iii
figueirinhas
Outras obras coordenadas pelos mesmos autores:
Ensaios de Geografia Cultural. Porto: Figueirinhas (2006), com artigos de Paul Claval, Denis
Linehan, Michael R. Curry, Ana Francisca de Azevedo, José Ramiro Pimenta e João Sarmento.
Geografias Pós-coloniais. Porto: Figueirinhas (2007), com artigos de Ana Francisca de Azevedo,
James D. Sidaway, João Sarmento, José Ramiro Pimenta, Marcus Power, Matthew Gandy e
Richard Phillips.
GEOGRAFIAS DO CORPO
Ana Francisca de Azevedo cria a ideia de desgeografização do corpo como mobile através do qual
emergem novas políticas de lugar, declinando uma visão da terra ‘naturalizada’ pelos sistemas
de signos geográficos que sustentam as modernas espacialidades, propondo a ruptura com uma
geografia do sujeito único.
Benedict Hoff aborda a complexidade de estéticas alternativas postas em jogo por filmes ‘art house’,
para indagar o grau de eficiência de novas técnicas fílmicas usadas para a aproximação a problemáticas específicas como o corpo e a sexualidade, manifestadas de modo diferente em diversas
culturas.
Chris Philo analisa, através da descrição e análise minuciosa de prisões e instituições similares, a
importância das proposições biológicas sobre a vida e a morte e a exposição crítica das múltiplas
formas como têm sido constrangidamente manipuladas por ‘soberanos’ com o poder de dexiar
viver ou fazer morrer.
Eduardo Brito-Henriques apresenta uma reflexão sobre as geografias particulares que as múltiplas
possibilidades do corpo trans- ou pós-humano geram nas sociedades contemporâneas, apoiando-se no conceito de utopianismo na hipermodernidade e nas correspondentes novas práticas
biomédicas e biotecnológicas de produção do corpo.
Joana Lima argumenta que perceber o corpo e a linguagem em Moon Palace de Paul Auster implica,
necessariamente, pensar a Viagem e o Lugar; sustenta que as viagens físicas traduzem momentos
de exploração individual e obrigam ao reconhecimento da condição fragmentária da identidade;
olham e ensaiam o próprio processo da escrita.
João Sarmento discute a espacialidade e performance do seu próprio corpo numa viagem forçada à
América do Norte e explora a diferença, inquietação e marginalidade que a cor da pele provoca na
Lisboa pós-colonial, partindo de um jogo de futebol amigável.
José Ramiro Pimenta defende que pode detectar-se uma configuração opositiva entre Foucault
e Said (sexualização e des-sensualização) no que diz respeito à corporealização do tempo nas
respectivas teorias históricas, em ambos os casos se pretendendo criar um contetxo eficiente de
afirmação da própria individualidade intelectual e política.
Roberta Gilchrist descreve e interpreta documentos arqueológicos e históricos com o intuito de penetrar o mundo da afectividade das mulheres religiosas da Idade Média; uma inesperada personalização e transposição interior do erotismo e da sexualidade em situações de absoluta clausura.
Teresa Mora revela as vozes de um percurso de resistência aos ‘mandamentos’ que regulam a
cultura científica, arriscando avançar com um conjunto de impressões pessoais associadas aos
modos recorrentes de expressão territorial do conhecimento científico e à problemática específica
da articulação do corpo com a razão.
A. F. de Azevedo, J. R. Pimenta e J. Sarmento
Neste livro:
iii
Coordenação
de
Ana Francisca de Azevedo
José Ramiro Pimenta
João Sarmento
GEOGRAFIAS
DO CORPO
Ensaios de Geografia Cultural
Ana Francisca de Azevedo
Benedict Hoff
Chris Philo
Eduardo Brito-Henriques
Joana Lima
João Sarmento
José Ramiro Pimenta
Roberta Gilchrist
Teresa Mora
iii
figueirinhas
GEOGRAFIAS
DO CORPO
© (2009) Livraria Figueirinhas
Geografias do Corpo. Ensaios de Geografia Cultural
Coordenação: Ana Francisca de Azevedo, José Ramiro Pimenta, João Sarmento
Autores: Ana Francisca de Azevedo, Benedict Hoff, Chris Philo, Eduardo Brito-Henriques, Joana Lima, João Sarmento, José Ramiro Pimenta, Roberta Gilchrist,
Teresa Mora
Capa:
Fotografia: árvoremãe, de Jorge Correia Ribeiro ©
Arranjo gráfico: Cisca, Pfeffer & Séan.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob
qualquer forma sem a permissão do editor e coordenadores.
Depósito legal:
ISBN:
Coordenação
de
Ana Francisca de Azevedo José Ramiro Pimenta João Sarmento
GEOGRAFIAS
DO
CORPO
Ensaios de Geografia Cultural
Ana Francisca de Azevedo
Benedict Hoff
Chris Philo
Eduardo Brito-Henriques
Joana Lima
João Sarmento
José Ramiro Pimenta
Roberta Gilchrist
Teresa Mora
iii
figueirinhas
Autores
Ana Francisca de Azevedo
Universidade do Minho
Benedict Hoff
University of Liverpool
Chris Philo
Univerity of Glasgow
Eduardo Brito-Henriques
Universidade de Lisboa
Joana Lima
Universidade Lusófona do Porto
João Sarmento
Universidade do Minho
José Ramiro Pimenta
Universidade do Porto
Roberta Gilchrist
University of Reading
Teresa Mora
Universidade do Minho
Índice
As geografias culturais do corpo
A. F. de Azevedo, J. R. Pimenta e J. Sarmento
11-30
Desgeografização do corpo. Uma política de lugar
A. F. de Azevedo
31-80
Fausto entre nós. Geografias pós-humanas
E. Brito-Henriques
81-98
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
R. Gilchrist
99-122
Uma experiência com a linguagem do cinema:
objectivos, efeitos e consequências.
B. Hoff
123-144
Corpo, identidade e linguagem nas
cavernas de ‘Moon Palace’
J. Lima
145-164
O véu territorial da razão e o corpo
como natureza-morta
T. Mora
165-186
População acumulada:
corpos, instituições e espaço
C. Philo
187-226
O corpo, lugar do tempo
J. R. Pimenta
227-260
As inescapáveis geografias do corpo:
mobilidade, escala e lugar
J. Sarmento
261-282
As geografias culturais do corpo
Ana Francisc a de A zevedo
José R amiro Pimenta
João S armento
A contaminação do corpo pela teoria e pela prática científica implica
frequentemente o acto de despojamento das emoções e dos afectos,
implica, tantas vezes, pôr-nos de fora de nós próprios, despir-nos da
nossa carne, até um ponto em que a experiência material do mundo
e da existência se encontra ontologicamente truncada. A consciência
de nós próprios turva-se, o ‘sentimento de si’1 é aplanado, divorciando-se da sua própria biografia e de uma teia de significados que
permite a organização de cada momento quotidiano. A negligência
crónica relativamente aos processos de formação da auto-consciência enviesa não somente a estruturação do Eu mas também a sua
auto-percepção, o que inevitavelmente enviesa o intuito de aproximação ao Outro, transformado em objecto de pesquisa. Sobre esta
base se ergueu uma metageografia dos corpos passivos. O acto de
abstracção em que se estriba a produção do conhecimento cientifico
moderno tem subjacente a descorporização do sujeito, a subtracção
da experiência sensorial no seu conjunto em detrimento da experiência ocularcêntrica. A mente como palco de representações e o olho, e
respectivos aparatos e próteses de visualização, como aparelho que
devolve à mente uma visão objectiva dos fenómenos, legitima um
sem-número de textos e discursos que partem de um quadro relacional assente sobre a fractura entre sujeito e objecto de conhecimento.
Desestabilizando este quadro relacional a presente obra expõe-no.
De capítulo a capítulo abre-se para os desafios de um conhecimento
Geografias do Corpo
háptico, interceptando um conjunto de geografias liminares que as
suas autoras e autores vão desvelando.
A atenção que crescentemente tem vindo a ser dedicada ao corpo no seio das ciências sociais dividiu-se por variadas formas de
abordagem das relações que estabelece com as outras instâncias da
produção da subjectividade. Do mesmo modo, e ainda que a divisão
que vamos seguir force talvez um pendor analítico que não deve ser
mais do que o necessário para permitir uma ilustração coerente do
conjunto de fenómenos e modalidade de pesquisa associadas, tentaremos apresentar as características mais importantes de uma pesquisa de espacialidade do corpo e de corporealidade do espaço segundo
três áreas complementares: poder, representações e práticas. O que
defendemos neste livro é uma centralidade maior do corpo nas geografias que fazemos, apreciando o poder, as representações e as
práticas do corpo no emaranhado das modernas espacialidades.
Poder
São inúmeros os exemplos de debates epistemológicos e tomadas de
posição intelectuais e políticas em redor das questões do corpo que
se tornaram disponíveis no seio das ciências humanas sobretudo a
partir do anos setenta; os estudos das relações entre corpo, espaço e
poder não são exclusivos da disciplina da Geografia, razão que esteve, de resto, na concepção deste mesmo livro, em que pretendemos
reunir vozes oriundas de diversas áreas de investigação, geográfica,
arqueológica, literária, sociológica. Como é natural, a Geografia não
desenvolveu por si mesma a gama variada de teorias sociais, com
origens muito diversificadas, a que hoje faz recorrentemente uso,
embora o seu contributo não tenha sido despiciendo no seu enriquecimento dialéctico. Não seria ajustado a uma introdução de uma
reunião de textos que versam o tema comum do corpo e do espaço,
explorar minuciosamente as diversas fontes intelectuais e políticas
de estudos sobre as relações entre o poder e o corpo. Ainda assim
cremos que é importante referir alguns nomes que contribuíram decisivamente para a constituição de uma problemática do corpo nas
ciências sociais, genericamente e, especialmente, na importância decisiva que vieram a ter para estudos de Geografia e corpo do ponto de
12
Introdução
vista da organização do poder e das políticas de exclusão e violência
a elas associadas. Nesse sentido, referiremos alguns nomes que são
ainda assim perfeitamente incontornáveis e cuja omissão impediria
de mais bem compreender as dinâmicas recentes da disciplina da
Geografia. Fá-lo-emos seguindo uma ordem de apresentação que se
poderia chamar de ‘histórica’, porquanto contempla a eclosão sequencial da sua expressão como forma de contestação e afirmação
de políticas activas de identidade: classe, raça, género e sexualidade,
contextos que, como referiremos mais à frente, usaremos também
para a definição dos contributos específicos da geografia do poder e
do corpo, assim como para a apresentação de algumas passagens dos
próprios artigos deste livro.
Os estudos das relações entre espaço, corpo e poder não se resumem à disciplina da Geografia. Esperamos que este livro ajude a
demonstrar que tais estudos assumem as mais diversas formas de
expressão epistemológica e metodológica, detendo características
comuns que permitem ser associados numa categoria de pesquisa
com algum grau de similaridade. Cremos que a principal marca de
uma relação espacializada da relação entre corpo e poder é certamente a identificação (e contestação) dos ‘dispositivos’ (e usamos
esta palavra com o sentido que lhe dá Foucault e que remete para o
carácter claramente instrumental dessa relação) postos em prática no
sentido de fazer cumprir regras implícitas, explícitas e violentas de
inclusão, exclusão ou reclusão do corpo individual e concretamente
considerado.
A reteorização do corpo é relativamente recente na história da
Geografia, em consonância com o que sucedeu com inúmeras disciplinas das ciências sociais. Até à década de setenta, a presença do
corpo, da sexualidade, do género, reduzia-se a análises de estruturas demográficas em que as características descritoras de variáveis
biologistas eram tomadas em consideração numa qualificação mais
vasta da sociedade encarada pelo seu aspecto exterior. Este ‘instrumentalismo’ devia muito ao contexto epistemológico geral positivista e humanista em que a disciplina se inseriu desde a sua origem, e
apenas viria a conhecer uma metamorfose radical com as transformações sociais que acompanharam a sociedade ocidental a partir dos
13
Geografias do Corpo
finais dos anos sessenta (Brito-Henriques, neste livro). A abordagem
do corpo como elemento activo de identificação, opressão e contestação social ficou a dever muito aos trabalhos de Foucault sobre a
história da modernidade, e ao conceito associado de ‘poder sobre a
vida’ que o autor tentou recolher de vários exemplos historicamente
concretos e geograficamente situados. Este ‘poder sobre a vida’, que
consiste num conjunto de dispositivos e técnicas com o objectivo de
obter a subjugação do corpo individual e do conjunto da população
expressa-se espacialmente em redutos de exclusão mais ou menos
opressiva e violenta, sustentada discursivamente como a representação do próprio funcionamento natural da comunidade (Philo, neste
livro). Neste sentido, Foucault está especialmente interessado em
designar e explicitar as qualidades morais e políticas de um poder
assim estabelecido e o modo como tal processo resulta na criação
concreta de individualidade, subjectividade e corporealidade, domínios que em muitos autores viriam a ser considerados indispensáveis
em estudos interseccionais de raça, género e sexualidade. A produção de subjectividade assim estabelecida seria feita primordialmente
por redes de intervenção mais ou menos explícita por parte dos centros de poder, e especialmente o Estado, mas tornando-se eficientemente presente em espaços de alienção da individualidade corpórea
e de incarnação da própria assimetria das relações de poder – é justamente este o poder ‘geográfico’ das propostas foucaultianas que não
deixará de ser aproveitado fertilmente em estudos da disciplina da
Geografia, a que faremos referência um pouco mais à frente.
A concepção foucaultiana de espaços fácticos e discursivos de
exercício de poder veio a conhecer um enorme sucesso na disciplina
da Geografia, dando origem a tradições de pesquisa variadas, estando
presente em todas as propostas intelectuais e políticas críticas como
o feminismo, neo-marxismo ou pós-colonialismo. Uma vez que se
fará referência às dimensões da raça, género e sexualidade, bastará
talvez, neste momento, referir aquelas que mais directamente dizem
respeito à relação opressiva do Estado e do discurso dominante com
alguns segmentos que compõem o todo social. A incorporação dos
pressupostos de teorias localistas-discursivas pode solver-se nas manifestações de ‘copresença’ que induzem e estruturam relações de
14
Introdução
poder e nas quais, por exemplo, a time-geography, desenvolvida por
Hägerstrand, mau grado algumas dúvidas pós-estrutralistas a posteriori, parece enunciar a primeira tentativa endógena da Geografia.
Em todo o caso, a noção de que a biografia espacial de um indivíduo
é estruturada (reprimida) pela copresença dos diversos actores sociais (e a diversas escalas) com que interage não deve permitir que
se pense (e essa foi talvez uma das críticas mais prementes ao esquematismo da fase inicial da escola de Lund) que existe uma concordância absoluta entre os limites físicos de um espaço e os contornos
sociais de um ‘locale’ – a este respeito o próprio Foucault deixou
claro que o efeito ‘capilar’ da organização do poder lhe atribuía uma
permeabilidade à qual nenhum limite físico podia eficientemente
opor-se. Assim, podemos ver na Geografia uma multiplicidade de
estudos que tomam em consideração o poder regulador do espaço na
formação de subjectividades concretas e corporealizadas e em que
tomam especial relevo os estudos que contemplam fracções do todo
social que estão especialmente dependentes das relações assimétricas do poder. A discriminação pela idade levou ao reconhecimento
de um domínio tradicionalmente invisibilizado na prática geográfica que é o reconhecimento de lugares e espacialidades de discriminação, institucionalização e ocultação dos elementos mais idosos
das comunidades, e o modo como os espaços público e privado são
especial e dominantemente ‘do adulto’. Esta mesma característica
permite reconhecer um domínio análogo da prática geográfica que
diz respeito às crianças e adolescentes. Já presente na expedição de
Bunge aos bairros desfavorecidos de Detroit, este é um tema que
tem vindo a ganhar um peso crescente nos estudos de Geografia humana, que cada vez mais reconhece a produção pré-adulta de espaços de resistência, de contestação ou simplesmente alternativos.
Finalmente, tem vindo a tomar um peso crescente nos estudos de
‘poder sobre a vida’ aqueles que se debruçam sobre as pessoas com
deficiência, parte da comunidade em que mais se fazem sentir os
processos de discriminação espacial; neste contexto, de resto como
também acontece em alguns estudos sobre a vida em estabelecimentos prisionais (Philo, neste livro), a tendência epistemológica tem
sido a de fazer substituir os modelos ‘instrumentalistas’ (médicos e
15
Geografias do Corpo
legais), que caracterizam um fenómeno como algo puramente ‘funcional’ e mensurável, por uma concepção ‘social’ e ‘cultural’ que
exige a presença discursiva dos dois pólos da relação de poder assim
mantida – neste sentido, qualquer estudo das espacialidades associadas à ideia de deficiência remete não apenas para a vivência dos
actores sociais portadores de limitações de mobilidade ou sociabilidade mas também para as regras públicas de definição dessa mesma
limitação. A fusão dos dois pontos de vista tem vindo a dar origem a
propostas que se enquadram já nos limites do activismo académico
que assim se associam a políticas de identidade com vista não apenas à reabilitação médica (ou legal) dos indivíduos mas também à
instabilização dos parâmetros de aptinormatividade.
A representação do corpo é um dos temas centrais da teoria saidiana de denúncia e exposição crítica do orientalismo, ou seja a
representação estereotipada do Oriente na cultural ocidental. A atribuição de características binariamente opostas entre os dois pólos
desta relação, levou Said a reconhecer que o Oriente é apresentado e
representado como um símile de femininidade, dócil, erotizado, violável, aos olhos de um Ocidente que a si mesmo se representa como
masculino, dominador, violento. A teoria orientalista e toda a gama
de procedimentos de pesquisa dela derivados tiveram um enorme
sucesso na Geografia e a abordagem pós-colonial culturalista assim
definida veio mesmo a tornar-se um dos domínios de investigação
mais importantes das duas últimas décadas,3 embora tenha vindo a
ser crescentemente posto em causa por justamente favorecer a replicação epistemológica do próprio fenómeno que pretende expor
e denunciar. Mais radicais são as propostas em torno da abordagem
psicanalítica levadas a cabo por Frantz Fanon que vieram a conhecer
um sucesso mais duradouro que as de Said nos espaços que lutaram
pela independência política e económica de territórios previamente
colonizados. Não estando isento de críticas por alguns sectores epistemológicos, nomeadamente pela ‘queer theory’ que entrelê nos escritos de Fanon alguns traços de homofobia e heterosexismo, ainda
assim é inegável a importância deste autor no contexto da afirmação
dos movimentos de política identitária pós-colonial, ou a eles associados por parte de minorias migrantes em países ocidentais. Não se
16
Introdução
pode deixar de referir, contudo, que em muitas situações pós-coloniais mais consolidadas parece cada vez mais privilegiar-se modalidades de investigação que pretendem visibilizar as comunidades
concretas de que partem (cujo carácter híbrido é cada vez mais exibido como identidade cultural) e assim fugir à oposição estereotipada entre o agressor colonial e o resistente colonizado.
Sendo a Geografia uma ciência historicamente associada, e com
óbvias implicações funcionais, com a instalação e exploração colonial do mundo não-ocidental, não é de admirar a enorme quantidade
de trabalhos que a crítica pós-colonial favoreceu no seio da disciplina. No contexto do pós-estruturalismo e da teoria cultural saidiana, é
dada especial atenção às representações racializadas do encontro colonial e ao modo como elas estruturaram a identidade metropolitana;
neste contexto não pode mesmo deixar de referir-se a ‘antecipação’
epistemológica em que consistiu o ‘luso-tropicalismo’, ao erigir o
carácter híbrido como uma (geo)política de identificação cultural
(porém, não deve esquecer-se que esta era uma identidade baseada
numa relação assimétrica do poder, em que o lado imperial e masculino daquele encontro era especialmente favorecido). Mais especificamente, a Geografia não deixou de fazer referência aos dispositivos
espaciais de discriminação racial, entre os quais a experiência do
‘apartheid’ na África do Sul foi a mais ilustrativamente reconhecida
e politicamente valorizada; posteriormente o mesmo tipo de estudos evoluíram para análise de espacialidades, em que as relações de
‘raça’/etnicidade sustentam situações particularmente tensas ,como
no Médio Oriente,ou justificam propósitos de limpeza étnica como
sucederia na guerra da antiga Jugoslávia. Do ponto de vista do encontro pós-colonial em contextos do mundo ocidental, a Geografia
inclui cada vez mais estudos de política identitária das minorias étnicas nas grandes cidades do mundo ocidental e, sobretudo, numa
perspectiva ‘interseccionista’, exibir e denunciar o modo como a representação geopolítica da alteridade tem vindo a favorecer medidas
de crescente repressão por parte dos estados, sendo a côr da pele e a
suposta pertença étnica um factor relevante da sua aplicação.
O corpo sempre foi um tema central na tradição dos estudos geográficos de género, especialmente os oriundos da tradição dos
17
Geografias do Corpo
estudos feministas, tradição esta que desde o início desenvolveu especiais ligações com a teoria psicanalítica e tentou integrar o papel
da identidade ‘feminina’ (entendida também e fulcralmente como
política de corpo e de sexualidade)4 na definição das relações sociais. Neste contexto tomou particular relevo o estudo do regime
patriarcal e masculinista de organização social e do papel especial
que nele toma o corpo como lugar de identidade e prática, especialmente na configuração dos papéis atribuídos ao elemento dominante
(masculino), dominado, (feminino) e ausente (infantil), associado
intimamente a uma idêntica imposição heteronormativa. A atenção
dos estudos feministas e a exibição da identidade de corpo e de género para o centro das procupações epistemológicas levou a que
se desenvolvessem linhas de pesquisa directamente orientadas não
apenas para a denúncia dos mecanismos de determinação do regime
patriarcal e masculinista mas também para a natureza performativa
e reiterativa das identidades de género, a anatomia dos mecanismos
inconscientes de natureza ‘abjectiva’ que os sustentam, bem como a
exibição e provocação do carácter instável das suas fronteiras, através de práticas de subversão e trangressão.
A Geografia acompanhou e desenvolveu as linhas dominantes dos
estudos de género que se foram desenvolvendo trandisciplinarmente.5 Assim, deu especial atenção ao modo patriarcal de produção, e
às relações sociais e económicas que visam assegurar a sua reprodução, bem como as espacialidades directamente associadas com ela e
que nela tomam um papel de primeira importância, nomeadamente
a distinção geográfica sócio-cêntrica e sócio-periférica que a modernidade atribui aos papéis de género na divisão social do trabalho.
Muito especialmente, dedicou muita da sua energia à pesquisa da
estruturação espacial da violência masculina, nomeadamente através dos dispositivos físicos e simbólicos de reclusão ou oclusão da
mulher em escalas que variam entre o bairro da cidade e lugares
liminares até à esfera íntima da domesticidade. Finalmente, sempre privilegiou os estudos que procuravam determinar o poder de
reprodução da estrutura patriarcal nos diversos níveis de organização social, desde o funcionamento do aparelho do estado às várias
18
Introdução
instituições sociais e culturais promotoras da regulação de papéis
sociais.
Os estudos feministas são também responsáveis pela introdução
da temática da sexualidade como tema central de investigação em
ciências sociais e essa será também a via privilegiada por que chegarão à Geografia.6 Variando nos temas e metodologias, os estudos
feministas sobre sexualidade contiveram sempre uma marca teórico-metodológica de nítida filiação psicanalítica, por um lado e, por
outro, uma marca activista política e social acentuada, relacionada
com a denúncia e exposição do regime patriarcal e maculinista na
organização dos papéis e relações de género, especialmente na reprodução mútua das modalidades de exploração e violência social
e sexual. Para além dos contributos centrais da teoria pós-estruturalista e feminista, as abordagens da sexualidade e do corpo têm
vindo recentemente a ser objecto directo de várias teorias não-representacionais e performativistas, entre as quais se destaca a ‘queer
theory’.7 Inicialmente originária do activismo das minorias sexuais
rapidamente se generalizou a uma epistemologia duplamente baseada no papel central da sexualidade na identidade social e formação
da subjectividade, por um lado, e por outro no carácter desafiador de
normas e limites na atribuição da subjectividade.
A Geografia desenvolveu diversas linhas de estudo que tomam em
consideração os efeitos recíprocos do espaço e sexualidade. Desde
logo, em consonância com o trabalho seminal de Castells,8 tentou
determinar as expressões espaciais dos modos de vida e cultura popular exibidas por comunidades de orientação homossexual, à escala global (turismo) e urbana (residência e gentrification). Também,
alguns estudos dedicar-se-iam à exposição e denúncia do carácter
implícita ou explícitamente heteronormativo da vida quotidiana
e da cultura popular, no seio do qual as expressões de dissidência
podem ser alvo de uma gama variada de acções, desde a simples
marginalização à exuberante e violenta opressão.9 Historicamente
relacionadas com os anteriores, uma série de estudos de geografia
e sexualidade debruçar-se-iam sobre a difusão de doenças sexualmente transmissíveis, especialmente a SIDA, se bem que muitos dos
estudos levados a cabo sobre a difusão da doença tenha sido alvo
19
Geografias do Corpo
igualmente de estudos tradicionais, de construção e teste de modelos
de difusão espacial. O activismo associado a muitos dos estudos de
geografia e sexualidade podem ainda ser vistos em dois géneros de
estudos que nos úlitmos anos se vêm tornando dominantes no que
concerne aos temas de sexualidade e geografia: as expressões complementares das geografias ‘queer’, e dos modos de vida associados
a uma concepção performativa e propositadamente instabilizada da
identidade de género e de sexualidade, e, por outro lado, o ordenamento moral das paisagens sexualmente normativas do espaço associados à disrupção cultural das práticas associadas (Hoff, neste
livro). Finalmente, e tal como sucede nas outras instâncias de classe,
raça e género, também a Geografia como sistema de prdução científica tem vindo reflexivamente a questionar os evntuais dispositivos
que obstam, do ponto de vista da sexualidade, a uma plena equidade
de tratamento dos geógrafos em termos de carreiras de investigação
e temas de publicação.10
Representações
O modo como o corpo, ou os diferentes corpos são representados
diz muito sobre a sociedade em que se vive (Mora, neste livro). A
representação cultural do corpo pode ser perspectivada de diversas
formas. Se atendermos à representação do corpo humano, verificamos, por exemplo, que a cultura ocidental moderna estabeleceu uma
história das representações corporais que remonta à Antiguidade
Clássica, à arte minóica e à escultórica greco-romana. Encontramos,
não obstante, diversas ramificações que ligam a representação visual
do corpo às culturas do Neolítico e mesmo do Paleolítico, deslocando cronologias apriorísticas de linearização do corpo como representação. Associada ao desenvolvimento das técnicas e tecnologias de
representação, a representação do corpo encontrou-se desde muito
cedo ligada a valores espirituais e religiosos que indivíduos e grupos
desejaram deixar gravados em variados materiais. A variação destas representações no espaço é sobejamente explorada pela História
da Arte, Estética e Filosofia, entre outros campos do saber que têm
vindo progressivamente a focar a atenção nas relações entre corpo e
representação (Lima, neste livro).
20
Introdução
Um olhar diacrónico sobre as representações do corpo na cultura
ocidental mostra que, entre experiências e variações iconográficas,
a tendência para a dessacralização do corpo é apanágio do período moderno. A fronteira entre o sagrado e o profano desvanece e a
formação social das representações é alterada (a contrario, para a
Idade Média, cf. Gilchrist, neste livro). A conexão entre a representação do corpo e a morte é desmitificada e a ênfase na celebração
dos ‘corpos das elites’ é transferida para a celebração de ‘corpos
ordinários’, operando no acto quotidiano. A apoteose da imagética
corporal, durante o século XX, aconteceu num momento muito concreto em que a cultura visual tomou conta dos mecanismos de organização da experiência, um momento em que Heidegger anuncia a
transformação do próprio corpo da terra em retrato. Diversos autores
debruçaram-se sobre este fenómeno, desde Merleau-Ponty a Roland
Barthes, mas a problemática da representação do corpo extravasou
largamente a componente visual colocando a literatura e a ciência
como médiuns cruciais a operar no moderno processo de construção
de imaginários corporais. Como poderemos ignorar o tratamento do
corpo por Anaïs Nin, Marguerite Duras ou Franz Fanon, e, de outro
modo, como poderemos deixar de atender ao trabalho antropológico
de inventariação, classificação e hierarquização dos corpos e respectivas representações? Impossível, se abraçamos a tarefa crítica de
recolecção dos retratos de que somos herdeiros.
Os estudos canónicos de Aby Warburg em torno do movimento
das imagens no tempo, ao serem revistos, proporcionam um valoroso contributo para a compreensão do modo como a arte da representação se encontra intrinsecamente implicada com a expressão das
emoções codificadas numa peripatética da paixão e do desejo que as
figuras enunciam. Ao desvelar o movimento dos corpos no tempo,
a iconologia possibilita a compreensão do acto de retratar como um
acto situado num tempo e espaço específicos dependente do autor
ou autora e da sociedade que os produziu. Porém, o acto de retratar
condensa em si mesmo uma miríade de associações culturais que se
organiza em camadas para a produção de uma representação. Muito
frequentemente, estas fazem ressonância a textos e discursos não
oficiais operando subliminarmente nas fissuras de significação.
21
Geografias do Corpo
Cada retrato e cada discurso sobre o corpo é sempre resultado da
ideologia e política reinantes, ora celebrando-as ora contestando-as.
Muitas vezes, só a interpretação atenta das fissuras de significação
possibilita a emancipação do corpo ou corpos representados dado
o modo como a figuração tem subjacente complexos processos de
codificação cultural.
Integrando sistemas simbólicos, a figuração dos corpos tem servido como modo de legitimar políticas hegemónicas de representação
dentro das quais corpo humano e corpo da terra são apresentados
como um todo orgânico. Neste percurso, a essencialização dos corpos
e da paisagem por via das representações funcionou como processo
de ‘naturalização’ da diferença. A indexação de tipos fisionómicos
a paisagens ‘naturais’ configura um dos mais graves mal-entendidos da modernidade, tendo aberto caminho para a cristalização no
espaço e no tempo dos processos de formação de subjectividade.
Encapsulados em sistemas de signos geográficos, tais processos encontram-se ainda enredados na falácia do Eu/Outro forjados pelos
regimes nacionalistas e imperiais. Uma estética de representação
está, assim, associada a uma ética de representação. Ao sermos confrontados com a representação de um corpo o nosso sistema emocional e afectivo é activado e, paralelamente, somos transportados para
uma geografia ‘concreta’. Ao não ser inocente, a arte de cenarização
dos corpos operou até um limite em que o próprio corpo já dispensa
o ‘cenário’ por remeter para um imaginário geográfico de que somos
prisioneiros. Encarada como uma potentíssima arte cenográfica, a
ciência geográfica moderna escreveu mundos e inscreveu corpos
nos mundos, ditando as relações entre eles (Azevedo, neste livro).
A leitura destas geografias foi-nos cautelosa e perseverantemente
ensinada por forma a que cada um de nós pudesse encontrar (?) o
‘seu lugar’ num tão ardiloso sistema de signos. Deste modo, foramse configurando os corpos, modelados, torcidos, ocultados, obliterados, disciplinados, os corpos da Lei no espaço da Razão.
Práticas
Se é certo que não podemos aqui traçar uma genealogia completa
das práticas do corpo na Geografia, queremos pelo menos esboçar
22
Introdução
uma trajectória de preocupações que conta já algumas décadas, endereçando as formas como as práticas do corpo se articulam com o
espaço, o produzem e o constituem. A corrente de pensamento da
time-geography, desenvolvida na Geografia sobretudo por Torsten
Hägerstrand, incorporava a ideia de que os pulsares da cidade,
os fluxos das pessoas em rede, os limites do tempo e movimento,
constroem ritmos corporizados que se deviam tentar cartografar, ultrapassando o limite das duas dimensões estáticas dos mapas convencionais. Se é certo que a nossa natureza corpórea nos faz vivenciar
o espaço a partir de diferentes lugares, a vontade de Hägerstrand
em ‘transcender o mapa’ resultou em larga medida numa abstracção, representação e desmaterialização dos movimentos corpóreos
no tempo, e numa geografia de ‘meras’ trajectórias. Se o facto das
linhas nos diagramas não estremecerem não significava a ausência e
consideração da importância da violência na teoria como um todo,11
a sua visão da corporalidade do sujeito tinha no entanto uma relação
mais forte com a construção de um sistema de representação objectivo e neutro, do que com o confronto da subjectividade das práticas
corpóreas.
Enquanto a time-geography frequentemente se confinou a lidar
com o mensurável e o visível,12 a rhythmanalyse de Lefebvre sugeriu actividade, e tentou dinamizar e abrir as representações da cidade aos conhecimentos itinerantes e tácteis dos seus participantes.
Para Lefebvre,13 no contexto da sua trialéctica espacial, o espaço
vivido pertence à carne, às práticas espaciais, aos gestos corporais,
à actividade sensual. A diferença entre este espaço vivido e o abstracto reside precisamente em que este último se tenta dissociar das
práticas, dos ritmos e texturas do corpo, mesmo quando não há uma
oposição firme entre ambos. Em todo o caso, esta trialéctica perde
a sua ressonância política e analítica quando tratada meramente em
abstracto, pois necessita de ser corporizada com os tecidos da vida,
com as relações da vida real e com eventos.
Mais do que qualquer outro teórico social contemporâneo, Michel
Foucault dirigiu a sua atenção para o corpo, estudando-o como o
alvo da operação de formas modernas de poder, entendidas como
partes integrantes das micro-práticas do quotidiano. Os estudos de
23
Geografias do Corpo
Foucault sobre os regimes da prisão (ver Philo neste livro), do asilo
e da clínica, bem como a história da sexualidade, foram fundamentais para a compreensão do corpo como um objecto de processos de
disciplina e normalização. Através da sua obra, ainda que centrado
sobretudo nas práticas discursivas, o corpo passou a ser entendido
como uma metáfora para a discussão crítica que liga poder, conhecimento, sexualidade e subjectividade (ver Pimenta neste livro).
Numa visão em que o corpo humano não é percebido como uma
entidade separada do resto do mundo, a sua ontologia reside justamente na forma como co-evolve com outros objectos, incorporandoos em diferentes partes do corpo biológico. Esta é uma perspectiva
significativamente diferente da defendida por várias feministas, na
qual se equaciona a carne com uma espécie de distinção primordial.
Assim, se por um lado é ingénuo ignorar as características específicas da carne (ver Haraway14 e Sarmento neste livro), é também
necessário ultrapassar a noção construtivista de que o corpo é simplesmente uma superfície de inscrições, frequentemente reduzido a
uma ‘imagem’. Consequentemente, o espaço do corpo pode ser entendido como tendo múltiplas camadas, cada uma das quais contendo as relações e práticas do corpo com objectos e outros espaços.
No contexto de um ‘performance turn’ nas ciências sociais, a recente reorientação da geografia cultural em direcção às práticas,
folgando as amarras do comprometimento às representações, tem
constituído um exercício entusiasmante que tem implicações profundas na forma como os geógrafos vêem, percebem e estudam o
corpo. Há como que um regresso a vários ‘outros’ ‘scapes’ sensoriais do palato, da audição e do olfacto, relativizando o avassalador
império da visão (ver Azevedo neste livro). Deste modo, um dos
mais interessantes desenvolvimentos da Geografia humana na última década prende-se com o avanço da ‘teoria não representacional’
ou ‘teoria das práticas’,15 que, fortemente inspirada em Michel de
Certeau e Walter Benjamin, tenta compreender os nossos ‘mais do
que humanos’ e ‘mais do que textuais’ mundos multi-sensoriais.16 O
‘representacional’ e a epistemologia construcionista, bem definidos
pela escola da geografia cultural da paisagem, têm vindo assim a ser
criticados com base numa suposta fixação, enquadramento e mumi-
24
Introdução
ficação de tudo o que agora se defende que deve transparecer como
bem vivo. Para Thrift,17 é a acção corporizada, com o seu carácter
incompleto e em constante transformação, que oferece a mais poderosa fonte para uma poética wittgensteiniana das práticas.
Esta inflexão liga-se fortemente ao movimento das ciências sociais
que se foram inspirar nas artes performativas e na dança, nos estudos
de teatro, trazendo não só a ideia de que os imaginários sociais não
podem ser contidos dentro de explicações científicas rígidas, mas
também uma nova abordagem do corpo em que, no contexto de um
‘affective turn’, se procura um equilíbrio entre este desenvolvimento
e a permanência de um certo humanismo.
Ainda que seja impraticável condensar aqui as ramificações da
‘teoria não representacional’ na Geografia, no contexto da Geografia
cultural e da Geografia do corpo em particular, é importante destacar
o papel de uma certa inflexão metafórica e substancial de ‘texto’,
‘discurso’ e ‘representação’, para ‘prática’ e ‘performance’, e para
as micro-geografias do quotidiano. O argumento que defende um
registo de afastamento da desconstrução das representações (note-se
no entanto que a teoria não é anti-representacional), e uma exploração próxima do não-representacional baseia-se no facto de o ‘texto’
valorizar o escrito e falado em detrimento das práticas e experiências multissensoriais.18 A metáfora do performativo, hoje uma das
mais persistentes nas ciências sociais, recupera e robustece análises
fenomenológicas, e permite uma forma de perceber o significado
não como residindo em algo, mas como gerado através de processos
quotidianos.19
No entanto, a entrada da performatividade na geografia e do retorno, pelo menos em parte, da fenomenologia, pode implicar um
possível (e pouco desejável) afastamento da economia política do
género.20 Esta inflexão inspirou-se mais no trabalho feminista sobre o corpo, e sobretudo nas teorias da performance do género e da
sexualidade de Judith Butler,21 do que em trabalhos sobre estudos
da dança (a dança usada extensivamente por Thrift como constituinte de identidade e identificação social através da performance).
O regresso ao corpo e às práticas do corpo aparece assim em duas
direcções. Por um lado há uma tentativa de compreensão e desnatu-
25
Geografias do Corpo
ralização da diferenciação social de corpos através de práticas. Por
outro lado há um ensaio da noção mais genérica e celebradora da
natureza corpórea da existência humana.
Os artigos deste livro
Ana Francisca de Azevedo cria a ideia de desgeografização do corpo como mobile através do qual emergem novas políticas de lugar.
Enfatizando a enunciação de práticas generativas do espaço assentes sobre quadros relacionais alternativos, este capítulo convoca vozes diferenciais como as de Donna Haraway, Bruno Latour ou Irit
Rogoff para a construção de um texto que rejeita quadros analíticos
fundados sobre o binómio primeiro espaço/segundo espaço, ou natureza/cultura. Falando desde o seu próprio corpo, entendido como
superfície de resistência e negociação, a autora declina uma visão
da terra ’naturalizada’ pelos sistemas de signos geográficos que sustentam as modernas espacialidades, propondo a ruptura com uma
geografia do sujeito único.
Eduardo Brito-Henriques apresenta uma reflexão sobre as geografias particulares que as múltiplas possibilidades do corpo trans ou
pós-humano geram nas sociedades contemporâneas. Apoiando-se
no conceito de utopianismo na hipermodernidade, o autor percorre
as ideias do corpo como objecto de consumo, das novas práticas
biomédicas e biotecnológicas sobre corpos prontos a esculpir, e do
papel da intromissão tecnológica no esbater e fragmentar da ontologia e das fronteiras entre corpos.
Roberta Gilchrist, uma das primeiras investigadoras a desenvolver
uma abordagem feminsta em estudos de Arqueologia, descreve e
interpreta documentos arqueológicos e históricos com o intuito de
penetrar o mundo da afectividade das religiosas da Idade Média;
uns e outros parecem apontar para a existência de um verdadeiro
mundo de afectos das mulheres em situações de clausura através da
personalização e transposição interior do erotismo.
Resgatando-nos para o mundo das geografias fílmicas, Ben Hoff
aborda a complexidade de estéticas alternativas postas em jogo por
filmes como ‘art house’, analisando o caso específico da obra Sexual
Dependency de Rodrigo Bellott. Aquilo de que se trata é pois de
26
Introdução
indagar o grau de eficiência de novas técnicas fílmicas usadas para a
aproximação a problemáticas específicas como o corpo e a sexualidade, manifestadas de modo diferentes em diferentes culturas. Mas
o grau de problematização proposto pelo autor inclui a relação entre
as técnicas fílmicas e as técnicas de tradução, na medida em que as
questões de interpretação e compreensão das temáticas tratadas encontram-se em dependência directa com as culturas das audiências e
a cultura ‘original’ de cada filme.
Em “Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon
Palace”, Joana Lima analisa o plano das representações espaciais
propostas por Paul Auster, argumentando que perceber o corpo e
a linguagem em Moon Palace implica, necessariamente, pensar a
Viagem e o Lugar. A autora sustenta que as viagens físicas protagonizadas por Marco Stanley Fogg e Thomas Effing, na geografia
urbana e no deserto, e as suas experiências nas cavernas de Central
Park e do Utah traduzem momentos de exploração individual, trajectos nas coordenadas da história e do mito, percursos pela escrita,
procura de sentidos, ou seja, obrigam ao reconhecimento da condição fragmentária da identidade, propiciam reflexões sobre a matriz mítica e cultural na qual assenta o pensamento norte-americano,
olham e ensaiam o próprio processo da escrita.
Arriscando avançar com um conjunto de ‘impressões pessoais’ associadas aos modos recorrentes de expressão territorial do conhecimento científico, Teresa Mora revela-nos um percurso de resistência
aos ‘mandamentos’ que regulam a cultura científica. Juntando-se a
outras vozes, como a de Judith Schlanger, que entendem a linguagem do conhecimento como uma linguagem inerentemente espacial,
o vasto caminho abraçado pela autora vai desde uma profunda análise da geografia da razão kantiana a uma contundente aproximação à
utopia social de Gabriel Foigny, com o propósito de aprofundamento de uma problemática específica; a da articulação do corpo com a
razão.
Chris Philo apresenta um texto em que analisa a importância para
a Geografia humana, e para a Geografia da população em particular,
do que Foucault designa por ‘arte das distribuições’. Começando
por analisar os textos do sociólogo Krantowitz, o autor debruça-
27
Geografias do Corpo
se no trabalho de Foucault, e em específico nas suas proposições
biológicas da vida e da morte (‘corpos cheios de vitalidade, tristemente decadentes ou prematuramente levados a um termo’), e na
exposição crítica das múltiplas formas como estas proposições têm
sido constrangidamente manipuladas por ‘soberanos’ com o poder
de deixar viver ou fazer morrer. Philo defende que é no escavar as
minúcias das actuais prisões e instituições similares no passado e
presente, que os geógrafos devem analisar as marcas sobre corpos
acumulados em população através do espaço, enquanto exercícios
de geografia micro-populacional aplicada.
José Ramiro Pimenta defende que pode detectar-se uma configuração opositiva entre Said e Foucault no que diz respeito à prática
corporeal do tratamento do Tempo nas respectivas teorias históricas;
se a questão da exibição da sexualidade se revelou central na determinação dos pressupostos existenciais da teoria foucaultiana, vemos
igualmente que em Said um ponto recorrente da sua argumentação
passa pela des-sensualização ‘activa’ do estereótipo do ‘oriental’,
em ambos os casos se pretendendo criar um contexto eficiente de
afirmação da própria individualidade intelectual e política.
João Sarmento apresenta um artigo bipartido: numa primeira parte
centra a discussão na espacialidade e performance do seu próprio
corpo numa viagem forçada pela América do Norte; na segunda
parte explora a diferença, inquietação e marginalidade que a cor da
pele provoca na Lisboa pós-colonial, partindo de um jogo de futebol
amigável. A ideia principal que o autor tenta destacar é a de que ao
mesmo tempo que o corpo tem uma geografia histórica a partir da
qual se pode tentar compreender a produção do poder, do território e
da desigualdade, a nossa própria tentativa de cartografar estas mesmas geografias é corporizada e inescapável.
Notas
1
A. Damásio (2000). 2 G. Valentine (2007). 3 Pimenta, J. R., J. Sarmento
e A. F. Azevedo (2007). 4 J. Butler (1993). 5 H. Nast (1998). 6 D. Bell e
G. Valentine (1995). 7 A. Jagose (1996). 8 M. Castells (1983). 9 R. Phillips
(2007). 10 D. Bell (1995). 11 M. Gren (2001). 12 M. Crang (2001). 13 H. Lefebvre
(1991). 14 D. Haraway (1991). 15 N. Thrift (2008). 16 H. Lorimer (2005: 83).
28
Introdução
N. Thrift (1997, 2008). 18 C. Nash (2000).
(2000). 21 J. Butler (1990, 1993).
17
19
N. Thrift (2008).
20
C. Nash
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30
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
Ana Francisc a de A zevedo
Introdução
Apesar da objectiva conexão, não é simples estudar as relações entre o corpo e o espaço. Muito menos é frequente tal abordagem por
parte da Geografia. Embora (ou talvez porque) tradicionalmente definida como ciência que se preocupa com as relações entre o Ser
Humano e o Meio Ambiente, a ciência geográfica tem descurado
sistematicamente a problemática do corpo e do sujeito. Trago-a aqui
e agora, por me parecer absolutamente crucial para o movimento
actual de recolocação do âmbito, práticas, conceitos e problemáticas
geográficas.
Pensar o espaço através do corpo, por mais óbvio que seja, foi
aquilo que a ciência geográfica não fez, pelo menos nos últimos
dois séculos. Para ser entendida como ciência, a moderna ciência
geográfica dispensou o corpo, ou, posto de outro modo, aproveitou
aquilo que dele julgou interessar; essencialmente a mente e a visão
(o instrumento da Razão e o instrumento usado para confirmação
da Razão). Tal como aconteceu no conjunto da ciência moderna, o
desenvolvimento de toda uma parafernália de próteses da visão para
a legitimação da Razão culminou com uma crise das representações
a que hoje não sabemos bem o que fazer. Tal acontece também com
uma metageografia para a qual se esgotaram conceitos como Norte
ou Sul Global. Tal acontece, de igual modo, com o nosso corpo,
Geografias do Corpo
entre projectos de bioestética e rotas de comercialização. Não por
acaso, a crise das representações ser frequentemente entendida (e
designada) como crise do sujeito. Entendido como uma das mais
poderosas representações produzidas na modernidade pela cultura
ocidental, o mapa político mundial ‘naturaliza’ esta crise. O mapa
da diversidade tornou-se (se alguma vez terá sido algo mais) o mapa
da desigualdade e esta construção panorâmica reflecte-se antes de
mais no nosso corpo é, por si mesma, uma geografia claramente incarnada.
Como estrutura epistémica, a Geografia foi responsável pela organização de uma ordem de conhecimento estabelecida nos centros
de poder, os mundos metropolitanos imperiais. Funcionando paralelamente como ‘teoria da cognição e como sistema de classificação,
como modo de localização e como arena de histórias colectivas nacionais, culturais, linguísticas e topográficas’,1 a Geografia é responsável pela produção de um espaço homogéneo que se tornou ordem
de conhecimento através de medidas universais de indexação da terra. A teorização crítica de um corpus de conhecimento geográfico,
dentro do qual a ideia de paisagem detém importância crucial, remete para o repensar dos modos através dos quais se ‘naturalizaram’
questões de posicionalidade, de poder e de autoridade para nomear
ou para submeter ‘outros’ a categorias identitárias hegemónicas.
Inúmeros autores têm vindo a dedicar-se à revisão do conhecimento disponibilizado pela Geografia por forma a trazer à superfície as
estruturas de poder que se escondem sob os discursos científicos, e
que afectam as relações entre os sujeitos e os lugares. Perspectivadas
neste quadro, noções como paisagem, lugar e espaço constituem
exemplares riquíssimos de aproximação ao pensamento moderno,
dentro de um horizonte revisionista. Através delas, operou-se a espacialização de relações sociais e de convenções epistemológicas,
pela acção de narrativas sócio-culturais geograficamente informadas. Ao longo deste capítulo, tentarei abordar este conjunto de problemáticas, apresentando algumas das mais relevantes abordagens
que têm contribuído para a recolocação do corpo na actividade de
construção científica.
32
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
1. Das relações entre espaço, visão e produção de um
conhecimento descorporizado
A análise das estruturas de subjectividade que informam a Geografia
pode, em grande medida, ser efectuada pela desconstrução do modo
como conceitos-chave em Geografia participam num processo activo de espacialização que se encontra associado às práticas de retratar e designar as propriedades físicas dos lugares. Neste sentido, o
processo de espacialização geográfica desenvolveu-se pelo trabalho
de estruturas de conhecimento e de imagens situadas circulando sob
a ilusão de um ‘campo de transparência’.2 Este campo tem vindo
a ser legitimado pelo trabalho conjunto da ciência, arte e tecnologia. Como forma de territorialização do conhecimento, o estabelecimento de campos disciplinares como o da Geografia permitiu a
afirmação do domínio lógico-positivista e de um campo de representação estruturado em torno da moderna noção de espaço e da
centralidade da visão. A centralidade da visão para a determinação
empírica do mundo percebido, é discernível nos discursos filosóficos e científicos que asseguraram continuidade ao projecto ocidental
do Humanismo.
Integrando um modelo de subjectividade, a determinação de um
campo de visão em que um ‘olho objectivo e inocente’3 assegura a
afirmação de um observador não situado, foi legitimada pelos credos
de verdade científica e pela posta em prática de um campo ‘neutro’
de percepção em torno do qual se organizaram o sujeito conhecedor e o objecto conhecido. Neste quadro, o espaço surge como uma
superfície de representação em que se projectaram identidades de
lugar e em que se articularam práticas culturais que usaram a imagética como forma de mobilização de discursos ideológicos comprometidos com a ilustração da sua própria legitimidade. Activando
respostas estéticas e científicas, assim como éticas e emotivas, a
moderna ideia de paisagem activou uma arena de negociação cultural das relações entre ser humano e território promovidas por um
crescente conjunto de fragmentos representacionais (pictóricos e
verbais, entre outros)4. Apesar da descontinuidade e da heterogeneidade das suas manifestações, tais geografias imaginativas vieram
robustecer a superfície de visualização que mediava a relação entre
33
Geografias do Corpo
sujeito e objecto, afirmando a convicção num espaço homogéneo e
absoluto, a ilusão de um espaço transparente independente dos diferentes corpos e sujeitos.
Como ‘aparato de investigação, verificação, vigilância e cognição
que serviu de suporte às tradições de cientificidade ocidental pósiluminista e às tecnologias modernas’,5 a superfície de visualização
que se produziu sob o efeito da ilusão de um espaço transparente
e unitário integra as práticas espectatoriais responsáveis pela mediação entre o mundo material e as subjectividades psíquicas. Ao
integrarem uma superfície de visualização, a linguagem e a prática
geográficas recodificaram a paisagem como sistema de significação
e como experiência, com base nessas mesmas práticas de observação. Entendidas como imagens credíveis do mundo físico ou como
relíquias de lugares que pontuam um retrato pitoresco ou sublime
do mundo,6 as representações espaciais puseram o observador em
contacto com o território construído forjado pela acção de um imaginário geográfico dominante, um espaço cultural profundo que a
viagem, o movimento e as tecnologias especializadas na produção
da ilusão do real nutriram avidamente. Subjacente a este espaço, está
o desejo de tomar posse implicado nas inúmeras estratégias de visualização e aparatos tecnológicos para reprodução de imagens. Corpo
do território, corpo do sujeito e corpo do conhecimento viram-se
unidos por uma peculiar construção de espaço, a qual opera sob o
efeito mediador de uma superfície de visualização disposta como
modo de aceder ‘com distância’ à experiência de lugar.
Engendrada como modo de aceder à distância ao Outro desconhecido e não ocidental e paralelamente como modo de cristalizar
a territorialização da mesmidade do Eu ocidental, uma superfície
de observação em que se especializaram as mais diversas técnicas
e tecnologias colocou a percepção visual como mecanismo central
para se aceder à Verdade e à Razão. Mas, como se estruturou esta
superfície de observação gerada pela cultura ocidental moderna?
Como se interceptaram tecnologias da percepção e mecanismos de
representação por forma a engendrar tão poderoso aparato epistémico? Quais as relações entre uma obsessão cultural pela ‘luz’ e
pelo sentido de iluminação pela Razão e a construção de um espaço
34
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
abstracto cartesiano como elemento estruturante das modernas espacialidades?
O regime de poder e conhecimento que se preparou com recurso às
tecnologias como a câmara obscura, encontra-se em íntima ligação
com a paixão setecentista pela matematização da natureza associada à prática de inventariar o território7. Isto terá levado a uma normalização do espaço transformando-o num plano abstracto, espaço
em que as relações entre pontos permitiam identificar as posições
relativas dos lugares e explorar novos modos de representação. Ao
enfatizar o papel hegemónico da visão na cultura ocidental, Martin
Jay8 salienta que ‘a chegada deste regime dominante foi preparada
por uma constelação de inovações sociais, políticas, estéticas e técnicas no princípio da era moderna, que se combinaram para produzir
o que em retrospectiva veio a chamar-se a racionalização do campo
de visão’. O autor situa as origens do regime ocularcêntrico moderno na ambiguidade criativa da filosofia cartesiana, embora encontre
antecedentes para esta tendência tanto nos períodos medievais como
na Antiguidade Clássica. Ao perpetuar a hegemonia da visão (em
detrimento dos outros sentidos), o código visual definido pelo humanismo renascentista situava a visão humana no centro dos sistemas
de representação. Tratava-se portanto de desenvolver uma ideologia
visual que respondesse aos postulados do Humanismo9.
Esta ideologia visual associada à tradição ocidental centrada
num ponto de vista privilegiado, é também explorada por Norman
Denzin10 que sugere que por ser intensamente realista este código visual teve o efeito de substituir outros sistemas de conhecimento e representação. Criando uma presença fixa para o sujeito (observador),
tal forma de perspectivar o mundo veio centrar a ‘verdade da experiência’ no aparelho ocular e tecnologias decorrentes, tornando-a o
centro daquilo que se pretendia representar. Deste modo reproduziase, segundo Denzin,11 a ideologia do sujeito humanista, um sujeito
que corporizava o culto renascentista do individual’. De acordo com
estes autores, tal atitude terá dado lugar a um ‘olho descorporizado’,
um olho espectatorial mais do que incarnado, ‘o olho não pestanejante de uma superfície fixa de contemplação’.12 A celebração da visão como sentido inaugural da percepção foi acompanhada nas artes
35
Geografias do Corpo
por uma separação do figurativo da sua tarefa textual, por aquilo que
Jay designa como a ‘desnarrativisação do ocular’. Este facto parece
ter acarretado uma grande mudança no modo de ler o mundo como
texto inteligível (o ‘livro da natureza’), passando este a ser encarado
meramente como objecto observável na lógica de uma ordem visual
dominante estabelecida pelos sistemas de racionalidade científica.
Para James Duncan,13 funcionando como mecanismo de ‘naturalização’ das representações, todo este processo veio enfatizar a ênfase
no visual e nos discursos da mimese, produzindo uma marginalização progressiva de outros modos de representação. A este propósito
Jonathan Crary14 defende que a ‘posição assegurada ao sujeito no
espaço vazio interior (da câmara obscura) era pré-condição para o
conhecimento do mundo exterior’. Tal posição era legitimada pela
distensão de um espaço isotrópico e por um ponto de vista ‘vantajoso’ que garantia o controlo da representação pelos grupos autorais
dominantes. Este tipo de função autoral e jurídica, enfatiza Derek
Gregory,15 assegurava a possibilidade de uma certo policiamento do
visual relativamente ao funcionamento da ordem social, funcionando como meio de visualizar espacialmente os objectos e de estabelecer a correspondência entre mundo exterior e representação16.
Donde Duncan17 insistir na importância da evolução das tecnologias
da visão e da percepção, nomeadamente a perspectiva linear, a câmara lúcida e outros subterfúgios tecnológicos que visavam a replicação fiel da natureza, perspectivados como instrumentos cruciais
para o desenvolvimento de uma tradição de objectivismo na cultura
ocidental.
Entendidas metaforicamente por Duncan como um ‘catálogo de
documentos da razão’,18 as tropes de ilustrações produzidas com
o auxílio destas tecnologias funcionavam como testemunhos rigorosos da estética moderna ocidental e das novas políticas de lugar
subjacentes ao acto de retratar e catalogar o mundo. Entre elas, as
representações de paisagem como forma de estruturação ideológica
do território adquiriram papel crucial, tornando-se ‘expressão significativa de uma tentativa histórica de associar a imagem visual
e o mundo material’.19 Implicando o aperfeiçoamento tecnológico
e sensorial de um determinado ‘modo de ver’20 que veio a tornar-
36
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
se colectivo pela ‘naturalização’, a ideia de paisagem integrou o
acto de visualizar o espaço e a relação com uma superfície de observação-contemplação. Como parte integrante de uma ideologia
do Humanismo, esta nova relação entre o ser humano e o território
tinha subjacente um conjunto de acções sociais e culturais que contribuíram para o projecto de representar o mundo numa superfície
plana.
Os modos de presença associados à concepção volumétrica
de espaço proposta por autores como Lock, Newton, Descartes e
Gassendi, parecem ter vindo legitimar esta ideologia, assim como
a natureza do logocentrismo ocidental e dos mapas políticos que se
foram definindo dentro das representações de um espaço universal.
Neste contexto, a legitimação de um espaço uniforme e isotrópico
pelo sistema de valores oitocentista teve como resultado a absorção do lugar pelo espaço como categoria analítica fundamental e
como forma de inventariar o mundo redescoberto.21 A distensão de
um espaço homogéneo e cartesiano estaria, então, profundamente
associada àquilo que Gregory22 designa por apropriação visual do
mundo característica da cultura ocidental, entendida pelo autor como
uma máquina de representação (e apropriação) do real. Segundo
Gregory,23 a evolução do regime ocularcêntrico da modernidade
veio servir os poderes económico e político em consolidação, numa
era em que os mecanismos imperialistas passaram da colonização
territorial à colonização generalizada das representações. Neste sentido, a narrativização do espaço através dos cadernos de viagem e
outras crónicas de lugar, assim como a esteticização da paisagem
enfatizada pelas mais diversas técnicas de representação, afirmaram-se como dois centros performativos cruciais dessa ‘máquina’
propagadora do imaginário geográfico europeu sobretudo a partir
do século XVIII. Profundamente codificada através das artes da paisagem, a experiência de lugar encontrou no espaço matemático da
geometria euclidiana subterfúgio para a ‘naturalização’ do domínio
do conhecido, bem como para a formação social que subjaz a ideia
de paisagem como poderosa construção cultural. 24
Implicada com as ilusões de transparência que encontram nas
regras da geometria e no ponto de vista descorporizado formas de
37
Geografias do Corpo
tratar o espaço como objecto rigorosamente inteligível, a ideia de
paisagem constituiu-se integrando a ‘naturalização’ de estruturas
epistémicas e respectivas práticas significantes como domínios de
uma visão totalizadora ou de uma meta-visão que operou, em grande
medida, pela mobilização de um regime ocular em que se especializou a cultura ocidental moderna. Neste processo, a normalização
do espaço pela sua transformação conceptual num plano abstracto,
um plano geométrico constituído por formas ideais, permitiu a experimentação e a exibição das novas relações espaciais. Tais formas
eram por sua vez perspectivadas de acordo com um ponto de vista
cuja essência era a própria posição abstratizada de um ponto exterior
ao plano. Neste sentido, Edward Casey25 salienta que a idealização
transcendental do espaço característica da cultura ocidental e radicalizada pelos sistemas racionais de pensamento tornou o espaço num
sistema universal de coordenação e medida. Transformado numa
entidade homogénea e planiforme, ‘este espaço é sujeito à estriação
linear por trajectórias precisas e é projectado como é visto – como
numa perspectiva monofocal – permitindo a reprodução dos seus
conteúdos indiferentemente em lado nenhum’.26 Volumétrico e puramente relacional, este espaço cartesiano alicerçou uma espécie de
primazia da posição do observador na lógica de uma teoria moderna
do espaço que estruturou as novas formas de ver o mundo. Uma teoria que tinha subjacente o ponto de vista alegadamente privilegiado
do observador27. Tal ponto de vista determinava, por sua vez, toda
a organização do espaço no plano, um espaço cenográfico e volumétrico, um espaço de representação. Para Martin Jay verificou-se,
neste processo, ‘um assalto ao significado substantivo do espaço,
para este se tornar num sistema uniforme e ordenado de coordenadas lineares’.28 De acordo com este autor, foi este espaço infinito do
plano que diferenciou a visão dominante do mundo moderno das
predecessoras, uma noção congénita não apenas à ciência moderna
mas também ao sistema económico capitalista emergente.
Erguida com base na reificação de um espaço descorporizado,
enquanto característica estruturante das modernas convenções da
cultura ocidental, uma concepção moderna do espaço unitário apreendia separadamente os seus elementos constitutivos, não permitin-
38
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
do a compreensão profunda das relações entre a componente física
(natureza), a componente mental (abstracções formais de espaço),
e a componente social (o espaço de acção e conflito humanos).29
Tendo subjacente um modo capitalista de produção, as espacialidades modernas estruturaram-se com base numa perspectivação do espaço como objecto inerte e homogéneo.30 Ao denunciar a tendência
moderna para espacializar e o modo de pensar em termos de espacialidade, como resultado de uma estratégia capitalista de acumulação,
Henry Lefebvre31 contesta a ideia de espaço uniforme como superfície passiva para a acção de reprodução social a qual é veiculada pelo
trabalho das representações. Para Lefebvre,32 a reconsideração deste
espaço implica a ‘reconstituição do processo desde a sua génese ao
desenvolvimento do seu significado’, indo de uma consideração dos
fenómenos no espaço para uma consideração da própria produção
do espaço. Assim, as representações de espaço são concebidas como
o domínio simbólico do espaço do capital. A relação entre este tipo
de espaço e a formação de uma superfície de visualização em torno
da qual se estruturam as relações entre o ser humano e o território
remete para a conexão entre os regimes de poder, verdade e conhecimento que se organizaram durante o período moderno.
Na sua tese historicista do espaço, Michel Foucault analisa as relações entre os mecanismos de poder e conhecimento e a constituição
de superfícies estáticas de visualização. Para o autor, a constituição
de superfícies ou corpos espaciais como expressão da acção das instituições sociais dominantes, faria parte dos mecanismos de controlo
e vigilância accionados pelas convenções de uma ordem racional
com o objectivo de impor as suas categorias epistémicas. Nesta senda, o aperfeiçoamento dos regimes scópicos modernos respondia a
esta necessidade e o Panóptico de Bentham (como paradigma das
superfícies espaciais oitocentistas) é apenas um entre os inúmeros
mecanismos passíveis de objectivar todo um mundo social constituído espacialmente através de nódulos e canais de dispersão não hierarquizáveis e mutuamente irredutíveis. De facto, a visão tornou-se
o modelo ocidental de cognição, encontrando-se absolutamente
associado ao desenvolvimento da ciência. Dentro deste modelo,
a observação do mundo ‘natural’ tem papel determinante para um
39
Geografias do Corpo
quadro de legitimação empírica da verdade perceptiva. Como uma
série de constructos conceptuais sem verificação ‘real’ a não ser pela
acção de um Olho transcendental (o olho observador da ciência baconiana), a história da ciência ergueu-se sob o artifício da experiência visual como ‘percepção natural.’33 Um regime visual específico
legitimou pois uma série de categorias culturais que posicionaram
uma noção ocularcêntrica de Razão como verdade universal. A cumplicidade entre uma razão ‘iluminada’ (uma fé intensa na evidência
visual) e o controlo ocular dos indivíduos ou o domínio visual, viria
a objectivar-se com a passagem para o século dezanove e pela transferência da ideia de um espectador ideal-transcendental (subjacente
à superfície transcendental de observação da filosofia cartesiana)
para a ideia de uma totalidade de observadores (subjacente à superfície empírica de observação da ciência moderna).34
Ao convocar um conjunto de teorias que advogam o papel dominante de uma superfície de visualização para a produção de conhecimento científico, tento clarificar as instâncias de produção de
subjectividade que operaram em consonância com um modelo de
cognição para a construção do conhecimento descorporizado. Já na
década de 1970, Foucault chamava à atenção para o facto de que,
o ‘poder soberano’ da superfície empírica de observação que se articulou em torno desta ideia (a de uma totalidade constitutiva de
observadores), advém da sua capacidade de se sobrepor às superfícies ‘sólidas e opacas’ do corpo. Proporcionando um contexto de
objectividade que suplantava as verdades ideais que compunham a
‘claridade clássica’ do Iluminismo, esta superfície empírica de observação é paralelamente a superfície de individualização celebrada
pelos românticos. Erguida como um poderoso campo epistémico
dentro do qual através desta superfície uma realidade objectiva se
abre a um olho inocente, ‘o mito de uma superfície de visualização
pura como linguagem pura’35 alicerçou um regime de conhecimento
assente sobre a ideia de um olho absoluto. A complexa interacção
entre linguagem e visão que estrutura a ciência moderna, estabelece
assim uma dialéctica entre palavra e imagem como forma de aceder
‘à mudez dos objectos’.36 De resto, uma dialéctica que legitimou a
ficção humanista de um sujeito constitutivo. Através dela, justifi-
40
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
cou-se uma ‘coerência’ espacial que urgia mapear para um suporte bidimensional, tarefa que a representação em paisagem com as
suas qualidades miméticas exponenciava, transformando o espaço
num trompe l’oeil universal para consumo doméstico. Neste processo, aquilo que um campo anónimo de visão anunciava (a superfície
empírica de visualização) era a própria descorporização deste Olho
absoluto da ‘carne do mundo’ e da experiência vivenciada.37
Arreigado à ‘verdade’ da observação, o discurso científico moderno encontrou na superfície empírica de visualização recurso para
alcançar a ‘transparência genuína’ do conhecimento. Como dispositivo que se dissolve em invisibilidades por forma a revelar uma
verdade unívoca ou um sentido não ambivalente dos factos analisados, a superfície empírica de observação estabeleceu um regime de
conhecimento empenhado com a legitimação da unidade da palavra
e da imagem.38 Dominado pela fé no poder da observação directa
assim como da observação mediada pela tecnologia, o discurso científico comprometeu-se com a ordenação taxonómica dos fenómenos
organizados no espaço visível do plano. Tornada num registo transparente da superfície de observação, a linguagem científica integrou
o conhecimento visual como ordem dominante resgatada a um conjunto de ‘testemunhas ausentes’; o sujeito observador e soberano
que apenas pode ser inferido pela representação.
O campo epistemológico visualmente constituído transformou-se,
deste modo, no domínio de um meta-sujeito do conhecimento, um
sujeito alegadamente neutro que percebia o mundo do exterior e
que perseguia uma visão pura dos fenómenos, a qual ‘deveria ser
transcrita na materialidade do espaço’.39 Este sujeito da representação, o meta-sujeito observador característico das Ciências Naturais
e das Ciências Humanas, encontrou-se implicado na construção de
um projecto antropocêntrico legitimado pela posição de um sujeito
sintético e unificado como o proprietário de uma visão universal. A
ontologia de uma superfície de observação que requeria um sujeito observador e um Outro objectualizado (observado), justificava,
assim, uma metafísica da presença alicerçada sobre uma episteme
que era nutrida pelo poder de objectificação de um regime ocular
específico. Neste quadro, o policiamento visual dos corpos e dos es-
41
Geografias do Corpo
paços efectuado por meio de uma superfície de observação, respondia à necessidade de representação de um sistema auto-suficiente. A
criação de configurações espaciais ‘consistentes’ que sustentavam a
alegada coerência de um regime visual dominante assegurava, assim, a criação de uma arena de representação passível de albergar os
contextos de mesmidade do sujeito humanista, protegendo-o da alteridade e da ambiguidade criativa de diferentes modos de ver e dos
desafios dos outros sentidos como o olfacto e o tacto. Espaço, corpo
e lugar vêm-se portanto enredados num regime de conhecimento de
que somos herdeiros, regime este alicerçado sobre a primazia de um
sistema cognitivo e perceptivo responsável pela produção da subjectividade. Detenhamo-nos pois, seguidamente, sobre o modo como
tem vindo a ser questionado este modelo de conhecimento pela ênfase em modelos alternativos assentes num conhecimento corporizado
que reclamam diferentes posições de sujeito.
2. Do corpo como contentor de identidades essencializadas ao
corpo como lugar de criação de subjectividades
A revisão dos ‘humanismos’ que percorrem as tradições discursivas
ocidentais, sendo central para a construção de teorias alternativas,
promove a construção de discursos passíveis de suplantar as tendências de apropriação, de totalização e de integração que subjazem o
conhecimento moderno. Por isso, configura parte significativa dos
esforços que nas últimas décadas se têm desenvolvido no âmbito
dos estudos em torno da cultura científica. Efectivamente, se parte
significativa da teoria cultural das últimas décadas se tem orientado
para a revisão de conceptualizações drasticamente antropocêntricas,
isto acontece em grande medida porque o repensar das subjectividades implica ter em conta as relações de poder que permeiam a sua
própria formação e experiência. A análise da história da subjectividade, tem mostrado que as posições de sujeito são construídas em
grande medida através dos discursos do corpo e do lugar, do desejo
e da sexualidade, os quais alteraram as percepções da subjectividade
e da sociedade, delimitando a afirmação de ‘outras’ identidades.40
Perspectivada como arena de conflito e contestação, dada a multiplicidade e a natureza mutável das relações que nela são tecidas, a
42
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
ideia de lugar tem vindo a ser reconceptualizada como construção
dinâmica e fluida.
Ligados por específicas formas de habitação, corpo e lugar são
mobilizados através de construções simbólicas cujos significados
são frequentemente alvo de narrativas inaugurais que favorecem a
perpetuação de visões metafísicas ou míticas sobre o mundo e os
espaços que o constituem.41 Estruturando e simplificando as relações
entre o ‘aqui’ e o ‘ali’, ‘nós’ e os ‘outros’, tais visões ou perspectivas
são alicerçadas sobre a ideia de uma estética não opressiva e evidenciam uma coerência aparente. Obscurecendo as particularidades do
lugar, estas perspectivas são fundadas numa hierarquia social do ambiente de representação e diferenciais no ‘capital posicional’42 dando origem a agudas contradições e a tensões associadas às fronteiras
simbólicas, sociais e físicas incorporadas no espaço.
A contestação da ideia de identidades únicas e permanentes, embora não implique a negação do carácter único de um lugar, fez com
que se passasse a analisar esse carácter enquanto ‘consequência da
múltipla intersecção de fluxos generalizados, estruturas de poder,
discursos e subjectividades’.43 Produto social e dos mais diversos
imaginários geográficos, o lugar é constantemente criado e recriado
veiculando forças de inclusão e de exclusão que participam na forma de habitar cada mundo de experiência. Por isso, a ideia de lugar
constitui frequentemente fonte de paradoxo, ambivalência e contradição. Aliás, a reconceptualização do lugar como área circunscrita
para um agregado de redes de relações sociais abertas e porosas,
veio reforçar, de acordo com Doreen Massey,44 a ideia de que as
identidades de lugar são múltiplas pelo que a imagem dominante
de qualquer lugar é mutável através do tempo e é sempre alvo de
contestação. Para a autora, o estudo do lugar encontra-se para além
das tradicionais polarizações conceptuais a que tem vindo a ser votado, tais como objectividade/subjectividade ou acção/estrutura, pelo
que não existem características fixas de lugar ou fronteiras espaciais
fixas, sendo os lugares definidos tanto pelo interior como pelo exterior constitutivo.
Reflectindo a sensibilidade contemporânea das orientações críticas
humanistas, a tentativa de compreensão do significado de lugar pas-
43
Geografias do Corpo
sou a ter subjacente a preocupação com problemáticas tão diversas
como a memória individual ou colectiva, a conexão entre imagens, o
sentido idealizado de lugar e o fabrico de comunidades específicas.
Mas, tal esforço passa ainda pela busca das complexas relações entre
o corpo e as instâncias de produção de poder e autoridade, surgindo
como terreno para a escolha ética e moral. Denunciando as visões
parciais e incompletas que se escondem sob cada sentido de lugar,
desvelam-se os silêncios políticos e sociais alojados em cada paisagem material indagando-se as diversas formas em que se cumpriu a
sua representação. Neste sentido, o debate em torno da fisicalidade
da paisagem (e as interpretações complacentes de lugar) tem vindo a
ser incrementado tendo em conta narrativas que denunciam o envolvimento com a natureza não como abstracção mas como elemento
determinante no que respeita à definição das experiências pessoais.
Como modo de exercer o controlo disciplinar sobre os corpos
dos sujeitos, decorrente da afirmação do conhecimento científico
moderno, a descorporização do prazer e do desejo associa-se aos
processos interligados de identificação e desidentificação que operam na formação do sujeito (do humanismo). Daqui decorre que os
processos de construção de identidades que se desenvolveram no
mundo moderno apresentam uma frágil e contraditória constituição,
funcionando as categorias engendradas como meio de estigmatização do Outro e de ‘outros lugares’ sobre os quais se recolocaram as
características rejeitadas pelo sujeito do humanismo. Funcionando
como ‘superfície de inscrição e como fronteira entre o sujeito individual e aquilo que é Outro para ele’,45 o corpo funciona ainda como
fronteira maleável que nos põe em contacto com um exterior autodeterminado. A ênfase no trabalho de um ‘exterior constitutivo’,46
remete, nestes termos, para a necessidade de ruptura com a noção de
identidades puras e de fronteiras rígidas entre os sujeitos47 e com a
ideia de lugares dos sujeitos.
Activamente constituídos através de ideologias e de metateorias
de localização, os corpos e os sujeitos são modelados por formações discursivas tanto como por contextos materiais e determinantes
biológicas, possibilitando e delimitando, uns e os outros, as práticas
sociais. Como salienta Rob Shields,48 ‘(o) acto selvático de ‘fazer
44
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
o espaço’ e de pôr em prática códigos espaciais é indicador de uma
qualidade social mais lata orientada para a codificação espacial,
para as práticas espaciais, para as nossas representações de espaço e
para a nossa geografia imaginária, em que tudo tem um lugar e um
tempo’. Enquanto elemento cultural que legitimou uma lógica de
identificação ‘natural’ e respectivas hierarquias, o sistema moderno
de conhecimento assenta, como já foi referido, sobre a ideia de uma
corporização abstracta do sujeito.49 Esta, dispersa-se em categorias
espaciais através das quais se organizou uma muito concreta rede de
poder de uns indivíduos sobre os outros. É que, a formação dos sujeitos individuais e colectivos encontra-se na dependência da construção e ‘naturalização’ de categorias não-inocentes de localização
que serviram para legitimar uma epistemologia e uma ontologia de
policiamento da diferença.50 Iludindo as múltiplas realidades corporais, as identidades parciais e os pontos de vista contraditórios, a
ideologia que subjaz o constructo de identidade universal iludiu a
constituição histórica geográfica e social de categorias como género,
raça ou classe, autorizando a apropriação dos corpos e identidades
como parte de um trabalho político de organização de uma rede de
poder eurocêntrico.
O desafio de superação dos dualismos como corpo e mente ou sujeito e objecto, configura um modo de indagar os processos conflitivos e fragmentados de formação de identidades, encontrando-se em
íntima ligação com os processos correntes de redimensionamento
da análise social do espaço. Paralelamente, este configura um modo
de contestar o pendor antropocêntrico das prescrições teóricas e metodológicas de um conhecimento descorporizado, implicado com
a ‘naturalização’ de categorias convencionais como corpo, sexo e
etnia. Como superfície para a produção do conhecimento, sentimentos, emoções, geografias e histórias encaradas como elementos
centrais para a o acto de ‘sujeição’,51 o corpo não pode ser pensado
como entidade fechada pois o seu carácter é iminentemente relacional. O recurso a uma renovada noção de corpo tendo em conta
a sua (des)geografização serve como forma de declinar uma série
de dualismos que estruturam as categorias convencionais de sexo e
género, classe e etnia, como forma de romper com uma construção
45
Geografias do Corpo
de corpo como contentor de identidades essencializadas. Encarar o
corpo como cultural e discursivamente construído, representa um
passo a diante no caminho da desestabilização das suas convencionais formulações; biológica, histórica, geográfica, antropológica ou
sociológica.
Apelando à necessidade de clarificação da linguagem geográfica
por forma a suplantar a noção tradicional de espaço empírico onde
as categorias sociais em que o espaço é concebido e percebido estruturam os aspectos mais elementares da nossa interacção com o
mundo físico, Rob Shields salienta a necessidade de desenvolver
uma sensibilidade para as operações de codificação do espaço topográfico ‘onde se produzem materialmente sites e regiões, para o
nosso sentido de espacialidade e reflexividade, e para o modo como
percebemos o espaço geográfico’.52 Aquilo que o autor põe em causa
é o próprio processo de codificação topogenética do espaço, associado à ideia de produção social do espaço. Analisado nesta perspectiva, o processo de codificação topogenética evidencia negligências
relativamente ao carácter reflexivo da ‘produção’ e ao modo como
as espacialidades construídas informam os comportamentos e práticas corporais. A necessidade de superação da noção de ‘objectos-noespaço’ é crucial, argumenta o autor, dado permitir a interpretação
da codificação do espaço como parte de um sistema de categorias
filosóficas criadas culturalmente. Ora esta perspectiva é tanto mais
importante se pensarmos que o corpo tem vindo a ser comumemente
entendido como um ‘objecto-no-espaço’. Porquanto, a análise da espacialização dos valores e práticas sociais integra a ideia de espaço
como artefacto cultural, permitindo a interpretação da codificação
do espaço como parte de um sistema de categorias filosóficas criadas
culturalmente.
Como área de enfoque crítico estratégico, a problemática da espacialização sócio-cultural descentra a análise do historicismo, em
que o espaço social detém o estatuto de produto de relações sociais
mais vastas e em que é reduzido a um reflexo das características sócio-económicas. Este esforço de descentração, encaminha a análise
para uma reexaminação do espaço enquanto dimensão constituinte (uma entre muitas outras) do ‘edifício social de espacialização’53
46
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
colocando-nos em direcção a uma perspectivação da sociedade e da
cultura como entidades espaciais. Esta viragem é central para a compreensão das problemáticas aqui analisadas. E é central sobretudo
se tivermos em conta a revisão que está a ser operada às categorias
sociológicas tradicionais (como classe, género e etnicidade) e às categorias geográficas convencionais (como nação, região e cidade).
Tudo isto, como salienta John Urry,54 num momento em que se desafia a tendência para pensar a sociedade em termos reificados como
‘estrutura social’ ou ‘sistema social’, e em que autores como Patrick
Joyce55 tentam substituir a solidez ontológica da noção de sociedade
por uma compreensão mais fluida ‘do social’. Então vejamos.
Constituído através de práticas específicas, materialidades e seres
corporizados, ‘o social’ é perspectivado por Bruno Latour56 como
aquilo que circula dentro do ‘mundo das coisas’, sendo entendido
em termos relacionais. Dentro deste ‘mundo das coisas’, inclui este
autor as formas disciplinares de conhecimento. Dada a profunda ligação entre o repensar das categorias sociais e espaciais, a ênfase nas
metáforas de rede, mobilidade e fluxos associa-se à necessidade de
pôr sob escrutínio os processos que estabelecem a ligação entre diferentes corpos e lugares (a uma enorme variedade de escalas), mais
do que analisar os sentidos fixos e circunscritos de lugar57. Mas, voltaremos adiante e, mais amiúde, a esta questão. Fixemo-nos, por ora,
na tentativa de compreensão ‘do social’ e da cultura como entidades
espaciais, para podermos perceber mais claramente a passagem da
perspectivação do corpo como contentor de identidades essencializadas para o corpo como lugar de criação de subjectividades. Dona
Haraway poderá ajudar-nos nesta tarefa.
Refutando as perspectivas alicerçadas sobre a ideia de ‘vista de
lado nenhum’ e um conhecimento descorporizado produzido pela
ciência moderna (engendrada por um sujeito abstracto detentor da
razão), Donna Haraway defende a validade de um conhecimento
que é alicerçado sobre a ideia de ‘vista do corpo’, com a sua posição
específica. A ‘colocação’ do sujeito gerador de conhecimento num
corpo específico, e a consequente passagem do paradigma da simplificação para o paradigma da complexidade, implica a aceitação do
acto de ‘corporização do conhecimento’, e a atenção relativamente
47
Geografias do Corpo
às subliminares maquinações de uma instância, ‘contraditória, estruturada e estruturante como é o corpo’.58 Refutando uma teoria
social estática59 que apresenta inúmeros sujeitos como recipientes
passivos de processos de normalização, teorias alternativas como a
de Haraway insistem na formulação de que o corpo proporciona um
conhecimento-chave sobre o trabalho da subjectividade mostrando
como os indivíduos tem vindo a ser alvo de práticas que decorrem
de aparatos ideológicos que as tornam sujeitos nos termos desses
aparatos. Como enfatiza a própria autora, a consciência de género,
raça ou classe foi-nos forçada pela terrível experiência histórica das
contraditórias realidades sociais do patriarquismo, colonialismo e
capitalismo. Mas esta foi-nos ainda forçada pela ambivalente experiência geográfica de territorialização de identidades.
A ideia de vista de nenhum lugar donde imana o conhecimento
científico, serve para mascarar a própria rede de lugares em que se
opera a produção científica. Indagando as identidades que fundam
o mito político do ‘nós’,60 Haraway explora a construção histórica e
social das vozes políticas alicerçadas sobre a ideia de um ponto de
vista natural ou orgânico como condição de legitimação da autoridade cultural de uns grupos sobre os outros. Ora, indagar a constituição de corpos histórica e socialmente constituídos implica indagar
a constituição geográfica desses mesmos corpos, nomeadamente
pelo acto de detonar as ideias de uma origem ‘natural’ e de um lugar original, passíveis de explicar a condição de subjugação desses
mesmos corpos. As questões políticas e analíticas aqui levantadas,
ao endereçarem as problemáticas decorrentes das práticas de deslocalização entre fronteiras das identidades e comunidades raciais e
sócio-sexuais, interceptam desde um ponto central as questões epistemológicas e as dinâmicas de formação e de territorialização dos
indivíduos. Ao passar pela superação das convenções de auto-invisibilidade do sujeito produtor do conhecimento, tais questões forçam
a substituição de uma cultura da verdade transcendental por uma
cultura dos factos contingentes, passível de integrar uma polissemia
de figuras e de vozes.
Se os discursos emergentes se vêem implicados com a ruptura das
metanarrativas da subjectividade, isto acontece precisamente pela
48
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
necessidade de autorização das figuras e lugares da alteridade e da
diferença. Nestes termos, a reescrita das histórias e das geografias
dos corpos, passa pela criação de narrativas da experiência do corpo
e de identidades diferenciais, uma fissura que é alcançada através
de um trabalho de conhecimento íntimo ou percepção interna, bem
como pela acção de ‘sujeitos revolucionários pós-humanistas’.61 A
estratégia adoptada passa pelo desenvolvimento de narrativas do
conhecimento íntimo que promovam a relevância dos diferentes lugares da experiência bem como de ‘outros’ sujeitos, uma estratégia
que vai muito para além de um conhecimento alicerçado sobre um
sistema cognitivo e perceptivo convencional. O desmantelar de categorias absolutas de pertença, tidas como coerentes e homogéneas,
configura pois a irrupção dessa fissura que advém da urgência de
afirmação de um conhecimento háptico, um conhecimento assente
sobre todos os sentidos (e não sobre o domínio da visão). Tal forma
de conhecimento reflecte linguagens alternativas através das quais
se enunciam os processos de formação identitária em permanente
fluxo. A tentativa de afirmação de geografias hápticas associa-se,
portanto, à enunciação do corpo como o mais próximo lugar da experiência, um lugar através do qual se articulam os sistemas cognitivo, afectivo e emotivo que nos conecta com uma miríade de outros
corpos em relação.
Decorrente dos processos de desnaturalização epistemológica das
categorias e sujeitos herdados,62 esta fissura que ameaça os sistemas
convencionais de percepção e conhecimento, representa uma oportunidade para a exploração de novos modos de escrita cultural alojados
na intercepção de corpos e lugares. Tais políticas e epistemologias de
posicionalidade, associam-se à prática da desterritorialização e subsequente reterritorialização dos corpos e sujeitos do conhecimento,
uma prática que assenta na recusa de qualquer tipo de posicionamento perspectivado como final ou estático. Isto caracteriza significativamente a mudança epistemológica que se vem desenhando. Tal
mudança é marcada pela libertação do acto de sujeição operado pela
Razão, construído como se evoluísse de forma linear de um lugar
estável de origem em direcção a um presente substancial, abrindo
caminho para um indivíduo liberto que rejeita uma construção linear
49
Geografias do Corpo
única e que se encontra em permanente tensão, numa oscilação entre
margem e centro. Nestes termos, a reescrita de geografias e de histórias baseadas em especificidades culturais alternativas (por exemplo
emergentes nas zonas de fronteira de género ou raça), desenvolve-se
através de processos espaciais que rompem com os posicionamentos
dominantes determinados por barreiras culturais artificialmente impostas, por forma a definir a centralidade e a marginalidade cultural
dos diferentes sujeitos e grupos.
Desafiando o carácter alegadamente concreto das dimensões geográfica, histórica e cultural que informam a construção social das
categorias de sujeito engendradas pelo Humanismo, estas aproximações encontram-se implicadas com a renegociação das representações de corpo tendo em conta a experiência desde o próprio
corpo, de acordo com as múltiplas narrativas que potenciam a transposição cultural dessa mesma experiência. A insistência na ideia de
que tanto os sujeitos como os corpos das práticas da construção do
conhecimento devem ser situados, decorre da preocupação com a
abertura para a aceitação de inúmeras instâncias através das quais é
gerado o conhecimento, nomeadamente das entidades espaciais. E,
neste ponto, suspendo momentaneamente a minha narrativa, num
ponto em que corpo e mente se esgrimem como partes amputadas
do mesmo organismo, denunciando uma crise semiótica em que os
signos correm o risco de falhar a própria articulação da narrativa
em que se encontram envolvidos. Tomando de empréstimo a sugestão de Derrida,63 de que os signos marcam o lugar da diferença, é,
desde este ponto, o ponto da enunciação da crise de significados
como o espaço paradoxal da emancipação do sujeito, que deixo em
aberto a passagem para o momento seguinte da presente discussão.
Antes, fornecerei apenas um ordenador, notando que este será um
momento em que a ideia de paisagem servirá como instrumento de
indagação das geografias da ambivalência. Desde aí, tentarei, por
um lado, compreender a complexidade de uma das mais reclamadas
permanências geográficas e, por outro lado, acrescentar mais uns
traços ao ‘meu’ esboço de uma relação de geografias impuras,64 as
quais autorizam o corpo do sujeito diferencial feminino com a sua
particular poética e com uma específica ética de lugar. Como cenário
50
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
‘inerte’ que recodifica inexoravelmente a minha actividade textual, a
paisagem torna-se o devir, a singularidade solicitada.
3. Do conhecimento situado às paisagens de afectação como
instâncias de co-produção do mundo
Associada à tentativa de superação de um dualismo estrutural que
permeou o pensamento ocidental,65 a reteorização do corpo tem subjacente o refutar do carácter descorporizado de um conhecimento
que não é alicerçado na experiência vivenciada do quotidiano. A tentativa de tornar aparente o trabalho dos corpos (a espacialização dos
corpos pela teoria), os seus contextos e suas implicações, decorre
da necessidade de suplantar o paradigma dos corpos como resultado acabado dos processos de formação identitária cuja performance
se desenvolve de acordo como normas pré-determinadas (o corpo
como entidade discreta da ciência moderna)66. A definição dos sujeitos como entidades corporizadas e a referência às formas culturais
assumidas por identidades e subjectividades múltiplas e específicas,
associo-as à tentativa de perceber a construção social do corpo, bem
como a uma significativa reorientação das escalas de análise através
das quais ‘o social’ e ‘o cultural’ têm vindo a ser compreendidos e
interrogados. Desenvolvendo os contributos das teorias pós-estruturalistas e das teorias culturais contemporâneas, assim como das teorias pós-coloniais e psicanalíticas, inúmeras abordagens indagam a
construção das posições femininas geradas em enquadramentos ideológicos que promovem relações de poder desiguais, as quais vieram
a ser ‘naturalizadas’ por normas de género.67 O trabalho científico é
pois orientado para a concepção de novos tipos de sujeito, uma vez
que a ideologia opera em grande medida pela construção da subjectividade. A proposta de concepção de novos sujeitos, nomeadamente
‘sujeitos constituídos no género não simplesmente por diferença sexual, mas antes através de linguagens e representações culturais’,68
alia-se à preocupação com a produção de subjectividades perspectivadas como produto e processo de práticas individuais.
A importância dos estudos críticos da ideologia de género é fundamental para se compreender as problemáticas aqui analisadas, na
medida em que enfatiza a construção de sujeitos conscientes das
51
Geografias do Corpo
operações da ideologia. Ainda que inconfortável, tal esforço é necessário para a inclusão da experiência vivenciada como entrada
crítica para a teorização da subjectividade.69 Desde este ponto, em
que a ideologia não é encarada como um sistema fora de nós próprios mas que integra as nossas práticas e a nossa vida quotidiana,
Teresa de Lauretis remete para os aspectos da vida que estão fora
do enquadramento dos discursos dominantes, considerando as dimensões da experiência vivenciada que ficam ‘fora de campo’. A
sua noção de espaço fora de campo, ‘o espaço que não é visível no
enquadramento mas que se pode inferir por aquilo que se torna visível pelo enquadramento’,70 remete para as ‘micropráticas’ que estão
na dependência das diferentes representações culturais, incluindo
as práticas políticas dos sujeitos múltiplos.71 Para a autora, é nestes
espaços que os termos de uma diferente construção de género pode
colocar-se. Tendo efeito e acontecendo ao nível da subjectividade
e da auto-representação, os termos de uma diferente construção de
género alojam-se nos espaços intersticiais das micropolíticas da vida
quotidiana e da resistência diária, através dos quais se alcança a acção colectiva e se estabelecem as fontes do poder.72 E aqui é importante sublinhar dois aspectos: a necessidade de nos reconhecermos
como sujeitos generificados numa sociedade em que as representações culturais dominantes excluem o outro não-heterossexual; e
a necessidade de criar condições para a afirmação de subjectividades alternativas. Para um e para o outro a ideia de espaços fora de
campo funciona como modo de explorar a subjectividade, perspectivada como prática e como processo em que a realidade material
e a ideologia, as representações dominantes e as nossas próprias
auto-representações se articulam para a construção de identidades
contraditórias, parciais e fragmentadas.
A exploração de metáforas como a dos espaços fora de campo, associa-se à tentativa de superação de um projecto anterior perpassado
por exclusões e distorções relativas a diferentes formas de alteridade (mulheres ou sujeitos não-europeus, entre outras), evidenciandose através destas abordagens a criação de novos sujeitos culturais.
Através delas, indagam-se as práticas e as políticas de representação
que veiculam estereótipos de género na sua relação com as estrutu-
52
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
ras dominantes de conhecimento e com um mundo de imagens em
proliferação que reforça a produção de significados de acordo com
uma ordem de valores estabelecidos. Trata-se de indagar as construções de género e os contextos heteropatriarcais em que a vida
quotidiana toma lugar, bem como as respectivas políticas culturais,
tratando-se ainda de contestar as categorias herdadas por forma a
integrar os múltiplos eixos da diferença que operam na formação de
identidades. Neste sentido, a premissa do direito à diferença representa muito menos um apelo circunstancial à particularidade de vozes específicas dentro de um quadro de valores estabelecidos do que
o confronto entre práticas e narrativas que competem para a dissolução do centro (a grelha opressiva de uma geografia e história totais e
da moderna epistemologia). Atendamos, pois, ao modo como se têm
vindo a consubstanciar estas práticas e narrativas.
A construção de formas alternativas de conhecimento, configura a
base de algumas práticas científicas, sendo paralelamente uma estratégia de acção político-intelectual e um modo de declinar a apropriação masculinista da sexualidade feminina, perspectivada como um
trabalho do sujeito do Humanismo. Tomando conta de um debate
cultural mais vasto, sobretudo desde a década de 1980, a desconstrução da dicotomia feminino/masculino e respectiva representação
visual é particularmente significativa na teoria e crítica contemporâneas. Rejeitando qualquer metalinguagem pela sua incapacidade
de deixar falar a diferença, e como tal de falar pelas mulheres e por
outros grupos tradicionalmente subalternizados, uma série de discursos antiocularcêntricos reclama uma linguagem da proximidade
mais do que uma linguagem da distanciamento.73 Literalmente reflectida no campo visual, a dimensão genérica da experiência transforma o espaço numa arena de visão mediada por uma superfície
masculinista de observação. Transformado numa superfície voyeurística de contemplação (masculina), o espaço viu-se transformado
em espacialidade pela distância ao sujeito, numa apoteose filosófica
em que a mulher permaneceu como uma espécie de caixa negra e
como objecto de incompreensão. De facto, a ênfase no poder de uma
superfície hegemónica de observação e num sistema dominante de
representações intercepta todo o campo da cultura visual implicado
53
Geografias do Corpo
com a análise crítica do trabalho das imagens e com a centralidade
da visão na cultura ocidental. Longe de se encontrarem alojadas em
campos disciplinares discretos, as imagens apresentam-se como valiosas fontes de exploração da normativização heterosexista, funcionando como base para a teorização crítica da cultura e do espaço.
A análise das estratégias representacionais mobilizadas pela cultura moderna remete para o modo como as construções sociais de
género, sexo ou raça são ‘naturalizadas’ através de diferentes discursos. A mobilização de constructos como ‘mulher’ e ‘paisagem’
através da linguagem visual é veiculada por específicos sistemas de
significados ancorados sobre uma relação entre corpo e espaço. O
papel destes sistemas de significação tem constituído uma das problemáticas centrais cada vez mais discutidas dado o poder da imagem nas sociedades contemporâneas. Denunciando as maquinações
de uma superfície de observação que é estabelecida pelo efeito dos
aparatos e tecnologias da visão desenvolvidos pela cultura moderna
ocidental, autoras como Irit Rogoff74 exploram as problemáticas do
corpo sexualizado nas representações dominantes de espaço. A análise crítica de Rogoff ao modo como as imagens potenciam a ‘naturalização’ de construções hegemónicas mostra claramente como
mulher e paisagem são representadas por forma a legitimar uma retórica político-ideológica em que ‘corpos enfáticos’ são mobilizados
como vestígios de uma relação transcendental entre o ser humano
e a terra. E isto acontece por sermos herdeiros de um sistema de
significação engendrado sob a acção de aparatos nacionalistas e imperialistas a que a ciência forneceu base ‘objectiva’ de legitimação.
Para a autora, aqueles ‘são os corpos de uma geografia tradicional
em que a unidade entre lugares e sujeitos foi fundida até ao ponto em
que temos corpos marcados ideologicamente que significam a especificidade das relações entre um povo e um lugar’.75 Donde a sua ênfase na geografia e espacialização como categorias epistémicas, pela
necessidade de averiguar como um campo de conhecimento e uma
ordem de conhecimento assentam em questões de posicionalidade,
em questões que têm que ver com quem tem o poder e autoridade
para nomear e para sujeitar ‘outros’ a fórmulas identitárias hegemónicas.
54
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
O poder apelativo das representações em paisagem e o seu potencial no que respeita ao fixar de uma tradição idealista de pensamento
em que a verdade se equaciona na relação com uma economia da
‘presença’ (do visual) dentro da qual a mulher teria sido acomodada
como uma ‘falha’ ou ausência, é alvo de severo escrutínio. O reclamar de experiências subjectivas e diferenciais de paisagem, sonda-se
na contestação desta superfície de observação como instrumento privilegiado para devolver ao ‘objecto’ feminino a sua própria imagem.
Donde a necessidade de desenvolvimento da percepção interna da
não-existência de um sujeito único e respectivo objecto de apropriação, excepto como produto do desejo masculino,76 o que remete para
a necessidade de suplantar o quadro de objectificação-apropriação
sexual com base numa doutrina da experiência feminina do espaço.
Aquilo para que chamo à atenção, é para o modo como superfícies
‘inocentes’ de inscrição se encontram implicadas com versões ‘inferiores’ de sujeito aprisionadas numa economia de signos e imagens
forjadas pelo sujeito da Razão. A colocação da paisagem como uma
arena crucial de refutação da lógica do pensamento ocidental com ‘a
sua predominância do visual, da discriminação e da individualização da forma’,77 denuncia, pois, a ‘colocação’ da mulher numa economia scópica dominante, ‘a sua cedência à passividade, destinada
a ser um objecto belo de contemplação’.78 Refuta-se, porquanto, um
movimento de exibição (do objecto) orientado para a satisfação do
desejo do sujeito do humanismo.
Servindo paralelamente o desejo sexual masculino e o desejo de
auto-representação do sujeito do Humanismo, a moderna ideia de
paisagem perpetua um movimento cultural que afasta os corpos das
mulheres de mecanismos que lhe são mais particulares. Tais mecanismos, como as formas femininas de erotismo que encontram o
prazer em outros sentidos que não apenas na visão, assim como as
formas de identificação diferentes da auto-representação, encontramse associados à ‘auto-afeição’.79 Reclama-se, deste modo, uma outra
participação do corpo e das identidades femininas na experiência de
paisagem, contrapondo, a um bloco monolítico do desejo masculino, formas mais fluidas e menos unificadas que irradiam de identidades que não podem ser divididas dentro de categorias simplificadas
55
Geografias do Corpo
de interior e exterior. Perspectivadas como extensões contínuas do
idealismo ocidental, as representações em paisagem encontram-se
implicadas com a produção de um observador masculino, burguês,
branco e heterossexual, o qual, arreigado a uma particular visão (feminização) do corpo-terra, adquire um poder e coerência ilusórios
nesse acto de subjugação. Este mesmo acto, decorre da ‘naturalização’ de uma superfície de observação forjada pela acção de um sujeito unitário, tornado abstracto pelo poder de inúmeras tecnologias
em que a modernidade se especializou. Tais tecnologias da representação, que auto-legitimam o sujeito do Humanismo autorizando
as suas práticas de domínio e subjugação, penetraram os campos da
esfera pública e privada fazendo-nos crer no seu poder edificante no
que respeita à organização da experiência quotidiana. O poder totalizador que irradia desta superfície hegemónica de visualização é desafiado por um conjunto de posicionalidades subalternas, que lutam
pelo desmantelar das lógicas, linguagens e práticas do Humanismo,
bem como dos pólos difusores da construção da categoria cultural
‘corpo’ criada pelo capitalismo industrial.
Pamela Moss e Isabel Dick fazem parte do conjunto de autoras
que lutam por posicionalidades subalternas, encontrando-se implicadas com a construção de um conhecimento que teoriza dos corpos
(e não pelos corpos). Estas privilegiam os modos materiais em que
os corpos são constituídos, experienciados e representados, através
das práticas do conhecimento situado. Como conhecimento situado,
advogam, o conhecimento corporizado desafia abstracções que são
divorciadas da materialidade e de espacialidades específicas através
das quais o poder é exercido e contestado. Remetendo para ‘os espaços vivenciados em que os corpos se localizam corporal e conceptualmente, concreta e metaforicamente, material e discursivamente’,80
a corporização emancipa um universo heterogéneo de sujeitos (e
identidades) que se encontram ‘escondidos’ sob a capa dos discursos
universalizantes que actuam como entidades discretas fragilmente
envolvidas com o seu ambiente material e simbólico. E aqui é pertinente evocar a celebração lefebvriana de espaço qualitativo, um espaço que não obedece às leis de consistência e coesão social mas sim
à vivência directa estruturada por ‘centros afectivos’, dado abraçar
56
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
‘o locus da paixão, da acção e das situações vivenciadas’.81 O espaço
vivenciado directamente e articulado em sistemas representacionais,
constitui em grande medida o domínio da experiência, tendendo para
sistemas menos coerentes de símbolos e signos não verbais. Como
espaço qualitativo que é, argumenta o autor, este espaço celebra a
particularidade, e embora superficialmente possa não parecer diferente, tal celebração, da particularidade corporal e experiencial que
irradia do seu âmago, faz dele um ‘espaço diferencial’.
Propiciando o acto da enunciação cultural (o lugar da pronunciação, da elocução, enfim, da utterance),82 o espaço diferencial da
experiência quotidiana de sujeitos múltiplos articula as estruturas
da representação simbólica por forma a destruir as lógicas de sincronicidade e evolução que tradicionalmente autorizam o sujeito do
conhecimento científico moderno. Perspectivada por Moss e Dick83
como uma noção de ‘diferenciação enquanto processo’, a corporização do conhecimento associa-se à ideia de corpo e às suas múltiplas
e variadas formações discursivas inscritas em espaços concretos. A
corporização como experiência vivenciada, remete, pois, para a esfera de acção de espaços diferenciais, para todo um campo operativo que intercepta as ligações entre as conceptualizações de corpo e
identidade, experiência de lugar e actividade corporal. Mas, a corporização do conhecimento, remete ainda para a substituição da ideia
de cultura unitária por uma ideia de políticas culturais activadas por
sujeitos da diferença. Estes conceitos são fulcrais para ‘a teorização
da experiência humana, subjectividade e relações de poder através
das quais a diferença é construída e regulada’.84 As possibilidades
políticas dos sujeitos da diferença85 que lutam por emancipação radicam na construção de redes de afinidades e conexões onde possa
sediar-se, pela interacção e partilha, para a construção do carácter
colectivo da prática cultural.
O processo de corporização da teoria torna-se, pois, uma questão metodológica e epistemológica, dado que a teorização do corpo
surge como dimensão crucial para a experiência vivenciada. Para
aquelas autoras, a problematização da ligação entre corpo, corporização e teoria passa pela análise de como a corporização é usada para denotar aspectos constitutivos do corpo (como identidade,
57
Geografias do Corpo
poder e materialidade), concebido o corpo como entidade material
que é complexamente constitutiva de noções, ideias e inscrições. A
negociação criativa dos espaços diferenciais, toda uma superfície
não mapeada que se situa entre categorias e discursos, bem como
nos interstícios dos espaços físicos que são essencialmente resultado
da actividade performativa de identidades definidas de acordo com
categorias culturais homogéneas, configura uma dessas práticas86.
Ao configurarem-se paralelamente como superfícies de inscrição do
Outro subalterno ou do Outro reprimido, esses espaços reflectem as
batalhas em torno das identidades emergentes ou das identidades
que no presente buscam visibilidade sócio-cultural.
O recurso a modelos paradigmáticos de conhecimento científico
que assentam ‘nas ciências e políticas de tradução, (...) do parcialmente compreendido’,87 servem como instâncias geradoras da legitimação de práticas capazes de exprimir a experiência de sujeitos
múltiplos. Tal orientação inscreve-se nos termos mais vastos de acção científica como política cultural, uma acção que luta pela autorização de identidades heterogéneas, daquilo que Trinh Minh-ha88
designa por ‘outros inapropriados’. A noção de outros inapropriados
tem subjacente a ideia de figuras móveis e excessivas de ‘sujeitos
excêntricos’ empenhados na refutação da ideia de uma comunidade humana total e implicados criticamente com os desafios de uma
humanidade imaginada cujas partes se articulam pela diferença e
através da tradução. Como base para o diálogo, assim como para
uma nova racionalidade e objectividade, a tradução é sempre interpretativa, crítica e parcial, pelo que a transferência e partilha dos
diferentes mundos assenta na ideia de indivíduos cujas narrativas
‘reconfiguram os sujeitos, os objectos e o comércio comunicativo
da tecnociência, (...) uma figura (que) corporiza sentidos partilhados em histórias que habitam as suas audiências’.89 Nestes termos, o
apelo à interpretação comprometida, encontra-se em relação directa
com as propostas de desenvolvimento de uma reflexividade crítica,
como forma de compreender e indagar a complexidade dos mundos materiais e inter-subjectivos em que as políticas de corporização
surgem como condição para a articulação dos espaços da diferença.
Mas este encontra-se ainda em relação com a utilização discursiva
58
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
da metáfora da difracção em vez da metáfora de reflexão, argumenta
Haraway. As tecnologias de interpretação crítica que caracterizam
tais epistemologias, ao assentarem numa ‘relacionalidade corporizada’90 enfatizam o carácter relacional do mundo; ‘nada vem sem o
seu mundo’.91
Configurando um enredo cuja narrativa se desenvolve no sentido da progressão da sexualidade através da identidade (e em que a
diferença é tida como desvio), o debate em torno das questões de
género desloca-se em direcção a uma crescente sensibilidade relativamente aos significados e ícones que operam para a construção
de identidades para lá das categorias convencionais de sujeição.
Concomitantemente, o incremento das estratégias de conhecimento
íntimo dos indivíduos colocados discursivamente dentro dessas categorias, potencia a reflexão relativamente à natureza artefactual e
não original-natural das suas práticas identitárias. Aqui, a corporização dos discursos alusivos à sexualidade (dominantemente alicerçados sobre a categoria da hetero-sexualidade) define a arena material
das actividades performativas dos sujeitos, dentro de um quadro de
produção e reprodução social que tem subjacente a ideologia político-económica do capitalismo. Num momento em que os desafios
da sobre-modernidade respondem às novas condições estabelecidas
pelo desenvolvimento da sociedade da informação, da cibernética e
da biotecnologia, o repensar das fontes de posicionamento (da colocação de sujeitos e identidades), remete para uma releitura e uma
reescrita de uma miríade de narrativas por forma a alcançar guiões
alternativos de navegação que permitam aos indivíduos movimentar-se no espaço artefactual da mudança.92 Ora esta situação levanta
inúmeras questões das quais isolei duas delas por me pareceram as
que mais claramente sintetizam o complexo universo das problemáticas aqui invocadas.
Primeiro, se a identidade não é definitiva mas antes transitória e
parcial, a necessidade de modelos alternativos e formas alternativas
de ler e escrever o mundo passíveis de articular os mecanismos de
auto-reconfiguração do sujeito tem de ser perspectivada para além
do paradigma do relativismo cultural, o qual se afigura insuficiente
ao proporcionar uma base de análise circular para a autorização do
59
Geografias do Corpo
sujeito da diferença. De facto, se os modelos e narrativas convencionais alicerçados sobre a autorização transcendental do sujeito
humanista falharam pela sua incapacidade de incorporação das políticas da diferença, os modelos pós-modernos do relativismo cultural
pecam pela incapacidade de articular as políticas de resistência dos
diferentes grupos dada a ênfase na descorporização dos indivíduos
e práticas. Especificamente no que respeita às questões de género, a
revisão de um quadro estático de discursos masculinistas de legitimação do carácter heterossexual do sujeito participa num movimento mais vasto de revisão dos correlatos de auto-identificação e de
toda uma história de delimitação dos jogos do desejo e da sexualidade operado pela cultura moderna ocidental. Parte integrante desta
história são as geografias imaginativas do corpo e do género que
configuram arenas de inscrição de práticas abstractizantes de corpos
individuais e específicos.
Sediadas discursivamente no desejo heterossexual (em grande medida o desejo ‘de outro’), tais práticas modelaram a constituição do
sistema semiótico-material que ocupamos.93 Criadas as condições
semiótico-materiais para o alojar desse desejo, a sua reprodução
auto-alimentou-se através de um sentido de naturalização nutrido
pelos mecanismos de autorização das vozes dominantes do sujeito
moderno. A saber, a autorização de um espaço e de um tempo únicos e homogéneos responderam em grande medida à necessidade
de ‘domesticar’ os espaços e os tempos particulares do desejo e da
razão do ‘outro inadequado’.94 Actuando através do corpo, o desejo
desse ‘outro’ é sempre alojado em espaços específicos cujas fronteiras foi necessário delimitar (reprimir). Como elementos cruciais do
estabelecimento destas fronteiras, a heterossexualidade e o domínio
da domesticidade configuram as arenas de vigilância dos espaços
convencionais do desejo para lá das quais se situa o território de
conflito da sexualidade (e da feminilidade) não controlada. E não
estaremos a interceptar directamente o próprio contexto histórico de
estigmatização social do desejo da mulher?
A estigmatização social (e espacial) do desejo da mulher, representa cabalmente um vasto conjunto de estratégias sociais orientadas
para o controlo das teias femininas de poder, estratégia complexa-
60
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
mente negociada através da codificação da figura feminina com um
potente capital simbólico.95 O esforço de reconfiguração do ‘sujeito feminino’ à luz de paradigmas alternativos passa, por isso, pela
afirmação de vozes passíveis de exprimir os laços de afinidade que
ligam indivíduos e grupos empenhados na autentificação dos processos de corporização do desejo. Porém, passa ainda pelo reivindicar da validação sócio-cultural e científica de todo um conjunto de
conhecimentos, práticas e teorias femininas (ex. as ‘teorias do tomar conta’), alojados nas texturas de espaços disciplinares como ‘a
casa’. Isto, como modo de fortificar todo um conjunto de geografias
intersticiais que historicamente tomaram lugar na clandestinidade e
que funcionaram como fontes de ansiedade e opressão, associandose frequentemente a práticas de violência e marginalização. Neste
sentido, se as perspectivas críticas mantém sob escrutínio a revisão
de todo um quadro Humanista de valores e ideologias, elas debruçam-se significativamente sobre as narrativas e histórias da ciência
e tecnologia perspectivadas como paradigmas do racionalismo que
operaram agressivamente para a ‘naturalização’ desse mesmo quadro, pelo modo como possibilitaram a autentificação das redes de
poder, verdade e do sujeito masculino, branco, burguês e heterossexual.
Um segundo grupo de questões, que sintetiza o complexo quadro
das problemáticas aqui convocadas, prende-se também com os aspectos da identidade sexual e da cultura heterossexual na sua relação
com ‘os corpos direitos da teoria’.96 Tal diz respeito, muito concretamente, ao modo como se configuraram os actores na construção das
categorias etno-específicas de natureza e cultura. Ao potenciarem
o reconhecimento do indivíduo e dos grupos em categorias identitárias específicas, as teorias convencionais de reinscrição das conexões entre desejo-género-sexualidade enfatizam a consistência
comunitária orientada por narrativas de uma história única e de uma
geografia única que excluem a parcialidade e que não fazem sentido
das descontinuidades e dos movimentos de fronteira. A necessidade de uma genealogia crítica que integre as diferentes comunidades sexuais assim como as identidades descontinuas e de contacto,
prende-se com a urgência de revelação das contradições do desejo
61
Geografias do Corpo
que saturam qualquer história cronológica da identidade heterossexual. E isto, para além das profundas contradições que emergem da
própria ontologia das identidades heterossexuais, estruturada sobre
a ideia de um compromisso político, moral e económico perpetrado
sobre os corpos individuais alegadamente homogéneos.97 Arriscarei
uma explicação mais aprofundada deste ponto de vista.
Como forma de documentar a complexidade do momento presente, o esforço de clarificação das formações discursivas em que a heterossexualidade é usada para manter um sentido claro das fronteiras
entre identidades sexuais ‘reconhecíveis’, funciona como meio de
contestar o modo como foi secularmente posta à distância a sexualidade feminina. Tal esforço, funciona ainda como meio de contestar
os mecanismos usados para silenciar as fissuras entre identidade e
desejo que turvaram o conhecimento íntimo ‘da mulher’. Integrando
uma tensão sexual que mutila as relações de género e que fragiliza
a comunicação entre os indivíduos de sexo feminino, esta fissura
encontra no mundo das representações substância compósita de sedimentação. Dentro deste mundo, ideias como a de paisagem (‘natureza original’ ou ‘mãe-natureza) funcionam como suturas culturais,
como construções dispostas para alojar os novelos do inconsciente
onde se animam as batalhas dos corpos e das representações. E é
para a relação entre as construções culturais de paisagem, natureza e
corpo feminino que chamo agora à atenção.
Apresentando nas histórias do sexismo, racismo e colonialismo,
uma constituição discursiva de Outro, a ideia de natureza tem sido
alvo de reificação e possessão, oferecendo o sentido de uma origem
e de uma matriz de recurso para exploração humana. A ideia de paisagem funciona aqui como substrato onírico de celebração de um
mundo original, uma essência ou instância transcendental98 que o
ser humano contempla por via da representação, num momento em
que a descontextualização tecnológica configura uma radical experiência de desnaturalização da natureza.99 Uma experiência em que os
mais diversos artefactos se tornaram matéria maleável de decisões
estratégicas e em que uma particular produção da natureza colocou
este Outro no topo da cadeia de produção mercantil.100 O esforço empreendido por diferentes movimentos político-intelectuais no senti-
62
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
do de demonstrar como um tipo de relação estabelecido no período
moderno entre os seres humanos e o mundo não humano e objectual
configura um quadro insustentável de violação da natureza (e da mulher), remete para o espectro antropocêntrico (e androcêntrico) dessas mesmas relações. Uma particular espacialidade configurou-se no
período moderno por via das representações culturais de natureza,
lugar e paisagem e sob o efeito de uma crescente instrumentalização
do ‘outro não humano’.
Como construção cultural, a ideia de natureza emerge legitimada por um quadro imperialista de valores alicerçado na separação
dos actores-agentes de produção do mundo. A separação entre actores de produção passivos e activos configura um dos mais graves
mal entendidos da construção ideológica ‘do Ocidente’, construção
alicerçada por formações discursivas cuja particularidade histórica
remete para uma espacialidade nutrida pela especificação estanque
dos lugares do sujeito e do objecto, perspectivados os últimos como
corpos passivos de acção. De uma maneira muito clara, a definição
de paisagem cultural estabelecida pela Escola de Berkeley reflecte
este posicionamento; ‘a cultura é o agente e a natureza o médium’.101
Passou-se pois, e subliminarmente, de um quadro de determinismo
ambiental para um quadro de determinismo cultural. Exprimindo o
papel privilegiado (e actuante) do ‘agente’ sobre o ‘médium’, assim
como a instrumentalização do segundo pelo primeiro, a antinomia
natureza/cultura ilude o estatuto de co-actuação dos diversos agentes sócio-materiais. Minuciosamente analisado por Bruno Latour,102
o carácter de co-produção do mundo por uma miríade de ‘actuantes’
remete para a constituição mútua da experiência vivenciada e para o
papel dos agentes humanos e não-humanos nesse processo. A ênfase
na redistribuição da acção pelos mais diversos actuantes responsáveis pelo fabrico sócio-material do mundo, remete para o exame das
distinções categóricas entre humanos e não-humanos, assim como
para as redes de figuras, corpos, documentos e sistemas de codificação que através das suas performances definem hoje os contornos
formais e operativos desse sistema.103
Forçando a revisão de um imaginário geográfico centrado sobre
as categorias exclusivas de natureza e cultura, o debate emergente
63
Geografias do Corpo
em torno de um novo nexus entre natureza e cultura debruça-se sobre o significado da materialidade desde uma perspectiva relacional.
Implicado com a exploração da existência ontológica da natureza,
este debate indaga os modos de participação mútua da natureza e
cultura, contestando uma tradição filosófica alicerçada sobre os dualismos humano/não-humano, mente/corpo, ideal/material, representação/realidade.104 O cerne deste debate prende-se com a condição
inter-mediática da natureza e cultura, uma vez que a fisicalidade da
primeira é deslocada através de formações discursivas que informam as práticas culturais e, concomitantemente, ao informar essas
práticas, o domínio da materialidade inaugura as versões construídas que dela recebemos. As políticas de uma ‘primeira natureza’105
veiculadas pela cultura moderna antropocêntrica assentam sobre a
ideia de que as relações entre as instâncias do humano e do nãohumano são mutuamente exclusivas e determinadas culturalmente.
Neste sentido, um determinismo cultural/natural subjaz as políticas
e ideologias dominantes, impedindo que se tenha em conta uma série
de relações mutuamente constitutivas que se estabelecem continuamente entre os diversos actuantes sócio-materiais. Tentando detonar
tais políticas, outras abordagens contrapõe-lhes as políticas de habitação e de errância, defendendo que o acto de habitar o mundo não
é uma questão que diga respeito apenas aos humanos, pois não se
trata simplesmente de ‘um conjunto de interacções sociais entre objectos previamente constituídos’.106 Indagando as diferentes formas
de habitar o mundo, as políticas de habitação e de errância associam-se às políticas de representação como estratégias mobilizadas
pelas instâncias críticas para superação dos modernos paradigmas
de cognição do mundo.
A ênfase na constituição semiótico-material do espaço é extremamente relevante para o aprofundamento deste debate, pois invalida
a convencional formulação dos corpos-no-espaço e rompe com o
dualismo cultura/natureza. Efectivamente, se insisto nesta formulação, faço-o apoiada pelo trabalho de inúmeros autores e autoras
que defendem que o significado não diz respeito apenas a instâncias
culturais ‘puras’ mas que inclui igualmente os fenómenos materiais.
Neste sentido, a semiótica material funciona como meio de expan-
64
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
dir ‘o registo da semiótica para lá da sua preocupação tradicional
com a significação como ordenamento linguístico, (uma expansão
que inclui) todos os tipos de ‘condutores de mensagens’ e processos materiais tais como dispositivos técnicos, instrumentos e grafismos, assim como capacidades corporais, hábitos e competências’.107
Abrindo caminho para a compreensão dos ‘modos como os significados estáveis são construídos através de um vasto conjunto de acções e agentes’,108 a semiótica material permite-nos concentrar sobre
as formas de construção dos mundos tendo em conta a ligação que é
estabelecida entre os diferentes sistemas. No campo das práticas de
construção do conhecimento científico como cultura pública, a semiótica material funciona como técnica de tradução que abre campo
para a explanação parcial. A ênfase nas ligações entre os diferentes
espaços como sistemas semiótico-materiais, dá origem a uma análise orientada para as relações em rede, uma análise que rejeita as
leituras baseadas na divisão entre sujeito e objecto e nos tradicionais
quadros de sujeição.
Explicando a co-constituição dos mundos por autores humanos e
não-humanos,109 a semiótica material ‘reconhece cadeias de tradução-transferência de tipo e extensão variados que entretecem som,
visão, gesto e olfacto através de todas as espécies de corpos, elementos, instrumentos e artefactos’.110 Através dela, explicitam-se
as políticas de residência tendo em conta as redes que articulam a
produção humana e não-humana. Deste modo, desestabilizam-se as
divisões entre sujeito e objecto, presença e ausência, e isto como
forma de aproximar o conhecimento íntimo dos sujeitos-objectos do
conhecimento e acção.111 Orientada para uma visão do mundo como
uma multiplicidade de diferentes conexões (traduções, associações,
mediações), a teoria dos actores em rede112 profundamente alicerçada pelos trabalhos de Bruno Latour e Michel Serres é referência
crucial para o presente debate. Apesar de não dispor de espaço suficiente para uma explanação aprofundada desta teoria e respectivas
repercussões, para a tarefa que persigo de desgeografização dos corpos, gostaria tão somente de concluir este capítulo deixando no ar
algumas ideias centrais passíveis de conduzir a uma discussão futura
mais ampla.
65
Geografias do Corpo
Empenhadas com uma reescrita do mundo, diversas autoras e autores colaboram hoje no projecto político-intelectual de reescrever
a ‘constituição’ do conhecimento, propondo uma epistemologia renovada em grande medida assente na teoria dos actores em rede. A
semiótica material é parte integrante deste projecto, constituindo um
corpo teórico-prático debruçado sobre a problemática de uma ‘engenharia heterogénea’113 como instância de fabrico de conexões com
base numa imensidade de materiais físicos e semióticos. Para Nigel
Thrift114 a constituição do conhecimento proposta pela teoria dos actores em rede assenta, antes de mais, na recusa das fronteiras convencionais dentro das quais se constituiu o conhecimento ocidental,
entre elas as fronteiras entre humanos e não humanos e natureza e
cultura. De acordo com esta proposta, tais divisões ‘impossibilitam
a visão do mundo de acordo com aquilo que ele é: uma compilação de actividades heterogéneas constantemente em formação’.115
Perspectivado como uma série de actos de engenharia heterogénea,
o mundo é constituído por diversas redes de associação que, por seu
turno, são constituídas pelas ligações mais do que pelos nós dessa
rede. Mas, o mundo é também constituído pelo tráfego através dessas ligações, pelo que, a rede é constituída ‘na passagem’ e os diversos actuantes que configuram essa passagem constituem a fonte
da acção no mundo, uma acção de conexão parcial entre múltiplos
actuantes envolvidos num momento de partilha.116 Dependente da
circulação e dos fluxos que se organizam ‘na passagem’, a existência
(e continuidade) da rede de actuantes assenta em toda ‘uma série de
‘mobiles imutáveis’ – instrumentos, tipos de pessoas, animais, capital, entre outros, que podem ser transportados de um local para o
outro sem mudar de forma’.117 Isto assegura a continuidade das redes
em associação com o trabalho dos ‘mediadores e intermediários’,118
uma figura equivalente aos ‘mensageiros’ de Serres,119 por si encarados como os elementos mais importantes que operam para assegurar
a conexão entre as redes.
Funcionando como meio de compreender as relações entre natureza e tecnologia, a teoria dos actores em rede problematiza o acto
de representação, encarando essas relações como ‘um caleidoscópio
de diferentes modos representacionais que interferem entre si e que
66
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
apenas podem ser brevemente estabilizados’.120 Mais, esta proporciona ainda meio de entender os fenómenos como ordens de conexão parcial dado que os próprios fenómenos são encarados como
‘consequência do modo como os corpos se relacionam uns com os
outros’.121 Entendidas como estratégias de aproximação aos espaços
de alteridade e procurando versões de teoria social menos centradas
no sujeito humano, a teoria dos actores em rede, a semiótica material
e a análise relacional, buscam a ligação entre fenómenos para além
do seu estatuto ontológico aparente.122 Neste contexto, a superação
de uma ‘ontologia da divisão’ (sujeitos humanos e objectos não humanos), passa pela aproximação a uma ‘mesmidade residual’, uma
susceptibilidade partilhada pelos actuantes latourianos que lhes proporciona base de ligação.123 Daqui se vislumbram as possibilidades
de mudança de um nexus cultura/natureza para um nexus culturanatureza, tendo em conta uma diferente semiótica em que não são
apenas os elementos presentes que contribuem para a construção da
ordem social pois os elementos ausentes ou colocados fora dessa
ordem integram essa mesma construção.
Tendo em conta as propostas de Latour e um nexus teórico alicerçado sobre a ideia de separação material entre humanidade e
natureza, desvela-se uma ilusão que serviu para potenciar o poder
orientado para um conhecimento especializado da natureza com
vista à sua exploração124. Com uma longa história de promiscuidade material, humanidade e natureza são sujeitos às dinâmicas da
produção capitalista, num momento em que a ciência moderna e a
tecnologia intervêm activamente na própria produção da natureza.
Dentro de um nexus de culturanatureza, em que o ‘construcionismo artefactual’125 define os contornos básicos deste complexo, indagam-se os processos históricos de sujeição e o modo como as nossas
experiências são por estes profundamente estruturadas. Pensar os
mecanismos de formação da subjectividade num quadro em que a
natureza é perspectivada como ‘co-construção de humanos e nãohumanos’126 implica, portanto, a revisão dos legados fundacionalistas que colocam a subjectividade como pristina, intocada pelo corpo
e matéria. Dentro deste quadro crítico e revisionista, denuncia-se a
metaforização da natureza nos termos do feminino nomeadamente
67
Geografias do Corpo
pelo modo como consolida o ‘desejo persistente de domesticação do
espaço, por forma a trazê-lo para um horizonte humano e, mais importante ainda, para ‘contê-lo’ dentro deste horizonte’.127 Integrando
diferentes formas de poder através das quais as noções de natureza
foram feminizadas até um ponto em que o domínio da natureza reflecte o domínio ‘da mulher’ na sociedade,128 a formação social da
natureza inclui um conjunto de políticas culturais que funcionaram
como modo de obscurecer e marginalizar as forças activas de uma e
outras. Expandindo as categorias daquilo que conta como material
(daquilo que é visto como material e daquilo que não é), tal desafio
encontra-se associado ao trabalho político do conhecimento, tentando fazer-se com que a teoria opere em contextos políticos por forma
a contrariar a tendência pós-moderna de diluição de um sentido claro de contexto.129 Neste sentido, a ênfase nas abordagens relacionais
em que a natureza é perspectivada como artefactual e integra os circuitos de produção cultural incluindo as metáforas e narrativas, os
corpos biológicos e os sistemas de codificação digital,130 prende-se
com a necessidade de refutar uma longa história de pensamento em
que a matéria e o corpo foram encarados como entraves à Razão.
Conclusão
O reclamar dos ‘espaços-fora’, dos ‘espaços diferenciais’ ou de um
‘espaço paradoxal’ encontra-se associado à tentativa de gerar espaços de emancipação dos corpos de sujeitos múltiplos. Espaços que
se pretendem libertos dos sistemas de significação que percorrem
o pensamento moderno estruturado sobre conceptualizações binárias como Eu/Outro, natureza /cultura . Tal ‘estética masculinista’,131
satura a superfície de observação na qual se especializou a cultura
ocidental, uma superfície que opera através de geografias imaginativas que inibem a emancipação dos espaços da subjectividade. Para
Doreen Massey,132 estes espaços são integralmente conceptualizados em termos de espaço-tempo, da ideia de que o mundo vivenciado é uma simultaneidade de espaços nos quais as relações sociais
são experienciadas e interpretadas diferencialmente. Como figuras
orientadas para o detonar das modernas espacialidades articuladas
por discursos oficiais masculinistas e respectivos sistemas de signi-
68
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
ficação, os espaços paradoxais dos corpos femininos estribam numa
‘geografia da ambivalência’,133 uma arena de explanação e de acção
que integra o imaginário e as práticas das mulheres e que rompe com
uma geografia do sujeito único. Propõem-se, assim, a passagem de
uma geografia dos corpos enfáticos (a geografia com G maiúsculo)
que replica as exclusões masculinistas do Eu e do Outro, para uma
geografia dos corpos ambivalentes que potencia múltiplos eixos
identitários passíveis de operar na estruturação de sistemas de significação alternativos.134 Se, a primeira, potenciava a circulação de
imagens de ‘outros’ essencializados em que os corpos funcionavam
como modo de consolidar sentidos de pertença e laços identitários,
a segunda afirma-se como potencial arena de resistência a toda uma
política de representações profundamente nutrida pela mobilização
ideológica dos corpos femininos ao serviço de utopias políticas de
pertença cultural.
A sugestão de Rogoff de estudo das representações dos corpos
femininos como arenas de ambivalência geográfica em que se fundem as quimeras de ocidentalidade e masculinidade, prende-se com
a necessidade acusada de superar uma filosofia alicerçada sobre a
potente fissura entre corpo e mente (natureza/cultura). Uma fissura
através da qual se definiram os termos de subordinação do primeiro pelo segundo, estabelecendo-se, dentro de uma dinâmica de expulsão-negação, as fronteiras e as margens do sujeito.135 A leitura
dos corpos ambivalentes não através da ideologia oficial mas pelos
contextos da sua própria subjectividade, permite a abertura de um
espaço paradoxal baseado numa inteiramente nova ‘geometria da
diferença e da contradição’,136 um espaço em que as identidades de
lugar são múltiplas e dinâmicas, produto da presença assim como
da ausência, mas sempre resultantes de uma subjectividade hegemónica.137 Como salienta Doel,138 a ‘(d)iferença, assim, é a condição da (im)possibilidade da identidade’, a qual não se coaduna com
debates em torno da integridade de espaço ou lugar associados aos
modos de um ‘pensamento sedentário’. Para este autor, o diferencial
de espacialização da alteridade encontra-se mais na vibração da singularidade, da multiplicidade, encaradas como instâncias que continuamente desafiam qualquer percepção mitologizada de um mundo
69
Geografias do Corpo
unitário habitado por corpos disciplinados tornados paralelamente
instrumentos do trabalho e do desejo de um ‘outro’. Neste mundo
unitário em que ‘a mulher subsiste e transpira através de uma identidade fluida, prisioneira de (um) lugar, ou antes disseminada ao longo
do espaço-tempo inteiro, como um fantasma na máquina falocêntrica’,139 o sentido de pertença à categoria do feminino encontra-se prisioneiro de uma série de nostalgias crípticas avidamente derramadas
no aparato imagético ocidental que a tecnologia desmultiplica.
A chamada de atenção para o modo como o espaço é generificado
tem funcionado, para muitas geógrafas, como forma de sublinhar a
complexa construção dos corpos sexualizados e do desejo através
de narrativas totalizadoras que se vêm recodificadas pelo trabalho
de imagens e representações. Daqui, auscultam-se as ambivalências
da subjectividade e da pertença, e põe-se sob escrutínio toda uma
tradição filosófica e de representação que operou na cultura ocidental e significativamente através do corpo feminino. No meu caso,
ao apelar à necessidade de desgeografização do corpo, faço-o, tendo em conta os processos de corporização da teoria, como questão
metodológica e epistemológica central para a reorganização do conhecimento científico, percebido como cultura pública. As práticas
de desgeografização do corpo, dentro das quais incluo o método de
desconstrução dos modernos conceitos geográficos, os actos quotidianos de tradução e a semiótica material, funcionam como práticas
científicas e como formas alternativas de construção de um conhecimento situado. Formas que, ao partirem da explanação parcial, têm
em conta os mecanismos de auto-afeição e de afectação recíproca
de corpos e sujeitos, engendrados nos espaços intersticiais da diferença. Emergindo daquilo que Susan Sontag designou por uma erótica de intersubjectividade, estes são os espaços de enunciação das
dinâmicas generativas do sistema emotivo, bem como das pulsões
geopsíquicas, da sexualidade e do desejo. Deste modo, persigo a tarefa de emancipação do meu corpo como lugar de contacto, através
do qual reclamo a participação do Outro na experiência vivenciada
de co-construção do mundo.
70
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
Notas
I. Rogoff (2000:21). 2 H. Lefebvre (1991). 3 M. Jay (1994). 4 O desenvolvimento aprofundado desta questão pode encontrar-se na obra de A. F.
Azevedo, (2008). A Ideia de Paisagem. Figueirinhas: Porto. 5 I. Rogoff
(2000:33). 6 Harley (1997). 7 Perspectivado como uma extensão da mente
(speculum), o conhecimento alicerçava-se sobre a reflexão intelectual (um
análogo da representação dos objectos num espelho). Emergindo da prática
matemática disciplinada da superfície de observação (objectiva), o conhecimento era organizado por um self especular que funcionava como espelho
tanto dos seus próprios conteúdos como do domínio das coisas materiais
objectivas (entidades quantificáveis). Aspirando a um ponto de vista fixo, o
conhecimento perseguia a objectividade, interpretada como a “verdade” de
uma percepção absoluta. Adoptando um papel espectatorial, a mente inspeccionava ou introspeccionava os seus conteúdos, tornando a Natureza
em objectos de reflexão, eventos mentais ou representações. Consequentemente, o mundo era perspectivado como objecto estranho e o conhecimento como faculdade de testemunhar. Daqui irradiava um discurso especular
alicerçado sobre a distinção entre mente e corpo (ou o mundo dos objectos
naturais), dualismo que contaminou a cultura científica moderna. Como
elemento de um processo de intervenção calculada, manipulação e controlo, a ideologia especular alicerçou uma concepção mecanicista da natureza
como totalidade de recursos exploráveis. Para uma discussão mais aprofundada sobre a fé na representação visual e a sua importância para a moderna
interpretação da natureza como ordem mecanicista consultar o trabalho de
Barry Sandywell (1999). 8 M. Jay (1994:49). 9 Integrando uma retórica da
percepção interior associada à reflexão especular, a filosofia moderna do
humanismo colocou a representação visual no centro dos processos cognitivos. A concepção espectatorial do conhecimento incorporou a concepção
cartesiana da relação do cogito com os objectos como fundação do conhecimento objectivo. 10 N. Denzin (1995). 11 N. Denzin (1995:26). 12 M. Jay
(1994:81). 13 J. Duncan (1997). 14 J. Crary (1994:25). 15 D. Gregory (1998).
16
Dentro do paradigma da moderna concepção da mente esta é perspectivada como o teatro profundo das representações cognitivas (Shcopenhauer,
1995). A moderna questão da subjectividade entronca, pois, na invenção e
disseminação de novos paradigmas de identidade (des)territorializada e
(des)tradicionalizada, “o mundo é ideia” (Shopenhauer, 1995:3), como
produto de uma muito específica constelação de transformações sócioeconómicas, políticas e intelectuais que lançaram as fundações para a moderna cultura burguesa. Neste quadro, a celebração da autonomia da
1
71
Geografias do Corpo
percepção interna cognitiva, decorre de uma mudança paradigmática que
tomou lugar entre o Renascimento e o Iluminismo. Dentro desta, operou-se
a deslocação de uma cosmologia religiosa dominante herdada da tradição
filosófica da Antiguidade e da Idada Média Cristã para uma visão da natureza e realidade como totalidade de objectos; a passagem de um cosmos
teocêntrico para uma visão do mundo androcêntrica. A filosofia de René
Descartes é considerada tradicionalmente como o apogeu deste processo de
viragem paradigmática. 17 J. Duncan (1997). 18 J. Duncan (1997:41). 19 D.
Cosgrove (2004:254). 20 Berger (1972). 21 Casey (1998). 22 D. Gregory
(1998). 23 D. Gregory (1998). 24 Perspectivada ao tempo como forma mais
democrática de identidade, uma ontologia alicerçada sobre a evidencia
científica foi separada da Fé, e considerada como esfera autónoma.
Suplantando as hierarquias ontoteológicas tradicionais, a ontologia moderna separou “mente” e “alma” de um cosmos divino condensando-as numa
ideia de percepção interna de um ego pensador. Neste processo, o intelecto
é separado do corpo (distinção entre espírito e natureza visível) e o sujeito
autónomo começa a relacionar-se com as suas cogitationes como espelho
representacional do mundo; “Nenhuma verdade é mais certa, mais independente de todas as outras, e menos sem necessidade de prova do que esta,
de que tudo o que existe para o conhecimento, e, como tal, todo o mundo é
apenas objecto em relação ao sujeito, percepção daquele que percebe, numa
palavra, representação (…) Tudo o que, de algum modo, pertence ou pode
pertencer ao mundo é inevitavelmente, e, como tal, condicionado pelo sujeito, existindo apenas para o sujeito. O mundo é ideia.” (Schopenhauer,
1995:3). Limitada aos factos da percepção interna (do sujeito), a filosofia
moderna é essencialmente idealista, nutrindo uma epistemologia introspectiva e de reflexão e uma linguagem de interioridade/exterioridade (experiência interna/externa) que legitimou as tecnologias do sujeito do
humanismo. Neste quadro, de uma cartografia “rigorosa” dos mecanismos
da mente e dos trabalhos da consciência moral, o acto de objectificação de
uma natureza externa por cientistas como Galileu, seria acompanhado pelo
mapeamento do mundo físico. No decurso da sua construção moderna, a
paisagem foi apanhada neste processo, um processo dentro do qual as imagens visuais da mente e natureza ajudavam a legitimar a ideia de que os
limites da objectividade coincidem com os limites a priori da representação
visual. 25 E. Casey (1998). 26 E. Casey (1998:303). 27 É importante localizar
a retórica de Descartes dentro de uma retórica de auto-reflexão que caracterizou a filosofia moderna e que preparou caminho para a acção moral
autónoma e para o domínio racional da Natureza. Dentro desta retórica, o
mundo é reduzido a representações ordenadas pelo desejo do intelecto
72
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
matemático. Perspectivada como um domínio externo ao sujeito racional,
como uma “selvajaria” ameaçadora, a Natureza deveria ser colocada sob
sua jurisdição e disciplinada pelo trabalho combinado da análise científica,
matematização e controlo técnico. Nestes termos, “o mapeamento do espaço físico através das regras da perspectiva renascentista inspirou a paixão
oitocentista pela geometrização da paisagem por forma a criar uma ‘mindscape’ de Razão e Ordem onde o Ego burguês poderia encontrar a assinatura dos seus próprios poderes” (Sandywell, 1999:36). Daqui se organizou
um ponto de vista privilegiado sobre o território e sobre o Outro. 28 M. Jay
(1994:42). 29 H. Lefebvre (1991). 30 Variando com a forma de produção, as
matrizes espaciais resultam das formas de apropriação histórica e social do
espaço. Para uma recapitulação da sequência histórica das formas de apropriação do espaço social consultar o artigo de Nicos Poulantzas (2003).
31
H. Lefebvre (1991:90). 32 H. Lefebvre (1991:113). 33 A reflexão-introspecção como elemento essencial de uma narrativa epistemológica moderna. 34 A tradição do idealismo alemão dos finais do século XVIII e início
do século XIX construiu o “ego transcendental” como base da razão e a
percepção constitutiva do mundo. A ideia da viagem (interior) mitológica
do herói moderno, o sujeito racional no controlo das paixões (a mente a
dominar o corpo) associa-se aqui à produção de conhecimento, à Theoria
do pensamento moderno, produzida por um autor-espectador, numa relação
atemporal e aespacial com o mundo visível dos objectos. Kant foi um dos
principais autores de uma filosofia transcendental em que os conteúdos da
mente são tanto reflexões de um mundo de eventos causais determinado
por princípios euclidianos como “ideias puras” implantadas pela Natureza.
O Eu epistémico ou o sujeito transcendentalizado da filosofia alemã do
Idealismo, assentavam numa ideia de cognição como um tipo de contemplação interna conduzida por um mediador solitário. 35 M. Foucault
(1984:117). 36 M. Foucault (1984). 37 A alegada independência do campo de
observação como arena cognitiva de um grupo constitutivo de sujeitos.
38
Almansi (1982). 39 Foucault (1972:194). 40 Blacksell (2000). 41 Casey
(1993). 42 Veness (2001). 43 Barnes e Gregory (1997:295). 44 D. Massey
(1997). 45 McDowell & Sharpe (1997:3). 46 Blacksell (2000:803). 47 A ideia
de um exterior constitutivo funciona neste quadro como meio de enfatizar
o modo como a identidade é sempre definida em relação a algo que lhe é
alegadamente exterior e habitada por aquilo que não é. 48 R. Shields
(1997:186). 49 Uma apropriação do corpo dos diferentes sujeitos sob o signo de uma identidade única e “essencial”. 50 MacKinnon (1998). 51 Lladó
Mas (2009). 52 R. Shields (1997:186). 53 R. Shields (1997). 54 J. Urry (2000).
55
P. Joyce (2001). 56 B. Latour (2000). 57 Tendo inspirado novas abordagens
73
Geografias do Corpo
nas Ciências Sociais dentro das quais se destaca a Teoria dos Actores em
Rede (ANT) implicada com uma reescrita do mundo e com o enfatizar de
uma nova visão do mundo como multiplicidade de diferentes conexões, o
trabalho do sociólogo Bruno Latour explora as relações entre ciência e tecnologia, assentando sobre a ideia de que a “tecnologia é a sociedade tornada durável” (2003:5). 58 D. Haraway (1991:196). 59 Mais do que
perspectivar uma sociedade ou comunidade como caracterizada por uma
cultura dominante, entende-se hoje que qualquer sociedade é constituída
por indivíduos actuando num mosaico de diversas subculturas ou mundos
da experiência, os quais se movimentam numa inter-relação espacio-temporal e dialéctica. Para uma compreensão mais aprofundada da perspectivação da sociedade como mosaico subcultural consultar a obra de Robert
Prus (1997). 60 Mito alicerçado sobre a ideia de uma unidade “essencial” de
grupos específicos que autorizam retóricas dominantes. 61 MacKinnon
(1998). 62 Processos viabilizados pelos modelos de pensamento estruturalista e pós-estruturalista, assim como pela introdução específica das teorias
de diferença cultural e sexual. 63 J. Derrida (1974). 64 A noção de geografias
impuras é desenvolvida por Derek Gregory e outros autores e autoras em
Johnston et al (2000). 65 Referimo-nos aqui, e especificamente, à divisão
cartesiana entre mente e corpo, assim como à valorização da primeira em
relação ao segundo. 66 A ênfase na performatividade, ou desempenho dos
corpos, associa-se ao conjunto das abordagens emergentes dentro das quais
a actividade do corpo é elemento determinante do acto de produção de
conhecimento. Nestes termos, o corpo é perspectivado na sua relação com
o discurso ou tipos de discursos a que dá origem, e reconhecer a performatividade de um discurso é reconhecer o seu poder, isto é, a sua habilidade
para produzir os efeitos que nomeia (Butler, 1993). 67Alude-se a todo um
quadro dentro do qual a teoria é perspectivada como intervenção política, e
o conhecimento é desenvolvido por forma a modelar activamente a “realidade” mais do que a reflecti-la passivamente. 68 Lauretis (1988:1). 69 Lauretis
(1988). 70 Lauretis (1988:26). 71 É dentro destas práticas que geógrafas
como Katherine Gibson e Julie Graham (1996, 2005) desenvolvem uma
crítica feminista à economia política do capitalismo. Implicadas com a exploração de práticas e discursos promotores da diversidade económica
como contributo para uma política de inovação económica, as autoras
revêem o constructo de desenvolvimento económico explorando narrativas
de transformação regional e a habilidade para a criação de conhecimento e
prática, através da investigação-acção participatória com comunidades.
72
Lauretis (1988). 73 Irigaray (1985). 74 I. Rogoff (2000). 75 I. Rogoff
(2000:145). 76 Remetemos aqui para a questão do “desejo do sujeito” como
74
Desgeografização do corpo,
uma política de lugar
origem de toda uma ontologia. Envolvendo a revisão das teorias psicanalíticas clássicas, esta questão é central na teoria feminista contemporânea.
77
Irigaray (1977:26). 78 Irigaray (1977:26). 79 Irigaray (1977). 80 Moss &
Dick (2004:60). 81 Lefebvre (1991:42). 82 Como unidade fundamental da
comunicação, a utterance representa, neste quadro, o momento de enunciação do contacto entre sujeitos ou/e entidades. Um momento que ocorre
pelo efeito dos diferentes mecanismos e instâncias envolvidas para tradução
do conteúdo da comunicação. A partir dele ocorre o diálogo. Em certo sentido, a utterance é mais importante do que a linguagem (ela própria envolve
as mais diversas linguagens no acto do contacto), na medida em que é
através dela que primeiramente se estabelece a comunicação. Tal concepção é, neste sentido, eminentemente bakhtiniana, não devendo confundir-se
o seu uso com o conceito saussuriano de “parole”. Propondo uma ideia de
utterance como situação de discurso de comunicação, uma situação activa,
performativa e dialogante, Mikhail Bakhtin (1990) considera-a como base
do dialogismo. Para si, aprender a falar é aprender a construir utterances, o
que envolve paralelamente um lado expressivo da comunicação e um lado
de tradução dos significados envolvidos. E é precisamente neste ponto que
se opera o acto de enunciação cultural. 83 Moss & Dick (2004). 84 Moss &
Dick (2004:58). 85 O sujeito fracturado e heterogéneo do pós-estruturalismo, o “actor semiótico-material” de Haraway. 86 Perspectivada como prática reiterativa e citacional através da qual os discursos produzem os efeitos
que nomeiam (Butler, 1993), a actividade performativa no que respeita às
questões de género é alvo de atenção por parte das feministas. O estudo da
performatividade de género tem como objectivo mostrar que a identidade
de género é praticada através da performance repetitiva de actos determinados que, ao serem continuamente reactivados, asseguram o seu carácter
alegadamente fixo. 87 Haraway (1991:195). 88 Trinh Minh-ha (1986). 89 D.
Haraway (2004:223). 90 D. Haraway sugere uma relacionalidade corporizada como “profilaxia” para o relativismo e transcendência. 91 D. Haraway
(2004:237). 92 Donde a relevância fulcral do trabalho de Bruno Latour para
estas teorias, pelo modo como elucida sobre o carácter artefactual da experiência. O seu alinhamento de actores e actuantes humanos e não humanos numa rede de relações dentro das quais se processa acção e
comunicação, representa um passo significativo para uma nova compreensão dos complexos mundos da experiência e intersubjectividade. 93 A “semiotic square” de Haraway, um modelo analítico proposta pela autora
como “política regenerativa para os outros inapropriados” (2004:78), configura uma valiosa contribuição para a compreensão desta ideia de construção semiótico-material. Explorada em parte subsequente deste estudo,
75
Geografias do Corpo
esta ideia detém um papel crucial nas teorias emergentes, pelo modo como
permite reequacionar o “natural” e o “artefactual”. 94 Hemmings (2002).
95
Natureza, espiritualidade, valores estéticos e morais, são algumas das dimensões que caracterizam simbolicamente a mulher. 96 Hemmings (2002:
328). 97 Donde o lugar de destaque ocupado pelo trabalho de Foucault no
conjunto da teoria feminista contemporânea. 98 A ideia oitocentista de que
através das representações em paisagem a Natureza se representa a si mesma, e de que uma identificação entre Real e Imaginário que ocorre através
destas representações funcionaria como uma certificação da realidade das
nossas próprias imagens, contribuiu decisivamente para este processo.
99
Hayles (1990). 100 D. Haraway (2004). 101 C. Sauer (1925). 102 B. Latour
(1993). 103 B. Latour (1999). 104 N. Castree (2004). 105 Decorrentes da ideia
de uma natureza primordial intocada pelo ser humano e exterior a ele.
106
Rajchman (2000). 107 S. Whatmore (1999:29). 108 Hinchliffe (2004:217).
109
Latour (1993). 110 S. Whatmore (1999:30). 111 Hinchliffe (2004).
112
Desenvolvida em Geografia por autores como Nigel Thrift e Sarah
Whatmore, a teoria dos actores em rede encontra-se implicada com a exploração de uma sociologia da ciência e com a re-escrita da constituição do
conhecimento ocidental. 113 Thrift (2000). 114 Thrift (2000). 115 Thrift
(2000:5). 116 Thrift (2000). 117 Thrift (2000:5). 118 Thrift (2000). 119 M. Serres
(1996). 120 Thrift (2000:5). 121 B. Latour (1997:174). 122 Hetherington & Lee
(2000:174). 123 Hetherington & Lee (2000). 124 Para uma discussão sustentada da problemática da produção da natureza nas sociedades capitalistas
consultar o trabalho de Noel Castree (1995; 1997; 2000; 2005). 125 Demeritt
(1998). 126 D. Haraway (2004). 127 Best (1995:183). 128 Rose (1993).
129
Probyn (2004). 130 D. Haraway (2004). 131 G. Rose (1993). 132 D. Massey
(1994). 133 I. Rogoff (2000). 134 I. Rogoff (2000). 135 Grosz (1994).
136
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Fausto entre nós.
Geografias pós-humanas
Eduardo Brito -Henriques
‘Sereis como deuses’: o utopianismo na hipermodernidade
Prometeu, a quem Zeus acorrentou no Monte Cáucaso e sujeitou
ao suplício de todos os dias ver o seu fígado comido pelas águias e
todas as noites regenerado, teve provavelmente o castigo que mereceu. Há audácias imperdoáveis. Desafiar a ordem cósmica e roubar
do Olimpo a semente do fogo para a entregar aos humanos mortais, conferindo-lhes o poderio técnico e a autoridade e a glória do
domínio da Terra e das suas criaturas, era algo que não podia ficar
impune.
O séc. XIX, que inventou o cientismo e o materialismo, viu no mito
uma espécie de delírio colectivo de mentes mais ou menos ineptas,
um logro inventado por e para gente de espírito simples incapaz de
entender o que aos seus olhos se apresentava. A história de Prometeu
não tem contudo de ser vista pelos olhos do séc. XIX. Parte da filosofia do séc. XX dedicou-se a mostrar que o mito não é esse logro e
que há nele um potencial para a compreensão do humano e do lugar
que este ocupa no mundo. Mircea Eliade, Gaston Bachelard e muitos
outros empenharam-se em demonstrar que o mito não é delírio nem
fabulação, mas expressão de dimensões da realidade inacessíveis à
investigação racional e empírica, constituindo por isso um acto de
espírito que funciona ele mesmo como instrumento da revelação. O
mito desconhece os factos históricos, é verdade, mas isso em nada
Geografias do Corpo
o diminui porque não é a isso que ele realmente se refere; ou como
declara Paul Ricoeur:1 o mito não pretende ser uma explicação do
mundo, da história ou do destino, mas antes uma expressão do “entendimento que o homem faz de si mesmo por relação ao fundamento e ao limite da sua existência”.
Será sempre possível não ver no mito de Prometeu mais do que
uma explicação fantasiosa ou até infantilizante de como a humanidade acedeu ao domínio do fogo. Isso porém seria aceitarmos ficar
pela superfície das coisas. Não é essa verdadeiramente a história que
se quer contar através da história de Prometeu. Prometeu fala-nos
de algo maior e mais profundo; espelha coisas do coração humano
como a vaidade e a ambição, o rancor e a revolta, e essa é certamente
a forma correcta de abordarmos a sua história.2 Prometeu escapara
ao destino trágico a que os deuses do Olimpo haviam sujeitado os
seus irmãos titãs. Zeus poupara-o em troca do dever da criação dos
humanos. Sucede que a força, a rapidez e os outros dons físicos
haviam já sido consumidos na criação dos animais por Epimeteu.
Prometeu não quis que a sua obra ficasse menos capaz. Ambicionou
algo maior; foi cobiçoso e desejou para os humanos algo que só aos
deuses estava reservado, aproveitando também com isso para vingar
a memória da sua raça dizimada.
A história de Prometeu mostra-nos que não é de agora nem a ambição deísta (o desejo de se ser mais do que humano, divino) nem
uma certa consciência crítica dos riscos que essa ambição comporta,
o que funciona como seu contraponto. Mostra-nos que o saber e a
tecnologia foram desde sempre vistos como instrumentos pretensa
ou potencialmente salvíficos do humano, mas que sobre isso se gerou também desde há muito um certo pensamento de reacção, fundado num sentimento que ou é cautela, ou mesmo medo, ou então
é uma simples aceitação das limitações da condição humana. Todos
estes estão portanto muito longe de poderem ser considerados problemas única ou até apenas especificamente modernos; o que não
invalida que sejam questões que adquiriram na Modernidade novas
expressões, senão mesmo um dramatismo antes desconhecido.
Procurar sintetizar a Modernidade em duas ou três ideias chave
será sempre redutor e simplista. O conceito refere-se a uma condi-
82
Fausto entre nós. Geografias pós-humanas
ção histórica particular, com uma forma própria de organização da
economia e da sociedade, e a que corresponde também a sua mentalidade. É inquestionável que a Modernidade tem a ver com a economia de mercado, a industrialização e o consumo de massa, com a
urbanização e a proliferação dos media, mas não é menos verdade
que tem a ver também com o estado-nação, com a burocracia, com
as liberdades individuais e as democracias representativas, e ao mesmo tempo, talvez não paradoxalmente, com os piores totalitarismos.
Como tem sido notado, conformam a experiência da Modernidade
por um lado aspectos como a racionalização, a secularização, a alienação, a anomia, o individualismo e o relativismo, mas também uma
espécie de tentação de permanente ‘fuga para a frente’ que decorre
de uma deificação do progresso e da inovação, e que acabou por ter
como consequência um sentido de desencantamento profundo com
o mundo presente e até em certos momentos, ou para determinados
grupos da sociedade, com uma aguda experiência de decadência.
É frequente considerar-se que a Modernidade é um produto do
capitalismo. Não é disparatado pensar isso pois que a produção industrial e os seus modos de organização do trabalho, o consumo
de massas e a vida nas grandes metrópoles, constituem dimensões
essenciais da experiência da Modernidade. Não se pode todavia dizer que ela deva mais a James Watt e a Taylor do que a Galileu e
a Descartes; é mais que claro que foi sobretudo das Luzes e não
tanto do vapor que a Modernidade nasceu. Reconhecer isso é crucial para se perceber algumas das consequências que a Modernidade
teve na percepção que fazemos da nossa própria condição humana
e no modo como nos confrontamos com o drama que o mito de
Prometeu narra. Duas decorrências do racionalismo das Luzes sobejamente relatadas e que parecem ter tido efeitos muito evidentes
nestes domínios foram por um lado a ‘morte’ de Deus, traduzida
numa secularização que praticamente baniu o sagrado do horizonte,
seja a vida pública seja a privada, e que atingindo de modo muito
particular o mundo ocidental fez nela emergir uma nova sociedade
pós-cristã, e por outro a própria ‘morte’ do Homem, isto é, o simples
e puro abandono da ideia de que há uma superioridade ontológica na
pessoa humana que decorre da descontinuidade metafísica em que
83
Geografias do Corpo
esta se encontra face ao restante mundo sensível, ‘morte’ essa que se
prenuncia primeiramente em Nietzsche, e que depois será levada ao
extremo na crítica que o materialismo e o estruturalismo irão fazer
ao humanismo. Ora, a combinação destas duas coisas – a ‘morte’
de Deus e a ‘morte’ do Homem – acabou por redundar na divinização moderna da ciência e da tecnologia, que abriu caminho àquilo
que Matei Calinescu3 expressivamente designou de utopianismo, e
depois no aparecimento de um novo entendimento do sujeito humano à luz da qual este emerge já não apenas ou já não tanto como
beneficiário do progresso, mas mais como um objecto ou meio desse
mesmo progresso.
Declara Calinescu4 que “Directamente associado ao declínio do
papel do Cristianismo tradicional está a poderosa emergência do
utopianismo, talvez o acontecimento singular mais importante na
moderna história intelectual do Ocidente”. Esta ideia recupera em
parte o pensamento de Ernst Bloch que ao reflectir sobre o ‘espírito
da utopia’ não viu nela senão o sucedâneo da religião após a ‘morte’
de Deus. Recusada a hipótese do transcendente, banida do horizonte
a perspectiva de um Além onde se pudesse vir a concretizar esse
anseio humano de absoluto e infinito que corresponde ao sentimento
religioso, houve que inventar formas de projectar na concretude do
mundo temporal todo esse universo de expectativas, e isso terá sido
o que gerou a imaginação utópica e depois o que espoletou os esforços de implementação dos vários projectos sociais e políticos que o
utopianismo foi produzindo ao longo dos dois últimos séculos.
É geralmente assumido que o quadro histórico em que hoje nos
encontramos, que muitos insistem em intitular de Pós-modernidade
(mesmo desconhecendo Jean-François Lyotard), mas a que outros
têm com razão preferido chamar de Modernidade ‘tardia’,5 ou até de
Sobremodernidade6 e de Hipermodernidade7 por verem mais aprofundamentos e continuidades com o que vem de trás do que cisões,
não é um tempo favorável às mobilizações colectivas suscitadas por
grandiosos ideais sociais e políticos. Tal não significa contudo o fim
da utopia, apenas a sua transmutação e focalização em novos objectos. E é surpreendente como isso tão raramente se afirma: é um
facto que desapareceram os grandes projectos utópicos mobiliza-
84
Fausto entre nós. Geografias pós-humanas
dores de rupturas, como foi a miragem da sociedade sem classes,
mas o utopianismo parece ter encontrado formas novas de expressão
no quadro das ofertas possíveis do capitalismo, que são ao mesmo
tempo formas novas de expressão mais consentâneas com a individualização extrema da (hiper)Modernidade. O seu foco de atenção
deslocou-se da escala macro da sociedade para a escala micro do
indivíduo; dir-se-ia que desacreditado nas utopias sociais e incapaz
de regressar a um estádio de esperança metafísica por causa da sua
deliberada orfandade de Deus, resta ao homem hodierno o egotismo
de ter como meta de vida o sentir-se bem na sua pele e o procurar
viver o mais longa e intensamente possível. É nisso que se concentra
hoje toda a energia do utopianismo, e é por isso que está em curso o
que se já convencionou designar de ‘revolução biotecnológica’.
Do corpo-fetiche ao trans-humanismo como utopia
A focalização do utopianismo hipermoderno no bio, e sobretudo no
bio que tem a ver mais directamente com o ser humano – as ciências biomédicas e suas adjacências – não podia deixar de ter como
consequência que se produzissem alterações no modo como o corpo humano é culturalmente representado e, logo, nas relações que
mantemos com os nossos próprios corpos. Jean Baudrillard8 foi de
certo modo o primeiro a observá-lo, embora tendo então ligado isso
não a algo que fosse a consequência de uma maturação da própria
Modernidade, como aqui estamos a sugerir, mas sim a um efeito da
maturação do sistema capitalista e da economia de mercado, que na
forma mais avançada teria dado origem ao que então denominou
de ‘sociedade de consumo’. Jean Baudrillard, e depois dele muitos
outros autores na mesma linha,9 constataram que nunca como na
sociedade de consumo em que vivemos o corpo parece ter sido objecto de uma tão intensa atenção social; para além disso verificaram
também que a essa fixação parece corresponder uma nova concepção do próprio corpo humano à luz do qual este aparece já não como
manifestação exterior ou sensível da pessoa, mas sim como se de
uma simples paisagem para contemplação se tratasse, ou até mesmo,
mais prosaicamente, de um objecto para fruição.
85
Geografias do Corpo
Tudo isto parece ser notório. Se procurarmos vislumbrar o que
se passa em nosso redor, olhando para aquilo que são as tendências visíveis da sociedade, é mais do que evidente que há hoje um
“crescimento massivo do interesse popular no corpo”,10 como muito
bem exprimem as constantes alusões à imagem corporal nas diversas formas que reveste a moderna cultura de massas, dos meios de
comunicação social à publicidade e aos conteúdos produzidos pelas
indústrias culturais. Por todo o lado proliferam as imagens de corpos
jovens, esbeltos e saudáveis, guindados à categoria de novo ideal de
vida, assim como as notícias que nos dão a conhecer fórmulas cientificamente estudadas e comprovadas para alcançar ou manter essa
tão desejada aparência.
A maior parte para não dizer a totalidade das reflexões que citámos viram esta focalização das atenções no corpo humano e o consequente desenvolvimento que em seu redor tiveram as indústrias da
saúde e da beleza como resultados de uma evolução do capitalismo,
ou uma decorrência da sua tendência incessante para constantemente procurar novas oportunidades de negócio e tudo mercadorizar.
É evidente que essa relação com a acumulação capitalista existe,
mas isso não explica tudo: a transformação do corpo num objecto
de consumo jamais teria sido possível se o racionalismo moderno
não tivesse previamente forjado uma antropologia nova baseada
na disjunção da mente e do corpo, ou seja, onde a mente passou
a ser vista como a essência do humano e o corpo como simples
res extensa, mera matéria, isto é, uma quase-coisa; foi esse facto que
abriu caminho a essa ‘despessoalização’ moderna do corpo humano
que equivale à ideia de que uma coisa é a pessoa e outra o seu corpo,
ou dito noutros termos, à ficção de que se não é corpo mas sim que
se tem corpo; não fora isto e não teria sido possível evoluir-se para
a situação actual em que o corpo tende a ser visto ora como uma
espécie de matéria bruta modulável, ora como uma matéria-prima
susceptível de transformação tecnológica.
A Hipermodernidade, vista como um aprofundamento da
Modernidade sobretudo no que esta contém de fé na aptidão humana
para conhecer, controlar e manipular os diversos aspectos da vida, e
depois também de tendência para um uso crescentemente intensivo
86
Fausto entre nós. Geografias pós-humanas
de tecnologias cada vez mais sofisticadas na relação com o mundo,
veio reforçar ainda mais a representação moderna do corpo como
‘exterioridade’ face à pessoa e, logo, como um objecto susceptível
de por ela ser transformada. O esforço inventivo que caracteriza a
intensificação da Modernidade não se orientou apenas para a descoberta de respostas inovadoras para os problemas da economia,
como a produção de novos bens de consumo, a exploração de novas
fontes de energia, o desenvolvimento de meios de transporte e de
tecnologias de informação e comunicação cada vez mais rápidos e
poderosos. Esse esforço inventivo aplicou-se também na procura de
soluções capazes de irem ao encontro dos desafios de um tempo que
fez do sensualismo uma forma de viver. É a essa luz que se compreendem os inúmeros progressos observados nos campos da medicina
plástica e cosmética, desde a ortodôncia às lipoaspirações, ao desenvolvimento e à disseminação do uso de produtos como o silicone, o
botox ou os esteróides anabolizantes, ou ainda as múltiplas inovações da engenharia alimentar que permitiram o aperfeiçoamento dos
produtos light. Tudo isto que já em si fora motivado por uma forma
nova de olharmos e de nos relacionarmos com o corpo contribuiu
ainda mais para reforçar a ilusão moderna de que este é algo que se
possui mas que não chega a ser constitutivo do nosso próprio ser,
transformando com isso o corpo, como dizia Mike Featherstone,11
em mais um acessório do lifestyle, numa espécie de matéria-prima a
esculpir, modelar ou estilizar de acordo com a vontade e os recursos
do seu possuidor.
Tal como a aparência também a funcionalidade e a eficiência do
corpo se tornaram objecto de muito maior atenção com a intensificação da Modernidade, passando a ser campo de aplicação privilegiado de inovações tecnológicas. Graças aos avanços nas ciências
biomédicas e na indústria farmacêutica tem sido possível continuar
aumentando sempre a longevidade das populações e reduzindo o
seu sofrimento, nomeadamente nos países mais desenvolvidos, onde
cada vez mais gente sobrevive a doenças crónicas e vê a sua vida
‘artificialmente’ prolongada; a esperança média de vida à nascença
dilatou-se, só nos últimos trinta anos, no conjunto dos países de desenvolvimento humano elevado, em 7,2 anos de acordo com dados
87
Geografias do Corpo
do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Ora, tudo
isto está em total consonância com um tempo que depois da ‘morte’
de Deus perdeu o sentido de eternidade e o substituiu pelo de imortalidade, como dizia Hannah Arendt,12 e que fez do hedonismo uma
doutrina, pois que na verdade o paroxismo do hedonismo “não é o
prazer, mas a supressão da dor”.13 A verdade porém é que todos estes
progressos fizeram igualmente com que se evoluísse tanto na forma
de usar medicamente a tecnologia que se deram mudanças na nossa
própria experiência da corporeidade. A Hipermodernidade significa,
deste ponto de vista, que a tecnologia deixou de ser apenas uma extensão do corpo humano para passar a ser parte integrante dele. Os
avanços nos meios complementares de diagnóstico (TAC, ecografias, etc.) e a sua vulgarização, por exemplo, introduziram alterações
nas representações mentais do corpo e mesmo na forma como as
pessoas vivem a sua corporeidade;14 graças a esses avanços conhecer alguém ‘por dentro’ adquiriu um novo sentido literal dominante,
mas isso significa também que se perdeu em parte o antigo sentido,
mais poético e filosófico. A fertilização in vitro e post mortem, a
maternidade de substituição, os transplantes de órgãos, as próteses,
as mudanças de sexo, são por seu turno exemplos de inovações que
transgridem fronteiras que julgávamos ainda não há muito tempo
intransponíveis e que questionam as convicções mais profundas que
tínhamos a respeito da natureza do corpo ou da sua ontologia. Já
o desenvolvimento da ‘indústria de transplantes’ e os negócios da
reprodução artificial, finalmente, conduzem a uma situação nova de
fragmentação do corpo humano e de mercadorização das suas componentes que suscita também novas e complexas implicações éticas
e antropológicas.15
A imagem do cyborg, importada da ficção científica, tem sido
usada para ilustrar esta nova condição do corpo, onde o natural e
o artificial se misturam.16 Porém, trans-humanismo é a forma mais
adequada de designar este processo de crescente intromissão tecnológica no corpo humano e na sua criação e sustentação. O termo
designa a tentativa de superar as limitações biológicas inerentes à
condição humana através da incorporação dos avanços científicos
e de novas tecnologias (engenharia genética, neurofarmacologia,
88
Fausto entre nós. Geografias pós-humanas
nanotecnologia, etc.). A forma mais radical deste projecto, que significa afinal o grau máximo da tal visão nova de um utopianismo
focalizado no indivíduo e na sua corporeidade, é a do movimento agrupado em torno da World Transhumanist Association, cujos
adeptos defendem o direito a que se usem sem restrições as novas
tecnologias para melhorar as capacidades físicas e mentais dos humanos, aumentar o autocontrolo sobre as suas vidas, e com isso se
fazer gradualmente a transição para uma nova condição pós-humana
– o Homo excelsior. A chamada medicina regenerativa e a engenharia de tecidos humanos são as áreas em que essa ousadia está a ser
levada mais longe: no Japão já se produz tecido ‘humano’ artificial
à base de polímeros inteligentes que reagem à temperatura e que é
aplicado em transplantes de córneas, coração e pulmão; no Reino
Unido, Stephen Minger está a produzir sob grande e compreensível polémica embriões híbridos, meio humanos, meio animais, na
esperança de encontrar soluções para doenças hoje incuráveis, mas
abrindo também por essa via uma porta ao fantasma de um possível
desvio transgenista. Numa expressão mais soft, são os valores desse mesmo trans-humanismo que estão presentes quando se acolhem
com optimismo tecnologias como a ‘lavagem genética’ do esperma
(inseminação artificial com eliminação prévia de alelos considerados ‘indesejáveis’) ou quando se investe, como sucede nos EUA, na
pesquisa de componentes electrónicas (chips) para implantação no
cérebro humano com vista a restabelecer ou a expandir o processamento de memória.17
Implicações do utopianismo hipermoderno: geografias do
‘admirável mundo novo’
Se pensarmos no que significam estas formas de expressão que o
utopianismo hipermoderno está a assumir, com facilidade verificaremos que nada disto é na verdade totalmente novo. É ainda e de novo
a velha história de Prometeu, reescrita agora noutras palavras. A
utopia trans-humanista mais não faz senão repetir a tentação da serpente que ressoa na proposta de Mefistófeles ao alquimista Fausto,
jogando com a eterna ambição humana de deter o domínio da vida
e com a vaidade de possuir o esplendor da beleza e da juventude.
89
Geografias do Corpo
A diferença está talvez em que antes não se detinham os meios que
hoje se possuem para poder levar a cabo essa ambição.
O esforço de concretização destas como de quaisquer outras utopias envolve riscos. Neste caso, riscos novos a que temos de estar
atentos, como alertou Francis Fukuyama.18 Tais riscos têm a ver desde logo com a produção de novas iniquidades sociais, a que inevitavelmente se ligam depois certas implicações políticas; isto mesmo
antes de pensarmos em cenários de um trans-humanismo tão radical
que possa vir a significar a ‘morte’ total e definitiva do Homem.
A primeira e a mais geral das consequências que podem advir das
mudanças que estão em curso é, sem dúvida, a de se poder perder
um certo sentido de solidariedade e até de tolerância para com as
diferenças que resultam das discrepâncias de forma e de capacitação
dos corpos, perda essa que em muitos aspectos é já real e perceptível, mas que pode vir a agravar-se ainda bastante mais no futuro.
A cultura de consumo, associada às novas possibilidades de domínio técnico sobre a fisionomia (fitness, cirurgia plástica, cosmética,
botox, etc.), fizeram difundir a ideia de que é sobretudo à forma
como cada um gere e valoriza o seu corpo que se deve uma imagem
pessoal mais ou menos favorável, e não tanto, ou mesmo não já, aos
inelutáveis e imponderáveis da Natureza. Isto vem colocar sobre os
nossos ombros novas responsabilidades e culpas. Por outro lado, tal
como a aparência, também a funcionalidade e a eficiência do corpo
são crescentemente percebidas como responsabilidades individuais.
Num tempo em que se hipervaloriza a possibilidade de controlo humano sobre a vida, a doença começa a deixar de ser vista socialmente como uma fatalidade para passar a ser entendida cada vez mais e
apenas como uma “falha”, que nuns casos é imputada directamente
aos técnicos ou difusamente ao sistema de saúde, noutros atribuída
ao próprio doente, que ou não seguiu os estilos de vida saudáveis
que se recomendam, ou não teve o necessário cuidado na monitorização do seu próprio estado de saúde. Desta forma de pensar é
quase inevitável que a prazo resulte uma perda do sentido de corresponsabilidade social na assistência à doença, com prejuízo dos mais
vulneráveis e do próprio sentido de comunidade.
90
Fausto entre nós. Geografias pós-humanas
Um regresso renovado do eugenismo é outro risco que paira no horizonte em resultado das novidades ocorridas e em curso na medicina
reprodutiva, na engenharia genética, e mesmo nos métodos complementares de diagnóstico aplicados à vida fetal. Não nos referimos,
claro, a um eugenismo ‘de Estado’ como o que existiu na Alemanha
nazi, mas a um eugenismo ‘privado’ e difuso, levado a cabo por decisão das próprias famílias ou das equipas médicas, individualmente
e numa base que se tem por cientificamente informada. Sinal muito
evidente disso é que em quase todos os países europeus há já hoje
legislação que aprova ou enquadra acções deste tipo, autorizando o
que imprecisamente se designa de ‘aborto terapêutico’. É a mesma
lógica de resto que prevalece também quando se recorre ao diagnóstico genético pré-implantatório para a selecção dos embriões nos
casos de reprodução medicamente assistida. A consequência disto é
que a deficiência congénita tende a surgir cada vez mais aos olhos da
sociedade, e particularmente das sociedades ‘desenvolvidas’, como
uma situação já perfeitamente evitável. Daí decorre depois todo um
novo conjunto de representações sociais desse tipo de doenças, e
logo, por consequência, também das pessoas suas portadoras: é cada
vez mais objectivo o perigo de elas – umas e outras, doenças e pessoas suas portadoras – passarem a ser vistas como meros ‘erros’ de
rastreio médico pré-natal, tal como é igualmente objectivo o risco
do acompanhamento médico da gravidez ser convertido numa espécie de ‘controlo de qualidade’ do processo de produção de novos
organismos. Possível é ainda finalmente que a ocorrência desse tipo
de deficiências tenda a ficar cada vez mais associado às situações
de maior exclusão face aos cuidados de saúde pré-natais, acabando
por reproduzir deste modo outras formas de desigualdade social e
até territorial. Quem analisar a actividade dos blocos cirúrgicos pediátricos dos grandes hospitais centrais portugueses constatará que
a maior parte das deficiências congénitas graves que a eles chegam
correspondem já a crianças deslocadas dos PALOP. Ora, o que em
tudo isto está em causa é, como dizia Jacques Testart,19 o risco iminente de se estar a abrir “caminho a novas aventuras onde o racismo
do gene possa substituir cientificamente o racismo da pele ou da
origem”.
91
Geografias do Corpo
Não precisamos todavia de ir tão longe para compreender que de
toda a evolução biomédica e biotecnológica dos últimos anos resultam consequências mais directas e até triviais na forma como
vivemos, e logo, por conseguinte, na territorialidade humana. As
transformações na corporeidade decorrentes dessas inovações têm
impactes nas várias dimensões da vida das pessoas, incluindo a sua
relação com o espaço geográfico. É no corpo que o ser humano se
faz presente no mundo; é no corpo que se torna possível a experiência do espaço e dos outros; e é o corpo que afinal vive e constrói
o quotidiano, através da acção (que é movimento no espaço) e do
encontro com outros corpos (a base das relações sociais). Às alterações na corporeidade humana associam-se forçosamente mudanças
na prática e experiência do espaço que se reflectem no lifeworld das
pessoas.
Cada vez mais temos a noção de que a organização espácio-temporal do quotidiano se está a alterar, quer em resultado dos novos
comportamentos reprodutivos, quer da ampliação da vida. Com os
avanços produzidos nas ciências biomédicas a reprodução tornou-se
uma das áreas onde a capacidade de controlo individual sobre o corpo e a sua fisiologia conseguiu ir mais longe, e onde mais se vulgarizou a mediação e incorporação de tecnologias. Hoje é já possível
as pessoas gerirem a sua fecundidade com grande eficácia, usando
produtos farmacêuticos e técnicas médicas facilitados pelo Estado
e/ou pelo mercado. As consequências disto nos campos da demografia e da sociologia da família têm sido bastante discutidos. Mas os
impactes que isso tem a jusante, na vida concreta das pessoas e nos
lugares que elas habitam, nas rotinas, nos espaços do quotidiano e na
vida em sociedade, estão muito menos estudados, ou são pelo menos muito mais raramente sublinhados. E contudo, esses impactes
existem. O habitat urbano adaptou-se já ao novo padrão reprodutivo
de baixa fecundidade, e tal facto tem vindo a tornar cada vez mais
difícil a vida das famílias que se não acomodam a esse modelo. Quer
na periferia, nos novos conjuntos habitacionais, quer nas áreas centrais, nos projectos de renovação urbana e mesmo de reabilitação, a
oferta de habitação está hoje fortemente concentrada nas pequenas
tipologias, mesmo que as áreas possam ser generosas como sucede
92
Fausto entre nós. Geografias pós-humanas
quando a oferta se orienta para segmentos do mercado com elevado
poder de compra.
O esforço bem sucedido de extensão da vida nas sociedades contemporâneas também justifica alguma reflexão. Graças aos progressos médicos há cada vez uma maior esperança de vida e o número
de população idosa tem vindo a crescer gradualmente, quer em termos absolutos, quer relativos. Projecções do Instituto Nacional de
Estatística apontam para que no horizonte de 2050 mais de 35% da
população portuguesa possa ter 65 ou mais anos. A este respeito,
o mais comum nas ciências sociais e humanas tem sido olhar para
as consequências económicas e sociais do envelhecimento. Mas o
estudo dos efeitos do prolongamento da vida não pode restringir-se
aos aspectos que se prendem com o emprego, os planos de pensões
e os sistemas de segurança social. O envelhecimento e a condição
dos doentes crónicos cuja vida se mantém por meios artificiais (por
vezes até em condições algo ‘cyborgianas’, como nos transplantados
ou nos doentes com componentes electrónicas implantadas) implicam não só uma nova experiência da corporeidade humana, mas
também, através dela, uma nova experiência do espaço e da vida
em sociedade. É portanto nas micro-geografias do quotidiano, no
arranjo do espaço doméstico e na prática dos territórios próximos,
que essas implicações são mais visíveis. Os idosos, por estarem limitados na sua acuidade sensorial e mobilidade, experienciam de
forma diferente o espaço e vivem frequentemente a sensação de uma
espécie de aprisionamento.20 Estão também muito mais vulneráveis
a acidentes. Mas o envelhecimento, para lá de poder significar uma
nova experiência do espaço quotidiano de sempre, está a produzir
também as suas próprias paisagens: é o caso das diversas formas
de alojamento colectivo com prestação de cuidados aos idosos que
estão em crescimento, que têm a sua própria geografia social, e que
representam uma nova forma de habitar.
A produção do corpo-fetiche na sociedade de consumo contemporânea implica também uma geografia particular, com incidência
sobretudo nos espaços que mais directamente se relacionam com o
consumo e os lazeres. A evolução das práticas de tempo livre nos
últimos decénios foi marcada, como se sabe, pelo crescimento dos
93
Geografias do Corpo
lazeres domiciliários, muito aliás por efeito do desenvolvimento das
indústrias culturais e dos TIC, mas secundariamente também por
um certo aumento da prática desportiva; não só os níveis de participação aumentaram bastante (o que significa que mais gente passou
a praticar desporto), como aumentou também significativamente a
frequência dessa participação.21 Nem todas as práticas desportivas
conheceram porém um desenvolvimento comparável: enquanto por
um lado as actividades indoor e individuais se tornaram muito mais
atractivas e populares, passando a atrair um maior número de praticantes e praticantes numa base mais regular, os desportos ao ar livre
e colectivos viram pelo contrário diminuir bastante a sua capacidade
de atracção. Por detrás disto está portanto o que talvez pudéssemos
descrever como uma mudança de filosofia consentânea com a individualização e a preocupação quase fetichista com o corpo, em que
a competição e a sociabilização deixam de ser determinantes para
passar a ser sobretudo o fitness e o bem-estar a motivarem a prática
desportiva. Os health and fitness clubs, com a sua geografia própria
e arquitectura, são a expressão na paisagem dessa mudança, e lugares que tendem a desempenhar papeis cada vez mais importantes nas
vidas das novas classes médias urbanas, funcionando como lugares
especiais de intermediação e sociabilização por se situarem nesse
ponto muito peculiar que é o meio termo entre a esfera privada e
íntima do espaço doméstico e a esfera pública do espaço da cidade.
Inevitável quando falamos das geografias desse ‘admirável mundo novo’ que está a surgir com a revolução biotecnológica e com
os progressos observados nas ciências da saúde é referir finalmente
certas formas novas de comércio internacional e de turismo que parecem estar a despontar com isto. As experiências de biotecnologia
humana e muitos aspectos das medicinas reprodutiva e regenerativa
envolvem questões éticas delicadas e isso explica que sejam áreas de
actuação que necessitam de regulação. Há estados com legislações
muito restritivas, outros com leis que permitem maior margem de
manobra, e há até muitos estados que não dispõem ainda de legislação específica e onde essas actividades se desenrolam por isso fora
de qualquer regulação. Graças às hipóteses de mobilidade e acesso
a informação muito mais facilitadas que hoje existem, essas dife-
94
Fausto entre nós. Geografias pós-humanas
renças no quadro normativo podem ser exploradas pelo mercado
e levar a que os territórios com uma regulação menos restritiva se
especializem na oferta deste tipo de serviços, atraindo procuras de
fora. Espanha por exemplo, comparativamente a Portugal, possui
uma legislação reguladora da reprodução medicamente assistida
mais permissiva ou liberal, que permite por exemplo a inseminação
de mulheres solteiras assim como a escolha da cor dos olhos e do
cabelo do bebé, e tais factos fazem desse país um destino comum
para portugueses que procuram serviços de medicina reprodutiva.
Muito curioso é ainda verificar que as clínicas privadas que trabalham nesta área científica têm muitas vezes uma base transnacional,
precisamente para permitir que se gerem fluxos de esperma e de
ovócitos entre as suas várias filiais, o que no fundo corresponde a
uma forma encapotada de comércio de material genético: os estados
onde a legislação permite a remuneração dos dadores geram normalmente maior oferta de gâmetas, e esse material pode depois ser
canalizado para os países onde não é tão fácil alimentar os stocks por
se proibir esse tipo de compensação financeira.
Mesmo sem ser em áreas que ponham tão delicadas questões éticas a deslocação de pessoas a outros países para realizar tratamentos
médicos é uma tendência em franco crescimento. A diferença no
custo dos serviços de saúde foi a razão inicial para o desenvolvimento do turismo médico, que tem a ver sobretudo com domínios
que não envolvem situações de urgência e que são de certo modo
percebidos como necessidades secundárias, caso concretamente da
saúde oral e da cirurgia plástica. Isso que começou por ser um fenómeno espontâneo e algo informal, que levava por exemplo os gregos
a irem procurar na Turquia tratamento para os dentes, ou os alemães na Bélgica, está a evoluir para um produto turístico cada vez
mais complexo e acabado, onde os tratamentos aparecem integrados
num contexto de férias e uma parte da hospitalização se realiza em
resorts. Bem vistas as coisas, usarem-se as férias para mudar a forma
do nariz ou o tamanho dos seios não é ir muito além do sofrimento
de passar oito dias ao sol com a única e vã finalidade de acobrear a
pele. Destinos exóticos, de clima aprazível e com praia, mas numa
situação que se pode já considerar de desenvolvimento médio-alto,
95
Geografias do Corpo
com técnicos e equipamentos de saúde qualificados e de confiança,
são então os que parecem reunir maiores vantagens para esta forma
de turismo. Tailândia, Dubai, Brasil constituem alguns dos destinos
emergentes para este novo produto, mas também Portugal, no contexto europeu, é uma possibilidade que começa a surgir; prova disso
aliás é a existência de um operador português – a Fly2doc – que se
dedica já especificamente a este tipo de viagens, recrutando os seus
clientes no mercado inglês.
Perguntava-se em tempos Agustina se o vaidoso não seria afinal
aquele que simplesmente temia a sua nudez. Talvez nos devamos
nós interrogar por nossa vez se estas novas geografias do lunatismo
hipermoderno, que são as geografias que decorrem do mito de um
corpo perfeito e longevo, tecnologicamente produzido ou aperfeiçoado, não são afinal as paisagens tristes de um tempo que ao dilema
de Unamuno, entre morrer cómica ou tragicamente, responde preferir mil vezes morrer comicamente.
Notas
P. Ricoeur (1969: 383). 2 Cf. J. Chevalier e A. Gheerbrant (1982).
M. Calinescu (1999). 4 M. Calinescu (1999: 67). 5 A. Giddens (1997).
6
M. Augé (1994). 7 S. Charles e G. Lipovetsky (2006). 8 J. Baudrillard
(1995). 9 Por. ex.: M. Featherstone (1982), A. Giddens (1991), E. Jagger
(2000), etc. 10 C. Shilling (2003:1). 11 M. Featherstone (1982). 12 H. Arendt
(2001). 13 H. Arendt (2001: 378). 14 Cf. J. S. Taylor (2005). 15 Cf. L. Sharp
(2000). 16 D. Haraway (1991), J. Tsouvalis (2005). 17 Cf. L. F. Hogle
(2005). 18 F. Fukuyama (2002). 19 J. Testart (2006: 46). 20 Cf. R. A. Kearns
e G. J. Andrews (2005). 21 Cf. C. Bull et al. (2003).
1
3
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96
Fausto entre nós. Geografias pós-humanas
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97
O corpo dessexuado: a vida interior
das mulheres religiosas da Idade Média
Rober ta Gilchrist
The boundary between the inside and outside,
just as much as between self and
other and subject and object, must
not be regarded as a limit to be transgressed
so much as a boundary to be transversed.
E. GROSZ1
A arqueologia da sexualidade é uma via de pesquisa ainda em fase
exploratória, um propósito de dar conta do passado de experiências,
práticas sociais e representações do prazer e do corpo. A sexualidade, ainda que de complexa definição, deve porém ser compreendida
como uma conjunto de valores e relacionamentos historicamente definidos, e não uma categoria atemporal e naturalizada.2 Este estudo
pretende explorar o sentido de uma sexualidade que se relaciona
com o celibato de religiosas medievais. Incide especialmente a atenção na qualidade interior, experiencial da sexualidade, tal como se
exprimia através da materialidade do espaço e de símiles visuais.
Através do processo de negação da sensualidade e do estrito confinamento físico do corpo, a sexualidade das religiosas medievais era
invertida, tornando-se um espaço interior, um lugar de sensações
dilatadas e de estados de consciencialização do êxtase. Celibato,
confinamento e contemplação, tais eram os caminhos pelos quais
as religiosas podiam aceder ao intenso e profundo desejo do corpo
agonizante de Cristo.
Geografias do Corpo
As fontes para uma investigação da sexualidade destas religiosas
incluem textos, tais como as regras conventuais, os livros devocionais escritos (por homens) para mulheres religiosas e, mais raramente, narrativas autobiográficas de visões místicas. As fontes materiais
compreendem as expressões da arte e arqueologia das instituições
conventuais para religiosas, desde as formas dos edifícios às evidências do quotidiano e dos modos de vida. Este estudo incide especificamente na experiência de religiosas dos séculos doze a quinze,
com informação recolhida na Grã-Bretanha medieval inserida num
contexto comparativo europeu. Nesta época, uma mulher inspirada
por vocação religiosa podia escolher entre tornar-se freira, irmã de
caridade ou beguina,i dependendo do estatuto social e da região em
que se encontrava. Mais excepcionalmente, poderia decidir tornarse anacoreta,ii e viver encerrada perpetuamente na sua cela, replicando de uma forma simbólica a convivência com Cristo tumulado.
Qualquer consideração sobre a sexualidade destas mulheres ilustra
vividamente o problema de fazer corresponder categorias e concepções modernas a situações do passado, especialmente as que de a
identidade sexual de uma pessoa é predicada por uma actividade
sexual íntima com outro ser individual animado.
Noivas de Cristo
O número e estatuto das comunidades de religiosas medievais era
variável na Europa nor-ocidental. Porém, essas instituições partilhavam algumas características fundamentais, nomeadamente a
simplicidade do desenho arquitectónico, a ênfase no confinamento
e segregação sexual, além de uma especial incidência no modo de
vida eucarístico de piedade e penitência.
A maior parte dos conventos fundados na Grã-Bretanha a seguir à
conquista normanda era relativamente mais pobre quando comparada
com os mosteiros fundados para religiosos homens. Esta disparidade parece ser o resultado do diferente estatuto social dos fundadores
desses conventos: mais de 70 num total de 130, em Inglaterra, foram
estabelecidos por senhores locais que não ostentavam nem um título
nem um cargo público.3 Dos 64 conventos fundados na Irlanda entre
os séculos doze e dezasseis, apenas sete foram estabelecidos por an-
100
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
glo-normandos de posição social elevada. Na Grã-Bretanha, é claro
que os conventos foram estabelecidos com o propósito de promover
um impacte mais local que os equivalentes mais ricos e politicamente influentes de religiosos homens.4 Doutro modo, na Alemanha
e em França os conventos cistercienses eram numerosos, por vezes
poderosos e relativa mas frequentemente prósperos. Na Dinamarca
existiam, ao redor de 1250, vinte e dois conventos femininos e trinta e um mosteiros mesculinos, alguns dos quais eram mais ricos e
maiores que as casas de religiosas; na Noruega, pela mesma altura,
existiam cinco conventos e catorze mosteiros; enquanto na Suécia
o número de uns e de outros era o mesmo, seis conventos de mulheres e seis mosteiros de homens.5 Foi possível demonstrar em relação a França e Inglaterra que as religiosas eram tidas em especial
consideração pela sociedade laica, ao contrário do que afirmava os
estereotipos de uma certa historiografia. As religiosas da Normandia
continuaram a receber dádivas e heranças ao longo de todo o período
medieval,6 e em Esat Anglia, na Inglaterra oriental, os testamentos
pessoais de pessoas laicas originárias da classe média continuaram
a entregar heranças a religiosas até à Dissolução dos Mosteirosiii
(1535-9), muito depois de terem sido desligados das regras e religiosas mais abastadas.7
Aparte dos conventos, encontravam-se mulheres religiosas nos
hospitais medievais, a servirem como enfermeiras ou serviçais.
Em Inglaterra e Gales existiam mais de 1100 hospitais medievais
fundados entre o século doze e quinze. Os hospitais-enfermarias de
maior dimensão eram organizados segundo princípios monásticos,
convivendo homens e mulheres, reclusos e trabalhadores. Tanto os
homens como as mulheres tomavam ordens e a estas cabia especialmente os cuidados de enfermaria. Uma vocação religiosa mais
flexível foi desenvolvida por mulheres nos Países Baixos, na França
setentrional e no vale do Reno, em que comunidades informais de
mulheres se agrupavam e ajudavam mutuamente através do trabalho e da esmolagem. Esatas ‘beguinages’ prevaleceram em algumas
regiões a partir do século 13, como Amesterdão, onde quinze dos
dezoito conventos construídos dentro de muralhas ao longo dos séculos catorze e quinze pertenciam a comunidades semi-monásticas
101
Geografias do Corpo
de mulheres. Por esta altura, mesmas as beguinas viviam em comunidades de clausura, como a ‘Grande Casa de Beguinas’iv em Ghent,
cercada por muralhas e fossos. Historiadores do monaquismo na
Grã-Bretanha vinham assumindo até recentemente que este tipo de
comunidades informais de mulheres não floresciam fora da Europa
continental. Embora alguma evidência dessa existência tivesse sido
apresentada para a região de East Anglia, considerava-se que a maior
parte das mulheres religiosas da Grá-Bretanha medieval fossem freiras, irmãs hospitalárias or anacoretas. A mais autera e solitárias de
todas vocações, a anacoreta, foi especialmente acarinhada pela parte
laica de Inglaterra ao longo da Idade Média. Em Inglaterra, as pessoas que viviam em reclusão eram predominantemente mulheres,
sobretudo a partir do século treze até ao quinze,8 e a literatura anacorética desse período era especialmente dirigida a mulheres, como
é o caso de The Ancrene Wisse.9 As irmãs hospitalárias perseguiam
uma vocação mais activa e caritativa, enquanto as freiras regulares
e anacoretas partilhavam o ideal de contemplação e meditação que
aqui se explora.
A alma do desejo
… interior space, be it of the house or of
the body, is a feminine place; for the first
dwelling-place of man is buried
deep in the secret places of women.
HENRI DE MONDEVILLE (1306-1320), Chirurgie 10
As discussões acerca da sexualidade histórica são em geral enquadradas por uma preocupação em descobrir as preferências sexuais
dos e entre os indivíduos, sendo a primazia dada à relação física do
corpo humano. Os estudos sobre a sexualidade antiga têm sido permeados por abordagens foucaultianas11 que destacam as estratégias
de dominação sobre o corpo, ou a inscrição de valores sexualizados
no seu envólucro.12 Tem-se assistido a uma ênfase na representação da identidade sexual, ou conduta, através de imagens do corpo sexuado ou sexualizado.13 As abordagens das teorias feminista e
‘queer’v complementaram aquele tipo de considerações com outras
102
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
referentes ao ‘corpo vivido’, a partir do qual a sexualidade é concretizada, e a partir do qual as categorias de sexo e género são criadas.14
Também é necessário, de modo a unir as qualidades extrínsecas e intrínsecas da sexualidade, um elemento que não se detenha no estudo
das representação ou inscrição sexual e examine de que maneira um
‘corpo vivo’ se constitui. Elizabeth Grosz defendeu uma tomada de
posição mais materialista do corpo, que pudesse escrutinar o modo
como os processos de inscrição social no seu envólucro coalescem
numa constituição de um interior físico.15 A investigadora defende
que a compreensão de uma sexualidade assim corporealizada exige
a inclusão das dimensões de tempo e espaço,16 domínios familiares
da arqueologia.
No caso das comunidades unissexuais, tais como os conventos medievais ou as prisões actuais,17 poderia antecipar-se uma cultura de
actividade homossexual. No exemplo medieval, contudo, a escolha
de uma vida feminina em comum, associada ao celibato, era normalmente voluntária. A entrada numa comunidade monástica envolvia
renuciar a todos os aspectos da identidade, incluindo a sexualidade,
os laços familiares, a condição social. A regra monástica em uso na
maior parte das comunidades, a de S. Bento, alertava os iniciados
de que ‘de aí em diante não mais deteriam a disponibilidade do seu
próprio corpo’.18 Uma religiosa comprometia-se com o seu celibato
com a igreja enquanto noiva de Cristo, partindo de uma cerimónia
iniciática que envolvia adornar-se com vestes de noiva e a aceitção
da oferta de uma aliança. Após cingir o cabelo e vestir o hábito de
freira, estava consumado o sacrifício da individualidade. A mulher
religiosa medieval abraçava o celibato como uma união com Cristo,
e o seu corpo tornava-se o lugar de ambos, secreto e partilhado.19
Ao longo do período aqui considerado, as fontes históricas silenciam-se no que se refere às relações homossexuais no interior
das comunidades religiosas de mulheres. Onde estão documentadas
transgressões à obervância monástica, como é o exemplo do registo das visitas dos bispos aos conventos em Inglaterra, as mulheres
religiosas são advertidas no sentido de partilhar os epaços em que
comem e dormem, tal como são especificados pela regra de São
Bento.20 Claramente, os impulsos na direcção do individualismo
103
Geografias do Corpo
e da privacidade eram a principal razão de preocupação, mais do
que algum receio de que a partilha de lugares comuns pudesse originar uma actividade homossexual. Uma maior ansiedade cobria a
possibilidade de relações heterossexuais, uma vez que uma relação
com uma religiosa arruinava o celibato virginal, e significava a infidelidade com uma noiva de Cristo. Das religiosas esperava-se que
guardassem zelosamente a sua castidade, como se podia ler numa
história do século doze, Nun of Watton, escrito por um celebrado
eclesiástico, Aelred de Rievaulx.21 Narra a história (aparentemente
verídica) de uma jovem freira que vivia numa casa de religiosos
mista, com elementos de ambos os sexos, em Yorkshire nos anos
1150 ou 1160, e que tomou um irmão religioso como seu amante.
Quando as outras freiras foram alertadas para o adultério, espancaram-na, encarceraram-na e alimentaram-na apenas a pão e água.
Foi pois elevado o preço da sua afeição por um homem, e que as
restantes religiosas obrigaram a pagar por ter ‘violado a castidade’ e
‘injuriado Cristo’:
Some [of the nuns], who were full of zeal for God but not
of wisdom and who wished to avenge the injury to their
virginity, soon asked the brothers to let them have the young
man for a short time, as if to learn some secret from him.
The cause of all these evils [i.e., the nun] was brought in as
if for a spectacle; an instrument was put into her hands; and
she was compelled, unwilling, to cut off the virus with her
own hands. Then one of the bystanders snatched the parts of
which he had been relieved and thrust them into the mouth of
the sinner just as they were befouled with blood.22
Esta e outras histórias instrutivas semelhantes podem ter limitado
a tentação sexual nos conventos. O celibato das religiosas estava
imerso numa vasta teia de discursos teológicos, médicos e sociais
sobre o corpo da mulher.
As tradições religiosas e médicas medievais caracterizavam o
corpo feminimo como tandendo mais naturalmente ao pecado, exigindo submissão e continência. A mulher era considerada como a
face mais física, luxuriosa, e material da natureza humana, contrapondo-se ao homem, espiritual, racional e intelectual. Seguindo os
104
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
princípios clássicos da teoria dos humores, com origem nas obras de
Aristóteles e Galeno, a medicina medieval propunha que o corpo humano era constituído por quatro elementos fundamentais, que eram
os que igualmente compunham todo o universo: fogo, água, terra e
ar. A mulher era considerada da água, instável, dotada de um húmido
equilíbrio humoral, em contraste com o do homem, quente e seco.23
O interior do corpo era percebido como um espaço confinado, doméstico e feminino: interior, de água, mercurial, estava em íntima
concordância com o humor fleumático da mulher.
Esta concepções do corpo feminino tiveram influência tanto nas
expectativas que se detinham sobre a vida das religiosas como na
sua viência espiritual – o ‘corpo vivo’ da sua religiosidade. A corporealidade inata da mulher fazia supor que se tornava mais vulnerável à luxúria e ao pecado sexual. Assim, a mulher era vista como
instável e susceptível de corrupção sexual; mais ainda, a expressão
do seu corpo era considerada ‘interior’ por natureza. Em obediência a estas concepções, as autoridades monásticas exigiam a estrita
clausura das religiosas, de modo a garantir intactas a virgindade do
corpo e a imortalidade da alma. Desse espaço de clausura, intacto e
interior, erguia-se o desafio de as religiosas conquistarem e conterem
a sua fisicalidade. As religiosas demonstravam a voracidade das suas
convicções através do ascetismo, a denegação física do corpo sensual. Tal era possível pela renúncia ao prazer sensual, incluindo sexo,
comida, liberdade de movimentos ou atenção ao embelezamento
do corpo. A comida, ou a sua privação através da prática de jejuar,
foi de uma enorme importância no simbolismo religioso da mulher
medieval.24 Às mulheres era atribuída uma ligação mais directa ao
sofrimento e Paixão de Cristo: a inerente humidade do seu corpo
fleumático (sangue menstrual e lágrimas) era comparado com o sacrifício do sangue de Cristo na Cruz.25 Caroline Walker Bynum pôde
demonstrar decisivamente que, entre os séculos doze e catorze, estes
temas cminhavam a par, quando as mulheres desenvolviam uma especial devoção pela eucaristia.26 A preferência pela eucarista e pelo
corpo agonizante de Cristo tornou-se dominante,27 embora pareça
ter sido causa de grande sofrimento para as religiosas. Através da
eucaristia, as mulheres puderam tomar e guardar o corpo sacrificial
105
Geografias do Corpo
de Cristo enquanto alimento simbólico. Ao mesmo tempo, a sua força espiritual era demonstrada através de jejuns prolongados, o que já
se apelidou de ‘ascetismo alimentar’ ou ‘anorexia sagrada’.28 A privação de alimentos durante longos períodos de tempo poderiam induzir estados emocionais agudos, durante os quais muitas religiosas
tinham experiências de visões espirituais. Este tipo de alucinação
mística era dominado por imagens de sangue, coração, chagas e o
corpo sacrificado de Cristo, exmplificadas nos escritos de Hildegard
de Bingen, no século doze, Mechtild de Hackeborn, Hadewijch de
Brabante e Mechtild de Magdeburgo, no século treze, e Juliana de
Norwich, no século catorze.
[...] I also saw the bodily sight of the head [of Christ]
copiously bleeding. Large drops of blood dripped down from
under the crown like pellets – appearing to come from the
veins all brownish and red, for the blood was very thick, and
as it spread the drops became bright red. When it reached
the brows, the drops vanished; nevertheless the bleeding
continued until many things were seen and understood. The
beauty and vitality, nevertheless, continued with the same
loveliness and animation.29
Livros de devoção escritos para as anacoretas, tais como as obras
inglesas dos inícios do século treze, The Ancrene Wisse (Guia para a
Anacoreta), Hali Maidenhad (O Noivado Sagrado) e Sawles Warde
(A Guarda da Alma), juntamente com obras místicas esctitas pelas
próprias religiosas, davam ênfase ao papel de Cristo como Noivo e
a virgem religiosa como sua esposa. Estes textos sugerem uma dimensão intensamente pessoal, na qual a união da mulher com Cristo
é concretamente física e sexualmente dirigida. No Ancrene Wisse, a
mulher recebe a eucaristia como a um homem:
After the kiss of peace in the Mass, when the priest
communicates, forget the world, be completely out of the
body, and with burning love embrace your Beloved who has
come down from heaven to your heart’s bower, and hold
Him fast until He has granted you all that you ask.30
E a mesma mulher é encorajada a penetrar as chagas de Cristo, e a
purificar-se no seu sangue:
106
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
Creep into them, in thought. Are they
not wide open? And with His precious
blood cover your heart.31
Uma prisão gloriosa
Em teoria, portanto, era suposto que as mulheres religiosas medievais estivessem restritamente enclausuradas nos seus conventos de
modo a minimizar o contacto com o mundo exterior.32 No tempo em
que a primeira casa de religiosas foi fundada em Marcigny, em 1056,
a que o Abade Hugo se referia como ‘gloriosa prisão’, o conceito de
clausura era parte intergral do momasticismo feminino. Porém, recentement foi defendido que o grau de confinamento e segregação a
que se obrigavam as religiosas teria sido sobreavaliado, e de que nos
séculos onze a treze teria existido facilidades consideráveis de contactos entre os homens e mulheres religiosos.33 Na Inglaterra, existiu
um certo grau de informalidade durante os primeiros tempos do monasticismo normando, o qual, até ao século treze, tolerou a existência de celas de religiosas em mosteiros beneditinos de homens. Esta
fluidez sobreviveria até tempos tardomedievais em certas regiões,
em que as religiosas eram por vezes acomodadas em mosteiros beniditinos de França, Alemanha e Países Baixos.
Uma maior preocupação com a clausura e segregação sexual era
sentida nos mosteiros mistos, nos quais soluções arquitectónicas
foram desenvolvidas de modo a assegurar a separação das comunidades masculina e feminina. Eram particularmente severas as
observâncias da ordem francesa de Fontevrault, que incluíam dezoito regras para as mulheres, todas dizendo respeito a uma estrita
clausura, em contraste com nove para os homens, mais relacionadas com a obediência. Na casa-mãe em Fontevrault, os claustros de
religiosas eram confinados entre paredes, enquanto que o principal
era exterior. Na igreja, dois coros separados providenciavam mais
facilmente a segregação.34 Nas casas gilbertinas inglesas um grau
comparável de severidade era também observado, talvez para prevenir escândalos sexuais como o que rodeava a infamada Freira (gilbertina) de Watton (ver acima). Existiam dois claustros e dois coros,
107
Geografias do Corpo
e a comida era passada do claustro das religiosas para o principal
através de uma janela giratória num acesso comum aos dois claustros. As freiras apenas podiam conversar com os visitantes através
de uma estreita abertura. Na Suécia, nas casas da ordem mista de St.ª
Bridget, os edifícios das religiosoas e os edifícios principais eram
localizados em lados opostos de uma igreja conventual que ambas
as comunidades partilhavam.35
A clausura absoluta era observada pelas anacoretas, mulheres religiosas que tinham como objectivo viver perpetuamente isoladas.
Estas mulheres requeriam um compromisso substancial e apoio financeiro de uma comunidade paroquial; eram acomodadas em celas
ligadas a igrejas paroquiais (figura 1), em que uma serviçal se ocupava de providenciar a alimentação e remover as imundícies. Dada a
importância da eucaristia para as estas religiosas, uma janela ou uma
grade permitiam a visão do altar principal da igreja. A anacoreta era
por vezes sepultada na sua própria cela, e dela se esperava que meditasse na decomposição inevitável do seu próprio corpo:
she should scrape up earth every day out of the grave in
which she shall rot... the sight of her grave near her does
many an anchoress much good...She who keeps her death as
it were before her eyes, her open grave reminding her of it...
will not lightly pursue the delight of the flesh.36
Na igreja paroquial de St Anne, Lewes (Sussex), anteriormente referida como St Mary Westout, uma mulher reclusa foi recordada em
1253, quando lhe foi deixada a quantia de 5 shillings no testamento
de Richard de Wych, bispo de Chichester. A escavação da cela no
lado sul da capela-mor revelou os restos de um esqueleto feminino
spultado nas fundações. No interior de um recesso semi-circular na
parede sul da igreja podia ver-se uma fresta dirigida ao altar; na sua
base uma sepultura havia sido aumentada para os lados de modo a
poder guardar as mãos e os pés do esqueleto. Sob a fresta, a argamassa do recesso continuava até ao fundo da sepultura, onde formava a parede posterior do espaço de enterramento.37 Para poder ver o
altar através da fresta, esta reclusa tinha de se ajoelhar diariamente
na sua própria sepultura. A morbidez destas práticas eram uma parte
integral da expressão de renúncia da vida de uma anacoreta.
108
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
Era inevitável o contacto com religiosos homens em todas as instituições religiosas femininas, quando os padres eram solicitados para
a missa e confissão. Uma sacristia era posicionada junto à igreja onde
se depositavam os vasos e vestes sagradas, e para o sacerdote se paramentar e desparamentar. Sendo a sacristia um espaço masculino,
tornava-se necessário que o acesso directo a ele se fizesse da parte
exterior do claustro. Frequentemente, este acesso estava localizado
entre a igreja a e casa do capítulo, mas uma passagem na parede exterior permitia ao padre ter acesso directo à sacristia sem se internar
Figura 1
no claustro das religiosas (figura 2). As sacristias passaram a obedecer a uma norma idêntica nos conventos femininos a partir do século
treze, assim como desapareceram dos mosteiros masculinos, ou passaram a desenvolver-se em passagens para o interior do claustro. Em
muitos exemplares ingleses que sobreviveram, como por exemplo
Carrow (Norwich, Norfolk), e Brewood (Shrops), a sacristia era o
aposento mais ricamente ornamentado de todo o convento.
109
Geografias do Corpo
Ao contrário concepções actuais de clausura, muitas igrejas conventuais eram de facto compartilhadas com a congregação de uma
paróquia, e as plantas das igrejas desenvolviam-se de acordo com
o objectivo de manter os grupos separados entre si. O arranjo mais
comum na Grã-Bretanha, era a divisão monástica típica entre um
coro convetual a virado a oriente e uma nave paroquial a ocidente.
Os mecanismos de segregação por vezes desenvolviam-se organicamente, segundo arranjos locais, especialmente quando um convento era fundado no lugar em que previamente existia uma igreja
paroquial. Algumas casas de religiosas em Inglaterra isolavam as
duas congregações através de alas paralelas, com uma arcaria cega
a proibir qualquer contacto visual. Esta era a prática que seguiam,
por exemplo, as comunidades beneditinas de St Helen, Bishopgate,
Londres, e Mister-in-Sheppey (Kent). Alas paralelas eram usadas
para isolar as religiosas e os religiosos nas casas mistas gilbertinas,
e para dividir as comunidades masculina e feminina de muitos hospitais.
Nos conventos franceses era mais usual o coro monástico estar
integrado no braço oriental da igreja, separado da nave por um pulpitum. Muitas igrejas de religiosas na Alemanha, Escandinávia e
Grã-Bretanha, pelo contrário, operavam a dois níveis, e eram providas com um coro-galeria de modo a assegurar uma adequada segregação sexual. Testemunhos de galerias em igrejas conventuais
de Inglaterra podem encontrar-se no extremo ocidental da igreja de
Aconbury (Herefords) e no oriental da de Burnham (Berks). As galerias construídas a ocidente eram típicas dos conventos escandinavos, como exemplos ainda existentes em Bosjökloster e St Peter em
Lund, na Scania, actual Suécia; e em Roskilde e Asmild, em Viborg,
Dinamarca. Esta solução para o problema da segregação difundiuse nas regiões de língua germânica, onde as galerias ocidentais e os
coros elevados são bem conhecidos, como Wienhausen, Chelmno
(Kulm, Polónia), Adelhausen em Freiburgo e Ebstorf. Em alguns
casos, passagens especiais eram necessárias para as freiras terem
acesso ao seu coro, tais como as passagens muradas de Marienstern
que a um nível elevado ligavam directamente o dormitório ao coro
ocidental.38
110
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
Jeffrey Hamburger atribuiu o desenvolvimento do coro-galeria
ocidental à tradição germânica das criptas elevadas e galerias do tipo
Westwork,39 embora a sua distribuição tão ampla pareça indicar uma
origem mais antiga, possivelmente as galerias ou tribunas que eram
usadas para isolar as religiosas nas igrejas bizantinas do século sexto. Quando as comunidades conventuais partilhavam as suas igrejas
com congregações de religiosos ou paroquiais, havia a possibilidade
de que a ênfase na separação pudesse diminuir a importante relação estabelecida entre a mulher religiosa e a eucaristia. Em igrejas
da ordem mista dos Gilbertinos, é claro que as religiosas estavam
Figura 2
impossibilitadas de testemunhar o momento da transubstanciação.
Alas paralelas eram usadas para isolar as comunidades masculina
e feminina, estando o altar-mor situado na igreja principal. Após a
elevação da hóstia, o sacramento era tomado através de uma janela
pelas mãos de uma mulher-sacristão.40 Caroline Bruzelius cartografou a evolução do coro nas casas de Clarissas italianas, notando que
correspondia a uma crescente importância da devoção eucarística.
A partir do século catorze, as novas igrejas permitiam uma visibili-
111
Geografias do Corpo
dade acrescida do altar, enquanto que antes dessa data as religiosas
usavam coros-galeria ocidentais ou capelas laterais que impediam
a visibilidade. Um exmplar especialmente bem desenvolvido é de
Santa Chiara, em Nápoles, erigida nos momentos iniciais do século
catorze, com o coro situado directamente atrás do altar, num antecoro, com três largas aberturas gradeadas a permitirem a visão directa
do altar e a elevação da hóstia.41
A vida interior das mulheres religiosas medievais
É conhecido o argumento de que a cultura visual deveria ter tido um
papel central dentro do ambiente cerrado dos conventos, em que o
significado das imagens era enfatizado pela clausura das religiosas.42
O corpo agonizante de Cristo era a imagem dominante nos textos
relacionados com as mulheres religiosas medievais, na qual o corpo
e a carne da Crucifixão assumiam um significado sacramental. Nos
casos raros em que sobrevivem imagens produzidas por religiosas, é
possível discernir os mesmos temas eucarísticos que permeiam os escritos de mulheres místicas. Jeffrey Hamburger estudou um conjunto de manuscritos com iluminuras (datados de c. 1500) produzidos
no convento beneditino de St. Walburg, Eichstätt, Bavaria.43 Exibem
um aspecto ingénuo, infantil que indicia um parco conhecimento das
convenções artísticas do exterior. Hamburger defende que mostram
uma preocupação com imagens religiosas distintamente femininas,
tais como imagens da Crucifixão saturadas de sangue ou de jardins
recolhidos. Quatro imagens em particular transmitem o misticismo
religioso feminino da clausura e da eucaristia: a Crucifixão simbólica, o Coração na Cruz, o Banquete eucarístico (em que uma religiosa comunga com Cristo no interior do seu coração) e o Coração
como casa (em que as religiosas residem). Hamburger propõe que
estas imagens, mais do que do exterior, podem apenas ser compreendidas a partir do interior.44 Conclui que a escala e a escolha dos temas reflecte uma ‘vida interior’, uma intimidade e piedade místicas
próprias da vida enclausurada destas mulheres.
Na arquitectura conventual inglesa, a sacristia, lugar da eucaristia,
era o aposento mais bem decorado. O conjunto de imagens associadas está frequentemente associado à eucaristia através de referências
112
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
ao sacrifício de Cristo, incluindo representações do Agnus Dei (o
cordeiro de Deus), presente numa cornija de um convento agostinho
de Lacock (Wilts) em Inglaterra. Num outro caso, as escavações de
uma casa de religiosas inglesa recuperou uma Sagrado Coração esculpido, uma imagem que se identifica com o corpo em sofrimento
de Cristo e que raramente se encontra em Inglaterra (figura 3). Esta
peça do convento dominicano de Dartford (Kent) está totalmente de
acordo com os temas eucarísticos e místicos que dominam o sen-
Figura 3
timento de piedade feminina tardo-medieval: o Sagrado Coração
era crucial nas visões de Mechthild de Hackeborn, Mechthild de
Magdeburg e Juliana de Norwich.
So He, with great desire, shows her His divine heart. It is like
red gold burning in a great fire. And God takes the soul to
His glowing heart as the high prince and the humble maiden
embrace and are united as water and wine. Then the soul
becomes as nothing and is so beside herself that she can do
nothing. And He is sick with love for her, as He ever was, for
He neither increases nor decreases. Then the soul says: Lord,
You are my comfort, my desire, my flowing spring, my sun,
and I am Your reflection.45
113
Geografias do Corpo
Os temas e as imagens escolhidos pelas mulheres religiosas medievais exibem uma preocupação com a interioridade – espaços interiores, sofrimento íntimo, até os órgãos internos de Cristo – que se
relaciona intimamente com a qualidade ‘interior’ do corpo feminino,
e a ênfase na clausura da mulher religiosa.
Frio conforto
Enquanto as representações visuais da eucaristia se tornaram centrais para as mulheres religiosas, em outros aspectos a sua vida
mantinha-se austera. Em comparação com os mosteiros coevos para
homens, ou os solares e castelos em que viviam as suas irmãs seculares, as mulheres religiosas suportavam uma vida de penitência e
despojamento.
A escala da arquitectura das casas de religiosas é provavelmente mais bem compreendida através dos vestígios arqueológicos das
igrejas. Especialmente, a longa tradição erudita dos Cistercienses
permitiu construir tipologias detalhadas dos vestígios de igrejas conventuais cistercienses em França,46 Alemanha47 e, a uma menor extensão, em Inglaterra.48 O P.e Anselme Dimier classificou os conventos
cistercienses em França a partir da existência ou não de alas laterais
na nave, da existência ou não de transeptos na igreja, da comparação
da dimensão do santuário em relação ao resto da igreja, do tipo de
edificação no extremo oriental da igreja, se recto, em ábside ou em
capela radiante.49 Foram propostos dez planos-tipos, mas o mais comum parece ser o Tipo 1-Dimier: um rectângulo simples, sem alas
lateriais, nem transepto, com nave e santuário da mesma dimensão
e o extremo oriental edificado em forma recta. Normalmente, as dimensões das igrejas conventuais francesas variavam entre 35 a 50 m
de comprimento e 12 a 13 m de largura. Do mesmo modo, nas áreas
de língua germânica, a maioria das casas de religiosas cistercienses
adoptavam um plano simples, compreendendo um único corpo, que
podia variar dependendo da região ou da ordem monástica.50 Em
Inglaterra a planta rectangular sem alas era também o arranjo mais
comum (figura 2), sendo esta a forma representada em 62 % dos conventos conhecidos de todas as ordens monásticas em Inglaterra e
Gales; as restantes 38 % são igrejas cruciformes.51 As dimensões das
114
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
igrejas conventuais inglesas podem variar, em todas as regiões, entre
15 e 50 m de comprimento. Estas igrejas, simples e estreitas, eram
suficientes para uma pequena comunidade, normalmente de doze religiosas, possuindo, talvez, apenas um padre ou capelão. Dadas as
proibições litúrgicas que incidiam sobre as religiosas, era exigido um
número mínimo de altares e, consequentemente, não se fazia sentir a
necessidade de edificar capelas ou alas para dignidades posteriores.
Muitas destas igrejas mantiveram-se inalteradas ao longo de toda a
Idade Média. A simplicidade da planta, a ausência generalizada de
embelezamento e de intervenções com vista à evolução ou alteração
situa-as num plano à parte das igrejas monásticas para homens.
Na Grã-Bretanha não era inusual que os edifícios de clausura fossem construídos em terra ou madeira, nem que os conventos não
possuíssem instalações que satisfizessem as necessidades mínimas
de higiene, saneamento ou recolha dos lixos, todas consideradas
essenciais nos estabelecimentos masculinos. É possível que essas
faltas fossem privações deliberadas com vista a uma vida penitencial considerada fundamental para muitas mulheres ao longo dos
séculos doze e treze. Freiras e anacoretas deviam satisfazer-se com
instalações sanitárias relativamente rudes, simples latrinas de rasas
ao chão, que contrastavam com os lavatórios de água-corrente da
maior parte das instituições masculinas,52 enquanto escavações recentes recolheram quantidades de dejectos em maior quantidade do
que seria suposto face aos procedimentos escrupulosos da higiene
conventual.53 As deploráveis condições sanitárias poderiam ser um
dos modos como as mulheres religiosas humilhavam o seu corpo.
O autor de Ancrene Wisse advertia-as no sentido de não levaram ao
extremo este preceito de ascetismo:
Wash yourselves whenever necessary and as often as you
wish, and your things as well. Filth was never dear to God,
although poverty and plainness of dress are pleasing to
him.54
Esta forma de ascetismo era também extensível à alimentação
que, nos conventos de menor dimensão, parece ser mais semelhante
à dos camponeses menos pobres do que à pródiga alimentação dos
mosteiros de homens; com uma base de cereal, consistindo domi-
115
Geografias do Corpo
nantemente de pão e sopa, fruta e hortaliças, peixe, lacticínios, carne
de vaca e de porco.
As casas de religiosas estavam situadas muitas vezes em lugares
isolados e inóspitos, frequentemente em ilhas, lugares de passagem,
rodeadas de fossos, lugares idealmente adequados a um devoção
eremítica. Os conventos femininos parecem ter sido menos chamados do que os seus equivalentes masculinos à actividade de transformação e intervenção na paisagem.55 Em Inglaterra, os conventos de
religiosas tinham mais semelhanças com as casas de campo da classe abastada rural do que com os grandes mosteiros masculinos. Quer
as casas de religiosoas quer aquelas casas seculares desenvolviase ao redor de pátios abertos, muitas vezes consistindo em espaços
descontínuos ligados por passagens cobertas. Em muitos conventos,
os aposentos do lado do ocidente serviam para a acomodação de
hóspedes e seguiam de perto o modelo das casas seculares, com um
corredor central com ligação a um quarto de piso superior, e separado dos serviços inferiores por uma passagem.
Em contraste com o que era mais usual, uma parte significativa de
casas de religiosas localizavam o seu claustro a norte da igreja: em
Inglaterra, mais de uma terço dos conventos conhecidos são edificados desta maneira (figura 2). Mais ainda, quando lançados sobre
um mapa, os claustros setentrionais agrupam-se nitidamente em algumas regiões específicas, indiciando tradições locais associadas à
vida das mulheres religiosas.56 De um modo geral, esta disposição
não resultava de restrições relacionadas com a drenagem ou fornecimento de água, nem da topografia urbana, podendo resultar ser
apenas o extremo setentrional considerado mais adequado para as
mulheres religiosas. Os claustros mais frios, escuros e húmidos que
derivam da situação setentrional poderiam mais facilmente corresponder aos humores fleumáticos da mulher, e considerados mais de
acordo com a vida de penitência. Mais ainda, o lado norte das igrejas estava associado com a tradição de enterramento e disposição
feminina, além de transportar uma conotação com a Santa Virgem
Maria. Em representações coevas da Crucifixão, o lugar tradicional
de Maria situava-se ao pé da Cruz, no lado direito de Cristo. Quando
esta imagem era sobreposta à planta da igreja (representando a
116
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
Cruz), Maria posicionava-se ao lado norte. O claustro setentrional
pode assim repreentar um aspecto mais da particular devoção que as
mulheres religiosas demonstravam pelas imagens da Crucifixão.
Do interior: o fetichismo das mulheres religiosas medievais
A sexualidade das mulheres religiosas produzia-se por inversão: todos os elementos de sensualidade física eram despojados, qunado
o interesse do mundo exterior se direccionava interiormente. A privação do prazer do corpo não se limitava ao celibato, estendia-se à
rejeição de alimento, higiene, calor e conforto. As mulheres religiosas medievais detinham a experiência da sua sexualidade através da
renúncia do corpo, incluindo a austeridade da paisagem, da arquitectura, do modo de vida quotidiano. Aceitavam a clausura que lhes
era imposta; de facto, em alguns casos, desejavam-na ardentemente e ao sofrimento que trazia. A sua materialidade era forjada pela
clausura com Cristo, o Noivo divino, numa celebração do mundo da
‘vida interior’. Através da devoção pela eucaristia, Sagrado Coração
e Crucifixão, as mulheres religiosas dirigiam o desejo sexual ao interior do corpo lacerado e crucificado de Cristo.
A religiosidade medieval feminina foi caracterizada como tendo
origem numa cultura visual erótica, mística e maternal,57 que Karma
Lochrie viria a denunciar como sendo uma ‘versão rigidamente heterossexual da sua sexualidade’.58
Lochrie adeverte-nos do lado obscuro do misticismo feminimo.
Mulheres como Hadewijch de Brabante, Angela de Foligno, Catarina
de Siena descreveram episódios místicos de voracidade sexual, um
amor narcisista e violento por Cristo, que se exprime em renúncia
e morte. O sofrimento comum induzia nas mulheres religiosas um
prazer de êxtase, em que os momentos mais requintados e reservavam para a contemplação dos órgãos internos de Cristo, alimentada
nas feridas abertas, e por elas penetrando o seu corpo – interpretada
por Lochrie como uma visualidade homoerótica. Contudo, as mulheres religiosas não exprimem o desejo por um outro ser animado –
masculino ou feminino – nem pela penetração ou sensações tácteis,
mas por um encontro sexual que contém o corpo e alma, o tempo e
o espaço. Podemos ver nele uma sexualidade fetichista, experimen-
117
Geografias do Corpo
tada por intermédio do corpo de Cristo, uma instância que Elizabeth
Grosz apelidou de ‘desejo como intensificação do corpo’:
One is opened up, in spite of oneself, to the other, not as
passive respondent but as co-animated, for the other’s
convulsions, spasms, joyous or painful encounters
engender, or contaminate, bodily regions that are apparently
unsusceptible... The other need not be human or even animal:
the fetishist enters a universe of the animated, intensified
object as rich and complex as any sexual relation (perhaps
more so than).59
A arqueologia, a cultura visual e os escritos associados a mulheres
religiosas medievais permitem-nos aceder à visão íntima da sua corporealidade sexual. A sexualidade destas mulheres não se limitava
ao que as autoridades monásticas inscreviam no exterior do corpo:
era uma sexualidade concreta profundamente sentida. O que distintiguia eata forma de sexualidade era a sua experiência interior
– o carácter ascético do corpo feminino, as condições da clausura,
e um profundo sentimento de desejo, talvez fetichista, pelos órgãos
internos do corpo de Cristo. Os homens da Igreja, os patronos, apenas permitiam às mulheres religiosas uma mobilidade limitada, um
papel religioso, e condições concretas de existência. Tais limitações
eram reconvertidas, de dentro para fora, quando as mulheres, associando ao seu sofrimento e privação os do seu Noivo espiritual, se
deixavam cativar por uma singular forma de sexualidade interior.
Notas
E. Grosz (1995: 131). 2 R. Gilchrist (1999). 3 S. Thompson (1991: 163).
R. Gilchrist (1994). 5 G. Smith (1973). 6 P. Johnson (1991). 7 R. Gilchrist
e M. Oliva (1993: 60-61). 8 A. K. Warren (1985: 20). 9 M. D. Salu (1955).
10
Citado em M. Pouchelle (1990: 130). 11 M. Foucault (1977). 12 D.
Montserrat (1998: 4); L. Meskell (1996: 8). 13 N. B. Kampen (1996). 14 J.
Butler (1990). 15 E. Grosz (1995: 104). 16 E. Grosz (1995: 84). 17 Casella.
18
J. McCann (1952: cap. 58). 19 R. Gilchrist (1994: 18-19). 20 E. Power
(1922). 21 G. Constable (1978). 22 Corpus Christi Cambridge MS 139 fols
149-51; cit. em G. Constable (1978: 208). 23 C. Rawcliffe (1995: 172). 24 C.
W. Bynum (1987). 25 E. Robertson (1990: 9). 26 C. W. Bynum (1987). 27 E.
M. Ross (1997). 28 C. W. Bynum (1987: 87). 29 Julian of Norwich c. 1373;
1
4
118
O corpo dessexuado: a vida interior das
mulheres religiosas da Idade Média
in E. Colledge e J. Walsh (1978: 7). 30 M. D. Salu (1955: 14). 31 M. D.
Salu (1955: 130). 32 J. T. Schulenburg (1984). 33 C. H. Berman (1988) e
J. F. Hamburger (1992: 110). 34 L. Simmons (1992: 102-3). 35 T. Nyberg
(1965). 36 M. D. Salu (1955: 51). 37 W. H. Godfrey (1928: 166-8). 38 J. F.
Hamburger (1992: 114). 39 J. F. Hamburger (1992: 112-3). 40 S. K. Elkins
(1988: 141). 41 C. Bruzelius (1991: 87). 42 J. F. Hamburger (1992: 109).
43
J. F. Hamburger (1997). 44 J. F. Hamburger (1997: 10). 45 Mechthild de
Magdeburg, c. 1250, citado em J. Howard (1984: 179). 46 A. Dimier (1974);
M. Desmarchelier (1982). 47 E. Coester (1984; 1986). 48 J. A. Nichols
(1982). 49 A. Dimier (1974); M. Desmarchelier (1982). 50 J. F. Hamburger
(1992: 112). 51 R. Gilchrist (1994: 97). 52 R. Gilchrist (1995: 129). 53 R.
Gilchrist (1995: 145). 54 M. D. Salu (1955). 55 R. Gilchrist (1994). 56 R.
Gilchrist (1994: 128-149). 57 C. W. Bynum (1987). 58 K. Lochrie (1997:
181). 59 E. Grosz (1995: 200).
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121
Geografias do Corpo
Notas de tradução
Artigo original em língua inglesa: ‘Unsexing the body: the interior sexuality of medieval religious women’, in R. A. Schmidt e B. L. Voss (eds)
‘Archaeologies of Sexuality. Routledge: London e New York, 89-103.
Traduzido e republicado com permissão da autora, dos coordenadores e
Thomson Publishing. Tradução por José Ramiro Pimenta em 2008, com
revisão da autora. i No original: ‘(…) might choose between that of the
nun, hospital sister, or “beguine” (…)’. ii No original: ‘anchoress’. iii No
original: ‘Dissolution of Monasteries’. iv No original: ‘Great Beguinage’.
v
Optou-se por não traduzir este termo, não só por não existir equivalente
português que cubra toda a gama de significados para que remete, mas
especificamente porque enquanto nome de teoria social se usa na literatura
portuguesa o termo original inglês.
122
Uma experiência com a linguagem do
cinema: objectivos, efeitos e consequências.
(Sexual Dependency de Rodrigo Bellott)
B enedic t Hoff
Introdução: Novas estéticas, desafios novos
O predomínio da indústria cinematográfica americana no mercado
de distribuição mundial obrigou que a tradução em ecrã se fizesse
sobretudo do inglês para outras línguas e que se fizesse sentir nos
produtos de Hollywood. Na verdade, irei defender que o segundo
destes parâmetros facilitou todo o processo. Em primeiro lugar,
devido à retórica equalitária que subjaz aos mitos fundacionais da
América, e pelas vantagens económicas proporcionadas pela normalização do produto, Hollywood desenvolveu um tipo de cinema
popular e amplamente genérico.1 Universalidade e predicibilidade
providenciam um contexto de espectação dentro do qual os filmes
podem ser compreendidos, assegurando assim a sua ‘pré-venda’
junto das audiências.2 Consequentemente, os filmes de Hollywood
apresentam elementos de especificidade cultural em número insuficiente tendo em vista a audiência a servir pela tradução. Mais ainda,
favorecem a possibilidade de compressão do texto – o que naturalmente favorece o processo de legendagem – dado que, para citar
Minchiton, os espectadores, na maior parte das vezes, ‘conhecem a
história, adivinham o diálogo, e apenas espreitam as legendas para
confirmar.3
Geografias do Corpo
Em segundo lugar, ao reproduzir a ilusão de uma realidade criada
pela perspectiva monocular, as convenções clássicas de continuidade encorajam o espectador a ‘ver através’ da imagem de modo a ficarem com a atenção presa às personagens e às suas acções com que
a narrativa do filme é quase integralmente revestida.4 Deste modo,
embora o espectador tenha de desviar o olhar de modo a poder ler
as legendas que são projectadas (ou inseridas) na imagem do filme,
a disrupção é mínima porque são apenas as personagens e a sua acção que detêm uma importância [narrativa] primordial (em oposição
à mise-en-scène, montagem, enquadramento, etc.) e para quem os
espectadores podem facilmente recentrar a sua atenção. Mais ainda, o som é adequado ao conteúdo da imagem, posto ao serviço do
diálogo das personagens e usado para minimizar a possibilidade de
confusão sobre qual a personagem que está a falar.5 Do ponto de
vista técnico, a transição suave entre os planos de filmagem, que
caracteriza a montagem por continuidade, tende também a facilitar
um uso eficiente de legendas.
Contudo, distribuidores como a Miramax vêm gradualmente
abrindo alguns nichos de mercado, trazendo cinema ‘art-house’ para
as grandes salas multiplex – Cidade de Deus (Fernando Meirelles,
2003), Amores perros (Alejandro González Iñaritu, 1999), Requiem
for a Dream (Darren Aronofsky, 2001), e Elephant (Gus Van Sant,
2004), como exemplos. Deste modo, filmes com uma ‘estética menos comercial’,6 que anteriormente teriam de ter lutado para poder assegurar direitos de distribuição para lá das suas fronteiras de
produção, são filmes que requerem agora tradução. Este fenómeno
é ainda mais reforçado pela procura gerada pelo DVD e o advento de repositórios online de filmes em subsecções cada vez mais
procuradas do género ‘flmes do mundo’, ‘filmes independentes’ e
‘art-house’, prometendo uma distribuição internacional para praticamente qualquer ponto do mundo. E ao mesmo tempo, o carácter
experimental da realização destes filmes tem vindo a revelar-se cada
vez mais inovador e arrojado. Um exemplo disto mesmo é o filme
Sexual Dependency de Rodrigo Bellott (2003),7 uma coprodução
bolívio-americana vencedora do prestigiado prémio FIPRESCI no
Festival de Cinema de Locarno em 2003.
124
Uma experiência com a linguagem do
cinema: objectivos, efeitos e consequências
Em primeiro lugar, Bellott prescinde de um ‘script’i convencional e, pelo contrário, ‘treina’ actores não-profissionais de modo a
que interpretem os seus papéis espontaneamente apenas com uma
ligeira orientação.8 Tendo em mente a natureza complexa do filme,
este propósito (bem sucedido) não foi certamente um feito menor.
Em segundo lugar, o filme passa-se em duas localizações cultural
e linguisticamente diversas: Santa Cruz (a terceira maior cidade da
Bolívia) e Ithaca College (Estado de Nova Iorque), o que significa
que o diálogo surge tanto em inglês como espanhol. Em terceiro
lugar, o realizador rompe com a tradição fílmica boliviana ao ser
o primeiro realizador do país a filmar com uma câmara digital, que
empresta ao filme uma ‘estética realista e intimista’, de acordo com
a notícia da sua apresentação.9 Em quarto lugar, e este é o ponto
mais determinante que destaca este filme do cinema convencional,
uma narrativa de ecrã-dividido é usada quase ao longo de todo o
filme, em que duas imagens simultâneas deixam ver dois ângulos
diferentes da mesma cena em montagem paralela e concorrente.10 O
objectivo, de acordo com Bellott, e cito aqui a notícia de apresentação do filme, era:
explorar as dualidades e contradições inerentes à identidade
social e experiência cultural contemporâneas (…) para
subverter a linguagem opressiva da narrativa singular
(monólogo) e uma tentativa de criar um diálogo audiovisual
que perturbe o conforto do espectador passivo. Que melhor
modo de representar a fluidez e a dualidade da condição
humana que um mundo narrativo dual (…).
A missão do realizador é decerto nobre, e a minha opinião de espectador é que se deveria acolher qualquer tentativa – bem sucedida
ou não – de oferecer às audiências uma alternativa às fórmulas já
mais do que experimentadas e testadas que monotonamente tomam
conta dos ecrãs das salas multiplex. Contudo, os tradutores de legendas mostram-se naturalmente desconfiados face a estes projectos,
mais do que os realizadores, espectadores e críticos. Não porque
o seu trabalho possa tornar-se potencialmente num maior desafio
(embora tal seja perfeitamente compreensível, tendo em conta os
salários baixos, os prazos irrealistas e a ausência de garantia de que
125
Geografias do Corpo
o seu nome possa surgir nos créditos finais do filme), mas porque
através do seu trabalho são constantemente alertados para os limites
humanos de percepção mental e sensorial. E é neste contexto que eu
gostaria de levantar as seguintes questões em relação à produção de
Bellott:
Em primeiro lugar, este carácter experimental potencia a qualidade de percepção por parte do espectador, isto é, permite compreender algumas coisas que os filmes convencionais (estilo Hollywood)11
são incapazes de fazer compreender, ou são apenas coreografias que
produzem a desorientação do espectador?
Segundo, será que funciona num contexto transnacional ou torna
impenetrável o filme de Bellott ainda antes de tomar em consideração as barreiras da linguagem oral?
Terceiro, como pode mitigar o processo da tradução, e de que
modo esta fica comprometida na sua eficácia?
Quarto, existe algum modo de a tradução ser usada como um meio
de ‘desbloquear’ ou mesmo potenciar a percepção activa do espectador?
Ao fazer isto o meu objectivo é sublinhar a relação recíproca que
existe entre a realização e a tradução e ilustrar como esses processos podem ter impacte um no outro. Tal, espero, permitirá adicionar
uma outra dimensão à ponte que vem sendo edificada por alguns
investigadores, como Palma Zlateva, Jorge Días Cintas e Francesca
Bartrina, entre realizadores e tradutores profissionais, que talvez demasiadas vezes se recolhem inamovíveis nas suas respectivas torres
de marfim.
Ver a dobrar: uma avaliação da narrativa de écrã-dividido
Muitos dos críticos de cinema denodaram-se em denunciar o carácter experimental de técnicas como a divisão do ecrã e o filme Sexual
Dependency decerto não escapou a este tipo de críticas.
A crítica de David Musair na Reel Film, por exemplo, afirma que
o filme ‘nada é mais do que um artifício vistoso concebido com a
intenção de atrair as atenções dos festivais de cinema’.12 É certo que
se fossem aplicados a Time Code (2000) de Mike Figgis, tais comentários poderiam ser válidos. Apresentado num formato quádruplo,
126
Uma experiência com a linguagem do
cinema: objectivos, efeitos e consequências
o filme de Figgis foi filmado com quatro câmaras, num único take,
sem montagem e em tempo real. Se é notável enquanto exercício
técnico de realização, contudo o ecrã quádruplo exerce, na minha
opinião, uma restrita função narrativa. Figgis isola a banda sonora
do ecrã de modo a que, em cada momento, impede o domínio da
narrativa, e dela desvia assim a atenção do espectador. Entretanto, as
imagens dos restantes ecrãs mantêm-se, de facto, redundantes, sem
uma relação clara com o avanço do enredo do filme.
Sexual Dependency, contudo, é inteiramente diferente. Dividido
em cinco episódios, o filme é protagonizado por adolescentes com
origens sociais e raciais antagónicas. Jessica (Alexandra Aponte),
uma rapariga pobre dos bairros pobres de Santa Cruz; Sebastian
(Roberto Urbina), um rapaz colombiano da classe-média de Bogotá
(em visita a Santa Cruz); Choco (Jorge Antonia Savedra), um desportista boliviano célebre e rico; Love (Liv Fruyano), uma modelo
de cabelo louro e olhos azuis, namorada do anterior; Adina (Ronica
Reddick), uma feminista norte-americana, estudante no Ithaca
College; Tyler (Matthew Guida), um modelo homossexual e jogador de futebol americano na mesma universidade. Diversos na sua
natureza mas reunidos pelo leitmotif de uma marca ficcional de roupa interior norte-americana, cad uma das suas histórias revela uma
procura diferente de intimidade sexual. Mas o caminho para o prazer
está assombrado por inúmeros perigos e, à mercê da tirania das suas
hormonas, as personagens consecutivamente tornam-se vítimas das
suas próprias ‘dependências e ilusões’, o que dá o nome do filme.13
O que torna o filme de Bellott diferente do de Figgis é o facto de
o primeiro atribuir uma função narrativa de facto ao ecrã dividido,
de modo a reflectir as ‘contradições’ e ‘dualidades’ com as quais o
filme em última análise se identifica. E é por esta razão que o filme não apenas recebeu o prestigiado prémio FIPRESCI de Locarno
em 2003, mas também recebeu uma plétora de críticas positivas de
críticos com porventura mais gabarito do que os que foram anteriormente citados.
Passemos a considerar, como exemplo, a sequência de abertura
do primeiro episódio.14 Aqui podemos ver Jessica de regresso a casa
prepararando-se para uma festa onde irá perder a virgindade com um
127
Geografias do Corpo
rapaz rico (Fabian) que havia decidido sair à noite com os amigos
para fazer um programa de ‘andar aos bairros’.ii Ao atravessar uma
rua, Jessica quase é atropelada pelo jipe de duas raparigas ricas do
liceu, uma das quais é Love, a protagonista do terceiro episódio do
filme.15 As duas raparigas vociferam insultos, e desaparecem à distância, aparentemente mais preocupadas com reunirem-se no Burger
King na companhia das suas colegas do colégio privado do que com
o estado de saúde físico ou mental de Jessica. Imediatamente a seguir, podemos testemunhar um evento semelhante em que os ocupantes de outro jipe (um dos quais é Sebastian, o protagonista do
segundo episódio) implicam com um rapaz da rua que se atravessa à frente deles, na paragem do semáforo, para limpar o vidro do
carro a troco de alguns cêntimos. Em cada umas destas situações,
Bellott utiliza o ecrã dividido, confinando as personagens nos seus
mundos herméticos, de modo a que a participação de cada uma das
personagens na parte do ecrã da outra seja fugaz ou não-existente.
Tal pode servir para reflectir as contradições sociais de Santa Cruz,
onde a presença de uma representativa elite branca (normalmente de
ascendência europeia) perceptivelmente deu origem a uma divisão
racial (e, por implicação, económica) mais aguda do que em qualquer outra parte da Bolívia. Bellott, sendo ele mesmo de Santa Cruz,
afirmou numa entrevista:
É um lugar estranho, com imensa gente rica, grandes
empresas e carros caros e velozes. É o Beverly Hills ou
Milão da Bolívia. A seguir à Segunda Guerra Mundial muitos
emigrantes europeus vieram para a cidade (...), as agências
internacionais de modelos surgiram e instalaram-se. Muitos
dos meus amigos submeteram-se a cirurgias plásticas ainda
na adolescência (...) quase toda a gente com que andei na
escola são modelos.16
Em outras partes do filme, o realizador utiliza a mesma técnica
para obter um efeito oposto – isto é, aliar duas personagens aparentemente diferentes através da imagem dual de partilha de experiências sócio-sexuais. No episódio final, por exemplo, podemos ver
Choco, que de estrela no seu país se transformara em apenas ‘mais
um latino’ nos Estados Unidos (onde se encontra como estudante
128
Uma experiência com a linguagem do
cinema: objectivos, efeitos e consequências
de intercâmbio no Ithaca College), ser violado em grupo por um
grupo de jogadores de futebol norte-americanos supostamente ultra-heterossexuais. Quando o grupo de violadores se retira, Choco
fica sozinho com as suas calças pelos tornozelos, procurando desesperadamente a sua masculinidade que se encontra em farrapos ao
seu redor. Neste momento, a imagem de Sebastian (o protagonista
do segundo episódio do filme) surge na parte esquerda do ecrã, no
momento em que se recolhe de uma iniciação sexual involuntária
às mãos de uma prostituta contratada pelos amigos de um primo
seu. A aplaudi-lo e a cumprimentá-lo, os seus novos companheiros felicitam o rapaz pelo seu ‘feito’, que o eleva agora à categoria
de um ‘homem a sério’. É claro que todo o tormento por que passou (e a ajuda do álcool) tirou a Sebastian as últimas resistências e
ele rapidamente corre a vomitar nos arbustos; na metade direita do
ecrã, vemos Choco a fazer o mesmo ao pé do carro em que havia
sido violentado. Apesar da diferença dos papéis sexuais que as duas
personagens são obrigadas a assumir (activa, no caso de Sebastian,
passiva no caso de Choco), a justaposição das imagens posiciona-os
claramente a ambos como vítimas da natureza iníqua de uma ideologia hegemónica relativa ao género.
Embora os exemplos acima referidos sejam apenas uma pequena
parte do que podemos ver ocorrer ao longo do filme, ainda assim são
suficientes para demonstrar que o carácter experimental de Bellott
está longe de ser apenas o artifício de que o acusa David Musair.
Pelo contrário, oferece às audiências uma perspectiva alternativa daquilo a que o realizador chama ‘a linguagem opressiva da narrativa
de enquadramento único’, e desenvolve a nossa percepção da temática do filme. Contudo, seria erróneo sugerir que uma narrativa de
ecrã dividido seja totalmente desprovida de defeitos.
Em primeiro lugar, existem limites físicos à eficiência da divisão
do ecrã simplesmente porque os órgãos receptores responsáveis pela
acuidade visual do olho humano estão concentrados na ‘fóvea’ da
retina, o que siginifica que não somos capazes de focar dois pontos
divergentes ao mesmo tempo.17 E, apesar do realizador afirmar que o
objectivo é o de ‘desestabilizar a tranquilidade da espectação passiva’ e forçar o espectador a escolher entre a imagem de um dos lados
129
Geografias do Corpo
do ecrã, não existe, claro está, nenhuma garantia de que o modo de
alternância da atenção se efectua da maneira desejada. A banda sonora, multiforme e por vezes confusa, apenas serve para exacerbar
o problema, atingindo por vezes algumas situações que apenas se
podem descrever como excessos sonoros.
Em segundo lugar, e talvez o mais importante, está a fragilidade
conceptual do uso do ecrã dividido para atingir o que a apresentação na imprensa vangloria, e que é, e passo a citar, ‘uma estética
realista e intimista’. Não apenas a técnica desvia a atenção do meio
pelo qual o texto é ele próprio construído, como também, e mais
importante, o ser humano apenas está dotado com um par de olhos,
cada um com um grau limitado de visão. O ‘diálogo audiovisual’
de Bellott, contudo, não apenas nos permite testemunhar o mesmo
evento de uma gama variada de perspectivas, como também isola
eventos que têm lugar simultaneamente em localizações geográficas
totalmente distintas. Tal é, na minha opinião, forçar o realismo ao
seu absoluto limite, isto é, se definirmos realismo como uma ‘aproximação mimética do real’.18
Como veremos mais à frente, este dois problemas são complicados pela adição de um outro sistema sígnico que toma a forma de
legendas projectadas ou sobrepostas à imagem. Antes, porém, tendo
estabelecido que os artifícios de experimentação do realizador são,
pelo menos parcialmente, bem sucedidos na origem da(s) cultura(s)
do filme, gostaria de questionar se a um nível visual o mesmo se
pode constatar num contexto transnacional.
Novas linguagens visuais num contexto transnacional
No primeiro volume da sua Esthétique et psychologie du cinema
(Paris: Editions Universitaires, 1963) Jean Mitri pretendeu clarificar
a natureza da imagem fílmica e da montagem cinemática. O autor
concluiu que o cinema não podia ser incluído na mesma categoria da
linguagem verbal. As palavras faladas ou escritas, recorda-nos o autor, são signos arbitrários, que despoletam o conceito mental de um
determinado objecto com o qual não possuem qualquer relação física ou acústica (com a única excepção provável das onomatopeias).
As imagens fílmicas, por outro lado, de facto incorporam muitos
130
Uma experiência com a linguagem do
cinema: objectivos, efeitos e consequências
dos aspectos visuais dos objectos que descrevem e, nesse sentido,
são ‘símiles’ e ‘duplos’ deles. Em todo o caso, diz o autor, o cinema
pode ser comparado à linguagem verbal pela razão de que, a um nível superior, o sentido conotativo é produzido através de ‘processos
quási-poéticos’19 da mise-en-scène, som, enquadramento, posição
da câmara, montagem, etc.
A relevância de tudo isto para o tema em análise é o de que ainda
que este novo vocabulário cinemático seja compreensível no interior das fronteiras nacionais do espaço em que é produzido, tal pode
não ocorrer a um nível transnacional. Tal sucede porque o modo
como estes processos são aplicados é socialmente determinado e reflecte a experiência cultural do autor. Laura Mulvey, por exemplo,
defende que muitos estratagemas utilizados na tradição cinemática
(a que chama ‘gaze’) são, pela constante objectificação do corpo da
mulher, totalmente sintomáticos das sociedades patriarcais.20
Sendo uma coprodução, o filme de Bellott foi, desde o início, destinado a uma distribuição para lá das próprias fronteiras nacionais,
quer o consideremos como boliviano ou americano. Similarmente,
sendo localizado o enredo em duas áreas linguística e culturalmente distintas, mesmo no interior das suas fronteiras domésticas (de
novo, se considerarmos que sejam bolivianas ou americanas), uma
das metades do filme não deixará nunca de ser inerentemente ‘estrangeira’ para a sua audiência. Neste sentido, o tema da compreensibilidade transnacional é particularmente sentida em relação a
Sexual Dependency, e eu defendo que existem alguns momentos em
que as ‘afirmações’ visuais criadas a partir da narrativa de ecrã dividido podem não ser apropriados pelo espectador.
Um exemplo particularmente significativo ocorre no episódio final protagonizado por Tyler, o (não assumido)iii jogador de futebol
americano e modelo que se sente distante não apenas dos seus colegas de equipe, mas igualmente do grupo de apoio aos estudantes
homo e bissexuais (LGB)iv com quem, aparentemente, tem pouco
em comum.21 De novo, Bellott utiliza o ecrã dividido para inserir
as suas personagens no mundo respectivo – no lado direito do ecrã
representa o líder do grupo LGB (Jeremiah), a dirigir um encontro
de ‘revelação’,v enquanto que, na esquerda, Tyler olha angustiado
131
Geografias do Corpo
do fundo do seu quarto, antes de sair rapidamente, visivelmente
perturbado pela disposição colorida da bandeira do arco-íris22 e dos
cartazes com slogans tais como: ‘Os armários são para as roupas; sai
daí!’. Para as audiências norte-americanas, a decifração do significado desta justaposição não deverá apresentar problemas, uma vez que
ela se refere a concepções de identidade e comunidade homossexual que estão incorporadas na palavra ‘gay’.23 Estas concepções têm
vindo a ganhar popularidade na Europa e, mais recentemente, nos
mais importantes centros metropolitanos da América Latina, como
São Paulo, Rio de Janeiro, Cidade do México, Buenos Aires e San
José (ver, como exemplo, o estudo de Denis Altman, Global Sex,
2001). Contudo, na Bolívia, tal como Susan Paulson observa,
(…) não resultaram muito bem nos contextos relacionais
diversificados nos quais os bolivianos experimentam a sua
identidade e comportamento sexual, e nos quais apresentam
as suas relações sociais de identidade de género.24
Neste sentido, os símbolos de orgulho homossexual que são enquadrados pelo lado direito do ecrã, que para uma audiência norte-americana dão origem a toda uma gama de associações, podem
permanecer particularmente redundantes para uma audiência como a
boliviana. Mais ainda, os estereótipos de género e sexualidade existentes na América Latina (pelo menos de um ponto de vista tradicional) são em muitos aspectos diferentes dos da América do Norte,
e o termo ‘maricón’ (lit. ‘faggot’) – manteve um uso associado a
homens efeminados independentemente da sua preferência sexual.
Contudo, os homens que participam apenas em relações homossexuais activas estão menos dispostos a diferenciar-se (e a deixarem
diferenciar-se) de homens heterossexuais porque o desejo de penetração, com homens ou com mulheres, pode ‘incluir-se na fronteira
do comportamento masculino tolerado’.25 Neste sentido, tendo em
atenção o comportamento masculino do jogador de futebol e o facto
de que a sua homossexualidade é apenas sugerida – recuando no
único contacto que tem com outro homem – eu creio que uma audiência boliviana dificilmente, e ao contrário de uma audiência norteamericana, o consideraria homossexual e, desse modo, a divisão do
ecrã torna-se duplamente redundante.
132
Uma experiência com a linguagem do
cinema: objectivos, efeitos e consequências
Pode, com facilidade, sobreestimar-se o modo como as lacunas
culturais podem afectar a recepção visual de um filme. Contudo, o
exemplo que apresentámos é suficiente para demonstrar que o problema da linguagem do filme não se restringe a um diálogo oral,
e que ainda antes do filme chegar à mesa de tradução, já ao nível
visual ele pode não ser interiamente compreensível. Mais adiante
referir-se-á o modo como a tradução pode abreviar alguns problema de microcompreensão visual. De momento, contudo, gostaria de
debruçar-me sobre de que modo os artifícios de Bellott – especificamente os que dizem respeito à divisão do ecrã e à representação
espontânea – podem enfraquecer os processos de tradução e, em
segundo lugar, como este último pode comprometer a eficiência daqueles artifícios.
Experimentação fílmica e tradução
De acordo com Gottlieb, a legendagem é uma forma ‘aberta’ e ‘oblíqua’ de tradução, isto é, que complementa, mais do que substitui, o
som original, e que ziguezagueia entre os discursos oral e escrito.26
Tal implica, como é natural, um grau de intrusão na imagem visual,
resultante da inserção da linha de legenda, e uma redução considerável do diálogo oral submetido a uma ‘metamorfose’.27 Sem surpresa,
uma vez que se trata de um filme ‘art-house’ de baixo orçamento,
Sexual Dependency foi legendado, um método significativamente
mais barato do que o de dobragem, que exige não apenas tradutores mas também actores, produtores, misturadores de som, e tudo o
mais, envolvendo custos elevados. Se este é ou não o método mais
adequado, pode discutir-se, e aqui eu volto ao que disse antes. Se
nos recordarmos da introdução, uma das distinções que o realizador
pretendia fazer em relação aos filmes de ‘estilo Hollywood’ era a
recusa de um ‘script’ convencional em favor de uma orientação mais
espontânea dos diálogos e da representação. Decerto que tal atribui
ao filme um certo grau de autenticidade (e por isso de autoridade)
que de outro modo não estaria presente, principalmente porque o
espectador tem ‘acesso directo’ às personagens através de características dialécticas e de idiossincracias do discurso.
133
Geografias do Corpo
Contudo, a mobilização espontânea dos diálogos como primeira
instância de caracterização não joga a favor dos processos de legendagem. Em primeiro lugar, a legendagem não é adequada para
fazer sobressair a diferença dos modos de falar que, com frequência,
nos permitem aceder ao estatuto social das personagens.28 Tendo em
mente que a maior parte do filme se desenvolve em redor da exploração das tensões que existem entre distintas comunidades sociais
e raciais, tal constitui uma enorme insuficiência. Pensemos no primeiro episódio, por exemplo. Até à colisão (literal) do mundo de
Jessica com o de Love e a sua amiga, o diálogo é caracterizado por
uma sincronia entre modos de falar das personagens com que nos
encontramos, todas elas pertencendo ao mundo social (operário) de
Jessica. Esta sincronia, contudo, é rompida quando as ocupantes do
jipe vociferam insultos num sotaque boliviano muito bem-falante.
Neste sentido, o efeito de estridência criado pela colisão e história
subsequente está incorporado não apenas no uso do ecrã dividido,
mas também pelas nuances tonais do diálogo falado. Em segundo
lugar, ao longo da metamorfose do texto na passagem do discurso
oral para escrito, as ‘peculiaridades’ da linguagem falada (circunlocuções, elisões, pausas, hesitações, etc.) são frequentes e (necessariamente) omitidas no esforço de providenciar legendas facilmente
apreensíveis.29 Contudo, tais elementos são justamente os que se
associam com a significação interpessoal. Em terceiro lugar, ao não
tomar em consideração as perguntas e respostas curtas (que são normalmente incluídas na mesma linha de inserção), as legendas dos
filmes, por convenção, incluem apenas a fala de uma personagem
de cada vez. Deste modo, um diálogo envolvendo uma variedade
de interactantes a falar simultaneamente, isto é, uns sobrepondo-se
aos outros, necessariamente resultará numa perda substancial de informação. Decidir qual a informação que deverá ser ou não omitida
é, como se compreende, especialmente difícil, sobretudo quando se
está a lidar com um filme sem ‘script’.30
Estas questões são especialmente importantes no segundo episódio do filme no qual o tratamento do machismo está inextricavelmente ligado à representação da interacção com os pais de um dos
principais protagonistas masculinos. A dado momento31, tendo en-
134
Uma experiência com a linguagem do
cinema: objectivos, efeitos e consequências
contrado-se uma vez mais a seguir a terem saído à noite, Sebastian,
Dante, Chichito e Joaquín discutem (amigavelmente) sobre a quem
correu melhor a noite. Sebastian e Dante crêem que ter conseguido entrar num dos mais selectos clubes de Santa Cruz lhes daria
direito ao prémio. O feito será, contudo, rapidamente ensombrado
pelo anúncio de Joaquín: ‘Yo tiré un polvacho’ (lit. ‘Eu dei uma
gandaqueca’).vi Aqui, a frase está inteiramente omitida da tradução,
presumivelmente porque o tradutor a considerou supérflua. E, contudo, tendo em vista que a voz de Joaquín é particularmente sumida
nesse momento, talvez não nos surpreenda tanto. Ainda assim, esta
frase cumpre um papel fundamental no estabelecimento da predominância ‘quantitativa’ e ‘semântica’ de Joaquín sobre o conjunto
dos interactantes,32 um papel que reflecte a natureza do status da
personagem como sendo a única que assegurou uma conquista sexual naquela noite.33 Mais ainda, a inclusão do aumentativo adiciona
um elemento verbal à fala da personagam. Tal se perde também na
estratégia não-tradutora do tradutor.
Tal como a preferência de Bellott pela espontaneidade de representação, as dificuldades de legendagem do filme são aumentadas pelo
recurso à divisão de ecrã. Legendar um diálogo que se estabelece entre diversos interactantes a falar simultaneamente já é, como vimos,
um enorme desafio. Porém, quando existe um outro diálogo paralelo
(que pertence à outra metade do ecrã) o desafio torna-se insuperável.
A técnica referida diminui uma capacidade já de si reduzida do ponto de vista do espectador em distinguir as vozes individuais e poder
relacioná-las com uma determinada legenda, tal significando que a
identificação da fala das personagens apenas se possa atingir através
de um processo progressivo de visualização sequencial das imagens
e das legendas.34 Tal, de acordo com De Linde, pode dar origem a
uma confusão considerável que não apenas corrompe a leitura da
legenda em cada momento mas também as que se lhe seguem.
A ideia de combinar um enquadramento duo-narrativo com legendagem é, em si mesma, extremamente dúbia, ao ignorar as questões
que se prendem com a espontaneidade (multi-participada) do diálogo. Ainda antes que as legendas sejam inseridas, já a atenção do
espectador está a ser desafiada pela presença concorrente de duas
135
Geografias do Corpo
imagens no mesmo canal visual. Adicionar um terceiro medium sob
a forma de legendas pode assim ser descrito como um caso agudo de
‘excesso’ perceptivo,35 o que compromete, segundo creio, a capacidade do espectador em apropriar tanto os elementos visuais como os
elementos linguísticos do texto fílmico.
Mas para além de poder não ter tomado em consideração os desafios propostos ao humilde tradutor ou mesmo aos seus espectadores,
Bellott parece igualmente ter menosprezado o impacte que as legendas pudessem exercer na estética do seu filme. Ao fim e ao cabo, o
acto de escrever não está, para citar Zoé de Linde,
fixado no aqui e agora, [mas antes] nas condições que se
obtêm ao escrever em lugares e tempos distantes dos do
autor.36
O resultado final, creio, é o de que, mais uma vez, a demanda realista e intimista de Bellott fica mais uma vez posta em causa pela
conversão de um diálogo oral espontâneo em texto escrito que é
sobreposto à imagem.
À luz desta argumentação, poderia pensar-se que o filme de
Bellott é simplesmente incompatível com o processo de tradução,
pelo menos no que diz respeito a legendagem. Porém, deixar a argumentação terminar neste ponto serviria apenas para reforçar uma
suposição antiga e errada de que a tradução é por natureza deficitária
e sinónimo de uma perda inevitável. Na parte final deste estudo acabar-se-á por apresentar uma relação mais frutuosa entre o processo
de realização e a capacidade de transposição da linguagem.
‘Lost in translation’? Redefinição das fronteiras de regulação da
transposição da linguagem audiovisual.
Desde o seu aparecimento como disciplina académica e da aplicação da teoria ‘polysystem’vii à sua investigação, tradução em cinema
tem vindo a ser progressivamente analisada não apenas como um
processo mas como uma produção (nacional) que está ‘plenamente
incorporada na sua sociedade adoptiva’.37 Consequentemente, a suposta ‘superioridade’ dos sistemas nacionais (versões originais dos
filmes) sobre os estrangeiros (versões traduzidas) tem vindo a ser
136
Uma experiência com a linguagem do
cinema: objectivos, efeitos e consequências
posta em questão. Gostaria de levar mais longe esta concepção, sugerindo que a tradução audiovisual pode inclusivamente servir para
‘desbloquear’ e até aprofundar a capacidade de percepção dos espectadores e assim remediar alguns dos problemas postos pelo tipo
de artifícios experimentais de Bellott.
Um dos problemas, se nos recordamos, seria a capacidade diminuída que o espectador sentiria em relação ao processo do diálogo do
filme. Tal deve-se, por um lado, ao padrão espontâneo e intrinsecamente coloquial dos diálogos e, por outro, à presença de duas linhas
de diálogo paralelas (cada uma pertencendo uma das metades do
ecrã dividido), e que não só estão frequentemente sobrepostas como
também não possuem sempre uma suficiente qualidade. Existe uma
dupla vantagem em adicionar um terceiro sistema sígnico sob a forma de legendas ao texto do filme. Por um lado, enquanto um espectador nativo terá a tarefa, talvez mal sucedida, de decifrar sem ajuda
o diálogo, no caso de um espectador estrangeiro essa tarefa estará a
cargo da tradução. O tradutor ou tradutora, pelo menos num mundo
ideal, deterá a possibilidade de aceder a um registo pós-produção de
‘(trans)script’,viii o que permitirá simplificar enormemente a tradução. Desde que as legendas sejam eficientemente inseridas e de boa
qualidade visual, o espectador estrangeiro terá a oportunidade de
poder apropriar a mesma informação numa forma alternativa e até
talvez mais lúcida.
Em segundo lugar, relacionado com um processo inevitável de
compressão de texto, uma tradução talentosa seria bem sucedida ao
seleccionar para o espectador estrangeiro os elementos mais importantes das duas linhas de diálogo. Ao mesmo tempo, o espectador
caseiro pode ficar numa situação mais imponderável, tentando decidir em qual das vozes se deve concentrar. Este processo selectivo pode também ser de alguma vantagem para guiar o espectador
estrangeiro através das partes potencialmente mais ambíguas do
enredo (principalmente que são mantidas sobretudo pelo diálogo),
isto é, desde que o tradutor tenha correctamente identificado aquilo
que é ou não significativo no diálogo original. Estas duas questões
são particularmente importantes no segundo episódio do filme onde,
137
Geografias do Corpo
como se referiu, a interacção entre os protagonistas masculinos é
difícil de acompanhar.
Porém, o que dizer das ambiguidades que dizem especificamente respeito à nova linguagem visual que é proposta pelo realizador
através da sua técnica duo-narrativa? Este problema foi já discutido
acima, momento em que se defendeu que em certa medida a intenção dual de Bellott poderia perder-se, no caso dos espectadores estrangeiros, devido a um problema de desidentificação cultural. Neste
caso, o recurso a legendas é limitado, uma vez que o processo inevitável de redução do texto original tem como consequência a inibição de uma significativa explicação textual da imagem. A dobragem,
por outro lado, é de natureza diferente e oferece possibilidades mais
alargadas de adaptação sócio-cultural através da modificação ou expansão do texto original.38
Como exemplo, na cena que descreve o encontro amoroso de Tyler
com outro homem39, a pergunta que surge ‘Are you okay?’ poderia
ser substituída por uma linha de legenda com algo do género ‘Está
bien, relajate. Siga tu corazón’ (lit. ‘It’s okay, just relax. Follow your
heart.’). Poderia seguir-se a resposta de Tyler na forma ‘Quiero tanto, pero es difícil.’ (lit. ‘I want to, but it’s so difficult’).ix Esta solução
teria o poder de erradicar qualquer ambiguidade sobre a sexualidade
da primeira personagem, e relacioná-la com a reacção negativa às
propostas da segunda, uma dificuldade em integrar o impulso homossexual e a repugnância que sente pela relação sexual com outros
homens. Um processo similar poderia também ser usado na cena
seguinte de modo a clarificar o contexto e propósito da reunião do
grupo LGB e o significado dos símbolos de orgulho homossexual
que constam do cenário. Tal, por sua vez, permitiria assegurar que
eventual justaposição das imagens de Tyler e de Jeremiah (o activista homossexual) poderia ser igualmente apropriada tanto por uma
audiência boliviana como por uma americana.
Esta argumentação pretende assim sugerir que existe um papel a
cumprir pela reavaliação das fronteiras que regulam a transposição
de linguagem audiovisual na teoria contemporânea da tradução. Não
apenas cumpre uma função central de mediar soluções para os problemas surgidos na exportação de linguagens fílmicas alternativas
138
Uma experiência com a linguagem do
cinema: objectivos, efeitos e consequências
entre diferentes culturas, como serve igualmente como um método de ‘re-escrever’ o texto fílmico. Tal pode ajudar a aproximar as
audiências à cultura original do filme, tanto através de estratégias
de domesticação, que geram no espectador uma relação de empatia
e compreensão, como de estratégias de alteridade, que introduzem
noções e conceitos alternativos aos da cultura dos espectadores.
Conclusões
Limitações de espaço levaram a que, ao longo deste estudo, me
referisse apenas a um filme. Em todo o caso, creio que esta argumentação em redor de Sexual Dependency possa ter respondido às
questões que foram levantadas no momento da introdução. As novas
linguagens fílmicas não são necessariamente compreendidas pelas
audiências, especialmente para aquelas que não estão familiarizadas
com as culturas a que os filmes originalmente pertecem. As técnicas
através das quais essas linguagens se manifestam, tal como a do ecrã
dividido, podem, por seu turno, ser fragilizadas ou mesmo postas em
risco pelos processos de transposição de linguagem. Em todo o caso,
a tradução em ecrã pode cumprir um papel insubstituível na resolução dos problemas que têm origem na exportação de linguagens
cinemáticas alternativas entre culturas diferentes.
Assim, qual a relação dos realizadores e dos tradutores? Decerto,
seria injusto não considerar totalmente irrealista a expectativa de que
os realizadores utilizam as novas linguagens cinemáticas de modo
a adquirir um reconhecimento internacional e intercultural dos seus
filmes, algo que nunca pode, de resto, ser garantido com antecedência. Em todo o caso, creio que contar ‘efectivamente’ uma história
não passa apenas pelo ‘respeito pela audiência’40 mas também pelo
tradutor que em última instância permite que o filme chegue até ela.
Tal é particularmente significativo no caso dos realizadores envolvidos em filmes bilingues ou de coprodução que são naturalmente
destinados a uma distribuição em dois mundos linguísticos diferentes. Os realizadores deveriam, creio, questionar, em primeiro lugar,
o grau de eficiência das suas técnicas a um nível intercultural e, em
segundo lugar, se são passíveis de uma boa traducibilidade e assim
de uma recepção positiva a uma escala internacional.
139
Entretanto, enquanto a nossa sociedade se torna mais ‘confusa’
e mais ‘confundentes’ as variedades fílmicas de contar histórias,41
a capacidade dos tradutores de ecrã em apropriar e compreender,
com o mesmo grau de sofisticação, os códigos semióticos, verbais e
não-verbais (especialmente visuais), de que são compostos os textos
audiovisuais parece ganhar importância. Contudo, tornarem-se ‘leitores activos e iluminados’ do filme,42 exige tempo e a capacidade
fisiológica, etnográfica e psicológica de compreender as imagens
visuais (e o modo como estas são seleccionadas e combinadas) é
algo que tem de aprender-se a fazer.43 Não pode senão aplaudir-se o
surgimento de cursos de tradução em ecrã que, através da análise do
texto audiovisual e da teoria fílmica, providenciam uma resposta às
especificidades deste mundo particular da tradução. Assim, ainda é
cedo para avaliar o modo como serão reconhecidos pela indústria da
tradução, e o modo como a actividade se insere nos padrões genericamente normalizados da indústria do cinema.
Notas
G. Nowell-Smith (1998: 43); R. Maltby (1995: 113). 2 R. Maltby (1995:
112). 3 Cit. em Z. de Linde (1995: 10). 4 R. Allen (1995: 94). 5 R. Allen
(1995: 116). 6 R. Maltby (1995: 59). 7 Intitulado Dependencia Sexual, em
espanhol. 8 Uma orientação pode ser definida como ‘um esboço preliminar,
semi-dramatizado, no tempo presente, da peça dramatúrgica’ (Ph. Parker
1998: 45). 9 Disponível em http://cinemavaultreleasing.com.htm. 10 Apenas
na cena da violação, no fim do filme, é usada um formato convencional de
um único ecrã (1:35:17–1:37:54). 11 Uso o termo ‘estilo Hollywood’ para
referir os filmes que são produzidos fora de Hollywood mas que aderem,
narrativa e visualmente, às suas convenções. Ironicamente, o filme de ‘estilo Hollywood’ produzido em França, por exemplo, poderia, por sua vez,
ser considerado como ‘art-house’ nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha
pela simples razão de conter legendas (G. Nowell-Smith & S. Ricci 1998:
67). Por esta razão eu uso este termo bastante inconsistente (‘art-house’)
com alguma relutância, e mantenho o uso de comas ao longo do texto. 12 D.
Musair (2003: 1). 13 D. Fainaru (2003). 14 Sexual Dependency (0:00:00–
0:06:00). 15 Esta personagem não deve ser confundida com a personagem de cabelo louro que surge como modelo no cartaz publicitário, uma
norte-americana que intervém no quinto episódio do filme. 16 S. Viebrock
(2003). 17 J. Monaco (1995: 155). 18 A. López (1997: 19). Ana López, in
1
‘An “Other” History: The New Latin American Cinema’ discute uma concepção alternativa de ‘realismo’, em relação aos exemplares mais tardios
do Cinema Novo brasileiro. Aí, escreve, ‘realismo’ não é mais visto como
um processo de reprodução da superfície do mundo vivido’, mas antes a
explicação e a revelação dos seus ‘aspectos mais recônditos’ (1997: 19).
19
D. Andrew (1976: 209). 20 R. Maltby (1995: 398). 21 Sexual Dependency
(1:30:30–1:32:00). 22 Originalmente um símbolo de paz, a bandeira do
arco-íris é hoje normalmente associada ao ‘orgulho homossexual’. 23 Denis
Provencher sublinha, no seu artigo ‘Vague English Creole: Cooperative
Discourse in the French Gay Press’ (2004) que para alguns elementos da
comunidade ‘gay’ e ‘lesbian’ norte-americana a sua identidade sexual é tão
intensa que se vêm a si próprios como quase pertencendo a uma ‘etnia’ distinta. Como resultado, um ‘gay lobby’ altamemente politizado tem vindo a
emergir, a celebrar abertamente a homossexualidade (‘gay pride’), a exigir
a franqueza total (‘coming out’) dos seus membros [professos] e a lutar
por equidade de direitos em todos os domínios da vida pública e privada.
24
S. Paulson (2006: 14). 25 S. Peña (2004: 236). Deve ser-se cuidadoso,
contudo, a este respeito, e não simplificar em demasia a organização da
vida (homo)sexual na América Latina. Alguma investigação, como a de
P. Fry (1982), R. Lancaster (1992) e J. Carrier (1995) providenciou muita
documentação sobre o modo de articulação do desejo homossexual masculino. Em todo o caso, esta articulação deve ser vista como variável, de
lugar para lugar e entre épocas diferentes, e como derivando, em certos
(muitos) contextos, para um modo baseado na escolha do objecto sexual
e de concepções de identidade homossexual associadas (ver, por exemplo, J. Green 1999, Quiroga 2000, R. Parker 1999). Em resumo, devemos
estar cientes do fosso que, citando Green pode existir entre ‘a representação e a experiência social’ (1999: 8). 26 Gottlieb (1994: 104). 27 J. Días
Cintas, cit. em A. Remael (2004: 104). 28 O. Goris (1993: 163). 29 Gottlieb
(1994: 106). 30 Juntamento com o diálogo, o ‘script’ do filme contém notas adicionais que se referem às personagens e ao enredo, com a intenção
de inserir o diálogo no contexto, sublinhando as suas características mais
determinantes. 31 Sexual Dependency (00:32:41–0:35:18). 32 Linell, cit. em
A. Remael (2004: 10). 33 De acordo com Linell, uma personagem que fala
a maior parte do tempo numa sequência de diálogo possui predominância
quantitativa. Do mesmo modo, se uma personagem predominantemente introduz e mantém os tópicos e perspectivas de conversação possui também
predominância semântica (cit. em A. Remael 2004: 110). 34 Z. de Linde
& N. Kay (1999: 29). 35 Gottlieb (1994: 115). 36 Z. de Linde (1995: 12).
37
J. Días Cintas (2004: 23). 38 O. Goris (1993: 184). 39 Sexual Dependency
(1:30:30–1:31:08). 40 McKee, cit. em Cattrysse (2004: 43). 41 C. DegliEspositi (1998: 19, 24). 42 P. Zlateva (2004). 43 J. Monaco (2000: 152).
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Requiem for a Dream. Dir. Darren Aronofsky. Momentum Pictures. 2000.
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Time Code. Dir. Mike Figgis. Columbia Tristar. 2000.
Notas de tradução
Artigo original inédito em língua inglesa: ‘Experimenting with the language
of cinema: aims, effects and consequences (Rodrigo Bellott’s Dependencia
Sexual and translation)’. Tradução por Ana Francisca de Azevedo em 2009,
com revisão do autor. i Manteve-se o termo em inglês e prescindiu-se de utilizar o quase-equivalente português ‘argumento’ por parecer que não continha o tipo de sentido que o texto exige. ii No original inglês, ‘slumming’.
iii
No original inglês, ‘closeted’. iv No original inglês, ‘student Lesbian, Gay
and Bisexual support group’. v No original inglês, ‘a “coming out” encounter’. vi Em português existe uma gama diversificada (mesmo em poder
escatológico) para fazer equivaler ao inglês ‘fuck’ e, indirectamente, ao
boliviano ‘polvacho’. Neste contexto, o termo utilizado parece adequar-se
às características do texto original. vii Manteve-se o original inglês, por não
existir ainda uma expressão em português suficientemente estabilizada.
viii
Manteve-se o original inglês, por não existir uma expressão em português que retivesse a gama e relacionamento de significados ali presentes.
ix
Dado o carácter intertextual do filme, não se considera pertinente traduzir
as soluções de legendagem aqui propostas pelo autor deste estudo.
144
Corpo, Identidade e Linguagem
nas Cavernas de ʻMoon Palaceʼ
Joana Lima
(…) the inner and the outer could
not be separated except by
doing great damage to the truth.
PAUL AUSTER, Moon Palace
O espaço (…) é um espaço calculado
a partir de mim como ponto ou
grau zero da espacialidade. Eu
não vejo de acordo com o seu
invólucro exterior, vivo-o de dentro, estou
nele englobado. Seja como for, o mundo
está à minha volta, não à minha frente.
MAURICE MERLEAU-PONTY, O Olho e o Espírito
No panorama literário dos Estados Unidos, são várias as obras cuja
narrativa resulta de um desenvolvimento do tema da Viagem, são
vários os romances nos quais as imagens espaciais e o movimento
físico das personagens propiciam reflexões sobre a matriz mítica e
cultural na qual assenta o pensamento norte-americano. No plano
específico das representações espaciais propostas por Paul Auster,
a lição recíproca entre o espaço e o corpo contribui para sublinhar
a condição progressivamente fragmentária da identidade. Perceber
o corpo e a linguagem em Moon Palace implica, necessariamente,
pensar a Viagem e o Lugar: as personagens deste romance e as suas
histórias materializam o “eterno presentificado do futuro da promessa do lugar”, “a América como processo de realização, a América
Geografias do Corpo
como caminho, viagem ou ponte – numa palavra, a América como
sentido”.1 As viagens físicas protagonizadas por Marco Stanley
Fogg e Thomas Effing, na geografia urbana ou no deserto, e as suas
experiências nas cavernas de Central Park e do Utah são momentos
de exploração individual, trajectos nas coordenadas da história e do
mito, percursos pela escrita, procura de sentidos. Porque no seu corpo e na sua consciência, sempre e já indissociáveis do espaço em que
se movem, se cruzam o pensamento e a memória, o ser e o criar.
A caverna é lugar de fechamento, interiorização e identificação,
mas é igualmente abertura ao processo de integração do mundo; “[a]
organização do eu interior e da sua relação com o mundo exterior
é concomitante. Desse ponto de vista, a caverna simboliza a subjectividade em luta com os problemas da sua diferenciação”.2 Esta
relação entre o homem e o mundo, simbolicamente desenvolvida
na caverna, é já descrita no Livro VII de A República de Platão. De
acordo com a concepção de mundo de Platão, o homem move-se
entre duas realidades que oferecem caminhos distintos para a percepção e o entendimento dos fenómenos: a realidade inteligível, do
domínio do imutável, que existe em si mesma, independentemente de quaisquer representações humanas, e que reúne as ideias dos
objectos, e a realidade sensível, inscrita no domínio do plural, do
relativo, do variável e que se traduz em imagens apreendidas pelos
nossos sentidos. Na alegoria da caverna, Platão convoca estas duas
realidades, procurando estabelecer a distinção entre a essência e a
aparência, o mundo inteligível e o sensível. Os prisioneiros da alegoria platónica, condicionados pelo espaço em que se encontram e
quase imobilizados pelas correntes e grilhões, vêem apenas sombras
projectadas na parede da caverna. Sendo estas sombras a única materialização da realidade que conhecem, tomam-nas por verdadeiras
e o mundo das aparências é, assim, considerado real e absoluto. No
entanto, este mundo decorre da apreensão da realidade levada a cabo
pelos sentidos, sendo, por isso, e tal como nos explica o filósofo,
relativo, promotor de interpretações falsas, opondo-se ao mundo inteligível das ideias. Ludibriados pelos sentidos, os prisioneiros da
caverna possuem um conhecimento limitado e impreciso da realidade que os rodeia; sombras, suposições, ilusões são os elementos
146
Corpo, Identidade e Linguagem
nas Cavernas de Moon Palace
de que dispõem para o conhecimento de si e do universo que lhes é
exterior: “pessoas nessas condições não pensavam que a realidade
fosse senão a sombra dos objectos”.3
Se algum dos prisioneiros conseguisse libertar-se dos grilhões,
sair do espaço de aprisionamento e descobrir a luz exterior, aperceber-se-ia dos objectos existentes fora da caverna, dos quais apenas
conhecia as sombras, e estas sombras seriam gradualmente substituídas pelas formas perfeitas desses objectos: “Em primeiro lugar,
olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos, reflectidas na água, e, por
último, para os próprios objectos”.4 Todavia, a passagem do mundo
sensível para o mundo inteligível e o acesso a esta visão superior
não seriam imediatos, implicariam um processo de habituação e de
aprendizagem após a saída da caverna; a passagem das sombras dos
objectos para as formas perfeitas dos mesmos e a necessidade de
discernimento entre o mundo aparente e o mundo real traduziriam
um percurso difícil. O prisioneiro teria dificuldade em olhar para a
luz solar, não sendo capaz de fixar os objectos, não seria capaz de
nomeá-los, não os consideraria mais reais do que as sombras que
o haviam acompanhado até àquele momento, nem acreditaria estar
mais perto da realidade e da visão verdadeira; “precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior”.5 As sombras dariam lugar a imagens reflectidas, depois dar-se-ia o reconhecimento
dos objectos e, finalmente, o prisioneiro conseguiria enfrentar a luz
solar. Progressivamente, os objectos e as suas designações e o próprio sol integrariam o universo de referências do prisioneiro e, nesse
momento, ele reconheceria este seu novo conhecimento como o verdadeiro saber e consideraria o anterior como uma ilusão.
Se o mundo inteligível da ontologia platónica pressupõe a separação entre o corpo e esse Real superior, e se dentro da caverna do
filósofo se vive apenas a realidade ilusória – diz-nos Platão – dos
sentidos, o mesmo não se verifica no romance de Auster. Nas cavernas de Moon Palace, Fogg e Effing recuperam um lugar original e
de sentido(s), permitindo ao corpo e à consciência a descoberta, o
questionamento e a criação artística. Na reinvenção do território e
no processo tensional entre identidade e alteridade, Moon Palace
147
Geografias do Corpo
relata a experiência de se tornar um outro. Em Central Park e no
deserto do Utah, os dois viajantes submetem-se a um processo de
descorporização, de apagamento de identidade e de esvaziamento da
sua existência mítica e histórica, reassumindo, através da experiência da caverna, o seu estatuto corporal integrado num espaço-mundo
reescrito.
O lugar activa a memória e esta traz de volta a passagem do velho
continente para o novo território e a chegada ao espaço da Utopia
a haver. A imagem mítica do palácio dos sonhos é, no entanto, perturbada por interferências distópicas da história americana, as quais
subvertem e problematizam essa mesma história, questionando todo
um passado colectivo.6 Narrativas da América permeiam as memórias pessoais de Fogg e Effing e são reescritas neste centro de
mistério e iniciação: a descoberta e a exploração de territórios desconhecidos, Cristovão Colombo, a China que afinal era a América,
o oeste americano, o conflito com os Índios, a guerra do Vietnam,
armas, bombas, energia nuclear, exploração espacial e o mistério
lunar, música, baseball cruzam-se nas histórias individuais das personagens. “L’espace devient alors un cheminement spirituel ponctué
de rites initiatiques et le texte se transforme en un labyrinthe dans
l’immensité du continent américain”.7 No mesmo lugar, recuperam-se histórias sagradas e elementos textuais da literatura universal. Em Central Park e no Utah estão as palavras e as cores originais
e estes territórios neutros são também espaço de criação. Ao convocar estas linguagens originais e arquetípicas, a caverna assume
características iniciáticas para Fogg e para Effing, permitindo-lhes
uma viagem de exploração da palavra na escrita da sua própria vida
– acto de criação artística adivinhado nas palavras de Victor Fogg:
“every man is the author of his own life”.8
Central Park
Se o nome próprio constitui um princípio identitário, no caso do protagonista e narrador de Moon Palace esta identidade assenta numa
relação directa entre o nome, a viagem e o lugar: “Marco, naturally enough, was for Marco Polo, the first European to visit China;
Stanley was for the American journalist who had tracked down Dr.
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Corpo, Identidade e Linguagem
nas Cavernas de Moon Palace
Livingstone “in the heart of darkest Africa”; and Fogg for Phileas,
the man who had stormed around the globe in less than three months”.9 Fogg procede à desconstrução do seu nome, remetendo-o para
estas personalidades históricas, culturais e literárias, cuja identidade,
por sua vez, se concretiza na relação que as mesmas, pelos seus feitos, estabelecem com o espaço. O protagonista assume-se claramente como explorador e integra a viagem no seu próprio corpo:”travel
was in my blood, that life would carry me to places where no man
had ever been before”.10 Cedo se torna um novo pioneiro e, com a
ajuda do seu tio, reinventa a mítica conquista do oeste americano:
“we had developed a game of inventing countries together, imaginary worlds that overturned the laws of nature. Some of the better
ones took weeks to perfect, and the maps I drew of them hung in a
place of honor above the kitchen table”.11 O território a conquistar é
deslocado para o espaço mental da personagem: são as palavras e as
histórias, as lendas e os mitos de povos antigos narrados por Victor
Fogg que preenchem o imaginário do protagonista, oferecendo espaços de aventura e a projecção de novos mundos.
A morte de Victor Fogg faz com que esta ordenação infantil de
mundo seja fortemente abalada e substituída pela incerteza e pelo
vazio, todavia, a sua ausência vai acentuar a ligação do protagonista
com a viagem, o lugar e a palavra. Procurando evitar o confronto
com o caos que invade a sua realidade, entrega-se à leitura dos livros
que herda do seu tio e assume a sua própria expedição. As páginas
dos 1492 livros vinculam Fogg, logo à partida, à memória histórica,
a Cristovão Colombo, à descoberta da América e, embora fixem a
existência da personagem num lugar imaginado, circunscrevendo as
movimentações do seu corpo ao seu espaço mental, asseguram a
continuidade da sua educação enquanto explorador: “It was almost
like following the route of an explorer from long ago, duplicating
his steps as he trashed out into virgin territory, moving westward
with the sun, pursuing the light until it was finally extinguished”,12
antecipando e preparando o caminho para Central Park.
Neste parque urbano, Fogg encontra como que um grau zero da
espacialidade: “this was New York, but it had nothing to do with the
New York I had always kown. It was devoid of associations, a place
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Geografias do Corpo
that could have been anywhere”;13 embora ciente do traçado geográfico da cidade, o protagonista autonomiza o parque e apropria-se
mentalmente deste espaço, retomando o mito da terra prometida,
prestes a ser reinventado. E é neste território neutro que Fogg vive a
experiência da caverna: numa primeira fase, e de um ponto de vista
simbólico, o parque assume-se em toda a sua extensão como caverna, um “mundo em miniatura”14 concebido pelo protagonista; mais
tarde, a experiência da caverna é circunscrita a uma pequena gruta
descoberta por Fogg no mesmo parque, no momento em que a sua
extrema debilidade física e a doença o levam a procurar um abrigo.
Central Park oferece-se como espaço de espiritualidade e de introspecção, permite o isolamento e dá a este pioneiro urbano a possibilidade de explorar o território da sua interioridade:
It became a sanctuary for me, a refuge of inwardness against
the grinding demands of the streets. There were eight
hundred acres to roam in, and unlike the massive gridwork
of buildings and towers that loomed outside the perimeter,
the park offered me the possibility of solitude, of separating
myself from the rest of the world.15
Se as ruas nova-iorquinas são dominadas pelos corpos que se movem num tempo urbano marcadamente acelerado e que agem em
função de um conjunto de normas pré-determinadas, aceites e esperadas – “In the streets, everything is bodies and commotion, and like
it or not, you cannot enter them without adhering to a rigid protocol
of behaviour”,16 em Central Park, os corpos adquirem novas formas
e expressões, assumem a liberdade de um movimento exclusivamente sensorial: “People smiled at each other and held hands, bent
their bodies into unusal shapes, kissed”.17 É neste contexto espacial
que se inicia o processo de mudança identitária e corporal de Fogg:
“I felt that I was blendind into the environment”;18 a sua integração
neste ambiente faz com que a consciência de si se defina apenas
interiormente, a construção de identidade parte de dentro, sem interferência exterior: “In the park, I did not have to carry around this
burden of self-consciousness. It gave me a threshold, a boundary, a
way to distinguish the inside and the outside. If the streets forced me
to see myself as others saw me, the park gave me a chance to return
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Corpo, Identidade e Linguagem
nas Cavernas de Moon Palace
to my inner life, to hold on to myself purely in terms of what was
happening inside me”.19
Numa lógica de inversão, Central Park permite-lhe não só não ser
visto, e consequentemente não ter a sua identidade definida através
dos olhos dos outros habitantes da cidade, como também lhe permite
assumir o acto de ver o Outro, explorando os seus próprios sentidos:
“I spent a good deal of time just watching people: studying their
gestures and gaits, thinking up life stories for them, trying to abandon myself totally to what I was seeing”,20 “if this time was going
to have any meaning for me, I would have to live in it as fully as
possible, shunning everything but the here and now, the tangible, the
vast sensorium pressing down on my skin”.21 Esta relação directa
que Fogg desenvolve com o espaço físico, bem como a decisão de
centrar a sua percepção do mundo na experiência sensorial, fazem
com que as viagens realizadas através dos livros e das histórias por
eles contadas sejam agora transferidas para um cenário natural, com
pessoas reais, transformando o protagonista em autor de novas histórias.
No seu texto O Olho e o Espírito, Maurice Merleau-Ponty fala-nos
de visão e de entendimento do mundo. Argumenta que é dentro desse mesmo mundo que aprendemos a vê-lo e a entendê-lo: nós e o
mundo não estamos em espaços diferentes. Propõe uma ontologia
fundada no eu, mas não um eu que existe de modo isolado e que
olha os objectos que o rodeiam como exteriores a si, não um eu
entendido enquanto ser acabado, mas um eu que existe pela relação
contínua que estabelece com esses objectos, pela relação que mantém com o mundo no qual está englobado. E esta relação do homem
com o mundo é, segundo Merleau-Ponty, primordialmente corporal, ou seja, o ponto de partida do homem-no-mundo é o seu corpo
nesse mesmo mundo: “Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão
ali perante nós, só lá estão porque despertam um eco no nosso corpo, porque ele as acolhe”.22 A percepção realizada no e pelo corpo
na sua abertura ao mundo é realizada porque o corpo é no-mundo,
porque corpo e consciência estão sempre e já no mundo. O homem
vive a percepção e consciência de si mesmo no-mundo a passo com
a percepção e consciência do próprio mundo, ou seja, a criação da
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Geografias do Corpo
identidade individual é indissociável da construção da identidade do
mundo. Mais ainda, há uma redefinição permanente da identidade de
ambos, uma dinâmica que transforma continuamente a realidade em
espaço de possibilidades. O corpo-no-mundo recebe as impressões
de tudo quanto o rodeia e torna-as sentidos, sem que haja limite para
este processo de significação. Esta indissociabilidade corpo/mundo
proposta por Merleau-Ponty fragiliza o estatismo das categorias de
sujeito e de objecto, entendidos numa perspectiva não relacional,
reabilitando, assim, o corpo e o sensível, bem como a capacidade
humana de gerar sentido.
A crescente identificação de Fogg com o espaço em que se movimenta assume grande importância na sua educação artística, contudo, e num processo inverso, resulta na debilidade física cada vez
mais acentuada da personagem e no seu apagamento corporal progressivo: “It accentuated my thinness to an appalling degree. My
ears stuck out, my Adam’s apple bulged, my head seemed no bigger
than a child’s. I’m starting to shrink, I said to myself, and suddenly
I heard myself talking out loud to the face in the mirror”.23 A sua
consciência contempla uma cara no espelho que já não é a sua, o
duplo reflectido afasta-se do seu referente, a consciência de Fogg
não reconhece esta sua nova identidade corporal. Na sequência da
exploração sensorial levada ao extremo por Fogg, o seu corpo, ainda
que diminuído e sem forças, sobrepõe-se à sua consciência e determina o seu afastamento total da sociedade. Num movimento marcadamente animal, num regresso ao território selvagem inabitado, na
ausência primitiva do humano e do social, Fogg refugia-se, então,
num espaço que algumas rochas desenham dentro do parque: “The
rocks formed a natural cave, and without stopping to consider the
matter any further, I crawled into this shallow indentation”.24 Nesta
pequena caverna, situada na grande caverna simbólica que é Central
Park, a debilidade física e a doença enviam-no para um estado de
quase inconsciência que o prende aos reflexos da sua degradação
física progressiva, a sonhos de intensidade febril e a visões em constante mutação:
Most of the time I was barely conscious and even when I
seemed to be awake, I was so bound up in the tribulations
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Corpo, Identidade e Linguagem
nas Cavernas de Moon Palace
of my body that I lost all sense of where I was. I remember
long bouts of vomiting, frenzied moments when my body
wouldn’t stop shaking, periods when the only sound I heard
was the chattering of my teeth. The fever must have been
quite high, and it brought ferocious dreams with it – endless,
mutating visions that seemed to grow directly out of my
burning skin. Nothing could hold its shape in me.25
A dinâmica entre o espaço, o corpo e a linguagem continua a demonstrar uma relação implícita de indissociabilidade. No momento
em que Fogg, no seu estado alucinatório, se depara com a placa de
Moon Palace, não só contextualiza espacialmente o nome do restaurante, ao projectar o brilho das suas letras no céu, como também
molda a palavra, desmembrando-a, desintegrando algumas das suas
letras de néon, acentuando a plasticidade da linguagem através da
sua própria elasticidade corporal:
The pink and blue neon letters were so large that the whole
sky was filled with their brightness. Then, suddenly, the letters
disappeared, and only the two os from the word Moon were
left. I saw myself dangling from one of them, struggling to
hang on like an acrobat who had botched a dangerous stunt.
Then I was slithering around it like a tiny worm, and then I
wasn’t there anymore.26
Este elemento plástico das palavras é mantido por Fogg após a
saída da caverna; num corpo ainda em estado de semi-consciência,
repete-as de modo obsessivo, reduzindo-as a sons, esvaziando-as de
sentido: “I remember pronouncing the words Indian Summer over
and over to myself, saying them so many times that they eventually
lost their meaning”27 e, no mesmo delírio febril, transforma a fronteira urbana em cenário histórico da fronteira original:
Then, without any sense of falling asleep, I suddenly began
to dream of Indians. It was 350 years ago, and I saw myself
following a group of half-naked men through the forests of
Manhattan. It was a strangely vibrant dream, relentless and
exact, filled with bodies darting among the light-dappled
leaves and branches. A soft wind poured through the foliage,
muffling the footsteps of the men, and I went on following
them in silence, moving as nimbly as they did, with each
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Geografias do Corpo
step feeling that I was closer to understanding the spirit of
the forest.28
Na tese de Platão, as sombras e as imagens dos homens e dos objectos, inscritas no real aparente, pressupõem a existência das suas
próprias formas ideais, das quais participam parcialmente; para o
filósofo, estas formas ideais dos objectos são mais reais do que as
suas sombras projectadas na parede da caverna. Mas será que podemos afirmar que as sombras são menos reais do que as formas
perfeitas dos objectos? Será possível determinar o grau de realidade
de ambas? O mundo sensível da alegoria platónica assenta a sua
existência na relação que os prisioneiros da caverna com ele estabelecem. Integrados no seu espaço limitado e no seu universo de referências, os prisioneiros aceitam como reais as projecções que vêem
diariamente, é nelas que se reconhecem e que se definem. Não sabem que os ecos pressupõem sons que os antecedem; desconhecem
também que a origem destes ecos não se encontra nas sombras, mas
nas vozes das pessoas que passam do lado exterior à caverna, fora
do alcance da sua visão, acreditando, por isso, na realidade destes
duplos de sons e destas imagens bidimensionais e monocromáticas.
No entanto, são capazes de distinguir as diferentes sombras projectadas e os vários ecos que reverberam na caverna, associando-os à
linguagem que conhecem e que é sentido no seu mundo subterrâneo;
havia “honras e elogios” entre si, “prémios para o que distinguisse
com mais agudeza os objectos que passavam, e se lembrasse melhor
quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos”, havia também quem “fosse mais
hábil em predizer o que ia acontecer”.29
A existência do real inteligível, por sua vez, decorre da relação
que o prisioneiro que sai da caverna estabelece com este mundo superior, resulta do modo como o prisioneiro o olha e o lê. Os objectos
deste novo mundo não integram, de facto, o universo de referências
do prisioneiro e, por esse motivo, ele não é capaz de um reconhecimento imediato. Não quer isto dizer, no entanto, que o prisioneiro
parta de um grau zero do conhecimento; pelo contrário, ele faz-se
acompanhar de um universo de referências que constituem e são
constituídas pelo mundo da caverna. Cada novo objecto vai, então,
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Corpo, Identidade e Linguagem
nas Cavernas de Moon Palace
ser experimentado com base numa linguagem e conhecimento anteriores, podendo o seu sentido resultar da semelhança ou da diferença, da reiteração ou da exclusão. Os sentidos prévios, os objectos
e as experiências anteriores interferem nos novos sentidos e integram-nos, não existindo estes últimos em absoluto. A experiência do
prisioneiro no mundo exterior à caverna – o seu modo de olhar, de
interpretar o real, de encontrar um sentido para os novos objectos que
observa – não pode ser entendida se dissociada da experiência da caverna e dos sentidos a ela inerentes. Seguindo a narrativa platónica,
o mundo inteligível existe porque o prisioneiro a ele o acede. Existe
porque o prisioneiro gradualmente adquire a capacidade de vê-lo.
Existe porque o prisioneiro faz uma leitura do mesmo. Existe porque
o prisioneiro tem a experiência prévia da caverna. Protagonista de
um processo de adaptação gradual, um processo de conhecimento, o
prisioneiro que acede a este mundo superior conhece-o sendo-nele e
é na sua mundaneidade e temporalidade que o prisioneiro e o mundo
se redefinem mutua e simultaneamente.
Na verdade, a caverna e as sombras criadas pela fogueira assumem
para os prisioneiros que nela se encontram exactamente o mesmo nível de realidade que o espaço exterior e os seus objectos iluminados
pela luz solar vão assumir para o prisioneiro libertado, a partir do
momento em que este consegue vê-los e (re)conhecê-los, a partir do
momento em este que é-no-mundo-com-eles. A acessibilidade aos
dois mundos e a integração das suas imagens decorrem, em escala
igual, do efeito da luz, da capacidade de visibilidade e da possibilidade humana de sentir, interpretar e gerar sentido. As formas perfeitas dos objectos, sob a égide do absoluto, do ideal, têm, afinal, a sua
existência narrada com base num ponto de vista, num olhar, e esta
existência corporal do prisioneiro, a sua visão e o seu conhecimento inscrevem-se no domínio do subjectivo. Mas se a subjectividade
intrínseca ao olhar do prisioneiro nos sugere a impossibilidade de
termos um acesso não mediado à realidade, fragilizando a noção de
absoluto pretendida por Platão, não deixa, no entanto, de evidenciar
a dinâmica comunicacional que preside ao ser-no-mundo.
Do mesmo modo, a experiência de Fogg na caverna de Central
Park prova que o homem e o mundo não existem em absoluto, en-
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Geografias do Corpo
quanto duas entidades desligadas uma da outra. O que se observa,
pelo contrário, é uma relação dialéctica entre o ser, corporal e espiritual, o espaço e a linguagem, entre o ser e o que é visionado em
determinado contexto espacial, entre o ser e o mundo no qual o ser é.
O protagonista de Moon Palace recupera o espaço americano original, entregando-lhe o seu corpo, e é nesse espaço que brinca com as
formas das palavras, que as esvazia de sentido, que procura as suas
infinitas correspondências, reescrevendo textos históricos, míticos e
literários.
Utah
A caverna do deserto do Utah é cenário de renascimento para Thomas
Effing. Neste espaço inexplorado, Effing permite-se adquirir e gozar
de um direito de alteridade, assumindo uma nova identidade e ocupando o lugar de outrem: “he would simply pretend to be someone
he was not”.30 A vastidão do território e o poder sentido no seu silêncio e vazio fazem com que a personagem se sinta absorvida pelo
espaço exterior: “The land is too big out there, and after a while it
starts to swallow you up”.31 Contudo, não é apenas o território que
reclama a personagem para si próprio, o movimento inverso ocorre
quase em simultâneo, isto é, o espaço passa a definir-se apenas nos
termos da consciência de Effing: “There is no world, no land, no
nothing. It comes down to that, Fogg, in the end its all a figment. The
only place you exist is in your head”.32 No entanto, e contrariamente a Fogg, Effing não deixa que o seu corpo fique debilitado: “He
therefore set about organizing his life in the strictest possible way,
doing everything he could to stretch out the time he would spend
there: limiting himself to one meal a day, laying in an ample supply
of firewood for the winter, keeping his body fit”.33
Muito embora a experiência de Effing no deserto do Utah se traduza num mundo de infinitas possibilidades – “it was a miniature pocket of life in the midst of overpowering barrenness”,34 “everything
would be possible for him in this place”35 – não deixa de ser uma
experiência de solidão extrema para a personagem. George Ugly
Mouth, um possível descendente de americanos nativos, tal como
o seu nome e a sua descrição sugerem, é a única visita que Effing
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Corpo, Identidade e Linguagem
nas Cavernas de Moon Palace
recebe durante a sua estadia no deserto. Não obstante o facto de esta
visita assentar num equívoco, pois Ugly Mouth toma Effing pelo
eremita original, Effing tem a possibilidade de reescrever a história
da colonização, num espaço também ele reinterpretado, através das
histórias, nem sempre coerentes, contadas por Ugly Mouth: “a story
about the Navaho reservation would suddenly turn into a story about
a drunken brawl in a saloon, which would then turn into an excited
account of a train robbery”.36
A educação artística de Effing na caverna do Utah é iniciada através do registo disciplinado e metódico das provisões necessárias à
sua sobrevivência: “he made charts and schedules for himself, and
each night before going to bed he wrote down meticulous accounts
of the resources he had used during the day, pushing himself to maintain the most rigorous discipline”.37 A este registo sucede o desenho
e, em seguida, a pintura:
One night, sitting with a pencil in his hand and writing up
his brief report of the day’s activities, he suddenly started
to sketch out a little drawing of a mountain on the opposite
page. Before he even realized what he was doing, the sketch
was finished. It took no more than half a minute, but in that
abrupt, unconscious gesture, he found a strength that had
never been present in any of his other work. That same night,
he unpacked his art supplies, and from then until his colors
finally ran out, he continued to paint, leaving the cave every
morning at dawn and spending the entire day outside. It
lasted for two and a half months, and in that time he managed
to finish nearly forty canvases.38
A arte permite a Effing o conhecimento dos objectos do mundo,
assim como o seu posicionamento no mesmo. Vida e arte, real e imaginário, facto e ficção coexistem nos seus registos de mundo:
The true purpose of art was not to create beautiful objects,
he discovered. It was a method of understanding, a way
of penetrating the world and finding one’s place in it, and
whatever aesthetic qualities an individual canvas might have
were almost an incidental by-product of the effort to engage
oneself in this struggle, to enter into the thick of things.
He untaught himself the rules he had learned, trusting in
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Geografias do Corpo
the landscape as an equal partner, voluntarily abandoning
his intentions to the assaults of chance, of spontaneity, the
onrush of brute particulars. He was not longer afraid of the
emptiness around him.39
Effing estabelece uma harmonia entre a paisagem e as formas iniciais de expressão humana; as suas pinturas recuperam cores rupestres, primitivas: “the pictures he produced were raw, he said, filled
with violent colors and strange, unpremeditated surges of energy,
a whirl of forms and light”.40 Vida e arte fundem-se nas paredes da
caverna que ocupa e nos objectos do mundo que a preenchem:
He worked on his second cycle of landscapes with even
greater intensity than the first, and when all the backs were
finally covered, he began painting on the furniture inside
his cave, frantically inscribing his brushstrokes onto the
cupboard, the table, and the wooden chairs, and when all
these surfaces were covered as well, he squeezed out the last
bits of color from the shrivelled tubes and began work on the
southern wall, sketching the outlines of a panoramic cave
painting. It would have been its masterpiece, Effing said, but
the colors ran dry when it was only half-finished.41
Já sem as tintas necessárias para continuar a pintar, Effing transfere a sua experiência de observação e de representação de mundo
para a escrita. Os registos ordenados de mundo, anteriormente construídos através da imagem, resultam agora da relação da personagem com a palavra: “in one notebook he recorded his thoughts and
observations, attempting to do with words what he had previously
been doing in images, and in another he continued with the log of his
daily routine, maintaining an exact account of his expenditures”.42
A relação que Effing estabelece com a palavra, o conhecimento meticuloso e o domínio progressivo que possui da mesma tornam possível à personagem uma organização das narrativas orais de George
Ugly Mouth. Effing recolhe factos de narrativas imprecisas e incompletas, procurando ultrapassar a omissão e alteração da sequência
cronológica dos acontecimentos relatados, e tenta reorganizá-las de
forma unificada.
158
Corpo, Identidade e Linguagem
nas Cavernas de Moon Palace
Como a leitura de Moon Palace nos permite observar, esta narrativa de Effing e as palavras mais ou menos ordenadas que ocupam
o seu espaço mental são transmitidas a Fogg para que este as torne
um novo texto. Facilmente podemos perceber que a veracidade da
narrativa não é relevante para Fogg: a personagem não só não questiona Effing no que diz respeito a essa mesma veracidade como releva as suas oscilações entre facto e ficção, real e imaginário. Fogg
centra a sua atenção na verdade artística, na verdade da imagem e da
palavra que registam o mundo contado por Effing: “no matter how
great an artist he might have been, Julian Barber’s paintings could
never match the ones that Thomas Effing had already given to me. I
had dreamed them for myself from his words, and as such they were
perfect, infinite, more exact in their representation of the real than
reality itself”.43
Sendo histórico e cultural, o ser humano é primordialmente corporal: de modo imperceptível e na sequência de uma quase simultaneidade de acções, o nosso corpo percepciona o que nos rodeia,
respondendo de imediato aos estímulos que recebe, e antecipa a
intervenção seguinte da nossa consciência. Pessoal e socialmente
somos permanentemente transformados enquanto sujeitos e o espaço e o tempo são redefinidos dentro desta dinâmica relacional que
altera o nosso sentido de presença corporal e existencial perante nós
mesmos e o mundo. Através da sua visão, do seu olhar, do seu corpo, e integrado na linguagem, o homem relaciona-se com o real que
observa e que projecta, na sua constante procura de sentido – uma
procura de sentido para o ser que se funde com a procura de sentido
para o real. “A visão não é um certo modo do pensamento ou da presença de si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo,
de assistir de dentro à fissão do Ser, no final da qual, somente, me
fecho sobre mim”.44 A “imagem do mundo” corresponde, então, à
totalidade da imagem que o homem projecta ao procurar registos
ordenados desse mesmo mundo. As imagens são, então, palavras
que fazem parte do nosso quotidiano, intervêm nos processos de significação nos quais participamos, contextualizam a nossa construção
como sujeitos, modelando o nosso princípio de identidade, enquadram a nossa experiência, asseguram-nos o sentido do Outro e o lu-
159
Geografias do Corpo
gar que ocupamos no mundo. Enquanto seres-no-mundo precisamos
de construir registos ordenados desse mesmo mundo. A origem do
sentido e da significação são, assim, deslocadas para o domínio do
corporal, assumindo que logo num primeiro momento o corpo humano desenvolve estruturas de espacialidade, de temporalidade e de
sentido. Questionar a realidade, o seu sentido, a relação que estabelecemos com ela, pressupõe a interpretação e a criação. Interpretamos
e criamos o que nos rodeia, o que vemos. Interpretamos e criamos as
imagens, as palavras que nos envolvem.
Em Moon Palace, os sistemas de percepção e representação de
mundo de Fogg e Effing modificam-se; redefinem-se as coordenadas
espaciais e temporais das personagens, reposicionam-se os seus corpos e os seus sistemas de significação, recriam-se os seus sentidos de
estar no mundo: “I felt as though I were looking down to the bottom
of myself, and what I found there was more than just myself – I
found the world”.45 Nesta sua viagem por textos e contextos americanos, Fogg e Effing reagem ao caos e à distopia, ao mito esvaziado
pela própria história. Cientes de si-no-mundo, recolhem impressões
da sua experiência nesse mesmo mundo e recuperam narrativas míticas e históricas que integram na sua própria de vida e no universo
ficcional. “Moon Palace est d’abord une expérience du savoir-voir,
savoir-décrire, un va-et-vient entre parole et image, lisible et visible,
le monde sensible et la pensée du monde”.46
Se as sombras da alegoria platónica traduzem o modo como nos
constituímos no nosso mundo e como constituímos o mundo para
nós, também se definem na linguagem e tal acontece precisamente
porque o homem – ser-no-mundo – é corpo e é linguagem. Assentes
na mundaneidade, temporalidade, cultura, as sombras são portadoras
de sentido, são referentes do real, são construções do ser-com-os-outros-no-mundo. Nesse sentido, as sombras são reais. No interior das
cavernas de Moon Palace recordam-se imagens e palavras, sombras
e memórias e, através de cores, caracteres e sons oraculares, escreve-se um novo tecido textual. Se a realidade não testemunha a existência da caverna, prevalece a experiência do corpo e da linguagem
dos artesãos da imagem e da palavra: “Even if there wasn’t an actual
cave, there was the experience of a cave”.47
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Corpo, Identidade e Linguagem
nas Cavernas de Moon Palace
Notas
M. I. Santos, (1987: 163). 2 J. Chevalier e A. Gheerbrant (1982:
180). 3 Platão (1990: 318). 4 Platão (1990: 319). 5 Platão (1990: 319).
6
Linda Hutcheon considera que a ficção pós-modernista demonstra
consciência do carácter construído da história. Textos e contextos
do passado são recuperados e problematizados; a narrativa histórica
não é negada, mas é questionada e subvertida (L. Hutcheon 1989:
3). O modo como a história é reescrita é entendido por Hutcheon
como uma reconstituição irónica da mesma, noção subjacente ao
seu conceito de metaficção historiográfica: “historiographic metafiction works to situate itself within historical discourse without surrendering its autonomy as fiction” (L. Hutcheon 1989: 4). 7 F. Gallix
(1996: 7). 8 P. Auster, Moon Palace (7). 9 Moon Palace (6). 10 Moon
Palace (6). 11 Moon Palace (6). 12 Moon Palace (22). 13 Moon Palace
(56). 14 Moon Palace (63). 15 Moon Palace (56). 16 Moon Palace
(56). 17 Moon Palace (57). 18 Moon Palace (57). 19 Moon Palace (5758); 20 Moon Palace (63). 21 Moon Palace (63). 22 M. Merleau-Ponty
(2006: 23). 23 Moon Palace (67). 24 Moon Palace (69). 25 Moon
Palace (69). 26 Moon Palace (69-70). 27 Moon Palace (70). 28 Moon
Palace (70). 29 Platão (1990: 320). 30 Moon Palace (167). 31 Moon
Palace (156). 32 Moon Palace (156). 33 Moon Palace (169). 34 Moon
Palace (167). 35 Moon Palace (167). 36 Moon Palace (175). 37 Moon
Palace (169). 38 Moon Palace (169-170). 39 Moon Palace (170).
40
Moon Palace (170). 41 Moon Palace (171). 42 Moon Palace (171).
43
Moon Palace (232). 44 M. Merleau-Ponty (2006: 65). 45 Auster
(1992: 144). 46 Louvel (1996: 35). 47 Moon Palace (276).
1
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163
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
Teresa Mora
Em “La connaissance comme exploration et comme conquête”
Judith Schlanger afirma claramente que a linguagem do conhecimento é, antes de mais, espacial e territorial, associada à exploração
e à conquista: “(...) trata-se de avançada espacial, de descoberta e de
reconhecimento do território, de acção de tomar posse, de instituição, de exploração e de dominação.”1
Nesta acepção, e reportando-se à Crítica da Razão Pura de Kant,
a autora chama a atenção para o facto da “geografia da razão”, que
representa para este filósofo a conquista de um território do conhecimento, evidenciar tensão entre “os seus dois poderes constitutivos:
o seu desejo de ir para fora, mais longe, para além dos limites, e a
sua necessidade de ordem, de estabilidade, de possessão legítima e
de limites.”2
Inscrita neste quadro de pensamento, começarei por expor sucintamente dois dos argumentos através dos quais a autora sustenta a
natureza espacial e territorial do saber. O primeiro, relativo ao conhecimento científico, levar-nos-á a reconhecer, em diversos planos
da sua prática, a nossa linguagem territorial, evidenciada no uso
que fazemos de várias metáforas do saber e da sua aquisição. Pelo
segundo argumento seremos reenviados à Crítica da Razão Pura,
da qual Schlanger nos oferece uma elucidativa síntese da meditação de Kant sobre o espaço do saber, permitindo-nos, deste modo,
compreender a linguagem espacial do conhecimento num “cenário
Geografias do Corpo
territorial”3 no qual a ambiguidade constitutiva da razão se exerce
e se explicita.
Depois, informada por vários autores, irei registar algumas impressões territoriais do conhecimento científico academicamente
instituído. Neste cenário da razão, refiro muito pontualmente o corpo para anotar que, ainda hoje, continuamos a representá-lo como
elemento nocivo ao valor de pretensa objectividade do conhecimento científico; ainda hoje, persistimos em apresentá-lo como agente
e receptáculo de emoções e de sentimentos capaz de corromper a
própria crença no valor de racionalidade do conhecimento científico. Numa cultura racional – como é a nossa – o corpo circunscreve,
por conseguinte, um problema específico: o da sua articulação com
a razão.
Com vista a sublinhar que só por intermédio de um jogo de ilusionismo é possível retirar a forma racional do fundo corporal dos nossos percursos de conhecimento científico, irei, então, abordar uma
utopia social (La Terre Australe connue) onde os habitantes da sociedade imaginada (em 1676) pelo seu autor (Gabriel de Foigny) são
educados para se conduzirem exclusivamente pela razão. Se, como
afirma Ricoeur, é função da utopia “expor o hiato de credibilidade
em que todos os sistemas de autoridade excedem (...) tanto a nossa
confiança neles como a nossa crença na sua legitimidade”,4 no texto
que aqui apresento, a utopia de Foigny é por mim assumida no seu
valor cognitivo e hiperbólico. Tratar-se-á de demonstrar que a falha
de credibilidade da cultura racional é, afinal, a sua (in)capacidade de
velar pela natureza-morta do(s) corpo(s).
Apontamentos da linguagem espacial e territorial da razão
Transportando-nos para as nossas metáforas correntes do saber e da
sua aquisição, Schlanger leva-nos a reconhecer a utilização de todo
um conjunto de noções que são expressivas de uma linguagem territorial: “falamos de expansão, de extensão, de abertura, de limites,
assim como de domínio ou de campo”.5
No plano de fundação de uma nova disciplina do saber, a nomeação
de um território, neste caso disciplinar, é instaurada pela construção de metáforas delineadoras de conceitos que, por sua vez, ope-
166
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
ram como marcadores de “possessão de uma terra desconhecida”.6
Pense-se – a título ilustrativo – que a metáfora do organismo, central
no pensamento sociológico clássico sobre a ideia de sociedade, subsiste na actualidade, nomeadamente na noção de “organizações” que
funda o terreno disciplinar da Sociologia das Organizações.
Consideradas na sua valência excêntrica, as metáforas funcionam
como marcadores de separação de um terreno disciplinar de outros
terrenos disciplinares cuja delimitação já adquirida é acentuada e defendida pela força centrífuga da distinção conceptual; tomadas pela
sua valência concêntrica, operam como marcadores centrais, dado
viabilizarem no interior de um terreno disciplinar o investimento de
sentidos que sejam consonantes com o quadro de pensamento aí fixado, prescrevendo, deste modo, a possibilidade legítima de circular
dentro das “marcas de uma jurisdição”.7 A este propósito, Richard
Brown permite salientar a dupla valência territorial das metáforas,
ao afirmar que – tal como as outras ciências – a sociologia é “(...)
um campo de batalha onde uma série de metáforas divergentes ou
convergentes disputam o controlo, cada uma de entre elas tendo o
poder de resistir, a autoridade, a organização e o desejo de traduzir
na sua própria linguagem o vocabulário das suas rivais.”8
No plano da experiência individual e rotineira de aquisição do conhecimento, algumas das noções atrás referidas (extensão, abertura,
limites...) são significativas do que Schlanger designa pelos “tempos
principais da experiência de compreender”.9 Os momentos de abertura, reportados – a título ilustrativo – à acção de ler, dão-se – por
exemplo – quando uma página de um texto já conhecido nos surge
como “uma nova página da faculdade de compreender”,10 o que quer
dizer que a apercebemos como tendo um sentido diferente e inédito.
São esses momentos “onde ‘outra coisa’ se mostra”11 que nos dão
“o sentimento de descobrir”.12 E é por isso que eles são vivenciados
como “momentos vivos do modo de sentir inaugural”.13
No plano da investigação científica a autora distingue duas modalidades de trabalho intelectual consoante o modo de actuação do
sujeito de conhecimento consiste em “cobrir o mapa” ou em “engendrar o mapa”.14 No primeiro caso, que corresponde à maioria das
situações, o sujeito vai cobrindo o terreno de pesquisa com base em
167
Geografias do Corpo
quadros de sentido ou categorias já dados, pelo que o resultado é o
de precisar e completar “o mapa enciclopédico do saber”.15 Trata-se,
portanto, de alargar o espaço do saber “de uma maneira puramente
aditiva”.16 No segundo caso, pelo contrário, o sujeito constrói e reconstrói o espaço cognitivo de modo activo e criativo, isto é, a partir
das suas categorias.
A distinção destas duas modalidades de trabalho intelectual leva-nos, contudo, à questão das suas relações. A este respeito,
Schlanger faz realçar que, muito embora seja frequente representarmos a démarche inaugural como a mais solitária das duas, qualquer
ponto de vista inovador está necessariamente conectado com o espaço organizado do saber. Em que termos? Em termos territoriais,
pois cada uma das duas modalidades de trabalho intelectual referidas – reprodutiva e inaugural – “pretende o espaço e o domínio, cada
uma pretende o reino e a dominação”.17
A conquista de um território de conhecimento revela-se, por isso,
indissociável da tensão entre errância e imobilização, à qual aludira
Kant, no século XVIII, ao reflectir sobre a geografia da razão. Neste
cenário territorial “tudo começa por uma transgressão” aberta pelo
desejo de deixar “o solo firme”, de não permanecer num “campo
fechado”.18 É este desvio da razão, subjacente à aventura espacial do
conhecimento, que vem, no entanto, a constituir “o princípio do seu
embaraço intelectual e da sua desventura existencial”,19 pois toda a
travessia de “razão errante” – condenada a “errar no pensamento, a
vaguear “no mar da insegurança”20 – é acompanhada de elementos
adversos ao que constitui a sua necessidade de ordem: tormentos,
tempestades, nuvens de ilusão, abismos de confusão...21
A errância da razão tem, portanto, o seu reverso, na imobilização. “O que se torna necessário ambicionar é, por conseguinte, ficar
imóvel e estável a fim de edificar uma construção legítima e duradoira sobre um solo firme num campo fechado.”22 É esta vontade de
fixação que se afigura indissociável do que poderei designar pelo
empreendimento científico da razão:
Entra-se aí [na via para permanecer no reino da ciência] dando
um único e primeiro passo – o justo passo na boa direcção –,
e tudo se encontra fundado e instituído sem dificuldade. Num
168
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
passo está-se, desde esse momento, instalado no sistema
completo da disciplina [...].23
Mas – como mais adiante veremos na utopia de Foigny – a própria
possibilidade de estabilização da razão tem subjacente a errância do
movimento que a ela conduz...
Impressões territoriais do conhecimento científico
Detenhamo-nos por enquanto no registo de alguns dos modos mais
recorrentes de expressão territorial do conhecimento científico.
Apresento-os sob a forma de uma lista de dez impressões pessoais que enuncio a partir da minha resistência – enquanto académica
– aos mandamentos que regulam o culto da ciência.
1. A expulsão do sujeito de enunciação do discurso científico, estreitamente associada ao receio de que certas facetas do “eu”, designadamente o corpo, as emoções, os sentimentos, façam perigar a
possibilidade de alcançar o conhecimento.24
2. A submissão daquilo a que podemos chamar “mundo” ou o “horizonte da compreensão”25 do cientista ao “conceito normativo de
objecto” como “condição de possibilidade para toda a actividade
científica”.26
3. A circunscrição da ciência a uma actividade com limites institucionais, sociais e cognitivos bem precisos, de que a noção kuhniana de “paradigma” partilhado por uma “comunidade científica”
e decorrente da instauração da “ciência normal” constitui um nítido
exemplo.27
4. A deslocalização do discurso científico de outros modos de
conhecimento contidos na sua sistemática interna, designadamente
o senso comum, a ideologia e a utopia, e a sua redelimitação como
objectos de discurso científico e/ou epistemológico.
5. A socialização do cientista social – pelo menos a do(s)
sociólogo(s) – adscrita a três rituais de iniciação ao conhecimento científico – científico porque rompe, científico porque constrói
e científico porque verifica – sem os quais não é admissível circular na cidadela da ciência. Dito de outro modo, há que intentar a
“ruptura” com os obstáculos ao conhecimento científico-social, há
169
Geografias do Corpo
que construir “objectos de análise” e “teorias explicativas”, há que
verificar a “validade dessas teorias pelo confronto com a informação empírica”.28 E, nesse processo de “formação do espírito científico”, a noção de “obstáculo epistemológico” enunciada por Gaston
Bachelard29 não denota um ideal de purificação do espírito ultrapassado no tempo. Pelo contrário, a ideia de obstáculos epistemológicos reflecte, ainda hoje, numa pedagogia do conhecimento como
processo de remoção, ultrapassagem e vigilância dos impedimentos
à socialização do cientista.
6. A subordinação do ser a circunscrições de sentido (e.g. saúde,
educação, ambiente) apenas capazes de pertencerem à ciência na
condição de corporizarem nas suas linguagens o poder de possibilidade objectiva, expressa no imperativo da “referência”,30 trazida
ao texto sobre a forma de dados, de fontes e de factos e impressa
em possessões disciplinares (e.g. sociologia das utopias, história da
expansão, ciências da terra).
7. A conquista do conhecimento associada à função de comando
da teoria,31 à exibição de marcadores de dominação teórica (problemáticas, conceitos) e a sinais de possessão empírica, patenteados,
entre outros procedimentos, na selecção, recolha, tratamento e apresentação das referências levadas aos textos científicos.
8. A defesa de uma metodologia de investigação (ou de uma teoria) da refutação, enquanto condição da actividade científica, de que
o programa de investigação proposto por Imre Lakatos constitui um
exemplo cabal da cidadela científica: com o seu núcleo (as hipóteses centrais) “tenazmente defendido” da refutação por uma vasta
“cintura protectora” de hipóteses auxiliares e com um “poderoso”
mecanismo (uma heurística) para solucionar problemas.32
9. O desafio da refutação como requisito de cientificidade de qualquer enunciado, teoria ou saber, de que o critério de “falsificabilidade” de Popper como linha de “demarcação entre o que é a actividade
científica e o que lhe permanece estranho, exterior”,33 constitui um
bom exemplo.
10. A acumulação de bens territoriais, a adjunção de territórios
vizinhos e a afirmação da diferença por relação ao(s) território(s) de
pertença, a exprimir ou a potenciar (consoante os casos e as relações
170
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
institucionais) a transgressão, a exclusão e a distinção. Mas, não
raro, almejando-se a formação de novos domínios territoriais.
Terminada esta exposição, passemos da escala institucional da linguagem científica para a escala narrativa dos percursos de conhecimento. Perguntemos então o que emerge se, nesses actos de ousada
narração, suspendermos o procedimento de omissão do(s) corpo(s).
Responderei de modo indirecto. Como atrás referi, irei basearme numa narrativa utópica: La Terre Australe connue de Gabriel de
Foigny34. Abordei-a no contexto do meu percurso de doutoramento
com o propósito de reflectir criticamente sobre a normatividade do
“corte epistemológico” entre ciência e utopia. Tratava-se de explorar as linhas de continuidade daquelas, aproximando os seus procedimentos metódicos e discursivos. Objectivo que trouxera implicada
a tentativa de abandonar o preconceito classificatório que ainda preside ao modo bem ordenado como o nosso sistema de pensamento
separa e isola as nossas representações da ciência das diversas valências cognitivas e discursivas que lhe são subjacentes. Aqui, é,
todavia, outro o uso que vou fazer da narrativa utópica de Foigny.
Uso-a como alegoria. Uma alegoria irónica da omissão do corpo na
comunidade científica.
Manifestações do corpo como natureza-morta
Na sociedade australiana, imaginada por Gabriel de Foigny, cada
um dos seus habitantes
[...] tem a razão por guia, à qual todos se unem com uma
entrega tal que dir-se-á ou que eles não são senão um mesmo
ou que eles são todos igualmente admiráveis condutores que
não têm senão um mesmo destino e um mesmo meio para a
sua execução.35
O destino social do ser australiano é vir ao mundo para dar corpo
à razão. Logo que concebeu ele deixa o seu compartimento habitacional nas “casas comuns” e dirige-se à Casa da Educação com o
embrião da sua auto-reprodução hermafrodita. É nesta casa que o
embrião de cada australiano se desenvolve, vem ao mundo, é nutrido, e formado ao longo de um (per)curso de trinta e três anos pelos
171
Geografias do Corpo
Mestres cuja função social é a de esculpir os seres da cultura inteiramente racional.
Quando as crianças “[c]omeçam a raciocinar com divertimentos
inexplicáveis”,36 o que ocorre aos 3 anos de idade, já estão, desde
a idade dos 2 anos, a morar com o “primeiro Mestre da primeira
faixa” com o qual aprendem a saber ler, “o que se faz regularmente
aos três anos”.37 Dos 5 aos 9 aprendem a escrever e seguem durante
quatro anos o segundo Mestre da segunda faixa. Aos 14, levados sob
a direcção dos Mestres da terceira faixa, os jovens “compreendem
tudo o que diz respeito às subtilezas das suas letras”.38 Com a idade
de 20 anos “eles conhecem todas as dificuldades da filosofia”.39 Dos
20 aos 25 “aplicam-se na contemplação dos astros”.40 Dos 25 aos 28
“ocupam-se (...) no conhecimento dos volumes da suas histórias”
ou Anais.41 Chegados aos 30 anos de idade “eles podem raciocinar
sobre toda a espécie de matéria, excepto sobre a do Haab [o Deus
dos australianos] e a dos Habes, o que quer dizer a divindade dos
seus Anais”.42
Não nos devemos surpreender. São essas as duas matérias que ao
dizerem respeito à história e ao fundamento da cultura racional (australiana) não podem, por isso, ser abaladas. Discorrer sobre a longa narrativa da sociedade (racional) australiana – “quarenta e oito
volumes de uma grossura prodigiosa”43 – iria pôr em causa o saber
(científico) instituído. Incorrer numa reflexão sobre o fundamento
(religioso) da razão seria questionar o que não pode ser questionado – a crença – sob pena de fazer ruir o valor de verdade do conhecimento alcançado e, por consequência, de aniquilar o tipo de
humanidade consumado no modo de vida do habitante da sociedade
australiana.
Formados no esquecimento do modo como percorreram o espaço
da razão e expurgados de particularismo individual – porquanto,
alcançados os 35 anos, os australianos “estão todos consumados em
todas as ciências naturais, sem poder distinguir alguma diferença de
capacidade entre eles”44 –, à saída dos Hebs ou Casas da Educação,
eles estão, como seres adultos ou na idade da razão, “à espera de
serem Tenentes, quer dizer, de tomar o lugar dos que querem acabar”.45 Tal acontece logo que um qualquer lugar de velho Mestre seja
172
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
deixado vago por suicídio do ocupante. Ora, “[n]ão há “nenhuma
assembleia no Hab [a Casa da Elevação] onde [os velhos Mestres]
não peçam a liberdade de retornar ao repouso”.46 Tendo sido aprovado o pedido,
ele apresenta o seu Tenente, que deve ter pelo menos trinta e
cinco anos: a companhia recebe-o com alegria e é-lhe dado
o nome do velho que quer deixar de viver. Isto feito, são-lhe
apresentadas as belas acções daquele cujo lugar ele ocupa, e
é-lhe dito estar-se seguro de que ele não é capaz de degenerar.
Terminada esta cerimónia, o velho vem alegremente à mesa
dos frutos do repouso onde come até oito com um rosto
sereno e risonho. Tendo comido quatro, o seu coração dilatase para lá do habitual, e comete várias extravagâncias, como
são as de saltar, dançar e dizer toda a espécie de disparates,
sobre as quais os irmãos não fazem nenhuma reflexão porque
elas provêm de um espírito que perde a razão. De seguida,
são-lhe apresentados ainda dois, que alteram totalmente o
seu cérebro. Então o seu Tenente com um outro dirigem-no
ao lugar que fora escolhido e ajustado algum tempo antes:
estando aí, e tendo-lhe dado dois outros frutos, ele adormece
inteiramente. Depois, tendo fechado convenientemente o
lugar, eles voltam, testemunhando que desejam com ardor fruir
a sua felicidade. Eis [...] como morrem os australianos.47
Mas como vivem os australianos?
Os adultos, residentes nas “casas comuns” (Hiebs) ocupam o
“Sluec”, isto é, “o dia começando”,48 ora na Casa da Elevação (Hab)
ora na Casa da Educação (Heb). Na Casa da Educação eles “são
obrigados a encontrar-se para tratar das ciências”, o que “fazem com
uma (...) bela ordem”:49 uma ordem cuja harmonia é indissociável
do facto dos australianos estarem impedidos de ir para lá dos limites do conhecimento científico adquirido pois, como anteriormente
vimos, eles não podem aventurar-se a raciocinar sobre os Habes (a
divindade dos seus Anais) e o Haab (o Deus australiano). À Casa da
Elevação eles vão regularmente, isto é, de quatrocentos em quatrocentos “clé”, ou irmãos, por cada um dos dezasseis bairros habitacionais do sezain50, e em contínua rotação, pois é quando os “clé” do
primeiro bairro vêm do Hab que os do segundo bairro aí vão, e assim
173
Geografias do Corpo
sucessivamente, até ao décimo sexto voltar a dar lugar ao primeiro.51
Aí vão para se reunirem numa “espécie de plataforma”, situada no
“cume”52 e “toda construída de pedras diáfanas”, em assembleias,
cada uma com quatrocentos clé, que eles realizam “para reconhecer”
e “para adorar” o Haab.53
Antes de observarmos como os australianos concebem o Haab e
como praticam o seu culto, não posso deixar de referir o fino cristal
que abunda no país austral. É este o material com o qual eles fazem
as janelas das casas que habitam (os Hiebs), erguem os tectos das
casas onde são educados (os Hebs), constroem, na íntegra, a estrutura das casas onde se elevam espiritualmente (os Habs) e fazem
as portas que lhes dão acesso. Em suma, uma cidade onde a transparência, presente em todas as construções e no esbatimento dos
limites entre espaço interior e exterior, proporcionado pela natureza
cristalina das portas, é reveladora de um empreendimento que, ao
dar visibilidade ao domínio da razão sobre a matéria, exalta o poder
de exercício concreto do espírito racional, a sua presença ilimitada e
a sua vitória sobre o obstáculo da opacidade.
Observemos, então, como os australianos concebem o fundamento da sua cultura racional. Conforme Suains54 explica a Sadeur55,
o Haab é o “Ser dos seres” e tem “grande abstracção”56 pois, para
os australianos, “um Ser universal só deve agir universalmente e
sem particularidade”,57 o que os leva a crer que Ele apenas se lhes
pode manifestar pelos seus efeitos. Ou seja, a existência do mundo
e a estabilidade da ordem que nele se observa, os quais – segundo
argumento de Suains – só podem ter a sua causa primeira na “condução de um Ser Soberano que seja o grande Arquitecto e o supremo
Moderador.”58 É esse supremo Moderador que – ainda de acordo
com Suains – constitui, para os australianos, “o fundamento de todos
os [seus] princípios”.59
Vejamos brevemente o que Sadeur observa sobre o modo como
praticam esse culto da moderação: “Eles passam (...) o terço do dia
no Hab sem pronunciar uma só palavra, distanciados um passo uns
dos outros (...)”.60
Eis, agora, a observação de Sadeur sobre o modo como trabalham
o cristal: “(...) eles sabem modelá-lo, e colocá-lo um sobre o outro,
174
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
com tanta propriedade e tanta arte: que se tem dificuldade em conhecer a separação (...)”.61
Não posso deixar de dizer que é sem dificuldade que vejo na coesão e transparência das pedras da Casa da Elevação (Hab) a imagem
invertida da separação e opacidade dos “clé” ou irmãos: afastados
um passo uns dos outros, cada um na sombra cerrada feita do silêncio entre eles. Mas é precisamente este vazio relacional – ausência
de contacto corporal e ausência de comunicação verbal – entre os
seres racionais que constitui a condição de transparência das suas
identidades. De facto – como Suains me ajuda a clarificar – o culto
da razão é absolutamente indissociável do obscurecimento da identidade relativa de cada um dos australianos:
As assembleias que fazemos no Hab são para o reconhecer
[o Haab] e para o adorar: mas é com esta condição
inviolavelmente observada de não pronunciar nenhuma
palavra e de deixar em cada um a liberdade de pensar sobre
Ele aquilo que o espírito de cada um lhe sugere acerca d’Ele.
Esta conduta é a causa de estarmos sempre unidos e sempre
em respeito, quando proferimos o nome d’Ele, o que seria
impossível se quiséssemos dar-nos a liberdade de discorrer
sobre Ele, pois aquele que se aventura num precipício expõese inevitavelmente a morrer. […]. A comum doutrina desta
primeira causa deve ser o princípio da nossa união, como o é
da nossa produção.62
Vimos que a liberdade de cada um imaginar o que lhe aprouver
sobre o Haab é exercida na condição de não revelar a ninguém a sua
experiência pessoal. Trata-se de levar o espírito a fazer uma viagem
solitária por intermédio da qual o australiano contacta – através da
imaginação – com o Haab. Lembremos, a propósito, que este Deus
tem uma natureza oculta ou invisível pois a religião australiana é
uma religião não revelada. Acresce que o termo “Haab” quer dizer,
na língua austral, “Incompreensível”.63 É neste sentido que poderá
sugerir-se que as viagens solitárias e imaginárias dos australianos
são percursos de errância pelas brumas da Razão… São essas viagens que, a serem relatadas, os precipitariam no abismo da confusão
e, consequentemente, ameaçariam dissolver a coesão e quebrar a
transparência da cultura de cristal. E como “é um crime, nunca ou-
175
Geografias do Corpo
vido, falar disso [isto é, do Haab] seja por discussão, seja por forma
de esclarecimento”,64 somos levados a reconhecer que é porque todos renunciam a falar da sua experiência pessoal de contacto com a
face oculta da cultura racional que esta sobrevive ao perigo do particularismo individual, aprisionado no mundo interior de cada um dos
crentes no culto da razão, e ao perigo da diversidade, silenciada pelo
vazio relacional entre eles.
Em suma, se o destino último do culto no supremo Moderador é
levar os australianos a agir com moderação ou dentro dos limites
estabelecidos pela razão, é à custa de sofrerem um processo de mineralização dos seus corpos e de recalcamento das suas experiências
pessoais que eles assumem a mesma aparência coesa e transparente
das pedras de cristal com as quais edificam o seu sistema social.
A harmonia insular dos seres racionais revela-se, por conseguinte,
bastante frágil. Mantê-la exige vigiar permanentemente as fronteiras
e o próprio interior do território delimitado pela razão e combater – à
defesa e ao ataque – os perigos que o ameaçam de destruição.
O primeiro perigo é a alteridade que provém das terras vizinhas
habitadas pelos fondins. Os australianos designam os habitantes do
país Found por “meios-homens”, pois o facto de estes terem uma
prática carnal, no duplo sentido de um regime alimentar carnívoro e
da conjunção sexual (entre homem e mulher), é tido por eles como
um desvio à racionalidade e, consequentemente, como traço de inumanidade. A mesma ameaça de alteridade advém dos longínquos
europeus que navegam o mar austral. Os australianos chamam-lhes
“monstros marinhos” ou “monstros desconhecidos”,65 pois estes
representam para eles uma “aberração da [sua] realidade”.66 Mais
precisamente, designando os europeus como monstros, os australianos identificam neles a ameaça do desconhecido, subjacente ao
desvio do que é idealizado como padrão. E “como os seus modos de
falar e de se vestir são todos tão diferentes”,67 eles vêem na diversidade a inquietação da (sua) realidade, pois aquela, ao representar
a profusão das múltiplas formas visíveis da humanidade, constitui
um “excesso de realidade”,68 o qual há que classificar por redução
à categoria da irregularidade, expressa na figura do meio-homem.
Assim, os australianos reduzem à condição de “meios-homens” to-
176
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
dos aqueles que, não obstante serem humanos, se situam para lá dos
seus limites identitários e territoriais.
O segundo e o terceiro perigos são, respectivamente, a desordem
provocada pelas invasões dos urfs, os “pássaros monstruosos” que
circundam a terra austral, e o excesso que os caracteriza. Estes pássaros representam pelo seu comportamento extremamente carnívoro
e sexual e pela geografia do seu habitat a imagem invertida dos australianos, cujo comportamento tem na razão o seu “único guia” ou
“regra”.69 Os urfs que povoam as numerosíssimas ilhas montanhosas circundantes da extensa planície que é a terra austral “não vivem
senão de presa do mar ou da terra”70 e “são de um ardor extremo
pela conjunção carnal” entre macho e fêmea”.71 Os australianos, pelo
contrário, têm aversão à carne de peixe e de animais terrestres – não
vivendo senão de frutos – e mantêm entre si relações assexuadas – o
seu amor “não tem nada de carnal”72 – porque o facto do australiano
ter os dois sexos unidos num só corpo e ser auto-reprodutivo faz
com que a relação com o seu semelhante seja puramente fraternal ou
destituída “desses ardores animais de uns pelos outros”.73
Tudo o que os australianos reconhecem como sendo desestabilizador da ordem racionalmente estabelecida é excluído do seu domínio
territorial. Mas – apesar das terras vizinhas dos fondins estarem separadas da imensa planície que constitui toda a vastíssima extensão
do território austral pelas prodigiosas Montanhas Ivads, “mais altas
e inacessíveis que os Pirinéus”;74 apesar do mar austral ser delimitado por uma linha costeira tão pouco profunda que a aproximação
à terra austral pelo lado do mar se torna quase impossível; e apesar
dos australianos terem destruído todas as montanhas que existiam
na terra austral como meio de estabelecer os limites humanos do seu
território – vários são os elementos extraídos das “guerras ordinárias
dos australianos”75 contra a alteridade, a desordem e o excesso que
permitem reconhecer na ínsula racional (australiana) a erosão das
linhas imaginárias que separam interior e exterior, fundo e forma,
ordem e caos...
Os australianos têm continuamente em guarda vários milhões de
homens, no sopé das Montanhas Ivads que confinam com o país
Found, na linha costeira, para lá da qual são, de tempos a tempos,
177
Geografias do Corpo
avistados os navios dos europeus, e nas avenidas, todas elas vulneráveis à invasão aérea dos pássaros. Sobrevivem ao perigo que vem
de fora na condição de executar as regras defensivas assimiladas nos
exercícios de guerra com “enorme exactidão, prontidão” e coesão.76
Significativamente, “a regularidade que seguem” para se defender
do mais temeroso dos seus inimigos – os urfs – “é muito mais exacta
do que aquela que praticam contra os fondins.”77 Quando os pássaros invadem o território austral, “formando uma espécie de corpo
de armada”,78 causando grandes desordens nos jardins quadrados,
e abatendo-se com impetuosa violência sobre os australianos, estes
“comprimem-se uns contra os outros e formam um quadrado muito
exacto, que lhes faz frente de todos os lados”,79 não podendo sequer
“respirar com liberdade”, “afastar-se por pouco que seja” e “desviar
os olhos” do inimigo, sob pena de serem arrebatados pelo mesmo.80
Os australianos empreendem, anualmente, grandes esforços
para demolir as ilhas montanhosas povoadas pelos urfs, fazendoo sempre no mesmo intervalo climatérico, ou seja, entre o trópico
de Capricórnio e o equinócio de Março, quando os pássaros ficam
tímidos, e nunca quando o sol entra no signo de Touro e o mar se
torna intempestivo pois, neste período, os urfs assumem um ardor e
uma agitação tão extremas que se essas condições climatéricas continuassem por muito tempo a imperar no território urf, o país austral
tornar-se-ia inabitável.81
Os australianos exercem sobre os vizinhos fondins que violam a
fronteira terrestre do país austral uma crueldade retaliadora que ultrapassa a violência invasora dos pássaros monstruosos: degolando
milhares de fondins (os homens) e fondines (as mulheres), fazem
correr “rios de sangue”82 nas ruas do país Found; amontoando os
corpos dos inimigos – vencidos em combate – nas margens do mar
austral, deixam-nos aí “à mercê dos pássaros carnívoros”;83 cobrindo
de água as ilhas colonizadas pelo povo Fondin, despovoam a terra
vizinha;84 cortando as orelhas dos inimigos que matam em combate,
têm o costume de “fazer com elas um cinto”.85 E, “desde tempo imemorial”,86 os australianos mantêm sobre as areias da costa austral um
cemitério de navios europeus com as suas tripulações penduradas
nos seus mastros.
178
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
Em síntese, a razão que retrai o corpo no qual fixou o seu habitat e
que silencia a voz da sua própria errância é, simultaneamente, impelida a metamorfosear-se em corpo guerreiro para ir metodicamente
combater os perigos que ao desestabilizarem o ideal (de racionalidade) que enforma a identidade dos australianos ameaçam destruir
a ordem construída.
Importa, por último, realçar que para ser racionalmente conduzido
o corpo do australiano age de acordo com um código de conduta
constituído por várias regras. Essas regras – como vou procurar assinalar – são parte integrante dos percursos topográficos da razão.
A primeira regra consiste em não expelir, ou não lançar para fora
do corpo, qualquer matéria susceptível de dar visibilidade a tudo
aquilo que – em conformidade com o postulado da pureza racional
do ser australiano – constitui elemento de impureza. São impuros os
pêlos de crescimento contínuo, as fezes, o sangue fetal e o sangue
menstrual. Assim, a barba e o cabelo que “eles nunca cortam porque
crescem muito pouco”;87 a matéria fecal excretada “em tão pequena
quantidade, que dir-se-ia que eles não fazem nada”;88 o parto destituído de quaisquer sinais de sangue;89 o fluxo menstrual imperceptível.90 Só assim – ou seja – só na condição de ter adquirido o hábito
de se forçar a empurrar os elementos do seu próprio corpo para dentro, ou impedir que os seus conteúdos mais básicos o manifestem, é
que o australiano pode ter por máxima da sua moral de suprema moderação que é um erro “distinguir o espírito do homem do seu corpo”.91 É um “erro” porque, conforme Suains explica a Sadeur, “[a]
união destas duas partes é tal que uma [o corpo] é absorvida na outra
[a razão]”.92 Portanto, um corpo que – ao manifestar o recalcamento
das suas expressões vitais – pode dizer-se engolido pela razão.
Mas para o corpo ser absorvido na razão há que alimentá-lo de
moderação. Dar-lhe um regime frutívoro que é – como atrás referi
– indissociável do interdito carnal consiste em fazer com que o corpo jamais traga para dentro de si aquilo que a razão idealizou colocar fora dele e, portanto, no exterior do ser puramente racional: as
dimensões animal e sexual. Com efeito, são estas as duas dimensões
do corpo que fazem perigar uma auto-representação do australiano
centrada na razão, dado reenviarem-no, respectivamente, aos dua-
179
Geografias do Corpo
lismos animal/homem e macho/fêmea, os quais se constituem nas
verdadeiras ameaças à unidade do ser humano. É por isso – por essa
perfeita congruência entre os planos corporal e cognitivo de concepção do ideal de humanidade (a do australiano) – que dar ao corpo um
regime alimentar frutívoro significa, afinal, provê-lo dos próprios
limites ontológicos que são subjacentes à ideia de racionalidade
pensada como ideal de humanidade. Obrigar o corpo a praticar uma
alimentação não “desmedida” e “sem excesso”93 significa evidentemente mantê-lo equidistante dos extremos e, por isso, dentro dos
limites espaciais definidos pela razão. Com efeito, é de um corpo
equilibrado, ou sem “nenhum princípio de alteração”94 que a razão
necessita para aí poder subsistir.
A segunda regra consiste – compreensivelmente – em ocultar a
acção de trazer para dentro do corpo algo que lhe é exterior (o
alimento) para deste modo se procurar apagar da paisagem cognitiva essa imagem de impureza que, a ser guardada, arriscaria levar
o australiano a reconhecer que, afinal, o corpo foge por assim dizer
aos limites interiores da razão. De tal modo os australianos se sentem ameaçados pela acção de ingerir os frutos que os mantêm vivos
que “se escondem, e não [os] comem senão em segredo e como que
às escondidas” uns dos outros.95 Portanto, um jogo de ocultação da
dimensão orgânica do corpo que é por cada um jogado à defesa do
olhar de qualquer outro.
A terceira regra é fingir que o corpo não tem as suas próprias
regras. Refiro-me àquelas que este tem para si mesmo de seguir,
simplesmente para continuar a existir em si mesmo, ou seja, como
corpo que é. É, precisamente, pela terceira regra – a que exclui o
corpo como um outro guia – que o australiano “faz o que a razão
lhe ordena fazer”.96 Para tal, o australiano finge não necessitar de
alimento – a refeição não tem “nenhuma hora regrada”;97 inventa
um meio artificial de controlar o sono, ou a supressão periódica da
vigilância da razão98 – o sono é por assim dizer sem relógio natural;
e ilude as sua próprias regras – a menstruação não é – como disse
atrás – perceptível.99
Finalmente, a quarta regra consiste em descentrar o corpo da sua
natureza carnal para o poder vir a subsumir ao domínio ideal da ra-
180
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
zão como o centro do ser australiano. Comecemos a este propósito
por observar alguns dos traços anatómicos do australiano. Segundo
a descrição de Sadeur, “todos” têm “uma boca muito pequena”, a
“barriga plana”100 e os órgãos genitais “muitíssimo pequenos”.101 Um
corpo cujo primeiro sentido, o da destituição do prazer (de comer),
traçado nos motivos da boca pequena e da barriga plana, expressivos
da retracção da função digestiva, vem, num sentido segundo, marcado pela pequenez ou infantilidade dos órgãos genitais, significar a
abstinência (sexual).
Demoremo-nos agora no motivo da barriga plana. Fazer tábua
rasa da proeminência externa do abdómen é, num primeiro nível
de leitura, indispensável dado esta cavidade se localizar na região
central do corpo, sendo imperativo descentrar o homem do próprio
corpo para o re-centrar na razão102. Num segundo nível de leitura,
que atende ao facto da maior parte do aparelho digestivo se alojar no
abdómen, aplanar a barriga é visar a própria região abdominal, enquanto espaço de tumulto e confusão103 entre a natureza humana do
corpo e a natureza inumana daquilo (o alimento) que o ser racional
necessita para subsistir. Na verdade, apesar da alimentação frutívora
ser um regime expurgado do mal da carne, tal prática alimentar não
deixa, contudo, de lembrar ao australiano que comer é um acto impróprio do ser puramente racional.
Os elementos seguintes permitem evidenciar a ocorrência da quarta regra no motivo do parto: “[e]les têm um certo lugar elevado para
entregar o seu fruto, onde estendem as pernas e a criança cai sobre
as folhas do Balf, após o que a mãe o toma, o esfrega nestas folhas
(…)”.104 O parto dissimula o que se sabe que é – o filho do australiano é carne da sua carne – mas simulando que não é. Como se a natureza animal do australiano se tivesse transformado (por intermédio,
inclusive, do significado lustral das folhas) numa natureza vegetal,
o filho do australiano ganha a aparência de um fruto. A corroborá-lo
eis o facto de Suains ter um dia entrado num “longo discurso” com
Sadeur “para [o] levar a acreditar que as crianças nasciam das entranhas deles como os frutos nascem das árvores.”105
É sob a mesma óptica – a de uma concepção do corpo como um receptáculo esvaziado de impurezas – que devemos atender à seguinte
181
Geografias do Corpo
observação de Sadeur: “A nudez de todo o corpo é-lhes tão natural
que eles não podem consentir que se fale de os cobrir pois fazê-lo é
declarar-se inimigo da natureza e contrário à razão.”106 Num primeiro plano, o nu é a forma que, ao tornar visível a natureza racional do
homem (ideal), vem tornar invisível a natureza corporal do homem
(real). Por isso – por esse jogo de obscurecimento do corpo – a nudez
dos australianos é, como Benrekassa afirma, “uma espécie de grau
zero da inocência.”107 Com efeito, conforme observa Sadeur: “Bem
longe de terem qualquer pudor ou alguma vergonha de aparecerem
nus, eles fazem disso a sua principal glória”.108 O nu australiano é,
num segundo plano, a forma que honra a pureza do ser contido pela
razão. Mas esta figura da pureza é – como acabámos de constatar
– absolutamente indissociável do fundo de impureza que lhe subjaz
e da figura da transparência para a qual o desnudado australiano
nos reenvia. Com efeito, na decorrência dos diálogos com Suains,
Sadeur afirma que “[o]s australianos não escondem nada [nenhuma
parte do corpo], com temor de serem julgados sujos e desprezíveis a
respeito do que poderiam ocultar.”109
Estamos inequivocamente perante o próprio paradoxo que preside
ao engendramento da figura da transparência. Os australianos não
escondem nada porque o que está inteiramente lá – o corpo nu como
um quadro da razão – é resultante de tudo o que já não está. Já não
está porque foi escondido. Escondidos os traços anatómicos que viriam a dar relevo aos conteúdos do corpo (e.g. orgãos genitais, barriga). Escondido tudo o que por ter entrado e/ou saído do corpo (e.g.
alimento, sangue, fezes) viria a fazer deste o que se sabe que também
é – um espaço de transição – mas simulando que não é. Em suma,
os australianos só “não escondem nada” porque deram alguns dos
passos necessários a que a razão pudesse ser exposta, ou corporizada
no nu: recalcaram, ocultaram e fingiram não ter corpo.
É por tudo isso – por esse jogo de luz e sombra – que o corpo
pintado a nu pelo australiano adquire a expressão de uma naturezamorta ou sem vida própria.
182
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
Notas
Este texto retoma partes de uma outra publicação que é resultante do meu
percurso de conhecimento no contexto do trabalho de doutoramento:
Viagem, Utopia e Insularidade: narrativas fundadoras da ciência e da
sociedade moderna, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação
para a Ciência e Tecnologia, 2009 (no prelo). A tradução das citações ao
longo deste texto é da responsabilidade da autora. 1 J. Schlanger (1992:
64. 2 Ibid. (66). 3 Cf. ibid. (64-66). 4 P. Ricoeur (1991: 89). 5 J. Schlanger,
ibid. (66). 6 Ibid. (67). 7 Ibidem. 8 R. Brown (1989: 185). 9 J. Schlanger,
ibid. (66). 10 Ibidem. 11 Ibidem. 12 Ibidem. 13 Ibidem. 14 Ibid. (69). 15 Ibidem.
16
Ibid. (70). 17 Ibidem. 18 Ibid. (65). 19 Ibidem. 20 Ibid. (64-65). 21 Cf. ibid.
(65). 22 Ibidem. 23 Ibidem. 24 Cf. L. Daston (1999: 82). 25 R. Palmer (1989:
240). 26 J. Petitot (1999: 37). 27 Cf. Th. Kuhn (2007). 28 A. S. Silva (1986:
50). 29 Cf. G. Bachelard (2006: 19-32). 30 Cf. P. Ricoeur (1988: 88). 31 Cf. A.
S. Silva (1986: 52). 32 I. Lakatos (1998:16). 33 M. M. Carrilho (1994: 35).
34
Sobre a vida, as obras e a difusão de La Terre Australe connue (1676)
de Gabriel de Foigny (1630-1692) consultar: Ronzeaud, in Foigny, 1990:
XI-XCVIII; Lachèvre, 1968: 3-60; Kirsop, 1980: 341-365. 35 G. de Foigny
(1990: 191). 36 Ibid. (138). 37 Ibid. (165). 38 Ibidem. 39 Ibidem. 40 Ibidem.
41
Ibidem. 42 Ibid. (170). 43 Ibid. (167). 44 Ibid. (139). 45 Ibidem. 46 Ibid. (149).
47
Ibid. (149-150). 48 Ibid. (152). 49 Ibid. (153). 50 A imensa planície da terra
Austral que constitui o território habitado pelos australianos de Foigny organiza-se em toda a sua extensão sempre com base numa mesma unidade
urbanística, designada, na língua austral, por “sezain”. O território australiano conta com cento e quarenta e quatro milhões de australianos, os quais
estão equitativamente distribuídos por quinze mil sezains rigorosamente
iguais. Os quinze mil sezains contêm, na sua totalidade, quinze mil Habs,
sessenta mil Hebs, seis milhões de Hiebs e vinte e quatro milhões de Huids
(os jardins geométricos cultivados, em regime frutívoro, pelos australianos para prover a sua subsistência). Cada sezain tem autonomia em relação aos demais dado compreender tudo o que é necessário à vida dos seus
habitantes: Hab, Hebs, Hiebs e Huids, cada qual com uma função social
específica, isto é, espiritual, educativa, habitacional, e alimentar. 51 G. de
Foigny (1990: 152-153). 52 Ibid. (72). 53 Ibid. (119). 54 O velho venerável,
filósofo e professor na Casa da Educação, personagem principal da utopia
de Foigny, pois é este que re-socializa o viajante europeu, no seio da cultura dos seres puramente racionais. 55 O viajante europeu que ao acabo de
uma longa travessia iniciática, pontuada por sucessivos naufrágios, acede
à sociedade dos australianos, aí vive durante trinta e sete anos e, após ter
183
Geografias do Corpo
sido acusado por aqueles de cometer vários desvios, é forçado a regressar à Europa, trazendo consigo o manuscrito da sua relação de viagem à
terra Austral. Ao tempo de Foigny (1630-1692), a terra austral constituiu
o destino geográfico de algumas viagens autênticas, nomeadamente a do
navegador e comerciante normando Binot Paulmier de Gonneville e a do
navegador português Fernando de Queiroz, um e outro publicitados na literatura de viagens seiscentista como os viajantes aos quais se atribuía o
conhecimento da mítica terra australis incognita (cf. N. Broc, 1975: 174).
56
G. de Foigny (1990: 117). 57 Ibidem. 58 Ibid. (115). 59 Ibid. (116). 60 Ibid.
(153). 61 Ibid. (185). 62 Ibid. (119-120). 63 Cf. ibid. (113). 64 Ibid. (115).
65
Ibid. (204). 66 J. Gil (1994: 17). 67 Ibidem. 68 Ibidem. 69 Ibid. (108). 70 G. de
Foigny, op. cit (176). 71 Ibid. (181). 72 Ibid. (95). 73 Ibid. (94). 74 Ibid. (69).
75
Cf. ibid. (189-212). 76 Cf. ibid. (191). 77 Ibid. (210). 78 Ibid. (209). 79 Ibid.
(210). 80 Ibid. (211). 81 Cf. ibid. (212). 82 Ibid. (203). 83 Ibidem. 84 Cf. ibid.
(204). 85 Ibid. (215). 86 Ibid. (205). 87 Ibid. (83). 88 Ibid. (138). 89 Cf. ibidem.
90
Cf. ibid. (137). 91 Ibid. (92). 92 Ibidem. 93 Ibid. (139). 94 Ibid. (140). 95 Ibid.
(140). 96 Ibid. (108). 97 Cf. ibid. (140). 98 Cf. ibid. (76). 99 Cf. ibid. (137).
100
Ibid. (83). 101 Ibid. (137). 102 Na utopia de Foigny, a centragem como
procedimento espacial imprescindível à concepção da ordem racional é,
particularmente, evidenciada na construção geométrica do espaço social
australiano: todos os edifícios do sezain são providos de localização central
(o Hab no meio do sezain, o Heb no meio dos Hiebs, estes no meio dos
Huids). O procedimento de centragem não particulariza Foigny. Ele é característico do espírito geométrico do utopista do século XVII. Por exemplo, em L’Histoire des Sévarambes (1677-1679) de Denis Veiras, o legislador-fundador Sevaris, “personagem central” da narrrativa, fixa-se na ilha
onde elege “Sevarinde” como centro da sociedade racional. Com efeito,
Sevarinde é a cidade-capital cuja localização “no meio de uma ilha” (2001:
137), formada “no meio do rio” (“Sevaringo”) pela sua separação em dois
braços “que a rodeiam de todos os lados” (ibid.: 137), e situação quase no
meio das terras que pertencem à nação” (ibid.: 144) constituem, inequivocamente, a expressão geométrica do poder centralizador – e insular – da
razão. Daí que seja precisamente para a região periférica mais distanciada
da região central que são enviados todos quantos têm imperfeição física
ou espiritual. Mas o procedimento de centragem não caracteriza apenas as
utopias seiscentistas. Muito pelo contrário. Como demonstra Teresa Sousa
Fernandes, em “Modernidade e geometrias sociais” (1993), delimitação,
exclusão e centragem são categorias de espacialização do pensamento
que constituem fundamentos de representação geométrica da ordem social
presentes no século XVIII, nas filosofias de Montesquieu e de Rousseau,
184
O véu territorial da razão e
o corpo como natureza-morta
e notórias, ao século XIX, na teoria social de Durkheim. 103 Num outro
contexto, o das analogias entre a ilha, a cidade ideal e o corpo do homem
no Timeu, no Crítias e na República de Platão, Desclos (1996) faz salientar que a noção de tumulto, explicitamente ancorada por Platão no mundo
marítimo, é reenviada pelo filósofo para o fígado que, enquanto “alma do
alimento” (152), constitui “o lugar da confusão e do tumulto” (151), por
oposição à cabeça e ao encéfalo que recobrem “a divisão da alma em ‘função racional’ e em ‘ardor ousado’” (relativo ao coração) (ibidem). 104 G. de
Foigny, op. cit (138). 105 Ibid. (135). 106 Ibid. (84). 107 G. Benrekassa (1980:
275). 108 G. de Foigny, op. cit (105). 10 Ibid. (105-106).
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186
População Acumulada:
Corpos, Instituições e Espaço.
Versão revista para este livro
Chris Philo
Este artigo foi originalmente publicado em 2001, na revista International
Journal of Population Geography1 e se numa primeira análise o objectivo
era destacar a relevância de Michel Foucault para geógrafos da população e para as suas investigações, destinava-se sobretudo, de forma mais
abrangente, a clarificar uma perspectiva de ‘corpos no espaço’, mais do
que a difundir esta mesma perspectiva através da Geografia humana contemporânea (e disciplinas afins). Esta posição, preocupada especialmente
com o que Foucault designa por ‘arte das distribuições’, gira em torno
da ideia de que corpos individuais – e através deles, grupos completos
ou populações inteiras – podem ser disciplinados ao serem inseridos em
configurações espaciais particulares, observadas e policiadas próxima e
atentamente. Na prática, raramente é assim tão simples, no entanto a vontade de criar uma união corpo-espaço tão dócil é comum na sociedade
‘moderna’, emergindo primeiramente na Europa Ocidental e América do
Norte a partir do final do século XVIII, e depois difundindo-se de várias
formas, ainda que muito oscilante e contestadamente, através de grande
parte do globo durante os séculos XIX e XX. Mais recentemente, variadíssimas formas de debate têm surgido na Geografia humana e mesmo para
além desta, acerca da validade e circunstâncias das propostas de Foucault
a este respeito, e desta forma este artigo deve ser entendido no contexto do
seu tempo original – planeei-o e escrevi-o por volta do ano de 2000 – reconhecendo que algumas das suas reivindicações podem agora ser familiares, mesmo demasiadamente simplistas e sem dúvida alguma prontas para
reconsideração, quer com as mudanças no mundo ‘aí fora’ (a multiplicação dos espaços virtuais por exemplo) quer com as posições teóricas tidas
Geografias do Corpo
pela academia (o crescendo de teorias de corpos e vida mais performativas
e com uma base prática [em vez de com uma base mais discursiva]). No
entanto, adiciono um segundo breve Posfácio, em que caracterizo brevemente os avanços no conhecimento foucauldiano que ocorreram desde que
escrevi o artigo original (reconhecendo e expandindo claramente as sugestões que fiz no meu primeiro Posfácio), que se reflectem na Geografia da
população e de forma mais abrangente na Geografia humana.
Introdução
O meu artigo parte de uma indicação do livro Close Control:
Managing a Maximum Security Prison - The Story of Ragen’s
Stateville Penitentiary (de agora em diante CC), escrito pelo sociólogo Nathan Kantrowitz e publicado em 1996, e a questão que coloco diz respeito à possível relevância deste livro para a subdisciplina
da Geografia da população. A reflexão aqui desenvolvida indica uma
linha de pensamento que é relativamente nova para esta subdisciplina em particular, mas que ao mesmo tempo sugere a centralidade das preocupações que podem ser legitimamente gravadas como
sendo de ‘Geografia da população’, no contexto dos domínios de
investigação mais vastos que agora emergem em toda a Geografia
humana e mesmo para além desta.
O meu argumento será o de que uma instituição como uma prisão
necessita de uma concentração espacial de uma determinada população, um agrupamento de uma massa vasta de seres humanos numa
pequena área, e neste caso particular, numa área claramente confinada, delimitada e separada. Tais instituições compreendem picos
definidos nos mapas da distribuição de população, e apesar de ser
uma observação aparentemente trivial, é bem conhecido que podem
exercer uma influência na dinâmica de uma população numa região
ao longo do tempo. Gerry Kearns2 por exemplo, ao investigar a cólera e a demografia na Londres Vitoriana, mostrou como instituições fechadas como as prisões e os asilos, com as suas expressivas
populações internas, podiam ser ‘incubadoras’ da doença, gerando
manchas localizadas de grande mortalidade3. Para a Geografia da
população a relevância do interesse em instituições está aqui claramente evidente. De forma mais concreta, o modo como as insti-
188
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
tuições são internamente organizadas, a gestão diária da população
sequestrada (os criminosos, os mentalmente debilitados) dentro dos
espaços de tijolo e argamassa destas instituições, pode também ser
relevante para os Geógrafos da população. As estratégias usadas para
permitir que a sociedade lide com a população acumulada atrás de
paredes institucionais, especialmente as estratégias espaciais, implicam o que pode ser designado como ‘geografias micro-populacionais
aplicadas’, cuja importância muito possivelmente verte para além
das fronteiras institucionais e influencia estratégias mais vastas de
controlo de populações inteiras. Esta é pelo menos uma das formas
de compreender as ideias de um pensador chave, Michel Foucault,
o falecido teórico e historiador social francês, que apresentarei brevemente de seguida. As reivindicações que defendo, inspirando-me
em Foucault, resumem-se a novas aberturas possíveis de partes da
Geografia da população, respondendo a declarações insistentes acerca da necessidade da Geografia da população se articular mais profundamente com debates e desenvolvimentos teóricos4. Este artigo
investiga estas questões através de particularidades quer do livro de
Kantrowitz quer de textos específicos de Foucault, e desta forma espero demonstrar que é precisamente no prestar atenção aos detalhes
destes livros, bem como no escavar as minúcias das actuais prisões
e instituições similares no passado e presente, que os contornos de
temas mais genéricos para enfoque por parte de geógrafos da população (e outros) podem começar a ser compreendidos.
Geografias da Prisão
Vou começar por examinar o livro de Kantrowitz. A formação académica do autor é a sociologia, tendo também estudado na graduação estudos da população5, primeiro indicador de que o seu trabalho
talvez pudesse ser de interesse para a Geografia da população.
Posteriormente tornou-se num sociólogo profissional, especializando-se em criminologia na Universidade Estatal de Kent, no Ohio.
Durante seis anos, entre 1957 e 1963, o recém-formado Kantrowitz
ocupou o posto invulgarmente dissonante de ‘sociologist-actuary’i na
Comissão de Perdão e Liberdade Condicional de Illinois, na prisão
Joliet-Stateville, no sudoeste de Chicago, onde juntamente com um
189
Geografias do Corpo
colega sociólogo era responsável por entrevistar até 150 prisioneiros
por mês, de forma a avaliar ‘a viabilidade dos prisioneiros cumprirem liberdade condicional com sucesso’6. Neste cargo, Kantrowitz
rapidamente se familiarizou com os detalhes de funcionamento da
prisão, tendo prosseguido os seus projectos de investigação pessoal
sobre diversos aspectos da prisão, incluindo um sobre a ‘linguística criminal’, com vista a desenhar a sua tese de doutoramento. Tal
como refere, acabou por ser o ‘observador acidental’ (o título de CC,
capítulo 1), um etnógrafo da vida na prisão, e fica claro que o livro
que daqui resulta só poderia ter sido escrito por alguém ostentando
um conhecimento íntimo com as pessoas (funcionários e presos) e
com os lugares de uma prisão em particular. Kantrowitz reconhece
que o produto não é um levantamento socio-científico convencional
– na verdade, apelida-o de ‘um exercício de jornalismo de investigação no qual o interpretativo e subjectivo se tornam a parte substancial da apresentação’7 – mas que certamente não pode ser criticado
como despreocupado ou infundado.
Grande parte do livro é uma descrição elaborada do regime da
prisão enquanto experiência de vida quotidiana e deliberadamente
controlada, se bem que Kantrowitz organiza os seus materiais em
torno da questão central de ‘como é que nós controlamos estes lugares?’8 De forma mais específica, Kantrowitz pretende responder a
esta questão ao insistir que ‘o controlo na prisão deve ser um sistema
interligado de controlo no qual a rede de restrições se deve basear
nos actos triviais quotidianos de servir refeições, lavar lençóis, limpar o chão e comprar doces, por forma a reprimir os horrores de
violação e assassínio’9. A resposta encontra-se assim precisamente
nos detalhes, e não em planos grandiosos, e os materiais empíricos
de Kantrowitz estão em grande medida direccionados para suster
esta pretensão enganosamente simples. Neste sentido, Kantrowitz
explora as particularidades do regime da prisão instaladas sob o director Joseph E. Ragen, tal como é indicado na segunda parte do
subtítulo do livro, e tenta demonstrar o ‘sucesso’ do ‘controlo de
proximidade’ de Ragen, suportado ‘no castigo quer de guardas quer
de presos, e num monopólio de violência física, que não era o mesmo que brutalidade’10. Este controlo não era administrado tanto por
190
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
espancamentos como por intervenções corporais mais subtis: guardas transgressores eram afastados das suas tarefas e ‘suspensos por
algumas horas ou dias sem pagamento’11, enquanto que como resultado de infracções menores, presos perdiam horas de recreio, aguentando ‘isolamento e confinamento segregado’ por delitos maiores12
ou mesmo perda de ‘tempo benévolo’ (tempo de redução das penas
prisionais). O argumento de raiz de Kantrowitz é o de que graças ao
rígido controlo corporal quotidiano quer de guardas quer de presos,
as prepotências e intimidações endémicas nos regimes de cárcere
foram grandemente reduzidos, e os incidentes mais severos de violação e assassínio largamente eliminados. Kantrowitz conclui o livro com uma abordagem do ‘génio de Ragen’13, admitindo que este
era um regime ‘cruel’ ao qual nunca poderemos voltar, mas ainda
assim sugerindo que há ‘lições’ a serem destiladas da Stateville de
Ragen sobre como criar ‘um sistema moralmente justificável’14 onde
o carácter forte de um director supervisiona todas as tonalidades da
‘rede de controlo’ institucional interna. Seria possível questionar
as conclusões de Kantrowitz sendo mais crítico acerca da abordagem penal de Ragen, mas para mim, enquanto geógrafo, o aspecto
mais interessante deste livro é a atenção pertinaz aos espaços dentro
da prisão. Na verdade, na secção que contém dois capítulos e que
se intitula ‘A Ronda da Vida: Controlando o Tempo e o Espaço’15,
Kantrowitz considera que o trabalho fundamental do director é o de
‘sincronizar homens16 e os seus comportamentos no tempo e no espaço’17. Por outras palavras, o trabalho é ‘simplificar o tempo e o espaço’18, e assim intervir minuciosamente na ‘ecologia da prisão, nas
barreiras do tempo e do espaço’19. A geografia elementar da prisão20,
a configuração dos seus edifícios, pátios, áreas de lazer, passeios e
corredores, é essencial para a discussão e mostra-se no seu ‘esboço
gráfico’21. Kantrowitz esmiúça os vários elementos desta geografia
até aos mais pequenos espaços das celas, fornecendo um diagrama22
de uma cela para três pessoas com 1,98 por 3,2 metros, e explicando
a necessidade dos prisioneiros desenvolverem uma ‘espacialidade
meticulosa’23, de forma a coordenarem os mais ínfimos movimentos
dentro da cela, não perturbando os outros ocupantes. Considera as
várias casas-cela, uma das quais era uma estrutura rectangular com
191
Geografias do Corpo
quatro níveis (diagramas em CC: 59), e quatro das quais eram circulares e voltadas para um pátio central numa uma forma que ‘deriva
do desenho do filósofo inglês no século XIX Jeremy Bentham de
prisão “panóptica”’24. (Este é um argumento com algum significado
dadas as ligações entre o trabalho de Foucault e aquilo abordarei
em seguida). Kantrowitz também menciona outros espaços dentro
da prisão, particularmente a sala de refeições, lugar de potenciais
problemas dado que era aqui que ‘homens famintos e irritáveis’25,
em especial ao pequeno-almoço, estavam mais proximamente misturados e em posse de possíveis armas (os talheres):
A orla exterior da sala de refeições estava repleta de janelas e
áreas de trabalho – escritórios, cozinhas, padarias, máquinas
de lavar a loiça, arrumos. Nesta orla, os assentos e mesas
encontravam-se espaçados como uma grande tarte cortada
em fatias irregulares, e eram iluminados por clarabóias
e lâmpadas nuas presas por fios. No centro do círculo
estava uma torre redonda de aço, erguendo-se mais de três
andares até ao tecto, onde dois a cinco atiradores (com as
únicas armas de fogo dentro de muros) esquadrinhavam
os condenados desde janelas gradeadas. Por não se usarem
armas de fogo nos pisos térreos do edifício, a prisão tinha um
túnel subterrâneo que ia da sala de munições da prisão onde
estas armas eram armazenadas, directamente à torre de vigia
da sala de refeições.26
Tal como nas celas, prevalecia aqui um padrão espacial semelhante,
no qual os presos eram vigiados de um ponto central. Kantrowitz
analisa de forma mais sumária outros espaços, tais como o hospital,
os pátios de recreio, o parque de jogos, os passadiços cobertos, as
paredes, a casa do portão e as torres de vigia, que são reconhecidos
como ‘localizações’ importantes dentro da vida da prisão.
No entanto, esta não é uma geografia estática, e toda a criatividade
do texto de Kantrowitz é dedicada a mostrar a miríade de movimentos – as deambulações, emaranhados, encontrões – de presos e
seus guardas em torno destes diferentes espaços da prisão. No texto,
muitos destes argumentos estão organizados livremente em torno
do ‘horário do prisioneiro’27, a estrutura do dia do prisioneiro desde
o momento do acordar cerca das 6:40 (quando as campainhas nas
192
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
celas soam) até cerca das 22:00 (quando todas as luzes finalmente se
apagam). Tal como Kantrowitz descreve em termos genéricos:
A determinadas horas, uma primeira campainha e depois
uma campainha ‘despertadora’ soava; depois de um tempo
específico durante o qual o prisioneiro se lavava, fazia a sua
cama e era contado pelos guardas, compunha-se em fila sob
a supervisão dos guardas e ia para a sala das refeições onde
tomava o pequeno-almoço. Depois, os guardas guiavam
as filas para os postos de trabalho. A uma hora específica
o prisioneiro deixava o seu trabalho, fazia formatura e era
conduzido em marcha para o almoço. À tarde parava de
trabalhar, e tinha a opção de ir para o pátio de recreio ou
de volta para a sua cela, permanecendo aí até uma hora
específica quando o jantar era servido. O preso ia para a sala
das refeições numa fila conduzida por um guarda, comia, e
depois formava-se em linha para que o guarda o conduzisse
de volta à cela, onde permanecia até ao soar da primeira
campainha pela manhã.28
Kantrowitz ilustra esta rotina através de um simples diagrama que
captura a topologia dos movimentos quotidianos de um prisioneiro29.
Num outro diagrama30 é mais específico no traçar dos movimentos
dos prisioneiros de celas particulares, revelando os diversos circuitos de vai e vem entre as celas, o refeitório, os trabalhos (que podem
ser nas fábricas fora da prisão) e os pátios de recreio. Por vezes estas
rotinas podiam tornar-se mais complicadas, tal como quando uma
ou duas vezes por semana os presos integravam a ‘sua linha “banho-barba-venda”31 e eram levados para o bloco dos chuveiros, ao
barbeiro e à venda (uma loja onde podiam comprar cigarros, doces
ou comida enlatada). Mais ainda, ocasionalmente os presos podiam
visitar individualmente o capelão, o médico, o dentista e o sociólogo (o próprio Kantrowitz), ou receber visitas de familiares e amigos, sendo que todas estas actividades requeriam movimentos não
programados a espaços dedicados dentro da prisão (por exemplo ‘a
visita de familiares requeria que um preso se reunisse com estes num
espaço especial, a sala de visitas’: CC: 67). Um sistema de ‘senhas
de chamada’ regulava estes movimentos, sendo que os funcionários
que queriam ver um preso tinham que preencher uma senha de cha-
193
Geografias do Corpo
mada que o prisioneiro depois tinha que levar consigo. A posse de tal
senha era o testemunho para que os guardas conduzissem presos individuais para dentro e fora de diferentes espaços da prisão. Num dia
qualquer, o quadro era um de prisioneiros ‘movimentando-se entre
cinco celas e cerca de cinquenta edifícios, atravessando e cruzando
os seus caminhos talvez uma dúzia de vezes desde a manhã até à tarde32, e assim uma geografia dinâmica de movimentos de corpos era
super imposta à geografia gelada da prisão de estruturas e rotas.
Consequentemente, esta geografia de movimentos, enquanto dinâmica e complexa, estava sujeita a um ‘controlo apertado’. Os prisioneiros estavam sob uma quase permanente vigilância dos guardas,
quer fossem os das torres existentes na sala das refeições, do portão,
das celas e aqueles em torno dos muros do perímetro, quer fossem os
guardas que patrulhavam ao longo dos caminhos elevados e ao nível
do solo, havendo assim muito poucas oportunidades para os presos
fora das celas desrespeitarem seriamente as regras. A vigilância ‘do
alto’, frequentemente implicava guardas com armas, sendo evidente
que estas armas seriam usadas (apesar de durante os seus seis anos
em Stateville, Kantrowitz relatar poucos incidentes onde o uso da
força tivesse sido necessário):
As quinze torres de vigia nos muros de Stateville, juntamente
com a [torre] existente na sala de refeições e a do portão
da prisão, eram as únicas onde os guardas se encontravam
aramados...As torres nos muros eram os derradeiros (e mais
formidáveis) pontos de segurança da prisão, havendo uma
linha de visão para quase qualquer ponto do espaço aberto.
Nenhum espaço aberto estava virtualmente a mais de 300
metros desobstruídos de um ou mais atiradores.33
Um atributo importante dos guardas era o seu ‘estado alerta’, e
Kantrowitz explica que os guardas que ‘falhassem estar alerta’34,
particularmente aqueles em serviço nas torres de vigia, estavam sujeitos a punições (suspensões por períodos entre dois dias até cerca
de um mês). Para além da vigilância geral, inúmeras verificações
eram feitas aos prisioneiros à medida que estes se deslocavam de
um edifício para outro. O director instituiu um amplo sistema de
preenchimento de formulários, no qual os guardas tinham que man-
194
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
ter uma ‘contagem de registos’ precisa do número de presos que se
deslocava de um lugar (por exemplo da sala de refeições) para outro
(por exemplo na realização de uma tarefa), bem como um registo
dos movimentos de indivíduos com ‘senhas de chamada’ (deslocando-se por exemplo das celas para o dentista). Mais ainda, em certos
momentos do dia ‘toda a rotina [de actividades] se detinha para que
todos os prisioneiros fossem contados’35, momentos esses em que
se estabelecia se o número correcto de presos estava no local que
deveria estar. Se os números não concordassem com os constantes
nas ‘folhas de movimentos’, que listavam os números esperados em
qualquer outro lugar, a rotina das actividades não recomeçaria até
que a anomalia se resolvesse, implicando que algo como o erro de
contagem de um guarda – que incorreria numa determinada punição
– causasse ‘ondas de desordem e irritação’36 que se alastrariam através de toda a ordem espaço-tempo da prisão. Kantrowitz refere-se a
tudo isto como o ‘sistema de contagem de corpos’ de Ragen37, que
basicamente funcionava através da assumpção de que todo e qualquer preso tinha o seu lugar próprio dentro da prisão a todo e qualquer momento do dia ou da noite. O regime dependia dos corpos dos
prisioneiros estarem sempre ‘no lugar’ em vez de ‘fora do lugar’, e
deste modo, um incidente como por exemplo a fila para o barbeiro
ter ‘um homem a menos’ instituía uma busca e verificação completa
da prisão do ‘corpo desaparecido’. O resultado era uma geografia
corporal da prisão totalmente calibrada, decretada e assim controlada, uma geografia cujos detalhes emergem através de virtualmente
todas as páginas do livro de Kantrowitz.
Existem incontáveis outros aspectos da vida da prisão em Stateville
com interesse potencial para a ‘imaginação geográfica’, mas vou
aqui apenas mencionar dois. Em primeiro lugar, é importante sublinhar que o ‘controlo apertado’ do director tinha que se dirigir tanto
aos guardas como aos presos, atendendo a que inúmeras outras cadeias no passado e presente têm sido fundamentalmente corroídas
pela negligência dos funcionários, indisciplina e recurso a atormentações e mesmo violência contra os presos. Assim, mesmo antes dos
três capítulos da secção do livro intitulada ‘Controlo dos presos’38,
Kantrowitz fornece outros três numa secção intitulada ‘Controlo dos
195
Geografias do Corpo
guardas’39. Tal como já referido, estes estavam sujeitos a penas por
falhas em operar de modo competente a ordem espaço-tempo, e é
revelador que a importância dos deveres específicos dos guardas e
das penalizações sobre eles exercidas é especificada através das diferentes ‘localizações’ dentro da prisão40. Kantrowitz concentra-se
em particular nos portões da prisão, destacando que ‘as punições
dos guardas dos portões da prisão implicam não só o controlo de erros mas também uma compreensão da arquitectura da prisão’41. Por
outras palavras, era essencial existir um meticuloso conhecimento
da geografia deste ‘portão’ e daquilo que o rodeava – os muros, uma
outra vedação, a administração, as áreas de visita e do hospital – e
ter conhecimento da dificuldade em ter quatro entradas separadas e
uma barreira menor na casa do portão por onde ‘passavam todas as
pessoas e objectos menores como o correio, medicamentos e material de escritório’42. Este era o ponto vulnerável no arranjo espacial
da prisão, o ponto de acesso ou saída, e em diferentes partes do
‘portão’ os guardas tinham que estar particularmente atentos às contagens, verificações e buscas, de forma a prevenir quer fugas, quer
a entrada de pessoas ou itens não autorizados (contrabando ou pior
ainda). Um segundo aspecto a relevar prende-se com a resistência
dos presos, no sentido em que ‘existiam limites para o controlo do
director de Ragen’43 através da operação ‘economia subterrânea’44,
baseada na troca de vários itens como cigarros, doces e por vezes
dólares americanos e também serviços como lavagem de roupa interior ou favores homossexuais. Curiosamente, Kantrowitz descreve
o que ele designa como o ‘sistema de transporte dos presos’45, que
inclui o transporte físico de objectos pela prisão que vão ‘desde uma
lâmina da barba facilmente escondida até uma volumosa e perecível
sandes’46 sem que os guardas se apercebessem. Discute a ‘consciência do movimento corporal’47 que muitos presos desenvolveram,
um comando de ‘movimentos corporais delicados’48 que requer ‘um
controlo físico do modo de andar e do passo largo, da tensão do
corpo e do movimento do olhar’49, que lhes permitia passar despercebidamente de uma parte da prisão a outra, apesar de muitas vezes
transportarem mercadorias volumosas. Mais ainda, os presos tinham
que assegurar ‘lugares de armazenamento’ para certos itens, espe-
196
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
cialmente aqueles que tinham sido contrabandeados para dentro da
prisão, tornando-se especialistas em esconder objectos em ‘qualquer
canto ou recanto’50 dos edifícios ou mesmo enterrando caixas ou
latas de contrabando nas ‘floreiras do jardim do director’51.
O livro de Kantrowitz contém um exercício detalhado de geografia
da prisão, e é importante realçar que há uma mão cheia de estudos
explicitamente geográficos de prisões – espalhados pelo mundo e
alguns com um enfoque histórico – que podem ser encontrados na literatura da Geografia humana contemporânea52. Todos estes estudos
destacam as enganosamente simples geografias das prisões, especialmente as suas configurações espaciais internas quer cimentadas
em enquadramentos institucionais, quer expressas através dos movimentos quotidianos de corpos de pele e osso em torno de ‘localizações’ diversas dentro destes enquadramentos, que são absolutamente
centrais para o funcionamento geral dos estabelecimentos prisionais.
De diferentes formas, estes trabalhos apontam para a intersecção entre poder e espaço dentro destes estabelecimentos, e ao fazê-lo destacam as múltiplas formas como os sistemas, estratégias e práticas
espaciais de todas as formas permitem que o poder seja exercido
sob população acumulada potencialmente muito descontrolada, num
contexto de limites relativamente constrangidos. É assim admirável notar que no seu famoso livro Human Territoriality, o geógrafo
Robert Sack faz uso do exemplo da prisão de Joliet-Stateville, reproduzindo em larga medida a mesma imagem que graça pela capa do
livro de Kantrowitz (ver adiante), quando desenvolve argumentos
sobre a forma como as instituições como prisões, hospitais, asilos,
escolas e fábricas ‘requerem a subdivisão e integração intensa e minuciosa do território’53. Estes argumentos integram-se nas especulações mais vastas de Sack acerca da ‘territorialidade humana...como
uma estratégia espacial que afecta, influencia ou controla recursos
ou pessoas ao controlar áreas’54. No decurso de um capítulo sobre
‘O lugar de trabalho’, Sack escolhe concentrar-se nas escalas micro-espaciais da territorialidade nas diversas instituições mencionadas, propondo que tais instituições testemunham o trabalho de uma
‘“metafísica” espacial’ que proporciona o ‘desaparecimento geográfico de eventos de forma a criar uma superfície espacial impessoal e
197
Geografias do Corpo
esvaziável que contenha, classifique e organize acções humanas’55.
Mais ainda, ao desenvolver estas noções, o principal ponto de referência conceptual de Sack é, naturalmente, Foucault, levando-o a
utilizar materiais de textos famosos mais tardios como Discipline
and Punish56 bem como ao analisar em mais detalhe o design do
panóptico de Bentham57. Consequentemente, Sack oferece uma
ponte desde a minha discussão da pesquisa de Kantrowitz sobre a
Stateville de Ragen até uma leitura mais minuciosa do que Foucault
pode oferecer à investigação sobre a acumulação de população em
(e possivelmente para além dos) ambientes prisionais.
Foucault e a acumulação de população
Ao mesmo tempo que podemos perceber porque é que o livro de
Kantrowitz pode ter interesse para geógrafos, ao perseguir investigações sobre as geografias institucionais de prisões e asilos, entre
outras58, permanece a questão sobre porque é que os geógrafos da população em particular podem reconhecer valia este trabalho. Numa
tentativa de responder a esta questão, vou direccionar-me para os
textos de Michel Foucault, e especificamente para o seu tratado clássico Surveiller et Punir, publicado em francês em 1975 e traduzido
para inglês em 1977 como Discipline and Punish: The Birth of the
Prison (daqui em diante DP). Este é um texto bem conhecido, marco
na teoria social e cultural ocidental do final do século XX, servindo
já de inspiração para muita da investigação em Geografia humana,
incluindo análises das geografias institucionais já mencionadas59,
bem como contribuindo para diversas (re)teorizações de poder e
espaço60. Este não é o momento para rever a arquitectura notável
deste livro, nem para explorar em detalhe a dupla concepção e crítica substantiva a ele direccionada, mas é necessário apresentar uma
pequena revisão dos seus conteúdos antes de a usar como lente através da qual se podem ver as ligações com o exercício de Kantrowitz
em Stateville e com as preocupações dos geógrafos da população.
Acrescento ainda que em parte alguma Foucault faz referência ao
livro de Kantrowitz, e tal ausência é surpreendente, especialmente
pelas críticas deste último aos outros teóricos penais por não foca-
198
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
rem as práticas quotidianas de ‘disciplina’ e ‘punição’ (o dia-a-dia
de Discipline and Punish).
Por um lado, Discipline and Punish constitui uma intervenção
decisiva nas teorias de poder, sendo um exemplo de uma análise
relacional do poder que insiste em interpretá-lo como uma ‘microfísica’, uma amálgama de forças que se jogam nos encontros e articulações de diversas pessoas e práticas. Esta análise lida menos com
as vastas (re)distribuições de quem tem poder, de quem empunha o
poder como um grande machado sobre um outro que é ‘reprimido’,
do que com um cálculo subtil do poder como ‘um conjunto de instrumentos, técnicas, procedimentos, níveis de aplicação [e] alvo’61
onde diferentes pessoas ou agências procuram fazer mudanças entre
elas que acabam por ser internalizadas (como se livremente escolhidas) pelo ‘outro’. Neste processo, Foucault fornece um ‘modelo’ de
poder fortemente espacializado, completo de referências a ‘canais’,
‘capilares’, ‘transmissões’ e ‘retransmissões’, e é evidente que estas
referências giram mais para além da mera metáfora, iluminando as
reviravoltas do poder em inúmeros espaços ‘reais’ materiais de actividade humana.
Por um outro lado Discipline and Punish oferece uma narrativa
histórica alicerçada e preocupada com as formas dinâmicas de poder
desde o início do período moderno na Europa (de 1600 até 1700) até
ao período moderno (de 1800 até 1900). O primeiro período é testemunho de um ‘terrível’, tal como em regime ‘terror-ífico’ apoiado
numa retribuição sangrenta e no quebrar do corpo do condenado
(tal como mostrado graficamente na arrepiante descrição da execução de Damien em 1757, com a qual Foucault inicia o seu livro). O
soberano ou monarca exercia o poder de forma cruamente violenta,
martirizando a população à obediência através de penas aparatosas
(desde pequenas mutilações até esquartejamentos totais), sendo a
sua ambição o controlo, desta forma dramática, de mentes e corações
turbulentos. O último período conduziu a uma forma de poder nova,
mais eficiente, mais limpa e com maior alcance, uma forma que parou de tratar o corpo meramente como ‘carne’ a ser pendurada com
o propósito de provocar o medo nos sujeitos da sociedade, mas que
ao invés procurou agir no corpo do prevaricador de modo a incluí-lo
199
Geografias do Corpo
na sua própria reforma. O objectivo tornou-se muito mais acerca da
produção de ‘corpos dóceis’, uma frase cara a Foucault, que estariam
disponíveis para uma reintrodução na força de trabalho, pelo que o
jogo do poder deixou de ser simplesmente destruidor (mutilando e
finalizando) e passou a ser mais produtivo (construindo ‘novas’ possibilidades, coisas, pessoas). Para esta transição foi fundamental o
aparecimento no início do século XIX por toda a Europa de instituições prisionais segregadoras, contendo espaços cuidadosamente
regulados nos quais a produção de ‘corpos dóceis’ podia ocorrer,
sendo a existência de uma ‘maquinaria de prisões grandemente uniforme, cuja rede imensa de edifícios se estendia por França e pela
Europa’62 particularmente significativa. Sob esta luz, a Penitenciária
Stateville de Ragen, tal como descrita por Kantrowitz, é apenas uma
herdeira no século XX deste grande sonho da prisão como um sítio
controlado para ‘punição’ mas também para ‘disciplina’, e talvez
mesmo para reforma dos piores criminosos da sociedade.
No entanto, a importância do texto de Foucault para Kantrowitz é
mais profunda, porque muito de Discipline and Punish tem um paralelo com Close Control na sua obsessão pelos detalhes das práticas
de controlo que distinguem o funcionamento da instituição de cárcere moderna. Foucault presta atenção a muitas instituições diferentes
desde o final do século XVII até ao início do século XIX63, incluindo o ‘modelo de Filadélfia’ iniciado na Prisão de Walnut Street que
foi o ‘berço da penitenciária’64, ao mesmo tempo que ensaia ideias,
propostas e desenhos de vários pensadores penais desse tempo. Foi
no entanto o célebre ‘Panóptico’ de Jeremy Bentham, um desenho
ambicioso para uma prisão que Bentham admitiu poder ser estendida para outras instituições como asilos, hospitais, escolas e mesmo
fábricas, que Foucault considera como a figura arquitectónica par
excellence da emergência do regime moderno do ‘poder disciplinatório’65. O Panóptico dependeu de uma manipulação subtil dos
seus espaços internos para atingir o objectivo de controlar e mesmo
reformar os presos, no sentido em que o seu propósito era o de permitir uma constante (ameaça de) inspecção, vigilância, que podia
apanhar presos dentro de num campo de visão geral, onde qualquer
contorção e trejeito estavam sujeitos a escrutínio (e se necessário a
200
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
reprimenda). Mais concretamente, a intenção era ter um edifício circular contendo níveis de celas individuais para os presos dispostas
em torno de um perímetro, com pequenas janelas que permitiam luz
em cada uma delas, e todas viradas para o interior através de barras
de ferro e para uma torre central de inspecção onde os guardas estavam sempre em funções. Este arranjo espacial, juntamente com um
sistema elaborado de iluminação e cortinas na torre, supostamente
deixava os presos com a impressão de que podiam estar sempre sob
vigia, mesmo que os guardas estivessem a olhar noutra direcção,
impedindo-os assim de alguma vez se sentirem livres da observação
e possível recriminação. A derradeira ideia era a de que os presos
terminariam internalizando este olhar externo, no sentido em que
seriam forçados a desenvolver um ‘olho interno de consciência’66,
monitorizando e censurando a sua própria conduta, sendo que o ideal seria a sua auto reforma e recreação que os conduziria à população
trabalhadora adequada (um resultado produtivo da prisão, e não destrutivo de um corpo flagelado inútil). Foucault analisa o panóptico
em detalhe, encontrando aqui inúmeros princípios relacionados com
a vigilância e também com a separação de prisioneiros que prevenia
o típico ‘contágio moral’ de prisões antigas, onde muitos prisioneiros eram frequente e indiscriminadamente misturados em espaços
confinados, sendo que muitos dos avanços conceptuais e riqueza
substantiva de Discipline and Punish dependeram, na sua ‘arqueologia’, do Panóptico de Bentham. Tal como referido, Kantrowitz
argumenta que as celas em círculo de Stateville foram influenciadas
pelo design de Bentham67, e que a ilustração da capa do seu livro,
que mostra a torre de guarda dentro de uma das celas, transmite uma
impressão tão próxima daquela contida nos documentos de Bentham
(e também no texto de Foucault: especialmente a Figura 4, entre
as p.162 e p.163), quase como negando a necessidade de qualquer
comentário adicional.
O tratamento que Foucault dá ao Panóptico deve ser entendido
no contexto de uma escavação mais ampla e de muitas dimensões
espaciais pertencentes à ‘disciplina do poder’, um projecto que é
assinalado por Foucault sem timidez quando declara que ‘numa
primeira instância, a disciplina procede de uma distribuição de in-
201
Geografias do Corpo
divíduos pelo espaço’68. Foucault investiga criteriosamente o que
apelida de ‘arte das distribuições’69, desafiando técnicas espaciais
que se tornaram fundações virtualmente não estudadas de todos os
regimes modernos de cárcere, incluindo o de Stateville. Uma técnica é a ‘clausura’70, o simples facto de confinar os prevaricadores e
outras populações alvo atrás de muros e portas fechadas, sendo que
o director Ragen de Stateville dependia inquestionavelmente destas clausuras totais dos seus presos. Foucault reconhece que dentro
de uma reclusão é necessário haver uma ‘maquinaria [que] trabalha
o espaço de uma forma muito mais flexível e detalhada’71, e esta
‘maquinaria’ inclui uma segunda técnica, que é a de ‘localização ou
divisão elementar’72. Neste contexto, vale a pena citar Foucault de
forma alongada:
Cada indivíduo tem o seu lugar; e cada lugar o seu indivíduo.
Evitem-se as distribuições em grupos; dividam-se disposições
colectivas; analisem-se pluralidades confusas, massivas
ou transitórias. O espaço disciplinar tende a ser dividido
em tantas secções quantos os corpos ou elementos a ser
distribuídos. Devem-se eliminar os efeitos das distribuições
imprecisas, o desaparecimento descontrolado de indivíduos, a
sua circulação difusa, a sua coagulação instável e perigosa…
O objectivo é estabelecer presenças e ausências, o saber
localizar indivíduos, e saber construir comunicações úteis,
interromper os outros, saber supervisionar em cada momento
a conduta de cada indivíduo, assistir, julgar, calcular as suas
qualidades ou méritos. Deste modo, é um procedimento que
procura saber, dominando e usando. A disciplina organiza
um espaço analítico.73
O director Ragen pode não ter empregue exactamente o mesmo
vocabulário para expressar as suas ideias sobre a medição da distribuição dos prisioneiros através de controlos constantes de quem
está ‘no lugar’ (presença) e quem está ‘fora do lugar’ (ausente), mas
sabia perfeitamente a importância que esta ‘localização ou divisão
elementar’ tinha como base que permitia ter o conhecimento exacto
num determinado momento, e actuar caso este fosse discrepante.
Uma terceira técnica listada por Foucault é a de ‘sítios funcionais’74,
relacionada com as vantagens de assegurar que muitos dos espaços
202
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
ocupados por detidos em instituições de clausura deviam ser tornadas ‘úteis’: ‘é uma questão de distribuir indivíduos num espaço
onde possam ser isolados e cartografados; mas também uma questão de articulação desta distribuição numa maquinaria de produção
que tem os seus próprios requisitos’75. Em particular, isto quer dizer
que muitos dos espaços podem ser preenchidos com trabalho, com
actividade produtiva organizada, e neste sentido Foucault começa a
formular um argumento mais vasto sobre a forma como numa instituição enclausurada o potencial para uma divisão funcional de diferentes tipos de pessoas, tarefas de trabalho e unidades espaciais,
estava associada às origens da fábrica enquanto sítio de produção
industrial capitalista (ver adiante). Diariamente em Stateville, eram
atribuídos trabalhos específicos aos prisioneiros, quer nos jardins,
nas lojas ou nas ‘fábricas’ dentro e ocasionalmente fora da prisão, o
que significava que em certa medida a prisão incluía uma geografia
funcional de trabalho produtivo.
Existem muitos outros elementos espaciais em Discipline and
Punish, tal como a noção de um ‘panopticismo’ mais geral que se
difunde a partir do ‘arquipélago de cárcere’76, modelando os espaços
disciplinadores da sociedade não encarcerada, mas quero começar a
fechar o círculo do meu argumento, clarificando os pensamentos de
Foucault em relação ao que designo de ‘população acumulada’. O
argumento simples de que as instituições como prisões acumulam
população, juntando um grande número de pessoas em espaços relativamente exíguos, já foi apresentado, mas para Foucault existem
consequências importantes acerca do facto de corpos serem amontoados dentro de limites (murados) definidos. Na discussão das ‘disciplinas’, isto é, nas diversas técnicas que se começavam a aplicar
nas instituições prisionais no início do século XIX, Foucault sugere
que ‘as disciplinas são técnicas para assegurar a ordem das multiplicidades humanas’77 e que a questão relevante é a forma como nesta altura a sociedade europeia estava a começar a encontrar formas
de lidar com grupos tão grandes de pessoas (as ‘multiplicidades’).
Prossegue então para um breve resumo de dois processos históricos
inter-relacionados, um demográfico e o outro relacionado com a industrialização capitalista.
203
Geografias do Corpo
Um aspecto desta conjuntura foi o grande poder demográfico
do século XVIII; um aumento na população flutuante (um
dos objectos primários da disciplina é fixá-lo; é uma técnica
anti-nómada78); uma mudança na escala quantitativa nos
grupos a serem supervisionados ou manipulados (desde o
início do século XVII até à aurora da Revolução Francesa,
a população escolar aumentou rapidamente, tal como
inquestionavelmente a população hospitalar; no final do
século XVIII o exército em tempo de paz ultrapassava
os 200 mil homens). O outro aspecto da conjuntura era o
crescimento do aparelho de produção, o qual se tornava cada
vez mais extenso e complexo; também se tornava cada vez
mais caro tendo a sua rentabilidade que ser aumentada.79
É na ‘correlação’ destes dois processos que Foucault detecta o ímpeto para o desenvolvimento das disciplinas, as novas técnicas que
mais obviamente se instalaram nas instituições de cárcere como a
prisão, mas que também se difundiram pelos lugares emergentes de
produção capitalista – as oficinas, as moagens e as fábricas – cuja
raison d’être era juntar trabalhadores e atribuir-lhes diferentes tarefas (numa cadeia de produção) em diferentes micro-espaços (diferentes partes do mesmo edifício). As disciplinas foram chamadas
à acção para ‘controlar todas as forças que são criadas da própria
constituição de uma multiplicidade organizada’80, para converter
a massa caótica de população amontoada em espaços restritos, em
conjuntos de interacção eficiente, mutuamente benéficos e serenamente manobrados. Modelos ‘terror-íficos’ mais antigos e baseados
na palavra e violência de um soberano eram completamente inapropriados para efectuar esta transformação, simplesmente porque
em parte os números eram adversos. As congregações espessas de
corpos humanos (quer fossem prisioneiros, trabalhadores ou ambos)
permitiam demasiadas oportunidades para resistência, para o exercício de ‘contra-poder’81, e consequentemente para a fricção nos
sistemas, o que faria os espaços inúteis, resultando em prisões ingovernáveis e em oficinas não lucrativas. A resposta foi dada por novos
modelos de disciplinas de poder, na medida em que produziam os
seus efeitos através de modos de extensão de controlo muito mais
subtis, e assim ‘as disciplinas [tornaram-se] o conjunto de invenções
204
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
técnicas minuciosas que possibilitaram o aumento da dimensão útil
das multiplicidades, diminuindo as inconveniências do poder que,
de forma a torná-las úteis, deveria controlá-las’82.
As questões de demografia e população são assim centrais para a
narrativa de conjunto de Foucault, que alonga a sua análise de forma
a tornar mais explícitas as ligações entre uma interpretação marxista quer do ‘economic take-off’ ocidental por volta de 1800 quer
‘das técnicas que tornaram possíveis a acumulação de capital’83.
Resultando dos seus argumentos sobre as disciplinas que emergem
da acumulação de população em certos espaços, prisões ou oficinas,
Foucault elabora os seguintes comentários:
De facto, os dois processos – a acumulação de homens [sic]
e a acumulação de capital – não podem ser separados; não
teria sido possível resolver o problema da acumulação de
homens sem o crescimento de um aparelho de produção
capaz de sustentá-los e de usá-los; Pelo contrário, as
técnicas que fizeram a multiplicidade cumulativa de homens
aceleraram utilmente a acumulação de capital. A um nível
mais detalhado, as mutações tecnológicas do aparelho de
produção, a divisão de trabalho e a elaboração de técnicas
disciplinatórias sustentaram um conjunto de relações muito
próximas.84
De forma a esclarecer a trajectória destes argumentos, Foucault
coloca uma transferabilidade do início do século XIX, nas técnicas disciplinares novas e fortemente espacializadas de fábricas para
prisões e vice-versa, algo que apelida de ‘amontoar de mecanismos
disciplinares’85, tornando possível a difusão de um ‘panopticismo’
mais vasto que eventualmente começa a verter para fora de instituições de cárcere, para o controlo e instigação de maiores produtividades da população em geral (ver adiante). Em última análise,
através deste pensamento, estes resultados estavam dependentes de
geografias da população variáveis. Por um lado, existia uma crescente população associada às alterações demográficas da Europa do
século XVII e início do século XIX, ligada também ao aumento de
concentração de população em cidades e regiões particulares. Por
outro lado, havia o aparecimento de espaços (prisões, oficinas) que
necessariamente acumulavam população em espaços muito restri-
205
Geografias do Corpo
tos, dando assim origem a novas técnicas – as disciplinas, exercícios
em geografias micro-populacionais aplicadas – que apropriadamente tornaram esta aglomeração de ‘multiplicidades’, administrável,
produtiva e lucrativas (quer através da reabilitação de malfeitores
que podiam retornar à força de trabalho, quer através de um aumento da velocidade e da eficiência produtiva e consequentemente da
‘acumulação de capital’).
Posfácio 1
Talvez deva agora revelar, à medida que caminho para uma conclusão, que provavelmente é menos o Foucault de Discipline and
Punish e mais o Foucault de trabalhos mais tardios, notavelmente
os seus três volumes de History of Sexuality86, que é potencialmente
o de mais interesse para os geógrafos da população. Certamente, tal
como o sociólogo Mitchell Dean87 explica quando discute o primeiro
volume desta mencionada trilogia, ‘aquele volume delgado…contém
sugestões, particularmente no capítulo final que introduz a noção de
biopolítica, ou de um poder sobre a vida que se opera a um nível
de inteiras populações globais, que Foucault sente a necessidade de
dizer algo mais sobre as estratégias globais do Estado’. A atenção
de Foucault direcciona-se desta forma para o domínio formal das
intervenções do Estado na gestão da população, tal como expresso
nas diversas políticas desenhadas para monitorizar, analisar, planear
e regular os atributos da população, tais como níveis absolutos, taxas
de natalidade e mortalidade, saúde e inteligência, e mesmo género, idade e composições étnicas. Consequentemente, o seu trabalho
concerne directamente a preocupação já longa de muitos geógrafos da população acerca de um conjunto de políticas populacionais
planeadas e executadas por governos nacionais e sub-nacionais, tal
como consta por exemplo no último capítulo do texto Population
Geography de How Jones88.
No entanto, deve também ser acrescentado que Foucault não diz
muito sobre estas políticas estatais públicas, tal como sobre a promoção do planeamento familiar, e a sua atenção é imediatamente captada pelas influências mais indirectas que são trazidas pelo Estado
e seus funcionários, mas também por outras instituições poderosas
206
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
tais como a igreja, o direito e a ciência, que detêm um grau de autonomia do Estado em quase todas as partes do mundo. Desta forma, a
sua atenção abarca uma diversidade de ‘discursos’, pelos quais quer
dizer corpos organizados de conhecimento, deliberação e prescrição,
produzidos por quem detém o poder, por eclesiásticos, advogados,
cientistas e inúmeros outros ‘engenheiros sociais’89, que lidam com
estas matérias, tais como condutas sexuais, saúde sexual, relações
apropriadas entre homens, mulheres, rapazes e raparigas, e com a
necessidade de vigilância destas premissas demográficas, quer directamente (pelo Estado, os seus recenseadores e a sua polícia), quer
indirectamente (através de processos chave tais como a ‘confissão’
na igreja católica)90. Um outro termo frequentemente usado neste
contexto é o de ‘biopoder’, e um argumento chave é o de que quando os princípios de biopoder são difundidos através de uma massa
social, os indivíduos acabam por ser encorajados, amedrontados ou
envergonhados em direcção a uma auto-determinação e auto-controlo das suas próprias actividades pertencentes à reprodução sexual,
formação familiar e à manutenção de ‘austeridade’ corporal e saúde
mental. Neste respeito Foucault91 escreve sobre a ‘governamentalidade’, e Joe Painter significantemente relaciona vários pensamentos
numa passagem que também sublinha a pertinência de Foucault sobre a governabilidade para os geógrafos da população:
Com a passagem para o que Foucault designa por
governamentalidade, o soberano de um país começa por
adquirir um interesse, e perseguir estratégias em relação
às pessoas que vivem no território do Estado e aos seus
assuntos, incluindo as actividades económicas, as normas
sociais e por aí fora. Previamente, o que as pessoas faziam
não tinha grande importância para o príncipe, excepto quando
ameaçavam o Estado. A identificação das pessoas do Estado
como uma população foi fundamental para esta mudança, o
que foi percebido como o âmago preciso da arte de governar.
Para Foucault, os discursos e práticas da governamentalidade
surgem durante o século XVI, juntamente com os objectos
de governo: a população de um dado território.92
Tal como acontece, um ou dois geógrafos da população e seus colegas, começaram a reconhecer as possibilidades de usar o Foucault
207
Geografias do Corpo
mais tardio nos seus estudos, e recentemente, Carlonie Hoy tentou
adoptar ‘as teorias de Foucault sobre a sexualidade e disciplina como
uma ferramenta para a investigação da cultura sexual nos adolescentes da China e na provisão de programas educacionais’93. Ao mesmo
tempo que nos recomenda cautela na transposição das formulações
de Foucault de uma génese europeia para um contexto marcadamente não ocidental, Hoy escreve o seguinte:
Um dos temas principais de Foucault foi a representação do
sexo como um discurso que albergava o desenvolvimento
do conceito de ‘população’. O Estado regulava a população,
através da operação que Foucault designa por ‘biopoder’.
Biopoder é definido como o poder da vida sobre as próprias
populações, isto é, a governância da reprodução, da
mortalidade e da morbilidade.94
No capítulo quatro do livro de Michael Brown Closet Space:
Geographies of Metaphor from the Body to the Globe95, encontra-se
um outro exemplo que é partilhado com Paul Boyle, onde se questiona até que ponto é que os segmentos das população nacional gays
e lésbicos são tornados visíveis ou deixados encobertos nos casos
dos censos americanos ou ingleses. Construído sobre a noção explicitamente foucauldiana análoga às já delineadas, Brown argumenta
neste seu capítulo e de Boyle que ‘relacionamo-nos com as ideias de
governamentalidade como uma forma através da qual a sexualidade
pode ser entendida como um exercício de poder disciplinatório em
exercícios estatísticos de definição nacional’96. É talvez prematuro
sugerir que estas palavras reflectem uma Geografia da população
foucauldiana, e devemos estar atentos acerca de um rótulo como
este, mas os sinais mostram a possibilidade de um diálogo valioso
entre o saber foucauldiano e a subdisciplina.
O meu artigo procura aqui contribuir para um tal diálogo, apesar de o fazer através de um mecanismo específico, relacionando
o livro de Kantrowitz sobre o director Ragen da penitenciária de
Stateville com os argumentos de Foucault presentes em Discipline
and Punish, revelando vigorosamente as dimensões espaciais nitidamente complementares nos dois trabalhos. O argumento de que
as instituições penitenciárias constituem exercícios de geografia
208
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
mico-populacional aplicada, surge de uma leitura de Discipline and
Punish que presta particular atenção aos interesses de Foucault nos
minuciosos tempos e espaços de vida para as populações institucionalizadas. Mas esta leitura também toma seriamente em consideração o que Foucault expressa sobre as ligações estruturais mais
amplas entre o crescimento da população, o aumento do capitalismo
industrial e a necessidade de encontrar estratégias para gerir a acumulação de população que se congrega em cidades, fábricas e prisões na Europa do pós ancien regime. O meu argumento é o de que
há aqui temas algo genéricos que podem adquirir uma importância
de maior destaque na literatura da Geografia da população, ou que
deveriam pelo menos ser reconhecidos como matéria designada significativamente como de ‘Geografia da população’ – uma Geografia
da população real e terrena para além da academia – que na verdade
tem sido fundamental para as fabricações da história e sociedade
humana no ocidente (e talvez mesmo para além deste). Apesar da
relevância da população, quer como objecto de conhecimento quer
como alvo de intervenções, ser menos marcada em Discipline and
Punish do que quer em The History of Sexuality, Vol.I97 ou no artigo
da governamentalidade98, insisto mesmo assim em que os temas que
começaram a ser explorados no primeiro texto, relacionados com a
acumulação, inventariação e gestão de populações, são os que subsequentemente vêm à tona, outorgando ao Foucault mais tardio um
potencial ainda maior para os geógrafos da população. Este artigo
procurou aprofundar esta incipiente Geografia da população contida em Discipline and Punish, em parte ao contrapor este texto ao
de Kantrowitz. Ao fazê-lo espero ter proporcionado uma exposição
que tem os seus próprios méritos, especialmente ao reflectir sobre as
sucessivas populações, corpos, instituições e espaço, estabelecendo
ao mesmo tempo algumas fundações textuais para os geógrafos da
população que podem querer analisar de forma mais sustentada o
Foucault tardio.
Posfácio 2
O primeiro posfácio foi escrito como parte do artigo original de
2001, mas quero aqui adicionar um segundo posfácio, ainda que
209
Geografias do Corpo
muito breve. Felizmente, as previsões do meu posfácio revelaram-se
bastante precisas, pois desde 2001 que os geógrafos da população
começaram a prestar mais atenção a Foucault99, e de forma ainda
mais significativa, começaram a apoiar-se fortemente no conjunto
do seu corpus, não apenas em Discipline and Punish mas também
nos seus trabalhos mais tardios, onde a biopolítica - e talvez de forma
mais ampla, o biopoder – se torna um foco de atenção muito mais
distinto. Neste contexto, a contribuição de Stephen Legg com o artigo ‘Foucault’s Population Geographies: Classifications, Biopolitics
and Governmental Spaces’ em 2005, é exemplar. Profissionalmente,
Stephen não se posiciona como um geógrafo da população, mas
como ‘um geógrafo com um interesse constante na população’100,
que abrange materiais que se estendem para além dos terrenos da
Europa ocidental comummente pisados por Foucault, levando em
consideração versões coloniais da geografia da população aplicada
(micro e macro), impostas pelos imperialistas britânicos na Índia.
Entretanto, um livro notável a este respeito é War, Violence and
Population: Making the Body Count da autoria de James Tyner em
2009, que desenvolve um enquadramento foucauldiano bastante
maleável para investigar as demasiadamente frequentes biopolíticas
sangrentas da história mundial recente, colocando carne, sangue e
ossos nas esqueléticas figuras, gráficos e mapas da Geografia da população convencional, mesmo que seja somente para mostrar como
os corpos humanos, que compreendem os ‘átomos’ das populações,
são desventrados desta carne, sangrados e os seus osso esmagados
pelas práticas presentes da gestão da população no terreno. Ao prestar-se uma atenção sustentada às manipulações biopolíticas da morbidade, mortalidade, migração, matrimónio e muito mais para além
de, e com referência às tragédias da violência de massa e genocídio
no Vietname, Cambodja e Ruanda, uma vez mais abarcando para
além da ‘zona de conforto’ empírica de Foucault, Tyner assegura
de forma sustentada que os textos da Geografia da população nunca
mais poderão ser os mesmos.
Legg está mais preocupado que Tyner com os detalhes académicos de como Foucault chega aos seus argumentos sobre biopolítica
e biopoder, revendo os vários estudos de Foucault soltamente cata-
210
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
logados como as suas fases ‘arqueológica’ e ‘genealógica’, e indiciando o que agora se torna ainda mais evidente com a publicação e
tradução das aulas do Collège de France de Foucault da década de
1970101: nomeadamente, que está longe de ser fantasioso caracterizar
Foucault como um ‘geógrafo da população’ fascinado pelas relações
entre corpos, populações e espaço (este último percebido de forma
diversa como ‘territórios [nacionais], distribuições de povoamentos
e recursos dentro de limites territoriais [de um Estado-nação], os riscos e ‘metabolismos’ imprevisíveis de cidades comerciais e industriais, e outras formulações possíveis da economia, política e espaço
social’). O que se torna claro da intervenção de Legg, bem como da
de outros geógrafos – muitos dos quais igualmente não se identificam como geógrafos da população – tais como Louisa Cadman102,
Stuart Elden103 e colaboradores do volume editado ‘Foucault and
Geography’104, é que analisar para trás e para diante o corpus de
Foucault revela uma orientação geral, se não desigual e quase nunca inteiramente coerente, para a forma como as vidas e mortes dos
corpos humanos se tornam o centro de discursos e práticas de ‘especialistas’, desde a escala do corpo individual canalizado através de
uma instituição de cárcere ou avisado por todos, desde o director ao
padre e ao terapeuta, para se comportar, até à escala de corpos-emmultiplicidade, analisados, medidos, julgados, identificados como
‘recursos’ ou ‘esgotos’, etiquetados como ameaças ou oportunidades, e por aí fora, por Estados-nação, poderes imperiais ou mesmo
outras variedades de autoridades governamentais (antigas, pré-modernas e modernas). Se existe uma forma de condensar as muitas
investigações de Foucault, esta reside na maneira como este resolve as proposições biológicas da vida e da morte, de corpos cheios
de vitalidade, tristemente decadentes ou prematuramente levados a
um termo, e na exposição crítica das múltiplas formas como estas
proposições têm sido constrangidamente manipuladas por ‘soberanos’ com o poder de deixar viver ou fazer morrer – não apenas os
soberanos ‘terror-íficos’ do ancient regime europeu, mas também
os que possuem autoridade democrática ou ditatorial, capitalista ou
socialista, ideologicamente motivados ou cientificamente informados (frequentemente conjugados), prevalecendo desde tempos mais
211
Geografias do Corpo
modernos até ao presente – e sempre, mesmo que em modos complicadamente diferentes, através da impressão (em todos os sentidos
da palavra) sobre corpos acumulados em população através do espaço. Gostava de insistir que aqui reside um problema absolutamente
central da e para a Geografia humana, problema este que transforma radicalmente, e em certa medida redimensiona o nosso interesse
emergente sobre o corpo; e é um foco que exige colaboração entre
as diferentes compleições do geógrafo – com certeza que o geógrafo
social que estuda a micro-escala dos corpos em lugares quotidianos,
mas também o geógrafo da população que estuda a massa de corpos
nas populações nacionais – e com constante alusão às críticas de
geógrafos políticos e económicos, atentos que são às espacialidades
resultantes de assegurar que as acumulações humanas sejam produtivas e governáveis.
Agradecimentos
Os meus agradecimentos a João Sarmento, José Ramiro Pimenta e
Ana Francisca de Azevedo por encorajarem-me a rever este artigo
para que pudesse ser usado nesta colecção.
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Notas
1
2001, Vol.7, pp.473-490. Revi ligeiramente este artigo com vista à sua
republicação, removendo alguns dos comentários originais introdutórios,
abreviando algumas das discussões especialmente relacionadas com outros
textos geográficos, adicionando algumas referências, e editando a extensão
de algumas frases procurando maior claridade. Alterei ainda alguns cabeçalhos. 2 Kearns (1985). 3 Usando a sua base de dados de 3350 óbitos por
cólera durante esta epidemia em 1849 em Londres, Kearns (1985: 22) afirmou que ‘é possível analisar os efeitos deste preconceito espacial que produziu um grande número de mortes em áreas com instituições onde não
seria o caso’. Um grande número de mortes em instituições como hospitais
e asilos foram inevitáveis devido às pessoas que se tornaram doentes fora
destas instituições tendo sido transferidas para estas como parte de um esforço ‘público e privado de auxílio. Trinta e sete porcento destas mortes
foram de pessoas já previamente internadas. 4 Ver por exemplo Boyle
(2000); Findlay e Graham (1991); Graham e Boyle (2000), Lawson (2000),
Ogden (1998), White e Jackson (1995) e Woods (1986). 5 CC: ix. 6 CC:1.
7
CC: xv. 8 CC: xiii. 9 CC: xiii. 10 CC: xiii. 11 CC: 193. 12 CC: 193. 13 CC: 191.
14
CC: 205. 15 CC: 35-75. 16 Os presos eram todos homens, sendo que nenhum dos guardas era mulher, e muito poucas mulheres alguma vez entraram em Stateville, excepto para visitas (CC: 2-4). O próprio Kantrowitz
conclui que ‘não havia forma de admitir mulheres numa prisão de segurança máxima sem adicionar mais uma complicação ao caldeirão de emoções
já existente’ (CC: 3). 17 CC: xv. 18 CC: 47. 19 CC: xv e 169. 20 ‘A nossa prisão,
a prisão de Stateville, era a maior instituição (quase 3500 condenados) no
complexo penitenciário de Joliet-Stateville, que também incluia a mais
pequena e antiga prisão Joliet, um centro de recepção, e uma quinta com
810 hectares. Este complexo alojava quase 5000 presos (CC: xiv). 21 CC:
51; ver figura 1. 22 CC: 61. 23 CC: 60. 24 CC: 58; ver figura 2. 25 CC: 62. 26 CC:
62-63. 27 CC: 46. 28 CC: 46-47. 29 CC: 49. 30 CC: 52; ver Figura 3. 31 CC: 67.
218
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
CC: 65. 33 CC: 93. 34 CC: 93. 35 CC: 55. 36 CC: 66. 37 CC: 66. 38 CC: 110168. 39 CC: 76-109. 40 Ver quadros em CC: 104 e 109. 41 CC: 96. 42 CC: 96.
43
CC: 69. 44 CC: 172-182. 45 CC: 69-72. 46 CC: 69. 47 CC: 69. 48 CC: 70.
49
CC: 69. 50 CC: 71. 51 CC: 71. 52 Por exemplo Baer 2006, Dirsuweit 1999,
Drohan 1998 e 2000, Ferrant 1997, Marshall 1997a e 1997b, Ogborn 1995,
Pallot 2005, 2007 e 2008, Valentine e Longstaff 1998, van Hoven 2006 e
2007. 53 Sack 1986: 181 e Fig.6.7: 191. A ligação entre a prisão moderna e
a fábrica capitalista como regimes semelhantes de acumulação e gestão de
população, ambas com origens interligadas no desenrolar da história europeia, é explorada por vários comentadores: ver, por exemplo, Mellosi e
Pavarini (1981). Uma base foucauldiana para pensar nos espaços de fábricas tem sido adoptada por geógrafos históricos como Stein (1995) e
Wainwright (2000 e 2005). 54 Sack op. cit.: 1. 55 Ibid.: 181. 56 Ibid.: 181-183.
57
Ibid.: 182-188. 58 Philo e Parr (2000). 59 Ver também Driver (1990, 1993 e
1994), Philo (1989a) e Ploszajska (1994). 60 Driver (1985 e 1992), Hannah
(1992, 1997a e 1997b), Koskela (2000) e Sharp et al (2000). 61 DP: 215.
62
DP: 115. 63 Vários outros autores fornecem um paralelo, se bem que através de levantamentos empíricos mais sistemáticos, das mudanças na organização, arquitectura e geografias (breves) destas instituições, e é apropriado mencionar a contribuição exemplar das ideias de Thomas Markus (1982,
também Markus 1993). Em Philo (1999) apresento uma articulação sustentada com algumas das ideias de Markus sobre o ordenamento geométrico
destes espaços institucionais, tais como moldados pelas ideologias do
Iluminismo. 64 DP: 123-126, ver também Evans (1982) e Teeters (1935).
65
DP: 200-209. Deve ser sublinhado que o Panóptico não é somente a figura arquitectónica que aparece em Discipline and Punish, e que na verdade
Foucault coloca maior relevo através do exemplo de uma instituição aparentemente não panóptica, o reformatório Mettray em França, cuja abertura
em 1840 é por ele vista como o momento em que um ‘panopticismo’ mais
vasto chegou totalmente ao panorama europeu (DP: 293). Mettray não funcionava através de assegurar a presença e vigilância imediatamente visível
dos presos, mas sobretudo através de uma mais imperceptível rede de obrigações, expectativas, imperativos e humilhações nas quais os presos juvenis e as suas acções estavam inevitavelmente embrenhados. Os arranjos
espaciais que permitiram a Mettray ‘fazer o seu trabalho’ eram no entanto
tão importantes como aqueles que subjaziam ao Panóptico (Driver 1990).
66
Ver também Bender (1987). 67 CC: 58. 68 DP: 141. 69 DP: 141. 70 DP: 141.
71
DP: 143. 72 DP: 143. 73 DP: 143. 74 DP: 143. 75 DP: 144. 76 DP: 297. 77 DP:
218. 78 A sugestão de que os regimes disciplinatórios são essencialmente
‘anti-nómadas’ encontra eco em muita teorização recente sobre os desafios
32
219
Geografias do Corpo
que o ‘nomadismo’ coloca, quer teórica quer empiricamente, às ordens intelectuais e práticas modernas, tal como discutido na literatura geográfica
de forma mais notável por Cresswell (1996), Halfacree (1996) e Sibley
(1981 e 1995). É intrigante ver este argumento em Foucault (1977), atribuída que é especialmente a centralidade do ‘pensamento nómada’ ou ‘ciência nómada’ ao pós-estruturalismo de Deleuze, um outro intelectual francês
claramente inspirado pela ‘nova cartografia’ de Foucault em Discipline and
Punish (ver Deleuze 1986). Ver também a discussão na literatura geográfica por parte de Atkinson (2000), Cresswell (1997) e Doel (1996 e 1999).
79
DP: 218. 80 DP: 219. 81 DP: 219. 82 DP: 220. 83 DP: 220. 84 DP: 221.
Sintomaticamente, a última frase desta passagem é seguida por uma referência explícita a Marx - ‘(cf. Marx, Capital, vol. I, capítulo XIII)’ (DP:
221) – sublinhando assim a relevância para Foucault de uma mais vasta
análise conceptual Marxista . É possível identificar uma ‘Geografia da população marxista que tenta estender a análise de Marx relacionando a classe económica a questões sobre população, controlo de recursos e à necessidade dos trabalhadores se deslocarem de forma a seguirem as instruções do
capital (Flowerdew 2000). Huw Jones (1990: 20-21) desenvolve o modo
como o conceito de ‘modos de produção’ marxista auxilia os geógrafos da
população na explicação dos aspectos da ‘transição demográfica’ (destacando o argumento de Marx de que ‘qualquer modo especial e histórico de
produção tem as suas próprias leis especiais de população). Jones (1986 e
1990: capítulo 9) também organiza manifestamente um ‘argumento marxista determinístico’ para explicar as fases na ‘transição da mobilidade’,
forjando o que designa de ‘abordagem relações-de-produção-sociais’ para
o estudo dos padrões dinâmicos de migração na Escócia desde o século
XVII até ao final do século XX. Deste modo, associa a chegada do capitalismo industrial ao aumento de correntes de população migratória no crescimento dos centros urbanos do Central Belt (especialmente Glasgow),
todos eles ligados às relações sociais (de classe) em mudança articuladas
em torno de fábricas e residências. Rosa Ester Rossini (1984) é ainda mais
explícita no enquadramento marxista que usa para teorizar ‘espaço e população’, partindo de Marx e de marxistas latino americanos para especificar
a medida em que a produção capitalista ‘necessita...de uma massa de trabalhadores trabalhando e cooperando’ (Rossini 1984: 41). Ela supõe que ‘a
concentração de capital’ necessita ‘de uma subsequente concentração espacial de actividades’, ao mesmo tempo que invoca quer novas ‘divisões espaciais de trabalho’ quer novas formas de integrar o processo de trabalho
dentro de determinadas ‘unidades espaciais’ de produção (soluções técnicas recentes desenhadas para aumentar a produtividade de trabalhadores
220
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
massificados nestas ‘unidades espaciais’) (Rossini 1984: 38-39). Os textos
destes ‘geógrafos da população marxistas’ ligam-se assim fortemente com
o teor marxista de certas partes da narrativa de Foucault em Discipline and
Punish. No contexto mais vasto da literatura da geografia académica, vale
a pena notar que autores como David Harvey (1974) desde cedo marcaram
os parâmetros de uma pesquisa inspirada em Marx e nas relações entre
população, ambiente e recursos. 85 DP: 211-212. 86 Foucault (1979a, 1985 e
1986). 87 Dean (1994: 175). 88 Jones (1990). Ver também Fuchs (1984) e
Thomas (1986). 89 Philo (1989b). 90 A geógrafa Lynn Blake (1999) completou um estudo persuasivo que inclui seriamente argumentos foucauldianos
sobre o ‘poder pastoral’ exercido por missionários Oblatos que tentam moldar as subjectividades (e as espiritualidades) de povos ‘nativos’ no Canadá.
91
Especialmente Foucault (1979b).. Este ensaio, originalmente uma palestra proferida em 1978 e primeiramente publicada em inglês em 1979
(Foucault 1979b) e novamente em 1991 (Foucault 1991), prossegue a preposição de que ‘é necessário analisar as séries: segurança, população, governo’ (Foucault 1991: 87). De forma mais específica, Foucault discute
como concepções e práticas mais antigas de governo, delineadas nas dinâmicas da família (o pai como soberano), foram gradualmente suplantadas
no final do século XVIII por novas concepções e práticas centradas no
‘problema de população’ (Foucault 1991: 99). Esta não é a ocasião para
rever em detalhe o que Foucault reconhece terem sido as causas e consequências desta transição onde ‘a população aparece acima de tudo como o
último objectivo de governo’ (Foucault 1991: 100), mas Foucault desenvolve de forma brilhante a sua relação com antigas tradições ‘pastorais’
cristãs – destacando sempre o papel contínuo da organização cristã no governo das populações europeias – bem como identificando como ‘um regime…controlado por [novas] técnicas de governo direcciona a atenção para
o tema da população e…do nascimento da economia política’ (Foucault
1991: 101). Estas são seguramente matérias que devem entusiasmar a atenção dos geógrafos da população. Ver também Sharp et al (2000: 16-19) e
Ogborn (1998: 48). 92 Painter (1995: 38). 93 Hoy (2000:8). Curiosamente,
Caroline How é influenciada no seu trabalho pela erudição de Michael
Dutton (1992), que está preparado para usar as ideias de Foucault sobre a
população, governação e modernidade europeia como uma lente contra a
qual se estudam as mudanças nas práticas chinesas de registo, policiamento
e punição, incluindo os regimes penais. O interesse de Dutton nestas matérias, enquadradas em parte no pensamento quer do Foucault intermédio
quer do Foucault ‘tardio’ e perpassado por referências de tratamentos quer
disciplinatórios quer governamentais a populações (chinesas), destaca-se
221
Geografias do Corpo
como mais um comentário agudo à variedade de ligações relevantes a este
artigo. 94 Hoy (2000: 9). 95 Brown (2000). 96 Brown op.cit.: 22. 97 Foucault
(1979a). 98 Foucault (1979b). 99 Por exemplo Findlay (2003), especialmente
pp.180-184. 100 Legg (2005: 138). Ver também Legg (2007a e 2007b).
101
Especialmente Foucault (2003, 2007 e 2008). 102 Cadman (2009).
103
Elden (2007a e 2007b). 104 Crampton e Elden (2007).
Notas tradução
Artigo original em língua inglesa. Tradução por João Sarmento em 2009,
com revisão do autor. i Actuary é o trabalho desempenhado por uma pessoa
que calcula riscos, prémios, esperanças de vida, etc. de forma estatística,
geralmente para fins de seguros.
222
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
Figura 1 – ‘Estruturas e esquemas da Penitenciária de Stateville’.
Fonte: Kantrowitz 1996: Figura 3.2: 51
(redesenhado para a versão portuguesa).
223
Geografias do Corpo
Figura 2 – ‘Diagrama de uma cela em círculo, cerca de 250 celas’.
Fonte: Kantrowitz 1996: Figura 4.1: 57
(redesenhado para a versão portuguesa).
224
População Acumulada: Corpos, Instituições e Espaço
Figura 3 – ‘Principais movimentos de prisioneiros durante o dia por
direcção especial, para as celas B, E e F’.
Fonte: Kantrowitz 1996: Figura 3.3: 52
(redesenhado para a versão portuguesa).
225
O corpo, lugar do tempo
José R amiro Pimenta
Um ‘ponto de vista geográfico’ tem vindo a firmar-se no estudo das
relações e práticas sociais. São tomados em conta conceitos associados à Geografia, como lugar, espaço ou paisagem, e o tipo de
efeitos que produzem na estruturação, manutenção e reprodução das
relações sociais’.1 A área da história e filosofia da Ciência não escapou a esta voga e podem ver-se já em inúmeros trabalhos exemplos
da consideração dos efeitos geográficos na história da produção e
difusão do conhecimento científico. É porém necessário dizer que
não pretendemos reduzir o discurso geográfico ao género científico
produzido especialmente pela disciplina da Geografia. A inclusão
de propostas ‘geográficas’ em ciência social é tão mais importante
quanto a tradição do pensamento moderno ocidental sempre privilegiou o tempo em detrimento do espaço como factor de evolução dos
fenómenos sociais.2
Não esquecendo nunca esta distinção entre ‘geografia’ como discurso geral e a prática específica da disciplina da Geografia, e escolhendo o primeiro deles como o mais importante na caracterização
de uma abordagem que incorpora os conceitos de lugar, de espaço
e de paisagem na análise da história da Ciência, creio que podemos
afirmar que estamos em presença de uma ‘inflexão geográfica’ nas
Ciências Sociais. É neste contexto que procederemos a uma breve caracterização do ‘lugar do corpo’ na teoria histórica de Michel
Foucault (1926-1984) e Edward Said (1935-2003), dela pretendendo recolher, por fim, uma invariante ontológica funda sob a aparente
diversidade epistemológica dos dois autores.
Geografias do Corpo
Tempo
Dos trabalhos em que se pode constatar uma incorporação do espaço
como factor explicativo da estrutura social do poder, os de Foucault
não são decerto os menos importantes. Neles podemos ver o modo
como o conceito de espaço e a consideração dos seus efeitos são
tomados em consideração na análise histórica da sociedade.3
Foucault, ao contrário da maioria dos autores modernos, elege
como ‘trope’ narrativo não a continuidade, a ‘história’ do conhecimento e do saber, mas, ao contrário, os momentos e os lugares
de crise e de descontinuidade, os interfaces de conflito e repressão,
configurando antes uma ‘arqueologia do saber’.
Nesse contexto, parte do seu esforço interpretativo tem como objectivo demonstrar que a visão continuista e presentista da evolução
do pensamento ocidental da Modernidade é mais uma ficção do que
um facto, estando permeado de constantes relações de contingência,
que só retrospectivamente se apresentam como uma unidade evolutiva. Ora, uma manifestação específica e esperada dessa relação de
contingência é o carácter ‘situado’ do conhecimento, isto é, intimamente entretecido com as relações sociais de conflito e repressão
que o tornam eficaz, ou pelo menos viável. É proverbial referir a
noção que detém Foucault de que o ‘poder está inscrito no espaço,
não no tempo’.4
Justamente porque para Foucault o carácter constitutivo do lugar
e do espaço na definição e manutenção da relação de poder é incontornável é que quando apresenta exemplarmente a sua história
fá-lo a partir de ‘espaços de poder’, lugares em que se organiza a
concretização explícita e brutal do poder do conhecimento e do reconhecimento do poder, a prisão, o hospício, etc.5 Mas existe uma
outra dimensão muito importante na caracterização que Foucault
faz destes espaços, e que passa pela constatação da sua qualidade
‘heterogénea’ e ‘irredutível’. Porque estão imersos em relações sociais conflituantes e repressoras, e eventualmente com estratégias
de des-identificação do sujeito humano, que tornam por isso mesmo a identidade, individual ou colectiva, numa luta constante contra
a alienação, são espaços que escapam à visão ‘corológica’ clássica
228
O corpo, lugar do tempo
que supunha possível a ‘soma’, a contiguidade dos elementos neutros como definidora de regiões mais vastas.
Não é pois de estranhar que Foucault os nomeie como ‘espaços
de dispersão’, e os conceptualize como locais de onde ‘emanam discursos multiformes’. Nestes locais não é mais possível estabelecer
o tipo de distinção analítica e dicotómica que o modo corográfico
e estritamente geográfico, próprio da ciência geográfica moderna,
com origem na ciência geográfica dos gregos e que se manteve, sob
diversas formas até à fase histórica actual da disciplina que facilitadamente se veio a chamar pós-moderna. Neles não existem regras objectivas de definição da verdade, nem modos universais de
a verificar. São locais em que co-habitam ou se opõem formulações
múltiplas de verdade e de identidade, e em que estas se verificam e
se aceitam sempre dentro de uma estrutura de poder desigual que
a umas dá visibilidade e operatividade e a outras torna invisíveis e
ineficazes.6
Alguns autores, porém, não deixaram de detectar alguma incoerência entre a descrição ‘opaca’ e absolutamente dependente das
relações de poder dos lugares de Foucault e a pretensão de cientificamente os anatomizar para expor as suas regras de funcionamento. A serem lugares de imersão absoluta para quem os vivencia,
não se vê como podem permitir que se exponham a um cientista
social. Especificamente, alguma crítica incide no carácter totalizante das propostas de Foucault que, tendo origem em exemplos
‘locais’, são erigidos posteriormente como manifestações ‘universais’ das relações entre o poder e o conhecimento.7 Mas para além
das críticas mencionadas, é imensa a influência de Foucault e do pós-estruturalismo na incorporação dos efeitos do ‘lugar’ nas Ciências
Sociais contemporâneas.
A importância que a facticidade irresolúvel do concreto detém na
metafísica de Foucault fica bem expressa na angústia existencial de
impossibilidade de ‘firmação’ de um ponto absoluto de referência
quando se concentra na prática específica de denúncia histórica do
carácter arbitrário do ponto de vista dominante que justamente a
História nos apresenta como o único dotado de respeitabilidade.8
229
Geografias do Corpo
As dimensões presentes na obra de Foucault são, naturalmente,
imensas, quer em substância quer nos efeitos produzidos em obras
de outros autores e, inclusivamente, na criação de uma sensibilidade
geral ‘foucaultiana’ da epistemologia histórica. O nosso propósito
é apresentar especificamente o modo como o pensamento foucaultiano, sobretudo a organização da sua crítica histórica, admite, se
não mesmo exige, a intervenção do lugar como tema organizador
dessa mesma história, mais do que apenas o sítio físico em que ela
se desenrola.
Os efeitos constitutivos do lugar no desenvolvimento e representação de um evento histórico e da sua sucessão cronológica não é
um atributo que esteja apenas presente em Foucault, sendo, como
veremos, uma característica cada vez mais comum em muitos autores que conjuntamente desenham uma crítica consistente do projecto
político-intelectual da Modernidade. O que em Foucault talvez seja
mais específico é a atenção que dedica aos mecanismos ‘genealógicos’ e ‘arqueológicos’ de definição de uma determinada ‘verdade
histórica’.
É em si mesmo curioso, e extremamente significativo, que Foucault
utilize dois nomes de ramos do ‘saber histórico’, a Arqueologia e
a Genealogia, para definir a própria História. Contudo, a simples
ilustração semântica desses nomes devia alertar o historiador de ciência das razões íntimas que levam o autor a justamente não utilizar
o termo ‘História’. O que têm em comum (ainda com um quê de
opositivo), neste contexto, estas duas práticas do conhecimento histórico, é o facto de, de certo modo a contrario, ajudar a descrever a
miragem da História como disciplina objectiva, neutral e cumulativa
do conhecimento do Passado.
A Arqueologia, exibe-se, semanticamente, não só como a ‘reconstrução’ do todo a partir de ‘restos miúdos e incompletos’,9 mas
também do modo como certos elementos materiais, escolhidos por
razões saturadas de ideologia, passam a descrever, através de uma
formidável sinédoque, ‘horizontes’ culturais, cada um deles intimamente coerente dentro dos seus próprios limites, mas liminarmente
distinto dos que o precedem e prosseguem, servindo, neste sentido,
de salvaguarda aos pressupostos rankianos da História oitocentista
230
O corpo, lugar do tempo
que acreditava tudo poder conhecer através dos documentos. A ‘arqueologia’ foucaultiana, aponta, todavia, para o carácter ‘incompleto’, ‘redutor’ e ‘hiperbólico’, de qualquer forma de conhecimento.10
A Genealogia, pelo seu lado, impõe, também semanticamente,
não só uma ideia de ‘nobilitação’ gradual do Passado, de acordo
com a sua antiguidade e a ‘legitimação’ geracional da herança de
um penhor do passado, mas também o da pesquisa paciente de seres
humanos concretos considerados nas suas concretas condições de
realidade e existência. A este nível, creio que a crítica de Foucault se
dirige resolutamente para todos os mecanismos, explícitos e implícitos, conscientes e inconscientes, por um lado de atribuição de um
‘sentido histórico’ entre eventos cuja única relação íntima foi o de
serem contínuos no tempo e, por outro lado, à ocultação ‘ideológica’
de todos os elementos discrepantes na organização presentista desses mesmos eventos históricos.11
Poderia pensar-se que esta abordagem da teoria foucaultiana consistiria apenas na representação da sua teoria epistemológica segundo uma nomenclatura espacial e que, desse modo, a sua ‘geografia’
não passava de um artifício de tradução. Queremos afirmar que não
é esse o caso, e que o carácter constitutivo do espaço e as práticas
localizadas são, em si próprias, uma expressão da fragmentação histórica que a sua epistemologia contempla.12 Sendo um investigador
o responsável único pela informação disponibilizada, é o lugar concreto de fragmentação histórica que passa a ser reelaborado segundo
uma ‘genealogia’ distendida pelo autor.
Do ponto de vista estritamente teórico, a leitura da obra de Foucault
revela que é sua preocupação constante denunciar todas as formas
‘totalitárias’ de situar e, sobretudo, narrar a racionalidade, dando-lhe, portanto, uma forma de história da racionalidade. É a este nível
específico que a facticidade ‘geográfica’ investe contra as formas
narrativas de ‘história total’, uma vez que permite a desmistificação
da sua expressão cronológica comum. Todas as grandes narrativas
feitas sobre o tecido histórico não resistem à crítica indutiva da geografia da sua própria dispersão, que revela, quando exercida, que
afinal a ideologia uniu pontos bem distantes e cerziu de ‘significado’
231
Geografias do Corpo
o que previamente não eram senão vastas regiões de inexpressividade histórica.
A inclusão de um ‘ponto-de-vista geográfico’ na análise histórica
traz para o centro das preocupações epistemológicas sobre a narrativa do Passado, uma objecção em atribuir um lugar determinado,
e quase sempre privilegiado, ao tipo de elementos de conceptualização a priori cuja contribuição real para o concreto devir da história é quase insignificante. Quando governada excessivamente por
formas de racionalidade apriorísticas, i.e., por grelhas de inteligibilidade prévias que obrigam, com ‘mão-de-ferro’, a situar espácio-temporalmente os eventos discretos, a História torna-se total.13
Duas ordens de conceptualização são possíveis a partir desta crítica da história total, por parte de Foucault. São analiticamente diferenciadas mas representam a expressão da mesma ontologia nos
limites extremos do tempo e do espaço. O que se pretende, quer
no contexto teórico da crítica epistemológica de Foucault, quer na
aplicação concreta da leitura da história da Ciência e das geografias
imaginárias do Passado, é fundamentalmente compreender o efeito
ideológico concreto da história total no arranjo espácio-temporal da
narrativa e do corpo.
Em relação ao ‘tempo’, ver-se-á como Foucault essencialmente
se contrapõe à tendência, dominante em quase todas as formas historiográficas (ou estilos de apresentação narrativa do Tempo), de
esquartejar o fio contínuo da temporalidade em grande ‘unidades’
dotadas de uma misterioso auto-reconhecimento, e, neste domínio,
a sua estratégia ‘desconstrutiva’ será preferentemente a de demonstrar a igual validade metodológica de ‘qualquer’ divisão cronológica
considerada como entidade em si-mesma, afinal, destacar o carácter
‘tautológico’ da justificação mútua entre ‘método’ e ‘lei’.14
No que diz respeito ao ‘espaço’, o historiador-Foucault será justamente mais ‘geógrafo’, ao apresentar aos seus colegas de ofício
a realidade geograficamente discreta em que (não) se baseia essa
mesma suposta identidade cronológica absoluta do todo o período
histórico. O Espaço representa, neste sentido, o lugar preferencial de
‘infirmação’ das proposições principais sobre o Tempo.
232
O corpo, lugar do tempo
Em qualquer das abordagens, o conteúdo estratégico da filosofia
da história do corpo perfilhada por Foucault é o de questionar a essência do conceito de ‘continuidade’, fulcral em todas as formas de
historiografia que o antecederam, sobretudo as que representam a expressão da mundividência que do Tempo detém a Modernidade.15 A
‘continuidade’ que os historiadores atribuem a um conjunto de factos
discretos, associados numa certo arranjo espácio-temporal, arranjos
que tomam a forma de ‘unidades’ histórico-geográficas concretas
(‘Idade Moderna’, ‘Idade Contemporânea’, ‘Pós-Modernidade’16),
contextos poderosamente deformadores, e a partir dos quais passa
a ser enunciada qualquer proposição sobre o mesmo passado, além
de constituírem-se obrigatoriamente através de ‘pontos de contacto’
privilegiados com as ‘unidades’ que os antecedem e que lhes seguem no fio contínuo do Tempo.17
Uma das características mais marcantes da estratégia ‘desconstrutivista’ de Foucault é que não procede apenas à tentativa de demolição
da falsa coesão interna dessa mesma história total, mas propõe a sua
substituição por modalidades alternativas de compreensão histórica.
Ao nível puramente lógico, a ‘racionalidade histórica’ alternativa de
Foucault passa a ‘subir um nível’ em relação à mesma lógica que estabelece a coesão entre as grandes unidades ‘histórico-geográficas’
das formas historiográficas da Modernidade e, pelo mesmo método,
a destacar os projectos globais político-intelectuais que voluntariamente organizam a forma narrativa da História de modo a dar-lhe o
‘sentido histórico’ com que são normalmente apresentadas.18
É conhecida a origem ‘estética’ rousseliana19 que despoletou a
analogia espacialmente fragmentária da ‘paisagem sem perspectiva
oficial’ que Foucault replica na sua ‘história geral’ – uma paisagem
em que os objectos não se determinam pela sua posição, mas pela
simples afirmação da sua existência.20 Tudo tem a mesma importância, determinada apenas pelo ‘lugar’ que ocupa na tela respectiva.
Nenhuma regra específica de superioridade pode levar a que uma
determinada linha de perspectiva seja preferida sobre as outras. De
um ‘ponto-de-vista’ estabelece-se uma ‘paisagem’, um ‘panorama’,
ditado unicamente pela posição em que decidimos ‘fixar os pés’ do
nosso corpo perceptor. Tal como no original desta metáfora, se nos
233
Geografias do Corpo
movemos de um lado para o outro, de cima para baixo, i.e., se modificamos as condições geométricas da relação de perspectiva entre
o observador e o seu objecto-total, uma nova ‘paisagem’ surgirá:
elementos até então imperceptíveis ganham relevo inesperado, outros que eram centrais na primeira observação revelam-se afinal bem
menos do que pensávamos; para Foucault, cada uma destas vistas
é apenas uma visão possível do passado e, por uma razão propriamente política, a tradição ‘pictórica’ subsequente vem a ‘fixar’ um
desses múltiplos pontos do observador como sendo o dotado de
maior capacidade heurística, e assim a determinar todos os códigos
de apreensão de novas paisagens sob as regras monótonas da primeira vista.
Este é modo como o ‘tempo se dilui no espaço’21 e a razão por
que Foucault pode ser reconhecido como um interlocutor válido na
afirmação de um ponto de vista geográfico nas Ciências Sociais e na
Epistemologia em geral. A geografia definida ou definitiva da paisagem concreta do Passado tem de ser considerada na sua inteira
existência, sem criação de linhas preferenciais de análise, ou recolha
sintomática de elementos que permitam a criação mais ou menos
arbitrária de teleologias históricas. A descrição ‘geográfica’ (‘cénica’) do Passado assim constituída é, ao mesmo tempo, a garantia
de inquiribilidade plural da contextura empírica dos documentos, e
nivelação ética da análise de todos os contributos políticos e intelectuais que determinam a sua forma, incluindo nestes a do próprio
observador.22
A simples ‘co-presença’ dos elementos pertencentes a uma mesma
unidade espácio-temporal funciona em oposição à estética da ‘metamorfose’ histórica que, nas diversas historiografias da Modernidade
(e dando um peso diferencial, conforme o projecto político de que
partiam, às situações de continuidade ou ruptura), dispunham numa
relação essencializada os elementos constituintes da mesma ‘unidade histórico-geográfica’ da História, ou entre unidades cronologicamente sequenciais.
Mas existe um nível existencial potencialmente mais perturbador
que anima a filosofia da História de Foucault. A noção de que a geografia ‘cénica’ dispõe os elementos documentais do Passado a igual
234
O corpo, lugar do tempo
distância do olhar do observador, e de que a partir deles se podem
derivar múltiplas leituras do passado, não impede, ainda assim, que
se participe de um estranho sentimento de ‘superficialidade’, de que
se poderiam desenvolver linhas contínuas de um texto infindo, em
que as células espaciais que a exigência da perspectiva faz desenhar
sobre a tela possam ser diminuídas até eventos e características minúsculos (esta passagem de Foucault faz-me invariavelmente pensar
na deriva especialista das maior parte das disciplinas científicas), em
que só os cultores especializados das historiografias do tipo ‘moderno’ podem encontrar uma eficiente valorização e um prazer epistemológico em tomar em consideração. A partir do momento em
que um investigador tenha passado por esta espécie de ‘conversão
foucaultiana’ passa a compreender que por trás de uma paisagem,
por muito recheada de elementos concretos que a constituam, habita
inevitavelmente o silêncio de uma história irrecuperável e de um
corpo desfigurado pela tortura.23
Lugar
Edward Said, historiador de cultura palestiniano-americano, exibe
nos seus escritos uma pungente afirmação do carácter significante
do lugar na produção do conhecimento científico. No cerne da sua
análise pode destacar-se o conceito de ‘travelling theory’, expressão
de que não se encontra uma convincente tradução em português,
mas que à falta de melhor se poderia expressar por ‘teoria viajante’, para com isso destacar as situações complementares de ser o
conhecimento científico uma forma de difusão e de nele deterem
uma importância especial, sobretudo no que diz respeito à época
moderna, as viagens dos cientistas no contexto do imperialismo.24 O
que caracteriza em primeiro lugar essas teorias? O facto de ‘viajarem’: ‘from person to person, from situation to situation, from one
period to another (…)’. O primeiro dos sentidos que aqui pretendemos destacar é esta característica do conhecimento científico da
Modernidade – a ‘extensão’, isto é, a replicação de um determinado
tipo de conhecimento em situações diversas daquela em que originalmente foi criado, processo que vimos já antes, na caracterização
do pensamento de Foucault, não ser exclusivo da crítica saidiana.25
235
Geografias do Corpo
Porém, para Said esta replicação nunca é automática, isto é, o
processo da sua circulação é constitutivo da nova formulação do
conhecimento, o encontro com realidades diferentes daquelas de
que este deriva originalmente, faz com que os produtos finais sejam
diferentes e, sobretudo, nunca em nenhum momento e em nenhuma
instância, que não seja a exercida pela formulação violenta da relação imperialista, existe um referencial comum da sua objectivação.26
A conclusão fulcral que Said pretende retirar é a de que todas as
formulações do conhecimento, as teorias científicas, estão saturadas
do espaço-tempo de que emergem.27
A concepção de Said tem, porém, uma outra consequência. Não se
trata apenas de que as teorias detenham as marcas têmporo-espaciais
da sua produção, mas também a de que a sua replicação e a sua apropriação se farão obrigatoriamente em novos ‘lugares-tempos’ com
uma identidade própria. E talvez com sofrimento, que tem origem na
irreversibilidade prática do tempo cultural. A este respeito a própria
biografia de Said aponta para a relação estabelecida conceptualmente nas proposições centrais da sua teoria social. Como veremos, não
se trata apenas de trazer para a frente das suas preocupações teóricas
a condição de exilado da sua própria terra, conceito de violência
espacial plenamente presente em Foucault, e, de um modo geral,
em toda a tradição marxista anterior, mas do facto de a relação ‘imperial’ dar origem a uma identidade partilhada, e algo fragmentada,
na qual convivem sentimentos contraditórios de orgulho e desprezo
pela própria geografia imaginária a que se pertence. O ‘orientalismo’
de Said é mais do que a crítica do Orientalismo enquanto prática
académica ocidental – é (e, na nossa opinião, sobretudo) uma actividade mais ou menos consciente de depuração ética do Ocidentalismo
dos orientais. É este espaço especialmente conflitual que se desenha
nos interstícios da relação imperial que permite uma abordagem às
formas de irredutibilidade da identidade partilhada.28
A actividade científica de Edward Said teve como objecto principal de análise as relações culturais e científicas que o imperialismo
da época moderna promoveu. Nas suas próprias palavras, propõe-se
levar a cabo uma ‘expedição geográfica à História’.29
236
O corpo, lugar do tempo
Inicialmente, a ‘expedição’ de Said centrou-se na região (e, dado o
contexto, usa-se a palavra ‘região’ como todas as cautelas geográficas) de onde é originário, com a intenção de demonstrar como o conhecimento ocidental produziu uma entidade chamada precisamente
‘Oriente’. Já fizemos referência que Said hesita constantemente em
reforçar qualquer um dos pólos da constituição da sua identidade,
a origem ‘palestiniana’ e o percurso ‘anglo-saxónico’, mesmo ainda na Palestina ou em outros países de matriz cultural semelhante
(árabe e muçulmana) como o Egipto. A produção do conceito, ou
conjunto estruturado de vários níveis de conceptualização que é o
‘Oriente’, é levada a cabo através de um conjunto entretecido de factos e ficções que concorrem para a representação de um alter ego em
oposição a outra conjugação de ficção e factos chamada ‘Ocidente’
– uma oposição de representações. Esta oposição funciona através
de uma estrutura dissemelhante em termos de afirmação política da
violência, ainda que antecipe as condições eficientes da sua própria
superação. A produção do modo especular de criação da identidade
(oposta e partilhada) foi, segundo Said, levado a cabo por uma sedimentação progressiva, por uma acumulação de informação sobre
lugares que foram previamente ‘inventados’, mas que a partir do
momento em que foram representados como reais, se tornaram lugares de investigação científica regular e sistemática, em que inúmeras
disciplinas académicas tiveram um papel activo, e entre as quais não
foi menor o levado a cabo pela Geografia. Daqui deriva a importância do segundo sentido que pretendíamos se deduzisse da expressão
‘teoria viajante’, isto é, a importância que irão deter, neste processo
de representação, as narrativas dos ocidentais viajantes que procedem à observação no próprio local de recolha de informação. Porém,
esta recolha não está confinada ao relato ficcional dos romancistas e
libretistas de ópera; talvez não seja até a este nível que a relação estruturada de criação contínua de uma identidade ganhe forma duradoura. Da relação, ambígua e mutuamente reforçadora, do facto e da
ficção, originar-se-á uma definição cada vez mais rigorosa, ‘científica’, da recolha de informação. E, insensivelmente, o que começou
por ser uma literatura de viagem transformar-se-á em conhecimento científico do Outro. É através das disciplinas ditas ‘científicas’
237
Geografias do Corpo
que a arbitrariedade da construção identitária do ‘Oriente’ é mais
facilmente ‘naturalizada’, não só pelo carácter neutro, objectivo e
cumulativo que se supõe subjazer à sua actividade mas, sobretudo,
porque é da sua íntima natureza (ao contrário de outras formas da
criatividade humana) não se permitir uma indagação constante dos
pressupostos metafísicos da sua constituição.
No seu trabalho seminal de 1978 Said desdobra a análise histórica
do Oriente numa ontologia tripla que relaciona poder, conhecimento
e geografia.30 Nesta enunciação dos pressupostos metodológicos da
sua teoria hermenêutica, adivinha-se desde logo a influência directa
da concepção epistemológica de Foucault, sobretudo de uma versão
‘espacialista’ das relações entre ‘poder de disciplinamento’ e ‘disciplinamento do poder’.31 Embora a teoria de Said não seja uma aplicação simples dos pressupostos da história foucaultiana a um novo
objecto de análise, o ‘Oriente’ (uma espécie de ‘extensão’ da teoria
mais ‘intra-europeia’ de Foucault a uma realidade ‘extra-europeia’),
existindo até alguns pontos de irredutível distanciamento entre ambos (a questão ‘humanista’ é, a este respeito, absolutamente central),
o próprio Said não deixa de reconhecer o imenso respeito intelectual
pela visão espacial do poder do conhecimento revelada na historiografia de Foucault.32
A relação epistemológica delineada por uma extensão ‘extra-europeia’ da teoria foucaultiana da História não é levada a cabo
sem problema, equívocos e até aparentes contradições insanáveis.
Já fizemos antes referência ao facto de a teoria histórica de Said ser
animada por um sopro humanista bastante perceptível, i.e., por uma
radicalidade individual e pessoal dos eventos históricos e da responsabilidade ética associada a esse mesmo nível de capacidade de
acção [agency].33 Uma postura assim definida dificilmente tem lugar
no cenário fortemente anti-humanista do pensamento foucaultiano
(presente, de resto, como ‘trope’ epistemológico comum em muito do trabalho intelectual dos restantes ‘pós-estruturalistas’, como
Kristeva, Derrida, Deleuze, Lacan, Irigaray, etc.), lugar epistemológico em que a definição da subjectividade nunca é estabilizada individualmente, sendo sobretudo resultado da determinação social e
política das condições performativas da individualidade negociada.
238
O corpo, lugar do tempo
Uma outra ordem de ‘crispação’ do universo epistemológico da
história ‘orientalista’ da Europa da Modernidade, tal como é levada
a cabo por Said, prende-se com a manifesta ‘normalização’ da alteridade que é levada a cabo em relação ao pólo ‘ocidental’ da relação
cultural estabelecida entre a Europa e a Ásia. Muito do carácter eficiente da obra de Said, dentro do próprio universo cultural do ‘ocidente’ (a que afinal o autor palestianiano-americano pertence, ainda
que ‘criticamente’, posicionando-se de uma forma intersticialmente
exterior) resulta da enunciação distintamente não-foucaultiana (não
‘arqueológica’, portanto) de uma ‘seamless and unified history of
European identity and thought’, que subsumiria numa interpretação
única da visão sobre o ‘outro’ (neste caso, o ‘oriental’), elementos
exemplares de unidades espácio-têmporo-culturais tão díspares como
a Grécia de Heródoto, a Veneza dos doges, a França de Napoleão, ou
a Inglaterra victoriana, como se entre todos se transmitisse o propósito comum de identificar uma região ‘europeia’ oposta à ‘asiática’ e,
dentro de cada uma destas regiões culturalmente definidas, a intenção genealógica de fazer perviver uma superioridade essencial.34
A eventual legitimidade de uma crítica continuista ao trabalho de
Said não invalida, porém, que o trabalho deste autor permita uma
excepcional capacidade heurística no trabalho de desconstrução da
relação alteral entre a Europa da Modernidade e o seu ‘objecto’ científico e estético que constitui o ‘Oriente’. É-o certo para as manifestações mais directamente ligadas à esfera cultural da bourgeoisie
oitocentista, e das suas manifestações de ‘alta cultura’, é-o ainda,
de uma forma talvez mais evidente na organização científica das
ciências humanas do mesmo período, e com especial incidência na
Arqueologia e História da Antiguidade. Se a crítica continuista feita
em relação ao trabalho de Said não é despicienda, e revela afinal
a dimensão biográfica de emancipação e redenção a que antes nos
referíamos, seria estulto, e contra-producente para o objectivo dessa
mesma crítica, não reconhecer o poder crítico de uma teoria estruturada da alteridade enquanto formulação mutuamente reforçada de
‘facto’ e ‘ficção’, como é afinal, na sua essência, a teoria saidiana do
orientalismo.35
239
Geografias do Corpo
A afirmação de um ‘ponto-de-vista geográfico’ da História é o próprio cerne da historiografia de Said, e nisso ela constitui-se como
uma das mais evidentes conceptualizações anti-essencialistas das
várias manifestações abstractizantes do Tempo pelas quais a historiografia europeia, sobretudo desde Vico e Herder, até Hegel e Marx,
desde sempre veio a manifestar uma nítida preferência.36 Para Said,
o lugar não é apenas a determinação física do evento histórico, mas,
e fundamentalmente, a determinação simbólica de uma integração
‘regional’ que o definam como exemplo ilustrado de um realidade
mais vasta. Neste contexto de atribuição de uma semiótica espacial
de inclusão e exclusão, Said desenvolve a hermenêutica das metáforas que concorrentemente se afadigam em estabelecer, no espírito
humano, o espaço que é ‘nosso’, familiar, tranquilizador, previsível, racional, de um espaço ‘outro’ em que todas as categorias de
definição são invertidas: desconhecido, perturbador, imprevisível,
sensual…
É fundamental sublinhar o carácter ‘poético’ desta aproximação saidiana ao lugar, sobretudo pela oposição entre racionalidade
e sensualidade que se atribuem aos lugares epistemologicamente reconhecidos como objecto científico. A historiografia de Said
é invariavelmente uma história da história da ‘infância’, da força
constitutiva, dentro da teoria ‘adulta’ dos sentimentos não consciencializados, da formação da identidade. Embora com claras ressonâncias da esfera da psicanálise, não é nos universais do inconsciente
que ele encontra a sua mais perfeita expressão; é talvez a noção do
conhecimento transcendente da fenomenologia que melhor exprime a relação do objecto e sujeito históricos em Said – porque, ao
contrário da estruturação tópica alteral do inconsciente (o ‘lugar’ do
inconsciente é de algum modo ‘exterior’ ao próprio sujeito, e a sua
abolição é uma condição prévia da descoberta da ‘verdade’), a versão fenomenológica admite uma saturação de significado partilhada
pelo lugar e pelo observador, e o mecanismo íntimo de atribuição de
significado não prescinde nunca das condições tópicas da sua formulação.37
A construção de ‘geografias imaginárias’ é o resultado inevitável
de uma relação ‘poética’ estabelecida com o Tempo. A construção da
240
O corpo, lugar do tempo
nossa própria identidade exige o estabelecimento de relações de exclusão e de diferença, profundamente essencializadas, e envolvendo
mais do que o nível emocional detido individualmente por cada um
dos seus participantes. É a própria ‘institucionalização’ da produção da alteridade que confere uma tão grande eficiência ‘política’
ao conhecimento e reconhecimento das regiões culturais definidas,
e que atribui uma expressão própria de descontinuidade nos lugares
intersticiais da migração e do exílio.
O mecanismo de construção de tais ‘geografias imaginárias’ rege
a sua eficiência pelo modo como interpela as dimensões existenciais
do desejo, da ansiedade e do receio, da fantasia. Quando assistimos
ao frenesim da dilucidação de um corpo gigantesco de informação
referente ao Oriente, ao longo de todo o século dezanove, não podemos nunca deixar de tomar em consideração a dúbia articulação
do ‘lugar e do corpo’ na eficiência da sua organização. O que é pressuposto na análise ‘orientalista’ de Said é a afirmação concomitante
da sedução e da racionalidade, é o modo específico como a ciência
oitocentista torna disponível através da racionalização sublimada o
erotismo vedado (ou violável) do Oriente.
É pela afirmação da violência do corpo oriental que Said pretende dar visibilidade à sua análise histórica da presença oriental no
Ocidente e vice-versa. É justamente para evitar o tipo de universalização que uma abordagem psicanalítica sempre providenciaria,
que o autor tende a falar mais de uma abordagem poética da relação
histórico-geográfica do prazer; e é, finalmente, porque está mais resolutamente interessado em dar conta dos mecanismos concretos de
construção global da alteridade, que Said não prescinde de analisar e
identificar a expressão histórico-geográfica concreta do exercício da
violência efectiva das potências imperiais nos lugares colonizados.
É sobretudo a este nível que a ligação foucaultiana mais nitidamente
se faz sentir. Para Said, os lugares de exercício do poder colonial,
entre os quais considera os países-eles-mesmos, não se distinguem,
nos mecanismos de opressão e nos resultados de representação, dos
que Foucault havia considerado para as prisões ou hospícios. Todos
são lugares em que se disciplina activamente o conhecimento e se
dá a conhecer explicitamente a disciplina. A inter-relação definida
241
Geografias do Corpo
dentro desta constelação de poder-conhecimento é que atribui uma
singular visibilidade à ciência como forma de naturalização e racionalização dos mecanismos basilares de desejo, medo e fantasia, que
são os que, em última análise, mais profundamente comandam o
mecanismo de atribuição não só da identidade mas também, e muito
especificamente, do seu estereótipo e da sua pervivência no tempo.38
O papel da Ciência e das suas várias disciplinas no estabelecimento de uma ‘geografia imaginária’ do Ocidente, na qual a expressão
prévia das mesmas fronteiras no passado é um passo absolutamente
necessário para o sucesso discursivo da primeira, reside sobretudo
na integração dos mecanismos profundos de produção da subjectividade na matriz normalizadora e objectiva da cientificidade, a única
que pode dotar a violência da imposição da presença colonizadora
de uma justificação não estritamente política. Uma disposição assim
definida pode resumir-se em algumas áreas de eficiência, analiticamente diferenciadas por facilidade de exposição, mas que, na sua
imbricada totalidade, constituem o mecanismo eficiente pelo qual se
afirma a constelação de poder e conhecimento da Modernidade.
Um dos elementos determinantes da construção teórica da historiografia de Said reside no carácter discursivo da regionalização de
exclusão que caracteriza o orientalismo enquanto prática científica.
O pressuposto central nesta exposição epistemológica é o de que
as sociedades (o ‘tempo presente’ das sociedades, enquanto ordem
constitutiva de uma actividade no domínio das ciências históricas) se
constituem através de instâncias e de longas enunciações discursivas
que exprimem uma série relativamente clara de pressupostos normalizadores, e que são tornados explicitados e dotados de eficiência
cultural (e política) através de um sistema lexical e semântico de dicotomias, exclusões e irredutibilidades. Neste contexto, Said identifica um propósito recorrente nas formações discursivas do Ocidente,
traduzido por uma série discernível de oposições elementares entre
as culturas ‘ocidental’ e ‘oriental’ que, tomadas em conjunto, formam uma matriz ordenada de incomunicabilidade e irredutibilidade
entre as duas esferas civilizacionais.39
242
O corpo, lugar do tempo
A oposição constitutiva das duas esferas de alteridade, o ‘Ocidente’
e o ‘Oriente’ estabelece-se não apenas pela explicitação da diferença
(‘Ocidente’ como ‘racional’, ‘progressivo’, ‘masculino’; ‘Oriente’
como ‘sentimental’, ‘eterno’, ‘feminino’), mas pela atribuição de
uma hierarquia associada, que se insinua pela imposição da ausência
do termo ‘superior’ no ‘inferior’. Assim, a categoria ‘sentimental’,
mais do que a afirmação de um determinado conjunto de atributos
definidos ‘positivamente’ é invariavelmente associada à ‘ausência
de racionalidade’; do mesmo modo, o carácter ‘eterno’ do Tempo do
Oriente (tão óbvio no arianismo, para quem a esfera de civilização
pervive longos séculos no Ocidente sem modificar o essencial da sua
constituição íntima, já trazida originalmente do Oriente) não significa em si mesmo a apreciação de qualquer mecanismo de longue-durée associado a uma especial adequação intrínseca dessa mesma
esfera civilizacional, mas especificamente a ausência de historicidade, de progresso; finalmente, o carácter ‘feminino’ do Oriente não
diz respeito a uma eventual determinação da ordem feminina sobre
o devir social, um análise circunstanciada da existência de relações
e vínculos culturais no quadro de uma esfera matriarcal de organização social, mas sim, e muito significativamente, do Oriente como
‘não-masculino’, i.e., como lugar essencializado de complementaridade, enquanto objecto de satisfação visual, do olhar invasor do
ocupante colonial.
Ainda que em escritos posteriores Said tenha desmanchado o carácter liminar das suas primeira oposições, a sua manifestação eficiente não pode ser de modo algum posta em dúvida.40 Em alguns
planos muito aproximada da concepção de ‘abjecção’ de Kristeva,
a estratégia essencializadora da diferença que é posta em prática
na produção alteral do Oriente não é um artifício de descrição das
relações violentas e complexas entre as duas regiões em encontro,
mas é, ela mesma, uma estratégia política absolutamente necessária
à manutenção da relação colonial dentro do quadro da normalidade
‘jurídica’ da cultura, i.e., da normalidade da representação da própria
violência de que não pode, sob nenhuma circunstância, prescindir.41
A determinação articulada de um programa político e intelectual
de disciplinamento do conhecimento e de reconhecimento da dis-
243
Geografias do Corpo
ciplina não deve parte da sua especial eficiência ao modo como a
ciência, considerada prática universal, neutra e ‘objectiva’, procede
ao elencamento detalhado das características constitutivas do objecto de análise. O paralelo entre a organização do Estado oitocentista,
centralizador, hierárquico e presente nos lugares mais recônditos
do território, e uma Ciência de fundo e forma positivista, também
ela centralizada, hierárquica e universal, não é decerto uma simples
coincidência ontológica mas antes um propósito metodológico. Em
qualquer um dos casos é estabelecido um regime de poder que não
admite que nenhum evento ocorra fora dos limites estabelecidos
em que pode justamente ocorrer. A Sociedade, como a Natureza e a
História, deixa de ter ‘enigmas’, no sentido ‘misterioso’ do termo,
uma vez que os limites de previsibilidade são estabelecidos previamente; apenas restam os enigmas ‘científicos’, cuja garantia de solução prévia manieta nos limites do previsível e do dominado, e que se
articulam como replicação da expressão inicial de uma ‘lei’.
O principal instrumento da ciência, entendida como um género
especial e superior (werkiano) de conhecimento, é a capacidade de
designar e acumular o detalhe.42 A série inumerável de disciplinas
científicas que se propõem caracterizar detidamente a ‘realidade do
Oriente’ são apenas a face visível do esforço político, tornado tão
eficiente quanto a relação de alteridade o permita, de determinar a
absoluta extensão do objecto a conhecer. Ao desnudar a totalidade,
ao exibir, na sobreposição cartográfica de todas as objectividades
das diversas disciplinas científicas, a superfície da sua pele, a relação colonial atinge o objecto último da representação inanimada do
corpo a possuir, porque a partir do momento em que o conhecimento
se representa como absoluto, então a autoridade científica torna-se
autorização política, e a violação consuma-se pelo consentimento
suposto da relação imperial.43 Deve tomar-se em consideração que
o disciplinamento do conhecimento promovido pela imposição do
detalhe e acumulação pormenorizada da cartografia superficial do
‘outro’ depende das condições estruturantes da ‘estética da recepção’, i.e., dos espaços de visibilidade motivada e construída no interior das formações discursivas. Nelas, a formulação espacial do
conhecimento toma uma importância central, pois, as instituições
244
O corpo, lugar do tempo
de reprodução social do conhecimento distante (no Tempo como no
Espaço) são especificamente desenhadas de modo a promover uma
visibilidade ou invisibilidade arbitrária dos constituintes íntimos do
objecto descrito – com a intenção final de fazer com que este seja
visto de uma determinada (e determinante) maneira.
Said dá, por isso mesmo, uma importância especial ao modo de
contemplação ‘panorâmica’ que o Ocidente tende a dar predominância no momento de representar o ‘outro oriental’,44 o que remete
para a estética contemplativa que a geografia feminista identifica
como sendo constitutivo da relação masculina com o espaço em geral e com todas as formas de representação ‘em paisagem’ que têm
vindo a constituir o artifício descritivo reiterado da Modernidade.45
A relação exótica (e erótica) com o Oriente não se esgota porém
na atribuição de um olhar masculino invasor sobre o ‘corpo reclinado’ da mulher oriental, tal como era representado nas diversas
formulações artísticas das artes visuais do século dezanove. O carácter homo-erótico associado a uma determinada sensualização das
personagens do cenário oriental estabeleceu igualmente uma ordem
discursiva alternativa, na qual a prática e representação da relação
erótica com o ‘Oriente’ substituiu, simbólica e literalmente, a persistência da homofobia agressiva do Ocidente, dando origem a uma
sobreposição ambígua de diversas esferas de identidade de género, fixadas sobretudo no ambiente das grandes cidades árabes do
Mediterrâneo e Próximo Oriente.46
O centro de interesse da teoria saidiana é porém muito mais específico do que a simples caracterização do olhar invasor e sensualizado da bourgeoisie europeia sobre o ‘corpo’ da paisagem oriental. O
seu objectivo central é demonstrar que ao longo de todo o século dezanove a representação do ‘Oriente’, entre os países do ‘Ocidente’,
partiu de uma reprodução panorâmica do exótico e do sublime histórico e geográfico, cristalizou o essencial da sua acção ‘invasiva’ em
modelos de conhecimento sob a forma severa da Ciência. Museus,
taxinomias, disciplinas científicas são, para Said, os verdadeiros
instrumentos de uma dominação efectiva do território colonizado;
porque será a partir do sentimento verista do seu potencial descritivo
que as representações do exótico adquirem uma aura de verosimi-
245
Geografias do Corpo
lhança que pode então ser universalmente transmitida a partir das
formas mais elementares de difusão cultural da alteridade, e promover as condições efectivas de apropriação cultural de uma ‘paisagem
imaginária’, em que as condições concretas de existência, sobretudo
dos elementos discrepantes, pudessem revelar-se inteiramente.
Para Said, o elemento decisivo, pelo que representou de iniciação
de uma prática continuada de ‘colonização cultural’ é a obra gigantesca que Napoleão faz publicar sobre o Egipto. Na Description de
l’Égypte a estética da recepção é garantida não apenas pela apresentação ‘fotográfica’ dos vestígios grandiosos do passado egípcio
(neles incluindo os de cronologia ptolomaica e romana), mas especificamente pela ausência forçada dos habitantes árabes e muçulmanos do tempo da própria expedição ocidental ao Egipto. Ao
desnudar o corpo da paisagem, e ao apresentá-lo, exótico e sublime,
ao olhar invasor da bourgeoisie europeia, a obra não apenas remove explicitamente os habitantes contemporâneos do cenários da sua
representação, como afirma subliminarmente (ou nem tanto) a continuidade directa, a filiação genealógica, das civilizações dominantes do Passado com as civilizações dominantes do Presente. Faraós
egípcios e imperadores europeus são assimilados pela Arqueologia
e pela História, e integrados numa narrativa comum que essencializa
o Tempo e a herança, admitindo como ‘natural’ a ligação entre os
dois mundos que a pesquisa e escavação arqueológica, haveria de,
ao longo de todo o século dezanove, materializar nos vários museus
de recolha de antiguidades orientais em todas as grandes capitais
europeias.47
Corpo
Pode facilmente compreender-se que uma absoluta outorga, por parte de Said, do poder identitário ao lugar-tempo o pode pôr em confronto com Foucault. A descrição por Foucault de ‘lugares-tempos’
como expressão de uma organização do poder não é em muito diferente da concepção do próprio Said.
O problema surge quando aquele autor se propõe ‘estender’ as
conclusões retiradas do estudo de um caso particular, de uma entidade ‘têmporo-espacial’ autónoma para o funcionamento geral da
246
O corpo, lugar do tempo
sociedade.48 Como já fizemos referência, quando procedíamos à
caracterização da afirmação de um ‘ponto-de-vista geográfico’ em
Foucault, a aplicação ‘exemplar’ deste investigador a um nível superior de abstracticidade do mesmo tipo de procedimentos metodológicos (e pressuposições ontológicas) do próprio objecto da sua
crítica, caracteriza uma ‘sobreteorização’, ela mesmo impedida pelas premissas lógicas da sua aplicação. Para Said, a reorganização
‘local’ do conhecimento é absoluta e, assim, a nivelação ontológica
das entidades discretas que constituem a informação inicial disponível para a teoria é sempre absolutamente arbitrária. Nesse momento,
pelo menos do ponto de vista de Said, Foucault não faz nada de diferente dos naturalistas do império que generalizaram ao globo inteiro
as teorias naturais e sociais que desenvolveram no ocidente. A universalização é, em qualquer dos casos, um modo de dominação.49
Ao exercer os pressupostos da sua própria biografia, Edward Said
permite-se, por isso mesmo, introduzir uma discrepância teórica
que será um ponto importante da originalidade da sua visão sobre a
História, e talvez justifique, pelo menos em parte, as principais diferenças entre o seu trabalho e o de Foucault. Mais do que pretender
vincar o carácter absoluto que Said atribui ao lugar, e que por si só é
importante, esta questão levanta também outra associada, a de saber
se o relativismo pode ser tão determinante que esteja vedado a um
sujeito, que pertença, seja a que nível for, aos lugares ‘dominantes’,
desenvolver uma visão que não seja ela ‘universalizante’, se está por
isso condenado a este ‘totalitarismo sobreteórico’ que ele detecta
em Foucault.50 A questão reside, em grande parte, na relação da violência política do conhecimento, e dos efeitos que ela detém sobre
a materialidade concreta do ser humano e, especificamente, incluindo nele a dimensão táctil do corpo.51 Enquanto que em Foucault a
violência política do disciplinamento do conhecimento passa pela
repressão normalizadora das características do corpo considerado
individualmente (o ‘prisioneiro’, o ‘louco’, o ‘aluno’…) em Said
os contornos ‘tácteis’ da relação cultural imposta pelo imperialismo
sobrelevam a expressividade da relação erótica da diferença.52
Numa definição opositiva simples (com todas as vantagens e inconvenientes que a simplicidade detém), diríamos que ao ‘corpo’
247
Geografias do Corpo
foucaultiano lhe é sempre negado o prazer, enquanto que no ‘corpo’
saidiano este mesmo desejo é constantemente valorizado. A directa
relação que esta oposição, que cremos existir entre Foucault e Said,
tem na biografia dos dois autores não deixa de ser significativa. Se
a questão da exibição da sexualidade se revelou central na determinação dos pressupostos existenciais da teoria foucaultiana, vemos
igualmente que em Said um ponto recorrente da sua argumentação
passa pela des-sensualização ‘activa’ do estereótipo do ‘oriental’,
em ambos os casos se pretendendo criar um contexto eficiente de
afirmação da individualidade intelectual e política – e, afinal, da própia existência.
Notas
D. N. Livingstone (1997). Este estudo é uma fusão parcial revista de partes de um outro estudo de maior fôlego apresentado à Universidade do
Minho (Pimenta 2007). 2 [All the leading exponents of classical tradition]
have this in common: they prioritise time and history over space and geography and, where they treat the latter at all, they tend to view them unproblematically as the stable context or site for historical action (Harvey 1985:
141). A partir desta ordem de contextualização ‘geográfica’ do trabalho historiográfico a que aqui nos propomos, podemos reformular a conhecida
asserção historicista de Collingwood: ‘No historical problem should be
studied without studying (…) the history [AND GEOGRAPHY (JRP)] of historical thought about it’ (Collingwood 1946: 132). 3 Seguimos de perto a
estrutura e as ideias do estudo de Chris Philo (2000). 4 E isso mesmo se
pode constatar das suas palavras quando afirma: Once knowledge can be
analysed in terms of region, domain, implantation, displacement, transposition, one is able to capture the processes by which knowledge functions as
a form of power and disseminates the effects of power (…) [therefore] geography must necessarily lie at the heart of my concerns. (Foucault 1980:
69 e 77). 5 O carácter espacial do ‘poder do conhecimento’ e a sua estruturação em lugares de ‘reconhecimento do poder’ tornou-se para mim bastante óbvia quando assisti ao IV Congresso de Arqueologia Peninsular
(Faro, 14 a 19 de Setembro de 2004; ver epígrafe deste capítulo), onde
apresentei um trabalho de preocupação ‘geo-historiográfica’ no contexto da
arqueologia portuguesa, especificamente da chamada ‘cultura castreja’
(Pimenta 2004b). À entrada do anfiteatro principal em que iria decorrer a
cerimónia de abertura, um dos organizadores do evento perguntou-me,
1
248
O corpo, lugar do tempo
amável mas significativamente, sobre o que ‘fazia ali um geógrafo!’ A
questão foucaultiana reside naquele ‘ali’. 6 A afirmação de uma corrente
‘pós-moderna’ operou-se a partir de diversas propostas de ‘interpretação da
interpretação do Passado material’, com isto querendo dizer que se estendeu não apenas à relação ‘ocultada’ do significado do objecto material, mas
também das condições sociais, culturais e ideológicas da sua interpretação
por parte do sujeito interpretante (Hodder 1982a, b, 1986; Hodder ed.,
1982, 1985, 1991; Hernando 2002: 137 e ss.; Joyce 2002; Hegmon 2003:
213-243). 7 Taylor (1985): J. Habermas (1986). 8 But this inexhaustible
wealth of visible things has the property (which both correlates and contradicts) of parading in an endless line; what is wholly visible is never seen in
its entirety. It always shows something else asking to be seen; there’s no
end to it. Perhaps the essential has never been shown, or rather, there’s no
knowing whether it has been seen or if it’s still to come in this never-ending
proliferation (Foucault 1986b: 110). 9 A evocação desta ‘fenomenologia’ do
objecto da Arqueologia é de Orlando Ribeiro, apud J. C. Garcia (2003:
194). 10 Quase é desnecessário referir que esta visão da ‘arqueologia’ proposta por Foucault parte, ela própria, de uma redução quase caricatural
sobre a própria Arqueologia, disciplina que vem prescindindo progressivamente do carácter estanque da estratigrafia e do poder redutor dos traços
materiais quantitativa ou qualitativamente mais abundantes (cf. Bailey
1987: 5 e ss.). 11 Em termos precisos, a dimensão ‘geográfica’ da obra de
Foucault que gostaríamos de sublinhar é o contexto de crítica propriamente
espacial que o autor exerce sobre a ideia de ‘história total’ e da representação da sua verdade intrínseca, concretizado num modo de ver o mundo em
que ‘one sees only ‘spaces of dispersion’: spaces where things proliferate
in a jumbled-up manner on the same ‘level’ as one another – on the one
level where advanced capitalism and the toy rabbit beating a drum no longer exists in any hierarchical relation on the one being considered more important and fundamental than the other – and on which it can never be decided if the ‘essential’ has been sighted (…) (Philo 2000: 207). 12 Também
a Epistemologia enquanto disciplina não tem favorecido uma visão ‘localista’ da interpretação das condições de produção, transmissão e recepção
do conhecimento científico (Lowther 1962: 495-497). Cf., por exemplo, a
obra de Bernecke e Dretske (2000) e confirme-se que a interpretação universalista é ainda dominante na estruturação disciplinar do ‘conhecimento
sobre o conhecimento’. 13 The project of total history is one that seeks to
reconstitute the overall form of a civilisation (…) supposed that between all
the events of a well-defined spatio-temporal area, between all the phenomena of which traces have been found, it must be possible to establish a
249
Geografias do Corpo
system of homogeneous relations: a network of causality that makes it possible to derive from each of them, relations of analogy that show how they
symbolise one another, or how they all express one and the same central
core (…) (Foucault 1972: 9-10). 14 A noção de tempo-espaço tem vindo a
ser objecto de uma profunda reavaliação teórica. Cada vez mais se tem a
noção de que conceitos como ‘região’, ‘período’ ou ‘escala’ são profundamente tecidos de considerações aprioristas e essencialistas, desligando o
lugar em que decorre a acção social (físico ou simbólico) dos factores estruturantes do Zeitgeist respectivo dessas mesmas sociabilidades (cf. Bailey
1981 e G. Clark 1992). 15 De facto, a filosofia da história de Foucault adquire um tom particularmente crítico da Modernidade, associando, por exemplo, à mundividência medieval a superioridade relativa de permitir uma
livre associação de eventos, sem que seja necessário subsumi-los a uma
lógica interna de desenvolvimento. Claro está que isto não significa que
considere a concepção do Tempo entre os medievais como equivalente
àquela que ele próprio detém. Para Foucault, não existe qualquer ‘sentido’
para o Tempo, e cada unidade espácio-temporal não é mais do que uma
‘associação’ aleatória de processos estranhos entre si: esta concepção do
Tempo não tem nada a ver com a ‘aleatoriedade’ medieval, de origem obviamente providencialista, i.e., resultado da intervenção directa de Deus na
temporalidade concreta e unidireccional da Criação. 16 A este respeito verifique-se (E. Brito-Henriques, neste volume) a tensão conceptual que percorre a genealogia da definição da ‘Pós-Modernidade’. 17 M. Foucault
(1972: 8-10). 18 Este tipo de ‘racionalidade histórica alternativa’, a que o
autor chama especificamente ‘história geral’, ‘is to determine what form of
relation may be legitimately described between these different series; what
vertical system they are capable of forming; what interplay of correlation
and dominance exists between them; what may be the effect of shifts, different temporalities and various rehandlings; in what distinct totalities certain elements may figure simultaneously; in short, not only what series, but
also what ‘series of series’ – or, in other words, what ‘tables’ is possible to
draw up. A total description draws all phenomena around a single centre
– a principle, a meaning, a spirit, a world-view, an overall shape; a general history, on the contrary, would deploy the space of a dispersion’.
Como se verá no ponto seguinte, este é um dos domínios em que justamente incide a crítica de Said sobre o trabalho de Foucault. Dentro do
quadro geral do relativismo espácio-temporal-cultural (histórico-geográfico-antropológico) que caracteriza a obra do pensador de origem palestiniana,
esta estratégia de Foucault é prisioneira dela própria, por aplicar a entidades discretas (os projectos político-intelectuais individualmente consid-
250
O corpo, lugar do tempo
erados) uma concepção abstractamente uniforme, como se tratasse da organização geral de um projecto comum, que é, afinal, a crítica que o filósofo
francês faz incidir sobre a generalidade da historiografia da Modernidade.
19
Raymond Roussel era um poeta que partia da ‘sem-importância’ de uma
vista em paisagem para a ordem descritiva dos seus poemas. Estes, poemas
de considerável extensão, podiam ter origem numa minúscula representação publicitária de uma praia, de um panfleto informativo de um concerto
musical ou num rótulo de uma água mineral. A característica iluminante da
poesia de Roussel, e em que Foucault reconhece o princípio organizador da
sua própria epistemologia histórica, prende-se com o facto de não só a descrição poética se fazer sobre a quási-insignificância do objecto retratado
(ou, o que é o mesmo, a denúncia da magnificação de determinados pontos-de-vista no estabelecimento de uma ‘tradição de paisagem’), como também pela circunstância de nessa mesma ‘paisagem’ todos os elementos
figurativos contribuírem igualmente, na sua ponderação ontológica, para a
realidade existencial concreta do conjunto. O que Foucault recolhe de
Roussel, e exige tacitamente do historiador, é que não se estabeleça uma
ordem de hierarquia que privilegia uma parte da ‘paisagem’ em função da
geometria da perspectiva. Ao anular a relação entre ‘eixo de visão’ e a sua
‘periferia’, entre ‘figura’ e ‘fundo’, entre ‘drama’ e ‘cenário’, Foucault pretende desfazer o poder ‘hipnótico’ que a perspectiva exerce sobre o observador, e que o leva a focar, mesmo involuntariamente, o seu olhar para o
‘centro do quadro’ – trata-se, de não ficar à mercê da ilusão da proporcionalidade: ‘There is a fundamental lack of proportion: seen in the same way
are the porthole of the yacht and the bracelet of a woman chatting on the
deck, the wings of a kite and the two points formed by the tips of a stroller’s
beard raised slightly by the wind (…). In this fragmented space without
proportion, small objects thus take on the appearance of flashing beacons.
It’s not a question of signalling their position in this instance, but simply
their existence’ (Foucault 1986a: 106-109). 20 There is no privileged point
around which the landscape will be organised and with distance vanish little by little; rather, there’s a whole series of small spatial cells of similar
dimensions placed right next to each other without consideration of reciprocal proportion (…). Their position is never defined in relation to the
whole but according to a system of directions of proximity passing from
one to the other as if following the links in a chain: ‘to the left’, ‘in front of
them to the left’, ‘above’, ‘higher’, ‘further’, ‘further continuing on the left’
(…) (Foucault 1986a: 107). 21 Philo (2000: 213). 22 O próprio Raymond
Roussel viria a revelar, numa interessante paródia ao seu próprio modo de
escrever os poemas (Comment j’ai écrit certains de mes livres, 1935) que a
251
Geografias do Corpo
organização narrativa do poema como que seguia a quadriculagem regular
que o pintor previamente deveria usar na organização da perspectiva. É a
inversão ‘ontológica’ do papel da quadriculagem e da perspectiva que justamente predispõe o leitor à revelação, a partir da ironia, de que o Tempo é
subitamente fragmentado em pequenas células espaciais que não têm entre
si nenhuma relação essencial que não seja a que lhes é dada pelo ponto-de-vista do observador (Ford 2000: 213). 23 For much of the time Foucault
(…) apparently accept[s] that there is nothing outside the proliferation of
words about the ‘surface of things’ – that this proliferation pretty much
captures in all of its comprehensiveness the total and only ‘reality’ of the
things described – and the suggestion in this regard is that the ‘discourse
which describes them in detail is finally the one that explains them’. In this
case, the silence of things on more ‘essential’ matters is perfectly comprehensible, for there is simply nothing else to say once [one] has finished
[one’s] description (Philo 2000: 217-218). 24 Mackenzie (1990: 216-259)
25
E. Said (1991: 226). 26 E. Said (1991: 244). 27 É este sentido, o da apropriação ‘cultural’ de um lugar de alteridade, que tem permitido a alguns
historiadores de Ciência aproximar a lógica ‘geográfica’ de colonização do
espaço com a lógica ‘histórica’ de apropriação do Tempo, i.e., do Passado.
Em ambos os casos parece haver, no domínio do Evolucionismo do século
dezanove, uma superação eficiente da alteridade pelo apagamento absoluto
da temporalidade do Outro (cf. Driver 1991; 1992) e da própria Natureza
(Driver e Rose 1992). 28 S. Jones (1997: 129 e ss.). 29 [J]ust as none of us is
outside or beyond geography, none of us is completely free from the struggle over geography. That struggle is complex and interesting because it is
nor only about soldiers and cannons but also about ideas, about forms,
about images and imaginings (…) (Said 1993: 6). Esta expedição também
pode ser levada à ‘Arqueologia’, naturalmente; e talvez até seja mais facilitada a ordem imperial e colonial de atribuição assimétrica da alteridade
num campo disciplinar que acumula a diferenciação do Outro desde o ponto de vista histórico e antropológico: basta lembrarmo-nos da dificuldade
que a Arqueologia nacionalista ‘branca’ sempre teve em admitir que algum
dos povos africanos de raça negra pudesse estar por trás da construção das
ruínas de Zimbabwe (Hall 1909: 13; para uma crítica histórica, Garlake
1973: 79-80; cf. tb., em termos mais gerais da arqueologia nacionalista africana, Tardits 1981 e Schrire et al. 1986). 30 As narrativas tecidas de factos
e ficção são uma característica não apenas dos géneros considerados
‘literários’, mas também das narrativas históricas e descrição geográficas
que supostamente são feitas no domínio severo das ciências, especificamente da História e da Geografia. 31 Cf. Lynch e Woolgar (1990: 1-18);
252
O corpo, lugar do tempo
Miller e Tilley (1984). 32 ‘What is, I think, deeply compelling about the
continuity of Foucault’s early with his middle works is his highly wrought
presentation of the order, stability, authority, and regulatory power of
knowledge. (…). It is probable that Foucault’s admirably un-nostalgic view
of history and the almost total lack in it of the metaphysical yearning, such
as one finds in heirs to the Hegelian tradition, are both ascribable to his
geographic bent’ (Said 1986: 149-150). A ênfase é nossa. 33 No caso específico da Arqueologia, porque lida com testemunhos residuais da actividade
social que pretende descrever e interpretar, poder-se-ia pensar que lhe estaria vedada uma abordagem ‘agencialista’, que tivesse em consideração a
personalidade e identidade dos actores sociais envolvidos. Tal não é caso
(como se pode ver em Fowler [2002], ainda que no contexto ‘favorável’ da
Egiptologia), e se a disciplina tem preferido, ao longo da sua história, a
abordagem dos sujeitos ‘colectivos’, tal deve-se não apenas à especial disposição do seu objecto ‘empírico’ mas também, se não sobretudo, à organização epistemológica do seu objecto ‘teórico’. 34 Ahmad (1994: 165-166).
35
Neste aspecto, aproximamo-nos explicitamente da posição de D. Gregory:
‘But I see no reason to choose between an account that charts continuities
– the stagnant air of Orientalism trapped within the corridors of history –
and one that throws open the ill-winds that interrupt this state of affairs
from time to time and place to place. Neither does Said, who argues, explicitly and unequivocally, that the French occupation of Egypt at the end of
the eighteenth century inaugurated a distinctively modern constellation of
power, knowledge and geography (…)’ (Gregory 2000: 312). A ênfase é
nossa. Cf, também, as palavras do próprio Said: ‘Throughout the exchange
between Europeans and their ‘others’ that began systematically half a millennium ago, the one idea that has scarcely varied is that there is an ‘us’ and
a ‘them’, each quite settled, clear, unassailably self-evident. As I discuss it
in Orientalism, the division goes back to Greek thought about barbarians,
but, whoever originated this kind of ‘identity’ thought, by the nineteenth
century it had become the hallmark of imperialist cultures as well as those
cultures trying to resist the encroachments of Europe’ (Said 1993: xxv).
36
Herder é, de certo modo, o principal defensor de um tom ‘local’ na
História (McEachran 1939), na Geografia (Birkenhauer 1986) e na
Antropologia (Clark Jr. 1969; Nisbet 1970), no pensamento social em geral: ‘[A]ll regionalists, all defenders of the local against the universal, all
champions of deeply rooted forms of life (…) owe something, whether
they know it or not, to the doctrines that Herder (…) introduced into
European thought’ (Berlin 1976: 176). Especificamente sobre a influência
de Herder nos estudos da historiografia portuguesa, e no modo como subjaz
253
Geografias do Corpo
a uma afirmação de uma ‘índole nacional’, presentes nos actores sociais,
individual ou colectivamente considerados, cf. A. Beau (1964: 202 e ss.). O
nacionalismo ‘arqueológico’ que surge ao longo de todo o século dezanove
inclui-se nesta vasta proposta ‘terapêutica’ de compensar a devastação napoleónica inicialmente, depois a prussiana e a austríaca, que farão acender
iguais sentimentos de ‘busca das origens’ nas nações violentamente submetidas nos estados imperiais (Harpeou 1982: 241-249). 37 The objective
space (…) is far less important that what poetically is endowed with, which
is usually a quality with an imaginative or figurative value we can name
and feel: thus a house may be haunted or homelike, or prisonlike or magical. So space acquires emotional and even rational sense by a kind of poetic process, whereby the vacant or anonymous reaches of distance are
converted into meaning (…) (Said 1986: 153). 38 [T]o the extent that modern history in the West exemplifies for Foucault the confinement and elision of marginal, oppositional and eccentric groups, there is, I believe, a
salutary virtue in testimonials by members of those groups asserting their
right of self-representation within the total economy of discourse. Foucault
is certainly right – and even prescient – in showing how discourse is not
only that which translates struggle or systems of domination, but that for
which struggles are conducted (…) (Said 1986: 153). 39 E. Said (1995:
186-187). 40 ‘Partly because of empire, all cultures are involved in one another; none is single and pure, all are hybrid, heterogeneous, extraordinarily differentiated, and unmonoolithic, [but] I do not wish to be misunderstood. Despite its extraordinary cultural diversity, the United States is, and
will surely remain, a coherent nation. The same is true of other English-speaking countries (Britain, New Zealand, Australia, Canada) and even of
France, which now contains large groups of immigrants’ (Said 1993: xxv).
41
Macedo (1985). 42 Porter (1983: 301-302). 43 [Orientalism] is a discipline
of detail, and indeed [it is] as a theory of detail by which every minute aspect of Oriental life testified to an Oriental essence it expressed, that
Orientalism had the eminence, the power and the affirmative authority over
the Orient that it had. [Gregory 2000: 313]. Esta replicação superficial da
violência da relação colonial em Said (com uma explícita filiação em
Foucault, e no estabelecimento do paralelismo feito por este autor entre o
aparelho do Estado e a ordem epistemológica do positivismo: ‘[Napoleon
Bonaparte] wished to arrange around him a mechanism of power that would
enable him to see the smallest event that occurred in the state he governed’
[Foucault 1979: 140]), estabelecida desde o universo da própria ciência,
virá a ter uma expressão literal na antropologia física e nos procedimentos
de antropometria racial por ela levados a cabo. O princípio constitutivo
254
O corpo, lugar do tempo
desta disciplina, nos vários domínios em que se impôs (criminologia, antropologia colonial, pedagogia…) foi, essencialmente, o direito a despir um
corpo, e uma vez despido, o direito a medi-lo exaustivamente; assim, a
actividade ‘intelectual’ da medição pressupõe obrigatoriamente a violência
‘política’ do desnudamento. 44 The Orientalist surveys the Orient from
above, with the aim of getting hold of the whole sprawling panorama before him. 45 Sobre a noção da ‘paisagem’ como modo de ver, cf. o trabalho
seminal de Denis Cosgrove e os desenvolvimentos mais recentes (Cosgrove
e Daniels 1997; Cosgrove 1998a; Cosgrove 1998b); para uma versão crítica do conjunto da ‘paisagem’ como trope narrativo da Modernidade é imprescindível a consulta da obra de Ana Francisca de Azevedo (Azevedo
2006), especialmente o capítulo segundo. Sobre a visão ‘panorâmica’ orientalista como um exemplo do modo geral de denúncia feminista do carácter contemplativo do ‘corpo’ da Natureza e História pelo olhar invasor masculinista, cf. R. Kabbani (1986) e G. Rose (1993). 46 A representação do
‘Oriente’, e muito especialmente das cidades do norte de África e Próximo
Oriente, como lugar de uma eroticidade marginal e redentora da homofobia
cultural da ‘ordem burguesa’ vitoriana estabeleceu uma longa genealogia
de tropos narrativos em que as qualidades da ‘paisagem’ interferem directamente no conteúdo ‘moral’ dos comportamentos das personagens, remetendo assim para uma expressão do que Livingstone (Livingstone 1992:
216-260) chama de ‘configuração moral da natureza’. Ainda entre os autores do século vinte, e mesmo dos contemporâneos, este estereótipo tende
a reproduzir-se, como no caso de Evelyn Waugh, Lawrence Durrell ou
Michael Ondaatje. 47 [T]he representation of the Orient as an imaginary
‘museum without walls’, in which cultural fragments were reassembled
and allocated among the categories of a tabular Orientalism, invokes an
altogether different order of departmentalization: the textual inventory that
is emblematic of Foucault’s classical, eighteenth-century taxonomies. (…).
[T]he enframing of the Orient within what Said describes as ‘a sort of
Benthamite Panopticon’ moves the empire of the gaze beyond the tableau
and the table to anticipate a system of power-knowledge in which ‘things
Oriental [are placed] in class, court, prison or manual for scrutiny, study,
judgement, discipline or governing’: it is a preliminary and a prop for the
disciplinary powers inscribed within the colonizing apparatus of the ‘world-as-an-exhibition’ (Gregory 2000: 317). 48 E. Said (1991: 245). 49 E. Said
(1991: 245). 50 E. Said (Said 1990); cf. Hesse (1980: 33 e ss.). Esta questão,
ao nível político, é constantemente brandida: só os negros poderiam ser
anti-esclavagistas, só as mulheres feministas, só os judeus anti-anti-semitas, etc. Quer no campo ‘opressor’ quer no campo dos ‘oprimidos’ há quem
255
Geografias do Corpo
o defenda. Não se afirma, naturalmente, que seja essa a posição de Said
(embora parte de alguma crítica feminista o acuse justamente disso), embora a instabilidade identitária criada pela sobreposição de diversas esferas
culturais (especialmente a ‘palestiniana’ e a ‘anglo-saxónica’, e por esta
ordem) seja historicamente mais propensa a este tipo de manifestação
político-intelectual da denúncia. 51 Cf. Shilling (1993); Schmidt e Voss
(2000); Thomas (2002). 52 L. McWhorter (1999: 108); M. Yegenoglu (1999:
25).
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260
As inescapáveis geografias do corpo:
mobilidade, escala e lugar.
João S armento
Situar o corpo no centro das
questões empíricas e teóricas tem
sido uma das acções mais entusiasmantes
na Geografia da última década.
R. LONGHURST, The body1
Introdução
Num dos momentos mais macabros e chocantes do filme Kandahar
(2001), vários homens em canadianas apressam-se em desespero
com o fito de alcançarem próteses de membros que são lançadas em
pára-quedas por um avião da Cruz Vermelha e vão flutuando num cenário paisagístico de extrema beleza estética. Mohsen Makhmalbaf,
realizador Iraniano que rodou o filme entre ameaças de morte, alcança aqui uma harmonia bizarra e fascinante de vergonha, lirismo
e futilidade. A globalidade dos membros que sobrevoam um Estado
cerrado por fronteiras controladas, e a localidade perdida e negligenciada dos corpos que lutam por uma permanência móvel, transportanos para um sentido de complacência global inaceitável, para um
momento de ausência ética, fazendo transparecer a relação putrefacta entre corpos e espaço, políticas e poder, paisagem e história.
Se é certo que a Geografia Cultural contemporânea, influenciada pelas correntes feministas e mesmo pós-coloniais, tem colocado uma ênfase particular na posicionalidade do investigador(a), na
Geografias do Corpo
sua inescapável influência nos processos de investigação, na forma
como o conhecimento geográfico que se produz é corporizado, conivente com corpos sociais e geográficos2, poucos têm sido os estudos
em que o corpo do investigador se constitui em si mesmo como
o objecto da investigação ou como o elemento central da investigação. Neste artigo bipartido, pretendo centrar a primeira parte da
discussão no meu próprio corpo, e fazer dele o ponto de partida para
uma reflexão sobre as diferenças entre corpos no espaço, um espaço
entendido como profundamente relacional, que coloca em tensão os
micro-espaços das nossas próprias geografias intersticiais, no seu
sentido literal, e as geografias globais, de alcance planetário, onde
outros corpos se movem e habitam. Desta forma, a ‘anormalidade’
de um micro-espaço do meu corpo transforma esta primeira parte do artigo numa viagem transatlântica em busca de uma solução
médica. Viagem esta que revela confrontos entre corpos diferentes,
que assinala clivagens em que a cor da pele e a ‘classe’ dos corpos
é determinante. Até certo ponto pretendo desafiar certas concepções
pós-estruturalistas do corpo, pois a materialidade, a cor, a altura, o
peso, a origem do meu próprio corpo, dão forma a um território linguístico de carne e fluidos muito significativos. Se bem que o artigo
não se institui a partir de um ponto de vista feminista, partilho aqui
as preocupações feministas de que falar de corpos sem carne, sem
materialidade, é uma ilusão (geralmente masculina), que serve para
preservar práticas e políticas corporais hegemónicas. Ao mesmo
tempo, não posso deixar de ter em mente a provocação de Harvey3,
pois se bem que o retorno do corpo como lugar de um enraizamento
ontológico e epistemológico mais autêntico do que as abstracções
teóricas que durante muito tempo vigoraram como dominantes é
justificado, este retorno não é por si garantia de nada excepto da
produção de um auto-referenciamento narcisista.
Na segunda parte deste texto conto uma outra história, que explora a diferença, a inquietação e a marginalidade que a cor da pele e
a sua quase determinística associação a uma classe desfavorecida
e excluída ainda provoca na sociedade portuguesa contemporânea.
Partindo de uma breve análise ao contexto e incidentes resultantes de
um jogo amigável de futebol realizado entre as selecções nacionais
262
As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar
de Portugal e de Angola em 14 de Novembro de 2001 em Lisboa,
procuro destacar as tensões raciais existentes em Portugal, que resultam em parte de um processo de descolonização súbito e, não
apenas recente, mas ainda mal digerido, e que levam a novas viagens entre ‘nós’, a nossa ideia de Europa e ‘o outro’ africano, aqui
e lá, que constroem o ‘outro’ como o problema, parte das ‘gerações
perigosas’, sendo raramente entendido enquanto sujeito social com
histórias singulares que vive, reproduz e traduz tensões no espaço.
I Próteses e lutas de escalas
It is going to be very difficult, to be honest ...
I am not confident I am going to make it.
O. PISTORIUS4
Os nossos corpos são inescapáveis. São superfícies de inscrições sociais e culturais, que albergam subjectividade, são sítios de prazer
e de dor, são públicos e privados, têm fronteiras permeáveis que
são atravessadas por fluidos e sólidos; são materiais, discursivos e
físicos5. É neles que começa toda a geografia que possamos ver, observar, medir, calcular, analisar. Clinicamente o meu corpo não é
bem ‘normal’ desde que nasci. Não se conforma à regularidade estatística definida medicamente como sendo normal. Os parâmetros
‘normais’ de diâmetros, gradientes de fluxos, calibres, tortuosidades,
motilidades, amplitudes de aberturas, etc. nem sempre são cumpridas. Aconselham-me os médicos a ter comigo um electrocardiograma recente pois o ‘normal’ deste meu gráfico mostra alguém que
está prestes a ter um ataque cardíaco. Na nossa presente sociedade
ocidental avançada, estas ‘anomalias’ levam a uma condição de inabilitado para diversas funções públicas e sociais, como por exemplo
a realização do serviço militar obrigatório (que deixou de o ser), a
participação em missões observação eleitoral da União Europeia,
etc. Em tudo o mais, a pérfida força masculina de um corpo de mais
de 90 quilos é empurrada para o desempenho de todo um conjunto
de performances sociais que sustentam e alimentam ainda o género
no espaço.
De forma um pouco inesperada e súbita recebi a notícia de que
as tortuosidades internas do meu corpo apresentavam configurações
263
Geografias do Corpo
pouco aconselháveis e que necessitavam de correcções urgentes.
Alimentado pela prática de horas sem conta de metodologias virtuais6, despoletei uma interacção electrónica com diversos centros
médicos em dois continentes, com inúmeros especialistas médicos,
e submergi numa linguagem técnica metamorfoseando conceitos
geográficos como crescimento, sprawling, fluidez, amplitude, etc.
em aneurismas, stents, fluxos e gradientes sanguíneos, esquemias,
calibres e tortuosidades, velocidades sistólicas e acelerações, etc. A
mudança de registo não pareceu assim tão radical. Continuei a falar
de espaços, de formas e de processos; a diferença residia na escala e
delicadeza individual. O carácter experimental da medicina fez-me
decidir por quem repete mais vezes por dia um determinado procedimento, e tratei de organizar uma viagem quase dissimulada de
Health Tourism ao Texas, nos Estados Unidos.
Juntamente com cerca de duas centenas de diferentes corpos humanos desloquei-me a 900 quilómetros por hora para percorrer os
7820 quilómetros de Londres a Houston em cerca 8 horas. Os corpos
aparentemente fixos ressentiam-se do ambiente esterilizado da cabine hermética e pressurizada que desidrata. Dentro de cada corpo,
ondas electromagnéticas deslocavam-se a velocidades próximas dos
300 mil quilómetros por segundo, fazendo funcionar o cérebro e
reduzindo a velocidade do Airbus a um mero jogo de crianças. No
entanto os corpos sentiam a artificialidade do movimento aéreo, e a
deslocação superior a 30 quilómetros por hora, limite máximo para
o qual o nosso corpo foi concebido (36 km/h como máximo em prova de 100 metros), provocava um desequilíbrio corporal.7
Chegado ao George Bush Intercontinental Airport, em Houston,
ajustei o relógio: o ponteiro anda 6 horas para trás. Para tentar concertar uma pequena parte do corpo percorri um quinto da circunferência terrestre, uma distância aproximada da viagem de 33 dias de
Colombo de Espanha às Índias. Choca aqui uma Geografia de céus
riscados de cápsulas móveis que transportam corpos pelo globo, com
o meu interior, essa micro-geografia que precisa de ‘um aperto’. A
materialidade visível do meu corpo, e não estas micro-geografias,
fizeram-me estar na fronteira de entrada dos Estados Unidos mais
tempo do que a maior parte dos altos, louros, de olhos azuis que
264
As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar
viajavam ao meu lado. O meu semblante moreno, para muitos quase
magrebino ou mesmo persa, nomeou-me como potencial ‘ameaça’.
A fluidez, fluxo e mobilidade paradigmática do espaço aeroporto
deteve-se, perante esta estratégia de profiling.8 Uma estratégia que
não deveria ser discriminatória, mas baseada num conjunto diverso
de informação recolhida previamente, era-o: nacionalidade, etnicidade, religião, género, etc. constituíam a base da triagem. O pós
Setembro 2001, o Department for Homeland Security, o Patriot Act,
etc. davam assim forma às evoluções do processo de vigilância do
corpo, à medição biométrica, à criação de elites de negócios cinéticas9, à selecção material de corpos e suas mobilidades, a geografias
do medo, do terror e de paranóia colectiva. A prova da transferência
financeira por via electrónica para o hospital americano tranquilizou
os ‘serviços de estrangeiros e fronteiras’, e fui novamente ‘posto em
marcha’.
Quando aterrei em Houston, rapidamente tomei conhecimento que
tinha chegado à ‘cidade mais obesa dos estados Unidos’, classificação atribuída pela Men’s Fitness Magazine resultante de um estudo
de análise de diversos critérios10. O antropomorfismo de ‘cidade gorda’, serve quer para a obesidade dos seus habitantes, quer para a sua
forma de metrópole em derrame acentuado11. Significativamente, os
geógrafos urbanos têm-se mantido particularmente silenciosos acerca das relações entre a obesidade e as formas urbanas12. Esta obesidade visível nos autocarros, no hospital, nos restaurantes, tinha no
entanto uma dimensão social e racial. Eram os afro-americanos hispânicos os que me pareciam mais obesos, sendo que os brancos me
surgiam como os aparentemente mais saudáveis. Dentro do próprio
hospital, onde encontrei um restaurante da cadeia MacDonalds (dos
seus 8300 restaurantes nos Estados Unidos, 18 funcionam dentro de
hospitais), parecia-me haver uma clara predominância de médicos,
funcionários e pacientes afro-americanos. A literatura científica que
encontrei a posteriori confirmou essa suspeita. Hoelscher et al13,
num estudo sobre obesidade nas escolas no Texas, referem que não
só a prevalência de obesidade nas crianças é maior no Texas do que
a média americana, mas são sobretudo os rapazes hispânicos e as
raparigas afro-americanas que têm índices de obesidade mais eleva-
265
Geografias do Corpo
dos. Pelo contrário, as crianças brancas, sobretudo raparigas, são as
que têm percentagens de obesidade mais reduzidas. Block, Scribner
e DeSalvo14 encontraram também, em relação a Nova Orleães, que
os bairros habitados predominantemente por afro-americanos têm
2,4 restaurantes de fast-food por milha quadrada, enquanto esta
densidade é de 1,5 para bairros habitados predominantemente por
brancos. A exposição a este tipo de alimentação tem contornos económicos e geográficos claros, com consequências na política e economia de corpos obesos.
Na paisagem urbana destacavam-se diversos edifícios imponentes de centros hospitalares. Com uma lente mais fina, transparecia a
importância do fenómeno globalizado do Turismo de Saúde. Várias
cadeias de hotéis localizavam-se perto destes centros médicos de excelência; pequenos shuttles transportavam pacientes e familiares de
lá para cá; mais afastados, inúmeros condomínios fechados, autênticos resorts urbanos, especializavam-se, prestando serviços personalizados no alojamento de pacientes e respectivas famílias; empresas
de consultoria forneciam serviços de enfermeiras, médicos, acompanhantes para pacientes de e para os seus países de origem, e todo
o tipo de serviços de saúde. Em 2006, em termos mundiais, a indústria de turismo médico estava avaliada em 40 mil milhões de euros.
Se em muitos países se trata de tratamentos a um mais baixo custo
(uma rinoplastia que na Índia tem um custo médio de 500 euros, nos
Estados Unidos custa cerca de 4000 euros, por exemplo), a indústria
do turismo médico em Houston especializa-se em serviços altamente tecnológicos e de vanguarda, tendo a cidade alguns dos melhores
hospitais americanos. A importância desta indústria levou mesmo
à criação em 2005 de um centro internacional de serviços médicos
para visitantes no terminal das chegadas do aeroporto internacional
George Bush, por forma a acolher os cerca de 10,000 pacientes internacionais que chegam todos os anos. Ao mesmo tempo, 46 milhões de americanos não têm seguro de saúde.
Enquanto o meu corpo ‘pós-humano’15 em recuperação fazia zapping numa das duas televisões do pequeno apartamento em que
convalescia, ora via o torneio de ténis dos Estados Unidos - Flushing
Medows - em Nova Iorque, onde corpos saudáveis lutavam incon-
266
As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar
sequentemente, mas com as mesmas regras, contra a superioridade
de um Suíço, ora observava o prenúncio de uma tempestade tropical que anunciava tornar-se furacão e atingir a costa dos Estados
Unidos. À medida que esta se desenvolvia, e a sua magnitude e rota
incerta começava a torná-la numa ameaça e fenómeno de dimensão
global, matutava nas formas como o meu corpo poderia escapar a
Figura 1 – Paisagens intersticiais
Fonte: Arquivo próprio
esta globalidade. Como podia eu colidir com um fenómeno climático de origem global por causa de uma pequena parte do meu corpo?
O absurdo do furacão chocar com a minha aorta tornava-se um paradoxo de escala. No apartamento do condomínio fechado de classe
média, um dos 7 milhões de alojamentos (6%) por detrás de muros
e grades nos Estados Unidos16, nós, os poucos ou únicos não (auto)
mobilizados estávamos ancorados, fixos no espaço, armadilhados
267
Geografias do Corpo
numa cidade e Estado fortemente auto-mobilizado: em média um
habitante de Houston viaja de automóvel mais de 16,000 km por
ano, número só inferior aos dos habitantes de Atlanta (em Portugal
ronda os 10,000 km).
O aparente controlo da transferência electrónica global de capital, os corpos a 900 quilómetros por hora, a ‘morte’ do espaço e do
Atlântico com os intercâmbios de mensagens e ficheiros de informação que tão depressa se desagregavam em pacotes que percorriam o globo como se juntavam de forma inteligível no destinatário
pretendido, tudo isso parecia desmoronar-se perante os cenários
apresentados. A escala da mobilidade do meu corpo tinha encolhido ferozmente. Neste pensamento de fuga, encontravam-se também
muitos outros corpos. E aqui se viu o fosso enorme que divide ‘classes de corpos’, corpos brancos e corpos negros, corpos com poder
e corpos marginais. A exclusão da mobilidade foi atroz. O corpo
enquanto sítio político de luta e contestação aflorava.
Quando o furacão Katrina atingiu a costa do Golfo dos Estados
Unidos, em 29 de Agosto de 2005, afectou cerca de 233,000 km2
(cerca de duas vezes e meia a superfície de Portugal continental) nos
estados de Luisiana, Mississípi e Alabama. Nova Orleães era particularmente atingida, tendo a catástrofe sido maior devido ao rebentamento dos diques que protegiam a cidade. À medida que os ecrãs
de televisão derramavam imagens de Americanos negros desesperados por assistência após a tempestade, muitos telespectadores não
podiam deixar de ‘ver’ raça e racismo a funcionar17, bem como a
luta tremendamente desigual que começava a assumir proporções
catastróficas na área do Golfo americano. As imagens do Superdome
e Centro de Convenções mostravam que a esmagadora maioria das
vítimas que ainda estava na cidade era negra. Os media utilizavam
desproporcionadamente o termo ‘refugee’ em relação a ‘evacuee’,
denotando um preconceito linguístico racista, e após uma semana, o presidente Bush reprovou este uso, e diversas organizações
aconselharam em alternativa o uso de termos como ‘evacuados’,
‘sobreviventes’ ou ‘vítimas’18. Uma visão simplista era difundida,
mascarando a subtileza do racismo cultural e institucional. Após a
passagem do furacão, o número de evacuados ou de ‘internally dis-
268
As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar
placed persons’ subiu para cerca de um milhão. O fenómeno global
acabou por não se mostrar trágico para a minha geografia intersticial, e de novo a 900 quilómetros por hora, se bem que numa cadeira
de rodas temporária, regressei a Portugal. Do avião espreitei o céu.
Kandahar estava longe; adormeci a sonhar com próteses a flutuar no
espaço.
II Corpos em Luta
Hoje eu tenho que sublinhar, acima de tudo,
a raça, o dia da raça, o dia de Portugal, de
Camões e das Comunidades Portuguesas19
No dia 14 de Novembro de 2001, sensivelmente 40 anos após o
início da guerra entre Portugal e Angola, 22 corpos masculinos, aparente e medicamente aptos para praticarem um desporto que exige
força física, técnica e determinação, entraram num espaço de cerca
de 8000 m² (antigo estádio de Alvalade), para fazerem um jogo amigável, que servisse de preparação para o Campeonato Mundial de
Futebol de 2002. Das duas selecções – Angola e Portugal - apenas a
primeira se tinha qualificado. Neste espaço de fronteiras conhecidas,
18 portugueses (alguns dos quais descendentes de africanos20) e 18
africanos enfrentaram-se somente pela segunda vez numa situação
de aparente igualdade: o primeiro jogo entre estas equipas tinha-se
realizado em 1989, também em Lisboa; todos os confrontos anteriores foram desiguais; o ‘assimilado’ nunca deixou de ser um ex-indígena (ver mais adiante)21.
Nesta última ocasião, em 2001, sucedeu algo de invulgar no futebol: o jogo amigável foi suspenso a 20 minutos do fim, devido à
equipa angolana ter menos de 7 jogadores em campo: 3 jogadores
foram expulsos por faltas ‘violentas’, ‘entradas duríssimas’ – assim
são classificadas pelos media especializados – um por insultos dirigidos ao árbitro e um último por alegada lesão física. O resultado era então de 5 a 1, favorável a Portugal, tendo Angola estado a
ganhar por 1-0. A tensão decorrente destes acontecimentos dentro
do campo, reflectiu-se e ‘contagiou’ o ambiente fora do campo, nas
bancadas e fora do estádio, e adeptos identificados como Angolanos,
269
Geografias do Corpo
arrancaram cadeiras, enfrentaram a polícia, vandalizaram paragens
de autocarro, automóveis e montras comerciais.
João Paulo N’Ganga, sociólogo e à época dirigente da Associação
SOS Racismo, afirmou que o que estava em causa, na perspectiva
dos Angolanos, não era apenas um jogo de futebol, mas uma partida
entre ex-colonizadores e ex-colonizados: ‘Roubaram-nos no campo como nos roubam no dia-a-dia’22. Esta ideia de injustiça esteve
também presente nas palavras do presidente da Federação Angolana
de Futebol, Justino José Fernandes, ao declarar que teria sido melhor se o árbitro do encontro pertencesse ao universo da lusofonia:
‘preferia que o jogo tivesse sido apitado por um árbitro português,
cabo-verdiano ou moçambicano’. Na verdade o árbitro era europeu,
francês, e branco. O seleccionador Angolano, Mário Calado, referiu
que este ‘lamentavelmente sentiu-se complexado por uma equipa
africana estar a vencer a selecção portuguesa’. Em Angola, o acontecimento não foi muito destacado pela imprensa. No entanto, o Jornal
de Angola de 15 de Novembro escrevia: ‘Árbitro estraga festa em
Alvalade (…) parcialidade absoluta e uma dualidade de critérios
jamais vista’. A inconsciência, agressividade e violência rotuladas
pelos media portugueses aos jogadores angolanos, era para os dirigentes e media angolanos vista como virilidade e masculinidade.
Aliás, o presidente do comité olímpico angolano, Rogério Silva, estendeu geograficamente este vigor a todo o continente africano, avisando que Portugal não deve esperar menor virilidade das equipas
africanas que venha a defrontar no Mundial de 2002.
Sintomaticamente, cerca de um mês antes deste encontro de futebol, a 7 de Outubro de 2001, no Parque dos Príncipes em Paris,
jogaram pela primeira vez as selecções de França e da Argélia (independente desde 1962). Os assobios ao hino da Marselhesa foram um
prelúdio para a invasão de campo que mais tarde ocorreu, quando
a equipa de França vencia por 4 a 1. Não ousando sequer por um
segundo analisar as justiças ou injustiças desportivas no campo, as
tensões que nascem e se propagam de dentro para fora do campo, ou
vice-versa, por vezes sintomáticas de situações que transcendem em
muito os 8000 m²23, devem ser analisadas e contextualizadas não só
270
As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar
na história colonial dos intervenientes, mas na situação pós-colonial
que existe ‘cá’ e ‘lá’.
No jogo de Lisboa, contavam-se 12 Angolanos a residir e jogar
em Portugal, sendo que seis destes efectivamente jogaram (incluindo a estrela Mantorras, jogador do Benfica). Alguns eram mesmo
colegas de equipa dos agora adversários que defrontavam. Os jogadores Angolanos tinham idades compreendidas entre os 21 anos
(nascidos em 1982) e os 31 anos (nascidos em 1970). Nesta última data, Angola já estava em guerra com Portugal (desde 1961), e
após a independência do país, em 1975, uma longa guerra civil de
27 anos teve lugar (apenas entremeada por dois períodos de ‘nem
guerra, nem paz’, em 1991-2 e 1994-98), apoiada pelas potências
da Guerra Fria até ao final dos anos 80. Só terminaria em 2002, um
ano após este jogo ter tido lugar. Dois anos antes do jogo, em 1999,
a Unicef escrevia que Angola era o pior país do mundo para se ser
uma criança24.
A imigração de jogadores africanos tem já uma longa história25,
tendo começado na década de 50 com jogadores como Matateu, José
Águas, Hilário, Costa Pereira, Mário Coluna, entre outros, muitos
dos quais naturalizados e assim representantes e responsáveis em
grande medida pelos sucessos da selecção nacional Portuguesa dessa
época, que atinge o seu auge de significado político com a ascensão
de Eusébio, conhecido como ‘a pantera negra’, a símbolo nacional.
Nada podia dar mais jeito a Salazar do que um ‘assimilado de cor’
constantemente enaltecido publicamente na metrópole, constituindo
um recurso colonial e neo-colonial26.
Dos mais de meio milhão de retornados que entrou em Portugal
entre 1975 e 1977, 61% veio de Angola27. Muitos, como os três filhos
de Isilda, do romance de Lobo Antunes O Esplendor de Portugal,
nunca tinham estado na ‘metrópole’. Segundo os censos do INE de
2001, havia em Portugal 37,014 cidadãos de nacionalidade angolana
(26,702 com estatuto de residente em 2004 segundo o Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras) e 124,756 de nacionalidade portuguesa
mas de naturalidade angolana (35,9% do total dos portugueses nascidos no estrangeiro). Eram assim à altura a terceira maior comunidade estrangeira no país (atrás da cabo-verdiana e brasileira), a se-
271
Geografias do Corpo
gunda dos PALOP, e em forte crescimento na década de 90. A estes
números oficiais, haverá que acrescentar os clandestinos.
Dora Poseidónio28, num trabalho sobre a integração da comunidade angolana (descendentes Angolanos e Luso-Angolanos) na área
metropolitana de Lisboa, conclui que existem diversas dificuldades
e problemas de integração e estigmatização nas pessoas deste grupo: estão sobre-representados em bairros degradados, em habitações
sociais e barracas, apresentam níveis de insucesso escolar elevados
e há uma ausência de indícios de mobilidade profissional ascendente. Garcia29 evidencia também numa investigação empírica, que é
pequena ou mesmo nula a relevância cultural atribuída às comunidades estrangeiras na sociedade portuguesa e na riqueza cultural do
país. Neste domínio é interessante referir o trabalho de Vala, Pereira
e Ramos30 que indica que Portugal apresenta um nível mais alto de
expressão pública que se opõe à imigração do que a média europeia
e do que a Alemanha, França e Reino Unido, em particular, sendo
este o resultado de uma sensação de ameaça cultural, sustentada por
convicções racistas e rejeição de valores igualitários.
São vários os estudos que apontam as condições precárias dos trabalhadores africanos em Portugal, sobretudo onde são mais numerosos, na área metropolitana de Lisboa. Eaton31 por exemplo, refere-se
a esta mão-de-obra flexível nestes termos: salários baixos, abuso e
exploração por empregadores por vezes sem escrúpulos, preconceitos raciais ocasionais, violência racista esporádica, discriminação
nas áreas da habitação e educação, reunindo-os significativamente em ‘semi-escravatura’. Malheiros e Vala32, que também indicam
problemas de discriminação e preconceito por parte de empregadores, sublinham a dificuldade acrescida em encontrar emprego entre
os Africanos na área metropolitana de Lisboa nos anos 90 (entre
1991 e 2001), devido à crescente concorrência com os ‘novos’ emigrantes de Leste e Asiáticos, mais qualificados num caso e menos relutantes em aceitarem salários mais baixos no outro. Neste período,
regista-se um aumento da taxa de desemprego entre os Africanos, o
que é contrário a todos os outros grupos de emigrantes33. Marques34
argumenta que a representação contemporânea dos imigrantes africanos em Portugal ainda deve muito ao ‘negro colonizado’.
272
As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar
Por alturas do encontro de futebol, em 2001, e apesar das melhorias das condições de habitação devido a políticas como o Programa
Especial de Realojamento, os Africanos eram aqueles que apresentavam as mais altas taxas de pessoas a viveram em bairros de lata,
tendo ainda uma muito alta proporção de pessoas a viverem em casas sobrelotadas35, não dispondo de boas acessibilidades aos centros
de comércio e serviços, isolados das redes ferroviárias, auto-estradas, cemitérios, áreas industriais, etc.36. Sem dúvida que o capitalismo residente na reestruturação da área metropolitana de Lisboa,
nos grandes projectos e obras públicas dos anos 90, gira em torno
da produção de um novo tipo de corpo trabalhador, um corpo que
constitui em si uma estratégia de acumulação37. Este corpo colectivo
de força de trabalho, dividido em hierarquias de capacidades, técnicas, autoridade, de funções manuais e mentais, sempre com relações
instáveis entre si38, quando cruzado com as categorias de ‘classe’ e
‘raça’ torna-se particularmente poderoso.
A construção europeia da África assentou na teoria do darwinismo social, na qual a ‘raça branca’ é superior a todas as outras. De
escravo a indígena, de indígena a assimilado quando culturalmente
europeizado, a reforma de 1951 revogou o Acto Colonial de 1930, e
pretendeu alterar por legislação as relações entre espaços e pessoas
no império português, harmonizando por decreto as relações entre
colonizador e colonizado. As colónias passaram a ser províncias ultramarinas, e o império passou a ser uma nação ‘do Minho a Timor’.
Numa das típicas canções da Mocidade Portuguesa (música e letra
de Mário de Sampayo Ribeiro), entoada nas escolas primárias e secundárias, podia-se ouvir: ‘A nossa Pátria é tão grande que o Sol não
deixa de a ver - Quando se esconde no Corvo em Timor está a nascer
- É Portugal um jardim Espalhado pelo mundo inteiro - E nele só
vicejam flores de que Deus foi jardineiro!’.
O ‘Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné,
Angola e Moçambique’, aprovado por Decreto-lei de 20 de Maio
de 1954, consignava as modalidades segundo as quais qualquer ‘indígena’ das colónias portuguesas podia ser ‘elevado’ à condição de
‘assimilado’. Em teoria, qualquer indivíduo que soubesse ler e escrever em português e demonstrasse possuir actividade laboral remune-
273
Geografias do Corpo
rada poderia ascender a essa condição. Mas os dados do Relatório
da Aplicação do Estatuto dos Indígenas Portugueses referente aos
anos de 1955, 1956, 1957, 1958, Província de Moçambique, elaborado pela Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas, não deixam dúvidas quanto ao insucesso do processo de assimilação, fosse
pela dificuldade em preencher os requisitos ou inconvenientes que
daí advinham, fosse pelo parco empenho das autoridades administrativas ou decisores políticos em que tal processo se consumasse
de forma escorreita. Em 1955 apenas 28 ‘indígenas’ obtiveram o
estatuto de assimilado em toda a colónia. Nos anos seguintes, e até
1958, os valores aumentaram, mas, ainda assim, o total de todos os
distritos para esses 4 anos não ultrapassou os 442 indivíduos! A lei
do assimilado, o estatuto do indígena, era uma lei não cumprida na
prática, e a inferiorização, a descriminação, a segregação e o trabalho forçado sempre foram a regra nas colónias portuguesas. Ao estender a cidadania para negros e mestiços houve uma legitimação da
‘supremacia branca’, da opressão da raça e classe para os excluídos,
ou seja, a maioria africana39.
Em 1995, numa sondagem publicada pelo jornal Público, apenas
3% dos inquiridos se diziam racistas, e 80,9% do total afirmava mesmo que não era racista de todo. Se estes dados podem não surpreender em si, já o facto dos inquiridos revelarem que os povos da
Europa do Norte são muito mais racistas do que os Portugueses,
indica que ‘nós’ julgamos ser diferentes, diferentes para melhor. O
que nos leva a presumir convictamente isso fundamenta-se, em parte, numa associação entre a suposta plasticidade e a cordialidade do
luso-tropicalismo e o carácter nacional, que alegadamente desemboca numa associação fraca entre a identidade nacional e a discriminação40. Ao mesmo tempo, ao passo que o luso-tropicalismo pode
‘proteger’ os portugueses de expressões públicas de discriminação
aberta (havendo no entanto muitos exemplos da existência desta discriminação pública), não os protege de novas e escondidas formas
de discriminação, tal como a inferiorização cultural41. Para Freyre,
que foi aluno de Franz Boas, a capacidade de miscigenação tropical
do português é mesmo in-corporada ‘amorenando-se sob o sol dos
trópicos ou sob a acção ou o requeime da mestiçagem tropical (…)
274
As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar
dando à cultura e, em certas áreas, à própria gente lusitana, uma
espécie de vigor híbrido’42. Às críticas das Nações Unidas, Portugal
respondia de forma autista com a nação indivisível, com a ausência de discriminação e segregação racial nas províncias, e com o
aparente exemplo de democracia racial do Brasil. O ‘não racismo’
português, para além de um traço ideológico, adquiriu também dimensões míticas43. Antes de podermos chegar a um third space de
Homi Bhabha ou a um hibridismo cultural cosmopolita, é necessário
desconstruir ou problematizar o discurso lusotropicalista que de certa forma inicia o mito do português como não-racista, que foi cientificamente adoptado por um conjunto largo de académicos (i.e. Jorge
Dias, Henrique de Barros, Adriano Moreira e Orlando Ribeiro), com
uma marcada ausência de espírito crítico, e que ainda hoje está fortemente presente na sociedade portuguesa44.
Tal como as fotografias de Ingrid Pollard, que destabilizam a paisagem pastoral inglesa através da presença de um estranho corpo
negro45, o que mais alvoroçou os media e a sociedade portuguesa
no desfecho do jogo de 2001, foi a ‘violência’ de corpos negros em
plena ‘metrópole’. Esta desterritorialização da violência em directo
perturba a construção de noções claras do lugar dos corpos da espacialidade dos comportamentos que devem e podem ser aceites46. Se
isto se tivesse passado em África, nada de excepcional teria ocorrido. A ‘área cultural lusotropical’ e a configuração social híbrida única que ainda permeia discursos no país não encontravam eco nestes
acontecimentos. O jogo despoletou também uma série de comentários de jornalistas e de adeptos que estabelecem a ponte entre a
batalha no relvado e ideias enraizadas na sociedade portuguesa que
se fixam através de processos da construção de um Outro africano,
negro, emigrante de segunda geração, delinquente. O discurso, a discriminação, o distorcer da linguagem e de terminologia aproxima-se
de Nova Orleães. Aos corpos negros em Alvalade, quer dentro quer
fora do estádio, eram associadas geografias imaginativas de exclusão que desafinavam com a construção passada do bom selvagem.
A África feminina dos exploradores, dos variados fenótipos vistos
como esbeltos, do erotismo feminino africano, estava longe desta
‘maré negra’ como alguém se referiu ao comentar a violência em
275
Geografias do Corpo
torno de Alvalade. A geografia do desejo, histórica e socialmente
construída era agora indesejada em casa. De certo modo, África e os
africanos sempre foram construídos pelos europeus como o retrato
de Dorian Gray; as suas geografias são o estandarte no qual o mestre
coloca todas as suas deformidades físicas e morais para que continue
em frente, erecto e imaculado.
Não querendo cair numa lógica maniqueísta de vítimas e culpados determinados pela ‘raça’, quer defendendo uma perspectiva
Marxista quer Weberiana, e não esquecendo o poderoso retrato de
Lobo Antunes dos colonos brancos retornados de Angola, subalternos explorados pelos Europeus, vistos em Portugal como os ‘Pretos
de Lisboa’, sem terra, sem identidade, sem poder, sem amor47,
creio que no contexto do ‘jogo’ de 2001, tal como no caso de Nova
Orleães, as categorias ‘classe’ e ‘raça’ aparecem marcadamente cruzadas. O terreno ‘pós-colonial’ de 8000 m2 onde decorreu o jogo de
2001, semanticamente adjectivado como um espaço que sucede a
um tempo de ódio, guerra e violência, denota que a dimensão temporal da expressão pós-colonialismo encerra perigos, e nas palavras
de Gandhi48 revela-se falsamente utópica e prematuramente comemorativa49.
É com certeza arriscado estabelecer uma relação entre os 70 minutos de (não) futebol juntamente com a violência gerada no e fora
do estádio, e os séculos de opressão e exploração. Quando o espectáculo e resultado de um jogo de futebol não se materializou num escape de um quotidiano áspero, quando não proporcionou a desejada
ainda que efémera alegria da vitória sobre aqueles que representam
a brutalidade de um passado e muitas vezes um presente colonial50,
aflorou uma certa frustração. Aqui ‘em casa’, os mais de 25 anos de
miséria, discriminação e preconceitos quer sociais quer raciais, não
construíram apenas corpos como entidades passivas pertencentes a
uma máquina particular de papéis económicos performativos, em
que estes são diferenciados e marcados por diferentes capacidades
produtivas e qualidade físicas de acordo com a história, geografia,
cultura e tradição51, mas resultaram também em corpos implicados
em processos de resistência, contendo desejos de reforma, rebelião
e mesmo revolução.
276
As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar
Quando os africanos pós-coloniais migram para Portugal, migram
para ocupar posições de classe que lhes retiram toda e qualquer
mais-valia enquanto exóticos localizados52. A sua posição social e
a sua cor de pele empurra-os para um espaço em espiral de ‘bairros
problemáticos, exclusão social, emprego precário, bairros problemáticos’…Em O Vento Assobiando nas Gruas, Lídia Jorge retrata
bem esta farsa da pluralidade de uma sociedade pós-colonial, que
não se reconhece nem aceita enquanto tal. A criação de um novo
espaço para resolver a crise do espaço português pós-colonial desemboca na ideia de Eduardo Lourenço de que ‘Portugal é um país
que nunca saiu dele. Sai sem sair’.
Uma história simples?
A história do meu corpo vai de encontro à ideia de Haraway53 de que
os corpos não são apenas de carne e osso, mas são mapas de poder e
de identidade. Os contrastes chocantes entre a cirurgia que implica
o saber e poder fazer parte de uma rede de contactos e movimentos
globais, que implica um custo 100 vezes superior ao rendimento
anual per capita no Quénia, e as próteses lançadas no Afeganistão,
mostram o quanto corpos diferentes em lugares diferentes têm valores, conhecimentos e poderes distintos. No final de contas, a incursão do meu corpo pela América do Norte, e a minha confrontação
com outros corpos, foi inicialmente gerada por uma malformação
congénita resultado mais provável do paludismo. O espaço e o tempo apontam para África no final dos anos 60. Um casal, um dos
muitos dessas centenas de milhares de mobilizados para o ultramar,
fazia de forma pouco convencional, pouco imaginada e não sonhada, o seu início de vida a dois. Ao contrário do Katrina, o império
ficcionado que se excedeu a si mesmo, como o fez com muitos de
‘cá e lá’, chocou mesmo com o meu corpo.
A violência nos 8000 m2 em Lisboa, quando 22 corpos colidiram
sob efeito da cor da pele e de muitos anos de desigualdade, reporta-se também a África, ao outro lado do que em tempos se quis que
fosse um Brasil em África. ‘Raça’, etnicidade, classe, sexualidade,
género, etc. constituem processos de normalização (que frequentemente são construídas como naturais) entendidas por Foucault como
277
Geografias do Corpo
prisões sociais, sobre os quais a Geografia deve reflectir com uma
certa dose de plasticidade. O reconhecer e aprender a partir das geografias do corpo, sejam elas experiências individuais e de escala micro, ou processos de marginalização e discriminação de escala mais
abrangente (que não se devem restringir aos locais paradigmáticos
de diversidade étnica urbana ‘exótica’), permite abordar não a diferença por si, mas a diferença significativa. Assim como o corpo tem
uma geografia histórica a partir da qual podemos tentar compreender a produção do poder, do território e da desigualdade, também a
nossa própria tentativa de cartografar essas geografias é corporizada
e inescapável.
Notas
Longhurst 2005: 94. 2 Barnes e Gregory 1997; Rose 1997. 3 Harvey 2000.
Oscar Pistorius: atleta com membros inferiores amputados que tentou
sem sucesso obter tempos mínimos para participar nos Jogos Olímpicos
de Pequim em 2008, após um demorado e controverso processo em que
lhe foi reconhecida essa possibilidade. 5 Longhurst 2005. 6 Sarmento 2004.
7
A natureza do nosso corpo é perfeitamente compreensível quando analisamos a mortalidade (em percentagem) resultante de atropelamentos
rodoviários em função da velocidade dos automóveis: 5% a 32km/h; 45%
a 48km/h, 85%a 64km/h, e 100% a velocidades acima de 80km/h. 8 Ver
Adey 2004. 9 Graham e Marvin 2001. 10 Ver Sui 2003 e www.mensfitness.
com. Houston classificou-se em número um em 2002, 2003 e 2005, tendo sido a quinta em 2006, a sétima em 2007 e a décima em 2008. 11 Ver
Eid et al 2008. 12 Sui 2003. 13 Hoelscher et al 2004. 14 Block, Scribner e
DeSalvo 2004. 15 Ver Brito-Henriques 2009, neste volume. 16 US Census
Bureau 2001. 17 Elliot e Pais 2006. 18 Ver Sommers et al 2006. 19 Discurso
do Presidente da República Portuguesa em 10 de Junho de 2008. 20 Luís
Boa Morte tem ascendência Guineense enquanto os pais de Jorge Andrade
são Cabo-verdianos. 21 À semelhança de Salazar, que nunca chegou a pisar
nenhuma das ex-colónias, a selecção portuguesa de futebol nunca jogou no
continente Africano (quer em jogos oficiais, quer em jogos particulares).
22
Jornal Público, 16 Novembro 2001: 43. 23 Ver Brown 1998 para mais detalhes sobre racismo e futebol. 24 UNICEF 1999. 25 See Coelho 26 Darby
2006. 27 Machado 1994. 28 Dora Poseidónio 2004. 29 Garcia 2000. 30 Vala,
Pereira e Ramos 2006. 31 Eaton 2004. 32 Malheiros e Vala 2004. 33 Malheiros
e Vala 2004. 34 Marques 2007. 35 Malheiros e Vala 2004. 36 Fonseca 2008.
1
4
278
As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar
Harvey 2000; Sarmento 2008; Philo 2009 neste volume. 38 Harvey 2000.
Hernandez 2002. 40 Vala, Lopes e Lima 2008. 41 Vala, Lopes e Lima 2008.
42
Freyre 1956: 14-16. 43 Marques 2007. 44 Neto 1997 e Bastos 1998. 45 Ver
Kinsman 1995. 46 ver Philo 2009 neste volume. 47 Santos 2005. 48 Gandhi
1998. 49 Passados não muitos anos sobre este episódio, em Junho de 2005,
inventou-se um arrastão ‘à moda brasileira’ na praia de Carcavelos, revelando uma vez mais uma paranóia colectiva de ‘negrofobia’ e de construção de um outro (ver Almeida 2006 e Carvalheiro 2008). 50 Gregory
2004. 51 Harvey 2000. 52 Almeida 2006. 53 Haraway 1991.
37
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281
Os coordenadores
Ana Francisca de Azevedo é Professora no Departamento de Geografia do Instituto de Ciências Sociais a Universidade do Minho. Tendo realizado o seu mestrado
em Educação Ambiental, no âmbito de um projecto europeu de investigação que
lhe proporcionou uma bolsa de estudo na Danish Research Academy, desenvolveu
pesquisa em torno das Geografias da Infância, vindo a especializar-se em Gegrafia
Cultural e Estudos da Paisagem. Procurando a aproximação entre Geografia e
Cinema, o seu trabalho de doutoramento, que conta com um percurso de investigação efectuado de 2001 a 2004 na University College London e de 2004 a 2006
na Universidade do Minho, permite a compreensão da paisagem como construção
cultural e como ideia, mostrando como esta se desenvolveu através da cultura
visual e da experiência fílmica. Ana Francisca de Azevedo tem já um conjunto significativo de artigos publicados nacional e internacionalmente em diferentes revistas
científicas. Em 2006 foi co-organizadora de um livro intitulado ‘Ensaios sobre Geografia Cultural’, uma obra implicada com a reconceptualização do espaço, lugar e
paisagem, tendo subjacente a revisão crítica destas ideias.
José Ramiro Pimenta é professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho. A sua
investigação tem-se orientado nos domínios da História e Teoria da Geografia,
Geografia Cultural, e Geografia Histórica do Conhecimento, especialmente a Geohistoriografia da Arqueologia portuguesa. As suas principais publicações são: ‘Geografia e Arqueologia: uma epistemologia comparada’ (Porto: Figueirinhas, 1996);
‘Arqueologia: uma introdução pós-crítica’ (Porto: Figueirinhas, 1997); ‘Arqueologia’, in Dicionário de História de Portugal, dir. de António Barreto e Maria Filomena Mónica (Porto: Figueirinhas, 1999); Coordenação de ‘O Instituto de Geografia
da Faculdades de Letras do Porto’ (Porto, 2002); ‘Geo-historiografia da Cultura
Castreja’ (Porto: Figueirinhas, 2007); ‘O Lugar do Passado em Martins Sarmento’
(Porto: Figueirinhas, 2008). Coordenação, com João Sarmento e Ana Francisca de
Azevedo, ‘Ensaios de Geografia Cultural’ (Porto: Figueirinhas, 2006) e ‘Geografias
pós-coloniais’ (Porto: Figueirinhas, 2007)
João Sarmento é Professor Auxiliar com Nomeação Definitiva no Departamento de
Geografia da Universidade do Minho. Doutor em Geografia pela Universidade de
Cork, Irlanda (2001). Tem publicado nas áreas da Geografia Cultural, Geografia do
Turismo, Geografia dos Transportes, Tecnologias de Informação e Comunicação e
Pensamento Geográfico. Em 2004 recebeu o prémio Nacional de Geografia Orlando Ribeiro, atribuído pela Associação Portuguesa de Geógrafos, pela obra ‘Representation, Imagination and Virtual Space. Geographies of Tourism Landscapes in
West Cork and the Azores’, publicada nesse mesmo ano pela Fundação Calouste
Gulbenkian (ISBN 972-31-1072-5). Em 2006 foi co-organizador (com A. F. Azevedo
e J. R. Pimenta) do livro ‘Ensaios de Geografia Cultural’ (ISBN 9789726612049),
uma obra implicada com a reconceptualização das ideias de espaço, lugar e paisagem. Foi Director do Departamento de Geografia da Universidade do Minho (20042006), Director do Núcleo de Investigação em Geografia e Planeamento (20032007), Director do Curso de Geografia e Planeamento (2004-2005) e Presidente do
Conselho de Cursos de Ciências Sociais da Universidade do Minho (2004-2007).
É o editor principal da revista científica ‘Aurora Geography Journal’. Leccionou em
diversas universidades de países estrangeiros como Timor, Brasil, Irão, Finlândia,
Letónia, República Checa, Espanha, Suécia e Irlanda.
«Considerada recentemente, por Denis Cosgrove, como ‘um dos
mais vibrantes e disputados subdomínios da Geografia Humana’,
a Geografia Cultural promoveu nas últimas décadas uma renovação das abordagens teóricas e metodológicas no seio da disciplina.
Inúmeras são as razões que subjazem à força renovada que se tem
vindo a sentir neste campo de estudos, tanto internamente como na
relação com outras áreas científicas, pelo que delas apresentaremos
uma breve síntese.
Em primeiro lugar, destaca-se o esforço de diversos autores que,
sensivelmente desde a década de 1980, se encontram implicados na
revisão crítica de uma tradição de pensamento geográfico que encontra as suas raízes nas geografias francesa e americana, escolas
herdeiras de uma Antropogeografia germânica dos finais do século
XIX. O trabalho destes autores implica a reavaliação do projecto
científico da Geografia moderna e das suas expressões no âmbito das
abordagens culturais.
O forte legado das abordagens ecológica e etnográfica que percorre aquela tradição de pensamento geográfico viu-se revigorado,
sobretudo a partir da década de 1990, contribuindo para a revisão,
no seio de uma new cultural geography, dos conceitos de ‘natureza’ e ‘cultura’, e fragmentando o dualismo epistemológico sobre o
qual parte substancial da tradição geográfica foi convencionalmente
construída (Livingstone). Denunciando a apropriação e a mediação
cultural do mundo natural por parte dos projectos científicos da modernidade, a ênfase da nova Geografia Cultural passou a colocar-se
na tentativa de detonação daquele dualismo, sustentando-se que a
acção humana não pode dividir-se de acordo com tal imperativo:
todos os ambientes e paisagens são co-produções de natureza-cultura (Latour). Mas esta é apenas uma das dimensões sobre a qual se
fundam os desenvolvimentos recentes da Geografia Cultural.
O impacte das correntes transdisciplinares de pensamento e de novas teorias, que forçaram a recolocação dos debates nas Ciências ...»
(da Introdução do livro ‘Ensaios de Geografia Cultural’, 2006)
J. SARMENTO, A. F. de AZEVEDO, J. R. PIMENTA
(coordenação)
ENSAIOS
DE
GEOGRAFIA
CULTURAL
Paul CLAVAL
Michael R. CURRY
Denis LINEHAN
João SARMENTO
Ana Francisca de AZEVEDO
José Ramiro PIMENTA
iii
figueirinhas
«O ‘pós-colonialismo’ emergiu nas últimas décadas do século
XX como problemática cultural através da qual se reorganizam as
categorias da diferença e alteridade. Dinamizando os debates em torno
das políticas de lugar e de representação, a problemática pós-colonial
decorre de uma profunda transformação nas instâncias de produção
da subjectividade bem como de movimentos político-intelectuais
implicados com a autorização de diferentes posicionalidades.
Comummente associada aos trabalhos desenvolvidos no âmbito
dos Estudos Literários e Culturais, esta problemática surge como
preocupação central para as mais diversas áreas; na Antropologia
e na Sociologia, na História e na Geografia. Sustentando uma
teoria cultural crítica que agita o mundo académico, a problemática
pós-colonial permitiu a organização de um paradigma dentro do
qual se revêem experiências de colonização e se reorganizam os
processos que resultam de diferentes momentos de descolonização
formal. Mais do que uma reflexão sobre o ‘encontro colonial’ como
elemento determinante para a constituição do sujeito do humanismo,
o paradigma pós-colonial encontra-se comprometido com ‘a crítica,
a exposição, a desconstrução, a contraposição, e a transcendência das
presenças e dos legados culturais e ideológicos do imperialismo’. 1
As condições de debate são, por isso, complexas e revestidas de
tensões que não podem ser descuradas.
Num primeiro plano, tais condições aglutinam aspectos raciais e de
género, questões de corpo e identidade, as quais assumem visibilidade
renovada pela força das perspectivas marginais e subalternas que
forçam a reconsideração das visões situadas sobre as quais se
ergueram os domínios de um propalado conhecimento universal.
A revisão dos textos e discursos do colonialismo configura-se
como uma prática que é mais do que uma teoria, é a experiência de
autorização de novas subjectividades. Num outro plano, as condições
de debate num presente pós-colonial configuram a emergência de
espaços radicalmente novos que desafiam as fronteiras de uma
metageografia global. A amplitude da agenda pós-colonial não é por
isso susceptível de mapeamento breve. Ao envolver uma multitude de
esforços de reposicionamento, esta agenda alerta, antes de mais ...»
(da Introdução do livro ‘Geografias Pós-coloniais’, 2007)
Coordenação de
José Ramiro Pimenta
João Sarmento
Ana Francisca de Azevedo
GEOGR
A F I A S
PÓS-CO
LO N I A I S
Ensaios de Geografia Cultural
Ana F de Azevedo
James D Sidaway
João Sarmento
José R Pimenta
Marcus Power
Matthew Gandy
Richard Phillips
iii
figueirinhas
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