UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E
LITERATURA COMPARADA
GISELLE MADUREIRA BUENO
Humor e alegria em Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa
Versão corrigida*
*O exemplar original encontra-se disponível no CAPH da FFLCH
Santo André
07/05/2012
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FFLCH
GISELLE MADUREIRA BUENO
Humor e alegria em Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa
Versão corrigida*
*O exemplar original encontra-se disponível no CAPH da FFLCH
Tese apresentada ao Departamento de Teoria
Literária e Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obtenção do título
de Doutora em Letras.
Área de Concentração: Literatura Brasileira.
Orientadora: Prof. Dra. Regina Lúcia Pontieri.
De acordo: _________________________________
Regina Lúcia Pontieri
Santo André
07/05/2012
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
B928h
Bueno, Giselle Madureira
Humor e alegria em "Tutaméia: terceiras estórias"
de Guimarães Rosa / Giselle Madureira Bueno ;
orientadora Regina Lúcia Pontieri. - São Paulo, 2012.
187 f.
Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Departamento de Teoria Literária e Literatura
Comparada. Área de concentração: Literatura
Brasileira.
1. Guimarães Rosa. 2. "Tutaméia: terceiras
estórias". 3. Humor. 4. Alegria. 5. Absurdo. I.
Pontieri, Regina Lúcia, orient. II. Título.
Nome: BUENO, Giselle Madureira.
Título: Humor e alegria em Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa.
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Doutora em Letras.
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr.: ____________________________________ Instituição: _____________________
Julgamento: __________________________________ Assinatura: _____________________
Prof. Dr.: ____________________________________ Instituição: _____________________
Julgamento: __________________________________ Assinatura: _____________________
Prof. Dr.: ____________________________________ Instituição: _____________________
Julgamento: __________________________________ Assinatura: _____________________
Prof. Dr.: ____________________________________ Instituição: _____________________
Julgamento: __________________________________ Assinatura: _____________________
Prof. Dr.: ____________________________________ Instituição: _____________________
Julgamento: __________________________________ Assinatura: _____________________
A todos que alegram e humorizam meu
coração; especialmente, a meus pais, Públio e
Adelaide, meu irmão Átila, minha cunhada
Viviane e minha sobrinha, Ágata.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Regina Lúcia Pontieri, por todo apoio e compreensão nesses oito
anos de trabalho conjunto.
Aos professores integrantes da banca examinadora: Suzi Frankl Sperber, Gilberto
Figueiredo Martins, Maria Célia de Moraes Leonel, Márcia Marques de Morais, Marcus
Vinicius Mazzari, Jaime Ginzburg, Fábio Rigatto de Souza Andrade e, particularmente,
Cleusa Rios Pinheiro Passos e Yudith Rosenbaum, que acompanham meu trabalho desde o
mestrado, com intervenções sempre preciosas.
À Daniela Salomão pela ajuda com as versões para o inglês.
Ao CNPQ pela bolsa de estudos concedida.
Ao pessoal do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada.
A toda a minha família e aos amigos de perto e de longe.
Tem horas em que, de repente, o mundo vira
pequenininho, mas noutro de-repente ele já
torna a ser demais de grande, outra vez. A
gente deve de esperar o terceiro pensamento.
A gente morre é para provar que viveu.
[...] tudo o que é bonito é absurdo.
O vau do mundo é a alegria!
Somente com a alegria é que a gente realiza
bem mesmo até as tristes ações.
João Guimarães Rosa
RESUMO
BUENO, Giselle Madureira. Humor e alegria em Tutaméia: terceiras estórias de
Guimarães Rosa. 2012. 187 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
Esta tese visa a esmiudar, a partir de uma abordagem marcadamente intratextual, a
questão do humor e da alegria em Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa. No
primeiro capítulo, apresentam-se considerações mais teóricas e gerais sobre o tema, que
aparece, em Rosa, matizado pelas sombras da angústia, da dormência, do trágico; ambos,
alegria e humor, espontam de uma hermenêutica inteiramente varada pela consciência do
absurdo. No segundo capítulo, discute-se a relação entranhada da própria forma lacunar da
obra com esse espírito intransparente, ao mesmo tempo melancólico e venturoso, que a
constitui. No último capítulo, interpreta-
Aletria e hermenêutica
esquadrinhando os artifícios de composição de parte de suas anedotas, e trazendo à luz a
fabulação paradoxal, chistosa e sublime do texto.
Palavras-chave: Guimarães Rosa. Tutaméia: terceiras estórias. Humor. Alegria. Absurdo.
ABSTRACT
BUENO, Giselle Madureira. Humour and joy in Tutaméia: third stories by Guimarães
Rosa. 2012. 187 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
This thesis aims to go through, from a markedly intratextual approach, the matter of
humour and joy in Tutaméia: third stories by Guimarães Rosa. In the first chapter, rather
theoretical and general considerations are presented on the theme that appears, in Rosa, tinted
by the shadows of anguish, of dormancy, of the tragic; both, joy and humour altogether,
emerging from a hermeneutic which is entirely transpassed by the awareness of the absurd. In
the second chapter, is discussed the deeply rooted relationship of the lacunal form itself of this
melancholic and blissful at the same
time. In the last chapter, t Aletria and hermeneutics
fabulation, witty and sublime.
Keywords: Guimarães Rosa. Tutaméia: third stories. Humour. Joy. Absurd.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
11
1
18
2
-HUMOR
FORMA TUTAMEICA
62
3 ALETRIA E HERMENÊUTICA 101
REFERÊNCIAS
171
11
INTRODUÇÃO
Tutaméia: terceiras estórias (ROSA, 1985)1 é texto que compele o leitor a assumir
humildemente sua pequenez e, passo além, livre escolha, amá-la e deleitar-se nela, no inquieto
e afanoso ofício de duvidar e aventurar sentidos provisórios bagatelas.
Afirmar que a obra convida o leitor a fazer-se pequeno pode significar também, do
ponto de vista do especialista, que este é chamado a ater-se sem temor, com especial cuidado
e paciência, às microconexões duvidosas, às nonadas da análise e da interpretação, antes de
lançar-se, com afã, às macroconexões, sejam elas atinentes ao restante da obra de Guimarães
Rosa, à tradição artística e intelectual, à história, etc. São as proezas do pequeno livro: como
em uma antiperipleia, desnorteia pressupostos e conduz o crítico modestamente a novo início.
Sem exagero, Terceiras estórias devem ser lidas palavra por palavra. O estudo do minúsculo
já levanta questões curiosas e difíceis. Criar interesse pela obra, orientação fundamental de
qualquer crítica literária, é mostrar, antes de qualquer coisa, como eventualmente esse texto
lacônico e abstruso pode comunicar(-se). A escrita caminha, propositadamente, sem nenhuma
pressa e pede que assim também seja contemplada: sob a valentia do devagar e do mínimo ,
o que é, em dias correntes, exigência furiosa, pois a sociedade e a academia produzem
implacavelmente a pressa da produção e a ambição da totalidade. São as proezas do grande
*&# &*# *&"#''!"&**"&(!$#$"'!"(# !1#"*&'#'2 de
Sagarana, a impaciência ou o corre-corre são assimilados à ausência de coragem: 1!#.
)!$&''%)*!(##'#' #')!$&'''!!"#2$
).
Em 1!$#& 2, o autor registra, pela boca do menino, seu gosto, alguns diriam sertanejo,
!#&#' 13 ) !'(+"#'(-!)(#$'#$&*#/ 43#&/,'(-
não. Se a gente puder ir devagarinho como precisa, e ninguém não gritar com a gente para ir
depressa demais, então eu acho que nunca que é pesado.42$ E é assim
1
Manterei, para o título da obra, em correspondência à edição de 1985 adotada, a grafia anterior à recente
reforma ortográfica.
12
que, nas Terceiras estórias, a mornança tem ares de programa estético e vital: # Até hoje,
para não se entender a vida, o que de melhor se achou foram os relógios. É contra eles,
!$
, 1985, p. 167).
Se precipitar-se na interpretação correndo o risco da superficialidade é indesejável,
afundar-se no precipício, não. Tal sina do cego Tomé, qual sorte daquele que lê. Em certo
sentido, é bom que se caia, pois é só na aceitação das trevas que se começam a inventar as
luzes. Sim, pois a própria legibilidade da obra tem de ser miúda e pachorramente construída.
Creio ser pouco dizer que o leitor completa as estórias, elaborando-as com o escritor. A coisa
é mais espinhosa, mais rente com o nada. É a possibilidade mesma de lê-las que tem de ser
criada em companhia, o que só é praticável se se aprende a recrear-se em uma ignorância que
se avoluma e reitera. São as proezas desse pequeno grande livro rosiano.
Tutaméia é texto hermético, e sua fragmentação é de tal plana que toda conexão
estabelecida, se não tratada com delicadeza, aparece como um acréscimo um tanto forçado;
#$ esmo tempo que a obra incita ao preenchimento,
#$
e o
segundo capítulo há de mostrar que Terceiras estórias são também para ser ouvidas , a
verdade é que o escrito fica por não dito (ROSA, 1985, p. 158). O tradicionalmente sólido,
visível e confiável traço da escritura desmancha-se no triz em que se grava. Tudo pode não ser
o que parece: o preto da letra ou o branco da página.
A obra é hermética também no sentido de que nutre certa vocação para fechar-se
dentro de si, embiocando, zelosa, seus segredos e, em boa medida, fiando e desfiando, ela
mesma, de maneira original, as categorias que a meditam. Essa angustura ou garganta pode
afigurar-se como o próprio obstáculo a tal ponto que, em vez de abrir picadas, não se
resista a dar a volta e construir a leitura por fora, amarrando-a a partir de conceitos e
pressupostos advindos de outros saberes (metafísicos, filosóficos, etc.). Todavia, por efeito de
13
uma nova mirada, pode o aperto transverter-se em solução, o que, por sinal, está bem de
acordo com o espírito tutameico. Desprezada a estreitura, topa o olho com o oco da passagem.
Para dizer de outra maneira: a abordagem cerradamente intratextual pareceu-me via bastante
promissora no estudo de Terceiras estórias, e é precisamente ela que tomo nesta pesquisa.
Isto não significa que não me valerei das relações extra ou intertextuais, tão pouco,
evidentemente, que o texto as desestimule (são, aliás, sempre bem-vindas quando
fundamentadas nele). É o caso apenas de embrenhar-me e deter-me na exploração de uma
minguta vereda que a organização discursiva torna imediatamente visível: o diálogo de cada
texto consigo mesmo e de todos eles entre si. Esta leitura que se demora na minúcia talvez
ache, exatamente na sua primariedade ninha, nica, niquice, migalhice , encruzada de
onde possam divergir ou para onde possam convergir, mais tarde, macroconexões.
Ademais é preciso sublinhar que este trabalho tem como foco a temática do humor e
da alegria. Penso que é a simpatia de Guimarães Rosa por esta que também está em causa nas
cogitações !Aletria e hermenêutica" ou, no câmbio sugestivo das letras,
!Alegria e hermenêutica"; conforme já foi dito, Terceiras estórias incentivam o regozijo
alegria da interpretação pequerrucha, confinante com o nada a-letria.
Assim, anteponho, num primeiro capítulo ou antiperipleia conceitual, uma reflexão
propedêutica sobre o humor e a alegria. As concepções rosianas, sempre em reforma, são, em
geral, muito indóceis a fórmulas ou máximas sintetizadoras; por isso, procuro frequentar,
explicitamente, vários dos contos do livro.2 Em seguida, aponho uma seção que, segunda
antiperipleia, além de retomar e desenvolver considerações anteriores concernentes,
sobretudo, à alegria, concentra-se no problema da forma tutameica. Finalmente, no terceiro
2
A discussão sobre o gênero dos textos que compõem Tutaméia não é primordial nestas páginas. Seriam eles, ou
alguns deles, (macro)anedotas ou microcontos ou contos ou casos (ROSA, 1985, p. 30, 86, 92, 93, etc.) ou
estórias ou histórias (ROSA, 1985, p. 55, 105 e 130), ou o quê? O termo mais prudente seria o penúltimo,
fornecido, pelo próprio autor, logo na abertura do primeiro prefácio, sem as mesmas reticências que são
! "
! "!" ! "
14
capítulo (ou capitulação), proponho-me a analisar e interpretar, em interação com as estórias,
o primeiro prefácio, que, justamente, teoriza, de maneira jocosa, o cômico, o humor, a
anedota. Acompanho, passo a passo, uma boa parcela da especulação rosiana sobre os chistes
de abstração, de sorte que a leitura vai caminhando um tanto solta, submissa aos livres desvios
da análise, até que, ao final, o pensamento se articule com alguma unidade; de qualquer
maneira, sendo a obra semovente e descontínua, o que este estudo, como um todo, almeja é o
ensaio de uma re-montagem, quebra-cabeça de fragmentos recolhidos, cujo sentido só pode
ser precário e provisório.
Até onde sei, não há nenhum trabalho monográfico que tenha por tema, exatamente, o
humor e a alegria em Terceiras estórias. Não obstante, conheço a tese de Jacqueline Ramos
(2007),
.3 A autora sustenta que a função do
cômico no livro rosiano não é a de propiciar o riso, mas dar entrada a novas maneiras de
pensar, ampliando o idioma, desmanchando estereótipos, desmascarando o engano de valores
viciados, liberando o censurado e materializando lógicas expulsas do pensamento sério, como
a da criança, a do louco, etc. É primacialmente à luz de concepções de pensadores modernos,
como Freud, Joachim Ritter e Schopenhauer, que Jacqueline Ramos aclara para o leitor o
papel da comicidade em Terceiras estórias, conquanto, segundo ela, a obra também empreste
formas e estruturas da arte antiga, como a parábase das comédias.
Já no que compete aos escritos de menor extensão, lembro dois ensaios: um, de Javier
*'"' $+ "!( "!
publicado em Ironia e humor na literatura: *' & ' #% "
"' +!Revista do livro, Javier Domingo labora por ligar a mística do
Grande Sertão: Veredas a certa atitude ontológica ocidental e oriental, que estaria
representada, entre outros, por Santa Teresa, São João da Cruz, São Francisco de Assis,
3
Publicado em 2009 pela Annablume.
15
Raimundo Lúlio, Ramakrishna e os sufis. Neles, como em Guimarães Rosa, a alegria,
consequência de uma autodestruição admiravelmente otimista e libertadora, seria, mais que
um gozo, maneira nova de contemplar o mundo. De forma individual, por ela, a alma, em
plena realização de suas faculdades, penetra no mistério primeiro da Criação e no universo do
Amor. Esse estado de alegria, transcendente ao da graça, produziria, de uma maneira física, a
anulação de paradoxos aparentes e dolorosos, responsáveis por aquilo que os místicos
conheceram por secura, e os modernos, angústia, náusea e Nada. O homem que adere a essa
postura ontológica busca um contato unitário com a Natureza ou a Matéria e uma conexão
íntima com a essência da linguagem, a nomeação adâmica e eficaz das coisas. No caso
específico de Rosa, a literatura seria meio para recriar toda essa condição de coito cósmico
(DOMINGO, 1960, p. 60). Abaixo, na conclusão de seu artigo escrito em estilo muito bemposto, transido de dissolvências místicas, o estudioso tem em mente, de modo particular, a
vida de Riobaldo e sua paixão por Diadorim:
Es el camino difícil y duro de la santidad en el misterio de una locura
libremente aceptada. Es la alegria de la anegación del todo en la nada, el
dolor gozoso de devenir nada en el todo. [...]. Lo que cuenta en el hombre es
el vacío inmenso del Amor y la materialidad orgánica de la realización de
!
"
materia devoradora, infinitamente dulce, infinitamente cruel. (DOMINGO,
1960, p. 63).
Lélia Parreira Duarte desenvolve interpretações gerais do Grande Sertão: Veredas e
!
"! "! "! ",
etc. Para ela, a obra de Guimarães Rosa externa a impossibilidade de cristalização de
conceitos e, diferentemente de Domingo Javier (que se atém ao Grande Sertão), a tensão
insolúvel de polos opostos. Eis aí uma controvérsia cardinal e renitente na crítica: a
fragmentação rosiana é aparente ou estrutural? Os paradoxos enturvam-se em a-porias ou
resolvem-se de algum modo (seja na língua, seja na Língua, seja no que quer que as depasse:
o indizível, a sugestão poética, o silêncio, o sublime, etc.)? Aproveito, então, e adianto-me:
16
embora o modus interpretandi em jogo nestas páginas, em última instância, aproxime-se mais
da tese de Lélia, imanente a ele está o entendimento de que, nas Terceiras estórias, a estética
ou o pensamento rosiano se empenham e recreiam em esbambear-se, justamente, entre dois
lances: uma irresolução linguística e uma resolução que não se dá senão em um nível que
desborda a linguagem, dê-se a ele o nome que convier. No frigir dos ovos, não há jeito: como
bem gosta a Guimarães Rosa, a matéria é, toda ela, dependente da invenção e intuição do
ledor, de seu ponto de vista, método hermenêutico, interesses, etc.
Mas, enfim, Lélia Duarte julga que, para o literato mineiro, não obstante o equilíbrio
instável do ser humano em meio a tantos contrários, é possível a criação de uma margem
%" ! "& o humor leve, a
ambiguidade e a receptividade a uma visão obscura e imprevisível das coisas, duvidosa e
duvidante, irracional. Uma das técnicas que fazem resplender esse entrelugar do pensamento é
a contraposição de vozes em narrativas de primeira pessoa, apreendida com certeira
sensibilidade pela estudiosa. Julgamentos são invalidados e narradores enganam-se de tal
maneira que é muito difícil não entrever as piscadelas irônicas do autor implícito, gerador,
desde sua apartada terceira margem, de um complexo contraponto. Em Lélia, Guimarães
aparece como humorista quando estimula aquele que lê a captar a alteridade; e isto nunca por
via de uma ironia retórica, que apresenta uma inversão de sentido clara, resposta pronta; é
sobretudo da ironie humoresque, categoria forjada por Jankélévitch, que se mune a autora
para pensar a escrita rosiana: % #" absurdo,
regendo-se pela poesia&
301). Para o humor, diferentemente da ironia
clássica, não são duas apenas as possibilidades, mas muitas; sempre resta a alternativa da
alegria de outra descoberta. Estratagema de linguagem que descerra artimanhas ideológicas e
combate contra jugos naturais e sociais, o humor seria uma atividade de libertação
momentânea que se cola a uma afirmação do homem e de sua capacidade de conviver com a
17
fragilidade, triunfar sobre a dor, o destino e a morte. A própria hesitação entre tragédia e
comédia pode ser enfrentada por ele, que barra tanto o riso indevido quanto as falsas
catástrofes. Em síntese, Guimarães Rosa mostraria que a saída é desatar-se, com a leveza do
humor, dos jogos de poder, aceitar a incerteza e mesmo arriscar-se nela, esposando o
fingimento de ser livre e eterno e a força de materializar todos os desejos.
Feito o apontamento da fortuna crítica, retorno às trilhas desta tese. O leitor haverá de
reparar que determinadas ideias esboçadas acima serão retomadas, outras, exploradas ou
moduladas, e algumas últimas ainda, questionadas.
18
1
TRESALEGRIA E SUPRA-HUMOR
Ainda, por azo da triunfal chegada ao Rio do aviador Sarmento de Beires
em raid transatlântico
foto normal da
Guanabara, Pão de Açúcar, sob legenda: * % !
"& #+ Mas um capítulo sobre o entusiasmo, a fé, a
expectação criadora, podia epigrafar-se com a braba piada. (ROSA, 1985,
p. 12).
Dentro das balizas do senso comum e de um discernimento lexicológico mínimo, a
alegria pode ser pensada como uma disposição mais ou menos transitiva do espírito,
correspondente, via de regra, a emoções ou sentimentos nascidos da posse de um bem
desejado ou da fruição de um prazer; habitualmente é sensação concebida de maneira
unívoca. Sim, há outras formas de gozo que não se traduzem preferencialmente por isto que se
nomeia aqui alegria; mas o que se busca é menos uma definição que enquadre o tema, quiçá
já, de saída, findando de vez com ele, do que uma que o deabra.
Dentre seus sinônimos mais imediatos, estão * ! '&+*!!!+
têm em comum a noção de preenchimento interno, como se o sujeito estivesse pleno de si
mesmo ou do mundo ou do outro que o cerca. Ernout e Meillet (1959) ensinam que o radical
*!!+$*!!" +almente, *" !(+*"
! + " ! !!-indivíduo, encontrar-se-iam, até o
topo, contentados. *Contentus (," -&'-se+
p. 277).
Ainda na língua de dia de semana, como diz Rosa, também a alegria propriamente dita
é um sentimento de completude e, em seus melhores e mais loucos vórtices, transbordamento
interior. O campo sinonímico da palavra alberga, com certa gradação, grosso modo, desde
uma noção de viva satisfação ou contentamento, certa jovialidade ou alacridade, passando por
19
ideias afins à exultação, júbilo, euforia e embriaguez, até as grimpas do êxtase, da felicidade,
da beatitude, da bem-aventurança, etc.
A alegria tutameica será ainda mais multiforme, possuindo inúmeras e delicadas
nuanças. Texto e contexto da obra constroem para as palavras nesgas de significado que
refabricam, de modo único, conceitos dicionarizados, de uso filosófico ou comum. O sentido
da alegria (tal como, adiante, o do humor) deve ser vasculhado no remexer da leitura; aí,
con-forme o sertão, haverá perambeiras, complexidões, tragadouros.
De saída, lembro a boa dose de jovialidade, certo temperamento voltado para a alegria,
que marca vários dos ciganos do livro, como Güichil, Rulu e Prebixim. Neles, voz, palavras,
gestos, cantos ou atos, não raro, estão a manifestar leveza, graça e espírito. Melim-Meloso,
Maria Euzinha, Romão, Yao Tsing-Lao, Rebimba, o bom, etc. são personagens que dilatam o
grupo. Todos eles, no contexto sempre problemático do livro, é verdade, podem alcançar o
estatuto de sábios camuflados ou mestres anônimos de uma alegria inquebrantável, entre
natural e espiritual.
Além da jovialidade, o caráter de personagens como os ciganos, que conhecem a
ligeireza do mundo (ROSA, 1985, p. 68), Melim-Meloso e outros, é singularizado pelo que se
poderia chamar alacridade e lepidez.4 Esta seria a alegria ágil e festinante, enquanto, segundo
Nascentes (1981, p. 48 e 57), aquela, a alegria recheada de 1**$&'(,/"!#2
expressão humoral que não está muito #" # 1&*#& '! !)#2 e Maria Euzinha,
protagonista expedita, para não dizer precípite, 1&'*"()&2
$
. Já
e! 1"(&)-'2 por exemplo, o narrador pinta a ação e o estado de espírito de alguns
vaqueiros que se levantam alegres e lestos à friagem. A$ ')+#"#*#.$ *&1 $,2,
com o fim estético de embebê-la, a ela também, em semelhante frescor afetivo 1#&* #
4
(*#1- &2%) #&*&! &#)$'1&$&')"-&'2
$
20
junho molhava miúdo, às friagens. Levantavam-se, todos tantos, com lepidão=1985,
p. 82).
$-$'*),.(. *),6'6+/ )*,8*,$)-/-.(.$0)<& ",$=- origina de alacer5;
adjetivo cuja raiz, de formação muito obscura, seria *al. Nesta, assim como nas formas
*,& &- /' $ $ <0$"),= <*, --/,' (.)= *, ,$ '$-./, )/., <$=6
Por isso, provavelmente, Fernand Martin (1941, p. 7) aponta que, em seu significado
primário, alacer é aquele que se bole ou se (re)mexe, se move ou agita.7
À força dessas migalhas filológicas, iluminar-se-iam, por exemplo, uma passagem de
<-.,7-#)' (- ))$= )/., <, -0 (./,=, em que, extra-ordinariamente, <*, --=
seja a dos sáurios, seja a da criança, 0& ,$)')-$(9($') <& ",$=<$-*,,',$,
depois se ouvia o ruidozinho da pressa dos lagartos=
* <-*2--,)-
fina pressa, não os via, o passarinho cala-se por astúcia e arte=
*
))%)
da noção de alacridade ou alegria de Terceiras estórias, está o movimento (do que é vivo), a
ida (para a vida); e, já extrapolando a etimologia em favor da invenção, a travessia, conforme
a concepção de Guimarães Rosa.
Não que em nada dessas coisas se exaure o assunto. A alegria de Terceiras estórias
possui, por exemplo, uma contradimensão quaresmal e mórfica, um aspecto de lentação e
molúria, que não só não consta da origem do vocábulo, como se choca com ela. De qualquer
maneira, mexida e remexida, conceda-se à boa alegria tutameica não a precipitação moderna e
doentia, mas a vivacidade e a prontidão; às vezes, aliás, ainda quando sem pressa, ela não
deixa de ser veloz (ROSA, 1985, p. 123). Não por acaso, simbolizam-na frequentemente os
<$0)= <# $) (./-$-'))/,),=<($')=< -* ,.)=<& ", = <%)0$&=<,$-)(#)=<*,)(.)=< '
$-*)-.)=<2"$&=<,2*$)=<0 &)1= *
6
Vejam-se, por exemplo, as palavras exilium ) &.$' <&/", *,)( - -* )' ( ,"$ &"/6'=
5
ambulare ) &.$' <$, 3 0)&. = <, /' 0)&.= ) ", ") <0"/ ,= < ,,,= eilen (do
& '4)<),, ,=<*, --,-- =)- ---$(!),'5: --4)/'*(#))+/ se pode ler em Michel Bréal
e Anatole Bailly [s.d], Julio Cejador y Frauca (1926), Fernand Martin (1941), Abel Juret (1942), Alfred Ernout e
Antoine Meillet (1959) e Augusto Magne (1961).
7
Traduzo e parafraseio o !,(7-<+/$- , '/ =
21
pássaros, estes animaizinhos buliçosos, cantadores plenos de energia, voadores e saltitantes,
cuja tristeza, não obstante, é folcloricamente célebre, e o estilo de trabalho, pouco trabalhoso;
dir-se-ia indolente ou -/#%2'9,0,+,01#/*,0#3+%:)'!,0"#@/+"##"#8,A 0#*0#*#',
sem ceifa e sem atulho (ROSA, 1985, p. 90).8 !'%+, -!&,) # (,)'5 "# @ ,21/, ,2 ,
,21/,A .2# 3'3# 3'" a passarinhar, chama-se Prebixim. E, diga-se apenas de passagem,
juntos, o nome de ave e a cor verde tão enfatizada do colete do gitano, aparentemente
surrupiado, talvez remetam sub-repticiamente a uma locução popular: quem (bem) avista
/# '4'*!,*,',>#,+//",/@3; -00/'+&,3#/"#A#:#+3'0!",##3#+12)*#+1#
alvoroçado, por sua alegria sem motivo. Em tintas grossas, rir à toa é coisa de sábio ou de
doido.
Outra variante da alegria que tem parte em Tutaméia é aquela que volteia entre as
noções de exaltação, exultação, júbilo e entusiasmo, vocábulos que imbicam a ideia de
endeusação ou êxtase. Em @'+&6#!"A,-,3,termina @#4)1+",,$,/1#!0,A
- *@# '* , ,*A'+",-,3, se entusiasma na morte e enterro cheio de
3'" ".2#)# &,*#* #41/,/"'+6/',
- * @//,',-das-+10A, as
velhinhas, confiosas de terem levado a palma por ocasião da morte sacrificial de Edmunda,
votam-0#2*(2 ')98,/'12) @3=dmunda, de repente, então. BMorreu, morreu de
a triunfar, em ordem, tão anciãs, as outras jubilavam.A
-
#* /, 1* :* *<*'! #0$25'+1# ", +,3, # @(2 '),0,A ,uveia (ROSA, 1985, p. 91),
após o advento de uma proposta de negócio. Ele @*#+#3 # *'0 com fagulhas
financeiras ao curto crédito e trato de seu gesto. Entrava a remudado, lúcido luzente,
#* -#), *#+,0 #00 : &#/*#+;21'! )'1#/) # -/'*#'/ ", -#/0,+%#* -/'+!'-) "#-,'0 /#-#+0" @,0
pássaros não voam de-todo no faz-nada-não, indústria nenhuma, praxe que se remexem, pelos ninhos, de
)1C/1#A - ,"#01 /'+!"#ira com a exegese é levada poeticamente a sério pelo autor e
1#* /#00,+7+!'0 #* @/#03#+12/A @/ )&3* ,0 -600/,0 !1+", , "# !,*#/ +8, 1'+&* $,)% -/
$#01#(,'+%'*.2#+8, #+9,3*A - 2+1,,#0-)'*",0-600/,s, conferir, v.g.,
2*#4-/#008,!,*,@-00/,!,A
8
22
visante. Tirou o chapéu de debaixo do braço3
$ " !"'#&+0"%#&
barulhentos:
Vozeiam os ciganos [...]. Dão festa. Aí o peão surdo-mudo: guinchos entre
rincho e re-rincho de trastalastrás! Fazem isto sem horas, doma de
cavalos e burros, entanto dançam, furupa, tocam instrumentos; [...] um solta
grito de gralha; senão o rãzoar, socó, coruja, entes do brejo, de ocos, o ror do
orvalho da aurora. (ROSA, 1985, p. 210).
2carnaval3 grande festa coletiva que finaliza Tutaméia, parece balangar entre a
exultação e a euforia, com exceção, talvez, das últimas linhas, que puxam para uma alegria
esperançuda e sublimosa, mais expectada pela criação artística que atual (vide a epígrafe deste
capítulo) 2#-Lau decide: São coisas de outras coisas... Dá o sair. Se perfaz outra espécie
de alegria dos destrambelhos do Rancho-Novo. Serafim sopra no chifre os sons berrantes
encheram o adiante.3
$
O espasmo eufórico, tal como nas excitações anteriores, é intenso, expansivo e
passageiro; entretanto, pode não corresponder a uma alegria autêntica. Caso exemplar é a
)&'&%,(%#$(!!"'"&' #2)#"'#+#3que se engaja,
então, em uma prosa boêmia com o prefaciador (ROSA, 1985, p. 163 e 164). Situar-se-ia
também nos entornos da euforia, do êxtase e da exultação a morte imoral, alvoroçada, audaz e
&'&'2#".(&3# .# #%#!$"#!
1985, p. 133).9 Uma vez que o ficcionista costuma revirar e tresvirar a subjetividade humana,
não há nada de espantoso em que a noção de alegria, muitas vezes tratada positiva e
levantadamente, tenha conotações dúbias, como no olhar do Doutor Mimoso (ROSA, 1985, p.
197), e baças, como no casamento de Jó Joaquim (ROSA, 1985, p. 48); talvez até mesmo
monstruosas, como no mau costume do caçador de antas. Embora ali Rosa não se sirva do
substantivo 2alegria3, surgem termos fortemente #%% '#& 2regozijava3 2&'%.-#3
".-# # $%*# ! 2!#% 3 "-# / "&&%!"' $%)') $#"# "% &($%.-# #(
transcendência.
9
23
/%#'$-%!%"-$&!0/"%%&"!0/$!0/!'!0 (ROSA, 1985, p. 190-191); de
fato, não seria desapropositado afirmar que Isnar se alegra no extermínio.
Euforia e bebedeira são passíveis de mistura. Não são poucos os emborcadores de
copo em Terceiras estórias. Há aqueles não tão destemperados ou, quando menos, até onde se
pode crer, ocasionais, como Teresinho (ROSA, 1985, p. 26), Jeremoavo (ROSA, 1985, p. 37),
Zé Lopes (ROSA, 1985, p. 57), talvez o Padre (ROSA, 1985, p. 210 e 212), etc.; e há aqueles
decididamente incontinentes e inveterados, como Prudencinhano (ROSA, 1985, p. 18, 19 e
21). Se embriagado ou ébrio, em acepção estrita, é quem tem a razão ou o juízo transtornado
por haver bebido demais (NASCENTES, 1981, p. 61), figuradamente ébrios são, por
exemplo, os amantes cegos e encantadores de Tutaméia, como Yao Tsing-Lao. Também
&+$!/+$!"!$ &$!0
" !)&!$% !#' com o perdão
da má rima, se embriaga miudinho ao lado de Dlena (ROSA, 1985, p. 27). É possível referir
ainda o Bio, enfeitiçado por seu cavalo, ou melhor, seu supercorcel além de todo nome
(ROSA, 1985, p. 146), e o Zito, influído por coisa não menos sublime que o quadrúpede: a
poesia (ROSA, 1985, p. 180). O verbo aplicado ao vaqueiro é exótico (do Minho): /acatrimarse0, precisamente, /embriagar-se0 (MARTINS, 2001, p. 7); ação impossível, por sinal, a
Xênio Ruysconcellos, etilizado, mas não enfrascado /! )!! *! tirava o senso de
seriedade e urgência0
" ', +(!)'o literário e erudito que
indigita o embebedamento por excesso de vinho do latim, temetum , substância
integrante da simbólica de Baco e da melancolia (ARISTÓTELES, 1998, p. 14, 23, 83, 85,
87, 89 e 105). Curiosamente, apesar do título, em /Nós, os temulentos0o contador explicita
apenas que Chico ingere, entre outros bebestíveis nunca nomeados, uísque. De qualquer
maneira, é de vinho que se regalam os escritores-bebedores /Sobre a escova e a dúvida0
(ROSA, 1985, p. 164).
24
A proposição de uma hermenêutica alegórica e transcendente de uma condição
letificante como a da embriaguez não é, evidentemente, inaugurada pelo escritor mineiro.
Consta, por exemplo, da obra do Areopagita. Não que eu pretenda com este paralelo
equiparar, sem mais, o método de interpretação alegórica do teólogo com os (des)caminhos
humorístico-sublimes de Guimarães Rosa: pressupostos, contextos e armações teóricas são
destoantes. Apenas cuido que a aproximação não deixa de ser esclarecedora.
Dionísio observa que, na Bíblia, Deus é, às vezes, apresentado conduzindo-se como
?:!+ 21($.@ -DIONÍSIO, 2004, p. 314). As Escrituras ora glorificam a
Tearquia pelas altas aparências, como Sol de Justiça ou Estrela da manhã, ora pelas medianas,
como Fogo e Água, ora pelas mais baixas, como Ursa enfurecida e Verme da terra (PSEUDODIONÍSIO, 2004, p. 147). Imagens dessemelhantes de Deus ou semelhantes, não há
escapatória: todas são absolutamente inadequadas, e as últimas, talvez, mais do que as
primeiras, devido à ilusão de adequação (PSEUDO-DIONÍSIO, 2004, p. 16, 130, 143 e 144).
Ao iniciado, só resta sempre ultrapassar os sinais simbólicos, elevar-/" !+ ?/"*/;2"(@ "
?)0".&(@ + ?"/,&.&01(@ ? +*0"),(0&2+@ +1 ?&*0"(&$;2"(@ -DIONÍSIO, 2004, p.
139, 143, 147, 197, 204 e 207). Para que o leitor possa visualizar essa transição, vale a cópia
da leitura engendrada por Dionísio para a ebriez suprema:
(+./ -1" !*/ *+0." (*$$" (A&2."//" /&$*&#&" ,9'+.0&2")"*0 1* 1/ !"
+&//+*-1&*+1/,.&2"!"(A1/$"!"(A&*0"((&$"* ""0!1 bon sens10, quand il
/A$&0!"&"1+*!+&0,."*!."(A&2."//""*+**",.0"0*A4.&"*2+&.!A10."
-1"(/1.+*!*0"!9)"/1."!"0+1/("/&"*/-1A&( +*0&"*0"*(1&70&0."!"
1/" "0/&(A%+))"&2.""/0%+./!"/+*+*/"*/,,(&-1*0(A&)$"7&"u,
on doit comprendre que dans sa transcendance qui est au delà de toute
&*0"((&$"* "&(/"/9,."!"(A 0"&*0"((" 0&#/"/&01*01!"(7):)"!1,(*
où se distinguent intellection et intelligible, au delà même de toute existence.
Ivre de tout bien possible, affirmons simplement que Dieu est ainsi hors de
/+& . A"/0 0.+,,"1!&."-1"!"(1& 00.&1".0+10"*/")(" (,(9*&01!"!"
tous les biens. Il surpasse toute démesure, et en même temps sa demeure est
extérieure et transcendante à tout ce qui existe. (PSEUDO-DENYS
A5 ,
2"./8+"/,*%+(%61)*+0"(1 &!*!+-1"?"3 "/+@"?"*'"* &<*@(1!")+:30/" ?Pero como es
verdad que entre nosotros la embriaguez tiene un significado peyorativo de exceso indebido y de enajenación de
la mente y de (2+(1*0!>@ (PSEUDO DIONISIO AREOPAGITA, 2002, p. 282).
10
25
Dentre os termos que gravitam em torno do circuito sinonímico aqui abordado,
felicidade é daqueles que, de hábito, portam um valor muito positivo; por contraste com ela, é
possível que a alegria receba matiz trivial diferentemente, portanto, do que ocorre no
livrinho rosiano, em que está, o mais das vezes, (pronta a ser) empinada para o sublime.
Quantitativamente, expressa a felicidade um prazer de grau máximo. Qualitativamente, um
regozijo mais fundo, verdadeiro e estável que só encontraria rivais em ideias como beatitude e
bem-aventurança. Ela é, nada mais nada menos, que o próprio /contento da alma0
(NASCENTES, 1981, p. 231).11
Sem embargo, em Terceiras estórias, as coisas não são bem assim. Aqui e acolá,
sobretudo nas narrativas que menos re-voltosamente se engastariam no que se poderia
designar como o fabulário %'/''%!%-das-$)(0/($'%0/'(+$)*'0%*)'(
poucas, a palavra felicidade e seus cognatos ainda entrouxam alguma modulação maravilhosa;
mas a univocidade surrada da ideia, engessada em fórmulas monoliticamente harmônicas,
$)' # ('-!)% (' &'%! # ),)% )'#% $ ")!((%$$) /%'#
infelizes e felizes, misturadamente0
& Longe se está do clichê ou da
ingenuidade de uma afinação final e perfeita. A obra guarda predileção por uma noção
inventada e paradoxal de felicidade e alegria. É assim que, ao descrever uma sensação de vôo,
saída de si mesmo fundamentalmente indizível, tensa e relaxante%&'!%'/Sobre a
escova e a dúvida0 %#&'-a a felicidade, mas o nome, um tanto inadequado, surge entre
aspas (ROSA, 1985, p. 168).
O rapto do espírito, seu transporte a alturas pinaculares, parece ser traço de
experiências tutameicas vizinhas, como o êxtase, o sublime e a alegria. Esta pôde ser
experimentada no arrasto de uma cavalgada !$!$!)($$)" /$)%+"%*'*#%
11
Essas gradações não são monopólio do senso comum. Apreciações semelháveis acham-se na filosofia. A
teologia medieval, e.g., operava uma diferenciação entre a alegria terrena e efêmera, laetitia temporalis, e a
felicidade do coração, gaudium spirituale, que chega a seu cume após a morte, na visão da divindade, selada por
*#/'!(%!(')%#*%0&
26
enfim nenhum, nem era passeio, mas um ato, sem esporte nem espairecer. [...]. A estrada nua
limpa com águas lisices tudo o que nele alegre, arrebatado de gosto e o azul que
#"(")()# '')!0
$
Já n# $''# /Sobre a escova e a dúvida0 anteriormente referido, em visada mais
precisa, são dois os enleios descritos e postos em paralelo: o do personagem Lucêncio e o do
narrador/prefaciador e, igualmente, personagem Guimarães Rosa.12 Nada tendo que ver
exteriormente com qualquer frenesi (como no caso de Xênio e Mema), ambas as suspensões
compartilham, entre outros elementos, o semissono e o desvanecimento da percepção da
sucessão temporal características que, a propósito, são incorporadas na forma, por assim
dizer, extática de Tutaméia, perceptível, primacialmente, em textos soporosos, #!#/,"'
!$"'0 /&&##-das-"('0 /&'$0 /# &#'')&0 + # $&-$&# )(#& %)!
confessa que se esfalfa, por meios vãos, para copiar e recaptar, nessa sua obra sem trechos e
enredos, aquele arroubo antigo, prodígio involuntário (ROSA, 1985, p. 169).
A evasão do tempo, não integral, instante discordante e acordante em que o ser se
limita e se dilata infinitamente, espécie de trans ou paracontentamento, portanto, é, de início, à
maneira cômica, assombrosa e mesmo aterrorizante; pouca ou nenhuma relação com qualquer
sensação monocrômica de harmonia e completude. Confira-se, só para começar, a anedota do
sujeito sonolento e transtornado que pega a gritar que o relógio enlouqueceu e deu uma hora
quatro vezes, bem como a transcrição dos versos tenebrosos de Eugênio de Castro, em que
relógios desconcertados, badalam, à meia-noite, treze horas (ROSA, 1985, p. 166 e 167). Por
um lado, Lucêncio, em estado hipnopômpico, pergunta com angústia e certa comicidade de
palav&# ')&!"( && * / Deus meu, descarrilhonou0
12
$
O que me dá excelente ocasião para deixar patente que esse nome é compreendido nesta tese como assinatura
de uma persona ou máscara autoral. A separação peremptória entre homem e artista foi, no entanto, alvo de
escaldadela rosiana (COUTINHO, 1983, p. 74). Na literatura aqui em pauta, a máscara é também rosto; cobre,
disfarça e ludibria; expõe, espelha e revela. Além do mais, adianto-! /''"()&0é ideia-ferramenta que entra
em contradição #!#)(&/"#"!0
27
Por outro, Guimarães Rosa '# 8'$% )# ( noite e mais meia-noite9
&
167). Trevas, temor, humor involuntário, beiras da loucura...
Em seguida, porém, o alheamento transmuda-se em rebimba apaziguante, levitação
lânguida, lépida e ritmada.13 O tempo é vivenciado de modo outro; não como ditame
cronológico, mas como ritmo cósmico e interior; e assim também o espaço, um tanto
alforriado da força ou peso da gravidade. O narrador tenta traduzir sua arquifelicidade
(ROSA, 1985, p. 168), sua (%'10%(" #$)% 8$) -me diferente imediatamente: em
lepidez de vôo e dança, mas também calma capaz de parar-me em qualquer ponto. Se explico?
Era gostoso e não estranho, era o de a ninguém se transmitir. Tinham aliviado o #*$%9
(ROSA, 1985, p. 167). A esta altura, pode vir a quadrar uma definição hermética de alegria:
8harmonia do ritmo interior com o ritmo exterior, do ritmo de baixo com o do alto, do ritmo
da criatura com o ritmo divino9 .71989, p. 612).
&4"%% #%%'' 2 &$%(% &' *3$ % $*# $) "4#, $*4$% 8 (( #
despertou de todo&(% $" -%$)9
&
()+((% perturbador da
delícia extática não é desconhecido da tradição mística (cristã).14 Dupla face similar noticia-se
na saudade que se assenhora do ânimo de Siozorinho, logo depois da partida da ciganada
patusqueira; melancolia que ele, como que em seu momento de manucho, sabe saborear bem,
botando no bolso o mugido de um boi, andando à toa, calcando(-se) (n)os cheiros da erva
verde já rota do chão (ROSA, 1985, p. 71).
O êxodo de si mesmo (que pode ser acompanhado ou não do acesso a uma
interioridade mais verdadeira) é, a bem dizer, ideia abstrata sob a qual se podem subsumir
experiências de naturezas as mais diversas todas fulcrais em Tutaméia: além do êxtase
&"+' 3$'% # $ $% 8' #9 $%) 8'%*, 0%9 8#%"-9 8 $%"3$ 9 ()/ $( $*
!*$)#$)%#8' #%98' #'9$%$%#%*'$ '%()5' 8 #%%#9 &
142).
14
Se os mais inexperientes, uma vez findado o sabor sempre provisório do recolhimento, sofrem um 8*#%'
#* )% (%()%(% %$)'' %9 )2 %"2' % (CRUZ, 2008, p. 40), os mais santos, nesta noite tão escura da
alma, sofrem a alegria da saudade e de uma fé absolutamente pura, sem qualquer consolação (CRUZ, 2008, p.
86); sofrem a alegria de sofrer com Deus.
13
28
propriamente dito e da alegria, o amor, a compaixão, o desprendimento, a possessão, o
entusiasmo, a embriaguez, a loucura, o sublime, a imaginação/inspiração (artística), a
exaltação, o sono, o sonho, a melancolia, a apoplexia, o medo, a violência, a alienação.
Borrões fronteiriços permitem a Guimarães, por exemplo, empregar uma terminologia digna
do êxtase mais supino na descrição cômica de uma estase humilíssima, que, na negatividade
de seu alheamento, ao menos a princípio, nada tem que ver com aquele. O eu de Joãoquerque
é um verdadeiro saidouro; estático de medo, o personagem sai de uma saída de si para
adentrar em outra saída de si. Ao final, é ainda com um raio de arroubo que cai em si, o que,
no contexto, significa: enfrenta, a seu modo trapalhão, não de todo centrado, o terrível
#*%(%#$) 5então, que então, o que nenhuma voz disse, o que lhe raiou pronto no
ânimo. Mais já não parava assim, em al, alhures, alheio, absorto, entrado no raro estado
pendente,
exilando-) ) 6
5, p. 62).
(Re)centramento? Sim e não.
Joãoquerque torna-se um semi-herói semiaudaz.
%( # "1# 5#-aventuranç % %!%6 ROSA, 1985, p. 75), Terceiras
estórias conhecem aquela outra, bíblica. A zíngara Aníssia, +#5&/))(6"#((( - #
e outros alegres personagens, mas também, pelo reverso, Pintaxa (ROSA, 1985, p. 70 e 93), lê
5%-,$*+(6 Sinhalice e Sinhiza: é palmista. Este último termo não se acha nos
%$/( %) " $*7$$ (* $) &
"+ -o, validamente, da seguinte
#$ ( 5 $ '+ "2 &"# ) #0%) '+ &%( " &( . )%(* % +*+(%6 Sem
embargo, no contexto destes comentários, prefiro ver ali uma referência ou ao grego
ou ao latim eclesiástico psalmus; existe, inclusive, o psalmista, salmista em português. É
nest)$* %)&3 %" /)'+%&(5#)%(#)6)"# 5%$*(%)&%eres do
)#%6
&$3)) )( $tatriz e recitante do saltério ou textos sacros
em geral, no caso, muito provavelmente, o Novo Testamento; não é à toa, pois, que é
comparada a um bichinho musical, cuja divina (des)ocupação já foi referida. O charabiá
29
cantado de Güitchil e Rulu e o nome viria de rulo? arrulho? tem algo também de
salmodia.
De acordo com Antenor Nascentes (1981, p. 46 e 231), ventura indica aquilo que vem
de bom ao destino do homem, quando este, todavia, pouco ou nada fez por merecer. Aí está
uma matriz de enredo bem a gosto do criador das estórias tutameicas, se bem que, nelas, ela
não só extrapole a noção de ventura e se estenda à compreensão global de alegria muitas
vezes, dom que se recebe , como também se vincule a outras noções: graça, serendipidade e
boa estrela, por exemplo. Fortes Fortuna adiuvat é aforismo ainda ).&/-# 5 #-.2
quando a fortuna ajuda os fracos6
'
Sorte, dita, fortuna e que tais, todas
palavras presentes em Tutaméia, situam-se entre as ideias de acaso, destino, fasto ou nefasto,
e êxito/felicidade ou malogro/infelicidade.As zíngaras (,-"-$5(,*0&&*-%+&*6
*1& 5&)+,%&**6 '&)(, #* #"-)* *$') $ -" $ $* também porque cativas,
sempre mal fadadas por um mandado de faraó que nunca termina (ROSA, 1985, p. 69 e 70).
Falso fortunoso, apesar de materialmente prosperado, é, ao menos por um momento, o
Drijimiro das campinas (ROSA, 1985, p. 98); também o narrador 5"$ & &$6
'')&--#$%+&5 ",6no iniciozinho do conto (ROSA,
1985, p. 197). Quanto à serendipity, o ficcionista de Cordisburgo diz aprender, no
Dictionary, que este neologismo, cunhado por Horace Walpole, exprime a faculdade de fazer,
casualmente ou por sagacidade, boas descobertas (ROSA, 1985, p. 174); por ora, note o leitor
a combinação entre sorte e engenho, distração e atenção, surpresa e perspicácia.
Po#',& -%+,) & $%&* *& *, ')3')"& ')"*$ 2 & %))&) 5,)+$1&6
não pelo fruto visível de seu trabalho, a construção perlongada em que amassa seu próprio
sangue (ROSA, 1985, p. 45), mas por aquela casa de Deus que emerge como que pronta nele
mesmo, silenciosa e misteriosamente copiada, ao final da narração ou do texto, se não dos
atos e acontecimentos
' ,#$%+ )" ,."%! (, ))$+ 5&
30
")$$#-'+$'(((($"'"7
% 0+#)*'$(+#)*'; e talvez,
por um salto de interpretação, bem-aventurada, como faculta o título do conto (ROSA, 1985,
p. 194). Ela é chamada também Djaiaí ou Dja ou Iaí; mais três charadas da onomastoteca
rosiana. O significado da forma encompridada, em que as duas sílabas são adjungidas, poderia
ser auferido de dicionário: Jaíra, feminino do hebraico Iaír, 0)"$$#)'$+'($ 6&*Deus
anima, desperta7 6$!*"#$D*(7 6)#)!$'()7
%
67 (*%$()"#) %'$)0)co) dessa invenção rosiana traria sugestões divinais, truque já
deslindado pelos críticos em outros nomes e casos, como o de Diadorim. Hipóteses em algum
grau convergentes com isto que se acaba de conjecturar são desembrulhadas diretamente do
texto e, por cons*#) "( $#+##)( '")' 67 $" )$ (* '
simbólica de atualidade e solaridade divina (ROSA, 1985, p. 195); já a parelha Dja/Iaí, de
maneira similar, se soldaria com o modus vivendi $$'%'$#).$)'+(( $6 -7
e $ 627 ).$ %'3%'$( (( personagem. Com efeito, seu nome tende a confundir-se,
sistematicamente, com esses dois advérbios, por força de uma fonética oculta que parece estar
sempre a evocar tempo imediato e/ou transitivo. Às vezes paralelos, ambos se acoplam na
4!)"(#)#/"&*(*'" 6Dja fechava-(($$#()#) ')%$'!'# ,7
6Já fechava-( ($ $ #()#) ') %$' !'# ,7 6Iaí %(&*%(+7 6E aí
ps&*%(+7 6$!)$*-se Iaí, Dja, de rompida, à manhã belfazeja, quando o gato se
#!$+7 6$!)$*-se [e] aí, já, de rompida, à manhã belfazeja, quando o gato se
#!$+7 6Iaí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais veloz que uma voz,
,*,*(%#("#)$76E aí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais veloz que
*" +$, ,*,*( %#("#)$76Dja tornou sobre si, de trabuz, por pau ou pedra,
*(%* # $'7 6Já tornou sobre si, de trabuz, por pa* $* %' *(%* # $'7
6Djaiaí, sustou-se e palpou-se (3 +$!1#$$'/.$)'76Já-e-aí, sustou-se e
31
palpou-se só a violência do coraç2(-+8
)
os negritos são
meus).
Seja como for, pergunta-se: é ela que salva o sapo que está em perigo ou é ele que,
estando em perigo, a salv&7.+-&2(8-4,++#+, linhas, o receptor é levado a
crer que lê a estória da construção de uma casa concreta, enquanto, na verdade, lê também
(alegoricamente) a da brotação de outra, im-+#%7+,/'-.+8 (+& semelhável, com
o perdão do trocadilho barroco, é menos um conto sobre uma sapeca que, por estro e por
ventura, resgata um sapo do que sobre um sapo que, por encanto e por acaso, resgata uma
sapeca. A estória tem seus segredos; e à Maria Eu0#'"7(,,!+edos a guardavam8
1985, p. 194). Graças aos gritos da mãe e à convergência serendipitosa de sapo e sapeca na
virada do caminho, é cumprida não a proeza temerária que ela mesma se havia proposto ao
pôr-se em viagem, mas outra, surgida de repente. Com o excitamento e trescontento de grande
empreita realizada, a garotinha, até então obstinada, distrai-se da excursão perigosa em meio a
cobras comedoras e resolve, inopinadamente, reconverter-se ao lar. E ela nem se dá por nada
disso; nem de longe desconfi ( .+.'3( *. ,%#/+(. 7+$( & +'"8
1985, p. 194), sendo realmente isto o que é para os adultos, continua sempre a ser o paraíso
que um dia foi imaginado pela pequenina. Quero dizer, para ela, ele é, de fato, isso. Eis talvez,
na lente de Rosa, exemplum de uma certeira objetividade que um ponto de vista
profundamente subjetivo pode alcançar. O namoro do texto com as narrativas do maravilhoso
4 %!+'- 7#4#*.-.(/),,+-se no universo de acordo com nossa expectativa
[...] é a disposição mental específica do ('-(1+"'8
, p.199). Mas não
é, veja-se bem, que esse personagem meio lobatiano desconheça totalmente o mundo tal como
os adultos e parentes o retratam: ele não vinga é botar fé nele, conformar-se com ele a partir
,.(+32(0#'"( 7-(+,#8
) 7+#*.+0/8
p. 195). O ato mágico trans-formador posto em prática ritualiza a visão: ela pisca os olhos ou
32
tapa-os com os dedos (cujas unhas estão pintadas de mentirinhas brancas), toda vez que a vida
se prova como uma laranja azeda o que, ao cabo de contas, denuncia que a contrariedade
do estragoso mundo foi ao menos intuída como tal (ROSA, 1985, p. 195). Maria Euzinha
psiquepisca: busca (re)centrar-se, fecha-se e interioriza-se; coloca-se a si mesma e ao mundo
&+,*.+(*.'$,*.*:*.*; com outra luz: a da sua ideiazinha interior (ROSA, 1985,
p. 195). O olhar, já, em si, atuante, não se confunde com a recepção passiva do que está lá
fora. A realidade é, para ela, antes coisa que se reza do que coisa que, simplesmente, se vê.15
É daí, enfim, que nasce toda a sua renitente negaça... infantil? Sim, há algo disto, certa e
explicitamente; mas não é este o aroma da estória. Descartado o enfoque de um realismo puro
e ingênuo, fica difícil para o leitor demarcar um cenário verdadeiro: o dela ou o dos pais? A
pilantrinha, pelo menos, parece ter um bom pressentimento da porção de fantasia que há em
suas representações.
Em suma, por ora, o que pretendi salientar é que a alegria é mesmo proteica e tem
miríades de entretons. Corporifica-se na vivacidade infantil :*+.&,-*;), na festança
%#' ,*#+, :*7 1!- ' *#'; :#&!*+;), na felicidade e boa estrela de tintas
-$++:Arroio-das-&,+;), &'(*0#%&,'-%'6+-:Lá, nas %(#&+;
&' *#+' '%## '- ' *('-+' *$/&, : .$ ' #'; :"4-; :+ ,*5+
"'%&+ ' '#; &' '-,' #.*,#%&,' :Aletria e Hermenêutica; :Hipotrélico;), na
com-($5&# 3&"'+ %'*'+ '% ' (*&,%&, #' %- :*#&,32';
:%#&#+32'; &' *!$' ' 5%*' ' #&+#!&# #&, : '-,*' '- ' '-,*'; :Os três
"'%&+ ' '#;), no bem-+,* '*('*$ -% +'&' +&,' *#,-$#0' :Pres(;), na
embebição sensorial d&,-*0:#,';:*71!-'*#';&'!'0'+' *#')-+
#' 8 '% #%!% -% *#&)-' +!*' (*'.*# : <O que este mundo é, é um rosário de
bolas= ;
( Pouco antes de relatar o assassinato dos inimigos do patrão, o contador de
:#-;$*:%#+* 4*#&)-';, 1985, p. 199). O par estaria aqui com sinal invertido
ou, no mínimo, bem mais dúbio. Guimarães Rosa tem consciência hiperaguda de que toda ideia pode ser
pervertida ou apresentar dupla face. Já em tropo anterior, do Grande Sertão ##'&.:#&"% %'%
%2''*#&)-''%-&'; (
15
33
), na expectação
), no prazer do jogo e da inventação
Melim- ), etc.
Cada uma dessas materializações da alegria, mais ou menos prosaica, mais ou menos
ambígua, pode ganhar, eventualmente, no movimento interpretativo, um suprassentido ou
poético ou alegórico ou transcendente; até mesmo as cores fascinantes de um estado
transitório de ventura, tres-aventura espiritual. De fato, o prefácio deixa entrever que
Terceiras estórias aspiram a guindar não apenas o humor, mas a existência humana como um
todo ao sublime. Nelas, a alegria, objeto de desejo, está quase sempre mesclada ao pesar, ao
luto e ao sofrimento. Sob o prisma do autor não necessariamente coincidente com o dos
personagens, que podem experimentá-la de modo diferente , é, sobretudo, fruto de
hermenêutica, de certo exercício de leitura da realidade, de uma maneira de conceber o
mundo perpassada por contradições. Em eterna geração e invenção no interior do sujeito, é
empreendimento, risco, proeza. Angústia-que-ri, dá sinal de si sempre a partir de uma
profunda consciência do absurdo.
Todo o dégradé precedente deixa distinguir, ademais, que a alegria não está
imprescindivelmente ligada nem ao riso de maneira geral nem ao riso cômico de maneira
particular, posto que, vez em quando, esteja combinada a um ou a outro.
Terá o ledor alguma ideia do despenhadeiro terminológico em que intrepidamente se
metem e, nos melhores casos, elegantemente se afundam os que buscam categorizar ou fatiar
o humor, o dito de espírito, o jogo de palavra, o nonsense, a piada, a brincadeira, a ironia, o
grotesco, o trágico, o sério, o triste, etc. , toda uma gama de conceitos sinônimos,
adjacentes ou opostos que se relacionam àquilo que se nomeia, de maneira genérica, o cômico
ou o risível.
34
Recobrando nomenclaturas e respostas laboradas sobretudo até o século XVIII, qual
seria o princípio ou a paixão do riso? Uma afecção cômica sem nome específico, algo como
Frívola? Racional? Ou, por outra, um prazer
misturado à dor, como a inveja ao próprio riso ou a mesma alegria à tristeza? Quem sabe
ainda o desprezo, a loucura ou o orgulho? A surpresa, talvez até raivosa? A indignação ou a
aversão? (ALBERTI, 2002, p. 43, 91, 96, 97, 124, 129, 132, 146, 150, 152 e 161; MINOIS,
2003, p. 416, 417, 431, 438 e 449). Recobrando nomenclaturas e respostas típicas dos tempos
posteriores aos setecentos, qual seria a causa ou função do riso? A ritualização dos instintos
de agressão? A descarga do mau humor? A liberação das forças vitais ou das pulsões? O
exorcismo (e recalque) do medo, do mal e da angústia? O relaxamento ou alívio da tensão?
(MINOIS, 2003, p. 35, 104, 166, 196, 275, 298, 391, 458, 459, 472, 563, 615, 616 e 623;
KOESTLER, 1989, p. 51).
Ao longo da história, o cômico ou o ridículo ou o risível já teve por contrários, por
exemplo, o trágico, o sério, o sublime, o gracioso, o belo. Já o riso ou o páthos nele expresso
têm sido o inverso da angústia, da tristeza e do choro; por prudência, fecho a lista com um et
cetera (ALBERTI, 2002, p. 123, 148, 167, 176, 178, 131 e 187).
Apesar de que terrivelmente opaca e simplória, a concepção do cômico como aquilo
que é engraçado ou aquilo que provoca o riso é a linha de fé das mais diversas teorias
modernas, seja ela operada conscientemente ou na condição de pressuposto, às vezes
refugado, a princípio, como insatisfatório: nem tudo o que suscita o riso é cômico, e o cômico
possivelmente nem sempre se explicite em riso.16 Elaboram-se teorias, em seu conjunto, as
mais excêntricas, erigidas, porém, sobre esse elemento do senso comum, onipresente e
absolutamente atuante desde a seleção da matéria examinada. Vale dizer: tal compreensão não
é assim tão pascácia; quando mais não seja, suporta com aprumo, no perímetro desta pesquisa,
16
Uma comicidade que não contraísse os músculos da face era, a propósito, o sonho de Flaubert (MINOIS,
2003, p. 532 e 584). Cf. também p. 274, 435 e 542. E ainda: BREMMER, JAN; ROODENBURG, Herman,
2000, p. 153 e 254.
35
cujo objeto não é a teoria da comicidade em si, nem sua abordagem in abstracto, a função de
estaca inicial mais ou menos delimitadora de uma reflexão que também não deseja alicerçarse já, de saída, num aparamentado edifício apriorístico. Seria ingênuo supor, por outro lado,
que não se traga para a leitura do literário noções prévias subliminarmente ativas.
A verdade é que estão em baixa quaisquer classificações escrupulosas, e nisto se
espelha a própria compreensão moderna da comicidade. Com efeito, desde Jean Paul,
Schopenhauer e, mais radicalmente, Nietzsche, há uma propensão para atribuir ao risível
como um todo um lugar além do pensamento sério (ALBERTI, 2002, p. 199, 200 e 205).
Como consequência, para muitos dos teóricos que lhes são posteriores (com exceções, claro,
como a de um Freud), explanar a comicidade seria negar-lhe a natureza, elucidá-la seria eludila, resolvê-la, dissolvê-la.
No caso da incursão de Guimarães RosAletria e hermenêutica está mais
preocupado, ou desocupado, com o cai não cai da linguagem. Não monta diligências para
abstrair, teorizar e distinguir o cômico, o humorístico, o anedótico, etc., se bem que não abra
mão da precisão poética que inscreve a palavra certa na posição certa e é antes isto o que
vai interessar aqui. Em razão disso tudo, parece-me que excludências rigorosas na eleição do
ferramental de análise são pouco produtivas: as categorias que explicam o que se dá no
prefácio, pelo menos, são todas aquelas abonadas por ele: comicidade, humor, graça, chiste,
blague, estorieta, não senso, facécia, etc.; e, muito mais ainda, aquela especialmente cunhada
para ele: anedota de abstração (ROSA, 1985, p. 7).
Do que foi exposto não se conclui que muitas das teorizações modernas sobre o
assunto, conquanto em si mesmas problemáticas, não teriam poder elucidativo sobre
Tutaméia; pelo contrário. Feitas imperiosíssimas ressalvas, contextuações e particularizações,
várias delas se revelam aptas à tarefa. Assim, bem grosso modo, algo do risível tutameico
poderia ser considerado como efeito de: a) uma conexão contraditória, irresolúvel e
36
polissêmica, entre sentido e ausência de sentido (Plessner); b) uma incongruência ou
discrepância entre o abstrato e o concreto ou entre o eterno e o devir ou entre o vivo e o
mecânico (Schopenhauer, Kierkegaard e Bergson respectivamente); c) uma incorporação
daquilo que é excluído pela ordem do sério como nada (Joachim Ritter); d) um
desmantelamento da sintaxe entre as palavras e as coisas (Foucault); e) uma transformação
súbita de uma expectativa em nada (Kant); f) uma liberação de um prazer infantil (com os
jogos de pensamento e palavras, por exemplo) reprimido outrora pela razão ou julgamento
crítico (Freud), etc.17
Outra explicação do cômico típica, embora não privativa, dos três últimos séculos que
poderia, de entrada, ter algum proveito para o estudo da obra e, melhor ainda, para o de
Aletria e hermenêutica é aquela que o toma como incongruência ou contradição
(componentes explícitos ou implícitos de todas as definições listadas logo acima); ou ainda
como nonsense ou absurdo. É por demais patente, entretanto, que há contrassensos neutros,
trágicos, cômico-trágicos, etc. Fundamental, no domínio desta tese, é matutar como é que o
medita o cômico e joga com ele. Por que e como se tornam risíveis (e
talvez, ao mesmo tempo, trágicas e afligentes) as ilogias concretas de Tutaméia.
O riso é universal, e o homem, sob certa mirada,
íc
1985, p. 132). Nada obstante, o momento em que este homo ridens et ridiculus pode rir ou a
isto se inclina, bem como aquilo de que ri, é histórica, social e culturalmente determinado
(sem que seja necessário dar a este último termo peso determinista). Nestes macrocontextos se
movimentam ainda os contextos textuais, situacionais e individuais.
17
Para o aproveitamento feito pela crítica de muitas dessas fórmulas na obra rosiana, ver, por exemplo, Ramos
(2007), Lima (2000) e Andrade (2004). Para o contato direto com elas, bem como com as teorias da
incongruência e do nonsense, referidas no próximo parágrafo desta tese, conferir, inter alia, O riso e o risível na
história do pensamento (ALBERTI, 2002), Risa redentora (BERGER, 1999), Comicidade e riso (PROPP,
1992), História do riso e do escárnio (MINOIS, 2003), Uma história cultural do humor (BREMMER;
ROODENBURG, 2000).
37
Em vista de todas essas coisas, no exame da literatura tutameica, pouco ajudaria
espremer a ideia em uma senha lapidar equivalente àquelas que se tiram, judiciosamente ou
não, dos textos filosóficos: incongruência entre o vivo e o mecânico (Bergson), entre o
esforço e o resultado (Hegel), entre a infinita grandeza e a infinita miséria do homem
(Baudelaire), etc. (BERGER, 1999, p. 62, 77 e 328). Uma fórmula de tal plana, ainda pouco
palpável, só teria sua eficácia, franzina ou não, quando devidamente contextuada e
desenliçada. Mas e então? Concretamente, por que e como se tornam risíveis ou cômicas ou
humorosas as incongruências e os absurdos de Terceiras estórias ou, mais precisamente, as
anedotas de abstração do prefácio?18 Assim, para um brevíssimo e primeiro ensaio, a ser
retravado no terceiro capítulo, recordo passo-chave:
E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz
sugestiva demais que já de si o drolático responde ao mental e ao
abstrato a qual, a grosso, de cômodo e até que lhe venha nome
apropriado, perdoe talvez chamar-se de: anedotas de abstração.
Serão essas as com alguma coisa excepta as de pronta valia no que
aqui se quer tirar: seja, o leite que a vaca não prometeu. Talvez porque mais
direto colindem com o não-senso, a ele afins; [...]. (ROSA, 1985, p. 7, os
negritos são meus).
A Aletria e hermenêutica nascem, segundo a proposta
chalaceira do prefaciador jogada crucial cujo alvo é o sublime , de um
premeditadamente maldefinido movimento de abstração ou ainda exclusão/ex-ceção em
sentido etimológico; e, a partir daí, da subtração, da eliminação, da niilificação,19 do erro,
do vazio, da falta, etc. enfim, de uma série de operações, disposições e situações tomadas,
estética, jocosa e livremente, como desdobramentos sinonímicos ou subgenéricos da imagem
A expressão abrange todos os pré-textos ou Aletria e hermenêutica
ou seja, as formas as mais diferenciadas: pilhérias stricto sensu, mas também coplas, parlendas, quadras,
adivinhas, legendas, ditos de espírito, versos de poemas eruditos, etc. Pelas anedotas interpretadas no terceiro
capítulo, o leitor terá melhor ideia da amplitude lúdica do conceito.
19
Aludo às subespécies mais facilmente identificá
a seus artifícioschave, de acordo com a leitura do prefaciador (ROSA, 1985, p. 10, 11 e 13).
18
38
inicial, aquela da abstração. Como é visível, o discurso está a léguas da compostura usual das
teorias do cômico. A seriedade aqui é de outra ordem.
Com isso, é evidente, estou longe de lançar luz sobre todas as faces e dobras da
*Aletria e hermenêutica+ de Tutaméia. A teorização inicial do
cômico ou do humor pode, até certo ponto, ser projetada para as estórias; mas nelas, na
verdade, há aspectos que não são (tão) explorados pelo prefácio e, por isso, não bem captados
*Aletria e hermenêutica+ & m enquadra rigidamente a complexa
vibração do cômico da obra; nem há ali qualquer preceptística de leitura. Se o prefácio
dimensiona algum tanto as estórias, estas, como num movimento de revés, estão sempre
também a redimensioná-lo. Não é somente ele que ilumina as estórias; elas também iluminam
o sentido do prefácio: relativizam-no, alargam-no, concretizam, de maneiras diferentes, o que
ali está como projeto abstrato. Se ele é ou funciona, em algum grau, como a estória das
estórias, elas valem como prefácios do prefácio. Para externar uma diferença: *Aletria e
hermenêutica+ ' pelo apetite persuasivo e orientada para o tratamento
$ *+ *! "+ *$+ !
própria tese, basicamente, pelo cômico de palavras, de pensamento, de microssituações ou
quase-enredo; também de ação ou comportamento. Já nas narrativas, como é natural, isso tudo
que estava in fieri se expande e complica sempre, claro, sob a forma da fome do sertão;
quero dizer, sob o duro regime sertanejo dessa obra magruça, descarnada e ossuda. 20 Por outro
lado, é também principalmente nas estórias que ganha gordura a comicidade de caracteres,
gestos, fisionomias, sons, etc.
20
As imagens ósseas, de um ossário destroçado certamente, surgem, por exemplo, no estapafúrdio glossário de
*Sobre a escova e a dúvida+ & !àqu!# * +*$+
*%+*osso+*(+* +*osso+*-de- +A fome do sertão não só
física, mas também metafísica e etc. está inscrita na forma de Terceiras estórias, que é homóloga à realidade
ficcionalizada, *# !$"+ o poeta (ROSA, 1985, p. 179); sob esse ângulo, sua forma
não foi feita mesmo para deleitar. E em tempo: a geografia apagadiça do texto não parece corresponder ao rude
sertão adentro da obra magna de Guimarães Rosa (cujas fronteiras também não são lá muito definidas). Mas o
" * & $ +
39
É sempre útil não esquecer que a divisa entre comicidade de palavra (dicção) e
pensamento (conteúdo) e coisa (objeto/incidente/ação) é problemática, em primeiro lugar,
porque a própria relação entre realidade, língua e pensamento segue irresolvida. Em segundo
lugar, porque todo risível mediado, prima facie, pelo idioma por suas materializações orais
e escritas é inseparável dele e de seu molde. Ou melhor, todo cômico seria sempre
dependente, quando menos, de maneira indireta, da língua, pois ainda aquilo que é paralelo ou
alheio a ela, silêncio, som puro, expressão facial, gesto, voz, ritmo, entrelinhas, movimento,
tom, entoação, ação, etc., liga-se à totalidade do processo simbólico de uma dada sociedade.
Não obstante, em contextos específicos, há vagas para uma comicidade de conteúdo,
relativamente independente das palavras (quando a alteração ou permuta delas não destrói o
efeito de risibilidade, conquanto seja questionável que não o modifique de alguma forma).
Para dificultar ainda mais o debate, a obra de Guimarães extrema-se num exercício de
remodelagem infinita de um idioma sempre in statu nascendi no caso de Tutaméia, seria
melhor escrever provavelmente in statu moriendi, embora uma e outra coisa, ali, não sejam lá
muito contrárias. Quero dizer, o nome é o filtro ou limite pelo qual se percebe o mundo, além
ou aquém do qual, no entanto, sempre há muita coisa a entremostrar-se. O cômico não é, na
obra, simplesmente, algo pré-moldado ou condicionado por uma língua já acabada; é
vislumbrado mesmo quando exterior a ela, que se dinamiza, então, para fisgá-lo. Os
elementos do risível estranhos aos signos, ao já dito e conhecido, possuem um liame
complexo e ambíguo com o verbo rosiano, que os capta da realidade, mas também os inventa
pela fantasia; projeta-se para eles, apanhando-os, aventando-os, mas também, é de suspeitar,
perdendo-os; o enfoque enceguecido do texto não pretende ter atinado com todo o (rasgo)
cômico que haveria em cada chiste, em cada estória; tanto é assim que há brechas para a
comparticipação do leitor.
40
Quanto ao humor propriamente dito, as teorizações são igualmente polêmicas. $
! " %
1993, p. 60). Sua abordagem científica oscila entre a pura assimilação sinonímica ao conceito
de comicidade e a dissimilação dele pela introdução de timbres peculiares variáveis,
todavia, de pensador para pensador. Nesta pesquisa, as duas visadas cruzam-se pacificamente:
é o contexto que desengana o leitor dos matizes em pauta. Assim, as compreensões de
comicidade circunstancialmente privilegiadas acima aquilo que provoca o riso e aquilo que
é resultado de uma incongruência ou nonsense são passíveis de ser aplicadas ao humor;
entretanto, na qualidade agora de subespécie do cômico, ele albergará também outras e novas
modulações.
Aqui vão alguns dos pensadores para os quais o humor não só chega a calcificar-se
como uma forma do cômico, senão também é objeto à parte de uma reflexão mais ou menos
detida: Sigmund Freud (1993; 2001), Vladimir Propp (1992), Peter Berger (1999), Henri
Bergson (2007), Schopenhauer (2009b).21 Para Freud (2001, p. 158), por exemplo, a essência
do humor é a economia de afetos dolorosos, tais como dor, terror e espanto, esperáveis em
determinadas ocasiões. Diferentemente do dito de espírito e do cômico, o humor não possuiria
somente algo de liberador, mas também de patético e grandioso. 22 Tal grandeza residiria na
afirmação triunfante de um ego invulnerável que se recusa a ser afligido pelas afrontas e
traumas da realidade, fazendo deles ocasiões para ganho de prazer. Ou melhor ainda: o
humorista retira a ênfase psíquica de seu ego e traslada-a para um superego de tal forma
inflado que os interesses egoicos lhe parecem facilmente desdenháveis e reprimíveis
(FREUD, 2001, p. 158 e 160). O humor negro ou patibular fica a serviço da ilustração: o réu,
a caminho da pena capital, em uma segunda-feira, afirma, exclamando, que começa bem a
21
Também alguns dicionários técnicos diferenciam o humor. E.g.: A glossary of literary terms (ABRAMS;
HARPHAM, 2009); Diccionario de términos literarios (CALDERÓN, 2008).
22
É difícil pensar aí em uma correlação com o sublime anedótico de Guimarães Rosa, uma vez que o humor
freudiano é, em confronto, amargo e desencantado.
41
semana; ou, então, solicita um lenço para proteger o pescoço do frio (FREUD, 1993, p. 216 e
217).
No momento, todavia, seria aconselhável eludir as singularidades dos teóricos do
humor constantes desta bibliografia e trazer à roda as características mais universalizáveis
do conceito. Salvo engano meu, seria possível somar o espírito, o engenho e certa
intelectualidade; também o riso leve ou não derrisório, que é um fim em si mesmo e pouco ou
nada tem de arma de ataque (em contraposição com a sátira, por exemplo); o patético (a
mistura com o triste, o tocante, o que desperta piedade; ou ainda com algum sentimento ou
emoção, como melancolia, terror, angústia, etc.); a benevolência ou sim-patia ou com-paixão
do sujeito que ri pelo objeto do riso.
Em termos panorâmicos, pouco dessa peneira é desmentido pelo opúsculo rosiano.
Ali, o humor pode ser pensado como meio de influir a alegria tutameica e, simultaneamente,
como uma das formas em que ela se manifesta. É uma disposição do espírito ou uma forma de
pensamento e de linguagem que se inclinam para o riso e o cômico mental e abstrato; para a
antinomia, o dislate e o absurdo; mas também para a invenção, a criação narrativa, o
microestórico, o anedótico, o gnômico, o parabólico e, a partir disso tudo, para a graça, o
suprassenso, o sublime, etc.; disposição, pensamento e linguagem estes conectados
intimamente a uma hermenêutica e visão de mundo paradoxal: o trágico, o melancólico e o
prosaico são a outra face dessa mesma moeda tutameica. Se o trabalho psicológico e
linguístico com o humor tem como uma de suas finalidades acordar a alegria, é porque, na
obra rosiana, ela goza do maior prestígio e aponta para um gosto mais profundo, mais
próximo, aparentemente, da experiência em si da transcendência e do sublime, se bem que,
nem por isso, destituído de contradições.
Em que pesem os pontos de interseção com a definição hipoteticamente típica forjada
acima, não está em boa sintonia com Tutaméia a ideia de um humor que se fecha em si. Nas
42
estórias e prólogos, há a aposta de uma paixão, o /entusiasmo0, a /fé0, a /expectação
criadora0/a braba piada0
. Por mais que o humor cobre a si mesmo o
próprio gozo, ele é, na verdade&%/prosaico0 para o transcendente, o mágico, etc.
Por outro lado, sim, o humor de Terceiras estórias é con-dolente e amistoso. Veja-se
uma estória cuja levada caçoante parece rebotar essa afirmação: aquela de Hermenegildo,
vulgo Mechéu, vulgo Tatu, apodo herdado do pai, e cuja motivação estaria, quiçá, no fato de
que esse animal choraminga (assim como o gato mia, a vaca muge, etc.). O narrador, na
descriç*##+"#!%/#%""0, 1985, p. 101), frui não só de seu estilo
caricatural, senão também da própria ação de desgabar, levando consigo, companheiro, aquele
que lê. E então? O narrador engrossa a voz de zombaria dos moços de fora? Em certo sentido,
# /Tinha-se no caso de notar e troçar0
#"$# são meus). Mas
isto será o mesmo que dizer que ele adota a lente de engano e distância que só consegue
"" %$" /'-$0 /'%#0
O achincalhamento
realizado pelos rapazes, diga-se a propósito, defronta-se com o aforismo enganador de
/Palhaço da boca v"0 que põe de ponta cabeça "# )## #% "" /"" +
sempre uma humil0
Será?
O narrador, plural, ponto de convergência de múltiplas vozes, como a dos rapazes
sabidos, a do fazendeiro Sãsfortes e a da patroa Dona Joaquina, tem consciência de que
apequena e chacoteia aquele semi-imbecil (prefixo que o torna, por outra, provável
semiesperto da estória).23 Tem ciência também de que alinhava uma caricatura,
humoristicamente correspondente, contudo, não a um exagero ou enfeação, mas à própria
feição natural do personagem, seja como in-&,% # % "$%" /
que, não era um ordinário rosto, fisionomia normal de homem, caricatura? De braços e peito
peludos, fechada a barba: o que é $" $%"( "0
23
Outros já
Irene Gilberto Simões [s.d.] passou em revista a presença de várias vozes ou perspectivas nas narrativas de
Guimarães Rosa.
43
anotaram &(
!% $( 4 #%1#% !'(%- '
('& )-& " &(&&" (
caricaturista. [...]. Rimos então de um rosto que é em si mesmo, por assim dizer, sua própria
%'(%52007, p. 20).
Caricatura-criatura, o medo de Mechéu é ver-se debicado; teria verdadeiro horror de
ser isto o que é: bobo para os outros ou o bobo dos outros. A esse papel, no entanto, conforma
e relega o Gango, seu fiel imitador. Não que de todo lhe escasseie, portanto, por algum traço
%.'%"&!'""2 "0(4$(- &$(&'/""!'!(%&!"& #%
& "5
# 0 #- %% "& "utros. Equação nada boa, se é
verdade que o zombador vê zombaria em toda parte (MINOIS, 2003, p. 431). Enfim, o
relacionamento com Gango mostra-se assimetricamente pulhista; é sempre da parte de
Mechéu, hostil companheiro, que rompem as mangações e insultos. Eis o núcleo de sua
perversão: enjeita apenas para si mesmo e, hipoteticamente, para os patrões, a condição de
alvo aceitável de chacotas. O fazendeiro Sãsfortes também é vítima de suas ranhetices, mas é
admirado e respeitado; a patroa Dona Joaquina, esta é veneranda. Sem prejuízo da liberdade
de escolha de Mechéu, talvez seja possível vislumbrar aqui um riso que funcione como meio
de estruturação ou organização social; parece que o protagonista não ri nem reclama assim tão
indiscriminadamente.24
Como que a seu próprio contragosto, Mechéu é causa de riso para o narrador; não
tanto porque seja ou pareça mau ou feio ou idiota, mas porque nega e renega erros e defeitos;
ou seja, é fundamentalmente cômico, e mesmo ridículo, justamente porque não se admite
como tal; é risível porque sério demais; um pouco também como o Palhaço da Boca Verde, à
diferença de que este não quer ser o que é (ROSA, 1985, p. 132) e não se deixa
manifestamente atingir pelo escárnio de que é objeto (ROSA, 1985, p. 130). Em outras
24
Entre outros, William Fry (1963, p. 101) desenvolveu uma teoria do humor relacionando-o com as hierarquias
&"& 4' & #"&& ! '& "!'+' to consider smiling and laughter as being (among other things also, of
course) unconscious, non-verbal communication signals specifically having to do with social hierarchy and
aggressivity-passivity, *'( "%&'%%'"%,!*'&!'%'"!&!%%"('5
44
palavras: a incapacidade de autoironização, que fica entre uma claudicação psicológica, talvez
herdada do pai, e o tropeço ético, seria o principal motivo para o rebaixamento feito pelo
ficcionista.
Enfim, conquanto a compartilhe com os moços e com Mechéu, o narrador procura dar
à habilidade zombeteira um agenciamento diferente.
Se o personagem é mortalmente sério com relação a si mesmo, sua construção não
poderia ser examinada à luz do próprio Bergson de há pouco? Para o filósofo francês, tanto a
comicidade de fisionomia quanto a de espírito e a de caráter são efeitos de uma rigidez ou
contratura do corpo, da ideia e da vontade respectivamente (BERGSON, p. 11, 15 e 17). As
caricaturas, cuja arte tem um quê diabólico, ilustram como toda a vida moral de uma pessoa
pode ser cristalizada em uma expressão cômica do rosto; algumas delas seriam mais parecidas
com o modelo do que os próprios retratos (BERGSON, 2007, p. 18, 19 e 20).
Problema: embora seja ou possa ser iluminadora, a caricatura, como qualquer lente,
tem abertura e enquadramento. No caso rosiano, o ponto crítico da forma é a metamorfose do
personagem. Quando muda o Mechéu, o contador, que não leva a sério, a ferro e fogo, a
própria maneira, a própria perspectiva, não as troca de todo, mas torna-as explicitamente mais
plásticas. Ou melhor, posta a coisa mais racionalmente: quando Guimarães Rosa intervém na
linguagem, flexibilizando-a, aí se torna visível àquele que lê a transfiguração de Mechéu. O
que se lê nas entrelinhas do conto é que o narrador ironiza a própria forja caricaturesca,
movimento preparado desde as epígrafes.
!!""" )Esses tontos companheiros que me fazem
companhia*
'#"#&#"
quantos tontos entes fictícios o leitor alcança espinçar do texto. Haveria aí alusão, por
exemplo, à relação de companheirismo entre contador/criador e Mechéu/criatura.25 Com
25
!% !% "! $!! )Nós, os temulentos* ! )copoanheiros*
(ROSA, 1985, p. 116).
45
efeito, a uma dada altura, os forasteiros, malgrado até alguns bons insights, largam mão do
objeto de sua contemplação frívola e curiosa. Despedem-se sem assistir à vira- ,
sob susto e espanto um dos de fora proferiu. Mas,
pensavam consigo mesmo, não para o Mechéu ilota e especulário. Deixaram--
(ROSA, 1985, p. 103). Muito ao contrário, a despeito do lapso de tempo da narrativa, o
$" "&%$)"##,"$ ###%
!% #% "# $ &## # #-
' # (
cevasse pressa de sacar o personagem do meio do ovo da estupidez (ROSA, 1985, p. 102). É
apenas com a paciência sertanejo-oriental de um Romão ou de um Quim chinês que consegue,
também como eles, não devassar, mas fazer despontar um possível outro lado do outro. E isto
também já o
"%"& #% *" , Isto não é vida!... É fase de
metamorfose-(ROSA, 1985, p. 101). No fundo, o narrador nunca debica ou deprecia o que
Mechéu é isto lhe é inacessível , mas sempre o que ele devém.
Ao final do conto, de igual modo, só que agora a olho nu, o âmago do personagem
ainda está, para o contador, ultra vires. A guinada nem de longe simples do prosaico
para o sublime, da caricatura para o rosto sob véu, da troça para a inefabilidade, não se dá,
portanto, entre extremos intocados antes e intocáveis depois. Conquanto haja algo de
descontínuo e súpeto em toda a mudação, esta é carreada com delicadeza, implantada in nuce
desde o início pela autoironia implícita no remoque do narrador. Por outro lado, os aspectos
caricaturescos não são tragados pelo nada; refundidos, volatizam-se ou sutilizam-se. São os
mesmos, embora sejam outros: há neles certa diafaneidade que sugere algo mais. Quando
perde a tramontana, Mechéu ainda é rezingão, se bem que já agradecido (ROSA, 1985, p.
104). E, um tantinho adiante, em sua transfiguração propriamente dita, não deixa de ser
engraçado, ridículo, feio e louco. Mas agora o é de um jeito amorfo, duro de explicar. Tudo
isto mais a intensidade expressiva, a emocionalidade melancólica e incontida de uma
46
narrativa que é arrastada ao emudecimento e ao tempo presente e, ainda, a emersão clara, na
última linha, da subjetividade de um narrador plural que parece carregar em si a alteridade dos
companheiros-personagens e do companheiro-leitor (todos que só fizemos falar e rir de
Mechéu), tudo isto, repito, confere ao passo traços lírico-cômicos. Transcrevo-o abaixo:
[...] Ora fim que enfim se fechou no escuro cômodo, por mais de um dia,
surgindo no seguinte aceitou o caneco com chá amargo, restava guedelhudo,
rebarbado, os olhos mais cavos, demudado das feições.
Decerto não agüentava o que lhe vinha para pensar, nem vencia achar o de
que precisava, só sacudia as pálpebras, com tantas rotações no pescoço;
gesticulava para nenhum interlocutor; rodou, rodou, no mesmo lugar,
passava as mãos nas árvores.
Muito devagar, sempre com cheio o caneco seguro direitinho, veio para
junto do paredão do bicame, lá sozinho ficou parado um tempo, até ao
entardecer. Estava bem diferente, etc., esperando um tudo diferente.
Não falemos mais dele. (ROSA, 1985, p. 104).
Com misturas semelhantes, algo de etéreo, romântico ou fantástico no cômico,
encasquetava-se Stendhal (quanto ao fantástico, recordo ao leitor o conto 3!'#&!'4). O
autor de O vermelho e o negro reclamava da obscuridade e indefinição peculiares aos
'&(#&' !-'3&-me que a ideia de Schlegel a necessidade de algo poético na
comédia não é má mas0#$#&%)"-#"(&!!'$#&!"#&'4
2008, p. 34). Na literatura sobre o risível aqui consultada, Shakespeare, Hoffman, Jean Paul,
#+ &*"(' $ " #' #' 1 (!#' #"'("(' &()& 3Aletria e
hermenêutica4'-#!#elos e dos mais citados.
Mas, enfim, Mechéu Hermene- # 3# %) #& &" '&/#4
1993, p. 290), parece aceitar do caneco ou, em foro sublime, beber do amargo cálice daquilo
que, de certo modo, sempre foi: um Gango bobo. 26 Mechéu Tatu, fechado no cômodo, traz à
mente o quarto escuro da metafísica de Voltaire, onde é possível que se ache, segundo o
O prefácio faz do copo, imagem recorrente, uma alegoria dos estilos literários: médio/prosaico o copo
propriamente dito; elevado/sublime o cálice; humilde/ridículo # 3#$# "-# '( . $&'# )!
, #) #!,)$&'&"'(!$'('4OSA, 1985, p. 16).
26
47
inventador mineiro, não o que se pensa que busca (ROSA, 1985, p. 11). 27 Michéu bambéu
(ROSA, 1985, p. 102), encostado no paredão, evoca o alienado semissábio que pega a escutar,
intrigado, o som do nada das paredes do hospício (ROSA, 1985, p. 15). A caricatura, que
aparentemente escancarava tudo o que havia para ser visto e o enrijecia, tem tintas de
mistério. Quem é o personagem? O que aconteceu realmente com ele? As sugestões são
inúmeras... O que vem ao caso agora é que Mechéu nada mais é que um qualquer: qualquer
um. Nessa estória em que a derrisão é constante formal e temática, a todo o tempo, está a
dizer o contador: Mechéu, o outro, esta invenção-caricatura, sou eu mesmo, companheiro;
criatura insignificante, sim, mas sublimável. Não seria o nome do protagonista um composto
. (/ ) & % +$( " " . " "/ %)
carta por Rosa? (NOVIS, 1989, p. 84 e 85). Em resumo, a eticidade do narrador não se origina
do fato de que ele não mofa, como se estivesse acima dessa vileza; é que, ao fazê-lo, está,
igualmente ou antes de tudo, zombando de si mesmo. Eis aí a simpatia ou a empatia própria
do humor: o ponto de vista de que partem as estórias é roto, e é sempre este o que ri do
esfarrapado. Não triunfa ali o riso distanciado e presumido, destituído de autocrítica e
compaixão. Tudo se fez infinitos pedacinhos de nada...
Não discorro aqui sobre a intenção do autor. Esta, como largamente se sabe, é, no
limite, inapreensível. Digo antes que o texto é irônico e disto guarda lucidez. Agora também,
por outro lado, a autoironia, per se, não salva de antemão nenhum discurso do monólogo ou
da perspectiva da superioridade, ainda mais em tempos em que o procedimento já foi
apropriado pelo sistema intelectual e vai um tanto banalizado, quando não pervertido (o que
reverbera ou pode reverberar na leitura de obras de outrora). A técnica, simplesmente, não é
garantia de nada. Ou a modéstia verbal não pode ser afetada e ter fonte na prevenção ou medo
assoberbados do ridículo e da contestação? Ou a (auto)ironia não pode ser convertida, ela
.,"o)%/!&%)-se também o "')""- ""'!%"&" . *!" "%&
"&"%#"&"&"&+(*!$($(%'"/ #
27
48
mesma, em princípio absoluto de verdade nenhuma e modelo dogmático de discurso? Ou o
humor estrutural não pode funcionar como um tipo de prolepse, sedutora e talvez maliciosa
munição argumentativa que amuralha o texto em uma hipermobilidade inamovível? Ou
aquele que cria um intervalo entre o eu e o que ele diz não pode gozar com sua própria
agudeza e prevalência? O espírito crítico que se realiza pela desempoada autoironia é, não
raro, o orgulho do sujeito moderno pensante; pois, muitas vezes, é aquilo que o distingue
como tal, sua requintada (des)identidade. Há quem tenha a pretensão de saber que sabe tudo;
há quem tenha a pretensão de saber que nada sabe, coisa esta dificílima, ainda que quase
evidente.28 A ironia estrutural envolve certos ingredientes antinômicos que, se não revolvidos
constantemente na consciência e quimicados com profundidade, azedam a escrita ou a fala,
que seja; da ironia, estas emprestariam apenas o simulacro. Com efeito, a forma irônica, cujo
nicho, por excelência, é o da negatividade e limite, pode soar, às vezes, por demais assertiva e
totalizadora. O irônico é, por paradoxo, afirmado sob modo incondicional: "
# "
ambivalent consciousness
#ICS, 2007, p. 161). Máximas como estas
pendem para a negação de si mesmas. Se se atira à própria sentença aquilo que contém, ela
acaba por dar por verdadeiro também o contrário do que, em princípio, zelava por estabelecer.
Ilustro com o primeiro dos exemplos: a ideia que ele alberga, para ter algum valor, deve trazer
ou incubar o seu oposto; ora, então: aquilo que vale, vale também porque não é, ao mesmo
tempo, o mesmo e o outro. Toda essa antilogia de fundo consistiria em mera abstração etérea?
Longe disso: interfere concretamente na fatura de textos que se divulgam como
(radicalmente) irônicos. Obviamente não é o caso de que a contradição seja, em si, um
problema: o tratamento dado a ela é que é determinante.29 Ponho-me ressabiada porque,
E será que dá para passar ao largo da ironia (auto)corros " #
preciso duvidar também de que é preciso duvidar de tudo (KIERKEGAARD, 2003, p. 65).
29
Falando em plano teórico e abstrato, não há jeito de permanecer incólume ao paradoxo: como é que uma ironia
total, relativização de tudo, seria, ela própria, absoluta ou relativa sem desmentir-se? No primeiro caso, a ironia
28
49
quando a ironia cai nas graças do gosto, enrijando-se como princípio de valoração de textos,
corre o sério risco de submergir na frivolidade ou no autoritarismo que pretende combater.
Sem prejuízo disso tudo e que tais, a linguagem de Rosa mostra, a mim, que esse
artifício consciente, embora nunca deixe de ser, por exemplo, estratégia para envisgar o leitor,
também não é mera retórica de humildade: ali, a ironia não é verniz. O ficcionista mineiro
está, grosso modo, imune a esse manuseio simplório da ironia, em primeiro lugar, porque, em
sua obra, ela é, em boa dose, sobrerreflexiva; não se trata apenas de distanciar-se do que se
pensa ou diz, mas distanciar-se e, assim, desconfiar desse próprio distanciamento; a
autorreflexão, como se sabe, para pesar ou prazer, tende ao infinito. Em segundo lugar,
porque a ironia rosiana é experimental e viva (e não apenas imposta de fora, cultural e
institucionalmente); oriunda do momento histórico tanto quanto de humores temperamentais e
de uma lógica e dinâmica internas, ambas estéticas e filosóficas. Sua tática ficcional é dar a
ver os seus palpites-convicções na ciranda da dúvida, na roda participativa do pensamento
outro e coletivo.
Bem, parto para nova discussão. Paulo Rónai (ROSA, 1985, p. 216) escreveu certa
feita sobre o Guimarães Rosa de Tutaméia $em nenhum outro livro seu cerceia o humor a
" %
que, de fato, o livro nada contra o caudal do gosto e suscita pouco envolvimento emocional,
quando mais não seja, nas primeiras leituras. Arrisco mesmo a dizer que é anti-pático, e a tal
ponto que catarses ficam comprometidas. Mas não estou bem certa se é o humor o real ou o
principal responsável por esse efeito. O humor é uma realidade afetiva e também corporal
nega absolutamente qualquer absoluto. No segundo caso, nega-se a si mesma como ironia total. A ironia que
ironiza absolutamente Deus e o mundo (ou o ser ou o real ou o todo), bem como o modelo de discurso não
irônico e a própria forma integral de ironia, acha, em si mesma, enquanto meio ou instrumento, seu absoluto (não
que, concretamente, todo esse distanciamento e duvidação não tenham dinâmica e se atualizem sem descanso;
! $ % $ %
$ % "e pouquinho menos que isso já não é, a rigor,
estrutural; relativiza-se; confere entrada a um ou mais absolutos, os quais, por sua vez, tenderão sempre a ser
relativizados pela ironia: trata-se, também aqui, de uma movimentação. Seria este o locus do verbo rosiano, que
ginga entre a relatividade e o absoluto, sem negar nem afirmar, cabalmente, nenhum dos dois.
50
por mais intelectivo que seja (coisa que, aqui, ele não é de todo e exclusivamente, pois dessa
pedra se pretende extrair, nada mais, nada menos, que leite mágico). Ademais, se no humor há
afastamento, há também aproximação. Notem-se, quanto a isso, por pura ilustração, os
vaivéns da escrita de Bergson e, principalmente, Freud (1993, p. 217, 218 e 220). Posto que,
sem dúvida, o filósofo priorize a indiferença ou insensibilidade como um dos apanágios do
humor (o que, segundo o tradutor, estaria em consonância com o conceito francês
dicionarizado), acaba, em suas últimas páginas, por ensaiar concessão: haveria, no mínimo,
um aparente companheirismo e bonomia, uma simpatia fugaz por parte do ridente
(BERGSON, 2007, p. 92, 95, 104, 144 e 146). Já o psicanalista sopesa, de um lado, que a
economia da compaixão é uma fonte ordinária do prazer humorístico: quando o sentimento
está pronto a manifestar-se, é inibido, torna-se inaplicável internamente e descarrega-se pelo
riso; de outro, que o humor pode cancelar o desenvolvimento do afeto integral ou
parcialmente; este último caso, o mais corrente, produz as diferentes formas de humor
quebrado, aquele que sorri entre lágrimas.
Imagino que Rónai pense também contraditoriamente o humor, e, sem dúvida, isso
que diz de Tutaméia diz relativamente: tem à lembrança outras obras de Rosa. Ainda assim,
não seria um tanto desajeitado, ao menos do ângulo desta tese, sustentar ou enfatizar que um
texto repassado pelo humor (perseguido, aqui e agora, como porção compassiva, patética, do
cômico) é, precisamente por isso, a-pático!? O próprio Paulo Rónai vislumbrou, a fim de dar
com algum critério que arrumasse o livro, um conceito filosófico-estilístico que entra em
cheio na abstratividade de Tutaméia e talvez explane melhor o desgarre emotivo do livro: a
palavras que não indicam manifestação do real e sim abstrações opostas a
fenômenos percebíveis pelos sentidos, tais como: antipesquisas,
acronologia, desalegria, improrrogo, irreticência; desverde, incogitante;
descombinar (com alguém), desprestar (atenção), inconsiderar, indestruir,
inimaginar, irrefutar-se, etc., ou em frases como
célebre.(RÓNAI, 1985, p. 222).
51
São outros, por ventura, os traços de expressão que preferencialmente atravancam a
fruição sentimental das estórias, tais como: a linguagem ababelada e apocalíptica (e aqui
entrariam artifícios como os da antonímia metafísica); a lacunosidade e a absurda concisão
estrutural. Quando se começa a começar a conhecer os personagens, por exemplo, lá já se foi
há muito tempo deflagrado o fósforo da estória (ROSA, 1985, p. 7). É impossível que se
criem sólidas empatias senão no vau de uma convivência imaginativa, ou por outra,
perimaginativa (ROSA, 1985, p. 178), de um confronto paciente e de uma familiarização com
o estilo, que, é óbvio, não é pacífica e nem tem prazo de fim; mas é só aí, justamente, nesta
outra cadência de leitura, que a decodificação do humor rosiano tende a abraçar-se, cada vez
mais, com certa intimidade, com-passividade dirigida aos personagens.
Por tudo isso, ponderei acima que é sobremaneira nos primeiros enfrentamentos que a
obra se fenomeniza como refratária à emoção. Não quero afirmar com isso que sua
emocionalidade enxuta termine, em um extremo oposto, por revelar-se efusiva. Mas o livrinho
de Rosa é, programaticamente, como as mulheres feias e intratáveis que o povoam: transmuda
de rosto com o tempo e a frequentação; fica menos áspero, mais amável, sentimental e
sim-pático; com a ajuda do Romão que vê... claro. Se, aqui, *'( $+
p. 155)30, a sentimentalidade não fica por menos. Repito: é a própria obra que requesta
alterações de enfoque e desestranhamentos até muito mais radicais que estes ora em pauta. Se
a leitura de Tutaméia se faz sempre work in progress, é porque assim já o anuncia, por seu
equívoco, (!#! $! *Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira
leitura paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá
(ROSA, 1985, p. 5). Enxertada em ambiência tutameica, tal cita
só pode ter laivos irônicos. Torna-se, de entrada, um dos rasgos espirituosos do livro. É, por
" !# (% $ "# * "$ #$!+ " !
30
Esta gnoma de Terceiras estórias soa como transcriação de provérbio heládico, também aliterante, aproveitado
! #& * +*'(+
52
outro nível que não o metafórico? Qualquer literalidade cronológica ou numérica só pode ser
mera brincadeira com aquele que lê; pura provocação a seus (empanados) brios de leitor. Ou
não? Bem, uma leitura simplesmente racional, sem qualquer tipo, mais modesto que seja, de
satori, não é exatamente a mais alta das expectativas rosianas...
Aproveito a hora para palpitar sobre o salto (noção basilar) entre os títulos Primeiras
estórias e Terceiras estórias. A pergunta, que já tem tradição, foi inaugurada por Paulo Rónai
(ROSA, 1985, p. 216): e onde é que estariam as segundas? O Grande Sertão talvez as
$&# , "# &"!&!!!!!"re meu Quelemém; mas ele quer saber tudo
diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-!$-
"
171). Analogamente, cada estória de Guimarães Rosa já é, em si mesma, uma segunda estória;
já aponta para outro sentido, a ser capiscado por seu destinatário. As segundas estórias eram
inerentes às primeiras, eram elas mesmas !! ,$!#-!$- ,!&%#-coisa- ultrassenso,
alegoria, invenção do ledor, etc.
A propósito da concisão dos textos tutameicos, posso comentar, muito en passant,
algumas inconformidades entre eles e as anedotas. O paralelismo estória/anedota é construído
despretensiosamente e à base de uma modalização que tem o efeito cômico, para não dizer
trágico, de dar com uma mão e tirar com a !&%# ,A estória, às vezes [nem sempre], quer-se
[o que não significa que seja] um pouco [e não muito] parecida à anedota [não idêntica e
quiçá apenas aparentemente semelhante]- (ROSA, 1985, p. 7, os negritos e colchetes são
meus). Ao crítico precisado que não quer ver soçobrar uma categoria disponibilizada assim
tão amavelmente pelo escritor só sobra a cautela brejeira com que este a manipula, e que, de
molde#!#%'#($$ % )$ %#!#$$"% %$ , /
não quer ser história. A estóri #!# ' $# ! %# $%*#-
"
53
Essa ciranda verbal das primeiras linhas acerta já em muito o tom de uma obra em que
apotegmas revezam com dubitáveis ou, já em si mesmos, se fundem a eles.31
Uma das flagrantes dessemelhanças entre o gênero anedótico e o estórico diz respeito
à brevidade. Por mais sintéticas que sejam as narrativas de Tutaméia, cada uma delas, tomada
em seu todo, jamais chega ao grau de concentração do chiste ou da piada; e falo aqui de
desníveis quantitativos que determinam diferenças qualitativas referentes a tempo, espaço,
personas, etc.
Entretanto, há outros contrastes e dos mais desconcertantes. Acaso não é verdade que
a transparência, inconfundível aqui com a banalidade, é condição mais que simplesmente
favorável ao cômico? Assim o é, por exemplo, para Stendhal (2008, p. 54, 78 e 81), que,
depois de grifar e regrifar a clareza como essencial ao risível, tempera a prosa: o bom
contador é aquele que domina a arte encantadora de não ser nem obscuro nem claro demais.
Também em Freud (1993, p. 145) se coadunam ocultamento .!'/. O indivíduo
nunca sabe exatamente do que está rindo ao ouvir um dito de espírito (FREUD, 1993, p. 96 e
127); não é à atenção consciente que este se dirige. Por outro lado, o chiste guarda obediência
ao requisito de facilidade de apreensão:
[...] el chiste pierde su efecto reidero aun en la tercera persona tan pronto
como se la invita a hacer un gasto de trabajo de pensamiento. Las alusiones
del chiste tienen que ser llamativas; las omisiones, fáciles de completar; al
despertarse el interés del pensar conciente se imposibilita, por lo general, el
efecto del chiste. (FREUD, 1993, p. 143).
.""" (!"' !%'*"$( % / # '"$(%"!'% !"
de tudo o que se declara; de todo ditado, portanto, e, particularmente, daqueles assentados nas estórias
tutameicas. É uma paródia da pedagogia proverbial que fabrica um paradoxo de resolução probabilissimamente
impossível. Se todo o mundo tem a incerteza do que afirma, não é certo que todo o mundo tenha a incerteza do
que afirma. A própria assertiva não foge à regra e acaba por chocar o ovo de sua autonegação. Não chego a
propor que exista aqui um pseudoprovérbio; haveria, preferencialmente, um supra ou paraprovérbio que bebe da
forma exterior e do ritmo tradicional do gênero. E cito outras duas frases, extraídas do discurso de posse na
academia e do Grande Sertão, que se inclinam a problemat*% & & & .("# ', )%/
# .(",!+",/ # '(",)%# ')%$(
tudo é verdade pela metade é verdade pela metade. Se tudo é e não é, a própria asserção de que tudo é e não é... é
e não é. Já enunciei, um pouco atrás, a minha opinião de que Rosa não é um relativista absoluto, mas antes faz
voltar sobre o próprio relativismo extremo as suas fragilidades; aprecia introduzir absolutos que se fixam como
insinuações; é uma sugestão que nunca morre esta: a da presença do absoluto. Para uma retórica do paradoxo, da
autorreferência, etc. cf. FEITO, 1995. Também HUGHES, Patrick; BRECHT, George, 1993.
31
54
Para o psicanalista alemão, que, em seguida, fala do cômico em geral, o tema tem
verso e reverso: se quem ri, com toda sinceridade, não cogita, quem cogita, com idêntica
absorção, não ri. A mistura distração/concentração tem, pois, proporções, e qualquer
dicotomia absoluta é mero esquema, como este: 0#" )" !(& '(&(# * "# %)
espacio alguno para la comicidad, salvo que esta modalidad del pensar sufra repentina
interrupción1 (FREUD, 1993a, p. 208). Variação célebre deste pensamento é aquela que
constata, melancolicamente ou não, que toda disquirição do cômico mata o riso (MINOIS,
2003, p. 525; BREMMER; ROODENBURG, 2000, p. 66; FREUD, 1993, p 139;
STENDHAL, 2008, p. 39; ALBERTI, 2002, p. 25; KOESTLER, 1989, p. 36). A meditação
rosiana das bromas do prólogo, porque poética, ludicamente abstrata e, ela mesma,
humorística, não se mostra atreita a essa lição.
Na verdade, pelo menos desde Quintiliano (ALBERTI, 2002, p. 63), foram muitos os
que anotaram, de maneiras diferentes, que não é (bem) a razão ou o julgamento que avalia o
dito de espírito ou o cômico: Fontenelle, Kant e o mesmo Stendhal estão entre eles. O
primeiro diz que o riso, cujo princípio seria a loucura, é por demais brusco para que se possam
imputar suas causas a#' $&#''#' (&#' &+-# 0# &'# . )! $' ) !"(#1
(ALBERTI, 2002, p. 149 e 150). O segundo, que o sujeito ridente, por alguns instantes,
persegue a ideia, jogando-a, tal como uma bola, de um lado para outro; mas, ao fim, a
deflagração do riso liga-se a uma impossibilidade de pensar (ALBERTI, 2002, p. 164, 165 e
(&&#%)$&&&0."'',&#"-#$"'& com demasiada insistência em nada e
ter uma disposição feliz1 $
"-#"'## (#&$#''#&''
círculo de citações com Vladimir Propp. Sua teoria é de que a comicidade nasce quando a
atenção do ridente se transfere dos fenômenos de caráter espiritual para as exterioridades de
sua manifestação, tomadas, então, como defeitos (PROPP, 1992, p. 44, 66 e 181):
Vendo a desarmonia ou a deformidade exterior, o homem percebe-as de
forma completamente involuntária como índices de defeitos mais profundos
55
e importantes. Após uma reflexão posterior e fria isso pode ser
reconsiderado, mas o homem que ri não reflete. Poderá refletir depois, e,
caso a primeira impressão tiver se demonstrado errônea, a comicidade e o
riso terão desaparecido. (PROPP, 1992, p. 176).
De jeito similar ao psicanalista, o formalista parece conceber a recepção do cômico
como um processo mental, conquanto involuntário (PROPP, 1992, p. 40). Contudo, para dar
linha à cena proppiana deixando para trás o discutível da teoria da deformidade e do
enunciado de que a descoberta (a consciência) do erro some o riso , não seria possível que o
tal homem citado puxasse da memória e, ainda ruminando, desse com a verdade, não
necessariamente universalizável, claro, da primeira impressão, ou seja, com a coincidência
entre interior e exterior e retornasse a rir, ainda que mais atenuadamente? Rir ainda seria,
neste caso, desponderar?
Seja ou não seja, o mais importante aqui é que as anedotas, entre límpidas e obscuras,
se consumariam regularmente num clarão instantâneo do entendimento, e assim que ouvidas
ou lidas pela primeira vez. Aí está outro lugar rigorosamente comum na literatura sobre o
cômico, o humor e as piadas: eles não sobrevivem sem a surpresa ou a novidade. Daí, muitas
vezes, serem já moribundos quando nascem: facilmente descartáveis e engolidos pelo
esquecimento. Em uma segunda ou terceira recepção, seu efeito não tende a puir-se ou
extinguir-se? Até mesmo as melhores chalaças e comédias, embora não percam de todo a
força humorosa, seriam incapazes de reproduzir no ouvinte ou espectador aquela sensação
original de estalo ou estouro cômico. Sua fruição vai- &
$' 32 Sim, de acordo com o que pondera William Fry,
há ##&' !" eira.
Há até mesmo aquelas poucas # &"' !
!" &', como faca que desgasta o gume, de alguma forma, diminui.
32
Esta noção de riso puramente psíquico tendente a disjungir o prazer cômico ou a alegria da produção de um
sinal exterior surge, cá e acolá, em contextos os mais diversos (MINOIS, 2003, p. 147, 233 e 339; BREMMER,
Jan; ROODENBURG, Herman, 2000, p. 127).
56
No parecer do psiquiatra e cientista social, o que estaria realmente em causa é que aquele que
já é conhecedor de uma pilhéria está imune às suas armadilhas (FRY, 1963, p. 107 e 108).
Para fechar o raciocínio: posto que sempre seja possível desentender um chiste ou captá-lo em
atraso, não é esta a recepção proposta ou normalmente engendrada pela forma:
A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo.
Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas
sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por
exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência.
(ROSA, 1985, p. 7).
Quando em quando, o ledor de Tutaméia depara-se com um humor assim mais
instantâneo, e, em vários textos, - !'!# !&"( 0Aletria e hermenêutica1
0Hipotrélico10Nós, os temulentos10#+##&-!, o criador de perus10Desenredo10 ! #'#1 0&" +#1 0!' #&!'1 etc. No entanto, pensando bem, como fica o
anedótico ou o cômico não apenas das estórias, mas de todo um artefato cujo caráter distintivo
está, definitivamente, muitíssimo longe de ser a clareza?! Artefato ao qual é inerente, ele
mesmo o alardeia, a demanda de uma segunda recepção ou de uma releitura que não acaba
nunca. Se a opacidade tutameica inibe até mesmo que o texto se mostre à primeira visada
como texto tessitura passível de decodificação , que se dirá de uma tirada espirituosa? O
humor resiste a essa falta de imediaticidade e naturalidade? Creio que sim, mas não sem
sequelas, sem algum abatimento. A ficção rosiana não planeia situar-se aquém do cômico,
mas questionar, confundir, ultrapassar a percepção ou o uso trivial que dele se tem e se faz:
0' ! 1
$ &"(!"( # %) '. #"(& &#' e
pilhérias, o humor de Terceiras estórias é fruto de um lampejo, muitas vezes, temporão; ou
também de uma paciência hermenêutica de leitor; tem muito de não evidente: é pedrinha, nica
()(! '& &!$ ! ') '%)'( 0) $&& && &, %) "+# ' #
modo do que cabe no oco da mão, pingos primeiros em guarda-)*1
142).
$
57
Após a expectação incutida por uma primeira leitura do programa apaixonado do
prefácio, deste, que é mais salgadinho ao paladar, não produziria o livro uma impressão geral
absurdamente desentoante? Não pareceria ele ensosso e endoado?33 Tal frustração de
expectativa, estrutural (e cômica?!), explicar-se-ia, primeiramente, pela própria bizarrice da
percepção e da formatação humorística de Tutaméia, sensaboria macarrônica tornada ainda
mais *Aletria e Hermenêutica+34 Em virtude de sua própria tópica, o
prefácio possui um humor mais ostensivo que se espraia por todo o seu discurso (o que é
observável também nos dois prefácios seguintes e em uma porção das estórias). Já em outros
!*" +*
+* + * +* +
* +* +*R# +* %+ se e rarefaz: às vezes se contrai em croinhas ou ilhazinhas verbais esfuzilantes, mas
melancolicamente cercadas de nada por todos os lados. E lá se vai o leitor feito um bravo
sertanejo: *nômade+ de um * + que é, cá e acolá, abruptamente acordada pelo
absurdo ou extraordinário (ROSA, 1985, p. 180). Por parte do contador, portanto, não há
* #&+(' o francês.
Além desses fatores, outros contribuem para o estranhamento e a rotura do esperável.
Em primeiro lugar, a maior visibilidade, nas narrativas, de uma protagonização ainda oculta
no prefácio, se bem que atuante: a da alegria. Nelas, comicidade e humor cedem o passo,
muitas vezes, a esse sentimento contíguo, é verdade, mas distinto. Em segundo lugar, a
subjetividade, exigência e fronteiridade do humor tutameico: ele só se remata do outro lado,
%
*Aletria e hermenêutica+
que o projeto da obra é brindá-lo, dali por diante, com horas prazenteiramente sublimes de um
*+ $ # * + seja velha metáfora de graça e riso,
vide o latim salsus (ALBERTI, 2002, p. 60 e 66; MINOIS, 2003, p. 82-84 e 86; BREMMER; ROODENBURG,
2000, p. 38; BERGSON, 2007, p. 148).
34
Uma senda interpretativa poderia levar em conta que, no que diz respeito precipuamente à alegria, mas
também ao humor, o olhar tutameico é contérmino ao infantil. Os adultos frequentemente se admiram do tipo de
coisa com que uma criança se alegra ou se diverte: cheiros, cores, etc. (FRY, 1963, p. 11).
33
58
humor arguto, semostrador e animoso. O que se propõe é antes que o leitor se revire e
reinvente seu próprio humor e alegria; ficcionalize sua força cômica, materialize seu potencial
de di-vertimento; atine ou não, ao cabo de contas, com a graça daquelas brabas palavras,
daqueles rotundos vazios.
Para encerrar esta primeira antiperipleia, vexata quaestio: que dizer da localização
geográfica, social, cultural e histórica do humor e da alegria de Terceiras estórias?
A
sensibilidade cômica da obra, bem como sua compleição entre alegre e melancólica, para em
si mesma e exprime apenas a imparidade de estilo e pensamento da persona autoral
Guimarães Rosa? Ou amplifica-se como traço, não representativo em acepção tradicional,
mas sugestivo de toda uma época ou classe ou região ou país? Haveria culturas macrossociais
do cômico empiricamente observáveis? Alguns mitos populares equivocados e estereótipos
com escasso fundamento científico à parte, Peter Berger (1999, p. 126), por exemplo, acredita
que sim: humores típicos de nação, profissão, etc. A questionabilidade racional dessas
representações, muitas vezes coladas a um suposto caráter nacional, e o mau lucro ideológico
angariado com elas são, entretanto, bem conhecidos.
O assunto é de uma complexidade medonha e não constitui o eixo desta tese. Sem
embargo, retomo algumas ideiazinhas já redigidas em pesquisa anterior: Uma razão de
loucura: violência e trauma em Grande Sertão: Veredas (BUENO, 2011, p. 94-95). Ao
levantar e estudar o código da jagunçagem, aventei a hipótese de que sua (des)estrutura
estivesse vinculada, para Guimarães Rosa, àquilo que ele um
dos atributos básicos d -pe noção esta poética,
imprecisa, subjetiva e indizível, fabulada no cadinho da loucura e da conspecção
(COUTINHO, 1983, p. 90, 91 e 92). Trago, primeiramente, ipsis verbis, a referência a essa
dialética amalucada tal como aparece na entrevista a Lorenz. O passo deixa entrever uma
59
porção da esperança rosiana, erigida, como fica claro pelos entornos contextuais, sobre uma
ficção:
[...] nós os brasileiros estamos firmemente persuadidos, no fundo de nossos
corações, que sobreviveremos ao fim do mundo que acontecerá um dia.
Fundaremos então um reino de justiça, pois somos o único povo da terra que
pratica diariamente a lógica do ilógico, como prova nossa política.
(COUTINHO, 1983, p. 92).
Adscrevo também uma paráfrase minha do restante da descrição da brasilidade
empreendida por Guimarães Rosa; ele que, a propósito!%#
"&
[...] crenças religiosas indefinidas (algo de oriental, sertanejo e europeu;
cristão e pagão), intimamente ligadas ao fingir poético e à consciência da
presença do diabo: realidade do mundo que, paradoxalmente, parece só
poder ser desrealizada quando reconhecida como tal; exercício de uma
sabedoria prudente, advinda do coração, e não de uma endurecida lógica
cartesiana. (BUENO, 2011, p. 19).
À época daquele trabalho, ative-me, de um lado, aos rastos violentos e perversos
(conquanto, de maneira contraditória, para o autor, potencialmente libertadores) desse modo
de pensamento, também político; de outro, a seus aspectos míticos e ontossimbólicos. Só
muito ligeiramente não me escusei de indicar seus toques cômicos.
Pois bem. Julgo que o humor tutameico integra essa álgebra inenarrável do absurdo
(COUTINHO, 1983, p. 90), sem que nada disso signifique, bem entendido, que o motivo da
lógica do ilógico dê conta da comicidade de Terceiras estórias: ele apenas a alumia em uma
de suas faces. De mais a mais, talvez seja possível alargar toda essa conjectura. O espírito
tutameico, o humor da obra em seu sentido mais abrangente, a englobar mentalidade,
afetividade e maneira de ser, consistiria, para Rosa, em outra cristalização, diferente, daquela
brasilidade magicada por ele, composto instável, químico e alquímico: jogos de raciocínio,
poesia, alegria, transcendência; silêncio, luto, quebranto, desolação, agrestidão e angústia;
mas também artimanhas, trapaças, velhacarias e tudo quanto é próprio de tal forno e
60
caldeirão.35 A orçar pela conversa sério-chistosa com Günter Lorenz, o ironista mineiro gosta
de pensar-se como mago da objetividade e cientista da subjetividade; como se, em sua poíesis,
o infinito fluido e subjetivo se fingisse com precisão e o limite sólido e objetivo com
prestidigitação (COUTINHO, 1983, p. 74, 76, 78, 83 e 89).
A coisa complica-se porquanto se estenderia do regional e nacional para o universal,
sempre sob o módico modo da sugestão ou da presença da ausência: nunca é demais recordar,
o intérprete encontra-se defronte de um livro que pode valer pelo muito que nele não coube
(do sertão, do Brasil e do mundo). Seja como for, parece-me defensável que, para o fabulista,
a lógica do ilógico alegoriza um universo que convida ou constrange a que se ache ou se crie
sentido a partir do sem-sentido. E o sertão, particularmente, seria território virado do avesso,
pronto a tributar àquele que nele habita a moeda tutameia de uma habilidade narrativa,
por assim dizer, do outro mundo, sobrenatural. Tome-se
Nele, extra-ordinariamente, mulheres viúvas tomam as rédeas de um espaço patriarcal cuja
comunidade faceia uma catástrofe:
Tão cedo aqui as coisas arrancavam as barbas. O fazendeiro ensandecendo,
diligenciou em vão de matar filhos e mulher, cachorros, gatos. Nem era rico,
nenhum, se soube. O povo depôs que a extravagância dele procedia do sol,
do solcris eclipse, que se deu, mediante que vindo até desconhecidos
estrangeiros, para ver, da banda de Bocaiúva. Somenos as mulheres, de luto,
agora ali regiam, prosseguidamente, na fazenda Pintassilga. (ROSA, 1985, p.
128).
A forma tutameica com seu ser-e-sentir-e-pensar tem contrapartida também nos
páramos de desamparos diante dos quais, muitas vezes, se torna espantosamente racional
aquilo que é, do ponto de vista da cultura, irracionalidade. Tenha-se em conta a estória da
família de caçadores, mais um caso daqueles despossuídos que têm tido cabida, quando
muito, no background da grande História e que, de onde em onde, roubam a cena e a
protagonizam na minutíssima ficção de Tutaméia. Ali, a escassez real e simbólica do sertão
35
(COUTINHO, 1983, p. 85).
61
empurra o personagem- #" ) ! %!" + # " "
um qualquer dia morrer, deixando a mulher debaixo de amparo? Ia não largar no mundo viúva
&!!" !,
A solução sem siso parece inquietantemente sensata. Deixar o pai, como herança, a
esposa ao filho é escândalo que mal consegue tomar vulto naquele deserto de gente, mas
ainda assim assombra como fantasma e espicaça como enigma:
Daí, com o outro, o conversado, à mútua vontade, para providência. A esse,
seguro por sangue e palavra, protetor, entregava então herdada a
companheira, para quando a ocasião; tratou-se. Para ele poder morrer sem
abalo... A mulher, entendendo, crer que anuía, tranqüila calada. Disso ele
tinha sabedoria. Em tanto que, às vezes, achava raiva. Agoniava-o o
razoável. Direiteza, ou erro? Isso ficava em questão. (ROSA, 1985, p. 112).
Alegria sem margens? O fundo sócio-histórico que o texto reconfigura não a permite.
Nem a temporalidade, a maldade, a morte, os cataclismos, enfim, todos os limites humanos e
naturais. Tampouco o conceito e a vivência em si mesmos da alegria, que têm seus próprios
trevores e trazem no âmago seu reverso, a tristeza (por sinal, igualmente portadora de breu e
luz). Porém, como redige Guimarães na correspondência com Paulo Dantas, pondo em pauta,
"" $ !& ! # $ + "& ( !" "'& ,
(DANTAS, 1975, p. 63).
62
2
TUTAMEICA
[...] alegre embora física e metafisicamente só, sentia o universo: chovia-selhe. (ROSA, 1985, p. 116).
O capítulo anterior girou em torno da ideia de que a (hermenêutica da) alegria em
Terceiras estórias tende a distanciar-se daquela do senso comum; melhor ainda: há uma
opacidade que vela a inclinação de espírito da obra. Esta, stricto sensu, não seria nem somente
alegre nem somente triste, mas, ao mesmo tempo e de modo paradoxal, inteiramente alegre e
triste. A obra brinca e soluça na graça e angústia de rascunhos, farrapos, quinquilharias e é
$"$ !*#( (*( %'($##( 2"("$ !'( - )'()( !$$ )'()( "( !'(3
(ROSA, 1985, p. 211). Mas não seria ela ainda, de jeito diverso, meio-alegre-meio-triste?
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( *#)+ *" )#)#$ %$( 2()- "$ $ $* "$ +,$3
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Sim, estado de espírito e humor que sabe que jamais poderá ser pensado de todo
objetivamente, pois incorpora em sua própria compreensão a contingência determinada pelo
olhar do outro. Haverá quem veja antes a falta e haverá quem veja mais o volume.
Essa intransparência difusa se encarna aqui e ali na psicologia dos personagens.
%(($ ') #$)0 $ ()$ *"$' $ 2!/$ $ '3 2#" !' #"
)'()%#($$%$()$3
%5#"$0cil este que diz mais daquilo que
não é do que daquilo que é; que se medita a partir de uma oposição à qual a língua não dispõe
de pronto: o que seja o contrário de 2#" !'#")'()3afecção em si já ambígua e meio
indefinível, é coisa a inventar: reúne, parece-me, as duas emoções aparentemente fora de
campo... É ou pode ser ainda o humor medido e comedido, quase indiferente; ou talvez o
humor neutro (ne-uter), o humor nenhum, que, por sua vez, não se confunde simplesmente
com o mau humor. Enfim, matizes de um humor humano para fazer trocadilho.
63
A para-alegria de Terceiras estórias só se faz possível e genuína se misturada,
irmanada com tristuras. É fina ou sutil porque animada a encontrar-se também no interior do
sofrimento. Não que este esteja banalizado. Faz parte da iniciação de um dos personagens, por
) #" 1%conhecer a exatidão da tristeza2 OSA, 1985, p. 151). A obra não faz
concessões: violência, pobreza, marasmo, doença, morte, fracasso. Poucas são as tempestades
em copo 3+("&melodramas interiores roídos e derroídos que sofrem, então, a leve mofa
da narrativa enternecida do contador.
Mesclas à parte, o leitor rosiano há de ponderar possivelmente que a atmosfera de
Tutaméia, em contraposição, por exemplo, à da obra anterior, Primeiras estórias, não parece
lá muito joliz (e há certamente razões históricas para isso). Ao aventar o rascunho de um
universo arredio, o livro antes transuda melancolia. Não duvido de que esta opinião seja
largamente sustentável, mas, nestas páginas, não invisto nela. Talvez a alegria de Tutaméia
seja mais estudada, menos espontânea. De modo mais marcado, fruto de um esforço e labor
hermenêutico, de uma opção intelectual e, claro, espiritual. Será acertado apelar à oposição
exterioridade x interioridade? Em se tratando dessa obra, quando a tristeza é mais evidente,
não se poderá e deverá aí mesmo esgravatar uma alegria resistente e íntima, ainda que
&'%!/&& ( "%&!(%1*%%%2 &'"%"&!"
#Não
sei se é o caso realmente, pois fachada e fundura, máscara e rosto, cambaleiam no texto tanto
quanto o Chico temulento. Prefiro obtemperar que alegria e melancolia são dois lados da
mesma moeda tutameica. Contudo, e isto é crucial, se a tristeza da obra está em seu direito
moral, histórico, lógico, estético e, em certa mirada, até mesmo religioso, sua alegria, in
extremo, só pode ser coisa de sábio/místico ou de louco; onde seja talvez absolutamente sem
sentido é exatamente aí que deve brotar, como experiência mesma da liberdade e da coragem,
"&(#%&&!&"%"* "%.1%%%-$(!,"&2
# ,"#"%
casualidade, quiçá, os vaqueiro&"&%&&"&1% & (2
#
64
!%(,*'&**,!)(,# *)2$*)/4*6 Só o pobre é que tem direito
de rir, mas para isso lhe faltam os fins ou motivos...7
' ,%&#!
não vem tão fácil, pesa o sacrifício da liberdade. Nos versos do poema a quatro mãos de Paulo
Dantas:
Naqueles pastos do longe
a alegria, fardo pesado
tinha de ser levada
na canga da cangalha, no cavalo alto,
ao lado do Tio Terez. (DANTAS, 1975, p. 118).
Algo discrepante, por conseguinte, daquela obrigação pós-moderna obsessiva de uma
euforia festiva e homogênea.
Parte das considerações precedentes "0*'+%+!$6$'&)#7 e nas palavras,
titubeantes, é verdade, do Riobaldo de Grande Sertão: Veredas. Dito, Miguilim e o jagunço
tateiam uma hermenêutica e uma mística da alegria, que não se reduz, portanto, a estado
afetivo ou psicológico, mas é também decisão de fé, atitude ontológico-existencial:
E o Dito também não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam
em ficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse
tudo: 6!,!#!$!,!#!$-&,%*!%)&(,&)!% ,*!$!*3
que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim
que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre,
$!*#)'&)%+)&7 b, p. 119).
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e
daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é
coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar
alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da
tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito por
coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia. (ROSA,
1986, p. 278).
A alegria é disposição subjetiva: não está nas coisas nem nos fatos, o que pode
comungar-se com a ideia de que é problema de linguagem, sentido-orientação que se imagina
!%-%+6&%*+),21&#,$-!porém por si triste, nem a do túmulo, nem a da choupana,
%$ & 0))7
'
6%#!! 3 (,*+1& ')!.&7
1985, p. 88). Não obstante, bem ao gosto de Guimarães Rosa, e em virtude de seu estilo, a
65
reflexão sobre a relatividade da alegria e a subjetividade do humor, sobre a liberdade de sorrir
ou chorar, é literariamente conduzida a limites desnorteadores. Onde está o cômico em si, por
assim dizer, inartificial e imediato, ou, vá lá, o cômico, simplesmente, ou o riso ou o vivo
contentamento em textos moldados por fôrma tantas vezes morreira? Onde, em textos pejados
de crueldades e mesquinharias, *(*<..".*+".=, <--! =<Sinhá Secada=*0/7
catástrofes coletivas, *(*<3*!"'(&-)/"=? Sim, sem dúvida, muito mais no enfoque de
quem os narra ou observa e medita, e na linguagem originalona, em seus ditos de espírito e
bromas, que dão pequenas pérolas como a da timidez total que, justamente por ser o que é, se
"2&" <&)% 1"-$*)% !" #-")/" " !" +"-#&' /*!* * (0)!* 1&0=
+
*
entanto, é precisamente por isso tudo que se repõe, insistente, a pergunta: até que ponto essas
brabas estórias podem ser risíveis ou cheias de graça? Até que ponto alegria e humor são uma
questão de perspectiva e linguagem? Até que ponto é possível alegrar-se na tragédia, sublimála? Bem, é nesta oscilação tensa e perturbadora entre cômico e trágico, pesadume e ledice,
que se costuma situar o humor, e assim caminha o livro, desobrigado a decidir-se e decidido a
provocar, se bem que investindo suas mixas moedas, nonadas de tuta e meias, na positividade
de uma des-propositada, meio tristonha e excelsa alegria.
Segundo Peter Berger (1999, p. 198 e 215), seria inútil definir um código ético para o
/-$& 9(& *<0!"#&)& &8)!""-4 *)#&-." a la razón del corazón o a las aproximaciones de
'(&.(,0""./7)'' ) "!" !+"-.*)=5*/5* sentimental, mas refugando também
qualquer sistemática, "&. +-" &65* .&(&'- !" '!&(&- -*++ + < '&(&/"
entre as pequenas desgraças, que fazem rir quem as presencia, e as grandes, que já não
provocam o riso, não pode ser estabelecido sobre bases lógicas. Ele só é percebido pelo
sentido mo-'=(/7-&%&./8-& /(7(7&)/"-#"-")/"."(!:1&!--&. *0("2"(+'*
( <0!-&)%* !" "./8-&= " < & "0= &)/")/-se enquadrar a cela como isto que ela
normalmente se mostra, mas também desenquadrá-la na sua contradição interna, no seu
66
avesso de liberdade. À época, em narrativa de ambientação interiorana, nas margens do
Estado, foi possível, sob a forma de uma ironia cerradíssima, é verdade, redigir e ousar isto:
-Aqui, com remorsos e recreios, riscado de grades. Mas o espírito do nariz em jardins, a gente
se valendo de tempos vazios. Duro é só o começo da lei. Arrumaram para mim folga, de
pensar, estes lazeres, o gosto de segunda metade..
!
"#! "$ !"
os dias de hoje, no entanto, para o midiatizado e hediondo contexto do sistema carcerário
brasileiro, esse epílogo humoroso, com tal confissão de meio ganho (as horas livres e o ócio
instrutivo), seria praticamente inviável, devido, quando mais não seja, aos perigos da
inverossimilhança. Cuido de manifestar minhas reticências ao que proponho porque é tão
contestável defender que se acha aqui um argumento narrativo quase irrealizável (não estou a
criar, portanto, um impossível ficcional) quanto afirmar que, nos anos do Rosa de Terceiras
estórias, fazia-se ainda cabível escrever o que ele escreveu: trata-se de um autor arrojado que
manipula uma química de limites em que tudo pode explodir no ar.
Terceiras estórias não negam que os cárceres e as cegueiras e as feiuras e as misérias
estejam por toda parte por sinal ) !" (" ## # -"#&$%"., por
'! " %( ! ##% & !" % !"#) ( - ) ( &
dourada, entre os gradis de ouro da alegria.
!
$ $!
sentimento e compreensão do mundo, a (escolha da) alegria é, ela mesma, uma forma de
limite. Mas não semelham grades douradas essas margens, as da alegria? A imagem
antinômica de um livre aprisionamento a pequena corajuda tem em mãos as suas chaves
traz à mente, aliás, a liberdade enclausurada de Riobaldo (BUENO, 2011, p. 79); sua aposta
$) * #!"$# # # $! $) " # " -" %
! " ( $" "" "# !"#+#. - !" " #
(".
p. 268).
67
Em Tutaméia, a alegria, sem que uma coisa necessariamente exclua a outra, pode ser
matéria de vontade, têmpera ou graça, quando menos se conquista que se acolhe. De acordo
com o que se viu, essa vocação mais orgânica, (quase) irrefletida, é a de muitos personagens:
as velhinhas do arroio, os boiadeiros rapsodos, Melim-Meloso, Tio Bola, Drepes, etc. A
jovialidade sabe amistar-se com fluxos e refluxos vitais; solfejar, com alguma euritmia, a
disritmia da vida. Sob selo hermético, inclusive, a alegria já foi concebida, na primeira parte
desta tese, como o estado de harmonia do ritmo de baixo com o do alto, o que tem, sim,
alguma aplicação em Tutaméia, contanto que não se perca de mira que o ritmo, ali, não é um
dado e está problematizado. Enfim, a espontaneidade pertence não tanto ao ponto de vista das
narrativas quanto aos seres que nelas pululam. Falo isso apenas relativamente, claro. Como
elaboração estético-filosófica erudita da via estreita da liberdade, a alegria, e não só o humor,
configura-se, em última instância, como lance espontâneo, pulo para o suprassenso, e
dificilmente é inteligível até o fim.
Talvez no livro o intervalo ou entreato mais escandaloso para a razão seja o daquela
mulher de caráter (aparentemente?) tão pouco ou nada jovial, quem
arrancam cedo das mãos o filho pequeno. Já tão definhada, sofre ainda, por ironia do destino,
uma aguda decepção: o tristonho e crescido moço chegado à repentina não é o menino um dia
amado e esperado desde as entranhas. No entanto, a reação, depois de tão dramático
desencontro, peripéteia, é surpreendente. Pode-se, sem dúvida, motivá-la (e o texto dá
margem a bonitas sutilezas), mas aquilo que tornou possível àquela mulher, saltatriz débil e
delicada, refazer a ledice e não demorar-se até a morte na tristeza é, ao cabo de contas,
impenetrável. Nessa anagnórise enigmática e negativa (de ordinário o reconhecimento
consiste na descoberta da existência de laços familiares), não há continuidade; há salto:
Mas, ela, que sentada tudo recebera, calada, leve se levantou, caminhou para
aquele, abençoando-o, pegou a mão do tristonho moço, real, agora assim
mesmo um tanto conformado. Sorria, a Sinhá, como nunca a tinham avistado
até ali, semelhava a boneca de brincar de algum menino grande. Seu
esqueleto era quase belo, delicado.
68
Nesse favor de alegria persistiu, todos exaltando o forte caso. (ROSA, 1985,
p. 162).
Há alguma reiteração no livro, que cabe demonstrar. Na sequência abaixo, em
"Arroio-das- #" #, " #" #"Palhaço da boca
v#, " # "Melim-#, de jeitos diferentes, a entrega
contentosa à vida, ao dissolver tão estranha e intensamente a alegria na tristeza e vice-versa,
"Sobre a escova e a dúvida#, a reflexão sobre os caprichos da
felicidade:
As velhinhas pactuavam a alegria de penar e mesmo abreviadas irem-se a
fito de que neste sertão vingassem ao menos uma vez a graça e o encanto.
(ROSA, 1985, p. 24).
Mearim se levantou, de ajoelhado também, o sangue respingara-o. Seu
coração entendeu. Iria, desde que enterrado o morto, à Lapa do Santuário do
Santo-Senhor-Bom-Jesus, por um perdão, pela dor de todos. Depois, a vida
dele era só aquela mulher, e mais, sofrida tida e achada, livre ou entre
grades, mas que lhe pertencia, em reprofundo, mediante amor. (ROSA,
1985, p. 67).
Aprendia ela a parar calada levemente, no sóbrio e ciente, e só rir. Ora
quitava-se com peneiradinhas lágrimas, num manso não se queixar sem fim.
[...]. $Tivesse tido um filho..% ao peito as palmas das mãos.
%
fermento, fino de bússola, um mecanismo de consciência ou cócega. Andava
agora a Lola Lita com passo enfeitadinho, emendado, reto, proprinhos pé e
pé. (ROSA, 1985, p. 125).
Nhoé rejeitou ir junto, nem pertencia a outros lados diversos saudoso
somente daquele dia de enterro, dela, os três, a chuva, a lama, à congraça,
em entremeio de sofrimento. (ROSA, 1985, p.128).
Ele precisa de dinheiro, de ajuda?! e seu pensamento virava e mexia,
feito uma carne que se assa. Que venha... de repente chorou, fundo,
como se feliz ... para o que quiser. Ela estava ali com muita verdade,
cheirava a naftalina ou alfazema. O vento acaba sempre depois de alguma
coisa que não se sabe. (ROSA, 1985, p. 133).
Sim sofri: como o músico atrás dos surdos ou o surdo atrás dos dançantes;
mas, com cadência. (ROSA, 1985, p. 157).
Lá, ressoam distâncias; e a alegria é pouca: é devagarinho, feito um gole. A
serra faz saudade de outros lugares. [...].
Mas Melim-Meloso fazia-se muito causador de invejas. Sofrer, até, ele sofria
tão garboso, que lho invejavam. Sofria só sorrisos. Vai, pois, por qual-o-quê,
quiseram vingar-se dele, disso. (ROSA, 1985, p. 108).
69
A felicidade não se caça. Pares amorosos voltam às vezes a dado lugar,
querendo reproduzir êxtases ou enlevos; encontram é o desrequentado,
discórdia e arrufo, aquele caminho não ia dar a Roma nenhuma. Outros
recebem o dom em momentos neutros, até no meio dos sofrimentos, há as
doces pausas da angústia. (ROSA, 1985, p. 168).
Espreitada pelo avesso, também a compaixão ou a dor pode ser dom: B/&2-se de um
#*$)/=(2"<"C 0Uma vez que podem conduzir ao supersenso, ambas,
42*34&7" & ",&(2*" B".(@34*"3 & %&,>$*"3C 3;/ 6&2&%"3 &30*2*45"*3 (&.5>."3 3& #&- 15&
manhosas e temíveis (ROSA, 1985, p
",&(2*"B.;/=3&-3&5302?02*/30&2*(/3Ce a
42*34&7"B02/%579-4/"3$".3"</3C 0 34"0/%&3&2/$/.4282*/%"$/2"(&-
(ROSA, 1985, p. 204), e aquela, conspirar com a falta de liberdade, como na distração cruenta
de Isnar (ROSA, 1985, p. 190) e na felicidade cheia de ódio de Flausina (ROSA, 1985, p. 55).
Talvez se explique por isto também, pela prudência ou temperança, que, em Tutaméia, a
comédia seja comedida (ROSA, 1985, p. 124), e as mágoas, geralmente, medidas (ROSA,
1985, p. 2); há, inclusive, quem pranteie por um olho só (ROSA, 1985, p. 44). Henriqueta
*3#/" +8 "$)"2" ./ *(5*,*- %& B"-0/ &2",C 5- B05%/2 ./ 3/'2*-&.4/ '"$5,%"%e de
conte.<;/C 0
Não teria, com efeito, a alegria triste ou tristeza alegre de Tutaméia algum tanto de
atmosfera e gosto e exercício religioso e ritualístico? Sob o viés do autor e do luto pelo
sertão que se vai morrendo ao tempo que tudo, inclusive, a palavra, se reduz a moeda, por
exemplo , a obra está próxima daquilo que se lê em expressão alemã que muito interessou a
Guimarães Rosa: BAllerseelenstimmungC BD34"%/%&:.*-/%/%*"%&*."%/3ECo centro
da Europa, tempo cinzento e morrinhento, pluvioso (COUTINHO, 1983, p. 82). Esse espírito
de indefinível e doce tristeza que se compraz na meditação, esse modus animi de festa ou
celebração lutuosa em que o sofrimento é levantado no altar, se encontraria oculto, segundo o
Guimarães da mesma entrevista a Lorenz, em metáfora riobaldiana, cujo significado imediato
3&2*"B"4-/3'&2"$)56/3"CB5 o senhor vai [pelo sertão] no soposo: de chuva-$)56"C
70
(ROSA, 1986, p. 18, o negrito é meu). Tratar-se-ia, no caso, de figuração sobre figuração,
tendo sido a base primeira pressentida pela esposa de Meyer-Clason, leitora do Grande
Sertão: Veredas nascida em Hamburgo (ROSA, 2003a, p. 152): é o hamburguês coloquial
suppig.$ ,/Suppe (COUTINHO, 1983, p. 82 %"#$.# /
De modo geral, Tutaméia é obra de ritmo truncado, duro e pedregoso, verdadeira
droenha sertaneja a ser desbravada pelo leitor.36 Orações e frases curtíssimas com acúmulo de
vírgulas que sustam a batida própria da língua até a esquisitice, elipses incômodas,
descontinuidades espicaçantes. Não que haja aqui alguma exclusividade, pois há outras
imagens da obra que são associadas a sua forma; o andamento monótono e sobressaltado de
muito dos enredos conforme ao do existir (ROSA, 1985, p. 167) é repassado pela
marcha morosa e turbulenta das boiadas: a escrita, como um todo, caminha feito boi; e o
serpentear do verbo, combinado com trechinhos de uma cadência mais correntia, evoca
também o elemento líquido do livro: rios (vagarosos), fontes, arroios, etc. Mas, se comparo
com Grande Sertão: Veredas, por exemplo, este parece tomar para si, apesar de sua
agrestidão, de suas asperezas e quebraduras, um estilo mais caudaloso, é evidente, e também
mais fluente e natural, enquanto Tutaméia, livro que não deixa de ser marcado pela umidade,
incorpora mais da aridez e da secura. Quem quer que se aventure a lê-lo em voz alta sente o
desconforto dessa linguagem indúctil, estranhamente descompassada e estilhaçada ao ponto
mais extremo dentre as obras publicadas em vida por Guimarães Rosa. Cabe ao leitor de
Tutaméia adivinhar e completar muitas coisas e, dentre elas, certamente o ritmo que lê o livro:
solfejo excêntrico, sublime tartamudez.37
.Droenha/, palavra que dá título a uma das narrativas, não é dicionarizada. Nilce $0 Martins (2001, p.
&* % ##+& .)( #+ de pedra (com mudança de vogal) e de brenha, pals. que
aparecem juntas no passo no meio da serra, em pedra e brenha /
37
.$# !%$# &'# -de, tracei planta só um solfejo, um modulejo a minha construção,
desconforme a reles usos. As# / 43). A imagem do infinito rascunho, em que
deverá enxerir o receptor, é elemento recorrente de Terceiras estórias.
36
71
Gagos são Mechéu (ROSA, 1985, p. 101) e João Porém (ROSA, 1985, p. 86), que
tremeleia bem quando o pensamento é de difícil tradução (ROSA, 1985, p. 88). Mas o
staccato descadenciado que se configura a miúdo como a respiração do livro e é, obviamente,
de ordem paralinguistica, parece-me revocar também, além da gaguez (diante do sublime, da
dor, do luto, da claudicação, etc.), o som tremulante próprio do riso com seus silêncios
intervalares. É verdade que Terceiras estórias não são um livro de gargalhadas (conquanto
haja personagens que as soltem e, eventualmente, leitores), mas é certamente de risos e
.*--&.*.* *(")/-0(#'!*1"'%*%4 &*+"-.*)$"(!";&/*<, o narrador estaria
aludindo, de modo ligeiro, ao estilo /0/("& *; falara com grossos estacatos, deu-lhe o
sacolejado riso< +
*-7(, de novo, aqui não é necessária nenhuma
exclusividade. Como venho redizendo, a alegria não atropela a tristeza fluidal, teimosamente
;/(*.#7-& < + ;)&('< *0 ;&)./&)t&1< + "
que traspassa o livro; antes se enlaça a ela. O mesmo chama o outro e não seria forçado ouvir,
no negativo desse estilo sacolejado, o soluço de (quase) choro de um texto ;")!*")6(&)$.<
(ROSA, 1985, p. 145).38 Na própria estória em que o termo +-" ";"&( **(<, o
som entrecortado do pranto, do soluço, mescla-." * -&.* ;+*- /0!* .*'0 "& "0
endoençamingas. Mas o povo ria, porém, ao tempo que choravam, por imponentes
entusiasmos, +*- ,0"'" %*("( /"- %1&!* " "2&./&!*< *)/$&-se, ao final, o próprio
)--!*-;*--&-&+*-* *)/-4-&*!" %*--/(7(< +
Last but not least, a respiração arquejante, engasgada ou sacudida, pode ser vinculada
a certo clima geral de ansiedade ou angústia cansada ou enfermiça, corporificadas por
(*(")/*."(+"-.*)$"). *(**'%6*!* "-!"; &'")/*/"3+'%&6cortada a
fala de ofegos(*./-1&)!&#"-")6*". 4-)&*!*. *)!")!*.< +
'1- # "/ !" *)*/65* #9)"-" ,0" .&$)&#& -& ;'(")/*.*< ; %*-*.*< +*..81"' *(&)65* !"
;")!*")6.< (solenidades religiosas da Quinta-#"&- )/ " ; %*-(&)$.< MARTINS, 2001, p. 186;
HOUAISS, 2001, p. 1141). Finados (;Allerseelenstimmung<), Quaresma/Semana Santa ;"&( * *(<
/';-"."+"<-)1';&)$-". < Sugestões ou mesmo presença concreta de tempo litúrgico.
38
72
Ou &2&(,)(, 9'#& )"& '#& (,%+ ofegava num esbafo de vertido esforço sob os
desapiedados pensamentos:
ofego (,"*')+&:
' , /%")9"%+5%"em prêmito de
' ,$"*,$-/!1"&9ora desabria sacudidos
dizeres, enrolava mais silêncio, ressofrido:
'
$#+"$angustia, aflição
acompanhada de aperto na garganta, significa também 9)-":9*+)"+/: 9passagem
cintada:9* "#")&:9&%"*2& .+)$:9*,):.')*são] (TORRINHA, 1942, p.
57; FARIA, 1994, p. 49). Também neste sentido etimológico, o estilo tutameico breve,
seco, escabroso: boca estreita para o suprassenso é angustiado.
Se Guimarães Rosa é artista que prima com esmero pelo casamento significado-esignificante, não é de espantar que o texto esteja formalmente varado por essa mistura de dor
e deleite. Aliás, o texto insinua, ele próprio, de maneira surpreendente, que sua fratura formal
(de ritmo, de sintaxe, de enredo, etc.) pertence, ao mesmo tempo, ao júbilo e ao enlutamento.
0**"$(,*'&"/)9+)"*+/ isto é, falta de continuação:
,9)"*+'&"*(,+2&#&:
'
'
as, também, contraditoriamente:
0 & (, $"* * ') &$ 9 #"": ,$ $&& *$ *(64%"
desprendido dos acontecimentos camada do nosso ser, por ora oculta
fora dos duros limites do desejo e das razões horológicas. Não se imagina o
perigo que ainda seria, algum dia, em alguma parte, aparecer uma coisa
deveras adequada e perfeita.
Em verdade conta Lucêncio que, entre não-dormir e não-acordar, independia
feliz, de não se fazer idéia nem plausibilidade de palavras. Não queria, por
tudo, que a inconcebida boa-hora passasse; sem imaginação ou contradição
ele nada mais despercebendo. (ROSA, 1985, p. 168).
Como escrevi %*32&%+)"&)**'*9 #"": apontam para o fato de que
não está em causa qualquer unissonância cabal. Em uma variação do mesmo tema: 9
;Felicidade se acha é só em horinhas de descuido...< : (ROSA, 1985, p. 36), horinhas sem
aconteceres, 9insignificantes:, distraídas das preocupações e injunções de um tempo
comandado pelo relógio e vivido como utilidade, como vazio ou forma que prestam apenas
para ser preenchidos por algum conteúdo pragmático fora deles. O vazio e a vagareza do
73
narrado e da narração, violentos para o leitor contemporâneo, comunicam impressão de atimia
e, menos evidentemente, de uma alegria invulgar. A relação entre esta e a lentidão e a
miudeza e a relativização do desejo !&- !.:
O Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por
dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundas.
Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando
demais com coisa nenhuma. (ROSA, 2001b, p. 148).39
Ronceirice e descontinuidade angustura onde vem dormitar a ventura tutameica.
Tal como ocorreu com os três vaqueiros inventadores, melancolicamente alegres ou
alegremente melancólicos, naquela rasa conversa de felicidade (ROSA, 1985, p. 128), ou com
o Dr. João na companhia de Zito, quando mole se conversava (ROSA, 1985, p. 180), ou,
finalmente, com Joãoquerque e Mira, na hora em que ela fritava bolinhos para o jantar, e
#!#%- uenidades, amenidades, certezas.
Neste sentido, a forma que modela Tutaméia é irmã da conversa (des)fiada, do papo
furado: miolo oco com tiquinho de prosa em volta. Também do sonho, do instante liminar
entre sono e vigília e, enfim, do silêncio, que é sepulcro e berço e, enquanto tal, ensejo para a
nomeação inventiva, paixão do escritor: - ") !"# & ! ""
+". 17). Na fronteira postrema da palavra e da mudez, o livro parece
desejar produzir, a despeito de ou desde toda negativid$-#""*.em que
se cale indizível ternura (ROSA, 1985, p. 23). Não só o mesmo e ressonante que
arremata - !!-das- #"."#( - -ooó.- .#ROSA,
1985, p. 25, 100, 102 e 125). Espécies de surdo e inventado mantra talvez? O sonido
minúsculo, o sentido infinito: -Ih, é, ah!., -Ô-xem...., -Lilalilá!. (ROSA, 1985, p. 72, 75 e
120). De qualquer maneira, o som em si, suas vibrações, efeitos misteriosos, recados não
conceituais (ROSA, 2001c, p. 27-104).40 Mágico, porque
39
capaz de
comunicar
Henriqueta Lisboa vê, no trecho, a formação de um conceito conformista (COUTINHO, 1983, p. 176).
Entre outros, Davi Arrigucci (1979) e Irene Gilberto Simões [s.d.] já atentaram para o valor autônomo do som
nas criações de Rosa; o primeiro, abordando o Grande Sertão"$-'!". # "#
40
74
subliminarmente, despertar o que dorme; criador de possibilidades e travessias, portador não
de razões, mas daquilo que se sente e experimenta como verdadeiro, suprassenso. Afinal de
contas, em Tutaméia, é antes o amor, e nã $' ! % , - sentido e
simpatia e orientação à história (e à estória, poderia completar- ,!'
-
, 1985, p. 130). Amar é dar sentido (como no efeito do olhar de Romão e
do Quim chinês sobre suas esposas), e isto apesar de que este sentimento, para personagens ou
algum narrador, de revés em revés, não esteja lá valendo os muitos mil milhares, mas
qualquer meia tuta-e-meia.41
Não obstante toda desarticulação e estranheza de ritmo, o livro inopinadamente aspira
a ser entreouvido como espécie de aboio ou salmodia; na verdade, cacosa cantação cuja
cadência só pode depender também da inspiração e expiração do leitor, bem como de sua
sensibilidade àquilo que o escritor aprecia entender como influição, impregnação ou, com
pitada venenosa, inoculação da leitura (ROSA, 1985, p. 176 e 180; 2003b, p. 86). Tutaméia é
riso, reza e romeia (ROSA, 1985, p. 68), moderna e triste toada desconjuntada, linguagem
babelesca, algaravia. Verdadeiro desatino e canto de Sorôco que, aos ouvidos moucos da
razão, '" , -dizer das "-
As dimensões do puramente fonético e do silêncio podem ser pensadas como infra ou
supralógicas, sensoriais ou hipersensoriais ,!- ! ,! - nas
palavras tutameicas (ROSA, 1985, p. 175).42
) $ ! " , !('
onírico, como o recorda Henri Bergson (2007, p. 140), há uma concentração na matéria fônica do léxico (ou uma
hipersensibilidade a ela) e um esvaziamento de seu significado habitual.
41
Com um título como este, o problema do valor, em todas as suas principais acepções, só pode ser medular na
obra. Vide ,Hipotrélico- !(' " & ,
*#-com que o matuto faz suas criações (ROSA, 1985, p. 78). Até os emblemas gravados ao término
de alguns contos, nas edições José Olympio, têm o feitio de moedas; são, inter alia, também moedas (ROSA,
1968). A palavra de Rosa, por mais rico que seja seu pecúlio, seu patrimônio, seu espólio e as Terceiras
estórias são lidas como testamento estético , compara-se, tal qual a do rústico, a tuta e meia, tostão, pataca,
mixaria. A palavra é a moeda que o ficcionista, como cada sertanejo criativo, se esforça por transformar em
poesia, ainda que ruinosa.
42
Ver também ROSA, 2003b, p. 86. Não admira que Rosa fale pouco publicamente e presuma e tema que seja
tachado de doido ou charlatão (COUTINHO, 1983, p. 72).
75
linguagem lógico-"'&0 %# ## "# Corpo de Baile, Guimarães Rosa
comenta de modo válido também para Terceiras estórias:
(Perdoe-me, carreguei na mão. Mas é que é perigoso tentar sondar essas
anfractuosidades infra-lógicas, hiper-sensoriais, elas contagiam-nos, e
1#$% ""2 &*) + % - # " "#$..)
(ROSA, 2003b, p. 104, os negritos são meus).
Esta /%#0que é Tutaméia43 azouga o leitor (intelectualista) quando se
propõe como obra que não se lê cardinalmente a partir do senso ou do juízo, se bem que estes
não estejam fora da jogada. Também o leitor é chamado a ficar com a cachorra; a não
somente ler, mas, principalmente, ouvir pintando e repintando o diabo: prestando mais
$*)!%( "
/""#$!% # a signifa0
(ROSA, 1985, p. 44). Em outras palavras: a leitura dos traços afetivos ou suprassegmentais,
como a cacorritmia de que falei acima, é importantíssima não simplesmente porque assim é
com toda a literatura, mas porque o livro incita o leitor a sobrevalorizá-los.
O uso, na carta de Rosa a Bizarri, de uma expressão idiomática em que há uma
referência à cachorra vem bem a calhar: em certa perspectiva, é exatamente algo próximo do
que seria uma percepção animal, isto é, infralógica, o que se reclama.
Muitos dos
personagens de Terceiras estórias/-##$�possuem-na (DANTAS, 1975, p. 59). O
atormentado e isolado Jenzirico intui um não sei quê provocativo no bizarro e soturno som
$##$$$ #,# / Coooó! Cóoo... escutando. Teria disposição de
repetir m"$ 0
Claro, essa via extralinguistica não tem mão única. Por
ela, é tão possível receber mensagens quanto expedi-las. Bio inveja Nhô da Moura porque ele
&" & / #$# " !%-sabe só por afetos de pensamento0
1985, p. 146).
Como toda habilidade comunicativa, também esta é uma forma de poder. E, aí, existe
lugar para ambiguidades. Dar de ouvir mais o modo que a parla pode redundar em
43
Aproprio-me de linguajar do autor. Cf. ROSA, 1985, p. 178.
76
enfeitiçamento, cegueira e escravidão. Seria o caso de Terezinho, que, cativado pela
suspeitável Dlena, a escuta 0 #+&'" &'" &(&#!&" " " (m bicho inclina o
"()"1
# %"% &(& #)%& 0de cor1, 0fonográfico1 (ROSA,
1985, p. 27, o negrito - ( 0" "'&((%1, o narrador raciocina sobre o poder
ludibriante da fala repetida e também, pode supor-se, da oralidade como um todo, do que há
! !," & !' 0 !," - $( ( %#& %. - " $( "() "!'% )* "
verdadeiro avis'"1
# Não é desta força da oralidade e da repetição que,
dentre outros elementos, usufrui Jó Joaquim? Enfim, ainda que esse tipo de escuta não se
absolutize, como se dele não derivasse erros, é, via de regra, por orelhas espiritadas que
adentram segredos profundos. Dois últimos exemplos: sob cochilo, torna-se audível a Gedeão
a passagem evangélica que lhe muda todo o destino (ROSA, 1985, p. 89). Apesar de pô-la em
prática, inicialmente, à letra, não deixa de antenar-se com seu espírito, rúach0&"#%"&"!"%"1
como traduz Miguel de Unamuno no seu prólogo d2O Zohar: o livro do esplendor de Ariel
Bension (2006, p. 35).44 O já mencionado Lucêncio, também entre dormida e despertez, capta,
no próprio mover e bater do relógio, seu negativo, o repouso do não tempo: 0&(')
enluvadas as pancadas, de extramurada sineta, sem choque ou música. O relógio seus
""$(&%#' !&&' & "%1
#
suma: Tutaméia
é livro opaco no qual se colam os tímpanos, tal como faz o louquinho junto à parede maciça e
dura a fim de ouvir o ruído do nada. Parede que, a propósito, acrescenta o prefaciador, emite
0#"%&"!&&"!&1#"&"(!)%&"0- cheio de silêncios barulhentos1 (ROSA, 1985, p.
16).
Faço a transição da audição para o olfato, pois Tutaméia é também obra que se respira
$(&." &'('&!%!&0) ( '(""%1
44
O aéreo é motivo sobressalente em Terceiras estórias.
p. 207). Há qualquer
77
coisa neste além dos aviões da Panair (ROSA, 1985, p. 12).45 Mais uma vez, muitos dos
sertanejos ou homens simples de Rosa são especialistas nesse quefazer; há contraexemplos,
sem dúvida, como seo Isnar; aos olhos do narrador, ele é mais empedernido que os paquidermes que mata; sua sensibilidade desajustada projeta-se nas letras bagunçadas de seu nome,
anagrama de nariz. Onomasticamente o caçador parece ser o antípoda do cigano Cheirolo,
também senil (ROSA, 1985, p. 210). Já outro personagem, Doriano, *(0'5$#$$
'6 (* '($!*0/$
%
( " &* #ota humorística e irônica da página
anterior, () $#()%$ )# 5#*!$ (%3')$ $ &* -'6
%
'" 5 (* #'- #$'#)6 $! 5%$'0/$ "$+"#)$( " %/$ #6 ROSA,
1985, p. 205); ele, #)'$($!')"*)($((5,%'$'6%$(5#))" de
surto viver aos trechos6
% . $* 3 5#&*) $"$ *" #'-
$!#$6%5$'um chamado: ##*1""(+!$-&**"+$-6 (ROSA, 1985, p.
194 e 196). Aqueles que convivem com Sinhá Secada, em dado momento, são instruídos por
ela 5*"' $$&*#"((6
% $$#)'.'$&*$$($
$"1"((($"*()##*1"5)+'6
sucederam 5' &* $#)6
% "*)(('0s se
5, p. 20). Do que não se pode descurar é do
5($%'$ $ "$6 (ROSA, 1985, p. 56). Por isto, a( 3!( 5%$)2#(-do-ar6 (/$
esconjuradas pelo padre naquele conto cômico-#).()$ "$ 5"( $'"(6 (ROSA,
1985, p. 202). A insistência da escrita é tão grande que não deixa dúvidas. E, diga-se de
passagem, o conduto nasal tem sido tema de humor ou espírito nas letras brasileiras desde
Machado de Assis, ao menos, passando por Lobato e Clarice, sempre com sentidos diferentes,
claro. Neste contexto de cá, o que se pede é que o leitor afie o seu nariz e capte o sutílimo das
coisas.
45
A própria ficção, e enquanto verdade histórica, ()'5($!)#$ ar #$'%(3&*$6
178). O que fica, é óbvio, entre o mistério, o humor e a loucura.
p. 177-
78
Mas essa escritura que cheira a(o vazio do) sertão, particularidade que Guimarães
Rosa amava encontrar na literatura alheia (DANTAS 1975, p. 101 e 104), é também
degustável. Livro-pedra de que se ti".$!%&* "$%/ SA, 1985, p. 7),
ou texto no qual se digere com dificuldade hermenêutica o prato inacabado que o maluco
mestre-cuca preparou a partir de uma massa de farinha de trigo crua e seca. Seu caráter de
sustância é certament()!%. */!% "% $"$+*
de fios emaranhados e é servida, por exemplo, como sopa; no caso, sopa de letrinhas sem
letrinhas.46 Como vários dos críticos rosianos já o notaram, a-letria pode conotar ausência, ou
melhor, rarefação de letras, de sinais gráficos, apontando, então, para o estilo ensimesmudo da
obra (ROSA, 1985, p. 36), no qual sobreleva a dimensão paralinguística de que agora falo.
Imagens de alimentos, ou outras ligadas à culinária ou à cozinha, são marcantes em Terceiras
estórias, embora tudo seja discreto. O arroz, por exemplo, surge, no mínimo, em três
""$&# . %("/
. "$+*/ (ROSA, 1985, p. 125) e
."#&$%"/ (ROSA, 1985, p. 194), mais ou menos vinculado a uma espécie de sítio
edênico, que pode ser, inclusive, o lugar em que se está, posto que não se saiba. A cozinha é
o espaço da mistura e do sabor assim como a poesia. Zito, que tem sabedoria digestiva (pois
rumina e saboreia bem seu orbe sertanejo), traz .()*"*/
, . % $ '" " # o maior guieiro e dado em poeta/
1985, p. 179). As três funções cozinheiro, guieiro e poeta são cambiáveis entre si.
A guiagem nem sempre é tão positiva quanto a de Zito. Se não por malícia ou maldade
do guiador, por ignorações inevitáveis. Perdidos guiadores são muitos dos inventadores e
narradores de Terceiras estórias, fortemente ancoradas na ideia de (des)orientação. É o conto
!%"&" #.Aletria e hermenêutica/!%( ""$ "+*#$
46
O Leitmotiv da sopa, como refeição pedrenta, tem iteração importante no encontro dos soldados famintos com
a velha sovina (ROSA, 1985, p. 14). Na verdade, o livro é, todo ele, organizado em motivos. Vera Novis (1989,
p. 24, 25 e 114) fala em recorrências metafórica e temática.
79
ponto em diante, todo narrador (e, para trás, o próprio prefaciador) terá algo de meio-cego que
(des)encaminha outro meio-!( ( 9 ,('"#( %#-(+ #-( %# & ='-#)+#)%6#>
personagem (ROSA, 1985, p. 21). Sim, porque Prudencinhano, guia não totalmente confiável,
tanto sabe quanto dessabe (ainda que, certas horas, apenas finja desconhecimento), tal como
os que são por ele levados: Seô Tomé e aquele que lê. O fim de Seô Tomé é o precipício, e
não é muito diferente o que ocorre com Prudencinhano e o leitor, embora, para estes, a queda
seja metafórica. Malgrado os mortos e feridos, talvez seja também no fim, no abismo, que a
coisa (re)comece, pois o buraco do nada sempre pode ser vão para nova estória.
Com tudo isso, já se vê que Tutaméia 6 %#/+( *. , %7 (&( !( & =--
conce'-+54(> alfim, é muito possível que se tope com outra coisa que não a que se pensa
*. .,
) ( ('-( =Intruge-,> #/+-#( )%( *. -&
sertanejamente detetivesco, Ladislau, logo após misterioso crime, resume bem a enrascada em
*. , '('-+ = %!.6& ( +-( ,(.,, '4( #1# (. ( &.#-( *.e diziam não se
)+(//>
) = como se saber o que não se arrazoa nem se
#'-+.!>
) ('-+-(&-&2-#,#'/,-#!5:,(,+-# 8#(
empregado meio instintivamente pelo boiadeiro drede distraído (ROSA, 1985, p. 83)
consiste em apalpar a mão de todos os suspeitos e disparar aparente lero-lero, papo furado à
&'#+ -.-&# = ?+2 ( ( +4, *.#+ +%"@ >
)
Conforme se afirma em outra estória, o )+#'#)%=*.%*.+)+!unta nela quase nunca se
contém>
) #,%. -& ,-;# #'-+ &#'"(, -+'(, ,
tatear uma coisa, indagando por outra. E não é que funciona? Serendipity. Por esse toque
meio-refletido-meio-desatento (e, no momento do desfecho, ainda mais desprevenido que
antes), Liocádio é pego e acaba morto; quase que por si mesmo se delata.47 Tudo isso lembra
47
( ,+ *. ( ,.,,( #,%. , / 3 (#'#7'# 0#,- -6 .& ,,+-( =+,)> *. #1 (
,!.#'- =&,)8+#-(!'-'#'!.6&#'-+.$> )
80
a senha sertaneja de Guimarães Rosa e Paulo Dantas (1975, p. 35, 97 e B/3$$3/3$0-
é tocar na mão #-1$3" 072$0C48
Não obstante, no fundo, a narrativa não buscava esta resposta: a identidade do
homicida. Ao final da caminhada, Ladislau sai com novas perguntas e parece menos um herói
que acaba de desmascarar o assassino do que um simples vaqueiro que revê a própria
insciência: B> !-( 4 !( /3$, # 1 !( #$1(C
.
3#$2$2(ve da
estória será provavelmente o leitor que desconheça que aquilo que investiga às apalpadelas
não é o que por fim se soube, mas o que talvez venha ainda a destramar-se. Terceiras estórias
querem dar resposta é ao que ninguém perguntou (ROSA, 1985, p. 18). O artista parece fruir
esteticamente desse olhar enceguecido do leitor BoitivoC e BdedudoC
. );
&-6-1$+$*' ,2$ -# 1+3*'$0$1#-"$&-"-+.*$2-/3$#$*$/3(:7&-12 4 +B.-0#$* 1,$+
,9-.-#$0#$4 11 0 1%-0+ 1,$+%$(:?$1C
.
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gente vai nos . 11-1# '(12>0( /3$4$+C
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BAletria e HermenêuticaC principia 11(+ BSiga-se, para ver, o conhecidíssimo figuranteC
(ROSA, 1985, p. 8). E o fecho #-2$52-#(6BVeja-se, vezes, prefácio como todos gratuitoC
(ROSA, 1985, p. 17, os negritos são meus). De um lado, Terceiras estórias são escritas e lidas
às cegas por assunção humilde da invencível insipiência humana, e por certa técnica de
renúncia à evidência ilusória para palpação do invisível. De outro, elas demandam do leitor
uma 4(19- 0&32 . 0 1+ 0" 1+3# #(: 1$-14$12=&(-10 0-1/3 ,#-,9-(,1>*(2-1B+
+$,2$ #$ -*'-1 $*$ .0$,#( - " +(,'-C
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Ver no Grande Sertão: VeredasB$,(,-+$#$3 +9-$-/3$+9- +9-#(6;"302-814$6$1.-#$1$0-
+ (1 #(4(,' #-$"-,2$@#-(12-2 +!;+C . +B ($3CB$ .0$"(ava, cordial.
Me saudava segurando minha mão +9- #$ .$& 0 - .9-C p. 198). Acho graça e espírito no
(simbolismo do) fato de Ladislau tocar também o cachorro Eu-Meu (e ser por ele tocado). As fofas patinhas do
animal não escapam às apertadelas sensitivas e inquisitivas #-&3( #-0$0 120$ #-0#$1(, (1B #(1* 32 2$ 4
as patas do Eu-$3"-+4$0/3$1$+3(2-& 12 # 1C . DO mistério dos MMM, o literato
mineiro concebe uma velhota diletante na arte detetivesca que até emprega o método dedutivo de um Sherlock
Homes, mas ironiza-- B12- ; $1"-* 13.$0 # . 11 #(12 $+ -+- ; +$1+- 3*20 + ,) # vocês
#(6$+-)$$+#( . 0 4 *$019- 1(,#3:?$6(,' 1 *&3+ (,23(:9-C(ROSA, p. 82).
48
81
Ladislau rastreiam, no livro da natureza e da vida, convinháveis indícios. Nada fácil: às vezes
, ". &(&(*. :) %,)",%$'#, .&(.& '-(;
)
1(&(
sofre também o Jenzirico, sumido na droenha: mapas não existem e rastros não se dão de
achar (ROSA, 1985, p. 51 e 52). Neste universo de sinais escassos, insuetos, esotéricos,
(quase) invisíveis ou mesmo ausentes, dificilmente se polarizam visão e cegueira. Ao leitor,
-%/ 0 +.$-(:-()7"+!( -+$$('$,% $-.+,;
) 5' ,,2+$( cegar
ou inverter ou supraverter a própria perspectiva; fixar os olhos no hiato de todo traçado ou no
branco da página, por exemplo. O Jenzirico de há pouco segue o que não vê (ROSA, 1985, p.
52), e o prefaciador põe reparo no oco da letra enquanto corpo e formato, pictogr&:5
.&.+('3( ,.+(;
) De jeito similar, as estórias porfiosamente
se oferecem à vista como desenhos, ou melhor, rabiscos. Já no protelado romance A fazedora
de velas, o enredo é concebido como que visualmente e riscado em gráfico (ROSA, 1985, p.
175). Ações, eventos, tempos o mundo em suas tortas linhas (ROSA, 1985, p. 8)
formam bosquejo a ser contemplado e completado pelo leitor. Também os personagens
tentam decifrar os acontecimentos e, alguns mais, outros menos, refabulá-los: : + ,$'#(
clamou, queixou-se já as coisas rabiscavam-se;
) :7 (*.$&
genial, operava o passado plástico e contraditório rascunho;
:$+/$($',-'- $'- desenhos do horror [...].;
não surgira apenas: desenhou-se - +')+ &$&;
são ainda rabiscos +$'4, ,-(+(,;
)
)
)
)
:(+*. %
: Os sonhos
-((,(,' "+$-(,,3(
meus). Arquitetante como o seu anônimo mestre de obras, o contador entretém-se compondo
riscos da mesma fórmula em situação (ROSA, 1985, p. 170) e tempos que se parafraseiam
(ROSA, 1985, p. 48). Variações do mesmo no interior de uma estória: as traições da
)%.+$'(&$'% $/6+$ & : , '+ (; (, ,,,,$'-(, (, $+&3(, & :,, , () ,; ,
$'"48 , $,%. & :'-+." -, ; , +-, $$ & : / % ( $(; (,
82
! *!!!"!,Sobre a escova e a dúvida-!!,-a--, %
"-
" ações do mesmo entre as estórias: os casos com
belas bruacas, os amores triangulares (com ou sem maridos cornudos), as festas ou festanças,
as chegadas e partidas de ciganos, as viagens com a boiama, etc.
O paradoxo de Terceiras estórias como obra-rascunho ou esboço-lapidar é
fundamental. Um abreviado, sim, mas de tudo (ROSA, 1985, p. 166). Visão miúda, sim, mas
ante vasta estrada (ROSA, 1985, p. 207). Se, por um lado, uma obra perfeita é impossível
(ROSA, 1985, p. 168 e 169), por outro, nada há aqui de garatuja descuidada, muito pelo
contrário. Das estórias, o autor pode afirmar que as fechou redondas e quadradas (ROSA,
1985, p. 42). O traço tortuoso, o risco mal debuxado, '"#!"# ,#
texto alvo novamente, sem trechos, livrado de enredo, ao fim de ásperos rascunhos-
# ) ( ""# ,! &! #"'-, conta que
Guimarães Rosa lhe segredara que
dava a maior importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo
perfeito não obstante o que os contos necessariamente tivessem de
fragmentário. Entre estes havia inter-relações as mais substanciais, as
palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se
podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem
desequilibrar o conjunto. (ROSA, 1985, p. 216).
Sou da opinião de que as observações de Guimarães se fazem tanto mais pertinentes
quanto mais se tenha relido Terceiras estórias e vice-versa, pois só depois de várias travessias
se torna possível vislumbrar coerências tal é a ilegibilidade pacientemente construída. De
modo algum, contudo, o texto perde essa feição de quebra-cabeça, essa tensão entre unidade e
fragmento, pois, justamente, ela é constituinte daquela totalidade de que fala o autor.
Em Andorinha, Andorinha, o autor mineiro aparece e, de certa forma, como acontece,
$ ,Sobre a escova e a dúvida- ,Aletria e hermenêutica- " !
personagem. A menção do livro em Tutaméia (ROSA, 1985, p. 15), por sinal, tem o sabor de
potencializar esta mistura de realidade e ficção: como num livro dentro do livro, o
83
personagem-autor de uma obra cita outra em que figura como personagem-autor. Mas, enfim,
Manuel Bandeira (1993, p. 694), depois de deparar-se inesperadamente com o contador
O
, vespertino em que foram publicados previamente alguns textos de Tutaméia, como
Nós, os temulentos:
Eu desejava saber, para meu governo, o que Rosa está sentindo diante dessa
obrigação hebdomadária de um estirão de jornal assinado por ele.
A resposta veio pronta: Angústia. Concluí imediatamente: Rosa não é
jornalista.
[...]. Rosa nunca escreve senão caprichado. Por isso, mal entrega a sua
colaboração da semana, começa a trabalhar na da semana seguinte. Ora, uma
semana não dá para Rosa caprichar nas suas invenções verbais [...]. Daí a
angústia. Rosa confidenciou-me:
Começo a escrever, um mundo de coisas, idéias, imagens, reminiscências,
me acodem. Escrevo cinco, dez, quinze páginas. É preciso reduzir a três.
Começo a cortar, começo a corrigir. Aí tomo gosto. Nunca se acaba de
corrigir. O meu desejo é então continuar a corrigir até o fim da minha vida.
Mas há que entregar os originais. E no dia seguinte recomeçar coisa nova.
[...].
[...]. Escrever para jornal é como escrever na areia. Rosa não escreve na
areia: Rosa grava na pedra. Para a eternidade. (BANDEIRA, 1993, p. 694695).
A imagem do rascunho infinito, gostosamente angustioso, está cerzida àquela da
disposição misturada, entre feliz e desinfeliz, que enforma o ponto de vista de Terceiras
estórias; ambas, porém, agora de modo mais nítido, na intimidade do trabalho criativo, no
próprio processo, e não apenas no produto. Não será difícil ver nessa ânsia de reescrita um
medo obsessivo da morte ou do que há de definitivo na vida, emparceirado com um apego
afetuoso ao mexe-mexe da vida e ao infinito próprio da morte.
O gesto da correção, não só literário e artístico, é constituinte também da filosofia
transcendente de Guimarães Rosa (lúdica, fragmentária e não doutrinária). Ele, na entrevista a
Günter Lorenz, declara que, pela escrita, deseja aproximar-se de Deus, às vezes,
demasiadamente:
Isto provém do que eu denomino a metafísica de minha linguagem, pois esta
deve ser a língua da metafísica. No fundo é um conceito blasfemo, já que
84
assim se coloca o homem no papel de amo da criação. O homem ao dizer: eu
quero, eu posso, eu devo, ao se impor a si mesmo, domina a realidade da
criação. Eu procedo assim, como um cientista que também não avança
simplesmente com a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o
cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e,
quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem.
(COUTINHO, 1983, p. 83).
É plausível que haja blasfêmia devido ao alcance que se dá à liberdade do querer e do
agir do homem. Entretanto, por mais heterodoxas que as palavras pareçam, não estão tão
distantes assim das grandes tradições religiosas do ocidente ou do oriente. O judaísmo, por
exemplo,
permite ao homem dizer o que quer que seja a Deus, contanto que seja para o
bem do homem. [...]. Tudo depende do lugar em que o rebelde se coloca. De
dentro da comunidade, pode dizer tudo. [...]. A revolta do crente não é a do
renegado, eles não falam em nome da mesma angústia. (WIESEL, 1979, p.
88).49
Basta trazer à mente personagens bíblicos como Jó, que tem "$%!&,"!-
Moisés e Davi. É este último o modelo que torna possível, já no cristianismo, ao padre
Antonio Vieira (2000), por exemplo, em sermão atrevido, mas relativamente ortodoxo,
imprecar e litigar contra Deus, retificando-o, ao defender que não deve continuar permitindo
as derrotas portuguesas.
Seria convicente dizer que, também para o Guimarães Rosa de Terceiras estórias, se a
divindade criou a realidade, de certo modo, apenas a bosquejou. A escrita simultaneamente
esboçosa e esmerilada, precisamente imprecisa, não seria, sob determinado ângulo, uma
recriação dessa linguagem de Deus e do mundo? Se sim, é tarefa do homem obrar sua própria
felicidade, remendando e rematando livros e coisas. A interdependência entre as ações
humanas e o Céu seria, ainda assim, estreita. Se essa criatura imaginada por Rosa tem força
ideal e espiritual para guerrear contra o destino ou, conforme diz o contador ,!!-das#"-, fazer vingar, ao menos uma vez, a graça e o encanto no universo sertanejo, pode
#) !""$!!'#*"" ,!!("!-
49
Também na mística judaica existe a ideia da correção da Criação (WIESEL, 1997, p. 60, 61 e 106).
85
Zito, #!&-de-!""%'
olhando como lagartixa (novamente a comunicação pré ou ultralinguística), diz ao doutor:
A coisada que a gente vê, é errada... queria visões fortificantes
Acho que... O borrado sujo, o sr. larga na estrada, em indústrias escritas isso
não se lavora. As atrapalhadas, o sr. exara dado desconto, só para preceito,
conserto e castigo, essas revolias, frenesias... O que Deus não vê, o sr. dê ao
diabo. (ROSA, 1985, p. 182-183).
Terceiras estórias estão a léguas dessa concepção didático-moral da obra de arte como
objeto que aciona a coisa errada em controlada medida e para consertos bem determinados. E,
se não são de modo algum alheias às ideias de borrado sujo e visões fortificantes, propõem
correção interminável que propende antes para a estética e a mística: do prosaico ao sublime.
Quanto à ética ou moral, está, via de regra, a relativizar-se ou encobrir-se ou enigmar-se.
Provavelmente certo é que, para o Guimarães de Tutaméia, mais trágico que a própria
tragédia é a míngua do sublime ou do poético ou da palavra: o homem que à sua desventura e
a si mesmo, de algum modo, não transcende. Na imago mundi do fabulista, não seria este o
seu grãozinho de ética? Atente-se ao caso do padrasto de Melim-Meloso, que vive na
&'$" &! e ""'
Trata-se da importância da
mirada que conserta ou engendra a realidade, ou porque tem pressentimento ou consciência
de seu caráter ilusório e o manipula (e aqui a própria mágica pode ter a sua carga de
negatividade), ou talvez porque, misteriosamente, enxergue o que é, aquilo de que ninguém
teve notícia. É o que se daria com o Quim chinês e o Romão, que abstraem o feiume das
esposas:
Yao amante, o primeiro efeito foi Rita Rola semelhar mesmo Lola-a-Lita
desenhada por seus olhares. A gente achava-a de melhor parecer, senão
formosura. [...], mudava de cúpula a fundo. No que o chino imprimira
mágica vital, à viva vista: ela, um angu grosso em fôrma de pudim.
Serviam os dois ao mistério? (ROSA, 1985, p. 124).
Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso mais
verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados viam
também, pedacinho de instante: o esboçoso, vislumbrança ou transparência,
o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a
luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria. (ROSA,
1985, p. 95).
86
A questão da visão é de absoluta primordialidade em Tutaméia. Abarca
complexamente os motivos e temas mais variados.50 Meu objetivo é apenas assinalar que
essa obra-esboço invita não somente a ser lida, senão também vista (em seus gráficos de
enredo, por exemplo); e mais: revista por múltiplos ângulos, entrevista, imaginada, intuída,
contemplada.51 Logicamente só pode intuir o infralógico ou o supersenso quem olha como
lagartixa ou sobrevê. É apenas de sua fenestrinha que o ledor, tal como prisioneiro, observa.
Contudo, &*#/$((%'#6(*)!$%$()$enxergar, de nada7
p.
140); assim também o alienado se planta ao pé da parede para espreitar os silêncios. Sim,
porque louco desafio é este o de sair do enquadramento saltar espacialidades e
temporalidades. Além disso tudo, e por outro lado, este livro gaiato parece não só dizer que é
ou deva ser visto, mas que também vê. Eis aí mais uma de suas viradelas. É como se no
buraco central de Tutaméia (e o centro é qualquer parte) houvesse um olho, às vezes, cegante,
que olha e é visto. O leitor lê e é lido pelo livro, se souber inverter a ótica habitual. Tal como
# ! "" 6 ($! "#/ 1 ##$($ " $ "- $ $ #+#)-se, invade a
quadrada abertura por onde ele é avistado e vê, fen()'7
palavras d$#''$'6Estori #7 6$ +'$ + ()$7
p. 139). Ou nas
% 52
Mas, então: que tipo de destinatário prevê a construtura do opúsculo rosiano? Pelo seu
discurso alusivo e fragmentário, não demanda mistura de erudição, raciocínio denso e
intuição? Não reclama, pela sua língua inatural e difícil, inevitável distanciamento? Não
Vide ),)$($"$6+!$ $76*' #$()2' 76)')$+!$7, 6*(' %'($#"7,
6Sobre a escova e a dúvida76Nós, os temulentos76"($'"(7.
51
Do conto 6*' #$()2' 7 5, p. 138), radia toda uma gama de nuanças conectadas à visão:
ver, apreender, divisar, olhar um objeto centrando-o em moldura, espiar, notar, espreitar, transver, contemplar,
avistar, enxergar, descortinar, perseguir ou surpreender com os olhos, ver por um vão, perceber, reconhecer, etc.
Cf. o passo meio-sério-meio-3" $ $ $#)$ 6 (%!$7 6%'+ $" )$ ($') ()4 ( $
rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de
pálpebras, a tocaia com a luz de-'%#)($(.#*!$(+' $( #((#)"#)7
%
52
"6*' #$()2' 7$($!" "1+ #)"6Nós, os temulentos7'*" ,$1$!$(
(ROSA, 1985, p. 115), num patente aproveitamento e alteração !$*0/$ ()'$) % 6$!$ '*7
interesse rosiano por este idiotismo vem, ao menos, desde o Grande Sertão, em que a via pública, o caminho de
todos e a marca da civilização (ROSA, 1986, p. 342), é lu'$'"*#$ 6$* (($,%$'%'('$)
#* #$ $!$ '* 7
% " 6)! 7 Primeiras estórias, Herculinão morre
)%#$$6$!$-da-'*7 %
50
87
envida, pouco a pouco, pelos sortilégios próprios da (sua) arte, pelo próprio mote instigante e
desafiador do prefácio, a uma empatia a-feiçoamento que se disponha, por jogo que
seja, a assentir às proposições e pôr a máscara do outro, personagem ou narrador? A abstração
do livro, aguda e inegável, não engana: a obra solicita, exigente, como toda grande literatura,
a pessoa humana por inteiro, e não apenas cérebro, alguma mutilação do tipo homo
intellectualis. Pede por um grão de malícia e outro de inocência, crime inevitável nessa era da
suspeita. Ainda no prefácio, o humor e a ironia, por exemplo, não estão a serviço da
afirmação da verdade do escritor (ainda que mirrada e ressequida), do magnetismo e da
neutralização de réplicas (daquilo que a retórica chamava outrora captatio benevolentiae) e,
contraditoriamente, da incitação à crítica? Enfim, sem desprezar o papel dos aspectos
concretamente sensíveis, é possível dizer que Terceiras estórias trazem em si leitor implícito
que lê abstrata, metafórica e misticamente com o nariz, com o ouvido e com o estômago, mas
também com os olhos e o tato e com toda sua surdez e cegueira; e aquilo que se experimenta
tem, muitas vezes, a sustância de nada. O leitor real não está obrigado a incorporar essa
imagem obviamente. Esta abertura é constituinte da própria obra, cuja forma de pensamento
encerra a sedução, mas também a contradição e o limite autoinquisitivo, a sugestão movente e
dialogante. Sem embargo, aquele que lê pode também escolher (legere) participar dessa
representação, a fim de provar a linguagem tal como o autor esteticamente a deseja e concebe.
O processo de significação que eu vinha explicitando relaciona-se, em parte, com
aquilo que Umberto Eco (2006, p. 37) chama de semiose natural ou popular.53 Motivada, não
intencional, encontra-se ela em oposição à semiose da palavra, convencional e arbitrária. Tal
'#" %(
!
vinculada aos signos ditos naturais, aos sintomas médicos e atmosféricos, aos traços
53
Como bem me indicou Yudith Rosenbaum durante a qualificação, o leitor poderá conferir como outra
contribuição $ ' $ !(
Ginzburg (2003), texto que, à época, eu não havia lido. Em linha bastante diferente, mas também aproveitável,
estão Os sinais sagrados de Romano Guardini (1995), teólogo conhecido por Rosa. Cf., v.g., o capítulo sobre as
mãos.
88
fisionômicos e também àquelas linguagens que, conquanto não sejam propriamente naturais,
*%,%-%9'%(,5&#&+,*$#&+,#&,#.)-(*,&&2'(&+'+'-,'+%+
também '+ "-%#$+:: os signos indumentários, as posturas corporais, as representações
pictóricas, as encenações folclóricas, a liturgia (ECO, 2006, p. 37). 9;'%<$,#%$#,-*!#
não é uma linguagem falada; é canto, fórmula, salmódia, gesto, não diz, logo não pode
$+# #* $ '%' -% *'-( -% &' %2' -% /(*++2' ' *'+,' :
2006, p. 40).
Como não evocar neste ponto, e a título de ilustração na obra rosiana, as cantações dos
#!&'+%9*61!-'*#':)-+2'9(*-%&,*)-&,#%'*:9%'3'
recitava, o mais velho cabeceando qual a completar os dizeres, em roméia, algaravia de
enga&' +&2' + +&,#* (*#%#*' )- &,&*:
(
Para preencher
subliminalmente os ocos da cantiga, valem (o ritmo d)o corpo e o silêncio. Num diálogo com
esta passagem de Tutaméia, é o que ocorreria também na estória de Sorôco. Ali, uma das
mentecaptas, a filha, canta, e a outra, a velha, acessa o mesmo embalo amalucado, sincronizase com ele, batendo '%39&'+'%&,+:(ROSA, 1988, p. 19).
.'$, ' +%#6$'!' 9-$ 4 '#+ )- % $# &2' %&, - #*#
eminentemente, aquilo que não é oral, mas visual, e se for oral, é da ordem do paralingüístico,
do supra-+!%&,$','&5%#'#& $/7+.'$-%+*#,%'+.'0+: ( 37).
Na verdade, bem esclarecidas as coisas, assim como a semiose artificial, essa outra também
induz ao erro; na própria obra aqui estudada, já irrompeu o problema com o complexo caso de
Teresinho e o '%&,1*#' ' &**'* 9'%' , +--*#: sobre os engodos da
oralidade. No parecer de Umberto Eco (2006, p. 31), o desvio ocorre somente quando a língua
que rediz e interpreta macula o sentido, ou quando a interpretação é obscurecida pelas
paixões. Assim, a semiose dita, por isso mesmo, popular mostra-se, aos simples, mais
confiável e compreensível que a da palavra. Quando eles aí se equivocam ou são
89
embromados, sentem-se mais vulneráveis: 1' (! ' '#"! "(! )&
porque esta impõe uma sintaxe lógica que a semiose natural suprime, dado que não procede
$#& '%.,"' "&' !' $#& 3%(&#'4 $#& ( !-"#' #"# #!'2 $
38). Leia-se, bem a propósito, em Tutaméia, a observação '#& &! 1'''# )
$ -"(#!+#"('*#2
$ A pouquidão de palavra é, na
realidade, característica da obra in totum, e não apenas de um personagem. Terceiras estórias
subscrevem a essa suspeita da língua tão típica dos simples, de acordo com Umberto Eco.
Confesso que não estou convencida da exatidão de todas essas ideias sobre os modos
de comunicação não verbal em sua relação com os signos. Elas inclusive se tornam tanto mais
defensáveis quanto mais tomadas sem esquematismos, como o semiólogo tende a fazer.
Todavia me interessa antes sua funcionalidade para pensar Terceiras estórias, o que
igualmente depende de relativizações e nuanças.
Chega a ser impressionante o quanto o livro rosiano insta de seu destinatário tal
habilidade de leitura, o quanto aprecia induzi-lo a considerar que soluções importantes a partir
daí se abririam o que não é tudo, pois outra expectativa geral (cristalina ! 1Aletria e
hermenêutica2 1Hipotrélico2 1Sobre a escova e a dúvida2, por exemplo) é a de que o
receptor seja, como o próprio autor, um erudito, presumivelmente um intelectual acostumado
às artificialidades da linguagem e ao pensamento lógico-reflexivo, conceitual. A tradução para
este último daquilo que, conforme Rosa, está para além ou aquém dele o almejadíssimo
deciframento é conflitante e talvez tanto mais, justamente, para essa persona ambígua do
leitor implícito, espécie de duplo do autor: analista meticuloso ultrassensível, no entanto, ao
paralinguístico ou ao não linguístico. Inevitavelmente o intérprete, tal como fantasiado e
forjicado pelas táticas da escritura, se abeiraria de um paradoxo insolúvel ou de um delicado
equilíbrio, experimentando, de seu lado e a seu modo, impossibilidades similares às do poeta.
Para este, o mais sedutor comentário de Tutaméia seria provavelmente tutameico; um koan
90
quem sabe; ou um texto perpassado, em boa medida, pelo insight e pela mudez (note-se que
falo de sedução, e não de validade). Sob este ângulo, a obra é uma provocação à crítica
institucionalizada ou à hermenêutica racionalista e logomaníaca.
De qualquer maneira, a opacidade da obra, que nada dá de mão beijada, deve muito a
! #Cordisburgo comemora centenário
$ parece reproduzir uma conversa entre o escritor
mineiro e sua filha:
Vilminha, vou te dar uma dica de escrita. Sabe o que é mais importante
na hora de escrever um conto? É o começo.
Por quê, papai?
Para a pessoa se interessar e ler inteirinho. Agora, me descreva o que
você está vendo.
Uma moça alegre e bondosa, papai.
Nada disso. Vilminha. É uma moça de vestido amarelo. Se ela é alegre e
bondosa, você vai falar depois. Na primeira vez que você descreve alguém
num conto, diga só o que você vê. Entendeu, Vilminha?
O procedimento é quase este, pois é mais intrincado; no diálogo está descrito
ligeiramente, em grossa pincelada. Na verdade, não se topa com um padrão de discurso em
que as informações exteriores ou sensoriais sejam iniciais e repetidamente seguidas pelas
outras (intelectuais, psicológicas, etc.), entendidas como que de ordens distintas. O método
seria por demais primário. O que há é uma relativa abundância dos indícios próprios da
semiose natural mediados pela escrita em um texto, como um todo, de parcas
informações. Tais ícones ou índices se imiscuem, então, de modo sibilino, no texto poético
(cuja linguagem já é, genericamente, motivada). No arranjo dessas imagens fulmíneas,
nenhuma gramática, nenhum sistema avistável a olho nu. O que se destaca à primeira,
segunda e terceira vista são as suspensões. As pontes são amiúde frutos do esforço, do arbítrio
e, justamente, da intuição.
Em alguns casos, o autor ou o contexto fornecem ou parecem fornecer um caminho
para a hermenêutica das pistas ou evidências: movimentos, posturas, tons de fala, sintomas,
91
trajes, coloridos ou matizes, toques, cheiros, etc. Para o leitor, nunca se esgotam os
significados ou se desfaz o enigma (do porquê) do registro. Um mesmo sinal, em passagens
diferentes, pode estar a pedir senhas decodificadoras as mais desiguais; nada há de
petrificado, posto que haja espaço, no que toca aos movimentos corporais, principalmente,
para algo limítrofe à ritualização. Seguem-se as citas, com sublinhados meus (os itálicos são
sempre de Rosa); também algumas notações, sem qualquer pretensão de univocidade e
completude, entre colchetes e em negrito. A penca de ilustrações, cansativa, serve à
demonstração do papel estrutural da técnica e de sua intratextualidade milimétrica, como em
+# /%+(!,)(! !$)0
& #!) % &%( )-$*) )))
figurações rosianas ficará evidente no contraste com meu palavrório explicador. Começo com
um exemplo canino. De acordo com o que foi exposto, os animais rosianos apresentam-se,
vira e mexe, como ledores também:
/ %((%sabia que So Lau assoviava era por espairecer, não para o chamar0
& /(%! 1Esta é bonita, a mais!2 a ele afirmei, meus créditos. O
cego
amaciou
a
barba0
&
[Possível
marca
de
ponderação/análise/desconfiança e apetite sexual]. /$*$+ &"% '+ $*) palpou a
barba, de incontido brio0 &
/Suspirei junto: 1Estou para nascer, se
isso não faço!2 rouqueei desfechada decisão0 &
[Suspiro como
aparente expressão empática de um desejo ansioso e esperança renovada a partir das
cinzas. Rouquidão como manifestação de uma gana profunda, arroubo e deliberação
grave, quase solene]. /Macilento, tez palhiça, cortada a fala de ofegos, mostrava indiferença
ao escárnio %) %$$%)0 & [Sintomas do estado físico e
psicológico do mórbido palhaço, cuja boca verde, aliás, liga-se à palidez]. /%(!$%não se
coçou. Tomou bom fôlego.0 (ROSA, 1985, p. 187). [Prováveis sinais de aceitação do
92
destino indesejado].54 :Sem cabaia, sem rabicho, seco de corpo, combinava virtudes com
mínima mímica ;
, p. 123).
[Indicação de despojamento e
desprendimento, sobriedade e humildade]. :*(4*olhava em ponto, pisava curto, tinham
-" "&*!".0-".+*).&'&!!";
+ [Expressões verossímeis da firmeza
do querer, diligência, prudência e humildade do personagem. Também do alto sentido
do cuidado ou responsabilidade que tem para com a esposa medusóide]. : (0'%"- !"
Zepaz piscava outra vez, na janela, primorosa sem rubores;
+
[Linguagem de sedução. A falta de algo expectável é, novamente, expressiva]. :&$-&3
disse, que viu, que piscou: <Remexam nos dobros dele, que o assassino ele era, por algum
trato ou furto!= ; (ROSA, 1985, p. 85). [Expressão encolhidíssima da culpa, medo,
nervosismo ou insegurança do assassino, que treme a pálpebra e se denuncia].55 :*-6(
tardava-os, com a indecisão falsa do zarolho e o pigarro inconcusso da prudência;
+
:"+3 se irou, ranhou pigarro;
+ [Para extravasar ou
controlar a ira]. : Ele nunca teve graça, o que divertia era seu excesso de lógica...
tossiu, por nojo;
+ :&*8 tossiu, para abreviar o instante;
1985, p. 121). :Sorria contrária [...] o nariz afirmativo, o queixo interrogador;
1985, p. 131).56 :*4*,0"-,0"encostou o peito à barriga, no brusco do fato, mesmo seu nariz
se crispou meticuloso;
+ [Possível reação instintiva de defesa, medo,
misturada a cautela e escrúpulos. O medo parece percorrer, minuciosamente, toda a
covarde anatomia do personagem]. :Cheiraram-se e gostaram-.";
+
:Seus bigodes ou a rustiquez roupa parda, botinões de couro de anta, chapéu toda a aba
2&./"'* 054*"./"-"*/&+!:)4*." *5-;)4*#3"-(")54*!"/&--!&)%"&-*+-+$-'$* 71"'
igualmente, no contexto. Neste ponto, de maneira mais precisa, é a ausência de uma mímica esperável ou
imaginável que se torna significativa. Na passagem seguinte, acontece o mesmo com alguns não traços
observados. E, adiante ainda, no próximo bloco de citações, outros exemplos surgirão.
55
A semiose popular estaria pintada aqui com certa comicidade, pois uma simples piscadela confirma a
identidade do assassino.
56
Contraversão de lugar-comum literário *( -73". ) ."(&*." )/0-' :,0"&2* #&-(/&1*; " :)-&3
interrogativo; +-&("&-* !"'". .*#-" 1-&54* (&. !&. -"/ "( :./*-&&)%; :* ,0"&2* #&-(!*;
1985, p. 65).
54
93
.,/&+$,( ,.,-(8
desabada8
)
)
7/ $(*. % () , chapéu grandão, aba
[Plausível marca da violência desmedida do
personagem]. 7Sentou-se com totalidade. Fez declarado o voto, como quem faz bodoque ou
um dique: 9Vou trabalhar mais não.: Sério como um cavalo de circo, cruzou pernas e
braços8
) 57 [Indícios corporais de folga e ócio que são também do
espírito]. 7,,(( 3(meneava e mais com fagulhas financeiras ao curto crédito e
trato de seu gesto. Entrava a remudado, lúcido luzente, visante. Tirou o chapéu de debaixo do
braço8
)[Suposta correspondência entre a energia corporal/hábeis
trejeitos e gesticulações manuais, e o dinamismo e a luz do espírito/a atividade
gerenciadora (manejadora). Ao fim, animada iniciativa]. 7Era ele pequeno fazendeiro,
suave trabalhador, capiau comum, aninhado em meios-termos, acocorado8
)
165). [Hipotético sinal de humildade, apego ao chão, geossensibilidade e/ou sossegada
estabilidade]. 7 9Tivesse tido um filho...: ao peito as palmas das mãos8
) 7$'#2 encostava no ventre o frio das palmas das mãos8
)
7$+trouxe ante rosto as mãos, por ímpeto de ato, pois já as retorcia e apertava-as
contra os seios; [...].8 (ROSA, 1985, p. 59). 7 ". i-lhe aos poucos o fio dos gestos, tudo o
*. ( 0& ,.&$,,(8
)
[A gesticulação dá margem a que se crie
fio de enredo a ser lido]. 7Fez o gesto de cansado; pensaram que era o de forte decisão8
(ROSA, 1985, p. 187).58
Em outros momentos, a aletria rosiana acentua-se, exigindo do leitor faro mais
inventivo; ainda um prato cheio para a Semiótica ou para a Cinésica. Exemplos com um ou
outro comentário mais simples: 7Escura a voz, imesclada, amolecida; modula-se, porém,
(, ( %$#5 7+.1+ (, +4(,8 !.+tar-se ao trabalho, o mais das vezes, de jeito visivo e decidido). O
personagem, hiperbolicamente, cruza-se (o voto é religioso) por inteiro: não só braços, mas também pernas. O
gastável do chavão seria fraco demais para comunicar a amplitude extravagante daquela inação e a força
irrevogabilíssima do propósito, curiosamente ativo: santa teimosia!
58
A hermenêutica errosa do movimento por parte dos outros personagens acaba por favorecer, à maneira cômica
e em tempo crucial, o semi-herói Doriano.
57
94
vibrando com insólitos harmônicos )* !'! "'- ),0%'*6 + 5'!
espontâneo se gemeu, mediante pragalhão, que meio puxava pelo nariz6 +
187). [Lamento imprecatório por incertezas somado a um gemido instintivo e ao
resfriado do personagem]. 5!'$*-*0+!-#0)/) *+!'*1'*!+!-/0-1+!'*&2*0
pelo depois, nos mal-ficares. Suspirava, por forma breve6 +
5Rão ora
gratuitamente embevecia-se em sua fisionomia quadragésima-quinta inclinada pessoa,
mais fraca que o verbo concupiscir. Tinha a cara de quem não suspirou6 +
5 7Eu não sei o quê.8 Suspirinhos6 + [Expressão do
sentimento do indizível ou do sublime, não parafraseável, pois aí cabe o infinito].
5Suspirava --!) * ! !.--!) * * 1'*6 + [De cansaço? De
frustração? De anseio? Ou suspirava simplesmente?]. 5! % % 3'/%( -/
esquecera-se de trazê-la. Ocorreu-lhe espirrar6 + [Em desejo provável
de expulsar de si, simbolicamente, o mal-estar do esquecimento. Ou haveria intenção de
dissimulá-lo, talvez até para si mesmo?]. 5!)$0(*$)!(0($ 7 8
fez. Sério. Dera um espirro para trás6 + 59 5 7Não posso é com o tal
deste rio!8 tanto tinha dito o pai, João da Areia. Sacudiu dos dois lados os cabelos e
somente riu, escorrido cuspindo6 +
cuspiu6 +
5Riu do que não sentiu; riu e não
5 Se bons e maus acabam de coração ou de câncer,
concluo em mim as duas causas... e coçava-se a raiz do nariz, isto é, o hilo dos óculos6
(ROSA, 1985, p. 130). 5,0!-% ter um relógio e arranja jeito de se coçar o fio das costas,
!./1.!(+-!(!%**("*(!6 +. 204). [Suposto sinal de mente e espírito
adaptáveis e flexíveis]. 5%*se coçava os dedos das mãos6 + 5 Você
evita o espirrar e mexer da realidade, então foge-não-foge... ele disse, um pouquinho
59
Quanto ao espirro, à parte o contexto imediato, mais importante, dicionários de símbolos, como o do Chevalier
(1995), fornecem pistas utilizáveis. Ver também Leonardo Arroyo (1984, p. 243).
95
piscava ;
(
(
:Plorava, que quase; só piscou depois;
:*,' &2' !7&,. ' )- $" .#&" (* (&+* &% .&# "* ' )-
precisava, só sacudia as pálpebras, com tantas rotações no pescoço; gesticulava para nenhum
interlocutor; rodou, rodou, no mesmo lugar, passava as mãos nas árvores;
(
104). [À revelia quiçá do autismo do personagem meio enlouquecido, exasperante para a
razão e para a linguagem enquanto máquina de produzir significados, trariam os
gesticulejos algum recado?]. :#+ (*/++ ' !-#'* '& *'&, )-% se acocorava.
[Plausível índice de confrontamento amigável]. Redizia: Correta obrigação... a barba
não o obstando de inchar bochechas;
( [Algum vezo ou cacoete ou
exercício (inconsciente) de Sarafim? Todos, de qualquer maneira, burlescamente
evocativos da tarefa-vocação de tocar o berrante, que, por sua vez, está posto em
analogia com a trombeta dos serafins].60 :-#.%+-,*soluço, do qual mesmo não se
percebendo noção;
(
:#&"0 (*'++!-# +*.# fechada a gestos,
$&'',%(''%'')-+%$".-+%'*,;
( [Conforme
já o demonstra o passo anterior, com esta mulher-fantasma, a comunicação não verbal é
difícil ou impossível]. : &,+%,#&"+#'%-$"*Dessueta nos trajes, sem gestos
; (ROSA, 1985, p. 200). [De um lado, a dificultosa leitura das roupas antigas, de
outro, o horror absoluto da ausência de orientações gestuais].61
Acaso o leitor não defere às minhas decodificações? Bem, já o ensinava Stendhal
(
:&3%#+# 5#$(*'.*')-.#4&#('*)-!*$%&,+(++'+
que têm necessidade de vê-$+2'!+;*#&#*+%$5#%#&"1(*,1)-$)- me
lê não terá escapado o grande desconchavo desse recurso literário em Guimarães Rosa: as
evidências não são tão evidentes assim... O defeito está na língua que as redisse ou na antena
'""+ #&"+ +2' *#+5.#+ (* *!+'& ( -% + ,% '%' :+!* 6&#'
#&#,#.';')-&2'3'+')-#(*'-(':++'(**,*&%&,-%,*'%,#%!#&0*#;
61
Não há, explicitamente, risibilidade no trecho. Mas é possível ter-se em conta que vestimentas já não
mais em moda são, comumente, cômicas. O indivíduo parece fantasiado ou disfarçado (BERGSON, 2007, p.
29).
60
96
receptora que as (não) sintonizou (ROSA, 1985, p. 177), ou seja, nesta intérprete que não foi
capaz de intuí-las e traduzi-las em sua figurada imediaticidade? Em uma e outra coisa
certamente. Mas ouso dizer também que, por outro lado, o senão não está em lugar nenhum; a
astúcia é que está na obra. Eis o jogo, eis o mistério: tudo está à cara, tudo está oculto. Quem
tem olhos para ver veja... Toda essa configuração se deve a um fator, pelo menos, artifício
inevitável: as evidências são aqui ficções (e de literatura já consagrada como altamente
polissêmica), mediadas, elas próprias, pelo idioma; diversas, por conseguinte, daquelas que,
em hipótese, exibem-se, instantâneas e infalsificáveis, na vida, e sobre as quais teoriza,
prioritariamente, Umberto Eco. De mais a mais, como algumas das ilustrações transcritas
acusam, toda essa semiose esquadrinhada não estaria, em Terceiras estórias, exposta em seus
próprios limites e também confrontada com um mundo que se tornou arisco para ela,
resistente, sim, teimosa, mas em crise?
Já na seleção acima, desponta o delicado e quase impalpável senso de humor de
Tutaméia. Com efeito, ainda sob aquela ordem geral de escassez de palavras, sobejam alusões
a funções biológicas, fatores ou alterações orgânicas, gestos voluntários e/ou involuntários
alguns dos quais foram, não raro, associados pela teoria estética ao cômico dito baixo
(PROPP, 1992, p. 21). Quase tudo aquilo que lembra a materialidade ou a corporalidade
humana ou animal, o que é indispensável a ela ou próprio dela. Não que cada passagem
isolada tenha o seu sal. Mas o acúmulo das menções e sua (aparente) gratuidade, repito, em
texto tão braquilógico e de autor tal que não esperdiça palavras, diverte porque desconcerta,
espanta talvez mesmo afugente quem não vê aí atrativo algum: esgravatar narinas com
os dedos [ou esgravatar dedos com narinas?] (ROSA, 1985, p. 194), [não] coçar(-se)
(ROSA, 1985, p. 64, 130, 148, 157, 187 e 204), sentir comichão (ROSA, 1985, p. 136),
espirrar (ROSA, 1985, p. 28 e 120), crispar o nariz (ROSA, 1985, p. 59), fungar (ROSA,
1985, p. 75), cheirar [a] (ROSA, 1985, p. 47, 56, 64, 69, 71, 102, 124, 133 e 210), [não]
97
tossir (ROSA, 1985, p. 75, 121, 129, 132 e 135), pigarrear (ROSA, 1985, p. 86 e 209),
escarrar (ROSA, 1985, p. 65 e 113), soltar muxoxo (ROSA, 1985, p. 27), chuchar (ROSA,
1985, p. 207), soluçar (ROSA, 1985, p. 145 e 159), engasgar (ROSA, 1985, p. 64), bocejar
(ROSA, 1985, p. 75, 84 e 166), rouquejar (ROSA, 1985, p. 43), [não] bafejar ou [não]
exalar hálito (ROSA, 1985, p. 30, 61, 116, 125, 139, 145 e 157), gemer (ROSA, 1985, p.
187), gaguejar (ROSA, 1985, p. 73, 86, 88 e 101), fanhosear (ROSA, 1985, p. 164), [não]
cuspir (ROSA, 1985, p. 63, 135, 154 e 161), babar (ROSA, 1985, p. 129, 194 e 207), [não]
suspirar (ROSA, 1985, p. 35, 43, 129, 164, 194 e 206), respirar (ROSA, 1985, p. 19, 50,
61, 64, 72, 73, 100 e 199), ofegar (ROSA, 1985, p. 61, 70 e 130), tomar fôlego (ROSA,
1985, p. 34 e 187), soprar (ROSA, 1985, p. 19), piscar ou psiquepiscar ou descer os cílios
ou sacudir as pálpebras (ROSA, 1985, p. 85, 104, 157, 165, 195 e 210), caretear (ROSA,
1985, p. 63 e 113), rir (ROSA, 1985, p. 74, 126, 135, 145, 154 e 179), chorar ou plorar
(ROSA, 1985, p. 145 e 157), inchar bochechas (ROSA, 1985, p. 206), amaciar ou palpar a
barba (ROSA, 1985, p. 19 e 37), sacudir os cabelos (ROSA, 1985, p. 154), dobrar em
losango as coxas e pernas de gafanhoto (ROSA, 1985, p. 34), acocorar-se (ROSA, 1985, p.
125, 165 e 206), suar (ROSA, 1985, p. 61), abafar [o outro com o calor do próprio corpo]
(ROSA, 1985, p. 56 e 89), [não] estremecer ou tremer [os dentes] (ROSA, 1985, p. 61 e
64), etc.
Acha-se, nas Terceiras estórias, uma oposição daquilo que é culturalmente reputado
alto com o baixo? Oposição esta de que, há milênios, se tiram efeitos cômicos (BERGSON,
2007, p. 38-41; BERGER, 1999, p.18, 30, 44 e 328; ALBERTI, 2002, p. 141 e 144)? Sim,
mas ela é discreta e sutilmente assimilada, até porque Guimarães Rosa antes opõe
estrategicamente, para juntar e fundir. É por isto que, se, de um lado, a escrita transita pela
materialidade, pela imanência e pelo prosaísmo, sem que eles, preferencialmente ao menos,
permaneçam como tais, de outro, o sublime também não levitará tão súpero assim. Por um
98
enfoque ainda mais nivelador, nesta obra que traz o selo da bagatela, tudo é pó e tudo está por
ser levantado; isto é, a coisa em muito depende do receptor e seu ponto de vista; o que vale,
portanto, para os itens socioculturais tidos por nobres: além do sublime ele mesmo, a poesia, o
dito de espírito, a agudeza, a palavra, etc.
Enfim, as ocorrências atrás listadas não são, de maneira geral, manifestações
simbólicas intencionais, mas sensações ou forças arbitrárias ou movimentos (mais ou menos)
automáticos ligados ao processo vital, etc.; há exceções, como as piscadelas feiticeiras e, ao
que tudo indica, voluntárias da mulher de Zepaz; contudo, em muitos passos, este incluso, o
fenômeno é fronteiriço, situa-se entre uma coisa e outra. De qualquer maneira, vem a centro o
que há de mais prosaico na vida humana titicas a que, amiúde, não se presta atenção ou
não se atribui significado nenhum, tirante aquele, óbvio, da pura causalidade ou necessidade
física. A graça, perturbadora, está, por conseguinte, no absurdo, nessa relativa
superabundância de minúcias tidas como in-significantes e, de fato, recalcitrantes à linguagem
interpretativa. Não se percebe facilmente se há e qual seria a contribuição delas ao sentido.
Por exemplo, na sentença 5 $se coçava os dedos das mãos6
%
, qual o
móbil estético do registro por mim sublinhado e o que poderia conotar para além do que
denota?62
Uma resposta possível é a de que não conota nada; exatamente o que se faz é
aproximar a linguagem da literalidade, expressando assim a exterioridade da coisa, arredia a
5!!)1#absurdum ( # ! )'!"#)5%$'($''6#%$( !,%! 2#(&*!$(*'$(!$&*
dicen las personas que son sordas a la razón. En tal caso, el término sería aproximadamente sinónimo de
irracional. Sin embargo, se vislumbra otra interpretación más interesante: lo absurdo es sinónimo de una visión
de la realidad que tiene su origen en la sordera misma; o sea, una observación de acciones que ya no van
acompañadas del lenguaje. Estas acciones carecen, precisamente, de sentido. Las personas con una capacidad
auditiva normal pueden reproducir fácilmente esta experiencia si apagan el sonido de la televisión: los actores
siguen afanándose como antes en la pantalla, pero la mayor parte del tiempo resulta imposible determinar el
sentido de sus acciones. El efecto suele ser cómico. Por el mismo motivo, acciones con un significado
evidente cuando van acompañadas del lenguaje se vuelven problemáticas de repente. La sordera
problematiza6 % $negrito é meu). O exemplo da televisão encontra afins em Bergson e
Rosa: 5() )%'"$( $( $*+ $( $ ($" "3( #*" (!.$ ! %' &* $( #/' #$( !$$ #$(
%'/"' 1*!$(6 % 5 "($' $"$$"3( $)'-($((*'$( ou o surdo atrás dos
#/#)("($"0# 6 % Há que se investigar mais, em Tutaméia, esta conexão
entre o absurdo e a perspectiva ou, quando menos, o motivo da surdez.
62
99
um sentido que se situe para além das aparências !)& "!
*
63 Como vinha dizendo, há certamente algo disso, mas não
creio que seja a orientação mais forte ou, ao menos, a inclinação dileta da voz autoral de
Terceiras estórias. O que estas sobremodo valorizam é a invenção, esteja ela assentada em
uma metafísica da linguagem ou em coisa alguma ambiguidade da qual não há interesse
nem humorístico nem estético nem filosófico e, às vezes, nem mesmo religioso em sair. A
ideia de fé só tem razão de existir porque há dúvida. Dúvida e fé interpenetram-se e
interestimulam-se; retroalimentam-se. Menos que a resposta, o que importa, no pequeno livro
rosiano, é o jogo e a pergunta, as viravoltas e os pinotes do pensamento: )! e finge
primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito será que basta? Meu duvidar é uma petição
#*
!#"
) %$*: de patacoada e hipótese, nunca há fim (ROSA, 1985, p. 125).
Em tempo e a propósito, dou discussão à famosa passagem: )Meu duvidar é da
realidade sensível aparente talvez só um escamoteio das percepções* (ROSA, 1985, p.
165). O pensamento encantoa o trabalho estético-filosófico de duvidação de Guimarães Rosa
em Tutaméia (para deixar de parte as demais peças do escritor, como um Grande Sertão:
Veredas)? Bem, antes de tudo, seria apropriado silaba ) "#*!'
titubeio sobre titubeio. O fabulador desconfia de que aquilo de que duvida seja talvez, por
reverso, o contrário mesmo daquilo para o qual aponta a seta da hesitação: a vida, por ventura,
consiste somente nisto que se fenomeniza, pura imanência. Se se enfraquece na leitura o
) "#*í, sim, fica mais fácil defender que Rosa deita na página a asserção de que está fora
do horizonte de sua suspeição sistemática a essência ou imo da realidade, seu sopé metafísico.
Mas boto indagação: onde se localizariam, concretamente, na estória x ou y, a epiderme
63
Como se sabe, esse literalismo ou inessencialismo linguístico esteve em voga desde a vanguarda, fazendo
presença, sempre matizada, em autores como Fernando Pessoa (Caeiro), Kafka e Clarice. Que eu saiba, não se
aprofundou ainda o exame do lugar do ironista de Cordisburgo nisso tudo e entre seus pares, bem como, por
exemplo, as relações entre a morfologia onírica, a abstração de cores e as descrições geométricas de Tutaméia e
a pintura experimental do século XX.
100
(sensível) e as entranhas (transcendentes) da realidade? Ou: a partir de que ponto se supera a
exterioridade e se atinge a interioridade? Se aparência e profundidade são, eventualmente, e
de forma momentânea, categorias absolutizadas na obra rosiana, não se desquitam por isso,
sem mais, de sua relatividade (insisto que é nesta mobilidade, nesta folga de rigores
absolutistas e relativistas que o ironista mineiro gosta de instalar, de modo marginal, portanto,
seu faz de conta). O que é o bojo do real sob uma mirada pode ser ainda esmalte ou casca sob
outra; e isto infinitamente. O descascamento, quer da objetividade, quer da subjetividade, não
constitui processo completado nem completável. O fundo sempre vislumbrado pela fé, é
verdade nunca se manifesta linguisticamente como um achado; está sempre, um dedinho
que seja, mais além. Há descobertas, paragens, insinuações, intuições, porém, mais cedo ou
mais tarde, mais cedo do que tarde, a travessia recomeça. Isto de que Guimarães está
propenso a duvidar, esta superfície, enfim, é nele profunda o bastante para que se torne
possível convulsar e baratinar, criativamente, estabilidades sígnicas mais ou menos
socializadas. O seu questionamento da aparência costuma apresentar corrosões fundamentais
da própria oposição mesma entre essencial e fenomenal, verdadeiro e fictício.
À guisa de síntese: o à-toa há de desempenhar-se (ROSA, 1985, p. 90). Terminar de
inventar a passagem do prosaico para o sublime: eis o trabalho proposto ao leitor implícito.
! & (% ! ! )
criar. Ocupação
peralta que é, em larga medida, desocupação (ROSA, 1985, p. 121). Louca, entre outras
razões, porque em muito se concede que talvez nasça do nada, de fundamento nenhum,
embora se possa também dela esperar tudo e nele crer, de sorte a apostar que alegria é centro e
tristeza é de- ( " # !" )
$
somente desse modo lúdico que, ao meio, encruzada de resignada angústia e ardida esperança,
o sagrado, migalhufa coisinha, bota-se enorme (ROSA, 1985, p. 202).
101
3
ALETRIA E HERMENÊUTICA
Até que a luz nasceu do absurdo (ROSA, 1985, p. 173).
-se cócega e mágica, para se poder
.
O primeiro prefácio das Terceiras estórias defende a ideia de que certo tipo de humor
pode funcionar como medianeiro entre o prosaico e o sublime. De jeito mais preciso, as
anedotas de abstração seriam catalisadoras de uma razão alargada, do alegórico espiritual, do
pensamento mágico, do suprassenso, enfim, de uma série de noções próximas, posto que não
idênticas.
Já se vê, de saída, que a escolha do humor como objeto não encontra nele seu próprio
fim daí, inclusive, o recorte temático em anedotas de abstração. O que importa não é tanto
o riso, mas a graça; o afrouxamento programático da razão ou uma ruptura mística com ela,
salto para uma realidade superior. Essa instrumentalização do procedimento humorístico
desbarata o caráter liberador do riso (visto que Rosa não tem mesmo por finalidade a
fabricação de um artefato de literatura enfunado de gargalhadas)? Estou a calcular que não. Se
é verdade que não se tratam os ditos de espírito como um fim em si mesmo, isto não implica
cerceamento, interrupção ou dessubstanciação da vivência psicológica e corporal do agrado
humoresco, ambíguo muitas vezes: entre gozo e angústia. O viés é, aqui, qualitativo, ficando
de lado, abstraída, a questão da quantidade de riso (de qualquer maneira, pode-se rir pouco,
mas bem). Em suma, é porventura quando vivido (e intuído) até o fim risada e meia
(ROSA, 1985, p. 7) que o humor poderá servir de trampolim para o hiperfísico ou o sobrehumano ou o sagrado ou - :64 Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já
64
É assim que Guimarães Rosa grafa o vocábulo, incrementando-o com um acento, ele mesmo, nada prosaico
(ROSA, 1985, p. 7).
102
usada [anedota], qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da
poesia e da transcendência." (ROSA, 1985, p. 7, os negritos são meus).
Bom acrescentar, por outra, que humor intelectualizado, fino, moderado em tom e
número (e, neste último quesito, as aparências podem ser ilusivas), não redunda
necessariamente em riso domesticado ou normalizado.65 O absurdo, matriz de muitas das
!Aletria e hermenêutica" abalar desde o fundo a sensatez do leitor,
sacudindo-o com risada desquieta e incomedida? Michel Foucault (2007, p. 12) riu durante
muito tempo ao deparar-se, em obra borgiana, com uma estranha catalogação de enciclopédia
chinesa. Era-lhe claramente impossível pensar aquilo (FOUCAULT, 2007, p. 9). Neste balaio,
aliás, ponham-se também os koans.
Ao estilo do primeiro prefácio, herdeiro modernizado e modificado da clássica
urbanitas, é inerente o sinete de sua origem social e cultural privilegiada. O lugar de fala do
prefaciador é, presumivelmente, um grande centro citadino do Brasil: Rio de Janeiro, se se
quiser instaurar conexões biográficas sem maiores rodeios.66 Mas esse riso de classe,
sugestivo de liberdade e originalidade; distintivo de e-rudição, elegância e certa aculturação
europeia; simpatia, encanto e espírito; típico, a princípio, paucorum hominum, de um seleto
círculo de iniciados, projeta-se, ao mesmo tempo e instavelmente, no bojo do mais abrangente
e, quiçá, universal (?); isto por meio do temário e de inúmeros princípios construtivos que
forcejam para incorporar o heterogêneo (outridades de sexo, origem, língua, classe, humor,
racionalidade, etc.). Ainda que eu tenha a impressão de que se loca no gênero
substancialmente narrativo, ou seja, nas estórias o perfazimento ou clímace desse processo
(pelo menos lá sua consumação é mais perceptível), não seria impróprio reconsiderar, para
65
Tomando o livro in globo, a bem dizer, certas vezes, pouquíssimas, o contador, a medir por seu próprio
!
"
1985, p. 172).
66
O texto ajuda, é verdade. No gracejo do basset, constam duas regiões geográficas sabidamente axiais para o
Guimarães Rosa em carne e osso: a cabeça do cachorro está no Rio, a ponta de seu rabo, em Minas. Beliscada a
ponta deste, a cabeça pega a latir (ROSA, 1985, p. 9).
103
maior precisão, que o lugar de fala do prefaciador seja culturalmente mais amplo; e que o
coração de sua sensibilidade e intelectualidade esteja tanto na metrópole quanto no sertão,
tanto em Minas ou no Rio quanto no Brasil, tanto no país quanto no mundo, etc.
Mas retorno ao proêmio rosiano, reproduzindo, na íntegra, a doctiloquia do segundo
parágrafo:
A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo.
Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia.
Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou
por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da
graça
sentidos de gracejo, de dom sobrenatural, e de atrativo. No terreno do
humour, imenso em confins vários, pressentem-se mui hábeis pontos e
caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como
catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosáico, é
verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em
Chaplin e em Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja
porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e
dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento. (ROSA, 1985, p. 7).
""$#%'Está-se a
achar que se ri(
# !
conceituais, sustentaria, por meio de formalidades lógicas bastante convencionais (?!), o
alargamento da razão.
'Aletria e hermenêutica( -fação como locus da teorização, da
reflexão e da metalinguagem, encerra notável cunho argumentativo. Sob certa mirada, o êthos
marcadamente intelectual de escritor culto, que (a partir de um essencialismo linguístico?)
estima ver razão, conexão, nos significados aparentemente isolados do termo graça, tende a
contrastar, à maneira cômica, com sua defesa de uma lógica excepcional e do suprassenso;
igualmente, sua linguagem de scholar, empenhada em persuadir e carregada de trejeitos
acadêmicos e científicos.
Repare-se. A exposição prefacial, nos trechos citados acima e abaixo, envolve, entre
outras operações, arrazoado semântico (suturado quiçá a uma metafísica da linguagem),
exemplificação, relação de causa e efeito, limitação tópica. Conquanto o autor inicie cauto e
104
condescendente, aventando a hipótese de que o chiste talvez sirva a novos empregos, logo
apela para um rec&% !$%+& ,%!-)*#*+ 8-)9 "0 8 $&& )%9 *+#!
(?!); e também para Chaplin e Cervantes (precipuamente, é de supor-se, para o Carlitos
chaplinesco e o Quixote cervantino). Normalíssimos argumentos ad judicium/ad auctoritatem
portanto. Claro, é %+*')4')! !+(,*)-!)0!&#!+&)&$&8mão de indução9,
8instrumento de análise9 &, 8frio exame9 (ROSA, 1985, p. 8) nos 8tratos9 da poesia e da
transcendência. Guarda-se a livre opinião e requer-se daquele que lê a mesma frialdade
analítica, a mesma imparcialidade matemática.67 & %)%) *, 8razoável [sensata,
coerente] classificação9 & '%*&) !)$) (, * %&+* * !-!$
8naturalmente9 $ +&)!* &, 8tipos certos9 (ROSA, 1985, p. 7, todos os negritos são
meus):
Não que dê toda anedota evidência de fácil prestar-se àquela ordem de
desempenhos; donde, e como naturalmente elas se arranjam em categorias
ou tipos certos, quem sabe conviria primeiro que a respeito se tentasse
qualquer razoável classificação. E há que, numa separação mal debuxada,
caberia desde logo série assaz sugestiva demais que já de si o drolático
responde ao mental e ao abstrato a qual, a grosso, de cômodo e até que
lhe venha nome apropriado, perdoe talvez chamar-se de: anedotas de
abstração. (ROSA, 1985, p.7).
Como a ratificar toda essa veemente vocação cerebrina (e, às vezes, sentencial),
prefere vincular o drolático68 tudo aquilo que provoca o riso ao mental e abstrato,
moldeando-se assim também com o pensamento moderno: apenas até o século 18, o riso foi
conectado, preferencialmente, como efeito, a alguma emoção ou paixão, por exemplo, a
67
Curiosamente, para Bergson (2007, p. 92 e 95), a frieza, o formalismo, o linguajar científico e dissecatório são
qualidades essenciais do humour. Sua interpretação e balanço disto tudo, não obstante, é diferente do que se
desenvolve nesta tese.
68
Por que esta opção de cariz estrambótico ao português? O vocábulo tem ascendência imediata no francês
drolatique 8%)2&9 $!6 ",*+$%+ '#& *'+& *!%,#) '!+&)*& !/))& Drôle, de origem
derradeira nada vulgar, viria do neerlandês medieval drol8 &$$&)&'(,%&98,%9(,)!-)!
por sua vez, do escandinavo antigo troll 8!%+9 ' $ &##&) $!* $'#$%+
europeu, consistem os trolls em monstros, ogros, duendes, gigantes, espíritos do mal, entes mágicos e disformes
que habitam grutas, montanhas, etc. Julgo que não seria caçar cabelo em ovo pretender enxergar aqui,
exatamente na entrada do prefácio, uma alusão ao (cômico) grotesco de Tutaméia, com seus seres subterrâneos,
corcundas, cox&*%5*)%# 5*"1&'&).$'#&3,$8&)&9 '
105
alegria (ALBERTI, 2002, p. 39, 159 e 161). Adiante, porém, não deixará o autor de
estabelecer relações muito sutis entre humor e páthos.
Em resumo: haveria, nest !'%"'" .Aletria e hermenêutica/ ( "#"&+*" !'%
cômico o assunto-apancadado e sério o escritor-teorético. Conquanto toda esta
divergência entre forma/êthos e conteúdo seja aparente e, numa palavra, enganosa, é
chamativa e matreira o suficiente para provocar o riso. Não foram poucos os que lobrigaram
aí, na arte de exibir gravidade ao tempo que se vai soltando larachas, o colorido típico do
( "% &"! .o verdadeiro humor tem um ar sério, enquanto todo mundo ri em volta
dele/ # #%&!'!" %(!&#' !' &( #%"#"&+*" brividente
(da perspectiva do senso comum, para o qual a blague é sempre trivial), o piadista vai
abocanhando pelas bordas, ganhando tentos na comicidade de superfície. O racional e o
risível serão contrasteados novamente, digo-o de passagem, na formação da persona do
Palhaço da Boca Verde, comediante (quase que) contra a própria vontade. A antonomásia
.'%#&/ $(e ri desde ou até as tripas?) só pode ter, pelo menos até o (controverso)
desenlace apoteótico, sentido irônico: . Ele nunca teve graça, o que divertia era seu
excesso de lógica.../985, p. 132). Lógica ex-cedente, ," &. Se
bons e maus acabam do coração ou de câncer, concluo em mim as duas causas.../
1985, p. 130). Desta vez, um conteúdo ou uma subjetividade dramático-racional, até mesmo
trágica, sente-se mal entrosada na forma clownesca, e é em muito por isto que esta se torna
grotesca e faz comédia. Boca Verde, plausivelmente o do palco, patentemente o da vida, é
palhaço por não (querer) ser o palhaço que é, (como se) por falta de arte; como se a ausência
de técnica fosse a sua própria técnica, enquanto o criador do prelúdio tutameico tem a pinta do
connaisseur e é, ele mesmo, por excelência, um humorista; está em seu métier.69
O contrapalhaço terá, no entanto, seu instantezinho de alumbramento: .% " " o ser ridente e
ridículo &!""&(%""&#" $( !'&&'%,/ # "'%)
que se lhe espedaça a máscara do sério e do sóbrio, sobram os estilhaços do que ele é: humano-histrião, nada...
69
106
Mas, enfim: é, na verdade, profunda a sintonia entre a teoria do humor engendrada e a
linguagem poético-racional, retórica, e não apenas lógica, empregada para expendê-la; entre
os aspectos analíticos, discursivos, reflexivos e os sintéticos e intuitivos. Em que pese a
fleuma de filósofo, a voz autoral não possui comprometimento lógico austero com sua teoria
e sim poético.70
Num escrutínio continuadamente aferrado ao texto, outras e mais ambiguidades
ressaltam, delineando um sujeito entre afirmativo e duvidante/indagador. Retomo passo já
mencionado com acréscimo final:
[...] e como naturalmente elas se arranjam em categorias ou tipos certos,
quem sabe conviria primeiro que a respeito se tentasse qualquer razoável
classificação. E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo
série assaz sugestiva demais que já de si o drolático responde ao mental
e ao abstrato a qual, a grosso, de cômodo e até que lhe venha nome
apropriado, perdoe talvez chamar-se de: anedotas de abstração.
Serão essas as com alguma coisa excepta as de pronta valia no que
aqui se quer tirar: seja, o leite que a vaca não prometeu. (ROSA, 1985, p.7,
os negritos são meus).
É reconhecida a mediania da classificação, apenas razoável [= regular], e seu caráter
rudimentar de esboço; o autor sai-se ainda com um rótulo assumidamente provisório:
anedotas de abstração. Esta despretensão e flexibilidade insistente (e o discernimento rosiano
sempre foi tão infenso a catalogações) contrastam com registros catedráticos mais assertivos e
culminam com a definição rápida, obscura e absolutamente gracejante do conceito. O
pensamento mágico, a invenção-verdade do próprio Guimarães Rosa, segue crescendo em
corpo.
Se esse êthos materializado na linguagem torna possível, sim, a autoironia, esta não se
dá, entretanto, em viés derrisório, como a impactar-se contra a opinião, esvaziando-a. A fala
Apesar dos pesares, da heurística negativa, talvez tenha sido justamente por meio desse representado
personagem, em vestes mortuárias de truão festivo ou em trajes de Adão, de acordo com a variante, que ele tenha
podido aprender alguma verdade de amor (ROSA, 1985, p. 132).
70
A observação presta-se ao Primeiras estórias, que é um primo- Aletria
e hermenêutica
Sob o influxo intertextual de Tutaméia, revelou-se bem mais, para mim, a autoironia e o humor insólito daquele
discurso.
107
toma certo distanciamento porque procura corroborar e encenar aquilo pelo qual ludicamente
propugna: uma razão escanchada e que reconhece seus limites. 71 Parece que, se o humorista
ironiza seu próprio pensamento, assim o faz não tanto (ou não somente) para enfraquecê-lo,
mas (também) para reafirmá-lo, ainda que naquele espaço que lhe é possível: o de sua
precariedade.
Não apenas por meio da fé, mas também por meio da razão, o narrador pleiteia, em
certo sentido, a superação da razão; em algum grau, esta consente logicamente que o sagrado
a despasse. Este descômodo de uma razão que, ao menos à primeira vista, investe contra si
mesma não é tratado como defeito ou contradição paralisante que invalida o discurso, mas
antes como certa exigência de sua profundidade. Se toda estreiteza é rechaçada, se
determinado uso naturalizado e doutoral da racionalidade é comicamente arremedado, esta é,
por outro lado, vivamente integrada em toda sua maleabilidade.
A tessitura do prefácio mostra-se cônscia da dinâmica de uma razão liberada que
trabalha sempre para provar que não deve estar sempre a trabalhar; razão que pensa que deve
pensar de modo diferente, atravessar o absurdo até ir além de si mesma, superar-se e
suspender-se temporariamente. Dito de outro jeito: o elogio do suprarracional não reverte em
irracionalismo ou desapreço dos movimentos da razão; há, simplesmente, uma recusa a
confinar-se nela, que, alforriada de rigorismos e bafejada de imaginação, flerta com a loucura
e jogueteia, no texto, com a poesia; caminha ataviada com o tradicional aparato persuasório
que concede e provê, mas bastante desautorizada em seu alcance. Por conseguinte, as
8,'"+9 8,)++&#(&#(98,"+98+#+3 (+498 1+&-.+98(' .'#+98+#+
%+!+,)+',*.'(,&('-/%((.3&'#+*.&( 198,++'"+9
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8,('-+#+9 8,(',-+'!+9 (. #' 8,%(+9 8,/#+9 8(' .'#+9 8&-.+9 /(2.%(
ressurgirá, mais uma vez, em sentido próprio, para pintar um personagem caldeável com este modo de
pensamento: a cantarina Aníssia, que, cavalgante, escancha-, 8,%4 (&( .& %#- %/(+9
1985, p. 70). O Chico temulento também tem as pernas apartadas por força das circunstâncias; elas são índice de
equilíbrio e desequilíbrio, de sua lassidão de bêbado e de seu trabalho de bolantim. Todo esse andar
ziguezagueante é imagem sensível de sua forma espandongada de ver e pensar: 8"#(,#'.(,(-+&'(
*./%#&-(+#'-+ ,-+-'-(,)+',9 ) .
71
108
pilhérias são retiradas de sua condição usual de insignificância nonada não porque
destroem a lógica, mas porque ou a distendem ou a escancham ou rompem interinamente com
ela. De fato, se, como o restante do prefácio irá propor mais limpidamente, o que se busca é
mesmo o que extrapassa o afrouxamento e, na fronteira, é salto para realidade superior, do
pulo efêmero para o alto, retorna-se ao ponto de partida. Esta alternância entre uma razão de
cenho desfranzido e o suprassenso é infinitamente retomada. O discurso racional é uma
estação por que se passa, jamais se permanece e sempre se retorna.
É bem verdade também que o sentido mais preciso da fala do prefaciador, em que pese
sua autonomia, é melhor captado ou completado à luz das estórias, sendo até mesmo revisto
por elas; assim a ideia de pensamento mágico, mais inteligível quando em diálogo com
!' $#(' $#('(+'(' (,
' ( ' ( 'Nós, os temulentos(, ' ( '
( etc. Se o prefácio, sem embargo toda a sua mordedura persuasiva, já sinaliza
que a mesma ideia está repassada de ambiguidade " '% %(
muito mais o salientará as estórias.
Pensamento mágico é conceito fléxil, polivalente e sintético, cujos cambiantes análise
nenhuma não pode esvaecer. De certo panorama entre positivo e negativo, é todo juízo
humano, toda imagem eventualmente corporificada na linguagem partejante de mundos (d)e
significados (que sempre é mais ampla que a lógica). É consequência do engana-vista
intrínseco às circunstâncias existenciais do homem ou é a própria ilusão, seja ela pranteável
ou não; solicite ela alegria (por uma infinita operação inventiva), nostalgia, melancolia, senso
de comicidade ou miudeza, etc. É também espécie de lógica mais frouxa e, a partir daí, de
onde em onde, sofisma, mentira, ideologia, trapaça, enredo, diz que me diz que e toda
manipulação linguística fundeada em equívocos ou ficções (mais ou menos malintencionadas, mais ou menos conscientes). Finalmente, como o preâmbulo hermenêutico de
109
Tutaméia agora privilegia e ainda fará ver, é aquela meta ou para ou supralógica em que se
revela uma mistura criativa e feliz de beleza, verdade e invenção. Feito palavra ou silêncio ou
modo de ser, dono da miragem e capaz de brincar com ela, o pensamento mágico pode
consertar ou engendrar a realidade, e de tal modo que pareça raiar misteriosamente com
alguma intuída verdade. Não por acaso vem a quadrar com certa compreensão rosiana de fé:
" a, à qual o universo é plástico#
Não que fique de escanteio por aqui, nestes píncaros da transcendência tutameica em que
ainda há cabimento para a palavra, o humoresco, o irônico e mesmo o ridículo. Certo
sobreaviso já vem estampado na primeira página: alguns dos semi-heróis e magos das
estorietas terão algo de chapliniano e cervantesco; Seô Quim e Romão, bem evidentemente.
No que respeita ao Cavaleiro da Triste Figura, pode ser útil o retrato que dele compôs
Henri Bergson, sem que se tenha que importá-lo in totum para cá, até porque se pega a uma
concepção de cômico bastante impressionista. Alguns dos traços ali pincelados se ajustariam a
personagens como o Gouveia, Edmunda, Jó Joaquim, Tio Bola, etc. Para o pensador francês,
a comicidade quixotesca é aquela do sonhador cândido, do louco risível e estranhamente
razoável, do espírito quimérico e exaltado que tropeça na realidade enquanto esta o espreita
maliciosamente (BERGSON, 2007, p. 10). Nem seria de qualquer tipo a lógica que preside o
absurdo das ações e feitos distraídos de D. ! "em pretender modelar as
coisas a partir de uma idéia, em vez de modelar as idéias a partir das coisas. Consiste em
vermos diante de nós aquilo em que pensamos, em vez de pensarmos naquilo que vemos#
(BERGSON, 2007, p. 137). Imaginal ou miraginal que seja, o mundo dobra-se ante uma
inversão do senso comum similar, principalmente, ao estado onírico ou sonambúlico, mas
também a algumas formas de loucura, como a ideia fixa (BERGSON, 2007, p. 137-139).
Seria, pois, uma forma específica, esquipática, de idealismo teórico-prático o
pensamento mágico rosiano? Sim; deitando contas, porém, cuido que aproveita ainda às
110
Terceiras estórias aquela variância que Antonio Candido (1971, p. 126) enxergou no Grande
Sertão $ 3+ * #- ' 4$0( - >.0(,";.(- #$ #$18- #- +3,#- %;1("- ao estado moral do
'-+$+? %-( - .0<.0(- (-! *#- /3$+ 00 ,)-3 #$ #(6$0 > !$ - 1$,'-0 1$028- : -,#$ -
pensamento da gente se forma mais forte que o poder do *3& 0?
. $
-320- * #- ' 4$0( - .0(,";.(- #$ /3$ >- $028- % 6 - '-+$+? - +$(- %;1("- $ 1-"( *
#$.$,#$ - >#$12(,-? $ >. 32 ? 1ertaneja (CANDIDO, 1971, p. 128 e 123). Não se
encontraria também em Tutaméia esse campo de forças reais e ideais, materiais e espirituais?
Passem-1$.$*-"0(4-, 00 2(4 1"-+->11$1 -.$1? >00-(--das-,2 1? >-.0-11$&3(0?
> ( $3? > 00 # " ? >(,'7 $" # ? >12<0( , o ? >12-0((,' ? >7 , 1
" +.(, 1? >3 #0(,'- #$ $12<0( ? >-8- -0:+ - "0( #-0 #$ .$031? > 4$* - #( !-?
>-2 $! 0* ?>0-$,' ?$+3(2 1-320 1
E recupero, enfim, a discussão sobre o molde poético-racional, místico-retórico de
>Aletria e hermenêutica?-+-%(+#$$1"3# 0 2$1$#$/3$-"-+.0-+(11-#-.0$faciador
com seu ideário é antes estético e translógico que lógico, rabisquei acima que a definição de
uma das noções-$1. #(*' #- .0$%7"(- :&0 "$) ,2$ >Serão essas as com alguma coisa
excepta as de pronta valia no que aqui se quer tirar: seja, o leite que a vaca não
prometeu?
Rigorosamente o que diz o ficcionista é isto: será anedota de abstração toda aquela
em que algo é retirado. Ora, isto soa mais como paródia da atividade taxinômica. Sob
perspectiva classificatória, pouco se esclarece apesar da contextura de refinado
intelectualismo. Conforme usualmente se previne na arte da classificação . * 40 >"-(1 ?:
de uma imprecisão que tudo e nada designa. Mas esta largura do conceito, já em si meio
infantil e brincalhona pelo que contradiz do propósito delimitador, tem orientação estética;
logo o leitor descobrirá que ela dá liberdade à criatividade hermenêutica de Guimarães Rosa:
>"-(1 $5"$.2 ? .-#$ 1$0 3+ (#$( 3+ 2$+ . 0 +$#(2 98- 3+ (+ &$+ . 0"( *, um
111
objeto inteiro, um contexto, um estilo, uma forma ou estrutura, etc. Assim, não se trata aqui,
sem mais, da abstração filosófica e psicológica ordinária, se bem que ela esteja incluída e
mesmo em destaque (cf. a primeira das piadas). Aliás, é de notar-se, novamente, a
colaboração de um processo de raciocínio, e convencionalíssimo, na produção do pensamento
mágico rosiano.
Para coroar tudo isso, sob enfoque seriamente metódico, essa explicação que abre o
prólogo de Tutaméia é toldada porque Guimarães se abstém de discriminar analiticamente os
três elementos que, grosso modo, interferem no processo anedótico: o emissor/humorista, o
texto (no caso, escrito) e o receptor. Em qual ou em quais destas esferas sucederia a tal da
abstração? Dá-se ela na mente de quem lê ou de quem bola a anedota? Ou ainda: algo seria
retirado no texto? Por exemplo, por alguma de suas figuras, não raro, aliás, tipos distraídos,
abstraídos. Os chistes e bromas que o autor &"'!"!
neles, dão margem às três possibilidades, o que torna, repito, plurivalente e intrincada toda a
concepção.
As anedotas de abstração são selecionadas ou, enquanto tais, melhor se diz,
inventadas porque, segundo o autor, provavelmente tocam, de modo mais direto, a
a!# &e o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral,
que nos envolve e cria' $!
de toda a obra; e, sem dúvida, o paradoxo que exprime a esperança façanhuda que a
fundamenta. A fé, a aposta, consiste em que a carência mesma de sentido a razão de muita
angústia esteja a comunicar, miraculosamente, por um tudo-nada, a coerência do mistério
criador e circundante. Possivelmente porque o silêncio e o nada são os vazios que dão ao
homem a possibilidade de um livre (e efêmero) contato com Aquele que fabula; a margem
para criar(-se) e ser verdadeiramente. É assim que as Terceiras estórias amam e se horrorizam
com o despropósito.
112
Guimarães Rosa disse um "' .2# , #0!/'1,/ =deve se sentir à vontade no
'+!,*-/##+0:3#) "#3# 0# ,!2-/ ", '+$'+'1, >
-
, o negrito é
meu). De modo análogo, exprime no morceau de bravoure reproduzido acima que, por um fio
de cabelo, no meio de sua tarefa, de seu existir ao mesmo tempo monótono e sobressaltado, o
artista, o homem, vence o medo do absurdo e se abisma alegremente em seu não ser, podendo,
-/1'/":,-#//02*5%'!=99,.2# /#+,& '12)"%#+1#2*'+3#+87,>
1985, p. 90). A seu jeito, o ironista mineiro está a bolar uma confiança no sentido que nasce
de dentro do absurdo.72 Com efeito, o Sentido não é disparatado em si mesmo e tão
assombroso quanto o Absurdo? Dentro da perspectiva do verbo rosiano, pelo menos, haveria
algo de absurdo no sentido e de sentido no absurdo, nada que é gérmen de seu contrário.
#%2+",/#"'%#,-/;-/',=,/"'0 2/%,>#*= ?O verbo & o logos@>02#01/#'#1#01*#+1,
acadêmico publicado por Vilma Guimarães Rosa (1999, p. 503): ,0#41/#*,0=(5"#0'0#*-/#
se tocam, antes que tese e antítese se proponham>.
Toda essa mirada capaz de transverter admiravelmente o ponto de vista no caso, do
nada para o tudo será reencenada dos mais variados modos nas estorietas, chistes e
dichotes do prólogo tutameico; é, na realidade, movimento cardinal do livro: =A vida é para
ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por
tortas linhas>
- ). De agora em diante, passo, então, a esquadrinhar
)#+1#"*#+1# 0 +#",10 '+'!''0 "# =Aletria e hermenêutica> !,* 1#+87, #0-#!:$'!
também às laçadas intratextuais. Isto tudo a fim de que se torne minimamente visível ao leitor
a estrutura argumentativa risonha e hermética do texto, sua moção misteriosa ou enigmática:
,=#0#+/#",>0#*#'-se uma brincadeira diplópica estribada na elipse de uma vírgula e na possibilidade de
2*&'-9/ 1, =;,.2'*"#//2 "*#+1#02/-/#0,no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal
> - ,+#%/'1,9*#2#0!;)',"#),+%#,*'00#+01,00'+)/'.2#,%)&2",#*
meio à irracionalidade de tudo, deixava de crer (na mulher, na vida, no Sentido), abandonando-se, tombado e
desfeito, a seu barro de Adão. No entanto, pergunto-me se Guimarães não imprime, na própria fusão do ser, em
sua regressão ao informe, a refusão psicológica e quem sabe ontológica. Não está o protagonista, neste momento,
=#+1/# ,'+#$53#)#,'+$+",>,*#0*,1#*-,.2#!:;,.2'*(50#)#3+13/#+2+!'+",6crença no
absurdo e engendrando (quase que) ex nihilo, de algum modo já (inconsciente?), sua incrível fabulação.
72
113
do prosaico para o sublime, do não senso para o supersenso... ou não (porque por ora o que se
enxergam são ainda aquelas tortas linhas). Em outras palavras: passo a debruçar-me sobre a
heurística rosiana, sobre a bela inventividade da engrenagem poético-retórico-humorística do
prefácio, absorvida pelo problema do absurdo e posta a serviço de uma mística e de uma
estética do indizível que, ao fim e ao cabo, parecem estar aí para superar, pelo salto sobre a
palavra, esta mesmíssima criatividade hermenêutica. Também a alegria, ao contrário do que
possa parecer, é temática do que se segue: ela subjaz ao prazer heurístico do artista e
pensador, à deleitação de ler o mundo e recriar. De resto, será averiguável que quanto mais a
mão pesada e rude desta interpretante some, de maneira que a obra fale ou aparente falar
realmente por si, tanto mais a hermenêutica se mostra verossímil. Quanto mais o significado
lançado em jogo é ou parece consequência de uma in(ter)venção contrafeita ou de uma
tentativa de entrar na marra sentido adentro (se é que há algum), tanto menor aquela mesma
verossimilhança. Receio que algumas leituras, relações e esmiuçamentos sofram o risco da
comicidade; de uma imprecisão típica de intelectual oprimida pela necessidade acadêmicomercadológica de produção de papéis; de discurso, e não de silêncio. É que se está defronte
também de obra desconfortante para o juízo crítico institucionalizado e formal: num átimo,
profusa de hiatos os mais ininterpretáveis, no outro, de juntas as mais súbitas e mirabolantes.
Neste contexto, o esforço até pode estar em trazer à superfície a sugestão que dormita,
seminal, no silêncio, mas nunca jamais em tornar o texto loquaz, falsificando sua forma por
meio de um delirium interpretationis ou, em bom português, hiperinterpretação. Por outro
lado, por estas mesmas páginas, já rocei o cômico muitas vezes, não tenho dúvida; na análise
de uma obra de tal plana e, pior, a esta altura, muito mais risível seria recuar diante do risível.
A criptoteca rosiana começa com uma anedota-pesadelo que parece reclamar, como
todo o livro, menos uma crítica que uma onirocrítica; ou talvez ainda uma hermenêutica, ela
mesma, repousada na sonolência:
114
Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua,
empurrando sua carrocinha de pão, quando alguém lhe grita: A".5&,
corre a Niterói, tua mulher &348'&*4/ ,/5$"45" $"3" &3480&(".%/'/(/B
Larga o herói a carrocinha, corre, voa, vai, toma a barca, atravessa a Baía
quase... e exclama: A5&%*"#/5.:/-&$)"-/".5&,.:/-/2/&-
*4&2>*.:/3/5$"3"%/&.:/4&.)/$"3"B 0. 8).
Imbecilidade e heroísmo misturam-se de jeito inextricavelmente divertido e
perturbador. O auge da estupidez mais inverossímil trata-se de um genuíno nonsense
impenetrável em seu minimalismo chistoso coincide com uma efêmera e estranha
heroicidade.
De ponta a herói, esta é uma das transições que experimenta o personagem-ator da
estorieta, a quem o leitor-espectador é instado a seguir para observar. Quando a voz berra, o
viandante é retirado de seu anonimato e papel pequenito de indivíduo que, no curso ordinário
da existência, labuta pela rua atrás da própria sobrevivência, impelindo para frente o carrinho
de pão.73 Desde o início, portanto, encontra-se o ledor sob o discreto signo da máscara ou sub
specie theatri (théatron lugar aonde 3& 6"* 0"2" 6&2 ASiga-se, para verB <"02/0>3*4/
$"$/ 6&2#", 15& 4&- *.?-&2"3 2&33/.9.$*"3 -"*3 %*2&4" %&,"3 /$/22& &- A7/ %&
,-*2".4&BA&(5&-3&6&2/15&15*3&33&B 0 ).74
A formulação linguística do grito tem sutilezas importantes. Em primeiro lugar, um
equívoco travesso: a concisão eficiente exigida pela pressa da transmissão da emergência fica
prejudicada na sintaxe frouxa das frases, que deixa as relações causais indeterminadas; não se
"%*("3 & "2"(&.3 %/ 42"#",)/ A%*"-a-%*82*/B 0 3:/ -"4<2*"3 %& ."22"4*6"3 $/-/ A/:/
Porém / $2*"%/2 %& 0&253B A2".%& &%&:/B A*0582*"B A*%" &.3*."%"B A/4" & #"2,"B A2&3"6&.452"B &
A7/ %& ",-*2".4&B. Nesta última, que pode ser atada de modo particularmente iluminador à laracha do
Manuel-que-não-é-Manuel, é destaque também a trajetória heroica. Da afinação entre os chistes e certas estórias
não se deduz que o teor deles se assimila completamente a elas ou vice-versa; somente, postos lado a lado,
ambos funcionam como fermentos recíprocos de reflexão.
74
542"3A/://2<-BA&-15&6*"- !B 0 A2*&.4";:/BA vai-se não ver, e vê3&B 0 A34/2**.)"B A/* 6&2 '/* 6*34/B 0. 64); A2&3"6&.452"B A./ *2 "
6&2B 0 A*%"&.3*."%"BAVer a ver...B 0 A*.("2&3$"BA5%/6=-
6&2 !B 0 A5"%2*.)/%& &34>2*"B A5& 6&2 !&,&15&23&53/,)/30&23&(5&- !/
4/%/4&"42/B 0 Lascas verbais, excertos microscópicos que se remetem uns aos outros são
comuns em Terceiras estórias. Não é surpreendente que, em obra tão pouco acessível, possa haver tanta
parecença ou repetição? É que o que se reitera não são tanto peças que vêm completar o sentido, somando,
quanto pedaçúnculos que vêm espatifá-lo, dividindo; e assim também multiplicando... No diálogo com outras
obras, igualmente, a citação pode localizar-3&.5-$*3$/%&'2"3&A.4&3"15*/342/0&;/33&".4/+"6"-5-"
um, o mau diário bast".4&B p. 186). A referência é neotestamentária A$"%"%*"#"34"/3&5
-",BBÍBLIA, 2010, p. 1208).
73
115
sabe se a mulher está louca porque a casa queima em incêndio literal sentido primeiro,
mais próximo do trágico , ou se a casa arde em fogo metafórico porque a mulher deu para
louca sentido segundo, mais próximo do cômico, efeito (também) da ambiguidade.
Esposas meio birutas, às vezes verdadeiras megeras, são figuras comuns de Terceiras
estórias. Em segundo lugar, é preciso notar que a forma da frase induz maliciosamente
'!.! # '#% $'% (! "'%$ -,# % !"' %' # $&&"' (.! 3lhe4
brada; 3tua mulher [...] tua &4
De todo modo, ouvido o grito, palavra que arrebenta a condição trivial, voz sem corpo,
vinda do nada, o primeiro gesto do figurante, já transmudado em herói, é desfazer-se daquilo
que o amarra à subsistência; em seguida, jornadeia com largura: corre, voa, vai, embarca e...
quase atravessa.75 Se bem que temporária e irônica (devido ao desfecho da piada), por que a
promoção a herói? O ex-figurante ouve de maneira excêntrica: intuitivamente abstrai, por
completo, o contexto da mensagem, inclusive, o conteúdo semântico do 3tu4 que seria seu
destinatário lógico: algum Manuel que tivesse casa e mulher em Niterói. Distraído (e, por
outro lado, verdadeiramente concentrado), percebe, sobretudo, o cerne da função apelativa:
Corre! Vai! Capta a urgência do socorro, a necessidade de uma ação, sem mais nada arrazoar:
nem identidades nem interesses nem referentes empíricos. Escuta não o que a frase diz, mas a
inflexão paralinguística de ordem, de chamado, que, secretamente, a ele também se dirige:
alguém lhe grita. Por isso não deixa de ser, por um pouco, herói e Manuel.76
Com isso, repiso o mote: 3#!# & ) (! )% &/ & $(&& $%"%
'%).&%$%&"'$%&#"!4
$Ao ouvir na mensagem dirigida a
outrem um apelo a si mesmo e agir, esquece sua própria individualidade e, como ator que é,
#)!"'&($%$#&-0&"'%'*'(&3%&)"'(%43Iaí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais
veloz que uma voz, ziguezagues de pensamento. Olhou para trás, não-sei-por-quê, à indominada supresa, de pôr
$%#"'#&# #&4 $ 3$(+%43&#%#&!&!#&# #&#&'%"&&!a voz, que não
#()"#4"'31'#"',#&)# '#( à voz a chamar seu nome [..4 $ #&
negritos são meus).
76
Para uma entrada ainda alegórica, poder-se-ia talvez explorar a etimologia do nome e sua coloração bíblica.
75
116
torna-se outro, máscara admirável que, de certo modo, lhe faz ser mais plenamente; herói,
reorienta-se. Quando menos tem personalidade quando corre a Niterói e abstrai quem é
tanto quanto quem não é , mais empreende, existe, faz: quase atravessa. Eis um vazio
maravilhosamente navegável (ROSA, 1985, p. 47). Quando, embora ainda confuso, tem mais
certeza de quem é ou de quem não é , estaca. De fato, o deslocamento, que é físico e
psicológico, não perdura. O retorno ao senso e à autoconsciência a saída da estultice
aguda, sob certo foco corresponde à interrupção do ato heroico, que não se conclui:
regresso à figuração. Ao final, o padeiro-entregador deixa-se entrever em todo o seu
desprovimento. A recuperação da identidade (se é que advém) dá-se em negativo: não se
chama Manuel, não mora em Niterói, não tem esposa e nem mesmo casa. Encontro ou
desencontro de si? Perda ou recuperação de sentido? Esta personalidade destituída dos
atributos do outro é resultado, ao mesmo tempo e paradoxalmente, do aborto do insight e do
lampejo rompedor de toda a idiotia, pois o ápice do nonsense ou da desorientação é também,
em outro plano, a máxima orientação. O contexto de Terceiras estórias, a mão de Guimarães
Rosa, transforma o tipo celebérrimo do asno inveterado o Manuel das piadas em
enigma, em incógnita algébrica (ROSA, 1985, p. 8). Uma vez inserida no texto, a anedota
ganha, ipso facto, novos e diferentes sentidos, nuanças tutameicas, sabor rosiano.
No entanto ocorre também outro contraste transtornante que é essencial para a
complexidade do efeito cômico da estorieta. Não basta dizer que, na assim chamada punch
line, se mete um sopapo tanto na expectativa racional quanto na expectativa humorística do
receptor, levando-as a nocaute.77 Na última frase, o justo instante em que Manuel-que-não-é-
77
A expectativa humorística é aquela pertinente à tipologia textual; ao que deva ser, por exemplo, a identidade
% () Punch line ou sock line é expressão traduzível por ( )
() ()(- )(&")()($) -se do instante disparador do
efeito anedótico laborado passo a passo e engatilhado com pontualidade. Para William Fry, uma piada (joke)
( #!)
. 148). Um desajeito na aplicação
da noção de punch line à laracha agora em foco é que esta projeta, risca, uma linha gráfica descendente, melhor
ainda, despencante. O clímax (do humor ou da pequena narrativa como um todo) é, igualmente, anticlímax (da
ação e da tensão emocional).
117
Manuel recupera para si a sanidade cruza com o tempo em que o leitor se depara com o
absurdo do texto e nele fica imerso. A (relativa) resolução de .$/ ) !*
infinita irresolução do leitor. Riso e inquietude. Tensão e alívio. A sensibilidade das rubricas
rosianas, transcritas a seguir, reside, para começar, em que elas recolhem (legunt) mesclas
semelhantes. Entranhado ao cômico, está o páthos .estática angústia/
Esta vem concretizada como horror do nome próprio esvazado; terror de sentir que se pode
(parecer) ser o que não se é ou não ser o que se (pensa que) é. Risada angustiada ou angústia
risonha? Riso que desentala angústia ou angústia que entala riso?78 Bem, humor é coisa
subjetiva, e esse copo-entre-cheio-e-vazio é traço distintivo de Tutaméia.
Em tempo: as nótulas de Guimarães Rosa receberão, nesta tese, designações variadas,
mas seriam muito bem denominadas, simplesmente, rubricas ou .!,!"/, pois é assim que
este vocábulo é !.Sobre a escova e a dúvida/
naquele
""&!$""$"(+""'""$#" .#('$#%#/.#&!/
.!/ ."/ Ou seja, cada glosa é também uma assinatura rosiana. As .!,!"/ "'
simultaneamente, fruto de uma interpretação e de uma apropriação daquilo que pertence (mas
não já totalmente) a outro, anônimo ou não, coletivo ou não, possuidor de direitos e marcas
autorais ou não.
Mas afinal de contas: em que sentido, para o ficcionista, a anedota em foco seria de
abstração?
Agora, ponha-se em frio exame a estorieta, sangrada de todo burlesco, e
tem-se uma fórmula à Kafka, o esqueleto algébrico ou tema nuclear de um
romance kafkaesco por ora não ainda escrito.
De análogo pathos, balizando posição-limite da irrealidade existencial ou
de estática angústia e denunciando ao mesmo tempo a goma-arábica da
língua quotidiana ou círculo-de-gis-de-prender-peru será aquela do
cidadão que viajava de bonde, passageiro único, em dia de chuva, e, como
estivesse justo sentado debaixo de goteira, perguntou-lhe o condutor por que
não trocava de lugar. Ao que, inerme, humano, inerte, ele respondeu:
.!! $ /
78
A paronomásia estática/extática pode aludir a uma espécie de angústia sagrada ou ascética. Tristeza e que tais
não deixam de ser via da mística...
118
É o próprio prefaciador que, pelo seu desempenho, ilustra, ligeiramente, em jeito de
esboço, a leitura sim-bólica aventurada e desejável (mas não prescritiva) do chiste trazido à
baila. Ele engata uma abstração estilística (sangra, retira, do texto todo burlesco), a fim de
submeter à apreciação do leitor reduções descritivas, etiquetas esquisitas, rótulos formais e
temáticos interdependentes: a) fórmula kafkaesca, b) esqueleto algébrico, c) tópico alegóricoespiritual-filosófico nuclear, no caso, a saber: irrealidade da existência e estática angústia, às
quais vincula também o páthos /&! ($ %! & ! '$%! 1Aletria e
hermenêutica2 &!$ $* % .&! "$ ! &!$ #' % &! !$ pinçada do texto é
aquela multiforme da anedota de abstração. Já é tangível, no entanto, que essas abstrações,
essas terminologias, são bifrontes: não há separação radical entre conteúdo e técnica de
estruturamento e expressão. A própria depreensão dos temas alegóricos do chiste inclui uma
leitura de seus princípios construtivos. Guimarães não teria chegado àqueles, em termos tais,
sem uma hermenêutica destes. A matéria, para ele, é forma.79
A performance ao mesmo tempo eisegética e exegética de Rosa, sua síntese da
pilhéria, é labor intelectual, reparação de significado; calculado re-ligare. É o que sugere a
menção da álgebra, que opera com entidades abstratas: etimologicamente, al djabr, redução,
simplificação da escrita ou $%&'$,+!#'!#'%&*$&'$!1%#'&!2 +!-%!
gratuita). A modulação, a simbólica e a tematização muitas vezes, cômicas de uma
matemática inexata, quando não imponderável, dispersam-se por toda a obra, culminando, no
prefácio, com a ironia do quod erat demonstrandum, máxima terminante dos raciocínios
' !%$!!! %$,+!$!% $%'' ($%!"!-&! 1' +!
#'$'! &!*!3$%!*!4 '!$ &%3*$*4
porque é mais indeterminada e, portanto, mais )&2
79
"
Diria eu que o escritor, concomitantemente, interpretou a forma (já, de alguma maneira, então, preexistente
enquanto chalaça possivelmente coletiva e anônima) e criou-a no ato mesmo de reenformá-la em seu antelóquio
tutameico.
119
Diante dessa primeira encenação do método hermenêutico sério-cômico que o prefácio
quer propor, aparece já a questão crucial, válida para todo o texto: como, efetivamente, para
sair da abstrata teoria, essa anedota ou o frio exame que se faz dela podem levar aquele que lê
à prodigiosa experiência de um não senso que reflete por um triz a coerência do mistério
geral? A blague faz meditar sobre o sentido e sua relatividade instala um problema
filosófico , mas e daí? Só se pode inferir que a iniciação tutameica ao suprassenso exige
algo mais que a interpretação fundeada na razão distraída e no jargão poético, no sentido
oculto, na plurissignificação alegórica ou metafórica (interpretação esta ensaiada nos
comentários acima sobre o jogo entre imbecilidade e heroicidade, identidade e alteridade, eu e
máscara, realidade e invenção). Com efeito, em &Aletria e hermenêutica', ainda se mostrará,
sentido e sem-sentido conectam-se, amiúde, intimamente, e de forma irresolúvel, sem prejuízo
de um ricochete faiscante de leitura que alumbra as dobras e faces das coisas; não é este o
pulo decisivo do hermeneuta, e sim aquele em que ele se arremessa e se despenha sobre o
inominável. Quero dizer, à parte o deciframento (e reciframento) criativo de Guimarães Rosa,
&' não pode ser este o gesto supremo, a última
cartada a que remete o autor no terminus &Aletria e hermenêutica'; neste ponto, trata-se de
al # & ' &!' &$'
16). O prefácio,
lúcido e cheio de graça, não faz outra coisa senão exibir o vazio argumentativo de sua ideia
fundamental. O cerne de toda a concepção é indemonstrável.
Após a estorieta do ex-Manuel sobrevém outra em que os personagens também estão
em espaço público e em viagem. Agora não mais o figurante/quase herói, mas o cidadão e o
condutor, " &a goma-arábica da língua cotidiana ou círculo-de-gis-deprender-peru' a prosaica, enrijecida por lugares-comuns, mas
não somente ela, pode atuar e influir como círculo ou limite mágico infranqueável pelo
pensamento; fronteiras determinam, mas também aprisionam.
120
O condutor pergunta ao passageiro, que está sozinho no ônibus, por que não troca de
lugar e recebe por
técnica de fatura
deste chiste, como de outros, ao mesmo tempo que leva de arrasto o raciocínio, deixando-o
em suspensão, instila no receptor o pressentimento, menos que a captação consciente, da
existência de um abocamento, uma concorrência singular de perspicácia e parvoíce. Isto é o
que subjaz à leitura do poeta, que elabora a posteriori um sentido superior para a anedota.
Mas Guimarães Rosa não está sozinho; compreensões similares à teoria preambular, posto
que de maneira nenhuma idênticas (nem mesmo entre si), são encontráveis em André Jolles
(1976, p. 215), Tzvetan Todorov (1980, p. 279), William Fry (1963, p. 152), Arthur Koestler
(1989, p. 27), Neal Norrick (1987, p. 116), Sigmund Freud, etc. Para este último, por
exemplo, o chiste que, como o antecedente, se identifica com o disparate dá caminho para que
uma das leituras, acompanhando o que é insinuado, passe pelo inconsciente e descubra um
significado por detrás do mero nonsense. Em espanhol:
el chiste muestra al oyente un rostro doble, lo constriñe a dos concepciones
diversas. En los chistes disparatados, [...] una de esas concepciones, la que
sólo toma en cuenta el texto, dice que es un disparate; la otra, que siguiendo
las indicaciones desanda en el oyente el camino a través de lo inconciente, le
halla un notable sentido. (FREUD, 1993a, p. 203).
De volta à broma tutameica, e inserindo já a discussão dentro da rota aberta pela voz
autoral, pode-se dizer que ambos os personagens estão tolhidos pelas amarras das palavras.
Cada um pressupõe certas colagens em vez de outras. O cidadão solitário e confuso de modo
mais evidente, todavia também aquele que conduz o bonde; daí, inclusive, seu silêncio
(dedutivelmente) pasmado; sobressalto este que conflui com o do leitor.
O verbo trocar, na sua construção transitiva indireta com a preposição de, compele o
falante do português a presumir sempre que se permuta um objeto por outro da mesma classe.
Quem troca de lugar e só troca-o necessariamente por outro lugar. Isto muitas vezes
basta à comunicação, sendo dispensáveis ou omitíveis referências a envolvimento de terceiros
na ação (o qual pode ou não ocorrer); ainda mais quando o contexto é de tipo determinante:
121
um só passageiro no ônibus. Dessa predeterminação de sentido, o meio-bocó está livre. Sua
pergunta equivale a um olhar virgem sobre a língua, que se consubstancia em um esdrúxulo
erro gramatical, ou melhor, semântico-sintático (e a sintaxe é a cola, a combinação dos
vocábulos). Notando os assentos inteiramente desocupados, estranha a sugestão do condutor
e, por meio de uma indagação extra-ordinária, concita aquele que lê a voltar o pensamento
para o próprio idioma, tomando consciência de seus mecanismos, condicionamentos,
convenções e imprecisões. É pela pergunta do cidadão apatetado que se evidencia que o
sentido não está nos nomes em si; não há marca linguística cristalina que torne obrigatória a
interpretação automatizada pelo hábito. Sua tolice risível, que tende a abstrair o contexto ou
dele distrair-se, mostra que a palavra não é a coisa.
Sem embargo, o nonsense do passageiro do bonde está também sob o domínio do
círculo mágico do simbólico. É ele, e não o outro, quem aparece como autor da bestice,
ludibriado pela estreiteza de vista, confinado na tribulação (no interior do bonde, quase,
literalmente, para usar vocábulo oportuno, colado ao assento, debaixo de uma incômoda
goteira). Se esse peru engaiolado no círculo de giz da linguagem desnaturaliza uma
convenção do português, é porque, com seu olhar estrangeiro, fabrica para o mesmo idioma (e
para seu próprio entendimento) esta outra: a de que quem troca algo o troca com alguém (=
outrem) imprescindivelmente; melhor ainda, forçando a gramática a formalizar o raciocínio
do perso
troca-[o]
mutreta verbal do autor do gracejo. Sem qualquer mediação, troca-se a regência do verbo
trocar, passando-se uma rasteira na expectativa idiomática e na continuidade dialógica. O
bitransitivo indireto (
-repticiamente para verbo
construção não abonada pela
gramática culta, posto que comuníssima.
122
No frigir dos ovos, a diferença entre ambos os homens humanos é que o condutor
compartilha, no sentido próprio do termo, uma norma linguística (a goma-arábica cotidiana),
enquanto o solitário cidadão inventa uma para si; matuta como que em seu próprio idioleto. A
busca da sintaxe tão des-colada em Tutaméia, bem mais autoconsciente, não tem algo dessa
loucura? Trágico e cômico é notar que esse condicionamento, como encanto, cega o sujeito
para a concretude mais imediata e para as possibilidades de libertação. O condutor, ainda que
na sua condição também cativa de automatismos (toda guiagem e orientação é ambivalente
em Terceiras estórias), oferece conversa e escapatória; porém, a ficção dos nomes, às vezes,
torna-se mais real que a coisa visível. Por certo, o passageiro (e depois, por razões diferentes,
também o condutor e o ledor) experimenta daquele páthos da irrealidade existencial ou
estática angústia tópicos abstraídos da anedota. Absurdamente, para quem lê, toma como
absurda a proposta do condutor, que cria nele um conflito entre o que a língua diz e os olhos
veem (se é que veem), conflito este consternante para o analista Guimarães Rosa. A
articulação do disparate prova que, ao menos de partida, a linguagem levou a melhor. Ao cabo
de contas, a piada reinstala sobre essas sensações desencontradas a lógica de um é desatino
para o outro o silêncio e a solidão que precederam a conversa dentro do bonde; vazio que
reverbera ou, quando menos, respinga naquele que lê rosiana). Este fecho,
pela comunicação de uma incomunicação infinita, não risca, deflagra, uma centelha de
melancolia? É ainda possível conjecturar que a sobrecitada punch line seja lugar anedótico
especialmente favorável à vivência do sublime; ou por outra, à sugestão de certa informidade
indizível, seja ela do nada, do infinito ou do mesmo sublime (tal como configurado em
Tutaméia, e ao qual se chega, in extremo, apenas por um salto). A mística, via de regra,
origina-se ou situa-se ou completa-se em uma consciência profunda da vacuidade (e, ao
mesmo tempo, claro, da sacralidade) da linguagem. A esta altura, Guimarães Rosa
123
('*%86/0'!< Como é sabido, para o ensaísta de Salamanca, a Espanha é dona de um idioma
quixotesco que tem sua própria alma e sentimen0+ "# 2'" ; (6*%1 #/,*&+( ,#*/+1 #
/#*0'1 #1/ #) *0 #.#/< ,
.#0+)+ 1').4#/ ;.')#'.+
!+*/'"#.+(6*%1!+)+)#1#(#)#*0+)#0$6/'!+<
,80).
A chalaça do condutor e do cidadão possui afinidade com !+*0+/!+)+;1".'*&+"#
#/07.'<;##1/#.' ,#./+*%#)<;.#/2#*01.<80 e, especialmente, ;+4++.5)+!.'"+.
"#,#.1/<. este personagem, também se fecha a estrada em círculo (ROSA, 1985, p. 88).
Porém não confronta o sonho com a realidade e, daí, deixa de recolher a alegre ou triste
surpresa do destino. Vive ordinariamente; feliz desinfeliz, sem desandar. Por outro lado, tudo
isso ocorre porque é amante fiel e consciente da alta fábula de que tomou ,+//#/1;$+.0#
#/0.#'0#3<(ROSA, 1985, p. 88).
Em resumo, o caso do bonde aponta que o contrassenso depende, a quando e quando,
do ponto de vista; a metáfora da troca de posição (de assento) é pertinente ao extremo: a
mudança pode ser início do novo.
No entanto, outra vez, no terceiro texto selecionado, uma quadrinha algum tanto
riobaldiana, o deslocamento não se faz ou não se mostra possível; e, agora, de maneira mais
áspera ou radical: não há nada de explícito que acuse um engano ou cegueira do eu que
dimana dos versos; sobra apenas o puro traçado da situação aporética e seu páthos
correspondente. Por isso, Guimarães Rosa sublinha a negatividade ethica desse sujeito
aprisionado e suspenso no intervalo entre bravura e temor; incapaz de realizar o desejo ou
dele desistir. Não poderia ser esta uma das coplas cantadas por Álvara e, secreto modo,
dirigidas a Lioliandro imediatamente antes que triunfasse em seu primeiro raide sertanejo?
(ROSA, 1985, p. 153). Seria apenas mais um caso rosiano de recado em canção:
Menos ou mais o mesmo, em ethos negativo, verseja-se na copla:
;/0/'-1##/!(le, calle;
80
$+;!6.!1(+ -.1,0+<ROSA, 1985, p. 196).
124
calle de valor y miedo.
Quiero entrar y no me dejan,
quiero sal!)%&',&8(ROSA, 1985, p. 8).
A rua é agora cárcere, lugar fronteiriço, ponto da copla entre coragem e medo. Essa
reiteração da via pública, nas primeiras anedotas de abstração, não pode ser acidente. Penso
que se solda indiretamente ao tratamento geral conferido no livro à perspectiva, marcada pela
multiplicação de vozes. 81 Terceiras estórias são obra de fala inúmera e coletiva, autoral,
pessoalíssima, e anônima, ao mesmo tempo. E a rua é, assim, um dos principais palcos da
procissão, peregrinação ou passagem de toda a gente82, esta que tem sua con-corrência
simbólica e final $7!%)*8
Dessa terceira anedota de abstração pode ser abeirada ainda 7Estória no 8, que conta
o causo de Mira e seu futuro
7$!* que ex-$%+8 1985, p. 59).
E sejam
recordadas igualmente outras peças rosianas em que uma violência ou embate final
')&#$+!/!*+!%24*$&)!*&$.$,&)"&*&.&-) 7&)'& &87,#&8,
7 &)-/,,*+&+)8, Grande Sertão: Veredas, etc. A valentia do machado de
Jo1&(,)(, *+0 +)%*'** '&) *, 7&-) &)3%!8 *, 7%1& (,)) &%+%8
(ROSA, 1985, p. 62). Ele poupa-se ao duelo e apanha por ob-repção na rua um
Ipanemão agachado e desavisado; desavisado também, não há dúvida, por causa de sua
própria hýbris e temeridade: não dá um vintém por Joãoquerque ou quem quer que seja.
Mas o autor prossegue a tessitura de seu anedotário:
Movente importante símbolo, porém, exprimindo possivelmente e de
modo novo original a busca de Deus (ou de algum Éden pré-prisco, ou
da restituição de qualquer de nós à invulnerabilidade e plenitude
primordiais) é o caso do garotinho, que, perdido na multidão, na praça, em
festa de quermesse, se aproxima de um polícia e, choramingando, indaga:
7& ,) & *) %1& -!, ,$ omem e uma mulher sem um
$%!%&/!% &**!$&$&, 8 ' -9).
81
82
7)*'+!-*%))+!-*$Tutaméia86*
Ver, e.g.7/&#$!)%+8 '
125
O garotinho transviou-se em espaço público e aberto, que o texto, namorado dos mais
delicados contrastes focais, trabalha para precisar e, por meio de um zoom, enquadrar cada
vez mais àquele que lê: no meio da multidão, na praça, em festa de quermesse, tempo
litúrgico. O menino, por sua vez, ao descrever seu desamparo, sua perdição, assume não a
própria perspectiva, mas a dos pais, e de tal maneira que despega, imprevistamente, a ,arábica *% $- % # &"$ relação esperada entre lacuna e
completude, perda e totalidade. Temática esta assinalável em outra narrativa na qual se
extravia o fruto da carne: ,( -. Cito: , # " %#$ "&-a de
$%$-
Para voltar à fala infantil do chiste: não é nele, no pequeno, como se vulnerado e
vulnerável, que há vazio essencial. Não é ele que é dono da falha ou cria sem pais, mas é a
este par que falta o filho. Não é ele ser privado de sentido, e, sim, capaz de doá-lo. De
problema, o garoto converte-se em solução. Mero jogo de palavras? Talvez; a mim, não me
parece que o sentimento de perda desapareça como em truque caviloso: a busca continua,
apenas ganha orientação nova e positiva.
O olhar inaugural da criança foi capaz de dar movência ao significado da Perda do Pai,
transposta a coisa para o plano místico ou anagógico.83 Na busca do ,Éden pré-prisco-
argumento abstraído da pilhéria , não apenas a divindade preenche o homem, como
também o homem preenche a divindade,'- )$!% %##
aquilo de que o Absoluto carece. Paradoxo ousado que em muito depende da pessoalização de
Deus; por simetria, um Pai sem seu menininho. Essa reconfiguração da matéria desde o meio
da perdição se aconchega ao que é proposto no prefácio, que pretende ver também o copioso
no oco; é a virada rosiana, virada tutameica.
Entretanto e isso concerne com a concepção hegeliana do erro absoluto?
aguda solução foi a de que se valeu o inglês, desesperado já com as
83
Cf. grego(,'"#%"-
126
sucessivas falsas ligações que o telefone lhe perpetrava: *&! *(++
Nesta chiata, o inglês, depois de concluir por iterada experiência que seu aparelho
telefônico funciona como infalível arapuca, põe na boca uma solicitação ao mesmo tempo
otimista e desesperada que, sob ângulo prático e realista, é rematada estupidez. Descobrir a
causa e a lógica do defeito e, a partir disto, re-agir é o que determina também a razão.
Na hipótese de que toda piada sagaz dá * $#+ '
fórmula de complexa ironia. Confirme-se. Desconsiderando o expediente ordinário de mandar
consertar o aparelho, o inglês empirista, tipo com que a chalaça brinca, põe-se, é presumível,
a observar: seu telefone opera como que por uma engenharia do acaso que converte o certo
em errado ou o mesmo em outro. De revez em revez, a eventualidade não se pinta tão fortuita
assim: o inglês descortina uma racionalidade mínima no maquinismo. Pedir o número
absolutamente exato é engano absoluto; frustração provada. Requisitar número errado é coisa
fora de propósito, porque o aparelho pode transmudá-lo em outro engano nada desejável.
! *(+ que
não corresponde nem ao número pretendido originalmente nem a um número simplesmente
*(+% "ansformarse em verdadeiro. Errôneo atualmente, correto virtualmente. Neste ponto, para conseguir-se o
que se quer, deve-se começar pelo que não se quer. O desajeitado empirista desiste de lutar
contra o telefone boleado e cisma de vencê-lo a partir de suas próprias ciladas. O primeiro
passo é livrar-se da convicção de que precisa discar a informação perfeitamente correta para
atingir o alvo. Estimo que por aí se enraíze a menção à temática hegeliana a abstração
filosófica do autor. Ela é ativada, antes de qualquer coisa, pelo princípio tutameico de coser
aquilo que o senso comum dá por requintada cultura ao que toma por banalidade, no caso,
mera caçoada. Afora isto, também para o filósofo alemão, de maneira (comicamente)
semelhável, a verdade não é oposta à falsidade: o erro desenvolve-se em verdade, sendo
127
.suprassumido/ nela. Na literalidade das circunstâncias criadas para o chiste, a agudeza do
estratagema tem pouca ou nenhuma funcionalidade e está, sem remédio, comprometida.
Abstraindo-se o contexto, sob alçada alegórica, a razão da sem-razão ou o método sem
método do inglês tornam-se mais plausíveis ou, quando menos, mais rentáveis
especulativamente.
Ao contar com o revés da máquina para fintá-la, o personagem (se é que cabe a
palavra) propõe caminho que, num contraste cômico, lembra o método empirista de tentativa
e erro (muito contraproducente, pois as possibilidades seriam muitíssimas). O que almeja o
inglês é, na verdade, um método de tentativa sem erro: o chute perfeito. Sua petição, fruto de
certo cálculo, é também aposta no acaso enquanto sinônimo restrito de boa sorte;84 esta que
tende a ser, para o literato " ."#%$, $# $""/, segundo o que
escreve em carta para seu tio Vicente (GUIMARÃES, 2006, p. 156).
Em outros pontos e à sua maneira, Guimarães Rosa compõe ideias convizinhas a
essas. De quando em sempre, o mundo parece estar desfuncionando como o telefone
"#*# .#/ "' .Sarafim quase sem erro procede; as
faces do que há é !% "&" # " " # $/ 206).
.$
"/, a ideia ganha hálito humorístico e pessimismo proverbial: .em mente a noção
geralista: Tudo, o que acontece, é contra a gente. Ma# ) !%" """ ", " !%""/
(ROSA, 1985, p. 185). Às vezes, tem-se mesmo a impressão de que o esqueleto algébrico
abstraído da piada telefônica é destinado (não necessariamente de maneira restritiva) a outros
entrechos. Em uma estória como a de .Melim- #/ efetiva-se também um desengate
entre realidade e ficção; o que é solução naturalmente possível nesta se mostra inverossímil
ou custosamente veros#+ !% ( . "%"/ # # "# #$) #
acoplados.
84
.Tentam afinal os astros o que, contra mim, que só peço nenhum erro e enarmonia e suasão?/ (ROSA, 1985,
p. 172). Há ironia nesta passagem muito provavelmente.
128
Para Meloso e para o contador da lenda (a dupla tem emboladas as vozes), em uma
dada boa hora, o erro, constante, transforma-se em acerto, coisa rara e (quase) casual:
Diz assim: Melim-Meloso
só quer amar sem sofrer.
Errando sempre, para diante,
um acerta, sem saber. (ROSA, 1985, p. 107).
Diante do vendedor de chapéus azedo e empulhador, esse cavaleiro saído das cantigas
de João Barandão introduz balelas que teriam tudo para gorar seus planos, mas redundam em
vitória; blefa o tempo todo (ROSA, 1985, p. 105). Conta com o engano do outro, controla-o,
de forma a acertar, fazendo-o errar. Loteria ou cálculo? Bismarques não percebe que o não é
sim, e o sim é não. Melim-Meloso finge que não gosta do chapéu fora de moda que lhe é
empurrado, mas deseja-o e compra-o por uma pechincha. Finge topar descabida renegociação
de preço, mas aceita-a só para ter o dinheiro de volta. Finge nada pedir, mas sopra ligeiro que
um copázio de vinho espaireceria tudo, e toma-o de graça. De hábito homens investem
diretamente em seus desejos para satisfazê-los; não é o que ocorre com !!$!! !%
de nariz bem-alumiado que quer achar a fôrma do seu pé (ROSA, 1985, p. 105 e 109). Ele
encena o desinteresse, a não aspiração, para chegar à completeza. Dá giro a muitas mentiras
sobre sua vontade para abiscoitá-la em toda a sua verdade. A essência do logro consiste em
apresentar ao outro algo inverídico para que ele o reverta, exatamente, na verdade que se quer.
Melim-Meloso inventa algo, e as coisas resolvem-se; é bem possível mesmo que não
ambicione nada, e por isto tem tudo. Tal como ansiava o inglês do telefone avariado, esse
cavaleiro lendário converte toda negação virtual da vida em afortunado e prestimoso sim.
$ # %, estória de tom mais realista, também se notabiliza
como bom tramoieiro. Ele atrapalha a caçaria de Iô Isnar, que se deleita na brutalidade, no
$!!!!"% $-! " "%
! "
inculca na cabeça do velho um conto, quer dizer, meia dúzia de patranhas. O intuito é fazer
129
com que o caçador se ponha no papel de ) !$&!$. $%+#",lhe-,##/
.Sim, o Brasil mandará tropas.../ deixei-lhe; conforme à teoria. Sem o
fitar: mas ao raro azul entre folhagens de árvores.
.Cruz!?/ ele fez, encolhera elétrico os ombros.
Eu, mais, numa ciciota: .É grave.../ Luta distante, contra malinos pagãos,
cochinchis, indochins: que martirizavam os prisioneiros, miudamente
matavam. Guerra de durar anos...
[...].
Devagar, a ministrar, com opinião de martelo e prego: .Seu filho único.../
Disse. Do ominoso e torvo, de desgraçados sucessos, o parar em morte, os
suplícios mais asiáticos. .Se a sorte sair em preto.../ o tema
fundamental. (ROSA, 1985, p. 192).
Salvo erro meu, são estes os elementos textuais que entram em simetria: a) o filho de
Isnar, atualmente em serviço no exército, e a cria do tapir; b) o mesmo animal, como mãe, e o
velho, como pai; c) o assassino da anta e quiçá de seu filhote, ou seja, Isnar como acossador
implacável, e os malvados inimigos pagãos; e talvez também um complexo mais abstrato: a
guerra, causa-contexto do refalsado perigo de vida do rapaz.
No frigir dos ovos, o contador-)! ( & "( ."#!!/ $ $#
alegórico, entre remédio e veneno, que, uma vez abocanhado, encurrala automaticamente o
$#! )( !" "## #!## $ " .$#$!" "!"/ (
atingiriam a dose adequada, e com o fim, então, de progredir no aliciamento da caça,
prepara nova investida. %!$"*.!!/dar de beber ou comer (algo imaterial):
.0Ajudo-o... Mas tem de vir comigo à cidade...1 !/Quantum satis. Daí em diante,
* ", """#! ' !)( *# . ! $# $/ A, 1985, p. 192).
Isnar não age de acordo com o esperado e (aparentemente?) proposto; não esquece e larga
tudo para sair em socorro do filho soldado. Ainda assim, neste ponto da situação, para o
narrador, que se põe a diagnosticar a linguagem corporal do outro, nada obsta; já sabe que a
empreita letal contra o bicho está fadada ao fracasso. Qualquer semelhança com o
130
automatismo das marionetes ou com a magia ou com a possessão não é mera coincidência.85
No encerro dessa estória paródica de caçador, Isnar, que queria a caça, literalmente,
moribunda, derrubada e tripudiada, acaba, figuradamente, neste mesmíssimo estado (ROSA,
1985, p. 193).
Eis, de novo, a mesma álgebra mágica: introduz-se x, dá-se com o y prognosticado e
desejado. O personagem-narrador, prevendo os caminhos e efeitos subjetivos da fraude,
manipulando a linguagem, ganha a partida. Transforma o processamento erroso que o pai faz
das notícias recebidas falsos dados em salvação. A falha de um é acerto de outro. Do
ponto de vista ético, nas duas estórias, claro, tudo se mantém ambíguo. O narrador exitoso de
4$&)&5 nada mais é que um intruso, melhor, um intrujão; compreendendo o terrível
daquela maldade, intruje-se na mente do adversário para engrupi-lo.86 Conquanto não seja de
forma alguma idêntico, ele faz par com aqueles cômicos embusteiros ou gozadores de certas
narrativas do populário %) ! &# (&)"&! $#& !#' 4"-# $&#$&!"(
&&$&"'0*'5 granjeiam a simpatia do ouvinte ou leitor (problemática, todavia, em
Tutaméia); isto aconteceria porque seus antagonistas se externam como bobos, medíocres ou
malvados (PROPP, 1992, p. 102-104, 142 e 161).87
Mise-en-scène do querer, fé na boa estrela, aposta no aleatório, matemática do verbo,
invencionice ou cascata mais ou menos bem-intencionada. Todo este complexo ligado ao
4!,# ''(! $"'!"(#5 ' &+ #! *&.2' '!$& !)(# 'ignificativas, em
Tutaméia tem seus #)(&#'#"#' 4'#destino pulava para outra estrada. Mira e Joãoquerque e Ipanemão
cada qual em seu eixo giravam, que nem como movidos por tiras de alguma roda-!'(&5 $
Há quem encoste firmemente a arte dos titeriteiros ao risível da comédia (BERGSON, 2007, p. 50).
86
(&'$5,(#relativizaria também a versão do narr#&4$&)&5 4em espírito da
gente ninguém intruje5 $
87
O etnógrafo russo desenvolve outras conjecturas proveitosas também para o folclore de cá; reputa que tais
#"(#' !#& "-# $&#*#%)! & ' '(-# 4$&!#' $#& )! )!#& $#$) & "#"('(,* 5
Representam 4)!&(#!'(/*'(#%)#&'#'$#"(40"#5 e 4como que '$&#*#'"(#54
vencedor tem razão só pelo fato de vencer 5A explicação seria esta: 4## #&(!')'$&1$&' '5
'('$&'#!#4"*".-#5"-o são coligadas à vida real (PROPP, 1992, p. 102, 103 e 161). Toda esta
discussão, que, obviamente, não finaliza o assunto, é advincular ao problema do ponto de vista de uma narrativa
#!#4$&)&5
85
131
&',%&#!#. %%##-das- "'&/. #!#'&((%/. ( /."'%(-&/.(
&%$%&#"!/, . %%/.&"%#/etc.
Sintetiza em si, porém, próprio geral, o mecanismo dos mitos sua
formulação sensificadora e concretizante, de malhas para captar o
incognoscível a maneira de um sujeito procurar explicar o que é o
telégrafo-sem-fio:
.!"(!#%%#basset, tão comprido, que a cabeça está no Rio e a
ponta do rabo em Minas. Se se belisca a ponta do rabo, em Minas, a cabeça,
"##$ '%/
.é isso o telégrafo-sem-# /
.)#&&#+#' +%##!#&!-fio é a mesma coisa... mas sem o
#%$###%%#/ $
Aponta aqui uma imagem essencialíssima em Terceiras estórias: a tessitura (malha,
entrelaçamento, rede, etc.) e suas lacunas. Estas são tão importantes quanto o próprio
urdimento e seu envesso. De fato, há um rombo no sentido da blague, ou antes, na fala do
explicador canhestro, que entretece definição que nada explica. Na melhor das hipóteses,
ilustra o que seja o telégrafo com fio.
De começo, tudo vai muito bem: a ruptura de expectativas é técnica elementar de
produção de riso; apesar de que, a esta altura, e num renque de anedotas como este do
prefácio, o grau de previsibilidade seja maior: sabe-se que o que vem por aí é largada; por
outro lado, benevolência bem posta, rijeza intelectiva sovada e amolecida, aquele que lê deve
andar já em boa disposição humorística: na mão deste maquinante contador que é João
(!%)& #& "! .#%!( *)# &"&#%/ # basset para remeter ao telégrafo
parece recurso didaticamente original e promissor. No entanto, quando, em desfecho falto de
pedagogia, lança-se o ledor em cheio no meio do nada e retira-se, abstrai-se, abrupto modo,
aquilo que mal se acabou de fiar, a impressão que fica é adversa, e o efeito é desolador. O
sujeito pode ser tudo, menos bom alegorista. Em que consiste a asneira?
Se basset é tropo para fio, sua mera e súbita sumição não elucida nada. Ainda que se
possa partir do telégrafo com fio para explicar o sem fio, e ainda que este seja marcado pela
ausência de algo que está presente naquele, o telégrafo sem fio não é um ex-telégrafo com fio.
132
Trocando em miúdos, o sujeito ensina equivocadamente que o telégrafo sem fio é idêntico ao
outro, funciona exatamente como ele: a única diferença teatralizada a de que não tem fio
nenhum é aquela que já está antecipada e estampada no nome. No final das contas, ele mal
alcança a questão, e o contraste cachorro/não cachorro soa como pura obviedade.
O grande desafio do explicador é o de figurar, dado que sua fala não se orienta para a
denotação, algo que, embora não cognoscível a partir das sensações, possui realidade
física; em jargão científico: a atuação das ondas hertzianas.88 Porém, ao descartar o corpo
canino ainda fresco na imaginação do destinatário, longe está de forjar uma imagem sensível
para um objeto que não o é; para tentar salvar seu figurado: um cachorro com corpo invisível
que está lá, levando seus imaterial, as ondas hertzianas (assim
como o cão com corpo visível seria representação de um fio material e retilíneo que transporta
a corrente elétrica). O que faz? Destrói uma forma sensorial (o basset), construindo um retrato
de nada. O ex-cão não tem realidade sensitiva nem material o que sobra é, no máximo,
uma ex-figura, coisa nenhuma (o paradoxo nada-algo é inevitável). Em vez de manobrar com
uma representação já contraditória e pouco tangível, o animal com corpo invisível tomando
beliscões como
do telégrafo sem fio, escolhe um vazio e uma inatuação tão radicais
que o leitor assiste à aniquilação de seu pensamento. Não é criada nenhuma figuração para o
telégrafo sem fio. Antes uma ausência é exposta.
Se a voz autoral elogia a maneira do alegorista, destacando, abstraindo, a síntese que
esta realiza do mecanismo próprio aos mitos, é porque todo aquele abismo visual concretiza a
sensação inquietante de limite perceptivo associada ao funcionamento do telégrafo sem fio:
algo atua, ondas de rádio difundem-se, sem que ninguém ouça, cheire, palpe ou veja. Mais
ainda: se o tropo ensaiado frustra a lição racional sobre o telégrafo sem fio (metáfora do
No comentário rosiano à Aletria e hermenêutica
e de forma explícita, esse gênero de ondas não capturáveis (ordinariamente) pelas antenas humanas. Cf. o
segundo capítulo desta tese.
88
133
0incognoscível1?), sensifica o nada e propicia a experiência instantânea de um oco conceitual,
constitutiva, muitas vezes, da mística. E se o leitor, como Guimarães Rosa, pode visualizar a
não visualização, neste fiasco, há engenho; seja ele acidental ou não.
Para chegar à cláusula da análise: o efeito imediato da largada ou da punch line, como
sói acontecer, aliás, é a suspensão de julgamento, que tem, em Tutaméia, não apenas
dimensão humorística, mas também filosófica, estética e mística (Sextus Empiricus, sublime,
koans, etc.). A recepção crítica, contudo, não acaba por aí. O objeto em foco é literatura, e
literatura sujeita à desconfiança do leitor do especialista, pelo menos; ele vê-#0#$",do
#$"*)10%1 0$ "##$1%0$#1!%0%#1
o 0argumento1.89 Esse texto humorístico, essa engenhoca de forjicar cócegas mentais, desafia
a força reflexiva daquele que lê; brinca com ela, confundindo-a e provocando sua participação
ativa. Os chistes seduzem também porque geram autocomprazimento (mais ou menos
vaidoso) com o exercício da inteligência; perguntam pela oficina ou pelos bastidores
%,#$#-#$#%%$ 0 "-me o mecanismo, a magicatura, ou
naufrague1
Já de menos invenção valendo por 0 %# " %#1 e a
ilustrar o: 0 #%" #!%$%" !%$1 em aras da Escolástica é a
facécia do diálogo:
0 #&*.#% ,#$""-se fios de cobre: prova de que
# "$&#$$#($+"1
0# % #&*.# ) # $"% % "&
que, lá, pré-historicamente, já se usava o telégrafo-sem-1
p. 9).
O riso sai fácil, de modo que esse vanilóquio profundo aguenta bem a censura de Rosa
suavíssima, pois ele o julga digno de participar da #$"*)""0Aletria e
Hermenêutica1. O escritor considera a anedota menos atilada porque o sofisma é
89
Com ligeiríssimas alterações, estou a apropriar-me do jargão de Longino, e isto porque, aqui, na esteira de
Rosa, reserva-se à modalidade anedótica um parentesco com o sublime. Cf. ARISTÓTELES, 1992, p. 72, 89,
104 e 108. Longino estimou ainda que o sublime constitui 0%$,$%',o maravilhoso contra a suspeição
despertada pelo uso de figuras; o embaimento, de certo modo aureolado de beleza e grandiosidade, daí por diante
"$# $#*1 (ARISTÓTELES, 1992, p. 91).
134
convencional, e seu arcabouço, ostensivo, não sendo difícil decifrá-lo ou abstraí-lo. O
conhecimento do fio de cobre pode até anteceder a produção do telégrafo, mas não é causa
suficiente para ela (deixo para trás o dislate básico da descoberta desta espécie de material
arqueológico em camada de solo dita primitiva). Ignaro ou parlapatão, o indivíduo não leva
em conta, abstrai, toda a tecnologia restante necessária à fabricação de uma máquina de tal
natureza. Delimitando ainda mais a análise do autor mineiro, é possível indicar, inclusive, que
a falácia segue a estrutura post hoc, ergo propter hoc (depois disto, portanto, por causa disto).
Aqui a avaliação de Rosa corrobora o que, em geral, se encontra nas pesquisas sobre riso e
humor: quanto melhor camuflada a armação ilógica da anedota, e todo o segredo de sua graça,
maior será, conjecturavelmente, sua sofisticação intelectual; numa palavra, sua agudeza. Sob
enfoque rosiano, é ocupação peralta e prazer daquele que lê buscar e encontrar a
artificialidade verbal sobre a qual repousa o texto.
À piada, o prefaciador chama-
(1981, p. 142 e 175), indica uma graça leve, sutil, elegante e polida.90 Toda essa sensibilidade
de analista preocupado com vieses, matizes, páthos, êthos, etc. espelha, para o leitor, uma
trilha possível de leitura; alerta para o quanto o ficcionista tratará com complexidade, nas
narrativas que ainda estão por ser folheadas, comicidade, riso e humor.
Em que pese o parecer rosiano, essa picuinha em forma de finesse, para mim, é bem
bolada
Aletria e hermenêutica -se ia que o fósforo está muito bem
positiva para a sua conclusão
ilegítima. Fecha o raciocínio com base no achado dos fios de cobre. Assim, quando o
oponente faz referência ao resultado das escavações em seu país, a expectativa de primeira
leitura só pode ser a de que a peleja ufanista, se existe, esteja irreparavelmente perdida: não há
testemunho de que seus antepassados tenham inventado o telégrafo com fio, ou por outra, o
90
O facetus romano compreenderia já certa delicadeza (MINOIS, 2003, p. 86).
135
provável é que sequer tenham conhecido o fio. Contudo, o falante, num tour de force,
transforma a comprovação da derrota em penhor de toda a vitória. Trata de arranjar-se com o
nada (reconhecimento que tem a vantagem retórica de um honesto realismo), atribuindo a ele
sentido inusitado. Consegue isto, primeiramente, fazendo transitar, sem sobreaviso, o
problema posto em disputa: do telégrafo com fio para o sem fio. Em seguida, converte a
evidência alguma o achado nenhum desenvolveu tecnologia
ainda mais avançada. Com muito menos, faz muito mais. É patente que também esse
dialogista deixa de lado o fato de que a utilização de um aparelho de tal tipo envolveria
muitos outros saberes e progressos; não bastaria examinar a questão do fio (nenhum) para
tirar as consequências. Abstraído, ele desconsidera que o conhecimento do telégrafo que não
emprega o fio não pressupõe a ignorância deste. Raciocina como se o desconhecimento do fio
fosse condição única e sine qua non para que se determine se alguma civilização fabricou o
telégrafo sem fio. Em síntese, toda a sua alegação é bem mais forçada.
Mas a truania do segundo interlocutor não para por aí. Por intermédio de algo próximo
a uma reductio ad absurdum, ele constrói um discurso dúbio e promove uma reflexão
mordente sobre a linguagem. Ao mesmo tempo que se vale de expediente idêntico (fallacia
non causae pro causa), ironiza-o, esticando-o ou caricaturando-o até a mais completa
insensatez: do absurdo, segue-se o que apraz, qualquer coisa, observa Guimarães Rosa.
Quando flexibiliza ainda mais a lógica do antagonista, o sujeito não apenas supera a sua
ilação, s
a gabolice patriótica, se o caso for de pior asneira ou melhor sofisma, quanto a imaginação ou
a razão, se o caso for de mais engenho ou retórica. Sua prestidigitação reside em que
argumenta com o mesmo erro para escancarar a verdade: a de que ambas as induções, a do
adversário e a sua, nada mais são que despropósitos.
136
No contexto de Terceiras estórias, talvez o mais relevante seja aquilo que, na chamada
linha de soco, se entremostra ludicamente, em meio a burlas e cavilações: a falta de vestígios
ou o quase nada podem ser sinal de muita coisa, suporte de raciocínio. A faculdade inventiva
é capaz de retirar, abstrair, do nada, uma resposta ou hipótese, um riso, uma provocação. Indo
mais além, alegórica ou anagogicamente: ausência e carência de rastros divinos não seriam,
para o autor mineiro, brechas a partir das quais pode atuar criativamente o homem? O nada
tutameico, sob certa mirada não exclusiva, sem obrigatoriamente perder, por conseguinte,
toda a sua negatividade, é também abertura, #* . "&(/ para o sentido. De resto,
pergunto: por que o prefaciador insiste na brincadeira com o telégrafo? Tenho a impressão de
que ele serve como imagem da forma de Tutaméia. .%/ % .#$ $") / é
expressão técnica há muito cristalizada em estudos literários e linguísticos. Se as Terceiras
estórias têm tal estilo, o que parece pouco para o aspecto radicalmente lacunoso do livro, o
telégrafo em questão há de ser sem fio: entre uma ponta e outra, o hiato. Sim, repito: não
atinar com fio nenhum pode ser já trampolim para o hipersensorial e suas ondas misteriosas;
também para uma heurística admirável, para o alegórico espiritual, o metassenso, etc. Ao fim
e ao cabo, para o Guimarães Rosa de Terceiras estórias, o telégrafo sem fio seria alegoria
também de certa linguagem, intervalar e esfíngica, de Deus, da vida.
E destoa o tópico, para o elementar, transposto em escala de ingênua
hilaridade, chocarrice, neste:
. * ( ,%'! #%#$$& "$ /
.#+#" ## "/
. #$"$ /
. ##%#" ## "/ !
Trecho inicial cabeludo. O autor parece salientar que o tópico (?) prefacial das
anedotas de abstração como cata# "# .* -!" #) /, até aqui fundido na argúcia e no
refinamento (?), pode ser divisado, também, desentoadamente, na elementaridade (?) de
137
algumas blagues, em certa simpleza humorística, em certa inflexão que ficaria entre a candura
e o gracejo um tanto desabusado: chocarrice.
A mestra-escola requisita ao aluno que lhe dê um exemplo de nome concreto; ou seja,
interpela-o a respeito de uma categoria gramatical, uma realidade verbal (substantivo).
Entretanto, Joãozinho não raciocina nem metalinguisticamente nem abstratamente (modo em
que as particularidades não vêm ao caso). O xará de Guimarães Rosa pensa de maneira
similar aos poetas. Trata o signo como coisa e, assim, devolve à pedagoga o exemplo de um
objeto concreto: suas calças. Dito de outra maneira: o garoto, naquele momento, nem tem
domínio nocional sobre a abstração nem é capaz de abstrair.
Sem embargo, nessa sabatina, não é só Joãozinho quem escorrega. Não estivesse
desatenta, tão abstraída quanto o menino, a professora teria desconfiado da intromissão do
pronome com função adjetiva que delimita a resposta: é acréscimo suspeito ao
único termo realmente solicitado, o substantivo. Ela parte incontinênti para a próxima
pergunta porque toma como exata a primeira réplica; esta subitaneidade, de mais a mais,
refletiria (comicamente) tanto a mecanicidade do método arguidor (e aí haveria margem para
a teoria bergsoniana do riso) quanto a apertadela da criança, que mal tem tempo de respirar
entre uma e outra pergunta. Seria presumir demais que a própria pressa e a ânsia de sair desse
encalacro tenham a sua participação nos deslizes (se é que o pequeno é tão ingênuo quanto
parece)? De todo jeito, na sequência, tudo o que esteve oculto se revela. Mais uma vez, o
aluno fornece exemplo do que, para ele, é uma coisa abstrata: as calças da professora. Vale
dizer, ele concretiza o conceito de abstrato.
O riso é produzido, essencialmente, a partir de dois jogos verbais. Em primeiro lugar,
o equívoco entre substantivo concreto/abstrato e objeto concreto/abstrato. Em segundo lugar,
o duplo sentido da palavra abstrato (principalmente para o leitor e para o criador da piada). O
literal: aquilo que opera com ideias, e não com determinações empíricas. O figurado, já
138
cristalizado em dicionários: aquilo que é vago, de difícil compreensão, obscuro. A partir desta
última senda, a fala do aluno pode abranger outros significados
e nuanças, como a erótica. Com efeito, de que maneira as roupas daquela
mulher poderiam ser abstratas? As calças seriam metonímia para o que está dentro delas: o
corpo nu de que o menino nunca teve experiência sensível. Sob determinado ângulo, o que há
de mais concreto para a professora é o que há de mais abstrato para Joãozinho. É de imaginarse que ele seja abstraído também na acepção de absorto, extasiado, embevecido com a mulher
à sua frente e isto também, em muito, pela força de um implícito: o lugar-comum
sociocultural e literário-filosófico-anedótico do aprendiz apaixonado pelo mestre.91
Na cambalhota do texto, o pequeno tolinho que tropeça na gramática, ainda que à
revelia de si mesmo, é justamente aquele que enuncia uma tácita verdade. Joãozinho-queconcretiza-tudo expressa a sua percepção de que tem antes a experiência da corporeidade da
professora do que de seu corpo. Ao não abstrair a ideia de abstrato, des-vela àquele que lê, ao
mesmo tempo, a abstração do corpo (ligada à socialização) e a presença concreta, viva,
perturbadora, do desejo. Apreende não de modo intelectual, mas existencial e concretamente,
os efeitos de uma das formas (sociais) de abstração.
Segundo a leitura que faço do desarranjo arranjado Aletria e hermenêutica
Guimarães Rosa interrompe aqui, para retomar adiante, o que seria uma sorte de exegese
geral. Entre uma quina e outra, dá prosseguimento à montagem de seu anedotário metafísico,
entabulando uma partição do gênero da anedota de abstração em suas possíveis espécies:
definição por extração eliminação parcial, etc. Se assim for, a chalaça de Joãozinho
ocupa lugar estratégico e liminar. Nesse telégrafo sem fio que é Tutaméia, o escritor não dá
ponto sem nó. Finda a primeira série de chistes com aquele que tematiza os próprios conceitos
de abstrato e concreto, de jeito a fazer transparecer uma dinâmica entre eles: é por meio da
91
Para alguma intratextualidade, c
139
mirada daquele que vai fundo no concreto que se revela a abstração vocábulo que, como já
se disse, manejado poeticamente, é irredutível ao processo intelectual agora em realce. Enfim:
o convite tutameico à abstração não supõe o apagamento da concretude, da particularidade e,
por tabela, do que seria insignificante; pelo contrário, está enraizado neste e nele imerge.
Por aqui, porém, vai-se chegar perto do nada residual, por seqüência
$ !
%Só que, o que assim se põe, é o argumento de Bergson contra
$ ! $
%! ! $ %
da representação de uma exclusão desse objeto pela realidade atual
%
ex-nada, produzido por uma ex-faca.) (ROSA, 1985, p. 10).
No passo de Bergson, aparece a hipótese de que o nada seja construção linguística oca.
Para conceber qualquer objeto fora da existência, seria necessário pensá-lo dentro dela e,
(imediatamente) depois, num movimento de exclusão; isto tudo já é representação de algo, e
de tal modo que, completa o prefaciador, o nada em si mal chega a apresentar-se à mente,
restando sempre a imagem da realidade (espaço-tempo) em relação com a ideia de um exobjeto.
A tais considerações é colado o primeiro subtipo das anedotas, cognominado
$ %. Na prática, caracteriza-se por uma tentativa de explicação
metafórica do nada que elege como comparante uma figura íntegra para depois abstrair,
subtrair, de jeito quase instantâneo, cada uma de suas partes constituintes, até que não sobre
forma alguma; ou melhor, na interpretação de um Rosa motivado por Bergson: subsista a
imagem de uma ex-imagem (
$ -
% "
$ %
coincidir com) um nada residual ou ex-nada. O fato é que uma ex-faca é uma ex-faca; porém,
simultaneamente, não é, como diria um bom jagunço mineiro, diabo de trem nenhum. Não é
nada, e é também o que foi. $ miúdo%, quer dizer, num sentido
poético retemperante do chavão, ao trasladar a matéria para contexto e forma tutameica,
140
Guimarães Rosa avança a partir dos juízos do filósofo, que, ao menos na citação agregada,
limita-se a advogar isto: o nada é um ex-algo. "":x-';#27'(+osiano.
: ' 7 .& ,& %4&"' *.% , -"+(. ( (; ,8&(%(
atividade que penetra, modifica e corta toda passividade, é, ao contrário, como que fatiada,
até acabar em coisa alguma. Quem opera esta retirada, esta abstração, é o próprio autor do
brocardo. Seria ele o Barão de Itararé ou Apporelly, embora esteja listado, em Círculos
viciosos e infinito, este nonsense de Lichtenberg, cientista e aforista alemão : &!(
,&(,&%4&"';-+"$ (+
)Em todo caso,
note-se que o não ser não está pronto de antemão; não equivale a um nada eterno. De estatuto
diferente, ele é gerado pelo chiste, que, graças ao signo, torna visível ao espírito,
inesperadamente, ex nihilo, a faca e, todavia, desaparece de igual modo com ela, para, aí, sim,
criar a aparição de um nada que antes foi coisa. O ativo, feito matéria passiva, sofre uma
aniquilação em boa dose furtada à previsibilidade sucessiva ou linear: não se diz,
gradualmente, que o nada é uma faca, da qual se retirou o cabo e, em seguida, a lâmina; mas,
bruscamente, que o nada é uma faca logo sem lâmina quando nem se imaginava já se fora o
cabo. A instantaneidade da subtração está, sem dúvida, a perseguir a informidade do nada
absoluto; como uma faca que não chegou nem a existir: já sem lâmina, desde o início sem
cabo. Não obstante, /+ 7 *. .& /1 -+1"( 3 %.1 ( (&)+'- :;
representação de algo e do processo de nadificação, e não propriamente do nada, é inevitável:
aquilo que o leitor visualiza visualiza sempre atrasadamente, em uma série temporal. E
mesmo na segunda leitura, prevenida, resta a :ver; o paradoxo de uma faca-que-não-é-faca
fronteira entre ser e não ser, figura e não figura, na qual balança, infinitamente, o pensamento.
A imagem, para alcançar o nada, teria que deixar de ser por mais rapidamente que
se retire, é sempre tarde demais; rateia exatamente porque não abdica do que é: busca dar
forma ao que não tem forma("'8"((+65(:'7;#2,-2(()+(0(
141
encrave-se, na sequência, o que se quiser. A definição, isto é, a delimitação do nada fere o
princípio da contradição e, para uma lógica convencional, está fadada ao fracasso eis a
absurdez (risível) desse dichote. Entretanto, se o louco discurso anedótico não se rende a essa
impossibilidade e se aventura a dizer o que não pode ser dito, abraça radicalmente a
consequência dessa escolha: não apenas espera, mas espirituosamente opera, para ser bemsucedido, seu próprio insucesso. Este é que é, em certo sentido, o crivo da eficácia da blague:
quando ela ostenta, inalcançável, o nada, está a apalpá-lo, trazendo à tona uma característica
que lhe é essencial: sua inabarcabilidade. É assim que, se o logos vacila, o páthos do texto é
poderoso, pois não demonstra conceitualmente, mas expõe pelo sensível da forma; a armação
abrupta e, ao mesmo tempo, rodeante procura cercar à socapa o não ser pela imagem e dar-lhe
o bote, deixando, ao fim, o leitor azoretado com palavras que remetem, justamente, a coisa
nenhuma. Nesse tentâmen de enunciar o que não há, vai abalado um dado imanente das
línguas naturais: a pressuposição de que tudo o que tem nome, por exemplo,
(FEITO, 1995, p. 135-136). Quem lê há de lembrar-se do alegorista do telégrafo sem fio, que,
similarmente, põe para tirar, inventa para desinventar. A linguagem, exibida em sua
imprestabilidade conceitual, gira no vazio, barrando ao homem o fundo da ideia do não ser, se
bem que ele só esbarre com esta noção por causa da mesma linguagem. Como o próprio
chiste, ela tanto tira quanto dá. Tudo isso é causa do livre e angustiado riso tutameico.
Ou agora o motivo lúdico fornece-nos outro menino, com sua também
E com isso está-se de volta à poesia, colhendo imagens de eliminação
parcial, como, exemplo à mão, as estrelas, que no de
Verhaeren:
(ROSA, 1985, p. 10).
A pilhéria do balão tem arquitetura muito semelhante à da faca, posto que seja ainda
mais lacônica. A menção do brinquedo, coligada ao dado (ficcional ou não) de que o dono da
abstração é criança, permite a Guimarães, por sua vez, abstrair, relevar, o motivo lúdico. De
142
## 2!"$*)3+. ##! #"!/2*)
%" *)3 #-se ainda da mesma espécie.
'*2 #%3%" -Les moines (VERHAEREN, 1886, p. 11),
inaugura outro subtipo de técnica abstrativa. Antes de qualquer coisa, contudo, é de observarse que, so ."#!" "2" !" *)3têm sido e ainda serão agrupados os
mais variados gêneros textuais, ou por outra, as formas as mais diferenciadas: pilhérias stricto
sensu, mas também ditos de espírito, coplas, quadras, parlendas, adivinhas, legendas,
estorietas, provérbios modificados, versos de poemas eruditos, etc. Ludicamente, a heurística
rosiana aconchega os chistes a gêneros supostamente não aconchegáveis a eles, como a lírica
ou a poesia erudita e ainda outros textos de contextos e propósitos tão diversos, sem que, por
isso, o leitor se sinta constrangido a perder de vista cambiantes e particularidades.
No que tange aos dois versos de Verhaeren, não se trata agora de explanação
metafórica do nada, mas de um símile, uma comparação de uma coisa com outra. De mais a
mais, de acordo com a hermenêutica de Rosa, + '" !""$#2eliminação 3
Desenha-se uma imagem e depois se retira, abstrai, apenas uma de suas partes, de sorte que a
impressão (de estranhamento, etc.) criada é menos impactante que a do tipo anterior. Este, por
aspirar a definir o não ser, dava sumiço na totalidade da forma que acabara de suscitar; quer
dizer, exibia maior radicalidade abstrativa.
Nessas linhas em que a noite e o infinito, como um universo que ora, se derramam em
atmosfera religiosa e sublime, o poeta belga compara estrelas a velas: as primeiras teriam
bases invisíveis. Na " #*) 2 #! ! - ! ! )
dos quais não se vê elevar-!!"!3 92 Émile Verhaeren também compõe visão do
92
A edição de Guimarães Rosa, de 1906 (SPERBER, 1976, p. 200), é mais recente que a minha, de 1886. Nesta,
$&24 *"3,-!2$ "3!#!0"!!" !2 " #"4""#"
!4#$ "# #" ##"$!$ ! !#!($ !! !!
"#4!!4$"! # !# #"4&# 4+"!!4! "!!" !
brillant là-haut sur leur chemin,/ Semblent les feux de grands cierges, tenus en main,/ Dont on ne verrait pas
monter la tige immense./ Para o ledor nada galófilo, circula, pela internet, o que seria uma tradução espanhola,
143
que não há para ver; também traça já passando a borracha. Ao assinalar a distinção entre
estrelas e velas pelo desenho de uma ausência, no extremo de todo o poema, em posição de
destaque, apaga, no momento mesmo em que explicitamente a aponta, a haste imensa que
ideara; aquilo que não está visivelmente presente é, pois, a derradeira imagem que resta a
visualizar e de tal maneira que ela, então, alterna eternamente entre ser e não ser. Se se
repara bem, no entanto, os versos de Verhaeren (à parte a diferença já externada, abstraída,
por Guimarães Rosa) não expressam uma eliminação de mesma estofa que a das definições
desitivas, em que o corte e o choque entre o estar aí e o não estar aí são mais violentos (sua
matéria, repito, é o não ser). Sinteticamente, eles enunciam que as estrelas pareceriam círios
cujos talos são imperceptíveis, e não inexistentes. Esta redução revela uma forma de
pensamento concentrada na subjetividade do (não) ver, e não na objetividade do (não) ter,
conforme se passava nos ditos lapidares do ex-balão e da ex-faca. Tivessem os versos
esquema mais próximo daqueles, diriam como que a# ! $
Eis, enfim, outro motivo para que o #efeito anedótico$ da conclusão deste poema de laivos
simbolistas, estou a falar com Guimarães Rosa, seja menos impressionante; e nisto não vai,
obviamente, nenhum juízo de valor.
Indo adiante, se Guimarães Rosa não esperdiça palavras, qual seria a necessidade de
registrar que tem ao alcance um exemplar de Verhaeren? Inter alia, preparar um paralelo
contrastivo com a informação de que cita, de memória, Apporelly (ROSA, 1985, p. 10)? Sem
dúvida, porém, a formulação compacta e arrevesada do trecho dispõe estrategicamente os
# $# $ quase
indistinto farelo do texto, a figuração do poeta belga. Deste modo se estabelece também outro
# $ !-Canedo. Duas últimas estrofes: Ya abriéndose la senda sobre el ocaso
rojo,/Cual planta de peonías, en la pendiente, místicos,/ Los árboles desnudos, los monges enlutados,/ Parece que
en dos filas dirígense contritos/ Al Dios que siembra estrellas en el azul del cielo;/ Y como vacilantes llamas de
inmensos cirios/ Cuyos tallos de cera se irguiesen invisibles/ En sus puños, los astros brillan sobre el camino.
http://literaturafrancesatraducciones.blogspot.com/2009/05/emile-verhaeren-y-diez-canedo-4.html. Acesso em
09/11/2011.
144
paralelismo: tal como mãos latentes seguram (a base d)as velas/estrelas, assim também a mão
do ficcionista, eixo interpretativo, sustenta a obra do poeta. Não se retorna, com isto, à
questão da múltipla autoria, da leitura ativa que tem a mão, a marca, de Rosa? Ao inventar
uma visão dos versos sublimes de Verhaeren, Guimarães Rosa está a reescrevê-los, melhor
ainda, coescrevê-los.
No poema, simbolicamente, o combustível (= haste) e o alicerce (= punho) dos círios
que cintilam nas trevas, talvez se possa dizer, a coluna e a mão de Deus que dão força e
suporte ao (significado do) mundo, são imperceptíveis, ou por outra, estão-e-não-estão-aí. A
partir desta sugestão imagética, seria possível indagar o que acontece em uma estória como
!. Há algum combustível esconso que se consome ali e se deixa perceber,
entre visível e invisível?
Para prestar contas a essa pergunta, pode ser de bom alvitre espiar o texto anterior,
-das-!
contraposição entre a postura, ao menos inicial, do personagem Teresinho e a das mulheres
que proferem preces por Drizilda. Aquelas senhoras são feixe de lenha mortificada,
verdadeiras vel(h)as do Arroio que se crestam e queimam pela felicidade da viúva. Uma vez
que a estória como um todo se mostra muito dócil a uma interpretação anagógica, torna-se
verossímil concluir: é Deus que se inflama nelas; é ele o sustentáculo misterioso de seus
lumes:
Tomavam, todas juntas, a fé de mortificadas orações, novenas, nôminas,
setêmplices adivinhavam, sérias de amor, se
entusiasmavam. Elas, para o queimar e ferver de Deus, decerto prestassem
feixe de lenhazinha enxuta. Para o forçoso milagre! (ROSA, 1985, p. 24).
Já a oração semidistraída do ansioso Teresinho, posto que esforçosa e até inspirada por
uma (estrambótica) obumbração mística, está carente daquelas mesmas qualidades ascéticas;
!
(ROSA, 1985, p. 22), menos que abrasar-se e consumir-se, deseja apenas fazer arder o
145
combustível material da vela. Seu fogo interior é uma paixão já, de começo, titubeante, que se
gasta ainda mais e se reacende em outra direção, Dlena. Teresinho espera antes mover a Deus
que ser por ele movido:
Devia, cada manhã, em igreja, acender vela e de joelhos ardê-la, a algum, o
mesmo, santo que não podia saber nem ver qual, para o bom efeito. O
método moveria Deus, ao som de sua paixão, por mirificácia dedo no
botão, mão na manivela segurando-lhe com Zidica o futuro.
Sem pejo ou vacilar, começou, rezando errado o padre-nosso, porém
afirmadamente, pio, tiriteso. (ROSA, 1985, p. 26).
Por algumas velas reais e mentais, conscientemente, Teresinho reza apenas para o
Santo incógnito. Por outras velas exclusivamente mentais, (quase) inconscientes, reza *$
!" $+ ao Diabo (ROSA, 1985, p. 26). Já quase no clímax do conto, pouco antes da
peripécia final, em momento-chave para a interpretação do título enigmático, faz-se rendido e
prostra-se '&"! $"$$"$"%"%"" *$-lhe a
alma aos pés dela+
No correr do enredo, toda a intervenção do alto oscila entre manifesta e imanifesta,
""(% ' ""(% !"# "#"%# *Arroio-das- #"+, narrativa que
confina com a fábula, é bem mais obscura * %+; tão nuviosa quanto o rosto
#" $*$$#$!+
fé desimpedida
das velhuscas e aquela outra hesitante de Teresinho encontram correspondência na convicção
e errância de cada um dos respectivos focos narrativos. As certezas de um texto e as dúvidas
de outro se embaçam reciprocamente. E por aí assoma a irresolução linguística (mas não
supralinguistica) da visão de mundo do hermeneuta Guimarães Rosa, que dá e não dá
fundamento à palavra; hesita, triste e brincalhão, entre o puro artifício e o arrimo
transcendente. Valeria o salto de Verhaeren a Rosa: Terceiras estórias também são lumeestrela, estrela-círio de que se vê e não se vê a base, a origem última do sentido.
Em seguida, o ficcionista refere-se a anedotas em que ocorre o que denomina
eliminação total. Ora, não era esta já uma característica distintiva das definições por extração?
146
Pelo único exemplo aditado, é possível deduzir que o fenômeno agora é outro. De todo jeito,
está ai uma passagem em que fica patente que o prefaciador se recreia, para o bem da
multissignificação artística, no método e jargão técnico-científico. A escassez de
ilustrações/comprovações para cada uma das espécies é um dos fatores que bloqueiam a
compreensão unívoca, bem como a medição da acurácia classificatória da teoria.
o que é: que é melhor do que Deus, pior do que o diabo, que a
(ROSA, 1985, p. 10).
Nas definições por extração, uma substância concreta (como uma faca) é transformada
em ex-substância quando sua compleição é desfeita inteiramente. Aqui, o objeto que é o
centro da imaginação sequer é dado; nem no início até por tratar-se de uma charada
nem no desfecho. A blague provê, isto sim, as qualidades abstratas (ao fim, resíduos ideativos
sem fundo nenhum) que, supostamente, seriam aplicáveis àquilo que ela incita a vasculhar:
algo melhor que Deus, pior que o diabo, comestível por mortos e vivos, conquanto mortal
para ambos. Isso equivale a afirmar que aquilo que se abstrai nem chega a ser representado;
quer se mate ou não o quebra-cabeça, o que é eliminado totalmente não é, a rigor, uma coisa,
mas a expectativa de que uma coisa, uma noção, um ser qualquer possa atender, ao mesmo
tempo, todas as exigências da pergunta: o que é? Expectativa esta inculcada por língua, hábito
e tipologia textual. Assim, as definições desitivas, chistes que constam de uma única
afirmação, e a adivinha, organizada em pergunta-e-resposta, diferem-se, antes de tudo, pela
estrutura imposta pelo gênero.93 Mas, em adição, parece que as primeiras, embora também, de
certa maneira, dêem em nada, laboram antes com o nada, enquanto o enigma da menina está,
sobretudo, às voltas com nada, coisa alguma, e daí tira sua graça. Naquelas, o nada é, desde o
começo, matéria cardinal da reflexão lúdica. Neste e em seu arremate, é mais o caso de que
93
O que não obsta que a adivinha seja, aqui, como é comum, aliás, fronteira ao chiste ou à anedota. A resolução,
por exemplo, é fornecida e prontamente; o escopo rosiano não é sonegá-la, como em uma prova ou desafio direto
ao leitor, mas exibi-la e discutir seus efeitos extáticos e estéticos.
147
nada
responde ao que se
pede. A meditação sobre o não ser e a linguagem é fruto indireto deste último gracejo; chega
em segundo tempo.
Um dos segredos de sua armação é o tratamento concomitantemente uniforme e
variado, natural e um tanto artificial
morfologicamente, sempre o mesmo; sintaticamente, não. Para as duas primeiras
interrogações, a resposta é um pronome indefinido em posição de sujeito, de modo a comporse, implicitamente, uma negativa simples que é habitual ao português: nada (é melhor que
Deus); nada (é pior que o diabo). Para as duas últimas, a resposta é um pronome indefinido
em posição de objeto, de modo a compor-se, também implicitamente, uma negativa simples (e
não dupla) que soa um pouco postiça: (a gente morta come) nada; (se a gente viva comer)
nada, (morre). A homogeneidade morfológica impressiona e concorre para a valoração da
tirada, pois é realmente a mesma palavra que resolve todas as questões. Por outro lado, a leve
afetação verbal subjacente à segunda parte (um embustezinho da menina) e as variações
sintáticas rendem certa elasticidade ao empreg
possa ganhar praticabilidade e inchar-se numa quadra de perguntas bem boladas.
Esse grifo, posto, pelo ficcionista, na boca de uma criança e conhecido, com variantes
ou não, em outros idiomas, representaria ou diria poeticamente o sempre irrepresentável
sertão e a sempre indizível brasilidade? Para Guimarães Rosa, plausivelmente, sim. Lembro,
em caráter meramente sugestivo, que, segundo André Jolles, a adivinha consubstancia um
saber coletivo. Decifrá-la é aceder a um grupo, a uma sociedade secreta ou clandestina, a uma
comunidade (o estudioso reporta-se, portanto, a círculos bem fechados). Tal peculiaridade
seria atinente às realizações cultuais arcaicas e, quando muito, em sentido aproximativo, ao
folclore; ou seja, às Formas Simples Atualizadas. Somente nestas, o enigma não cifra outra
coisa senão o mito do grupo (JOLLES, 1976, p. 48, 110 e 116-118). Ficam, pois, do lado de
148
fora do conjunto as Formas Artísticas e as Formas Relativas, as quais não passariam de jogos.
& - '!& " (&) /'!-se a impressão de que tudo, sem exceção, pode ser %#0
(JOLLES, 1976, p. 117 e 125). Não obstante, pergunto: essa charada endiabrada do sertão,
cuja palavra de passe é nada, não se situa ficcionalmente entre o folclore, o brinco douto e
humorístico e a pergunta-de-esfinge própria das iniciações ao mistério, em que as adivinhas
&+# /%(&0? Na fala de André Jolles: /sempre que a adivinha alcança o seu significado
mais profundo, é a vida que está em jogo, é nossa cabeça que se #0 /1 vinha
#( !#%%2 0 , p. 113-115). Sim, e! /Aletria e hermenêutica0 é dada de
bandeja a resposta. É somente depois, portanto, que o desafio tem sua entrância verdadeira,
prendendo-se não apenas ao dito da pequena sertaneja, cuja interpretação não se completa,
mas se inicia com o registro da resolução, como também ao prefácio e ao livro in totum, grifo
a ser desvendado pelo leitor. Claro, em comparação aos mistérios, a radicalidade interpelativa
de Terceiras estórias acha-se mitigada; no entanto, ainda é, pelo menos para a voz autoral,
não apenas estético-intelectual, como também iniciática.
Seja ou não seja, essa chalaça que beira perigosamente a má idiotice se revela, a meu
ver, bastante criativa. Alguém poderia ripostar que um grifo bem maquinado é aquele cujo
desenlace não decepciona, pelo contrário, surpreende prazerosamente. As interjeições
resultantes de todo o processo devem ser como estas: /(%0, / 0, /(*0/ #!os
#&0 / #! %0, etc. Aquilo com que antes nunca se esbarrara faísca diante dos
olhos: algo, impossivelmente, encaixa-se, de modo exato, no que se requesta. Justa, por
conseguinte, a indagação sobre a força de um grifo que dá para trás em sua prova de fogo.
Bem, o texto, na verdade, prevê seu sucesso engrolador porque graceja justamente com a
rigidez de pensamento e expectativa: apenas algo deve completar as exigências do que é?
Observe-se o remate "+# &!$ &!"' /"0 !& /, "0 '!,! "+# , #
menos linguisticamente, sim. Não existir coisa que atenda à incógnita não é o mesmo que não
149
haver boa réplica. O malogro na des-coberta do objeto está integrado humoristicamente à
+punch line,. A não resposta é a resposta. Não há nada que satisfaça à pergunta senão o
pronome indefinido nada. A solução não está no ser, aliás, nenhum, mas na palavra.
+ !
,ou + $,+#&,+"(
Neger, ou na quadra de Apporelly, citada de memória:
+ !
ceroulas das mais modernas,
não têm cós, não têm cadarços,
não têm botões %',
E é provocativo movimento parafrasear tais versos:
Comprei uns óculos novos
óculos dos mais excelentes:
não têm aros, não têm asas,
não têm grau e não têm lentes...
Dissuada-se-nos porém de aplicar por exame de sentir, balanço ou
divertimento a paráfrase a mais íntimos assuntos:
Meu amor é bem sincero,
amor dos mais convincentes:
.................(etc.). (ROSA, 1985, p. 10-11).
Tentativamente adaptando:
Eram dez negrinhos
dos que brincam quando chove.
Um se derreteu na chuva,
ficaram só nove.
Eram nove negrinhos,
comeram muito biscoito.
Um tomou indigestão,
ficaram só oito.
(E, assim, para trás.)
150
O escritor vai levando à frente, nesta prefação tão faceiramente acadêmica que até
brinda o leitor com traduções e notas de rodapé, sua classificação irisada, sempre em jogo
com a larga generalidade da noção de abstrato que serve de ponto de partida.
Na eliminação em série, a supressão da imagem ou ideia que é o coração dos versos
negrinhos, ceroulas, óculos ou amor também se dá por completo. Somente não se
precipita; sucede-se como em regressão "E, assim, para trás.#
continuidade do estilo contrasta com a subitaneidade dos grupos anteriores, mas a viagem
para trás antiperipleia ainda é o modelo dinâmico-formal da anedota.
A parlenda dos dez negrinhos, célebre no Brasil devido ao best-seller de Agatha
Christie, teria "Intruge-#, narrativa protagonizada por um tipo de detetive
sertanejo, Ladislau. Ele é o líder de uma comitiva de boiadeiros cujos nomes estão todos
arrolados até o final da primeira página. Este procedimento é estratégico porque materializa
para aquele que lê um elenco ou uma lista de treze suspeitos de assassinato, incluindo, em
primeira leitura, o próprio narrador.94 É ele quem apanha oito favas pequenas de jubaí e faz
corresponder cada uma delas a alguns dos homens de que, naquele instante, particularmente
desconfia. Lança-as fora uma por uma, conforme a hipótese se mostre infundada e isto até
acabar de mãos vazias... Tal processo, conquanto não idêntico, evoca a exclusão seriada,
visto que cada vaqueiro nomeado vai deixando de existir para a suspeição de Ladislau. Não há
aqui a maneira direta da parlenda, é óbvio; tudo é bastante tortuoso por causa de informações
imprecisas e propositadamente atrasadas, o que está a serviço do clima de mistério, da
charada da identidade do assassino.
94
O formato da justaposição frouxíssima de elementículos ou do dicionário ou do inventário ou do maximário
ou do anedotário ou da criptoteca ou da série ou do catálogo ou da lista ou da enumeração (mostrativa ou
nomeadora do mundo) é matricial em Tutaméia. Laqueia-se a uma problemática e imagética presente desde
Corpo de Baile " -de-# Primeiras estórias " # "
referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de
meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da
precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo #
(ROSA, 1988, p. 22, o negrito é meu). As Terceiras estórias trazem à ribalta nadas que, literalmente, entraram
(ou perigam entrar) para o rol do esquecimento.
151
As ceroulas-não-ceroulas, cômicas porque reais e irreais, inimagináveis, sugerem
também nudez. É por esta trilha intratextual que se estampam risíveis, para mim, certas
ceroulas $*# ,# "#- " &$"-se se não há uma identidade
cômico-*" $" # ,' # " !% "$)## $" # %#
#$""(#"%#-
De qualquer maneira, em sua paráfrase da estrofe das ceroulas, o autor introduz mais
uma (des)imagem que, tal como acontecera com o telégrafo sem fio, tem força suficiente para
extrapolar a estrita cercadura da anedota e alcançar estatuto metatextual; os óculos novos, sem
aros, sem asas, sem graus e sem lentes são pequena alegoria do ponto de vista de Terceiras
estórias, que é objeto de desejo. O lugar de fala aqui é menos um construído estático e
positivo que a construção de um vazio in fieri; oco que, na verdade, também aparece, brota,
fulgura.
Estes óculos tutameicos não possuem nada daquilo que torna possível a visão,
malgrado também a limite. São óculos que melhor se chamariam talvez desóculos ou
ex-óculos, para usar chave de leitura da blague antecedente. O ledor talvez experiencie que,
conquanto conceba, de algum modo, esses óculos negativos, contrastivos, nada vê. Com eles,
mira-se de todo lugar e de lugar nenhum. Ou não prestam para nada ou operam o milagre de
fazer ver sem enquadrar. A contemplação sem cerceios, a entrada em outro tipo de mirada, é
aproximável da cegueira. São ainda óculos? A força encantatória das palavras ordena que, se
se diz que sim, sim, embora estejam privados de tudo o que essencialmente os constitui. Mas
e aí? São e não são. Existem linguisticamente, nunca factualmente. O riso nasce também da
abstração, do cancelamento do consórcio que une as palavras e as coisas.
O ficcionista passa da concretude (negrinhos, ceroulas, óculos) para a abstração,
inserindo-a, a ela que usualmente goza de talhe nobre e sisudo, na ciranda dessa brincadeira
antilógica e infantil. Com efeito, a última paráfrase, não finalizada, traz por assunto o amor.
152
Ela é precedida por uma (auto)dissuasão que cheira a ironia. Guimarães Rosa menos
desencoraja que convida a que se tope a reinação perigosa e complete a singela quadrinha. É
ambição do prefácio que as antes insuspeitadas chalaças encaminhem o leitor para uma
sempre arriscada via de autoconhecimento; o que se ronda é, justamente, um íntimo e ignoto
vazio difícil e bom de facear. Aquele que aceita o desafio, monte a coplinha como bem lhe
aprouver, tem já prescrita, pelas fórmulas anteriores, uma ideia reversiva que suprime a si
mesma: amor sem desejo, sem afeto, sem sujeito, sem objeto.
Autoconhecimento do receptor da obra à parte, é pertinente anotar que existe aqui algo
que está muito perto ! ( * ! +. Nela,
!!&! *' ! +
$ ! *# & ! " + ! ! ! *#
ec!+
! !(%
dos acontecimentos, claro, é que Titolívio, camarada seu, teria sustentado, durante
determinado período, amor esquisitíssimo: não foi dono do sentimento entre falso e
verdadeiro !!!!(* +
p. 56). Em outras palavras, o caso amoroso careceria de sustância. Amor, amada e amante,
tudo se faz fantasia, ficção; e o afeto, fluido transmissível... Seria Titolívio imitador
contagiado pelo sentir secreto do amigo narrador, que, de alguma forma, ama Orlanda por
meio dele? Ou, ao contrário, é o protagonista quem o arremeda por antecipação? Quem é
duplo de quem? (ROSA, 1985, p. 156).
Na sequência, o interesse do prefaciador volta-se para certo efeito estético de desilusão
drástica e é sempre bom reparar nesses entretons levantados pois eles têm ressonâncias nas
narrativas de Tutaméia:
Com o que, pode o pilheriático efeito passar a drástico
desilusionante.
153
Como no fato do espartano nos Apophthégmata lakoniká de
Plutarco que depenou um rouxinol e, achando-lhe pouca carne,
xingou: * '& ! +
Assim atribui-se a Voltaire que, outra hora, diz ser a mesma
a estrafalária seguinte definição
*"
$##+
Seja quem seja, apenas o autor da blague não imaginou é que o
cego em tão pretas condições pode não achar o gato, que pensa que
busca, mas topar resultado mais importante para lá da tacteada
concentração. E vê-se que nessa risca é que devem adiantar os koan
do Zen. (ROSA, 1985, p. 11).
A primeira blague até porque o texto dá margem a que se estime que Rosa continua
raciocinando em termos de subgêneros, mas agora com foco em outros efeitos poderia ser
encarada como caso de eliminação parcial: saem penas e corpo, fica a voz. Contudo, *
+ (
%$
mais estrita. Comento algumas delas.
O que é o que é que seria abstraído nesse xingamento de matiz epigramático, isto é,
compacto, zombeteiro, conceituoso? Antes de qualquer coisa, as penas do rouxinol (sim,
abstrair equivale aqui a depenar). Depois, já em outro plano, em sentido figurado, todo o seu
corpo. O sujeito dessas eliminações é um personagem deixo de lado agora as abstrações do
humorista ou do leitor. O severo espartano (mais um tipo, assim como o português, o inglês, a
criança) retira do pássaro toda a carnalidade e faz sobrar, desvalorizado, apenas um elemento
que fica entre o material e o espiritual: a voz. Dito de outra maneira: há duas séries de
exclusões, e de naturezas distintas: uma denotativa (o pássaro é realmente depenado) e outra
conotativa e hiperbólica (pouca carne desliza para nenhuma carne). Como falar de eliminação
parcial se a retirada das partes, em níveis semânticos diferentes, não produz aquele efeito de
alternância ou piscação entre presença e ausência, sobressalente nos versos das estrelas-círio?
& & * +
1985, p. 13), o ironista mineiro exime-se de etiquetar as chalaças de modo pormenorizado. O
mais seguro para o ledor é pensá-las dentro da nomenclatura geral de anedota de abstração;
154
isto porque cada chiste chamado à baila tem arquitetura bastante complexa e dificilmente é
encaixado de forma incontroversa nas subdivisões inventadas. Estas são, de ordinário, apenas
rascunhadas; têm sua base, como já se observou, em uma ficção poética muito singular, e não
na eficácia de uma lógica arquivística, apesar de todo o jeitão teórico- Aletria
e hermenêutica.
De volta à anedota (logicamente bem menos tonteante que suas antecedentes
imediatas), é de apontar que muito de sua riqueza lacônica reside em que nela se descortina
uma conflução de mais de um artifício retórico: a referida hipérbole, uma metonímia o
pássaro define-se por uma de suas propriedades, a voz , e uma metáfora: ele é como ela,
bonito e sem préstimo para o êstomago.95
Porém, o que sublinha, abstrai, o autor é a desilusão como efeito-impressão das
abstrações do personagem. De subtração em subtração, o sujeito desaponta-se com o pouco
proveito que lhe trará a carne e menoscaba a voz, signo do imaterial, do belo e do poético. Seu
espírito pragmático, para o qual o trinado animal é pura futilidade, contrasta com aquele que
subjaz a este livro tão descarnado que é Tutaméia; aqui o estético é assunto privilegiado de
meditação (e é dessas minigâncias que se vai desenrolando, por contradição, o útil e o
interessante). Não casualmente, em eco desta passagem
Aletria e hermenêutica, a
primeira seção de Sobre a escova e a dúvida rabisca um Guimarães Rosa-rouxinol que é
orçado (sob certa visada, por si mesmo, num sentimento de culpa pouco enrustido) como
beletrista sem conteúdo sociorrevolucionário; literato devedor de matéria carnuda Você é
o da forma, desartifícios... debitou- , 1985, p. 164).
Quanto ao suposto dito de Voltaire, ainda posso insistir na demonstração de como fica
entralhada a subsunção das anedotas que vão despontando às espécies ou subespécies do
95
A metonímia apoia-se em uma relação real e lógica de contiguidade; a metáfora, em relação mentada e de
comparação (GARCIA, 1988, p. 93-94). A voz é parte real do todo, o pássaro, e o substitui na oração; por outro
lado, há um cotejo implícito e subjetivo entre ambos.
155
prefácio. O motete da metafísica é conchegável à eliminação parcial, à definição por extração
e à eliminação total, sem, todavia, assimilar-se a nenhuma delas. Para ater-me só à eliminação
parcial, desenvolvo algumas das convergências e discrepâncias.
No símile de Verhaeren, o poeta apaga, abstrai, mais propriamente da percepção do
que da existência figurada, algo que é, ao mesmo tempo, uma porção do cenário e uma fração
de um objeto: a haste da vela-estrela que resta-e-não-resta ao final dos versos. Aqui o
humorista, também no extremo da anedota e, no entanto, de maneira mais radical, está a
banir, abstrair, da realidade desenhada algo que erro do cego nunca está nem esteve lá:
o gato, metáfora do Ser. Pode-se sentir também a diferença com relação às definições
desitivas do nada e às estrofes dos óculos e das ceroulas. Elas forjam o absurdo de formas que
são e não são, estão e não estão, e, ambas, definições e estrofes, nele se comprazem,
enquanto a (suposta) broma voltairiana, organizada a partir da oposição realidade x
irrealidade, emite um juízo contra a estupidez risível de concentrar-se, na verdade, perder-se
naquilo que não é. O gato, por sua vez, não é somente parte de toda a visão criada, mas
também coisa integral. Compondo-se o texto como uma definição, a centralidade do bicho é
notável: ele é o núcleo da ideia que se pretende explicar, a metafísica. Assim, se, por um lado,
a última imagem, de modo semelhante às hastes do poeta belga, permanece-e-desaparece, por
outro, é muito mais forte a impressão de nulidade: no miolo (do nome) da metafísica não há
nada.
Trocando em miúdos, a metafísica é busca obtusa de objeto inexistente. Aí está a
reflexão de volta ao tópico da inutilidade; pouco antes, do belo e da arte, e, agora, de certa
filosofia da coisa em si. Nas mesmas imagens confeccionadas pelo gracejo: a metafísica é um
cego; de olhos vendados; em quarto escuro; à caça de um gato preto. Estes acréscimos em
série de informação estão a serviço da subtração total do alvo, até que, finalmente, se dê a
abstração icônica propriamente dita: o gato... Ops! Não está lá. Gozado é que, com exceção
156
do primeiro e do último, os demais fatores de embaraço que trabalham para tornar a empreita
cada vez mais descabeçada, se tomados literalmente, fazem sentido apenas para quem
enxerga. Acumulados progressivamente rumo à escuridão mais inescurecível, não dizem
absolutamente nada ao cego. A rigor, só pode atrapalhá-lo sua própria natureza e o fato de o
gato não estar lá.96 Não que o sujeito ($%#1%* !#%$ +.$2 $#'
Guimarães, desconfio, com pitada de ironia; mas é que boa parte da principal estratégia
argumentativa dissimula uma duvidosa gradação. A tenção complicadora, que faz rir com o
ultracegamento, hiperbólica para efeitos de retórica, torna-se, ela mesma, um tanto ridícula e,
aí, perde um pouco de sua força. Isto só é possível porque o inventor do motejo concebe um
homem privado da vista, mas transfere para ele um transtorno que, em muito, só pode ser o de
quem vê; não assume a perspectiva do cego, sua (des)ótica. Tanto é assim que tem visão
superior; sabe o que ele não sabe: o gato não está lá. Em certo sentido, é o ponto de vista do
cego que é o ponto cego dessa crítica mordaz à metafísica, concebida como ciência de
resultados, finalista &#! #&#$ '* !#1#/#2 $"&%
bedelho no aposento e imagina e vê aquilo que o autor da blague não imaginou e não viu:
quarto sem gato não tem de ser necessariamente quarto vazio; a metafísica ou o objeto que ela
descobre, pelo menos para o ironista mineiro, podem sempre ser outra coisa.97 Também para o
cego que não sabe que o gato sonhado não está lá, tateá-lo ainda é uma opção. Ver-se cego,
carência-virtude, é condição !#$ 1 $&!'#$ "&"&',.2
(ROSA, 1985, p. 19). E aí, quando as trevas são aceitas e viram sinal de deslocação do olhar
da evidência para a esfera do invisível , as surpresas podem dar o ar de sua graça. Por
96
Nada se diz sobre o grau da cegueira, de maneira que se tem margem para supor que é absoluta. Afinal de
contas, cego é, na compreensão mais geral e instantânea, aquele que não vê.
97
Ponha-se em paralelo o comentário de Kierkegaard à procura kantiana 1)'#"&%$% &
nesta coisa an sich (em si), mas ou ele persistia infatigável, com a ajuda do pensamento subjetivo, na tentativa de
captá-la, e uma vez que era algo impossível, lhe restava a grande vantagem, aliás bastante irônica, de continuar
esperando para sempre; ou ela (sic) a rejeitava e tratava de esquecê-la. Quando, ao contrário, quer às vezes
mantê-$' ' -% 2 !
157
isso, a comparação com os koan, em que acontece quebra de expectativa, intermissão do
pensamento e súbito despertar:
Para provocar o satori o método mais comum é o emprego do Kean, que
consiste em uma pergunta cuja resposta não corresponde às leis lógicas.
O exemplo clássico é atribuído a vários mestres. A um deles perguntaram:
5) 0 # ) 6 &'$#") 5&1' &' "#6 ' #!"(&'('
advertem que a resp#'( ".# 0 '!3 #)(&# $&)"(&! 5#& %)
veio do oeste o Primeiro Patriarca?6 &'$#'(# 5$&'( "##&(#6
(BORGES, Jorge Luiz; JURADO, Alicia, 1977, p. 92).
Desocupar a cachola não é coisa simples. É proeza: 5homem nunca tem a mente *,6
(ROSA, 1985, p. 187). O sertão é território em que a cabeça anda cheia; o estômago, sim, é
que vai mais facilmente vazio.98
Enfim, para bulir na blague, o fabulador não teima que o gato esteja lá; cisma, isto
sim, que o que se pode vir a achar nessa cabra-cega transcendental não é necessariamente o
que se especula; recusa-se a tomar a ausência preanunciada como desencorajamento. Em
contextura mais ampla, é possível pôr a troça da metafísica em apenso àquela citação de
Sêneca que é uma das epígrafes de 5Sobre a escova e a dúvida6
5&# !' - &- ' + "( ) $'%)' * '3 $ # "( ()
exercício, e que ficam sempre fora da vida; outros investigam-se com prazer
e com proveito se resolvem. De todos te ofereço, cabendo-te à vontade
decidir se a indagação deve perseguir-se até ao fim, ou simplesmente limitar')!""/.#$& )'(&&#&# #'*&(!"(#'6 $
174).
Terceiras estórias certamente têm maior sintonia com tais palavras ou com o gosto
viageiro !$ 2(#"*# (&"5&#!"#'$2&(#6 ainda que a aventura ou o
périplo seja às escuras, às tortas, às avessas. Tacteada concentração.
***
Expostos alguns dos movimentos básicos do prefácio, reporto-me, um tanto
bruscamente, às suas páginas finais, a fim de que dele se obtenha uma visão mais
Dor de ou na cabeça é Leitmotiv marcante de Tutaméia#!)!%)1&' 5# corpo todo tinha dorde-cabeça6OSA, 1985, p. 136). Cf. p. 144, 185, 197 e 205. A cabeça é ou lembra uma caixa. Cf. p. 194, 198 e
# #''-Sobre a escova e a dúvida6''#&! $##!$#&(&#)".#'#'' 5Agora o caso
".#"#!"#''/6 985, p. 86).
98
158
integradora.99 Para dar fechamento ao círculo das ideias, círculo este repleno de blanks ou
gaps como o mapa do sertão rosiano, abordo a temática do sublime e retomo a discussão do
início deste capítulo sobre o exercício da argumentação e
Aletria e
. No que toca ao sublime de Terceiras estórias, já registro: sua química
linguística não me dá impressão de homogeneidade.
Por onde, pelo comum, poder-se corrigir o ridículo ou o grotesco, até leválos ao sublime; seja daí que seu entrelimite é tão tênue. E não será esse um
caminho por onde o perfeitíssimo se alcança? Sempre que algo de
importante e grande se faz, houve um silogismo inconcluso, ou, digamos, um
pulo do cômico ao excelso. (ROSA, 1985, p. 16).
Sem separações estanques, e sempre da perspectiva da fenestreca da palavra tutameica,
sublime pode ser, antes de qualquer coisa, a própria fenestreca: a linguagem, como forma de
(des)discurso; também uma ação, como o heroísmo trágico e circunspecto de Hetério; um
objeto ou ser, como o cavalo Lirialvo, o boi e a girafa; uma brevíssima cena ou flesh, como
alguns átimos da lapinha do Tio Bola, etc. Além disso, é possível que se carimbe com o selo
do sublime uma sensação ou emoção ou sentimento, uma atitude ou maneira de ver ou ser,
uma condição espiritual. Aqui se franqueia que o vocábulo pode corresponder, sem
obrigatórias exclusões, tanto a uma vivência substantiva, ao sublime em si mesmo ou
propriamente dito, quanto a uma vivência adjetiva, ao sublime, por assim dizer, periférico,
acoplado a um substantivo qualquer, como o amor sublime de Romão, a alegria sublime de
Sinhá Secada, a
Pontualmente, no extrato acima, metalinguístico, o sublime notabiliza-se como
substantivo; esbambeia entre as esferas de criação estética, filosófico-metafísica e religiosa (e
também ética, embora aí bem mais problematicamente e esfingeticamente).
No mesmo prefácio, em particular, o sublime é produzido ou, quando menos, sugerido
ou engatilhado, de maneira consciente ou não, por meio da técnica de composição da forma
anedótico-poética e/ou por sua hermenêutica, seja esta, em câmbio, automática ou
Minha in Aletria e hermenêutica
possível. O leitor há de perdoar-me este salto nem um pouco sublime.
99
159
sobrerreflexiva, meditativa. Tem por matriz estilística (seguida, em linhas gerais, a orientação
ficcional do último trecho citado, mais analítica que sintética) um arranjo que sai,
principalmente, do ridículo ou do risível100, passa pelo comum (prosaico? universal?), para aí,
então, altear-se; entretanto, nem a presença integral dessa tríade nem sua sucessividade ou
linearidade devem ser tomadas inflexivelmente.
Ao sublime tutameico não se chega, ad extremum, por uma reta ascendente, e, sim, por
uma arremetida. Isto é, seguem-se normalmente os trâmites do verbal, do imaginativo e
intelectivo já com seus silêncios, espasmozinhos e despassamentos da lógica convencional;
todavia, o sublime antes i-rrompe, sobre-ssai, numa espécie de transportamento (quase)
inteiramente não verbal, entrado a uma significação superior;101 tudo isto de tal sorte que se
retorne para a linguagem, conforme indigitam as rúbricas entre os chistes (embora elas
próprias possam encapsular o sublime), a posição apenas inicial (ainda que movente) do
prefácio e o terminus rotatório de Tutaméia.
Num aproveitamento da farta revisão teórica da categoria102, o sublime do livro
poderia ser apreendido como uma sensação ou experiência de vazio e plenitude,
horror/angústia/susto/choque (há, nas piadas, inclusive, uma punch line), mas também
entusiasmo perante o inominável ou o escomunal, o sem-sentido das palavras e das coisas (a
seleção e a mixagem e a proporção dos ingredientes são variáveis); enfim, momento psíquico
excepcional em que o espírito se vê diante de um excesso ou grandeza, altura ou fundura, que
o fascina e subjuga, inunda e aniquila, ilumina e entreva.
Posto tudo isso, eis, então, uma das explicações plausíveis para a configuração da
obra, embora por demais globalizante, a meu ver: diante do sublime seja o informe, o
100
O grotesco terá papel vultoso apenas nas estórias. Por outro lado, nelas, torna-se muito mais ostensivo que o
sublime não parte obrigatoriamente da comicidade; há, para ele, outras construções além desta agora em pauta.
101
Óbvio, não é imperioso, em absoluto, que o humorista ou o inventor da anedota ou o poeta vivam o sublime
real e interiormente enquanto o criam ou o preparam verbalmente. Por outro lado, também a vivência do
sublime de Tutaméia por parte do leitor é, em boa dose, contingencial.
102
Ver, por exemplo, Aristóteles (1992), Victor Hugo (2004), Schopenhauer (2009a), Abbagnano (2000),
Abrams; Harpham (2009), Mikics (2007), Aron; Saint-Jacques; Viala (2010).
160
nada, o divino , todas as coisas se fazem miudinhas, tutameicas. A narrativa o insinua, mas
rateia sempre: gagueja, despedaça-)$*(#%"&)%#+5$*/%%$((%(%%
fio. Toda estória pode resumir-se nisto: Era uma vez uma vez, e nessa vez um homem.
Súbito, sem sofrer, diz, afirma: 7 Mas não acho as palavra)6
&%
negrito é meu). Por coerência de leitura, e em que pese a generalização rosiana, por sinal,
hiperbolizante, prefiro balizar o campo de operacionalização do conceito, de jeito a pespegálo a passos determinados.
)%*(1)-#&"%)&(!#!(%5+(!$ %)*3(!6 5'+$/%-!)*#!)
descontornada, nem pode sozinho lembrar-se, sufoca-o refusa imensidão, o assombro
%#!$.,"6
&
)+$%5!*%6
Remoto, o touro, de imaginação medonha a quadratura da besta
ingenerado, preto empedernido. Ordem de mistérios sem contorno em
mistérios sem conteúdo. O que o azul nem é do céu: é de além dele. Tudo
era possível e não acontecido.
[...].
Errático, a retrotempo, recordava-se sobre nós o touro, escuro como o futuro,
mau objeto para a memória. Põe-Põe fingia o pio de pássaros em gaiola, fino
assobio. Nhácio ora desabria sacudidos dizeres, enrolava mais silêncio,
ressofrido. O touro, havendo, demais, exorbitante, suas transitações, e no
temeroso ponto, praça ao acaso. (ROSA, 1985, p. 73-74).
O terceiro, do próprio prefácio:
reduzir a girafa, que passava da marca: 5%1)*.,$%))! %2
%!) " $/% -!)*6 como recurso para sutilizar o excesso de
existência dela, sobre o comum, desimaginável. Dissesse tal: Isto é oque-é que mais e demais há, do que nem não há... (ROSA, 1985, p. 13).
$%0/% % )+"!# *" %#% )$,%",! # 5Aletria e hermenêutica6 *#
defrontações ou arredores semânticos bem específicos: o prosaico, o minúsculo, o ridículo, o
cômico, o grotesco. Não é o tracejamento destas fronteiras que dá o diferencial ou a nova
rosiana;103 porém, em primeiro lugar, sua confinidade, interpenetração aguda e... distância
103
Para Jean Paul, v.g., o sublime ou o admirando opõe-se ao risível, que consiste no infinitamente pequeno
(ALBERTI, 2002, p. 161 e 167). E, como se verifica no prefácio de Cromwell de Victor Hugo (2004), é clássico
o antagonismo entre grotesco e sublime, ali, a propósito, também adversado.
161
salto mortale (ROSA, 1988, p. 72); em segundo lugar, o trabalho formal
implicado por isso tudo. Assim é, por exemplo, na comicidade grotesco-sublime da
; comicidade esta que se alquimiza, por
um pulo misterioso, no desenho da catadura feérica do padre penitente:
O padre inaplacado orante tempo seqüente. Ele se ajoelhara, em cruz os
braços, lá onde estariam enterrados os corpos hic situs est... exstinctus...
sem figuras, só pó, no dormir infrene, sob pedras que muito se pisavam.
Todas as noites não rojam uma igual profundeza. Cá o sacristão também se
prosternou, junto ao harmônio. Recuara o maçom, até à parede, ao grande
olho gradeado.
[...]
No repente!
O padre caído dele se afastava, gerara-se, quadrúpede, formidando, um
ente... O maçom e o sacristão, em esgazeio de estupor, viam o que tresviam.
Sombração.
A porca preta! desdominada, massiva, peluda pulava o gradil, para a
abside, galgava os degraus do altar, vindo estraçalhar a toalha, mantel
puríssimo de linho... Mas, empinada, relanceou para cima fogo, em pez e
fauces. [...]
[...]
Todavia, desde a data, ele se transformara afinado, novo diáfano, reclaro,
aí se sorrindo parecia deixado de toda matéria. Também, e tão velhinho
moço, depois logo morreu, suave, leve, justo, na sacristia ou no jardim, de
costas para tudo. (ROSA, 1985, p. 202).
Existe aí, claro, uma herança milenar, e o ironista não deve pouco a ela. Não obstante,
sou descrente da possibilidade de subsumir o sublime tutameico, sem mais nem mais, a
quaisquer das teorizações modelares (Longino, Burke, Kant, Schiller, Hegel e Schopenhauer).
Entre outros fatores, como a interpretação que eventualmente se faz do que ocorre com a
razão em todo o processo, há um que me soa inapelável: a dicção elevada uma das
características distintivas desse estilo mina-se no prefácio e nas estórias; nunca se atinge a
altissonância e a eloquência tradicional, assim como o Zito, aliás, sertanejamente a
concebe:104
Aprovava maneira maior: arrancos, triquestroques, teúdas imagens, o chio
de imitar as coisas, arrimada matéria, machas palavras. Do jeito, seu ver,
104
O poeta-guieiro sabe apreciar também a maneira miúda (ROSA, 1985, p. 182).
162
devia de ser um livro para se reler, voz aberta, mesmo no meio de
barrafa, galopes, contra o estrépito e eco dos passos dos bois nos anfractos
da serrania. (ROSA, 1985, p. 180).
Por contraposição, aviste-se agora, a visar efeito de sublime, a discrição na descrição
$ )"%!$ #)'! -# ($ ( )'+( #$"#(*'.+( #$) 6' %ara o
lugar: fechada quieta a igreja, sua frontaria de cem palmos; o adro mesmo ermo com o
cruzeiro e coqueiros $1*(()'!$7
%
Ou a clivagem, a latência, a exiguidade e a pequenez das imagens supinas, a serem
pinçadas por lente microscópica:105
[...] Tio Bola tateou o cocho: limpo, úmido de línguas. Empinou olhar: a
umas estrelas miudinhas. Espiou o redor caruca que nem o esquecido,
em vivido. Tio Bola devia distrair saudades, a velhice entristecia-o só um
pouco. Riu do que não sentiu; riu e não cuspiu. Estava ali a não imaginar o
mundo.
Deitava-se no cocho? Não como o Menino, na pura nueza... O vôo de
serafins, a sumidez daquilo. Mas, pecador, numa solidão sem sala. E um
tiquinho de claro-escuro. Teve para si que podia não era indino até o
vir da aurora. Que o achassem sem tino perfeito, com algum desarranjo do
juízo!
[...] Viu o boi deitar-se também riscando primeiro com a pata uma cruz
no chão, e ajoelhando-se como eles procedem. O mundo perdeu seu
tique-taque. (ROSA, 1985, p. 135-136).
Ou o prosaísmo da conversa oca, sublime e cord-ata do ex-dono do cavalo com o exdono do retrato, bem como a contenção "$)+ #''0/$ 6( foram, conformes no
ouvir e falar, mero conversando assim aos infinitos, seduzidos de piedade, pelas alturas da
#$)7
p. 149).
Ou, finalmente, o nada de prolixidade do sublime de certas gnomas tutameicas:106 6
mundo, vão de descomedir-se, mofoso confuso removendo-se.7985, p. 200). 6
o absoluto amar &*!&*'*((''*)7
%
6'!+.!$#
$##$ +') &* ($# *#) $ (*!" (%'(/$ ( 6,%'((3( '#$((7 #'&*"-no o
6()!$ %$' "( ''$ '"#)$ " %!+'#( %$*( (2!(7 $ 6excessivo retalhamento das
'((7&*#$16reduzida a dimensões curtas demais, a grandeza mutila-(7 (ARISTÓTELES, 1992, p. 109 e
110).
106
Entre um sublime amplificado, abundante, e outro, adensado, Rosa escolhe este último, avalizadíssimo por
Longino $ (*!" 1 $!"$ 6"*)( +-( )1 #*" 4#$ %#("#)$7 A compressão do estilo da obra
rosiana, no entanto, truísmo dos mais puros, é de um grau que desmantela o estalão clássico. (ARISTÓTELES,
1992, p. 84).
105
163
,'+$'/')&*+%'"4
%
). A trechos, o sublime coincide com
os momentos sentenciosos do estilo, os quais o crítico Paulo Rónai costura, com acuidade, à
linguagem oral do sertão (RÓNAI
% 3 ()0' $ $"" $ #*!$4
verbaliza pensamento similar3Súbito acúmulo de adágios recurso comum ao homem do
campo, quando tenta passar-se da rasa realidade, para principiar em fórmulas suas
abstrações4e, p. 158).107
Muitos teóricos ensinam que não há conteúdos sublimes a priori e que isto se dê
aqui por aceite. Entretanto, a seleção temática de Terceiras estórias vai de encontro aos
lugares-comuns da Retórica e aos padrões da Estética e do Romantismo. Onde, só por simples
exemplos, os trovões da guerra, as arquiteturas gigantescas e a infinitude oceânica? As
"%#( "!)'( ()-$ ()#)( '$' (-$ %#( "#( 3%'*'4
construção maior que resta lembrável é o sobrado-($!%'$+##$3*')"-$4, nem por
isso sublime; além dele, com bem menor espaço narrativo e força de impressão mnemônica,
uma e outra casa-grande, etc; finalmente, mal se tem notícia de massa de água salgada. Sim, o
sertão ainda é, implicitamente, imensidão deserta, grosso mar engolidor; seu marasmo e
desolação, sobretudo, horriferamente acaçapantes. Mas onde aquela linguagem pletórica que
tudo arrasta consigo, aquela vastidão evidente, aquela emoção arrebatadora de um Grande
Sertão: Veredas, em que o sublime atinge cumes soberbos?
Entre o Grande Sertão e as veredas, é por estas que opta entranhar-se Tutaméia se
bem que, tanto em uma obra como em outra, grande e pequeno não se oponham
simplesmente.108 Sim, cá e acolá, existem, no opúsculo último de Rosa, atos magnânimos,
mortes trágicas, gigantismos naturais e cataclismos motivos que tradicionalmente
107
Não que haja cópia do que seria apenas (será?) conservador, proverbial, na fala sertaneja. In statu nascendi, o
rifão de Tutaméia deriva de rasgos (re)criativos, energias disruptivas. Cf. nota 31, na pagina 53 desta tese.
108
Em Sagarana, o contador ainda escreveu 3$'&* #) *" '+), (!+ "$! " ''$ 1#$
dizer-se apenas drimirim ou amor-meuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para
cima cinqüenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo Ó
colossalidade! # '.-$ !)*'4 % Embora insegura, tendo a achar que, ali
também, o apequenamento do sublime já entrou em vigência, posto que não esteja radicalizado.
164
&$!&$& &!%' /"!$ chuvas e trombas, desesperara-se o povo, à
estraga, em meio ao de repente mar as águas antepassadas por cima o Espírito Solto.
&-$! &( &,! %'%&0
" % )%& &- $' %
namorados, obsessões comezinhas, ações, perdas e êxitos sem grandes ecos, quinquilharias:
acontecimentos (aparentemente) triviais. Sob enfoque romântico ou clássico, o livrinho
rosiano seria prosaico demais para ser sublime; muito colado ao humorístico, ao a-pático, ao
desarmônico e ao minutíssimo. A porfia poética de Guimarães Rosa é justamente esta:
arranje-se você com óculos novos e mire e veja se não seria sublime demais para ser prosaico.
Para mais enredar, pode ser dito que uma boa porção ! %' /Aletria e
hermenêutica0& &!!$!Terceiras estórias, paira em algum lugar no envés do texto,
no negativo das imagens; um tanto invisível, situa-se mais no branco da página do que no
preto da linha. Como se o silêncio gestasse o sublime, que, por sua vez, só pudesse rebentar
para a consciência ficcional ou espiritual à força de um toque ou de um tranco: seja da
inspiração, do insight, do acaso e da argúcia (serendipity), da liberdade, de um não sei quê.
Ou como se o sublime se apresentasse, a quando e quando, de modo análogo ao avião de
""!$* /1 $!%+ &$$$#' ! ,!%!(20
"
12). $$ &! / $%0 %$ )"! instar omnium. Haveria em tudo isto
alguma relação com o parecer de que, na modernidade, o sentimento religioso é recalcado ou
se refugia no inconsciente, manifestando-se nos sonhos, nos lapsos, etc.? (ELIADE, 1999, p.
11). Não me inclino de todo à hipótese, antes de qualquer coisa, porque ela me parece mais
consentânea com o universo europeu. Em todo caso, fica posta a pergunta. Para completar, o
emburacamento e apequenamento do sublime, sem deixarem de ser isto o que são, plano
estético, amarrar-se-iam igualmente ao momento histórico brasileiro. A pulverização da
liberdade de pensamento e de palavra, ou seja, a ditadura política, assim como a corrida
165
desembestada e subinte, sim, mas pelo capital, não amanha, para dizer o óbvio, conjuntura
propiciosa ao estilo.109
Após os descaminhos e paradoxos desse sublime escaqueirado, encolhido e
embaulado, passo àqueles da polemística rosiana:
Veja-se, vezes, prefácio como todos gratuito.
Ergo:
O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber.
Quod erat demonstrandum. (ROSA, 1985, p. 17).
Tese patente do começo do prefácio é a de que as anedotas, o humor e a arte, porque
desapertam as fivelas da lógica, induzem ao espertamento místico. 110 É justamente sua
demonstração que põe em movimento o texto, engrena a estratégia de convocar uma fileira de
blagues e levantar rastos que se julguem catalisadores do transcendente. Disto tudo se
depreende, entretanto, um silogismo dialético ou retórico, cuja primeira premissa, esta sim,
pode ser tomada como o ponto de apoio do processo, ou antes, do voo argumentativo de
Aletria e hermenêutica, desde que se pondere que é generalizante e incompleta, inepta para
dar conta de tudo o que pertence à pirueta em direção do admirável:
1. O escanchamento da lógica pode conduzir a realidades ou formas de
existência/apreensão superiores. 2. As anedotas de abstração escancham a lógica. 3. Logo,
elas podem conduzir a realidades ou formas de existência/apreensão superiores. De resto,
e ealidades e formas são compreendidas variadamente: sublime, suprassenso,
pensamento mágico, alegórico espiritual, transcendência, etc.
O silogismo assume o formato da possibilidade, e não o da certeza, primeiro, porque é
recortado de um discurso que, em última instância, enraíza-se na subjetividade e na fé.
Confirme-não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos
109
Lá muito atrás, e em outra contextura, Longino recusa, com pouca hesitação, a ausência de democracia como
causa da suposta pouquidade de escritores capazes do sublime em sua época (o problema era quantitativo, e não
qualitativo). Prefere uma explanação que reputa exclusivamente moral: são as paixões e, primordialmente, a
idolatria à riqueza ilimitada que impedem o florescimento do sublime. ma doença que
, 1992, p. 113).
110
Os comentários seguintes privilegiam o foro do sagrado, que abarca, mas ultrapassa o filosófico e o estético.
166
envolve e cria,
, o negrito é meu). Segundo, porque o afrouxamento ou a
suspensão da razão podem ser atinentes a territórios outros, conquanto perimetrais, como o da
loucura, filão também caro ao livro. Terceiro, porque o chiste não impõe, mas propõe à
liberdade do destinatário uma nova e outra dimensão (ROSA, 1985, p. 7).
Tudo isso equivale a dizer que, sem embargo todo o cômputo intelectualista, a
premissa a partir da qual decola #!+Aletria e hermenêutica, não se sintetiza em
um juízo racional e empiricamente universalizável. Para admiti-la como verdade (mas não
para vivenciar o maravilhoso do cômico), é forçoso crer nela; dar um salto de fé. 111
Paralelamente, na apreensão dos chistes, a abertura ou rompedura provisória dos planos da
lógica não são razões suficientes para o ingresso em cena de outra percepção satori, se se
quiser (ROSA, 1985, p. 12). Delas não se segue necessariamente uma incursão no espiritual
ou uma captação do invisível. Se assim o fosse, qualquer leitor do prefácio ou do livro sairia
deles iluminado, portento que, sou compelida a presumir, não acontece, embora nenhuma
pesquisa acadêmica tenha sido realizada a respeito. Aqui também se faz imprescindível um
salto da fé e/ou da liberdade e/ou da consciência e que tais; sempre com algum
"&$+' ,"+! ,
%"+Aletria e hermenêutica, ("" "
uma grande anedota, a espera da catapulta da fé, do solavanco da consciência, da intervenção
do impalpável. Por aí também, pela via da assunção dos limites e buracos da malha lógicoinventiva, entra seu componente autoirônico.112 O sublime leitor que se projeta nas palavras
do poeta é, sem dúvida, aquele que, amigo das inquirições metafísicas, não apenas acosta o
seu barquinho de leitura naquilo que coube na obra (o que já é senhora provação em se
tratando de Tutaméia), mas também o embica no abismo eternal que mal foi descerrado. O
111
Se meu entendimento do prefácio estiver correto, não é preciso que se tenha tido contato com a teoria
fabulada nele para que as piadas obrem seu prodígio em virtuais receptores; tampouco que, conhecendo-a, se
responda a ela como simpatizante, conquanto este seja, hipoteticamente, mais receptivo aos efeitos pressagiados.
Os ditos de espírito teriam o poder de arrastar uns e outros de roldão.
112
+! )#,( +Aletria e hermenêutica,
167
prefácio, entretanto, franqueia-se a outros olhares; não é preceptista e confessa a precariedade
de sua retórica chistosa entre a sandice e o insight, brincando com ela. No íntimo de
Aletria e hermenêutica , falta uma coisa cardinal: o segredo da passagem do absurdo ao
supersentido; algo co - o pulo do gato, não fosse restrito, lá no fim,
o papel da destreza e do saber. Na verdade, quem quer que pretenda encontrar racionalmente a
garganta pela qual se imerge no cômico para emergir do excelso não o conseguirá, pois ela é,
em termos rosianos, mágica. Daí a ideia crucial de salto, e ainda que a fresta seja da largura de
um fiapo.
Se no miolo da argumentação há um oco, é porque ela não desiste de demonstrar o
indemonstrável eis uma pendência incrustada na estrutura do texto. O ironista é consciente
de que abstrai, silogiza, filosofa e arrazoa sobre o im-provável. Apela o tempo todo para um
instrumento, a razão alargada, que sabe não ser resolvente, se bem que, nem por isso,
dispensável. Como tirar a prova do pinote que leva do simplesmente alógico ao mágico? Este
pode ser, na melhoríssima das hipóteses, encenado e evidenciado por uma evidência... não tão
Aletria e
hermenêutica não é objetivamente verificável, pois supõe a imisção de um quê sobrenatural;
só pode concluí-lo quem quer que ultrapasse a razão e experimente o enlevamento.
Até certo ponto, é o sentido inventado, a linguagem, que funciona como mediador
entre o não senso e o suprassenso. Mas isto ainda não é Tutaméia; resta a passagem imediada:
nadica de nada ou tudo; nonada em que tudo se dá. Algo decisivo age misteriosamente ali,
naquele meio, naquele hiato mudo entre o desafogo da razão e a iluminação tutameica; não
açambarcável pela munição retórica e, por isto mesmo, interdito, circun-scrito pelo verbo
rosiano. Seria a graça, atuação imponderável, desinteressada e livre do divino. 113 Oculta,
113
Outras interpretações, não forçosamente conflitantes ou incompatíveis com esta, têm pertinência. Aquilo que
não está contido na obra é quase tudo, o próprio infinito, o nada, uma gigantesca incógnita. Este conceito
algébrico é importante em Terceiras estórias. Como fica à mostra no índice, a organização das estórias segue a
ordem do alfabeto (exceto aquele famoso desarranjo
168
apesar de estampada, graciosamente, já na primeira página. Se é pela Graça que se vai da
graça à Graça, Tutaméia é cisco, nica; apenas a menininha do olho pela qual a Luz Dela
atravessa.
Deste modo, aquilo que a obra mais cobiça articular, a paixão pela qual palpita,
corresponde, precisamente, ao que ali nem não coube. Fazer caber, aliás, seria sem cabimento;
uma negação daquilo que o Guimarães Rosa de Terceiras estórias só pode insinuar dizendo
sempre de menos. Não #deveu$ caber. O verbo acusa a obrigatoriedade (razoável, piedosa) de
um impossível, a frustração ou falseamento programados, que são, inclusive, medida do êxito
e da verdade alcançada.
Cheio de graça, a seus olhos semimodestos, o prefácio é belo, sublime... e risonho com
isto tudo e consigo mesmo. Esta tríade remete às três acepções basilares do substantivo,
# $ # $ #$
indiretamente recuperadas,
pela circularidade ou antiperipleia da escrita, na afirmação de que #Aletria e hermenêutica$!
preâmbulo gratuito. Constituindo-se, mais exatamente, a partir da contradição entre interesse
e desinteresse, utilidade e inutilidade, a meditação é gratuita enquanto dádiva simbólica ao
leitor (quiçá até intermediadora da Graça ela mesma!); e enquanto coisa irônica, destituída de
justificação cerrada ou fundamento sólido.
Veja-se, vezes, prefácio como todos gratuito.
Ergo:
O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber.
Quod erat demonstrandum. (ROSA, 1985, p. 17).
Repare-se, de primeiro, no riquíssimo (ou paupérrimo) motivo do (des)valor, primacial
em Terceiras estórias; depois, na relação de causa e consequência entre os antônimos. Às
vezes, a validade deriva da própria gratuidade: o prefácio é gratuito, ergo, pode valer pelo
que não pôde nem deveu fundamentar.
Ops! Não está lá. Foi subtraído, abstraído. Não há nenhum título de narrativa que se abra com ele. O
desconhecido, o mistério, não é algo que esteja simplesmente in-scrito na letra, no texto; pode transbordá-los ou
fazer presença pela ausência.
169
Tudo arrumado não houvesse uma última nota humorística. Em que pese toda essa
liber(ali)dade e indeterminação, o teor cabalisticamente matemático e a eloquência da medida
e do cálculo giram a chave do texto. Ironia? Sim, mas não no sentido de que o que se pensa
está claro, pois é o inverso do que se diz. O ficcionista remata com o fraseio pelo qual eram
concluídos os raciocínios euclidianos, mais tarde, já em língua europeia, utilizado
genericamente !
" (TOSI, 1996, p. 35).
No gerundivo, a frase denota, de novo, obrigatoriedade; tradução literal !
demonstrado". Tem graça... Que diabo foi milimetricamente atestado nesse lacunário que é
!Aletria e hermenêutica"? Que as anedotas estimulam ou podem estimular a captação da
! " que se descascasse esse abacaxi, para que se
atingisse semelhante rigor demonstrativo, seria imperioso aplicar-se a garantir a primeira
premissa, explicitada acima.
Salvo engano meu, portanto, o que se afiança neste estranho prefácio revolvente dos
princípios do gênero é a única coisa que realmente poderia e deveria ser afiançada: o
ultrassenso não cabe no senso. Note-se, quanto a isso, que a expressão latina pode ser colada
ao texto prefacial como um todo, à sua tese medular, ou também, de modo direto, à oração
precedente. Ao fim e ao cabo, dá-se um enrosco entre negatividade e positividade. Quod erat
demonstrandum, fórmula positiva, exibe-se gravada com tintas negativas: o que está
certificado é que nada de substancial foi certificado; o que está validado é que o livro pode
valer por aquilo que não foi validado. Estes negativos, não obstante, estão a léguas de
qualquer absoluto ou monocromia; são frestas.
!
"
algum modo, reconhecido pela própria razão como racional, isto, claro, não dilui a
problemática do texto, cuja sublime (in)conclusão é apreciada pelo poeta porque ambas,
dúvida e fé, querem sair desde a liberdade e encaminhar-se para ela infinitamente. O prefácio
170
tutameico enceta-se, permanece e conclui-se fundeado em tudo, no vazio que é vão para a
Graça, e em nada, em toda a gratuidade do pensar, como em um exercício meditativo cuja
resposta última está fora da vida ou acima das forças da linguagem. Eis aí, nessa alternâcia,
algo da precisa imprecisão da álgebra mágica rosiana.
171
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