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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA GISELLE MADUREIRA BUENO Humor e alegria em Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa Versão corrigida* *O exemplar original encontra-se disponível no CAPH da FFLCH Santo André 07/05/2012 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO  FFLCH GISELLE MADUREIRA BUENO Humor e alegria em Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa Versão corrigida* *O exemplar original encontra-se disponível no CAPH da FFLCH Tese apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutora em Letras. Área de Concentração: Literatura Brasileira. Orientadora: Prof. Dra. Regina Lúcia Pontieri. De acordo: _________________________________ Regina Lúcia Pontieri Santo André 07/05/2012 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo B928h Bueno, Giselle Madureira Humor e alegria em "Tutaméia: terceiras estórias" de Guimarães Rosa / Giselle Madureira Bueno ; orientadora Regina Lúcia Pontieri. - São Paulo, 2012. 187 f. Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Área de concentração: Literatura Brasileira. 1. Guimarães Rosa. 2. "Tutaméia: terceiras estórias". 3. Humor. 4. Alegria. 5. Absurdo. I. Pontieri, Regina Lúcia, orient. II. Título. Nome: BUENO, Giselle Madureira. Título: Humor e alegria em Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa. Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutora em Letras. Aprovada em: BANCA EXAMINADORA Prof. Dr.: ____________________________________ Instituição: _____________________ Julgamento: __________________________________ Assinatura: _____________________ Prof. Dr.: ____________________________________ Instituição: _____________________ Julgamento: __________________________________ Assinatura: _____________________ Prof. Dr.: ____________________________________ Instituição: _____________________ Julgamento: __________________________________ Assinatura: _____________________ Prof. Dr.: ____________________________________ Instituição: _____________________ Julgamento: __________________________________ Assinatura: _____________________ Prof. Dr.: ____________________________________ Instituição: _____________________ Julgamento: __________________________________ Assinatura: _____________________ A todos que alegram e humorizam meu coração; especialmente, a meus pais, Públio e Adelaide, meu irmão Átila, minha cunhada Viviane e minha sobrinha, Ágata. AGRADECIMENTOS À minha orientadora, Regina Lúcia Pontieri, por todo apoio e compreensão nesses oito anos de trabalho conjunto. Aos professores integrantes da banca examinadora: Suzi Frankl Sperber, Gilberto Figueiredo Martins, Maria Célia de Moraes Leonel, Márcia Marques de Morais, Marcus Vinicius Mazzari, Jaime Ginzburg, Fábio Rigatto de Souza Andrade e, particularmente, Cleusa Rios Pinheiro Passos e Yudith Rosenbaum, que acompanham meu trabalho desde o mestrado, com intervenções sempre preciosas. À Daniela Salomão pela ajuda com as versões para o inglês. Ao CNPQ pela bolsa de estudos concedida. Ao pessoal do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. A toda a minha família e aos amigos de perto e de longe. Tem horas em que, de repente, o mundo vira pequenininho, mas noutro de-repente ele já torna a ser demais de grande, outra vez. A gente deve de esperar o terceiro pensamento. A gente morre é para provar que viveu. [...] tudo o que é bonito é absurdo. O vau do mundo é a alegria! Somente com a alegria é que a gente realiza bem  mesmo até as tristes ações. João Guimarães Rosa RESUMO BUENO, Giselle Madureira. Humor e alegria em Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa. 2012. 187 f. Tese (Doutorado)  Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Esta tese visa a esmiudar, a partir de uma abordagem marcadamente intratextual, a questão do humor e da alegria em Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa. No primeiro capítulo, apresentam-se considerações mais teóricas e gerais sobre o tema, que aparece, em Rosa, matizado pelas sombras da angústia, da dormência, do trágico; ambos, alegria e humor, espontam de uma hermenêutica inteiramente varada pela consciência do absurdo. No segundo capítulo, discute-se a relação entranhada da própria forma lacunar da obra com esse espírito intransparente, ao mesmo tempo melancólico e venturoso, que a constitui. No último capítulo, interpreta-     Aletria e hermenêutica esquadrinhando os artifícios de composição de parte de suas anedotas, e trazendo à luz a fabulação paradoxal, chistosa e sublime do texto. Palavras-chave: Guimarães Rosa. Tutaméia: terceiras estórias. Humor. Alegria. Absurdo. ABSTRACT BUENO, Giselle Madureira. Humour and joy in Tutaméia: third stories by Guimarães Rosa. 2012. 187 f. Tese (Doutorado)  Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. This thesis aims to go through, from a markedly intratextual approach, the matter of humour and joy in Tutaméia: third stories by Guimarães Rosa. In the first chapter, rather theoretical and general considerations are presented on the theme that appears, in Rosa, tinted by the shadows of anguish, of dormancy, of the tragic; both, joy and humour altogether, emerging from a hermeneutic which is entirely transpassed by the awareness of the absurd. In the second chapter, is discussed the deeply rooted relationship of the lacunal form itself of this                  melancholic and blissful at the same time. In the last chapter, t  Aletria and hermeneutics                     fabulation, witty and sublime. Keywords: Guimarães Rosa. Tutaméia: third stories. Humour. Joy. Absurd. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 11 1   18 2     -HUMOR     FORMA TUTAMEICA 62 3    ALETRIA E HERMENÊUTICA 101 REFERÊNCIAS 171 11 INTRODUÇÃO Tutaméia: terceiras estórias (ROSA, 1985)1 é texto que compele o leitor a assumir humildemente sua pequenez e, passo além, livre escolha, amá-la e deleitar-se nela, no inquieto e afanoso ofício de duvidar e aventurar sentidos provisórios  bagatelas. Afirmar que a obra convida o leitor a fazer-se pequeno pode significar também, do ponto de vista do especialista, que este é chamado a ater-se sem temor, com especial cuidado e paciência, às microconexões duvidosas, às nonadas da análise e da interpretação, antes de lançar-se, com afã, às macroconexões, sejam elas atinentes ao restante da obra de Guimarães Rosa, à tradição artística e intelectual, à história, etc. São as proezas do pequeno livro: como em uma antiperipleia, desnorteia pressupostos e conduz o crítico modestamente a novo início. Sem exagero, Terceiras estórias devem ser lidas palavra por palavra. O estudo do minúsculo já levanta questões curiosas e difíceis. Criar interesse pela obra, orientação fundamental de qualquer crítica literária, é mostrar, antes de qualquer coisa, como eventualmente esse texto lacônico e abstruso pode comunicar(-se). A escrita caminha, propositadamente, sem nenhuma pressa e pede que assim também seja contemplada: sob a valentia do devagar e do mínimo , o que é, em dias correntes, exigência furiosa, pois a sociedade e a academia produzem implacavelmente a pressa da produção e a ambição da totalidade. São as proezas do grande *&# &*# *&"#''!"&**"&(!$#$"'!"(# !1#"*&'#'2 de Sagarana, a impaciência ou o corre-corre são assimilados à ausência de coragem: 1!#. )!$&''%)*!(##'#' #')!$&'''!!"#2$ ). Em 1!$#& 2, o autor registra, pela boca do menino, seu gosto, alguns diriam sertanejo, !#&#' 13 ) !'(+"#'(-!)(#$'#$&*#/ 43#&/,'(- não. Se a gente puder ir devagarinho como precisa, e ninguém não gritar com a gente para ir depressa demais, então eu acho que nunca que é pesado.42$  E é assim 1 Manterei, para o título da obra, em correspondência à edição de 1985 adotada, a grafia anterior à recente reforma ortográfica. 12 que, nas Terceiras estórias, a mornança tem ares de programa estético e vital: # Até hoje, para não se entender a vida, o que de melhor se achou foram os relógios. É contra eles, !$  , 1985, p. 167). Se precipitar-se na interpretação correndo o risco da superficialidade é indesejável, afundar-se no precipício, não. Tal sina do cego Tomé, qual sorte daquele que lê. Em certo sentido, é bom que se caia, pois é só na aceitação das trevas que se começam a inventar as luzes. Sim, pois a própria legibilidade da obra tem de ser miúda e pachorramente construída. Creio ser pouco dizer que o leitor completa as estórias, elaborando-as com o escritor. A coisa é mais espinhosa, mais rente com o nada. É a possibilidade mesma de lê-las que tem de ser criada em companhia, o que só é praticável se se aprende a recrear-se em uma ignorância que se avoluma e reitera. São as proezas desse pequeno grande livro rosiano. Tutaméia é texto hermético, e sua fragmentação é de tal plana que toda conexão estabelecida, se não tratada com delicadeza, aparece como um acréscimo um tanto forçado; #$  esmo tempo que a obra incita ao preenchimento,  #$    e o segundo capítulo há de mostrar que Terceiras estórias são também para ser ouvidas , a verdade é que o escrito fica por não dito (ROSA, 1985, p. 158). O tradicionalmente sólido, visível e confiável traço da escritura desmancha-se no triz em que se grava. Tudo pode não ser o que parece: o preto da letra ou o branco da página. A obra é hermética também no sentido de que nutre certa vocação para fechar-se dentro de si, embiocando, zelosa, seus segredos e, em boa medida, fiando e desfiando, ela mesma, de maneira original, as categorias que a meditam. Essa angustura ou garganta pode afigurar-se como o próprio obstáculo  a tal ponto que, em vez de abrir picadas, não se resista a dar a volta e construir a leitura por fora, amarrando-a a partir de conceitos e pressupostos advindos de outros saberes (metafísicos, filosóficos, etc.). Todavia, por efeito de 13 uma nova mirada, pode o aperto transverter-se em solução, o que, por sinal, está bem de acordo com o espírito tutameico. Desprezada a estreitura, topa o olho com o oco da passagem. Para dizer de outra maneira: a abordagem cerradamente intratextual pareceu-me via bastante promissora no estudo de Terceiras estórias, e é precisamente ela que tomo nesta pesquisa. Isto não significa que não me valerei das relações extra ou intertextuais, tão pouco, evidentemente, que o texto as desestimule (são, aliás, sempre bem-vindas quando fundamentadas nele). É o caso apenas de embrenhar-me e deter-me na exploração de uma minguta vereda que a organização discursiva torna imediatamente visível: o diálogo de cada texto consigo mesmo e de todos eles entre si. Esta leitura que se demora na minúcia talvez ache, exatamente na sua primariedade  ninha, nica, niquice, migalhice , encruzada de onde possam divergir ou para onde possam convergir, mais tarde, macroconexões. Ademais é preciso sublinhar que este trabalho tem como foco a temática do humor e da alegria. Penso que é a simpatia de Guimarães Rosa por esta que também está em causa nas cogitações        !Aletria e hermenêutica" ou, no câmbio sugestivo das letras, !Alegria e hermenêutica"; conforme já foi dito, Terceiras estórias incentivam o regozijo  alegria  da interpretação pequerrucha, confinante com o nada  a-letria. Assim, anteponho, num primeiro capítulo ou antiperipleia conceitual, uma reflexão propedêutica sobre o humor e a alegria. As concepções rosianas, sempre em reforma, são, em geral, muito indóceis a fórmulas ou máximas sintetizadoras; por isso, procuro frequentar, explicitamente, vários dos contos do livro.2 Em seguida, aponho uma seção que, segunda antiperipleia, além de retomar e desenvolver considerações anteriores concernentes, sobretudo, à alegria, concentra-se no problema da forma tutameica. Finalmente, no terceiro 2 A discussão sobre o gênero dos textos que compõem Tutaméia não é primordial nestas páginas. Seriam eles, ou alguns deles, (macro)anedotas ou microcontos ou contos ou casos (ROSA, 1985, p. 30, 86, 92, 93, etc.) ou estórias ou histórias (ROSA, 1985, p. 55, 105 e 130), ou o quê? O termo mais prudente seria o penúltimo, fornecido, pelo próprio autor, logo na abertura do primeiro prefácio, sem as mesmas reticências que são           ! "                           ! "!" !  "    14 capítulo (ou capitulação), proponho-me a analisar e interpretar, em interação com as estórias, o primeiro prefácio, que, justamente, teoriza, de maneira jocosa, o cômico, o humor, a anedota. Acompanho, passo a passo, uma boa parcela da especulação rosiana sobre os chistes de abstração, de sorte que a leitura vai caminhando um tanto solta, submissa aos livres desvios da análise, até que, ao final, o pensamento se articule com alguma unidade; de qualquer maneira, sendo a obra semovente e descontínua, o que este estudo, como um todo, almeja é o ensaio de uma re-montagem, quebra-cabeça de fragmentos recolhidos, cujo sentido só pode ser precário e provisório. Até onde sei, não há nenhum trabalho monográfico que tenha por tema, exatamente, o humor e a alegria em Terceiras estórias. Não obstante, conheço a tese de Jacqueline Ramos (2007),              .3 A autora sustenta que a função do cômico no livro rosiano não é a de propiciar o riso, mas dar entrada a novas maneiras de pensar, ampliando o idioma, desmanchando estereótipos, desmascarando o engano de valores viciados, liberando o censurado e materializando lógicas expulsas do pensamento sério, como a da criança, a do louco, etc. É primacialmente à luz de concepções de pensadores modernos, como Freud, Joachim Ritter e Schopenhauer, que Jacqueline Ramos aclara para o leitor o papel da comicidade em Terceiras estórias, conquanto, segundo ela, a obra também empreste formas e estruturas da arte antiga, como a parábase das comédias. Já no que compete aos escritos de menor extensão, lembro dois ensaios: um, de Javier  *'"'  $+ "!( "!  publicado em Ironia e humor na literatura: *' &   '   #%  "  "'  +!Revista do livro, Javier Domingo labora por ligar a mística do Grande Sertão: Veredas a certa atitude ontológica ocidental e oriental, que estaria representada, entre outros, por Santa Teresa, São João da Cruz, São Francisco de Assis, 3 Publicado em 2009 pela Annablume. 15 Raimundo Lúlio, Ramakrishna e os sufis. Neles, como em Guimarães Rosa, a alegria, consequência de uma autodestruição admiravelmente otimista e libertadora, seria, mais que um gozo, maneira nova de contemplar o mundo. De forma individual, por ela, a alma, em plena realização de suas faculdades, penetra no mistério primeiro da Criação e no universo do Amor. Esse estado de alegria, transcendente ao da graça, produziria, de uma maneira física, a anulação de paradoxos aparentes e dolorosos, responsáveis por aquilo que os místicos conheceram por secura, e os modernos, angústia, náusea e Nada. O homem que adere a essa postura ontológica busca um contato unitário com a Natureza ou a Matéria e uma conexão íntima com a essência da linguagem, a nomeação adâmica e eficaz das coisas. No caso específico de Rosa, a literatura seria meio para recriar toda essa condição de coito cósmico (DOMINGO, 1960, p. 60). Abaixo, na conclusão de seu artigo escrito em estilo muito bemposto, transido de dissolvências místicas, o estudioso tem em mente, de modo particular, a vida de Riobaldo e sua paixão por Diadorim: Es el camino difícil y duro de la santidad en el misterio de una locura libremente aceptada. Es la alegria de la anegación del todo en la nada, el dolor gozoso de devenir nada en el todo. [...]. Lo que cuenta en el hombre es el vacío inmenso del Amor y la materialidad orgánica de la realización de                !     "         materia devoradora, infinitamente dulce, infinitamente cruel. (DOMINGO, 1960, p. 63). Lélia Parreira Duarte desenvolve interpretações gerais do Grande Sertão: Veredas e  ! "! "!    "! ", etc. Para ela, a obra de Guimarães Rosa externa a impossibilidade de cristalização de conceitos e, diferentemente de Domingo Javier (que se atém ao Grande Sertão), a tensão insolúvel de polos opostos. Eis aí uma controvérsia cardinal e renitente na crítica: a fragmentação rosiana é aparente ou estrutural? Os paradoxos enturvam-se em a-porias ou resolvem-se de algum modo (seja na língua, seja na Língua, seja no que quer que as depasse: o indizível, a sugestão poética, o silêncio, o sublime, etc.)? Aproveito, então, e adianto-me: 16 embora o modus interpretandi em jogo nestas páginas, em última instância, aproxime-se mais da tese de Lélia, imanente a ele está o entendimento de que, nas Terceiras estórias, a estética ou o pensamento rosiano se empenham e recreiam em esbambear-se, justamente, entre dois lances: uma irresolução linguística e uma resolução que não se dá senão em um nível que desborda a linguagem, dê-se a ele o nome que convier. No frigir dos ovos, não há jeito: como bem gosta a Guimarães Rosa, a matéria é, toda ela, dependente da invenção e intuição do ledor, de seu ponto de vista, método hermenêutico, interesses, etc. Mas, enfim, Lélia Duarte julga que, para o literato mineiro, não obstante o equilíbrio instável do ser humano em meio a tantos contrários, é possível a criação de uma margem       %" !   "&    o humor leve, a ambiguidade e a receptividade a uma visão obscura e imprevisível das coisas, duvidosa e duvidante, irracional. Uma das técnicas que fazem resplender esse entrelugar do pensamento é a contraposição de vozes em narrativas de primeira pessoa, apreendida com certeira sensibilidade pela estudiosa. Julgamentos são invalidados e narradores enganam-se de tal maneira que é muito difícil não entrever as piscadelas irônicas do autor implícito, gerador, desde sua apartada terceira margem, de um complexo contraponto. Em Lélia, Guimarães aparece como humorista quando estimula aquele que lê a captar a alteridade; e isto nunca por via de uma ironia retórica, que apresenta uma inversão de sentido clara, resposta pronta; é sobretudo da ironie humoresque, categoria forjada por Jankélévitch, que se mune a autora para pensar a escrita rosiana: %   #"  absurdo, regendo-se pela poesia&      301). Para o humor, diferentemente da ironia clássica, não são duas apenas as possibilidades, mas muitas; sempre resta a alternativa da alegria de outra descoberta. Estratagema de linguagem que descerra artimanhas ideológicas e combate contra jugos naturais e sociais, o humor seria uma atividade de libertação momentânea que se cola a uma afirmação do homem e de sua capacidade de conviver com a 17 fragilidade, triunfar sobre a dor, o destino e a morte. A própria hesitação entre tragédia e comédia pode ser enfrentada por ele, que barra tanto o riso indevido quanto as falsas catástrofes. Em síntese, Guimarães Rosa mostraria que a saída é desatar-se, com a leveza do humor, dos jogos de poder, aceitar a incerteza e mesmo arriscar-se nela, esposando o fingimento de ser livre e eterno e a força de materializar todos os desejos. Feito o apontamento da fortuna crítica, retorno às trilhas desta tese. O leitor haverá de reparar que determinadas ideias esboçadas acima serão retomadas, outras, exploradas ou moduladas, e algumas últimas ainda, questionadas. 18 1     TRESALEGRIA E SUPRA-HUMOR Ainda, por azo da triunfal chegada ao Rio do aviador Sarmento de Beires em raid transatlântico         foto normal da Guanabara, Pão de Açúcar, sob legenda: *   % !   "&  #+ Mas um capítulo sobre o entusiasmo, a fé, a expectação criadora, podia epigrafar-se com a braba piada. (ROSA, 1985, p. 12). Dentro das balizas do senso comum e de um discernimento lexicológico mínimo, a alegria pode ser pensada como uma disposição mais ou menos transitiva do espírito, correspondente, via de regra, a emoções ou sentimentos nascidos da posse de um bem desejado ou da fruição de um prazer; habitualmente é sensação concebida de maneira unívoca. Sim, há outras formas de gozo que não se traduzem preferencialmente por isto que se nomeia aqui alegria; mas o que se busca é menos uma definição que enquadre o tema, quiçá já, de saída, findando de vez com ele, do que uma que o deabra. Dentre seus sinônimos mais imediatos, estão * ! '&+*!!!+   têm em comum a noção de preenchimento interno, como se o sujeito estivesse pleno de si mesmo ou do mundo ou do outro que o cerca. Ernout e Meillet (1959) ensinam que o radical *!!+$*!!" +almente, *" !(+*"  ! +       " !   !!-indivíduo, encontrar-se-iam, até o topo, contentados. *Contentus (,"  -&'-se+  p. 277). Ainda na língua de dia de semana, como diz Rosa, também a alegria propriamente dita é um sentimento de completude e, em seus melhores e mais loucos vórtices, transbordamento interior. O campo sinonímico da palavra alberga, com certa gradação, grosso modo, desde uma noção de viva satisfação ou contentamento, certa jovialidade ou alacridade, passando por 19 ideias afins à exultação, júbilo, euforia e embriaguez, até as grimpas do êxtase, da felicidade, da beatitude, da bem-aventurança, etc. A alegria tutameica será ainda mais multiforme, possuindo inúmeras e delicadas nuanças. Texto e contexto da obra constroem para as palavras nesgas de significado que refabricam, de modo único, conceitos dicionarizados, de uso filosófico ou comum. O sentido da alegria (tal como, adiante, o do humor) deve ser vasculhado no remexer da leitura; aí, con-forme o sertão, haverá perambeiras, complexidões, tragadouros. De saída, lembro a boa dose de jovialidade, certo temperamento voltado para a alegria, que marca vários dos ciganos do livro, como Güichil, Rulu e Prebixim. Neles, voz, palavras, gestos, cantos ou atos, não raro, estão a manifestar leveza, graça e espírito. Melim-Meloso, Maria Euzinha, Romão, Yao Tsing-Lao, Rebimba, o bom, etc. são personagens que dilatam o grupo. Todos eles, no contexto sempre problemático do livro, é verdade, podem alcançar o estatuto de sábios camuflados ou mestres anônimos de uma alegria inquebrantável, entre natural e espiritual. Além da jovialidade, o caráter de personagens como os ciganos, que conhecem a ligeireza do mundo (ROSA, 1985, p. 68), Melim-Meloso e outros, é singularizado pelo que se poderia chamar alacridade e lepidez.4 Esta seria a alegria ágil e festinante, enquanto, segundo Nascentes (1981, p. 48 e 57), aquela, a alegria recheada de 1**$&'(,/"!#2 expressão humoral que não está muito #" # 1&*#& '! !)#2 e Maria Euzinha, protagonista expedita, para não dizer precípite, 1&'*"()&2 $ . Já e! 1"(&)-'2 por exemplo, o narrador pinta a ação e o estado de espírito de alguns vaqueiros que se levantam alegres e lestos à friagem. A$ ')+#"#*#.$ *&1 $,2, com o fim estético de embebê-la, a ela também, em semelhante frescor afetivo 1#&* # 4 (*#1- &2%) #&*&! &#)$'1&$&')"-&'2 $ 20 junho molhava miúdo, às friagens. Levantavam-se, todos tantos, com lepidão=1985, p. 82). $-$'*),.(. *),6'6+/ )*,8*,$)-/-.(.$0)<& ",$=-  origina de alacer5; adjetivo cuja raiz, de formação muito obscura, seria *al. Nesta, assim como nas formas *,& &- /' $ $  <0$"),=  <*, --/,' (.)= *,  ,$ '$-./,  )/.,  <$=6 Por isso, provavelmente, Fernand Martin (1941, p. 7) aponta que, em seu significado primário, alacer é aquele que se bole ou se (re)mexe, se move ou agita.7 À força dessas migalhas filológicas, iluminar-se-iam, por exemplo, uma passagem de <-.,7-#)' (- ))$= )/., <, -0 (./,=, em que, extra-ordinariamente, <*, --= seja a dos sáurios, seja a da criança, 0& ,$)')-$(9($') <& ",$=<$-*,,',$, depois se ouvia o ruidozinho da pressa dos lagartos= * <-*2--,)- fina pressa, não os via, o passarinho cala-se por astúcia e arte= * ))%) da noção de alacridade ou alegria de Terceiras estórias, está o movimento (do que é vivo), a ida (para a vida); e, já extrapolando a etimologia em favor da invenção, a travessia, conforme a concepção de Guimarães Rosa. Não que em nada dessas coisas se exaure o assunto. A alegria de Terceiras estórias possui, por exemplo, uma contradimensão quaresmal e mórfica, um aspecto de lentação e molúria, que não só não consta da origem do vocábulo, como se choca com ela. De qualquer maneira, mexida e remexida, conceda-se à boa alegria tutameica não a precipitação moderna e doentia, mas a vivacidade e a prontidão; às vezes, aliás, ainda quando sem pressa, ela não deixa de ser veloz (ROSA, 1985, p. 123). Não por acaso, simbolizam-na frequentemente os <$0)= <# $)  (./-$-'))/,),=<($')=< -* ,.)=<& ", = <%)0$&=<,$-)(#)=<*,)(.)=< ' $-*)-.)=<2"$&=<,2*$)=<0 &)1= *  6 Vejam-se, por exemplo, as palavras exilium ) &.$' <&/", *,)(  -   -*   )' ( ,"$ &"/6'= 5 ambulare ) &.$' <$, 3 0)&.  = <, /' 0)&.=  ) ", ") <0"/ ,= < ,,,= eilen (do & '4)<),, ,=<*, --,-- =)- ---$(!),'5: --4)/'*(#))+/ se pode ler em Michel Bréal e Anatole Bailly [s.d], Julio Cejador y Frauca (1926), Fernand Martin (1941), Abel Juret (1942), Alfred Ernout e Antoine Meillet (1959) e Augusto Magne (1961). 7 Traduzo e parafraseio o !,(7-<+/$- , '/ = 21 pássaros, estes animaizinhos buliçosos, cantadores plenos de energia, voadores e saltitantes, cuja tristeza, não obstante, é folcloricamente célebre, e o estilo de trabalho, pouco trabalhoso; dir-se-ia indolente ou -/#%2'9,0,+,01#/*,0#3+%:)'!,0"#@/+"##"#8,A 0#*0#*#', sem ceifa e sem atulho (ROSA, 1985, p. 90).8  !'%+, -!&,) # (,)'5 "# @ ,21/, ,2 , ,21/,A .2# 3'3#  3'" a passarinhar, chama-se Prebixim. E, diga-se apenas de passagem, juntos, o nome de ave e a cor verde tão enfatizada do colete do gitano, aparentemente surrupiado, talvez remetam sub-repticiamente a uma locução popular: quem (bem) avista /# '4'*!,*,',>#,+//",/@3; -00/'+&,3#/"#A#:#+3'0!",##3#+12)*#+1# alvoroçado, por sua alegria sem motivo. Em tintas grossas, rir à toa é coisa de sábio ou de doido. Outra variante da alegria que tem parte em Tutaméia é aquela que volteia entre as noções de exaltação, exultação, júbilo e entusiasmo, vocábulos que imbicam a ideia de endeusação ou êxtase. Em @'+&6#!"A,-,3,termina @#4)1+",,$,/1#!0,A  - *@# '* , ,*A'+",-,3, se entusiasma na morte e enterro cheio de 3'" ".2#)# &,*#* #41/,/"'+6/',    -   * @//,',-das-+10A, as velhinhas, confiosas de terem levado a palma por ocasião da morte sacrificial de Edmunda, votam-0#2*(2 ')98,/'12) @3=dmunda, de repente, então.  BMorreu, morreu de    a triunfar, em ordem, tão anciãs, as outras jubilavam.A - #* /, 1* :*  *<*'! #0$25'+1# ", +,3, # @(2 '),0,A ,uveia (ROSA, 1985, p. 91), após o advento de uma proposta de negócio. Ele @*#+#3 # *'0  com fagulhas financeiras  ao curto crédito e trato de seu gesto. Entrava a remudado, lúcido luzente, #* -#), *#+,0 #00 :  &#/*#+;21'! )'1#/) # -/'*#'/ ", -#/0,+%#* -/'+!'-) "#-,'0 /#-#+0"  @,0 pássaros não voam de-todo no faz-nada-não, indústria nenhuma, praxe que se remexem, pelos ninhos, de )1C/1#A - ,"#01 /'+!"#ira com a exegese é levada poeticamente a sério pelo autor e 1#* /#00,+7+!'0 #* @/#03#+12/A  @/ )&3* ,0 -600/,0 !1+", , "# !,*#/ +8, 1'+&* $,)% -/ $#01#(,'+%'*.2#+8, #+9,3*A - 2+1,,#0-)'*",0-600/,s, conferir, v.g., 2*#4-/#008,!,*,@-00/,!,A 8 22 visante. Tirou o chapéu de debaixo do braço3  $ " !"'#&+0"%#& barulhentos: Vozeiam os ciganos [...]. Dão festa. Aí o peão surdo-mudo: guinchos entre rincho e re-rincho  de trastalastrás! Fazem isto sem horas, doma de cavalos e burros, entanto dançam, furupa, tocam instrumentos; [...] um solta grito de gralha; senão o rãzoar, socó, coruja, entes do brejo, de ocos, o ror do orvalho da aurora. (ROSA, 1985, p. 210).  2carnaval3  grande festa coletiva que finaliza Tutaméia, parece balangar entre a exultação e a euforia, com exceção, talvez, das últimas linhas, que puxam para uma alegria esperançuda e sublimosa, mais expectada pela criação artística que atual (vide a epígrafe deste capítulo) 2#-Lau decide:  São coisas de outras coisas... Dá o sair. Se perfaz outra espécie de alegria dos destrambelhos do Rancho-Novo. Serafim sopra no chifre  os sons berrantes encheram o adiante.3  $ O espasmo eufórico, tal como nas excitações anteriores, é intenso, expansivo e passageiro; entretanto, pode não corresponder a uma alegria autêntica. Caso exemplar é a )&'&%,(%#$(!!"'"&' #2)#"'#+#3que se engaja, então, em uma prosa boêmia com o prefaciador (ROSA, 1985, p. 163 e 164). Situar-se-ia também nos entornos da euforia, do êxtase e da exultação a morte imoral, alvoroçada, audaz e &'&'2#".(&3# .# #%#!$"#!  1985, p. 133).9 Uma vez que o ficcionista costuma revirar e tresvirar a subjetividade humana, não há nada de espantoso em que a noção de alegria, muitas vezes tratada positiva e levantadamente, tenha conotações dúbias, como no olhar do Doutor Mimoso (ROSA, 1985, p. 197), e baças, como no casamento de Jó Joaquim (ROSA, 1985, p. 48); talvez até mesmo monstruosas, como no mau costume do caçador de antas. Embora ali Rosa não se sirva do substantivo 2alegria3, surgem termos fortemente #%% '#&  2regozijava3 2&'%.-#3  ".-# # $%*# ! 2!#% 3 "-# / "&&%!"' $%)') $#"# "% &($%.-# #( transcendência. 9 23 /%#'$-%!%"-$&!0/"%%&"!0/$!0/!'!0 (ROSA, 1985, p. 190-191); de fato, não seria desapropositado afirmar que Isnar se alegra no extermínio. Euforia e bebedeira são passíveis de mistura. Não são poucos os emborcadores de copo em Terceiras estórias. Há aqueles não tão destemperados ou, quando menos, até onde se pode crer, ocasionais, como Teresinho (ROSA, 1985, p. 26), Jeremoavo (ROSA, 1985, p. 37), Zé Lopes (ROSA, 1985, p. 57), talvez o Padre (ROSA, 1985, p. 210 e 212), etc.; e há aqueles decididamente incontinentes e inveterados, como Prudencinhano (ROSA, 1985, p. 18, 19 e 21). Se embriagado ou ébrio, em acepção estrita, é quem tem a razão ou o juízo transtornado por haver bebido demais (NASCENTES, 1981, p. 61), figuradamente ébrios são, por exemplo, os amantes cegos e encantadores de Tutaméia, como Yao Tsing-Lao. Também &+$!/+$!"!$ &$!0 " !)&!$% !#' com o perdão da má rima, se embriaga miudinho ao lado de Dlena (ROSA, 1985, p. 27). É possível referir ainda o Bio, enfeitiçado por seu cavalo, ou melhor, seu supercorcel além de todo nome (ROSA, 1985, p. 146), e o Zito, influído por coisa não menos sublime que o quadrúpede: a poesia (ROSA, 1985, p. 180). O verbo aplicado ao vaqueiro é exótico (do Minho): /acatrimarse0, precisamente, /embriagar-se0 (MARTINS, 2001, p. 7); ação impossível, por sinal, a Xênio Ruysconcellos, etilizado, mas não enfrascado  /! )!! *!  tirava o senso de seriedade e urgência0 " ', +(!)'o literário e erudito que indigita o embebedamento por excesso de vinho  do latim, temetum , substância integrante da simbólica de Baco e da melancolia (ARISTÓTELES, 1998, p. 14, 23, 83, 85, 87, 89 e 105). Curiosamente, apesar do título, em /Nós, os temulentos0o contador explicita apenas que Chico ingere, entre outros bebestíveis nunca nomeados, uísque. De qualquer maneira, é de vinho que se regalam os escritores-bebedores /Sobre a escova e a dúvida0 (ROSA, 1985, p. 164). 24 A proposição de uma hermenêutica alegórica e transcendente de uma condição letificante como a da embriaguez não é, evidentemente, inaugurada pelo escritor mineiro. Consta, por exemplo, da obra do Areopagita. Não que eu pretenda com este paralelo equiparar, sem mais, o método de interpretação alegórica do teólogo com os (des)caminhos humorístico-sublimes de Guimarães Rosa: pressupostos, contextos e armações teóricas são destoantes. Apenas cuido que a aproximação não deixa de ser esclarecedora. Dionísio observa que, na Bíblia, Deus é, às vezes, apresentado conduzindo-se como ?:!+ 21($.@ -DIONÍSIO, 2004, p. 314). As Escrituras ora glorificam a Tearquia pelas altas aparências, como Sol de Justiça ou Estrela da manhã, ora pelas medianas, como Fogo e Água, ora pelas mais baixas, como Ursa enfurecida e Verme da terra (PSEUDODIONÍSIO, 2004, p. 147). Imagens dessemelhantes de Deus ou semelhantes, não há escapatória: todas são absolutamente inadequadas, e as últimas, talvez, mais do que as primeiras, devido à ilusão de adequação (PSEUDO-DIONÍSIO, 2004, p. 16, 130, 143 e 144). Ao iniciado, só resta sempre ultrapassar os sinais simbólicos, elevar-/" !+ ?/"*/;2"(@ " ?)0".&(@ + ?"/,&.&01(@ ? +*0"),(0&2+@ +1 ?&*0"(&$;2"(@ -DIONÍSIO, 2004, p. 139, 143, 147, 197, 204 e 207). Para que o leitor possa visualizar essa transição, vale a cópia da leitura engendrada por Dionísio para a ebriez suprema: (+./ -1" !*/ *+0." (*$$" (A&2."//" /&$*&#&" ,9'+.0&2")"*0 1* 1/ !" +&//+*-1&*+1/,.&2"!"(A1/$"!"(A&*0"((&$"* ""0!1 bon sens10, quand il /A$&0!"&"1+*!+&0,."*!."(A&2."//""*+**",.0"0*A4.&"*2+&.!A10." -1"(/1.+*!*0"!9)"/1."!"0+1/("/&"*/-1A&( +*0&"*0"*(1&70&0."!" 1/" "0/&(A%+))"&2.""/0%+./!"/+*+*/"*/,,(&-1*0(A&)$"7&"u, on doit comprendre que dans sa transcendance qui est au delà de toute &*0"((&$"* "&(/"/9,."!"(A 0"&*0"((" 0&#/"/&01*01!"(7):)"!1,(* où se distinguent intellection et intelligible, au delà même de toute existence. Ivre de tout bien possible, affirmons simplement que Dieu est ainsi hors de /+& . A"/0 0.+,,"1!&."-1"!"(1& 00.&1".0+10"*/")(" (,(9*&01!"!" tous les biens. Il surpasse toute démesure, et en même temps sa demeure est extérieure et transcendante à tout ce qui existe. (PSEUDO-DENYS A5 ,  2"./8+"/,*%+(%61)*+0"(1 &!*!+-1"?"3 "/+@"?"*'"* &<*@(1!")+:30/" ?Pero como es verdad que entre nosotros la embriaguez tiene un significado peyorativo de exceso indebido y de enajenación de la mente y de (2+(1*0!>@ (PSEUDO DIONISIO AREOPAGITA, 2002, p. 282). 10 25 Dentre os termos que gravitam em torno do circuito sinonímico aqui abordado, felicidade é daqueles que, de hábito, portam um valor muito positivo; por contraste com ela, é possível que a alegria receba matiz trivial  diferentemente, portanto, do que ocorre no livrinho rosiano, em que está, o mais das vezes, (pronta a ser) empinada para o sublime. Quantitativamente, expressa a felicidade um prazer de grau máximo. Qualitativamente, um regozijo mais fundo, verdadeiro e estável que só encontraria rivais em ideias como beatitude e bem-aventurança. Ela é, nada mais nada menos, que o próprio /contento da alma0 (NASCENTES, 1981, p. 231).11 Sem embargo, em Terceiras estórias, as coisas não são bem assim. Aqui e acolá, sobretudo nas narrativas que menos re-voltosamente se engastariam no que se poderia designar como o fabulário %'/''%!%-das-$)(0/($'%0/'(+$)*'0%*)'( poucas, a palavra felicidade e seus cognatos ainda entrouxam alguma modulação maravilhosa; mas a univocidade surrada da ideia, engessada em fórmulas monoliticamente harmônicas, $)' # ('-!)%     (' &'%! # ),)%  )'#% $ ")!((%$$)  /%'# infelizes e felizes, misturadamente0    &   Longe se está do clichê ou da ingenuidade de uma afinação final e perfeita. A obra guarda predileção por uma noção inventada e paradoxal de felicidade e alegria. É assim que, ao descrever uma sensação de vôo, saída de si mesmo fundamentalmente indizível, tensa e relaxante%&'!%'/Sobre a escova e a dúvida0 %#&'-a a felicidade, mas o nome, um tanto inadequado, surge entre aspas (ROSA, 1985, p. 168). O rapto do espírito, seu transporte a alturas pinaculares, parece ser traço de experiências tutameicas vizinhas, como o êxtase, o sublime e a alegria. Esta pôde ser experimentada no arrasto de uma cavalgada !$!$!)($$)" /$)%+"%*'*#% 11 Essas gradações não são monopólio do senso comum. Apreciações semelháveis acham-se na filosofia. A teologia medieval, e.g., operava uma diferenciação entre a alegria terrena e efêmera, laetitia temporalis, e a felicidade do coração, gaudium spirituale, que chega a seu cume após a morte, na visão da divindade, selada por *#/'!(%!(')%#*%0&  26 enfim nenhum, nem era passeio, mas um ato, sem esporte nem espairecer. [...]. A estrada nua limpa com águas lisices  tudo o que nele alegre, arrebatado de gosto  e o azul que #"(")()# '')!0 $  Já n# $''#  /Sobre a escova e a dúvida0 anteriormente referido, em visada mais precisa, são dois os enleios descritos e postos em paralelo: o do personagem Lucêncio e o do narrador/prefaciador e, igualmente, personagem Guimarães Rosa.12 Nada tendo que ver exteriormente com qualquer frenesi (como no caso de Xênio e Mema), ambas as suspensões compartilham, entre outros elementos, o semissono e o desvanecimento da percepção da sucessão temporal  características que, a propósito, são incorporadas na forma, por assim dizer, extática de Tutaméia, perceptível, primacialmente, em textos soporosos, #!#/,"' !$"'0 /&&##-das-"('0 /&'$0 /# &#'')&0 + # $&-$&# )(#& %)! confessa que se esfalfa, por meios vãos, para copiar e recaptar, nessa sua obra sem trechos e enredos, aquele arroubo antigo, prodígio involuntário (ROSA, 1985, p. 169). A evasão do tempo, não integral, instante discordante e acordante em que o ser se limita e se dilata infinitamente, espécie de trans ou paracontentamento, portanto, é, de início, à maneira cômica, assombrosa e mesmo aterrorizante; pouca ou nenhuma relação com qualquer sensação monocrômica de harmonia e completude. Confira-se, só para começar, a anedota do sujeito sonolento e transtornado que pega a gritar que o relógio enlouqueceu e deu uma hora quatro vezes, bem como a transcrição dos versos tenebrosos de Eugênio de Castro, em que relógios desconcertados, badalam, à meia-noite, treze horas (ROSA, 1985, p. 166 e 167). Por um lado, Lucêncio, em estado hipnopômpico, pergunta com angústia e certa comicidade de palav&# ')&!"( && *  / Deus meu, descarrilhonou0   12  $   O que me dá excelente ocasião para deixar patente que esse nome é compreendido nesta tese como assinatura de uma persona ou máscara autoral. A separação peremptória entre homem e artista foi, no entanto, alvo de escaldadela rosiana (COUTINHO, 1983, p. 74). Na literatura aqui em pauta, a máscara é também rosto; cobre, disfarça e ludibria; expõe, espelha e revela. Além do mais, adianto-! /''"()&0é ideia-ferramenta que entra em contradição #!#)(&/"#"!0 27 Por outro, Guimarães Rosa  '# 8'$% )# ( noite e mais meia-noite9  & 167). Trevas, temor, humor involuntário, beiras da loucura... Em seguida, porém, o alheamento transmuda-se em rebimba apaziguante, levitação lânguida, lépida e ritmada.13 O tempo é vivenciado de modo outro; não como ditame cronológico, mas como ritmo cósmico e interior; e assim também o espaço, um tanto alforriado da força ou peso da gravidade. O narrador tenta traduzir sua arquifelicidade (ROSA, 1985, p. 168), sua (%'10%(" #$)% 8$) -me diferente imediatamente: em lepidez de vôo e dança, mas também calma capaz de parar-me em qualquer ponto. Se explico? Era gostoso e não estranho, era o de a ninguém se transmitir. Tinham aliviado o #*$%9 (ROSA, 1985, p. 167). A esta altura, pode vir a quadrar uma definição hermética de alegria: 8harmonia do ritmo interior com o ritmo exterior, do ritmo de baixo com o do alto, do ritmo da criatura com o ritmo divino9 .71989, p. 612).  &4"%%  #%%'' 2 &$%(% &' *3$ % $*# $) "4#, $*4$%  8 (( # despertou de todo&(% $" -%$)9  & ()+((% perturbador da delícia extática não é desconhecido da tradição mística (cristã).14 Dupla face similar noticia-se na saudade que se assenhora do ânimo de Siozorinho, logo depois da partida da ciganada patusqueira; melancolia que ele, como que em seu momento de manucho, sabe saborear bem, botando no bolso o mugido de um boi, andando à toa, calcando(-se) (n)os cheiros da erva verde já rota do chão (ROSA, 1985, p. 71). O êxodo de si mesmo (que pode ser acompanhado ou não do acesso a uma interioridade mais verdadeira) é, a bem dizer, ideia abstrata sob a qual se podem subsumir experiências de naturezas as mais diversas  todas fulcrais em Tutaméia: além do êxtase  &"+'  3$'% # $ $% 8' #9 $%) 8'%*, 0%9 8#%"-9  8 $%"3$ 9  ()/ $( $* !*$)#$)%#8' #%98' #'9$%$%#%*'$ '%()5' 8 #%%#9  & 142). 14 Se os mais inexperientes, uma vez findado o sabor sempre provisório do recolhimento, sofrem um 8*#%' #* )% (%()%(%  %$)'' %9 )2 %"2' % (CRUZ, 2008, p. 40), os mais santos, nesta noite tão escura da alma, sofrem a alegria da saudade e de uma fé absolutamente pura, sem qualquer consolação (CRUZ, 2008, p. 86); sofrem a alegria de sofrer com Deus. 13 28 propriamente dito e da alegria, o amor, a compaixão, o desprendimento, a possessão, o entusiasmo, a embriaguez, a loucura, o sublime, a imaginação/inspiração (artística), a exaltação, o sono, o sonho, a melancolia, a apoplexia, o medo, a violência, a alienação. Borrões fronteiriços permitem a Guimarães, por exemplo, empregar uma terminologia digna do êxtase mais supino na descrição cômica de uma estase humilíssima, que, na negatividade de seu alheamento, ao menos a princípio, nada tem que ver com aquele. O eu de Joãoquerque é um verdadeiro saidouro; estático de medo, o personagem sai de uma saída de si para adentrar em outra saída de si. Ao final, é ainda com um raio de arroubo que cai em si, o que, no contexto, significa: enfrenta, a seu modo trapalhão, não de todo centrado, o terrível #*%(%#$) 5então, que então, o que nenhuma voz disse, o que lhe raiou pronto no ânimo. Mais já não parava assim, em al, alhures, alheio, absorto, entrado no raro estado pendente, exilando-)  ) 6    5, p. 62). (Re)centramento? Sim e não. Joãoquerque torna-se um semi-herói semiaudaz. %(  # "1#  5#-aventuranç % %!%6 ROSA, 1985, p. 75), Terceiras estórias conhecem aquela outra, bíblica. A zíngara Aníssia, +#5&/))(6"#((( - # e outros alegres personagens, mas também, pelo reverso, Pintaxa (ROSA, 1985, p. 70 e 93), lê  5%-,$*+(6  Sinhalice e Sinhiza: é palmista. Este último termo não se acha nos   %$/( %)   " $*7$$ (* $)  &    "+ -o, validamente, da seguinte #$ (  5 $ '+ "2  &"# ) #0%) '+ &%( " &( .  )%(* % +*+(%6 Sem embargo, no contexto destes comentários, prefiro ver ali uma referência ou ao grego  ou ao latim eclesiástico psalmus; existe, inclusive, o psalmista, salmista em português. É nest)$* %)&3 %" /)'+%&(5#)%(#)6)"# 5%$*(%)&%eres do  )#%6 &$3)) )( $tatriz e recitante do saltério ou textos sacros em geral, no caso, muito provavelmente, o Novo Testamento; não é à toa, pois, que é comparada a um bichinho musical, cuja divina (des)ocupação já foi referida. O charabiá 29 cantado de Güitchil e Rulu  e o nome viria de rulo? arrulho?  tem algo também de salmodia. De acordo com Antenor Nascentes (1981, p. 46 e 231), ventura indica aquilo que vem de bom ao destino do homem, quando este, todavia, pouco ou nada fez por merecer. Aí está uma matriz de enredo bem a gosto do criador das estórias tutameicas, se bem que, nelas, ela não só extrapole a noção de ventura e se estenda à compreensão global de alegria  muitas vezes, dom que se recebe , como também se vincule a outras noções: graça, serendipidade e boa estrela, por exemplo. Fortes Fortuna adiuvat é aforismo ainda ).&/-#  5 #-.2 quando a fortuna ajuda os fracos6 ' Sorte, dita, fortuna e que tais, todas palavras presentes em Tutaméia, situam-se entre as ideias de acaso, destino, fasto ou nefasto, e êxito/felicidade ou malogro/infelicidade.As zíngaras (,-"-$5(,*0&&*-%+&*6 *1& 5&)+,%&**6 '&)(, #*  #"-)* *$') $ -" $ $* também porque cativas, sempre mal fadadas por um mandado de faraó que nunca termina (ROSA, 1985, p. 69 e 70). Falso fortunoso, apesar de materialmente prosperado, é, ao menos por um momento, o Drijimiro das campinas (ROSA, 1985, p. 98); também o narrador  5"$ & &$6  '')&--#$%+&5 ",6no iniciozinho do conto (ROSA, 1985, p. 197). Quanto à serendipity, o ficcionista de Cordisburgo diz aprender, no  Dictionary, que este neologismo, cunhado por Horace Walpole, exprime a faculdade de fazer, casualmente ou por sagacidade, boas descobertas (ROSA, 1985, p. 174); por ora, note o leitor a combinação entre sorte e engenho, distração e atenção, surpresa e perspicácia. Po#',&  -%+,) & $%&* *& *, ')3')"& ')"*$ 2 & %))&)  5,)+$1&6 não pelo fruto visível de seu trabalho, a construção perlongada em que amassa seu próprio sangue (ROSA, 1985, p. 45), mas por aquela casa de Deus que emerge como que pronta nele mesmo, silenciosa e misteriosamente copiada, ao final da narração ou do texto, se não dos atos e acontecimentos    '    ,#$%+ )" ,."%! (, ))$+ 5& 30 ")$$#-'+$'(((($"'"7 % 0+#)*'$(+#)*'; e talvez, por um salto de interpretação, bem-aventurada, como faculta o título do conto (ROSA, 1985, p. 194). Ela é chamada também Djaiaí ou Dja ou Iaí; mais três charadas da onomastoteca rosiana. O significado da forma encompridada, em que as duas sílabas são adjungidas, poderia ser auferido de dicionário: Jaíra, feminino do hebraico Iaír, 0)"$$#)'$+'($ 6&*Deus anima, desperta7 6$!*"#$D*(7 6)#)!$'()7 %   67 (*%$()"#) %'$)0)co) dessa invenção rosiana traria sugestões divinais, truque já deslindado pelos críticos em outros nomes e casos, como o de Diadorim. Hipóteses em algum grau convergentes com isto que se acaba de conjecturar são desembrulhadas diretamente do texto e, por cons*#) "( $#+##)(    '")'  67 $" )$ (* ' simbólica de atualidade e solaridade divina (ROSA, 1985, p. 195); já a parelha Dja/Iaí, de maneira similar, se soldaria com o modus vivendi $$'%'$#).$)'+(( $6 -7 e $ 627 ).$ %'3%'$( (( personagem. Com efeito, seu nome tende a confundir-se, sistematicamente, com esses dois advérbios, por força de uma fonética oculta que parece estar sempre a evocar tempo imediato e/ou transitivo. Às vezes paralelos, ambos se acoplam na 4!)"(#)#/"&*(*'" 6Dja fechava-(($$#()#) ')%$'!'# ,7 6Já fechava-( ($ $ #()#)  ') %$' !'#  ,7 6Iaí %(&*%(+7  6E aí ps&*%(+7 6$!)$*-se Iaí, Dja, de rompida, à manhã belfazeja, quando o gato se #!$+7  6$!)$*-se [e] aí, já, de rompida, à manhã belfazeja, quando o gato se #!$+7 6Iaí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais veloz que uma voz, ,*,*(%#("#)$76E aí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais veloz que *" +$, ,*,*(  %#("#)$76Dja tornou sobre si, de trabuz, por pau ou pedra, *(%* # $'7  6Já tornou sobre si, de trabuz, por pa* $* %' *(%* # $'7 6Djaiaí, sustou-se e palpou-se  (3 +$!1#$$'/.$)'76Já-e-aí, sustou-se e 31 palpou-se  só a violência do coraç2(-+8 )   os negritos são meus). Seja como for, pergunta-se: é ela que salva o sapo que está em perigo ou é ele que, estando em perigo, a salv&7.+-&2(8-4,++#+, linhas, o receptor é levado a crer que lê a estória da construção de uma casa concreta, enquanto, na verdade, lê também (alegoricamente) a da brotação de outra, im-+#%7+,/'-.+8 (+& semelhável, com o perdão do trocadilho barroco, é menos um conto sobre uma sapeca que, por estro e por ventura, resgata um sapo do que sobre um sapo que, por encanto e por acaso, resgata uma sapeca. A estória tem seus segredos; e à Maria Eu0#'"7(,,!+edos a guardavam8 1985, p. 194). Graças aos gritos da mãe e à convergência serendipitosa de sapo e sapeca na virada do caminho, é cumprida não a proeza temerária que ela mesma se havia proposto ao pôr-se em viagem, mas outra, surgida de repente. Com o excitamento e trescontento de grande empreita realizada, a garotinha, até então obstinada, distrai-se da excursão perigosa em meio a cobras comedoras e resolve, inopinadamente, reconverter-se ao lar. E ela nem se dá por nada disso; nem de longe desconfi ( .+.'3(  *. ,%#/+(.  7+$( & +'"8  1985, p. 194), sendo realmente isto o que é para os adultos, continua sempre a ser o paraíso que um dia foi imaginado pela pequenina. Quero dizer, para ela, ele é, de fato, isso. Eis talvez, na lente de Rosa, exemplum de uma certeira objetividade que um ponto de vista profundamente subjetivo pode alcançar. O namoro do texto com as narrativas do maravilhoso 4 %!+'- 7#4#*.-.(/),,+-se no universo de acordo com nossa expectativa [...] é a disposição mental específica do ('-(1+"'8 , p.199). Mas não é, veja-se bem, que esse personagem meio lobatiano desconheça totalmente o mundo tal como os adultos e parentes o retratam: ele não vinga é botar fé nele, conformar-se com ele a partir ,.(+32(0#'"( 7-(+,#8 ) 7+#*.+0/8  p. 195). O ato mágico trans-formador posto em prática ritualiza a visão: ela pisca os olhos ou 32 tapa-os com os dedos (cujas unhas estão pintadas de mentirinhas brancas), toda vez que a vida se prova como uma laranja azeda  o que, ao cabo de contas, denuncia que a contrariedade do estragoso mundo foi ao menos intuída como tal (ROSA, 1985, p. 195). Maria Euzinha psiquepisca: busca (re)centrar-se, fecha-se e interioriza-se; coloca-se a si mesma e ao mundo &+,*.+(*.'$,*.*:*.*; com outra luz: a da sua ideiazinha interior (ROSA, 1985, p. 195). O olhar, já, em si, atuante, não se confunde com a recepção passiva do que está lá fora. A realidade é, para ela, antes coisa que se reza do que coisa que, simplesmente, se vê.15 É daí, enfim, que nasce toda a sua renitente negaça... infantil? Sim, há algo disto, certa e explicitamente; mas não é este o aroma da estória. Descartado o enfoque de um realismo puro e ingênuo, fica difícil para o leitor demarcar um cenário verdadeiro: o dela ou o dos pais? A pilantrinha, pelo menos, parece ter um bom pressentimento da porção de fantasia que há em suas representações. Em suma, por ora, o que pretendi salientar é que a alegria é mesmo proteica e tem miríades de entretons. Corporifica-se na vivacidade infantil :*+.&,-*;), na festança %#' ,*#+, :*7   1!- ' *#'; :#&!*+;), na felicidade e boa estrela de tintas -$++:Arroio-das-&,+;), &'(*0#%&,'-%'6+-:Lá, nas %(#&+; &' *#+'  '%## '- ' *('-+' *$/&, : .$ ' #'; :"4-; :+ ,*5+ "'%&+  ' '#; &' '-,' #.*,#%&,' :Aletria e Hermenêutica; :Hipotrélico;), na com-($5&# 3&"'+  %'*'+ '% ' (*&,%&, #'  %- :*#&,32'; :%#&#+32'; &' *!$' '  5%*'  ' #&+#!&# #&, : '-,*' '- ' '-,*'; :Os três "'%&+  ' '#;), no bem-+,* '*('*$  -% +'&' +&,'  *#,-$#0' :Pres(;), na embebição sensorial d&,-*0:#,';:*71!-'*#';&'!'0'+' *#')-+ #' 8 '%  #%!%  -% *#&)-' +!*'  (*'.*# :  <O que este mundo é, é um rosário de bolas= ;    (  Pouco antes de relatar o assassinato dos inimigos do patrão, o contador de :#-;$*:%#+* 4*#&)-';, 1985, p. 199). O par estaria aqui com sinal invertido ou, no mínimo, bem mais dúbio. Guimarães Rosa tem consciência hiperaguda de que toda ideia pode ser pervertida ou apresentar dupla face. Já em tropo anterior, do Grande Sertão ##'&.:#&"% %'% %2''*#&)-''%-&'; (  15 33                    ), na expectação              ), no prazer do jogo e da inventação Melim- ), etc. Cada uma dessas materializações da alegria, mais ou menos prosaica, mais ou menos ambígua, pode ganhar, eventualmente, no movimento interpretativo, um suprassentido ou poético ou alegórico ou transcendente; até mesmo as cores fascinantes de um estado transitório de ventura, tres-aventura espiritual. De fato, o prefácio deixa entrever que Terceiras estórias aspiram a guindar não apenas o humor, mas a existência humana como um todo ao sublime. Nelas, a alegria, objeto de desejo, está quase sempre mesclada ao pesar, ao luto e ao sofrimento. Sob o prisma do autor  não necessariamente coincidente com o dos personagens, que podem experimentá-la de modo diferente , é, sobretudo, fruto de hermenêutica, de certo exercício de leitura da realidade, de uma maneira de conceber o mundo perpassada por contradições. Em eterna geração e invenção no interior do sujeito, é empreendimento, risco, proeza. Angústia-que-ri, dá sinal de si sempre a partir de uma profunda consciência do absurdo. Todo o dégradé precedente deixa distinguir, ademais, que a alegria não está imprescindivelmente ligada nem ao riso de maneira geral nem ao riso cômico de maneira particular, posto que, vez em quando, esteja combinada a um ou a outro. Terá o ledor alguma ideia do despenhadeiro terminológico em que intrepidamente se metem e, nos melhores casos, elegantemente se afundam os que buscam categorizar ou fatiar o humor, o dito de espírito, o jogo de palavra, o nonsense, a piada, a brincadeira, a ironia, o grotesco, o trágico, o sério, o triste, etc. , toda uma gama de conceitos sinônimos, adjacentes ou opostos que se relacionam àquilo que se nomeia, de maneira genérica, o cômico ou o risível. 34 Recobrando nomenclaturas e respostas laboradas sobretudo até o século XVIII, qual seria o princípio ou a paixão do riso? Uma afecção cômica sem nome específico, algo como           Frívola? Racional? Ou, por outra, um prazer misturado à dor, como a inveja ao próprio riso ou a mesma alegria à tristeza? Quem sabe ainda o desprezo, a loucura ou o orgulho? A surpresa, talvez até raivosa? A indignação ou a aversão? (ALBERTI, 2002, p. 43, 91, 96, 97, 124, 129, 132, 146, 150, 152 e 161; MINOIS, 2003, p. 416, 417, 431, 438 e 449). Recobrando nomenclaturas e respostas típicas dos tempos posteriores aos setecentos, qual seria a causa ou função do riso? A ritualização dos instintos de agressão? A descarga do mau humor? A liberação das forças vitais ou das pulsões? O exorcismo (e recalque) do medo, do mal e da angústia? O relaxamento ou alívio da tensão? (MINOIS, 2003, p. 35, 104, 166, 196, 275, 298, 391, 458, 459, 472, 563, 615, 616 e 623; KOESTLER, 1989, p. 51). Ao longo da história, o cômico ou o ridículo ou o risível já teve por contrários, por exemplo, o trágico, o sério, o sublime, o gracioso, o belo. Já o riso ou o páthos nele expresso têm sido o inverso da angústia, da tristeza e do choro; por prudência, fecho a lista com um et cetera (ALBERTI, 2002, p. 123, 148, 167, 176, 178, 131 e 187). Apesar de que terrivelmente opaca e simplória, a concepção do cômico como aquilo que é engraçado ou aquilo que provoca o riso é a linha de fé das mais diversas teorias modernas, seja ela operada conscientemente ou na condição de pressuposto, às vezes refugado, a princípio, como insatisfatório: nem tudo o que suscita o riso é cômico, e o cômico possivelmente nem sempre se explicite em riso.16 Elaboram-se teorias, em seu conjunto, as mais excêntricas, erigidas, porém, sobre esse elemento do senso comum, onipresente e absolutamente atuante desde a seleção da matéria examinada. Vale dizer: tal compreensão não é assim tão pascácia; quando mais não seja, suporta com aprumo, no perímetro desta pesquisa, 16 Uma comicidade que não contraísse os músculos da face era, a propósito, o sonho de Flaubert (MINOIS, 2003, p. 532 e 584). Cf. também p. 274, 435 e 542. E ainda: BREMMER, JAN; ROODENBURG, Herman, 2000, p. 153 e 254. 35 cujo objeto não é a teoria da comicidade em si, nem sua abordagem in abstracto, a função de estaca inicial mais ou menos delimitadora de uma reflexão que também não deseja alicerçarse já, de saída, num aparamentado edifício apriorístico. Seria ingênuo supor, por outro lado, que não se traga para a leitura do literário noções prévias subliminarmente ativas. A verdade é que estão em baixa quaisquer classificações escrupulosas, e nisto se espelha a própria compreensão moderna da comicidade. Com efeito, desde Jean Paul, Schopenhauer e, mais radicalmente, Nietzsche, há uma propensão para atribuir ao risível como um todo um lugar além do pensamento sério (ALBERTI, 2002, p. 199, 200 e 205). Como consequência, para muitos dos teóricos que lhes são posteriores (com exceções, claro, como a de um Freud), explanar a comicidade seria negar-lhe a natureza, elucidá-la seria eludila, resolvê-la, dissolvê-la. No caso da incursão de Guimarães RosAletria e hermenêutica está mais preocupado, ou desocupado, com o cai não cai da linguagem. Não monta diligências para abstrair, teorizar e distinguir o cômico, o humorístico, o anedótico, etc., se bem que não abra mão da precisão poética que inscreve a palavra certa na posição certa  e é antes isto o que vai interessar aqui. Em razão disso tudo, parece-me que excludências rigorosas na eleição do ferramental de análise são pouco produtivas: as categorias que explicam o que se dá no prefácio, pelo menos, são todas aquelas abonadas por ele: comicidade, humor, graça, chiste, blague, estorieta, não senso, facécia, etc.; e, muito mais ainda, aquela especialmente cunhada para ele: anedota de abstração (ROSA, 1985, p. 7). Do que foi exposto não se conclui que muitas das teorizações modernas sobre o assunto, conquanto em si mesmas problemáticas, não teriam poder elucidativo sobre Tutaméia; pelo contrário. Feitas imperiosíssimas ressalvas, contextuações e particularizações, várias delas se revelam aptas à tarefa. Assim, bem grosso modo, algo do risível tutameico poderia ser considerado como efeito de: a) uma conexão contraditória, irresolúvel e 36 polissêmica, entre sentido e ausência de sentido (Plessner); b) uma incongruência ou discrepância entre o abstrato e o concreto ou entre o eterno e o devir ou entre o vivo e o mecânico (Schopenhauer, Kierkegaard e Bergson respectivamente); c) uma incorporação daquilo que é excluído pela ordem do sério como nada (Joachim Ritter); d) um desmantelamento da sintaxe entre as palavras e as coisas (Foucault); e) uma transformação súbita de uma expectativa em nada (Kant); f) uma liberação de um prazer infantil (com os jogos de pensamento e palavras, por exemplo) reprimido outrora pela razão ou julgamento crítico (Freud), etc.17 Outra explicação do cômico típica, embora não privativa, dos três últimos séculos que poderia, de entrada, ter algum proveito para o estudo da obra e, melhor ainda, para o de Aletria e hermenêutica é aquela que o toma como incongruência ou contradição (componentes explícitos ou implícitos de todas as definições listadas logo acima); ou ainda como nonsense ou absurdo. É por demais patente, entretanto, que há contrassensos neutros, trágicos, cômico-trágicos, etc. Fundamental, no domínio desta tese, é matutar como é que o      medita o cômico e joga com ele. Por que e como se tornam risíveis (e talvez, ao mesmo tempo, trágicas e afligentes) as ilogias concretas de Tutaméia. O riso é universal, e o homem, sob certa mirada,         íc  1985, p. 132). Nada obstante, o momento em que este homo ridens et ridiculus pode rir ou a isto se inclina, bem como aquilo de que ri, é histórica, social e culturalmente determinado (sem que seja necessário dar a este último termo peso determinista). Nestes macrocontextos se movimentam ainda os contextos textuais, situacionais e individuais. 17 Para o aproveitamento feito pela crítica de muitas dessas fórmulas na obra rosiana, ver, por exemplo, Ramos (2007), Lima (2000) e Andrade (2004). Para o contato direto com elas, bem como com as teorias da incongruência e do nonsense, referidas no próximo parágrafo desta tese, conferir, inter alia, O riso e o risível na história do pensamento (ALBERTI, 2002), Risa redentora (BERGER, 1999), Comicidade e riso (PROPP, 1992), História do riso e do escárnio (MINOIS, 2003), Uma história cultural do humor (BREMMER; ROODENBURG, 2000). 37 Em vista de todas essas coisas, no exame da literatura tutameica, pouco ajudaria espremer a ideia em uma senha lapidar equivalente àquelas que se tiram, judiciosamente ou não, dos textos filosóficos: incongruência entre o vivo e o mecânico (Bergson), entre o esforço e o resultado (Hegel), entre a infinita grandeza e a infinita miséria do homem (Baudelaire), etc. (BERGER, 1999, p. 62, 77 e 328). Uma fórmula de tal plana, ainda pouco palpável, só teria sua eficácia, franzina ou não, quando devidamente contextuada e desenliçada. Mas e então? Concretamente, por que e como se tornam risíveis ou cômicas ou humorosas as incongruências e os absurdos de Terceiras estórias ou, mais precisamente, as anedotas de abstração do prefácio?18 Assim, para um brevíssimo e primeiro ensaio, a ser retravado no terceiro capítulo, recordo passo-chave: E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz sugestiva  demais que já de si o drolático responde ao mental e ao abstrato  a qual, a grosso, de cômodo e até que lhe venha nome apropriado, perdoe talvez chamar-se de: anedotas de abstração. Serão essas  as com alguma coisa excepta  as de pronta valia no que aqui se quer tirar: seja, o leite que a vaca não prometeu. Talvez porque mais direto colindem com o não-senso, a ele afins; [...]. (ROSA, 1985, p. 7, os negritos são meus). A      Aletria e hermenêutica nascem, segundo a proposta chalaceira do prefaciador  jogada crucial cujo alvo é o sublime , de um premeditadamente maldefinido movimento de abstração ou ainda exclusão/ex-ceção em sentido etimológico; e, a partir daí, da subtração, da eliminação, da niilificação,19 do erro, do vazio, da falta, etc.  enfim, de uma série de operações, disposições e situações tomadas, estética, jocosa e livremente, como desdobramentos sinonímicos ou subgenéricos da imagem A expressão abrange todos os pré-textos ou        Aletria e hermenêutica ou seja, as formas as mais diferenciadas: pilhérias stricto sensu, mas também coplas, parlendas, quadras, adivinhas, legendas, ditos de espírito, versos de poemas eruditos, etc. Pelas anedotas interpretadas no terceiro capítulo, o leitor terá melhor ideia da amplitude lúdica do conceito. 19 Aludo às subespécies mais facilmente identificá                                  a seus artifícioschave, de acordo com a leitura do prefaciador (ROSA, 1985, p. 10, 11 e 13). 18 38 inicial, aquela da abstração. Como é visível, o discurso está a léguas da compostura usual das teorias do cômico. A seriedade aqui é de outra ordem. Com isso, é evidente, estou longe de lançar luz sobre todas as faces e dobras da *Aletria e hermenêutica+ de Tutaméia. A teorização inicial do cômico ou do humor pode, até certo ponto, ser projetada para as estórias; mas nelas, na verdade, há aspectos que não são (tão) explorados pelo prefácio e, por isso, não bem captados     *Aletria e hermenêutica+ &   m enquadra rigidamente a complexa vibração do cômico da obra; nem há ali qualquer preceptística de leitura. Se o prefácio dimensiona algum tanto as estórias, estas, como num movimento de revés, estão sempre também a redimensioná-lo. Não é somente ele que ilumina as estórias; elas também iluminam o sentido do prefácio: relativizam-no, alargam-no, concretizam, de maneiras diferentes, o que ali está como projeto abstrato. Se ele é ou funciona, em algum grau, como a estória das estórias, elas valem como prefácios do prefácio. Para externar uma diferença: *Aletria e hermenêutica+ '  pelo apetite persuasivo e orientada para o tratamento   $  *+ *!   "+  *$+ !  própria tese, basicamente, pelo cômico de palavras, de pensamento, de microssituações ou quase-enredo; também de ação ou comportamento. Já nas narrativas, como é natural, isso tudo que estava in fieri se expande e complica  sempre, claro, sob a forma da fome do sertão; quero dizer, sob o duro regime sertanejo dessa obra magruça, descarnada e ossuda. 20 Por outro lado, é também principalmente nas estórias que ganha gordura a comicidade de caracteres, gestos, fisionomias, sons, etc. 20 As imagens ósseas, de um ossário destroçado certamente, surgem, por exemplo, no estapafúrdio glossário de *Sobre a escova e a dúvida+  & !àqu!# * +*$+ *%+*osso+*(+* +*osso+*-de- +A fome do sertão  não só física, mas também metafísica e etc.  está inscrita na forma de Terceiras estórias, que é homóloga à realidade ficcionalizada,  *#   !$"+ o poeta (ROSA, 1985, p. 179); sob esse ângulo, sua forma não foi feita mesmo para deleitar. E em tempo: a geografia apagadiça do texto não parece corresponder ao rude sertão adentro da obra magna de Guimarães Rosa (cujas fronteiras também não são lá muito definidas). Mas o " *  & $  +    39 É sempre útil não esquecer que a divisa entre comicidade de palavra (dicção) e pensamento (conteúdo) e coisa (objeto/incidente/ação) é problemática, em primeiro lugar, porque a própria relação entre realidade, língua e pensamento segue irresolvida. Em segundo lugar, porque todo risível mediado, prima facie, pelo idioma  por suas materializações orais e escritas  é inseparável dele e de seu molde. Ou melhor, todo cômico seria sempre dependente, quando menos, de maneira indireta, da língua, pois ainda aquilo que é paralelo ou alheio a ela, silêncio, som puro, expressão facial, gesto, voz, ritmo, entrelinhas, movimento, tom, entoação, ação, etc., liga-se à totalidade do processo simbólico de uma dada sociedade. Não obstante, em contextos específicos, há vagas para uma comicidade de conteúdo, relativamente independente das palavras (quando a alteração ou permuta delas não destrói o efeito de risibilidade, conquanto seja questionável que não o modifique de alguma forma). Para dificultar ainda mais o debate, a obra de Guimarães extrema-se num exercício de remodelagem infinita de um idioma sempre in statu nascendi  no caso de Tutaméia, seria melhor escrever provavelmente in statu moriendi, embora uma e outra coisa, ali, não sejam lá muito contrárias. Quero dizer, o nome é o filtro ou limite pelo qual se percebe o mundo, além ou aquém do qual, no entanto, sempre há muita coisa a entremostrar-se. O cômico não é, na obra, simplesmente, algo pré-moldado ou condicionado por uma língua já acabada; é vislumbrado mesmo quando exterior a ela, que se dinamiza, então, para fisgá-lo. Os elementos do risível estranhos aos signos, ao já dito e conhecido, possuem um liame complexo e ambíguo com o verbo rosiano, que os capta da realidade, mas também os inventa pela fantasia; projeta-se para eles, apanhando-os, aventando-os, mas também, é de suspeitar, perdendo-os; o enfoque enceguecido do texto não pretende ter atinado com todo o (rasgo) cômico que haveria em cada chiste, em cada estória; tanto é assim que há brechas para a comparticipação do leitor. 40 Quanto ao humor propriamente dito, as teorizações são igualmente polêmicas. $    !    "  %          1993, p. 60). Sua abordagem científica oscila entre a pura assimilação sinonímica ao conceito de comicidade e a dissimilação dele pela introdução de timbres peculiares  variáveis, todavia, de pensador para pensador. Nesta pesquisa, as duas visadas cruzam-se pacificamente: é o contexto que desengana o leitor dos matizes em pauta. Assim, as compreensões de comicidade circunstancialmente privilegiadas acima  aquilo que provoca o riso e aquilo que é resultado de uma incongruência ou nonsense  são passíveis de ser aplicadas ao humor; entretanto, na qualidade agora de subespécie do cômico, ele albergará também outras e novas modulações. Aqui vão alguns dos pensadores para os quais o humor não só chega a calcificar-se como uma forma do cômico, senão também é objeto à parte de uma reflexão mais ou menos detida: Sigmund Freud (1993; 2001), Vladimir Propp (1992), Peter Berger (1999), Henri Bergson (2007), Schopenhauer (2009b).21 Para Freud (2001, p. 158), por exemplo, a essência do humor é a economia de afetos dolorosos, tais como dor, terror e espanto, esperáveis em determinadas ocasiões. Diferentemente do dito de espírito e do cômico, o humor não possuiria somente algo de liberador, mas também de patético e grandioso. 22 Tal grandeza residiria na afirmação triunfante de um ego invulnerável que se recusa a ser afligido pelas afrontas e traumas da realidade, fazendo deles ocasiões para ganho de prazer. Ou melhor ainda: o humorista retira a ênfase psíquica de seu ego e traslada-a para um superego de tal forma inflado que os interesses egoicos lhe parecem facilmente desdenháveis e reprimíveis (FREUD, 2001, p. 158 e 160). O humor negro ou patibular fica a serviço da ilustração: o réu, a caminho da pena capital, em uma segunda-feira, afirma, exclamando, que começa bem a 21 Também alguns dicionários técnicos diferenciam o humor. E.g.: A glossary of literary terms (ABRAMS; HARPHAM, 2009); Diccionario de términos literarios (CALDERÓN, 2008). 22 É difícil pensar aí em uma correlação com o sublime anedótico de Guimarães Rosa, uma vez que o humor freudiano é, em confronto, amargo e desencantado. 41 semana; ou, então, solicita um lenço para proteger o pescoço do frio (FREUD, 1993, p. 216 e 217). No momento, todavia, seria aconselhável eludir as singularidades dos teóricos do humor constantes desta bibliografia e trazer à roda as características mais universalizáveis do conceito. Salvo engano meu, seria possível somar o espírito, o engenho e certa intelectualidade; também o riso leve ou não derrisório, que é um fim em si mesmo e pouco ou nada tem de arma de ataque (em contraposição com a sátira, por exemplo); o patético (a mistura com o triste, o tocante, o que desperta piedade; ou ainda com algum sentimento ou emoção, como melancolia, terror, angústia, etc.); a benevolência ou sim-patia ou com-paixão do sujeito que ri pelo objeto do riso. Em termos panorâmicos, pouco dessa peneira é desmentido pelo opúsculo rosiano. Ali, o humor pode ser pensado como meio de influir a alegria tutameica e, simultaneamente, como uma das formas em que ela se manifesta. É uma disposição do espírito ou uma forma de pensamento e de linguagem que se inclinam para o riso e o cômico mental e abstrato; para a antinomia, o dislate e o absurdo; mas também para a invenção, a criação narrativa, o microestórico, o anedótico, o gnômico, o parabólico e, a partir disso tudo, para a graça, o suprassenso, o sublime, etc.; disposição, pensamento e linguagem estes conectados intimamente a uma hermenêutica e visão de mundo paradoxal: o trágico, o melancólico e o prosaico são a outra face dessa mesma moeda tutameica. Se o trabalho psicológico e linguístico com o humor tem como uma de suas finalidades acordar a alegria, é porque, na obra rosiana, ela goza do maior prestígio e aponta para um gosto mais profundo, mais próximo, aparentemente, da experiência em si da transcendência e do sublime, se bem que, nem por isso, destituído de contradições. Em que pesem os pontos de interseção com a definição hipoteticamente típica forjada acima, não está em boa sintonia com Tutaméia a ideia de um humor que se fecha em si. Nas 42 estórias e prólogos, há a aposta de uma paixão, o /entusiasmo0, a /fé0, a /expectação criadora0/a braba piada0  . Por mais que o humor cobre a si mesmo o próprio gozo, ele é, na verdade&%/prosaico0 para o transcendente, o mágico, etc. Por outro lado, sim, o humor de Terceiras estórias é con-dolente e amistoso. Veja-se uma estória cuja levada caçoante parece rebotar essa afirmação: aquela de Hermenegildo, vulgo Mechéu, vulgo Tatu, apodo herdado do pai, e cuja motivação estaria, quiçá, no fato de que esse animal choraminga (assim como o gato mia, a vaca muge, etc.). O narrador, na descriç*##+"#!%/#%""0, 1985, p. 101), frui não só de seu estilo caricatural, senão também da própria ação de desgabar, levando consigo, companheiro, aquele que lê. E então? O narrador engrossa a voz de zombaria dos moços de fora? Em certo sentido, # /Tinha-se no caso de notar e troçar0  #"$# são meus). Mas isto será o mesmo que dizer que ele adota a lente de engano e distância que só consegue ""  %$"  /'-$0   /'%#0      O achincalhamento realizado pelos rapazes, diga-se a propósito, defronta-se com o aforismo enganador de /Palhaço da boca v"0 que põe de ponta cabeça  "# )##  #% ""  /"" + sempre uma humil0    Será? O narrador, plural, ponto de convergência de múltiplas vozes, como a dos rapazes sabidos, a do fazendeiro Sãsfortes e a da patroa Dona Joaquina, tem consciência de que apequena e chacoteia aquele semi-imbecil (prefixo que o torna, por outra, provável semiesperto da estória).23 Tem ciência também de que alinhava uma caricatura, humoristicamente correspondente, contudo, não a um exagero ou enfeação, mas à própria feição natural do personagem, seja como in-&,% #   % "$%" / que, não era um ordinário rosto, fisionomia normal de homem, caricatura? De braços e peito peludos, fechada a barba: o que é $"  $%"( "0   23     Outros já Irene Gilberto Simões [s.d.] passou em revista a presença de várias vozes ou perspectivas nas narrativas de Guimarães Rosa. 43 anotaram  &( !% $( 4 #%1#% !'(%- '  ('& )-& " &(&&"  (  caricaturista. [...]. Rimos então de um rosto que é em si mesmo, por assim dizer, sua própria %'(%52007, p. 20).  Caricatura-criatura, o medo de Mechéu é ver-se debicado; teria verdadeiro horror de ser isto o que é: bobo para os outros ou o bobo dos outros. A esse papel, no entanto, conforma e relega o Gango, seu fiel imitador. Não que de todo lhe escasseie, portanto, por algum traço %.'%"&!'""2 "0(4$(- &$(&'/""!'!(%&!"& #%  & "5     #  0   #-  %% "& "utros. Equação nada boa, se é verdade que o zombador vê zombaria em toda parte (MINOIS, 2003, p. 431). Enfim, o relacionamento com Gango mostra-se assimetricamente pulhista; é sempre da parte de Mechéu, hostil companheiro, que rompem as mangações e insultos. Eis o núcleo de sua perversão: enjeita apenas para si mesmo e, hipoteticamente, para os patrões, a condição de alvo aceitável de chacotas. O fazendeiro Sãsfortes também é vítima de suas ranhetices, mas é admirado e respeitado; a patroa Dona Joaquina, esta é veneranda. Sem prejuízo da liberdade de escolha de Mechéu, talvez seja possível vislumbrar aqui um riso que funcione como meio de estruturação ou organização social; parece que o protagonista não ri nem reclama assim tão indiscriminadamente.24 Como que a seu próprio contragosto, Mechéu é causa de riso para o narrador; não tanto porque seja ou pareça mau ou feio ou idiota, mas porque nega e renega erros e defeitos; ou seja, é fundamentalmente cômico, e mesmo ridículo, justamente porque não se admite como tal; é risível porque sério demais; um pouco também como o Palhaço da Boca Verde, à diferença de que este não quer ser o que é (ROSA, 1985, p. 132) e não se deixa manifestamente atingir pelo escárnio de que é objeto (ROSA, 1985, p. 130). Em outras 24 Entre outros, William Fry (1963, p. 101) desenvolveu uma teoria do humor relacionando-o com as hierarquias &"&  4' & #"&& ! '& "!'+' to consider smiling and laughter as being (among other things also, of course) unconscious, non-verbal communication signals specifically having to do with social hierarchy and aggressivity-passivity, *'( "%&'%%'"%,!*'&!'%'"!&!%%"('5 44 palavras: a incapacidade de autoironização, que fica entre uma claudicação psicológica, talvez herdada do pai, e o tropeço ético, seria o principal motivo para o rebaixamento feito pelo ficcionista. Enfim, conquanto a compartilhe com os moços e com Mechéu, o narrador procura dar à habilidade zombeteira um agenciamento diferente. Se o personagem é mortalmente sério com relação a si mesmo, sua construção não poderia ser examinada à luz do próprio Bergson de há pouco? Para o filósofo francês, tanto a comicidade de fisionomia quanto a de espírito e a de caráter são efeitos de uma rigidez ou contratura do corpo, da ideia e da vontade respectivamente (BERGSON, p. 11, 15 e 17). As caricaturas, cuja arte tem um quê diabólico, ilustram como toda a vida moral de uma pessoa pode ser cristalizada em uma expressão cômica do rosto; algumas delas seriam mais parecidas com o modelo do que os próprios retratos (BERGSON, 2007, p. 18, 19 e 20). Problema: embora seja ou possa ser iluminadora, a caricatura, como qualquer lente, tem abertura e enquadramento. No caso rosiano, o ponto crítico da forma é a metamorfose do personagem. Quando muda o Mechéu, o contador, que não leva a sério, a ferro e fogo, a própria maneira, a própria perspectiva, não as troca de todo, mas torna-as explicitamente mais plásticas. Ou melhor, posta a coisa mais racionalmente: quando Guimarães Rosa intervém na linguagem, flexibilizando-a, aí se torna visível àquele que lê a transfiguração de Mechéu. O que se lê nas entrelinhas do conto é que o narrador ironiza a própria forja caricaturesca, movimento preparado desde as epígrafes.   !!""" )Esses tontos companheiros que me fazem companhia*    '#"#&#" quantos tontos entes fictícios o leitor alcança espinçar do texto. Haveria aí alusão, por exemplo, à relação de companheirismo entre contador/criador e Mechéu/criatura.25 Com 25     !% !% "! $!!  )Nós, os temulentos*    ! )copoanheiros* (ROSA, 1985, p. 116). 45 efeito, a uma dada altura, os forasteiros, malgrado até alguns bons insights, largam mão do objeto de sua contemplação frívola e curiosa. Despedem-se sem assistir à vira- ,          sob susto e espanto um dos de fora proferiu. Mas, pensavam consigo mesmo, não para o Mechéu  ilota e especulário. Deixaram-- (ROSA, 1985, p. 103). Muito ao contrário, a despeito do lapso de tempo da narrativa, o $" "&%$)"##,"$ ###% !%  #% "# $ &##   # #-         '  #  ( cevasse pressa de sacar o personagem do meio do ovo da estupidez (ROSA, 1985, p. 102). É apenas com a paciência sertanejo-oriental de um Romão ou de um Quim chinês que consegue, também como eles, não devassar, mas fazer despontar um possível outro lado do outro. E isto também já o "%"&  #%  *"  , Isto não é vida!...  É fase de metamorfose-(ROSA, 1985, p. 101). No fundo, o narrador nunca debica ou deprecia o que Mechéu é  isto lhe é inacessível , mas sempre o que ele devém. Ao final do conto, de igual modo, só que agora a olho nu, o âmago do personagem ainda está, para o contador, ultra vires. A guinada  nem de longe simples  do prosaico para o sublime, da caricatura para o rosto sob véu, da troça para a inefabilidade, não se dá, portanto, entre extremos intocados antes e intocáveis depois. Conquanto haja algo de descontínuo e súpeto em toda a mudação, esta é carreada com delicadeza, implantada in nuce desde o início pela autoironia implícita no remoque do narrador. Por outro lado, os aspectos caricaturescos não são tragados pelo nada; refundidos, volatizam-se ou sutilizam-se. São os mesmos, embora sejam outros: há neles certa diafaneidade que sugere algo mais. Quando perde a tramontana, Mechéu ainda é rezingão, se bem que já agradecido (ROSA, 1985, p. 104). E, um tantinho adiante, em sua transfiguração propriamente dita, não deixa de ser engraçado, ridículo, feio e louco. Mas agora o é de um jeito amorfo, duro de explicar. Tudo isto mais a intensidade expressiva, a emocionalidade melancólica e incontida de uma 46 narrativa que é arrastada ao emudecimento e ao tempo presente e, ainda, a emersão clara, na última linha, da subjetividade de um narrador plural que parece carregar em si a alteridade dos companheiros-personagens e do companheiro-leitor (todos que só fizemos falar e rir de Mechéu), tudo isto, repito, confere ao passo traços lírico-cômicos. Transcrevo-o abaixo: [...] Ora fim que enfim se fechou no escuro cômodo, por mais de um dia, surgindo no seguinte aceitou o caneco com chá amargo, restava guedelhudo, rebarbado, os olhos mais cavos, demudado das feições. Decerto não agüentava o que lhe vinha para pensar, nem vencia achar o de que precisava, só sacudia as pálpebras, com tantas rotações no pescoço; gesticulava para nenhum interlocutor; rodou, rodou, no mesmo lugar, passava as mãos nas árvores. Muito devagar, sempre com cheio o caneco seguro direitinho, veio para junto do paredão do bicame, lá sozinho ficou parado um tempo, até ao entardecer. Estava bem diferente, etc., esperando um tudo diferente. Não falemos mais dele. (ROSA, 1985, p. 104). Com misturas semelhantes, algo de etéreo, romântico ou fantástico no cômico, encasquetava-se Stendhal (quanto ao fantástico, recordo ao leitor o conto 3!'#&!'4). O autor de O vermelho e o negro reclamava da obscuridade e indefinição peculiares aos '&(#&' !-'3&-me que a ideia de Schlegel  a necessidade de algo poético na comédia  não é má mas0#$#&%)"-#"(&!!'$#&!"#&'4    2008, p. 34). Na literatura sobre o risível aqui consultada, Shakespeare, Hoffman, Jean Paul, #+ &*"('  $ " #' #' 1 (!#' #"'("('  &()&  3Aletria e hermenêutica4'-#!#elos e dos mais citados. Mas, enfim, Mechéu Hermene- # 3# %) #& &" '&/#4    1993, p. 290), parece aceitar do caneco ou, em foro sublime, beber do amargo cálice daquilo que, de certo modo, sempre foi: um Gango bobo. 26 Mechéu Tatu, fechado no cômodo, traz à mente o quarto escuro da metafísica de Voltaire, onde é possível que se ache, segundo o O prefácio faz do copo, imagem recorrente, uma alegoria dos estilos literários: médio/prosaico  o copo propriamente dito; elevado/sublime  o cálice; humilde/ridículo  #   3#$# "-# '( . $&'# )! , #) #!,)$&'&"'(!$'('4OSA, 1985, p. 16). 26 47 inventador mineiro, não o que se pensa que busca (ROSA, 1985, p. 11). 27 Michéu bambéu (ROSA, 1985, p. 102), encostado no paredão, evoca o alienado semissábio que pega a escutar, intrigado, o som do nada das paredes do hospício (ROSA, 1985, p. 15). A caricatura, que aparentemente escancarava tudo o que havia para ser visto e o enrijecia, tem tintas de mistério. Quem é o personagem? O que aconteceu realmente com ele? As sugestões são inúmeras... O que vem ao caso agora é que Mechéu nada mais é que um qualquer: qualquer um. Nessa estória em que a derrisão é constante formal e temática, a todo o tempo, está a dizer o contador: Mechéu, o outro, esta invenção-caricatura, sou eu mesmo, companheiro; criatura insignificante, sim, mas sublimável. Não seria o nome do protagonista um composto  .   (/ ) & % +$(  " " . "   "/ %)   carta por Rosa? (NOVIS, 1989, p. 84 e 85). Em resumo, a eticidade do narrador não se origina do fato de que ele não mofa, como se estivesse acima dessa vileza; é que, ao fazê-lo, está, igualmente ou antes de tudo, zombando de si mesmo. Eis aí a simpatia ou a empatia própria do humor: o ponto de vista de que partem as estórias é roto, e é sempre este o que ri do esfarrapado. Não triunfa ali o riso distanciado e presumido, destituído de autocrítica e compaixão. Tudo se fez infinitos pedacinhos de nada... Não discorro aqui sobre a intenção do autor. Esta, como largamente se sabe, é, no limite, inapreensível. Digo antes que o texto é irônico e disto guarda lucidez. Agora também, por outro lado, a autoironia, per se, não salva de antemão nenhum discurso do monólogo ou da perspectiva da superioridade, ainda mais em tempos em que o procedimento já foi apropriado pelo sistema intelectual e vai um tanto banalizado, quando não pervertido (o que reverbera ou pode reverberar na leitura de obras de outrora). A técnica, simplesmente, não é garantia de nada. Ou a modéstia verbal não pode ser afetada e ter fonte na prevenção ou medo assoberbados do ridículo e da contestação? Ou a (auto)ironia não pode ser convertida, ela .,"o)%/!&%)-se também o "')""- ""'!%"&" . *!" "%& "&"%#"&"&"&+(*!$($(%'"/  # 27 48 mesma, em princípio absoluto de verdade nenhuma e modelo dogmático de discurso? Ou o humor estrutural não pode funcionar como um tipo de prolepse, sedutora e talvez maliciosa munição argumentativa que amuralha o texto em uma hipermobilidade inamovível? Ou aquele que cria um intervalo entre o eu e o que ele diz não pode gozar com sua própria agudeza e prevalência? O espírito crítico que se realiza pela desempoada autoironia é, não raro, o orgulho do sujeito moderno pensante; pois, muitas vezes, é aquilo que o distingue como tal, sua requintada (des)identidade. Há quem tenha a pretensão de saber que sabe tudo; há quem tenha a pretensão de saber que nada sabe, coisa esta dificílima, ainda que quase evidente.28 A ironia estrutural envolve certos ingredientes antinômicos que, se não revolvidos constantemente na consciência e quimicados com profundidade, azedam a escrita ou a fala, que seja; da ironia, estas emprestariam apenas o simulacro. Com efeito, a forma irônica, cujo nicho, por excelência, é o da negatividade e limite, pode soar, às vezes, por demais assertiva e totalizadora. O irônico é, por paradoxo, afirmado sob modo incondicional: "         # "             ambivalent consciousness  #ICS, 2007, p. 161). Máximas como estas pendem para a negação de si mesmas. Se se atira à própria sentença aquilo que contém, ela acaba por dar por verdadeiro também o contrário do que, em princípio, zelava por estabelecer. Ilustro com o primeiro dos exemplos: a ideia que ele alberga, para ter algum valor, deve trazer ou incubar o seu oposto; ora, então: aquilo que vale, vale também porque não é, ao mesmo tempo, o mesmo e o outro. Toda essa antilogia de fundo consistiria em mera abstração etérea? Longe disso: interfere concretamente na fatura de textos que se divulgam como (radicalmente) irônicos. Obviamente não é o caso de que a contradição seja, em si, um problema: o tratamento dado a ela é que é determinante.29 Ponho-me ressabiada porque, E será que dá para passar ao largo da ironia (auto)corros     "      #  preciso duvidar também de que é preciso duvidar de tudo (KIERKEGAARD, 2003, p. 65). 29 Falando em plano teórico e abstrato, não há jeito de permanecer incólume ao paradoxo: como é que uma ironia total, relativização de tudo, seria, ela própria, absoluta ou relativa sem desmentir-se? No primeiro caso, a ironia 28 49 quando a ironia cai nas graças do gosto, enrijando-se como princípio de valoração de textos, corre o sério risco de submergir na frivolidade ou no autoritarismo que pretende combater. Sem prejuízo disso tudo e que tais, a linguagem de Rosa mostra, a mim, que esse artifício consciente, embora nunca deixe de ser, por exemplo, estratégia para envisgar o leitor, também não é mera retórica de humildade: ali, a ironia não é verniz. O ficcionista mineiro está, grosso modo, imune a esse manuseio simplório da ironia, em primeiro lugar, porque, em sua obra, ela é, em boa dose, sobrerreflexiva; não se trata apenas de distanciar-se do que se pensa ou diz, mas distanciar-se e, assim, desconfiar desse próprio distanciamento; a autorreflexão, como se sabe, para pesar ou prazer, tende ao infinito. Em segundo lugar, porque a ironia rosiana é experimental e viva (e não apenas imposta de fora, cultural e institucionalmente); oriunda do momento histórico tanto quanto de humores temperamentais e de uma lógica e dinâmica internas, ambas estéticas e filosóficas. Sua tática ficcional é dar a ver os seus palpites-convicções na ciranda da dúvida, na roda participativa do pensamento outro e coletivo. Bem, parto para nova discussão. Paulo Rónai (ROSA, 1985, p. 216) escreveu certa feita sobre o Guimarães Rosa de Tutaméia $em nenhum outro livro seu cerceia o humor a   "           %  que, de fato, o livro nada contra o caudal do gosto e suscita pouco envolvimento emocional, quando mais não seja, nas primeiras leituras. Arrisco mesmo a dizer que é anti-pático, e a tal ponto que catarses ficam comprometidas. Mas não estou bem certa se é o humor o real ou o principal responsável por esse efeito. O humor é uma realidade afetiva e também corporal  nega absolutamente qualquer absoluto. No segundo caso, nega-se a si mesma como ironia total. A ironia que ironiza absolutamente Deus e o mundo (ou o ser ou o real ou o todo), bem como o modelo de discurso não irônico e a própria forma integral de ironia, acha, em si mesma, enquanto meio ou instrumento, seu absoluto (não que, concretamente, todo esse distanciamento e duvidação não tenham dinâmica e se atualizem sem descanso;       !               $   %    $   %    $ %     "e pouquinho menos que isso já não é, a rigor, estrutural; relativiza-se; confere entrada a um ou mais absolutos, os quais, por sua vez, tenderão sempre a ser relativizados pela ironia: trata-se, também aqui, de uma movimentação. Seria este o locus do verbo rosiano, que ginga entre a relatividade e o absoluto, sem negar nem afirmar, cabalmente, nenhum dos dois. 50 por mais intelectivo que seja (coisa que, aqui, ele não é de todo e exclusivamente, pois dessa pedra se pretende extrair, nada mais, nada menos, que leite mágico). Ademais, se no humor há afastamento, há também aproximação. Notem-se, quanto a isso, por pura ilustração, os vaivéns da escrita de Bergson e, principalmente, Freud (1993, p. 217, 218 e 220). Posto que, sem dúvida, o filósofo priorize a indiferença ou insensibilidade como um dos apanágios do humor (o que, segundo o tradutor, estaria em consonância com o conceito francês dicionarizado), acaba, em suas últimas páginas, por ensaiar concessão: haveria, no mínimo, um aparente companheirismo e bonomia, uma simpatia fugaz por parte do ridente (BERGSON, 2007, p. 92, 95, 104, 144 e 146). Já o psicanalista sopesa, de um lado, que a economia da compaixão é uma fonte ordinária do prazer humorístico: quando o sentimento está pronto a manifestar-se, é inibido, torna-se inaplicável internamente e descarrega-se pelo riso; de outro, que o humor pode cancelar o desenvolvimento do afeto integral ou parcialmente; este último caso, o mais corrente, produz as diferentes formas de humor quebrado, aquele que sorri entre lágrimas. Imagino que Rónai pense também contraditoriamente o humor, e, sem dúvida, isso que diz de Tutaméia diz relativamente: tem à lembrança outras obras de Rosa. Ainda assim, não seria um tanto desajeitado, ao menos do ângulo desta tese, sustentar ou enfatizar que um texto repassado pelo humor (perseguido, aqui e agora, como porção compassiva, patética, do cômico) é, precisamente por isso, a-pático!? O próprio Paulo Rónai vislumbrou, a fim de dar com algum critério que arrumasse o livro, um conceito filosófico-estilístico que entra em cheio na abstratividade de Tutaméia e talvez explane melhor o desgarre emotivo do livro: a         palavras que não indicam manifestação do real e sim abstrações opostas a fenômenos percebíveis pelos sentidos, tais como: antipesquisas, acronologia, desalegria, improrrogo, irreticência; desverde, incogitante; descombinar (com alguém), desprestar (atenção), inconsiderar, indestruir, inimaginar, irrefutar-se, etc., ou em frases como         célebre.(RÓNAI, 1985, p. 222). 51 São outros, por ventura, os traços de expressão que preferencialmente atravancam a fruição sentimental das estórias, tais como: a linguagem ababelada e apocalíptica (e aqui entrariam artifícios como os da antonímia metafísica); a lacunosidade e a absurda concisão estrutural. Quando se começa a começar a conhecer os personagens, por exemplo, lá já se foi há muito tempo deflagrado o fósforo da estória (ROSA, 1985, p. 7). É impossível que se criem sólidas empatias senão no vau de uma convivência imaginativa, ou por outra, perimaginativa (ROSA, 1985, p. 178), de um confronto paciente e de uma familiarização com o estilo, que, é óbvio, não é pacífica e nem tem prazo de fim; mas é só aí, justamente, nesta outra cadência de leitura, que a decodificação do humor rosiano tende a abraçar-se, cada vez mais, com certa intimidade, com-passividade dirigida aos personagens. Por tudo isso, ponderei acima que é sobremaneira nos primeiros enfrentamentos que a obra se fenomeniza como refratária à emoção. Não quero afirmar com isso que sua emocionalidade enxuta termine, em um extremo oposto, por revelar-se efusiva. Mas o livrinho de Rosa é, programaticamente, como as mulheres feias e intratáveis que o povoam: transmuda de rosto com o tempo e a frequentação; fica menos áspero, mais amável, sentimental e sim-pático; com a ajuda do Romão que vê... claro. Se, aqui, *'( $+   p. 155)30, a sentimentalidade não fica por menos. Repito: é a própria obra que requesta alterações de enfoque e desestranhamentos até muito mais radicais que estes ora em pauta. Se a leitura de Tutaméia se faz sempre work in progress, é porque assim já o anuncia, por seu equívoco, (!#!  $!  *Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá       (ROSA, 1985, p. 5). Enxertada em ambiência tutameica, tal cita só pode ter laivos irônicos. Torna-se, de entrada, um dos rasgos espirituosos do livro. É, por " !# (% $  "# * "$ #$!+ " !  30 Esta gnoma de Terceiras estórias soa como transcriação de provérbio heládico, também aliterante, aproveitado ! #& *  +*'(+ 52 outro nível que não o metafórico? Qualquer literalidade cronológica ou numérica só pode ser mera brincadeira com aquele que lê; pura provocação a seus (empanados) brios de leitor. Ou não? Bem, uma leitura simplesmente racional, sem qualquer tipo, mais modesto que seja, de satori, não é exatamente a mais alta das expectativas rosianas... Aproveito a hora para palpitar sobre o salto (noção basilar) entre os títulos Primeiras estórias e Terceiras estórias. A pergunta, que já tem tradição, foi inaugurada por Paulo Rónai (ROSA, 1985, p. 216): e onde é que estariam as segundas? O Grande Sertão talvez as $&# , "# &"!&!!!!!"re meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-!$-  " 171). Analogamente, cada estória de Guimarães Rosa já é, em si mesma, uma segunda estória; já aponta para outro sentido, a ser capiscado por seu destinatário. As segundas estórias eram inerentes às primeiras, eram elas mesmas !! ,$!#-!$- ,!&%#-coisa- ultrassenso, alegoria, invenção do ledor, etc. A propósito da concisão dos textos tutameicos, posso comentar, muito en passant, algumas inconformidades entre eles e as anedotas. O paralelismo estória/anedota é construído despretensiosamente e à base de uma modalização que tem o efeito cômico, para não dizer trágico, de dar com uma mão e tirar com a !&%# ,A estória, às vezes [nem sempre], quer-se [o que não significa que seja] um pouco [e não muito] parecida à anedota [não idêntica e quiçá apenas aparentemente semelhante]- (ROSA, 1985, p. 7, os negritos e colchetes são meus). Ao crítico precisado que não quer ver soçobrar uma categoria disponibilizada assim tão amavelmente pelo escritor só sobra a cautela brejeira com que este a manipula, e que, de molde#!#%'#($$ % )$ %#!#$$"% %$ , /  não quer ser história. A estóri  #!# ' $# ! %#  $%*#-     "  53 Essa ciranda verbal das primeiras linhas acerta já em muito o tom de uma obra em que apotegmas revezam com dubitáveis ou, já em si mesmos, se fundem a eles.31 Uma das flagrantes dessemelhanças entre o gênero anedótico e o estórico diz respeito à brevidade. Por mais sintéticas que sejam as narrativas de Tutaméia, cada uma delas, tomada em seu todo, jamais chega ao grau de concentração do chiste ou da piada; e falo aqui de desníveis quantitativos que determinam diferenças qualitativas referentes a tempo, espaço, personas, etc. Entretanto, há outros contrastes e dos mais desconcertantes. Acaso não é verdade que a transparência, inconfundível aqui com a banalidade, é condição mais que simplesmente favorável ao cômico? Assim o é, por exemplo, para Stendhal (2008, p. 54, 78 e 81), que, depois de grifar e regrifar a clareza como essencial ao risível, tempera a prosa: o bom contador é aquele que domina a arte encantadora de não ser nem obscuro nem claro demais. Também em Freud (1993, p. 145) se coadunam ocultamento .!'/. O indivíduo nunca sabe exatamente do que está rindo ao ouvir um dito de espírito (FREUD, 1993, p. 96 e 127); não é à atenção consciente que este se dirige. Por outro lado, o chiste guarda obediência ao requisito de facilidade de apreensão: [...] el chiste pierde su efecto reidero aun en la tercera persona tan pronto como se la invita a hacer un gasto de trabajo de pensamiento. Las alusiones del chiste tienen que ser llamativas; las omisiones, fáciles de completar; al despertarse el interés del pensar conciente se imposibilita, por lo general, el efecto del chiste. (FREUD, 1993, p. 143). .""" (!"' !%'*"$( % / # '"$(%"!'% !" de tudo o que se declara; de todo ditado, portanto, e, particularmente, daqueles assentados nas estórias tutameicas. É uma paródia da pedagogia proverbial que fabrica um paradoxo de resolução probabilissimamente impossível. Se todo o mundo tem a incerteza do que afirma, não é certo que todo o mundo tenha a incerteza do que afirma. A própria assertiva não foge à regra e acaba por chocar o ovo de sua autonegação. Não chego a propor que exista aqui um pseudoprovérbio; haveria, preferencialmente, um supra ou paraprovérbio que bebe da forma exterior e do ritmo tradicional do gênero. E cito outras duas frases, extraídas do discurso de posse na academia e do Grande Sertão, que se inclinam a problemat*% & & & .("# ', )%/  # .(",!+",/ # '(",)%# ')%$( tudo é verdade pela metade é verdade pela metade. Se tudo é e não é, a própria asserção de que tudo é e não é... é e não é. Já enunciei, um pouco atrás, a minha opinião de que Rosa não é um relativista absoluto, mas antes faz voltar sobre o próprio relativismo extremo as suas fragilidades; aprecia introduzir absolutos que se fixam como insinuações; é uma sugestão que nunca morre esta: a da presença do absoluto. Para uma retórica do paradoxo, da autorreferência, etc. cf. FEITO, 1995. Também HUGHES, Patrick; BRECHT, George, 1993. 31 54 Para o psicanalista alemão, que, em seguida, fala do cômico em geral, o tema tem verso e reverso: se quem ri, com toda sinceridade, não cogita, quem cogita, com idêntica absorção, não ri. A mistura distração/concentração tem, pois, proporções, e qualquer dicotomia absoluta é mero esquema, como este: 0#" )" !(& '(&(# * "# %) espacio alguno para la comicidad, salvo que esta modalidad del pensar sufra repentina interrupción1 (FREUD, 1993a, p. 208). Variação célebre deste pensamento é aquela que constata, melancolicamente ou não, que toda disquirição do cômico mata o riso (MINOIS, 2003, p. 525; BREMMER; ROODENBURG, 2000, p. 66; FREUD, 1993, p 139; STENDHAL, 2008, p. 39; ALBERTI, 2002, p. 25; KOESTLER, 1989, p. 36). A meditação rosiana das bromas do prólogo, porque poética, ludicamente abstrata e, ela mesma, humorística, não se mostra atreita a essa lição. Na verdade, pelo menos desde Quintiliano (ALBERTI, 2002, p. 63), foram muitos os que anotaram, de maneiras diferentes, que não é (bem) a razão ou o julgamento que avalia o dito de espírito ou o cômico: Fontenelle, Kant e o mesmo Stendhal estão entre eles. O primeiro diz que o riso, cujo princípio seria a loucura, é por demais brusco para que se possam imputar suas causas a#' $&#''#' (&#'  &+-#  0# &'# . )!  $'  ) !"(#1 (ALBERTI, 2002, p. 149 e 150). O segundo, que o sujeito ridente, por alguns instantes, persegue a ideia, jogando-a, tal como uma bola, de um lado para outro; mas, ao fim, a deflagração do riso liga-se a uma impossibilidade de pensar (ALBERTI, 2002, p. 164, 165 e  (&&#%)$&&&0."'',&#"-#$"'& com demasiada insistência em nada e ter uma disposição feliz1  $ "-#"'## (#&$#''#&'' círculo de citações com Vladimir Propp. Sua teoria é de que a comicidade nasce quando a atenção do ridente se transfere dos fenômenos de caráter espiritual para as exterioridades de sua manifestação, tomadas, então, como defeitos (PROPP, 1992, p. 44, 66 e 181): Vendo a desarmonia ou a deformidade exterior, o homem percebe-as de forma completamente involuntária como índices de defeitos mais profundos 55 e importantes. Após uma reflexão posterior e fria isso pode ser reconsiderado, mas o homem que ri não reflete. Poderá refletir depois, e, caso a primeira impressão tiver se demonstrado errônea, a comicidade e o riso terão desaparecido. (PROPP, 1992, p. 176). De jeito similar ao psicanalista, o formalista parece conceber a recepção do cômico como um processo mental, conquanto involuntário (PROPP, 1992, p. 40). Contudo, para dar linha à cena proppiana  deixando para trás o discutível da teoria da deformidade e do enunciado de que a descoberta (a consciência) do erro some o riso , não seria possível que o tal homem citado puxasse da memória e, ainda ruminando, desse com a verdade, não necessariamente universalizável, claro, da primeira impressão, ou seja, com a coincidência entre interior e exterior e retornasse a rir, ainda que mais atenuadamente? Rir ainda seria, neste caso, desponderar? Seja ou não seja, o mais importante aqui é que as anedotas, entre límpidas e obscuras, se consumariam regularmente num clarão instantâneo do entendimento, e assim que ouvidas ou lidas pela primeira vez. Aí está outro lugar rigorosamente comum na literatura sobre o cômico, o humor e as piadas: eles não sobrevivem sem a surpresa ou a novidade. Daí, muitas vezes, serem já moribundos quando nascem: facilmente descartáveis e engolidos pelo esquecimento. Em uma segunda ou terceira recepção, seu efeito não tende a puir-se ou extinguir-se? Até mesmo as melhores chalaças e comédias, embora não percam de todo a força humorosa, seriam incapazes de reproduzir no ouvinte ou espectador aquela sensação original de estalo ou estouro cômico. Sua fruição vai- & $'   32 Sim, de acordo com o que pondera William Fry, há   ##&'  !" eira. Há até mesmo aquelas poucas   #  &"'    !   !" &', como faca que desgasta o gume, de alguma forma, diminui. 32 Esta noção de riso puramente psíquico tendente a disjungir o prazer cômico ou a alegria da produção de um sinal exterior surge, cá e acolá, em contextos os mais diversos (MINOIS, 2003, p. 147, 233 e 339; BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman, 2000, p. 127). 56 No parecer do psiquiatra e cientista social, o que estaria realmente em causa é que aquele que já é conhecedor de uma pilhéria está imune às suas armadilhas (FRY, 1963, p. 107 e 108). Para fechar o raciocínio: posto que sempre seja possível desentender um chiste ou captá-lo em atraso, não é esta a recepção proposta ou normalmente engendrada pela forma: A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência. (ROSA, 1985, p. 7). Quando em quando, o ledor de Tutaméia depara-se com um humor assim mais instantâneo, e, em vários textos,   - !'!# !&"(  0Aletria e hermenêutica1 0Hipotrélico10Nós, os temulentos10#+##&-!, o criador de perus10Desenredo10 ! #'#1 0&" +#1 0!' #&!'1 etc. No entanto, pensando bem, como fica o anedótico ou o cômico não apenas das estórias, mas de todo um artefato cujo caráter distintivo está, definitivamente, muitíssimo longe de ser a clareza?! Artefato ao qual é inerente, ele mesmo o alardeia, a demanda de uma segunda recepção ou de uma releitura que não acaba nunca. Se a opacidade tutameica inibe até mesmo que o texto se mostre à primeira visada como texto  tessitura passível de decodificação , que se dirá de uma tirada espirituosa? O humor resiste a essa falta de imediaticidade e naturalidade? Creio que sim, mas não sem sequelas, sem algum abatimento. A ficção rosiana não planeia situar-se aquém do cômico, mas questionar, confundir, ultrapassar a percepção ou o uso trivial que dele se tem e se faz: 0'  ! 1     $  &"(!"( # %) '. #"(&  &#' e pilhérias, o humor de Terceiras estórias é fruto de um lampejo, muitas vezes, temporão; ou também de uma paciência hermenêutica de leitor; tem muito de não evidente: é pedrinha, nica ()(!  '& &!$ ! ') '%)'( 0) $&& &&  &, %) "+# '  # modo do que cabe no oco da mão, pingos primeiros em guarda-)*1    142).  $ 57 Após a expectação incutida por uma primeira leitura do programa apaixonado do prefácio, deste, que é mais salgadinho ao paladar, não produziria o livro uma impressão geral absurdamente desentoante? Não pareceria ele ensosso e endoado?33 Tal frustração de expectativa, estrutural (e cômica?!), explicar-se-ia, primeiramente, pela própria bizarrice da percepção e da formatação humorística de Tutaméia, sensaboria macarrônica tornada ainda mais     *Aletria e Hermenêutica+34 Em virtude de sua própria tópica, o prefácio possui um humor mais ostensivo que se espraia por todo o seu discurso (o que é observável também nos dois prefácios seguintes e em uma porção das estórias). Já em outros  !*"  +*     +* + * +*  + *    +*    +*R# +* %+ se e rarefaz: às vezes se contrai em croinhas ou ilhazinhas verbais esfuzilantes, mas melancolicamente cercadas de nada por todos os lados. E lá se vai o leitor feito um bravo sertanejo: *nômade+ de um  * + que é, cá e acolá, abruptamente acordada pelo absurdo ou extraordinário (ROSA, 1985, p. 180). Por parte do contador, portanto, não há     * #&+(' o francês. Além desses fatores, outros contribuem para o estranhamento e a rotura do esperável. Em primeiro lugar, a maior visibilidade, nas narrativas, de uma protagonização ainda oculta no prefácio, se bem que atuante: a da alegria. Nelas, comicidade e humor cedem o passo, muitas vezes, a esse sentimento contíguo, é verdade, mas distinto. Em segundo lugar, a subjetividade, exigência e fronteiridade do humor tutameico: ele só se remata do outro lado,     %   *Aletria e hermenêutica+ que o projeto da obra é brindá-lo, dali por diante, com horas prazenteiramente sublimes de um *+ $           #   * + seja velha metáfora de graça e riso, vide o latim salsus (ALBERTI, 2002, p. 60 e 66; MINOIS, 2003, p. 82-84 e 86; BREMMER; ROODENBURG, 2000, p. 38; BERGSON, 2007, p. 148). 34 Uma senda interpretativa poderia levar em conta que, no que diz respeito precipuamente à alegria, mas também ao humor, o olhar tutameico é contérmino ao infantil. Os adultos frequentemente se admiram do tipo de coisa com que uma criança se alegra ou se diverte: cheiros, cores, etc. (FRY, 1963, p. 11). 33 58 humor arguto, semostrador e animoso. O que se propõe é antes que o leitor se revire e reinvente seu próprio humor e alegria; ficcionalize sua força cômica, materialize seu potencial de di-vertimento; atine ou não, ao cabo de contas, com a graça daquelas brabas palavras, daqueles rotundos vazios. Para encerrar esta primeira antiperipleia, vexata quaestio: que dizer da localização geográfica, social, cultural e histórica do humor e da alegria de Terceiras estórias? A sensibilidade cômica da obra, bem como sua compleição entre alegre e melancólica, para em si mesma e exprime apenas a imparidade de estilo e pensamento da persona autoral Guimarães Rosa? Ou amplifica-se como traço, não representativo em acepção tradicional, mas sugestivo de toda uma época ou classe ou região ou país? Haveria culturas macrossociais do cômico empiricamente observáveis? Alguns mitos populares equivocados e estereótipos com escasso fundamento científico à parte, Peter Berger (1999, p. 126), por exemplo, acredita que sim: humores típicos de nação, profissão, etc. A questionabilidade racional dessas representações, muitas vezes coladas a um suposto caráter nacional, e o mau lucro ideológico angariado com elas são, entretanto, bem conhecidos.  O assunto é de uma complexidade medonha e não constitui o eixo desta tese. Sem embargo, retomo algumas ideiazinhas já redigidas em pesquisa anterior: Uma razão de loucura: violência e trauma em Grande Sertão: Veredas (BUENO, 2011, p. 94-95). Ao levantar e estudar o código da jagunçagem, aventei a hipótese de que sua (des)estrutura estivesse vinculada, para Guimarães Rosa, àquilo que ele       um dos atributos básicos d  -pe  noção esta poética, imprecisa, subjetiva e indizível, fabulada no cadinho da loucura e da conspecção (COUTINHO, 1983, p. 90, 91 e 92). Trago, primeiramente, ipsis verbis, a referência a essa dialética amalucada tal como aparece na entrevista a Lorenz. O passo deixa entrever uma 59 porção da esperança rosiana, erigida, como fica claro pelos entornos contextuais, sobre uma ficção: [...] nós os brasileiros estamos firmemente persuadidos, no fundo de nossos corações, que sobreviveremos ao fim do mundo que acontecerá um dia. Fundaremos então um reino de justiça, pois somos o único povo da terra que pratica diariamente a lógica do ilógico, como prova nossa política. (COUTINHO, 1983, p. 92). Adscrevo também uma paráfrase minha do restante da descrição da brasilidade empreendida por Guimarães Rosa; ele que, a propósito!%#    "&   [...] crenças religiosas indefinidas (algo de oriental, sertanejo e europeu; cristão e pagão), intimamente ligadas ao fingir poético e à consciência da presença do diabo: realidade do mundo que, paradoxalmente, parece só poder ser desrealizada quando reconhecida como tal; exercício de uma sabedoria prudente, advinda do coração, e não de uma endurecida lógica cartesiana. (BUENO, 2011, p. 19). À época daquele trabalho, ative-me, de um lado, aos rastos violentos e perversos (conquanto, de maneira contraditória, para o autor, potencialmente libertadores) desse modo de pensamento, também político; de outro, a seus aspectos míticos e ontossimbólicos. Só muito ligeiramente não me escusei de indicar seus toques cômicos. Pois bem. Julgo que o humor tutameico integra essa álgebra inenarrável do absurdo (COUTINHO, 1983, p. 90), sem que nada disso signifique, bem entendido, que o motivo da lógica do ilógico dê conta da comicidade de Terceiras estórias: ele apenas a alumia em uma de suas faces. De mais a mais, talvez seja possível alargar toda essa conjectura. O espírito tutameico, o humor da obra em seu sentido mais abrangente, a englobar mentalidade, afetividade e maneira de ser, consistiria, para Rosa, em outra cristalização, diferente, daquela brasilidade magicada por ele, composto instável, químico e alquímico: jogos de raciocínio, poesia, alegria, transcendência; silêncio, luto, quebranto, desolação, agrestidão e angústia; mas também artimanhas, trapaças, velhacarias e tudo quanto é próprio de tal forno e 60 caldeirão.35 A orçar pela conversa sério-chistosa com Günter Lorenz, o ironista mineiro gosta de pensar-se como mago da objetividade e cientista da subjetividade; como se, em sua poíesis, o infinito fluido e subjetivo se fingisse com precisão e o limite sólido e objetivo com prestidigitação (COUTINHO, 1983, p. 74, 76, 78, 83 e 89). A coisa complica-se porquanto se estenderia do regional e nacional para o universal, sempre sob o módico modo da sugestão ou da presença da ausência: nunca é demais recordar, o intérprete encontra-se defronte de um livro que pode valer pelo muito que nele não coube (do sertão, do Brasil e do mundo). Seja como for, parece-me defensável que, para o fabulista, a lógica do ilógico alegoriza um universo que convida ou constrange a que se ache ou se crie sentido a partir do sem-sentido. E o sertão, particularmente, seria território virado do avesso, pronto a tributar àquele que nele habita a moeda  tutameia  de uma habilidade narrativa, por assim dizer, do outro mundo, sobrenatural. Tome-se        Nele, extra-ordinariamente, mulheres viúvas tomam as rédeas de um espaço patriarcal cuja comunidade faceia uma catástrofe: Tão cedo aqui as coisas arrancavam as barbas. O fazendeiro ensandecendo, diligenciou em vão de matar filhos e mulher, cachorros, gatos. Nem era rico, nenhum, se soube. O povo depôs que a extravagância dele procedia do sol, do solcris eclipse, que se deu, mediante que vindo até desconhecidos estrangeiros, para ver, da banda de Bocaiúva. Somenos as mulheres, de luto, agora ali regiam, prosseguidamente, na fazenda Pintassilga. (ROSA, 1985, p. 128). A forma tutameica com seu ser-e-sentir-e-pensar tem contrapartida também nos páramos de desamparos diante dos quais, muitas vezes, se torna espantosamente racional aquilo que é, do ponto de vista da cultura, irracionalidade. Tenha-se em conta a estória da família de caçadores, mais um caso daqueles despossuídos que têm tido cabida, quando muito, no background da grande História e que, de onde em onde, roubam a cena e a protagonizam na minutíssima ficção de Tutaméia. Ali, a escassez real e simbólica do sertão 35              (COUTINHO, 1983, p. 85).                 61 empurra o personagem-   #"  ) !  %!"  + # " "  um qualquer dia morrer, deixando a mulher debaixo de amparo? Ia não largar no mundo viúva  &!!" !,   A solução sem siso parece inquietantemente sensata. Deixar o pai, como herança, a esposa ao filho é escândalo que mal consegue tomar vulto naquele deserto de gente, mas ainda assim assombra como fantasma e espicaça como enigma: Daí, com o outro, o conversado, à mútua vontade, para providência. A esse, seguro por sangue e palavra, protetor, entregava então herdada a companheira, para quando a ocasião; tratou-se. Para ele poder morrer sem abalo... A mulher, entendendo, crer que anuía, tranqüila calada. Disso ele tinha sabedoria. Em tanto que, às vezes, achava raiva. Agoniava-o o razoável. Direiteza, ou erro? Isso ficava em questão. (ROSA, 1985, p. 112). Alegria sem margens? O fundo sócio-histórico que o texto reconfigura não a permite. Nem a temporalidade, a maldade, a morte, os cataclismos, enfim, todos os limites humanos e naturais. Tampouco o conceito e a vivência em si mesmos da alegria, que têm seus próprios trevores e trazem no âmago seu reverso, a tristeza (por sinal, igualmente portadora de breu e luz). Porém, como redige Guimarães na correspondência com Paulo Dantas, pondo em pauta,  ""  $ !& ! #   $   + "& ( !"  "'&   , (DANTAS, 1975, p. 63). 62 2           TUTAMEICA [...] alegre embora física e metafisicamente só, sentia o universo: chovia-selhe. (ROSA, 1985, p. 116). O capítulo anterior girou em torno da ideia de que a (hermenêutica da) alegria em Terceiras estórias tende a distanciar-se daquela do senso comum; melhor ainda: há uma opacidade que vela a inclinação de espírito da obra. Esta, stricto sensu, não seria nem somente alegre nem somente triste, mas, ao mesmo tempo e de modo paradoxal, inteiramente alegre e triste. A obra brinca e soluça na graça e angústia de rascunhos, farrapos, quinquilharias e é $"$ !*#(  (*( %'($##(  2"("$ !'( - )'()( !$$  )'()( "( !'(3 (ROSA, 1985, p. 211). Mas não seria ela ainda, de jeito diverso, meio-alegre-meio-triste? !$ ("!#) .&*!2$%$ $" -* %! ")3 ($' $ &*! $ *)$'!#/ %'*#) ( *#)+ *" )#)#$ %$(  2()- "$ $ $* "$ +,$3    %   Sim, estado de espírito e humor que sabe que jamais poderá ser pensado de todo objetivamente, pois incorpora em sua própria compreensão a contingência determinada pelo olhar do outro. Haverá quem veja antes a falta e haverá quem veja mais o volume. Essa intransparência difusa se encarna aqui e ali na psicologia dos personagens. %(($ ') #$)0 $ ()$  *"$' $ 2!/$  $ '3  2#" !' #" )'()%#($$%$()$3 %5#"$0cil este que diz mais daquilo que não é do que daquilo que é; que se medita a partir de uma oposição à qual a língua não dispõe de pronto: o que seja o contrário de 2#" !'#")'()3afecção em si já ambígua e meio indefinível, é coisa a inventar: reúne, parece-me, as duas emoções aparentemente fora de campo... É ou pode ser ainda o humor medido e comedido, quase indiferente; ou talvez o humor neutro (ne-uter), o humor nenhum, que, por sua vez, não se confunde simplesmente com o mau humor. Enfim, matizes de um humor humano  para fazer trocadilho. 63 A para-alegria de Terceiras estórias só se faz possível e genuína se misturada, irmanada com tristuras. É fina ou sutil porque animada a encontrar-se também no interior do sofrimento. Não que este esteja banalizado. Faz parte da iniciação de um dos personagens, por ) #" 1%conhecer a exatidão da tristeza2 OSA, 1985, p. 151). A obra não faz concessões: violência, pobreza, marasmo, doença, morte, fracasso. Poucas são as tempestades em copo 3+("&melodramas interiores roídos e derroídos que sofrem, então, a leve mofa da narrativa enternecida do contador. Mesclas à parte, o leitor rosiano há de ponderar possivelmente que a atmosfera de Tutaméia, em contraposição, por exemplo, à da obra anterior, Primeiras estórias, não parece lá muito joliz (e há certamente razões históricas para isso). Ao aventar o rascunho de um universo arredio, o livro antes transuda melancolia. Não duvido de que esta opinião seja largamente sustentável, mas, nestas páginas, não invisto nela. Talvez a alegria de Tutaméia seja mais estudada, menos espontânea. De modo mais marcado, fruto de um esforço e labor hermenêutico, de uma opção intelectual e, claro, espiritual. Será acertado apelar à oposição exterioridade x interioridade? Em se tratando dessa obra, quando a tristeza é mais evidente, não se poderá e deverá aí mesmo esgravatar uma alegria resistente e íntima, ainda que &'%!/&&   ( "%&!(%1*%%%2 &'"%"&!"  #Não sei se é o caso realmente, pois fachada e fundura, máscara e rosto, cambaleiam no texto tanto quanto o Chico temulento. Prefiro obtemperar que alegria e melancolia são dois lados da mesma moeda tutameica. Contudo, e isto é crucial, se a tristeza da obra está em seu direito moral, histórico, lógico, estético e, em certa mirada, até mesmo religioso, sua alegria, in extremo, só pode ser coisa de sábio/místico ou de louco; onde seja talvez absolutamente sem sentido é exatamente aí que deve brotar, como experiência mesma da liberdade e da coragem, "&(#%&&!&"%"* "%.1%%%-$(!,"&2 # ,"#"% casualidade, quiçá, os vaqueiro&"&%&&"&1% & (2 # 64  !%(,*'&**,!)(,# *)2$*)/4*6  Só o pobre é que tem direito de rir, mas para isso lhe faltam os fins ou motivos...7 ' ,%&#! não vem tão fácil, pesa o sacrifício da liberdade. Nos versos do poema a quatro mãos de Paulo Dantas: Naqueles pastos do longe a alegria, fardo pesado tinha de ser levada na canga da cangalha, no cavalo alto, ao lado do Tio Terez. (DANTAS, 1975, p. 118). Algo discrepante, por conseguinte, daquela obrigação pós-moderna obsessiva de uma euforia festiva e homogênea. Parte das considerações precedentes "0*'+%+!$6$'&)#7 e nas palavras, titubeantes, é verdade, do Riobaldo de Grande Sertão: Veredas. Dito, Miguilim e o jagunço tateiam uma hermenêutica e uma mística da alegria, que não se reduz, portanto, a estado afetivo ou psicológico, mas é também decisão de fé, atitude ontológico-existencial: E o Dito também não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam em ficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo:  6!,!#!$!,!#!$-&,%*!%)&(,&)!% ,*!$!*3 que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, $!*#)'&)%+)&7 b, p. 119). O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito  por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia. (ROSA, 1986, p. 278). A alegria é disposição subjetiva: não está nas coisas nem nos fatos, o que pode comungar-se com a ideia de que é problema de linguagem, sentido-orientação que se imagina !%-%+6&%*+),21&#,$-!porém por si triste, nem a do túmulo, nem a da choupana, %$  & 0))7    '    6%#!! 3 (,*+1&  ')!.&7  1985, p. 88). Não obstante, bem ao gosto de Guimarães Rosa, e em virtude de seu estilo, a 65 reflexão sobre a relatividade da alegria e a subjetividade do humor, sobre a liberdade de sorrir ou chorar, é literariamente conduzida a limites desnorteadores. Onde está o cômico em si, por assim dizer, inartificial e imediato, ou, vá lá, o cômico, simplesmente, ou o riso ou o vivo contentamento em textos moldados por fôrma tantas vezes morreira? Onde, em textos pejados de crueldades e mesquinharias, *(*<..".*+".=, <--! =<Sinhá Secada=*0/7 catástrofes coletivas, *(*<3*!"'(&-)/"=? Sim, sem dúvida, muito mais no enfoque de quem os narra ou observa e medita, e na linguagem originalona, em seus ditos de espírito e bromas, que dão pequenas pérolas como a da timidez total que, justamente por ser o que é, se "2&" <&)% 1"-$*)% !" #-")/" " !" +"-#&' /*!* * (0)!* 1&0=    +  * entanto, é precisamente por isso tudo que se repõe, insistente, a pergunta: até que ponto essas brabas estórias podem ser risíveis ou cheias de graça? Até que ponto alegria e humor são uma questão de perspectiva e linguagem? Até que ponto é possível alegrar-se na tragédia, sublimála? Bem, é nesta oscilação tensa e perturbadora entre cômico e trágico, pesadume e ledice, que se costuma situar o humor, e assim caminha o livro, desobrigado a decidir-se e decidido a provocar, se bem que investindo suas mixas moedas, nonadas de tuta e meias, na positividade de uma des-propositada, meio tristonha e excelsa alegria. Segundo Peter Berger (1999, p. 198 e 215), seria inútil definir um código ético para o /-$& 9(& *<0!"#&)& &8)!""-4 *)#&-." a la razón del corazón o a las aproximaciones de '(&.(,0""./7)'' ) "!" !+"-.*)=5*/5* sentimental, mas refugando também qualquer sistemática, "&. +-" &65* .&(&'- !" '!&(&- -*++  +    < '&(&/" entre as pequenas desgraças, que fazem rir quem as presencia, e as grandes, que já não provocam o riso, não pode ser estabelecido sobre bases lógicas. Ele só é percebido pelo sentido mo-'=(/7-&%&./8-& /(7(7&)/"-#"-")/"."(!:1&!--&. *0("2"(+'* ( <0!-&)%* !" "./8-&= " < & "0= &)/")/-se enquadrar a cela como isto que ela normalmente se mostra, mas também desenquadrá-la na sua contradição interna, no seu 66 avesso de liberdade. À época, em narrativa de ambientação interiorana, nas margens do Estado, foi possível, sob a forma de uma ironia cerradíssima, é verdade, redigir e ousar isto: -Aqui, com remorsos e recreios, riscado de grades. Mas o espírito do nariz em jardins, a gente se valendo de tempos vazios. Duro é só o começo da lei. Arrumaram para mim folga, de pensar, estes lazeres, o gosto de segunda metade..  ! "#! "$ !" os dias de hoje, no entanto, para o midiatizado e hediondo contexto do sistema carcerário brasileiro, esse epílogo humoroso, com tal confissão de meio ganho (as horas livres e o ócio instrutivo), seria praticamente inviável, devido, quando mais não seja, aos perigos da inverossimilhança. Cuido de manifestar minhas reticências ao que proponho porque é tão contestável defender que se acha aqui um argumento narrativo quase irrealizável (não estou a criar, portanto, um impossível ficcional) quanto afirmar que, nos anos do Rosa de Terceiras estórias, fazia-se ainda cabível escrever o que ele escreveu: trata-se de um autor arrojado que manipula uma química de limites em que tudo pode explodir no ar. Terceiras estórias não negam que os cárceres e as cegueiras e as feiuras e as misérias estejam por toda parte  por sinal )  !"  (" ##  #  -"#&$%"., por '!  " %( ! ##% & !" % !"#)  (  -   ) (  & dourada, entre os gradis de ouro da alegria.     !     $   $!   sentimento e compreensão do mundo, a (escolha da) alegria é, ela mesma, uma forma de limite. Mas não semelham grades douradas essas margens, as da alegria? A imagem antinômica de um livre aprisionamento  a pequena corajuda tem em mãos as suas chaves  traz à mente, aliás, a liberdade enclausurada de Riobaldo (BUENO, 2011, p. 79); sua aposta $)  *  #!"$# #    #  $!  $)  " #  "   -"  % ! "  (    $"    ""   "# !"#+#.  -  !"  " # (".  p. 268). 67 Em Tutaméia, a alegria, sem que uma coisa necessariamente exclua a outra, pode ser matéria de vontade, têmpera ou graça, quando menos se conquista que se acolhe. De acordo com o que se viu, essa vocação mais orgânica, (quase) irrefletida, é a de muitos personagens: as velhinhas do arroio, os boiadeiros rapsodos, Melim-Meloso, Tio Bola, Drepes, etc. A jovialidade sabe amistar-se com fluxos e refluxos vitais; solfejar, com alguma euritmia, a disritmia da vida. Sob selo hermético, inclusive, a alegria já foi concebida, na primeira parte desta tese, como o estado de harmonia do ritmo de baixo com o do alto, o que tem, sim, alguma aplicação em Tutaméia, contanto que não se perca de mira que o ritmo, ali, não é um dado e está problematizado. Enfim, a espontaneidade pertence não tanto ao ponto de vista das narrativas quanto aos seres que nelas pululam. Falo isso apenas relativamente, claro. Como elaboração estético-filosófica erudita da via estreita da liberdade, a alegria, e não só o humor, configura-se, em última instância, como lance espontâneo, pulo para o suprassenso, e dificilmente é inteligível até o fim. Talvez no livro o intervalo ou entreato mais escandaloso para a razão seja o daquela mulher de caráter (aparentemente?) tão pouco ou nada jovial,      quem arrancam cedo das mãos o filho pequeno. Já tão definhada, sofre ainda, por ironia do destino, uma aguda decepção: o tristonho e crescido moço chegado à repentina não é o menino um dia amado e esperado desde as entranhas. No entanto, a reação, depois de tão dramático desencontro, peripéteia, é surpreendente. Pode-se, sem dúvida, motivá-la (e o texto dá margem a bonitas sutilezas), mas aquilo que tornou possível àquela mulher, saltatriz débil e delicada, refazer a ledice e não demorar-se até a morte na tristeza é, ao cabo de contas, impenetrável. Nessa anagnórise enigmática e negativa (de ordinário o reconhecimento consiste na descoberta da existência de laços familiares), não há continuidade; há salto: Mas, ela, que sentada tudo recebera, calada, leve se levantou, caminhou para aquele, abençoando-o, pegou a mão do tristonho moço, real, agora assim mesmo um tanto conformado. Sorria, a Sinhá, como nunca a tinham avistado até ali, semelhava a boneca de brincar de algum menino grande. Seu esqueleto era quase belo, delicado. 68 Nesse favor de alegria persistiu, todos exaltando o forte caso. (ROSA, 1985, p. 162). Há alguma reiteração no livro, que cabe demonstrar. Na sequência abaixo, em "Arroio-das- #" #, "  #"   #"Palhaço da boca v#, "      #  "Melim-#, de jeitos diferentes, a entrega contentosa à vida, ao dissolver tão estranha e intensamente a alegria na tristeza e vice-versa,    "Sobre a escova e a dúvida#, a reflexão sobre os caprichos da felicidade: As velhinhas pactuavam a alegria de penar e mesmo abreviadas irem-se  a fito de que neste sertão vingassem ao menos uma vez a graça e o encanto. (ROSA, 1985, p. 24). Mearim se levantou, de ajoelhado também, o sangue respingara-o. Seu coração entendeu. Iria, desde que enterrado o morto, à Lapa do Santuário do Santo-Senhor-Bom-Jesus, por um perdão, pela dor de todos. Depois, a vida dele era só aquela mulher, e mais, sofrida tida e achada, livre ou entre grades, mas que lhe pertencia, em reprofundo, mediante amor. (ROSA, 1985, p. 67). Aprendia ela a parar calada levemente, no sóbrio e ciente, e só rir. Ora quitava-se com peneiradinhas lágrimas, num manso não se queixar sem fim. [...].  $Tivesse tido um filho..% ao peito as palmas das mãos. %                  fermento, fino de bússola, um mecanismo de consciência ou cócega. Andava agora a Lola Lita com passo enfeitadinho, emendado, reto, proprinhos pé e pé. (ROSA, 1985, p. 125). Nhoé rejeitou ir junto, nem pertencia a outros lados diversos  saudoso somente daquele dia de enterro, dela, os três, a chuva, a lama, à congraça, em entremeio de sofrimento. (ROSA, 1985, p.128).  Ele precisa de dinheiro, de ajuda?!  e seu pensamento virava e mexia, feito uma carne que se assa.  Que venha...  de repente chorou, fundo, como se feliz  ... para o que quiser. Ela estava ali com muita verdade, cheirava a naftalina ou alfazema. O vento acaba sempre depois de alguma coisa que não se sabe. (ROSA, 1985, p. 133). Sim sofri: como o músico atrás dos surdos ou o surdo atrás dos dançantes; mas, com cadência. (ROSA, 1985, p. 157). Lá, ressoam distâncias; e a alegria é pouca: é devagarinho, feito um gole. A serra faz saudade de outros lugares. [...]. Mas Melim-Meloso fazia-se muito causador de invejas. Sofrer, até, ele sofria tão garboso, que lho invejavam. Sofria só sorrisos. Vai, pois, por qual-o-quê, quiseram vingar-se dele, disso. (ROSA, 1985, p. 108). 69  A felicidade não se caça. Pares amorosos voltam às vezes a dado lugar, querendo reproduzir êxtases ou enlevos; encontram é o desrequentado, discórdia e arrufo, aquele caminho não ia dar a Roma nenhuma. Outros recebem o dom em momentos neutros, até no meio dos sofrimentos, há as doces pausas da angústia. (ROSA, 1985, p. 168). Espreitada pelo avesso, também a compaixão ou a dor pode ser dom: B/&2-se de um #*$)/=(2"<"C 0Uma vez que podem conduzir ao supersenso, ambas, 42*34&7" & ",&(2*" B".(@34*"3 & %&,>$*"3C 3;/ 6&2&%"3 &30*2*45"*3 (&.5>."3 3& #&- 15& manhosas e temíveis (ROSA, 1985, p ",&(2*"B.;/=3&-3&5302?02*/30&2*(/3Ce a 42*34&7"B02/%579-4/"3$".3"</3C 0 34"0/%&3&2/$/.4282*/%"$/2"(&- (ROSA, 1985, p. 204), e aquela, conspirar com a falta de liberdade, como na distração cruenta de Isnar (ROSA, 1985, p. 190) e na felicidade cheia de ódio de Flausina (ROSA, 1985, p. 55). Talvez se explique por isto também, pela prudência ou temperança, que, em Tutaméia, a comédia seja comedida (ROSA, 1985, p. 124), e as mágoas, geralmente, medidas (ROSA, 1985, p. 2); há, inclusive, quem pranteie por um olho só (ROSA, 1985, p. 44). Henriqueta *3#/" +8 "$)"2" ./ *(5*,*- %& B"-0/ &2",C 5- B05%/2 ./ 3/'2*-&.4/ '"$5,%"%e de conte.<;/C  0  Não teria, com efeito, a alegria triste ou tristeza alegre de Tutaméia algum tanto de atmosfera e gosto e exercício religioso e ritualístico? Sob o viés do autor e do luto  pelo sertão que se vai morrendo ao tempo que tudo, inclusive, a palavra, se reduz a moeda, por exemplo , a obra está próxima daquilo que se lê em expressão alemã que muito interessou a Guimarães Rosa: BAllerseelenstimmungC BD34"%/%&:.*-/%/%*"%&*."%/3ECo centro da Europa, tempo cinzento e morrinhento, pluvioso (COUTINHO, 1983, p. 82). Esse espírito de indefinível e doce tristeza que se compraz na meditação, esse modus animi de festa ou celebração lutuosa em que o sofrimento é levantado no altar, se encontraria oculto, segundo o Guimarães da mesma entrevista a Lorenz, em metáfora riobaldiana, cujo significado imediato 3&2*"B"4-/3'&2"$)56/3"CB5 o senhor vai [pelo sertão]  no soposo: de chuva-$)56"C 70 (ROSA, 1986, p. 18, o negrito é meu). Tratar-se-ia, no caso, de figuração sobre figuração, tendo sido a base primeira pressentida pela esposa de Meyer-Clason, leitora do Grande Sertão: Veredas nascida em Hamburgo (ROSA, 2003a, p. 152): é o hamburguês coloquial suppig.$ ,/Suppe (COUTINHO, 1983, p. 82 %"#$.# / De modo geral, Tutaméia é obra de ritmo truncado, duro e pedregoso, verdadeira droenha sertaneja a ser desbravada pelo leitor.36 Orações e frases curtíssimas com acúmulo de vírgulas que sustam a batida própria da língua até a esquisitice, elipses incômodas, descontinuidades espicaçantes. Não que haja aqui alguma exclusividade, pois há outras imagens da obra que são associadas a sua forma; o andamento monótono e sobressaltado de muito dos enredos  conforme ao do existir (ROSA, 1985, p. 167)  é repassado pela marcha morosa e turbulenta das boiadas: a escrita, como um todo, caminha feito boi; e o serpentear do verbo, combinado com trechinhos de uma cadência mais correntia, evoca também o elemento líquido do livro: rios (vagarosos), fontes, arroios, etc. Mas, se comparo com Grande Sertão: Veredas, por exemplo, este parece tomar para si, apesar de sua agrestidão, de suas asperezas e quebraduras, um estilo mais caudaloso, é evidente, e também mais fluente e natural, enquanto Tutaméia, livro que não deixa de ser marcado pela umidade, incorpora mais da aridez e da secura. Quem quer que se aventure a lê-lo em voz alta sente o desconforto dessa linguagem indúctil, estranhamente descompassada e estilhaçada ao ponto mais extremo dentre as obras publicadas em vida por Guimarães Rosa. Cabe ao leitor de Tutaméia adivinhar e completar muitas coisas e, dentre elas, certamente o ritmo que lê o livro: solfejo excêntrico, sublime tartamudez.37 .Droenha/, palavra que dá título a uma das narrativas, não é dicionarizada. Nilce $0  Martins (2001, p.   &* % ##+& .)(  #+  de pedra (com mudança de vogal) e de brenha, pals. que aparecem juntas no passo  no meio da serra, em pedra e brenha / 37 .$# !%$# &'# -de, tracei planta  só um solfejo, um modulejo  a minha construção, desconforme a reles usos. As# /      43). A imagem do infinito rascunho, em que deverá enxerir o receptor, é elemento recorrente de Terceiras estórias. 36 71 Gagos são Mechéu (ROSA, 1985, p. 101) e João Porém (ROSA, 1985, p. 86), que tremeleia bem quando o pensamento é de difícil tradução (ROSA, 1985, p. 88). Mas o staccato descadenciado que se configura a miúdo como a respiração do livro e é, obviamente, de ordem paralinguistica, parece-me revocar também, além da gaguez (diante do sublime, da dor, do luto, da claudicação, etc.), o som tremulante próprio do riso com seus silêncios intervalares. É verdade que Terceiras estórias não são um livro de gargalhadas (conquanto haja personagens que as soltem e, eventualmente, leitores), mas é certamente de risos e .*--&.*.* *(")/-0(#'!*1"'%*%4 &*+"-.*)$"(!";&/*<, o narrador estaria aludindo, de modo ligeiro, ao estilo /0/("& *;  falara com grossos estacatos, deu-lhe o sacolejado riso<    +  *-7(, de novo, aqui não é necessária nenhuma exclusividade. Como venho redizendo, a alegria não atropela a tristeza fluidal, teimosamente ;/(*.#7-& <    +   ;)&('< *0 ;&)./&)t&1<    +  "  que traspassa o livro; antes se enlaça a ela. O mesmo chama o outro e não seria forçado ouvir, no negativo desse estilo sacolejado, o soluço de (quase) choro de um texto ;")!*")6(&)$.< (ROSA, 1985, p. 145).38 Na própria estória em que o termo +-" ";"&( **(<, o som entrecortado do pranto, do soluço, mescla-." * -&.* ;+*- /0!* .*'0 "& "0 endoençamingas. Mas o povo ria, porém, ao tempo que choravam, por imponentes entusiasmos, +*- ,0"'" %*("( /"- %1&!* " "2&./&!*< *)/$&-se, ao final, o próprio )--!*-;*--&-&+*-* *)/-4-&*!" %*--/(7(< +  Last but not least, a respiração arquejante, engasgada ou sacudida, pode ser vinculada a certo clima geral de ansiedade ou angústia cansada ou enfermiça, corporificadas por (*(")/*."(+"-.*)$"). *(**'%6*!* "-!"; &'")/*/"3+'%&6cortada a fala de ofegos(*./-1&)!&#"-")6*". 4-)&*!*. *)!")!*.< +  '1- # "/ !" *)*/65* #9)"-" ,0" .&$)&#& -& ;'(")/*.*< ; %*-*.*< +*..81"' *(&)65* !" ;")!*")6.< (solenidades religiosas da Quinta-#"&- )/ " ; %*-(&)$.< MARTINS, 2001, p. 186; HOUAISS, 2001, p. 1141). Finados (;Allerseelenstimmung<), Quaresma/Semana Santa ;"&( * *(< /';-"."+"<-)1';&)$-". < Sugestões ou mesmo presença concreta de tempo litúrgico. 38 72 Ou &2&(,)(, 9'#& )"& '#& (,%+ ofegava num esbafo de vertido esforço sob os desapiedados pensamentos: ofego (,"*')+&: '  , /%")9"%+5%"em prêmito de ' ,$"*,$-/!1"&9ora desabria sacudidos dizeres, enrolava mais silêncio, ressofrido: ' $#+"$angustia, aflição acompanhada de aperto na garganta, significa também 9)-":9*+)"+/: 9passagem cintada:9* "#")&:9&%"*2& .+)$:9*,):.')*são] (TORRINHA, 1942, p. 57; FARIA, 1994, p. 49). Também neste sentido etimológico, o estilo tutameico  breve, seco, escabroso: boca estreita para o suprassenso  é angustiado. Se Guimarães Rosa é artista que prima com esmero pelo casamento significado-esignificante, não é de espantar que o texto esteja formalmente varado por essa mistura de dor e deleite. Aliás, o texto insinua, ele próprio, de maneira surpreendente, que sua fratura formal (de ritmo, de sintaxe, de enredo, etc.) pertence, ao mesmo tempo, ao júbilo e ao enlutamento. 0**"$(,*'&"/)9+)"*+/  isto é, falta de continuação: ,9)"*+'&"*(,+2&#&: ' '  as, também, contraditoriamente:  0 & (, $"* * ') &$  9 #"": ,$ $&& *$ *(64%" desprendido dos acontecimentos  camada do nosso ser, por ora oculta  fora dos duros limites do desejo e das razões horológicas. Não se imagina o perigo que ainda seria, algum dia, em alguma parte, aparecer uma coisa deveras adequada e perfeita. Em verdade conta Lucêncio que, entre não-dormir e não-acordar, independia feliz, de não se fazer idéia nem plausibilidade de palavras. Não queria, por tudo, que a inconcebida boa-hora passasse; sem imaginação ou contradição ele nada mais despercebendo. (ROSA, 1985, p. 168). Como escrevi %*32&%+)"&)**'*9 #"": apontam para o fato de que não está em causa qualquer unissonância cabal. Em uma variação do mesmo tema: 9 ;Felicidade se acha é só em horinhas de descuido...< : (ROSA, 1985, p. 36), horinhas sem aconteceres, 9insignificantes:, distraídas das preocupações e injunções de um tempo comandado pelo relógio e vivido como utilidade, como vazio ou forma que prestam apenas para ser preenchidos por algum conteúdo pragmático fora deles. O vazio e a vagareza do 73 narrado e da narração, violentos para o leitor contemporâneo, comunicam impressão de atimia e, menos evidentemente, de uma alegria invulgar. A relação entre esta e a lentidão e a miudeza e a relativização do desejo !&- !.: O Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma. (ROSA, 2001b, p. 148).39 Ronceirice e descontinuidade  angustura onde vem dormitar a ventura tutameica. Tal como ocorreu com os três vaqueiros inventadores, melancolicamente alegres ou alegremente melancólicos, naquela rasa conversa de felicidade (ROSA, 1985, p. 128), ou com o Dr. João na companhia de Zito, quando mole se conversava (ROSA, 1985, p. 180), ou, finalmente, com Joãoquerque e Mira, na hora em que ela fritava bolinhos para o jantar, e #!#%- uenidades, amenidades, certezas.    Neste sentido, a forma que modela Tutaméia é irmã da conversa (des)fiada, do papo furado: miolo oco com tiquinho de prosa em volta. Também do sonho, do instante liminar entre sono e vigília e, enfim, do silêncio, que é sepulcro e berço e, enquanto tal, ensejo para a nomeação inventiva, paixão do escritor: - ") !"# &  ! ""  +".   17). Na fronteira postrema da palavra e da mudez, o livro parece desejar produzir, a despeito de ou desde toda negativid$-#""*.em que se cale indizível ternura (ROSA, 1985, p. 23). Não só o mesmo e ressonante   que arremata - !!-das- #"."#( - -ooó.-      .#ROSA, 1985, p. 25, 100, 102 e 125). Espécies de surdo e inventado mantra talvez? O sonido minúsculo, o sentido infinito: -Ih, é, ah!., -Ô-xem...., -Lilalilá!. (ROSA, 1985, p. 72, 75 e 120). De qualquer maneira, o som em si, suas vibrações, efeitos misteriosos, recados não conceituais (ROSA, 2001c, p. 27-104).40 Mágico, porque 39 capaz de comunicar Henriqueta Lisboa vê, no trecho, a formação de um conceito conformista (COUTINHO, 1983, p. 176). Entre outros, Davi Arrigucci (1979) e Irene Gilberto Simões [s.d.] já atentaram para o valor autônomo do som nas criações de Rosa; o primeiro, abordando o Grande Sertão"$-'!". # "# 40 74 subliminarmente, despertar o que dorme; criador de possibilidades e travessias, portador não de razões, mas daquilo que se sente e experimenta como verdadeiro, suprassenso. Afinal de contas, em Tutaméia, é antes o amor, e nã  $' ! % ,  - sentido e simpatia e orientação à história (e à estória, poderia completar- ,!' - , 1985, p. 130). Amar é dar sentido (como no efeito do olhar de Romão e do Quim chinês sobre suas esposas), e isto apesar de que este sentimento, para personagens ou algum narrador, de revés em revés, não esteja lá valendo os muitos mil milhares, mas qualquer meia tuta-e-meia.41 Não obstante toda desarticulação e estranheza de ritmo, o livro inopinadamente aspira a ser entreouvido como espécie de aboio ou salmodia; na verdade, cacosa cantação cuja cadência só pode depender também da inspiração e expiração do leitor, bem como de sua sensibilidade àquilo que o escritor aprecia entender como influição, impregnação ou, com pitada venenosa, inoculação da leitura (ROSA, 1985, p. 176 e 180; 2003b, p. 86). Tutaméia é riso, reza e romeia (ROSA, 1985, p. 68), moderna e triste toada desconjuntada, linguagem babelesca, algaravia. Verdadeiro desatino e canto de Sorôco que, aos ouvidos moucos da razão, '" , -dizer das "-  As dimensões do puramente fonético e do silêncio podem ser pensadas como infra ou supralógicas, sensoriais ou hipersensoriais  ,!- ! ,! - nas palavras tutameicas (ROSA, 1985, p. 175).42 ) $ !   "  , !('   onírico, como o recorda Henri Bergson (2007, p. 140), há uma concentração na matéria fônica do léxico (ou uma hipersensibilidade a ela) e um esvaziamento de seu significado habitual. 41 Com um título como este, o problema do valor, em todas as suas principais acepções, só pode ser medular na obra. Vide  ,Hipotrélico-     !('  " &        , *#-com que o matuto faz suas criações (ROSA, 1985, p. 78). Até os emblemas gravados ao término de alguns contos, nas edições José Olympio, têm o feitio de moedas; são, inter alia, também moedas (ROSA, 1968). A palavra de Rosa, por mais rico que seja seu pecúlio, seu patrimônio, seu espólio  e as Terceiras estórias são lidas como testamento estético , compara-se, tal qual a do rústico, a tuta e meia, tostão, pataca, mixaria. A palavra é a moeda que o ficcionista, como cada sertanejo criativo, se esforça por transformar em poesia, ainda que ruinosa. 42 Ver também ROSA, 2003b, p. 86. Não admira que Rosa fale pouco publicamente e presuma e tema que seja tachado de doido ou charlatão (COUTINHO, 1983, p. 72). 75 linguagem lógico-"'&0  %# ## "#  Corpo de Baile, Guimarães Rosa comenta de modo válido também para Terceiras estórias: (Perdoe-me, carreguei na mão. Mas é que é perigoso tentar sondar essas anfractuosidades infra-lógicas, hiper-sensoriais, elas contagiam-nos, e 1#$%   ""2  &*) + % - # " "#$..) (ROSA, 2003b, p. 104, os negritos são meus). Esta /%#0que é Tutaméia43 azouga o leitor (intelectualista) quando se propõe como obra que não se lê cardinalmente a partir do senso ou do juízo, se bem que estes não estejam fora da jogada. Também o leitor é chamado a ficar com a cachorra; a não somente ler, mas, principalmente, ouvir pintando e repintando o diabo: prestando mais $*)!%( "   /""#$!% # a signifa0 (ROSA, 1985, p. 44). Em outras palavras: a leitura dos traços afetivos ou suprassegmentais, como a cacorritmia de que falei acima, é importantíssima não simplesmente porque assim é com toda a literatura, mas porque o livro incita o leitor a sobrevalorizá-los. O uso, na carta de Rosa a Bizarri, de uma expressão idiomática em que há uma referência à cachorra vem bem a calhar: em certa perspectiva, é exatamente algo próximo do que seria uma percepção animal, isto é, infralógica, o que se reclama. Muitos dos personagens de Terceiras estórias/-##$&#0possuem-na (DANTAS, 1975, p. 59). O atormentado e isolado Jenzirico intui um não sei quê provocativo no bizarro e soturno som $##$$$ #,# /  Coooó! Cóoo...  escutando. Teria disposição de repetir m"$ 0  Claro, essa via extralinguistica não tem mão única. Por ela, é tão possível receber mensagens quanto expedi-las. Bio inveja Nhô da Moura porque ele &"  & / #$#  " !%-sabe só por afetos de pensamento0  1985, p. 146). Como toda habilidade comunicativa, também esta é uma forma de poder. E, aí, existe lugar para ambiguidades. Dar de ouvir mais o modo que a parla pode redundar em 43 Aproprio-me de linguajar do autor. Cf. ROSA, 1985, p. 178. 76 enfeitiçamento, cegueira e escravidão. Seria o caso de Terezinho, que, cativado pela suspeitável Dlena, a escuta 0  #+&'" &'"  &(&#!&" " " (m bicho inclina o "()"1    #    %"% &(& #)%& 0de cor1, 0fonográfico1 (ROSA, 1985, p. 27, o negrito - ( 0" "'&((%1, o narrador raciocina sobre o poder ludibriante da fala repetida e também, pode supor-se, da oralidade como um todo, do que há !  !," & !' 0 !," - $( (  %#&  %. - " $( "() "!'%   )* " verdadeiro avis'"1 # Não é desta força da oralidade e da repetição que, dentre outros elementos, usufrui Jó Joaquim? Enfim, ainda que esse tipo de escuta não se absolutize, como se dele não derivasse erros, é, via de regra, por orelhas espiritadas que adentram segredos profundos. Dois últimos exemplos: sob cochilo, torna-se audível a Gedeão a passagem evangélica que lhe muda todo o destino (ROSA, 1985, p. 89). Apesar de pô-la em prática, inicialmente, à letra, não deixa de antenar-se com seu espírito, rúach0&"#%"&"!"%"1 como traduz Miguel de Unamuno no seu prólogo d2O Zohar: o livro do esplendor de Ariel Bension (2006, p. 35).44 O já mencionado Lucêncio, também entre dormida e despertez, capta, no próprio mover e bater do relógio, seu negativo, o repouso do não tempo: 0&(') enluvadas as pancadas, de extramurada sineta, sem choque ou música. O relógio  seus ""$(&%#' !&&' & "%1 #  suma: Tutaméia é livro opaco no qual se colam os tímpanos, tal como faz o louquinho junto à parede maciça e dura a fim de ouvir o ruído do nada. Parede que, a propósito, acrescenta o prefaciador, emite 0#"%&"!&&"!&1#"&"(!)%&"0- cheio de silêncios barulhentos1 (ROSA, 1985, p. 16). Faço a transição da audição para o olfato, pois Tutaméia é também obra que se respira $(&." &'('&!%!&0) ( '(""%1 44 O aéreo é motivo sobressalente em Terceiras estórias.  p. 207). Há qualquer 77 coisa neste além dos aviões da Panair (ROSA, 1985, p. 12).45 Mais uma vez, muitos dos sertanejos ou homens simples de Rosa são especialistas nesse quefazer; há contraexemplos, sem dúvida, como seo Isnar; aos olhos do narrador, ele é mais empedernido que os paquidermes que mata; sua sensibilidade desajustada projeta-se nas letras bagunçadas de seu nome, anagrama de nariz. Onomasticamente o caçador parece ser o antípoda do cigano Cheirolo, também senil (ROSA, 1985, p. 210). Já outro personagem, Doriano, *(0'5$#$$ '6 (* '($!*0/$    %   ( " &* #ota humorística e irônica da página anterior, ()  $#()%$  )# 5#*!$ (%3')$ $ &* -'6    %   '" 5 (* #'- #$'#)6 $! 5%$'0/$  "$+"#)$( " %/$  #6 ROSA, 1985, p. 205); ele, #)'$($!')"*)($((5,%'$'6%$(5#))" de surto viver aos trechos6    %    . $* 3 5#&*) $"$ *" #'-  $!#$6%5$'um chamado: ##*1""(+!$-&**"+$-6 (ROSA, 1985, p. 194 e 196). Aqueles que convivem com Sinhá Secada, em dado momento, são instruídos por ela 5*"' $$&*#"((6 % $$#)'.'$&*$$($ $"1"((($"*()##*1"5)+'6 sucederam 5' &* $#)6   % "*)(('0s se 5, p. 20). Do que não se pode descurar é do 5($%'$ $ "$6 (ROSA, 1985, p. 56). Por isto, a( 3!( 5%$)2#(-do-ar6 (/$ esconjuradas pelo padre naquele conto cômico-#).()$ "$ 5"( $'"(6 (ROSA, 1985, p. 202). A insistência da escrita é tão grande que não deixa dúvidas. E, diga-se de passagem, o conduto nasal tem sido tema de humor ou espírito nas letras brasileiras desde Machado de Assis, ao menos, passando por Lobato e Clarice, sempre com sentidos diferentes, claro. Neste contexto de cá, o que se pede é que o leitor afie o seu nariz e capte o sutílimo das coisas. 45 A própria ficção, e enquanto verdade histórica, ()'5($!)#$ ar  #$'%(3&*$6 178). O que fica, é óbvio, entre o mistério, o humor e a loucura.  p. 177- 78 Mas essa escritura que cheira a(o vazio do) sertão, particularidade que Guimarães Rosa amava encontrar na literatura alheia (DANTAS 1975, p. 101 e 104), é também degustável. Livro-pedra de que se ti".$!%&* "$%/ SA, 1985, p. 7), ou texto no qual se digere com dificuldade hermenêutica o prato inacabado que o maluco mestre-cuca preparou a partir de uma massa de farinha de trigo crua e seca. Seu caráter de sustância é certament()!%. */!% "% $"$+* de fios emaranhados e é servida, por exemplo, como sopa; no caso, sopa de letrinhas sem letrinhas.46 Como vários dos críticos rosianos já o notaram, a-letria pode conotar ausência, ou melhor, rarefação de letras, de sinais gráficos, apontando, então, para o estilo ensimesmudo da obra (ROSA, 1985, p. 36), no qual sobreleva a dimensão paralinguística de que agora falo. Imagens de alimentos, ou outras ligadas à culinária ou à cozinha, são marcantes em Terceiras estórias, embora tudo seja discreto. O arroz, por exemplo, surge, no mínimo, em três ""$&# . %("/        . "$+*/ (ROSA, 1985, p. 125) e ."#&$%"/ (ROSA, 1985, p. 194), mais ou menos vinculado a uma espécie de sítio edênico, que pode ser, inclusive, o lugar em que se está, posto que não se saiba. A cozinha é o espaço da mistura e do sabor assim como a poesia. Zito, que tem sabedoria digestiva (pois rumina e saboreia bem seu orbe sertanejo), traz .()*"*/       , . % $   '" " # o maior guieiro  e dado em poeta/    1985, p. 179). As três funções  cozinheiro, guieiro e poeta  são cambiáveis entre si. A guiagem nem sempre é tão positiva quanto a de Zito. Se não por malícia ou maldade do guiador, por ignorações inevitáveis. Perdidos guiadores são muitos dos inventadores e narradores de Terceiras estórias, fortemente ancoradas na ideia de (des)orientação. É o conto !%"&" #.Aletria e hermenêutica/!%( ""$ "+*#$ 46 O Leitmotiv da sopa, como refeição pedrenta, tem iteração importante no encontro dos soldados famintos com a velha sovina (ROSA, 1985, p. 14). Na verdade, o livro é, todo ele, organizado em motivos. Vera Novis (1989, p. 24, 25 e 114) fala em recorrências metafórica e temática. 79 ponto em diante, todo narrador (e, para trás, o próprio prefaciador) terá algo de meio-cego que (des)encaminha outro meio-!( ( 9 ,('"#( %#-(+ #-( %# & ='-#)+#)%6#> personagem (ROSA, 1985, p. 21). Sim, porque Prudencinhano, guia não totalmente confiável, tanto sabe quanto dessabe (ainda que, certas horas, apenas finja desconhecimento), tal como os que são por ele levados: Seô Tomé e aquele que lê. O fim de Seô Tomé é o precipício, e não é muito diferente o que ocorre com Prudencinhano e o leitor, embora, para estes, a queda seja metafórica. Malgrado os mortos e feridos, talvez seja também no fim, no abismo, que a coisa (re)comece, pois o buraco do nada sempre pode ser vão para nova estória. Com tudo isso, já se vê que Tutaméia 6 %#/+( *. , %7 (&( !( & =-- conce'-+54(> alfim, é muito possível que se tope com outra coisa que não a que se pensa *. .,    )  ( ('-( =Intruge-,> #/+-#( )%( *. -&  sertanejamente detetivesco, Ladislau, logo após misterioso crime, resume bem a enrascada em *. , '('-+  = %!.6& ( +-( ,(.,, '4( #1#  (. ( &.#-( *.e diziam não se )+(//>    )  =  como se saber  o que não se arrazoa nem se #'-+.!> ) ('-+-(&-&2-#,#'/,-#!5:,(,+-# 8#( empregado meio instintivamente pelo boiadeiro  drede distraído (ROSA, 1985, p. 83)  consiste em apalpar a mão de todos os suspeitos e disparar aparente lero-lero, papo furado à &'#+ -.-&#  = ?+2 ( ( +4, *.#+  +%"@ >    )   Conforme se afirma em outra estória, o )+#'#)%=*.%*.+)+!unta nela quase nunca se contém>    )  #,%. -&  ,-;#  #'-+ &#'"(, -+'(,  , tatear uma coisa, indagando por outra. E não é que funciona? Serendipity. Por esse toque meio-refletido-meio-desatento (e, no momento do desfecho, ainda mais desprevenido que antes), Liocádio é pego e acaba morto; quase que por si mesmo se delata.47 Tudo isso lembra 47 ( ,+ *. ( ,.,,(  #,%. , / 3 (#'#7'# 0#,- -6 .& ,,+-(   =+,)> *. #1 ( ,!.#'- =&,)8+#-(!'-'#'!.6&#'-+.$> )  80 a senha sertaneja de Guimarães Rosa e Paulo Dantas (1975, p. 35, 97 e B/3$$3/3$0- é tocar na mão #-1$3" 072$0C48 Não obstante, no fundo, a narrativa não buscava esta resposta: a identidade do homicida. Ao final da caminhada, Ladislau sai com novas perguntas e parece menos um herói que acaba de desmascarar o assassino do que um simples vaqueiro que revê a própria insciência: B> !-( 4  !( /3$, # 1 !( #$1(C .  3#$2$2(ve da estória será provavelmente o leitor que desconheça que aquilo que investiga às apalpadelas não é o que por fim se soube, mas o que talvez venha ainda a destramar-se. Terceiras estórias querem dar resposta é ao que ninguém perguntou (ROSA, 1985, p. 18). O artista parece fruir esteticamente desse olhar enceguecido do leitor BoitivoC e BdedudoC    . ); &-6-1$+$*' ,2$ -# 1+3*'$0$1#-"$&-"-+.*$2-/3$#$*$/3(:7&-12 4 +B.-0#$* 1,$+ ,9-.-#$0#$4 11 0 1%-0+ 1,$+%$(:?$1C .   "230 8. 02$--.@1"3*-0-1( ,-2 +!;+1$*<"-+-1-*'-1!$+ !$02-1B-02$ gente vai  nos . 11-1# '(12>0( /3$4$+C . .0(+$(0  ,$#-2 #$ BAletria e HermenêuticaC principia 11(+ BSiga-se, para ver, o conhecidíssimo figuranteC (ROSA, 1985, p. 8). E o fecho #-2$52-#(6BVeja-se, vezes, prefácio como todos gratuitoC (ROSA, 1985, p. 17, os negritos são meus). De um lado, Terceiras estórias são escritas e lidas às cegas por assunção humilde da invencível insipiência humana, e por certa técnica de renúncia à evidência ilusória para palpação do invisível. De outro, elas demandam do leitor uma 4(19- 0&32 . 0  1+ 0" 1+3# #(: 1$-14$12=&(-10 0-1/3 ,#-,9-(,1>*(2-1B+ +$,2$ #$ -*'-1 $*$ .0$,#(  - " +(,'-C    .  $02 ,$)-1 "-+- -0( ,- $ Ver no Grande Sertão: VeredasB$,(,-+$#$3 +9-$-/3$+9- +9-#(6;"302-814$6$1.-#$1$0- + (1 #(4(,' #-$"-,2$@#-(12-2 +!;+C . +B  ($3CB$ .0$"(ava, cordial. Me saudava segurando minha mão  +9- #$ .$& 0 - .9-C   p. 198). Acho graça e espírito no (simbolismo do) fato de Ladislau tocar também o cachorro Eu-Meu (e ser por ele tocado). As fofas patinhas do animal não escapam às apertadelas sensitivas e inquisitivas #-&3( #-0$0 120$ #-0#$1(, (1B #(1* 32 2$ 4  as patas do Eu-$3"-+4$0/3$1$+3(2-& 12 # 1C . DO mistério dos MMM, o literato mineiro concebe uma velhota diletante na arte detetivesca que até emprega o método dedutivo de um Sherlock Homes, mas ironiza-- B12- ; $1"-*  13.$0 #  . 11 #(12  $+ -+- ; +$1+- 3*20 + ,) #   vocês #(6$+-)$$+#( . 0 4 *$019- 1(,#3:?$6(,' 1 *&3+ (,23(:9-C(ROSA, p. 82). 48 81 Ladislau rastreiam, no livro da natureza e da vida, convinháveis indícios. Nada fácil: às vezes , ". &(&(*. :) %,)",%$'#, .&(.& '-(; ) 1(&( sofre também o Jenzirico, sumido na droenha: mapas não existem e rastros não se dão de achar (ROSA, 1985, p. 51 e 52). Neste universo de sinais escassos, insuetos, esotéricos, (quase) invisíveis ou mesmo ausentes, dificilmente se polarizam visão e cegueira. Ao leitor, -%/ 0 +.$-(:-()7"+!( -+$$('$,% $-.+,; ) 5'  ,,2+$( cegar ou inverter ou supraverter a própria perspectiva; fixar os olhos no hiato de todo traçado ou no branco da página, por exemplo. O Jenzirico de há pouco segue o que não vê (ROSA, 1985, p. 52), e o prefaciador põe reparo no oco da letra enquanto corpo e formato, pictogr&:5 .&.+('3( ,.+(; ) De jeito similar, as estórias porfiosamente se oferecem à vista como desenhos, ou melhor, rabiscos. Já no protelado romance A fazedora de velas, o enredo é concebido como que visualmente e riscado em gráfico (ROSA, 1985, p. 175). Ações, eventos, tempos  o mundo em suas tortas linhas (ROSA, 1985, p. 8)  formam bosquejo a ser contemplado e completado pelo leitor. Também os personagens tentam decifrar os acontecimentos e, alguns mais, outros menos, refabulá-los: : + ,$'#( clamou, queixou-se  já as coisas rabiscavam-se;    )   :7 (*.$& genial, operava o passado  plástico e contraditório rascunho;   :$+/$($',-'-  $'-  desenhos do horror [...].; não surgira apenas: desenhou-se  - +')+ &$&;   são ainda rabiscos  +$'4, ,-(+(,; ) )  )   )  :(+*.  %  : Os sonhos -((,(,' "+$-(,,3( meus). Arquitetante como o seu anônimo mestre de obras, o contador entretém-se compondo riscos da mesma fórmula em situação (ROSA, 1985, p. 170) e tempos que se parafraseiam (ROSA, 1985, p. 48). Variações do mesmo no interior de uma estória: as traições da )%.+$'(&$'% $/6+$ & : , '+ (; (, ,,,,$'-(, (, $+&3(, & :,, , () ,; , $'"48 ,   $,%. & :'-+." -, ; , +-,   $$ & : / % ( $(; (, 82 ! *!!!"!,Sobre a escova e a dúvida-!!,-a--, %  "-  " ações do mesmo entre as estórias: os casos com belas bruacas, os amores triangulares (com ou sem maridos cornudos), as festas ou festanças, as chegadas e partidas de ciganos, as viagens com a boiama, etc. O paradoxo de Terceiras estórias como obra-rascunho ou esboço-lapidar é fundamental. Um abreviado, sim, mas de tudo (ROSA, 1985, p. 166). Visão miúda, sim, mas ante vasta estrada (ROSA, 1985, p. 207). Se, por um lado, uma obra perfeita é impossível (ROSA, 1985, p. 168 e 169), por outro, nada há aqui de garatuja descuidada, muito pelo contrário. Das estórias, o autor pode afirmar que as fechou redondas e quadradas (ROSA, 1985, p. 42). O traço tortuoso, o risco mal debuxado, '"#!"# ,# texto alvo novamente, sem trechos, livrado de enredo, ao fim de ásperos rascunhos-       # )  ( ""# ,!  &!  #"'-, conta que Guimarães Rosa lhe segredara que dava a maior importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentário. Entre estes havia inter-relações as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto. (ROSA, 1985, p. 216). Sou da opinião de que as observações de Guimarães se fazem tanto mais pertinentes quanto mais se tenha relido Terceiras estórias e vice-versa, pois só depois de várias travessias se torna possível vislumbrar coerências  tal é a ilegibilidade pacientemente construída. De modo algum, contudo, o texto perde essa feição de quebra-cabeça, essa tensão entre unidade e fragmento, pois, justamente, ela é constituinte daquela totalidade de que fala o autor. Em Andorinha, Andorinha, o autor mineiro aparece e, de certa forma, como acontece,   $  ,Sobre a escova e a dúvida-  ,Aletria e hermenêutica- "  !  personagem. A menção do livro em Tutaméia (ROSA, 1985, p. 15), por sinal, tem o sabor de potencializar esta mistura de realidade e ficção: como num livro dentro do livro, o 83 personagem-autor de uma obra cita outra em que figura como personagem-autor. Mas, enfim, Manuel Bandeira (1993, p. 694), depois de deparar-se inesperadamente com o contador                            O   , vespertino em que foram publicados previamente alguns textos de Tutaméia, como Nós, os temulentos: Eu desejava saber, para meu governo, o que Rosa está sentindo diante dessa obrigação hebdomadária de um estirão de jornal assinado por ele. A resposta veio pronta:  Angústia. Concluí imediatamente: Rosa não é jornalista. [...]. Rosa nunca escreve senão caprichado. Por isso, mal entrega a sua colaboração da semana, começa a trabalhar na da semana seguinte. Ora, uma semana não dá para Rosa caprichar nas suas invenções verbais [...]. Daí a angústia. Rosa confidenciou-me:  Começo a escrever, um mundo de coisas, idéias, imagens, reminiscências, me acodem. Escrevo cinco, dez, quinze páginas. É preciso reduzir a três. Começo a cortar, começo a corrigir. Aí tomo gosto. Nunca se acaba de corrigir. O meu desejo é então continuar a corrigir até o fim da minha vida. Mas há que entregar os originais. E no dia seguinte recomeçar coisa nova. [...]. [...]. Escrever para jornal é como escrever na areia. Rosa não escreve na areia: Rosa grava na pedra. Para a eternidade. (BANDEIRA, 1993, p. 694695). A imagem do rascunho infinito, gostosamente angustioso, está cerzida àquela da disposição misturada, entre feliz e desinfeliz, que enforma o ponto de vista de Terceiras estórias; ambas, porém, agora de modo mais nítido, na intimidade do trabalho criativo, no próprio processo, e não apenas no produto. Não será difícil ver nessa ânsia de reescrita um medo obsessivo da morte ou do que há de definitivo na vida, emparceirado com um apego afetuoso ao mexe-mexe da vida e ao infinito próprio da morte. O gesto da correção, não só literário e artístico, é constituinte também da filosofia transcendente de Guimarães Rosa (lúdica, fragmentária e não doutrinária). Ele, na entrevista a Günter Lorenz, declara que, pela escrita, deseja aproximar-se de Deus, às vezes, demasiadamente: Isto provém do que eu denomino a metafísica de minha linguagem, pois esta deve ser a língua da metafísica. No fundo é um conceito blasfemo, já que 84 assim se coloca o homem no papel de amo da criação. O homem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor a si mesmo, domina a realidade da criação. Eu procedo assim, como um cientista que também não avança simplesmente com a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. (COUTINHO, 1983, p. 83). É plausível que haja blasfêmia devido ao alcance que se dá à liberdade do querer e do agir do homem. Entretanto, por mais heterodoxas que as palavras pareçam, não estão tão distantes assim das grandes tradições religiosas do ocidente ou do oriente. O judaísmo, por exemplo, permite ao homem dizer o que quer que seja a Deus, contanto que seja para o bem do homem. [...]. Tudo depende do lugar em que o rebelde se coloca. De dentro da comunidade, pode dizer tudo. [...]. A revolta do crente não é a do renegado, eles não falam em nome da mesma angústia. (WIESEL, 1979, p. 88).49 Basta trazer à mente personagens bíblicos como Jó, que tem "$%!&,"!- Moisés e Davi. É este último o modelo que torna possível, já no cristianismo, ao padre Antonio Vieira (2000), por exemplo, em sermão atrevido, mas relativamente ortodoxo, imprecar e litigar contra Deus, retificando-o, ao defender que não deve continuar permitindo as derrotas portuguesas. Seria convicente dizer que, também para o Guimarães Rosa de Terceiras estórias, se a divindade criou a realidade, de certo modo, apenas a bosquejou. A escrita simultaneamente esboçosa e esmerilada, precisamente imprecisa, não seria, sob determinado ângulo, uma recriação dessa linguagem de Deus e do mundo? Se sim, é tarefa do homem obrar sua própria felicidade, remendando e rematando livros e coisas. A interdependência entre as ações humanas e o Céu seria, ainda assim, estreita. Se essa criatura imaginada por Rosa tem força ideal e espiritual para guerrear contra o destino ou, conforme diz o contador ,!!-das#"-, fazer vingar, ao menos uma vez, a graça e o encanto no universo sertanejo, pode #) !""$!!'#*"" ,!!("!- 49    Também na mística judaica existe a ideia da correção da Criação (WIESEL, 1997, p. 60, 61 e 106). 85 Zito, #!&-de-!""%'     olhando como lagartixa (novamente a comunicação pré ou ultralinguística), diz ao doutor:  A coisada que a gente vê, é errada...  queria visões fortificantes  Acho que... O borrado sujo, o sr. larga na estrada, em indústrias escritas isso não se lavora. As atrapalhadas, o sr. exara dado desconto, só para preceito, conserto e castigo, essas revolias, frenesias... O que Deus não vê, o sr. dê ao diabo. (ROSA, 1985, p. 182-183). Terceiras estórias estão a léguas dessa concepção didático-moral da obra de arte como objeto que aciona a coisa errada em controlada medida e para consertos bem determinados. E, se não são de modo algum alheias às ideias de borrado sujo e visões fortificantes, propõem correção interminável que propende antes para a estética e a mística: do prosaico ao sublime. Quanto à ética ou moral, está, via de regra, a relativizar-se ou encobrir-se ou enigmar-se. Provavelmente certo é que, para o Guimarães de Tutaméia, mais trágico que a própria tragédia é a míngua do sublime ou do poético ou da palavra: o homem que à sua desventura e a si mesmo, de algum modo, não transcende. Na imago mundi do fabulista, não seria este o seu grãozinho de ética? Atente-se ao caso do padrasto de Melim-Meloso, que vive na &'$" &! e ""'     Trata-se da importância da mirada que conserta ou engendra a realidade, ou porque tem pressentimento ou consciência de seu caráter ilusório e o manipula (e aqui a própria mágica pode ter a sua carga de negatividade), ou talvez porque, misteriosamente, enxergue o que é, aquilo de que ninguém teve notícia. É o que se daria com o Quim chinês e o Romão, que abstraem o feiume das esposas: Yao amante, o primeiro efeito foi Rita Rola semelhar mesmo Lola-a-Lita  desenhada por seus olhares. A gente achava-a de melhor parecer, senão formosura. [...], mudava de cúpula a fundo. No que o chino imprimira mágica  vital, à viva vista: ela, um angu grosso em fôrma de pudim. Serviam os dois ao mistério? (ROSA, 1985, p. 124). Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso mais verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados viam também, pedacinho de instante: o esboçoso, vislumbrança ou transparência, o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria. (ROSA, 1985, p. 95). 86 A questão da visão é de absoluta primordialidade em Tutaméia. Abarca complexamente os motivos e temas mais variados.50 Meu objetivo é apenas assinalar que essa obra-esboço invita não somente a ser lida, senão também vista (em seus gráficos de enredo, por exemplo); e mais: revista por múltiplos ângulos, entrevista, imaginada, intuída, contemplada.51 Logicamente só pode intuir o infralógico ou o supersenso quem olha como lagartixa ou sobrevê. É apenas de sua fenestrinha que o ledor, tal como prisioneiro, observa. Contudo, &*#/$((%'#6(*)!$%$()$enxergar, de nada7 p. 140); assim também o alienado se planta ao pé da parede para espreitar os silêncios. Sim, porque louco desafio é este o de sair do enquadramento  saltar espacialidades e temporalidades. Além disso tudo, e por outro lado, este livro gaiato parece não só dizer que é ou deva ser visto, mas que também vê. Eis aí mais uma de suas viradelas. É como se no buraco central de Tutaméia (e o centro é qualquer parte) houvesse um olho, às vezes, cegante, que olha e é visto. O leitor lê e é lido pelo livro, se souber inverter a ótica habitual. Tal como # ! ""  6 ($!  "#/ 1 ##$($ " $ "- $  $ #+#)-se, invade a quadrada abertura por onde ele é avistado e vê, fen()'7 palavras d$#''$'6Estori #7 6$ +'$ + ()$7  p. 139). Ou nas %  52 Mas, então: que tipo de destinatário prevê a construtura do opúsculo rosiano? Pelo seu discurso alusivo e fragmentário, não demanda mistura de erudição, raciocínio denso e intuição? Não reclama, pela sua língua inatural e difícil, inevitável distanciamento? Não Vide ),)$($"$6+!$ $76*' #$()2' 76)')$+!$7, 6*(' %'($#"7, 6Sobre a escova e a dúvida76Nós, os temulentos76"($'"(7. 51 Do conto 6*' #$()2' 7 5, p. 138), radia toda uma gama de nuanças conectadas à visão: ver, apreender, divisar, olhar um objeto centrando-o em moldura, espiar, notar, espreitar, transver, contemplar, avistar, enxergar, descortinar, perseguir ou surpreender com os olhos, ver por um vão, perceber, reconhecer, etc. Cf. o passo meio-sério-meio-3" $ $ $#)$ 6 (%!$7  6%'+ $" )$  ($')  ()4 (  $ rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-'%#)($(.#*!$(+' $( #((#)"#)7 %  52 "6*' #$()2' 7$($!" "1+ #)"6Nós, os temulentos7'*" ,$1$!$( (ROSA, 1985, p. 115), num patente aproveitamento e alteração  !$*0/$ ()'$) % 6$!$  '*7  interesse rosiano por este idiotismo vem, ao menos, desde o Grande Sertão, em que a via pública, o caminho de todos e a marca da civilização (ROSA, 1986, p. 342), é lu'$'"*#$ 6$* (($,%$'%'('$) #* #$ $!$  '*  7    %  " 6)! 7  Primeiras estórias, Herculinão morre )%#$$6$!$-da-'*7 %  50 87 envida, pouco a pouco, pelos sortilégios próprios da (sua) arte, pelo próprio mote instigante e desafiador do prefácio, a uma empatia  a-feiçoamento  que se disponha, por jogo que seja, a assentir às proposições e pôr a máscara do outro, personagem ou narrador? A abstração do livro, aguda e inegável, não engana: a obra solicita, exigente, como toda grande literatura, a pessoa humana por inteiro, e não apenas cérebro, alguma mutilação do tipo homo intellectualis. Pede por um grão de malícia e outro de inocência, crime inevitável nessa era da suspeita. Ainda no prefácio, o humor e a ironia, por exemplo, não estão a serviço da afirmação da verdade do escritor (ainda que mirrada e ressequida), do magnetismo e da neutralização de réplicas (daquilo que a retórica chamava outrora captatio benevolentiae) e, contraditoriamente, da incitação à crítica? Enfim, sem desprezar o papel dos aspectos concretamente sensíveis, é possível dizer que Terceiras estórias trazem em si leitor implícito que lê abstrata, metafórica e misticamente com o nariz, com o ouvido e com o estômago, mas também com os olhos e o tato e com toda sua surdez e cegueira; e aquilo que se experimenta tem, muitas vezes, a sustância de nada. O leitor real não está obrigado a incorporar essa imagem obviamente. Esta abertura é constituinte da própria obra, cuja forma de pensamento encerra a sedução, mas também a contradição e o limite autoinquisitivo, a sugestão movente e dialogante. Sem embargo, aquele que lê pode também escolher (legere) participar dessa representação, a fim de provar a linguagem tal como o autor esteticamente a deseja e concebe. O processo de significação que eu vinha explicitando relaciona-se, em parte, com aquilo que Umberto Eco (2006, p. 37) chama de semiose natural ou popular.53 Motivada, não intencional, encontra-se ela em oposição à semiose da palavra, convencional e arbitrária. Tal      '#" %(        ! vinculada aos signos ditos naturais, aos sintomas médicos e atmosféricos, aos traços 53 Como bem me indicou Yudith Rosenbaum durante a qualificação, o leitor poderá conferir como outra contribuição $      '  $     !(   Ginzburg (2003), texto que, à época, eu não havia lido. Em linha bastante diferente, mas também aproveitável, estão Os sinais sagrados de Romano Guardini (1995), teólogo conhecido por Rosa. Cf., v.g., o capítulo sobre as mãos. 88 fisionômicos e também àquelas linguagens que, conquanto não sejam propriamente naturais, *%,%-%9'%(,5&#&+,*$#&+,#&,#.)-(*,&&2'(&+'+'-,'+%+ também '+ "-%#$+:: os signos indumentários, as posturas corporais, as representações pictóricas, as encenações folclóricas, a liturgia (ECO, 2006, p. 37). 9;'%<$,#%$#,-*!# não é uma linguagem falada; é canto, fórmula, salmódia, gesto, não diz, logo não pode $+# #* $ '%' -% *'-( -% &'  %2' -% /(*++2' ' *'+,' :  2006, p. 40). Como não evocar neste ponto, e a título de ilustração na obra rosiana, as cantações dos #!&'+%9*61!-'*#':)-+2'9(*-%&,*)-&,#%'*:9%'3' recitava, o mais velho cabeceando qual a completar os dizeres, em roméia, algaravia de enga&' +&2'  + +&,#* (*#%#*' )- &,&*:    (  Para preencher subliminalmente os ocos da cantiga, valem (o ritmo d)o corpo e o silêncio. Num diálogo com esta passagem de Tutaméia, é o que ocorreria também na estória de Sorôco. Ali, uma das mentecaptas, a filha, canta, e a outra, a velha, acessa o mesmo embalo amalucado, sincronizase com ele, batendo '%39&'+'%&,+:(ROSA, 1988, p. 19).  .'$, ' +%#6$'!'  9-$ 4  '#+ )- % $# &2' %&, - #*# eminentemente, aquilo que não é oral, mas visual, e se for oral, é da ordem do paralingüístico, do supra-+!%&,$','&5%#'#& $/7+.'$-%+*#,%'+.'0+: ( 37). Na verdade, bem esclarecidas as coisas, assim como a semiose artificial, essa outra também induz ao erro; na própria obra aqui estudada, já irrompeu o problema com o complexo caso de Teresinho e o '%&,1*#' ' &**'*  9'%' ,  +--*#: sobre os engodos da oralidade. No parecer de Umberto Eco (2006, p. 31), o desvio ocorre somente quando a língua que rediz e interpreta macula o sentido, ou quando a interpretação é obscurecida pelas paixões. Assim, a semiose dita, por isso mesmo, popular mostra-se, aos simples, mais confiável e compreensível que a da palavra. Quando eles aí se equivocam ou são 89 embromados, sentem-se mais vulneráveis: 1' (! ' '#"!  "(! )&  porque esta impõe uma sintaxe lógica que a semiose natural suprime, dado que não procede $#& '%.,"' "&' !' $#& 3%(&#'4 $#& ( !-"#' #"# #!'2    $ 38). Leia-se, bem a propósito, em Tutaméia, a observação '#& &!  1'''#  ) $  -"(#!+#"('*#2 $  A pouquidão de palavra é, na realidade, característica da obra in totum, e não apenas de um personagem. Terceiras estórias subscrevem a essa suspeita da língua tão típica dos simples, de acordo com Umberto Eco. Confesso que não estou convencida da exatidão de todas essas ideias sobre os modos de comunicação não verbal em sua relação com os signos. Elas inclusive se tornam tanto mais defensáveis quanto mais tomadas sem esquematismos, como o semiólogo tende a fazer. Todavia me interessa antes sua funcionalidade para pensar Terceiras estórias, o que igualmente depende de relativizações e nuanças. Chega a ser impressionante o quanto o livro rosiano insta de seu destinatário tal habilidade de leitura, o quanto aprecia induzi-lo a considerar que soluções importantes a partir daí se abririam  o que não é tudo, pois outra expectativa geral (cristalina ! 1Aletria e hermenêutica2 1Hipotrélico2  1Sobre a escova e a dúvida2, por exemplo) é a de que o receptor seja, como o próprio autor, um erudito, presumivelmente um intelectual acostumado às artificialidades da linguagem e ao pensamento lógico-reflexivo, conceitual. A tradução para este último daquilo que, conforme Rosa, está para além ou aquém dele  o almejadíssimo deciframento  é conflitante e talvez tanto mais, justamente, para essa persona ambígua do leitor implícito, espécie de duplo do autor: analista meticuloso ultrassensível, no entanto, ao paralinguístico ou ao não linguístico. Inevitavelmente o intérprete, tal como fantasiado e forjicado pelas táticas da escritura, se abeiraria de um paradoxo insolúvel ou de um delicado equilíbrio, experimentando, de seu lado e a seu modo, impossibilidades similares às do poeta. Para este, o mais sedutor comentário de Tutaméia seria provavelmente tutameico; um koan 90 quem sabe; ou um texto perpassado, em boa medida, pelo insight e pela mudez (note-se que falo de sedução, e não de validade). Sob este ângulo, a obra é uma provocação à crítica institucionalizada ou à hermenêutica racionalista e logomaníaca. De qualquer maneira, a opacidade da obra, que nada dá de mão beijada, deve muito a ! #Cordisburgo comemora centenário    $    parece reproduzir uma conversa entre o escritor mineiro e sua filha:  Vilminha, vou te dar uma dica de escrita. Sabe o que é mais importante na hora de escrever um conto? É o começo.  Por quê, papai?  Para a pessoa se interessar e ler inteirinho. Agora, me descreva o que você está vendo.  Uma moça alegre e bondosa, papai.  Nada disso. Vilminha. É uma moça de vestido amarelo. Se ela é alegre e bondosa, você vai falar depois. Na primeira vez que você descreve alguém num conto, diga só o que você vê. Entendeu, Vilminha? O procedimento é quase este, pois é mais intrincado; no diálogo está descrito ligeiramente, em grossa pincelada. Na verdade, não se topa com um padrão de discurso em que as informações exteriores ou sensoriais sejam iniciais e repetidamente seguidas pelas outras (intelectuais, psicológicas, etc.), entendidas como que de ordens distintas. O método seria por demais primário. O que há é uma relativa abundância dos indícios próprios da semiose natural  mediados pela escrita  em um texto, como um todo, de parcas informações. Tais ícones ou índices se imiscuem, então, de modo sibilino, no texto poético (cuja linguagem já é, genericamente, motivada). No arranjo dessas imagens fulmíneas, nenhuma gramática, nenhum sistema avistável a olho nu. O que se destaca à primeira, segunda e terceira vista são as suspensões. As pontes são amiúde frutos do esforço, do arbítrio e, justamente, da intuição. Em alguns casos, o autor ou o contexto fornecem ou parecem fornecer um caminho para a hermenêutica das pistas ou evidências: movimentos, posturas, tons de fala, sintomas, 91 trajes, coloridos ou matizes, toques, cheiros, etc. Para o leitor, nunca se esgotam os significados ou se desfaz o enigma (do porquê) do registro. Um mesmo sinal, em passagens diferentes, pode estar a pedir senhas decodificadoras as mais desiguais; nada há de petrificado, posto que haja espaço, no que toca aos movimentos corporais, principalmente, para algo limítrofe à ritualização. Seguem-se as citas, com sublinhados meus (os itálicos são sempre de Rosa); também algumas notações, sem qualquer pretensão de univocidade e completude, entre colchetes e em negrito. A penca de ilustrações, cansativa, serve à demonstração do papel estrutural da técnica e de sua intratextualidade milimétrica, como em +# /%+(!,)(!  !$)0    &  #!) % &%(  )-$*) ))) figurações rosianas ficará evidente no contraste com meu palavrório explicador. Começo com um exemplo canino. De acordo com o que foi exposto, os animais rosianos apresentam-se, vira e mexe, como ledores também: / %((%sabia que So Lau assoviava era por espairecer, não para o chamar0  & /(%! 1Esta é bonita, a mais!2 a ele afirmei, meus créditos. O cego amaciou a barba0    &  [Possível marca de ponderação/análise/desconfiança e apetite sexual]. /$*$+ &"% '+ $*) palpou a barba, de incontido brio0    &  /Suspirei junto:  1Estou para nascer, se isso não faço!2  rouqueei  desfechada decisão0    &  [Suspiro como aparente expressão empática de um desejo ansioso e esperança renovada a partir das cinzas. Rouquidão como manifestação de uma gana profunda, arroubo e deliberação grave, quase solene]. /Macilento, tez palhiça, cortada a fala de ofegos, mostrava indiferença ao escárnio  %) %$$%)0    &   [Sintomas do estado físico e psicológico do mórbido palhaço, cuja boca verde, aliás, liga-se à palidez]. /%(!$%não se coçou. Tomou bom fôlego.0 (ROSA, 1985, p. 187). [Prováveis sinais de aceitação do 92 destino indesejado].54 :Sem cabaia, sem rabicho, seco de corpo, combinava virtudes com mínima mímica ;   , p. 123). [Indicação de despojamento e desprendimento, sobriedade e humildade]. :*(4*olhava em ponto, pisava curto, tinham -" "&*!".0-".+*).&'&!!"; +  [Expressões verossímeis da firmeza do querer, diligência, prudência e humildade do personagem. Também do alto sentido do cuidado ou responsabilidade que tem para com a esposa medusóide]. : (0'%"- !" Zepaz piscava outra vez, na janela, primorosa sem rubores;    +  [Linguagem de sedução. A falta de algo expectável é, novamente, expressiva]. :&$-&3 disse, que viu, que piscou:  <Remexam nos dobros dele, que o assassino ele era, por algum trato ou furto!= ; (ROSA, 1985, p. 85). [Expressão encolhidíssima da culpa, medo, nervosismo ou insegurança do assassino, que treme a pálpebra e se denuncia].55 :*-6( tardava-os, com a indecisão falsa do zarolho e o pigarro inconcusso da prudência;  + :"+3 se irou, ranhou pigarro; + [Para extravasar ou controlar a ira]. : Ele nunca teve graça, o que divertia era seu excesso de lógica...  tossiu, por nojo; + :&*8 tossiu, para abreviar o instante; 1985, p. 121). :Sorria contrária  [...]  o nariz afirmativo, o queixo interrogador; 1985, p. 131).56 :*4*,0"-,0"encostou o peito à barriga, no brusco do fato, mesmo seu nariz se crispou meticuloso; +  [Possível reação instintiva de defesa, medo, misturada a cautela e escrúpulos. O medo parece percorrer, minuciosamente, toda a covarde anatomia do personagem]. :Cheiraram-se e gostaram-."; +  :Seus bigodes ou a rustiquez  roupa parda, botinões de couro de anta, chapéu toda a aba  2&./"'* 054*"./"-"*/&+!:)4*." *5-;)4*#3"-(")54*!"/&--!&)%"&-*+-+$-'$* 71"' igualmente, no contexto. Neste ponto, de maneira mais precisa, é a ausência de uma mímica esperável ou imaginável que se torna significativa. Na passagem seguinte, acontece o mesmo com alguns não traços observados. E, adiante ainda, no próximo bloco de citações, outros exemplos surgirão. 55 A semiose popular estaria pintada aqui com certa comicidade, pois uma simples piscadela confirma a identidade do assassino. 56  Contraversão de lugar-comum literário *( -73". ) ."(&*." )/0-' :,0"&2* #&-(/&1*; " :)-&3 interrogativo;  +-&("&-* !"'". .*#-" 1-&54* (&. !&. -"/ "( :./*-&&)%; :* ,0"&2* #&-(!*;  1985, p. 65). 54 93 .,/&+$,( ,.,-(8 desabada8    )  ) 7/ $(*. %  () , chapéu grandão, aba [Plausível marca da violência desmedida do personagem]. 7Sentou-se com totalidade. Fez declarado o voto, como quem faz bodoque ou um dique:  9Vou trabalhar mais não.: Sério como um cavalo de circo, cruzou pernas e braços8    ) 57 [Indícios corporais de folga e ócio que são também do espírito]. 7,,((  3(meneava e mais  com fagulhas financeiras  ao curto crédito e trato de seu gesto. Entrava a remudado, lúcido luzente, visante. Tirou o chapéu de debaixo do braço8 )[Suposta correspondência entre a energia corporal/hábeis trejeitos e gesticulações manuais, e o dinamismo e a luz do espírito/a atividade gerenciadora (manejadora). Ao fim, animada iniciativa]. 7Era ele pequeno fazendeiro, suave trabalhador, capiau comum, aninhado em meios-termos, acocorado8 ) 165). [Hipotético sinal de humildade, apego ao chão, geossensibilidade e/ou sossegada estabilidade]. 7 9Tivesse tido um filho...:  ao peito as palmas das mãos8 ) 7$'#2 encostava no ventre o frio das palmas das mãos8  )  7$+trouxe ante rosto as mãos, por ímpeto de ato, pois já as retorcia e apertava-as contra os seios; [...].8 (ROSA, 1985, p. 59). 7 ". i-lhe aos poucos o fio dos gestos, tudo o *. ( 0& ,.&$,,(8 )  [A gesticulação dá margem a que se crie fio de enredo a ser lido]. 7Fez o gesto de cansado; pensaram que era o de forte decisão8 (ROSA, 1985, p. 187).58 Em outros momentos, a aletria rosiana acentua-se, exigindo do leitor faro mais inventivo; ainda um prato cheio para a Semiótica ou para a Cinésica. Exemplos com um ou outro comentário mais simples: 7Escura a voz, imesclada, amolecida; modula-se, porém, (, ( %$#5 7+.1+ (, +4(,8  !.+tar-se ao trabalho, o mais das vezes, de jeito visivo e decidido). O personagem, hiperbolicamente, cruza-se (o voto é religioso) por inteiro: não só braços, mas também pernas. O gastável do chavão seria fraco demais para comunicar a amplitude extravagante daquela inação e a força irrevogabilíssima do propósito, curiosamente ativo: santa teimosia! 58 A hermenêutica errosa do movimento por parte dos outros personagens acaba por favorecer, à maneira cômica e em tempo crucial, o semi-herói Doriano. 57 94 vibrando com insólitos harmônicos )* !'! "'- ),0%'*6    +   5'! espontâneo se gemeu, mediante pragalhão, que meio puxava pelo nariz6    + 187). [Lamento imprecatório por incertezas somado a um gemido instintivo e ao resfriado do personagem]. 5!'$*-*0+!-#0)/) *+!'*1'*!+!-/0-1+!'*&2*0 pelo depois, nos mal-ficares. Suspirava, por forma breve6    +  5Rão ora gratuitamente embevecia-se  em sua fisionomia quadragésima-quinta  inclinada pessoa, mais fraca que o verbo concupiscir. Tinha a cara de quem não suspirou6 +   5 7Eu não sei o quê.8 Suspirinhos6    +    [Expressão do sentimento do indizível ou do sublime, não parafraseável, pois aí cabe o infinito]. 5Suspirava --!) * ! !.--!) * * 1'*6    +   [De cansaço? De frustração? De anseio? Ou suspirava simplesmente?]. 5! % %  3'/%( -/ esquecera-se de trazê-la. Ocorreu-lhe espirrar6 + [Em desejo provável de expulsar de si, simbolicamente, o mal-estar do esquecimento. Ou haveria intenção de dissimulá-lo, talvez até para si mesmo?]. 5!)$0(*$)!(0($ 7 8  fez. Sério. Dera um espirro para trás6 + 59 5 7Não posso é com o tal deste rio!8  tanto tinha dito o pai, João da Areia. Sacudiu dos dois lados os cabelos e somente riu, escorrido cuspindo6 + cuspiu6    +  5Riu do que não sentiu; riu e não  5 Se bons e maus acabam de coração ou de câncer, concluo em mim as duas causas...  e coçava-se a raiz do nariz, isto é, o hilo dos óculos6 (ROSA, 1985, p. 130). 5,0!-% ter um relógio e arranja jeito de se coçar o fio das costas, !./1.!(+-!(!%**("*(!6 +. 204). [Suposto sinal de mente e espírito adaptáveis e flexíveis]. 5%*se coçava os dedos das mãos6 + 5 Você evita o espirrar e mexer da realidade, então foge-não-foge...  ele disse, um pouquinho 59 Quanto ao espirro, à parte o contexto imediato, mais importante, dicionários de símbolos, como o do Chevalier (1995), fornecem pistas utilizáveis. Ver também Leonardo Arroyo (1984, p. 243). 95 piscava ;  (  ( :Plorava, que quase; só piscou depois;    :*,' &2' !7&,. ' )- $" .#&" (* (&+* &% .&# "* '  )- precisava, só sacudia as pálpebras, com tantas rotações no pescoço; gesticulava para nenhum interlocutor; rodou, rodou, no mesmo lugar, passava as mãos nas árvores; ( 104). [À revelia quiçá do autismo do personagem meio enlouquecido, exasperante para a razão e para a linguagem enquanto máquina de produzir significados, trariam os gesticulejos algum recado?]. :#+ (*/++ ' !-#'* '& *'&, )-% se acocorava. [Plausível índice de confrontamento amigável]. Redizia:  Correta obrigação...  a barba não o obstando de inchar bochechas;    (   [Algum vezo ou cacoete ou exercício (inconsciente) de Sarafim? Todos, de qualquer maneira, burlescamente evocativos da tarefa-vocação de tocar o berrante, que, por sua vez, está posto em analogia com a trombeta dos serafins].60 :-#.%+-,*soluço, do qual mesmo não se percebendo noção;    (   :#&"0 (*'++!-# +*.# fechada a gestos, $&'',%(''%'')-+%$".-+%'*,; (  [Conforme já o demonstra o passo anterior, com esta mulher-fantasma, a comunicação não verbal é difícil ou impossível]. : &,+%,#&"+#'%-$"*Dessueta nos trajes, sem gestos  ; (ROSA, 1985, p. 200). [De um lado, a dificultosa leitura das roupas antigas, de outro, o horror absoluto da ausência de orientações gestuais].61 Acaso o leitor não defere às minhas decodificações? Bem, já o ensinava Stendhal  ( :&3%#+# 5#$(*'.*')-.#4&#('*)-!*$%&,+(++'+ que têm necessidade de vê-$+2'!+;*#&#*+%$5#%#&"1(*,1)-$)- me lê não terá escapado o grande desconchavo desse recurso literário em Guimarães Rosa: as evidências não são tão evidentes assim... O defeito está na língua que as redisse ou na antena '""+ #&"+ +2' *#+5.#+ (* *!+'&   (     -% + ,% '%' :+!* 6&#'   #&#,#.';')-&2'3'+')-#(*'-(':++'(**,*&%&,-%,*'%,#%!#&0*#; 61 Não há, explicitamente, risibilidade no trecho. Mas é possível ter-se em conta que vestimentas já não mais em moda são, comumente, cômicas. O indivíduo parece fantasiado ou disfarçado (BERGSON, 2007, p. 29). 60 96 receptora que as (não) sintonizou (ROSA, 1985, p. 177), ou seja, nesta intérprete que não foi capaz de intuí-las e traduzi-las em sua figurada imediaticidade? Em uma e outra coisa certamente. Mas ouso dizer também que, por outro lado, o senão não está em lugar nenhum; a astúcia é que está na obra. Eis o jogo, eis o mistério: tudo está à cara, tudo está oculto. Quem tem olhos para ver veja... Toda essa configuração se deve a um fator, pelo menos, artifício inevitável: as evidências são aqui ficções (e de literatura já consagrada como altamente polissêmica), mediadas, elas próprias, pelo idioma; diversas, por conseguinte, daquelas que, em hipótese, exibem-se, instantâneas e infalsificáveis, na vida, e sobre as quais teoriza, prioritariamente, Umberto Eco. De mais a mais, como algumas das ilustrações transcritas acusam, toda essa semiose esquadrinhada não estaria, em Terceiras estórias, exposta em seus próprios limites e também confrontada com um mundo que se tornou arisco para ela, resistente, sim, teimosa, mas em crise? Já na seleção acima, desponta o delicado e quase impalpável senso de humor de Tutaméia. Com efeito, ainda sob aquela ordem geral de escassez de palavras, sobejam alusões a funções biológicas, fatores ou alterações orgânicas, gestos voluntários e/ou involuntários  alguns dos quais foram, não raro, associados pela teoria estética ao cômico dito baixo (PROPP, 1992, p. 21). Quase tudo aquilo que lembra a materialidade ou a corporalidade humana ou animal, o que é indispensável a ela ou próprio dela. Não que cada passagem isolada tenha o seu sal. Mas o acúmulo das menções e sua (aparente) gratuidade, repito, em texto tão braquilógico e de autor tal que não esperdiça palavras, diverte porque desconcerta, espanta  talvez mesmo afugente quem não vê aí atrativo algum: esgravatar narinas com os dedos [ou esgravatar dedos com narinas?] (ROSA, 1985, p. 194), [não] coçar(-se) (ROSA, 1985, p. 64, 130, 148, 157, 187 e 204), sentir comichão (ROSA, 1985, p. 136), espirrar (ROSA, 1985, p. 28 e 120), crispar o nariz (ROSA, 1985, p. 59), fungar (ROSA, 1985, p. 75), cheirar [a] (ROSA, 1985, p. 47, 56, 64, 69, 71, 102, 124, 133 e 210), [não] 97 tossir (ROSA, 1985, p. 75, 121, 129, 132 e 135), pigarrear (ROSA, 1985, p. 86 e 209), escarrar (ROSA, 1985, p. 65 e 113), soltar muxoxo (ROSA, 1985, p. 27), chuchar (ROSA, 1985, p. 207), soluçar (ROSA, 1985, p. 145 e 159), engasgar (ROSA, 1985, p. 64), bocejar (ROSA, 1985, p. 75, 84 e 166), rouquejar (ROSA, 1985, p. 43), [não] bafejar ou [não] exalar hálito (ROSA, 1985, p. 30, 61, 116, 125, 139, 145 e 157), gemer (ROSA, 1985, p. 187), gaguejar (ROSA, 1985, p. 73, 86, 88 e 101), fanhosear (ROSA, 1985, p. 164), [não] cuspir (ROSA, 1985, p. 63, 135, 154 e 161), babar (ROSA, 1985, p. 129, 194 e 207), [não] suspirar (ROSA, 1985, p. 35, 43, 129, 164, 194 e 206), respirar (ROSA, 1985, p. 19, 50, 61, 64, 72, 73, 100 e 199), ofegar (ROSA, 1985, p. 61, 70 e 130), tomar fôlego (ROSA, 1985, p. 34 e 187), soprar (ROSA, 1985, p. 19), piscar ou psiquepiscar ou descer os cílios ou sacudir as pálpebras (ROSA, 1985, p. 85, 104, 157, 165, 195 e 210), caretear (ROSA, 1985, p. 63 e 113), rir (ROSA, 1985, p. 74, 126, 135, 145, 154 e 179), chorar ou plorar (ROSA, 1985, p. 145 e 157), inchar bochechas (ROSA, 1985, p. 206), amaciar ou palpar a barba (ROSA, 1985, p. 19 e 37), sacudir os cabelos (ROSA, 1985, p. 154), dobrar em losango as coxas e pernas de gafanhoto (ROSA, 1985, p. 34), acocorar-se (ROSA, 1985, p. 125, 165 e 206), suar (ROSA, 1985, p. 61), abafar [o outro com o calor do próprio corpo] (ROSA, 1985, p. 56 e 89), [não] estremecer ou tremer [os dentes] (ROSA, 1985, p. 61 e 64), etc. Acha-se, nas Terceiras estórias, uma oposição daquilo que é culturalmente reputado alto com o baixo? Oposição esta de que, há milênios, se tiram efeitos cômicos (BERGSON, 2007, p. 38-41; BERGER, 1999, p.18, 30, 44 e 328; ALBERTI, 2002, p. 141 e 144)? Sim, mas ela é discreta e sutilmente assimilada, até porque Guimarães Rosa antes opõe estrategicamente, para juntar e fundir. É por isto que, se, de um lado, a escrita transita pela materialidade, pela imanência e pelo prosaísmo, sem que eles, preferencialmente ao menos, permaneçam como tais, de outro, o sublime também não levitará tão súpero assim. Por um 98 enfoque ainda mais nivelador, nesta obra que traz o selo da bagatela, tudo é pó e tudo está por ser levantado; isto é, a coisa em muito depende do receptor e seu ponto de vista; o que vale, portanto, para os itens socioculturais tidos por nobres: além do sublime ele mesmo, a poesia, o dito de espírito, a agudeza, a palavra, etc. Enfim, as ocorrências atrás listadas não são, de maneira geral, manifestações simbólicas intencionais, mas sensações ou forças arbitrárias ou movimentos (mais ou menos) automáticos ligados ao processo vital, etc.; há exceções, como as piscadelas feiticeiras e, ao que tudo indica, voluntárias da mulher de Zepaz; contudo, em muitos passos, este incluso, o fenômeno é fronteiriço, situa-se entre uma coisa e outra. De qualquer maneira, vem a centro o que há de mais prosaico na vida humana  titicas a que, amiúde, não se presta atenção ou não se atribui significado nenhum, tirante aquele, óbvio, da pura causalidade ou necessidade física. A graça, perturbadora, está, por conseguinte, no absurdo, nessa relativa superabundância de minúcias tidas como in-significantes e, de fato, recalcitrantes à linguagem interpretativa. Não se percebe facilmente se há e qual seria a contribuição delas ao sentido. Por exemplo, na sentença 5 $se coçava os dedos das mãos6 % , qual o móbil estético do registro por mim sublinhado e o que poderia conotar para além do que denota?62 Uma resposta possível é a de que não conota nada; exatamente o que se faz é aproximar a linguagem da literalidade, expressando assim a exterioridade da coisa, arredia a 5!!)1#absurdum ( #  ! )'!"#)5%$'($''6#%$( !,%!  2#(&*!$(*'$(!$&* dicen las personas que son sordas a la razón. En tal caso, el término sería aproximadamente sinónimo de irracional. Sin embargo, se vislumbra otra interpretación más interesante: lo absurdo es sinónimo de una visión de la realidad que tiene su origen en la sordera misma; o sea, una observación de acciones que ya no van acompañadas del lenguaje. Estas acciones carecen, precisamente, de sentido. Las personas con una capacidad auditiva normal pueden reproducir fácilmente esta experiencia si apagan el sonido de la televisión: los actores siguen afanándose como antes en la pantalla, pero la mayor parte del tiempo resulta imposible determinar el sentido de sus acciones. El efecto suele ser cómico. Por el mismo motivo, acciones con un significado evidente cuando van acompañadas del lenguaje se vuelven problemáticas de repente. La sordera problematiza6 % $negrito é meu). O exemplo da televisão encontra afins em Bergson e Rosa: 5() )%'"$( $( $*+ $( $ ($"  "3(  #*" (!.$   ! %' &* $( #/' #$( !$$ #$( %'/"' 1*!$(6 % 5 "($' $"$$"3( $)'-($((*'$( ou o surdo atrás dos #/#)("($"0# 6 %  Há que se investigar mais, em Tutaméia, esta conexão entre o absurdo e a perspectiva ou, quando menos, o motivo da surdez. 62 99 um sentido que se situe para além das aparências  !)& "! *     63 Como vinha dizendo, há certamente algo disso, mas não creio que seja a orientação mais forte ou, ao menos, a inclinação dileta da voz autoral de Terceiras estórias. O que estas sobremodo valorizam é a invenção, esteja ela assentada em uma metafísica da linguagem ou em coisa alguma  ambiguidade da qual não há interesse nem humorístico nem estético nem filosófico e, às vezes, nem mesmo religioso em sair. A ideia de fé só tem razão de existir porque há dúvida. Dúvida e fé interpenetram-se e interestimulam-se; retroalimentam-se. Menos que a resposta, o que importa, no pequeno livro rosiano, é o jogo e a pergunta, as viravoltas e os pinotes do pensamento: )! e finge primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito será que basta? Meu duvidar é uma petição  #*     !#"   )  %$*: de patacoada e hipótese, nunca há fim (ROSA, 1985, p. 125). Em tempo e a propósito, dou discussão à famosa passagem: )Meu duvidar é da realidade sensível aparente  talvez só um escamoteio das percepções* (ROSA, 1985, p. 165). O pensamento encantoa o trabalho estético-filosófico de duvidação de Guimarães Rosa em Tutaméia (para deixar de parte as demais peças do escritor, como um Grande Sertão: Veredas)? Bem, antes de tudo, seria apropriado silaba ) "#*!' titubeio sobre titubeio. O fabulador desconfia de que aquilo de que duvida seja talvez, por reverso, o contrário mesmo daquilo para o qual aponta a seta da hesitação: a vida, por ventura, consiste somente nisto que se fenomeniza, pura imanência. Se se enfraquece na leitura o ) "#*í, sim, fica mais fácil defender que Rosa deita na página a asserção de que está fora do horizonte de sua suspeição sistemática a essência ou imo da realidade, seu sopé metafísico. Mas boto indagação: onde se localizariam, concretamente, na estória x ou y, a epiderme 63 Como se sabe, esse literalismo ou inessencialismo linguístico esteve em voga desde a vanguarda, fazendo presença, sempre matizada, em autores como Fernando Pessoa (Caeiro), Kafka e Clarice. Que eu saiba, não se aprofundou ainda o exame do lugar do ironista de Cordisburgo nisso tudo e entre seus pares, bem como, por exemplo, as relações entre a morfologia onírica, a abstração de cores e as descrições geométricas de Tutaméia e a pintura experimental do século XX. 100 (sensível) e as entranhas (transcendentes) da realidade? Ou: a partir de que ponto se supera a exterioridade e se atinge a interioridade? Se aparência e profundidade são, eventualmente, e de forma momentânea, categorias absolutizadas na obra rosiana, não se desquitam por isso, sem mais, de sua relatividade (insisto que é nesta mobilidade, nesta folga de rigores absolutistas e relativistas que o ironista mineiro gosta de instalar, de modo marginal, portanto, seu faz de conta). O que é o bojo do real sob uma mirada pode ser ainda esmalte ou casca sob outra; e isto infinitamente. O descascamento, quer da objetividade, quer da subjetividade, não constitui processo completado nem completável. O fundo  sempre vislumbrado pela fé, é verdade  nunca se manifesta linguisticamente como um achado; está sempre, um dedinho que seja, mais além. Há descobertas, paragens, insinuações, intuições, porém, mais cedo ou mais tarde, mais cedo do que tarde, a travessia recomeça. Isto de que Guimarães está propenso a duvidar, esta superfície, enfim, é nele profunda o bastante para que se torne possível convulsar e baratinar, criativamente, estabilidades sígnicas mais ou menos socializadas. O seu questionamento da aparência costuma apresentar corrosões fundamentais da própria oposição mesma entre essencial e fenomenal, verdadeiro e fictício. À guisa de síntese: o à-toa há de desempenhar-se (ROSA, 1985, p. 90). Terminar de inventar a passagem do prosaico para o sublime: eis o trabalho proposto ao leitor implícito.  ! &  (% !   ! )        criar. Ocupação peralta que é, em larga medida, desocupação (ROSA, 1985, p. 121). Louca, entre outras razões, porque em muito se concede que talvez nasça do nada, de fundamento nenhum, embora se possa também dela esperar tudo e nele crer, de sorte a apostar que alegria é centro e tristeza é de- ( " # !" )  $ somente desse modo lúdico que, ao meio, encruzada de resignada angústia e ardida esperança, o sagrado, migalhufa coisinha, bota-se enorme (ROSA, 1985, p. 202). 101 3      ALETRIA E HERMENÊUTICA Até que a luz nasceu do absurdo (ROSA, 1985, p. 173). -se cócega e mágica, para se poder     . O primeiro prefácio das Terceiras estórias defende a ideia de que certo tipo de humor pode funcionar como medianeiro entre o prosaico e o sublime. De jeito mais preciso, as anedotas de abstração seriam catalisadoras de uma razão alargada, do alegórico espiritual, do pensamento mágico, do suprassenso, enfim, de uma série de noções próximas, posto que não idênticas. Já se vê, de saída, que a escolha do humor como objeto não encontra nele seu próprio fim  daí, inclusive, o recorte temático em anedotas de abstração. O que importa não é tanto o riso, mas a graça; o afrouxamento programático da razão ou uma ruptura mística com ela, salto para uma realidade superior. Essa instrumentalização do procedimento humorístico desbarata o caráter liberador do riso (visto que Rosa não tem mesmo por finalidade a fabricação de um artefato de literatura enfunado de gargalhadas)? Estou a calcular que não. Se é verdade que não se tratam os ditos de espírito como um fim em si mesmo, isto não implica cerceamento, interrupção ou dessubstanciação da vivência psicológica e corporal do agrado humoresco, ambíguo muitas vezes: entre gozo e angústia. O viés é, aqui, qualitativo, ficando de lado, abstraída, a questão da quantidade de riso (de qualquer maneira, pode-se rir pouco, mas bem). Em suma, é porventura quando vivido (e intuído) até o fim  risada e meia (ROSA, 1985, p. 7)  que o humor poderá servir de trampolim para o hiperfísico ou o sobrehumano ou o sagrado ou - :64 Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já 64 É assim que Guimarães Rosa grafa o vocábulo, incrementando-o com um acento, ele mesmo, nada prosaico (ROSA, 1985, p. 7). 102 usada [anedota], qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência." (ROSA, 1985, p. 7, os negritos são meus). Bom acrescentar, por outra, que humor intelectualizado, fino, moderado em tom e número (e, neste último quesito, as aparências podem ser ilusivas), não redunda necessariamente em riso domesticado ou normalizado.65 O absurdo, matriz de muitas das   !Aletria e hermenêutica"  abalar desde o fundo a sensatez do leitor, sacudindo-o com risada desquieta e incomedida? Michel Foucault (2007, p. 12) riu durante muito tempo ao deparar-se, em obra borgiana, com uma estranha catalogação de enciclopédia chinesa. Era-lhe claramente impossível pensar aquilo (FOUCAULT, 2007, p. 9). Neste balaio, aliás, ponham-se também os koans. Ao estilo do primeiro prefácio, herdeiro modernizado e modificado da clássica urbanitas, é inerente o sinete de sua origem social e cultural privilegiada. O lugar de fala do prefaciador é, presumivelmente, um grande centro citadino do Brasil: Rio de Janeiro, se se quiser instaurar conexões biográficas sem maiores rodeios.66 Mas esse riso de classe, sugestivo de liberdade e originalidade; distintivo de e-rudição, elegância e certa aculturação europeia; simpatia, encanto e espírito; típico, a princípio, paucorum hominum, de um seleto círculo de iniciados, projeta-se, ao mesmo tempo e instavelmente, no bojo do mais abrangente e, quiçá, universal (?); isto por meio do temário e de inúmeros princípios construtivos que forcejam para incorporar o heterogêneo (outridades de sexo, origem, língua, classe, humor, racionalidade, etc.). Ainda que eu tenha a impressão de que se loca no gênero substancialmente narrativo, ou seja, nas estórias o perfazimento ou clímace desse processo (pelo menos lá sua consumação é mais perceptível), não seria impróprio reconsiderar, para 65 Tomando o livro in globo, a bem dizer, certas vezes, pouquíssimas, o contador, a medir por seu próprio            !      "  1985, p. 172). 66 O texto ajuda, é verdade. No gracejo do basset, constam duas regiões geográficas sabidamente axiais para o Guimarães Rosa em carne e osso: a cabeça do cachorro está no Rio, a ponta de seu rabo, em Minas. Beliscada a ponta deste, a cabeça pega a latir (ROSA, 1985, p. 9). 103 maior precisão, que o lugar de fala do prefaciador seja culturalmente mais amplo; e que o coração de sua sensibilidade e intelectualidade esteja tanto na metrópole quanto no sertão, tanto em Minas ou no Rio quanto no Brasil, tanto no país quanto no mundo, etc. Mas retorno ao proêmio rosiano, reproduzindo, na íntegra, a doctiloquia do segundo parágrafo: A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da                 graça   sentidos de gracejo, de dom sobrenatural, e de atrativo. No terreno do humour, imenso em confins vários, pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosáico, é verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em Chaplin e em Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento. (ROSA, 1985, p. 7).  ""$#%'Está-se a achar que se ri(        #      !  conceituais, sustentaria, por meio de formalidades lógicas bastante convencionais (?!), o alargamento da razão. 'Aletria e hermenêutica( -fação como locus da teorização, da reflexão e da metalinguagem, encerra notável cunho argumentativo. Sob certa mirada, o êthos marcadamente intelectual de escritor culto, que (a partir de um essencialismo linguístico?) estima ver razão, conexão, nos significados aparentemente isolados do termo graça, tende a contrastar, à maneira cômica, com sua defesa de uma lógica excepcional e do suprassenso; igualmente, sua linguagem de scholar, empenhada em persuadir e carregada de trejeitos acadêmicos e científicos. Repare-se. A exposição prefacial, nos trechos citados acima e abaixo, envolve, entre outras operações, arrazoado semântico (suturado quiçá a uma metafísica da linguagem), exemplificação, relação de causa e efeito, limitação tópica. Conquanto o autor inicie cauto e 104 condescendente, aventando a hipótese de que o chiste talvez sirva a novos empregos, logo apela para um rec&% !$%+& ,%!-)*#*+ 8-)9 "0 8 $&& )%9 *+#! (?!); e também para Chaplin e Cervantes (precipuamente, é de supor-se, para o Carlitos chaplinesco e o Quixote cervantino). Normalíssimos argumentos ad judicium/ad auctoritatem portanto. Claro, é %+*')4')! !+(,*)-!)0&#6!&#!+&)&$&8mão de indução9, 8instrumento de análise9 &, 8frio exame9 (ROSA, 1985, p. 8) nos 8tratos9 da poesia e da transcendência. Guarda-se a livre opinião e requer-se daquele que lê a mesma frialdade analítica, a mesma imparcialidade matemática.67 & %)%) *, 8razoável [sensata, coerente] classificação9 & '%*&)    !)$) (, * %&+* * !-!$ 8naturalmente9 $ +&)!* &, 8tipos certos9 (ROSA, 1985, p. 7, todos os negritos são meus): Não que dê toda anedota evidência de fácil prestar-se àquela ordem de desempenhos; donde, e como naturalmente elas se arranjam em categorias ou tipos certos, quem sabe conviria primeiro que a respeito se tentasse qualquer razoável classificação. E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz sugestiva  demais que já de si o drolático responde ao mental e ao abstrato  a qual, a grosso, de cômodo e até que lhe venha nome apropriado, perdoe talvez chamar-se de: anedotas de abstração. (ROSA, 1985, p.7). Como a ratificar toda essa veemente vocação cerebrina (e, às vezes, sentencial), prefere vincular o drolático68  tudo aquilo que provoca o riso  ao mental e abstrato, moldeando-se assim também com o pensamento moderno: apenas até o século 18, o riso foi conectado, preferencialmente, como efeito, a alguma emoção ou paixão, por exemplo, a 67 Curiosamente, para Bergson (2007, p. 92 e 95), a frieza, o formalismo, o linguajar científico e dissecatório são qualidades essenciais do humour. Sua interpretação e balanço disto tudo, não obstante, é diferente do que se desenvolve nesta tese. 68 Por que esta opção de cariz estrambótico ao português? O vocábulo tem ascendência imediata no francês drolatique  8%)2&9 $!6 ",*+$%+ '#& *'+& *!%,#) '!+&)*& !/))& Drôle, de origem derradeira nada vulgar, viria do neerlandês medieval drol8 &$$&)&'(,%&98,%9(,)!-)! por sua vez, do escandinavo antigo troll  8!%+9    '   $ &##&) $!* $'#$%+ europeu, consistem os trolls em monstros, ogros, duendes, gigantes, espíritos do mal, entes mágicos e disformes que habitam grutas, montanhas, etc. Julgo que não seria caçar cabelo em ovo pretender enxergar aqui, exatamente na entrada do prefácio, uma alusão ao (cômico) grotesco de Tutaméia, com seus seres subterrâneos, corcundas, cox&*%5*)%# 5*"1&'&).$'#&3,$8&)&9 '  105 alegria (ALBERTI, 2002, p. 39, 159 e 161). Adiante, porém, não deixará o autor de estabelecer relações muito sutis entre humor e páthos. Em resumo: haveria, nest !'%"'"  .Aletria e hermenêutica/ (  "#"&+*" !'% cômico  o assunto-apancadado  e sério  o escritor-teorético. Conquanto toda esta divergência entre forma/êthos e conteúdo seja aparente e, numa palavra, enganosa, é chamativa e matreira o suficiente para provocar o riso. Não foram poucos os que lobrigaram aí, na arte de exibir gravidade ao tempo que se vai soltando larachas, o colorido típico do ( "% &"! .o verdadeiro humor tem um ar sério, enquanto todo mundo ri em volta dele/    #   #%&!'!" %(!&#' !' &( #%"#"&+*" brividente (da perspectiva do senso comum, para o qual a blague é sempre trivial), o piadista vai abocanhando pelas bordas, ganhando tentos na comicidade de superfície. O racional e o risível serão contrasteados novamente, digo-o de passagem, na formação da persona do Palhaço da Boca Verde, comediante (quase que) contra a própria vontade. A antonomásia .'%#&/ $(e ri desde ou até as tripas?) só pode ter, pelo menos até o (controverso) desenlace apoteótico, sentido irônico: . Ele nunca teve graça, o que divertia era seu excesso de lógica.../985, p. 132). Lógica ex-cedente, ," &. Se bons e maus acabam do coração ou de câncer, concluo em mim as duas causas.../ 1985, p. 130). Desta vez, um conteúdo ou uma subjetividade dramático-racional, até mesmo trágica, sente-se mal entrosada na forma clownesca, e é em muito por isto que esta se torna grotesca e faz comédia. Boca Verde, plausivelmente o do palco, patentemente o da vida, é palhaço por não (querer) ser o palhaço que é, (como se) por falta de arte; como se a ausência de técnica fosse a sua própria técnica, enquanto o criador do prelúdio tutameico tem a pinta do connaisseur e é, ele mesmo, por excelência, um humorista; está em seu métier.69 O contrapalhaço terá, no entanto, seu instantezinho de alumbramento: .% " "    o ser ridente e ridículo  &!""&(%""&#" $(  !'&&'%,/ # "'%)  que se lhe espedaça a máscara do sério e do sóbrio, sobram os estilhaços do que ele é: humano-histrião, nada... 69 106 Mas, enfim: é, na verdade, profunda a sintonia entre a teoria do humor engendrada e a linguagem poético-racional, retórica, e não apenas lógica, empregada para expendê-la; entre os aspectos analíticos, discursivos, reflexivos e os sintéticos e intuitivos. Em que pese a fleuma de filósofo, a voz autoral não possui comprometimento lógico austero com sua teoria  e sim poético.70 Num escrutínio continuadamente aferrado ao texto, outras e mais ambiguidades ressaltam, delineando um sujeito entre afirmativo e duvidante/indagador. Retomo passo já mencionado com acréscimo final: [...] e como naturalmente elas se arranjam em categorias ou tipos certos, quem sabe conviria primeiro que a respeito se tentasse qualquer razoável classificação. E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz sugestiva  demais que já de si o drolático responde ao mental e ao abstrato  a qual, a grosso, de cômodo e até que lhe venha nome apropriado, perdoe talvez chamar-se de: anedotas de abstração. Serão essas  as com alguma coisa excepta  as de pronta valia no que aqui se quer tirar: seja, o leite que a vaca não prometeu. (ROSA, 1985, p.7, os negritos são meus). É reconhecida a mediania da classificação, apenas razoável [= regular], e seu caráter rudimentar de esboço; o autor sai-se ainda com um rótulo assumidamente provisório: anedotas de abstração. Esta despretensão e flexibilidade insistente (e o discernimento rosiano sempre foi tão infenso a catalogações) contrastam com registros catedráticos mais assertivos e culminam com a definição rápida, obscura e absolutamente gracejante do conceito. O pensamento mágico, a invenção-verdade do próprio Guimarães Rosa, segue crescendo em corpo. Se esse êthos materializado na linguagem torna possível, sim, a autoironia, esta não se dá, entretanto, em viés derrisório, como a impactar-se contra a opinião, esvaziando-a. A fala Apesar dos pesares, da heurística negativa, talvez tenha sido justamente por meio desse representado personagem, em vestes mortuárias de truão festivo ou em trajes de Adão, de acordo com a variante, que ele tenha podido aprender alguma verdade de amor (ROSA, 1985, p. 132). 70 A observação presta-se ao    Primeiras estórias, que é um primo- Aletria e hermenêutica              Sob o influxo intertextual de Tutaméia, revelou-se bem mais, para mim, a autoironia e o humor insólito daquele discurso. 107 toma certo distanciamento porque procura corroborar e encenar aquilo pelo qual ludicamente propugna: uma razão escanchada e que reconhece seus limites. 71 Parece que, se o humorista ironiza seu próprio pensamento, assim o faz não tanto (ou não somente) para enfraquecê-lo, mas (também) para reafirmá-lo, ainda que naquele espaço que lhe é possível: o de sua precariedade. Não apenas por meio da fé, mas também por meio da razão, o narrador pleiteia, em certo sentido, a superação da razão; em algum grau, esta consente logicamente que o sagrado a despasse. Este descômodo de uma razão que, ao menos à primeira vista, investe contra si mesma não é tratado como defeito ou contradição paralisante que invalida o discurso, mas antes como certa exigência de sua profundidade. Se toda estreiteza é rechaçada, se determinado uso naturalizado e doutoral da racionalidade é comicamente arremedado, esta é, por outro lado, vivamente integrada em toda sua maleabilidade. A tessitura do prefácio mostra-se cônscia da dinâmica de uma razão liberada que trabalha sempre para provar que não deve estar sempre a trabalhar; razão que pensa que deve pensar de modo diferente, atravessar o absurdo até ir além de si mesma, superar-se e suspender-se temporariamente. Dito de outro jeito: o elogio do suprarracional não reverte em irracionalismo ou desapreço dos movimentos da razão; há, simplesmente, uma recusa a confinar-se nela, que, alforriada de rigorismos e bafejada de imaginação, flerta com a loucura e jogueteia, no texto, com a poesia; caminha ataviada com o tradicional aparato persuasório que concede e provê, mas bastante desautorizada em seu alcance. Por conseguinte, as 8,'"+9 8,)++&#(&#(98,"+98+#+3 (+498 1+&-.+98(' .'#+98+#+ %+!+,)+',*.'(,&('-/%((.3&'#+*.&( 198,++'"+9  )    ('$-.+( *. ( /+( '( ,!.'( )+2!+ ( ( )+ 2#( -'( (&( ($-( 8(, )%'(,  %6!#9 )(,, ,#!'# #+ 8%+!+9 8+#+ (& /#(%5'#9 8)+-#+9 8-(+'+ &#, %#/+9 8 +(.0+9 8,('-+#+9 8,(',-+'!+9 (. #' 8,%(+9 8,/#+9 8(' .'#+9 8&-.+9  /(2.%( ressurgirá, mais uma vez, em sentido próprio, para pintar um personagem caldeável com este modo de pensamento: a cantarina Aníssia, que, cavalgante, escancha-, 8,%4 (&( .& %#-  %/(+9  1985, p. 70). O Chico temulento também tem as pernas apartadas por força das circunstâncias; elas são índice de equilíbrio e desequilíbrio, de sua lassidão de bêbado e de seu trabalho de bolantim. Todo esse andar ziguezagueante é imagem sensível de sua forma espandongada de ver e pensar: 8"#(,#'.(,(-+&'( *./%#&-(+#'-+ ,-+-'-(,)+',9 ) . 71 108 pilhérias são retiradas de sua condição usual de insignificância  nonada  não porque destroem a lógica, mas porque ou a distendem ou a escancham ou rompem interinamente com ela. De fato, se, como o restante do prefácio irá propor mais limpidamente, o que se busca é mesmo o que extrapassa o afrouxamento e, na fronteira, é salto para realidade superior, do pulo efêmero para o alto, retorna-se ao ponto de partida. Esta alternância entre uma razão de cenho desfranzido e o suprassenso é infinitamente retomada. O discurso racional é uma estação por que se passa, jamais se permanece e sempre se retorna. É bem verdade também que o sentido mais preciso da fala do prefaciador, em que pese sua autonomia, é melhor captado ou completado à luz das estórias, sendo até mesmo revisto por elas; assim a ideia de pensamento mágico, mais inteligível quando em diálogo com !' $#(' $#('(+'('  (, ' ( '  ( 'Nós, os temulentos(, '     ( '     ( etc. Se o prefácio, sem embargo toda a sua mordedura persuasiva, já sinaliza que a mesma ideia está repassada de ambiguidade    " '%  %( muito mais o salientará as estórias. Pensamento mágico é conceito fléxil, polivalente e sintético, cujos cambiantes análise nenhuma não pode esvaecer. De certo panorama entre positivo e negativo, é todo juízo humano, toda imagem eventualmente corporificada na linguagem partejante de mundos (d)e significados (que sempre é mais ampla que a lógica). É consequência do engana-vista intrínseco às circunstâncias existenciais do homem ou é a própria ilusão, seja ela pranteável ou não; solicite ela alegria (por uma infinita operação inventiva), nostalgia, melancolia, senso de comicidade ou miudeza, etc. É também espécie de lógica mais frouxa e, a partir daí, de onde em onde, sofisma, mentira, ideologia, trapaça, enredo, diz que me diz que e toda manipulação linguística fundeada em equívocos ou ficções (mais ou menos malintencionadas, mais ou menos conscientes). Finalmente, como o preâmbulo hermenêutico de 109 Tutaméia agora privilegia e ainda fará ver, é aquela meta ou para ou supralógica em que se revela uma mistura criativa e feliz de beleza, verdade e invenção. Feito palavra ou silêncio ou modo de ser, dono da miragem e capaz de brincar com ela, o pensamento mágico pode consertar ou engendrar a realidade, e de tal modo que pareça raiar misteriosamente com alguma intuída verdade. Não por acaso vem a quadrar com certa compreensão rosiana de fé: " a, à qual o universo é plástico#     Não que fique de escanteio por aqui, nestes píncaros da transcendência tutameica em que ainda há cabimento para a palavra, o humoresco, o irônico e mesmo o ridículo. Certo sobreaviso já vem estampado na primeira página: alguns dos semi-heróis e magos das estorietas terão algo de chapliniano e cervantesco; Seô Quim e Romão, bem evidentemente. No que respeita ao Cavaleiro da Triste Figura, pode ser útil o retrato que dele compôs Henri Bergson, sem que se tenha que importá-lo in totum para cá, até porque se pega a uma concepção de cômico bastante impressionista. Alguns dos traços ali pincelados se ajustariam a personagens como o Gouveia, Edmunda, Jó Joaquim, Tio Bola, etc. Para o pensador francês, a comicidade quixotesca é aquela do sonhador cândido, do louco risível e estranhamente razoável, do espírito quimérico e exaltado que tropeça na realidade enquanto esta o espreita maliciosamente (BERGSON, 2007, p. 10). Nem seria de qualquer tipo a lógica que preside o absurdo das ações e feitos distraídos de D.  !   "em pretender modelar as coisas a partir de uma idéia, em vez de modelar as idéias a partir das coisas. Consiste em vermos diante de nós aquilo em que pensamos, em vez de pensarmos naquilo que vemos# (BERGSON, 2007, p. 137). Imaginal ou miraginal que seja, o mundo dobra-se ante uma inversão do senso comum similar, principalmente, ao estado onírico ou sonambúlico, mas também a algumas formas de loucura, como a ideia fixa (BERGSON, 2007, p. 137-139). Seria, pois, uma forma específica, esquipática, de idealismo teórico-prático o pensamento mágico rosiano? Sim; deitando contas, porém, cuido que aproveita ainda às 110 Terceiras estórias aquela variância que Antonio Candido (1971, p. 126) enxergou no Grande Sertão $ 3+ * #- ' 4$0(  - >.0(,";.(- #$ #$18- #- +3,#- %;1("- ao estado moral do '-+$+?  %-( - .0<.0(- (-! *#- /3$+ 00 ,)-3 #$ #(6$0  > !$ - 1$,'-0  1$028- : -,#$ - pensamento da gente se forma mais forte que o poder do *3& 0? . $ -320- * #- ' 4$0(  - .0(,";.(- #$ /3$ >- $028- % 6 - '-+$+? - +$(- %;1("- $ 1-"( * #$.$,#$ - >#$12(,-? $  >. 32 ? 1ertaneja (CANDIDO, 1971, p. 128 e 123). Não se encontraria também em Tutaméia esse campo de forças reais e ideais, materiais e espirituais? Passem-1$.$*-"0(4-, 00 2(4 1"-+->11$1 -.$1? >00-(--das-,2 1? >-.0-11$&3(0? >  ( $3?  > 00  #   " ? >(,'7 $" # ? >12<0(  , o ? >12-0((,' ? >7 , 1 " +.(, 1? >3 #0(,'- #$ $12<0( ? >-8- -0:+ - "0( #-0 #$ .$031? > 4$*  - #( !-? >-2 $! 0* ?>0-$,' ?$+3(2 1-320 1 E recupero, enfim, a discussão sobre o molde poético-racional, místico-retórico de >Aletria e hermenêutica?-+-%(+#$$1"3# 0 2$1$#$/3$-"-+.0-+(11-#-.0$faciador com seu ideário é antes estético e translógico que lógico, rabisquei acima que a definição de uma das noções-$1. #(*'  #- .0$%7"(- :&0 "$) ,2$   >Serão essas  as com alguma coisa excepta  as de pronta valia no que aqui se quer tirar: seja, o leite que a vaca não prometeu? Rigorosamente o que diz o ficcionista é isto: será anedota de abstração toda aquela em que algo é retirado. Ora, isto soa mais como paródia da atividade taxinômica. Sob perspectiva classificatória, pouco se esclarece  apesar da contextura de refinado intelectualismo. Conforme usualmente se previne na arte da classificação . * 40 >"-(1 ?: de uma imprecisão que tudo e nada designa. Mas esta largura do conceito, já em si meio infantil e brincalhona pelo que contradiz do propósito delimitador, tem orientação estética; logo o leitor descobrirá que ela dá liberdade à criatividade hermenêutica de Guimarães Rosa:  >"-(1  $5"$.2 ? .-#$ 1$0 3+  (#$(  3+ 2$+  . 0  +$#(2 98- 3+  (+ &$+ . 0"( *, um 111 objeto inteiro, um contexto, um estilo, uma forma ou estrutura, etc. Assim, não se trata aqui, sem mais, da abstração filosófica e psicológica ordinária, se bem que ela esteja incluída e mesmo em destaque (cf. a primeira das piadas). Aliás, é de notar-se, novamente, a colaboração de um processo de raciocínio, e convencionalíssimo, na produção do pensamento mágico rosiano. Para coroar tudo isso, sob enfoque seriamente metódico, essa explicação que abre o prólogo de Tutaméia é toldada porque Guimarães se abstém de discriminar analiticamente os três elementos que, grosso modo, interferem no processo anedótico: o emissor/humorista, o texto (no caso, escrito) e o receptor. Em qual ou em quais destas esferas sucederia a tal da abstração? Dá-se ela na mente de quem lê ou de quem bola a anedota? Ou ainda: algo seria retirado no texto? Por exemplo, por alguma de suas figuras, não raro, aliás, tipos distraídos, abstraídos. Os chistes e bromas que o autor &"'!"!  neles, dão margem às três possibilidades, o que torna, repito, plurivalente e intrincada toda a concepção. As anedotas de abstração são selecionadas  ou, enquanto tais, melhor se diz, inventadas  porque, segundo o autor, provavelmente tocam, de modo mais direto, a a!#  &e o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria'    $!  de toda a obra; e, sem dúvida, o paradoxo que exprime a esperança façanhuda que a fundamenta. A fé, a aposta, consiste em que a carência mesma de sentido  a razão de muita angústia  esteja a comunicar, miraculosamente, por um tudo-nada, a coerência do mistério criador e circundante. Possivelmente porque o silêncio e o nada são os vazios que dão ao homem a possibilidade de um livre (e efêmero) contato com Aquele que fabula; a margem para criar(-se) e ser verdadeiramente. É assim que as Terceiras estórias amam e se horrorizam com o despropósito. 112 Guimarães Rosa disse um "' .2# , #0!/'1,/ =deve se sentir à vontade no '+!,*-/##+0:3#) "#3# 0# ,!2-/ ", '+$'+'1, >    - , o negrito é meu). De modo análogo, exprime no morceau de bravoure reproduzido acima que, por um fio de cabelo, no meio de sua tarefa, de seu existir ao mesmo tempo monótono e sobressaltado, o artista, o homem, vence o medo do absurdo e se abisma alegremente em seu não ser, podendo, -/1'/":,-#//02*5%'!=99,.2# /#+,& '12)"%#+1#2*'+3#+87,> 1985, p. 90). A seu jeito, o ironista mineiro está a bolar uma confiança no sentido que nasce de dentro do absurdo.72 Com efeito, o Sentido não é disparatado em si mesmo e tão assombroso quanto o Absurdo? Dentro da perspectiva do verbo rosiano, pelo menos, haveria algo de absurdo no sentido e de sentido no absurdo, nada que é gérmen de seu contrário. #%2+",/#"'%#,-/;-/',=,/"'0 2/%,>#*= ?O verbo & o logos@>02#01/#'#1#01*#+1, acadêmico publicado por Vilma Guimarães Rosa (1999, p. 503): ,0#41/#*,0=(5"#0'0#*-/# se tocam, antes que tese e antítese se proponham>. Toda essa mirada capaz de transverter admiravelmente o ponto de vista  no caso, do nada para o tudo  será reencenada dos mais variados modos nas estorietas, chistes e dichotes do prólogo tutameico; é, na realidade, movimento cardinal do livro: =A vida é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas>    - ). De agora em diante, passo, então, a esquadrinhar )#+1#"*#+1# 0 +#",10 '+'!''0 "# =Aletria e hermenêutica> !,* 1#+87, #0-#!:$'! também às laçadas intratextuais. Isto tudo a fim de que se torne minimamente visível ao leitor a estrutura argumentativa risonha e hermética do texto, sua moção misteriosa ou enigmática: ,=#0#+/#",>0#*#'-se uma brincadeira diplópica estribada na elipse de uma vírgula e na possibilidade de 2*&'-9/ 1, =;,.2'*"#//2 "*#+1#02/-/#0,no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal > - ,+#%/'1,9*#2#0!;)',"#),+%#,*'00#+01,00'+)/'.2#,%)&2",#* meio à irracionalidade de tudo, deixava de crer (na mulher, na vida, no Sentido), abandonando-se, tombado e desfeito, a seu barro de Adão. No entanto, pergunto-me se Guimarães não imprime, na própria fusão do ser, em sua regressão ao informe, a refusão psicológica e quem sabe ontológica. Não está o protagonista, neste momento, =#+1/# ,'+#$53#)#,'+$+",>,*#0*,1#*-,.2#!:;,.2'*(50#)#3+13/#+2+!'+",6crença no absurdo e engendrando (quase que) ex nihilo, de algum modo já (inconsciente?), sua incrível fabulação. 72 113 do prosaico para o sublime, do não senso para o supersenso... ou não (porque por ora o que se enxergam são ainda aquelas tortas linhas). Em outras palavras: passo a debruçar-me sobre a heurística rosiana, sobre a bela inventividade da engrenagem poético-retórico-humorística do prefácio, absorvida pelo problema do absurdo e posta a serviço de uma mística e de uma estética do indizível que, ao fim e ao cabo, parecem estar aí para superar, pelo salto sobre a palavra, esta mesmíssima criatividade hermenêutica. Também a alegria, ao contrário do que possa parecer, é temática do que se segue: ela subjaz ao prazer heurístico do artista e pensador, à deleitação de ler o mundo e recriar. De resto, será averiguável que quanto mais a mão pesada e rude desta interpretante some, de maneira que a obra fale ou aparente falar realmente por si, tanto mais a hermenêutica se mostra verossímil. Quanto mais o significado lançado em jogo é ou parece consequência de uma in(ter)venção contrafeita ou de uma tentativa de entrar na marra sentido adentro (se é que há algum), tanto menor aquela mesma verossimilhança. Receio que algumas leituras, relações e esmiuçamentos sofram o risco da comicidade; de uma imprecisão típica de intelectual oprimida pela necessidade acadêmicomercadológica de produção de papéis; de discurso, e não de silêncio. É que se está defronte também de obra desconfortante para o juízo crítico institucionalizado e formal: num átimo, profusa de hiatos os mais ininterpretáveis, no outro, de juntas as mais súbitas e mirabolantes. Neste contexto, o esforço até pode estar em trazer à superfície a sugestão que dormita, seminal, no silêncio, mas nunca jamais em tornar o texto loquaz, falsificando sua forma por meio de um delirium interpretationis ou, em bom português, hiperinterpretação. Por outro lado, por estas mesmas páginas, já rocei o cômico muitas vezes, não tenho dúvida; na análise de uma obra de tal plana e, pior, a esta altura, muito mais risível seria recuar diante do risível. A criptoteca rosiana começa com uma anedota-pesadelo que parece reclamar, como todo o livro, menos uma crítica que uma onirocrítica; ou talvez ainda uma hermenêutica, ela mesma, repousada na sonolência: 114 Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua carrocinha de pão, quando alguém lhe grita:  A".5&, corre a Niterói, tua mulher &348'&*4/ ,/5$"45" $"3" &3480&(".%/'/(/B Larga o herói a carrocinha, corre, voa, vai, toma a barca, atravessa a Baía quase... e exclama:  A5&%*"#/5.:/-&$)"-/".5&,.:/-/2/&- *4&2>*.:/3/5$"3"%/&.:/4&.)/$"3"B 0. 8). Imbecilidade e heroísmo misturam-se de jeito inextricavelmente divertido e perturbador. O auge da estupidez mais inverossímil  trata-se de um genuíno nonsense impenetrável em seu minimalismo chistoso  coincide com uma efêmera e estranha heroicidade. De ponta a herói, esta é uma das transições que experimenta o personagem-ator da estorieta, a quem o leitor-espectador é instado a seguir para observar. Quando a voz berra, o viandante é retirado de seu anonimato e papel pequenito de indivíduo que, no curso ordinário da existência, labuta pela rua atrás da própria sobrevivência, impelindo para frente o carrinho de pão.73 Desde o início, portanto, encontra-se o ledor sob o discreto signo da máscara ou sub specie theatri (théatron  lugar aonde 3& 6"* 0"2" 6&2 ASiga-se, para verB <"02/0>3*4/ $"$/ 6&2#", 15& 4&- *.?-&2"3 2&33/.9.$*"3  -"*3 %*2&4" %&,"3 /$/22& &- A7/ %& ,-*2".4&BA&(5&-3&6&2/15&15*3&33&B 0 ).74 A formulação linguística do grito tem sutilezas importantes. Em primeiro lugar, um equívoco travesso: a concisão eficiente exigida pela pressa da transmissão da emergência fica prejudicada na sintaxe frouxa das frases, que deixa as relações causais indeterminadas; não se "%*("3 & "2"(&.3 %/ 42"#",)/ A%*"-a-%*82*/B    0  3:/ -"4<2*"3 %& ."22"4*6"3 $/-/ A/:/ Porém / $2*"%/2 %& 0&253B A2".%& &%&:/B A*0582*"B A*%" &.3*."%"B A/4" & #"2,"B A2&3"6&.452"B & A7/ %& ",-*2".4&B. Nesta última, que pode ser atada de modo particularmente iluminador à laracha do Manuel-que-não-é-Manuel, é destaque também a trajetória heroica. Da afinação entre os chistes e certas estórias não se deduz que o teor deles se assimila completamente a elas ou vice-versa; somente, postos lado a lado, ambos funcionam como fermentos recíprocos de reflexão. 74 542"3A/://2<-BA&-15&6*"- !B 0 A2*&.4";:/BA  vai-se não ver, e vê3&B    0   A34/2**.)"B A/* 6&2 '/* 6*34/B    0. 64); A2&3"6&.452"B A./ *2 " 6&2B 0 A*%"&.3*."%"BAVer a ver...B 0  A*.("2&3$"BA5%/6=- 6&2 !B 0 A5"%2*.)/%& &34>2*"B A5& 6&2 !&,&15&23&53/,)/30&23&(5&- !/ 4/%/4&"42/B 0  Lascas verbais, excertos microscópicos que se remetem uns aos outros são comuns em Terceiras estórias. Não é surpreendente que, em obra tão pouco acessível, possa haver tanta parecença ou repetição? É que o que se reitera não são tanto peças que vêm completar o sentido, somando, quanto pedaçúnculos que vêm espatifá-lo, dividindo; e assim também multiplicando... No diálogo com outras obras, igualmente, a citação pode localizar-3&.5-$*3$/%&'2"3&A.4&3"15*/342/0&;/33&".4/+"6"-5-" um, o mau diário bast".4&B  p. 186). A referência é neotestamentária A$"%"%*"#"34"/3&5 -",BBÍBLIA, 2010, p. 1208). 73 115 sabe se a mulher está louca porque a casa queima em incêndio literal  sentido primeiro, mais próximo do trágico , ou se a casa arde em fogo metafórico porque a mulher deu para louca  sentido segundo, mais próximo do cômico, efeito (também) da ambiguidade. Esposas meio birutas, às vezes verdadeiras megeras, são figuras comuns de Terceiras estórias. Em segundo lugar, é preciso notar que a forma da frase induz maliciosamente '!.! # '#%  $'%   (! "'%$ -,# % !"' %' # $&&"'  (.! 3lhe4 brada; 3tua mulher [...] tua &4 De todo modo, ouvido o grito, palavra que arrebenta a condição trivial, voz sem corpo, vinda do nada, o primeiro gesto do figurante, já transmudado em herói, é desfazer-se daquilo que o amarra à subsistência; em seguida, jornadeia com largura: corre, voa, vai, embarca e... quase atravessa.75 Se bem que temporária e irônica (devido ao desfecho da piada), por que a promoção a herói? O ex-figurante ouve de maneira excêntrica: intuitivamente abstrai, por completo, o contexto da mensagem, inclusive, o conteúdo semântico do 3tu4 que seria seu destinatário lógico: algum Manuel que tivesse casa e mulher em Niterói. Distraído (e, por outro lado, verdadeiramente concentrado), percebe, sobretudo, o cerne da função apelativa: Corre! Vai! Capta a urgência do socorro, a necessidade de uma ação, sem mais nada arrazoar: nem identidades nem interesses nem referentes empíricos. Escuta não o que a frase diz, mas a inflexão paralinguística de ordem, de chamado, que, secretamente, a ele também se dirige: alguém lhe grita. Por isso não deixa de ser, por um pouco, herói e Manuel.76 Com isso, repiso o mote: 3#!# &  )  (! )% &/ & $(&& $%"% '%).&%$%&"'$%&#"!4 $Ao ouvir na mensagem dirigida a outrem um apelo a si mesmo e agir, esquece sua própria individualidade e, como ator que é, #)!"'&($%$#&-0&"'%'*'(&3%&)"'(%43Iaí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais veloz que uma voz, ziguezagues de pensamento. Olhou para trás, não-sei-por-quê, à indominada supresa, de pôr $%#"'#&# #&4 $ 3$(+%43&#%#&!&!#&# #&#&'%"&&!a voz, que não #()"#4"'31'#"',#&)# '#( à voz a chamar seu nome [..4 $  #& negritos são meus). 76 Para uma entrada ainda alegórica, poder-se-ia talvez explorar a etimologia do nome e sua coloração bíblica. 75 116 torna-se outro, máscara admirável que, de certo modo, lhe faz ser mais plenamente; herói, reorienta-se. Quando menos tem personalidade  quando corre a Niterói e abstrai quem é tanto quanto quem não é , mais empreende, existe, faz: quase atravessa. Eis um vazio maravilhosamente navegável (ROSA, 1985, p. 47). Quando, embora ainda confuso, tem mais certeza de quem é ou de quem não é , estaca. De fato, o deslocamento, que é físico e psicológico, não perdura. O retorno ao senso e à autoconsciência  a saída da estultice aguda, sob certo foco  corresponde à interrupção do ato heroico, que não se conclui: regresso à figuração. Ao final, o padeiro-entregador deixa-se entrever em todo o seu desprovimento. A recuperação da identidade (se é que advém) dá-se em negativo: não se chama Manuel, não mora em Niterói, não tem esposa e nem mesmo casa. Encontro ou desencontro de si? Perda ou recuperação de sentido? Esta personalidade destituída dos atributos do outro é resultado, ao mesmo tempo e paradoxalmente, do aborto do insight e do lampejo rompedor de toda a idiotia, pois o ápice do nonsense ou da desorientação é também, em outro plano, a máxima orientação. O contexto de Terceiras estórias, a mão de Guimarães Rosa, transforma o tipo celebérrimo do asno inveterado  o Manuel das piadas  em enigma, em incógnita algébrica (ROSA, 1985, p. 8). Uma vez inserida no texto, a anedota ganha, ipso facto, novos e diferentes sentidos, nuanças tutameicas, sabor rosiano. No entanto ocorre também outro contraste transtornante que é essencial para a complexidade do efeito cômico da estorieta. Não basta dizer que, na assim chamada punch line, se mete um sopapo tanto na expectativa racional quanto na expectativa humorística do receptor, levando-as a nocaute.77 Na última frase, o justo instante em que Manuel-que-não-é- 77 A expectativa humorística é aquela pertinente à tipologia textual; ao que deva ser, por exemplo, a identidade     % () Punch line ou sock line é expressão traduzível por (  ) () ()(- )(&")()($) -se do instante disparador do efeito anedótico laborado passo a passo e engatilhado com pontualidade. Para William Fry, uma piada (joke) ( #!) . 148). Um desajeito na aplicação da noção de punch line à laracha agora em foco é que esta projeta, risca, uma linha gráfica descendente, melhor ainda, despencante. O clímax (do humor ou da pequena narrativa como um todo) é, igualmente, anticlímax (da ação e da tensão emocional). 117 Manuel recupera para si a sanidade cruza com o tempo em que o leitor se depara com o absurdo do texto e nele fica imerso. A (relativa) resolução de .$/ )  !*  infinita irresolução do leitor. Riso e inquietude. Tensão e alívio. A sensibilidade das rubricas rosianas, transcritas a seguir, reside, para começar, em que elas recolhem (legunt) mesclas semelhantes. Entranhado ao cômico, está o páthos .estática angústia/    Esta vem concretizada como horror do nome próprio esvazado; terror de sentir que se pode (parecer) ser o que não se é ou não ser o que se (pensa que) é. Risada angustiada ou angústia risonha? Riso que desentala angústia ou angústia que entala riso?78 Bem, humor é coisa subjetiva, e esse copo-entre-cheio-e-vazio é traço distintivo de Tutaméia. Em tempo: as nótulas de Guimarães Rosa receberão, nesta tese, designações variadas, mas seriam muito bem denominadas, simplesmente, rubricas ou .!,!"/, pois é assim que este vocábulo é !.Sobre a escova e a dúvida/    naquele ""&!$""$"(+""'""$#" .#('$#%#/.#&!/ .!/ ."/ Ou seja, cada glosa é também uma assinatura rosiana. As .!,!"/ "' simultaneamente, fruto de uma interpretação e de uma apropriação daquilo que pertence (mas não já totalmente) a outro, anônimo ou não, coletivo ou não, possuidor de direitos e marcas autorais ou não. Mas afinal de contas: em que sentido, para o ficcionista, a anedota em foco seria de abstração? Agora, ponha-se em frio exame a estorieta, sangrada de todo burlesco, e tem-se uma fórmula à Kafka, o esqueleto algébrico ou tema nuclear de um romance kafkaesco por ora não ainda escrito. De análogo pathos, balizando posição-limite da irrealidade existencial ou de estática angústia  e denunciando ao mesmo tempo a goma-arábica da língua quotidiana ou círculo-de-gis-de-prender-peru  será aquela do cidadão que viajava de bonde, passageiro único, em dia de chuva, e, como estivesse justo sentado debaixo de goteira, perguntou-lhe o condutor por que não trocava de lugar. Ao que, inerme, humano, inerte, ele respondeu:  .!! $ /    78 A paronomásia estática/extática pode aludir a uma espécie de angústia sagrada ou ascética. Tristeza e que tais não deixam de ser via da mística... 118 É o próprio prefaciador que, pelo seu desempenho, ilustra, ligeiramente, em jeito de esboço, a leitura sim-bólica aventurada e desejável (mas não prescritiva) do chiste trazido à baila. Ele engata uma abstração estilística (sangra, retira, do texto todo burlesco), a fim de submeter à apreciação do leitor reduções descritivas, etiquetas esquisitas, rótulos formais e temáticos interdependentes: a) fórmula kafkaesca, b) esqueleto algébrico, c) tópico alegóricoespiritual-filosófico nuclear, no caso, a saber: irrealidade da existência e estática angústia, às quais vincula também o páthos  /&!  ($ %! & ! '$%!  1Aletria e hermenêutica2 &!$ $* % .&! "$ ! &!$  #' % &!  !$ pinçada do texto é aquela multiforme da anedota de abstração. Já é tangível, no entanto, que essas abstrações, essas terminologias, são bifrontes: não há separação radical entre conteúdo e técnica de estruturamento e expressão. A própria depreensão dos temas alegóricos do chiste inclui uma leitura de seus princípios construtivos. Guimarães não teria chegado àqueles, em termos tais, sem uma hermenêutica destes. A matéria, para ele, é forma.79 A performance ao mesmo tempo eisegética e exegética de Rosa, sua síntese da pilhéria, é labor intelectual, reparação de significado; calculado re-ligare. É o que sugere a menção da álgebra, que opera com entidades abstratas: etimologicamente, al djabr, redução, simplificação da escrita ou $%&'$,+!#'!#'%&*$&'$!1%#'&!2 +!-%! gratuita). A modulação, a simbólica e a tematização  muitas vezes, cômicas  de uma matemática inexata, quando não imponderável, dispersam-se por toda a obra, culminando, no prefácio, com a ironia do quod erat demonstrandum, máxima terminante dos raciocínios ' !%$!!! %$,+!$!% $%'' ($%!"!-&! 1' +! #'$'! &!*!3$%!*!4 '!$ &%3*$*4 porque é mais indeterminada e, portanto, mais )&2  79 "  Diria eu que o escritor, concomitantemente, interpretou a forma (já, de alguma maneira, então, preexistente enquanto chalaça possivelmente coletiva e anônima) e criou-a no ato mesmo de reenformá-la em seu antelóquio tutameico. 119 Diante dessa primeira encenação do método hermenêutico sério-cômico que o prefácio quer propor, aparece já a questão crucial, válida para todo o texto: como, efetivamente, para sair da abstrata teoria, essa anedota ou o frio exame que se faz dela podem levar aquele que lê à prodigiosa experiência de um não senso que reflete por um triz a coerência do mistério geral? A blague faz meditar sobre o sentido e sua relatividade  instala um problema filosófico , mas e daí? Só se pode inferir que a iniciação tutameica ao suprassenso exige algo mais que a interpretação fundeada na razão distraída e no jargão poético, no sentido oculto, na plurissignificação alegórica ou metafórica (interpretação esta ensaiada nos comentários acima sobre o jogo entre imbecilidade e heroicidade, identidade e alteridade, eu e máscara, realidade e invenção). Com efeito, em &Aletria e hermenêutica', ainda se mostrará, sentido e sem-sentido conectam-se, amiúde, intimamente, e de forma irresolúvel, sem prejuízo de um ricochete faiscante de leitura que alumbra as dobras e faces das coisas; não é este o pulo decisivo do hermeneuta, e sim aquele em que ele se arremessa e se despenha sobre o inominável. Quero dizer, à parte o deciframento (e reciframento) criativo de Guimarães Rosa,       &'     não pode ser este o gesto supremo, a última cartada a que remete o autor no terminus &Aletria e hermenêutica'; neste ponto, trata-se de al #   & '  &!'    &$'     16). O prefácio, lúcido e cheio de graça, não faz outra coisa senão exibir o vazio argumentativo de sua ideia fundamental. O cerne de toda a concepção é indemonstrável. Após a estorieta do ex-Manuel sobrevém outra em que os personagens também estão em espaço público e em viagem. Agora não mais o figurante/quase herói, mas o cidadão e o condutor,  "  &a goma-arábica da língua cotidiana ou círculo-de-gis-deprender-peru'    a prosaica, enrijecida por lugares-comuns, mas não somente ela, pode atuar e influir como círculo ou limite mágico infranqueável pelo pensamento; fronteiras determinam, mas também aprisionam. 120 O condutor pergunta ao passageiro, que está sozinho no ônibus, por que não troca de lugar e recebe por           técnica de fatura deste chiste, como de outros, ao mesmo tempo que leva de arrasto o raciocínio, deixando-o em suspensão, instila no receptor o pressentimento, menos que a captação consciente, da existência de um abocamento, uma concorrência singular de perspicácia e parvoíce. Isto é o que subjaz à leitura do poeta, que elabora a posteriori um sentido superior para a anedota. Mas Guimarães Rosa não está sozinho; compreensões similares à teoria preambular, posto que de maneira nenhuma idênticas (nem mesmo entre si), são encontráveis em André Jolles (1976, p. 215), Tzvetan Todorov (1980, p. 279), William Fry (1963, p. 152), Arthur Koestler (1989, p. 27), Neal Norrick (1987, p. 116), Sigmund Freud, etc. Para este último, por exemplo, o chiste que, como o antecedente, se identifica com o disparate dá caminho para que uma das leituras, acompanhando o que é insinuado, passe pelo inconsciente e descubra um significado por detrás do mero nonsense. Em espanhol: el chiste muestra al oyente un rostro doble, lo constriñe a dos concepciones diversas. En los chistes disparatados, [...] una de esas concepciones, la que sólo toma en cuenta el texto, dice que es un disparate; la otra, que siguiendo las indicaciones desanda en el oyente el camino a través de lo inconciente, le halla un notable sentido. (FREUD, 1993a, p. 203). De volta à broma tutameica, e inserindo já a discussão dentro da rota aberta pela voz autoral, pode-se dizer que ambos os personagens estão tolhidos pelas amarras das palavras. Cada um pressupõe certas colagens em vez de outras. O cidadão solitário e confuso de modo mais evidente, todavia também aquele que conduz o bonde; daí, inclusive, seu silêncio (dedutivelmente) pasmado; sobressalto este que conflui com o do leitor. O verbo trocar, na sua construção transitiva indireta com a preposição de, compele o falante do português a presumir sempre que se permuta um objeto por outro da mesma classe. Quem troca de lugar  e só  troca-o necessariamente por outro lugar. Isto muitas vezes basta à comunicação, sendo dispensáveis ou omitíveis referências a envolvimento de terceiros na ação (o qual pode ou não ocorrer); ainda mais quando o contexto é de tipo determinante: 121 um só passageiro no ônibus. Dessa predeterminação de sentido, o meio-bocó está livre. Sua pergunta equivale a um olhar virgem sobre a língua, que se consubstancia em um esdrúxulo erro gramatical, ou melhor, semântico-sintático (e a sintaxe é a cola, a combinação dos vocábulos). Notando os assentos inteiramente desocupados, estranha a sugestão do condutor e, por meio de uma indagação extra-ordinária, concita aquele que lê a voltar o pensamento para o próprio idioma, tomando consciência de seus mecanismos, condicionamentos, convenções e imprecisões. É pela pergunta do cidadão apatetado que se evidencia que o sentido não está nos nomes em si; não há marca linguística cristalina que torne obrigatória a interpretação automatizada pelo hábito. Sua tolice risível, que tende a abstrair o contexto ou dele distrair-se, mostra que a palavra não é a coisa. Sem embargo, o nonsense do passageiro do bonde está também sob o domínio do círculo mágico do simbólico. É ele, e não o outro, quem aparece como autor da bestice, ludibriado pela estreiteza de vista, confinado na tribulação (no interior do bonde, quase, literalmente, para usar vocábulo oportuno, colado ao assento, debaixo de uma incômoda goteira). Se esse peru engaiolado no círculo de giz da linguagem desnaturaliza uma convenção do português, é porque, com seu olhar estrangeiro, fabrica para o mesmo idioma (e para seu próprio entendimento) esta outra: a de que quem troca algo o troca com alguém (= outrem) imprescindivelmente; melhor ainda, forçando a gramática a formalizar o raciocínio do perso         troca-[o]            mutreta verbal do autor do gracejo. Sem qualquer mediação, troca-se a regência do verbo trocar, passando-se uma rasteira na expectativa idiomática e na continuidade dialógica. O          bitransitivo indireto (          -repticiamente para verbo        construção não abonada pela gramática culta, posto que comuníssima. 122 No frigir dos ovos, a diferença entre ambos os homens humanos é que o condutor compartilha, no sentido próprio do termo, uma norma linguística (a goma-arábica cotidiana), enquanto o solitário cidadão inventa uma para si; matuta como que em seu próprio idioleto. A busca da sintaxe tão des-colada em Tutaméia, bem mais autoconsciente, não tem algo dessa loucura? Trágico e cômico é notar que esse condicionamento, como encanto, cega o sujeito para a concretude mais imediata e para as possibilidades de libertação. O condutor, ainda que na sua condição também cativa de automatismos (toda guiagem e orientação é ambivalente em Terceiras estórias), oferece conversa e escapatória; porém, a ficção dos nomes, às vezes, torna-se mais real que a coisa visível. Por certo, o passageiro (e depois, por razões diferentes, também o condutor e o ledor) experimenta daquele páthos da irrealidade existencial ou estática angústia  tópicos abstraídos da anedota. Absurdamente, para quem lê, toma como absurda a proposta do condutor, que cria nele um conflito entre o que a língua diz e os olhos veem (se é que veem), conflito este consternante para o analista Guimarães Rosa. A articulação do disparate prova que, ao menos de partida, a linguagem levou a melhor. Ao cabo de contas, a piada reinstala sobre essas sensações desencontradas  a lógica de um é desatino para o outro  o silêncio e a solidão que precederam a conversa dentro do bonde; vazio que reverbera ou, quando menos, respinga naquele que lê       rosiana). Este fecho, pela comunicação de uma incomunicação infinita, não risca, deflagra, uma centelha de melancolia? É ainda possível conjecturar que a sobrecitada punch line seja lugar anedótico especialmente favorável à vivência do sublime; ou por outra, à sugestão de certa informidade indizível, seja ela do nada, do infinito ou do mesmo sublime (tal como configurado em Tutaméia, e ao qual se chega, in extremo, apenas por um salto). A mística, via de regra, origina-se ou situa-se ou completa-se em uma consciência profunda da vacuidade (e, ao mesmo tempo, claro, da sacralidade) da linguagem. A esta altura, Guimarães Rosa                  123 ('*%86/0'!< Como é sabido, para o ensaísta de Salamanca, a Espanha é dona de um idioma quixotesco que tem sua própria alma e sentimen0+ "# 2'" ; (6*%1 #/,*&+( ,#*/+1 # /#*0'1 #1/ #) *0 #.#/<    ,   .#0+)+ 1').4#/ ;.')#'.+ !+*/'"#.+(6*%1!+)+)#1#(#)#*0+)#0$6/'!+< ,80). A chalaça do condutor e do cidadão possui afinidade com !+*0+/!+)+;1".'*&+"# #/07.'<;##1/#.' ,#./+*%#)<;.#/2#*01.<80 e, especialmente, ;+4++.5)+!.'"+. "#,#.1/<. este personagem, também se fecha a estrada em círculo (ROSA, 1985, p. 88). Porém não confronta o sonho com a realidade e, daí, deixa de recolher a alegre ou triste surpresa do destino. Vive ordinariamente; feliz desinfeliz, sem desandar. Por outro lado, tudo isso ocorre porque é amante fiel e consciente da alta fábula de que tomou ,+//#/1;$+.0# #/0.#'0#3<(ROSA, 1985, p. 88). Em resumo, o caso do bonde aponta que o contrassenso depende, a quando e quando, do ponto de vista; a metáfora da troca de posição (de assento) é pertinente ao extremo: a mudança pode ser início do novo. No entanto, outra vez, no terceiro texto selecionado, uma quadrinha algum tanto riobaldiana, o deslocamento não se faz ou não se mostra possível; e, agora, de maneira mais áspera ou radical: não há nada de explícito que acuse um engano ou cegueira do eu que dimana dos versos; sobra apenas o puro traçado da situação aporética e seu páthos correspondente. Por isso, Guimarães Rosa sublinha a negatividade ethica desse sujeito aprisionado e suspenso no intervalo entre bravura e temor; incapaz de realizar o desejo ou dele desistir. Não poderia ser esta uma das coplas cantadas por Álvara e, secreto modo, dirigidas a Lioliandro imediatamente antes que triunfasse em seu primeiro raide sertanejo? (ROSA, 1985, p. 153). Seria apenas mais um caso rosiano de recado em canção: Menos ou mais o mesmo, em ethos negativo, verseja-se na copla: ;/0/'-1##/!(le, calle; 80 $+;!6.!1(+ -.1,0+<ROSA, 1985, p. 196). 124 calle de valor y miedo. Quiero entrar y no me dejan, quiero sal!)%&',&8(ROSA, 1985, p. 8). A rua é agora cárcere, lugar fronteiriço, ponto da copla entre coragem e medo. Essa reiteração da via pública, nas primeiras anedotas de abstração, não pode ser acidente. Penso que se solda indiretamente ao tratamento geral conferido no livro à perspectiva, marcada pela multiplicação de vozes. 81 Terceiras estórias são obra de fala inúmera e coletiva, autoral, pessoalíssima, e anônima, ao mesmo tempo. E a rua é, assim, um dos principais palcos da procissão, peregrinação ou passagem de toda a gente82, esta que tem sua con-corrência simbólica e final $7!%)*8 Dessa terceira anedota de abstração pode ser abeirada ainda 7Estória no 8, que conta o causo de Mira e seu futuro 7$!* que ex-$%+8  1985, p. 59). E sejam recordadas igualmente outras peças rosianas em que uma violência ou embate final ')&#$+!/!*+!%24*$&)!*&$.$,&)"&*&.&-) 7&)'& &87,#&8, 7 &)-/,,*+&+)8, Grande Sertão: Veredas, etc. A valentia do machado de Jo1&(,)(, *+0 +)%*'** '&) *, 7&-) &)3%!8 *, 7%1& (,)) &%+%8 (ROSA, 1985, p. 62). Ele poupa-se ao duelo e apanha por ob-repção  na rua  um Ipanemão agachado e desavisado; desavisado também, não há dúvida, por causa de sua própria hýbris e temeridade: não dá um vintém por Joãoquerque ou quem quer que seja. Mas o autor prossegue a tessitura de seu anedotário: Movente importante símbolo, porém, exprimindo possivelmente  e de modo novo original  a busca de Deus (ou de algum Éden pré-prisco, ou da restituição de qualquer de nós à invulnerabilidade e plenitude primordiais) é o caso do garotinho, que, perdido na multidão, na praça, em festa de quermesse, se aproxima de um polícia e, choramingando, indaga:  7& ,) & *) %1& -!, ,$ omem e uma mulher sem um $%!%&/!% &**!$&$&, 8 ' -9). 81 82 7)*'+!-*%))+!-*$Tutaméia86* Ver, e.g.7/&#$!)%+8 ' 125 O garotinho transviou-se em espaço público e aberto, que o texto, namorado dos mais delicados contrastes focais, trabalha para precisar e, por meio de um zoom, enquadrar cada vez mais àquele que lê: no meio da multidão, na praça, em festa de quermesse, tempo litúrgico. O menino, por sua vez, ao descrever seu desamparo, sua perdição, assume não a própria perspectiva, mas a dos pais, e de tal maneira que despega, imprevistamente, a ,arábica  *% $- % #  &"$  relação esperada entre lacuna e completude, perda e totalidade. Temática esta assinalável em outra narrativa na qual se extravia o fruto da carne: ,( -. Cito: ,  # " %#$ "&-a de $%$-     Para voltar à fala infantil do chiste: não é nele, no pequeno, como se vulnerado e vulnerável, que há vazio essencial. Não é ele que é dono da falha ou cria sem pais, mas é a este par que falta o filho. Não é ele ser privado de sentido, e, sim, capaz de doá-lo. De problema, o garoto converte-se em solução. Mero jogo de palavras? Talvez; a mim, não me parece que o sentimento de perda desapareça como em truque caviloso: a busca continua, apenas ganha orientação nova e positiva. O olhar inaugural da criança foi capaz de dar movência ao significado da Perda do Pai, transposta a coisa para o plano místico ou anagógico.83 Na busca do ,Éden pré-prisco-  argumento abstraído da pilhéria , não apenas a divindade preenche o homem, como também o homem preenche a divindade,'- )$!% %## aquilo de que o Absoluto carece. Paradoxo ousado que em muito depende da pessoalização de Deus; por simetria, um Pai sem seu menininho. Essa reconfiguração da matéria desde o meio da perdição se aconchega ao que é proposto no prefácio, que pretende ver também o copioso no oco; é a virada rosiana, virada tutameica. Entretanto  e isso concerne com a concepção hegeliana do erro absoluto?  aguda solução foi a de que se valeu o inglês, desesperado já com as 83 Cf. grego(,'"#%"- 126 sucessivas falsas ligações que o telefone lhe perpetrava:  *&! *(++     Nesta chiata, o inglês, depois de concluir por iterada experiência que seu aparelho telefônico funciona como infalível arapuca, põe na boca uma solicitação ao mesmo tempo otimista e desesperada que, sob ângulo prático e realista, é rematada estupidez. Descobrir a causa e a lógica do defeito e, a partir disto, re-agir é o que determina também a razão. Na hipótese de que toda piada sagaz dá      *   $#+ '   fórmula de complexa ironia. Confirme-se. Desconsiderando o expediente ordinário de mandar consertar o aparelho, o inglês empirista, tipo com que a chalaça brinca, põe-se, é presumível, a observar: seu telefone opera como que por uma engenharia do acaso que converte o certo em errado ou o mesmo em outro. De revez em revez, a eventualidade não se pinta tão fortuita assim: o inglês descortina uma racionalidade mínima no maquinismo. Pedir o número absolutamente exato é engano absoluto; frustração provada. Requisitar número errado é coisa fora de propósito, porque o aparelho pode transmudá-lo em outro engano nada desejável.  !   *(+ que não corresponde nem ao número pretendido originalmente nem a um número simplesmente  *(+%   "ansformarse em verdadeiro. Errôneo atualmente, correto virtualmente. Neste ponto, para conseguir-se o que se quer, deve-se começar pelo que não se quer. O desajeitado empirista desiste de lutar contra o telefone boleado e cisma de vencê-lo a partir de suas próprias ciladas. O primeiro passo é livrar-se da convicção de que precisa discar a informação perfeitamente correta para atingir o alvo. Estimo que por aí se enraíze a menção à temática hegeliana  a abstração filosófica do autor. Ela é ativada, antes de qualquer coisa, pelo princípio tutameico de coser aquilo que o senso comum dá por requintada cultura ao que toma por banalidade, no caso, mera caçoada. Afora isto, também para o filósofo alemão, de maneira (comicamente) semelhável, a verdade não é oposta à falsidade: o erro desenvolve-se em verdade, sendo 127 .suprassumido/ nela. Na literalidade das circunstâncias criadas para o chiste, a agudeza do estratagema tem pouca ou nenhuma funcionalidade e está, sem remédio, comprometida. Abstraindo-se o contexto, sob alçada alegórica, a razão da sem-razão ou o método sem método do inglês tornam-se mais plausíveis ou, quando menos, mais rentáveis especulativamente. Ao contar com o revés da máquina para fintá-la, o personagem (se é que cabe a palavra) propõe caminho que, num contraste cômico, lembra o método empirista de tentativa e erro (muito contraproducente, pois as possibilidades seriam muitíssimas). O que almeja o inglês é, na verdade, um método de tentativa sem erro: o chute perfeito. Sua petição, fruto de certo cálculo, é também aposta no acaso enquanto sinônimo restrito de boa sorte;84 esta que tende a ser, para o literato " ."#%$,  $# $""/, segundo o que escreve em carta para seu tio Vicente (GUIMARÃES, 2006, p. 156). Em outros pontos e à sua maneira, Guimarães Rosa compõe ideias convizinhas a essas. De quando em sempre, o mundo parece estar desfuncionando como o telefone  "#*# .#/ "'  .Sarafim quase sem erro procede; as faces do que há é !% "&" # " " # $/     206).  .$  "/, a ideia ganha hálito humorístico e pessimismo proverbial: .em mente a noção geralista: Tudo, o que acontece, é contra a gente. Ma# ) !%" """  ", " !%""/ (ROSA, 1985, p. 185). Às vezes, tem-se mesmo a impressão de que o esqueleto algébrico abstraído da piada telefônica é destinado (não necessariamente de maneira restritiva) a outros entrechos. Em uma estória como a de .Melim- #/ efetiva-se também um desengate entre realidade e ficção; o que é solução naturalmente possível nesta se mostra inverossímil ou custosamente veros#+ !% (  . "%"/ # # "# #$) # acoplados. 84 .Tentam afinal os astros o que, contra mim, que só peço nenhum erro e enarmonia e suasão?/ (ROSA, 1985, p. 172). Há ironia nesta passagem muito provavelmente. 128 Para Meloso e para o contador da lenda (a dupla tem emboladas as vozes), em uma dada boa hora, o erro, constante, transforma-se em acerto, coisa rara e (quase) casual: Diz assim: Melim-Meloso só quer amar sem sofrer. Errando sempre, para diante, um acerta, sem saber. (ROSA, 1985, p. 107). Diante do vendedor de chapéus azedo e empulhador, esse cavaleiro saído das cantigas de João Barandão introduz balelas que teriam tudo para gorar seus planos, mas redundam em vitória; blefa o tempo todo (ROSA, 1985, p. 105). Conta com o engano do outro, controla-o, de forma a acertar, fazendo-o errar. Loteria ou cálculo? Bismarques não percebe que o não é sim, e o sim é não. Melim-Meloso finge que não gosta do chapéu fora de moda que lhe é empurrado, mas deseja-o e compra-o por uma pechincha. Finge topar descabida renegociação de preço, mas aceita-a só para ter o dinheiro de volta. Finge nada pedir, mas sopra ligeiro que um copázio de vinho espaireceria tudo, e toma-o de graça. De hábito homens investem diretamente em seus desejos para satisfazê-los; não é o que ocorre com !!$!! !% de nariz bem-alumiado que quer achar a fôrma do seu pé (ROSA, 1985, p. 105 e 109). Ele encena o desinteresse, a não aspiração, para chegar à completeza. Dá giro a muitas mentiras sobre sua vontade para abiscoitá-la em toda a sua verdade. A essência do logro consiste em apresentar ao outro algo inverídico para que ele o reverta, exatamente, na verdade que se quer. Melim-Meloso inventa algo, e as coisas resolvem-se; é bem possível mesmo que não ambicione nada, e por isto tem tudo. Tal como ansiava o inglês do telefone avariado, esse cavaleiro lendário converte toda negação virtual da vida em afortunado e prestimoso sim.      $ # %, estória de tom mais realista, também se notabiliza como bom tramoieiro. Ele atrapalha a caçaria de Iô Isnar, que se deleita na brutalidade, no $!!!!"%  $-!  "   "%           ! "  inculca na cabeça do velho um conto, quer dizer, meia dúzia de patranhas. O intuito é fazer 129 com que o caçador se ponha no papel de ) !$&!$. $%+#",lhe-,##/     .Sim, o Brasil mandará tropas.../ deixei-lhe; conforme à teoria. Sem o fitar: mas ao raro azul entre folhagens de árvores.  .Cruz!?/ ele fez, encolhera elétrico os ombros. Eu, mais, numa ciciota:  .É grave.../ Luta distante, contra malinos pagãos, cochinchis, indochins: que martirizavam os prisioneiros, miudamente matavam. Guerra de durar anos... [...]. Devagar, a ministrar, com opinião de martelo e prego:  .Seu filho único.../ Disse. Do ominoso e torvo, de desgraçados sucessos, o parar em morte, os suplícios mais asiáticos.  .Se a sorte sair em preto.../  o tema fundamental. (ROSA, 1985, p. 192). Salvo erro meu, são estes os elementos textuais que entram em simetria: a) o filho de Isnar, atualmente em serviço no exército, e a cria do tapir; b) o mesmo animal, como mãe, e o velho, como pai; c) o assassino da anta e quiçá de seu filhote, ou seja, Isnar como acossador implacável, e os malvados inimigos pagãos; e talvez também um complexo mais abstrato: a guerra, causa-contexto do refalsado perigo de vida do rapaz. No frigir dos ovos, o contador-)! ( &  "( ."#!!/ $  $# alegórico, entre remédio e veneno, que, uma vez abocanhado, encurrala automaticamente o $#!  )(  !" "## #!## $ " .$#$!" "!"/ ( atingiriam a dose adequada, e com o fim, então, de progredir no aliciamento da caça, prepara nova investida. %!$"*.!!/dar de beber ou comer (algo imaterial): .0Ajudo-o... Mas tem de vir comigo à cidade...1 !/Quantum satis. Daí em diante, * ", """#! ' !)(  *# . !  $# $/ A, 1985, p. 192). Isnar não age de acordo com o esperado e (aparentemente?) proposto; não esquece e larga tudo para sair em socorro do filho soldado. Ainda assim, neste ponto da situação, para o narrador, que se põe a diagnosticar a linguagem corporal do outro, nada obsta; já sabe que a empreita letal contra o bicho está fadada ao fracasso. Qualquer semelhança com o 130 automatismo das marionetes ou com a magia ou com a possessão não é mera coincidência.85 No encerro dessa estória paródica de caçador, Isnar, que queria a caça, literalmente, moribunda, derrubada e tripudiada, acaba, figuradamente, neste mesmíssimo estado (ROSA, 1985, p. 193). Eis, de novo, a mesma álgebra mágica: introduz-se x, dá-se com o y prognosticado e desejado. O personagem-narrador, prevendo os caminhos e efeitos subjetivos da fraude, manipulando a linguagem, ganha a partida. Transforma o processamento erroso que o pai faz das notícias recebidas  falsos dados  em salvação. A falha de um é acerto de outro. Do ponto de vista ético, nas duas estórias, claro, tudo se mantém ambíguo. O narrador exitoso de 4$&)&5 nada mais é que um intruso, melhor, um intrujão; compreendendo o terrível daquela maldade, intruje-se na mente do adversário para engrupi-lo.86 Conquanto não seja de forma alguma idêntico, ele faz par com aqueles cômicos embusteiros ou gozadores de certas narrativas do populário %) ! &# (&)"&! $#& !#' 4"-# $&#$&!"( &&$&"'0*'5 granjeiam a simpatia do ouvinte ou leitor (problemática, todavia, em Tutaméia); isto aconteceria porque seus antagonistas se externam como bobos, medíocres ou malvados (PROPP, 1992, p. 102-104, 142 e 161).87 Mise-en-scène do querer, fé na boa estrela, aposta no aleatório, matemática do verbo, invencionice ou cascata mais ou menos bem-intencionada. Todo este complexo ligado ao 4!,# ''(!  $"'!"(#5 ' &+ #! *&.2' '!$& !)(# 'ignificativas, em Tutaméia tem seus #)(&#'#"#' 4'#destino pulava para outra estrada. Mira e Joãoquerque e Ipanemão cada qual em seu eixo giravam, que nem como movidos por tiras de alguma roda-!'(&5  $  Há quem encoste firmemente a arte dos titeriteiros ao risível da comédia (BERGSON, 2007, p. 50). 86 (&#4&'$5,(#relativizaria também a versão do narr#&4$&)&5 4em espírito da gente ninguém intruje5  $ 87 O etnógrafo russo desenvolve outras conjecturas proveitosas também para o folclore de cá; reputa que tais #"(#' !#& "-# $&#*#%)! & ' '(-# 4$&!#' $#& )! )!#& $#$) & "#"('(,* 5 Representam 4)!&(#!'(/&#5*'(#%)#&'#'$#"(40"#5 e 4como que '$&#*#'"(#54 vencedor tem razão só pelo fato de vencer 5A explicação seria esta: 4##  #&(!')'$&1$&' '5   '('$&'#!#4"*".-#5"-o são coligadas à vida real (PROPP, 1992, p. 102, 103 e 161). Toda esta discussão, que, obviamente, não finaliza o assunto, é advincular ao problema do ponto de vista de uma narrativa #!#4$&)&5 85 131 &',%&#!#. %%##-das- "'&/. #!#'&((%/. ( /."'%(-&/.( &%$%&#"!/, . %%/.&"%#/etc. Sintetiza em si, porém, próprio geral, o mecanismo dos mitos  sua formulação sensificadora e concretizante, de malhas para captar o incognoscível  a maneira de um sujeito procurar explicar o que é o telégrafo-sem-fio:  .!"(!#%%#basset, tão comprido, que a cabeça está no Rio e a ponta do rabo em Minas. Se se belisca a ponta do rabo, em Minas, a cabeça, "##$ '%/  .é isso o telégrafo-sem-# /  .)#&&#+#' +%##!#&!-fio é a mesma coisa... mas sem o #%$###%%#/  $  Aponta aqui uma imagem essencialíssima em Terceiras estórias: a tessitura (malha, entrelaçamento, rede, etc.) e suas lacunas. Estas são tão importantes quanto o próprio urdimento e seu envesso. De fato, há um rombo no sentido da blague, ou antes, na fala do explicador canhestro, que entretece definição que nada explica. Na melhor das hipóteses, ilustra o que seja o telégrafo com fio. De começo, tudo vai muito bem: a ruptura de expectativas é técnica elementar de produção de riso; apesar de que, a esta altura, e num renque de anedotas como este do prefácio, o grau de previsibilidade seja maior: sabe-se que o que vem por aí é largada; por outro lado, benevolência bem posta, rijeza intelectiva sovada e amolecida, aquele que lê deve andar já em boa disposição humorística: na mão deste maquinante contador que é João (!%)& #& "!  .#%!( *)# &"&#%/ # basset para remeter ao telégrafo parece recurso didaticamente original e promissor. No entanto, quando, em desfecho falto de pedagogia, lança-se o ledor em cheio no meio do nada e retira-se, abstrai-se, abrupto modo, aquilo que mal se acabou de fiar, a impressão que fica é adversa, e o efeito é desolador. O sujeito pode ser tudo, menos bom alegorista. Em que consiste a asneira? Se basset é tropo para fio, sua mera e súbita sumição não elucida nada. Ainda que se possa partir do telégrafo com fio para explicar o sem fio, e ainda que este seja marcado pela ausência de algo que está presente naquele, o telégrafo sem fio não é um ex-telégrafo com fio. 132 Trocando em miúdos, o sujeito ensina equivocadamente que o telégrafo sem fio é idêntico ao outro, funciona exatamente como ele: a única diferença teatralizada  a de que não tem fio nenhum  é aquela que já está antecipada e estampada no nome. No final das contas, ele mal alcança a questão, e o contraste cachorro/não cachorro soa como pura obviedade. O grande desafio do explicador é o de figurar, dado que sua fala não se orienta para a denotação, algo que, embora não cognoscível a partir das sensações, possui realidade física; em jargão científico: a atuação das ondas hertzianas.88 Porém, ao descartar o corpo canino ainda fresco na imaginação do destinatário, longe está de forjar uma imagem sensível para um objeto que não o é; para tentar salvar seu figurado: um cachorro com corpo invisível que está lá, levando seus      imaterial, as ondas hertzianas (assim como o cão com corpo visível seria representação de um fio material e retilíneo que transporta a corrente elétrica). O que faz? Destrói uma forma sensorial (o basset), construindo um retrato de nada. O ex-cão não tem realidade sensitiva nem material  o que sobra é, no máximo, uma ex-figura, coisa nenhuma (o paradoxo nada-algo é inevitável). Em vez de manobrar com uma representação já contraditória e pouco tangível, o animal com corpo invisível tomando beliscões como     do telégrafo sem fio, escolhe um vazio e uma inatuação tão radicais que o leitor assiste à aniquilação de seu pensamento. Não é criada nenhuma figuração para o telégrafo sem fio. Antes uma ausência é exposta. Se a voz autoral elogia a maneira do alegorista, destacando, abstraindo, a síntese que esta realiza do mecanismo próprio aos mitos, é porque todo aquele abismo visual concretiza a sensação inquietante de limite perceptivo associada ao funcionamento do telégrafo sem fio: algo atua, ondas de rádio difundem-se, sem que ninguém ouça, cheire, palpe ou veja. Mais ainda: se o tropo ensaiado frustra a lição racional sobre o telégrafo sem fio (metáfora do No comentário rosiano à       Aletria e hermenêutica   e de forma explícita, esse gênero de ondas não capturáveis (ordinariamente) pelas antenas humanas. Cf. o segundo capítulo desta tese. 88 133 0incognoscível1?), sensifica o nada e propicia a experiência instantânea de um oco conceitual, constitutiva, muitas vezes, da mística. E se o leitor, como Guimarães Rosa, pode visualizar a não visualização, neste fiasco, há engenho; seja ele acidental ou não. Para chegar à cláusula da análise: o efeito imediato da largada ou da punch line, como sói acontecer, aliás, é a suspensão de julgamento, que tem, em Tutaméia, não apenas dimensão humorística, mas também filosófica, estética e mística (Sextus Empiricus, sublime, koans, etc.). A recepção crítica, contudo, não acaba por aí. O objeto em foco é literatura, e literatura sujeita à desconfiança do leitor  do especialista, pelo menos; ele vê-#0#$",do #$"*)10%1 0$ "##$1%0$#1!%0%#1 o 0argumento1.89 Esse texto humorístico, essa engenhoca de forjicar cócegas mentais, desafia a força reflexiva daquele que lê; brinca com ela, confundindo-a e provocando sua participação ativa. Os chistes seduzem também porque geram autocomprazimento (mais ou menos vaidoso) com o exercício da inteligência; perguntam pela oficina ou pelos bastidores %,#$#-#$#%%$ 0 "-me o mecanismo, a magicatura, ou naufrague1 Já de menos invenção  valendo por 0  %# " %#1 e a ilustrar o: 0 #%" #!%$%" !%$1 em aras da Escolástica  é a facécia do diálogo:  0 #&*.#% ,#$""-se fios de cobre: prova de que # "$&#$$#($+"1  0#  %  #&*.# ) # $"%  % "&  que, lá, pré-historicamente, já se usava o telégrafo-sem-1   p. 9). O riso sai fácil, de modo que esse vanilóquio profundo aguenta bem a censura de Rosa  suavíssima, pois ele o julga digno de participar da #$"*)""0Aletria e Hermenêutica1. O escritor considera a anedota menos atilada porque o sofisma é 89 Com ligeiríssimas alterações, estou a apropriar-me do jargão de Longino, e isto porque, aqui, na esteira de Rosa, reserva-se à modalidade anedótica um parentesco com o sublime. Cf. ARISTÓTELES, 1992, p. 72, 89, 104 e 108. Longino estimou ainda que o sublime constitui 0%$,$%',o maravilhoso contra a suspeição despertada pelo uso de figuras; o embaimento, de certo modo aureolado de beleza e grandiosidade, daí por diante "$# $#*1 (ARISTÓTELES, 1992, p. 91). 134 convencional, e seu arcabouço, ostensivo, não sendo difícil decifrá-lo ou abstraí-lo. O conhecimento do fio de cobre pode até anteceder a produção do telégrafo, mas não é causa suficiente para ela (deixo para trás o dislate básico da descoberta desta espécie de material arqueológico em camada de solo dita primitiva). Ignaro ou parlapatão, o indivíduo não leva em conta, abstrai, toda a tecnologia restante necessária à fabricação de uma máquina de tal natureza. Delimitando ainda mais a análise do autor mineiro, é possível indicar, inclusive, que a falácia segue a estrutura post hoc, ergo propter hoc (depois disto, portanto, por causa disto). Aqui a avaliação de Rosa corrobora o que, em geral, se encontra nas pesquisas sobre riso e humor: quanto melhor camuflada a armação ilógica da anedota, e todo o segredo de sua graça, maior será, conjecturavelmente, sua sofisticação intelectual; numa palavra, sua agudeza. Sob enfoque rosiano, é ocupação peralta e prazer daquele que lê buscar e encontrar a artificialidade verbal sobre a qual repousa o texto. À piada, o prefaciador chama-                 (1981, p. 142 e 175), indica uma graça leve, sutil, elegante e polida.90 Toda essa sensibilidade de analista preocupado com vieses, matizes, páthos, êthos, etc. espelha, para o leitor, uma trilha possível de leitura; alerta para o quanto o ficcionista tratará com complexidade, nas narrativas que ainda estão por ser folheadas, comicidade, riso e humor. Em que pese o parecer rosiano, essa picuinha em forma de finesse, para mim, é bem bolada     Aletria e hermenêutica -se ia que o fósforo está muito bem                      positiva para a sua conclusão ilegítima. Fecha o raciocínio com base no achado dos fios de cobre. Assim, quando o oponente faz referência ao resultado das escavações em seu país, a expectativa de primeira leitura só pode ser a de que a peleja ufanista, se existe, esteja irreparavelmente perdida: não há testemunho de que seus antepassados tenham inventado o telégrafo com fio, ou por outra, o 90 O facetus romano compreenderia já certa delicadeza (MINOIS, 2003, p. 86). 135 provável é que sequer tenham conhecido o fio. Contudo, o falante, num tour de force, transforma a comprovação da derrota em penhor de toda a vitória. Trata de arranjar-se com o nada (reconhecimento que tem a vantagem retórica de um honesto realismo), atribuindo a ele sentido inusitado. Consegue isto, primeiramente, fazendo transitar, sem sobreaviso, o problema posto em disputa: do telégrafo com fio para o sem fio. Em seguida, converte a evidência alguma  o achado nenhum   desenvolveu tecnologia ainda mais avançada. Com muito menos, faz muito mais. É patente que também esse dialogista deixa de lado o fato de que a utilização de um aparelho de tal tipo envolveria muitos outros saberes e progressos; não bastaria examinar a questão do fio (nenhum) para tirar as consequências. Abstraído, ele desconsidera que o conhecimento do telégrafo que não emprega o fio não pressupõe a ignorância deste. Raciocina como se o desconhecimento do fio fosse condição única e sine qua non para que se determine se alguma civilização fabricou o telégrafo sem fio. Em síntese, toda a sua alegação é bem mais forçada. Mas a truania do segundo interlocutor não para por aí. Por intermédio de algo próximo a uma reductio ad absurdum, ele constrói um discurso dúbio e promove uma reflexão mordente sobre a linguagem. Ao mesmo tempo que se vale de expediente idêntico (fallacia non causae pro causa), ironiza-o, esticando-o ou caricaturando-o até a mais completa insensatez: do absurdo, segue-se o que apraz, qualquer coisa, observa Guimarães Rosa. Quando flexibiliza ainda mais a lógica do antagonista, o sujeito não apenas supera a sua ilação, s                a gabolice patriótica, se o caso for de pior asneira ou melhor sofisma, quanto a imaginação ou a razão, se o caso for de mais engenho ou retórica. Sua prestidigitação reside em que argumenta com o mesmo erro para escancarar a verdade: a de que ambas as induções, a do adversário e a sua, nada mais são que despropósitos. 136 No contexto de Terceiras estórias, talvez o mais relevante seja aquilo que, na chamada linha de soco, se entremostra ludicamente, em meio a burlas e cavilações: a falta de vestígios ou o quase nada podem ser sinal de muita coisa, suporte de raciocínio. A faculdade inventiva é capaz de retirar, abstrair, do nada, uma resposta ou hipótese, um riso, uma provocação. Indo mais além, alegórica ou anagogicamente: ausência e carência de rastros divinos não seriam, para o autor mineiro, brechas a partir das quais pode atuar criativamente o homem? O nada tutameico, sob certa mirada não exclusiva, sem obrigatoriamente perder, por conseguinte, toda a sua negatividade, é também abertura, #* . "&(/ para o sentido. De resto, pergunto: por que o prefaciador insiste na brincadeira com o telégrafo? Tenho a impressão de que ele serve como imagem da forma de Tutaméia. .%/ % .#$  $") / é expressão técnica há muito cristalizada em estudos literários e linguísticos. Se as Terceiras estórias têm tal estilo, o que parece pouco para o aspecto radicalmente lacunoso do livro, o telégrafo em questão há de ser sem fio: entre uma ponta e outra, o hiato. Sim, repito: não atinar com fio nenhum pode ser já trampolim para o hipersensorial e suas ondas misteriosas; também para uma heurística admirável, para o alegórico espiritual, o metassenso, etc. Ao fim e ao cabo, para o Guimarães Rosa de Terceiras estórias, o telégrafo sem fio seria alegoria também de certa linguagem, intervalar e esfíngica, de Deus, da vida. E destoa o tópico, para o elementar, transposto em escala de ingênua hilaridade, chocarrice, neste:  . * ( ,%'! #%#$$&  "$ /  .#+#" ## "/  . #$"$ /  . ##%#" ## "/  !  Trecho inicial cabeludo. O autor parece salientar que o tópico (?) prefacial das anedotas de abstração como cata# "# .* -!" #) /, até aqui fundido na argúcia e no refinamento (?), pode ser divisado, também, desentoadamente, na elementaridade (?) de 137 algumas blagues, em certa simpleza humorística, em certa inflexão que ficaria entre a candura e o gracejo um tanto desabusado: chocarrice. A mestra-escola requisita ao aluno que lhe dê um exemplo de nome concreto; ou seja, interpela-o a respeito de uma categoria gramatical, uma realidade verbal (substantivo). Entretanto, Joãozinho não raciocina nem metalinguisticamente nem abstratamente (modo em que as particularidades não vêm ao caso). O xará de Guimarães Rosa pensa de maneira similar aos poetas. Trata o signo como coisa e, assim, devolve à pedagoga o exemplo de um objeto concreto: suas calças. Dito de outra maneira: o garoto, naquele momento, nem tem domínio nocional sobre a abstração nem é capaz de abstrair. Sem embargo, nessa sabatina, não é só Joãozinho quem escorrega. Não estivesse desatenta, tão abstraída quanto o menino, a professora teria desconfiado da intromissão do pronome com função adjetiva que delimita a resposta:   é acréscimo suspeito ao único termo realmente solicitado, o substantivo. Ela parte incontinênti para a próxima pergunta porque toma como exata a primeira réplica; esta subitaneidade, de mais a mais, refletiria (comicamente) tanto a mecanicidade do método arguidor (e aí haveria margem para a teoria bergsoniana do riso) quanto a apertadela da criança, que mal tem tempo de respirar entre uma e outra pergunta. Seria presumir demais que a própria pressa e a ânsia de sair desse encalacro tenham a sua participação nos deslizes (se é que o pequeno é tão ingênuo quanto parece)? De todo jeito, na sequência, tudo o que esteve oculto se revela. Mais uma vez, o aluno fornece exemplo do que, para ele, é uma coisa abstrata: as calças da professora. Vale dizer, ele concretiza o conceito de abstrato. O riso é produzido, essencialmente, a partir de dois jogos verbais. Em primeiro lugar, o equívoco entre substantivo concreto/abstrato e objeto concreto/abstrato. Em segundo lugar, o duplo sentido da palavra abstrato (principalmente para o leitor e para o criador da piada). O literal: aquilo que opera com ideias, e não com determinações empíricas. O figurado, já 138 cristalizado em dicionários: aquilo que é vago, de difícil compreensão, obscuro. A partir desta última senda, a fala do aluno pode abranger outros significados            e nuanças, como a erótica. Com efeito, de que maneira as roupas daquela mulher poderiam ser abstratas? As calças seriam metonímia para o que está dentro delas: o corpo nu de que o menino nunca teve experiência sensível. Sob determinado ângulo, o que há de mais concreto para a professora é o que há de mais abstrato para Joãozinho. É de imaginarse que ele seja abstraído também na acepção de absorto, extasiado, embevecido com a mulher à sua frente  e isto também, em muito, pela força de um implícito: o lugar-comum sociocultural e literário-filosófico-anedótico do aprendiz apaixonado pelo mestre.91 Na cambalhota do texto, o pequeno tolinho que tropeça na gramática, ainda que à revelia de si mesmo, é justamente aquele que enuncia uma tácita verdade. Joãozinho-queconcretiza-tudo expressa a sua percepção de que tem antes a experiência da corporeidade da professora do que de seu corpo. Ao não abstrair a ideia de abstrato, des-vela àquele que lê, ao mesmo tempo, a abstração do corpo (ligada à socialização) e a presença concreta, viva, perturbadora, do desejo. Apreende não de modo intelectual, mas existencial e concretamente, os efeitos de uma das formas (sociais) de abstração. Segundo a leitura que faço do desarranjo arranjado   Aletria e hermenêutica Guimarães Rosa interrompe aqui, para retomar adiante, o que seria uma sorte de exegese geral. Entre uma quina e outra, dá prosseguimento à montagem de seu anedotário metafísico, entabulando uma partição do gênero da anedota de abstração em suas possíveis espécies: definição por extração eliminação parcial, etc. Se assim for, a chalaça de Joãozinho ocupa lugar estratégico e liminar. Nesse telégrafo sem fio que é Tutaméia, o escritor não dá ponto sem nó. Finda a primeira série de chistes com aquele que tematiza os próprios conceitos de abstrato e concreto, de jeito a fazer transparecer uma dinâmica entre eles: é por meio da 91 Para alguma intratextualidade, c     139 mirada daquele que vai fundo no concreto que se revela a abstração  vocábulo que, como já se disse, manejado poeticamente, é irredutível ao processo intelectual agora em realce. Enfim: o convite tutameico à abstração não supõe o apagamento da concretude, da particularidade e, por tabela, do que seria insignificante; pelo contrário, está enraizado neste e nele imerge. Por aqui, porém, vai-se chegar perto do nada residual, por seqüência                      $   !                %Só que, o que assim se põe, é o argumento de Bergson contra        $     !      $  %!       !    $  %     da representação de uma exclusão desse objeto pela realidade atual     %         ex-nada, produzido por uma ex-faca.) (ROSA, 1985, p. 10). No passo de Bergson, aparece a hipótese de que o nada seja construção linguística oca. Para conceber qualquer objeto fora da existência, seria necessário pensá-lo dentro dela e, (imediatamente) depois, num movimento de exclusão; isto tudo já é representação de algo, e de tal modo que, completa o prefaciador, o nada em si mal chega a apresentar-se à mente, restando sempre a imagem da realidade (espaço-tempo) em relação com a ideia de um exobjeto. A tais considerações é colado o primeiro subtipo das anedotas, cognominado $     %. Na prática, caracteriza-se por uma tentativa de explicação metafórica do nada que elege como comparante uma figura íntegra para depois abstrair, subtrair, de jeito quase instantâneo, cada uma de suas partes constituintes, até que não sobre forma alguma; ou melhor, na interpretação de um Rosa motivado por Bergson: subsista a imagem de uma ex-imagem (   $ - %   "   $ %  coincidir com) um nada residual ou ex-nada. O fato é que uma ex-faca é uma ex-faca; porém, simultaneamente, não é, como diria um bom jagunço mineiro, diabo de trem nenhum. Não é nada, e é também o que foi.     $  miúdo%, quer dizer, num sentido poético retemperante do chavão, ao trasladar a matéria para contexto e forma tutameica, 140 Guimarães Rosa avança a partir dos juízos do filósofo, que, ao menos na citação agregada, limita-se a advogar isto: o nada é um ex-algo. "":x-';#27'(+osiano. : ' 7 .&  ,& %4&"'  *.% , -"+(. ( (;   ,8&(%(  atividade que penetra, modifica e corta toda passividade, é, ao contrário, como que fatiada, até acabar em coisa alguma. Quem opera esta retirada, esta abstração, é o próprio autor do brocardo. Seria ele o Barão de Itararé ou Apporelly, embora esteja listado, em Círculos viciosos e infinito, este nonsense de Lichtenberg, cientista e aforista alemão   : &!( ,&(,&%4&"';-+"$  (+  )Em todo caso, note-se que o não ser não está pronto de antemão; não equivale a um nada eterno. De estatuto diferente, ele é gerado pelo chiste, que, graças ao signo, torna visível ao espírito, inesperadamente, ex nihilo, a faca e, todavia, desaparece de igual modo com ela, para, aí, sim, criar a aparição de um nada que antes foi coisa. O ativo, feito matéria passiva, sofre uma aniquilação em boa dose furtada à previsibilidade sucessiva ou linear: não se diz, gradualmente, que o nada é uma faca, da qual se retirou o cabo e, em seguida, a lâmina; mas, bruscamente, que o nada é uma faca logo sem lâmina quando nem se imaginava já se fora o cabo. A instantaneidade da subtração está, sem dúvida, a perseguir a informidade do nada absoluto; como uma faca que não chegou nem a existir: já sem lâmina, desde o início sem cabo. Não obstante,  /+ 7 *. .& /1 -+1"( 3 %.1 ( (&)+'- :;  representação de algo e do processo de nadificação, e não propriamente do nada, é inevitável: aquilo que o leitor visualiza visualiza sempre atrasadamente, em uma série temporal. E mesmo na segunda leitura, prevenida, resta a :ver; o paradoxo de uma faca-que-não-é-faca  fronteira entre ser e não ser, figura e não figura, na qual balança, infinitamente, o pensamento. A imagem, para alcançar o nada, teria que deixar de ser  por mais rapidamente que se retire, é sempre tarde demais; rateia exatamente porque não abdica do que é: busca dar forma ao que não tem forma("'8"((+65(:'7;#2,-2(()+(0( 141 encrave-se, na sequência, o que se quiser. A definição, isto é, a delimitação do nada fere o princípio da contradição e, para uma lógica convencional, está fadada ao fracasso  eis a absurdez (risível) desse dichote. Entretanto, se o louco discurso anedótico não se rende a essa impossibilidade e se aventura a dizer o que não pode ser dito, abraça radicalmente a consequência dessa escolha: não apenas espera, mas espirituosamente opera, para ser bemsucedido, seu próprio insucesso. Este é que é, em certo sentido, o crivo da eficácia da blague: quando ela ostenta, inalcançável, o nada, está a apalpá-lo, trazendo à tona uma característica que lhe é essencial: sua inabarcabilidade. É assim que, se o logos vacila, o páthos do texto é poderoso, pois não demonstra conceitualmente, mas expõe pelo sensível da forma; a armação abrupta e, ao mesmo tempo, rodeante procura cercar à socapa o não ser pela imagem e dar-lhe o bote, deixando, ao fim, o leitor azoretado com palavras que remetem, justamente, a coisa nenhuma. Nesse tentâmen de enunciar o que não há, vai abalado um dado imanente das línguas naturais: a pressuposição de que tudo o que tem nome, por exemplo,      (FEITO, 1995, p. 135-136). Quem lê há de lembrar-se do alegorista do telégrafo sem fio, que, similarmente, põe para tirar, inventa para desinventar. A linguagem, exibida em sua imprestabilidade conceitual, gira no vazio, barrando ao homem o fundo da ideia do não ser, se bem que ele só esbarre com esta noção por causa da mesma linguagem. Como o próprio chiste, ela tanto tira quanto dá. Tudo isso é causa do livre e angustiado riso tutameico. Ou  agora o motivo lúdico  fornece-nos outro menino, com sua também              E com isso está-se de volta à poesia, colhendo imagens de eliminação parcial, como, exemplo à mão, as estrelas, que no     de Verhaeren:                    (ROSA, 1985, p. 10). A pilhéria do balão tem arquitetura muito semelhante à da faca, posto que seja ainda mais lacônica. A menção do brinquedo, coligada ao dado (ficcional ou não) de que o dono da abstração é criança, permite a Guimarães, por sua vez, abstrair, relevar, o motivo lúdico. De 142 ## 2!"$*)3+. ##!  #"!/2*)  %" *)3   #-se ainda da mesma espécie. '*2  #%3%" -Les moines (VERHAEREN, 1886, p. 11), inaugura outro subtipo de técnica abstrativa. Antes de qualquer coisa, contudo, é de observarse que, so ."#!" "2" !" *)3têm sido e ainda serão agrupados os mais variados gêneros textuais, ou por outra, as formas as mais diferenciadas: pilhérias stricto sensu, mas também ditos de espírito, coplas, quadras, parlendas, adivinhas, legendas, estorietas, provérbios modificados, versos de poemas eruditos, etc. Ludicamente, a heurística rosiana aconchega os chistes a gêneros supostamente não aconchegáveis a eles, como a lírica ou a poesia erudita e ainda outros textos de contextos e propósitos tão diversos, sem que, por isso, o leitor se sinta constrangido a perder de vista cambiantes e particularidades. No que tange aos dois versos de Verhaeren, não se trata agora de explanação metafórica do nada, mas de um símile, uma comparação de uma coisa com outra. De mais a mais, de acordo com a hermenêutica de Rosa, + '" !""$#2eliminação  3 Desenha-se uma imagem e depois se retira, abstrai, apenas uma de suas partes, de sorte que a impressão (de estranhamento, etc.) criada é menos impactante que a do tipo anterior. Este, por aspirar a definir o não ser, dava sumiço na totalidade da forma que acabara de suscitar; quer dizer, exibia maior radicalidade abstrativa. Nessas linhas em que a noite e o infinito, como um universo que ora, se derramam em atmosfera religiosa e sublime, o poeta belga compara estrelas a velas: as primeiras teriam bases invisíveis. Na  " #*) 2   #!   ! - !  !  ) dos quais não se vê elevar-!!"!3 92 Émile Verhaeren também compõe visão do 92 A edição de Guimarães Rosa, de 1906 (SPERBER, 1976, p. 200), é mais recente que a minha, de 1886. Nesta, $&24 *"3,-!2$ "3!#!0"!!" !2 " #"4""#"  !4#$ "# #" ##"$!$ !  !#!($ !! !!  "#4!!4$"! #  !#  #"4&# 4+"!!4! "!!" ! brillant là-haut sur leur chemin,/ Semblent les feux de grands cierges, tenus en main,/ Dont on ne verrait pas monter la tige immense./ Para o ledor nada galófilo, circula, pela internet, o que seria uma tradução espanhola, 143 que não há para ver; também traça já passando a borracha. Ao assinalar a distinção entre estrelas e velas pelo desenho de uma ausência, no extremo de todo o poema, em posição de destaque, apaga, no momento mesmo em que explicitamente a aponta, a haste imensa que ideara; aquilo que não está visivelmente presente é, pois, a derradeira imagem que resta a visualizar  e de tal maneira que ela, então, alterna eternamente entre ser e não ser. Se se repara bem, no entanto, os versos de Verhaeren (à parte a diferença já externada, abstraída, por Guimarães Rosa) não expressam uma eliminação de mesma estofa que a das definições desitivas, em que o corte e o choque entre o estar aí e o não estar aí são mais violentos (sua matéria, repito, é o não ser). Sinteticamente, eles enunciam que as estrelas pareceriam círios cujos talos são imperceptíveis, e não inexistentes. Esta redução revela uma forma de pensamento concentrada na subjetividade do (não) ver, e não na objetividade do (não) ter, conforme se passava nos ditos lapidares do ex-balão e da ex-faca. Tivessem os versos esquema mais próximo daqueles, diriam como que a#    ! $ Eis, enfim, outro motivo para que o #efeito anedótico$ da conclusão deste poema de laivos simbolistas, estou a falar com Guimarães Rosa, seja menos impressionante; e nisto não vai, obviamente, nenhum juízo de valor. Indo adiante, se Guimarães Rosa não esperdiça palavras, qual seria a necessidade de registrar que tem ao alcance um exemplar de Verhaeren? Inter alia, preparar um paralelo contrastivo com a informação de que cita, de memória, Apporelly (ROSA, 1985, p. 10)? Sem dúvida, porém, a formulação compacta e arrevesada do trecho dispõe estrategicamente os  #  $# $               quase indistinto farelo do texto, a figuração do poeta belga. Deste modo se estabelece também outro #    $   !-Canedo. Duas últimas estrofes: Ya abriéndose la senda sobre el ocaso rojo,/Cual planta de peonías, en la pendiente, místicos,/ Los árboles desnudos, los monges enlutados,/ Parece que en dos filas dirígense contritos/ Al Dios que siembra estrellas en el azul del cielo;/ Y como vacilantes llamas de inmensos cirios/ Cuyos tallos de cera se irguiesen invisibles/ En sus puños, los astros brillan sobre el camino. http://literaturafrancesatraducciones.blogspot.com/2009/05/emile-verhaeren-y-diez-canedo-4.html. Acesso em 09/11/2011. 144 paralelismo: tal como mãos latentes seguram (a base d)as velas/estrelas, assim também a mão do ficcionista, eixo interpretativo, sustenta a obra do poeta. Não se retorna, com isto, à questão da múltipla autoria, da leitura ativa que tem a mão, a marca, de Rosa? Ao inventar uma visão dos versos sublimes de Verhaeren, Guimarães Rosa está a reescrevê-los, melhor ainda, coescrevê-los. No poema, simbolicamente, o combustível (= haste) e o alicerce (= punho) dos círios que cintilam nas trevas, talvez se possa dizer, a coluna e a mão de Deus que dão força e suporte ao (significado do) mundo, são imperceptíveis, ou por outra, estão-e-não-estão-aí. A partir desta sugestão imagética, seria possível indagar o que acontece em uma estória como     !. Há algum combustível esconso que se consome ali e se deixa perceber, entre visível e invisível? Para prestar contas a essa pergunta, pode ser de bom alvitre espiar o texto anterior, -das-!                    contraposição entre a postura, ao menos inicial, do personagem Teresinho e a das mulheres que proferem preces por Drizilda. Aquelas senhoras são feixe de lenha mortificada, verdadeiras vel(h)as do Arroio que se crestam e queimam pela felicidade da viúva. Uma vez que a estória como um todo se mostra muito dócil a uma interpretação anagógica, torna-se verossímil concluir: é Deus que se inflama nelas; é ele o sustentáculo misterioso de seus lumes: Tomavam, todas juntas, a fé de mortificadas orações, novenas, nôminas, setêmplices        adivinhavam, sérias de amor, se entusiasmavam. Elas, para o queimar e ferver de Deus, decerto prestassem  feixe de lenhazinha enxuta. Para o forçoso milagre! (ROSA, 1985, p. 24). Já a oração semidistraída do ansioso Teresinho, posto que esforçosa e até inspirada por uma (estrambótica) obumbração mística, está carente daquelas mesmas qualidades ascéticas;                        ! (ROSA, 1985, p. 22), menos que abrasar-se e consumir-se, deseja apenas fazer arder o 145 combustível material da vela. Seu fogo interior é uma paixão já, de começo, titubeante, que se gasta ainda mais e se reacende em outra direção, Dlena. Teresinho espera antes mover a Deus que ser por ele movido: Devia, cada manhã, em igreja, acender vela e de joelhos ardê-la, a algum, o mesmo, santo  que não podia saber nem ver qual, para o bom efeito. O método moveria Deus, ao som de sua paixão, por mirificácia  dedo no botão, mão na manivela  segurando-lhe com Zidica o futuro. Sem pejo ou vacilar, começou, rezando errado o padre-nosso, porém afirmadamente, pio, tiriteso. (ROSA, 1985, p. 26). Por algumas velas reais e mentais, conscientemente, Teresinho reza apenas para o Santo incógnito. Por outras velas exclusivamente mentais, (quase) inconscientes, reza *$ !" $+ ao Diabo (ROSA, 1985, p. 26). Já quase no clímax do conto, pouco antes da peripécia final, em momento-chave para a interpretação do título enigmático, faz-se rendido e prostra-se '&"! $"$$"$"%"%""  *$-lhe a alma aos pés dela+    No correr do enredo, toda a intervenção do alto oscila entre manifesta e imanifesta, ""(%  ' ""(% !"# "#"%#  *Arroio-das- #"+, narrativa que confina com a fábula, é bem mais obscura * %+; tão nuviosa quanto o rosto #" $*$$#$!+    fé desimpedida das velhuscas e aquela outra hesitante de Teresinho encontram correspondência na convicção e errância de cada um dos respectivos focos narrativos. As certezas de um texto e as dúvidas de outro se embaçam reciprocamente. E por aí assoma a irresolução linguística (mas não supralinguistica) da visão de mundo do hermeneuta Guimarães Rosa, que dá e não dá fundamento à palavra; hesita, triste e brincalhão, entre o puro artifício e o arrimo transcendente. Valeria o salto de Verhaeren a Rosa: Terceiras estórias também são lumeestrela, estrela-círio de que se vê e não se vê a base, a origem última do sentido. Em seguida, o ficcionista refere-se a anedotas em que ocorre o que denomina eliminação total. Ora, não era esta já uma característica distintiva das definições por extração? 146 Pelo único exemplo aditado, é possível deduzir que o fenômeno agora é outro. De todo jeito, está ai uma passagem em que fica patente que o prefaciador se recreia, para o bem da multissignificação artística, no método e jargão técnico-científico. A escassez de ilustrações/comprovações para cada uma das espécies é um dos fatores que bloqueiam a compreensão unívoca, bem como a medição da acurácia classificatória da teoria.                o que é: que é melhor do que Deus, pior do que o diabo, que a                    (ROSA, 1985, p. 10). Nas definições por extração, uma substância concreta (como uma faca) é transformada em ex-substância quando sua compleição é desfeita inteiramente. Aqui, o objeto que é o centro da imaginação sequer é dado; nem no início  até por tratar-se de uma charada  nem no desfecho. A blague provê, isto sim, as qualidades abstratas (ao fim, resíduos ideativos sem fundo nenhum) que, supostamente, seriam aplicáveis àquilo que ela incita a vasculhar: algo melhor que Deus, pior que o diabo, comestível por mortos e vivos, conquanto mortal para ambos. Isso equivale a afirmar que aquilo que se abstrai nem chega a ser representado; quer se mate ou não o quebra-cabeça, o que é eliminado totalmente não é, a rigor, uma coisa, mas a expectativa de que uma coisa, uma noção, um ser qualquer possa atender, ao mesmo tempo, todas as exigências da pergunta: o que é? Expectativa esta inculcada por língua, hábito e tipologia textual. Assim, as definições desitivas, chistes que constam de uma única afirmação, e a adivinha, organizada em pergunta-e-resposta, diferem-se, antes de tudo, pela estrutura imposta pelo gênero.93 Mas, em adição, parece que as primeiras, embora também, de certa maneira, dêem em nada, laboram antes com o nada, enquanto o enigma da menina está, sobretudo, às voltas com nada, coisa alguma, e daí tira sua graça. Naquelas, o nada é, desde o começo, matéria cardinal da reflexão lúdica. Neste e em seu arremate, é mais o caso de que 93 O que não obsta que a adivinha seja, aqui, como é comum, aliás, fronteira ao chiste ou à anedota. A resolução, por exemplo, é fornecida e prontamente; o escopo rosiano não é sonegá-la, como em uma prova ou desafio direto ao leitor, mas exibi-la e discutir seus efeitos extáticos e estéticos. 147 nada              responde ao que se pede. A meditação sobre o não ser e a linguagem é fruto indireto deste último gracejo; chega em segundo tempo. Um dos segredos de sua armação é o tratamento concomitantemente uniforme e variado, natural e um tanto artificial               morfologicamente, sempre o mesmo; sintaticamente, não. Para as duas primeiras interrogações, a resposta é um pronome indefinido em posição de sujeito, de modo a comporse, implicitamente, uma negativa simples que é habitual ao português: nada (é melhor que Deus); nada (é pior que o diabo). Para as duas últimas, a resposta é um pronome indefinido em posição de objeto, de modo a compor-se, também implicitamente, uma negativa simples (e não dupla) que soa um pouco postiça: (a gente morta come) nada; (se a gente viva comer) nada, (morre). A homogeneidade morfológica impressiona e concorre para a valoração da tirada, pois é realmente a mesma palavra que resolve todas as questões. Por outro lado, a leve afetação verbal subjacente à segunda parte (um embustezinho da menina) e as variações sintáticas rendem certa elasticidade ao empreg      possa ganhar praticabilidade e inchar-se numa quadra de perguntas bem boladas. Esse grifo, posto, pelo ficcionista, na boca de uma criança e conhecido, com variantes ou não, em outros idiomas, representaria ou diria poeticamente o sempre irrepresentável sertão e a sempre indizível brasilidade? Para Guimarães Rosa, plausivelmente, sim. Lembro, em caráter meramente sugestivo, que, segundo André Jolles, a adivinha consubstancia um saber coletivo. Decifrá-la é aceder a um grupo, a uma sociedade secreta ou clandestina, a uma comunidade (o estudioso reporta-se, portanto, a círculos bem fechados). Tal peculiaridade seria atinente às realizações cultuais arcaicas e, quando muito, em sentido aproximativo, ao folclore; ou seja, às Formas Simples Atualizadas. Somente nestas, o enigma não cifra outra coisa senão o mito do grupo (JOLLES, 1976, p. 48, 110 e 116-118). Ficam, pois, do lado de 148 fora do conjunto as Formas Artísticas e as Formas Relativas, as quais não passariam de jogos. & - '!& " (&) /'!-se a impressão de que tudo, sem exceção, pode ser %#0 (JOLLES, 1976, p. 117 e 125). Não obstante, pergunto: essa charada endiabrada do sertão, cuja palavra de passe é nada, não se situa ficcionalmente entre o folclore, o brinco douto e humorístico e a pergunta-de-esfinge própria das iniciações ao mistério, em que as adivinhas &+# /%(&0? Na fala de André Jolles: /sempre que a adivinha alcança o seu significado mais profundo, é a vida que está em jogo, é nossa cabeça que se #0 /1 vinha #( !#%%2 0   , p. 113-115). Sim, e! /Aletria e hermenêutica0 é dada de bandeja a resposta. É somente depois, portanto, que o desafio tem sua entrância verdadeira, prendendo-se não apenas ao dito da pequena sertaneja, cuja interpretação não se completa, mas se inicia com o registro da resolução, como também ao prefácio e ao livro in totum, grifo a ser desvendado pelo leitor. Claro, em comparação aos mistérios, a radicalidade interpelativa de Terceiras estórias acha-se mitigada; no entanto, ainda é, pelo menos para a voz autoral, não apenas estético-intelectual, como também iniciática. Seja ou não seja, essa chalaça que beira perigosamente a má idiotice se revela, a meu ver, bastante criativa. Alguém poderia ripostar que um grifo bem maquinado é aquele cujo desenlace não decepciona, pelo contrário, surpreende prazerosamente. As interjeições resultantes de todo o processo devem ser como estas: /(%0, / 0, /(*0/ #!os #&0 / #!  %0, etc. Aquilo com que antes nunca se esbarrara faísca diante dos olhos: algo, impossivelmente, encaixa-se, de modo exato, no que se requesta. Justa, por conseguinte, a indagação sobre a força de um grifo que dá para trás em sua prova de fogo. Bem, o texto, na verdade, prevê seu sucesso engrolador porque graceja justamente com a rigidez de pensamento e expectativa: apenas algo deve completar as exigências do que é? Observe-se o remate  "+# &!$ &!"' /"0 !& /, "0  '!,! "+# ,  # menos linguisticamente, sim. Não existir coisa que atenda à incógnita não é o mesmo que não 149 haver boa réplica. O malogro na des-coberta do objeto está integrado humoristicamente à +punch line,. A não resposta é a resposta. Não há nada que satisfaça à pergunta senão o pronome indefinido nada. A solução não está no ser, aliás, nenhum, mas na palavra.                + !  ,ou +  $,+#&,+"(  Neger, ou na quadra de Apporelly, citada de memória: + ! ceroulas das mais modernas, não têm cós, não têm cadarços, não têm botões %', E é provocativo movimento parafrasear tais versos: Comprei uns óculos novos óculos dos mais excelentes: não têm aros, não têm asas, não têm grau e não têm lentes... Dissuada-se-nos porém de aplicar  por exame de sentir, balanço ou divertimento  a paráfrase a mais íntimos assuntos: Meu amor é bem sincero, amor dos mais convincentes: .................(etc.). (ROSA, 1985, p. 10-11).  Tentativamente adaptando: Eram dez negrinhos dos que brincam quando chove. Um se derreteu na chuva, ficaram só nove. Eram nove negrinhos, comeram muito biscoito. Um tomou indigestão, ficaram só oito. (E, assim, para trás.) 150 O escritor vai levando à frente, nesta prefação tão faceiramente acadêmica que até brinda o leitor com traduções e notas de rodapé, sua classificação irisada, sempre em jogo com a larga generalidade da noção de abstrato que serve de ponto de partida. Na eliminação em série, a supressão da imagem ou ideia que é o coração dos versos  negrinhos, ceroulas, óculos ou amor  também se dá por completo. Somente não se precipita; sucede-se como em regressão    "E, assim, para trás.#     continuidade do estilo contrasta com a subitaneidade dos grupos anteriores, mas a viagem para trás  antiperipleia  ainda é o modelo dinâmico-formal da anedota. A parlenda dos dez negrinhos, célebre no Brasil devido ao best-seller de Agatha Christie, teria    "Intruge-#, narrativa protagonizada por um tipo de detetive sertanejo, Ladislau. Ele é o líder de uma comitiva de boiadeiros cujos nomes estão todos arrolados até o final da primeira página. Este procedimento é estratégico porque materializa para aquele que lê um elenco ou uma lista de treze suspeitos de assassinato, incluindo, em primeira leitura, o próprio narrador.94 É ele quem apanha oito favas pequenas de jubaí e faz corresponder cada uma delas a alguns dos homens de que, naquele instante, particularmente desconfia. Lança-as fora uma por uma, conforme a hipótese se mostre infundada  e isto até acabar de mãos vazias... Tal processo, conquanto não idêntico, evoca a exclusão seriada, visto que cada vaqueiro nomeado vai deixando de existir para a suspeição de Ladislau. Não há aqui a maneira direta da parlenda, é óbvio; tudo é bastante tortuoso por causa de informações imprecisas e propositadamente atrasadas, o que está a serviço do clima de mistério, da charada da identidade do assassino. 94 O formato da justaposição frouxíssima de elementículos ou do dicionário ou do inventário ou do maximário ou do anedotário ou da criptoteca ou da série ou do catálogo ou da lista ou da enumeração (mostrativa ou nomeadora do mundo) é matricial em Tutaméia. Laqueia-se a uma problemática e imagética presente desde Corpo de Baile     "  -de-#   Primeiras estórias "    #  "  referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo      # (ROSA, 1988, p. 22, o negrito é meu). As Terceiras estórias trazem à ribalta nadas que, literalmente, entraram (ou perigam entrar) para o rol do esquecimento. 151 As ceroulas-não-ceroulas, cômicas porque reais e irreais, inimagináveis, sugerem também nudez. É por esta trilha intratextual que se estampam risíveis, para mim, certas ceroulas $*#  ,# "#- "  &$"-se se não há uma identidade cômico-*" $" #  ,' #  " !% "$)## $" # %#  #$""(#"%#-    De qualquer maneira, em sua paráfrase da estrofe das ceroulas, o autor introduz mais uma (des)imagem que, tal como acontecera com o telégrafo sem fio, tem força suficiente para extrapolar a estrita cercadura da anedota e alcançar estatuto metatextual; os óculos novos, sem aros, sem asas, sem graus e sem lentes são pequena alegoria do ponto de vista de Terceiras estórias, que é objeto de desejo. O lugar de fala aqui é menos um construído estático e positivo que a construção de um vazio in fieri; oco que, na verdade, também aparece, brota, fulgura. Estes óculos tutameicos não possuem nada daquilo que torna possível a visão, malgrado também a limite. São óculos que melhor se chamariam talvez desóculos ou ex-óculos, para usar chave de leitura da blague antecedente. O ledor talvez experiencie que, conquanto conceba, de algum modo, esses óculos negativos, contrastivos, nada vê. Com eles, mira-se de todo lugar e de lugar nenhum. Ou não prestam para nada ou operam o milagre de fazer ver sem enquadrar. A contemplação sem cerceios, a entrada em outro tipo de mirada, é aproximável da cegueira. São ainda óculos? A força encantatória das palavras ordena que, se se diz que sim, sim, embora estejam privados de tudo o que essencialmente os constitui. Mas e aí? São e não são. Existem linguisticamente, nunca factualmente. O riso nasce também da abstração, do cancelamento do consórcio que une as palavras e as coisas. O ficcionista passa da concretude (negrinhos, ceroulas, óculos) para a abstração, inserindo-a, a ela que usualmente goza de talhe nobre e sisudo, na ciranda dessa brincadeira antilógica e infantil. Com efeito, a última paráfrase, não finalizada, traz por assunto o amor. 152 Ela é precedida por uma (auto)dissuasão que cheira a ironia. Guimarães Rosa menos desencoraja que convida a que se tope a reinação perigosa e complete a singela quadrinha. É ambição do prefácio que as antes insuspeitadas chalaças encaminhem o leitor para uma sempre arriscada via de autoconhecimento; o que se ronda é, justamente, um íntimo e ignoto vazio difícil e bom de facear. Aquele que aceita o desafio, monte a coplinha como bem lhe aprouver, tem já prescrita, pelas fórmulas anteriores, uma ideia reversiva que suprime a si mesma: amor sem desejo, sem afeto, sem sujeito, sem objeto. Autoconhecimento do receptor da obra à parte, é pertinente anotar que existe aqui algo que está muito perto     !   ( * !  +. Nela, !!&! *' ! + $  ! *#    & ! "  + !  ! !  *# ec!+    !  !(% dos acontecimentos, claro, é que Titolívio, camarada seu, teria sustentado, durante determinado período, amor esquisitíssimo: não foi dono do sentimento entre falso e verdadeiro !!!!(*  +    p. 56). Em outras palavras, o caso amoroso careceria de sustância. Amor, amada e amante, tudo se faz fantasia, ficção; e o afeto, fluido transmissível... Seria Titolívio imitador contagiado pelo sentir secreto do amigo narrador, que, de alguma forma, ama Orlanda por meio dele? Ou, ao contrário, é o protagonista quem o arremeda por antecipação? Quem é duplo de quem? (ROSA, 1985, p. 156). Na sequência, o interesse do prefaciador volta-se para certo efeito estético de desilusão drástica  e é sempre bom reparar nesses entretons levantados pois eles têm ressonâncias nas narrativas de Tutaméia: Com o que, pode o pilheriático efeito passar a drástico desilusionante. 153 Como no fato do espartano  nos Apophthégmata lakoniká de Plutarco  que depenou um rouxinol e, achando-lhe pouca carne, xingou:  *  '& !   + Assim atribui-se a Voltaire  que, outra hora, diz ser a mesma           a estrafalária seguinte definição    *"              $##+ Seja quem seja, apenas o autor da blague não imaginou é que o cego em tão pretas condições pode não achar o gato, que pensa que busca, mas topar resultado mais importante  para lá da tacteada concentração. E vê-se que nessa risca é que devem adiantar os koan do Zen. (ROSA, 1985, p. 11). A primeira blague  até porque o texto dá margem a que se estime que Rosa continua raciocinando em termos de subgêneros, mas agora com foco em outros efeitos  poderia ser encarada como caso de eliminação parcial: saem penas e corpo, fica a voz. Contudo, *  +      (      %$ mais estrita. Comento algumas delas. O que é o que é que seria abstraído nesse xingamento de matiz epigramático, isto é, compacto, zombeteiro, conceituoso? Antes de qualquer coisa, as penas do rouxinol (sim, abstrair equivale aqui a depenar). Depois, já em outro plano, em sentido figurado, todo o seu corpo. O sujeito dessas eliminações é um personagem  deixo de lado agora as abstrações do humorista ou do leitor. O severo espartano (mais um tipo, assim como o português, o inglês, a criança) retira do pássaro toda a carnalidade e faz sobrar, desvalorizado, apenas um elemento que fica entre o material e o espiritual: a voz. Dito de outra maneira: há duas séries de exclusões, e de naturezas distintas: uma denotativa (o pássaro é realmente depenado) e outra conotativa e hiperbólica (pouca carne desliza para nenhuma carne). Como falar de eliminação parcial se a retirada das partes, em níveis semânticos diferentes, não produz aquele efeito de alternância ou piscação entre presença e ausência, sobressalente nos versos das estrelas-círio?    &    &          *    +    1985, p. 13), o ironista mineiro exime-se de etiquetar as chalaças de modo pormenorizado. O mais seguro para o ledor é pensá-las dentro da nomenclatura geral de anedota de abstração; 154 isto porque cada chiste chamado à baila tem arquitetura bastante complexa e dificilmente é encaixado de forma incontroversa nas subdivisões inventadas. Estas são, de ordinário, apenas rascunhadas; têm sua base, como já se observou, em uma ficção poética muito singular, e não na eficácia de uma lógica arquivística, apesar de todo o jeitão teórico-     Aletria e hermenêutica. De volta à anedota (logicamente bem menos tonteante que suas antecedentes imediatas), é de apontar que muito de sua riqueza lacônica reside em que nela se descortina uma conflução de mais de um artifício retórico: a referida hipérbole, uma metonímia  o pássaro define-se por uma de suas propriedades, a voz , e uma metáfora: ele é como ela, bonito e sem préstimo para o êstomago.95 Porém, o que sublinha, abstrai, o autor é a desilusão como efeito-impressão das abstrações do personagem. De subtração em subtração, o sujeito desaponta-se com o pouco proveito que lhe trará a carne e menoscaba a voz, signo do imaterial, do belo e do poético. Seu espírito pragmático, para o qual o trinado animal é pura futilidade, contrasta com aquele que subjaz a este livro tão descarnado que é Tutaméia; aqui o estético é assunto privilegiado de meditação (e é dessas minigâncias que se vai desenrolando, por contradição, o útil e o interessante). Não casualmente, em eco desta passagem  Aletria e hermenêutica, a primeira seção de Sobre a escova e a dúvida rabisca um Guimarães Rosa-rouxinol que é orçado (sob certa visada, por si mesmo, num sentimento de culpa pouco enrustido) como beletrista sem conteúdo sociorrevolucionário; literato devedor de matéria carnuda Você é o da forma, desartifícios...  debitou- , 1985, p. 164). Quanto ao suposto dito de Voltaire, ainda posso insistir na demonstração de como fica entralhada a subsunção das anedotas que vão despontando às espécies ou subespécies do 95 A metonímia apoia-se em uma relação real e lógica de contiguidade; a metáfora, em relação mentada e de comparação (GARCIA, 1988, p. 93-94). A voz é parte real do todo, o pássaro, e o substitui na oração; por outro lado, há um cotejo implícito e subjetivo entre ambos. 155 prefácio. O motete da metafísica é conchegável à eliminação parcial, à definição por extração e à eliminação total, sem, todavia, assimilar-se a nenhuma delas. Para ater-me só à eliminação parcial, desenvolvo algumas das convergências e discrepâncias. No símile de Verhaeren, o poeta apaga, abstrai, mais propriamente da percepção do que da existência figurada, algo que é, ao mesmo tempo, uma porção do cenário e uma fração de um objeto: a haste da vela-estrela que resta-e-não-resta ao final dos versos. Aqui o humorista, também no extremo da anedota e, no entanto, de maneira mais radical, está a banir, abstrair, da realidade desenhada algo que  erro do cego  nunca está nem esteve lá: o gato, metáfora do Ser. Pode-se sentir também a diferença com relação às definições desitivas do nada e às estrofes dos óculos e das ceroulas. Elas forjam o absurdo de formas que são e não são, estão e não estão, e, ambas, definições e estrofes, nele se comprazem, enquanto a (suposta) broma voltairiana, organizada a partir da oposição realidade x irrealidade, emite um juízo contra a estupidez risível de concentrar-se, na verdade, perder-se naquilo que não é. O gato, por sua vez, não é somente parte de toda a visão criada, mas também coisa integral. Compondo-se o texto como uma definição, a centralidade do bicho é notável: ele é o núcleo da ideia que se pretende explicar, a metafísica. Assim, se, por um lado, a última imagem, de modo semelhante às hastes do poeta belga, permanece-e-desaparece, por outro, é muito mais forte a impressão de nulidade: no miolo (do nome) da metafísica não há nada. Trocando em miúdos, a metafísica é busca obtusa de objeto inexistente. Aí está a reflexão de volta ao tópico da inutilidade; pouco antes, do belo e da arte, e, agora, de certa filosofia da coisa em si. Nas mesmas imagens confeccionadas pelo gracejo: a metafísica é um cego; de olhos vendados; em quarto escuro; à caça de um gato preto. Estes acréscimos em série de informação estão a serviço da subtração total do alvo, até que, finalmente, se dê a abstração icônica propriamente dita: o gato... Ops! Não está lá. Gozado é que, com exceção 156 do primeiro e do último, os demais fatores de embaraço que trabalham para tornar a empreita cada vez mais descabeçada, se tomados literalmente, fazem sentido apenas para quem enxerga. Acumulados progressivamente rumo à escuridão mais inescurecível, não dizem absolutamente nada ao cego. A rigor, só pode atrapalhá-lo sua própria natureza e o fato de o gato não estar lá.96 Não que o sujeito ($%#1%* !#%$ +.$2  $#' Guimarães, desconfio, com pitada de ironia; mas é que boa parte da principal estratégia argumentativa dissimula uma duvidosa gradação. A tenção complicadora, que faz rir com o ultracegamento, hiperbólica para efeitos de retórica, torna-se, ela mesma, um tanto ridícula e, aí, perde um pouco de sua força. Isto só é possível porque o inventor do motejo concebe um homem privado da vista, mas transfere para ele um transtorno que, em muito, só pode ser o de quem vê; não assume a perspectiva do cego, sua (des)ótica. Tanto é assim que tem visão superior; sabe o que ele não sabe: o gato não está lá. Em certo sentido, é o ponto de vista do cego que é o ponto cego dessa crítica mordaz à metafísica, concebida como ciência de resultados, finalista &#! #&#$ '* !#1#/#2 $"&%  bedelho no aposento e imagina e vê aquilo que o autor da blague não imaginou e não viu: quarto sem gato não tem de ser necessariamente quarto vazio; a metafísica ou o objeto que ela descobre, pelo menos para o ironista mineiro, podem sempre ser outra coisa.97 Também para o cego que não sabe que o gato sonhado não está lá, tateá-lo ainda é uma opção. Ver-se cego, carência-virtude, é condição !#$ 1  $&!'#$ "&"&',.2 (ROSA, 1985, p. 19). E aí, quando as trevas são aceitas e viram sinal de deslocação do olhar  da evidência para a esfera do invisível , as surpresas podem dar o ar de sua graça. Por 96 Nada se diz sobre o grau da cegueira, de maneira que se tem margem para supor que é absoluta. Afinal de contas, cego é, na compreensão mais geral e instantânea, aquele que não vê. 97 Ponha-se em paralelo o comentário de Kierkegaard à procura kantiana 1)'#"&%$%  & nesta coisa an sich (em si), mas ou ele persistia infatigável, com a ajuda do pensamento subjetivo, na tentativa de captá-la, e uma vez que era algo impossível, lhe restava a grande vantagem, aliás bastante irônica, de continuar esperando para sempre; ou ela (sic) a rejeitava e tratava de esquecê-la. Quando, ao contrário, quer às vezes mantê-$' ' -% 2  !  157 isso, a comparação com os koan, em que acontece quebra de expectativa, intermissão do pensamento e súbito despertar: Para provocar o satori o método mais comum é o emprego do Kean, que consiste em uma pergunta cuja resposta não corresponde às leis lógicas. O exemplo clássico é atribuído a vários mestres. A um deles perguntaram: 5) 0 # ) 6    &'$#")  5&1' &'  "#6 ' #!"(&'(' advertem que a resp#'( ".# 0 '!3   #)(&# $&)"(&!  5#& %) veio do oeste o Primeiro Patriarca?6 &'$#'(# 5$&'( "##&(#6 (BORGES, Jorge Luiz; JURADO, Alicia, 1977, p. 92). Desocupar a cachola não é coisa simples. É proeza: 5homem nunca tem a mente *,6 (ROSA, 1985, p. 187). O sertão é território em que a cabeça anda cheia; o estômago, sim, é que vai mais facilmente vazio.98 Enfim, para bulir na blague, o fabulador não teima que o gato esteja lá; cisma, isto sim, que o que se pode vir a achar nessa cabra-cega transcendental não é necessariamente o que se especula; recusa-se a tomar a ausência preanunciada como desencorajamento. Em contextura mais ampla, é possível pôr a troça da metafísica em apenso àquela citação de Sêneca que é uma das epígrafes de 5Sobre a escova e a dúvida6 5&# !' - &- ' + "( ) $'%)' *  '3 $ # "( ()  exercício, e que ficam sempre fora da vida; outros investigam-se com prazer e com proveito se resolvem. De todos te ofereço, cabendo-te à vontade decidir se a indagação deve perseguir-se até ao fim, ou simplesmente limitar')!""/.#$& )'(&&#&# #'*&(!"(#'6 $ 174). Terceiras estórias certamente têm maior sintonia com tais palavras ou com o gosto viageiro !$ 2(#"*# (&"5&#!"#'$2&(#6 ainda que a aventura ou o périplo seja às escuras, às tortas, às avessas. Tacteada concentração. *** Expostos alguns dos movimentos básicos do prefácio, reporto-me, um tanto bruscamente, às suas páginas finais, a fim de que dele se obtenha uma visão mais Dor de ou na cabeça é Leitmotiv marcante de Tutaméia#!)!%)1&'  5# corpo todo tinha dorde-cabeça6OSA, 1985, p. 136). Cf. p. 144, 185, 197 e 205. A cabeça é ou lembra uma caixa. Cf. p. 194, 198 e # #''-&#5Sobre a escova e a dúvida6''#&! $##!$#&(&#)".#'#'' 5Agora o caso ".#"#!"#''/6 985, p. 86). 98 158 integradora.99 Para dar fechamento ao círculo das ideias, círculo este repleno de blanks ou gaps como o mapa do sertão rosiano, abordo a temática do sublime e retomo a discussão do início deste capítulo sobre o exercício da argumentação e        Aletria e  . No que toca ao sublime de Terceiras estórias, já registro: sua química linguística não me dá impressão de homogeneidade. Por onde, pelo comum, poder-se corrigir o ridículo ou o grotesco, até leválos ao sublime; seja daí que seu entrelimite é tão tênue. E não será esse um caminho por onde o perfeitíssimo se alcança? Sempre que algo de importante e grande se faz, houve um silogismo inconcluso, ou, digamos, um pulo do cômico ao excelso. (ROSA, 1985, p. 16). Sem separações estanques, e sempre da perspectiva da fenestreca da palavra tutameica, sublime pode ser, antes de qualquer coisa, a própria fenestreca: a linguagem, como forma de (des)discurso; também uma ação, como o heroísmo trágico e circunspecto de Hetério; um objeto ou ser, como o cavalo Lirialvo, o boi e a girafa; uma brevíssima cena ou flesh, como alguns átimos da lapinha do Tio Bola, etc. Além disso, é possível que se carimbe com o selo do sublime uma sensação ou emoção ou sentimento, uma atitude ou maneira de ver ou ser, uma condição espiritual. Aqui se franqueia que o vocábulo pode corresponder, sem obrigatórias exclusões, tanto a uma vivência substantiva, ao sublime em si mesmo ou propriamente dito, quanto a uma vivência adjetiva, ao sublime, por assim dizer, periférico, acoplado a um substantivo qualquer, como o amor sublime de Romão, a alegria sublime de Sinhá Secada, a        Pontualmente, no extrato acima, metalinguístico, o sublime notabiliza-se como substantivo; esbambeia entre as esferas de criação estética, filosófico-metafísica e religiosa (e também ética, embora aí bem mais problematicamente e esfingeticamente). No mesmo prefácio, em particular, o sublime é produzido ou, quando menos, sugerido ou engatilhado, de maneira consciente ou não, por meio da técnica de composição da forma anedótico-poética e/ou por sua hermenêutica, seja esta, em câmbio, automática ou Minha in                Aletria e hermenêutica   possível. O leitor há de perdoar-me este salto nem um pouco sublime. 99   159 sobrerreflexiva, meditativa. Tem por matriz estilística (seguida, em linhas gerais, a orientação ficcional do último trecho citado, mais analítica que sintética) um arranjo que sai, principalmente, do ridículo ou do risível100, passa pelo comum (prosaico? universal?), para aí, então, altear-se; entretanto, nem a presença integral dessa tríade nem sua sucessividade ou linearidade devem ser tomadas inflexivelmente. Ao sublime tutameico não se chega, ad extremum, por uma reta ascendente, e, sim, por uma arremetida. Isto é, seguem-se normalmente os trâmites do verbal, do imaginativo e intelectivo  já com seus silêncios, espasmozinhos e despassamentos da lógica convencional; todavia, o sublime antes i-rrompe, sobre-ssai, numa espécie de transportamento (quase) inteiramente não verbal, entrado a uma significação superior;101 tudo isto de tal sorte que se retorne para a linguagem, conforme indigitam as rúbricas entre os chistes (embora elas próprias possam encapsular o sublime), a posição apenas inicial (ainda que movente) do prefácio e o terminus rotatório de Tutaméia. Num aproveitamento da farta revisão teórica da categoria102, o sublime do livro poderia ser apreendido como uma sensação ou experiência de vazio e plenitude, horror/angústia/susto/choque (há, nas piadas, inclusive, uma punch line), mas também entusiasmo perante o inominável ou o escomunal, o sem-sentido das palavras e das coisas (a seleção e a mixagem e a proporção dos ingredientes são variáveis); enfim, momento psíquico excepcional em que o espírito se vê diante de um excesso ou grandeza, altura ou fundura, que o fascina e subjuga, inunda e aniquila, ilumina e entreva. Posto tudo isso, eis, então, uma das explicações plausíveis para a configuração da obra, embora por demais globalizante, a meu ver: diante do sublime  seja o informe, o 100 O grotesco terá papel vultoso apenas nas estórias. Por outro lado, nelas, torna-se muito mais ostensivo que o sublime não parte obrigatoriamente da comicidade; há, para ele, outras construções além desta agora em pauta. 101 Óbvio, não é imperioso, em absoluto, que o humorista ou o inventor da anedota ou o poeta vivam o sublime real e interiormente enquanto o criam ou o preparam verbalmente. Por outro lado, também a vivência do sublime de Tutaméia por parte do leitor é, em boa dose, contingencial. 102 Ver, por exemplo, Aristóteles (1992), Victor Hugo (2004), Schopenhauer (2009a), Abbagnano (2000), Abrams; Harpham (2009), Mikics (2007), Aron; Saint-Jacques; Viala (2010). 160 nada, o divino , todas as coisas se fazem miudinhas, tutameicas. A narrativa o insinua, mas rateia sempre: gagueja, despedaça-)$*(#%"&)%#+5$*/%%$((%(%% fio. Toda estória pode resumir-se nisto:  Era uma vez uma vez, e nessa vez um homem. Súbito, sem sofrer, diz, afirma:  7 Mas não acho as palavra)6 &% negrito é meu). Por coerência de leitura, e em que pese a generalização rosiana, por sinal, hiperbolizante, prefiro balizar o campo de operacionalização do conceito, de jeito a pespegálo a passos determinados. )%*(1)-#&"%)&(!#!(%5+(!$ %)*3(!6 5'+$/%-!)*#!) descontornada, nem pode sozinho lembrar-se, sufoca-o refusa imensidão, o assombro %#!$.,"6 & )+$%5!*%6 Remoto, o touro, de imaginação medonha  a quadratura da besta  ingenerado, preto empedernido. Ordem de mistérios sem contorno em mistérios sem conteúdo. O que o azul nem é do céu: é de além dele. Tudo era possível e não acontecido. [...]. Errático, a retrotempo, recordava-se sobre nós o touro, escuro como o futuro, mau objeto para a memória. Põe-Põe fingia o pio de pássaros em gaiola, fino assobio. Nhácio ora desabria sacudidos dizeres, enrolava mais silêncio, ressofrido. O touro, havendo, demais, exorbitante, suas transitações, e no temeroso ponto, praça ao acaso. (ROSA, 1985, p. 73-74). O terceiro, do próprio prefácio:                 reduzir a girafa, que passava da marca:  5%1)*.,$%))! %2 %!) " $/% -!)*6  como recurso para sutilizar o excesso de existência dela, sobre o comum, desimaginável. Dissesse tal:  Isto é oque-é que mais e demais há, do que nem não há... (ROSA, 1985, p. 13).  $%0/% % )+"!# *" %#% )$,%",! # 5Aletria e hermenêutica6 *# defrontações ou arredores semânticos bem específicos: o prosaico, o minúsculo, o ridículo, o cômico, o grotesco. Não é o tracejamento destas fronteiras que dá o diferencial ou a nova rosiana;103 porém, em primeiro lugar, sua confinidade, interpenetração aguda e... distância  103 Para Jean Paul, v.g., o sublime ou o admirando opõe-se ao risível, que consiste no infinitamente pequeno (ALBERTI, 2002, p. 161 e 167). E, como se verifica no prefácio de Cromwell de Victor Hugo (2004), é clássico o antagonismo entre grotesco e sublime, ali, a propósito, também adversado. 161        salto mortale  (ROSA, 1988, p. 72); em segundo lugar, o trabalho formal implicado por isso tudo. Assim é, por exemplo, na comicidade grotesco-sublime da                ; comicidade esta que se alquimiza, por um pulo misterioso, no desenho da catadura feérica do padre penitente: O padre inaplacado orante  tempo seqüente. Ele se ajoelhara, em cruz os braços, lá onde estariam enterrados os corpos  hic situs est... exstinctus...  sem figuras, só pó, no dormir infrene, sob pedras que muito se pisavam. Todas as noites não rojam uma igual profundeza. Cá o sacristão também se prosternou, junto ao harmônio. Recuara o maçom, até à parede, ao grande olho gradeado. [...] No repente! O padre  caído  dele se afastava, gerara-se, quadrúpede, formidando, um ente... O maçom e o sacristão, em esgazeio de estupor, viam o que tresviam. Sombração. A porca preta!  desdominada, massiva, peluda  pulava o gradil, para a abside, galgava os degraus do altar, vindo estraçalhar a toalha, mantel puríssimo de linho... Mas, empinada, relanceou para cima  fogo, em pez e fauces. [...] [...] Todavia, desde a data, ele se transformara  afinado, novo diáfano, reclaro, aí se sorrindo  parecia deixado de toda matéria. Também, e tão velhinho moço, depois logo morreu, suave, leve, justo, na sacristia ou no jardim, de costas para tudo. (ROSA, 1985, p. 202). Existe aí, claro, uma herança milenar, e o ironista não deve pouco a ela. Não obstante, sou descrente da possibilidade de subsumir o sublime tutameico, sem mais nem mais, a quaisquer das teorizações modelares (Longino, Burke, Kant, Schiller, Hegel e Schopenhauer). Entre outros fatores, como a interpretação que eventualmente se faz do que ocorre com a razão em todo o processo, há um que me soa inapelável: a dicção elevada  uma das características distintivas desse estilo  mina-se no prefácio e nas estórias; nunca se atinge a altissonância e a eloquência tradicional, assim como o Zito, aliás, sertanejamente a concebe:104 Aprovava maneira maior: arrancos, triquestroques, teúdas imagens, o chio de imitar as coisas, arrimada matéria, machas palavras. Do jeito, seu ver, 104 O poeta-guieiro sabe apreciar também a maneira miúda (ROSA, 1985, p. 182). 162 devia de ser um livro  para se reler, voz aberta, mesmo no meio de barrafa, galopes, contra o estrépito e eco dos passos dos bois nos anfractos da serrania. (ROSA, 1985, p. 180). Por contraposição, aviste-se agora, a visar efeito de sublime, a discrição na descrição $ )"%!$ #)'!  -# ($ ( )'+( #$"#(*'.+(  #$)  6' %ara o lugar: fechada quieta a igreja, sua frontaria de cem palmos; o adro mesmo ermo  com o cruzeiro e coqueiros  $1*(()'!$7 % Ou a clivagem, a latência, a exiguidade e a pequenez das imagens supinas, a serem pinçadas por lente microscópica:105 [...] Tio Bola tateou o cocho: limpo, úmido de línguas. Empinou olhar: a umas estrelas miudinhas. Espiou o redor  caruca  que nem o esquecido, em vivido. Tio Bola devia distrair saudades, a velhice entristecia-o só um pouco. Riu do que não sentiu; riu e não cuspiu. Estava ali a não imaginar o mundo. Deitava-se no cocho? Não como o Menino, na pura nueza... O vôo de serafins, a sumidez daquilo. Mas, pecador, numa solidão sem sala. E um tiquinho de claro-escuro. Teve para si que podia  não era indino  até o vir da aurora. Que o achassem sem tino perfeito, com algum desarranjo do juízo! [...] Viu o boi deitar-se também  riscando primeiro com a pata uma cruz no chão, e ajoelhando-se  como eles procedem. O mundo perdeu seu tique-taque. (ROSA, 1985, p. 135-136). Ou o prosaísmo da conversa oca, sublime e cord-ata do ex-dono do cavalo com o exdono do retrato, bem como a contenção "$)+  #''0/$  6( foram, conformes no ouvir e falar, mero conversando assim aos infinitos, seduzidos de piedade, pelas alturas da #$)7  p. 149). Ou, finalmente, o nada de prolixidade do sublime de certas gnomas tutameicas:106 6 mundo, vão de descomedir-se, mofoso confuso removendo-se.7985, p. 200). 6  o absoluto amar  &*!&*'*((''*)7 % 6'!+.!$# $##$ +') &* ($# *#) $ (*!"  (%'(/$ ( 6,%'((3( '#$((7 #'&*"-no o 6()!$ %$' "( ''$  '"#)$ " %!+'#(  %$*( (2!(7  $ 6excessivo retalhamento das '((7&*#$16reduzida a dimensões curtas demais, a grandeza mutila-(7 (ARISTÓTELES, 1992, p. 109 e 110). 106 Entre um sublime amplificado, abundante, e outro, adensado, Rosa escolhe este último, avalizadíssimo por Longino  $ (*!" 1 $!"$ 6"*)( +-( )1 #*" 4#$ %#("#)$7 A compressão do estilo da obra rosiana, no entanto, truísmo dos mais puros, é de um grau que desmantela o estalão clássico. (ARISTÓTELES, 1992, p. 84). 105 163 ,'+$'/')&*+%'"4 % ). A trechos, o sublime coincide com os momentos sentenciosos do estilo, os quais o crítico Paulo Rónai costura, com acuidade, à linguagem oral do sertão (RÓNAI   %   3 ()0' $ $"" $ #*!$4 verbaliza pensamento similar3Súbito acúmulo de adágios  recurso comum ao homem do campo, quando tenta passar-se da rasa realidade, para principiar em fórmulas suas abstrações4e, p. 158).107 Muitos teóricos ensinam que não há conteúdos sublimes a priori  e que isto se dê aqui por aceite. Entretanto, a seleção temática de Terceiras estórias vai de encontro aos lugares-comuns da Retórica e aos padrões da Estética e do Romantismo. Onde, só por simples exemplos, os trovões da guerra, as arquiteturas gigantescas e a infinitude oceânica? As "%#( "!)'( ()-$ ()#)(   '$' (-$ %#( "#( 3%'*'4 construção maior que resta lembrável é o sobrado-($!%'$+##$3*')"-$4, nem por isso sublime; além dele, com bem menor espaço narrativo e força de impressão mnemônica, uma e outra casa-grande, etc; finalmente, mal se tem notícia de massa de água salgada. Sim, o sertão ainda é, implicitamente, imensidão deserta, grosso mar engolidor; seu marasmo e desolação, sobretudo, horriferamente acaçapantes. Mas onde aquela linguagem pletórica que tudo arrasta consigo, aquela vastidão evidente, aquela emoção arrebatadora de um Grande Sertão: Veredas, em que o sublime atinge cumes soberbos? Entre o Grande Sertão e as veredas, é por estas que opta entranhar-se Tutaméia  se bem que, tanto em uma obra como em outra, grande e pequeno não se oponham simplesmente.108 Sim, cá e acolá, existem, no opúsculo último de Rosa, atos magnânimos, mortes trágicas, gigantismos naturais e cataclismos  motivos que tradicionalmente 107 Não que haja cópia do que seria apenas (será?) conservador, proverbial, na fala sertaneja. In statu nascendi, o rifão de Tutaméia deriva de rasgos (re)criativos, energias disruptivas. Cf. nota 31, na pagina 53 desta tese. 108 Em Sagarana, o contador ainda escreveu 3$'&* #)  *" '+), (!+ "$! " ''$ 1#$ dizer-se apenas drimirim ou amor-meuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinqüenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo  Ó colossalidade!  # '.-$  !)*'4    %   Embora insegura, tendo a achar que, ali também, o apequenamento do sublime já entrou em vigência, posto que não esteja radicalizado. 164  &$!&$& &!%' /"!$ chuvas e trombas, desesperara-se o povo, à estraga, em meio ao de repente mar  as águas antepassadas  por cima o Espírito Solto. &-$! &(  &,!  %'%&0     "  % )%& &- $' %  namorados, obsessões comezinhas, ações, perdas e êxitos sem grandes ecos, quinquilharias: acontecimentos (aparentemente) triviais. Sob enfoque romântico ou clássico, o livrinho rosiano seria prosaico demais para ser sublime; muito colado ao humorístico, ao a-pático, ao desarmônico e ao minutíssimo. A porfia poética de Guimarães Rosa é justamente esta: arranje-se você com óculos novos e mire e veja se não seria sublime demais para ser prosaico. Para mais enredar, pode ser dito que uma boa porção ! %'  /Aletria e hermenêutica0& &!!$!Terceiras estórias, paira em algum lugar no envés do texto, no negativo das imagens; um tanto invisível, situa-se mais no branco da página do que no preto da linha. Como se o silêncio gestasse o sublime, que, por sua vez, só pudesse rebentar para a consciência ficcional ou espiritual à força de um toque ou de um tranco: seja da inspiração, do insight, do acaso e da argúcia (serendipity), da liberdade, de um não sei quê. Ou como se o sublime se apresentasse, a quando e quando, de modo análogo ao avião de ""!$* /1 $!%+ &$$$#' !  ,!%!(20  " 12).   $$ &!  / $%0 %$ )"! instar omnium. Haveria em tudo isto alguma relação com o parecer de que, na modernidade, o sentimento religioso é recalcado ou se refugia no inconsciente, manifestando-se nos sonhos, nos lapsos, etc.? (ELIADE, 1999, p. 11). Não me inclino de todo à hipótese, antes de qualquer coisa, porque ela me parece mais consentânea com o universo europeu. Em todo caso, fica posta a pergunta. Para completar, o emburacamento e apequenamento do sublime, sem deixarem de ser isto o que são, plano estético, amarrar-se-iam igualmente ao momento histórico brasileiro. A pulverização da liberdade de pensamento e de palavra, ou seja, a ditadura política, assim como a corrida 165 desembestada e subinte, sim, mas pelo capital, não amanha, para dizer o óbvio, conjuntura propiciosa ao estilo.109 Após os descaminhos e paradoxos desse sublime escaqueirado, encolhido e embaulado, passo àqueles da polemística rosiana: Veja-se, vezes, prefácio como todos gratuito. Ergo: O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber. Quod erat demonstrandum. (ROSA, 1985, p. 17). Tese patente do começo do prefácio é a de que as anedotas, o humor e a arte, porque desapertam as fivelas da lógica, induzem ao espertamento místico. 110 É justamente sua demonstração que põe em movimento o texto, engrena a estratégia de convocar uma fileira de blagues e levantar rastos que se julguem catalisadores do transcendente. Disto tudo se depreende, entretanto, um silogismo dialético ou retórico, cuja primeira premissa, esta sim, pode ser tomada como o ponto de apoio do processo, ou antes, do voo argumentativo de Aletria e hermenêutica, desde que se pondere que é generalizante e incompleta, inepta para dar conta de tudo o que pertence à pirueta em direção do admirável: 1. O escanchamento da lógica pode conduzir a realidades ou formas de existência/apreensão superiores. 2. As anedotas de abstração escancham a lógica. 3. Logo, elas podem conduzir a realidades ou formas de existência/apreensão superiores. De resto, e  ealidades e formas são compreendidas variadamente: sublime, suprassenso, pensamento mágico, alegórico espiritual, transcendência, etc. O silogismo assume o formato da possibilidade, e não o da certeza, primeiro, porque é recortado de um discurso que, em última instância, enraíza-se na subjetividade e na fé. Confirme-não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos 109 Lá muito atrás, e em outra contextura, Longino recusa, com pouca hesitação, a ausência de democracia como causa da suposta pouquidade de escritores capazes do sublime em sua época (o problema era quantitativo, e não qualitativo). Prefere uma explanação que reputa exclusivamente moral: são as paixões e, primordialmente, a idolatria à riqueza ilimitada que impedem o florescimento do sublime.  ma doença que     , 1992, p. 113). 110 Os comentários seguintes privilegiam o foro do sagrado, que abarca, mas ultrapassa o filosófico e o estético. 166 envolve e cria,    , o negrito é meu). Segundo, porque o afrouxamento ou a suspensão da razão podem ser atinentes a territórios outros, conquanto perimetrais, como o da loucura, filão também caro ao livro. Terceiro, porque o chiste não impõe, mas propõe à liberdade do destinatário uma nova e outra dimensão (ROSA, 1985, p. 7). Tudo isso equivale a dizer que, sem embargo todo o cômputo intelectualista, a premissa a partir da qual decola #!+Aletria e hermenêutica, não se sintetiza em um juízo racional e empiricamente universalizável. Para admiti-la como verdade (mas não para vivenciar o maravilhoso do cômico), é forçoso crer nela; dar um salto de fé. 111 Paralelamente, na apreensão dos chistes, a abertura ou rompedura provisória dos planos da lógica não são razões suficientes para o ingresso em cena de outra percepção  satori, se se quiser (ROSA, 1985, p. 12). Delas não se segue necessariamente uma incursão no espiritual ou uma captação do invisível. Se assim o fosse, qualquer leitor do prefácio ou do livro sairia deles iluminado, portento que, sou compelida a presumir, não acontece, embora nenhuma pesquisa acadêmica tenha sido realizada a respeito. Aqui também se faz imprescindível um salto  da fé e/ou da liberdade e/ou da consciência e que tais; sempre com algum "&$+' ,"+! ,      %"+Aletria e hermenêutica, (""  "  uma grande anedota, a espera da catapulta da fé, do solavanco da consciência, da intervenção do impalpável. Por aí também, pela via da assunção dos limites e buracos da malha lógicoinventiva, entra seu componente autoirônico.112 O sublime leitor que se projeta nas palavras do poeta é, sem dúvida, aquele que, amigo das inquirições metafísicas, não apenas acosta o seu barquinho de leitura naquilo que coube na obra (o que já é senhora provação em se tratando de Tutaméia), mas também o embica no abismo eternal que mal foi descerrado. O 111 Se meu entendimento do prefácio estiver correto, não é preciso que se tenha tido contato com a teoria fabulada nele para que as piadas obrem seu prodígio em virtuais receptores; tampouco que, conhecendo-a, se responda a ela como simpatizante, conquanto este seja, hipoteticamente, mais receptivo aos efeitos pressagiados. Os ditos de espírito teriam o poder de arrastar uns e outros de roldão. 112 +! )#,( +Aletria e hermenêutica,     167 prefácio, entretanto, franqueia-se a outros olhares; não é preceptista e confessa a precariedade de sua retórica chistosa  entre a sandice e o insight, brincando com ela. No íntimo de Aletria e hermenêutica , falta uma coisa cardinal: o segredo da passagem do absurdo ao supersentido; algo co -   o pulo do gato, não fosse restrito, lá no fim, o papel da destreza e do saber. Na verdade, quem quer que pretenda encontrar racionalmente a garganta pela qual se imerge no cômico para emergir do excelso não o conseguirá, pois ela é, em termos rosianos, mágica. Daí a ideia crucial de salto, e ainda que a fresta seja da largura de um fiapo. Se no miolo da argumentação há um oco, é porque ela não desiste de demonstrar o indemonstrável  eis uma pendência incrustada na estrutura do texto. O ironista é consciente de que abstrai, silogiza, filosofa e arrazoa sobre o im-provável. Apela o tempo todo para um instrumento, a razão alargada, que sabe não ser resolvente, se bem que, nem por isso, dispensável. Como tirar a prova do pinote que leva do simplesmente alógico ao mágico? Este pode ser, na melhoríssima das hipóteses, encenado e evidenciado por uma evidência... não tão                   Aletria e hermenêutica não é objetivamente verificável, pois supõe a imisção de um quê sobrenatural; só pode concluí-lo quem quer que ultrapasse a razão e experimente o enlevamento. Até certo ponto, é o sentido inventado, a linguagem, que funciona como mediador entre o não senso e o suprassenso. Mas isto ainda não é Tutaméia; resta a passagem imediada: nadica de nada ou tudo; nonada em que tudo se dá. Algo decisivo age misteriosamente ali, naquele meio, naquele hiato mudo entre o desafogo da razão e a iluminação tutameica; não açambarcável pela munição retórica e, por isto mesmo, interdito, circun-scrito pelo verbo rosiano. Seria a graça, atuação imponderável, desinteressada e livre do divino. 113 Oculta, 113 Outras interpretações, não forçosamente conflitantes ou incompatíveis com esta, têm pertinência. Aquilo que não está contido na obra é quase tudo, o próprio infinito, o nada, uma gigantesca incógnita. Este conceito algébrico é importante em Terceiras estórias. Como fica à mostra no índice, a organização das estórias segue a ordem do alfabeto (exceto aquele famoso desarranjo           168 apesar de estampada, graciosamente, já na primeira página. Se é pela Graça que se vai da graça à Graça, Tutaméia é cisco, nica; apenas a menininha do olho pela qual a Luz Dela atravessa. Deste modo, aquilo que a obra mais cobiça articular, a paixão pela qual palpita, corresponde, precisamente, ao que ali nem não coube. Fazer caber, aliás, seria sem cabimento; uma negação daquilo que o Guimarães Rosa de Terceiras estórias só pode insinuar dizendo sempre de menos. Não #deveu$ caber. O verbo acusa a obrigatoriedade (razoável, piedosa) de um impossível, a frustração ou falseamento programados, que são, inclusive, medida do êxito e da verdade alcançada. Cheio de graça, a seus olhos semimodestos, o prefácio é belo, sublime... e risonho com isto tudo e consigo mesmo. Esta tríade remete às três acepções basilares do substantivo, # $ # $ #$        indiretamente recuperadas, pela circularidade ou antiperipleia da escrita, na afirmação de que #Aletria e hermenêutica$! preâmbulo gratuito. Constituindo-se, mais exatamente, a partir da contradição entre interesse e desinteresse, utilidade e inutilidade, a meditação é gratuita enquanto dádiva simbólica ao leitor (quiçá até intermediadora da Graça ela mesma!); e enquanto coisa irônica, destituída de justificação cerrada ou fundamento sólido. Veja-se, vezes, prefácio como todos gratuito. Ergo: O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber. Quod erat demonstrandum. (ROSA, 1985, p. 17). Repare-se, de primeiro, no riquíssimo (ou paupérrimo) motivo do (des)valor, primacial em Terceiras estórias; depois, na relação de causa e consequência entre os antônimos. Às vezes, a validade deriva da própria gratuidade: o prefácio é gratuito, ergo, pode valer pelo que não pôde nem deveu fundamentar. Ops! Não está lá. Foi subtraído, abstraído. Não há nenhum título de narrativa que se abra com ele. O desconhecido, o mistério, não é algo que esteja simplesmente in-scrito na letra, no texto; pode transbordá-los ou fazer presença pela ausência. 169 Tudo arrumado não houvesse uma última nota humorística. Em que pese toda essa liber(ali)dade e indeterminação, o teor cabalisticamente matemático e a eloquência da medida e do cálculo giram a chave do texto. Ironia? Sim, mas não no sentido de que o que se pensa está claro, pois é o inverso do que se diz. O ficcionista remata com o fraseio pelo qual eram concluídos os raciocínios euclidianos, mais tarde, já em língua europeia, utilizado genericamente !                " (TOSI, 1996, p. 35). No gerundivo, a frase denota, de novo, obrigatoriedade; tradução literal !       demonstrado". Tem graça... Que diabo foi milimetricamente atestado nesse lacunário que é !Aletria e hermenêutica"? Que as anedotas estimulam ou podem estimular a captação da !         "      que se descascasse esse abacaxi, para que se atingisse semelhante rigor demonstrativo, seria imperioso aplicar-se a garantir a primeira premissa, explicitada acima. Salvo engano meu, portanto, o que se afiança neste estranho prefácio revolvente dos princípios do gênero é a única coisa que realmente poderia e deveria ser afiançada: o ultrassenso não cabe no senso. Note-se, quanto a isso, que a expressão latina pode ser colada ao texto prefacial como um todo, à sua tese medular, ou também, de modo direto, à oração precedente. Ao fim e ao cabo, dá-se um enrosco entre negatividade e positividade. Quod erat demonstrandum, fórmula positiva, exibe-se gravada com tintas negativas: o que está certificado é que nada de substancial foi certificado; o que está validado é que o livro pode valer por aquilo que não foi validado. Estes negativos, não obstante, estão a léguas de qualquer absoluto ou monocromia; são frestas.                 !  "        algum modo, reconhecido pela própria razão como racional, isto, claro, não dilui a problemática do texto, cuja sublime (in)conclusão é apreciada pelo poeta porque ambas, dúvida e fé, querem sair desde a liberdade e encaminhar-se para ela infinitamente. O prefácio 170 tutameico enceta-se, permanece e conclui-se fundeado em tudo, no vazio que é vão para a Graça, e em nada, em toda a gratuidade do pensar, como em um exercício meditativo cuja resposta última está fora da vida ou acima das forças da linguagem. Eis aí, nessa alternâcia, algo da precisa imprecisão da álgebra mágica rosiana. 171 REFERÊNCIAS 1. DICIONÁRIOS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ABRAMS, M. H.; HARPHAM, Geoffrey Galt. A glossary of literary terms. 9. ed. Boston: Wadsworth Cengage Learning, 2009. ARON, Paul; SAINT-JACQUES, Denis; VIALA, Alain. Le dictionnaire du littéraire. 2. ed. Paris: PUF, 2010. AULETE PORTUGUÊS. 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