33). 6 Harley (1997). 7 Perspectivado como uma extensão da mente (speculum), o conhecimento alicerçava-se sobre a reflexão intelectual (um análogo da representação dos objectos num espelho). Emergindo da prática matemática disciplinada da superfície de observação (objectiva), o conhecimento era organizado por um self especular que funcionava como espelho tanto dos seus próprios conteúdos como do domínio das coisas materiais objectivas (entidades quantificáveis). Aspirando a um ponto de vista fixo, o conhecimento perseguia a objectividade, interpretada como a “verdade” de uma percepção absoluta. Adoptando um papel espectatorial, a mente inspeccionava ou introspeccionava os seus conteúdos, tornando a Natureza em objectos de reflexão, eventos mentais ou representações. Consequentemente, o mundo era perspectivado como objecto estranho e o conhecimento como faculdade de testemunhar. Daqui irradiava um discurso especular alicerçado sobre a distinção entre mente e corpo (ou o mundo dos objectos naturais), dualismo que contaminou a cultura científica moderna. Como elemento de um processo de intervenção calculada, manipulação e controlo, a ideologia especular alicerçou uma concepção mecanicista da natureza como totalidade de recursos exploráveis. Para uma discussão mais aprofundada sobre a fé na representação visual e a sua importância para a moderna interpretação da natureza como ordem mecanicista consultar o trabalho de Barry Sandywell (1999). 8 M. Jay (1994:49). 9 Integrando uma retórica da percepção interior associada à reflexão especular, a filosofia moderna do humanismo colocou a representação visual no centro dos processos cognitivos. A concepção espectatorial do conhecimento incorporou a concepção cartesiana da relação do cogito com os objectos como fundação do conhecimento objectivo. 10 N. Denzin (1995). 11 N. Denzin (1995:26). 12 M. Jay (1994:81). 13 J. Duncan (1997). 14 J. Crary (1994:25). 15 D. Gregory (1998). 16 Dentro do paradigma da moderna concepção da mente esta é perspectivada como o teatro profundo das representações cognitivas (Shcopenhauer, 1995). A moderna questão da subjectividade entronca, pois, na invenção e disseminação de novos paradigmas de identidade (des)territorializada e (des)tradicionalizada, “o mundo é ideia” (Shopenhauer, 1995:3), como produto de uma muito específica constelação de transformações sócioeconómicas, políticas e intelectuais que lançaram as fundações para a moderna cultura burguesa. Neste quadro, a celebração da autonomia da 1 71 Geografias do Corpo percepção interna cognitiva, decorre de uma mudança paradigmática que tomou lugar entre o Renascimento e o Iluminismo. Dentro desta, operou-se a deslocação de uma cosmologia religiosa dominante herdada da tradição filosófica da Antiguidade e da Idada Média Cristã para uma visão da natureza e realidade como totalidade de objectos; a passagem de um cosmos teocêntrico para uma visão do mundo androcêntrica. A filosofia de René Descartes é considerada tradicionalmente como o apogeu deste processo de viragem paradigmática. 17 J. Duncan (1997). 18 J. Duncan (1997:41). 19 D. Cosgrove (2004:254). 20 Berger (1972). 21 Casey (1998). 22 D. Gregory (1998). 23 D. Gregory (1998). 24 Perspectivada ao tempo como forma mais democrática de identidade, uma ontologia alicerçada sobre a evidencia científica foi separada da Fé, e considerada como esfera autónoma. Suplantando as hierarquias ontoteológicas tradicionais, a ontologia moderna separou “mente” e “alma” de um cosmos divino condensando-as numa ideia de percepção interna de um ego pensador. Neste processo, o intelecto é separado do corpo (distinção entre espírito e natureza visível) e o sujeito autónomo começa a relacionar-se com as suas cogitationes como espelho representacional do mundo; “Nenhuma verdade é mais certa, mais independente de todas as outras, e menos sem necessidade de prova do que esta, de que tudo o que existe para o conhecimento, e, como tal, todo o mundo é apenas objecto em relação ao sujeito, percepção daquele que percebe, numa palavra, representação (…) Tudo o que, de algum modo, pertence ou pode pertencer ao mundo é inevitavelmente, e, como tal, condicionado pelo sujeito, existindo apenas para o sujeito. O mundo é ideia.” (Schopenhauer, 1995:3). Limitada aos factos da percepção interna (do sujeito), a filosofia moderna é essencialmente idealista, nutrindo uma epistemologia introspectiva e de reflexão e uma linguagem de interioridade/exterioridade (experiência interna/externa) que legitimou as tecnologias do sujeito do humanismo. Neste quadro, de uma cartografia “rigorosa” dos mecanismos da mente e dos trabalhos da consciência moral, o acto de objectificação de uma natureza externa por cientistas como Galileu, seria acompanhado pelo mapeamento do mundo físico. No decurso da sua construção moderna, a paisagem foi apanhada neste processo, um processo dentro do qual as imagens visuais da mente e natureza ajudavam a legitimar a ideia de que os limites da objectividade coincidem com os limites a priori da representação visual. 25 E. Casey (1998). 26 E. Casey (1998:303). 27 É importante localizar a retórica de Descartes dentro de uma retórica de auto-reflexão que caracterizou a filosofia moderna e que preparou caminho para a acção moral autónoma e para o domínio racional da Natureza. Dentro desta retórica, o mundo é reduzido a representações ordenadas pelo desejo do intelecto 72 Desgeografização do corpo, uma política de lugar matemático. Perspectivada como um domínio externo ao sujeito racional, como uma “selvajaria” ameaçadora, a Natureza deveria ser colocada sob sua jurisdição e disciplinada pelo trabalho combinado da análise científica, matematização e controlo técnico. Nestes termos, “o mapeamento do espaço físico através das regras da perspectiva renascentista inspirou a paixão oitocentista pela geometrização da paisagem por forma a criar uma ‘mindscape’ de Razão e Ordem onde o Ego burguês poderia encontrar a assinatura dos seus próprios poderes” (Sandywell, 1999:36). Daqui se organizou um ponto de vista privilegiado sobre o território e sobre o Outro. 28 M. Jay (1994:42). 29 H. Lefebvre (1991). 30 Variando com a forma de produção, as matrizes espaciais resultam das formas de apropriação histórica e social do espaço. Para uma recapitulação da sequência histórica das formas de apropriação do espaço social consultar o artigo de Nicos Poulantzas (2003). 31 H. Lefebvre (1991:90). 32 H. Lefebvre (1991:113). 33 A reflexão-introspecção como elemento essencial de uma narrativa epistemológica moderna. 34 A tradição do idealismo alemão dos finais do século XVIII e início do século XIX construiu o “ego transcendental” como base da razão e a percepção constitutiva do mundo. A ideia da viagem (interior) mitológica do herói moderno, o sujeito racional no controlo das paixões (a mente a dominar o corpo) associa-se aqui à produção de conhecimento, à Theoria do pensamento moderno, produzida por um autor-espectador, numa relação atemporal e aespacial com o mundo visível dos objectos. Kant foi um dos principais autores de uma filosofia transcendental em que os conteúdos da mente são tanto reflexões de um mundo de eventos causais determinado por princípios euclidianos como “ideias puras” implantadas pela Natureza. O Eu epistémico ou o sujeito transcendentalizado da filosofia alemã do Idealismo, assentavam numa ideia de cognição como um tipo de contemplação interna conduzida por um mediador solitário. 35 M. Foucault (1984:117). 36 M. Foucault (1984). 37 A alegada independência do campo de observação como arena cognitiva de um grupo constitutivo de sujeitos. 38 Almansi (1982). 39 Foucault (1972:194). 40 Blacksell (2000). 41 Casey (1993). 42 Veness (2001). 43 Barnes e Gregory (1997:295). 44 D. Massey (1997). 45 McDowell & Sharpe (1997:3). 46 Blacksell (2000:803). 47 A ideia de um exterior constitutivo funciona neste quadro como meio de enfatizar o modo como a identidade é sempre definida em relação a algo que lhe é alegadamente exterior e habitada por aquilo que não é. 48 R. Shields (1997:186). 49 Uma apropriação do corpo dos diferentes sujeitos sob o signo de uma identidade única e “essencial”. 50 MacKinnon (1998). 51 Lladó Mas (2009). 52 R. Shields (1997:186). 53 R. Shields (1997). 54 J. Urry (2000). 55 P. Joyce (2001). 56 B. Latour (2000). 57 Tendo inspirado novas abordagens 73 Geografias do Corpo nas Ciências Sociais dentro das quais se destaca a Teoria dos Actores em Rede (ANT) implicada com uma reescrita do mundo e com o enfatizar de uma nova visão do mundo como multiplicidade de diferentes conexões, o trabalho do sociólogo Bruno Latour explora as relações entre ciência e tecnologia, assentando sobre a ideia de que a “tecnologia é a sociedade tornada durável” (2003:5). 58 D. Haraway (1991:196). 59 Mais do que perspectivar uma sociedade ou comunidade como caracterizada por uma cultura dominante, entende-se hoje que qualquer sociedade é constituída por indivíduos actuando num mosaico de diversas subculturas ou mundos da experiência, os quais se movimentam numa inter-relação espacio-temporal e dialéctica. Para uma compreensão mais aprofundada da perspectivação da sociedade como mosaico subcultural consultar a obra de Robert Prus (1997). 60 Mito alicerçado sobre a ideia de uma unidade “essencial” de grupos específicos que autorizam retóricas dominantes. 61 MacKinnon (1998). 62 Processos viabilizados pelos modelos de pensamento estruturalista e pós-estruturalista, assim como pela introdução específica das teorias de diferença cultural e sexual. 63 J. Derrida (1974). 64 A noção de geografias impuras é desenvolvida por Derek Gregory e outros autores e autoras em Johnston et al (2000). 65 Referimo-nos aqui, e especificamente, à divisão cartesiana entre mente e corpo, assim como à valorização da primeira em relação ao segundo. 66 A ênfase na performatividade, ou desempenho dos corpos, associa-se ao conjunto das abordagens emergentes dentro das quais a actividade do corpo é elemento determinante do acto de produção de conhecimento. Nestes termos, o corpo é perspectivado na sua relação com o discurso ou tipos de discursos a que dá origem, e reconhecer a performatividade de um discurso é reconhecer o seu poder, isto é, a sua habilidade para produzir os efeitos que nomeia (Butler, 1993). 67Alude-se a todo um quadro dentro do qual a teoria é perspectivada como intervenção política, e o conhecimento é desenvolvido por forma a modelar activamente a “realidade” mais do que a reflecti-la passivamente. 68 Lauretis (1988:1). 69 Lauretis (1988). 70 Lauretis (1988:26). 71 É dentro destas práticas que geógrafas como Katherine Gibson e Julie Graham (1996, 2005) desenvolvem uma crítica feminista à economia política do capitalismo. Implicadas com a exploração de práticas e discursos promotores da diversidade económica como contributo para uma política de inovação económica, as autoras revêem o constructo de desenvolvimento económico explorando narrativas de transformação regional e a habilidade para a criação de conhecimento e prática, através da investigação-acção participatória com comunidades. 72 Lauretis (1988). 73 Irigaray (1985). 74 I. Rogoff (2000). 75 I. Rogoff (2000:145). 76 Remetemos aqui para a questão do “desejo do sujeito” como 74 Desgeografização do corpo, uma política de lugar origem de toda uma ontologia. Envolvendo a revisão das teorias psicanalíticas clássicas, esta questão é central na teoria feminista contemporânea. 77 Irigaray (1977:26). 78 Irigaray (1977:26). 79 Irigaray (1977). 80 Moss & Dick (2004:60). 81 Lefebvre (1991:42). 82 Como unidade fundamental da comunicação, a utterance representa, neste quadro, o momento de enunciação do contacto entre sujeitos ou/e entidades. Um momento que ocorre pelo efeito dos diferentes mecanismos e instâncias envolvidas para tradução do conteúdo da comunicação. A partir dele ocorre o diálogo. Em certo sentido, a utterance é mais importante do que a linguagem (ela própria envolve as mais diversas linguagens no acto do contacto), na medida em que é através dela que primeiramente se estabelece a comunicação. Tal concepção é, neste sentido, eminentemente bakhtiniana, não devendo confundir-se o seu uso com o conceito saussuriano de “parole”. Propondo uma ideia de utterance como situação de discurso de comunicação, uma situação activa, performativa e dialogante, Mikhail Bakhtin (1990) considera-a como base do dialogismo. Para si, aprender a falar é aprender a construir utterances, o que envolve paralelamente um lado expressivo da comunicação e um lado de tradução dos significados envolvidos. E é precisamente neste ponto que se opera o acto de enunciação cultural. 83 Moss & Dick (2004). 84 Moss & Dick (2004:58). 85 O sujeito fracturado e heterogéneo do pós-estruturalismo, o “actor semiótico-material” de Haraway. 86 Perspectivada como prática reiterativa e citacional através da qual os discursos produzem os efeitos que nomeiam (Butler, 1993), a actividade performativa no que respeita às questões de género é alvo de atenção por parte das feministas. O estudo da performatividade de género tem como objectivo mostrar que a identidade de género é praticada através da performance repetitiva de actos determinados que, ao serem continuamente reactivados, asseguram o seu carácter alegadamente fixo. 87 Haraway (1991:195). 88 Trinh Minh-ha (1986). 89 D. Haraway (2004:223). 90 D. Haraway sugere uma relacionalidade corporizada como “profilaxia” para o relativismo e transcendência. 91 D. Haraway (2004:237). 92 Donde a relevância fulcral do trabalho de Bruno Latour para estas teorias, pelo modo como elucida sobre o carácter artefactual da experiência. O seu alinhamento de actores e actuantes humanos e não humanos numa rede de relações dentro das quais se processa acção e comunicação, representa um passo significativo para uma nova compreensão dos complexos mundos da experiência e intersubjectividade. 93 A “semiotic square” de Haraway, um modelo analítico proposta pela autora como “política regenerativa para os outros inapropriados” (2004:78), configura uma valiosa contribuição para a compreensão desta ideia de construção semiótico-material. Explorada em parte subsequente deste estudo, 75 Geografias do Corpo esta ideia detém um papel crucial nas teorias emergentes, pelo modo como permite reequacionar o “natural” e o “artefactual”. 94 Hemmings (2002). 95 Natureza, espiritualidade, valores estéticos e morais, são algumas das dimensões que caracterizam simbolicamente a mulher. 96 Hemmings (2002: 328). 97 Donde o lugar de destaque ocupado pelo trabalho de Foucault no conjunto da teoria feminista contemporânea. 98 A ideia oitocentista de que através das representações em paisagem a Natureza se representa a si mesma, e de que uma identificação entre Real e Imaginário que ocorre através destas representações funcionaria como uma certificação da realidade das nossas próprias imagens, contribuiu decisivamente para este processo. 99 Hayles (1990). 100 D. Haraway (2004). 101 C. Sauer (1925). 102 B. Latour (1993). 103 B. Latour (1999). 104 N. Castree (2004). 105 Decorrentes da ideia de uma natureza primordial intocada pelo ser humano e exterior a ele. 106 Rajchman (2000). 107 S. Whatmore (1999:29). 108 Hinchliffe (2004:217). 109 Latour (1993). 110 S. Whatmore (1999:30). 111 Hinchliffe (2004). 112 Desenvolvida em Geografia por autores como Nigel Thrift e Sarah Whatmore, a teoria dos actores em rede encontra-se implicada com a exploração de uma sociologia da ciência e com a re-escrita da constituição do conhecimento ocidental. 113 Thrift (2000). 114 Thrift (2000). 115 Thrift (2000:5). 116 Thrift (2000). 117 Thrift (2000:5). 118 Thrift (2000). 119 M. Serres (1996). 120 Thrift (2000:5). 121 B. Latour (1997:174). 122 Hetherington & Lee (2000:174). 123 Hetherington & Lee (2000). 124 Para uma discussão sustentada da problemática da produção da natureza nas sociedades capitalistas consultar o trabalho de Noel Castree (1995; 1997; 2000; 2005). 125 Demeritt (1998). 126 D. Haraway (2004). 127 Best (1995:183). 128 Rose (1993). 129 Probyn (2004). 130 D. Haraway (2004). 131 G. Rose (1993). 132 D. Massey (1994). 133 I. Rogoff (2000). 134 I. Rogoff (2000). 135 Grosz (1994). 136 D. Massey (1994). 137 G. Rose (1993). 138 M. Doel (1999:51). 139 M. Doel (1999:83). Bibliografia Almansi, R. J. 1982. ‘Alfred Hitchcock’s Disappearing Women: A Study in Scopophilia and Object Loss’. International Review of Psycho-Analysis, 19, p. 81-90. Azevedo, A. F. 2008. A Ideia de Paisagem. Porto: Figueirinhas. Bakhtin, M. 1990. Art and Answerability. Early Philosophical Essays. Austin: University of Texas Press. 76 Desgeografização do corpo, uma política de lugar Barnes, T. e D. Gregory, eds. 1997. Reading Human Geography. The Poetics and Politics of Inquiry. London, New York, Sidney e Auckland: Arnold. Berger, J., S. Blomberg, C. Fox, M. Dibb e R. Hollis. 1972. Modos de ver. Lisboa: Edições 70. Best, S. 1995. Sexualizing Space. In E. Grosz e E. 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Desafiar a ordem cósmica e roubar do Olimpo a semente do fogo para a entregar aos humanos mortais, conferindo-lhes o poderio técnico e a autoridade e a glória do domínio da Terra e das suas criaturas, era algo que não podia ficar impune. O séc. XIX, que inventou o cientismo e o materialismo, viu no mito uma espécie de delírio colectivo de mentes mais ou menos ineptas, um logro inventado por e para gente de espírito simples incapaz de entender o que aos seus olhos se apresentava. A história de Prometeu não tem contudo de ser vista pelos olhos do séc. XIX. Parte da filosofia do séc. XX dedicou-se a mostrar que o mito não é esse logro e que há nele um potencial para a compreensão do humano e do lugar que este ocupa no mundo. Mircea Eliade, Gaston Bachelard e muitos outros empenharam-se em demonstrar que o mito não é delírio nem fabulação, mas expressão de dimensões da realidade inacessíveis à investigação racional e empírica, constituindo por isso um acto de espírito que funciona ele mesmo como instrumento da revelação. O mito desconhece os factos históricos, é verdade, mas isso em nada Geografias do Corpo o diminui porque não é a isso que ele realmente se refere; ou como declara Paul Ricoeur:1 o mito não pretende ser uma explicação do mundo, da história ou do destino, mas antes uma expressão do “entendimento que o homem faz de si mesmo por relação ao fundamento e ao limite da sua existência”. Será sempre possível não ver no mito de Prometeu mais do que uma explicação fantasiosa ou até infantilizante de como a humanidade acedeu ao domínio do fogo. Isso porém seria aceitarmos ficar pela superfície das coisas. Não é essa verdadeiramente a história que se quer contar através da história de Prometeu. Prometeu fala-nos de algo maior e mais profundo; espelha coisas do coração humano como a vaidade e a ambição, o rancor e a revolta, e essa é certamente a forma correcta de abordarmos a sua história.2 Prometeu escapara ao destino trágico a que os deuses do Olimpo haviam sujeitado os seus irmãos titãs. Zeus poupara-o em troca do dever da criação dos humanos. Sucede que a força, a rapidez e os outros dons físicos haviam já sido consumidos na criação dos animais por Epimeteu. Prometeu não quis que a sua obra ficasse menos capaz. Ambicionou algo maior; foi cobiçoso e desejou para os humanos algo que só aos deuses estava reservado, aproveitando também com isso para vingar a memória da sua raça dizimada. A história de Prometeu mostra-nos que não é de agora nem a ambição deísta (o desejo de se ser mais do que humano, divino) nem uma certa consciência crítica dos riscos que essa ambição comporta, o que funciona como seu contraponto. Mostra-nos que o saber e a tecnologia foram desde sempre vistos como instrumentos pretensa ou potencialmente salvíficos do humano, mas que sobre isso se gerou também desde há muito um certo pensamento de reacção, fundado num sentimento que ou é cautela, ou mesmo medo, ou então é uma simples aceitação das limitações da condição humana. Todos estes estão portanto muito longe de poderem ser considerados problemas única ou até apenas especificamente modernos; o que não invalida que sejam questões que adquiriram na Modernidade novas expressões, senão mesmo um dramatismo antes desconhecido. Procurar sintetizar a Modernidade em duas ou três ideias chave será sempre redutor e simplista. O conceito refere-se a uma condi- 82 Fausto entre nós. Geografias pós-humanas ção histórica particular, com uma forma própria de organização da economia e da sociedade, e a que corresponde também a sua mentalidade. É inquestionável que a Modernidade tem a ver com a economia de mercado, a industrialização e o consumo de massa, com a urbanização e a proliferação dos media, mas não é menos verdade que tem a ver também com o estado-nação, com a burocracia, com as liberdades individuais e as democracias representativas, e ao mesmo tempo, talvez não paradoxalmente, com os piores totalitarismos. Como tem sido notado, conformam a experiência da Modernidade por um lado aspectos como a racionalização, a secularização, a alienação, a anomia, o individualismo e o relativismo, mas também uma espécie de tentação de permanente ‘fuga para a frente’ que decorre de uma deificação do progresso e da inovação, e que acabou por ter como consequência um sentido de desencantamento profundo com o mundo presente e até em certos momentos, ou para determinados grupos da sociedade, com uma aguda experiência de decadência. É frequente considerar-se que a Modernidade é um produto do capitalismo. Não é disparatado pensar isso pois que a produção industrial e os seus modos de organização do trabalho, o consumo de massas e a vida nas grandes metrópoles, constituem dimensões essenciais da experiência da Modernidade. Não se pode todavia dizer que ela deva mais a James Watt e a Taylor do que a Galileu e a Descartes; é mais que claro que foi sobretudo das Luzes e não tanto do vapor que a Modernidade nasceu. Reconhecer isso é crucial para se perceber algumas das consequências que a Modernidade teve na percepção que fazemos da nossa própria condição humana e no modo como nos confrontamos com o drama que o mito de Prometeu narra. Duas decorrências do racionalismo das Luzes sobejamente relatadas e que parecem ter tido efeitos muito evidentes nestes domínios foram por um lado a ‘morte’ de Deus, traduzida numa secularização que praticamente baniu o sagrado do horizonte, seja a vida pública seja a privada, e que atingindo de modo muito particular o mundo ocidental fez nela emergir uma nova sociedade pós-cristã, e por outro a própria ‘morte’ do Homem, isto é, o simples e puro abandono da ideia de que há uma superioridade ontológica na pessoa humana que decorre da descontinuidade metafísica em que 83 Geografias do Corpo esta se encontra face ao restante mundo sensível, ‘morte’ essa que se prenuncia primeiramente em Nietzsche, e que depois será levada ao extremo na crítica que o materialismo e o estruturalismo irão fazer ao humanismo. Ora, a combinação destas duas coisas – a ‘morte’ de Deus e a ‘morte’ do Homem – acabou por redundar na divinização moderna da ciência e da tecnologia, que abriu caminho àquilo que Matei Calinescu3 expressivamente designou de utopianismo, e depois no aparecimento de um novo entendimento do sujeito humano à luz da qual este emerge já não apenas ou já não tanto como beneficiário do progresso, mas mais como um objecto ou meio desse mesmo progresso. Declara Calinescu4 que “Directamente associado ao declínio do papel do Cristianismo tradicional está a poderosa emergência do utopianismo, talvez o acontecimento singular mais importante na moderna história intelectual do Ocidente”. Esta ideia recupera em parte o pensamento de Ernst Bloch que ao reflectir sobre o ‘espírito da utopia’ não viu nela senão o sucedâneo da religião após a ‘morte’ de Deus. Recusada a hipótese do transcendente, banida do horizonte a perspectiva de um Além onde se pudesse vir a concretizar esse anseio humano de absoluto e infinito que corresponde ao sentimento religioso, houve que inventar formas de projectar na concretude do mundo temporal todo esse universo de expectativas, e isso terá sido o que gerou a imaginação utópica e depois o que espoletou os esforços de implementação dos vários projectos sociais e políticos que o utopianismo foi produzindo ao longo dos dois últimos séculos. É geralmente assumido que o quadro histórico em que hoje nos encontramos, que muitos insistem em intitular de Pós-modernidade (mesmo desconhecendo Jean-François Lyotard), mas a que outros têm com razão preferido chamar de Modernidade ‘tardia’,5 ou até de Sobremodernidade6 e de Hipermodernidade7 por verem mais aprofundamentos e continuidades com o que vem de trás do que cisões, não é um tempo favorável às mobilizações colectivas suscitadas por grandiosos ideais sociais e políticos. Tal não significa contudo o fim da utopia, apenas a sua transmutação e focalização em novos objectos. E é surpreendente como isso tão raramente se afirma: é um facto que desapareceram os grandes projectos utópicos mobiliza- 84 Fausto entre nós. Geografias pós-humanas dores de rupturas, como foi a miragem da sociedade sem classes, mas o utopianismo parece ter encontrado formas novas de expressão no quadro das ofertas possíveis do capitalismo, que são ao mesmo tempo formas novas de expressão mais consentâneas com a individualização extrema da (hiper)Modernidade. O seu foco de atenção deslocou-se da escala macro da sociedade para a escala micro do indivíduo; dir-se-ia que desacreditado nas utopias sociais e incapaz de regressar a um estádio de esperança metafísica por causa da sua deliberada orfandade de Deus, resta ao homem hodierno o egotismo de ter como meta de vida o sentir-se bem na sua pele e o procurar viver o mais longa e intensamente possível. É nisso que se concentra hoje toda a energia do utopianismo, e é por isso que está em curso o que se já convencionou designar de ‘revolução biotecnológica’. Do corpo-fetiche ao trans-humanismo como utopia A focalização do utopianismo hipermoderno no bio, e sobretudo no bio que tem a ver mais directamente com o ser humano – as ciências biomédicas e suas adjacências – não podia deixar de ter como consequência que se produzissem alterações no modo como o corpo humano é culturalmente representado e, logo, nas relações que mantemos com os nossos próprios corpos. Jean Baudrillard8 foi de certo modo o primeiro a observá-lo, embora tendo então ligado isso não a algo que fosse a consequência de uma maturação da própria Modernidade, como aqui estamos a sugerir, mas sim a um efeito da maturação do sistema capitalista e da economia de mercado, que na forma mais avançada teria dado origem ao que então denominou de ‘sociedade de consumo’. Jean Baudrillard, e depois dele muitos outros autores na mesma linha,9 constataram que nunca como na sociedade de consumo em que vivemos o corpo parece ter sido objecto de uma tão intensa atenção social; para além disso verificaram também que a essa fixação parece corresponder uma nova concepção do próprio corpo humano à luz do qual este aparece já não como manifestação exterior ou sensível da pessoa, mas sim como se de uma simples paisagem para contemplação se tratasse, ou até mesmo, mais prosaicamente, de um objecto para fruição. 85 Geografias do Corpo Tudo isto parece ser notório. Se procurarmos vislumbrar o que se passa em nosso redor, olhando para aquilo que são as tendências visíveis da sociedade, é mais do que evidente que há hoje um “crescimento massivo do interesse popular no corpo”,10 como muito bem exprimem as constantes alusões à imagem corporal nas diversas formas que reveste a moderna cultura de massas, dos meios de comunicação social à publicidade e aos conteúdos produzidos pelas indústrias culturais. Por todo o lado proliferam as imagens de corpos jovens, esbeltos e saudáveis, guindados à categoria de novo ideal de vida, assim como as notícias que nos dão a conhecer fórmulas cientificamente estudadas e comprovadas para alcançar ou manter essa tão desejada aparência. A maior parte para não dizer a totalidade das reflexões que citámos viram esta focalização das atenções no corpo humano e o consequente desenvolvimento que em seu redor tiveram as indústrias da saúde e da beleza como resultados de uma evolução do capitalismo, ou uma decorrência da sua tendência incessante para constantemente procurar novas oportunidades de negócio e tudo mercadorizar. É evidente que essa relação com a acumulação capitalista existe, mas isso não explica tudo: a transformação do corpo num objecto de consumo jamais teria sido possível se o racionalismo moderno não tivesse previamente forjado uma antropologia nova baseada na disjunção da mente e do corpo, ou seja, onde a mente passou a ser vista como a essência do humano e o corpo como simples res extensa, mera matéria, isto é, uma quase-coisa; foi esse facto que abriu caminho a essa ‘despessoalização’ moderna do corpo humano que equivale à ideia de que uma coisa é a pessoa e outra o seu corpo, ou dito noutros termos, à ficção de que se não é corpo mas sim que se tem corpo; não fora isto e não teria sido possível evoluir-se para a situação actual em que o corpo tende a ser visto ora como uma espécie de matéria bruta modulável, ora como uma matéria-prima susceptível de transformação tecnológica. A Hipermodernidade, vista como um aprofundamento da Modernidade sobretudo no que esta contém de fé na aptidão humana para conhecer, controlar e manipular os diversos aspectos da vida, e depois também de tendência para um uso crescentemente intensivo 86 Fausto entre nós. Geografias pós-humanas de tecnologias cada vez mais sofisticadas na relação com o mundo, veio reforçar ainda mais a representação moderna do corpo como ‘exterioridade’ face à pessoa e, logo, como um objecto susceptível de por ela ser transformada. O esforço inventivo que caracteriza a intensificação da Modernidade não se orientou apenas para a descoberta de respostas inovadoras para os problemas da economia, como a produção de novos bens de consumo, a exploração de novas fontes de energia, o desenvolvimento de meios de transporte e de tecnologias de informação e comunicação cada vez mais rápidos e poderosos. Esse esforço inventivo aplicou-se também na procura de soluções capazes de irem ao encontro dos desafios de um tempo que fez do sensualismo uma forma de viver. É a essa luz que se compreendem os inúmeros progressos observados nos campos da medicina plástica e cosmética, desde a ortodôncia às lipoaspirações, ao desenvolvimento e à disseminação do uso de produtos como o silicone, o botox ou os esteróides anabolizantes, ou ainda as múltiplas inovações da engenharia alimentar que permitiram o aperfeiçoamento dos produtos light. Tudo isto que já em si fora motivado por uma forma nova de olharmos e de nos relacionarmos com o corpo contribuiu ainda mais para reforçar a ilusão moderna de que este é algo que se possui mas que não chega a ser constitutivo do nosso próprio ser, transformando com isso o corpo, como dizia Mike Featherstone,11 em mais um acessório do lifestyle, numa espécie de matéria-prima a esculpir, modelar ou estilizar de acordo com a vontade e os recursos do seu possuidor. Tal como a aparência também a funcionalidade e a eficiência do corpo se tornaram objecto de muito maior atenção com a intensificação da Modernidade, passando a ser campo de aplicação privilegiado de inovações tecnológicas. Graças aos avanços nas ciências biomédicas e na indústria farmacêutica tem sido possível continuar aumentando sempre a longevidade das populações e reduzindo o seu sofrimento, nomeadamente nos países mais desenvolvidos, onde cada vez mais gente sobrevive a doenças crónicas e vê a sua vida ‘artificialmente’ prolongada; a esperança média de vida à nascença dilatou-se, só nos últimos trinta anos, no conjunto dos países de desenvolvimento humano elevado, em 7,2 anos de acordo com dados 87 Geografias do Corpo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Ora, tudo isto está em total consonância com um tempo que depois da ‘morte’ de Deus perdeu o sentido de eternidade e o substituiu pelo de imortalidade, como dizia Hannah Arendt,12 e que fez do hedonismo uma doutrina, pois que na verdade o paroxismo do hedonismo “não é o prazer, mas a supressão da dor”.13 A verdade porém é que todos estes progressos fizeram igualmente com que se evoluísse tanto na forma de usar medicamente a tecnologia que se deram mudanças na nossa própria experiência da corporeidade. A Hipermodernidade significa, deste ponto de vista, que a tecnologia deixou de ser apenas uma extensão do corpo humano para passar a ser parte integrante dele. Os avanços nos meios complementares de diagnóstico (TAC, ecografias, etc.) e a sua vulgarização, por exemplo, introduziram alterações nas representações mentais do corpo e mesmo na forma como as pessoas vivem a sua corporeidade;14 graças a esses avanços conhecer alguém ‘por dentro’ adquiriu um novo sentido literal dominante, mas isso significa também que se perdeu em parte o antigo sentido, mais poético e filosófico. A fertilização in vitro e post mortem, a maternidade de substituição, os transplantes de órgãos, as próteses, as mudanças de sexo, são por seu turno exemplos de inovações que transgridem fronteiras que julgávamos ainda não há muito tempo intransponíveis e que questionam as convicções mais profundas que tínhamos a respeito da natureza do corpo ou da sua ontologia. Já o desenvolvimento da ‘indústria de transplantes’ e os negócios da reprodução artificial, finalmente, conduzem a uma situação nova de fragmentação do corpo humano e de mercadorização das suas componentes que suscita também novas e complexas implicações éticas e antropológicas.15 A imagem do cyborg, importada da ficção científica, tem sido usada para ilustrar esta nova condição do corpo, onde o natural e o artificial se misturam.16 Porém, trans-humanismo é a forma mais adequada de designar este processo de crescente intromissão tecnológica no corpo humano e na sua criação e sustentação. O termo designa a tentativa de superar as limitações biológicas inerentes à condição humana através da incorporação dos avanços científicos e de novas tecnologias (engenharia genética, neurofarmacologia, 88 Fausto entre nós. Geografias pós-humanas nanotecnologia, etc.). A forma mais radical deste projecto, que significa afinal o grau máximo da tal visão nova de um utopianismo focalizado no indivíduo e na sua corporeidade, é a do movimento agrupado em torno da World Transhumanist Association, cujos adeptos defendem o direito a que se usem sem restrições as novas tecnologias para melhorar as capacidades físicas e mentais dos humanos, aumentar o autocontrolo sobre as suas vidas, e com isso se fazer gradualmente a transição para uma nova condição pós-humana – o Homo excelsior. A chamada medicina regenerativa e a engenharia de tecidos humanos são as áreas em que essa ousadia está a ser levada mais longe: no Japão já se produz tecido ‘humano’ artificial à base de polímeros inteligentes que reagem à temperatura e que é aplicado em transplantes de córneas, coração e pulmão; no Reino Unido, Stephen Minger está a produzir sob grande e compreensível polémica embriões híbridos, meio humanos, meio animais, na esperança de encontrar soluções para doenças hoje incuráveis, mas abrindo também por essa via uma porta ao fantasma de um possível desvio transgenista. Numa expressão mais soft, são os valores desse mesmo trans-humanismo que estão presentes quando se acolhem com optimismo tecnologias como a ‘lavagem genética’ do esperma (inseminação artificial com eliminação prévia de alelos considerados ‘indesejáveis’) ou quando se investe, como sucede nos EUA, na pesquisa de componentes electrónicas (chips) para implantação no cérebro humano com vista a restabelecer ou a expandir o processamento de memória.17 Implicações do utopianismo hipermoderno: geografias do ‘admirável mundo novo’ Se pensarmos no que significam estas formas de expressão que o utopianismo hipermoderno está a assumir, com facilidade verificaremos que nada disto é na verdade totalmente novo. É ainda e de novo a velha história de Prometeu, reescrita agora noutras palavras. A utopia trans-humanista mais não faz senão repetir a tentação da serpente que ressoa na proposta de Mefistófeles ao alquimista Fausto, jogando com a eterna ambição humana de deter o domínio da vida e com a vaidade de possuir o esplendor da beleza e da juventude. 89 Geografias do Corpo A diferença está talvez em que antes não se detinham os meios que hoje se possuem para poder levar a cabo essa ambição. O esforço de concretização destas como de quaisquer outras utopias envolve riscos. Neste caso, riscos novos a que temos de estar atentos, como alertou Francis Fukuyama.18 Tais riscos têm a ver desde logo com a produção de novas iniquidades sociais, a que inevitavelmente se ligam depois certas implicações políticas; isto mesmo antes de pensarmos em cenários de um trans-humanismo tão radical que possa vir a significar a ‘morte’ total e definitiva do Homem. A primeira e a mais geral das consequências que podem advir das mudanças que estão em curso é, sem dúvida, a de se poder perder um certo sentido de solidariedade e até de tolerância para com as diferenças que resultam das discrepâncias de forma e de capacitação dos corpos, perda essa que em muitos aspectos é já real e perceptível, mas que pode vir a agravar-se ainda bastante mais no futuro. A cultura de consumo, associada às novas possibilidades de domínio técnico sobre a fisionomia (fitness, cirurgia plástica, cosmética, botox, etc.), fizeram difundir a ideia de que é sobretudo à forma como cada um gere e valoriza o seu corpo que se deve uma imagem pessoal mais ou menos favorável, e não tanto, ou mesmo não já, aos inelutáveis e imponderáveis da Natureza. Isto vem colocar sobre os nossos ombros novas responsabilidades e culpas. Por outro lado, tal como a aparência, também a funcionalidade e a eficiência do corpo são crescentemente percebidas como responsabilidades individuais. Num tempo em que se hipervaloriza a possibilidade de controlo humano sobre a vida, a doença começa a deixar de ser vista socialmente como uma fatalidade para passar a ser entendida cada vez mais e apenas como uma “falha”, que nuns casos é imputada directamente aos técnicos ou difusamente ao sistema de saúde, noutros atribuída ao próprio doente, que ou não seguiu os estilos de vida saudáveis que se recomendam, ou não teve o necessário cuidado na monitorização do seu próprio estado de saúde. Desta forma de pensar é quase inevitável que a prazo resulte uma perda do sentido de corresponsabilidade social na assistência à doença, com prejuízo dos mais vulneráveis e do próprio sentido de comunidade. 90 Fausto entre nós. Geografias pós-humanas Um regresso renovado do eugenismo é outro risco que paira no horizonte em resultado das novidades ocorridas e em curso na medicina reprodutiva, na engenharia genética, e mesmo nos métodos complementares de diagnóstico aplicados à vida fetal. Não nos referimos, claro, a um eugenismo ‘de Estado’ como o que existiu na Alemanha nazi, mas a um eugenismo ‘privado’ e difuso, levado a cabo por decisão das próprias famílias ou das equipas médicas, individualmente e numa base que se tem por cientificamente informada. Sinal muito evidente disso é que em quase todos os países europeus há já hoje legislação que aprova ou enquadra acções deste tipo, autorizando o que imprecisamente se designa de ‘aborto terapêutico’. É a mesma lógica de resto que prevalece também quando se recorre ao diagnóstico genético pré-implantatório para a selecção dos embriões nos casos de reprodução medicamente assistida. A consequência disto é que a deficiência congénita tende a surgir cada vez mais aos olhos da sociedade, e particularmente das sociedades ‘desenvolvidas’, como uma situação já perfeitamente evitável. Daí decorre depois todo um novo conjunto de representações sociais desse tipo de doenças, e logo, por consequência, também das pessoas suas portadoras: é cada vez mais objectivo o perigo de elas – umas e outras, doenças e pessoas suas portadoras – passarem a ser vistas como meros ‘erros’ de rastreio médico pré-natal, tal como é igualmente objectivo o risco do acompanhamento médico da gravidez ser convertido numa espécie de ‘controlo de qualidade’ do processo de produção de novos organismos. Possível é ainda finalmente que a ocorrência desse tipo de deficiências tenda a ficar cada vez mais associado às situações de maior exclusão face aos cuidados de saúde pré-natais, acabando por reproduzir deste modo outras formas de desigualdade social e até territorial. Quem analisar a actividade dos blocos cirúrgicos pediátricos dos grandes hospitais centrais portugueses constatará que a maior parte das deficiências congénitas graves que a eles chegam correspondem já a crianças deslocadas dos PALOP. Ora, o que em tudo isto está em causa é, como dizia Jacques Testart,19 o risco iminente de se estar a abrir “caminho a novas aventuras onde o racismo do gene possa substituir cientificamente o racismo da pele ou da origem”. 91 Geografias do Corpo Não precisamos todavia de ir tão longe para compreender que de toda a evolução biomédica e biotecnológica dos últimos anos resultam consequências mais directas e até triviais na forma como vivemos, e logo, por conseguinte, na territorialidade humana. As transformações na corporeidade decorrentes dessas inovações têm impactes nas várias dimensões da vida das pessoas, incluindo a sua relação com o espaço geográfico. É no corpo que o ser humano se faz presente no mundo; é no corpo que se torna possível a experiência do espaço e dos outros; e é o corpo que afinal vive e constrói o quotidiano, através da acção (que é movimento no espaço) e do encontro com outros corpos (a base das relações sociais). Às alterações na corporeidade humana associam-se forçosamente mudanças na prática e experiência do espaço que se reflectem no lifeworld das pessoas. Cada vez mais temos a noção de que a organização espácio-temporal do quotidiano se está a alterar, quer em resultado dos novos comportamentos reprodutivos, quer da ampliação da vida. Com os avanços produzidos nas ciências biomédicas a reprodução tornou-se uma das áreas onde a capacidade de controlo individual sobre o corpo e a sua fisiologia conseguiu ir mais longe, e onde mais se vulgarizou a mediação e incorporação de tecnologias. Hoje é já possível as pessoas gerirem a sua fecundidade com grande eficácia, usando produtos farmacêuticos e técnicas médicas facilitados pelo Estado e/ou pelo mercado. As consequências disto nos campos da demografia e da sociologia da família têm sido bastante discutidos. Mas os impactes que isso tem a jusante, na vida concreta das pessoas e nos lugares que elas habitam, nas rotinas, nos espaços do quotidiano e na vida em sociedade, estão muito menos estudados, ou são pelo menos muito mais raramente sublinhados. E contudo, esses impactes existem. O habitat urbano adaptou-se já ao novo padrão reprodutivo de baixa fecundidade, e tal facto tem vindo a tornar cada vez mais difícil a vida das famílias que se não acomodam a esse modelo. Quer na periferia, nos novos conjuntos habitacionais, quer nas áreas centrais, nos projectos de renovação urbana e mesmo de reabilitação, a oferta de habitação está hoje fortemente concentrada nas pequenas tipologias, mesmo que as áreas possam ser generosas como sucede 92 Fausto entre nós. Geografias pós-humanas quando a oferta se orienta para segmentos do mercado com elevado poder de compra. O esforço bem sucedido de extensão da vida nas sociedades contemporâneas também justifica alguma reflexão. Graças aos progressos médicos há cada vez uma maior esperança de vida e o número de população idosa tem vindo a crescer gradualmente, quer em termos absolutos, quer relativos. Projecções do Instituto Nacional de Estatística apontam para que no horizonte de 2050 mais de 35% da população portuguesa possa ter 65 ou mais anos. A este respeito, o mais comum nas ciências sociais e humanas tem sido olhar para as consequências económicas e sociais do envelhecimento. Mas o estudo dos efeitos do prolongamento da vida não pode restringir-se aos aspectos que se prendem com o emprego, os planos de pensões e os sistemas de segurança social. O envelhecimento e a condição dos doentes crónicos cuja vida se mantém por meios artificiais (por vezes até em condições algo ‘cyborgianas’, como nos transplantados ou nos doentes com componentes electrónicas implantadas) implicam não só uma nova experiência da corporeidade humana, mas também, através dela, uma nova experiência do espaço e da vida em sociedade. É portanto nas micro-geografias do quotidiano, no arranjo do espaço doméstico e na prática dos territórios próximos, que essas implicações são mais visíveis. Os idosos, por estarem limitados na sua acuidade sensorial e mobilidade, experienciam de forma diferente o espaço e vivem frequentemente a sensação de uma espécie de aprisionamento.20 Estão também muito mais vulneráveis a acidentes. Mas o envelhecimento, para lá de poder significar uma nova experiência do espaço quotidiano de sempre, está a produzir também as suas próprias paisagens: é o caso das diversas formas de alojamento colectivo com prestação de cuidados aos idosos que estão em crescimento, que têm a sua própria geografia social, e que representam uma nova forma de habitar. A produção do corpo-fetiche na sociedade de consumo contemporânea implica também uma geografia particular, com incidência sobretudo nos espaços que mais directamente se relacionam com o consumo e os lazeres. A evolução das práticas de tempo livre nos últimos decénios foi marcada, como se sabe, pelo crescimento dos 93 Geografias do Corpo lazeres domiciliários, muito aliás por efeito do desenvolvimento das indústrias culturais e dos TIC, mas secundariamente também por um certo aumento da prática desportiva; não só os níveis de participação aumentaram bastante (o que significa que mais gente passou a praticar desporto), como aumentou também significativamente a frequência dessa participação.21 Nem todas as práticas desportivas conheceram porém um desenvolvimento comparável: enquanto por um lado as actividades indoor e individuais se tornaram muito mais atractivas e populares, passando a atrair um maior número de praticantes e praticantes numa base mais regular, os desportos ao ar livre e colectivos viram pelo contrário diminuir bastante a sua capacidade de atracção. Por detrás disto está portanto o que talvez pudéssemos descrever como uma mudança de filosofia consentânea com a individualização e a preocupação quase fetichista com o corpo, em que a competição e a sociabilização deixam de ser determinantes para passar a ser sobretudo o fitness e o bem-estar a motivarem a prática desportiva. Os health and fitness clubs, com a sua geografia própria e arquitectura, são a expressão na paisagem dessa mudança, e lugares que tendem a desempenhar papeis cada vez mais importantes nas vidas das novas classes médias urbanas, funcionando como lugares especiais de intermediação e sociabilização por se situarem nesse ponto muito peculiar que é o meio termo entre a esfera privada e íntima do espaço doméstico e a esfera pública do espaço da cidade. Inevitável quando falamos das geografias desse ‘admirável mundo novo’ que está a surgir com a revolução biotecnológica e com os progressos observados nas ciências da saúde é referir finalmente certas formas novas de comércio internacional e de turismo que parecem estar a despontar com isto. As experiências de biotecnologia humana e muitos aspectos das medicinas reprodutiva e regenerativa envolvem questões éticas delicadas e isso explica que sejam áreas de actuação que necessitam de regulação. Há estados com legislações muito restritivas, outros com leis que permitem maior margem de manobra, e há até muitos estados que não dispõem ainda de legislação específica e onde essas actividades se desenrolam por isso fora de qualquer regulação. Graças às hipóteses de mobilidade e acesso a informação muito mais facilitadas que hoje existem, essas dife- 94 Fausto entre nós. Geografias pós-humanas renças no quadro normativo podem ser exploradas pelo mercado e levar a que os territórios com uma regulação menos restritiva se especializem na oferta deste tipo de serviços, atraindo procuras de fora. Espanha por exemplo, comparativamente a Portugal, possui uma legislação reguladora da reprodução medicamente assistida mais permissiva ou liberal, que permite por exemplo a inseminação de mulheres solteiras assim como a escolha da cor dos olhos e do cabelo do bebé, e tais factos fazem desse país um destino comum para portugueses que procuram serviços de medicina reprodutiva. Muito curioso é ainda verificar que as clínicas privadas que trabalham nesta área científica têm muitas vezes uma base transnacional, precisamente para permitir que se gerem fluxos de esperma e de ovócitos entre as suas várias filiais, o que no fundo corresponde a uma forma encapotada de comércio de material genético: os estados onde a legislação permite a remuneração dos dadores geram normalmente maior oferta de gâmetas, e esse material pode depois ser canalizado para os países onde não é tão fácil alimentar os stocks por se proibir esse tipo de compensação financeira. Mesmo sem ser em áreas que ponham tão delicadas questões éticas a deslocação de pessoas a outros países para realizar tratamentos médicos é uma tendência em franco crescimento. A diferença no custo dos serviços de saúde foi a razão inicial para o desenvolvimento do turismo médico, que tem a ver sobretudo com domínios que não envolvem situações de urgência e que são de certo modo percebidos como necessidades secundárias, caso concretamente da saúde oral e da cirurgia plástica. Isso que começou por ser um fenómeno espontâneo e algo informal, que levava por exemplo os gregos a irem procurar na Turquia tratamento para os dentes, ou os alemães na Bélgica, está a evoluir para um produto turístico cada vez mais complexo e acabado, onde os tratamentos aparecem integrados num contexto de férias e uma parte da hospitalização se realiza em resorts. Bem vistas as coisas, usarem-se as férias para mudar a forma do nariz ou o tamanho dos seios não é ir muito além do sofrimento de passar oito dias ao sol com a única e vã finalidade de acobrear a pele. Destinos exóticos, de clima aprazível e com praia, mas numa situação que se pode já considerar de desenvolvimento médio-alto, 95 Geografias do Corpo com técnicos e equipamentos de saúde qualificados e de confiança, são então os que parecem reunir maiores vantagens para esta forma de turismo. Tailândia, Dubai, Brasil constituem alguns dos destinos emergentes para este novo produto, mas também Portugal, no contexto europeu, é uma possibilidade que começa a surgir; prova disso aliás é a existência de um operador português – a Fly2doc – que se dedica já especificamente a este tipo de viagens, recrutando os seus clientes no mercado inglês. Perguntava-se em tempos Agustina se o vaidoso não seria afinal aquele que simplesmente temia a sua nudez. Talvez nos devamos nós interrogar por nossa vez se estas novas geografias do lunatismo hipermoderno, que são as geografias que decorrem do mito de um corpo perfeito e longevo, tecnologicamente produzido ou aperfeiçoado, não são afinal as paisagens tristes de um tempo que ao dilema de Unamuno, entre morrer cómica ou tragicamente, responde preferir mil vezes morrer comicamente. Notas P. Ricoeur (1969: 383). 2 Cf. J. Chevalier e A. Gheerbrant (1982). M. Calinescu (1999). 4 M. Calinescu (1999: 67). 5 A. Giddens (1997). 6 M. Augé (1994). 7 S. Charles e G. Lipovetsky (2006). 8 J. Baudrillard (1995). 9 Por. ex.: M. Featherstone (1982), A. Giddens (1991), E. Jagger (2000), etc. 10 C. Shilling (2003:1). 11 M. Featherstone (1982). 12 H. Arendt (2001). 13 H. Arendt (2001: 378). 14 Cf. J. S. Taylor (2005). 15 Cf. L. Sharp (2000). 16 D. Haraway (1991), J. Tsouvalis (2005). 17 Cf. L. F. Hogle (2005). 18 F. Fukuyama (2002). 19 J. Testart (2006: 46). 20 Cf. R. A. Kearns e G. J. Andrews (2005). 21 Cf. C. Bull et al. (2003). 1 3 Referências bibliográficas Augé, M. 1994. Não-lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Venda Nova: Bertrand Editora. Baudrillard, J. 1995. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70. Bull, C., J. Hoose e M. Weed 2003. An Introduction to Leisure Studies. Harlow: Prentice Hall. Calinescu, M. 1999. As Cinco Faces da Modernidade. Lisboa: Vega. 96 Fausto entre nós. Geografias pós-humanas Charles, S. e G. Lipovetsky 2006. Hypermodern Times. Cambridge: Polity Press. Chevalier, J. e A. Gheerbrant 1982. Dictionnaire des Symboles. Paris: Robert Laffont. Featherstone, M. 1982. The body in consumer culture. Theory, Culture and Society 1 (2): 18-33. Fukuyama, F. 2002. Our Posthuman Future. Consequences of the Biotechnology Revolution. New York: Picador. Giddens, A. 1997. Modernidade e Identidade Pessoal. Oeiras: Celta. Haraway, D. 1991. Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. London: Free Association Books. Hogle, L. F. 2005. 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Atkinson et al., eds., Cultural Geography. A Critical Dictionary of Key Concepts. Londres e Nova Iorque: I. B. Tauris, 207-212. 97 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média Rober ta Gilchrist The boundary between the inside and outside, just as much as between self and other and subject and object, must not be regarded as a limit to be transgressed so much as a boundary to be transversed. E. GROSZ1 A arqueologia da sexualidade é uma via de pesquisa ainda em fase exploratória, um propósito de dar conta do passado de experiências, práticas sociais e representações do prazer e do corpo. A sexualidade, ainda que de complexa definição, deve porém ser compreendida como uma conjunto de valores e relacionamentos historicamente definidos, e não uma categoria atemporal e naturalizada.2 Este estudo pretende explorar o sentido de uma sexualidade que se relaciona com o celibato de religiosas medievais. Incide especialmente a atenção na qualidade interior, experiencial da sexualidade, tal como se exprimia através da materialidade do espaço e de símiles visuais. Através do processo de negação da sensualidade e do estrito confinamento físico do corpo, a sexualidade das religiosas medievais era invertida, tornando-se um espaço interior, um lugar de sensações dilatadas e de estados de consciencialização do êxtase. Celibato, confinamento e contemplação, tais eram os caminhos pelos quais as religiosas podiam aceder ao intenso e profundo desejo do corpo agonizante de Cristo. Geografias do Corpo As fontes para uma investigação da sexualidade destas religiosas incluem textos, tais como as regras conventuais, os livros devocionais escritos (por homens) para mulheres religiosas e, mais raramente, narrativas autobiográficas de visões místicas. As fontes materiais compreendem as expressões da arte e arqueologia das instituições conventuais para religiosas, desde as formas dos edifícios às evidências do quotidiano e dos modos de vida. Este estudo incide especificamente na experiência de religiosas dos séculos doze a quinze, com informação recolhida na Grã-Bretanha medieval inserida num contexto comparativo europeu. Nesta época, uma mulher inspirada por vocação religiosa podia escolher entre tornar-se freira, irmã de caridade ou beguina,i dependendo do estatuto social e da região em que se encontrava. Mais excepcionalmente, poderia decidir tornarse anacoreta,ii e viver encerrada perpetuamente na sua cela, replicando de uma forma simbólica a convivência com Cristo tumulado. Qualquer consideração sobre a sexualidade destas mulheres ilustra vividamente o problema de fazer corresponder categorias e concepções modernas a situações do passado, especialmente as que de a identidade sexual de uma pessoa é predicada por uma actividade sexual íntima com outro ser individual animado. Noivas de Cristo O número e estatuto das comunidades de religiosas medievais era variável na Europa nor-ocidental. Porém, essas instituições partilhavam algumas características fundamentais, nomeadamente a simplicidade do desenho arquitectónico, a ênfase no confinamento e segregação sexual, além de uma especial incidência no modo de vida eucarístico de piedade e penitência. A maior parte dos conventos fundados na Grã-Bretanha a seguir à conquista normanda era relativamente mais pobre quando comparada com os mosteiros fundados para religiosos homens. Esta disparidade parece ser o resultado do diferente estatuto social dos fundadores desses conventos: mais de 70 num total de 130, em Inglaterra, foram estabelecidos por senhores locais que não ostentavam nem um título nem um cargo público.3 Dos 64 conventos fundados na Irlanda entre os séculos doze e dezasseis, apenas sete foram estabelecidos por an- 100 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média glo-normandos de posição social elevada. Na Grã-Bretanha, é claro que os conventos foram estabelecidos com o propósito de promover um impacte mais local que os equivalentes mais ricos e politicamente influentes de religiosos homens.4 Doutro modo, na Alemanha e em França os conventos cistercienses eram numerosos, por vezes poderosos e relativa mas frequentemente prósperos. Na Dinamarca existiam, ao redor de 1250, vinte e dois conventos femininos e trinta e um mosteiros mesculinos, alguns dos quais eram mais ricos e maiores que as casas de religiosas; na Noruega, pela mesma altura, existiam cinco conventos e catorze mosteiros; enquanto na Suécia o número de uns e de outros era o mesmo, seis conventos de mulheres e seis mosteiros de homens.5 Foi possível demonstrar em relação a França e Inglaterra que as religiosas eram tidas em especial consideração pela sociedade laica, ao contrário do que afirmava os estereotipos de uma certa historiografia. As religiosas da Normandia continuaram a receber dádivas e heranças ao longo de todo o período medieval,6 e em Esat Anglia, na Inglaterra oriental, os testamentos pessoais de pessoas laicas originárias da classe média continuaram a entregar heranças a religiosas até à Dissolução dos Mosteirosiii (1535-9), muito depois de terem sido desligados das regras e religiosas mais abastadas.7 Aparte dos conventos, encontravam-se mulheres religiosas nos hospitais medievais, a servirem como enfermeiras ou serviçais. Em Inglaterra e Gales existiam mais de 1100 hospitais medievais fundados entre o século doze e quinze. Os hospitais-enfermarias de maior dimensão eram organizados segundo princípios monásticos, convivendo homens e mulheres, reclusos e trabalhadores. Tanto os homens como as mulheres tomavam ordens e a estas cabia especialmente os cuidados de enfermaria. Uma vocação religiosa mais flexível foi desenvolvida por mulheres nos Países Baixos, na França setentrional e no vale do Reno, em que comunidades informais de mulheres se agrupavam e ajudavam mutuamente através do trabalho e da esmolagem. Esatas ‘beguinages’ prevaleceram em algumas regiões a partir do século 13, como Amesterdão, onde quinze dos dezoito conventos construídos dentro de muralhas ao longo dos séculos catorze e quinze pertenciam a comunidades semi-monásticas 101 Geografias do Corpo de mulheres. Por esta altura, mesmas as beguinas viviam em comunidades de clausura, como a ‘Grande Casa de Beguinas’iv em Ghent, cercada por muralhas e fossos. Historiadores do monaquismo na Grã-Bretanha vinham assumindo até recentemente que este tipo de comunidades informais de mulheres não floresciam fora da Europa continental. Embora alguma evidência dessa existência tivesse sido apresentada para a região de East Anglia, considerava-se que a maior parte das mulheres religiosas da Grá-Bretanha medieval fossem freiras, irmãs hospitalárias or anacoretas. A mais autera e solitárias de todas vocações, a anacoreta, foi especialmente acarinhada pela parte laica de Inglaterra ao longo da Idade Média. Em Inglaterra, as pessoas que viviam em reclusão eram predominantemente mulheres, sobretudo a partir do século treze até ao quinze,8 e a literatura anacorética desse período era especialmente dirigida a mulheres, como é o caso de The Ancrene Wisse.9 As irmãs hospitalárias perseguiam uma vocação mais activa e caritativa, enquanto as freiras regulares e anacoretas partilhavam o ideal de contemplação e meditação que aqui se explora. A alma do desejo … interior space, be it of the house or of the body, is a feminine place; for the first dwelling-place of man is buried deep in the secret places of women. HENRI DE MONDEVILLE (1306-1320), Chirurgie 10 As discussões acerca da sexualidade histórica são em geral enquadradas por uma preocupação em descobrir as preferências sexuais dos e entre os indivíduos, sendo a primazia dada à relação física do corpo humano. Os estudos sobre a sexualidade antiga têm sido permeados por abordagens foucaultianas11 que destacam as estratégias de dominação sobre o corpo, ou a inscrição de valores sexualizados no seu envólucro.12 Tem-se assistido a uma ênfase na representação da identidade sexual, ou conduta, através de imagens do corpo sexuado ou sexualizado.13 As abordagens das teorias feminista e ‘queer’v complementaram aquele tipo de considerações com outras 102 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média referentes ao ‘corpo vivido’, a partir do qual a sexualidade é concretizada, e a partir do qual as categorias de sexo e género são criadas.14 Também é necessário, de modo a unir as qualidades extrínsecas e intrínsecas da sexualidade, um elemento que não se detenha no estudo das representação ou inscrição sexual e examine de que maneira um ‘corpo vivo’ se constitui. Elizabeth Grosz defendeu uma tomada de posição mais materialista do corpo, que pudesse escrutinar o modo como os processos de inscrição social no seu envólucro coalescem numa constituição de um interior físico.15 A investigadora defende que a compreensão de uma sexualidade assim corporealizada exige a inclusão das dimensões de tempo e espaço,16 domínios familiares da arqueologia. No caso das comunidades unissexuais, tais como os conventos medievais ou as prisões actuais,17 poderia antecipar-se uma cultura de actividade homossexual. No exemplo medieval, contudo, a escolha de uma vida feminina em comum, associada ao celibato, era normalmente voluntária. A entrada numa comunidade monástica envolvia renuciar a todos os aspectos da identidade, incluindo a sexualidade, os laços familiares, a condição social. A regra monástica em uso na maior parte das comunidades, a de S. Bento, alertava os iniciados de que ‘de aí em diante não mais deteriam a disponibilidade do seu próprio corpo’.18 Uma religiosa comprometia-se com o seu celibato com a igreja enquanto noiva de Cristo, partindo de uma cerimónia iniciática que envolvia adornar-se com vestes de noiva e a aceitção da oferta de uma aliança. Após cingir o cabelo e vestir o hábito de freira, estava consumado o sacrifício da individualidade. A mulher religiosa medieval abraçava o celibato como uma união com Cristo, e o seu corpo tornava-se o lugar de ambos, secreto e partilhado.19 Ao longo do período aqui considerado, as fontes históricas silenciam-se no que se refere às relações homossexuais no interior das comunidades religiosas de mulheres. Onde estão documentadas transgressões à obervância monástica, como é o exemplo do registo das visitas dos bispos aos conventos em Inglaterra, as mulheres religiosas são advertidas no sentido de partilhar os epaços em que comem e dormem, tal como são especificados pela regra de São Bento.20 Claramente, os impulsos na direcção do individualismo 103 Geografias do Corpo e da privacidade eram a principal razão de preocupação, mais do que algum receio de que a partilha de lugares comuns pudesse originar uma actividade homossexual. Uma maior ansiedade cobria a possibilidade de relações heterossexuais, uma vez que uma relação com uma religiosa arruinava o celibato virginal, e significava a infidelidade com uma noiva de Cristo. Das religiosas esperava-se que guardassem zelosamente a sua castidade, como se podia ler numa história do século doze, Nun of Watton, escrito por um celebrado eclesiástico, Aelred de Rievaulx.21 Narra a história (aparentemente verídica) de uma jovem freira que vivia numa casa de religiosos mista, com elementos de ambos os sexos, em Yorkshire nos anos 1150 ou 1160, e que tomou um irmão religioso como seu amante. Quando as outras freiras foram alertadas para o adultério, espancaram-na, encarceraram-na e alimentaram-na apenas a pão e água. Foi pois elevado o preço da sua afeição por um homem, e que as restantes religiosas obrigaram a pagar por ter ‘violado a castidade’ e ‘injuriado Cristo’: Some [of the nuns], who were full of zeal for God but not of wisdom and who wished to avenge the injury to their virginity, soon asked the brothers to let them have the young man for a short time, as if to learn some secret from him. The cause of all these evils [i.e., the nun] was brought in as if for a spectacle; an instrument was put into her hands; and she was compelled, unwilling, to cut off the virus with her own hands. Then one of the bystanders snatched the parts of which he had been relieved and thrust them into the mouth of the sinner just as they were befouled with blood.22 Esta e outras histórias instrutivas semelhantes podem ter limitado a tentação sexual nos conventos. O celibato das religiosas estava imerso numa vasta teia de discursos teológicos, médicos e sociais sobre o corpo da mulher. As tradições religiosas e médicas medievais caracterizavam o corpo feminimo como tandendo mais naturalmente ao pecado, exigindo submissão e continência. A mulher era considerada como a face mais física, luxuriosa, e material da natureza humana, contrapondo-se ao homem, espiritual, racional e intelectual. Seguindo os 104 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média princípios clássicos da teoria dos humores, com origem nas obras de Aristóteles e Galeno, a medicina medieval propunha que o corpo humano era constituído por quatro elementos fundamentais, que eram os que igualmente compunham todo o universo: fogo, água, terra e ar. A mulher era considerada da água, instável, dotada de um húmido equilíbrio humoral, em contraste com o do homem, quente e seco.23 O interior do corpo era percebido como um espaço confinado, doméstico e feminino: interior, de água, mercurial, estava em íntima concordância com o humor fleumático da mulher. Esta concepções do corpo feminino tiveram influência tanto nas expectativas que se detinham sobre a vida das religiosas como na sua viência espiritual – o ‘corpo vivo’ da sua religiosidade. A corporealidade inata da mulher fazia supor que se tornava mais vulnerável à luxúria e ao pecado sexual. Assim, a mulher era vista como instável e susceptível de corrupção sexual; mais ainda, a expressão do seu corpo era considerada ‘interior’ por natureza. Em obediência a estas concepções, as autoridades monásticas exigiam a estrita clausura das religiosas, de modo a garantir intactas a virgindade do corpo e a imortalidade da alma. Desse espaço de clausura, intacto e interior, erguia-se o desafio de as religiosas conquistarem e conterem a sua fisicalidade. As religiosas demonstravam a voracidade das suas convicções através do ascetismo, a denegação física do corpo sensual. Tal era possível pela renúncia ao prazer sensual, incluindo sexo, comida, liberdade de movimentos ou atenção ao embelezamento do corpo. A comida, ou a sua privação através da prática de jejuar, foi de uma enorme importância no simbolismo religioso da mulher medieval.24 Às mulheres era atribuída uma ligação mais directa ao sofrimento e Paixão de Cristo: a inerente humidade do seu corpo fleumático (sangue menstrual e lágrimas) era comparado com o sacrifício do sangue de Cristo na Cruz.25 Caroline Walker Bynum pôde demonstrar decisivamente que, entre os séculos doze e catorze, estes temas cminhavam a par, quando as mulheres desenvolviam uma especial devoção pela eucaristia.26 A preferência pela eucarista e pelo corpo agonizante de Cristo tornou-se dominante,27 embora pareça ter sido causa de grande sofrimento para as religiosas. Através da eucaristia, as mulheres puderam tomar e guardar o corpo sacrificial 105 Geografias do Corpo de Cristo enquanto alimento simbólico. Ao mesmo tempo, a sua força espiritual era demonstrada através de jejuns prolongados, o que já se apelidou de ‘ascetismo alimentar’ ou ‘anorexia sagrada’.28 A privação de alimentos durante longos períodos de tempo poderiam induzir estados emocionais agudos, durante os quais muitas religiosas tinham experiências de visões espirituais. Este tipo de alucinação mística era dominado por imagens de sangue, coração, chagas e o corpo sacrificado de Cristo, exmplificadas nos escritos de Hildegard de Bingen, no século doze, Mechtild de Hackeborn, Hadewijch de Brabante e Mechtild de Magdeburgo, no século treze, e Juliana de Norwich, no século catorze. [...] I also saw the bodily sight of the head [of Christ] copiously bleeding. Large drops of blood dripped down from under the crown like pellets – appearing to come from the veins all brownish and red, for the blood was very thick, and as it spread the drops became bright red. When it reached the brows, the drops vanished; nevertheless the bleeding continued until many things were seen and understood. The beauty and vitality, nevertheless, continued with the same loveliness and animation.29 Livros de devoção escritos para as anacoretas, tais como as obras inglesas dos inícios do século treze, The Ancrene Wisse (Guia para a Anacoreta), Hali Maidenhad (O Noivado Sagrado) e Sawles Warde (A Guarda da Alma), juntamente com obras místicas esctitas pelas próprias religiosas, davam ênfase ao papel de Cristo como Noivo e a virgem religiosa como sua esposa. Estes textos sugerem uma dimensão intensamente pessoal, na qual a união da mulher com Cristo é concretamente física e sexualmente dirigida. No Ancrene Wisse, a mulher recebe a eucaristia como a um homem: After the kiss of peace in the Mass, when the priest communicates, forget the world, be completely out of the body, and with burning love embrace your Beloved who has come down from heaven to your heart’s bower, and hold Him fast until He has granted you all that you ask.30 E a mesma mulher é encorajada a penetrar as chagas de Cristo, e a purificar-se no seu sangue: 106 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média Creep into them, in thought. Are they not wide open? And with His precious blood cover your heart.31 Uma prisão gloriosa Em teoria, portanto, era suposto que as mulheres religiosas medievais estivessem restritamente enclausuradas nos seus conventos de modo a minimizar o contacto com o mundo exterior.32 No tempo em que a primeira casa de religiosas foi fundada em Marcigny, em 1056, a que o Abade Hugo se referia como ‘gloriosa prisão’, o conceito de clausura era parte intergral do momasticismo feminino. Porém, recentement foi defendido que o grau de confinamento e segregação a que se obrigavam as religiosas teria sido sobreavaliado, e de que nos séculos onze a treze teria existido facilidades consideráveis de contactos entre os homens e mulheres religiosos.33 Na Inglaterra, existiu um certo grau de informalidade durante os primeiros tempos do monasticismo normando, o qual, até ao século treze, tolerou a existência de celas de religiosas em mosteiros beneditinos de homens. Esta fluidez sobreviveria até tempos tardomedievais em certas regiões, em que as religiosas eram por vezes acomodadas em mosteiros beniditinos de França, Alemanha e Países Baixos. Uma maior preocupação com a clausura e segregação sexual era sentida nos mosteiros mistos, nos quais soluções arquitectónicas foram desenvolvidas de modo a assegurar a separação das comunidades masculina e feminina. Eram particularmente severas as observâncias da ordem francesa de Fontevrault, que incluíam dezoito regras para as mulheres, todas dizendo respeito a uma estrita clausura, em contraste com nove para os homens, mais relacionadas com a obediência. Na casa-mãe em Fontevrault, os claustros de religiosas eram confinados entre paredes, enquanto que o principal era exterior. Na igreja, dois coros separados providenciavam mais facilmente a segregação.34 Nas casas gilbertinas inglesas um grau comparável de severidade era também observado, talvez para prevenir escândalos sexuais como o que rodeava a infamada Freira (gilbertina) de Watton (ver acima). Existiam dois claustros e dois coros, 107 Geografias do Corpo e a comida era passada do claustro das religiosas para o principal através de uma janela giratória num acesso comum aos dois claustros. As freiras apenas podiam conversar com os visitantes através de uma estreita abertura. Na Suécia, nas casas da ordem mista de St.ª Bridget, os edifícios das religiosoas e os edifícios principais eram localizados em lados opostos de uma igreja conventual que ambas as comunidades partilhavam.35 A clausura absoluta era observada pelas anacoretas, mulheres religiosas que tinham como objectivo viver perpetuamente isoladas. Estas mulheres requeriam um compromisso substancial e apoio financeiro de uma comunidade paroquial; eram acomodadas em celas ligadas a igrejas paroquiais (figura 1), em que uma serviçal se ocupava de providenciar a alimentação e remover as imundícies. Dada a importância da eucaristia para as estas religiosas, uma janela ou uma grade permitiam a visão do altar principal da igreja. A anacoreta era por vezes sepultada na sua própria cela, e dela se esperava que meditasse na decomposição inevitável do seu próprio corpo: she should scrape up earth every day out of the grave in which she shall rot... the sight of her grave near her does many an anchoress much good...She who keeps her death as it were before her eyes, her open grave reminding her of it... will not lightly pursue the delight of the flesh.36 Na igreja paroquial de St Anne, Lewes (Sussex), anteriormente referida como St Mary Westout, uma mulher reclusa foi recordada em 1253, quando lhe foi deixada a quantia de 5 shillings no testamento de Richard de Wych, bispo de Chichester. A escavação da cela no lado sul da capela-mor revelou os restos de um esqueleto feminino spultado nas fundações. No interior de um recesso semi-circular na parede sul da igreja podia ver-se uma fresta dirigida ao altar; na sua base uma sepultura havia sido aumentada para os lados de modo a poder guardar as mãos e os pés do esqueleto. Sob a fresta, a argamassa do recesso continuava até ao fundo da sepultura, onde formava a parede posterior do espaço de enterramento.37 Para poder ver o altar através da fresta, esta reclusa tinha de se ajoelhar diariamente na sua própria sepultura. A morbidez destas práticas eram uma parte integral da expressão de renúncia da vida de uma anacoreta. 108 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média Era inevitável o contacto com religiosos homens em todas as instituições religiosas femininas, quando os padres eram solicitados para a missa e confissão. Uma sacristia era posicionada junto à igreja onde se depositavam os vasos e vestes sagradas, e para o sacerdote se paramentar e desparamentar. Sendo a sacristia um espaço masculino, tornava-se necessário que o acesso directo a ele se fizesse da parte exterior do claustro. Frequentemente, este acesso estava localizado entre a igreja a e casa do capítulo, mas uma passagem na parede exterior permitia ao padre ter acesso directo à sacristia sem se internar Figura 1 no claustro das religiosas (figura 2). As sacristias passaram a obedecer a uma norma idêntica nos conventos femininos a partir do século treze, assim como desapareceram dos mosteiros masculinos, ou passaram a desenvolver-se em passagens para o interior do claustro. Em muitos exemplares ingleses que sobreviveram, como por exemplo Carrow (Norwich, Norfolk), e Brewood (Shrops), a sacristia era o aposento mais ricamente ornamentado de todo o convento. 109 Geografias do Corpo Ao contrário concepções actuais de clausura, muitas igrejas conventuais eram de facto compartilhadas com a congregação de uma paróquia, e as plantas das igrejas desenvolviam-se de acordo com o objectivo de manter os grupos separados entre si. O arranjo mais comum na Grã-Bretanha, era a divisão monástica típica entre um coro convetual a virado a oriente e uma nave paroquial a ocidente. Os mecanismos de segregação por vezes desenvolviam-se organicamente, segundo arranjos locais, especialmente quando um convento era fundado no lugar em que previamente existia uma igreja paroquial. Algumas casas de religiosas em Inglaterra isolavam as duas congregações através de alas paralelas, com uma arcaria cega a proibir qualquer contacto visual. Esta era a prática que seguiam, por exemplo, as comunidades beneditinas de St Helen, Bishopgate, Londres, e Mister-in-Sheppey (Kent). Alas paralelas eram usadas para isolar as religiosas e os religiosos nas casas mistas gilbertinas, e para dividir as comunidades masculina e feminina de muitos hospitais. Nos conventos franceses era mais usual o coro monástico estar integrado no braço oriental da igreja, separado da nave por um pulpitum. Muitas igrejas de religiosas na Alemanha, Escandinávia e Grã-Bretanha, pelo contrário, operavam a dois níveis, e eram providas com um coro-galeria de modo a assegurar uma adequada segregação sexual. Testemunhos de galerias em igrejas conventuais de Inglaterra podem encontrar-se no extremo ocidental da igreja de Aconbury (Herefords) e no oriental da de Burnham (Berks). As galerias construídas a ocidente eram típicas dos conventos escandinavos, como exemplos ainda existentes em Bosjökloster e St Peter em Lund, na Scania, actual Suécia; e em Roskilde e Asmild, em Viborg, Dinamarca. Esta solução para o problema da segregação difundiuse nas regiões de língua germânica, onde as galerias ocidentais e os coros elevados são bem conhecidos, como Wienhausen, Chelmno (Kulm, Polónia), Adelhausen em Freiburgo e Ebstorf. Em alguns casos, passagens especiais eram necessárias para as freiras terem acesso ao seu coro, tais como as passagens muradas de Marienstern que a um nível elevado ligavam directamente o dormitório ao coro ocidental.38 110 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média Jeffrey Hamburger atribuiu o desenvolvimento do coro-galeria ocidental à tradição germânica das criptas elevadas e galerias do tipo Westwork,39 embora a sua distribuição tão ampla pareça indicar uma origem mais antiga, possivelmente as galerias ou tribunas que eram usadas para isolar as religiosas nas igrejas bizantinas do século sexto. Quando as comunidades conventuais partilhavam as suas igrejas com congregações de religiosos ou paroquiais, havia a possibilidade de que a ênfase na separação pudesse diminuir a importante relação estabelecida entre a mulher religiosa e a eucaristia. Em igrejas da ordem mista dos Gilbertinos, é claro que as religiosas estavam Figura 2 impossibilitadas de testemunhar o momento da transubstanciação. Alas paralelas eram usadas para isolar as comunidades masculina e feminina, estando o altar-mor situado na igreja principal. Após a elevação da hóstia, o sacramento era tomado através de uma janela pelas mãos de uma mulher-sacristão.40 Caroline Bruzelius cartografou a evolução do coro nas casas de Clarissas italianas, notando que correspondia a uma crescente importância da devoção eucarística. A partir do século catorze, as novas igrejas permitiam uma visibili- 111 Geografias do Corpo dade acrescida do altar, enquanto que antes dessa data as religiosas usavam coros-galeria ocidentais ou capelas laterais que impediam a visibilidade. Um exmplar especialmente bem desenvolvido é de Santa Chiara, em Nápoles, erigida nos momentos iniciais do século catorze, com o coro situado directamente atrás do altar, num antecoro, com três largas aberturas gradeadas a permitirem a visão directa do altar e a elevação da hóstia.41 A vida interior das mulheres religiosas medievais É conhecido o argumento de que a cultura visual deveria ter tido um papel central dentro do ambiente cerrado dos conventos, em que o significado das imagens era enfatizado pela clausura das religiosas.42 O corpo agonizante de Cristo era a imagem dominante nos textos relacionados com as mulheres religiosas medievais, na qual o corpo e a carne da Crucifixão assumiam um significado sacramental. Nos casos raros em que sobrevivem imagens produzidas por religiosas, é possível discernir os mesmos temas eucarísticos que permeiam os escritos de mulheres místicas. Jeffrey Hamburger estudou um conjunto de manuscritos com iluminuras (datados de c. 1500) produzidos no convento beneditino de St. Walburg, Eichstätt, Bavaria.43 Exibem um aspecto ingénuo, infantil que indicia um parco conhecimento das convenções artísticas do exterior. Hamburger defende que mostram uma preocupação com imagens religiosas distintamente femininas, tais como imagens da Crucifixão saturadas de sangue ou de jardins recolhidos. Quatro imagens em particular transmitem o misticismo religioso feminino da clausura e da eucaristia: a Crucifixão simbólica, o Coração na Cruz, o Banquete eucarístico (em que uma religiosa comunga com Cristo no interior do seu coração) e o Coração como casa (em que as religiosas residem). Hamburger propõe que estas imagens, mais do que do exterior, podem apenas ser compreendidas a partir do interior.44 Conclui que a escala e a escolha dos temas reflecte uma ‘vida interior’, uma intimidade e piedade místicas próprias da vida enclausurada destas mulheres. Na arquitectura conventual inglesa, a sacristia, lugar da eucaristia, era o aposento mais bem decorado. O conjunto de imagens associadas está frequentemente associado à eucaristia através de referências 112 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média ao sacrifício de Cristo, incluindo representações do Agnus Dei (o cordeiro de Deus), presente numa cornija de um convento agostinho de Lacock (Wilts) em Inglaterra. Num outro caso, as escavações de uma casa de religiosas inglesa recuperou uma Sagrado Coração esculpido, uma imagem que se identifica com o corpo em sofrimento de Cristo e que raramente se encontra em Inglaterra (figura 3). Esta peça do convento dominicano de Dartford (Kent) está totalmente de acordo com os temas eucarísticos e místicos que dominam o sen- Figura 3 timento de piedade feminina tardo-medieval: o Sagrado Coração era crucial nas visões de Mechthild de Hackeborn, Mechthild de Magdeburg e Juliana de Norwich. So He, with great desire, shows her His divine heart. It is like red gold burning in a great fire. And God takes the soul to His glowing heart as the high prince and the humble maiden embrace and are united as water and wine. Then the soul becomes as nothing and is so beside herself that she can do nothing. And He is sick with love for her, as He ever was, for He neither increases nor decreases. Then the soul says: Lord, You are my comfort, my desire, my flowing spring, my sun, and I am Your reflection.45 113 Geografias do Corpo Os temas e as imagens escolhidos pelas mulheres religiosas medievais exibem uma preocupação com a interioridade – espaços interiores, sofrimento íntimo, até os órgãos internos de Cristo – que se relaciona intimamente com a qualidade ‘interior’ do corpo feminino, e a ênfase na clausura da mulher religiosa. Frio conforto Enquanto as representações visuais da eucaristia se tornaram centrais para as mulheres religiosas, em outros aspectos a sua vida mantinha-se austera. Em comparação com os mosteiros coevos para homens, ou os solares e castelos em que viviam as suas irmãs seculares, as mulheres religiosas suportavam uma vida de penitência e despojamento. A escala da arquitectura das casas de religiosas é provavelmente mais bem compreendida através dos vestígios arqueológicos das igrejas. Especialmente, a longa tradição erudita dos Cistercienses permitiu construir tipologias detalhadas dos vestígios de igrejas conventuais cistercienses em França,46 Alemanha47 e, a uma menor extensão, em Inglaterra.48 O P.e Anselme Dimier classificou os conventos cistercienses em França a partir da existência ou não de alas laterais na nave, da existência ou não de transeptos na igreja, da comparação da dimensão do santuário em relação ao resto da igreja, do tipo de edificação no extremo oriental da igreja, se recto, em ábside ou em capela radiante.49 Foram propostos dez planos-tipos, mas o mais comum parece ser o Tipo 1-Dimier: um rectângulo simples, sem alas lateriais, nem transepto, com nave e santuário da mesma dimensão e o extremo oriental edificado em forma recta. Normalmente, as dimensões das igrejas conventuais francesas variavam entre 35 a 50 m de comprimento e 12 a 13 m de largura. Do mesmo modo, nas áreas de língua germânica, a maioria das casas de religiosas cistercienses adoptavam um plano simples, compreendendo um único corpo, que podia variar dependendo da região ou da ordem monástica.50 Em Inglaterra a planta rectangular sem alas era também o arranjo mais comum (figura 2), sendo esta a forma representada em 62 % dos conventos conhecidos de todas as ordens monásticas em Inglaterra e Gales; as restantes 38 % são igrejas cruciformes.51 As dimensões das 114 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média igrejas conventuais inglesas podem variar, em todas as regiões, entre 15 e 50 m de comprimento. Estas igrejas, simples e estreitas, eram suficientes para uma pequena comunidade, normalmente de doze religiosas, possuindo, talvez, apenas um padre ou capelão. Dadas as proibições litúrgicas que incidiam sobre as religiosas, era exigido um número mínimo de altares e, consequentemente, não se fazia sentir a necessidade de edificar capelas ou alas para dignidades posteriores. Muitas destas igrejas mantiveram-se inalteradas ao longo de toda a Idade Média. A simplicidade da planta, a ausência generalizada de embelezamento e de intervenções com vista à evolução ou alteração situa-as num plano à parte das igrejas monásticas para homens. Na Grã-Bretanha não era inusual que os edifícios de clausura fossem construídos em terra ou madeira, nem que os conventos não possuíssem instalações que satisfizessem as necessidades mínimas de higiene, saneamento ou recolha dos lixos, todas consideradas essenciais nos estabelecimentos masculinos. É possível que essas faltas fossem privações deliberadas com vista a uma vida penitencial considerada fundamental para muitas mulheres ao longo dos séculos doze e treze. Freiras e anacoretas deviam satisfazer-se com instalações sanitárias relativamente rudes, simples latrinas de rasas ao chão, que contrastavam com os lavatórios de água-corrente da maior parte das instituições masculinas,52 enquanto escavações recentes recolheram quantidades de dejectos em maior quantidade do que seria suposto face aos procedimentos escrupulosos da higiene conventual.53 As deploráveis condições sanitárias poderiam ser um dos modos como as mulheres religiosas humilhavam o seu corpo. O autor de Ancrene Wisse advertia-as no sentido de não levaram ao extremo este preceito de ascetismo: Wash yourselves whenever necessary and as often as you wish, and your things as well. Filth was never dear to God, although poverty and plainness of dress are pleasing to him.54 Esta forma de ascetismo era também extensível à alimentação que, nos conventos de menor dimensão, parece ser mais semelhante à dos camponeses menos pobres do que à pródiga alimentação dos mosteiros de homens; com uma base de cereal, consistindo domi- 115 Geografias do Corpo nantemente de pão e sopa, fruta e hortaliças, peixe, lacticínios, carne de vaca e de porco. As casas de religiosas estavam situadas muitas vezes em lugares isolados e inóspitos, frequentemente em ilhas, lugares de passagem, rodeadas de fossos, lugares idealmente adequados a um devoção eremítica. Os conventos femininos parecem ter sido menos chamados do que os seus equivalentes masculinos à actividade de transformação e intervenção na paisagem.55 Em Inglaterra, os conventos de religiosas tinham mais semelhanças com as casas de campo da classe abastada rural do que com os grandes mosteiros masculinos. Quer as casas de religiosoas quer aquelas casas seculares desenvolviase ao redor de pátios abertos, muitas vezes consistindo em espaços descontínuos ligados por passagens cobertas. Em muitos conventos, os aposentos do lado do ocidente serviam para a acomodação de hóspedes e seguiam de perto o modelo das casas seculares, com um corredor central com ligação a um quarto de piso superior, e separado dos serviços inferiores por uma passagem. Em contraste com o que era mais usual, uma parte significativa de casas de religiosas localizavam o seu claustro a norte da igreja: em Inglaterra, mais de uma terço dos conventos conhecidos são edificados desta maneira (figura 2). Mais ainda, quando lançados sobre um mapa, os claustros setentrionais agrupam-se nitidamente em algumas regiões específicas, indiciando tradições locais associadas à vida das mulheres religiosas.56 De um modo geral, esta disposição não resultava de restrições relacionadas com a drenagem ou fornecimento de água, nem da topografia urbana, podendo resultar ser apenas o extremo setentrional considerado mais adequado para as mulheres religiosas. Os claustros mais frios, escuros e húmidos que derivam da situação setentrional poderiam mais facilmente corresponder aos humores fleumáticos da mulher, e considerados mais de acordo com a vida de penitência. Mais ainda, o lado norte das igrejas estava associado com a tradição de enterramento e disposição feminina, além de transportar uma conotação com a Santa Virgem Maria. Em representações coevas da Crucifixão, o lugar tradicional de Maria situava-se ao pé da Cruz, no lado direito de Cristo. Quando esta imagem era sobreposta à planta da igreja (representando a 116 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média Cruz), Maria posicionava-se ao lado norte. O claustro setentrional pode assim repreentar um aspecto mais da particular devoção que as mulheres religiosas demonstravam pelas imagens da Crucifixão. Do interior: o fetichismo das mulheres religiosas medievais A sexualidade das mulheres religiosas produzia-se por inversão: todos os elementos de sensualidade física eram despojados, qunado o interesse do mundo exterior se direccionava interiormente. A privação do prazer do corpo não se limitava ao celibato, estendia-se à rejeição de alimento, higiene, calor e conforto. As mulheres religiosas medievais detinham a experiência da sua sexualidade através da renúncia do corpo, incluindo a austeridade da paisagem, da arquitectura, do modo de vida quotidiano. Aceitavam a clausura que lhes era imposta; de facto, em alguns casos, desejavam-na ardentemente e ao sofrimento que trazia. A sua materialidade era forjada pela clausura com Cristo, o Noivo divino, numa celebração do mundo da ‘vida interior’. Através da devoção pela eucaristia, Sagrado Coração e Crucifixão, as mulheres religiosas dirigiam o desejo sexual ao interior do corpo lacerado e crucificado de Cristo. A religiosidade medieval feminina foi caracterizada como tendo origem numa cultura visual erótica, mística e maternal,57 que Karma Lochrie viria a denunciar como sendo uma ‘versão rigidamente heterossexual da sua sexualidade’.58 Lochrie adeverte-nos do lado obscuro do misticismo feminimo. Mulheres como Hadewijch de Brabante, Angela de Foligno, Catarina de Siena descreveram episódios místicos de voracidade sexual, um amor narcisista e violento por Cristo, que se exprime em renúncia e morte. O sofrimento comum induzia nas mulheres religiosas um prazer de êxtase, em que os momentos mais requintados e reservavam para a contemplação dos órgãos internos de Cristo, alimentada nas feridas abertas, e por elas penetrando o seu corpo – interpretada por Lochrie como uma visualidade homoerótica. Contudo, as mulheres religiosas não exprimem o desejo por um outro ser animado – masculino ou feminino – nem pela penetração ou sensações tácteis, mas por um encontro sexual que contém o corpo e alma, o tempo e o espaço. Podemos ver nele uma sexualidade fetichista, experimen- 117 Geografias do Corpo tada por intermédio do corpo de Cristo, uma instância que Elizabeth Grosz apelidou de ‘desejo como intensificação do corpo’: One is opened up, in spite of oneself, to the other, not as passive respondent but as co-animated, for the other’s convulsions, spasms, joyous or painful encounters engender, or contaminate, bodily regions that are apparently unsusceptible... The other need not be human or even animal: the fetishist enters a universe of the animated, intensified object as rich and complex as any sexual relation (perhaps more so than).59 A arqueologia, a cultura visual e os escritos associados a mulheres religiosas medievais permitem-nos aceder à visão íntima da sua corporealidade sexual. A sexualidade destas mulheres não se limitava ao que as autoridades monásticas inscreviam no exterior do corpo: era uma sexualidade concreta profundamente sentida. O que distintiguia eata forma de sexualidade era a sua experiência interior – o carácter ascético do corpo feminino, as condições da clausura, e um profundo sentimento de desejo, talvez fetichista, pelos órgãos internos do corpo de Cristo. Os homens da Igreja, os patronos, apenas permitiam às mulheres religiosas uma mobilidade limitada, um papel religioso, e condições concretas de existência. Tais limitações eram reconvertidas, de dentro para fora, quando as mulheres, associando ao seu sofrimento e privação os do seu Noivo espiritual, se deixavam cativar por uma singular forma de sexualidade interior. Notas E. Grosz (1995: 131). 2 R. Gilchrist (1999). 3 S. Thompson (1991: 163). R. Gilchrist (1994). 5 G. Smith (1973). 6 P. Johnson (1991). 7 R. Gilchrist e M. Oliva (1993: 60-61). 8 A. K. Warren (1985: 20). 9 M. D. Salu (1955). 10 Citado em M. Pouchelle (1990: 130). 11 M. Foucault (1977). 12 D. Montserrat (1998: 4); L. Meskell (1996: 8). 13 N. B. Kampen (1996). 14 J. Butler (1990). 15 E. Grosz (1995: 104). 16 E. Grosz (1995: 84). 17 Casella. 18 J. McCann (1952: cap. 58). 19 R. Gilchrist (1994: 18-19). 20 E. Power (1922). 21 G. Constable (1978). 22 Corpus Christi Cambridge MS 139 fols 149-51; cit. em G. Constable (1978: 208). 23 C. Rawcliffe (1995: 172). 24 C. W. Bynum (1987). 25 E. Robertson (1990: 9). 26 C. W. Bynum (1987). 27 E. M. Ross (1997). 28 C. W. Bynum (1987: 87). 29 Julian of Norwich c. 1373; 1 4 118 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média in E. Colledge e J. Walsh (1978: 7). 30 M. D. Salu (1955: 14). 31 M. D. Salu (1955: 130). 32 J. T. Schulenburg (1984). 33 C. H. Berman (1988) e J. F. Hamburger (1992: 110). 34 L. Simmons (1992: 102-3). 35 T. Nyberg (1965). 36 M. D. Salu (1955: 51). 37 W. H. Godfrey (1928: 166-8). 38 J. F. Hamburger (1992: 114). 39 J. F. Hamburger (1992: 112-3). 40 S. K. Elkins (1988: 141). 41 C. Bruzelius (1991: 87). 42 J. F. Hamburger (1992: 109). 43 J. F. Hamburger (1997). 44 J. F. Hamburger (1997: 10). 45 Mechthild de Magdeburg, c. 1250, citado em J. Howard (1984: 179). 46 A. Dimier (1974); M. Desmarchelier (1982). 47 E. Coester (1984; 1986). 48 J. A. Nichols (1982). 49 A. Dimier (1974); M. Desmarchelier (1982). 50 J. F. Hamburger (1992: 112). 51 R. Gilchrist (1994: 97). 52 R. Gilchrist (1995: 129). 53 R. Gilchrist (1995: 145). 54 M. D. Salu (1955). 55 R. Gilchrist (1994). 56 R. Gilchrist (1994: 128-149). 57 C. W. Bynum (1987). 58 K. Lochrie (1997: 181). 59 E. Grosz (1995: 200). Bibliografia Berman, C. H. 1988. Men’s houses, women’s houses: the relationship between the sexes in twelfth-century monasticism. In A. MacLeish (ed.), The Medieval Monastery. St Cloud: Minnesota, 43-52. Brakspear, H. 1903. Burnham Abbey. Records of Buckinghamshire 8: 51740. Bruzelius, C. 1992. Hearing is believing: Clarissan architecture, ca 12131340. Gesta 31/2: 83-92. Butler, J. 1990. Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity. London: Routledge. Bynum, C. W. 1987. Holy Feast and Holy Fast: the Religious Significance of Food to Medieval Women. Berkeley: University of California Press. Casella. Coester, E. 1984. Die einschiffigen Cistercienserinnenkirchen West und Süddeutschlands von 1200 bis 1350. Mainz: Quellen und Abhandlungen zur mittelrheinishen Kirchengeschichte 46. Coester, E. 1986. Die Cistercienserinnenkirchen des 12 bis 14 Jahrhunderts. 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Traduzido e republicado com permissão da autora, dos coordenadores e Thomson Publishing. Tradução por José Ramiro Pimenta em 2008, com revisão da autora. i No original: ‘(…) might choose between that of the nun, hospital sister, or “beguine” (…)’. ii No original: ‘anchoress’. iii No original: ‘Dissolution of Monasteries’. iv No original: ‘Great Beguinage’. v Optou-se por não traduzir este termo, não só por não existir equivalente português que cubra toda a gama de significados para que remete, mas especificamente porque enquanto nome de teoria social se usa na literatura portuguesa o termo original inglês. 122 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências. (Sexual Dependency de Rodrigo Bellott) B enedic t Hoff Introdução: Novas estéticas, desafios novos O predomínio da indústria cinematográfica americana no mercado de distribuição mundial obrigou que a tradução em ecrã se fizesse sobretudo do inglês para outras línguas e que se fizesse sentir nos produtos de Hollywood. Na verdade, irei defender que o segundo destes parâmetros facilitou todo o processo. Em primeiro lugar, devido à retórica equalitária que subjaz aos mitos fundacionais da América, e pelas vantagens económicas proporcionadas pela normalização do produto, Hollywood desenvolveu um tipo de cinema popular e amplamente genérico.1 Universalidade e predicibilidade providenciam um contexto de espectação dentro do qual os filmes podem ser compreendidos, assegurando assim a sua ‘pré-venda’ junto das audiências.2 Consequentemente, os filmes de Hollywood apresentam elementos de especificidade cultural em número insuficiente tendo em vista a audiência a servir pela tradução. Mais ainda, favorecem a possibilidade de compressão do texto – o que naturalmente favorece o processo de legendagem – dado que, para citar Minchiton, os espectadores, na maior parte das vezes, ‘conhecem a história, adivinham o diálogo, e apenas espreitam as legendas para confirmar.3 Geografias do Corpo Em segundo lugar, ao reproduzir a ilusão de uma realidade criada pela perspectiva monocular, as convenções clássicas de continuidade encorajam o espectador a ‘ver através’ da imagem de modo a ficarem com a atenção presa às personagens e às suas acções com que a narrativa do filme é quase integralmente revestida.4 Deste modo, embora o espectador tenha de desviar o olhar de modo a poder ler as legendas que são projectadas (ou inseridas) na imagem do filme, a disrupção é mínima porque são apenas as personagens e a sua acção que detêm uma importância [narrativa] primordial (em oposição à mise-en-scène, montagem, enquadramento, etc.) e para quem os espectadores podem facilmente recentrar a sua atenção. Mais ainda, o som é adequado ao conteúdo da imagem, posto ao serviço do diálogo das personagens e usado para minimizar a possibilidade de confusão sobre qual a personagem que está a falar.5 Do ponto de vista técnico, a transição suave entre os planos de filmagem, que caracteriza a montagem por continuidade, tende também a facilitar um uso eficiente de legendas. Contudo, distribuidores como a Miramax vêm gradualmente abrindo alguns nichos de mercado, trazendo cinema ‘art-house’ para as grandes salas multiplex – Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2003), Amores perros (Alejandro González Iñaritu, 1999), Requiem for a Dream (Darren Aronofsky, 2001), e Elephant (Gus Van Sant, 2004), como exemplos. Deste modo, filmes com uma ‘estética menos comercial’,6 que anteriormente teriam de ter lutado para poder assegurar direitos de distribuição para lá das suas fronteiras de produção, são filmes que requerem agora tradução. Este fenómeno é ainda mais reforçado pela procura gerada pelo DVD e o advento de repositórios online de filmes em subsecções cada vez mais procuradas do género ‘flmes do mundo’, ‘filmes independentes’ e ‘art-house’, prometendo uma distribuição internacional para praticamente qualquer ponto do mundo. E ao mesmo tempo, o carácter experimental da realização destes filmes tem vindo a revelar-se cada vez mais inovador e arrojado. Um exemplo disto mesmo é o filme Sexual Dependency de Rodrigo Bellott (2003),7 uma coprodução bolívio-americana vencedora do prestigiado prémio FIPRESCI no Festival de Cinema de Locarno em 2003. 124 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências Em primeiro lugar, Bellott prescinde de um ‘script’i convencional e, pelo contrário, ‘treina’ actores não-profissionais de modo a que interpretem os seus papéis espontaneamente apenas com uma ligeira orientação.8 Tendo em mente a natureza complexa do filme, este propósito (bem sucedido) não foi certamente um feito menor. Em segundo lugar, o filme passa-se em duas localizações cultural e linguisticamente diversas: Santa Cruz (a terceira maior cidade da Bolívia) e Ithaca College (Estado de Nova Iorque), o que significa que o diálogo surge tanto em inglês como espanhol. Em terceiro lugar, o realizador rompe com a tradição fílmica boliviana ao ser o primeiro realizador do país a filmar com uma câmara digital, que empresta ao filme uma ‘estética realista e intimista’, de acordo com a notícia da sua apresentação.9 Em quarto lugar, e este é o ponto mais determinante que destaca este filme do cinema convencional, uma narrativa de ecrã-dividido é usada quase ao longo de todo o filme, em que duas imagens simultâneas deixam ver dois ângulos diferentes da mesma cena em montagem paralela e concorrente.10 O objectivo, de acordo com Bellott, e cito aqui a notícia de apresentação do filme, era: explorar as dualidades e contradições inerentes à identidade social e experiência cultural contemporâneas (…) para subverter a linguagem opressiva da narrativa singular (monólogo) e uma tentativa de criar um diálogo audiovisual que perturbe o conforto do espectador passivo. Que melhor modo de representar a fluidez e a dualidade da condição humana que um mundo narrativo dual (…). A missão do realizador é decerto nobre, e a minha opinião de espectador é que se deveria acolher qualquer tentativa – bem sucedida ou não – de oferecer às audiências uma alternativa às fórmulas já mais do que experimentadas e testadas que monotonamente tomam conta dos ecrãs das salas multiplex. Contudo, os tradutores de legendas mostram-se naturalmente desconfiados face a estes projectos, mais do que os realizadores, espectadores e críticos. Não porque o seu trabalho possa tornar-se potencialmente num maior desafio (embora tal seja perfeitamente compreensível, tendo em conta os salários baixos, os prazos irrealistas e a ausência de garantia de que 125 Geografias do Corpo o seu nome possa surgir nos créditos finais do filme), mas porque através do seu trabalho são constantemente alertados para os limites humanos de percepção mental e sensorial. E é neste contexto que eu gostaria de levantar as seguintes questões em relação à produção de Bellott: Em primeiro lugar, este carácter experimental potencia a qualidade de percepção por parte do espectador, isto é, permite compreender algumas coisas que os filmes convencionais (estilo Hollywood)11 são incapazes de fazer compreender, ou são apenas coreografias que produzem a desorientação do espectador? Segundo, será que funciona num contexto transnacional ou torna impenetrável o filme de Bellott ainda antes de tomar em consideração as barreiras da linguagem oral? Terceiro, como pode mitigar o processo da tradução, e de que modo esta fica comprometida na sua eficácia? Quarto, existe algum modo de a tradução ser usada como um meio de ‘desbloquear’ ou mesmo potenciar a percepção activa do espectador? Ao fazer isto o meu objectivo é sublinhar a relação recíproca que existe entre a realização e a tradução e ilustrar como esses processos podem ter impacte um no outro. Tal, espero, permitirá adicionar uma outra dimensão à ponte que vem sendo edificada por alguns investigadores, como Palma Zlateva, Jorge Días Cintas e Francesca Bartrina, entre realizadores e tradutores profissionais, que talvez demasiadas vezes se recolhem inamovíveis nas suas respectivas torres de marfim. Ver a dobrar: uma avaliação da narrativa de écrã-dividido Muitos dos críticos de cinema denodaram-se em denunciar o carácter experimental de técnicas como a divisão do ecrã e o filme Sexual Dependency decerto não escapou a este tipo de críticas. A crítica de David Musair na Reel Film, por exemplo, afirma que o filme ‘nada é mais do que um artifício vistoso concebido com a intenção de atrair as atenções dos festivais de cinema’.12 É certo que se fossem aplicados a Time Code (2000) de Mike Figgis, tais comentários poderiam ser válidos. Apresentado num formato quádruplo, 126 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências o filme de Figgis foi filmado com quatro câmaras, num único take, sem montagem e em tempo real. Se é notável enquanto exercício técnico de realização, contudo o ecrã quádruplo exerce, na minha opinião, uma restrita função narrativa. Figgis isola a banda sonora do ecrã de modo a que, em cada momento, impede o domínio da narrativa, e dela desvia assim a atenção do espectador. Entretanto, as imagens dos restantes ecrãs mantêm-se, de facto, redundantes, sem uma relação clara com o avanço do enredo do filme. Sexual Dependency, contudo, é inteiramente diferente. Dividido em cinco episódios, o filme é protagonizado por adolescentes com origens sociais e raciais antagónicas. Jessica (Alexandra Aponte), uma rapariga pobre dos bairros pobres de Santa Cruz; Sebastian (Roberto Urbina), um rapaz colombiano da classe-média de Bogotá (em visita a Santa Cruz); Choco (Jorge Antonia Savedra), um desportista boliviano célebre e rico; Love (Liv Fruyano), uma modelo de cabelo louro e olhos azuis, namorada do anterior; Adina (Ronica Reddick), uma feminista norte-americana, estudante no Ithaca College; Tyler (Matthew Guida), um modelo homossexual e jogador de futebol americano na mesma universidade. Diversos na sua natureza mas reunidos pelo leitmotif de uma marca ficcional de roupa interior norte-americana, cad uma das suas histórias revela uma procura diferente de intimidade sexual. Mas o caminho para o prazer está assombrado por inúmeros perigos e, à mercê da tirania das suas hormonas, as personagens consecutivamente tornam-se vítimas das suas próprias ‘dependências e ilusões’, o que dá o nome do filme.13 O que torna o filme de Bellott diferente do de Figgis é o facto de o primeiro atribuir uma função narrativa de facto ao ecrã dividido, de modo a reflectir as ‘contradições’ e ‘dualidades’ com as quais o filme em última análise se identifica. E é por esta razão que o filme não apenas recebeu o prestigiado prémio FIPRESCI de Locarno em 2003, mas também recebeu uma plétora de críticas positivas de críticos com porventura mais gabarito do que os que foram anteriormente citados. Passemos a considerar, como exemplo, a sequência de abertura do primeiro episódio.14 Aqui podemos ver Jessica de regresso a casa prepararando-se para uma festa onde irá perder a virgindade com um 127 Geografias do Corpo rapaz rico (Fabian) que havia decidido sair à noite com os amigos para fazer um programa de ‘andar aos bairros’.ii Ao atravessar uma rua, Jessica quase é atropelada pelo jipe de duas raparigas ricas do liceu, uma das quais é Love, a protagonista do terceiro episódio do filme.15 As duas raparigas vociferam insultos, e desaparecem à distância, aparentemente mais preocupadas com reunirem-se no Burger King na companhia das suas colegas do colégio privado do que com o estado de saúde físico ou mental de Jessica. Imediatamente a seguir, podemos testemunhar um evento semelhante em que os ocupantes de outro jipe (um dos quais é Sebastian, o protagonista do segundo episódio) implicam com um rapaz da rua que se atravessa à frente deles, na paragem do semáforo, para limpar o vidro do carro a troco de alguns cêntimos. Em cada umas destas situações, Bellott utiliza o ecrã dividido, confinando as personagens nos seus mundos herméticos, de modo a que a participação de cada uma das personagens na parte do ecrã da outra seja fugaz ou não-existente. Tal pode servir para reflectir as contradições sociais de Santa Cruz, onde a presença de uma representativa elite branca (normalmente de ascendência europeia) perceptivelmente deu origem a uma divisão racial (e, por implicação, económica) mais aguda do que em qualquer outra parte da Bolívia. Bellott, sendo ele mesmo de Santa Cruz, afirmou numa entrevista: É um lugar estranho, com imensa gente rica, grandes empresas e carros caros e velozes. É o Beverly Hills ou Milão da Bolívia. A seguir à Segunda Guerra Mundial muitos emigrantes europeus vieram para a cidade (...), as agências internacionais de modelos surgiram e instalaram-se. Muitos dos meus amigos submeteram-se a cirurgias plásticas ainda na adolescência (...) quase toda a gente com que andei na escola são modelos.16 Em outras partes do filme, o realizador utiliza a mesma técnica para obter um efeito oposto – isto é, aliar duas personagens aparentemente diferentes através da imagem dual de partilha de experiências sócio-sexuais. No episódio final, por exemplo, podemos ver Choco, que de estrela no seu país se transformara em apenas ‘mais um latino’ nos Estados Unidos (onde se encontra como estudante 128 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências de intercâmbio no Ithaca College), ser violado em grupo por um grupo de jogadores de futebol norte-americanos supostamente ultra-heterossexuais. Quando o grupo de violadores se retira, Choco fica sozinho com as suas calças pelos tornozelos, procurando desesperadamente a sua masculinidade que se encontra em farrapos ao seu redor. Neste momento, a imagem de Sebastian (o protagonista do segundo episódio do filme) surge na parte esquerda do ecrã, no momento em que se recolhe de uma iniciação sexual involuntária às mãos de uma prostituta contratada pelos amigos de um primo seu. A aplaudi-lo e a cumprimentá-lo, os seus novos companheiros felicitam o rapaz pelo seu ‘feito’, que o eleva agora à categoria de um ‘homem a sério’. É claro que todo o tormento por que passou (e a ajuda do álcool) tirou a Sebastian as últimas resistências e ele rapidamente corre a vomitar nos arbustos; na metade direita do ecrã, vemos Choco a fazer o mesmo ao pé do carro em que havia sido violentado. Apesar da diferença dos papéis sexuais que as duas personagens são obrigadas a assumir (activa, no caso de Sebastian, passiva no caso de Choco), a justaposição das imagens posiciona-os claramente a ambos como vítimas da natureza iníqua de uma ideologia hegemónica relativa ao género. Embora os exemplos acima referidos sejam apenas uma pequena parte do que podemos ver ocorrer ao longo do filme, ainda assim são suficientes para demonstrar que o carácter experimental de Bellott está longe de ser apenas o artifício de que o acusa David Musair. Pelo contrário, oferece às audiências uma perspectiva alternativa daquilo a que o realizador chama ‘a linguagem opressiva da narrativa de enquadramento único’, e desenvolve a nossa percepção da temática do filme. Contudo, seria erróneo sugerir que uma narrativa de ecrã dividido seja totalmente desprovida de defeitos. Em primeiro lugar, existem limites físicos à eficiência da divisão do ecrã simplesmente porque os órgãos receptores responsáveis pela acuidade visual do olho humano estão concentrados na ‘fóvea’ da retina, o que siginifica que não somos capazes de focar dois pontos divergentes ao mesmo tempo.17 E, apesar do realizador afirmar que o objectivo é o de ‘desestabilizar a tranquilidade da espectação passiva’ e forçar o espectador a escolher entre a imagem de um dos lados 129 Geografias do Corpo do ecrã, não existe, claro está, nenhuma garantia de que o modo de alternância da atenção se efectua da maneira desejada. A banda sonora, multiforme e por vezes confusa, apenas serve para exacerbar o problema, atingindo por vezes algumas situações que apenas se podem descrever como excessos sonoros. Em segundo lugar, e talvez o mais importante, está a fragilidade conceptual do uso do ecrã dividido para atingir o que a apresentação na imprensa vangloria, e que é, e passo a citar, ‘uma estética realista e intimista’. Não apenas a técnica desvia a atenção do meio pelo qual o texto é ele próprio construído, como também, e mais importante, o ser humano apenas está dotado com um par de olhos, cada um com um grau limitado de visão. O ‘diálogo audiovisual’ de Bellott, contudo, não apenas nos permite testemunhar o mesmo evento de uma gama variada de perspectivas, como também isola eventos que têm lugar simultaneamente em localizações geográficas totalmente distintas. Tal é, na minha opinião, forçar o realismo ao seu absoluto limite, isto é, se definirmos realismo como uma ‘aproximação mimética do real’.18 Como veremos mais à frente, este dois problemas são complicados pela adição de um outro sistema sígnico que toma a forma de legendas projectadas ou sobrepostas à imagem. Antes, porém, tendo estabelecido que os artifícios de experimentação do realizador são, pelo menos parcialmente, bem sucedidos na origem da(s) cultura(s) do filme, gostaria de questionar se a um nível visual o mesmo se pode constatar num contexto transnacional. Novas linguagens visuais num contexto transnacional No primeiro volume da sua Esthétique et psychologie du cinema (Paris: Editions Universitaires, 1963) Jean Mitri pretendeu clarificar a natureza da imagem fílmica e da montagem cinemática. O autor concluiu que o cinema não podia ser incluído na mesma categoria da linguagem verbal. As palavras faladas ou escritas, recorda-nos o autor, são signos arbitrários, que despoletam o conceito mental de um determinado objecto com o qual não possuem qualquer relação física ou acústica (com a única excepção provável das onomatopeias). As imagens fílmicas, por outro lado, de facto incorporam muitos 130 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências dos aspectos visuais dos objectos que descrevem e, nesse sentido, são ‘símiles’ e ‘duplos’ deles. Em todo o caso, diz o autor, o cinema pode ser comparado à linguagem verbal pela razão de que, a um nível superior, o sentido conotativo é produzido através de ‘processos quási-poéticos’19 da mise-en-scène, som, enquadramento, posição da câmara, montagem, etc. A relevância de tudo isto para o tema em análise é o de que ainda que este novo vocabulário cinemático seja compreensível no interior das fronteiras nacionais do espaço em que é produzido, tal pode não ocorrer a um nível transnacional. Tal sucede porque o modo como estes processos são aplicados é socialmente determinado e reflecte a experiência cultural do autor. Laura Mulvey, por exemplo, defende que muitos estratagemas utilizados na tradição cinemática (a que chama ‘gaze’) são, pela constante objectificação do corpo da mulher, totalmente sintomáticos das sociedades patriarcais.20 Sendo uma coprodução, o filme de Bellott foi, desde o início, destinado a uma distribuição para lá das próprias fronteiras nacionais, quer o consideremos como boliviano ou americano. Similarmente, sendo localizado o enredo em duas áreas linguística e culturalmente distintas, mesmo no interior das suas fronteiras domésticas (de novo, se considerarmos que sejam bolivianas ou americanas), uma das metades do filme não deixará nunca de ser inerentemente ‘estrangeira’ para a sua audiência. Neste sentido, o tema da compreensibilidade transnacional é particularmente sentida em relação a Sexual Dependency, e eu defendo que existem alguns momentos em que as ‘afirmações’ visuais criadas a partir da narrativa de ecrã dividido podem não ser apropriados pelo espectador. Um exemplo particularmente significativo ocorre no episódio final protagonizado por Tyler, o (não assumido)iii jogador de futebol americano e modelo que se sente distante não apenas dos seus colegas de equipe, mas igualmente do grupo de apoio aos estudantes homo e bissexuais (LGB)iv com quem, aparentemente, tem pouco em comum.21 De novo, Bellott utiliza o ecrã dividido para inserir as suas personagens no mundo respectivo – no lado direito do ecrã representa o líder do grupo LGB (Jeremiah), a dirigir um encontro de ‘revelação’,v enquanto que, na esquerda, Tyler olha angustiado 131 Geografias do Corpo do fundo do seu quarto, antes de sair rapidamente, visivelmente perturbado pela disposição colorida da bandeira do arco-íris22 e dos cartazes com slogans tais como: ‘Os armários são para as roupas; sai daí!’. Para as audiências norte-americanas, a decifração do significado desta justaposição não deverá apresentar problemas, uma vez que ela se refere a concepções de identidade e comunidade homossexual que estão incorporadas na palavra ‘gay’.23 Estas concepções têm vindo a ganhar popularidade na Europa e, mais recentemente, nos mais importantes centros metropolitanos da América Latina, como São Paulo, Rio de Janeiro, Cidade do México, Buenos Aires e San José (ver, como exemplo, o estudo de Denis Altman, Global Sex, 2001). Contudo, na Bolívia, tal como Susan Paulson observa, (…) não resultaram muito bem nos contextos relacionais diversificados nos quais os bolivianos experimentam a sua identidade e comportamento sexual, e nos quais apresentam as suas relações sociais de identidade de género.24 Neste sentido, os símbolos de orgulho homossexual que são enquadrados pelo lado direito do ecrã, que para uma audiência norte-americana dão origem a toda uma gama de associações, podem permanecer particularmente redundantes para uma audiência como a boliviana. Mais ainda, os estereótipos de género e sexualidade existentes na América Latina (pelo menos de um ponto de vista tradicional) são em muitos aspectos diferentes dos da América do Norte, e o termo ‘maricón’ (lit. ‘faggot’) – manteve um uso associado a homens efeminados independentemente da sua preferência sexual. Contudo, os homens que participam apenas em relações homossexuais activas estão menos dispostos a diferenciar-se (e a deixarem diferenciar-se) de homens heterossexuais porque o desejo de penetração, com homens ou com mulheres, pode ‘incluir-se na fronteira do comportamento masculino tolerado’.25 Neste sentido, tendo em atenção o comportamento masculino do jogador de futebol e o facto de que a sua homossexualidade é apenas sugerida – recuando no único contacto que tem com outro homem – eu creio que uma audiência boliviana dificilmente, e ao contrário de uma audiência norteamericana, o consideraria homossexual e, desse modo, a divisão do ecrã torna-se duplamente redundante. 132 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências Pode, com facilidade, sobreestimar-se o modo como as lacunas culturais podem afectar a recepção visual de um filme. Contudo, o exemplo que apresentámos é suficiente para demonstrar que o problema da linguagem do filme não se restringe a um diálogo oral, e que ainda antes do filme chegar à mesa de tradução, já ao nível visual ele pode não ser interiamente compreensível. Mais adiante referir-se-á o modo como a tradução pode abreviar alguns problema de microcompreensão visual. De momento, contudo, gostaria de debruçar-me sobre de que modo os artifícios de Bellott – especificamente os que dizem respeito à divisão do ecrã e à representação espontânea – podem enfraquecer os processos de tradução e, em segundo lugar, como este último pode comprometer a eficiência daqueles artifícios. Experimentação fílmica e tradução De acordo com Gottlieb, a legendagem é uma forma ‘aberta’ e ‘oblíqua’ de tradução, isto é, que complementa, mais do que substitui, o som original, e que ziguezagueia entre os discursos oral e escrito.26 Tal implica, como é natural, um grau de intrusão na imagem visual, resultante da inserção da linha de legenda, e uma redução considerável do diálogo oral submetido a uma ‘metamorfose’.27 Sem surpresa, uma vez que se trata de um filme ‘art-house’ de baixo orçamento, Sexual Dependency foi legendado, um método significativamente mais barato do que o de dobragem, que exige não apenas tradutores mas também actores, produtores, misturadores de som, e tudo o mais, envolvendo custos elevados. Se este é ou não o método mais adequado, pode discutir-se, e aqui eu volto ao que disse antes. Se nos recordarmos da introdução, uma das distinções que o realizador pretendia fazer em relação aos filmes de ‘estilo Hollywood’ era a recusa de um ‘script’ convencional em favor de uma orientação mais espontânea dos diálogos e da representação. Decerto que tal atribui ao filme um certo grau de autenticidade (e por isso de autoridade) que de outro modo não estaria presente, principalmente porque o espectador tem ‘acesso directo’ às personagens através de características dialécticas e de idiossincracias do discurso. 133 Geografias do Corpo Contudo, a mobilização espontânea dos diálogos como primeira instância de caracterização não joga a favor dos processos de legendagem. Em primeiro lugar, a legendagem não é adequada para fazer sobressair a diferença dos modos de falar que, com frequência, nos permitem aceder ao estatuto social das personagens.28 Tendo em mente que a maior parte do filme se desenvolve em redor da exploração das tensões que existem entre distintas comunidades sociais e raciais, tal constitui uma enorme insuficiência. Pensemos no primeiro episódio, por exemplo. Até à colisão (literal) do mundo de Jessica com o de Love e a sua amiga, o diálogo é caracterizado por uma sincronia entre modos de falar das personagens com que nos encontramos, todas elas pertencendo ao mundo social (operário) de Jessica. Esta sincronia, contudo, é rompida quando as ocupantes do jipe vociferam insultos num sotaque boliviano muito bem-falante. Neste sentido, o efeito de estridência criado pela colisão e história subsequente está incorporado não apenas no uso do ecrã dividido, mas também pelas nuances tonais do diálogo falado. Em segundo lugar, ao longo da metamorfose do texto na passagem do discurso oral para escrito, as ‘peculiaridades’ da linguagem falada (circunlocuções, elisões, pausas, hesitações, etc.) são frequentes e (necessariamente) omitidas no esforço de providenciar legendas facilmente apreensíveis.29 Contudo, tais elementos são justamente os que se associam com a significação interpessoal. Em terceiro lugar, ao não tomar em consideração as perguntas e respostas curtas (que são normalmente incluídas na mesma linha de inserção), as legendas dos filmes, por convenção, incluem apenas a fala de uma personagem de cada vez. Deste modo, um diálogo envolvendo uma variedade de interactantes a falar simultaneamente, isto é, uns sobrepondo-se aos outros, necessariamente resultará numa perda substancial de informação. Decidir qual a informação que deverá ser ou não omitida é, como se compreende, especialmente difícil, sobretudo quando se está a lidar com um filme sem ‘script’.30 Estas questões são especialmente importantes no segundo episódio do filme no qual o tratamento do machismo está inextricavelmente ligado à representação da interacção com os pais de um dos principais protagonistas masculinos. A dado momento31, tendo en- 134 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências contrado-se uma vez mais a seguir a terem saído à noite, Sebastian, Dante, Chichito e Joaquín discutem (amigavelmente) sobre a quem correu melhor a noite. Sebastian e Dante crêem que ter conseguido entrar num dos mais selectos clubes de Santa Cruz lhes daria direito ao prémio. O feito será, contudo, rapidamente ensombrado pelo anúncio de Joaquín: ‘Yo tiré un polvacho’ (lit. ‘Eu dei uma gandaqueca’).vi Aqui, a frase está inteiramente omitida da tradução, presumivelmente porque o tradutor a considerou supérflua. E, contudo, tendo em vista que a voz de Joaquín é particularmente sumida nesse momento, talvez não nos surpreenda tanto. Ainda assim, esta frase cumpre um papel fundamental no estabelecimento da predominância ‘quantitativa’ e ‘semântica’ de Joaquín sobre o conjunto dos interactantes,32 um papel que reflecte a natureza do status da personagem como sendo a única que assegurou uma conquista sexual naquela noite.33 Mais ainda, a inclusão do aumentativo adiciona um elemento verbal à fala da personagam. Tal se perde também na estratégia não-tradutora do tradutor. Tal como a preferência de Bellott pela espontaneidade de representação, as dificuldades de legendagem do filme são aumentadas pelo recurso à divisão de ecrã. Legendar um diálogo que se estabelece entre diversos interactantes a falar simultaneamente já é, como vimos, um enorme desafio. Porém, quando existe um outro diálogo paralelo (que pertence à outra metade do ecrã) o desafio torna-se insuperável. A técnica referida diminui uma capacidade já de si reduzida do ponto de vista do espectador em distinguir as vozes individuais e poder relacioná-las com uma determinada legenda, tal significando que a identificação da fala das personagens apenas se possa atingir através de um processo progressivo de visualização sequencial das imagens e das legendas.34 Tal, de acordo com De Linde, pode dar origem a uma confusão considerável que não apenas corrompe a leitura da legenda em cada momento mas também as que se lhe seguem. A ideia de combinar um enquadramento duo-narrativo com legendagem é, em si mesma, extremamente dúbia, ao ignorar as questões que se prendem com a espontaneidade (multi-participada) do diálogo. Ainda antes que as legendas sejam inseridas, já a atenção do espectador está a ser desafiada pela presença concorrente de duas 135 Geografias do Corpo imagens no mesmo canal visual. Adicionar um terceiro medium sob a forma de legendas pode assim ser descrito como um caso agudo de ‘excesso’ perceptivo,35 o que compromete, segundo creio, a capacidade do espectador em apropriar tanto os elementos visuais como os elementos linguísticos do texto fílmico. Mas para além de poder não ter tomado em consideração os desafios propostos ao humilde tradutor ou mesmo aos seus espectadores, Bellott parece igualmente ter menosprezado o impacte que as legendas pudessem exercer na estética do seu filme. Ao fim e ao cabo, o acto de escrever não está, para citar Zoé de Linde, fixado no aqui e agora, [mas antes] nas condições que se obtêm ao escrever em lugares e tempos distantes dos do autor.36 O resultado final, creio, é o de que, mais uma vez, a demanda realista e intimista de Bellott fica mais uma vez posta em causa pela conversão de um diálogo oral espontâneo em texto escrito que é sobreposto à imagem. À luz desta argumentação, poderia pensar-se que o filme de Bellott é simplesmente incompatível com o processo de tradução, pelo menos no que diz respeito a legendagem. Porém, deixar a argumentação terminar neste ponto serviria apenas para reforçar uma suposição antiga e errada de que a tradução é por natureza deficitária e sinónimo de uma perda inevitável. Na parte final deste estudo acabar-se-á por apresentar uma relação mais frutuosa entre o processo de realização e a capacidade de transposição da linguagem. ‘Lost in translation’? Redefinição das fronteiras de regulação da transposição da linguagem audiovisual. Desde o seu aparecimento como disciplina académica e da aplicação da teoria ‘polysystem’vii à sua investigação, tradução em cinema tem vindo a ser progressivamente analisada não apenas como um processo mas como uma produção (nacional) que está ‘plenamente incorporada na sua sociedade adoptiva’.37 Consequentemente, a suposta ‘superioridade’ dos sistemas nacionais (versões originais dos filmes) sobre os estrangeiros (versões traduzidas) tem vindo a ser 136 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências posta em questão. Gostaria de levar mais longe esta concepção, sugerindo que a tradução audiovisual pode inclusivamente servir para ‘desbloquear’ e até aprofundar a capacidade de percepção dos espectadores e assim remediar alguns dos problemas postos pelo tipo de artifícios experimentais de Bellott. Um dos problemas, se nos recordamos, seria a capacidade diminuída que o espectador sentiria em relação ao processo do diálogo do filme. Tal deve-se, por um lado, ao padrão espontâneo e intrinsecamente coloquial dos diálogos e, por outro, à presença de duas linhas de diálogo paralelas (cada uma pertencendo uma das metades do ecrã dividido), e que não só estão frequentemente sobrepostas como também não possuem sempre uma suficiente qualidade. Existe uma dupla vantagem em adicionar um terceiro sistema sígnico sob a forma de legendas ao texto do filme. Por um lado, enquanto um espectador nativo terá a tarefa, talvez mal sucedida, de decifrar sem ajuda o diálogo, no caso de um espectador estrangeiro essa tarefa estará a cargo da tradução. O tradutor ou tradutora, pelo menos num mundo ideal, deterá a possibilidade de aceder a um registo pós-produção de ‘(trans)script’,viii o que permitirá simplificar enormemente a tradução. Desde que as legendas sejam eficientemente inseridas e de boa qualidade visual, o espectador estrangeiro terá a oportunidade de poder apropriar a mesma informação numa forma alternativa e até talvez mais lúcida. Em segundo lugar, relacionado com um processo inevitável de compressão de texto, uma tradução talentosa seria bem sucedida ao seleccionar para o espectador estrangeiro os elementos mais importantes das duas linhas de diálogo. Ao mesmo tempo, o espectador caseiro pode ficar numa situação mais imponderável, tentando decidir em qual das vozes se deve concentrar. Este processo selectivo pode também ser de alguma vantagem para guiar o espectador estrangeiro através das partes potencialmente mais ambíguas do enredo (principalmente que são mantidas sobretudo pelo diálogo), isto é, desde que o tradutor tenha correctamente identificado aquilo que é ou não significativo no diálogo original. Estas duas questões são particularmente importantes no segundo episódio do filme onde, 137 Geografias do Corpo como se referiu, a interacção entre os protagonistas masculinos é difícil de acompanhar. Porém, o que dizer das ambiguidades que dizem especificamente respeito à nova linguagem visual que é proposta pelo realizador através da sua técnica duo-narrativa? Este problema foi já discutido acima, momento em que se defendeu que em certa medida a intenção dual de Bellott poderia perder-se, no caso dos espectadores estrangeiros, devido a um problema de desidentificação cultural. Neste caso, o recurso a legendas é limitado, uma vez que o processo inevitável de redução do texto original tem como consequência a inibição de uma significativa explicação textual da imagem. A dobragem, por outro lado, é de natureza diferente e oferece possibilidades mais alargadas de adaptação sócio-cultural através da modificação ou expansão do texto original.38 Como exemplo, na cena que descreve o encontro amoroso de Tyler com outro homem39, a pergunta que surge ‘Are you okay?’ poderia ser substituída por uma linha de legenda com algo do género ‘Está bien, relajate. Siga tu corazón’ (lit. ‘It’s okay, just relax. Follow your heart.’). Poderia seguir-se a resposta de Tyler na forma ‘Quiero tanto, pero es difícil.’ (lit. ‘I want to, but it’s so difficult’).ix Esta solução teria o poder de erradicar qualquer ambiguidade sobre a sexualidade da primeira personagem, e relacioná-la com a reacção negativa às propostas da segunda, uma dificuldade em integrar o impulso homossexual e a repugnância que sente pela relação sexual com outros homens. Um processo similar poderia também ser usado na cena seguinte de modo a clarificar o contexto e propósito da reunião do grupo LGB e o significado dos símbolos de orgulho homossexual que constam do cenário. Tal, por sua vez, permitiria assegurar que eventual justaposição das imagens de Tyler e de Jeremiah (o activista homossexual) poderia ser igualmente apropriada tanto por uma audiência boliviana como por uma americana. Esta argumentação pretende assim sugerir que existe um papel a cumprir pela reavaliação das fronteiras que regulam a transposição de linguagem audiovisual na teoria contemporânea da tradução. Não apenas cumpre uma função central de mediar soluções para os problemas surgidos na exportação de linguagens fílmicas alternativas 138 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências entre diferentes culturas, como serve igualmente como um método de ‘re-escrever’ o texto fílmico. Tal pode ajudar a aproximar as audiências à cultura original do filme, tanto através de estratégias de domesticação, que geram no espectador uma relação de empatia e compreensão, como de estratégias de alteridade, que introduzem noções e conceitos alternativos aos da cultura dos espectadores. Conclusões Limitações de espaço levaram a que, ao longo deste estudo, me referisse apenas a um filme. Em todo o caso, creio que esta argumentação em redor de Sexual Dependency possa ter respondido às questões que foram levantadas no momento da introdução. As novas linguagens fílmicas não são necessariamente compreendidas pelas audiências, especialmente para aquelas que não estão familiarizadas com as culturas a que os filmes originalmente pertecem. As técnicas através das quais essas linguagens se manifestam, tal como a do ecrã dividido, podem, por seu turno, ser fragilizadas ou mesmo postas em risco pelos processos de transposição de linguagem. Em todo o caso, a tradução em ecrã pode cumprir um papel insubstituível na resolução dos problemas que têm origem na exportação de linguagens cinemáticas alternativas entre culturas diferentes. Assim, qual a relação dos realizadores e dos tradutores? Decerto, seria injusto não considerar totalmente irrealista a expectativa de que os realizadores utilizam as novas linguagens cinemáticas de modo a adquirir um reconhecimento internacional e intercultural dos seus filmes, algo que nunca pode, de resto, ser garantido com antecedência. Em todo o caso, creio que contar ‘efectivamente’ uma história não passa apenas pelo ‘respeito pela audiência’40 mas também pelo tradutor que em última instância permite que o filme chegue até ela. Tal é particularmente significativo no caso dos realizadores envolvidos em filmes bilingues ou de coprodução que são naturalmente destinados a uma distribuição em dois mundos linguísticos diferentes. Os realizadores deveriam, creio, questionar, em primeiro lugar, o grau de eficiência das suas técnicas a um nível intercultural e, em segundo lugar, se são passíveis de uma boa traducibilidade e assim de uma recepção positiva a uma escala internacional. 139 Entretanto, enquanto a nossa sociedade se torna mais ‘confusa’ e mais ‘confundentes’ as variedades fílmicas de contar histórias,41 a capacidade dos tradutores de ecrã em apropriar e compreender, com o mesmo grau de sofisticação, os códigos semióticos, verbais e não-verbais (especialmente visuais), de que são compostos os textos audiovisuais parece ganhar importância. Contudo, tornarem-se ‘leitores activos e iluminados’ do filme,42 exige tempo e a capacidade fisiológica, etnográfica e psicológica de compreender as imagens visuais (e o modo como estas são seleccionadas e combinadas) é algo que tem de aprender-se a fazer.43 Não pode senão aplaudir-se o surgimento de cursos de tradução em ecrã que, através da análise do texto audiovisual e da teoria fílmica, providenciam uma resposta às especificidades deste mundo particular da tradução. Assim, ainda é cedo para avaliar o modo como serão reconhecidos pela indústria da tradução, e o modo como a actividade se insere nos padrões genericamente normalizados da indústria do cinema. Notas G. Nowell-Smith (1998: 43); R. Maltby (1995: 113). 2 R. Maltby (1995: 112). 3 Cit. em Z. de Linde (1995: 10). 4 R. Allen (1995: 94). 5 R. Allen (1995: 116). 6 R. Maltby (1995: 59). 7 Intitulado Dependencia Sexual, em espanhol. 8 Uma orientação pode ser definida como ‘um esboço preliminar, semi-dramatizado, no tempo presente, da peça dramatúrgica’ (Ph. Parker 1998: 45). 9 Disponível em http://cinemavaultreleasing.com.htm. 10 Apenas na cena da violação, no fim do filme, é usada um formato convencional de um único ecrã (1:35:17–1:37:54). 11 Uso o termo ‘estilo Hollywood’ para referir os filmes que são produzidos fora de Hollywood mas que aderem, narrativa e visualmente, às suas convenções. Ironicamente, o filme de ‘estilo Hollywood’ produzido em França, por exemplo, poderia, por sua vez, ser considerado como ‘art-house’ nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha pela simples razão de conter legendas (G. Nowell-Smith & S. Ricci 1998: 67). Por esta razão eu uso este termo bastante inconsistente (‘art-house’) com alguma relutância, e mantenho o uso de comas ao longo do texto. 12 D. Musair (2003: 1). 13 D. Fainaru (2003). 14 Sexual Dependency (0:00:00– 0:06:00). 15 Esta personagem não deve ser confundida com a personagem de cabelo louro que surge como modelo no cartaz publicitário, uma norte-americana que intervém no quinto episódio do filme. 16 S. Viebrock (2003). 17 J. Monaco (1995: 155). 18 A. López (1997: 19). Ana López, in 1 ‘An “Other” History: The New Latin American Cinema’ discute uma concepção alternativa de ‘realismo’, em relação aos exemplares mais tardios do Cinema Novo brasileiro. Aí, escreve, ‘realismo’ não é mais visto como um processo de reprodução da superfície do mundo vivido’, mas antes a explicação e a revelação dos seus ‘aspectos mais recônditos’ (1997: 19). 19 D. Andrew (1976: 209). 20 R. Maltby (1995: 398). 21 Sexual Dependency (1:30:30–1:32:00). 22 Originalmente um símbolo de paz, a bandeira do arco-íris é hoje normalmente associada ao ‘orgulho homossexual’. 23 Denis Provencher sublinha, no seu artigo ‘Vague English Creole: Cooperative Discourse in the French Gay Press’ (2004) que para alguns elementos da comunidade ‘gay’ e ‘lesbian’ norte-americana a sua identidade sexual é tão intensa que se vêm a si próprios como quase pertencendo a uma ‘etnia’ distinta. Como resultado, um ‘gay lobby’ altamemente politizado tem vindo a emergir, a celebrar abertamente a homossexualidade (‘gay pride’), a exigir a franqueza total (‘coming out’) dos seus membros [professos] e a lutar por equidade de direitos em todos os domínios da vida pública e privada. 24 S. Paulson (2006: 14). 25 S. Peña (2004: 236). Deve ser-se cuidadoso, contudo, a este respeito, e não simplificar em demasia a organização da vida (homo)sexual na América Latina. Alguma investigação, como a de P. Fry (1982), R. Lancaster (1992) e J. Carrier (1995) providenciou muita documentação sobre o modo de articulação do desejo homossexual masculino. Em todo o caso, esta articulação deve ser vista como variável, de lugar para lugar e entre épocas diferentes, e como derivando, em certos (muitos) contextos, para um modo baseado na escolha do objecto sexual e de concepções de identidade homossexual associadas (ver, por exemplo, J. Green 1999, Quiroga 2000, R. Parker 1999). Em resumo, devemos estar cientes do fosso que, citando Green pode existir entre ‘a representação e a experiência social’ (1999: 8). 26 Gottlieb (1994: 104). 27 J. Días Cintas, cit. em A. Remael (2004: 104). 28 O. Goris (1993: 163). 29 Gottlieb (1994: 106). 30 Juntamento com o diálogo, o ‘script’ do filme contém notas adicionais que se referem às personagens e ao enredo, com a intenção de inserir o diálogo no contexto, sublinhando as suas características mais determinantes. 31 Sexual Dependency (00:32:41–0:35:18). 32 Linell, cit. em A. Remael (2004: 10). 33 De acordo com Linell, uma personagem que fala a maior parte do tempo numa sequência de diálogo possui predominância quantitativa. Do mesmo modo, se uma personagem predominantemente introduz e mantém os tópicos e perspectivas de conversação possui também predominância semântica (cit. em A. Remael 2004: 110). 34 Z. de Linde & N. Kay (1999: 29). 35 Gottlieb (1994: 115). 36 Z. de Linde (1995: 12). 37 J. Días Cintas (2004: 23). 38 O. Goris (1993: 184). 39 Sexual Dependency (1:30:30–1:31:08). 40 McKee, cit. em Cattrysse (2004: 43). 41 C. DegliEspositi (1998: 19, 24). 42 P. Zlateva (2004). 43 J. Monaco (2000: 152). Referências bibliográficas Allen, R. 1995. Projecting Illusion: Film Spectatorship and the Impression of Reality. USA: Cambridge University Press. Altman, D. 2001. Global Sex. Chicago: University of Chicago Press. Bartina, F. 2004. The Challenge of Research in Audiovisual Translation. In P. Orero, ed., Topics in Audiovisual Translation. 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Tradução por Ana Francisca de Azevedo em 2009, com revisão do autor. i Manteve-se o termo em inglês e prescindiu-se de utilizar o quase-equivalente português ‘argumento’ por parecer que não continha o tipo de sentido que o texto exige. ii No original inglês, ‘slumming’. iii No original inglês, ‘closeted’. iv No original inglês, ‘student Lesbian, Gay and Bisexual support group’. v No original inglês, ‘a “coming out” encounter’. vi Em português existe uma gama diversificada (mesmo em poder escatológico) para fazer equivaler ao inglês ‘fuck’ e, indirectamente, ao boliviano ‘polvacho’. Neste contexto, o termo utilizado parece adequar-se às características do texto original. vii Manteve-se o original inglês, por não existir ainda uma expressão em português suficientemente estabilizada. viii Manteve-se o original inglês, por não existir uma expressão em português que retivesse a gama e relacionamento de significados ali presentes. ix Dado o carácter intertextual do filme, não se considera pertinente traduzir as soluções de legendagem aqui propostas pelo autor deste estudo. 144 Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de ʻMoon Palaceʼ Joana Lima (…) the inner and the outer could not be separated except by doing great damage to the truth. PAUL AUSTER, Moon Palace O espaço (…) é um espaço calculado a partir de mim como ponto ou grau zero da espacialidade. Eu não vejo de acordo com o seu invólucro exterior, vivo-o de dentro, estou nele englobado. Seja como for, o mundo está à minha volta, não à minha frente. MAURICE MERLEAU-PONTY, O Olho e o Espírito No panorama literário dos Estados Unidos, são várias as obras cuja narrativa resulta de um desenvolvimento do tema da Viagem, são vários os romances nos quais as imagens espaciais e o movimento físico das personagens propiciam reflexões sobre a matriz mítica e cultural na qual assenta o pensamento norte-americano. No plano específico das representações espaciais propostas por Paul Auster, a lição recíproca entre o espaço e o corpo contribui para sublinhar a condição progressivamente fragmentária da identidade. Perceber o corpo e a linguagem em Moon Palace implica, necessariamente, pensar a Viagem e o Lugar: as personagens deste romance e as suas histórias materializam o “eterno presentificado do futuro da promessa do lugar”, “a América como processo de realização, a América Geografias do Corpo como caminho, viagem ou ponte – numa palavra, a América como sentido”.1 As viagens físicas protagonizadas por Marco Stanley Fogg e Thomas Effing, na geografia urbana ou no deserto, e as suas experiências nas cavernas de Central Park e do Utah são momentos de exploração individual, trajectos nas coordenadas da história e do mito, percursos pela escrita, procura de sentidos. Porque no seu corpo e na sua consciência, sempre e já indissociáveis do espaço em que se movem, se cruzam o pensamento e a memória, o ser e o criar. A caverna é lugar de fechamento, interiorização e identificação, mas é igualmente abertura ao processo de integração do mundo; “[a] organização do eu interior e da sua relação com o mundo exterior é concomitante. Desse ponto de vista, a caverna simboliza a subjectividade em luta com os problemas da sua diferenciação”.2 Esta relação entre o homem e o mundo, simbolicamente desenvolvida na caverna, é já descrita no Livro VII de A República de Platão. De acordo com a concepção de mundo de Platão, o homem move-se entre duas realidades que oferecem caminhos distintos para a percepção e o entendimento dos fenómenos: a realidade inteligível, do domínio do imutável, que existe em si mesma, independentemente de quaisquer representações humanas, e que reúne as ideias dos objectos, e a realidade sensível, inscrita no domínio do plural, do relativo, do variável e que se traduz em imagens apreendidas pelos nossos sentidos. Na alegoria da caverna, Platão convoca estas duas realidades, procurando estabelecer a distinção entre a essência e a aparência, o mundo inteligível e o sensível. Os prisioneiros da alegoria platónica, condicionados pelo espaço em que se encontram e quase imobilizados pelas correntes e grilhões, vêem apenas sombras projectadas na parede da caverna. Sendo estas sombras a única materialização da realidade que conhecem, tomam-nas por verdadeiras e o mundo das aparências é, assim, considerado real e absoluto. No entanto, este mundo decorre da apreensão da realidade levada a cabo pelos sentidos, sendo, por isso, e tal como nos explica o filósofo, relativo, promotor de interpretações falsas, opondo-se ao mundo inteligível das ideias. Ludibriados pelos sentidos, os prisioneiros da caverna possuem um conhecimento limitado e impreciso da realidade que os rodeia; sombras, suposições, ilusões são os elementos 146 Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon Palace de que dispõem para o conhecimento de si e do universo que lhes é exterior: “pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objectos”.3 Se algum dos prisioneiros conseguisse libertar-se dos grilhões, sair do espaço de aprisionamento e descobrir a luz exterior, aperceber-se-ia dos objectos existentes fora da caverna, dos quais apenas conhecia as sombras, e estas sombras seriam gradualmente substituídas pelas formas perfeitas desses objectos: “Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos, reflectidas na água, e, por último, para os próprios objectos”.4 Todavia, a passagem do mundo sensível para o mundo inteligível e o acesso a esta visão superior não seriam imediatos, implicariam um processo de habituação e de aprendizagem após a saída da caverna; a passagem das sombras dos objectos para as formas perfeitas dos mesmos e a necessidade de discernimento entre o mundo aparente e o mundo real traduziriam um percurso difícil. O prisioneiro teria dificuldade em olhar para a luz solar, não sendo capaz de fixar os objectos, não seria capaz de nomeá-los, não os consideraria mais reais do que as sombras que o haviam acompanhado até àquele momento, nem acreditaria estar mais perto da realidade e da visão verdadeira; “precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior”.5 As sombras dariam lugar a imagens reflectidas, depois dar-se-ia o reconhecimento dos objectos e, finalmente, o prisioneiro conseguiria enfrentar a luz solar. Progressivamente, os objectos e as suas designações e o próprio sol integrariam o universo de referências do prisioneiro e, nesse momento, ele reconheceria este seu novo conhecimento como o verdadeiro saber e consideraria o anterior como uma ilusão. Se o mundo inteligível da ontologia platónica pressupõe a separação entre o corpo e esse Real superior, e se dentro da caverna do filósofo se vive apenas a realidade ilusória – diz-nos Platão – dos sentidos, o mesmo não se verifica no romance de Auster. Nas cavernas de Moon Palace, Fogg e Effing recuperam um lugar original e de sentido(s), permitindo ao corpo e à consciência a descoberta, o questionamento e a criação artística. Na reinvenção do território e no processo tensional entre identidade e alteridade, Moon Palace 147 Geografias do Corpo relata a experiência de se tornar um outro. Em Central Park e no deserto do Utah, os dois viajantes submetem-se a um processo de descorporização, de apagamento de identidade e de esvaziamento da sua existência mítica e histórica, reassumindo, através da experiência da caverna, o seu estatuto corporal integrado num espaço-mundo reescrito. O lugar activa a memória e esta traz de volta a passagem do velho continente para o novo território e a chegada ao espaço da Utopia a haver. A imagem mítica do palácio dos sonhos é, no entanto, perturbada por interferências distópicas da história americana, as quais subvertem e problematizam essa mesma história, questionando todo um passado colectivo.6 Narrativas da América permeiam as memórias pessoais de Fogg e Effing e são reescritas neste centro de mistério e iniciação: a descoberta e a exploração de territórios desconhecidos, Cristovão Colombo, a China que afinal era a América, o oeste americano, o conflito com os Índios, a guerra do Vietnam, armas, bombas, energia nuclear, exploração espacial e o mistério lunar, música, baseball cruzam-se nas histórias individuais das personagens. “L’espace devient alors un cheminement spirituel ponctué de rites initiatiques et le texte se transforme en un labyrinthe dans l’immensité du continent américain”.7 No mesmo lugar, recuperam-se histórias sagradas e elementos textuais da literatura universal. Em Central Park e no Utah estão as palavras e as cores originais e estes territórios neutros são também espaço de criação. Ao convocar estas linguagens originais e arquetípicas, a caverna assume características iniciáticas para Fogg e para Effing, permitindo-lhes uma viagem de exploração da palavra na escrita da sua própria vida – acto de criação artística adivinhado nas palavras de Victor Fogg: “every man is the author of his own life”.8 Central Park Se o nome próprio constitui um princípio identitário, no caso do protagonista e narrador de Moon Palace esta identidade assenta numa relação directa entre o nome, a viagem e o lugar: “Marco, naturally enough, was for Marco Polo, the first European to visit China; Stanley was for the American journalist who had tracked down Dr. 148 Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon Palace Livingstone “in the heart of darkest Africa”; and Fogg for Phileas, the man who had stormed around the globe in less than three months”.9 Fogg procede à desconstrução do seu nome, remetendo-o para estas personalidades históricas, culturais e literárias, cuja identidade, por sua vez, se concretiza na relação que as mesmas, pelos seus feitos, estabelecem com o espaço. O protagonista assume-se claramente como explorador e integra a viagem no seu próprio corpo:”travel was in my blood, that life would carry me to places where no man had ever been before”.10 Cedo se torna um novo pioneiro e, com a ajuda do seu tio, reinventa a mítica conquista do oeste americano: “we had developed a game of inventing countries together, imaginary worlds that overturned the laws of nature. Some of the better ones took weeks to perfect, and the maps I drew of them hung in a place of honor above the kitchen table”.11 O território a conquistar é deslocado para o espaço mental da personagem: são as palavras e as histórias, as lendas e os mitos de povos antigos narrados por Victor Fogg que preenchem o imaginário do protagonista, oferecendo espaços de aventura e a projecção de novos mundos. A morte de Victor Fogg faz com que esta ordenação infantil de mundo seja fortemente abalada e substituída pela incerteza e pelo vazio, todavia, a sua ausência vai acentuar a ligação do protagonista com a viagem, o lugar e a palavra. Procurando evitar o confronto com o caos que invade a sua realidade, entrega-se à leitura dos livros que herda do seu tio e assume a sua própria expedição. As páginas dos 1492 livros vinculam Fogg, logo à partida, à memória histórica, a Cristovão Colombo, à descoberta da América e, embora fixem a existência da personagem num lugar imaginado, circunscrevendo as movimentações do seu corpo ao seu espaço mental, asseguram a continuidade da sua educação enquanto explorador: “It was almost like following the route of an explorer from long ago, duplicating his steps as he trashed out into virgin territory, moving westward with the sun, pursuing the light until it was finally extinguished”,12 antecipando e preparando o caminho para Central Park. Neste parque urbano, Fogg encontra como que um grau zero da espacialidade: “this was New York, but it had nothing to do with the New York I had always kown. It was devoid of associations, a place 149 Geografias do Corpo that could have been anywhere”;13 embora ciente do traçado geográfico da cidade, o protagonista autonomiza o parque e apropria-se mentalmente deste espaço, retomando o mito da terra prometida, prestes a ser reinventado. E é neste território neutro que Fogg vive a experiência da caverna: numa primeira fase, e de um ponto de vista simbólico, o parque assume-se em toda a sua extensão como caverna, um “mundo em miniatura”14 concebido pelo protagonista; mais tarde, a experiência da caverna é circunscrita a uma pequena gruta descoberta por Fogg no mesmo parque, no momento em que a sua extrema debilidade física e a doença o levam a procurar um abrigo. Central Park oferece-se como espaço de espiritualidade e de introspecção, permite o isolamento e dá a este pioneiro urbano a possibilidade de explorar o território da sua interioridade: It became a sanctuary for me, a refuge of inwardness against the grinding demands of the streets. There were eight hundred acres to roam in, and unlike the massive gridwork of buildings and towers that loomed outside the perimeter, the park offered me the possibility of solitude, of separating myself from the rest of the world.15 Se as ruas nova-iorquinas são dominadas pelos corpos que se movem num tempo urbano marcadamente acelerado e que agem em função de um conjunto de normas pré-determinadas, aceites e esperadas – “In the streets, everything is bodies and commotion, and like it or not, you cannot enter them without adhering to a rigid protocol of behaviour”,16 em Central Park, os corpos adquirem novas formas e expressões, assumem a liberdade de um movimento exclusivamente sensorial: “People smiled at each other and held hands, bent their bodies into unusal shapes, kissed”.17 É neste contexto espacial que se inicia o processo de mudança identitária e corporal de Fogg: “I felt that I was blendind into the environment”;18 a sua integração neste ambiente faz com que a consciência de si se defina apenas interiormente, a construção de identidade parte de dentro, sem interferência exterior: “In the park, I did not have to carry around this burden of self-consciousness. It gave me a threshold, a boundary, a way to distinguish the inside and the outside. If the streets forced me to see myself as others saw me, the park gave me a chance to return 150 Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon Palace to my inner life, to hold on to myself purely in terms of what was happening inside me”.19 Numa lógica de inversão, Central Park permite-lhe não só não ser visto, e consequentemente não ter a sua identidade definida através dos olhos dos outros habitantes da cidade, como também lhe permite assumir o acto de ver o Outro, explorando os seus próprios sentidos: “I spent a good deal of time just watching people: studying their gestures and gaits, thinking up life stories for them, trying to abandon myself totally to what I was seeing”,20 “if this time was going to have any meaning for me, I would have to live in it as fully as possible, shunning everything but the here and now, the tangible, the vast sensorium pressing down on my skin”.21 Esta relação directa que Fogg desenvolve com o espaço físico, bem como a decisão de centrar a sua percepção do mundo na experiência sensorial, fazem com que as viagens realizadas através dos livros e das histórias por eles contadas sejam agora transferidas para um cenário natural, com pessoas reais, transformando o protagonista em autor de novas histórias. No seu texto O Olho e o Espírito, Maurice Merleau-Ponty fala-nos de visão e de entendimento do mundo. Argumenta que é dentro desse mesmo mundo que aprendemos a vê-lo e a entendê-lo: nós e o mundo não estamos em espaços diferentes. Propõe uma ontologia fundada no eu, mas não um eu que existe de modo isolado e que olha os objectos que o rodeiam como exteriores a si, não um eu entendido enquanto ser acabado, mas um eu que existe pela relação contínua que estabelece com esses objectos, pela relação que mantém com o mundo no qual está englobado. E esta relação do homem com o mundo é, segundo Merleau-Ponty, primordialmente corporal, ou seja, o ponto de partida do homem-no-mundo é o seu corpo nesse mesmo mundo: “Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão ali perante nós, só lá estão porque despertam um eco no nosso corpo, porque ele as acolhe”.22 A percepção realizada no e pelo corpo na sua abertura ao mundo é realizada porque o corpo é no-mundo, porque corpo e consciência estão sempre e já no mundo. O homem vive a percepção e consciência de si mesmo no-mundo a passo com a percepção e consciência do próprio mundo, ou seja, a criação da 151 Geografias do Corpo identidade individual é indissociável da construção da identidade do mundo. Mais ainda, há uma redefinição permanente da identidade de ambos, uma dinâmica que transforma continuamente a realidade em espaço de possibilidades. O corpo-no-mundo recebe as impressões de tudo quanto o rodeia e torna-as sentidos, sem que haja limite para este processo de significação. Esta indissociabilidade corpo/mundo proposta por Merleau-Ponty fragiliza o estatismo das categorias de sujeito e de objecto, entendidos numa perspectiva não relacional, reabilitando, assim, o corpo e o sensível, bem como a capacidade humana de gerar sentido. A crescente identificação de Fogg com o espaço em que se movimenta assume grande importância na sua educação artística, contudo, e num processo inverso, resulta na debilidade física cada vez mais acentuada da personagem e no seu apagamento corporal progressivo: “It accentuated my thinness to an appalling degree. My ears stuck out, my Adam’s apple bulged, my head seemed no bigger than a child’s. I’m starting to shrink, I said to myself, and suddenly I heard myself talking out loud to the face in the mirror”.23 A sua consciência contempla uma cara no espelho que já não é a sua, o duplo reflectido afasta-se do seu referente, a consciência de Fogg não reconhece esta sua nova identidade corporal. Na sequência da exploração sensorial levada ao extremo por Fogg, o seu corpo, ainda que diminuído e sem forças, sobrepõe-se à sua consciência e determina o seu afastamento total da sociedade. Num movimento marcadamente animal, num regresso ao território selvagem inabitado, na ausência primitiva do humano e do social, Fogg refugia-se, então, num espaço que algumas rochas desenham dentro do parque: “The rocks formed a natural cave, and without stopping to consider the matter any further, I crawled into this shallow indentation”.24 Nesta pequena caverna, situada na grande caverna simbólica que é Central Park, a debilidade física e a doença enviam-no para um estado de quase inconsciência que o prende aos reflexos da sua degradação física progressiva, a sonhos de intensidade febril e a visões em constante mutação: Most of the time I was barely conscious and even when I seemed to be awake, I was so bound up in the tribulations 152 Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon Palace of my body that I lost all sense of where I was. I remember long bouts of vomiting, frenzied moments when my body wouldn’t stop shaking, periods when the only sound I heard was the chattering of my teeth. The fever must have been quite high, and it brought ferocious dreams with it – endless, mutating visions that seemed to grow directly out of my burning skin. Nothing could hold its shape in me.25 A dinâmica entre o espaço, o corpo e a linguagem continua a demonstrar uma relação implícita de indissociabilidade. No momento em que Fogg, no seu estado alucinatório, se depara com a placa de Moon Palace, não só contextualiza espacialmente o nome do restaurante, ao projectar o brilho das suas letras no céu, como também molda a palavra, desmembrando-a, desintegrando algumas das suas letras de néon, acentuando a plasticidade da linguagem através da sua própria elasticidade corporal: The pink and blue neon letters were so large that the whole sky was filled with their brightness. Then, suddenly, the letters disappeared, and only the two os from the word Moon were left. I saw myself dangling from one of them, struggling to hang on like an acrobat who had botched a dangerous stunt. Then I was slithering around it like a tiny worm, and then I wasn’t there anymore.26 Este elemento plástico das palavras é mantido por Fogg após a saída da caverna; num corpo ainda em estado de semi-consciência, repete-as de modo obsessivo, reduzindo-as a sons, esvaziando-as de sentido: “I remember pronouncing the words Indian Summer over and over to myself, saying them so many times that they eventually lost their meaning”27 e, no mesmo delírio febril, transforma a fronteira urbana em cenário histórico da fronteira original: Then, without any sense of falling asleep, I suddenly began to dream of Indians. It was 350 years ago, and I saw myself following a group of half-naked men through the forests of Manhattan. It was a strangely vibrant dream, relentless and exact, filled with bodies darting among the light-dappled leaves and branches. A soft wind poured through the foliage, muffling the footsteps of the men, and I went on following them in silence, moving as nimbly as they did, with each 153 Geografias do Corpo step feeling that I was closer to understanding the spirit of the forest.28 Na tese de Platão, as sombras e as imagens dos homens e dos objectos, inscritas no real aparente, pressupõem a existência das suas próprias formas ideais, das quais participam parcialmente; para o filósofo, estas formas ideais dos objectos são mais reais do que as suas sombras projectadas na parede da caverna. Mas será que podemos afirmar que as sombras são menos reais do que as formas perfeitas dos objectos? Será possível determinar o grau de realidade de ambas? O mundo sensível da alegoria platónica assenta a sua existência na relação que os prisioneiros da caverna com ele estabelecem. Integrados no seu espaço limitado e no seu universo de referências, os prisioneiros aceitam como reais as projecções que vêem diariamente, é nelas que se reconhecem e que se definem. Não sabem que os ecos pressupõem sons que os antecedem; desconhecem também que a origem destes ecos não se encontra nas sombras, mas nas vozes das pessoas que passam do lado exterior à caverna, fora do alcance da sua visão, acreditando, por isso, na realidade destes duplos de sons e destas imagens bidimensionais e monocromáticas. No entanto, são capazes de distinguir as diferentes sombras projectadas e os vários ecos que reverberam na caverna, associando-os à linguagem que conhecem e que é sentido no seu mundo subterrâneo; havia “honras e elogios” entre si, “prémios para o que distinguisse com mais agudeza os objectos que passavam, e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos”, havia também quem “fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer”.29 A existência do real inteligível, por sua vez, decorre da relação que o prisioneiro que sai da caverna estabelece com este mundo superior, resulta do modo como o prisioneiro o olha e o lê. Os objectos deste novo mundo não integram, de facto, o universo de referências do prisioneiro e, por esse motivo, ele não é capaz de um reconhecimento imediato. Não quer isto dizer, no entanto, que o prisioneiro parta de um grau zero do conhecimento; pelo contrário, ele faz-se acompanhar de um universo de referências que constituem e são constituídas pelo mundo da caverna. Cada novo objecto vai, então, 154 Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon Palace ser experimentado com base numa linguagem e conhecimento anteriores, podendo o seu sentido resultar da semelhança ou da diferença, da reiteração ou da exclusão. Os sentidos prévios, os objectos e as experiências anteriores interferem nos novos sentidos e integram-nos, não existindo estes últimos em absoluto. A experiência do prisioneiro no mundo exterior à caverna – o seu modo de olhar, de interpretar o real, de encontrar um sentido para os novos objectos que observa – não pode ser entendida se dissociada da experiência da caverna e dos sentidos a ela inerentes. Seguindo a narrativa platónica, o mundo inteligível existe porque o prisioneiro a ele o acede. Existe porque o prisioneiro gradualmente adquire a capacidade de vê-lo. Existe porque o prisioneiro faz uma leitura do mesmo. Existe porque o prisioneiro tem a experiência prévia da caverna. Protagonista de um processo de adaptação gradual, um processo de conhecimento, o prisioneiro que acede a este mundo superior conhece-o sendo-nele e é na sua mundaneidade e temporalidade que o prisioneiro e o mundo se redefinem mutua e simultaneamente. Na verdade, a caverna e as sombras criadas pela fogueira assumem para os prisioneiros que nela se encontram exactamente o mesmo nível de realidade que o espaço exterior e os seus objectos iluminados pela luz solar vão assumir para o prisioneiro libertado, a partir do momento em que este consegue vê-los e (re)conhecê-los, a partir do momento em este que é-no-mundo-com-eles. A acessibilidade aos dois mundos e a integração das suas imagens decorrem, em escala igual, do efeito da luz, da capacidade de visibilidade e da possibilidade humana de sentir, interpretar e gerar sentido. As formas perfeitas dos objectos, sob a égide do absoluto, do ideal, têm, afinal, a sua existência narrada com base num ponto de vista, num olhar, e esta existência corporal do prisioneiro, a sua visão e o seu conhecimento inscrevem-se no domínio do subjectivo. Mas se a subjectividade intrínseca ao olhar do prisioneiro nos sugere a impossibilidade de termos um acesso não mediado à realidade, fragilizando a noção de absoluto pretendida por Platão, não deixa, no entanto, de evidenciar a dinâmica comunicacional que preside ao ser-no-mundo. Do mesmo modo, a experiência de Fogg na caverna de Central Park prova que o homem e o mundo não existem em absoluto, en- 155 Geografias do Corpo quanto duas entidades desligadas uma da outra. O que se observa, pelo contrário, é uma relação dialéctica entre o ser, corporal e espiritual, o espaço e a linguagem, entre o ser e o que é visionado em determinado contexto espacial, entre o ser e o mundo no qual o ser é. O protagonista de Moon Palace recupera o espaço americano original, entregando-lhe o seu corpo, e é nesse espaço que brinca com as formas das palavras, que as esvazia de sentido, que procura as suas infinitas correspondências, reescrevendo textos históricos, míticos e literários. Utah A caverna do deserto do Utah é cenário de renascimento para Thomas Effing. Neste espaço inexplorado, Effing permite-se adquirir e gozar de um direito de alteridade, assumindo uma nova identidade e ocupando o lugar de outrem: “he would simply pretend to be someone he was not”.30 A vastidão do território e o poder sentido no seu silêncio e vazio fazem com que a personagem se sinta absorvida pelo espaço exterior: “The land is too big out there, and after a while it starts to swallow you up”.31 Contudo, não é apenas o território que reclama a personagem para si próprio, o movimento inverso ocorre quase em simultâneo, isto é, o espaço passa a definir-se apenas nos termos da consciência de Effing: “There is no world, no land, no nothing. It comes down to that, Fogg, in the end its all a figment. The only place you exist is in your head”.32 No entanto, e contrariamente a Fogg, Effing não deixa que o seu corpo fique debilitado: “He therefore set about organizing his life in the strictest possible way, doing everything he could to stretch out the time he would spend there: limiting himself to one meal a day, laying in an ample supply of firewood for the winter, keeping his body fit”.33 Muito embora a experiência de Effing no deserto do Utah se traduza num mundo de infinitas possibilidades – “it was a miniature pocket of life in the midst of overpowering barrenness”,34 “everything would be possible for him in this place”35 – não deixa de ser uma experiência de solidão extrema para a personagem. George Ugly Mouth, um possível descendente de americanos nativos, tal como o seu nome e a sua descrição sugerem, é a única visita que Effing 156 Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon Palace recebe durante a sua estadia no deserto. Não obstante o facto de esta visita assentar num equívoco, pois Ugly Mouth toma Effing pelo eremita original, Effing tem a possibilidade de reescrever a história da colonização, num espaço também ele reinterpretado, através das histórias, nem sempre coerentes, contadas por Ugly Mouth: “a story about the Navaho reservation would suddenly turn into a story about a drunken brawl in a saloon, which would then turn into an excited account of a train robbery”.36 A educação artística de Effing na caverna do Utah é iniciada através do registo disciplinado e metódico das provisões necessárias à sua sobrevivência: “he made charts and schedules for himself, and each night before going to bed he wrote down meticulous accounts of the resources he had used during the day, pushing himself to maintain the most rigorous discipline”.37 A este registo sucede o desenho e, em seguida, a pintura: One night, sitting with a pencil in his hand and writing up his brief report of the day’s activities, he suddenly started to sketch out a little drawing of a mountain on the opposite page. Before he even realized what he was doing, the sketch was finished. It took no more than half a minute, but in that abrupt, unconscious gesture, he found a strength that had never been present in any of his other work. That same night, he unpacked his art supplies, and from then until his colors finally ran out, he continued to paint, leaving the cave every morning at dawn and spending the entire day outside. It lasted for two and a half months, and in that time he managed to finish nearly forty canvases.38 A arte permite a Effing o conhecimento dos objectos do mundo, assim como o seu posicionamento no mesmo. Vida e arte, real e imaginário, facto e ficção coexistem nos seus registos de mundo: The true purpose of art was not to create beautiful objects, he discovered. It was a method of understanding, a way of penetrating the world and finding one’s place in it, and whatever aesthetic qualities an individual canvas might have were almost an incidental by-product of the effort to engage oneself in this struggle, to enter into the thick of things. He untaught himself the rules he had learned, trusting in 157 Geografias do Corpo the landscape as an equal partner, voluntarily abandoning his intentions to the assaults of chance, of spontaneity, the onrush of brute particulars. He was not longer afraid of the emptiness around him.39 Effing estabelece uma harmonia entre a paisagem e as formas iniciais de expressão humana; as suas pinturas recuperam cores rupestres, primitivas: “the pictures he produced were raw, he said, filled with violent colors and strange, unpremeditated surges of energy, a whirl of forms and light”.40 Vida e arte fundem-se nas paredes da caverna que ocupa e nos objectos do mundo que a preenchem: He worked on his second cycle of landscapes with even greater intensity than the first, and when all the backs were finally covered, he began painting on the furniture inside his cave, frantically inscribing his brushstrokes onto the cupboard, the table, and the wooden chairs, and when all these surfaces were covered as well, he squeezed out the last bits of color from the shrivelled tubes and began work on the southern wall, sketching the outlines of a panoramic cave painting. It would have been its masterpiece, Effing said, but the colors ran dry when it was only half-finished.41 Já sem as tintas necessárias para continuar a pintar, Effing transfere a sua experiência de observação e de representação de mundo para a escrita. Os registos ordenados de mundo, anteriormente construídos através da imagem, resultam agora da relação da personagem com a palavra: “in one notebook he recorded his thoughts and observations, attempting to do with words what he had previously been doing in images, and in another he continued with the log of his daily routine, maintaining an exact account of his expenditures”.42 A relação que Effing estabelece com a palavra, o conhecimento meticuloso e o domínio progressivo que possui da mesma tornam possível à personagem uma organização das narrativas orais de George Ugly Mouth. Effing recolhe factos de narrativas imprecisas e incompletas, procurando ultrapassar a omissão e alteração da sequência cronológica dos acontecimentos relatados, e tenta reorganizá-las de forma unificada. 158 Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon Palace Como a leitura de Moon Palace nos permite observar, esta narrativa de Effing e as palavras mais ou menos ordenadas que ocupam o seu espaço mental são transmitidas a Fogg para que este as torne um novo texto. Facilmente podemos perceber que a veracidade da narrativa não é relevante para Fogg: a personagem não só não questiona Effing no que diz respeito a essa mesma veracidade como releva as suas oscilações entre facto e ficção, real e imaginário. Fogg centra a sua atenção na verdade artística, na verdade da imagem e da palavra que registam o mundo contado por Effing: “no matter how great an artist he might have been, Julian Barber’s paintings could never match the ones that Thomas Effing had already given to me. I had dreamed them for myself from his words, and as such they were perfect, infinite, more exact in their representation of the real than reality itself”.43 Sendo histórico e cultural, o ser humano é primordialmente corporal: de modo imperceptível e na sequência de uma quase simultaneidade de acções, o nosso corpo percepciona o que nos rodeia, respondendo de imediato aos estímulos que recebe, e antecipa a intervenção seguinte da nossa consciência. Pessoal e socialmente somos permanentemente transformados enquanto sujeitos e o espaço e o tempo são redefinidos dentro desta dinâmica relacional que altera o nosso sentido de presença corporal e existencial perante nós mesmos e o mundo. Através da sua visão, do seu olhar, do seu corpo, e integrado na linguagem, o homem relaciona-se com o real que observa e que projecta, na sua constante procura de sentido – uma procura de sentido para o ser que se funde com a procura de sentido para o real. “A visão não é um certo modo do pensamento ou da presença de si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro à fissão do Ser, no final da qual, somente, me fecho sobre mim”.44 A “imagem do mundo” corresponde, então, à totalidade da imagem que o homem projecta ao procurar registos ordenados desse mesmo mundo. As imagens são, então, palavras que fazem parte do nosso quotidiano, intervêm nos processos de significação nos quais participamos, contextualizam a nossa construção como sujeitos, modelando o nosso princípio de identidade, enquadram a nossa experiência, asseguram-nos o sentido do Outro e o lu- 159 Geografias do Corpo gar que ocupamos no mundo. Enquanto seres-no-mundo precisamos de construir registos ordenados desse mesmo mundo. A origem do sentido e da significação são, assim, deslocadas para o domínio do corporal, assumindo que logo num primeiro momento o corpo humano desenvolve estruturas de espacialidade, de temporalidade e de sentido. Questionar a realidade, o seu sentido, a relação que estabelecemos com ela, pressupõe a interpretação e a criação. Interpretamos e criamos o que nos rodeia, o que vemos. Interpretamos e criamos as imagens, as palavras que nos envolvem. Em Moon Palace, os sistemas de percepção e representação de mundo de Fogg e Effing modificam-se; redefinem-se as coordenadas espaciais e temporais das personagens, reposicionam-se os seus corpos e os seus sistemas de significação, recriam-se os seus sentidos de estar no mundo: “I felt as though I were looking down to the bottom of myself, and what I found there was more than just myself – I found the world”.45 Nesta sua viagem por textos e contextos americanos, Fogg e Effing reagem ao caos e à distopia, ao mito esvaziado pela própria história. Cientes de si-no-mundo, recolhem impressões da sua experiência nesse mesmo mundo e recuperam narrativas míticas e históricas que integram na sua própria de vida e no universo ficcional. “Moon Palace est d’abord une expérience du savoir-voir, savoir-décrire, un va-et-vient entre parole et image, lisible et visible, le monde sensible et la pensée du monde”.46 Se as sombras da alegoria platónica traduzem o modo como nos constituímos no nosso mundo e como constituímos o mundo para nós, também se definem na linguagem e tal acontece precisamente porque o homem – ser-no-mundo – é corpo e é linguagem. Assentes na mundaneidade, temporalidade, cultura, as sombras são portadoras de sentido, são referentes do real, são construções do ser-com-os-outros-no-mundo. Nesse sentido, as sombras são reais. No interior das cavernas de Moon Palace recordam-se imagens e palavras, sombras e memórias e, através de cores, caracteres e sons oraculares, escreve-se um novo tecido textual. Se a realidade não testemunha a existência da caverna, prevalece a experiência do corpo e da linguagem dos artesãos da imagem e da palavra: “Even if there wasn’t an actual cave, there was the experience of a cave”.47 160 Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon Palace Notas M. I. Santos, (1987: 163). 2 J. Chevalier e A. Gheerbrant (1982: 180). 3 Platão (1990: 318). 4 Platão (1990: 319). 5 Platão (1990: 319). 6 Linda Hutcheon considera que a ficção pós-modernista demonstra consciência do carácter construído da história. Textos e contextos do passado são recuperados e problematizados; a narrativa histórica não é negada, mas é questionada e subvertida (L. Hutcheon 1989: 3). O modo como a história é reescrita é entendido por Hutcheon como uma reconstituição irónica da mesma, noção subjacente ao seu conceito de metaficção historiográfica: “historiographic metafiction works to situate itself within historical discourse without surrendering its autonomy as fiction” (L. Hutcheon 1989: 4). 7 F. Gallix (1996: 7). 8 P. Auster, Moon Palace (7). 9 Moon Palace (6). 10 Moon Palace (6). 11 Moon Palace (6). 12 Moon Palace (22). 13 Moon Palace (56). 14 Moon Palace (63). 15 Moon Palace (56). 16 Moon Palace (56). 17 Moon Palace (57). 18 Moon Palace (57). 19 Moon Palace (5758); 20 Moon Palace (63). 21 Moon Palace (63). 22 M. Merleau-Ponty (2006: 23). 23 Moon Palace (67). 24 Moon Palace (69). 25 Moon Palace (69). 26 Moon Palace (69-70). 27 Moon Palace (70). 28 Moon Palace (70). 29 Platão (1990: 320). 30 Moon Palace (167). 31 Moon Palace (156). 32 Moon Palace (156). 33 Moon Palace (169). 34 Moon Palace (167). 35 Moon Palace (167). 36 Moon Palace (175). 37 Moon Palace (169). 38 Moon Palace (169-170). 39 Moon Palace (170). 40 Moon Palace (170). 41 Moon Palace (171). 42 Moon Palace (171). 43 Moon Palace (232). 44 M. Merleau-Ponty (2006: 65). 45 Auster (1992: 144). 46 Louvel (1996: 35). 47 Moon Palace (276). 1 Bibliografia Primária Auster, Paul. 1989. Moon Palace. London and Boston: Faber and Faber. Bibliografia Consultada Alsen, Eberhard. 1996. Romantic Postmodernism in American Fiction. Amsterdam, Atlanta: Editions Rodopi B. V. 161 Geografias do Corpo Auster, Paul. 1992 [1991]. Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory. In Paul Auster, The Art of Hunger: Essays, Prefaces, Interviews. Los Angeles: Sun & Moon Press. Barone, Dennis. 1995. Beyond the Red Notebook: Essays on Paul Auster. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. Bíblia Sagrada. (14ª ed.). Lisboa: Difusora Bíblica, 1988. Chard-Hutchinson, Martine. Moon Palace de Paul Auster, ou la stratégie de l’écart. Paris: Editions Messene. Chevalier, Jean e Alain Gheerbrant. 1982. Dicionário dos Símbolos – Mitos, Sonhos, Costumes, Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números. Trad. de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. Lisboa: Editorial Teorema. Connor, Steven. 1997 [1989]. Postmodernist Culture: An Introduction to Theories of the Contemporary. Oxford and Massachusetts: Blackwell Publishers. Duperray, Annick (ed.). 1995. L’Œuvre de Paul Auster: Approches et Lectures Plurielles. Actes Sud/ Université de Provence-Irma (Grena). Eliade, Mircea. 1963. Aspectos do Mito. Trad. de Manuela Torres. Lisboa: Edições 70. Eliade, Mircea. 1957. Mitos, Sonhos e Mistérios. Trad. de Samuel Soares. Lisboa: Edições 70. Eliade, Mircea. 1969. O Mito do Eterno Retorno. Trad. de Manuela Torres. Lisboa: Edições 70. Gallix, François (ed.). 1996. Lectures d’une œuvre Moon Palace de Paul Auster. Paris: Editions du Temps. Hutcheon, Linda. 1989. Historiographic Metafiction – Parody and the Intertextuality of History. In Patrick O’Donnel and Robert Con Davis (eds), Intertextuality and Contemporary American Fiction. Baltimore and London: The John Hopkins University Press. Hutcheon, Linda. 1991 [1980]. Narcissistic Narrative – The Metafictional Paradox. London, New York: Routledge. Hutcheon, Linda. 1989. The Politics of Postmodernism. 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Coimbra: Centro de Estudos Sociais. 163 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta Teresa Mora Em “La connaissance comme exploration et comme conquête” Judith Schlanger afirma claramente que a linguagem do conhecimento é, antes de mais, espacial e territorial, associada à exploração e à conquista: “(...) trata-se de avançada espacial, de descoberta e de reconhecimento do território, de acção de tomar posse, de instituição, de exploração e de dominação.”1 Nesta acepção, e reportando-se à Crítica da Razão Pura de Kant, a autora chama a atenção para o facto da “geografia da razão”, que representa para este filósofo a conquista de um território do conhecimento, evidenciar tensão entre “os seus dois poderes constitutivos: o seu desejo de ir para fora, mais longe, para além dos limites, e a sua necessidade de ordem, de estabilidade, de possessão legítima e de limites.”2 Inscrita neste quadro de pensamento, começarei por expor sucintamente dois dos argumentos através dos quais a autora sustenta a natureza espacial e territorial do saber. O primeiro, relativo ao conhecimento científico, levar-nos-á a reconhecer, em diversos planos da sua prática, a nossa linguagem territorial, evidenciada no uso que fazemos de várias metáforas do saber e da sua aquisição. Pelo segundo argumento seremos reenviados à Crítica da Razão Pura, da qual Schlanger nos oferece uma elucidativa síntese da meditação de Kant sobre o espaço do saber, permitindo-nos, deste modo, compreender a linguagem espacial do conhecimento num “cenário Geografias do Corpo territorial”3 no qual a ambiguidade constitutiva da razão se exerce e se explicita. Depois, informada por vários autores, irei registar algumas impressões territoriais do conhecimento científico academicamente instituído. Neste cenário da razão, refiro muito pontualmente o corpo para anotar que, ainda hoje, continuamos a representá-lo como elemento nocivo ao valor de pretensa objectividade do conhecimento científico; ainda hoje, persistimos em apresentá-lo como agente e receptáculo de emoções e de sentimentos capaz de corromper a própria crença no valor de racionalidade do conhecimento científico. Numa cultura racional – como é a nossa – o corpo circunscreve, por conseguinte, um problema específico: o da sua articulação com a razão. Com vista a sublinhar que só por intermédio de um jogo de ilusionismo é possível retirar a forma racional do fundo corporal dos nossos percursos de conhecimento científico, irei, então, abordar uma utopia social (La Terre Australe connue) onde os habitantes da sociedade imaginada (em 1676) pelo seu autor (Gabriel de Foigny) são educados para se conduzirem exclusivamente pela razão. Se, como afirma Ricoeur, é função da utopia “expor o hiato de credibilidade em que todos os sistemas de autoridade excedem (...) tanto a nossa confiança neles como a nossa crença na sua legitimidade”,4 no texto que aqui apresento, a utopia de Foigny é por mim assumida no seu valor cognitivo e hiperbólico. Tratar-se-á de demonstrar que a falha de credibilidade da cultura racional é, afinal, a sua (in)capacidade de velar pela natureza-morta do(s) corpo(s). Apontamentos da linguagem espacial e territorial da razão Transportando-nos para as nossas metáforas correntes do saber e da sua aquisição, Schlanger leva-nos a reconhecer a utilização de todo um conjunto de noções que são expressivas de uma linguagem territorial: “falamos de expansão, de extensão, de abertura, de limites, assim como de domínio ou de campo”.5 No plano de fundação de uma nova disciplina do saber, a nomeação de um território, neste caso disciplinar, é instaurada pela construção de metáforas delineadoras de conceitos que, por sua vez, ope- 166 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta ram como marcadores de “possessão de uma terra desconhecida”.6 Pense-se – a título ilustrativo – que a metáfora do organismo, central no pensamento sociológico clássico sobre a ideia de sociedade, subsiste na actualidade, nomeadamente na noção de “organizações” que funda o terreno disciplinar da Sociologia das Organizações. Consideradas na sua valência excêntrica, as metáforas funcionam como marcadores de separação de um terreno disciplinar de outros terrenos disciplinares cuja delimitação já adquirida é acentuada e defendida pela força centrífuga da distinção conceptual; tomadas pela sua valência concêntrica, operam como marcadores centrais, dado viabilizarem no interior de um terreno disciplinar o investimento de sentidos que sejam consonantes com o quadro de pensamento aí fixado, prescrevendo, deste modo, a possibilidade legítima de circular dentro das “marcas de uma jurisdição”.7 A este propósito, Richard Brown permite salientar a dupla valência territorial das metáforas, ao afirmar que – tal como as outras ciências – a sociologia é “(...) um campo de batalha onde uma série de metáforas divergentes ou convergentes disputam o controlo, cada uma de entre elas tendo o poder de resistir, a autoridade, a organização e o desejo de traduzir na sua própria linguagem o vocabulário das suas rivais.”8 No plano da experiência individual e rotineira de aquisição do conhecimento, algumas das noções atrás referidas (extensão, abertura, limites...) são significativas do que Schlanger designa pelos “tempos principais da experiência de compreender”.9 Os momentos de abertura, reportados – a título ilustrativo – à acção de ler, dão-se – por exemplo – quando uma página de um texto já conhecido nos surge como “uma nova página da faculdade de compreender”,10 o que quer dizer que a apercebemos como tendo um sentido diferente e inédito. São esses momentos “onde ‘outra coisa’ se mostra”11 que nos dão “o sentimento de descobrir”.12 E é por isso que eles são vivenciados como “momentos vivos do modo de sentir inaugural”.13 No plano da investigação científica a autora distingue duas modalidades de trabalho intelectual consoante o modo de actuação do sujeito de conhecimento consiste em “cobrir o mapa” ou em “engendrar o mapa”.14 No primeiro caso, que corresponde à maioria das situações, o sujeito vai cobrindo o terreno de pesquisa com base em 167 Geografias do Corpo quadros de sentido ou categorias já dados, pelo que o resultado é o de precisar e completar “o mapa enciclopédico do saber”.15 Trata-se, portanto, de alargar o espaço do saber “de uma maneira puramente aditiva”.16 No segundo caso, pelo contrário, o sujeito constrói e reconstrói o espaço cognitivo de modo activo e criativo, isto é, a partir das suas categorias. A distinção destas duas modalidades de trabalho intelectual leva-nos, contudo, à questão das suas relações. A este respeito, Schlanger faz realçar que, muito embora seja frequente representarmos a démarche inaugural como a mais solitária das duas, qualquer ponto de vista inovador está necessariamente conectado com o espaço organizado do saber. Em que termos? Em termos territoriais, pois cada uma das duas modalidades de trabalho intelectual referidas – reprodutiva e inaugural – “pretende o espaço e o domínio, cada uma pretende o reino e a dominação”.17 A conquista de um território de conhecimento revela-se, por isso, indissociável da tensão entre errância e imobilização, à qual aludira Kant, no século XVIII, ao reflectir sobre a geografia da razão. Neste cenário territorial “tudo começa por uma transgressão” aberta pelo desejo de deixar “o solo firme”, de não permanecer num “campo fechado”.18 É este desvio da razão, subjacente à aventura espacial do conhecimento, que vem, no entanto, a constituir “o princípio do seu embaraço intelectual e da sua desventura existencial”,19 pois toda a travessia de “razão errante” – condenada a “errar no pensamento, a vaguear “no mar da insegurança”20 – é acompanhada de elementos adversos ao que constitui a sua necessidade de ordem: tormentos, tempestades, nuvens de ilusão, abismos de confusão...21 A errância da razão tem, portanto, o seu reverso, na imobilização. “O que se torna necessário ambicionar é, por conseguinte, ficar imóvel e estável a fim de edificar uma construção legítima e duradoira sobre um solo firme num campo fechado.”22 É esta vontade de fixação que se afigura indissociável do que poderei designar pelo empreendimento científico da razão: Entra-se aí [na via para permanecer no reino da ciência] dando um único e primeiro passo – o justo passo na boa direcção –, e tudo se encontra fundado e instituído sem dificuldade. Num 168 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta passo está-se, desde esse momento, instalado no sistema completo da disciplina [...].23 Mas – como mais adiante veremos na utopia de Foigny – a própria possibilidade de estabilização da razão tem subjacente a errância do movimento que a ela conduz... Impressões territoriais do conhecimento científico Detenhamo-nos por enquanto no registo de alguns dos modos mais recorrentes de expressão territorial do conhecimento científico. Apresento-os sob a forma de uma lista de dez impressões pessoais que enuncio a partir da minha resistência – enquanto académica – aos mandamentos que regulam o culto da ciência. 1. A expulsão do sujeito de enunciação do discurso científico, estreitamente associada ao receio de que certas facetas do “eu”, designadamente o corpo, as emoções, os sentimentos, façam perigar a possibilidade de alcançar o conhecimento.24 2. A submissão daquilo a que podemos chamar “mundo” ou o “horizonte da compreensão”25 do cientista ao “conceito normativo de objecto” como “condição de possibilidade para toda a actividade científica”.26 3. A circunscrição da ciência a uma actividade com limites institucionais, sociais e cognitivos bem precisos, de que a noção kuhniana de “paradigma” partilhado por uma “comunidade científica” e decorrente da instauração da “ciência normal” constitui um nítido exemplo.27 4. A deslocalização do discurso científico de outros modos de conhecimento contidos na sua sistemática interna, designadamente o senso comum, a ideologia e a utopia, e a sua redelimitação como objectos de discurso científico e/ou epistemológico. 5. A socialização do cientista social – pelo menos a do(s) sociólogo(s) – adscrita a três rituais de iniciação ao conhecimento científico – científico porque rompe, científico porque constrói e científico porque verifica – sem os quais não é admissível circular na cidadela da ciência. Dito de outro modo, há que intentar a “ruptura” com os obstáculos ao conhecimento científico-social, há 169 Geografias do Corpo que construir “objectos de análise” e “teorias explicativas”, há que verificar a “validade dessas teorias pelo confronto com a informação empírica”.28 E, nesse processo de “formação do espírito científico”, a noção de “obstáculo epistemológico” enunciada por Gaston Bachelard29 não denota um ideal de purificação do espírito ultrapassado no tempo. Pelo contrário, a ideia de obstáculos epistemológicos reflecte, ainda hoje, numa pedagogia do conhecimento como processo de remoção, ultrapassagem e vigilância dos impedimentos à socialização do cientista. 6. A subordinação do ser a circunscrições de sentido (e.g. saúde, educação, ambiente) apenas capazes de pertencerem à ciência na condição de corporizarem nas suas linguagens o poder de possibilidade objectiva, expressa no imperativo da “referência”,30 trazida ao texto sobre a forma de dados, de fontes e de factos e impressa em possessões disciplinares (e.g. sociologia das utopias, história da expansão, ciências da terra). 7. A conquista do conhecimento associada à função de comando da teoria,31 à exibição de marcadores de dominação teórica (problemáticas, conceitos) e a sinais de possessão empírica, patenteados, entre outros procedimentos, na selecção, recolha, tratamento e apresentação das referências levadas aos textos científicos. 8. A defesa de uma metodologia de investigação (ou de uma teoria) da refutação, enquanto condição da actividade científica, de que o programa de investigação proposto por Imre Lakatos constitui um exemplo cabal da cidadela científica: com o seu núcleo (as hipóteses centrais) “tenazmente defendido” da refutação por uma vasta “cintura protectora” de hipóteses auxiliares e com um “poderoso” mecanismo (uma heurística) para solucionar problemas.32 9. O desafio da refutação como requisito de cientificidade de qualquer enunciado, teoria ou saber, de que o critério de “falsificabilidade” de Popper como linha de “demarcação entre o que é a actividade científica e o que lhe permanece estranho, exterior”,33 constitui um bom exemplo. 10. A acumulação de bens territoriais, a adjunção de territórios vizinhos e a afirmação da diferença por relação ao(s) território(s) de pertença, a exprimir ou a potenciar (consoante os casos e as relações 170 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta institucionais) a transgressão, a exclusão e a distinção. Mas, não raro, almejando-se a formação de novos domínios territoriais. Terminada esta exposição, passemos da escala institucional da linguagem científica para a escala narrativa dos percursos de conhecimento. Perguntemos então o que emerge se, nesses actos de ousada narração, suspendermos o procedimento de omissão do(s) corpo(s). Responderei de modo indirecto. Como atrás referi, irei basearme numa narrativa utópica: La Terre Australe connue de Gabriel de Foigny34. Abordei-a no contexto do meu percurso de doutoramento com o propósito de reflectir criticamente sobre a normatividade do “corte epistemológico” entre ciência e utopia. Tratava-se de explorar as linhas de continuidade daquelas, aproximando os seus procedimentos metódicos e discursivos. Objectivo que trouxera implicada a tentativa de abandonar o preconceito classificatório que ainda preside ao modo bem ordenado como o nosso sistema de pensamento separa e isola as nossas representações da ciência das diversas valências cognitivas e discursivas que lhe são subjacentes. Aqui, é, todavia, outro o uso que vou fazer da narrativa utópica de Foigny. Uso-a como alegoria. Uma alegoria irónica da omissão do corpo na comunidade científica. Manifestações do corpo como natureza-morta Na sociedade australiana, imaginada por Gabriel de Foigny, cada um dos seus habitantes [...] tem a razão por guia, à qual todos se unem com uma entrega tal que dir-se-á ou que eles não são senão um mesmo ou que eles são todos igualmente admiráveis condutores que não têm senão um mesmo destino e um mesmo meio para a sua execução.35 O destino social do ser australiano é vir ao mundo para dar corpo à razão. Logo que concebeu ele deixa o seu compartimento habitacional nas “casas comuns” e dirige-se à Casa da Educação com o embrião da sua auto-reprodução hermafrodita. É nesta casa que o embrião de cada australiano se desenvolve, vem ao mundo, é nutrido, e formado ao longo de um (per)curso de trinta e três anos pelos 171 Geografias do Corpo Mestres cuja função social é a de esculpir os seres da cultura inteiramente racional. Quando as crianças “[c]omeçam a raciocinar com divertimentos inexplicáveis”,36 o que ocorre aos 3 anos de idade, já estão, desde a idade dos 2 anos, a morar com o “primeiro Mestre da primeira faixa” com o qual aprendem a saber ler, “o que se faz regularmente aos três anos”.37 Dos 5 aos 9 aprendem a escrever e seguem durante quatro anos o segundo Mestre da segunda faixa. Aos 14, levados sob a direcção dos Mestres da terceira faixa, os jovens “compreendem tudo o que diz respeito às subtilezas das suas letras”.38 Com a idade de 20 anos “eles conhecem todas as dificuldades da filosofia”.39 Dos 20 aos 25 “aplicam-se na contemplação dos astros”.40 Dos 25 aos 28 “ocupam-se (...) no conhecimento dos volumes da suas histórias” ou Anais.41 Chegados aos 30 anos de idade “eles podem raciocinar sobre toda a espécie de matéria, excepto sobre a do Haab [o Deus dos australianos] e a dos Habes, o que quer dizer a divindade dos seus Anais”.42 Não nos devemos surpreender. São essas as duas matérias que ao dizerem respeito à história e ao fundamento da cultura racional (australiana) não podem, por isso, ser abaladas. Discorrer sobre a longa narrativa da sociedade (racional) australiana – “quarenta e oito volumes de uma grossura prodigiosa”43 – iria pôr em causa o saber (científico) instituído. Incorrer numa reflexão sobre o fundamento (religioso) da razão seria questionar o que não pode ser questionado – a crença – sob pena de fazer ruir o valor de verdade do conhecimento alcançado e, por consequência, de aniquilar o tipo de humanidade consumado no modo de vida do habitante da sociedade australiana. Formados no esquecimento do modo como percorreram o espaço da razão e expurgados de particularismo individual – porquanto, alcançados os 35 anos, os australianos “estão todos consumados em todas as ciências naturais, sem poder distinguir alguma diferença de capacidade entre eles”44 –, à saída dos Hebs ou Casas da Educação, eles estão, como seres adultos ou na idade da razão, “à espera de serem Tenentes, quer dizer, de tomar o lugar dos que querem acabar”.45 Tal acontece logo que um qualquer lugar de velho Mestre seja 172 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta deixado vago por suicídio do ocupante. Ora, “[n]ão há “nenhuma assembleia no Hab [a Casa da Elevação] onde [os velhos Mestres] não peçam a liberdade de retornar ao repouso”.46 Tendo sido aprovado o pedido, ele apresenta o seu Tenente, que deve ter pelo menos trinta e cinco anos: a companhia recebe-o com alegria e é-lhe dado o nome do velho que quer deixar de viver. Isto feito, são-lhe apresentadas as belas acções daquele cujo lugar ele ocupa, e é-lhe dito estar-se seguro de que ele não é capaz de degenerar. Terminada esta cerimónia, o velho vem alegremente à mesa dos frutos do repouso onde come até oito com um rosto sereno e risonho. Tendo comido quatro, o seu coração dilatase para lá do habitual, e comete várias extravagâncias, como são as de saltar, dançar e dizer toda a espécie de disparates, sobre as quais os irmãos não fazem nenhuma reflexão porque elas provêm de um espírito que perde a razão. De seguida, são-lhe apresentados ainda dois, que alteram totalmente o seu cérebro. Então o seu Tenente com um outro dirigem-no ao lugar que fora escolhido e ajustado algum tempo antes: estando aí, e tendo-lhe dado dois outros frutos, ele adormece inteiramente. Depois, tendo fechado convenientemente o lugar, eles voltam, testemunhando que desejam com ardor fruir a sua felicidade. Eis [...] como morrem os australianos.47 Mas como vivem os australianos? Os adultos, residentes nas “casas comuns” (Hiebs) ocupam o “Sluec”, isto é, “o dia começando”,48 ora na Casa da Elevação (Hab) ora na Casa da Educação (Heb). Na Casa da Educação eles “são obrigados a encontrar-se para tratar das ciências”, o que “fazem com uma (...) bela ordem”:49 uma ordem cuja harmonia é indissociável do facto dos australianos estarem impedidos de ir para lá dos limites do conhecimento científico adquirido pois, como anteriormente vimos, eles não podem aventurar-se a raciocinar sobre os Habes (a divindade dos seus Anais) e o Haab (o Deus australiano). À Casa da Elevação eles vão regularmente, isto é, de quatrocentos em quatrocentos “clé”, ou irmãos, por cada um dos dezasseis bairros habitacionais do sezain50, e em contínua rotação, pois é quando os “clé” do primeiro bairro vêm do Hab que os do segundo bairro aí vão, e assim 173 Geografias do Corpo sucessivamente, até ao décimo sexto voltar a dar lugar ao primeiro.51 Aí vão para se reunirem numa “espécie de plataforma”, situada no “cume”52 e “toda construída de pedras diáfanas”, em assembleias, cada uma com quatrocentos clé, que eles realizam “para reconhecer” e “para adorar” o Haab.53 Antes de observarmos como os australianos concebem o Haab e como praticam o seu culto, não posso deixar de referir o fino cristal que abunda no país austral. É este o material com o qual eles fazem as janelas das casas que habitam (os Hiebs), erguem os tectos das casas onde são educados (os Hebs), constroem, na íntegra, a estrutura das casas onde se elevam espiritualmente (os Habs) e fazem as portas que lhes dão acesso. Em suma, uma cidade onde a transparência, presente em todas as construções e no esbatimento dos limites entre espaço interior e exterior, proporcionado pela natureza cristalina das portas, é reveladora de um empreendimento que, ao dar visibilidade ao domínio da razão sobre a matéria, exalta o poder de exercício concreto do espírito racional, a sua presença ilimitada e a sua vitória sobre o obstáculo da opacidade. Observemos, então, como os australianos concebem o fundamento da sua cultura racional. Conforme Suains54 explica a Sadeur55, o Haab é o “Ser dos seres” e tem “grande abstracção”56 pois, para os australianos, “um Ser universal só deve agir universalmente e sem particularidade”,57 o que os leva a crer que Ele apenas se lhes pode manifestar pelos seus efeitos. Ou seja, a existência do mundo e a estabilidade da ordem que nele se observa, os quais – segundo argumento de Suains – só podem ter a sua causa primeira na “condução de um Ser Soberano que seja o grande Arquitecto e o supremo Moderador.”58 É esse supremo Moderador que – ainda de acordo com Suains – constitui, para os australianos, “o fundamento de todos os [seus] princípios”.59 Vejamos brevemente o que Sadeur observa sobre o modo como praticam esse culto da moderação: “Eles passam (...) o terço do dia no Hab sem pronunciar uma só palavra, distanciados um passo uns dos outros (...)”.60 Eis, agora, a observação de Sadeur sobre o modo como trabalham o cristal: “(...) eles sabem modelá-lo, e colocá-lo um sobre o outro, 174 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta com tanta propriedade e tanta arte: que se tem dificuldade em conhecer a separação (...)”.61 Não posso deixar de dizer que é sem dificuldade que vejo na coesão e transparência das pedras da Casa da Elevação (Hab) a imagem invertida da separação e opacidade dos “clé” ou irmãos: afastados um passo uns dos outros, cada um na sombra cerrada feita do silêncio entre eles. Mas é precisamente este vazio relacional – ausência de contacto corporal e ausência de comunicação verbal – entre os seres racionais que constitui a condição de transparência das suas identidades. De facto – como Suains me ajuda a clarificar – o culto da razão é absolutamente indissociável do obscurecimento da identidade relativa de cada um dos australianos: As assembleias que fazemos no Hab são para o reconhecer [o Haab] e para o adorar: mas é com esta condição inviolavelmente observada de não pronunciar nenhuma palavra e de deixar em cada um a liberdade de pensar sobre Ele aquilo que o espírito de cada um lhe sugere acerca d’Ele. Esta conduta é a causa de estarmos sempre unidos e sempre em respeito, quando proferimos o nome d’Ele, o que seria impossível se quiséssemos dar-nos a liberdade de discorrer sobre Ele, pois aquele que se aventura num precipício expõese inevitavelmente a morrer. […]. A comum doutrina desta primeira causa deve ser o princípio da nossa união, como o é da nossa produção.62 Vimos que a liberdade de cada um imaginar o que lhe aprouver sobre o Haab é exercida na condição de não revelar a ninguém a sua experiência pessoal. Trata-se de levar o espírito a fazer uma viagem solitária por intermédio da qual o australiano contacta – através da imaginação – com o Haab. Lembremos, a propósito, que este Deus tem uma natureza oculta ou invisível pois a religião australiana é uma religião não revelada. Acresce que o termo “Haab” quer dizer, na língua austral, “Incompreensível”.63 É neste sentido que poderá sugerir-se que as viagens solitárias e imaginárias dos australianos são percursos de errância pelas brumas da Razão… São essas viagens que, a serem relatadas, os precipitariam no abismo da confusão e, consequentemente, ameaçariam dissolver a coesão e quebrar a transparência da cultura de cristal. E como “é um crime, nunca ou- 175 Geografias do Corpo vido, falar disso [isto é, do Haab] seja por discussão, seja por forma de esclarecimento”,64 somos levados a reconhecer que é porque todos renunciam a falar da sua experiência pessoal de contacto com a face oculta da cultura racional que esta sobrevive ao perigo do particularismo individual, aprisionado no mundo interior de cada um dos crentes no culto da razão, e ao perigo da diversidade, silenciada pelo vazio relacional entre eles. Em suma, se o destino último do culto no supremo Moderador é levar os australianos a agir com moderação ou dentro dos limites estabelecidos pela razão, é à custa de sofrerem um processo de mineralização dos seus corpos e de recalcamento das suas experiências pessoais que eles assumem a mesma aparência coesa e transparente das pedras de cristal com as quais edificam o seu sistema social. A harmonia insular dos seres racionais revela-se, por conseguinte, bastante frágil. Mantê-la exige vigiar permanentemente as fronteiras e o próprio interior do território delimitado pela razão e combater – à defesa e ao ataque – os perigos que o ameaçam de destruição. O primeiro perigo é a alteridade que provém das terras vizinhas habitadas pelos fondins. Os australianos designam os habitantes do país Found por “meios-homens”, pois o facto de estes terem uma prática carnal, no duplo sentido de um regime alimentar carnívoro e da conjunção sexual (entre homem e mulher), é tido por eles como um desvio à racionalidade e, consequentemente, como traço de inumanidade. A mesma ameaça de alteridade advém dos longínquos europeus que navegam o mar austral. Os australianos chamam-lhes “monstros marinhos” ou “monstros desconhecidos”,65 pois estes representam para eles uma “aberração da [sua] realidade”.66 Mais precisamente, designando os europeus como monstros, os australianos identificam neles a ameaça do desconhecido, subjacente ao desvio do que é idealizado como padrão. E “como os seus modos de falar e de se vestir são todos tão diferentes”,67 eles vêem na diversidade a inquietação da (sua) realidade, pois aquela, ao representar a profusão das múltiplas formas visíveis da humanidade, constitui um “excesso de realidade”,68 o qual há que classificar por redução à categoria da irregularidade, expressa na figura do meio-homem. Assim, os australianos reduzem à condição de “meios-homens” to- 176 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta dos aqueles que, não obstante serem humanos, se situam para lá dos seus limites identitários e territoriais. O segundo e o terceiro perigos são, respectivamente, a desordem provocada pelas invasões dos urfs, os “pássaros monstruosos” que circundam a terra austral, e o excesso que os caracteriza. Estes pássaros representam pelo seu comportamento extremamente carnívoro e sexual e pela geografia do seu habitat a imagem invertida dos australianos, cujo comportamento tem na razão o seu “único guia” ou “regra”.69 Os urfs que povoam as numerosíssimas ilhas montanhosas circundantes da extensa planície que é a terra austral “não vivem senão de presa do mar ou da terra”70 e “são de um ardor extremo pela conjunção carnal” entre macho e fêmea”.71 Os australianos, pelo contrário, têm aversão à carne de peixe e de animais terrestres – não vivendo senão de frutos – e mantêm entre si relações assexuadas – o seu amor “não tem nada de carnal”72 – porque o facto do australiano ter os dois sexos unidos num só corpo e ser auto-reprodutivo faz com que a relação com o seu semelhante seja puramente fraternal ou destituída “desses ardores animais de uns pelos outros”.73 Tudo o que os australianos reconhecem como sendo desestabilizador da ordem racionalmente estabelecida é excluído do seu domínio territorial. Mas – apesar das terras vizinhas dos fondins estarem separadas da imensa planície que constitui toda a vastíssima extensão do território austral pelas prodigiosas Montanhas Ivads, “mais altas e inacessíveis que os Pirinéus”;74 apesar do mar austral ser delimitado por uma linha costeira tão pouco profunda que a aproximação à terra austral pelo lado do mar se torna quase impossível; e apesar dos australianos terem destruído todas as montanhas que existiam na terra austral como meio de estabelecer os limites humanos do seu território – vários são os elementos extraídos das “guerras ordinárias dos australianos”75 contra a alteridade, a desordem e o excesso que permitem reconhecer na ínsula racional (australiana) a erosão das linhas imaginárias que separam interior e exterior, fundo e forma, ordem e caos... Os australianos têm continuamente em guarda vários milhões de homens, no sopé das Montanhas Ivads que confinam com o país Found, na linha costeira, para lá da qual são, de tempos a tempos, 177 Geografias do Corpo avistados os navios dos europeus, e nas avenidas, todas elas vulneráveis à invasão aérea dos pássaros. Sobrevivem ao perigo que vem de fora na condição de executar as regras defensivas assimiladas nos exercícios de guerra com “enorme exactidão, prontidão” e coesão.76 Significativamente, “a regularidade que seguem” para se defender do mais temeroso dos seus inimigos – os urfs – “é muito mais exacta do que aquela que praticam contra os fondins.”77 Quando os pássaros invadem o território austral, “formando uma espécie de corpo de armada”,78 causando grandes desordens nos jardins quadrados, e abatendo-se com impetuosa violência sobre os australianos, estes “comprimem-se uns contra os outros e formam um quadrado muito exacto, que lhes faz frente de todos os lados”,79 não podendo sequer “respirar com liberdade”, “afastar-se por pouco que seja” e “desviar os olhos” do inimigo, sob pena de serem arrebatados pelo mesmo.80 Os australianos empreendem, anualmente, grandes esforços para demolir as ilhas montanhosas povoadas pelos urfs, fazendoo sempre no mesmo intervalo climatérico, ou seja, entre o trópico de Capricórnio e o equinócio de Março, quando os pássaros ficam tímidos, e nunca quando o sol entra no signo de Touro e o mar se torna intempestivo pois, neste período, os urfs assumem um ardor e uma agitação tão extremas que se essas condições climatéricas continuassem por muito tempo a imperar no território urf, o país austral tornar-se-ia inabitável.81 Os australianos exercem sobre os vizinhos fondins que violam a fronteira terrestre do país austral uma crueldade retaliadora que ultrapassa a violência invasora dos pássaros monstruosos: degolando milhares de fondins (os homens) e fondines (as mulheres), fazem correr “rios de sangue”82 nas ruas do país Found; amontoando os corpos dos inimigos – vencidos em combate – nas margens do mar austral, deixam-nos aí “à mercê dos pássaros carnívoros”;83 cobrindo de água as ilhas colonizadas pelo povo Fondin, despovoam a terra vizinha;84 cortando as orelhas dos inimigos que matam em combate, têm o costume de “fazer com elas um cinto”.85 E, “desde tempo imemorial”,86 os australianos mantêm sobre as areias da costa austral um cemitério de navios europeus com as suas tripulações penduradas nos seus mastros. 178 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta Em síntese, a razão que retrai o corpo no qual fixou o seu habitat e que silencia a voz da sua própria errância é, simultaneamente, impelida a metamorfosear-se em corpo guerreiro para ir metodicamente combater os perigos que ao desestabilizarem o ideal (de racionalidade) que enforma a identidade dos australianos ameaçam destruir a ordem construída. Importa, por último, realçar que para ser racionalmente conduzido o corpo do australiano age de acordo com um código de conduta constituído por várias regras. Essas regras – como vou procurar assinalar – são parte integrante dos percursos topográficos da razão. A primeira regra consiste em não expelir, ou não lançar para fora do corpo, qualquer matéria susceptível de dar visibilidade a tudo aquilo que – em conformidade com o postulado da pureza racional do ser australiano – constitui elemento de impureza. São impuros os pêlos de crescimento contínuo, as fezes, o sangue fetal e o sangue menstrual. Assim, a barba e o cabelo que “eles nunca cortam porque crescem muito pouco”;87 a matéria fecal excretada “em tão pequena quantidade, que dir-se-ia que eles não fazem nada”;88 o parto destituído de quaisquer sinais de sangue;89 o fluxo menstrual imperceptível.90 Só assim – ou seja – só na condição de ter adquirido o hábito de se forçar a empurrar os elementos do seu próprio corpo para dentro, ou impedir que os seus conteúdos mais básicos o manifestem, é que o australiano pode ter por máxima da sua moral de suprema moderação que é um erro “distinguir o espírito do homem do seu corpo”.91 É um “erro” porque, conforme Suains explica a Sadeur, “[a] união destas duas partes é tal que uma [o corpo] é absorvida na outra [a razão]”.92 Portanto, um corpo que – ao manifestar o recalcamento das suas expressões vitais – pode dizer-se engolido pela razão. Mas para o corpo ser absorvido na razão há que alimentá-lo de moderação. Dar-lhe um regime frutívoro que é – como atrás referi – indissociável do interdito carnal consiste em fazer com que o corpo jamais traga para dentro de si aquilo que a razão idealizou colocar fora dele e, portanto, no exterior do ser puramente racional: as dimensões animal e sexual. Com efeito, são estas as duas dimensões do corpo que fazem perigar uma auto-representação do australiano centrada na razão, dado reenviarem-no, respectivamente, aos dua- 179 Geografias do Corpo lismos animal/homem e macho/fêmea, os quais se constituem nas verdadeiras ameaças à unidade do ser humano. É por isso – por essa perfeita congruência entre os planos corporal e cognitivo de concepção do ideal de humanidade (a do australiano) – que dar ao corpo um regime alimentar frutívoro significa, afinal, provê-lo dos próprios limites ontológicos que são subjacentes à ideia de racionalidade pensada como ideal de humanidade. Obrigar o corpo a praticar uma alimentação não “desmedida” e “sem excesso”93 significa evidentemente mantê-lo equidistante dos extremos e, por isso, dentro dos limites espaciais definidos pela razão. Com efeito, é de um corpo equilibrado, ou sem “nenhum princípio de alteração”94 que a razão necessita para aí poder subsistir. A segunda regra consiste – compreensivelmente – em ocultar a acção de trazer para dentro do corpo algo que lhe é exterior (o alimento) para deste modo se procurar apagar da paisagem cognitiva essa imagem de impureza que, a ser guardada, arriscaria levar o australiano a reconhecer que, afinal, o corpo foge por assim dizer aos limites interiores da razão. De tal modo os australianos se sentem ameaçados pela acção de ingerir os frutos que os mantêm vivos que “se escondem, e não [os] comem senão em segredo e como que às escondidas” uns dos outros.95 Portanto, um jogo de ocultação da dimensão orgânica do corpo que é por cada um jogado à defesa do olhar de qualquer outro. A terceira regra é fingir que o corpo não tem as suas próprias regras. Refiro-me àquelas que este tem para si mesmo de seguir, simplesmente para continuar a existir em si mesmo, ou seja, como corpo que é. É, precisamente, pela terceira regra – a que exclui o corpo como um outro guia – que o australiano “faz o que a razão lhe ordena fazer”.96 Para tal, o australiano finge não necessitar de alimento – a refeição não tem “nenhuma hora regrada”;97 inventa um meio artificial de controlar o sono, ou a supressão periódica da vigilância da razão98 – o sono é por assim dizer sem relógio natural; e ilude as sua próprias regras – a menstruação não é – como disse atrás – perceptível.99 Finalmente, a quarta regra consiste em descentrar o corpo da sua natureza carnal para o poder vir a subsumir ao domínio ideal da ra- 180 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta zão como o centro do ser australiano. Comecemos a este propósito por observar alguns dos traços anatómicos do australiano. Segundo a descrição de Sadeur, “todos” têm “uma boca muito pequena”, a “barriga plana”100 e os órgãos genitais “muitíssimo pequenos”.101 Um corpo cujo primeiro sentido, o da destituição do prazer (de comer), traçado nos motivos da boca pequena e da barriga plana, expressivos da retracção da função digestiva, vem, num sentido segundo, marcado pela pequenez ou infantilidade dos órgãos genitais, significar a abstinência (sexual). Demoremo-nos agora no motivo da barriga plana. Fazer tábua rasa da proeminência externa do abdómen é, num primeiro nível de leitura, indispensável dado esta cavidade se localizar na região central do corpo, sendo imperativo descentrar o homem do próprio corpo para o re-centrar na razão102. Num segundo nível de leitura, que atende ao facto da maior parte do aparelho digestivo se alojar no abdómen, aplanar a barriga é visar a própria região abdominal, enquanto espaço de tumulto e confusão103 entre a natureza humana do corpo e a natureza inumana daquilo (o alimento) que o ser racional necessita para subsistir. Na verdade, apesar da alimentação frutívora ser um regime expurgado do mal da carne, tal prática alimentar não deixa, contudo, de lembrar ao australiano que comer é um acto impróprio do ser puramente racional. Os elementos seguintes permitem evidenciar a ocorrência da quarta regra no motivo do parto: “[e]les têm um certo lugar elevado para entregar o seu fruto, onde estendem as pernas e a criança cai sobre as folhas do Balf, após o que a mãe o toma, o esfrega nestas folhas (…)”.104 O parto dissimula o que se sabe que é – o filho do australiano é carne da sua carne – mas simulando que não é. Como se a natureza animal do australiano se tivesse transformado (por intermédio, inclusive, do significado lustral das folhas) numa natureza vegetal, o filho do australiano ganha a aparência de um fruto. A corroborá-lo eis o facto de Suains ter um dia entrado num “longo discurso” com Sadeur “para [o] levar a acreditar que as crianças nasciam das entranhas deles como os frutos nascem das árvores.”105 É sob a mesma óptica – a de uma concepção do corpo como um receptáculo esvaziado de impurezas – que devemos atender à seguinte 181 Geografias do Corpo observação de Sadeur: “A nudez de todo o corpo é-lhes tão natural que eles não podem consentir que se fale de os cobrir pois fazê-lo é declarar-se inimigo da natureza e contrário à razão.”106 Num primeiro plano, o nu é a forma que, ao tornar visível a natureza racional do homem (ideal), vem tornar invisível a natureza corporal do homem (real). Por isso – por esse jogo de obscurecimento do corpo – a nudez dos australianos é, como Benrekassa afirma, “uma espécie de grau zero da inocência.”107 Com efeito, conforme observa Sadeur: “Bem longe de terem qualquer pudor ou alguma vergonha de aparecerem nus, eles fazem disso a sua principal glória”.108 O nu australiano é, num segundo plano, a forma que honra a pureza do ser contido pela razão. Mas esta figura da pureza é – como acabámos de constatar – absolutamente indissociável do fundo de impureza que lhe subjaz e da figura da transparência para a qual o desnudado australiano nos reenvia. Com efeito, na decorrência dos diálogos com Suains, Sadeur afirma que “[o]s australianos não escondem nada [nenhuma parte do corpo], com temor de serem julgados sujos e desprezíveis a respeito do que poderiam ocultar.”109 Estamos inequivocamente perante o próprio paradoxo que preside ao engendramento da figura da transparência. Os australianos não escondem nada porque o que está inteiramente lá – o corpo nu como um quadro da razão – é resultante de tudo o que já não está. Já não está porque foi escondido. Escondidos os traços anatómicos que viriam a dar relevo aos conteúdos do corpo (e.g. orgãos genitais, barriga). Escondido tudo o que por ter entrado e/ou saído do corpo (e.g. alimento, sangue, fezes) viria a fazer deste o que se sabe que também é – um espaço de transição – mas simulando que não é. Em suma, os australianos só “não escondem nada” porque deram alguns dos passos necessários a que a razão pudesse ser exposta, ou corporizada no nu: recalcaram, ocultaram e fingiram não ter corpo. É por tudo isso – por esse jogo de luz e sombra – que o corpo pintado a nu pelo australiano adquire a expressão de uma naturezamorta ou sem vida própria. 182 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta Notas Este texto retoma partes de uma outra publicação que é resultante do meu percurso de conhecimento no contexto do trabalho de doutoramento: Viagem, Utopia e Insularidade: narrativas fundadoras da ciência e da sociedade moderna, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2009 (no prelo). A tradução das citações ao longo deste texto é da responsabilidade da autora. 1 J. Schlanger (1992: 64. 2 Ibid. (66). 3 Cf. ibid. (64-66). 4 P. Ricoeur (1991: 89). 5 J. Schlanger, ibid. (66). 6 Ibid. (67). 7 Ibidem. 8 R. Brown (1989: 185). 9 J. Schlanger, ibid. (66). 10 Ibidem. 11 Ibidem. 12 Ibidem. 13 Ibidem. 14 Ibid. (69). 15 Ibidem. 16 Ibid. (70). 17 Ibidem. 18 Ibid. (65). 19 Ibidem. 20 Ibid. (64-65). 21 Cf. ibid. (65). 22 Ibidem. 23 Ibidem. 24 Cf. L. Daston (1999: 82). 25 R. Palmer (1989: 240). 26 J. Petitot (1999: 37). 27 Cf. Th. Kuhn (2007). 28 A. S. Silva (1986: 50). 29 Cf. G. Bachelard (2006: 19-32). 30 Cf. P. Ricoeur (1988: 88). 31 Cf. A. S. Silva (1986: 52). 32 I. Lakatos (1998:16). 33 M. M. Carrilho (1994: 35). 34 Sobre a vida, as obras e a difusão de La Terre Australe connue (1676) de Gabriel de Foigny (1630-1692) consultar: Ronzeaud, in Foigny, 1990: XI-XCVIII; Lachèvre, 1968: 3-60; Kirsop, 1980: 341-365. 35 G. de Foigny (1990: 191). 36 Ibid. (138). 37 Ibid. (165). 38 Ibidem. 39 Ibidem. 40 Ibidem. 41 Ibidem. 42 Ibid. (170). 43 Ibid. (167). 44 Ibid. (139). 45 Ibidem. 46 Ibid. (149). 47 Ibid. (149-150). 48 Ibid. (152). 49 Ibid. (153). 50 A imensa planície da terra Austral que constitui o território habitado pelos australianos de Foigny organiza-se em toda a sua extensão sempre com base numa mesma unidade urbanística, designada, na língua austral, por “sezain”. O território australiano conta com cento e quarenta e quatro milhões de australianos, os quais estão equitativamente distribuídos por quinze mil sezains rigorosamente iguais. Os quinze mil sezains contêm, na sua totalidade, quinze mil Habs, sessenta mil Hebs, seis milhões de Hiebs e vinte e quatro milhões de Huids (os jardins geométricos cultivados, em regime frutívoro, pelos australianos para prover a sua subsistência). Cada sezain tem autonomia em relação aos demais dado compreender tudo o que é necessário à vida dos seus habitantes: Hab, Hebs, Hiebs e Huids, cada qual com uma função social específica, isto é, espiritual, educativa, habitacional, e alimentar. 51 G. de Foigny (1990: 152-153). 52 Ibid. (72). 53 Ibid. (119). 54 O velho venerável, filósofo e professor na Casa da Educação, personagem principal da utopia de Foigny, pois é este que re-socializa o viajante europeu, no seio da cultura dos seres puramente racionais. 55 O viajante europeu que ao acabo de uma longa travessia iniciática, pontuada por sucessivos naufrágios, acede à sociedade dos australianos, aí vive durante trinta e sete anos e, após ter 183 Geografias do Corpo sido acusado por aqueles de cometer vários desvios, é forçado a regressar à Europa, trazendo consigo o manuscrito da sua relação de viagem à terra Austral. Ao tempo de Foigny (1630-1692), a terra austral constituiu o destino geográfico de algumas viagens autênticas, nomeadamente a do navegador e comerciante normando Binot Paulmier de Gonneville e a do navegador português Fernando de Queiroz, um e outro publicitados na literatura de viagens seiscentista como os viajantes aos quais se atribuía o conhecimento da mítica terra australis incognita (cf. N. Broc, 1975: 174). 56 G. de Foigny (1990: 117). 57 Ibidem. 58 Ibid. (115). 59 Ibid. (116). 60 Ibid. (153). 61 Ibid. (185). 62 Ibid. (119-120). 63 Cf. ibid. (113). 64 Ibid. (115). 65 Ibid. (204). 66 J. Gil (1994: 17). 67 Ibidem. 68 Ibidem. 69 Ibid. (108). 70 G. de Foigny, op. cit (176). 71 Ibid. (181). 72 Ibid. (95). 73 Ibid. (94). 74 Ibid. (69). 75 Cf. ibid. (189-212). 76 Cf. ibid. (191). 77 Ibid. (210). 78 Ibid. (209). 79 Ibid. (210). 80 Ibid. (211). 81 Cf. ibid. (212). 82 Ibid. (203). 83 Ibidem. 84 Cf. ibid. (204). 85 Ibid. (215). 86 Ibid. (205). 87 Ibid. (83). 88 Ibid. (138). 89 Cf. ibidem. 90 Cf. ibid. (137). 91 Ibid. (92). 92 Ibidem. 93 Ibid. (139). 94 Ibid. (140). 95 Ibid. (140). 96 Ibid. (108). 97 Cf. ibid. (140). 98 Cf. ibid. (76). 99 Cf. ibid. (137). 100 Ibid. (83). 101 Ibid. (137). 102 Na utopia de Foigny, a centragem como procedimento espacial imprescindível à concepção da ordem racional é, particularmente, evidenciada na construção geométrica do espaço social australiano: todos os edifícios do sezain são providos de localização central (o Hab no meio do sezain, o Heb no meio dos Hiebs, estes no meio dos Huids). O procedimento de centragem não particulariza Foigny. Ele é característico do espírito geométrico do utopista do século XVII. Por exemplo, em L’Histoire des Sévarambes (1677-1679) de Denis Veiras, o legislador-fundador Sevaris, “personagem central” da narrrativa, fixa-se na ilha onde elege “Sevarinde” como centro da sociedade racional. Com efeito, Sevarinde é a cidade-capital cuja localização “no meio de uma ilha” (2001: 137), formada “no meio do rio” (“Sevaringo”) pela sua separação em dois braços “que a rodeiam de todos os lados” (ibid.: 137), e situação quase no meio das terras que pertencem à nação” (ibid.: 144) constituem, inequivocamente, a expressão geométrica do poder centralizador – e insular – da razão. Daí que seja precisamente para a região periférica mais distanciada da região central que são enviados todos quantos têm imperfeição física ou espiritual. Mas o procedimento de centragem não caracteriza apenas as utopias seiscentistas. Muito pelo contrário. Como demonstra Teresa Sousa Fernandes, em “Modernidade e geometrias sociais” (1993), delimitação, exclusão e centragem são categorias de espacialização do pensamento que constituem fundamentos de representação geométrica da ordem social presentes no século XVIII, nas filosofias de Montesquieu e de Rousseau, 184 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta e notórias, ao século XIX, na teoria social de Durkheim. 103 Num outro contexto, o das analogias entre a ilha, a cidade ideal e o corpo do homem no Timeu, no Crítias e na República de Platão, Desclos (1996) faz salientar que a noção de tumulto, explicitamente ancorada por Platão no mundo marítimo, é reenviada pelo filósofo para o fígado que, enquanto “alma do alimento” (152), constitui “o lugar da confusão e do tumulto” (151), por oposição à cabeça e ao encéfalo que recobrem “a divisão da alma em ‘função racional’ e em ‘ardor ousado’” (relativo ao coração) (ibidem). 104 G. de Foigny, op. cit (138). 105 Ibid. (135). 106 Ibid. (84). 107 G. Benrekassa (1980: 275). 108 G. de Foigny, op. cit (105). 10 Ibid. (105-106). Bibliografia Bachelard, G. 2006. A formação do espírito científico. Lisboa: Dinalivro. Benrekassa, G. 1980. Le Concentrique et l’excentrique: marges des lumières. Paris: Payot. Broc, N. 1975. La géographie des philosophes. Géographes et voyageurs français au XVIII siècle. Paris: Éditions Ophyrs, Publications des Universités de Strasbourg – Fondation Baulig. Brown, R. 1989. Clefs pour une poétique de la sociologie. Arles: Actes Sud. Carrilho, M. M. 1994. A filosofia das ciências (de Bacon a Feyerabend). Lisboa: Editorial Presença. Daston, L. 1999. As imagens da objectividade: a fotografia e o mapa. In Fernando Gil (coord.), A ciência tal qual se faz. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 79-103. Desclos, M.-L. 1996. L’Atlantide : une île comme un corps. Histoire d’une transgression. In Françoise Létoublon (org.), Impressions d’îles. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 141-155. Fernandes, T. S. 1993. Modernidade e geometrias sociais. A representação da ordem na obra de Émile Durkheim. Cadernos de Ciências Sociais 12/13, Janeiro: 197-148. de Foigny, G. 1990 [1676]. La Terre Australe connue (édition établie, presentée et annotée par Pierre Ronzeaud). Paris: S.T.F.M. – Société des Textes Françaises, Aux Amateurs des Livres. Gil, J. 1994. Monstros. Lisboa: Quetzal Editores. Kirsop, W. 1980. Gabriel de Foigny et sa ‘Terre australe connue’. In Cinq siècles d’imprimerie genevoise, Actes du Colloque Internationale sur l’histoire de l’imprimerie et du livre à Genève, (Genève, 27-30 avril, 1978). Genève: Société d’Histoire et d’Archéologie, 341-365. 185 Geografias do Corpo Kuhn, Th. S. 2007. A estrutura das revoluções científicas, 7.ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva. Lachèvre, F. 1968 [1922]. Les successeurs de Cyrano de Bergerac. Genève: Slatkine Reprints. Lakatos, I. 1998. História da ciência e suas reconstruções racionais e outros ensaios. Lisboa: Edições 70. Palmer, R. E. 1989. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70. Petitot, J. 1999. Em direcção a uma física das ciências humanas. In Fernando Gil (coord.), A ciência tal qual se faz. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 33-52. Ricoeur, P. 1988. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Porto: Rés-Editora. Ricoeur, P. 1991. Ideologia e utopia. Lisboa: Edições 70. Schlanger, J. 1992. La connaissance comme exploration et comme conquête. Diogène 160, octobre-décembre: 63-77. Silva, A. S. 1986. A ruptura com o senso comum nas ciências sociais. In Augusto Santos Silva, José Madureira Pinto (orgs.), Metodologia das Ciências Sociais. Porto: Afrontamento, 29-53. Veiras, D. 2001 [1677-1679]. L’Histoire des Sévarambes (édition critique par Aubrey Rosenberg). Paris: Honoré Champion. 186 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço. Versão revista para este livro Chris Philo Este artigo foi originalmente publicado em 2001, na revista International Journal of Population Geography1 e se numa primeira análise o objectivo era destacar a relevância de Michel Foucault para geógrafos da população e para as suas investigações, destinava-se sobretudo, de forma mais abrangente, a clarificar uma perspectiva de ‘corpos no espaço’, mais do que a difundir esta mesma perspectiva através da Geografia humana contemporânea (e disciplinas afins). Esta posição, preocupada especialmente com o que Foucault designa por ‘arte das distribuições’, gira em torno da ideia de que corpos individuais – e através deles, grupos completos ou populações inteiras – podem ser disciplinados ao serem inseridos em configurações espaciais particulares, observadas e policiadas próxima e atentamente. Na prática, raramente é assim tão simples, no entanto a vontade de criar uma união corpo-espaço tão dócil é comum na sociedade ‘moderna’, emergindo primeiramente na Europa Ocidental e América do Norte a partir do final do século XVIII, e depois difundindo-se de várias formas, ainda que muito oscilante e contestadamente, através de grande parte do globo durante os séculos XIX e XX. Mais recentemente, variadíssimas formas de debate têm surgido na Geografia humana e mesmo para além desta, acerca da validade e circunstâncias das propostas de Foucault a este respeito, e desta forma este artigo deve ser entendido no contexto do seu tempo original – planeei-o e escrevi-o por volta do ano de 2000 – reconhecendo que algumas das suas reivindicações podem agora ser familiares, mesmo demasiadamente simplistas e sem dúvida alguma prontas para reconsideração, quer com as mudanças no mundo ‘aí fora’ (a multiplicação dos espaços virtuais por exemplo) quer com as posições teóricas tidas Geografias do Corpo pela academia (o crescendo de teorias de corpos e vida mais performativas e com uma base prática [em vez de com uma base mais discursiva]). No entanto, adiciono um segundo breve Posfácio, em que caracterizo brevemente os avanços no conhecimento foucauldiano que ocorreram desde que escrevi o artigo original (reconhecendo e expandindo claramente as sugestões que fiz no meu primeiro Posfácio), que se reflectem na Geografia da população e de forma mais abrangente na Geografia humana. Introdução O meu artigo parte de uma indicação do livro Close Control: Managing a Maximum Security Prison - The Story of Ragen’s Stateville Penitentiary (de agora em diante CC), escrito pelo sociólogo Nathan Kantrowitz e publicado em 1996, e a questão que coloco diz respeito à possível relevância deste livro para a subdisciplina da Geografia da população. A reflexão aqui desenvolvida indica uma linha de pensamento que é relativamente nova para esta subdisciplina em particular, mas que ao mesmo tempo sugere a centralidade das preocupações que podem ser legitimamente gravadas como sendo de ‘Geografia da população’, no contexto dos domínios de investigação mais vastos que agora emergem em toda a Geografia humana e mesmo para além desta. O meu argumento será o de que uma instituição como uma prisão necessita de uma concentração espacial de uma determinada população, um agrupamento de uma massa vasta de seres humanos numa pequena área, e neste caso particular, numa área claramente confinada, delimitada e separada. Tais instituições compreendem picos definidos nos mapas da distribuição de população, e apesar de ser uma observação aparentemente trivial, é bem conhecido que podem exercer uma influência na dinâmica de uma população numa região ao longo do tempo. Gerry Kearns2 por exemplo, ao investigar a cólera e a demografia na Londres Vitoriana, mostrou como instituições fechadas como as prisões e os asilos, com as suas expressivas populações internas, podiam ser ‘incubadoras’ da doença, gerando manchas localizadas de grande mortalidade3. Para a Geografia da população a relevância do interesse em instituições está aqui claramente evidente. De forma mais concreta, o modo como as insti- 188 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço tuições são internamente organizadas, a gestão diária da população sequestrada (os criminosos, os mentalmente debilitados) dentro dos espaços de tijolo e argamassa destas instituições, pode também ser relevante para os Geógrafos da população. As estratégias usadas para permitir que a sociedade lide com a população acumulada atrás de paredes institucionais, especialmente as estratégias espaciais, implicam o que pode ser designado como ‘geografias micro-populacionais aplicadas’, cuja importância muito possivelmente verte para além das fronteiras institucionais e influencia estratégias mais vastas de controlo de populações inteiras. Esta é pelo menos uma das formas de compreender as ideias de um pensador chave, Michel Foucault, o falecido teórico e historiador social francês, que apresentarei brevemente de seguida. As reivindicações que defendo, inspirando-me em Foucault, resumem-se a novas aberturas possíveis de partes da Geografia da população, respondendo a declarações insistentes acerca da necessidade da Geografia da população se articular mais profundamente com debates e desenvolvimentos teóricos4. Este artigo investiga estas questões através de particularidades quer do livro de Kantrowitz quer de textos específicos de Foucault, e desta forma espero demonstrar que é precisamente no prestar atenção aos detalhes destes livros, bem como no escavar as minúcias das actuais prisões e instituições similares no passado e presente, que os contornos de temas mais genéricos para enfoque por parte de geógrafos da população (e outros) podem começar a ser compreendidos. Geografias da Prisão Vou começar por examinar o livro de Kantrowitz. A formação académica do autor é a sociologia, tendo também estudado na graduação estudos da população5, primeiro indicador de que o seu trabalho talvez pudesse ser de interesse para a Geografia da população. Posteriormente tornou-se num sociólogo profissional, especializando-se em criminologia na Universidade Estatal de Kent, no Ohio. Durante seis anos, entre 1957 e 1963, o recém-formado Kantrowitz ocupou o posto invulgarmente dissonante de ‘sociologist-actuary’i na Comissão de Perdão e Liberdade Condicional de Illinois, na prisão Joliet-Stateville, no sudoeste de Chicago, onde juntamente com um 189 Geografias do Corpo colega sociólogo era responsável por entrevistar até 150 prisioneiros por mês, de forma a avaliar ‘a viabilidade dos prisioneiros cumprirem liberdade condicional com sucesso’6. Neste cargo, Kantrowitz rapidamente se familiarizou com os detalhes de funcionamento da prisão, tendo prosseguido os seus projectos de investigação pessoal sobre diversos aspectos da prisão, incluindo um sobre a ‘linguística criminal’, com vista a desenhar a sua tese de doutoramento. Tal como refere, acabou por ser o ‘observador acidental’ (o título de CC, capítulo 1), um etnógrafo da vida na prisão, e fica claro que o livro que daqui resulta só poderia ter sido escrito por alguém ostentando um conhecimento íntimo com as pessoas (funcionários e presos) e com os lugares de uma prisão em particular. Kantrowitz reconhece que o produto não é um levantamento socio-científico convencional – na verdade, apelida-o de ‘um exercício de jornalismo de investigação no qual o interpretativo e subjectivo se tornam a parte substancial da apresentação’7 – mas que certamente não pode ser criticado como despreocupado ou infundado. Grande parte do livro é uma descrição elaborada do regime da prisão enquanto experiência de vida quotidiana e deliberadamente controlada, se bem que Kantrowitz organiza os seus materiais em torno da questão central de ‘como é que nós controlamos estes lugares?’8 De forma mais específica, Kantrowitz pretende responder a esta questão ao insistir que ‘o controlo na prisão deve ser um sistema interligado de controlo no qual a rede de restrições se deve basear nos actos triviais quotidianos de servir refeições, lavar lençóis, limpar o chão e comprar doces, por forma a reprimir os horrores de violação e assassínio’9. A resposta encontra-se assim precisamente nos detalhes, e não em planos grandiosos, e os materiais empíricos de Kantrowitz estão em grande medida direccionados para suster esta pretensão enganosamente simples. Neste sentido, Kantrowitz explora as particularidades do regime da prisão instaladas sob o director Joseph E. Ragen, tal como é indicado na segunda parte do subtítulo do livro, e tenta demonstrar o ‘sucesso’ do ‘controlo de proximidade’ de Ragen, suportado ‘no castigo quer de guardas quer de presos, e num monopólio de violência física, que não era o mesmo que brutalidade’10. Este controlo não era administrado tanto por 190 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço espancamentos como por intervenções corporais mais subtis: guardas transgressores eram afastados das suas tarefas e ‘suspensos por algumas horas ou dias sem pagamento’11, enquanto que como resultado de infracções menores, presos perdiam horas de recreio, aguentando ‘isolamento e confinamento segregado’ por delitos maiores12 ou mesmo perda de ‘tempo benévolo’ (tempo de redução das penas prisionais). O argumento de raiz de Kantrowitz é o de que graças ao rígido controlo corporal quotidiano quer de guardas quer de presos, as prepotências e intimidações endémicas nos regimes de cárcere foram grandemente reduzidos, e os incidentes mais severos de violação e assassínio largamente eliminados. Kantrowitz conclui o livro com uma abordagem do ‘génio de Ragen’13, admitindo que este era um regime ‘cruel’ ao qual nunca poderemos voltar, mas ainda assim sugerindo que há ‘lições’ a serem destiladas da Stateville de Ragen sobre como criar ‘um sistema moralmente justificável’14 onde o carácter forte de um director supervisiona todas as tonalidades da ‘rede de controlo’ institucional interna. Seria possível questionar as conclusões de Kantrowitz sendo mais crítico acerca da abordagem penal de Ragen, mas para mim, enquanto geógrafo, o aspecto mais interessante deste livro é a atenção pertinaz aos espaços dentro da prisão. Na verdade, na secção que contém dois capítulos e que se intitula ‘A Ronda da Vida: Controlando o Tempo e o Espaço’15, Kantrowitz considera que o trabalho fundamental do director é o de ‘sincronizar homens16 e os seus comportamentos no tempo e no espaço’17. Por outras palavras, o trabalho é ‘simplificar o tempo e o espaço’18, e assim intervir minuciosamente na ‘ecologia da prisão, nas barreiras do tempo e do espaço’19. A geografia elementar da prisão20, a configuração dos seus edifícios, pátios, áreas de lazer, passeios e corredores, é essencial para a discussão e mostra-se no seu ‘esboço gráfico’21. Kantrowitz esmiúça os vários elementos desta geografia até aos mais pequenos espaços das celas, fornecendo um diagrama22 de uma cela para três pessoas com 1,98 por 3,2 metros, e explicando a necessidade dos prisioneiros desenvolverem uma ‘espacialidade meticulosa’23, de forma a coordenarem os mais ínfimos movimentos dentro da cela, não perturbando os outros ocupantes. Considera as várias casas-cela, uma das quais era uma estrutura rectangular com 191 Geografias do Corpo quatro níveis (diagramas em CC: 59), e quatro das quais eram circulares e voltadas para um pátio central numa uma forma que ‘deriva do desenho do filósofo inglês no século XIX Jeremy Bentham de prisão “panóptica”’24. (Este é um argumento com algum significado dadas as ligações entre o trabalho de Foucault e aquilo abordarei em seguida). Kantrowitz também menciona outros espaços dentro da prisão, particularmente a sala de refeições, lugar de potenciais problemas dado que era aqui que ‘homens famintos e irritáveis’25, em especial ao pequeno-almoço, estavam mais proximamente misturados e em posse de possíveis armas (os talheres): A orla exterior da sala de refeições estava repleta de janelas e áreas de trabalho – escritórios, cozinhas, padarias, máquinas de lavar a loiça, arrumos. Nesta orla, os assentos e mesas encontravam-se espaçados como uma grande tarte cortada em fatias irregulares, e eram iluminados por clarabóias e lâmpadas nuas presas por fios. No centro do círculo estava uma torre redonda de aço, erguendo-se mais de três andares até ao tecto, onde dois a cinco atiradores (com as únicas armas de fogo dentro de muros) esquadrinhavam os condenados desde janelas gradeadas. Por não se usarem armas de fogo nos pisos térreos do edifício, a prisão tinha um túnel subterrâneo que ia da sala de munições da prisão onde estas armas eram armazenadas, directamente à torre de vigia da sala de refeições.26 Tal como nas celas, prevalecia aqui um padrão espacial semelhante, no qual os presos eram vigiados de um ponto central. Kantrowitz analisa de forma mais sumária outros espaços, tais como o hospital, os pátios de recreio, o parque de jogos, os passadiços cobertos, as paredes, a casa do portão e as torres de vigia, que são reconhecidos como ‘localizações’ importantes dentro da vida da prisão. No entanto, esta não é uma geografia estática, e toda a criatividade do texto de Kantrowitz é dedicada a mostrar a miríade de movimentos – as deambulações, emaranhados, encontrões – de presos e seus guardas em torno destes diferentes espaços da prisão. No texto, muitos destes argumentos estão organizados livremente em torno do ‘horário do prisioneiro’27, a estrutura do dia do prisioneiro desde o momento do acordar cerca das 6:40 (quando as campainhas nas 192 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço celas soam) até cerca das 22:00 (quando todas as luzes finalmente se apagam). Tal como Kantrowitz descreve em termos genéricos: A determinadas horas, uma primeira campainha e depois uma campainha ‘despertadora’ soava; depois de um tempo específico durante o qual o prisioneiro se lavava, fazia a sua cama e era contado pelos guardas, compunha-se em fila sob a supervisão dos guardas e ia para a sala das refeições onde tomava o pequeno-almoço. Depois, os guardas guiavam as filas para os postos de trabalho. A uma hora específica o prisioneiro deixava o seu trabalho, fazia formatura e era conduzido em marcha para o almoço. À tarde parava de trabalhar, e tinha a opção de ir para o pátio de recreio ou de volta para a sua cela, permanecendo aí até uma hora específica quando o jantar era servido. O preso ia para a sala das refeições numa fila conduzida por um guarda, comia, e depois formava-se em linha para que o guarda o conduzisse de volta à cela, onde permanecia até ao soar da primeira campainha pela manhã.28 Kantrowitz ilustra esta rotina através de um simples diagrama que captura a topologia dos movimentos quotidianos de um prisioneiro29. Num outro diagrama30 é mais específico no traçar dos movimentos dos prisioneiros de celas particulares, revelando os diversos circuitos de vai e vem entre as celas, o refeitório, os trabalhos (que podem ser nas fábricas fora da prisão) e os pátios de recreio. Por vezes estas rotinas podiam tornar-se mais complicadas, tal como quando uma ou duas vezes por semana os presos integravam a ‘sua linha “banho-barba-venda”31 e eram levados para o bloco dos chuveiros, ao barbeiro e à venda (uma loja onde podiam comprar cigarros, doces ou comida enlatada). Mais ainda, ocasionalmente os presos podiam visitar individualmente o capelão, o médico, o dentista e o sociólogo (o próprio Kantrowitz), ou receber visitas de familiares e amigos, sendo que todas estas actividades requeriam movimentos não programados a espaços dedicados dentro da prisão (por exemplo ‘a visita de familiares requeria que um preso se reunisse com estes num espaço especial, a sala de visitas’: CC: 67). Um sistema de ‘senhas de chamada’ regulava estes movimentos, sendo que os funcionários que queriam ver um preso tinham que preencher uma senha de cha- 193 Geografias do Corpo mada que o prisioneiro depois tinha que levar consigo. A posse de tal senha era o testemunho para que os guardas conduzissem presos individuais para dentro e fora de diferentes espaços da prisão. Num dia qualquer, o quadro era um de prisioneiros ‘movimentando-se entre cinco celas e cerca de cinquenta edifícios, atravessando e cruzando os seus caminhos talvez uma dúzia de vezes desde a manhã até à tarde32, e assim uma geografia dinâmica de movimentos de corpos era super imposta à geografia gelada da prisão de estruturas e rotas. Consequentemente, esta geografia de movimentos, enquanto dinâmica e complexa, estava sujeita a um ‘controlo apertado’. Os prisioneiros estavam sob uma quase permanente vigilância dos guardas, quer fossem os das torres existentes na sala das refeições, do portão, das celas e aqueles em torno dos muros do perímetro, quer fossem os guardas que patrulhavam ao longo dos caminhos elevados e ao nível do solo, havendo assim muito poucas oportunidades para os presos fora das celas desrespeitarem seriamente as regras. A vigilância ‘do alto’, frequentemente implicava guardas com armas, sendo evidente que estas armas seriam usadas (apesar de durante os seus seis anos em Stateville, Kantrowitz relatar poucos incidentes onde o uso da força tivesse sido necessário): As quinze torres de vigia nos muros de Stateville, juntamente com a [torre] existente na sala de refeições e a do portão da prisão, eram as únicas onde os guardas se encontravam aramados...As torres nos muros eram os derradeiros (e mais formidáveis) pontos de segurança da prisão, havendo uma linha de visão para quase qualquer ponto do espaço aberto. Nenhum espaço aberto estava virtualmente a mais de 300 metros desobstruídos de um ou mais atiradores.33 Um atributo importante dos guardas era o seu ‘estado alerta’, e Kantrowitz explica que os guardas que ‘falhassem estar alerta’34, particularmente aqueles em serviço nas torres de vigia, estavam sujeitos a punições (suspensões por períodos entre dois dias até cerca de um mês). Para além da vigilância geral, inúmeras verificações eram feitas aos prisioneiros à medida que estes se deslocavam de um edifício para outro. O director instituiu um amplo sistema de preenchimento de formulários, no qual os guardas tinham que man- 194 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço ter uma ‘contagem de registos’ precisa do número de presos que se deslocava de um lugar (por exemplo da sala de refeições) para outro (por exemplo na realização de uma tarefa), bem como um registo dos movimentos de indivíduos com ‘senhas de chamada’ (deslocando-se por exemplo das celas para o dentista). Mais ainda, em certos momentos do dia ‘toda a rotina [de actividades] se detinha para que todos os prisioneiros fossem contados’35, momentos esses em que se estabelecia se o número correcto de presos estava no local que deveria estar. Se os números não concordassem com os constantes nas ‘folhas de movimentos’, que listavam os números esperados em qualquer outro lugar, a rotina das actividades não recomeçaria até que a anomalia se resolvesse, implicando que algo como o erro de contagem de um guarda – que incorreria numa determinada punição – causasse ‘ondas de desordem e irritação’36 que se alastrariam através de toda a ordem espaço-tempo da prisão. Kantrowitz refere-se a tudo isto como o ‘sistema de contagem de corpos’ de Ragen37, que basicamente funcionava através da assumpção de que todo e qualquer preso tinha o seu lugar próprio dentro da prisão a todo e qualquer momento do dia ou da noite. O regime dependia dos corpos dos prisioneiros estarem sempre ‘no lugar’ em vez de ‘fora do lugar’, e deste modo, um incidente como por exemplo a fila para o barbeiro ter ‘um homem a menos’ instituía uma busca e verificação completa da prisão do ‘corpo desaparecido’. O resultado era uma geografia corporal da prisão totalmente calibrada, decretada e assim controlada, uma geografia cujos detalhes emergem através de virtualmente todas as páginas do livro de Kantrowitz. Existem incontáveis outros aspectos da vida da prisão em Stateville com interesse potencial para a ‘imaginação geográfica’, mas vou aqui apenas mencionar dois. Em primeiro lugar, é importante sublinhar que o ‘controlo apertado’ do director tinha que se dirigir tanto aos guardas como aos presos, atendendo a que inúmeras outras cadeias no passado e presente têm sido fundamentalmente corroídas pela negligência dos funcionários, indisciplina e recurso a atormentações e mesmo violência contra os presos. Assim, mesmo antes dos três capítulos da secção do livro intitulada ‘Controlo dos presos’38, Kantrowitz fornece outros três numa secção intitulada ‘Controlo dos 195 Geografias do Corpo guardas’39. Tal como já referido, estes estavam sujeitos a penas por falhas em operar de modo competente a ordem espaço-tempo, e é revelador que a importância dos deveres específicos dos guardas e das penalizações sobre eles exercidas é especificada através das diferentes ‘localizações’ dentro da prisão40. Kantrowitz concentra-se em particular nos portões da prisão, destacando que ‘as punições dos guardas dos portões da prisão implicam não só o controlo de erros mas também uma compreensão da arquitectura da prisão’41. Por outras palavras, era essencial existir um meticuloso conhecimento da geografia deste ‘portão’ e daquilo que o rodeava – os muros, uma outra vedação, a administração, as áreas de visita e do hospital – e ter conhecimento da dificuldade em ter quatro entradas separadas e uma barreira menor na casa do portão por onde ‘passavam todas as pessoas e objectos menores como o correio, medicamentos e material de escritório’42. Este era o ponto vulnerável no arranjo espacial da prisão, o ponto de acesso ou saída, e em diferentes partes do ‘portão’ os guardas tinham que estar particularmente atentos às contagens, verificações e buscas, de forma a prevenir quer fugas, quer a entrada de pessoas ou itens não autorizados (contrabando ou pior ainda). Um segundo aspecto a relevar prende-se com a resistência dos presos, no sentido em que ‘existiam limites para o controlo do director de Ragen’43 através da operação ‘economia subterrânea’44, baseada na troca de vários itens como cigarros, doces e por vezes dólares americanos e também serviços como lavagem de roupa interior ou favores homossexuais. Curiosamente, Kantrowitz descreve o que ele designa como o ‘sistema de transporte dos presos’45, que inclui o transporte físico de objectos pela prisão que vão ‘desde uma lâmina da barba facilmente escondida até uma volumosa e perecível sandes’46 sem que os guardas se apercebessem. Discute a ‘consciência do movimento corporal’47 que muitos presos desenvolveram, um comando de ‘movimentos corporais delicados’48 que requer ‘um controlo físico do modo de andar e do passo largo, da tensão do corpo e do movimento do olhar’49, que lhes permitia passar despercebidamente de uma parte da prisão a outra, apesar de muitas vezes transportarem mercadorias volumosas. Mais ainda, os presos tinham que assegurar ‘lugares de armazenamento’ para certos itens, espe- 196 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço cialmente aqueles que tinham sido contrabandeados para dentro da prisão, tornando-se especialistas em esconder objectos em ‘qualquer canto ou recanto’50 dos edifícios ou mesmo enterrando caixas ou latas de contrabando nas ‘floreiras do jardim do director’51. O livro de Kantrowitz contém um exercício detalhado de geografia da prisão, e é importante realçar que há uma mão cheia de estudos explicitamente geográficos de prisões – espalhados pelo mundo e alguns com um enfoque histórico – que podem ser encontrados na literatura da Geografia humana contemporânea52. Todos estes estudos destacam as enganosamente simples geografias das prisões, especialmente as suas configurações espaciais internas quer cimentadas em enquadramentos institucionais, quer expressas através dos movimentos quotidianos de corpos de pele e osso em torno de ‘localizações’ diversas dentro destes enquadramentos, que são absolutamente centrais para o funcionamento geral dos estabelecimentos prisionais. De diferentes formas, estes trabalhos apontam para a intersecção entre poder e espaço dentro destes estabelecimentos, e ao fazê-lo destacam as múltiplas formas como os sistemas, estratégias e práticas espaciais de todas as formas permitem que o poder seja exercido sob população acumulada potencialmente muito descontrolada, num contexto de limites relativamente constrangidos. É assim admirável notar que no seu famoso livro Human Territoriality, o geógrafo Robert Sack faz uso do exemplo da prisão de Joliet-Stateville, reproduzindo em larga medida a mesma imagem que graça pela capa do livro de Kantrowitz (ver adiante), quando desenvolve argumentos sobre a forma como as instituições como prisões, hospitais, asilos, escolas e fábricas ‘requerem a subdivisão e integração intensa e minuciosa do território’53. Estes argumentos integram-se nas especulações mais vastas de Sack acerca da ‘territorialidade humana...como uma estratégia espacial que afecta, influencia ou controla recursos ou pessoas ao controlar áreas’54. No decurso de um capítulo sobre ‘O lugar de trabalho’, Sack escolhe concentrar-se nas escalas micro-espaciais da territorialidade nas diversas instituições mencionadas, propondo que tais instituições testemunham o trabalho de uma ‘“metafísica” espacial’ que proporciona o ‘desaparecimento geográfico de eventos de forma a criar uma superfície espacial impessoal e 197 Geografias do Corpo esvaziável que contenha, classifique e organize acções humanas’55. Mais ainda, ao desenvolver estas noções, o principal ponto de referência conceptual de Sack é, naturalmente, Foucault, levando-o a utilizar materiais de textos famosos mais tardios como Discipline and Punish56 bem como ao analisar em mais detalhe o design do panóptico de Bentham57. Consequentemente, Sack oferece uma ponte desde a minha discussão da pesquisa de Kantrowitz sobre a Stateville de Ragen até uma leitura mais minuciosa do que Foucault pode oferecer à investigação sobre a acumulação de população em (e possivelmente para além dos) ambientes prisionais. Foucault e a acumulação de população Ao mesmo tempo que podemos perceber porque é que o livro de Kantrowitz pode ter interesse para geógrafos, ao perseguir investigações sobre as geografias institucionais de prisões e asilos, entre outras58, permanece a questão sobre porque é que os geógrafos da população em particular podem reconhecer valia este trabalho. Numa tentativa de responder a esta questão, vou direccionar-me para os textos de Michel Foucault, e especificamente para o seu tratado clássico Surveiller et Punir, publicado em francês em 1975 e traduzido para inglês em 1977 como Discipline and Punish: The Birth of the Prison (daqui em diante DP). Este é um texto bem conhecido, marco na teoria social e cultural ocidental do final do século XX, servindo já de inspiração para muita da investigação em Geografia humana, incluindo análises das geografias institucionais já mencionadas59, bem como contribuindo para diversas (re)teorizações de poder e espaço60. Este não é o momento para rever a arquitectura notável deste livro, nem para explorar em detalhe a dupla concepção e crítica substantiva a ele direccionada, mas é necessário apresentar uma pequena revisão dos seus conteúdos antes de a usar como lente através da qual se podem ver as ligações com o exercício de Kantrowitz em Stateville e com as preocupações dos geógrafos da população. Acrescento ainda que em parte alguma Foucault faz referência ao livro de Kantrowitz, e tal ausência é surpreendente, especialmente pelas críticas deste último aos outros teóricos penais por não foca- 198 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço rem as práticas quotidianas de ‘disciplina’ e ‘punição’ (o dia-a-dia de Discipline and Punish). Por um lado, Discipline and Punish constitui uma intervenção decisiva nas teorias de poder, sendo um exemplo de uma análise relacional do poder que insiste em interpretá-lo como uma ‘microfísica’, uma amálgama de forças que se jogam nos encontros e articulações de diversas pessoas e práticas. Esta análise lida menos com as vastas (re)distribuições de quem tem poder, de quem empunha o poder como um grande machado sobre um outro que é ‘reprimido’, do que com um cálculo subtil do poder como ‘um conjunto de instrumentos, técnicas, procedimentos, níveis de aplicação [e] alvo’61 onde diferentes pessoas ou agências procuram fazer mudanças entre elas que acabam por ser internalizadas (como se livremente escolhidas) pelo ‘outro’. Neste processo, Foucault fornece um ‘modelo’ de poder fortemente espacializado, completo de referências a ‘canais’, ‘capilares’, ‘transmissões’ e ‘retransmissões’, e é evidente que estas referências giram mais para além da mera metáfora, iluminando as reviravoltas do poder em inúmeros espaços ‘reais’ materiais de actividade humana. Por um outro lado Discipline and Punish oferece uma narrativa histórica alicerçada e preocupada com as formas dinâmicas de poder desde o início do período moderno na Europa (de 1600 até 1700) até ao período moderno (de 1800 até 1900). O primeiro período é testemunho de um ‘terrível’, tal como em regime ‘terror-ífico’ apoiado numa retribuição sangrenta e no quebrar do corpo do condenado (tal como mostrado graficamente na arrepiante descrição da execução de Damien em 1757, com a qual Foucault inicia o seu livro). O soberano ou monarca exercia o poder de forma cruamente violenta, martirizando a população à obediência através de penas aparatosas (desde pequenas mutilações até esquartejamentos totais), sendo a sua ambição o controlo, desta forma dramática, de mentes e corações turbulentos. O último período conduziu a uma forma de poder nova, mais eficiente, mais limpa e com maior alcance, uma forma que parou de tratar o corpo meramente como ‘carne’ a ser pendurada com o propósito de provocar o medo nos sujeitos da sociedade, mas que ao invés procurou agir no corpo do prevaricador de modo a incluí-lo 199 Geografias do Corpo na sua própria reforma. O objectivo tornou-se muito mais acerca da produção de ‘corpos dóceis’, uma frase cara a Foucault, que estariam disponíveis para uma reintrodução na força de trabalho, pelo que o jogo do poder deixou de ser simplesmente destruidor (mutilando e finalizando) e passou a ser mais produtivo (construindo ‘novas’ possibilidades, coisas, pessoas). Para esta transição foi fundamental o aparecimento no início do século XIX por toda a Europa de instituições prisionais segregadoras, contendo espaços cuidadosamente regulados nos quais a produção de ‘corpos dóceis’ podia ocorrer, sendo a existência de uma ‘maquinaria de prisões grandemente uniforme, cuja rede imensa de edifícios se estendia por França e pela Europa’62 particularmente significativa. Sob esta luz, a Penitenciária Stateville de Ragen, tal como descrita por Kantrowitz, é apenas uma herdeira no século XX deste grande sonho da prisão como um sítio controlado para ‘punição’ mas também para ‘disciplina’, e talvez mesmo para reforma dos piores criminosos da sociedade. No entanto, a importância do texto de Foucault para Kantrowitz é mais profunda, porque muito de Discipline and Punish tem um paralelo com Close Control na sua obsessão pelos detalhes das práticas de controlo que distinguem o funcionamento da instituição de cárcere moderna. Foucault presta atenção a muitas instituições diferentes desde o final do século XVII até ao início do século XIX63, incluindo o ‘modelo de Filadélfia’ iniciado na Prisão de Walnut Street que foi o ‘berço da penitenciária’64, ao mesmo tempo que ensaia ideias, propostas e desenhos de vários pensadores penais desse tempo. Foi no entanto o célebre ‘Panóptico’ de Jeremy Bentham, um desenho ambicioso para uma prisão que Bentham admitiu poder ser estendida para outras instituições como asilos, hospitais, escolas e mesmo fábricas, que Foucault considera como a figura arquitectónica par excellence da emergência do regime moderno do ‘poder disciplinatório’65. O Panóptico dependeu de uma manipulação subtil dos seus espaços internos para atingir o objectivo de controlar e mesmo reformar os presos, no sentido em que o seu propósito era o de permitir uma constante (ameaça de) inspecção, vigilância, que podia apanhar presos dentro de num campo de visão geral, onde qualquer contorção e trejeito estavam sujeitos a escrutínio (e se necessário a 200 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço reprimenda). Mais concretamente, a intenção era ter um edifício circular contendo níveis de celas individuais para os presos dispostas em torno de um perímetro, com pequenas janelas que permitiam luz em cada uma delas, e todas viradas para o interior através de barras de ferro e para uma torre central de inspecção onde os guardas estavam sempre em funções. Este arranjo espacial, juntamente com um sistema elaborado de iluminação e cortinas na torre, supostamente deixava os presos com a impressão de que podiam estar sempre sob vigia, mesmo que os guardas estivessem a olhar noutra direcção, impedindo-os assim de alguma vez se sentirem livres da observação e possível recriminação. A derradeira ideia era a de que os presos terminariam internalizando este olhar externo, no sentido em que seriam forçados a desenvolver um ‘olho interno de consciência’66, monitorizando e censurando a sua própria conduta, sendo que o ideal seria a sua auto reforma e recreação que os conduziria à população trabalhadora adequada (um resultado produtivo da prisão, e não destrutivo de um corpo flagelado inútil). Foucault analisa o panóptico em detalhe, encontrando aqui inúmeros princípios relacionados com a vigilância e também com a separação de prisioneiros que prevenia o típico ‘contágio moral’ de prisões antigas, onde muitos prisioneiros eram frequente e indiscriminadamente misturados em espaços confinados, sendo que muitos dos avanços conceptuais e riqueza substantiva de Discipline and Punish dependeram, na sua ‘arqueologia’, do Panóptico de Bentham. Tal como referido, Kantrowitz argumenta que as celas em círculo de Stateville foram influenciadas pelo design de Bentham67, e que a ilustração da capa do seu livro, que mostra a torre de guarda dentro de uma das celas, transmite uma impressão tão próxima daquela contida nos documentos de Bentham (e também no texto de Foucault: especialmente a Figura 4, entre as p.162 e p.163), quase como negando a necessidade de qualquer comentário adicional. O tratamento que Foucault dá ao Panóptico deve ser entendido no contexto de uma escavação mais ampla e de muitas dimensões espaciais pertencentes à ‘disciplina do poder’, um projecto que é assinalado por Foucault sem timidez quando declara que ‘numa primeira instância, a disciplina procede de uma distribuição de in- 201 Geografias do Corpo divíduos pelo espaço’68. Foucault investiga criteriosamente o que apelida de ‘arte das distribuições’69, desafiando técnicas espaciais que se tornaram fundações virtualmente não estudadas de todos os regimes modernos de cárcere, incluindo o de Stateville. Uma técnica é a ‘clausura’70, o simples facto de confinar os prevaricadores e outras populações alvo atrás de muros e portas fechadas, sendo que o director Ragen de Stateville dependia inquestionavelmente destas clausuras totais dos seus presos. Foucault reconhece que dentro de uma reclusão é necessário haver uma ‘maquinaria [que] trabalha o espaço de uma forma muito mais flexível e detalhada’71, e esta ‘maquinaria’ inclui uma segunda técnica, que é a de ‘localização ou divisão elementar’72. Neste contexto, vale a pena citar Foucault de forma alongada: Cada indivíduo tem o seu lugar; e cada lugar o seu indivíduo. Evitem-se as distribuições em grupos; dividam-se disposições colectivas; analisem-se pluralidades confusas, massivas ou transitórias. O espaço disciplinar tende a ser dividido em tantas secções quantos os corpos ou elementos a ser distribuídos. Devem-se eliminar os efeitos das distribuições imprecisas, o desaparecimento descontrolado de indivíduos, a sua circulação difusa, a sua coagulação instável e perigosa… O objectivo é estabelecer presenças e ausências, o saber localizar indivíduos, e saber construir comunicações úteis, interromper os outros, saber supervisionar em cada momento a conduta de cada indivíduo, assistir, julgar, calcular as suas qualidades ou méritos. Deste modo, é um procedimento que procura saber, dominando e usando. A disciplina organiza um espaço analítico.73 O director Ragen pode não ter empregue exactamente o mesmo vocabulário para expressar as suas ideias sobre a medição da distribuição dos prisioneiros através de controlos constantes de quem está ‘no lugar’ (presença) e quem está ‘fora do lugar’ (ausente), mas sabia perfeitamente a importância que esta ‘localização ou divisão elementar’ tinha como base que permitia ter o conhecimento exacto num determinado momento, e actuar caso este fosse discrepante. Uma terceira técnica listada por Foucault é a de ‘sítios funcionais’74, relacionada com as vantagens de assegurar que muitos dos espaços 202 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço ocupados por detidos em instituições de clausura deviam ser tornadas ‘úteis’: ‘é uma questão de distribuir indivíduos num espaço onde possam ser isolados e cartografados; mas também uma questão de articulação desta distribuição numa maquinaria de produção que tem os seus próprios requisitos’75. Em particular, isto quer dizer que muitos dos espaços podem ser preenchidos com trabalho, com actividade produtiva organizada, e neste sentido Foucault começa a formular um argumento mais vasto sobre a forma como numa instituição enclausurada o potencial para uma divisão funcional de diferentes tipos de pessoas, tarefas de trabalho e unidades espaciais, estava associada às origens da fábrica enquanto sítio de produção industrial capitalista (ver adiante). Diariamente em Stateville, eram atribuídos trabalhos específicos aos prisioneiros, quer nos jardins, nas lojas ou nas ‘fábricas’ dentro e ocasionalmente fora da prisão, o que significava que em certa medida a prisão incluía uma geografia funcional de trabalho produtivo. Existem muitos outros elementos espaciais em Discipline and Punish, tal como a noção de um ‘panopticismo’ mais geral que se difunde a partir do ‘arquipélago de cárcere’76, modelando os espaços disciplinadores da sociedade não encarcerada, mas quero começar a fechar o círculo do meu argumento, clarificando os pensamentos de Foucault em relação ao que designo de ‘população acumulada’. O argumento simples de que as instituições como prisões acumulam população, juntando um grande número de pessoas em espaços relativamente exíguos, já foi apresentado, mas para Foucault existem consequências importantes acerca do facto de corpos serem amontoados dentro de limites (murados) definidos. Na discussão das ‘disciplinas’, isto é, nas diversas técnicas que se começavam a aplicar nas instituições prisionais no início do século XIX, Foucault sugere que ‘as disciplinas são técnicas para assegurar a ordem das multiplicidades humanas’77 e que a questão relevante é a forma como nesta altura a sociedade europeia estava a começar a encontrar formas de lidar com grupos tão grandes de pessoas (as ‘multiplicidades’). Prossegue então para um breve resumo de dois processos históricos inter-relacionados, um demográfico e o outro relacionado com a industrialização capitalista. 203 Geografias do Corpo Um aspecto desta conjuntura foi o grande poder demográfico do século XVIII; um aumento na população flutuante (um dos objectos primários da disciplina é fixá-lo; é uma técnica anti-nómada78); uma mudança na escala quantitativa nos grupos a serem supervisionados ou manipulados (desde o início do século XVII até à aurora da Revolução Francesa, a população escolar aumentou rapidamente, tal como inquestionavelmente a população hospitalar; no final do século XVIII o exército em tempo de paz ultrapassava os 200 mil homens). O outro aspecto da conjuntura era o crescimento do aparelho de produção, o qual se tornava cada vez mais extenso e complexo; também se tornava cada vez mais caro tendo a sua rentabilidade que ser aumentada.79 É na ‘correlação’ destes dois processos que Foucault detecta o ímpeto para o desenvolvimento das disciplinas, as novas técnicas que mais obviamente se instalaram nas instituições de cárcere como a prisão, mas que também se difundiram pelos lugares emergentes de produção capitalista – as oficinas, as moagens e as fábricas – cuja raison d’être era juntar trabalhadores e atribuir-lhes diferentes tarefas (numa cadeia de produção) em diferentes micro-espaços (diferentes partes do mesmo edifício). As disciplinas foram chamadas à acção para ‘controlar todas as forças que são criadas da própria constituição de uma multiplicidade organizada’80, para converter a massa caótica de população amontoada em espaços restritos, em conjuntos de interacção eficiente, mutuamente benéficos e serenamente manobrados. Modelos ‘terror-íficos’ mais antigos e baseados na palavra e violência de um soberano eram completamente inapropriados para efectuar esta transformação, simplesmente porque em parte os números eram adversos. As congregações espessas de corpos humanos (quer fossem prisioneiros, trabalhadores ou ambos) permitiam demasiadas oportunidades para resistência, para o exercício de ‘contra-poder’81, e consequentemente para a fricção nos sistemas, o que faria os espaços inúteis, resultando em prisões ingovernáveis e em oficinas não lucrativas. A resposta foi dada por novos modelos de disciplinas de poder, na medida em que produziam os seus efeitos através de modos de extensão de controlo muito mais subtis, e assim ‘as disciplinas [tornaram-se] o conjunto de invenções 204 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço técnicas minuciosas que possibilitaram o aumento da dimensão útil das multiplicidades, diminuindo as inconveniências do poder que, de forma a torná-las úteis, deveria controlá-las’82. As questões de demografia e população são assim centrais para a narrativa de conjunto de Foucault, que alonga a sua análise de forma a tornar mais explícitas as ligações entre uma interpretação marxista quer do ‘economic take-off’ ocidental por volta de 1800 quer ‘das técnicas que tornaram possíveis a acumulação de capital’83. Resultando dos seus argumentos sobre as disciplinas que emergem da acumulação de população em certos espaços, prisões ou oficinas, Foucault elabora os seguintes comentários: De facto, os dois processos – a acumulação de homens [sic] e a acumulação de capital – não podem ser separados; não teria sido possível resolver o problema da acumulação de homens sem o crescimento de um aparelho de produção capaz de sustentá-los e de usá-los; Pelo contrário, as técnicas que fizeram a multiplicidade cumulativa de homens aceleraram utilmente a acumulação de capital. A um nível mais detalhado, as mutações tecnológicas do aparelho de produção, a divisão de trabalho e a elaboração de técnicas disciplinatórias sustentaram um conjunto de relações muito próximas.84 De forma a esclarecer a trajectória destes argumentos, Foucault coloca uma transferabilidade do início do século XIX, nas técnicas disciplinares novas e fortemente espacializadas de fábricas para prisões e vice-versa, algo que apelida de ‘amontoar de mecanismos disciplinares’85, tornando possível a difusão de um ‘panopticismo’ mais vasto que eventualmente começa a verter para fora de instituições de cárcere, para o controlo e instigação de maiores produtividades da população em geral (ver adiante). Em última análise, através deste pensamento, estes resultados estavam dependentes de geografias da população variáveis. Por um lado, existia uma crescente população associada às alterações demográficas da Europa do século XVII e início do século XIX, ligada também ao aumento de concentração de população em cidades e regiões particulares. Por outro lado, havia o aparecimento de espaços (prisões, oficinas) que necessariamente acumulavam população em espaços muito restri- 205 Geografias do Corpo tos, dando assim origem a novas técnicas – as disciplinas, exercícios em geografias micro-populacionais aplicadas – que apropriadamente tornaram esta aglomeração de ‘multiplicidades’, administrável, produtiva e lucrativas (quer através da reabilitação de malfeitores que podiam retornar à força de trabalho, quer através de um aumento da velocidade e da eficiência produtiva e consequentemente da ‘acumulação de capital’). Posfácio 1 Talvez deva agora revelar, à medida que caminho para uma conclusão, que provavelmente é menos o Foucault de Discipline and Punish e mais o Foucault de trabalhos mais tardios, notavelmente os seus três volumes de History of Sexuality86, que é potencialmente o de mais interesse para os geógrafos da população. Certamente, tal como o sociólogo Mitchell Dean87 explica quando discute o primeiro volume desta mencionada trilogia, ‘aquele volume delgado…contém sugestões, particularmente no capítulo final que introduz a noção de biopolítica, ou de um poder sobre a vida que se opera a um nível de inteiras populações globais, que Foucault sente a necessidade de dizer algo mais sobre as estratégias globais do Estado’. A atenção de Foucault direcciona-se desta forma para o domínio formal das intervenções do Estado na gestão da população, tal como expresso nas diversas políticas desenhadas para monitorizar, analisar, planear e regular os atributos da população, tais como níveis absolutos, taxas de natalidade e mortalidade, saúde e inteligência, e mesmo género, idade e composições étnicas. Consequentemente, o seu trabalho concerne directamente a preocupação já longa de muitos geógrafos da população acerca de um conjunto de políticas populacionais planeadas e executadas por governos nacionais e sub-nacionais, tal como consta por exemplo no último capítulo do texto Population Geography de How Jones88. No entanto, deve também ser acrescentado que Foucault não diz muito sobre estas políticas estatais públicas, tal como sobre a promoção do planeamento familiar, e a sua atenção é imediatamente captada pelas influências mais indirectas que são trazidas pelo Estado e seus funcionários, mas também por outras instituições poderosas 206 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço tais como a igreja, o direito e a ciência, que detêm um grau de autonomia do Estado em quase todas as partes do mundo. Desta forma, a sua atenção abarca uma diversidade de ‘discursos’, pelos quais quer dizer corpos organizados de conhecimento, deliberação e prescrição, produzidos por quem detém o poder, por eclesiásticos, advogados, cientistas e inúmeros outros ‘engenheiros sociais’89, que lidam com estas matérias, tais como condutas sexuais, saúde sexual, relações apropriadas entre homens, mulheres, rapazes e raparigas, e com a necessidade de vigilância destas premissas demográficas, quer directamente (pelo Estado, os seus recenseadores e a sua polícia), quer indirectamente (através de processos chave tais como a ‘confissão’ na igreja católica)90. Um outro termo frequentemente usado neste contexto é o de ‘biopoder’, e um argumento chave é o de que quando os princípios de biopoder são difundidos através de uma massa social, os indivíduos acabam por ser encorajados, amedrontados ou envergonhados em direcção a uma auto-determinação e auto-controlo das suas próprias actividades pertencentes à reprodução sexual, formação familiar e à manutenção de ‘austeridade’ corporal e saúde mental. Neste respeito Foucault91 escreve sobre a ‘governamentalidade’, e Joe Painter significantemente relaciona vários pensamentos numa passagem que também sublinha a pertinência de Foucault sobre a governabilidade para os geógrafos da população: Com a passagem para o que Foucault designa por governamentalidade, o soberano de um país começa por adquirir um interesse, e perseguir estratégias em relação às pessoas que vivem no território do Estado e aos seus assuntos, incluindo as actividades económicas, as normas sociais e por aí fora. Previamente, o que as pessoas faziam não tinha grande importância para o príncipe, excepto quando ameaçavam o Estado. A identificação das pessoas do Estado como uma população foi fundamental para esta mudança, o que foi percebido como o âmago preciso da arte de governar. Para Foucault, os discursos e práticas da governamentalidade surgem durante o século XVI, juntamente com os objectos de governo: a população de um dado território.92 Tal como acontece, um ou dois geógrafos da população e seus colegas, começaram a reconhecer as possibilidades de usar o Foucault 207 Geografias do Corpo mais tardio nos seus estudos, e recentemente, Carlonie Hoy tentou adoptar ‘as teorias de Foucault sobre a sexualidade e disciplina como uma ferramenta para a investigação da cultura sexual nos adolescentes da China e na provisão de programas educacionais’93. Ao mesmo tempo que nos recomenda cautela na transposição das formulações de Foucault de uma génese europeia para um contexto marcadamente não ocidental, Hoy escreve o seguinte: Um dos temas principais de Foucault foi a representação do sexo como um discurso que albergava o desenvolvimento do conceito de ‘população’. O Estado regulava a população, através da operação que Foucault designa por ‘biopoder’. Biopoder é definido como o poder da vida sobre as próprias populações, isto é, a governância da reprodução, da mortalidade e da morbilidade.94 No capítulo quatro do livro de Michael Brown Closet Space: Geographies of Metaphor from the Body to the Globe95, encontra-se um outro exemplo que é partilhado com Paul Boyle, onde se questiona até que ponto é que os segmentos das população nacional gays e lésbicos são tornados visíveis ou deixados encobertos nos casos dos censos americanos ou ingleses. Construído sobre a noção explicitamente foucauldiana análoga às já delineadas, Brown argumenta neste seu capítulo e de Boyle que ‘relacionamo-nos com as ideias de governamentalidade como uma forma através da qual a sexualidade pode ser entendida como um exercício de poder disciplinatório em exercícios estatísticos de definição nacional’96. É talvez prematuro sugerir que estas palavras reflectem uma Geografia da população foucauldiana, e devemos estar atentos acerca de um rótulo como este, mas os sinais mostram a possibilidade de um diálogo valioso entre o saber foucauldiano e a subdisciplina. O meu artigo procura aqui contribuir para um tal diálogo, apesar de o fazer através de um mecanismo específico, relacionando o livro de Kantrowitz sobre o director Ragen da penitenciária de Stateville com os argumentos de Foucault presentes em Discipline and Punish, revelando vigorosamente as dimensões espaciais nitidamente complementares nos dois trabalhos. O argumento de que as instituições penitenciárias constituem exercícios de geografia 208 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço mico-populacional aplicada, surge de uma leitura de Discipline and Punish que presta particular atenção aos interesses de Foucault nos minuciosos tempos e espaços de vida para as populações institucionalizadas. Mas esta leitura também toma seriamente em consideração o que Foucault expressa sobre as ligações estruturais mais amplas entre o crescimento da população, o aumento do capitalismo industrial e a necessidade de encontrar estratégias para gerir a acumulação de população que se congrega em cidades, fábricas e prisões na Europa do pós ancien regime. O meu argumento é o de que há aqui temas algo genéricos que podem adquirir uma importância de maior destaque na literatura da Geografia da população, ou que deveriam pelo menos ser reconhecidos como matéria designada significativamente como de ‘Geografia da população’ – uma Geografia da população real e terrena para além da academia – que na verdade tem sido fundamental para as fabricações da história e sociedade humana no ocidente (e talvez mesmo para além deste). Apesar da relevância da população, quer como objecto de conhecimento quer como alvo de intervenções, ser menos marcada em Discipline and Punish do que quer em The History of Sexuality, Vol.I97 ou no artigo da governamentalidade98, insisto mesmo assim em que os temas que começaram a ser explorados no primeiro texto, relacionados com a acumulação, inventariação e gestão de populações, são os que subsequentemente vêm à tona, outorgando ao Foucault mais tardio um potencial ainda maior para os geógrafos da população. Este artigo procurou aprofundar esta incipiente Geografia da população contida em Discipline and Punish, em parte ao contrapor este texto ao de Kantrowitz. Ao fazê-lo espero ter proporcionado uma exposição que tem os seus próprios méritos, especialmente ao reflectir sobre as sucessivas populações, corpos, instituições e espaço, estabelecendo ao mesmo tempo algumas fundações textuais para os geógrafos da população que podem querer analisar de forma mais sustentada o Foucault tardio. Posfácio 2 O primeiro posfácio foi escrito como parte do artigo original de 2001, mas quero aqui adicionar um segundo posfácio, ainda que 209 Geografias do Corpo muito breve. Felizmente, as previsões do meu posfácio revelaram-se bastante precisas, pois desde 2001 que os geógrafos da população começaram a prestar mais atenção a Foucault99, e de forma ainda mais significativa, começaram a apoiar-se fortemente no conjunto do seu corpus, não apenas em Discipline and Punish mas também nos seus trabalhos mais tardios, onde a biopolítica - e talvez de forma mais ampla, o biopoder – se torna um foco de atenção muito mais distinto. Neste contexto, a contribuição de Stephen Legg com o artigo ‘Foucault’s Population Geographies: Classifications, Biopolitics and Governmental Spaces’ em 2005, é exemplar. Profissionalmente, Stephen não se posiciona como um geógrafo da população, mas como ‘um geógrafo com um interesse constante na população’100, que abrange materiais que se estendem para além dos terrenos da Europa ocidental comummente pisados por Foucault, levando em consideração versões coloniais da geografia da população aplicada (micro e macro), impostas pelos imperialistas britânicos na Índia. Entretanto, um livro notável a este respeito é War, Violence and Population: Making the Body Count da autoria de James Tyner em 2009, que desenvolve um enquadramento foucauldiano bastante maleável para investigar as demasiadamente frequentes biopolíticas sangrentas da história mundial recente, colocando carne, sangue e ossos nas esqueléticas figuras, gráficos e mapas da Geografia da população convencional, mesmo que seja somente para mostrar como os corpos humanos, que compreendem os ‘átomos’ das populações, são desventrados desta carne, sangrados e os seus osso esmagados pelas práticas presentes da gestão da população no terreno. Ao prestar-se uma atenção sustentada às manipulações biopolíticas da morbidade, mortalidade, migração, matrimónio e muito mais para além de, e com referência às tragédias da violência de massa e genocídio no Vietname, Cambodja e Ruanda, uma vez mais abarcando para além da ‘zona de conforto’ empírica de Foucault, Tyner assegura de forma sustentada que os textos da Geografia da população nunca mais poderão ser os mesmos. Legg está mais preocupado que Tyner com os detalhes académicos de como Foucault chega aos seus argumentos sobre biopolítica e biopoder, revendo os vários estudos de Foucault soltamente cata- 210 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço logados como as suas fases ‘arqueológica’ e ‘genealógica’, e indiciando o que agora se torna ainda mais evidente com a publicação e tradução das aulas do Collège de France de Foucault da década de 1970101: nomeadamente, que está longe de ser fantasioso caracterizar Foucault como um ‘geógrafo da população’ fascinado pelas relações entre corpos, populações e espaço (este último percebido de forma diversa como ‘territórios [nacionais], distribuições de povoamentos e recursos dentro de limites territoriais [de um Estado-nação], os riscos e ‘metabolismos’ imprevisíveis de cidades comerciais e industriais, e outras formulações possíveis da economia, política e espaço social’). O que se torna claro da intervenção de Legg, bem como da de outros geógrafos – muitos dos quais igualmente não se identificam como geógrafos da população – tais como Louisa Cadman102, Stuart Elden103 e colaboradores do volume editado ‘Foucault and Geography’104, é que analisar para trás e para diante o corpus de Foucault revela uma orientação geral, se não desigual e quase nunca inteiramente coerente, para a forma como as vidas e mortes dos corpos humanos se tornam o centro de discursos e práticas de ‘especialistas’, desde a escala do corpo individual canalizado através de uma instituição de cárcere ou avisado por todos, desde o director ao padre e ao terapeuta, para se comportar, até à escala de corpos-emmultiplicidade, analisados, medidos, julgados, identificados como ‘recursos’ ou ‘esgotos’, etiquetados como ameaças ou oportunidades, e por aí fora, por Estados-nação, poderes imperiais ou mesmo outras variedades de autoridades governamentais (antigas, pré-modernas e modernas). Se existe uma forma de condensar as muitas investigações de Foucault, esta reside na maneira como este resolve as proposições biológicas da vida e da morte, de corpos cheios de vitalidade, tristemente decadentes ou prematuramente levados a um termo, e na exposição crítica das múltiplas formas como estas proposições têm sido constrangidamente manipuladas por ‘soberanos’ com o poder de deixar viver ou fazer morrer – não apenas os soberanos ‘terror-íficos’ do ancient regime europeu, mas também os que possuem autoridade democrática ou ditatorial, capitalista ou socialista, ideologicamente motivados ou cientificamente informados (frequentemente conjugados), prevalecendo desde tempos mais 211 Geografias do Corpo modernos até ao presente – e sempre, mesmo que em modos complicadamente diferentes, através da impressão (em todos os sentidos da palavra) sobre corpos acumulados em população através do espaço. Gostava de insistir que aqui reside um problema absolutamente central da e para a Geografia humana, problema este que transforma radicalmente, e em certa medida redimensiona o nosso interesse emergente sobre o corpo; e é um foco que exige colaboração entre as diferentes compleições do geógrafo – com certeza que o geógrafo social que estuda a micro-escala dos corpos em lugares quotidianos, mas também o geógrafo da população que estuda a massa de corpos nas populações nacionais – e com constante alusão às críticas de geógrafos políticos e económicos, atentos que são às espacialidades resultantes de assegurar que as acumulações humanas sejam produtivas e governáveis. Agradecimentos Os meus agradecimentos a João Sarmento, José Ramiro Pimenta e Ana Francisca de Azevedo por encorajarem-me a rever este artigo para que pudesse ser usado nesta colecção. Referências bibliográficas Atkinson, D. 2000. Nomadic strategies and colonial governance: domination and resistance in Cyrenaica, 1923-1932. 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Revi ligeiramente este artigo com vista à sua republicação, removendo alguns dos comentários originais introdutórios, abreviando algumas das discussões especialmente relacionadas com outros textos geográficos, adicionando algumas referências, e editando a extensão de algumas frases procurando maior claridade. Alterei ainda alguns cabeçalhos. 2 Kearns (1985). 3 Usando a sua base de dados de 3350 óbitos por cólera durante esta epidemia em 1849 em Londres, Kearns (1985: 22) afirmou que ‘é possível analisar os efeitos deste preconceito espacial que produziu um grande número de mortes em áreas com instituições onde não seria o caso’. Um grande número de mortes em instituições como hospitais e asilos foram inevitáveis devido às pessoas que se tornaram doentes fora destas instituições tendo sido transferidas para estas como parte de um esforço ‘público e privado de auxílio. Trinta e sete porcento destas mortes foram de pessoas já previamente internadas. 4 Ver por exemplo Boyle (2000); Findlay e Graham (1991); Graham e Boyle (2000), Lawson (2000), Ogden (1998), White e Jackson (1995) e Woods (1986). 5 CC: ix. 6 CC:1. 7 CC: xv. 8 CC: xiii. 9 CC: xiii. 10 CC: xiii. 11 CC: 193. 12 CC: 193. 13 CC: 191. 14 CC: 205. 15 CC: 35-75. 16 Os presos eram todos homens, sendo que nenhum dos guardas era mulher, e muito poucas mulheres alguma vez entraram em Stateville, excepto para visitas (CC: 2-4). O próprio Kantrowitz conclui que ‘não havia forma de admitir mulheres numa prisão de segurança máxima sem adicionar mais uma complicação ao caldeirão de emoções já existente’ (CC: 3). 17 CC: xv. 18 CC: 47. 19 CC: xv e 169. 20 ‘A nossa prisão, a prisão de Stateville, era a maior instituição (quase 3500 condenados) no complexo penitenciário de Joliet-Stateville, que também incluia a mais pequena e antiga prisão Joliet, um centro de recepção, e uma quinta com 810 hectares. Este complexo alojava quase 5000 presos (CC: xiv). 21 CC: 51; ver figura 1. 22 CC: 61. 23 CC: 60. 24 CC: 58; ver figura 2. 25 CC: 62. 26 CC: 62-63. 27 CC: 46. 28 CC: 46-47. 29 CC: 49. 30 CC: 52; ver Figura 3. 31 CC: 67. 218 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço CC: 65. 33 CC: 93. 34 CC: 93. 35 CC: 55. 36 CC: 66. 37 CC: 66. 38 CC: 110168. 39 CC: 76-109. 40 Ver quadros em CC: 104 e 109. 41 CC: 96. 42 CC: 96. 43 CC: 69. 44 CC: 172-182. 45 CC: 69-72. 46 CC: 69. 47 CC: 69. 48 CC: 70. 49 CC: 69. 50 CC: 71. 51 CC: 71. 52 Por exemplo Baer 2006, Dirsuweit 1999, Drohan 1998 e 2000, Ferrant 1997, Marshall 1997a e 1997b, Ogborn 1995, Pallot 2005, 2007 e 2008, Valentine e Longstaff 1998, van Hoven 2006 e 2007. 53 Sack 1986: 181 e Fig.6.7: 191. A ligação entre a prisão moderna e a fábrica capitalista como regimes semelhantes de acumulação e gestão de população, ambas com origens interligadas no desenrolar da história europeia, é explorada por vários comentadores: ver, por exemplo, Mellosi e Pavarini (1981). Uma base foucauldiana para pensar nos espaços de fábricas tem sido adoptada por geógrafos históricos como Stein (1995) e Wainwright (2000 e 2005). 54 Sack op. cit.: 1. 55 Ibid.: 181. 56 Ibid.: 181-183. 57 Ibid.: 182-188. 58 Philo e Parr (2000). 59 Ver também Driver (1990, 1993 e 1994), Philo (1989a) e Ploszajska (1994). 60 Driver (1985 e 1992), Hannah (1992, 1997a e 1997b), Koskela (2000) e Sharp et al (2000). 61 DP: 215. 62 DP: 115. 63 Vários outros autores fornecem um paralelo, se bem que através de levantamentos empíricos mais sistemáticos, das mudanças na organização, arquitectura e geografias (breves) destas instituições, e é apropriado mencionar a contribuição exemplar das ideias de Thomas Markus (1982, também Markus 1993). Em Philo (1999) apresento uma articulação sustentada com algumas das ideias de Markus sobre o ordenamento geométrico destes espaços institucionais, tais como moldados pelas ideologias do Iluminismo. 64 DP: 123-126, ver também Evans (1982) e Teeters (1935). 65 DP: 200-209. Deve ser sublinhado que o Panóptico não é somente a figura arquitectónica que aparece em Discipline and Punish, e que na verdade Foucault coloca maior relevo através do exemplo de uma instituição aparentemente não panóptica, o reformatório Mettray em França, cuja abertura em 1840 é por ele vista como o momento em que um ‘panopticismo’ mais vasto chegou totalmente ao panorama europeu (DP: 293). Mettray não funcionava através de assegurar a presença e vigilância imediatamente visível dos presos, mas sobretudo através de uma mais imperceptível rede de obrigações, expectativas, imperativos e humilhações nas quais os presos juvenis e as suas acções estavam inevitavelmente embrenhados. Os arranjos espaciais que permitiram a Mettray ‘fazer o seu trabalho’ eram no entanto tão importantes como aqueles que subjaziam ao Panóptico (Driver 1990). 66 Ver também Bender (1987). 67 CC: 58. 68 DP: 141. 69 DP: 141. 70 DP: 141. 71 DP: 143. 72 DP: 143. 73 DP: 143. 74 DP: 143. 75 DP: 144. 76 DP: 297. 77 DP: 218. 78 A sugestão de que os regimes disciplinatórios são essencialmente ‘anti-nómadas’ encontra eco em muita teorização recente sobre os desafios 32 219 Geografias do Corpo que o ‘nomadismo’ coloca, quer teórica quer empiricamente, às ordens intelectuais e práticas modernas, tal como discutido na literatura geográfica de forma mais notável por Cresswell (1996), Halfacree (1996) e Sibley (1981 e 1995). É intrigante ver este argumento em Foucault (1977), atribuída que é especialmente a centralidade do ‘pensamento nómada’ ou ‘ciência nómada’ ao pós-estruturalismo de Deleuze, um outro intelectual francês claramente inspirado pela ‘nova cartografia’ de Foucault em Discipline and Punish (ver Deleuze 1986). Ver também a discussão na literatura geográfica por parte de Atkinson (2000), Cresswell (1997) e Doel (1996 e 1999). 79 DP: 218. 80 DP: 219. 81 DP: 219. 82 DP: 220. 83 DP: 220. 84 DP: 221. Sintomaticamente, a última frase desta passagem é seguida por uma referência explícita a Marx - ‘(cf. Marx, Capital, vol. I, capítulo XIII)’ (DP: 221) – sublinhando assim a relevância para Foucault de uma mais vasta análise conceptual Marxista . É possível identificar uma ‘Geografia da população marxista que tenta estender a análise de Marx relacionando a classe económica a questões sobre população, controlo de recursos e à necessidade dos trabalhadores se deslocarem de forma a seguirem as instruções do capital (Flowerdew 2000). Huw Jones (1990: 20-21) desenvolve o modo como o conceito de ‘modos de produção’ marxista auxilia os geógrafos da população na explicação dos aspectos da ‘transição demográfica’ (destacando o argumento de Marx de que ‘qualquer modo especial e histórico de produção tem as suas próprias leis especiais de população). Jones (1986 e 1990: capítulo 9) também organiza manifestamente um ‘argumento marxista determinístico’ para explicar as fases na ‘transição da mobilidade’, forjando o que designa de ‘abordagem relações-de-produção-sociais’ para o estudo dos padrões dinâmicos de migração na Escócia desde o século XVII até ao final do século XX. Deste modo, associa a chegada do capitalismo industrial ao aumento de correntes de população migratória no crescimento dos centros urbanos do Central Belt (especialmente Glasgow), todos eles ligados às relações sociais (de classe) em mudança articuladas em torno de fábricas e residências. Rosa Ester Rossini (1984) é ainda mais explícita no enquadramento marxista que usa para teorizar ‘espaço e população’, partindo de Marx e de marxistas latino americanos para especificar a medida em que a produção capitalista ‘necessita...de uma massa de trabalhadores trabalhando e cooperando’ (Rossini 1984: 41). Ela supõe que ‘a concentração de capital’ necessita ‘de uma subsequente concentração espacial de actividades’, ao mesmo tempo que invoca quer novas ‘divisões espaciais de trabalho’ quer novas formas de integrar o processo de trabalho dentro de determinadas ‘unidades espaciais’ de produção (soluções técnicas recentes desenhadas para aumentar a produtividade de trabalhadores 220 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço massificados nestas ‘unidades espaciais’) (Rossini 1984: 38-39). Os textos destes ‘geógrafos da população marxistas’ ligam-se assim fortemente com o teor marxista de certas partes da narrativa de Foucault em Discipline and Punish. No contexto mais vasto da literatura da geografia académica, vale a pena notar que autores como David Harvey (1974) desde cedo marcaram os parâmetros de uma pesquisa inspirada em Marx e nas relações entre população, ambiente e recursos. 85 DP: 211-212. 86 Foucault (1979a, 1985 e 1986). 87 Dean (1994: 175). 88 Jones (1990). Ver também Fuchs (1984) e Thomas (1986). 89 Philo (1989b). 90 A geógrafa Lynn Blake (1999) completou um estudo persuasivo que inclui seriamente argumentos foucauldianos sobre o ‘poder pastoral’ exercido por missionários Oblatos que tentam moldar as subjectividades (e as espiritualidades) de povos ‘nativos’ no Canadá. 91 Especialmente Foucault (1979b).. Este ensaio, originalmente uma palestra proferida em 1978 e primeiramente publicada em inglês em 1979 (Foucault 1979b) e novamente em 1991 (Foucault 1991), prossegue a preposição de que ‘é necessário analisar as séries: segurança, população, governo’ (Foucault 1991: 87). De forma mais específica, Foucault discute como concepções e práticas mais antigas de governo, delineadas nas dinâmicas da família (o pai como soberano), foram gradualmente suplantadas no final do século XVIII por novas concepções e práticas centradas no ‘problema de população’ (Foucault 1991: 99). Esta não é a ocasião para rever em detalhe o que Foucault reconhece terem sido as causas e consequências desta transição onde ‘a população aparece acima de tudo como o último objectivo de governo’ (Foucault 1991: 100), mas Foucault desenvolve de forma brilhante a sua relação com antigas tradições ‘pastorais’ cristãs – destacando sempre o papel contínuo da organização cristã no governo das populações europeias – bem como identificando como ‘um regime…controlado por [novas] técnicas de governo direcciona a atenção para o tema da população e…do nascimento da economia política’ (Foucault 1991: 101). Estas são seguramente matérias que devem entusiasmar a atenção dos geógrafos da população. Ver também Sharp et al (2000: 16-19) e Ogborn (1998: 48). 92 Painter (1995: 38). 93 Hoy (2000:8). Curiosamente, Caroline How é influenciada no seu trabalho pela erudição de Michael Dutton (1992), que está preparado para usar as ideias de Foucault sobre a população, governação e modernidade europeia como uma lente contra a qual se estudam as mudanças nas práticas chinesas de registo, policiamento e punição, incluindo os regimes penais. O interesse de Dutton nestas matérias, enquadradas em parte no pensamento quer do Foucault intermédio quer do Foucault ‘tardio’ e perpassado por referências de tratamentos quer disciplinatórios quer governamentais a populações (chinesas), destaca-se 221 Geografias do Corpo como mais um comentário agudo à variedade de ligações relevantes a este artigo. 94 Hoy (2000: 9). 95 Brown (2000). 96 Brown op.cit.: 22. 97 Foucault (1979a). 98 Foucault (1979b). 99 Por exemplo Findlay (2003), especialmente pp.180-184. 100 Legg (2005: 138). Ver também Legg (2007a e 2007b). 101 Especialmente Foucault (2003, 2007 e 2008). 102 Cadman (2009). 103 Elden (2007a e 2007b). 104 Crampton e Elden (2007). Notas tradução Artigo original em língua inglesa. Tradução por João Sarmento em 2009, com revisão do autor. i Actuary é o trabalho desempenhado por uma pessoa que calcula riscos, prémios, esperanças de vida, etc. de forma estatística, geralmente para fins de seguros. 222 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço                                Figura 1 – ‘Estruturas e esquemas da Penitenciária de Stateville’. Fonte: Kantrowitz 1996: Figura 3.2: 51 (redesenhado para a versão portuguesa). 223 Geografias do Corpo Figura 2 – ‘Diagrama de uma cela em círculo, cerca de 250 celas’. Fonte: Kantrowitz 1996: Figura 4.1: 57 (redesenhado para a versão portuguesa). 224 População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço                                  Figura 3 – ‘Principais movimentos de prisioneiros durante o dia por direcção especial, para as celas B, E e F’. Fonte: Kantrowitz 1996: Figura 3.3: 52 (redesenhado para a versão portuguesa). 225 O corpo, lugar do tempo José R amiro Pimenta Um ‘ponto de vista geográfico’ tem vindo a firmar-se no estudo das relações e práticas sociais. São tomados em conta conceitos associados à Geografia, como lugar, espaço ou paisagem, e o tipo de efeitos que produzem na estruturação, manutenção e reprodução das relações sociais’.1 A área da história e filosofia da Ciência não escapou a esta voga e podem ver-se já em inúmeros trabalhos exemplos da consideração dos efeitos geográficos na história da produção e difusão do conhecimento científico. É porém necessário dizer que não pretendemos reduzir o discurso geográfico ao género científico produzido especialmente pela disciplina da Geografia. A inclusão de propostas ‘geográficas’ em ciência social é tão mais importante quanto a tradição do pensamento moderno ocidental sempre privilegiou o tempo em detrimento do espaço como factor de evolução dos fenómenos sociais.2 Não esquecendo nunca esta distinção entre ‘geografia’ como discurso geral e a prática específica da disciplina da Geografia, e escolhendo o primeiro deles como o mais importante na caracterização de uma abordagem que incorpora os conceitos de lugar, de espaço e de paisagem na análise da história da Ciência, creio que podemos afirmar que estamos em presença de uma ‘inflexão geográfica’ nas Ciências Sociais. É neste contexto que procederemos a uma breve caracterização do ‘lugar do corpo’ na teoria histórica de Michel Foucault (1926-1984) e Edward Said (1935-2003), dela pretendendo recolher, por fim, uma invariante ontológica funda sob a aparente diversidade epistemológica dos dois autores. Geografias do Corpo Tempo Dos trabalhos em que se pode constatar uma incorporação do espaço como factor explicativo da estrutura social do poder, os de Foucault não são decerto os menos importantes. Neles podemos ver o modo como o conceito de espaço e a consideração dos seus efeitos são tomados em consideração na análise histórica da sociedade.3 Foucault, ao contrário da maioria dos autores modernos, elege como ‘trope’ narrativo não a continuidade, a ‘história’ do conhecimento e do saber, mas, ao contrário, os momentos e os lugares de crise e de descontinuidade, os interfaces de conflito e repressão, configurando antes uma ‘arqueologia do saber’. Nesse contexto, parte do seu esforço interpretativo tem como objectivo demonstrar que a visão continuista e presentista da evolução do pensamento ocidental da Modernidade é mais uma ficção do que um facto, estando permeado de constantes relações de contingência, que só retrospectivamente se apresentam como uma unidade evolutiva. Ora, uma manifestação específica e esperada dessa relação de contingência é o carácter ‘situado’ do conhecimento, isto é, intimamente entretecido com as relações sociais de conflito e repressão que o tornam eficaz, ou pelo menos viável. É proverbial referir a noção que detém Foucault de que o ‘poder está inscrito no espaço, não no tempo’.4 Justamente porque para Foucault o carácter constitutivo do lugar e do espaço na definição e manutenção da relação de poder é incontornável é que quando apresenta exemplarmente a sua história fá-lo a partir de ‘espaços de poder’, lugares em que se organiza a concretização explícita e brutal do poder do conhecimento e do reconhecimento do poder, a prisão, o hospício, etc.5 Mas existe uma outra dimensão muito importante na caracterização que Foucault faz destes espaços, e que passa pela constatação da sua qualidade ‘heterogénea’ e ‘irredutível’. Porque estão imersos em relações sociais conflituantes e repressoras, e eventualmente com estratégias de des-identificação do sujeito humano, que tornam por isso mesmo a identidade, individual ou colectiva, numa luta constante contra a alienação, são espaços que escapam à visão ‘corológica’ clássica 228 O corpo, lugar do tempo que supunha possível a ‘soma’, a contiguidade dos elementos neutros como definidora de regiões mais vastas. Não é pois de estranhar que Foucault os nomeie como ‘espaços de dispersão’, e os conceptualize como locais de onde ‘emanam discursos multiformes’. Nestes locais não é mais possível estabelecer o tipo de distinção analítica e dicotómica que o modo corográfico e estritamente geográfico, próprio da ciência geográfica moderna, com origem na ciência geográfica dos gregos e que se manteve, sob diversas formas até à fase histórica actual da disciplina que facilitadamente se veio a chamar pós-moderna. Neles não existem regras objectivas de definição da verdade, nem modos universais de a verificar. São locais em que co-habitam ou se opõem formulações múltiplas de verdade e de identidade, e em que estas se verificam e se aceitam sempre dentro de uma estrutura de poder desigual que a umas dá visibilidade e operatividade e a outras torna invisíveis e ineficazes.6 Alguns autores, porém, não deixaram de detectar alguma incoerência entre a descrição ‘opaca’ e absolutamente dependente das relações de poder dos lugares de Foucault e a pretensão de cientificamente os anatomizar para expor as suas regras de funcionamento. A serem lugares de imersão absoluta para quem os vivencia, não se vê como podem permitir que se exponham a um cientista social. Especificamente, alguma crítica incide no carácter totalizante das propostas de Foucault que, tendo origem em exemplos ‘locais’, são erigidos posteriormente como manifestações ‘universais’ das relações entre o poder e o conhecimento.7 Mas para além das críticas mencionadas, é imensa a influência de Foucault e do pós-estruturalismo na incorporação dos efeitos do ‘lugar’ nas Ciências Sociais contemporâneas. A importância que a facticidade irresolúvel do concreto detém na metafísica de Foucault fica bem expressa na angústia existencial de impossibilidade de ‘firmação’ de um ponto absoluto de referência quando se concentra na prática específica de denúncia histórica do carácter arbitrário do ponto de vista dominante que justamente a História nos apresenta como o único dotado de respeitabilidade.8 229 Geografias do Corpo As dimensões presentes na obra de Foucault são, naturalmente, imensas, quer em substância quer nos efeitos produzidos em obras de outros autores e, inclusivamente, na criação de uma sensibilidade geral ‘foucaultiana’ da epistemologia histórica. O nosso propósito é apresentar especificamente o modo como o pensamento foucaultiano, sobretudo a organização da sua crítica histórica, admite, se não mesmo exige, a intervenção do lugar como tema organizador dessa mesma história, mais do que apenas o sítio físico em que ela se desenrola. Os efeitos constitutivos do lugar no desenvolvimento e representação de um evento histórico e da sua sucessão cronológica não é um atributo que esteja apenas presente em Foucault, sendo, como veremos, uma característica cada vez mais comum em muitos autores que conjuntamente desenham uma crítica consistente do projecto político-intelectual da Modernidade. O que em Foucault talvez seja mais específico é a atenção que dedica aos mecanismos ‘genealógicos’ e ‘arqueológicos’ de definição de uma determinada ‘verdade histórica’. É em si mesmo curioso, e extremamente significativo, que Foucault utilize dois nomes de ramos do ‘saber histórico’, a Arqueologia e a Genealogia, para definir a própria História. Contudo, a simples ilustração semântica desses nomes devia alertar o historiador de ciência das razões íntimas que levam o autor a justamente não utilizar o termo ‘História’. O que têm em comum (ainda com um quê de opositivo), neste contexto, estas duas práticas do conhecimento histórico, é o facto de, de certo modo a contrario, ajudar a descrever a miragem da História como disciplina objectiva, neutral e cumulativa do conhecimento do Passado. A Arqueologia, exibe-se, semanticamente, não só como a ‘reconstrução’ do todo a partir de ‘restos miúdos e incompletos’,9 mas também do modo como certos elementos materiais, escolhidos por razões saturadas de ideologia, passam a descrever, através de uma formidável sinédoque, ‘horizontes’ culturais, cada um deles intimamente coerente dentro dos seus próprios limites, mas liminarmente distinto dos que o precedem e prosseguem, servindo, neste sentido, de salvaguarda aos pressupostos rankianos da História oitocentista 230 O corpo, lugar do tempo que acreditava tudo poder conhecer através dos documentos. A ‘arqueologia’ foucaultiana, aponta, todavia, para o carácter ‘incompleto’, ‘redutor’ e ‘hiperbólico’, de qualquer forma de conhecimento.10 A Genealogia, pelo seu lado, impõe, também semanticamente, não só uma ideia de ‘nobilitação’ gradual do Passado, de acordo com a sua antiguidade e a ‘legitimação’ geracional da herança de um penhor do passado, mas também o da pesquisa paciente de seres humanos concretos considerados nas suas concretas condições de realidade e existência. A este nível, creio que a crítica de Foucault se dirige resolutamente para todos os mecanismos, explícitos e implícitos, conscientes e inconscientes, por um lado de atribuição de um ‘sentido histórico’ entre eventos cuja única relação íntima foi o de serem contínuos no tempo e, por outro lado, à ocultação ‘ideológica’ de todos os elementos discrepantes na organização presentista desses mesmos eventos históricos.11 Poderia pensar-se que esta abordagem da teoria foucaultiana consistiria apenas na representação da sua teoria epistemológica segundo uma nomenclatura espacial e que, desse modo, a sua ‘geografia’ não passava de um artifício de tradução. Queremos afirmar que não é esse o caso, e que o carácter constitutivo do espaço e as práticas localizadas são, em si próprias, uma expressão da fragmentação histórica que a sua epistemologia contempla.12 Sendo um investigador o responsável único pela informação disponibilizada, é o lugar concreto de fragmentação histórica que passa a ser reelaborado segundo uma ‘genealogia’ distendida pelo autor. Do ponto de vista estritamente teórico, a leitura da obra de Foucault revela que é sua preocupação constante denunciar todas as formas ‘totalitárias’ de situar e, sobretudo, narrar a racionalidade, dando-lhe, portanto, uma forma de história da racionalidade. É a este nível específico que a facticidade ‘geográfica’ investe contra as formas narrativas de ‘história total’, uma vez que permite a desmistificação da sua expressão cronológica comum. Todas as grandes narrativas feitas sobre o tecido histórico não resistem à crítica indutiva da geografia da sua própria dispersão, que revela, quando exercida, que afinal a ideologia uniu pontos bem distantes e cerziu de ‘significado’ 231 Geografias do Corpo o que previamente não eram senão vastas regiões de inexpressividade histórica. A inclusão de um ‘ponto-de-vista geográfico’ na análise histórica traz para o centro das preocupações epistemológicas sobre a narrativa do Passado, uma objecção em atribuir um lugar determinado, e quase sempre privilegiado, ao tipo de elementos de conceptualização a priori cuja contribuição real para o concreto devir da história é quase insignificante. Quando governada excessivamente por formas de racionalidade apriorísticas, i.e., por grelhas de inteligibilidade prévias que obrigam, com ‘mão-de-ferro’, a situar espácio-temporalmente os eventos discretos, a História torna-se total.13 Duas ordens de conceptualização são possíveis a partir desta crítica da história total, por parte de Foucault. São analiticamente diferenciadas mas representam a expressão da mesma ontologia nos limites extremos do tempo e do espaço. O que se pretende, quer no contexto teórico da crítica epistemológica de Foucault, quer na aplicação concreta da leitura da história da Ciência e das geografias imaginárias do Passado, é fundamentalmente compreender o efeito ideológico concreto da história total no arranjo espácio-temporal da narrativa e do corpo. Em relação ao ‘tempo’, ver-se-á como Foucault essencialmente se contrapõe à tendência, dominante em quase todas as formas historiográficas (ou estilos de apresentação narrativa do Tempo), de esquartejar o fio contínuo da temporalidade em grande ‘unidades’ dotadas de uma misterioso auto-reconhecimento, e, neste domínio, a sua estratégia ‘desconstrutiva’ será preferentemente a de demonstrar a igual validade metodológica de ‘qualquer’ divisão cronológica considerada como entidade em si-mesma, afinal, destacar o carácter ‘tautológico’ da justificação mútua entre ‘método’ e ‘lei’.14 No que diz respeito ao ‘espaço’, o historiador-Foucault será justamente mais ‘geógrafo’, ao apresentar aos seus colegas de ofício a realidade geograficamente discreta em que (não) se baseia essa mesma suposta identidade cronológica absoluta do todo o período histórico. O Espaço representa, neste sentido, o lugar preferencial de ‘infirmação’ das proposições principais sobre o Tempo. 232 O corpo, lugar do tempo Em qualquer das abordagens, o conteúdo estratégico da filosofia da história do corpo perfilhada por Foucault é o de questionar a essência do conceito de ‘continuidade’, fulcral em todas as formas de historiografia que o antecederam, sobretudo as que representam a expressão da mundividência que do Tempo detém a Modernidade.15 A ‘continuidade’ que os historiadores atribuem a um conjunto de factos discretos, associados numa certo arranjo espácio-temporal, arranjos que tomam a forma de ‘unidades’ histórico-geográficas concretas (‘Idade Moderna’, ‘Idade Contemporânea’, ‘Pós-Modernidade’16), contextos poderosamente deformadores, e a partir dos quais passa a ser enunciada qualquer proposição sobre o mesmo passado, além de constituírem-se obrigatoriamente através de ‘pontos de contacto’ privilegiados com as ‘unidades’ que os antecedem e que lhes seguem no fio contínuo do Tempo.17 Uma das características mais marcantes da estratégia ‘desconstrutivista’ de Foucault é que não procede apenas à tentativa de demolição da falsa coesão interna dessa mesma história total, mas propõe a sua substituição por modalidades alternativas de compreensão histórica. Ao nível puramente lógico, a ‘racionalidade histórica’ alternativa de Foucault passa a ‘subir um nível’ em relação à mesma lógica que estabelece a coesão entre as grandes unidades ‘histórico-geográficas’ das formas historiográficas da Modernidade e, pelo mesmo método, a destacar os projectos globais político-intelectuais que voluntariamente organizam a forma narrativa da História de modo a dar-lhe o ‘sentido histórico’ com que são normalmente apresentadas.18 É conhecida a origem ‘estética’ rousseliana19 que despoletou a analogia espacialmente fragmentária da ‘paisagem sem perspectiva oficial’ que Foucault replica na sua ‘história geral’ – uma paisagem em que os objectos não se determinam pela sua posição, mas pela simples afirmação da sua existência.20 Tudo tem a mesma importância, determinada apenas pelo ‘lugar’ que ocupa na tela respectiva. Nenhuma regra específica de superioridade pode levar a que uma determinada linha de perspectiva seja preferida sobre as outras. De um ‘ponto-de-vista’ estabelece-se uma ‘paisagem’, um ‘panorama’, ditado unicamente pela posição em que decidimos ‘fixar os pés’ do nosso corpo perceptor. Tal como no original desta metáfora, se nos 233 Geografias do Corpo movemos de um lado para o outro, de cima para baixo, i.e., se modificamos as condições geométricas da relação de perspectiva entre o observador e o seu objecto-total, uma nova ‘paisagem’ surgirá: elementos até então imperceptíveis ganham relevo inesperado, outros que eram centrais na primeira observação revelam-se afinal bem menos do que pensávamos; para Foucault, cada uma destas vistas é apenas uma visão possível do passado e, por uma razão propriamente política, a tradição ‘pictórica’ subsequente vem a ‘fixar’ um desses múltiplos pontos do observador como sendo o dotado de maior capacidade heurística, e assim a determinar todos os códigos de apreensão de novas paisagens sob as regras monótonas da primeira vista. Este é modo como o ‘tempo se dilui no espaço’21 e a razão por que Foucault pode ser reconhecido como um interlocutor válido na afirmação de um ponto de vista geográfico nas Ciências Sociais e na Epistemologia em geral. A geografia definida ou definitiva da paisagem concreta do Passado tem de ser considerada na sua inteira existência, sem criação de linhas preferenciais de análise, ou recolha sintomática de elementos que permitam a criação mais ou menos arbitrária de teleologias históricas. A descrição ‘geográfica’ (‘cénica’) do Passado assim constituída é, ao mesmo tempo, a garantia de inquiribilidade plural da contextura empírica dos documentos, e nivelação ética da análise de todos os contributos políticos e intelectuais que determinam a sua forma, incluindo nestes a do próprio observador.22 A simples ‘co-presença’ dos elementos pertencentes a uma mesma unidade espácio-temporal funciona em oposição à estética da ‘metamorfose’ histórica que, nas diversas historiografias da Modernidade (e dando um peso diferencial, conforme o projecto político de que partiam, às situações de continuidade ou ruptura), dispunham numa relação essencializada os elementos constituintes da mesma ‘unidade histórico-geográfica’ da História, ou entre unidades cronologicamente sequenciais. Mas existe um nível existencial potencialmente mais perturbador que anima a filosofia da História de Foucault. A noção de que a geografia ‘cénica’ dispõe os elementos documentais do Passado a igual 234 O corpo, lugar do tempo distância do olhar do observador, e de que a partir deles se podem derivar múltiplas leituras do passado, não impede, ainda assim, que se participe de um estranho sentimento de ‘superficialidade’, de que se poderiam desenvolver linhas contínuas de um texto infindo, em que as células espaciais que a exigência da perspectiva faz desenhar sobre a tela possam ser diminuídas até eventos e características minúsculos (esta passagem de Foucault faz-me invariavelmente pensar na deriva especialista das maior parte das disciplinas científicas), em que só os cultores especializados das historiografias do tipo ‘moderno’ podem encontrar uma eficiente valorização e um prazer epistemológico em tomar em consideração. A partir do momento em que um investigador tenha passado por esta espécie de ‘conversão foucaultiana’ passa a compreender que por trás de uma paisagem, por muito recheada de elementos concretos que a constituam, habita inevitavelmente o silêncio de uma história irrecuperável e de um corpo desfigurado pela tortura.23 Lugar Edward Said, historiador de cultura palestiniano-americano, exibe nos seus escritos uma pungente afirmação do carácter significante do lugar na produção do conhecimento científico. No cerne da sua análise pode destacar-se o conceito de ‘travelling theory’, expressão de que não se encontra uma convincente tradução em português, mas que à falta de melhor se poderia expressar por ‘teoria viajante’, para com isso destacar as situações complementares de ser o conhecimento científico uma forma de difusão e de nele deterem uma importância especial, sobretudo no que diz respeito à época moderna, as viagens dos cientistas no contexto do imperialismo.24 O que caracteriza em primeiro lugar essas teorias? O facto de ‘viajarem’: ‘from person to person, from situation to situation, from one period to another (…)’. O primeiro dos sentidos que aqui pretendemos destacar é esta característica do conhecimento científico da Modernidade – a ‘extensão’, isto é, a replicação de um determinado tipo de conhecimento em situações diversas daquela em que originalmente foi criado, processo que vimos já antes, na caracterização do pensamento de Foucault, não ser exclusivo da crítica saidiana.25 235 Geografias do Corpo Porém, para Said esta replicação nunca é automática, isto é, o processo da sua circulação é constitutivo da nova formulação do conhecimento, o encontro com realidades diferentes daquelas de que este deriva originalmente, faz com que os produtos finais sejam diferentes e, sobretudo, nunca em nenhum momento e em nenhuma instância, que não seja a exercida pela formulação violenta da relação imperialista, existe um referencial comum da sua objectivação.26 A conclusão fulcral que Said pretende retirar é a de que todas as formulações do conhecimento, as teorias científicas, estão saturadas do espaço-tempo de que emergem.27 A concepção de Said tem, porém, uma outra consequência. Não se trata apenas de que as teorias detenham as marcas têmporo-espaciais da sua produção, mas também a de que a sua replicação e a sua apropriação se farão obrigatoriamente em novos ‘lugares-tempos’ com uma identidade própria. E talvez com sofrimento, que tem origem na irreversibilidade prática do tempo cultural. A este respeito a própria biografia de Said aponta para a relação estabelecida conceptualmente nas proposições centrais da sua teoria social. Como veremos, não se trata apenas de trazer para a frente das suas preocupações teóricas a condição de exilado da sua própria terra, conceito de violência espacial plenamente presente em Foucault, e, de um modo geral, em toda a tradição marxista anterior, mas do facto de a relação ‘imperial’ dar origem a uma identidade partilhada, e algo fragmentada, na qual convivem sentimentos contraditórios de orgulho e desprezo pela própria geografia imaginária a que se pertence. O ‘orientalismo’ de Said é mais do que a crítica do Orientalismo enquanto prática académica ocidental – é (e, na nossa opinião, sobretudo) uma actividade mais ou menos consciente de depuração ética do Ocidentalismo dos orientais. É este espaço especialmente conflitual que se desenha nos interstícios da relação imperial que permite uma abordagem às formas de irredutibilidade da identidade partilhada.28 A actividade científica de Edward Said teve como objecto principal de análise as relações culturais e científicas que o imperialismo da época moderna promoveu. Nas suas próprias palavras, propõe-se levar a cabo uma ‘expedição geográfica à História’.29 236 O corpo, lugar do tempo Inicialmente, a ‘expedição’ de Said centrou-se na região (e, dado o contexto, usa-se a palavra ‘região’ como todas as cautelas geográficas) de onde é originário, com a intenção de demonstrar como o conhecimento ocidental produziu uma entidade chamada precisamente ‘Oriente’. Já fizemos referência que Said hesita constantemente em reforçar qualquer um dos pólos da constituição da sua identidade, a origem ‘palestiniana’ e o percurso ‘anglo-saxónico’, mesmo ainda na Palestina ou em outros países de matriz cultural semelhante (árabe e muçulmana) como o Egipto. A produção do conceito, ou conjunto estruturado de vários níveis de conceptualização que é o ‘Oriente’, é levada a cabo através de um conjunto entretecido de factos e ficções que concorrem para a representação de um alter ego em oposição a outra conjugação de ficção e factos chamada ‘Ocidente’ – uma oposição de representações. Esta oposição funciona através de uma estrutura dissemelhante em termos de afirmação política da violência, ainda que antecipe as condições eficientes da sua própria superação. A produção do modo especular de criação da identidade (oposta e partilhada) foi, segundo Said, levado a cabo por uma sedimentação progressiva, por uma acumulação de informação sobre lugares que foram previamente ‘inventados’, mas que a partir do momento em que foram representados como reais, se tornaram lugares de investigação científica regular e sistemática, em que inúmeras disciplinas académicas tiveram um papel activo, e entre as quais não foi menor o levado a cabo pela Geografia. Daqui deriva a importância do segundo sentido que pretendíamos se deduzisse da expressão ‘teoria viajante’, isto é, a importância que irão deter, neste processo de representação, as narrativas dos ocidentais viajantes que procedem à observação no próprio local de recolha de informação. Porém, esta recolha não está confinada ao relato ficcional dos romancistas e libretistas de ópera; talvez não seja até a este nível que a relação estruturada de criação contínua de uma identidade ganhe forma duradoura. Da relação, ambígua e mutuamente reforçadora, do facto e da ficção, originar-se-á uma definição cada vez mais rigorosa, ‘científica’, da recolha de informação. E, insensivelmente, o que começou por ser uma literatura de viagem transformar-se-á em conhecimento científico do Outro. É através das disciplinas ditas ‘científicas’ 237 Geografias do Corpo que a arbitrariedade da construção identitária do ‘Oriente’ é mais facilmente ‘naturalizada’, não só pelo carácter neutro, objectivo e cumulativo que se supõe subjazer à sua actividade mas, sobretudo, porque é da sua íntima natureza (ao contrário de outras formas da criatividade humana) não se permitir uma indagação constante dos pressupostos metafísicos da sua constituição. No seu trabalho seminal de 1978 Said desdobra a análise histórica do Oriente numa ontologia tripla que relaciona poder, conhecimento e geografia.30 Nesta enunciação dos pressupostos metodológicos da sua teoria hermenêutica, adivinha-se desde logo a influência directa da concepção epistemológica de Foucault, sobretudo de uma versão ‘espacialista’ das relações entre ‘poder de disciplinamento’ e ‘disciplinamento do poder’.31 Embora a teoria de Said não seja uma aplicação simples dos pressupostos da história foucaultiana a um novo objecto de análise, o ‘Oriente’ (uma espécie de ‘extensão’ da teoria mais ‘intra-europeia’ de Foucault a uma realidade ‘extra-europeia’), existindo até alguns pontos de irredutível distanciamento entre ambos (a questão ‘humanista’ é, a este respeito, absolutamente central), o próprio Said não deixa de reconhecer o imenso respeito intelectual pela visão espacial do poder do conhecimento revelada na historiografia de Foucault.32 A relação epistemológica delineada por uma extensão ‘extra-europeia’ da teoria foucaultiana da História não é levada a cabo sem problema, equívocos e até aparentes contradições insanáveis. Já fizemos antes referência ao facto de a teoria histórica de Said ser animada por um sopro humanista bastante perceptível, i.e., por uma radicalidade individual e pessoal dos eventos históricos e da responsabilidade ética associada a esse mesmo nível de capacidade de acção [agency].33 Uma postura assim definida dificilmente tem lugar no cenário fortemente anti-humanista do pensamento foucaultiano (presente, de resto, como ‘trope’ epistemológico comum em muito do trabalho intelectual dos restantes ‘pós-estruturalistas’, como Kristeva, Derrida, Deleuze, Lacan, Irigaray, etc.), lugar epistemológico em que a definição da subjectividade nunca é estabilizada individualmente, sendo sobretudo resultado da determinação social e política das condições performativas da individualidade negociada. 238 O corpo, lugar do tempo Uma outra ordem de ‘crispação’ do universo epistemológico da história ‘orientalista’ da Europa da Modernidade, tal como é levada a cabo por Said, prende-se com a manifesta ‘normalização’ da alteridade que é levada a cabo em relação ao pólo ‘ocidental’ da relação cultural estabelecida entre a Europa e a Ásia. Muito do carácter eficiente da obra de Said, dentro do próprio universo cultural do ‘ocidente’ (a que afinal o autor palestianiano-americano pertence, ainda que ‘criticamente’, posicionando-se de uma forma intersticialmente exterior) resulta da enunciação distintamente não-foucaultiana (não ‘arqueológica’, portanto) de uma ‘seamless and unified history of European identity and thought’, que subsumiria numa interpretação única da visão sobre o ‘outro’ (neste caso, o ‘oriental’), elementos exemplares de unidades espácio-têmporo-culturais tão díspares como a Grécia de Heródoto, a Veneza dos doges, a França de Napoleão, ou a Inglaterra victoriana, como se entre todos se transmitisse o propósito comum de identificar uma região ‘europeia’ oposta à ‘asiática’ e, dentro de cada uma destas regiões culturalmente definidas, a intenção genealógica de fazer perviver uma superioridade essencial.34 A eventual legitimidade de uma crítica continuista ao trabalho de Said não invalida, porém, que o trabalho deste autor permita uma excepcional capacidade heurística no trabalho de desconstrução da relação alteral entre a Europa da Modernidade e o seu ‘objecto’ científico e estético que constitui o ‘Oriente’. É-o certo para as manifestações mais directamente ligadas à esfera cultural da bourgeoisie oitocentista, e das suas manifestações de ‘alta cultura’, é-o ainda, de uma forma talvez mais evidente na organização científica das ciências humanas do mesmo período, e com especial incidência na Arqueologia e História da Antiguidade. Se a crítica continuista feita em relação ao trabalho de Said não é despicienda, e revela afinal a dimensão biográfica de emancipação e redenção a que antes nos referíamos, seria estulto, e contra-producente para o objectivo dessa mesma crítica, não reconhecer o poder crítico de uma teoria estruturada da alteridade enquanto formulação mutuamente reforçada de ‘facto’ e ‘ficção’, como é afinal, na sua essência, a teoria saidiana do orientalismo.35 239 Geografias do Corpo A afirmação de um ‘ponto-de-vista geográfico’ da História é o próprio cerne da historiografia de Said, e nisso ela constitui-se como uma das mais evidentes conceptualizações anti-essencialistas das várias manifestações abstractizantes do Tempo pelas quais a historiografia europeia, sobretudo desde Vico e Herder, até Hegel e Marx, desde sempre veio a manifestar uma nítida preferência.36 Para Said, o lugar não é apenas a determinação física do evento histórico, mas, e fundamentalmente, a determinação simbólica de uma integração ‘regional’ que o definam como exemplo ilustrado de um realidade mais vasta. Neste contexto de atribuição de uma semiótica espacial de inclusão e exclusão, Said desenvolve a hermenêutica das metáforas que concorrentemente se afadigam em estabelecer, no espírito humano, o espaço que é ‘nosso’, familiar, tranquilizador, previsível, racional, de um espaço ‘outro’ em que todas as categorias de definição são invertidas: desconhecido, perturbador, imprevisível, sensual… É fundamental sublinhar o carácter ‘poético’ desta aproximação saidiana ao lugar, sobretudo pela oposição entre racionalidade e sensualidade que se atribuem aos lugares epistemologicamente reconhecidos como objecto científico. A historiografia de Said é invariavelmente uma história da história da ‘infância’, da força constitutiva, dentro da teoria ‘adulta’ dos sentimentos não consciencializados, da formação da identidade. Embora com claras ressonâncias da esfera da psicanálise, não é nos universais do inconsciente que ele encontra a sua mais perfeita expressão; é talvez a noção do conhecimento transcendente da fenomenologia que melhor exprime a relação do objecto e sujeito históricos em Said – porque, ao contrário da estruturação tópica alteral do inconsciente (o ‘lugar’ do inconsciente é de algum modo ‘exterior’ ao próprio sujeito, e a sua abolição é uma condição prévia da descoberta da ‘verdade’), a versão fenomenológica admite uma saturação de significado partilhada pelo lugar e pelo observador, e o mecanismo íntimo de atribuição de significado não prescinde nunca das condições tópicas da sua formulação.37 A construção de ‘geografias imaginárias’ é o resultado inevitável de uma relação ‘poética’ estabelecida com o Tempo. A construção da 240 O corpo, lugar do tempo nossa própria identidade exige o estabelecimento de relações de exclusão e de diferença, profundamente essencializadas, e envolvendo mais do que o nível emocional detido individualmente por cada um dos seus participantes. É a própria ‘institucionalização’ da produção da alteridade que confere uma tão grande eficiência ‘política’ ao conhecimento e reconhecimento das regiões culturais definidas, e que atribui uma expressão própria de descontinuidade nos lugares intersticiais da migração e do exílio. O mecanismo de construção de tais ‘geografias imaginárias’ rege a sua eficiência pelo modo como interpela as dimensões existenciais do desejo, da ansiedade e do receio, da fantasia. Quando assistimos ao frenesim da dilucidação de um corpo gigantesco de informação referente ao Oriente, ao longo de todo o século dezanove, não podemos nunca deixar de tomar em consideração a dúbia articulação do ‘lugar e do corpo’ na eficiência da sua organização. O que é pressuposto na análise ‘orientalista’ de Said é a afirmação concomitante da sedução e da racionalidade, é o modo específico como a ciência oitocentista torna disponível através da racionalização sublimada o erotismo vedado (ou violável) do Oriente. É pela afirmação da violência do corpo oriental que Said pretende dar visibilidade à sua análise histórica da presença oriental no Ocidente e vice-versa. É justamente para evitar o tipo de universalização que uma abordagem psicanalítica sempre providenciaria, que o autor tende a falar mais de uma abordagem poética da relação histórico-geográfica do prazer; e é, finalmente, porque está mais resolutamente interessado em dar conta dos mecanismos concretos de construção global da alteridade, que Said não prescinde de analisar e identificar a expressão histórico-geográfica concreta do exercício da violência efectiva das potências imperiais nos lugares colonizados. É sobretudo a este nível que a ligação foucaultiana mais nitidamente se faz sentir. Para Said, os lugares de exercício do poder colonial, entre os quais considera os países-eles-mesmos, não se distinguem, nos mecanismos de opressão e nos resultados de representação, dos que Foucault havia considerado para as prisões ou hospícios. Todos são lugares em que se disciplina activamente o conhecimento e se dá a conhecer explicitamente a disciplina. A inter-relação definida 241 Geografias do Corpo dentro desta constelação de poder-conhecimento é que atribui uma singular visibilidade à ciência como forma de naturalização e racionalização dos mecanismos basilares de desejo, medo e fantasia, que são os que, em última análise, mais profundamente comandam o mecanismo de atribuição não só da identidade mas também, e muito especificamente, do seu estereótipo e da sua pervivência no tempo.38 O papel da Ciência e das suas várias disciplinas no estabelecimento de uma ‘geografia imaginária’ do Ocidente, na qual a expressão prévia das mesmas fronteiras no passado é um passo absolutamente necessário para o sucesso discursivo da primeira, reside sobretudo na integração dos mecanismos profundos de produção da subjectividade na matriz normalizadora e objectiva da cientificidade, a única que pode dotar a violência da imposição da presença colonizadora de uma justificação não estritamente política. Uma disposição assim definida pode resumir-se em algumas áreas de eficiência, analiticamente diferenciadas por facilidade de exposição, mas que, na sua imbricada totalidade, constituem o mecanismo eficiente pelo qual se afirma a constelação de poder e conhecimento da Modernidade. Um dos elementos determinantes da construção teórica da historiografia de Said reside no carácter discursivo da regionalização de exclusão que caracteriza o orientalismo enquanto prática científica. O pressuposto central nesta exposição epistemológica é o de que as sociedades (o ‘tempo presente’ das sociedades, enquanto ordem constitutiva de uma actividade no domínio das ciências históricas) se constituem através de instâncias e de longas enunciações discursivas que exprimem uma série relativamente clara de pressupostos normalizadores, e que são tornados explicitados e dotados de eficiência cultural (e política) através de um sistema lexical e semântico de dicotomias, exclusões e irredutibilidades. Neste contexto, Said identifica um propósito recorrente nas formações discursivas do Ocidente, traduzido por uma série discernível de oposições elementares entre as culturas ‘ocidental’ e ‘oriental’ que, tomadas em conjunto, formam uma matriz ordenada de incomunicabilidade e irredutibilidade entre as duas esferas civilizacionais.39 242 O corpo, lugar do tempo A oposição constitutiva das duas esferas de alteridade, o ‘Ocidente’ e o ‘Oriente’ estabelece-se não apenas pela explicitação da diferença (‘Ocidente’ como ‘racional’, ‘progressivo’, ‘masculino’; ‘Oriente’ como ‘sentimental’, ‘eterno’, ‘feminino’), mas pela atribuição de uma hierarquia associada, que se insinua pela imposição da ausência do termo ‘superior’ no ‘inferior’. Assim, a categoria ‘sentimental’, mais do que a afirmação de um determinado conjunto de atributos definidos ‘positivamente’ é invariavelmente associada à ‘ausência de racionalidade’; do mesmo modo, o carácter ‘eterno’ do Tempo do Oriente (tão óbvio no arianismo, para quem a esfera de civilização pervive longos séculos no Ocidente sem modificar o essencial da sua constituição íntima, já trazida originalmente do Oriente) não significa em si mesmo a apreciação de qualquer mecanismo de longue-durée associado a uma especial adequação intrínseca dessa mesma esfera civilizacional, mas especificamente a ausência de historicidade, de progresso; finalmente, o carácter ‘feminino’ do Oriente não diz respeito a uma eventual determinação da ordem feminina sobre o devir social, um análise circunstanciada da existência de relações e vínculos culturais no quadro de uma esfera matriarcal de organização social, mas sim, e muito significativamente, do Oriente como ‘não-masculino’, i.e., como lugar essencializado de complementaridade, enquanto objecto de satisfação visual, do olhar invasor do ocupante colonial. Ainda que em escritos posteriores Said tenha desmanchado o carácter liminar das suas primeira oposições, a sua manifestação eficiente não pode ser de modo algum posta em dúvida.40 Em alguns planos muito aproximada da concepção de ‘abjecção’ de Kristeva, a estratégia essencializadora da diferença que é posta em prática na produção alteral do Oriente não é um artifício de descrição das relações violentas e complexas entre as duas regiões em encontro, mas é, ela mesma, uma estratégia política absolutamente necessária à manutenção da relação colonial dentro do quadro da normalidade ‘jurídica’ da cultura, i.e., da normalidade da representação da própria violência de que não pode, sob nenhuma circunstância, prescindir.41 A determinação articulada de um programa político e intelectual de disciplinamento do conhecimento e de reconhecimento da dis- 243 Geografias do Corpo ciplina não deve parte da sua especial eficiência ao modo como a ciência, considerada prática universal, neutra e ‘objectiva’, procede ao elencamento detalhado das características constitutivas do objecto de análise. O paralelo entre a organização do Estado oitocentista, centralizador, hierárquico e presente nos lugares mais recônditos do território, e uma Ciência de fundo e forma positivista, também ela centralizada, hierárquica e universal, não é decerto uma simples coincidência ontológica mas antes um propósito metodológico. Em qualquer um dos casos é estabelecido um regime de poder que não admite que nenhum evento ocorra fora dos limites estabelecidos em que pode justamente ocorrer. A Sociedade, como a Natureza e a História, deixa de ter ‘enigmas’, no sentido ‘misterioso’ do termo, uma vez que os limites de previsibilidade são estabelecidos previamente; apenas restam os enigmas ‘científicos’, cuja garantia de solução prévia manieta nos limites do previsível e do dominado, e que se articulam como replicação da expressão inicial de uma ‘lei’. O principal instrumento da ciência, entendida como um género especial e superior (werkiano) de conhecimento, é a capacidade de designar e acumular o detalhe.42 A série inumerável de disciplinas científicas que se propõem caracterizar detidamente a ‘realidade do Oriente’ são apenas a face visível do esforço político, tornado tão eficiente quanto a relação de alteridade o permita, de determinar a absoluta extensão do objecto a conhecer. Ao desnudar a totalidade, ao exibir, na sobreposição cartográfica de todas as objectividades das diversas disciplinas científicas, a superfície da sua pele, a relação colonial atinge o objecto último da representação inanimada do corpo a possuir, porque a partir do momento em que o conhecimento se representa como absoluto, então a autoridade científica torna-se autorização política, e a violação consuma-se pelo consentimento suposto da relação imperial.43 Deve tomar-se em consideração que o disciplinamento do conhecimento promovido pela imposição do detalhe e acumulação pormenorizada da cartografia superficial do ‘outro’ depende das condições estruturantes da ‘estética da recepção’, i.e., dos espaços de visibilidade motivada e construída no interior das formações discursivas. Nelas, a formulação espacial do conhecimento toma uma importância central, pois, as instituições 244 O corpo, lugar do tempo de reprodução social do conhecimento distante (no Tempo como no Espaço) são especificamente desenhadas de modo a promover uma visibilidade ou invisibilidade arbitrária dos constituintes íntimos do objecto descrito – com a intenção final de fazer com que este seja visto de uma determinada (e determinante) maneira. Said dá, por isso mesmo, uma importância especial ao modo de contemplação ‘panorâmica’ que o Ocidente tende a dar predominância no momento de representar o ‘outro oriental’,44 o que remete para a estética contemplativa que a geografia feminista identifica como sendo constitutivo da relação masculina com o espaço em geral e com todas as formas de representação ‘em paisagem’ que têm vindo a constituir o artifício descritivo reiterado da Modernidade.45 A relação exótica (e erótica) com o Oriente não se esgota porém na atribuição de um olhar masculino invasor sobre o ‘corpo reclinado’ da mulher oriental, tal como era representado nas diversas formulações artísticas das artes visuais do século dezanove. O carácter homo-erótico associado a uma determinada sensualização das personagens do cenário oriental estabeleceu igualmente uma ordem discursiva alternativa, na qual a prática e representação da relação erótica com o ‘Oriente’ substituiu, simbólica e literalmente, a persistência da homofobia agressiva do Ocidente, dando origem a uma sobreposição ambígua de diversas esferas de identidade de género, fixadas sobretudo no ambiente das grandes cidades árabes do Mediterrâneo e Próximo Oriente.46 O centro de interesse da teoria saidiana é porém muito mais específico do que a simples caracterização do olhar invasor e sensualizado da bourgeoisie europeia sobre o ‘corpo’ da paisagem oriental. O seu objectivo central é demonstrar que ao longo de todo o século dezanove a representação do ‘Oriente’, entre os países do ‘Ocidente’, partiu de uma reprodução panorâmica do exótico e do sublime histórico e geográfico, cristalizou o essencial da sua acção ‘invasiva’ em modelos de conhecimento sob a forma severa da Ciência. Museus, taxinomias, disciplinas científicas são, para Said, os verdadeiros instrumentos de uma dominação efectiva do território colonizado; porque será a partir do sentimento verista do seu potencial descritivo que as representações do exótico adquirem uma aura de verosimi- 245 Geografias do Corpo lhança que pode então ser universalmente transmitida a partir das formas mais elementares de difusão cultural da alteridade, e promover as condições efectivas de apropriação cultural de uma ‘paisagem imaginária’, em que as condições concretas de existência, sobretudo dos elementos discrepantes, pudessem revelar-se inteiramente. Para Said, o elemento decisivo, pelo que representou de iniciação de uma prática continuada de ‘colonização cultural’ é a obra gigantesca que Napoleão faz publicar sobre o Egipto. Na Description de l’Égypte a estética da recepção é garantida não apenas pela apresentação ‘fotográfica’ dos vestígios grandiosos do passado egípcio (neles incluindo os de cronologia ptolomaica e romana), mas especificamente pela ausência forçada dos habitantes árabes e muçulmanos do tempo da própria expedição ocidental ao Egipto. Ao desnudar o corpo da paisagem, e ao apresentá-lo, exótico e sublime, ao olhar invasor da bourgeoisie europeia, a obra não apenas remove explicitamente os habitantes contemporâneos do cenários da sua representação, como afirma subliminarmente (ou nem tanto) a continuidade directa, a filiação genealógica, das civilizações dominantes do Passado com as civilizações dominantes do Presente. Faraós egípcios e imperadores europeus são assimilados pela Arqueologia e pela História, e integrados numa narrativa comum que essencializa o Tempo e a herança, admitindo como ‘natural’ a ligação entre os dois mundos que a pesquisa e escavação arqueológica, haveria de, ao longo de todo o século dezanove, materializar nos vários museus de recolha de antiguidades orientais em todas as grandes capitais europeias.47 Corpo Pode facilmente compreender-se que uma absoluta outorga, por parte de Said, do poder identitário ao lugar-tempo o pode pôr em confronto com Foucault. A descrição por Foucault de ‘lugares-tempos’ como expressão de uma organização do poder não é em muito diferente da concepção do próprio Said. O problema surge quando aquele autor se propõe ‘estender’ as conclusões retiradas do estudo de um caso particular, de uma entidade ‘têmporo-espacial’ autónoma para o funcionamento geral da 246 O corpo, lugar do tempo sociedade.48 Como já fizemos referência, quando procedíamos à caracterização da afirmação de um ‘ponto-de-vista geográfico’ em Foucault, a aplicação ‘exemplar’ deste investigador a um nível superior de abstracticidade do mesmo tipo de procedimentos metodológicos (e pressuposições ontológicas) do próprio objecto da sua crítica, caracteriza uma ‘sobreteorização’, ela mesmo impedida pelas premissas lógicas da sua aplicação. Para Said, a reorganização ‘local’ do conhecimento é absoluta e, assim, a nivelação ontológica das entidades discretas que constituem a informação inicial disponível para a teoria é sempre absolutamente arbitrária. Nesse momento, pelo menos do ponto de vista de Said, Foucault não faz nada de diferente dos naturalistas do império que generalizaram ao globo inteiro as teorias naturais e sociais que desenvolveram no ocidente. A universalização é, em qualquer dos casos, um modo de dominação.49 Ao exercer os pressupostos da sua própria biografia, Edward Said permite-se, por isso mesmo, introduzir uma discrepância teórica que será um ponto importante da originalidade da sua visão sobre a História, e talvez justifique, pelo menos em parte, as principais diferenças entre o seu trabalho e o de Foucault. Mais do que pretender vincar o carácter absoluto que Said atribui ao lugar, e que por si só é importante, esta questão levanta também outra associada, a de saber se o relativismo pode ser tão determinante que esteja vedado a um sujeito, que pertença, seja a que nível for, aos lugares ‘dominantes’, desenvolver uma visão que não seja ela ‘universalizante’, se está por isso condenado a este ‘totalitarismo sobreteórico’ que ele detecta em Foucault.50 A questão reside, em grande parte, na relação da violência política do conhecimento, e dos efeitos que ela detém sobre a materialidade concreta do ser humano e, especificamente, incluindo nele a dimensão táctil do corpo.51 Enquanto que em Foucault a violência política do disciplinamento do conhecimento passa pela repressão normalizadora das características do corpo considerado individualmente (o ‘prisioneiro’, o ‘louco’, o ‘aluno’…) em Said os contornos ‘tácteis’ da relação cultural imposta pelo imperialismo sobrelevam a expressividade da relação erótica da diferença.52 Numa definição opositiva simples (com todas as vantagens e inconvenientes que a simplicidade detém), diríamos que ao ‘corpo’ 247 Geografias do Corpo foucaultiano lhe é sempre negado o prazer, enquanto que no ‘corpo’ saidiano este mesmo desejo é constantemente valorizado. A directa relação que esta oposição, que cremos existir entre Foucault e Said, tem na biografia dos dois autores não deixa de ser significativa. Se a questão da exibição da sexualidade se revelou central na determinação dos pressupostos existenciais da teoria foucaultiana, vemos igualmente que em Said um ponto recorrente da sua argumentação passa pela des-sensualização ‘activa’ do estereótipo do ‘oriental’, em ambos os casos se pretendendo criar um contexto eficiente de afirmação da individualidade intelectual e política – e, afinal, da própia existência. Notas D. N. Livingstone (1997). Este estudo é uma fusão parcial revista de partes de um outro estudo de maior fôlego apresentado à Universidade do Minho (Pimenta 2007). 2 [All the leading exponents of classical tradition] have this in common: they prioritise time and history over space and geography and, where they treat the latter at all, they tend to view them unproblematically as the stable context or site for historical action (Harvey 1985: 141). A partir desta ordem de contextualização ‘geográfica’ do trabalho historiográfico a que aqui nos propomos, podemos reformular a conhecida asserção historicista de Collingwood: ‘No historical problem should be studied without studying (…) the history [AND GEOGRAPHY (JRP)] of historical thought about it’ (Collingwood 1946: 132). 3 Seguimos de perto a estrutura e as ideias do estudo de Chris Philo (2000). 4 E isso mesmo se pode constatar das suas palavras quando afirma: Once knowledge can be analysed in terms of region, domain, implantation, displacement, transposition, one is able to capture the processes by which knowledge functions as a form of power and disseminates the effects of power (…) [therefore] geography must necessarily lie at the heart of my concerns. (Foucault 1980: 69 e 77). 5 O carácter espacial do ‘poder do conhecimento’ e a sua estruturação em lugares de ‘reconhecimento do poder’ tornou-se para mim bastante óbvia quando assisti ao IV Congresso de Arqueologia Peninsular (Faro, 14 a 19 de Setembro de 2004; ver epígrafe deste capítulo), onde apresentei um trabalho de preocupação ‘geo-historiográfica’ no contexto da arqueologia portuguesa, especificamente da chamada ‘cultura castreja’ (Pimenta 2004b). À entrada do anfiteatro principal em que iria decorrer a cerimónia de abertura, um dos organizadores do evento perguntou-me, 1 248 O corpo, lugar do tempo amável mas significativamente, sobre o que ‘fazia ali um geógrafo!’ A questão foucaultiana reside naquele ‘ali’. 6 A afirmação de uma corrente ‘pós-moderna’ operou-se a partir de diversas propostas de ‘interpretação da interpretação do Passado material’, com isto querendo dizer que se estendeu não apenas à relação ‘ocultada’ do significado do objecto material, mas também das condições sociais, culturais e ideológicas da sua interpretação por parte do sujeito interpretante (Hodder 1982a, b, 1986; Hodder ed., 1982, 1985, 1991; Hernando 2002: 137 e ss.; Joyce 2002; Hegmon 2003: 213-243). 7 Taylor (1985): J. Habermas (1986). 8 But this inexhaustible wealth of visible things has the property (which both correlates and contradicts) of parading in an endless line; what is wholly visible is never seen in its entirety. It always shows something else asking to be seen; there’s no end to it. Perhaps the essential has never been shown, or rather, there’s no knowing whether it has been seen or if it’s still to come in this never-ending proliferation (Foucault 1986b: 110). 9 A evocação desta ‘fenomenologia’ do objecto da Arqueologia é de Orlando Ribeiro, apud J. C. Garcia (2003: 194). 10 Quase é desnecessário referir que esta visão da ‘arqueologia’ proposta por Foucault parte, ela própria, de uma redução quase caricatural sobre a própria Arqueologia, disciplina que vem prescindindo progressivamente do carácter estanque da estratigrafia e do poder redutor dos traços materiais quantitativa ou qualitativamente mais abundantes (cf. Bailey 1987: 5 e ss.). 11 Em termos precisos, a dimensão ‘geográfica’ da obra de Foucault que gostaríamos de sublinhar é o contexto de crítica propriamente espacial que o autor exerce sobre a ideia de ‘história total’ e da representação da sua verdade intrínseca, concretizado num modo de ver o mundo em que ‘one sees only ‘spaces of dispersion’: spaces where things proliferate in a jumbled-up manner on the same ‘level’ as one another – on the one level where advanced capitalism and the toy rabbit beating a drum no longer exists in any hierarchical relation on the one being considered more important and fundamental than the other – and on which it can never be decided if the ‘essential’ has been sighted (…) (Philo 2000: 207). 12 Também a Epistemologia enquanto disciplina não tem favorecido uma visão ‘localista’ da interpretação das condições de produção, transmissão e recepção do conhecimento científico (Lowther 1962: 495-497). Cf., por exemplo, a obra de Bernecke e Dretske (2000) e confirme-se que a interpretação universalista é ainda dominante na estruturação disciplinar do ‘conhecimento sobre o conhecimento’. 13 The project of total history is one that seeks to reconstitute the overall form of a civilisation (…) supposed that between all the events of a well-defined spatio-temporal area, between all the phenomena of which traces have been found, it must be possible to establish a 249 Geografias do Corpo system of homogeneous relations: a network of causality that makes it possible to derive from each of them, relations of analogy that show how they symbolise one another, or how they all express one and the same central core (…) (Foucault 1972: 9-10). 14 A noção de tempo-espaço tem vindo a ser objecto de uma profunda reavaliação teórica. Cada vez mais se tem a noção de que conceitos como ‘região’, ‘período’ ou ‘escala’ são profundamente tecidos de considerações aprioristas e essencialistas, desligando o lugar em que decorre a acção social (físico ou simbólico) dos factores estruturantes do Zeitgeist respectivo dessas mesmas sociabilidades (cf. Bailey 1981 e G. Clark 1992). 15 De facto, a filosofia da história de Foucault adquire um tom particularmente crítico da Modernidade, associando, por exemplo, à mundividência medieval a superioridade relativa de permitir uma livre associação de eventos, sem que seja necessário subsumi-los a uma lógica interna de desenvolvimento. Claro está que isto não significa que considere a concepção do Tempo entre os medievais como equivalente àquela que ele próprio detém. Para Foucault, não existe qualquer ‘sentido’ para o Tempo, e cada unidade espácio-temporal não é mais do que uma ‘associação’ aleatória de processos estranhos entre si: esta concepção do Tempo não tem nada a ver com a ‘aleatoriedade’ medieval, de origem obviamente providencialista, i.e., resultado da intervenção directa de Deus na temporalidade concreta e unidireccional da Criação. 16 A este respeito verifique-se (E. Brito-Henriques, neste volume) a tensão conceptual que percorre a genealogia da definição da ‘Pós-Modernidade’. 17 M. Foucault (1972: 8-10). 18 Este tipo de ‘racionalidade histórica alternativa’, a que o autor chama especificamente ‘história geral’, ‘is to determine what form of relation may be legitimately described between these different series; what vertical system they are capable of forming; what interplay of correlation and dominance exists between them; what may be the effect of shifts, different temporalities and various rehandlings; in what distinct totalities certain elements may figure simultaneously; in short, not only what series, but also what ‘series of series’ – or, in other words, what ‘tables’ is possible to draw up. A total description draws all phenomena around a single centre – a principle, a meaning, a spirit, a world-view, an overall shape; a general history, on the contrary, would deploy the space of a dispersion’. Como se verá no ponto seguinte, este é um dos domínios em que justamente incide a crítica de Said sobre o trabalho de Foucault. Dentro do quadro geral do relativismo espácio-temporal-cultural (histórico-geográfico-antropológico) que caracteriza a obra do pensador de origem palestiniana, esta estratégia de Foucault é prisioneira dela própria, por aplicar a entidades discretas (os projectos político-intelectuais individualmente consid- 250 O corpo, lugar do tempo erados) uma concepção abstractamente uniforme, como se tratasse da organização geral de um projecto comum, que é, afinal, a crítica que o filósofo francês faz incidir sobre a generalidade da historiografia da Modernidade. 19 Raymond Roussel era um poeta que partia da ‘sem-importância’ de uma vista em paisagem para a ordem descritiva dos seus poemas. Estes, poemas de considerável extensão, podiam ter origem numa minúscula representação publicitária de uma praia, de um panfleto informativo de um concerto musical ou num rótulo de uma água mineral. A característica iluminante da poesia de Roussel, e em que Foucault reconhece o princípio organizador da sua própria epistemologia histórica, prende-se com o facto de não só a descrição poética se fazer sobre a quási-insignificância do objecto retratado (ou, o que é o mesmo, a denúncia da magnificação de determinados pontos-de-vista no estabelecimento de uma ‘tradição de paisagem’), como também pela circunstância de nessa mesma ‘paisagem’ todos os elementos figurativos contribuírem igualmente, na sua ponderação ontológica, para a realidade existencial concreta do conjunto. O que Foucault recolhe de Roussel, e exige tacitamente do historiador, é que não se estabeleça uma ordem de hierarquia que privilegia uma parte da ‘paisagem’ em função da geometria da perspectiva. Ao anular a relação entre ‘eixo de visão’ e a sua ‘periferia’, entre ‘figura’ e ‘fundo’, entre ‘drama’ e ‘cenário’, Foucault pretende desfazer o poder ‘hipnótico’ que a perspectiva exerce sobre o observador, e que o leva a focar, mesmo involuntariamente, o seu olhar para o ‘centro do quadro’ – trata-se, de não ficar à mercê da ilusão da proporcionalidade: ‘There is a fundamental lack of proportion: seen in the same way are the porthole of the yacht and the bracelet of a woman chatting on the deck, the wings of a kite and the two points formed by the tips of a stroller’s beard raised slightly by the wind (…). In this fragmented space without proportion, small objects thus take on the appearance of flashing beacons. It’s not a question of signalling their position in this instance, but simply their existence’ (Foucault 1986a: 106-109). 20 There is no privileged point around which the landscape will be organised and with distance vanish little by little; rather, there’s a whole series of small spatial cells of similar dimensions placed right next to each other without consideration of reciprocal proportion (…). Their position is never defined in relation to the whole but according to a system of directions of proximity passing from one to the other as if following the links in a chain: ‘to the left’, ‘in front of them to the left’, ‘above’, ‘higher’, ‘further’, ‘further continuing on the left’ (…) (Foucault 1986a: 107). 21 Philo (2000: 213). 22 O próprio Raymond Roussel viria a revelar, numa interessante paródia ao seu próprio modo de escrever os poemas (Comment j’ai écrit certains de mes livres, 1935) que a 251 Geografias do Corpo organização narrativa do poema como que seguia a quadriculagem regular que o pintor previamente deveria usar na organização da perspectiva. É a inversão ‘ontológica’ do papel da quadriculagem e da perspectiva que justamente predispõe o leitor à revelação, a partir da ironia, de que o Tempo é subitamente fragmentado em pequenas células espaciais que não têm entre si nenhuma relação essencial que não seja a que lhes é dada pelo ponto-de-vista do observador (Ford 2000: 213). 23 For much of the time Foucault (…) apparently accept[s] that there is nothing outside the proliferation of words about the ‘surface of things’ – that this proliferation pretty much captures in all of its comprehensiveness the total and only ‘reality’ of the things described – and the suggestion in this regard is that the ‘discourse which describes them in detail is finally the one that explains them’. In this case, the silence of things on more ‘essential’ matters is perfectly comprehensible, for there is simply nothing else to say once [one] has finished [one’s] description (Philo 2000: 217-218). 24 Mackenzie (1990: 216-259) 25 E. Said (1991: 226). 26 E. Said (1991: 244). 27 É este sentido, o da apropriação ‘cultural’ de um lugar de alteridade, que tem permitido a alguns historiadores de Ciência aproximar a lógica ‘geográfica’ de colonização do espaço com a lógica ‘histórica’ de apropriação do Tempo, i.e., do Passado. Em ambos os casos parece haver, no domínio do Evolucionismo do século dezanove, uma superação eficiente da alteridade pelo apagamento absoluto da temporalidade do Outro (cf. Driver 1991; 1992) e da própria Natureza (Driver e Rose 1992). 28 S. Jones (1997: 129 e ss.). 29 [J]ust as none of us is outside or beyond geography, none of us is completely free from the struggle over geography. That struggle is complex and interesting because it is nor only about soldiers and cannons but also about ideas, about forms, about images and imaginings (…) (Said 1993: 6). Esta expedição também pode ser levada à ‘Arqueologia’, naturalmente; e talvez até seja mais facilitada a ordem imperial e colonial de atribuição assimétrica da alteridade num campo disciplinar que acumula a diferenciação do Outro desde o ponto de vista histórico e antropológico: basta lembrarmo-nos da dificuldade que a Arqueologia nacionalista ‘branca’ sempre teve em admitir que algum dos povos africanos de raça negra pudesse estar por trás da construção das ruínas de Zimbabwe (Hall 1909: 13; para uma crítica histórica, Garlake 1973: 79-80; cf. tb., em termos mais gerais da arqueologia nacionalista africana, Tardits 1981 e Schrire et al. 1986). 30 As narrativas tecidas de factos e ficção são uma característica não apenas dos géneros considerados ‘literários’, mas também das narrativas históricas e descrição geográficas que supostamente são feitas no domínio severo das ciências, especificamente da História e da Geografia. 31 Cf. Lynch e Woolgar (1990: 1-18); 252 O corpo, lugar do tempo Miller e Tilley (1984). 32 ‘What is, I think, deeply compelling about the continuity of Foucault’s early with his middle works is his highly wrought presentation of the order, stability, authority, and regulatory power of knowledge. (…). It is probable that Foucault’s admirably un-nostalgic view of history and the almost total lack in it of the metaphysical yearning, such as one finds in heirs to the Hegelian tradition, are both ascribable to his geographic bent’ (Said 1986: 149-150). A ênfase é nossa. 33 No caso específico da Arqueologia, porque lida com testemunhos residuais da actividade social que pretende descrever e interpretar, poder-se-ia pensar que lhe estaria vedada uma abordagem ‘agencialista’, que tivesse em consideração a personalidade e identidade dos actores sociais envolvidos. Tal não é caso (como se pode ver em Fowler [2002], ainda que no contexto ‘favorável’ da Egiptologia), e se a disciplina tem preferido, ao longo da sua história, a abordagem dos sujeitos ‘colectivos’, tal deve-se não apenas à especial disposição do seu objecto ‘empírico’ mas também, se não sobretudo, à organização epistemológica do seu objecto ‘teórico’. 34 Ahmad (1994: 165-166). 35 Neste aspecto, aproximamo-nos explicitamente da posição de D. Gregory: ‘But I see no reason to choose between an account that charts continuities – the stagnant air of Orientalism trapped within the corridors of history – and one that throws open the ill-winds that interrupt this state of affairs from time to time and place to place. Neither does Said, who argues, explicitly and unequivocally, that the French occupation of Egypt at the end of the eighteenth century inaugurated a distinctively modern constellation of power, knowledge and geography (…)’ (Gregory 2000: 312). A ênfase é nossa. Cf, também, as palavras do próprio Said: ‘Throughout the exchange between Europeans and their ‘others’ that began systematically half a millennium ago, the one idea that has scarcely varied is that there is an ‘us’ and a ‘them’, each quite settled, clear, unassailably self-evident. As I discuss it in Orientalism, the division goes back to Greek thought about barbarians, but, whoever originated this kind of ‘identity’ thought, by the nineteenth century it had become the hallmark of imperialist cultures as well as those cultures trying to resist the encroachments of Europe’ (Said 1993: xxv). 36 Herder é, de certo modo, o principal defensor de um tom ‘local’ na História (McEachran 1939), na Geografia (Birkenhauer 1986) e na Antropologia (Clark Jr. 1969; Nisbet 1970), no pensamento social em geral: ‘[A]ll regionalists, all defenders of the local against the universal, all champions of deeply rooted forms of life (…) owe something, whether they know it or not, to the doctrines that Herder (…) introduced into European thought’ (Berlin 1976: 176). Especificamente sobre a influência de Herder nos estudos da historiografia portuguesa, e no modo como subjaz 253 Geografias do Corpo a uma afirmação de uma ‘índole nacional’, presentes nos actores sociais, individual ou colectivamente considerados, cf. A. Beau (1964: 202 e ss.). O nacionalismo ‘arqueológico’ que surge ao longo de todo o século dezanove inclui-se nesta vasta proposta ‘terapêutica’ de compensar a devastação napoleónica inicialmente, depois a prussiana e a austríaca, que farão acender iguais sentimentos de ‘busca das origens’ nas nações violentamente submetidas nos estados imperiais (Harpeou 1982: 241-249). 37 The objective space (…) is far less important that what poetically is endowed with, which is usually a quality with an imaginative or figurative value we can name and feel: thus a house may be haunted or homelike, or prisonlike or magical. So space acquires emotional and even rational sense by a kind of poetic process, whereby the vacant or anonymous reaches of distance are converted into meaning (…) (Said 1986: 153). 38 [T]o the extent that modern history in the West exemplifies for Foucault the confinement and elision of marginal, oppositional and eccentric groups, there is, I believe, a salutary virtue in testimonials by members of those groups asserting their right of self-representation within the total economy of discourse. Foucault is certainly right – and even prescient – in showing how discourse is not only that which translates struggle or systems of domination, but that for which struggles are conducted (…) (Said 1986: 153). 39 E. Said (1995: 186-187). 40 ‘Partly because of empire, all cultures are involved in one another; none is single and pure, all are hybrid, heterogeneous, extraordinarily differentiated, and unmonoolithic, [but] I do not wish to be misunderstood. Despite its extraordinary cultural diversity, the United States is, and will surely remain, a coherent nation. The same is true of other English-speaking countries (Britain, New Zealand, Australia, Canada) and even of France, which now contains large groups of immigrants’ (Said 1993: xxv). 41 Macedo (1985). 42 Porter (1983: 301-302). 43 [Orientalism] is a discipline of detail, and indeed [it is] as a theory of detail by which every minute aspect of Oriental life testified to an Oriental essence it expressed, that Orientalism had the eminence, the power and the affirmative authority over the Orient that it had. [Gregory 2000: 313]. Esta replicação superficial da violência da relação colonial em Said (com uma explícita filiação em Foucault, e no estabelecimento do paralelismo feito por este autor entre o aparelho do Estado e a ordem epistemológica do positivismo: ‘[Napoleon Bonaparte] wished to arrange around him a mechanism of power that would enable him to see the smallest event that occurred in the state he governed’ [Foucault 1979: 140]), estabelecida desde o universo da própria ciência, virá a ter uma expressão literal na antropologia física e nos procedimentos de antropometria racial por ela levados a cabo. O princípio constitutivo 254 O corpo, lugar do tempo desta disciplina, nos vários domínios em que se impôs (criminologia, antropologia colonial, pedagogia…) foi, essencialmente, o direito a despir um corpo, e uma vez despido, o direito a medi-lo exaustivamente; assim, a actividade ‘intelectual’ da medição pressupõe obrigatoriamente a violência ‘política’ do desnudamento. 44 The Orientalist surveys the Orient from above, with the aim of getting hold of the whole sprawling panorama before him. 45 Sobre a noção da ‘paisagem’ como modo de ver, cf. o trabalho seminal de Denis Cosgrove e os desenvolvimentos mais recentes (Cosgrove e Daniels 1997; Cosgrove 1998a; Cosgrove 1998b); para uma versão crítica do conjunto da ‘paisagem’ como trope narrativo da Modernidade é imprescindível a consulta da obra de Ana Francisca de Azevedo (Azevedo 2006), especialmente o capítulo segundo. Sobre a visão ‘panorâmica’ orientalista como um exemplo do modo geral de denúncia feminista do carácter contemplativo do ‘corpo’ da Natureza e História pelo olhar invasor masculinista, cf. R. Kabbani (1986) e G. Rose (1993). 46 A representação do ‘Oriente’, e muito especialmente das cidades do norte de África e Próximo Oriente, como lugar de uma eroticidade marginal e redentora da homofobia cultural da ‘ordem burguesa’ vitoriana estabeleceu uma longa genealogia de tropos narrativos em que as qualidades da ‘paisagem’ interferem directamente no conteúdo ‘moral’ dos comportamentos das personagens, remetendo assim para uma expressão do que Livingstone (Livingstone 1992: 216-260) chama de ‘configuração moral da natureza’. Ainda entre os autores do século vinte, e mesmo dos contemporâneos, este estereótipo tende a reproduzir-se, como no caso de Evelyn Waugh, Lawrence Durrell ou Michael Ondaatje. 47 [T]he representation of the Orient as an imaginary ‘museum without walls’, in which cultural fragments were reassembled and allocated among the categories of a tabular Orientalism, invokes an altogether different order of departmentalization: the textual inventory that is emblematic of Foucault’s classical, eighteenth-century taxonomies. (…). [T]he enframing of the Orient within what Said describes as ‘a sort of Benthamite Panopticon’ moves the empire of the gaze beyond the tableau and the table to anticipate a system of power-knowledge in which ‘things Oriental [are placed] in class, court, prison or manual for scrutiny, study, judgement, discipline or governing’: it is a preliminary and a prop for the disciplinary powers inscribed within the colonizing apparatus of the ‘world-as-an-exhibition’ (Gregory 2000: 317). 48 E. Said (1991: 245). 49 E. Said (1991: 245). 50 E. Said (Said 1990); cf. Hesse (1980: 33 e ss.). Esta questão, ao nível político, é constantemente brandida: só os negros poderiam ser anti-esclavagistas, só as mulheres feministas, só os judeus anti-anti-semitas, etc. Quer no campo ‘opressor’ quer no campo dos ‘oprimidos’ há quem 255 Geografias do Corpo o defenda. Não se afirma, naturalmente, que seja essa a posição de Said (embora parte de alguma crítica feminista o acuse justamente disso), embora a instabilidade identitária criada pela sobreposição de diversas esferas culturais (especialmente a ‘palestiniana’ e a ‘anglo-saxónica’, e por esta ordem) seja historicamente mais propensa a este tipo de manifestação político-intelectual da denúncia. 51 Cf. Shilling (1993); Schmidt e Voss (2000); Thomas (2002). 52 L. McWhorter (1999: 108); M. Yegenoglu (1999: 25). Bibliografia Ahmad, A. (1994). ‘Orientalism and after: ambivalence and metropolitan location in the work of Edward Said’. In Theory: Classes, Nations, Literatures, 159-220. London: Verso. Andrews, G., J. Barrett e J. Lewis (2000). ‘Interpretation, not Record: The Practice of Archaeology’. Antiquity, 74, p. 525-530. Azevedo, A. F. (2006). Geografia e Cinema. Braga: Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. [Dissertação de Doutoramento]. Azevedo, A. F. 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LONGHURST, The body1 Introdução Num dos momentos mais macabros e chocantes do filme Kandahar (2001), vários homens em canadianas apressam-se em desespero com o fito de alcançarem próteses de membros que são lançadas em pára-quedas por um avião da Cruz Vermelha e vão flutuando num cenário paisagístico de extrema beleza estética. Mohsen Makhmalbaf, realizador Iraniano que rodou o filme entre ameaças de morte, alcança aqui uma harmonia bizarra e fascinante de vergonha, lirismo e futilidade. A globalidade dos membros que sobrevoam um Estado cerrado por fronteiras controladas, e a localidade perdida e negligenciada dos corpos que lutam por uma permanência móvel, transportanos para um sentido de complacência global inaceitável, para um momento de ausência ética, fazendo transparecer a relação putrefacta entre corpos e espaço, políticas e poder, paisagem e história. Se é certo que a Geografia Cultural contemporânea, influenciada pelas correntes feministas e mesmo pós-coloniais, tem colocado uma ênfase particular na posicionalidade do investigador(a), na Geografias do Corpo sua inescapável influência nos processos de investigação, na forma como o conhecimento geográfico que se produz é corporizado, conivente com corpos sociais e geográficos2, poucos têm sido os estudos em que o corpo do investigador se constitui em si mesmo como o objecto da investigação ou como o elemento central da investigação. Neste artigo bipartido, pretendo centrar a primeira parte da discussão no meu próprio corpo, e fazer dele o ponto de partida para uma reflexão sobre as diferenças entre corpos no espaço, um espaço entendido como profundamente relacional, que coloca em tensão os micro-espaços das nossas próprias geografias intersticiais, no seu sentido literal, e as geografias globais, de alcance planetário, onde outros corpos se movem e habitam. Desta forma, a ‘anormalidade’ de um micro-espaço do meu corpo transforma esta primeira parte do artigo numa viagem transatlântica em busca de uma solução médica. Viagem esta que revela confrontos entre corpos diferentes, que assinala clivagens em que a cor da pele e a ‘classe’ dos corpos é determinante. Até certo ponto pretendo desafiar certas concepções pós-estruturalistas do corpo, pois a materialidade, a cor, a altura, o peso, a origem do meu próprio corpo, dão forma a um território linguístico de carne e fluidos muito significativos. Se bem que o artigo não se institui a partir de um ponto de vista feminista, partilho aqui as preocupações feministas de que falar de corpos sem carne, sem materialidade, é uma ilusão (geralmente masculina), que serve para preservar práticas e políticas corporais hegemónicas. Ao mesmo tempo, não posso deixar de ter em mente a provocação de Harvey3, pois se bem que o retorno do corpo como lugar de um enraizamento ontológico e epistemológico mais autêntico do que as abstracções teóricas que durante muito tempo vigoraram como dominantes é justificado, este retorno não é por si garantia de nada excepto da produção de um auto-referenciamento narcisista. Na segunda parte deste texto conto uma outra história, que explora a diferença, a inquietação e a marginalidade que a cor da pele e a sua quase determinística associação a uma classe desfavorecida e excluída ainda provoca na sociedade portuguesa contemporânea. Partindo de uma breve análise ao contexto e incidentes resultantes de um jogo amigável de futebol realizado entre as selecções nacionais 262 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar de Portugal e de Angola em 14 de Novembro de 2001 em Lisboa, procuro destacar as tensões raciais existentes em Portugal, que resultam em parte de um processo de descolonização súbito e, não apenas recente, mas ainda mal digerido, e que levam a novas viagens entre ‘nós’, a nossa ideia de Europa e ‘o outro’ africano, aqui e lá, que constroem o ‘outro’ como o problema, parte das ‘gerações perigosas’, sendo raramente entendido enquanto sujeito social com histórias singulares que vive, reproduz e traduz tensões no espaço. I Próteses e lutas de escalas It is going to be very difficult, to be honest ... I am not confident I am going to make it. O. PISTORIUS4 Os nossos corpos são inescapáveis. São superfícies de inscrições sociais e culturais, que albergam subjectividade, são sítios de prazer e de dor, são públicos e privados, têm fronteiras permeáveis que são atravessadas por fluidos e sólidos; são materiais, discursivos e físicos5. É neles que começa toda a geografia que possamos ver, observar, medir, calcular, analisar. Clinicamente o meu corpo não é bem ‘normal’ desde que nasci. Não se conforma à regularidade estatística definida medicamente como sendo normal. Os parâmetros ‘normais’ de diâmetros, gradientes de fluxos, calibres, tortuosidades, motilidades, amplitudes de aberturas, etc. nem sempre são cumpridas. Aconselham-me os médicos a ter comigo um electrocardiograma recente pois o ‘normal’ deste meu gráfico mostra alguém que está prestes a ter um ataque cardíaco. Na nossa presente sociedade ocidental avançada, estas ‘anomalias’ levam a uma condição de inabilitado para diversas funções públicas e sociais, como por exemplo a realização do serviço militar obrigatório (que deixou de o ser), a participação em missões observação eleitoral da União Europeia, etc. Em tudo o mais, a pérfida força masculina de um corpo de mais de 90 quilos é empurrada para o desempenho de todo um conjunto de performances sociais que sustentam e alimentam ainda o género no espaço. De forma um pouco inesperada e súbita recebi a notícia de que as tortuosidades internas do meu corpo apresentavam configurações 263 Geografias do Corpo pouco aconselháveis e que necessitavam de correcções urgentes. Alimentado pela prática de horas sem conta de metodologias virtuais6, despoletei uma interacção electrónica com diversos centros médicos em dois continentes, com inúmeros especialistas médicos, e submergi numa linguagem técnica metamorfoseando conceitos geográficos como crescimento, sprawling, fluidez, amplitude, etc. em aneurismas, stents, fluxos e gradientes sanguíneos, esquemias, calibres e tortuosidades, velocidades sistólicas e acelerações, etc. A mudança de registo não pareceu assim tão radical. Continuei a falar de espaços, de formas e de processos; a diferença residia na escala e delicadeza individual. O carácter experimental da medicina fez-me decidir por quem repete mais vezes por dia um determinado procedimento, e tratei de organizar uma viagem quase dissimulada de Health Tourism ao Texas, nos Estados Unidos. Juntamente com cerca de duas centenas de diferentes corpos humanos desloquei-me a 900 quilómetros por hora para percorrer os 7820 quilómetros de Londres a Houston em cerca 8 horas. Os corpos aparentemente fixos ressentiam-se do ambiente esterilizado da cabine hermética e pressurizada que desidrata. Dentro de cada corpo, ondas electromagnéticas deslocavam-se a velocidades próximas dos 300 mil quilómetros por segundo, fazendo funcionar o cérebro e reduzindo a velocidade do Airbus a um mero jogo de crianças. No entanto os corpos sentiam a artificialidade do movimento aéreo, e a deslocação superior a 30 quilómetros por hora, limite máximo para o qual o nosso corpo foi concebido (36 km/h como máximo em prova de 100 metros), provocava um desequilíbrio corporal.7 Chegado ao George Bush Intercontinental Airport, em Houston, ajustei o relógio: o ponteiro anda 6 horas para trás. Para tentar concertar uma pequena parte do corpo percorri um quinto da circunferência terrestre, uma distância aproximada da viagem de 33 dias de Colombo de Espanha às Índias. Choca aqui uma Geografia de céus riscados de cápsulas móveis que transportam corpos pelo globo, com o meu interior, essa micro-geografia que precisa de ‘um aperto’. A materialidade visível do meu corpo, e não estas micro-geografias, fizeram-me estar na fronteira de entrada dos Estados Unidos mais tempo do que a maior parte dos altos, louros, de olhos azuis que 264 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar viajavam ao meu lado. O meu semblante moreno, para muitos quase magrebino ou mesmo persa, nomeou-me como potencial ‘ameaça’. A fluidez, fluxo e mobilidade paradigmática do espaço aeroporto deteve-se, perante esta estratégia de profiling.8 Uma estratégia que não deveria ser discriminatória, mas baseada num conjunto diverso de informação recolhida previamente, era-o: nacionalidade, etnicidade, religião, género, etc. constituíam a base da triagem. O pós Setembro 2001, o Department for Homeland Security, o Patriot Act, etc. davam assim forma às evoluções do processo de vigilância do corpo, à medição biométrica, à criação de elites de negócios cinéticas9, à selecção material de corpos e suas mobilidades, a geografias do medo, do terror e de paranóia colectiva. A prova da transferência financeira por via electrónica para o hospital americano tranquilizou os ‘serviços de estrangeiros e fronteiras’, e fui novamente ‘posto em marcha’. Quando aterrei em Houston, rapidamente tomei conhecimento que tinha chegado à ‘cidade mais obesa dos estados Unidos’, classificação atribuída pela Men’s Fitness Magazine resultante de um estudo de análise de diversos critérios10. O antropomorfismo de ‘cidade gorda’, serve quer para a obesidade dos seus habitantes, quer para a sua forma de metrópole em derrame acentuado11. Significativamente, os geógrafos urbanos têm-se mantido particularmente silenciosos acerca das relações entre a obesidade e as formas urbanas12. Esta obesidade visível nos autocarros, no hospital, nos restaurantes, tinha no entanto uma dimensão social e racial. Eram os afro-americanos hispânicos os que me pareciam mais obesos, sendo que os brancos me surgiam como os aparentemente mais saudáveis. Dentro do próprio hospital, onde encontrei um restaurante da cadeia MacDonalds (dos seus 8300 restaurantes nos Estados Unidos, 18 funcionam dentro de hospitais), parecia-me haver uma clara predominância de médicos, funcionários e pacientes afro-americanos. A literatura científica que encontrei a posteriori confirmou essa suspeita. Hoelscher et al13, num estudo sobre obesidade nas escolas no Texas, referem que não só a prevalência de obesidade nas crianças é maior no Texas do que a média americana, mas são sobretudo os rapazes hispânicos e as raparigas afro-americanas que têm índices de obesidade mais eleva- 265 Geografias do Corpo dos. Pelo contrário, as crianças brancas, sobretudo raparigas, são as que têm percentagens de obesidade mais reduzidas. Block, Scribner e DeSalvo14 encontraram também, em relação a Nova Orleães, que os bairros habitados predominantemente por afro-americanos têm 2,4 restaurantes de fast-food por milha quadrada, enquanto esta densidade é de 1,5 para bairros habitados predominantemente por brancos. A exposição a este tipo de alimentação tem contornos económicos e geográficos claros, com consequências na política e economia de corpos obesos. Na paisagem urbana destacavam-se diversos edifícios imponentes de centros hospitalares. Com uma lente mais fina, transparecia a importância do fenómeno globalizado do Turismo de Saúde. Várias cadeias de hotéis localizavam-se perto destes centros médicos de excelência; pequenos shuttles transportavam pacientes e familiares de lá para cá; mais afastados, inúmeros condomínios fechados, autênticos resorts urbanos, especializavam-se, prestando serviços personalizados no alojamento de pacientes e respectivas famílias; empresas de consultoria forneciam serviços de enfermeiras, médicos, acompanhantes para pacientes de e para os seus países de origem, e todo o tipo de serviços de saúde. Em 2006, em termos mundiais, a indústria de turismo médico estava avaliada em 40 mil milhões de euros. Se em muitos países se trata de tratamentos a um mais baixo custo (uma rinoplastia que na Índia tem um custo médio de 500 euros, nos Estados Unidos custa cerca de 4000 euros, por exemplo), a indústria do turismo médico em Houston especializa-se em serviços altamente tecnológicos e de vanguarda, tendo a cidade alguns dos melhores hospitais americanos. A importância desta indústria levou mesmo à criação em 2005 de um centro internacional de serviços médicos para visitantes no terminal das chegadas do aeroporto internacional George Bush, por forma a acolher os cerca de 10,000 pacientes internacionais que chegam todos os anos. Ao mesmo tempo, 46 milhões de americanos não têm seguro de saúde. Enquanto o meu corpo ‘pós-humano’15 em recuperação fazia zapping numa das duas televisões do pequeno apartamento em que convalescia, ora via o torneio de ténis dos Estados Unidos - Flushing Medows - em Nova Iorque, onde corpos saudáveis lutavam incon- 266 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar sequentemente, mas com as mesmas regras, contra a superioridade de um Suíço, ora observava o prenúncio de uma tempestade tropical que anunciava tornar-se furacão e atingir a costa dos Estados Unidos. À medida que esta se desenvolvia, e a sua magnitude e rota incerta começava a torná-la numa ameaça e fenómeno de dimensão global, matutava nas formas como o meu corpo poderia escapar a Figura 1 – Paisagens intersticiais Fonte: Arquivo próprio esta globalidade. Como podia eu colidir com um fenómeno climático de origem global por causa de uma pequena parte do meu corpo? O absurdo do furacão chocar com a minha aorta tornava-se um paradoxo de escala. No apartamento do condomínio fechado de classe média, um dos 7 milhões de alojamentos (6%) por detrás de muros e grades nos Estados Unidos16, nós, os poucos ou únicos não (auto) mobilizados estávamos ancorados, fixos no espaço, armadilhados 267 Geografias do Corpo numa cidade e Estado fortemente auto-mobilizado: em média um habitante de Houston viaja de automóvel mais de 16,000 km por ano, número só inferior aos dos habitantes de Atlanta (em Portugal ronda os 10,000 km). O aparente controlo da transferência electrónica global de capital, os corpos a 900 quilómetros por hora, a ‘morte’ do espaço e do Atlântico com os intercâmbios de mensagens e ficheiros de informação que tão depressa se desagregavam em pacotes que percorriam o globo como se juntavam de forma inteligível no destinatário pretendido, tudo isso parecia desmoronar-se perante os cenários apresentados. A escala da mobilidade do meu corpo tinha encolhido ferozmente. Neste pensamento de fuga, encontravam-se também muitos outros corpos. E aqui se viu o fosso enorme que divide ‘classes de corpos’, corpos brancos e corpos negros, corpos com poder e corpos marginais. A exclusão da mobilidade foi atroz. O corpo enquanto sítio político de luta e contestação aflorava. Quando o furacão Katrina atingiu a costa do Golfo dos Estados Unidos, em 29 de Agosto de 2005, afectou cerca de 233,000 km2 (cerca de duas vezes e meia a superfície de Portugal continental) nos estados de Luisiana, Mississípi e Alabama. Nova Orleães era particularmente atingida, tendo a catástrofe sido maior devido ao rebentamento dos diques que protegiam a cidade. À medida que os ecrãs de televisão derramavam imagens de Americanos negros desesperados por assistência após a tempestade, muitos telespectadores não podiam deixar de ‘ver’ raça e racismo a funcionar17, bem como a luta tremendamente desigual que começava a assumir proporções catastróficas na área do Golfo americano. As imagens do Superdome e Centro de Convenções mostravam que a esmagadora maioria das vítimas que ainda estava na cidade era negra. Os media utilizavam desproporcionadamente o termo ‘refugee’ em relação a ‘evacuee’, denotando um preconceito linguístico racista, e após uma semana, o presidente Bush reprovou este uso, e diversas organizações aconselharam em alternativa o uso de termos como ‘evacuados’, ‘sobreviventes’ ou ‘vítimas’18. Uma visão simplista era difundida, mascarando a subtileza do racismo cultural e institucional. Após a passagem do furacão, o número de evacuados ou de ‘internally dis- 268 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar placed persons’ subiu para cerca de um milhão. O fenómeno global acabou por não se mostrar trágico para a minha geografia intersticial, e de novo a 900 quilómetros por hora, se bem que numa cadeira de rodas temporária, regressei a Portugal. Do avião espreitei o céu. Kandahar estava longe; adormeci a sonhar com próteses a flutuar no espaço. II Corpos em Luta Hoje eu tenho que sublinhar, acima de tudo, a raça, o dia da raça, o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas19 No dia 14 de Novembro de 2001, sensivelmente 40 anos após o início da guerra entre Portugal e Angola, 22 corpos masculinos, aparente e medicamente aptos para praticarem um desporto que exige força física, técnica e determinação, entraram num espaço de cerca de 8000 m² (antigo estádio de Alvalade), para fazerem um jogo amigável, que servisse de preparação para o Campeonato Mundial de Futebol de 2002. Das duas selecções – Angola e Portugal - apenas a primeira se tinha qualificado. Neste espaço de fronteiras conhecidas, 18 portugueses (alguns dos quais descendentes de africanos20) e 18 africanos enfrentaram-se somente pela segunda vez numa situação de aparente igualdade: o primeiro jogo entre estas equipas tinha-se realizado em 1989, também em Lisboa; todos os confrontos anteriores foram desiguais; o ‘assimilado’ nunca deixou de ser um ex-indígena (ver mais adiante)21. Nesta última ocasião, em 2001, sucedeu algo de invulgar no futebol: o jogo amigável foi suspenso a 20 minutos do fim, devido à equipa angolana ter menos de 7 jogadores em campo: 3 jogadores foram expulsos por faltas ‘violentas’, ‘entradas duríssimas’ – assim são classificadas pelos media especializados – um por insultos dirigidos ao árbitro e um último por alegada lesão física. O resultado era então de 5 a 1, favorável a Portugal, tendo Angola estado a ganhar por 1-0. A tensão decorrente destes acontecimentos dentro do campo, reflectiu-se e ‘contagiou’ o ambiente fora do campo, nas bancadas e fora do estádio, e adeptos identificados como Angolanos, 269 Geografias do Corpo arrancaram cadeiras, enfrentaram a polícia, vandalizaram paragens de autocarro, automóveis e montras comerciais. João Paulo N’Ganga, sociólogo e à época dirigente da Associação SOS Racismo, afirmou que o que estava em causa, na perspectiva dos Angolanos, não era apenas um jogo de futebol, mas uma partida entre ex-colonizadores e ex-colonizados: ‘Roubaram-nos no campo como nos roubam no dia-a-dia’22. Esta ideia de injustiça esteve também presente nas palavras do presidente da Federação Angolana de Futebol, Justino José Fernandes, ao declarar que teria sido melhor se o árbitro do encontro pertencesse ao universo da lusofonia: ‘preferia que o jogo tivesse sido apitado por um árbitro português, cabo-verdiano ou moçambicano’. Na verdade o árbitro era europeu, francês, e branco. O seleccionador Angolano, Mário Calado, referiu que este ‘lamentavelmente sentiu-se complexado por uma equipa africana estar a vencer a selecção portuguesa’. Em Angola, o acontecimento não foi muito destacado pela imprensa. No entanto, o Jornal de Angola de 15 de Novembro escrevia: ‘Árbitro estraga festa em Alvalade (…) parcialidade absoluta e uma dualidade de critérios jamais vista’. A inconsciência, agressividade e violência rotuladas pelos media portugueses aos jogadores angolanos, era para os dirigentes e media angolanos vista como virilidade e masculinidade. Aliás, o presidente do comité olímpico angolano, Rogério Silva, estendeu geograficamente este vigor a todo o continente africano, avisando que Portugal não deve esperar menor virilidade das equipas africanas que venha a defrontar no Mundial de 2002. Sintomaticamente, cerca de um mês antes deste encontro de futebol, a 7 de Outubro de 2001, no Parque dos Príncipes em Paris, jogaram pela primeira vez as selecções de França e da Argélia (independente desde 1962). Os assobios ao hino da Marselhesa foram um prelúdio para a invasão de campo que mais tarde ocorreu, quando a equipa de França vencia por 4 a 1. Não ousando sequer por um segundo analisar as justiças ou injustiças desportivas no campo, as tensões que nascem e se propagam de dentro para fora do campo, ou vice-versa, por vezes sintomáticas de situações que transcendem em muito os 8000 m²23, devem ser analisadas e contextualizadas não só 270 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar na história colonial dos intervenientes, mas na situação pós-colonial que existe ‘cá’ e ‘lá’. No jogo de Lisboa, contavam-se 12 Angolanos a residir e jogar em Portugal, sendo que seis destes efectivamente jogaram (incluindo a estrela Mantorras, jogador do Benfica). Alguns eram mesmo colegas de equipa dos agora adversários que defrontavam. Os jogadores Angolanos tinham idades compreendidas entre os 21 anos (nascidos em 1982) e os 31 anos (nascidos em 1970). Nesta última data, Angola já estava em guerra com Portugal (desde 1961), e após a independência do país, em 1975, uma longa guerra civil de 27 anos teve lugar (apenas entremeada por dois períodos de ‘nem guerra, nem paz’, em 1991-2 e 1994-98), apoiada pelas potências da Guerra Fria até ao final dos anos 80. Só terminaria em 2002, um ano após este jogo ter tido lugar. Dois anos antes do jogo, em 1999, a Unicef escrevia que Angola era o pior país do mundo para se ser uma criança24. A imigração de jogadores africanos tem já uma longa história25, tendo começado na década de 50 com jogadores como Matateu, José Águas, Hilário, Costa Pereira, Mário Coluna, entre outros, muitos dos quais naturalizados e assim representantes e responsáveis em grande medida pelos sucessos da selecção nacional Portuguesa dessa época, que atinge o seu auge de significado político com a ascensão de Eusébio, conhecido como ‘a pantera negra’, a símbolo nacional. Nada podia dar mais jeito a Salazar do que um ‘assimilado de cor’ constantemente enaltecido publicamente na metrópole, constituindo um recurso colonial e neo-colonial26. Dos mais de meio milhão de retornados que entrou em Portugal entre 1975 e 1977, 61% veio de Angola27. Muitos, como os três filhos de Isilda, do romance de Lobo Antunes O Esplendor de Portugal, nunca tinham estado na ‘metrópole’. Segundo os censos do INE de 2001, havia em Portugal 37,014 cidadãos de nacionalidade angolana (26,702 com estatuto de residente em 2004 segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) e 124,756 de nacionalidade portuguesa mas de naturalidade angolana (35,9% do total dos portugueses nascidos no estrangeiro). Eram assim à altura a terceira maior comunidade estrangeira no país (atrás da cabo-verdiana e brasileira), a se- 271 Geografias do Corpo gunda dos PALOP, e em forte crescimento na década de 90. A estes números oficiais, haverá que acrescentar os clandestinos. Dora Poseidónio28, num trabalho sobre a integração da comunidade angolana (descendentes Angolanos e Luso-Angolanos) na área metropolitana de Lisboa, conclui que existem diversas dificuldades e problemas de integração e estigmatização nas pessoas deste grupo: estão sobre-representados em bairros degradados, em habitações sociais e barracas, apresentam níveis de insucesso escolar elevados e há uma ausência de indícios de mobilidade profissional ascendente. Garcia29 evidencia também numa investigação empírica, que é pequena ou mesmo nula a relevância cultural atribuída às comunidades estrangeiras na sociedade portuguesa e na riqueza cultural do país. Neste domínio é interessante referir o trabalho de Vala, Pereira e Ramos30 que indica que Portugal apresenta um nível mais alto de expressão pública que se opõe à imigração do que a média europeia e do que a Alemanha, França e Reino Unido, em particular, sendo este o resultado de uma sensação de ameaça cultural, sustentada por convicções racistas e rejeição de valores igualitários. São vários os estudos que apontam as condições precárias dos trabalhadores africanos em Portugal, sobretudo onde são mais numerosos, na área metropolitana de Lisboa. Eaton31 por exemplo, refere-se a esta mão-de-obra flexível nestes termos: salários baixos, abuso e exploração por empregadores por vezes sem escrúpulos, preconceitos raciais ocasionais, violência racista esporádica, discriminação nas áreas da habitação e educação, reunindo-os significativamente em ‘semi-escravatura’. Malheiros e Vala32, que também indicam problemas de discriminação e preconceito por parte de empregadores, sublinham a dificuldade acrescida em encontrar emprego entre os Africanos na área metropolitana de Lisboa nos anos 90 (entre 1991 e 2001), devido à crescente concorrência com os ‘novos’ emigrantes de Leste e Asiáticos, mais qualificados num caso e menos relutantes em aceitarem salários mais baixos no outro. Neste período, regista-se um aumento da taxa de desemprego entre os Africanos, o que é contrário a todos os outros grupos de emigrantes33. Marques34 argumenta que a representação contemporânea dos imigrantes africanos em Portugal ainda deve muito ao ‘negro colonizado’. 272 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar Por alturas do encontro de futebol, em 2001, e apesar das melhorias das condições de habitação devido a políticas como o Programa Especial de Realojamento, os Africanos eram aqueles que apresentavam as mais altas taxas de pessoas a viveram em bairros de lata, tendo ainda uma muito alta proporção de pessoas a viverem em casas sobrelotadas35, não dispondo de boas acessibilidades aos centros de comércio e serviços, isolados das redes ferroviárias, auto-estradas, cemitérios, áreas industriais, etc.36. Sem dúvida que o capitalismo residente na reestruturação da área metropolitana de Lisboa, nos grandes projectos e obras públicas dos anos 90, gira em torno da produção de um novo tipo de corpo trabalhador, um corpo que constitui em si uma estratégia de acumulação37. Este corpo colectivo de força de trabalho, dividido em hierarquias de capacidades, técnicas, autoridade, de funções manuais e mentais, sempre com relações instáveis entre si38, quando cruzado com as categorias de ‘classe’ e ‘raça’ torna-se particularmente poderoso. A construção europeia da África assentou na teoria do darwinismo social, na qual a ‘raça branca’ é superior a todas as outras. De escravo a indígena, de indígena a assimilado quando culturalmente europeizado, a reforma de 1951 revogou o Acto Colonial de 1930, e pretendeu alterar por legislação as relações entre espaços e pessoas no império português, harmonizando por decreto as relações entre colonizador e colonizado. As colónias passaram a ser províncias ultramarinas, e o império passou a ser uma nação ‘do Minho a Timor’. Numa das típicas canções da Mocidade Portuguesa (música e letra de Mário de Sampayo Ribeiro), entoada nas escolas primárias e secundárias, podia-se ouvir: ‘A nossa Pátria é tão grande que o Sol não deixa de a ver - Quando se esconde no Corvo em Timor está a nascer - É Portugal um jardim Espalhado pelo mundo inteiro - E nele só vicejam flores de que Deus foi jardineiro!’. O ‘Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique’, aprovado por Decreto-lei de 20 de Maio de 1954, consignava as modalidades segundo as quais qualquer ‘indígena’ das colónias portuguesas podia ser ‘elevado’ à condição de ‘assimilado’. Em teoria, qualquer indivíduo que soubesse ler e escrever em português e demonstrasse possuir actividade laboral remune- 273 Geografias do Corpo rada poderia ascender a essa condição. Mas os dados do Relatório da Aplicação do Estatuto dos Indígenas Portugueses referente aos anos de 1955, 1956, 1957, 1958, Província de Moçambique, elaborado pela Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas, não deixam dúvidas quanto ao insucesso do processo de assimilação, fosse pela dificuldade em preencher os requisitos ou inconvenientes que daí advinham, fosse pelo parco empenho das autoridades administrativas ou decisores políticos em que tal processo se consumasse de forma escorreita. Em 1955 apenas 28 ‘indígenas’ obtiveram o estatuto de assimilado em toda a colónia. Nos anos seguintes, e até 1958, os valores aumentaram, mas, ainda assim, o total de todos os distritos para esses 4 anos não ultrapassou os 442 indivíduos! A lei do assimilado, o estatuto do indígena, era uma lei não cumprida na prática, e a inferiorização, a descriminação, a segregação e o trabalho forçado sempre foram a regra nas colónias portuguesas. Ao estender a cidadania para negros e mestiços houve uma legitimação da ‘supremacia branca’, da opressão da raça e classe para os excluídos, ou seja, a maioria africana39. Em 1995, numa sondagem publicada pelo jornal Público, apenas 3% dos inquiridos se diziam racistas, e 80,9% do total afirmava mesmo que não era racista de todo. Se estes dados podem não surpreender em si, já o facto dos inquiridos revelarem que os povos da Europa do Norte são muito mais racistas do que os Portugueses, indica que ‘nós’ julgamos ser diferentes, diferentes para melhor. O que nos leva a presumir convictamente isso fundamenta-se, em parte, numa associação entre a suposta plasticidade e a cordialidade do luso-tropicalismo e o carácter nacional, que alegadamente desemboca numa associação fraca entre a identidade nacional e a discriminação40. Ao mesmo tempo, ao passo que o luso-tropicalismo pode ‘proteger’ os portugueses de expressões públicas de discriminação aberta (havendo no entanto muitos exemplos da existência desta discriminação pública), não os protege de novas e escondidas formas de discriminação, tal como a inferiorização cultural41. Para Freyre, que foi aluno de Franz Boas, a capacidade de miscigenação tropical do português é mesmo in-corporada ‘amorenando-se sob o sol dos trópicos ou sob a acção ou o requeime da mestiçagem tropical (…) 274 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar dando à cultura e, em certas áreas, à própria gente lusitana, uma espécie de vigor híbrido’42. Às críticas das Nações Unidas, Portugal respondia de forma autista com a nação indivisível, com a ausência de discriminação e segregação racial nas províncias, e com o aparente exemplo de democracia racial do Brasil. O ‘não racismo’ português, para além de um traço ideológico, adquiriu também dimensões míticas43. Antes de podermos chegar a um third space de Homi Bhabha ou a um hibridismo cultural cosmopolita, é necessário desconstruir ou problematizar o discurso lusotropicalista que de certa forma inicia o mito do português como não-racista, que foi cientificamente adoptado por um conjunto largo de académicos (i.e. Jorge Dias, Henrique de Barros, Adriano Moreira e Orlando Ribeiro), com uma marcada ausência de espírito crítico, e que ainda hoje está fortemente presente na sociedade portuguesa44. Tal como as fotografias de Ingrid Pollard, que destabilizam a paisagem pastoral inglesa através da presença de um estranho corpo negro45, o que mais alvoroçou os media e a sociedade portuguesa no desfecho do jogo de 2001, foi a ‘violência’ de corpos negros em plena ‘metrópole’. Esta desterritorialização da violência em directo perturba a construção de noções claras do lugar dos corpos da espacialidade dos comportamentos que devem e podem ser aceites46. Se isto se tivesse passado em África, nada de excepcional teria ocorrido. A ‘área cultural lusotropical’ e a configuração social híbrida única que ainda permeia discursos no país não encontravam eco nestes acontecimentos. O jogo despoletou também uma série de comentários de jornalistas e de adeptos que estabelecem a ponte entre a batalha no relvado e ideias enraizadas na sociedade portuguesa que se fixam através de processos da construção de um Outro africano, negro, emigrante de segunda geração, delinquente. O discurso, a discriminação, o distorcer da linguagem e de terminologia aproxima-se de Nova Orleães. Aos corpos negros em Alvalade, quer dentro quer fora do estádio, eram associadas geografias imaginativas de exclusão que desafinavam com a construção passada do bom selvagem. A África feminina dos exploradores, dos variados fenótipos vistos como esbeltos, do erotismo feminino africano, estava longe desta ‘maré negra’ como alguém se referiu ao comentar a violência em 275 Geografias do Corpo torno de Alvalade. A geografia do desejo, histórica e socialmente construída era agora indesejada em casa. De certo modo, África e os africanos sempre foram construídos pelos europeus como o retrato de Dorian Gray; as suas geografias são o estandarte no qual o mestre coloca todas as suas deformidades físicas e morais para que continue em frente, erecto e imaculado. Não querendo cair numa lógica maniqueísta de vítimas e culpados determinados pela ‘raça’, quer defendendo uma perspectiva Marxista quer Weberiana, e não esquecendo o poderoso retrato de Lobo Antunes dos colonos brancos retornados de Angola, subalternos explorados pelos Europeus, vistos em Portugal como os ‘Pretos de Lisboa’, sem terra, sem identidade, sem poder, sem amor47, creio que no contexto do ‘jogo’ de 2001, tal como no caso de Nova Orleães, as categorias ‘classe’ e ‘raça’ aparecem marcadamente cruzadas. O terreno ‘pós-colonial’ de 8000 m2 onde decorreu o jogo de 2001, semanticamente adjectivado como um espaço que sucede a um tempo de ódio, guerra e violência, denota que a dimensão temporal da expressão pós-colonialismo encerra perigos, e nas palavras de Gandhi48 revela-se falsamente utópica e prematuramente comemorativa49. É com certeza arriscado estabelecer uma relação entre os 70 minutos de (não) futebol juntamente com a violência gerada no e fora do estádio, e os séculos de opressão e exploração. Quando o espectáculo e resultado de um jogo de futebol não se materializou num escape de um quotidiano áspero, quando não proporcionou a desejada ainda que efémera alegria da vitória sobre aqueles que representam a brutalidade de um passado e muitas vezes um presente colonial50, aflorou uma certa frustração. Aqui ‘em casa’, os mais de 25 anos de miséria, discriminação e preconceitos quer sociais quer raciais, não construíram apenas corpos como entidades passivas pertencentes a uma máquina particular de papéis económicos performativos, em que estes são diferenciados e marcados por diferentes capacidades produtivas e qualidade físicas de acordo com a história, geografia, cultura e tradição51, mas resultaram também em corpos implicados em processos de resistência, contendo desejos de reforma, rebelião e mesmo revolução. 276 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar Quando os africanos pós-coloniais migram para Portugal, migram para ocupar posições de classe que lhes retiram toda e qualquer mais-valia enquanto exóticos localizados52. A sua posição social e a sua cor de pele empurra-os para um espaço em espiral de ‘bairros problemáticos, exclusão social, emprego precário, bairros problemáticos’…Em O Vento Assobiando nas Gruas, Lídia Jorge retrata bem esta farsa da pluralidade de uma sociedade pós-colonial, que não se reconhece nem aceita enquanto tal. A criação de um novo espaço para resolver a crise do espaço português pós-colonial desemboca na ideia de Eduardo Lourenço de que ‘Portugal é um país que nunca saiu dele. Sai sem sair’. Uma história simples? A história do meu corpo vai de encontro à ideia de Haraway53 de que os corpos não são apenas de carne e osso, mas são mapas de poder e de identidade. Os contrastes chocantes entre a cirurgia que implica o saber e poder fazer parte de uma rede de contactos e movimentos globais, que implica um custo 100 vezes superior ao rendimento anual per capita no Quénia, e as próteses lançadas no Afeganistão, mostram o quanto corpos diferentes em lugares diferentes têm valores, conhecimentos e poderes distintos. No final de contas, a incursão do meu corpo pela América do Norte, e a minha confrontação com outros corpos, foi inicialmente gerada por uma malformação congénita resultado mais provável do paludismo. O espaço e o tempo apontam para África no final dos anos 60. Um casal, um dos muitos dessas centenas de milhares de mobilizados para o ultramar, fazia de forma pouco convencional, pouco imaginada e não sonhada, o seu início de vida a dois. Ao contrário do Katrina, o império ficcionado que se excedeu a si mesmo, como o fez com muitos de ‘cá e lá’, chocou mesmo com o meu corpo. A violência nos 8000 m2 em Lisboa, quando 22 corpos colidiram sob efeito da cor da pele e de muitos anos de desigualdade, reporta-se também a África, ao outro lado do que em tempos se quis que fosse um Brasil em África. ‘Raça’, etnicidade, classe, sexualidade, género, etc. constituem processos de normalização (que frequentemente são construídas como naturais) entendidas por Foucault como 277 Geografias do Corpo prisões sociais, sobre os quais a Geografia deve reflectir com uma certa dose de plasticidade. O reconhecer e aprender a partir das geografias do corpo, sejam elas experiências individuais e de escala micro, ou processos de marginalização e discriminação de escala mais abrangente (que não se devem restringir aos locais paradigmáticos de diversidade étnica urbana ‘exótica’), permite abordar não a diferença por si, mas a diferença significativa. Assim como o corpo tem uma geografia histórica a partir da qual podemos tentar compreender a produção do poder, do território e da desigualdade, também a nossa própria tentativa de cartografar essas geografias é corporizada e inescapável. Notas Longhurst 2005: 94. 2 Barnes e Gregory 1997; Rose 1997. 3 Harvey 2000. Oscar Pistorius: atleta com membros inferiores amputados que tentou sem sucesso obter tempos mínimos para participar nos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008, após um demorado e controverso processo em que lhe foi reconhecida essa possibilidade. 5 Longhurst 2005. 6 Sarmento 2004. 7 A natureza do nosso corpo é perfeitamente compreensível quando analisamos a mortalidade (em percentagem) resultante de atropelamentos rodoviários em função da velocidade dos automóveis: 5% a 32km/h; 45% a 48km/h, 85%a 64km/h, e 100% a velocidades acima de 80km/h. 8 Ver Adey 2004. 9 Graham e Marvin 2001. 10 Ver Sui 2003 e www.mensfitness. com. Houston classificou-se em número um em 2002, 2003 e 2005, tendo sido a quinta em 2006, a sétima em 2007 e a décima em 2008. 11 Ver Eid et al 2008. 12 Sui 2003. 13 Hoelscher et al 2004. 14 Block, Scribner e DeSalvo 2004. 15 Ver Brito-Henriques 2009, neste volume. 16 US Census Bureau 2001. 17 Elliot e Pais 2006. 18 Ver Sommers et al 2006. 19 Discurso do Presidente da República Portuguesa em 10 de Junho de 2008. 20 Luís Boa Morte tem ascendência Guineense enquanto os pais de Jorge Andrade são Cabo-verdianos. 21 À semelhança de Salazar, que nunca chegou a pisar nenhuma das ex-colónias, a selecção portuguesa de futebol nunca jogou no continente Africano (quer em jogos oficiais, quer em jogos particulares). 22 Jornal Público, 16 Novembro 2001: 43. 23 Ver Brown 1998 para mais detalhes sobre racismo e futebol. 24 UNICEF 1999. 25 See Coelho 26 Darby 2006. 27 Machado 1994. 28 Dora Poseidónio 2004. 29 Garcia 2000. 30 Vala, Pereira e Ramos 2006. 31 Eaton 2004. 32 Malheiros e Vala 2004. 33 Malheiros e Vala 2004. 34 Marques 2007. 35 Malheiros e Vala 2004. 36 Fonseca 2008. 1 4 278 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar Harvey 2000; Sarmento 2008; Philo 2009 neste volume. 38 Harvey 2000. Hernandez 2002. 40 Vala, Lopes e Lima 2008. 41 Vala, Lopes e Lima 2008. 42 Freyre 1956: 14-16. 43 Marques 2007. 44 Neto 1997 e Bastos 1998. 45 Ver Kinsman 1995. 46 ver Philo 2009 neste volume. 47 Santos 2005. 48 Gandhi 1998. 49 Passados não muitos anos sobre este episódio, em Junho de 2005, inventou-se um arrastão ‘à moda brasileira’ na praia de Carcavelos, revelando uma vez mais uma paranóia colectiva de ‘negrofobia’ e de construção de um outro (ver Almeida 2006 e Carvalheiro 2008). 50 Gregory 2004. 51 Harvey 2000. 52 Almeida 2006. 53 Haraway 1991. 37 39 Referências Adey, P. 2004. Secured and Sorted Mobilities: Examples from the Airport Surveillance & Society 1(4): 500-519. Almeida, M. V. 2006. Comentário in Sanches, M. R. (Ed.) Portugal não é um país pequeno. Contar o ‘império’ na pós-colonialidade. Lisboa: Cotovia. Barnes, T. J. e Gregory, D. 1997. Worlding geography: geography as situated knowledge. In: Barnes, T. J. e Gregory, D. (Eds.) 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Tendo realizado o seu mestrado em Educação Ambiental, no âmbito de um projecto europeu de investigação que lhe proporcionou uma bolsa de estudo na Danish Research Academy, desenvolveu pesquisa em torno das Geografias da Infância, vindo a especializar-se em Gegrafia Cultural e Estudos da Paisagem. Procurando a aproximação entre Geografia e Cinema, o seu trabalho de doutoramento, que conta com um percurso de investigação efectuado de 2001 a 2004 na University College London e de 2004 a 2006 na Universidade do Minho, permite a compreensão da paisagem como construção cultural e como ideia, mostrando como esta se desenvolveu através da cultura visual e da experiência fílmica. Ana Francisca de Azevedo tem já um conjunto significativo de artigos publicados nacional e internacionalmente em diferentes revistas científicas. Em 2006 foi co-organizadora de um livro intitulado ‘Ensaios sobre Geografia Cultural’, uma obra implicada com a reconceptualização do espaço, lugar e paisagem, tendo subjacente a revisão crítica destas ideias. José Ramiro Pimenta é professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho. A sua investigação tem-se orientado nos domínios da História e Teoria da Geografia, Geografia Cultural, e Geografia Histórica do Conhecimento, especialmente a Geohistoriografia da Arqueologia portuguesa. As suas principais publicações são: ‘Geografia e Arqueologia: uma epistemologia comparada’ (Porto: Figueirinhas, 1996); ‘Arqueologia: uma introdução pós-crítica’ (Porto: Figueirinhas, 1997); ‘Arqueologia’, in Dicionário de História de Portugal, dir. de António Barreto e Maria Filomena Mónica (Porto: Figueirinhas, 1999); Coordenação de ‘O Instituto de Geografia da Faculdades de Letras do Porto’ (Porto, 2002); ‘Geo-historiografia da Cultura Castreja’ (Porto: Figueirinhas, 2007); ‘O Lugar do Passado em Martins Sarmento’ (Porto: Figueirinhas, 2008). Coordenação, com João Sarmento e Ana Francisca de Azevedo, ‘Ensaios de Geografia Cultural’ (Porto: Figueirinhas, 2006) e ‘Geografias pós-coloniais’ (Porto: Figueirinhas, 2007) João Sarmento é Professor Auxiliar com Nomeação Definitiva no Departamento de Geografia da Universidade do Minho. Doutor em Geografia pela Universidade de Cork, Irlanda (2001). Tem publicado nas áreas da Geografia Cultural, Geografia do Turismo, Geografia dos Transportes, Tecnologias de Informação e Comunicação e Pensamento Geográfico. Em 2004 recebeu o prémio Nacional de Geografia Orlando Ribeiro, atribuído pela Associação Portuguesa de Geógrafos, pela obra ‘Representation, Imagination and Virtual Space. Geographies of Tourism Landscapes in West Cork and the Azores’, publicada nesse mesmo ano pela Fundação Calouste Gulbenkian (ISBN 972-31-1072-5). Em 2006 foi co-organizador (com A. F. Azevedo e J. R. Pimenta) do livro ‘Ensaios de Geografia Cultural’ (ISBN 9789726612049), uma obra implicada com a reconceptualização das ideias de espaço, lugar e paisagem. Foi Director do Departamento de Geografia da Universidade do Minho (20042006), Director do Núcleo de Investigação em Geografia e Planeamento (20032007), Director do Curso de Geografia e Planeamento (2004-2005) e Presidente do Conselho de Cursos de Ciências Sociais da Universidade do Minho (2004-2007). É o editor principal da revista científica ‘Aurora Geography Journal’. Leccionou em diversas universidades de países estrangeiros como Timor, Brasil, Irão, Finlândia, Letónia, República Checa, Espanha, Suécia e Irlanda. «Considerada recentemente, por Denis Cosgrove, como ‘um dos mais vibrantes e disputados subdomínios da Geografia Humana’, a Geografia Cultural promoveu nas últimas décadas uma renovação das abordagens teóricas e metodológicas no seio da disciplina. Inúmeras são as razões que subjazem à força renovada que se tem vindo a sentir neste campo de estudos, tanto internamente como na relação com outras áreas científicas, pelo que delas apresentaremos uma breve síntese. Em primeiro lugar, destaca-se o esforço de diversos autores que, sensivelmente desde a década de 1980, se encontram implicados na revisão crítica de uma tradição de pensamento geográfico que encontra as suas raízes nas geografias francesa e americana, escolas herdeiras de uma Antropogeografia germânica dos finais do século XIX. O trabalho destes autores implica a reavaliação do projecto científico da Geografia moderna e das suas expressões no âmbito das abordagens culturais. O forte legado das abordagens ecológica e etnográfica que percorre aquela tradição de pensamento geográfico viu-se revigorado, sobretudo a partir da década de 1990, contribuindo para a revisão, no seio de uma new cultural geography, dos conceitos de ‘natureza’ e ‘cultura’, e fragmentando o dualismo epistemológico sobre o qual parte substancial da tradição geográfica foi convencionalmente construída (Livingstone). Denunciando a apropriação e a mediação cultural do mundo natural por parte dos projectos científicos da modernidade, a ênfase da nova Geografia Cultural passou a colocar-se na tentativa de detonação daquele dualismo, sustentando-se que a acção humana não pode dividir-se de acordo com tal imperativo: todos os ambientes e paisagens são co-produções de natureza-cultura (Latour). Mas esta é apenas uma das dimensões sobre a qual se fundam os desenvolvimentos recentes da Geografia Cultural. O impacte das correntes transdisciplinares de pensamento e de novas teorias, que forçaram a recolocação dos debates nas Ciências ...» (da Introdução do livro ‘Ensaios de Geografia Cultural’, 2006) J. SARMENTO, A. F. de AZEVEDO, J. R. PIMENTA (coordenação) ENSAIOS DE GEOGRAFIA CULTURAL Paul CLAVAL Michael R. CURRY Denis LINEHAN João SARMENTO Ana Francisca de AZEVEDO José Ramiro PIMENTA iii figueirinhas «O ‘pós-colonialismo’ emergiu nas últimas décadas do século XX como problemática cultural através da qual se reorganizam as categorias da diferença e alteridade. Dinamizando os debates em torno das políticas de lugar e de representação, a problemática pós-colonial decorre de uma profunda transformação nas instâncias de produção da subjectividade bem como de movimentos político-intelectuais implicados com a autorização de diferentes posicionalidades. Comummente associada aos trabalhos desenvolvidos no âmbito dos Estudos Literários e Culturais, esta problemática surge como preocupação central para as mais diversas áreas; na Antropologia e na Sociologia, na História e na Geografia. Sustentando uma teoria cultural crítica que agita o mundo académico, a problemática pós-colonial permitiu a organização de um paradigma dentro do qual se revêem experiências de colonização e se reorganizam os processos que resultam de diferentes momentos de descolonização formal. Mais do que uma reflexão sobre o ‘encontro colonial’ como elemento determinante para a constituição do sujeito do humanismo, o paradigma pós-colonial encontra-se comprometido com ‘a crítica, a exposição, a desconstrução, a contraposição, e a transcendência das presenças e dos legados culturais e ideológicos do imperialismo’. 1 As condições de debate são, por isso, complexas e revestidas de tensões que não podem ser descuradas. Num primeiro plano, tais condições aglutinam aspectos raciais e de género, questões de corpo e identidade, as quais assumem visibilidade renovada pela força das perspectivas marginais e subalternas que forçam a reconsideração das visões situadas sobre as quais se ergueram os domínios de um propalado conhecimento universal. A revisão dos textos e discursos do colonialismo configura-se como uma prática que é mais do que uma teoria, é a experiência de autorização de novas subjectividades. Num outro plano, as condições de debate num presente pós-colonial configuram a emergência de espaços radicalmente novos que desafiam as fronteiras de uma metageografia global. A amplitude da agenda pós-colonial não é por isso susceptível de mapeamento breve. Ao envolver uma multitude de esforços de reposicionamento, esta agenda alerta, antes de mais ...» (da Introdução do livro ‘Geografias Pós-coloniais’, 2007) Coordenação de José Ramiro Pimenta João Sarmento Ana Francisca de Azevedo GEOGR A F I A S PÓS-CO LO N I A I S Ensaios de Geografia Cultural Ana F de Azevedo James D Sidaway João Sarmento José R Pimenta Marcus Power Matthew Gandy Richard Phillips iii figueirinhas View publication stats