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Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG F488.Yr-p Rios, César Motta. O próprio e o comum [manuscrito] : rastros da interculturalidade na escrita de Fílon de Alexandria / César Motta Rios. – 2013. 403 f., enc. Orientador: Jacyntho José Lins Brandão. Área de concentração: Literaturas Clássicas e Memória Cultural. Linha de pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Bibliografia: f. 372-403. Anexos: 400-600. 1. Fílon, de Alexandria. – Crítica e interpretação – Teses. 2. Interculturalidade – Teses. 3. Judaísmo – História – Período pósexílio – 586 A.C.-210 D.C. – Teses . 4. Judeus – Diáspora – Teses. 5. Convertidos ao Judaísmo – Teses. 6. Filosofia judaica – Teses. 7. Alteridade – Teses. 8. Tragédia – Teses. 9. Literatura – Teses. 10. Bíblia. A.T. – Teses. I. Brandão, Jacyntho José Lins, 1952-. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Título. CDD: 189.2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS CESAR MOTTA RIOS o próprio e o comum: rastros da interculturalidade na escrita de Fílon de Alexandria Belo Horizonte 2013 CESAR MOTTA RIOS o próprio e o comum: rastros da interculturalidade na escrita de Fílon de Alexandria Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Literaturas Clássicas e Medievais. Linha de pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural. Orientador: Jacyntho José Lins Brandão. Belo Horizonte 2013 Para minha família, inclusive você, ‫נחלת יהוה‬, que chegará em breve. AGRADECIMENTOS Os agradecimentos não são parte tão à parte da tese. Eles revelam o caminho, emolduram o que se coloca e se defende, lembrando que o resultado advém de um processo cheio de encontros, e que, embora um só nome assine o texto, outros tantos o suportam. Claro, só menciono as pessoas (o café, por exemplo, tão importante, fica de fora) diretamente relacionadas, confiando na memória (que é falha). Agradeço ao meu orientador, Jacyntho José Lins Brandão, por acolher minha pesquisa sobre Fílon desde a graduação, com confiança e tranquilidade. Já disseram que eu seria doutor em “Jacyntho” depois de tantos anos sendo orientado por ele. A verdade é que o Jacyntho dá grande liberdade a seus orientandos, não impondo nunca seu pensamento. Mas sua leitura experiente nos traz a segurança de que, se preciso, o caminho será corrigido. Agradecido, considero-me privilegiado. Pois bem, o agradecimento se estende aos professores que me ensinaram em aulas durante este doutorado (Reinaldo Martiniano, Ram Mandil, Júlio Jeha e Lyslei Nascimento); ao professor Teodoro Rennó, que avaliou o projeto definitivo desta tese e fez uma crítica pontual que se revelou especialmente importante; à professora Tereza Virgínia Barbosa, que participou da qualificação e da defesa, ocasiões em que ofereceu valorosas sugestões; à professora Graciela Ravetti, que leu uma versão do projeto desta tese e, com a costumeira sagacidade, apontou possíveis ênfases e desdobramentos, o que teve parte no curso de mudanças posteriores; aos colegas de FALE/Pós-Lit, dentre os quais destaco os que colaboraram de alguma forma: Thiago Bittencourt, Gilson Santos e Gustavo Araújo. Sou muito grato também a pesquisadores de outras instituições que, em certos momentos, dedicaram parte de seu precioso tempo para, por gentileza, contribuir de alguma forma. Destaco o professor Manuel Alexandre Jr. (Universidade de Lisboa), o grande filonista de língua portuguesa, que me incentivou com palavra e exemplo; Tatiana Faia (Universidade de Lisboa), por fazer-me chegar sua tradução anotada de Legat. antes da publicação; Maren Niehoff (Hebrew University of Jerusalem), que se importou com meu trabalho, entendeu o argumento e sugeriu leituras; a Torrey Seland (School of Mission and Theology, Noruega), que facilitou o acesso a um importante artigo de sua autoria; Sarah Pearce (University of Southampton, Inglaterra), que, por sua simpatia, fez um imenso favor quando eu precisei com urgência de um artigo que me era inacessível; Carolyn Sharp (Yale University), por gastar algum tempo respondendo dúvidas e por sugerir importantes leituras (meu passeio pelos densos bosques da Bíblia hebraica teria sido mais difícil sem seu auxílio); Daniel Schwartz (Hebrew University of Jerusalem), por prontamente me fazer chegar um artigo de sua autoria publicado há mais de vinte anos em um número atualmente indisponível de um periódico israelense; Christelle Veillard (Université Paris Ouest Nanterre La Défense), por gentilmente me enviar um importante artigo de sua autoria antes da efetiva publicação; José Pablo Martín (Universidad Nacional de General Sarmiento, Argentina), por sua leitura atenta, simpatia e importantes observações durante a defesa; Pedro Ipiranga Júnior (UFPR, Curitiba), por suas contribuições durante a defesa; Jaldemir Vitório (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte), por suas pertinentes considerações quando da realização da qualificação e da defesa, e pelo incentivo. Aos servidores técnico-administrativos do Pós-Lit e dos demais setores da Faculdade de Letras, por fazerem tudo funcionar. Ao CNPq, pela bolsa de pesquisa (acompanhada da taxa de bancada), que possibilitou minha dedicação exclusiva à pesquisa, a compra de livros imprescindíveis e a participação em congressos que contribuíram para minha formação, dentre os quais destaco o SBL International Meeting, no mês de julho de 2011. Ao Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que, a pedido do professor Manuel Alexandre Jr., viabilizou financeiramente minha participação na Jornada Fílon de Alexandria nas Origens da Cultura Ocidental, em Lisboa, no mês de março de 2011. Sou grato também à Biblioteca Padre Vaz da Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Belo Horizonte) e à Cambridge University Library (Cambridge, Reino Unido). Sem dúvida, o acesso ao acervo dessas bibliotecas possibilitou o desenvolvimento de uma tese mais consistente. Preciso encontrar lugar, também, para um agradecimento tardio ao professor Rogério Barbosa do CEFET-MG. Foi em uma aula dele, no ano de 1997 (no 1º ano do Ensino Médio), que decidi estudar Letras, um caminho que me deu oportunidade de conhecer Fílon e tanto mais. Agradeço também a todos os que me são caros. Em especial: Valcir e Berenice que, nesta altura da vida, não são somente pais, mas também grandes amigos, os melhores. Nelma, que foi perseverante e cursou com êxito sua graduação durante estes mesmos quatro anos (já depois dos 50 anos de idade e por gosto!). E, claro, Regina, “la più bella regina di tutti i tempi”, meu aconchego, alento e companhia nesta vida, por tudo. Por fim, expresso minha gratidão ÀQUELE-QUE-É, que julgou conveniente ter em comum nossa precária condição, abandonando o que lhe era mais que próprio. El desierto A unos trescientos o cuatrocientos metros de la Pirámide me incliné, tomé un puñado de arena, lo dejé caer silenciosamente un poco más lejos y dije en voz baja: Estoy modificando el Sahara. El hecho era mínimo, pero las no ingeniosas palabras eran exactas y pensé que había sido necesaria toda mi vida para que yo pudiera decirlas. La memoria de aquel momento es una de las más significativas de mi estadía em Egipto. J. L. Borges RESUMO Esta tese estabelece uma reflexão a respeito de maneiras como a interculturalidade deixa rastros na obra de Fílon de Alexandria, exegeta judeu de língua grega que viveu na primeira metade do século I d.C.. São consideradas como especialmente relevantes para a reflexão as noções de próprio e comum, entendidas como elementos trazidos ao texto na negociação intercultural que se desenvolve na escrita de Fílon. Primeiro, estabeleço reflexões iniciais sobre o pensamento de Fílon, desenvolvidas em diálogo com trechos da Bíblia hebraica, a respeito de três temas selecionados: alteridade com relação aos egípcios (capítulo 1); diáspora, exílio e a relação de Fílon com a ideia de um retorno à Judeia (capítulo 2); e a conversão de não-judeus ao judaísmo (capítulo 3). Na segunda parte da tese, apresento dois grandes capítulos que abordam diferentes tipos de rastros interculturais encontrados em manifestações da intertextualidade no texto de Fílon. No capítulo 4, estudo citações e outras referências mais sutis a textos gregos. No quinto, abordo a apropriação de características de um gênero literário propriamente grego, a tragédia, e proponho a noção de trájico, no intuito de explicar o fenômeno originado a partir da apropriação judaica do trágico. A hipótese que permeia toda a tese é de que, nas diversas apropriações que Fílon faz do legado cultural grego, não há submissão impensada à cultura helênica, mas uma atenta negociação que reconhece como necessária a configuração de limites do próprio e, simultaneamente, o reconhecimento de elementos comuns. Palavras-chave: Fílon de Alexandria; interculturalidade; Bíblia hebraica; judaísmo helenístico. ABSTRACT This dissertation establishes a reflection about the ways in which the interculturality produced leads in the work of Philo of Alexandria, Greek speaker Jewish exegete who lived in the first half of I C.E.. The notions of own and common are considered specially relevant to this study, as they are brought to the text in the intercultural negotiation which Philo develops in his writing. At first, I establish initial reflections on Philo's thought, developed in dialogue with selected passages from the Hebrew Bible, about three different subjects. Chapter 1 deals with the question of alterity in face of the Egyptians. Chapter 2 is about the difference between Diaspora and Exile, and the Philo's perspective on the idea of a “return” of the Jews to Judea. In chapter 3, I study the idea of the conversion of non-Jewish people to Judaism. In the second part of this dissertation, two big chapters approach different kinds of intercultural trails found in occurrences of the intertextuality in Philo's text. Chapter 4 studies quotations and other more subtle references to Greek authors in a number of Philo's treatises. In chapter 5, I analyze the appropriation of characteristics of a literary and spectacular genre proper of the Greeks, the tragedy (then, I propose the notion of trajic, in order to explain this phenomenon originated from the Jewish appropriation of the tragic). The hypothesis which goes through all this dissertation is that in the diverse appropriations which Philo makes from the Greek cultural heritage, there is no unthinking submission to Hellenic culture, but an attentive negotiation which recognizes as necessary the configuration of limits of the own and, simultaneously, the recognizing of common elements. Key words: Philo of Alexandria; Interculturality; Hebrew Bible; Hellenistic Judaism. ABREVIATURAS Das obras de Fílon Abr. De Abrahamo Aet. De aeternitate mundi Agr. De agricultura Anim. De animalibus Cher. De Cherubim Contempl. De vita contemplativa Conf. De confusione linguarum Congr. De congressu eruditionis gratia Decal. De Decalogo Deo. De Deo Det. Quod deterius potiori insidiari soleat Deus Quod Deus sit immutabilis Ebr. De ebrietate Flacc. In Flaccum Fug. De fuga et inventione Gig. De gigantibus Her. Quis rerum divinarum heres sit Hypoth. Hypothetica Ios. De Iosepho Leg. 1–3 Legum allegoriae I, II, III Legat. Legatio ad Gaium Migr. De migratione Abrahami Mos. 1–2 De vita Moysis I, II Mut. De mutatione nominum Opif. De opificio mundi Plant. De plantatione Post. De posteritate Caini Praem. De praemiis et poenis, De exsecrationibus Prob. Quod omnis probus liber sit Prov. 1–2 De Providentia I, II QE 1–2 Quaestiones et solutiones in Exodum I, II QG 1–4 Quaestiones et solutiones in Genesim I, II, III, IV Sacr. De sacrificiis Abelis et Caini Sobr. De sobrietate Somn. 1–2 De somniis I, II Spec. 1–4 De specialibus legibus I, II, III, IV Virt. De virtutibus De outras obras1 AJ Antiquitates Judaicae, Flávio Josefo BJ De Bello Judaico, Flávio Josefo Ap. Contra Apionem, Flávio Josefo HE Historia Ecclesiastica, Eusébio de Cesareia Praep. Ev. Praeparatio Evangelica, Eusébio de Cesareia Cal. Caligula, Suetônio HR Historiae Romanae, Dion Cássio De Stoic. De Stoicorum repugnantiis, Plutarco De Virt. De virtute morali, Plutarco De Comm. De communibus notitiis adversus Stoicos, Plutarco Amat. Amatorius, Plutarco Alex. Alexander, Plutarco Vidas Vidas dos filósofos ilustres, Diógenes Laércio Brev. Vit. De Brevitate Vitae, Sêneca Tranq. De Tranquillitate Animi, Sêneca Cons. Marc. De Consolatione ad Marciam, Sêneca Adv. Log. Adversus Mathematicos, Sexto Empírico Adv. Eth. Adversus Ethicus, Sexto Empírico Strom. Stromata, Clemente de Alexandria Geog. Geographica, Strabo Od. Odisseia Il. Ilíada LXX Septuaginta (no sentido amplo do termo, abarcando toda a Bíblia grega) TM Texto Massorético 1 Somente daquelas que são apresentadas por meio de abreviaturas no texto. Para as abreviaturas de livros da Bíblia, sigo a Bíblia de Jerusalém. SUMÁRIO INTRODUÇÃO Fílon, judeu que fala grego em uma Alexandria intercultural ................................... 13 Multi-tradição ou multi-traição?................................................................................. 18 Identificação: limites movediços entre o próprio e o comum …................................. 25 Comparação: recurso da alteridade, recurso do pesquisador …............................... 37 A organização da tese e outros esclarecimentos ….................................................... 38 PRIMEIRA PARTE Reflexões sobre aspectos da resposta de Fílon a seu contexto intercultural apresentadas por meio de diálogos com a Bíblia Hebraica ......................................... 42 CAPÍTULO 1 - A morte do egípcio: Êxodo 2:11-15 e sua reescrita em um judaísmo que fala grego …............................................................................................................... 43 1.1 A narrativa na Bíblia hebraica …......................................................................... 44 1.2 Entre Shemot e Eksagogué, o Éksodos …............................................................. 56 1.3 Fílon de Alexandria e a morte do egípcio …......................................................... 59 1.4 Fílon e o egípcio como Outro …............................................................................ 61 1.5 Conclusão: o corpus do delito …........................................................................... 69 CAPÍTULO 2 - Exílio, diáspora e saudades de Jerusalém: estudo a partir de Jeremias 29:1-14 e Fílon de Alexandria ......................................................................... 72 2.1 Jeremias 29:1-14: um judaísmo por correspondência …...................................... 73 2.2 Fílon e o judeu de colônia …................................................................................. 85 2.3 Conclusão ….......................................................................................................... 95 CAPÍTULO 3 - Para lá de Nínive: a conversão dos não-judeus em Jonas, Rute e Fílon ….............................................................................................................................. 97 3.1 A mensagem, o profeta de má vontade e os gentios bem dispostos: o caso de Jonas.................................................................................................................................. 102 3.2 A moabita exemplar e o Deus da sogra: o caso de Rute …................................... 108 3.3 O primeiro judeu e outros exemplos para os prosélitos segundo Fílon …........... 111 3.4 Conclusão ….......................................................................................................... 123 Excursus único do capítulo 3: A respeito da fala atribuída a Jesus em Mateus 23:15, que não evidencia necessariamente proselitismo judaico no século I …........................... 125 SEGUNDA PARTE Encontros vários: A interculturalidade negociada na intertextualidade de Fílon de Alexandria ….................................................................................................................... 132 CAPÍTULO 4 - Versos Prosélitos: um Homero circuncidado para se encontrar com Moisés ...................................................................................................................... 133 4.1 Homero, os judeus e Fílon …................................................................................ 136 4.2 A prática da citação na Antiguidade …................................................................. 143 4.3 Qual a apreciação de Fílon a respeito dos poetas? ............................................. 151 4.4 Encontros marcados: O mohel-escritor tem faca e estilo nas mãos …................. 155 4.5 Outros Encontros ….............................................................................................. 179 4.6 Breve encontro: Moisés e Homero …................................................................... 183 4.7 Conclusão …......................................................................................................... 194 Primeiro Excursus do Capítulo 4: Referências aos poetas em Todo homem bom é livre, que diferem consideravelmente das que se verificam nos tratados exegéticos de Fílon ... 196 Segundo Excursus do Capítulo 4: Sobre a citação de meio verso de Phainómena de Arato no discurso de Paulo em Atenas (Atos 17), que apresenta alguma semelhança com a prática da citação encontrada em Fílon ….............................................................. 204 CAPÍTULO 5 - “Situações trágicas requerem palavras trágicas”: encontro com a tragédia e o trájico em Legatio ad Gaium ..................................................................... 213 5.1 A tragédia entre os gregos: Platão, Aristóteles e períodos posteriores …........... 213 5.1.1 Platão …....................................................................................................... 214 5.1.2 Aristóteles …................................................................................................. 216 5.1.3 Além de Platão e Aristóteles ….................................................................... 220 5.1.4 A metáfora do theatrum mundi …................................................................. 224 5.2 Há tragédia na Bíblia hebraica? …....................................................................... 227 5.2.1 Moisés …....................................................................................................... 230 5.2.2 Jó ….............................................................................................................. 233 5.2.3 Saul …........................................................................................................... 243 5.2.4 Jefté ….......................................................................................................... 248 5.2.5 Amã …........................................................................................................... 253 5.2.6 Considerações finais sobre o trágico e a Bíblia …...................................... 260 5.3 Outras experiências judaicas com a tragédia …................................................... 262 5.3.1 ΕΞΑΓΩΓΗ, tragédia de um judeu …........................................................... 266 5.3.2 Josefo e a tragédia na história …................................................................. 271 5.4 Fílon e o teatro …................................................................................................. 276 5.5 O tratado Embaixada a Gaio na obra de Fílon e sua contextualização histórica/teológica …......................................................................................................... 292 5.6 Política Romana, Cultura Grega e Teologia Judaica: negociação em Legat. …. 310 5.6.1 Primeira inadequação: Cultura Grega (Legat. 78 – 113) …...................... 313 5.6.2 Segunda inadequação: Teologia Judaica (Legat. 114-118) ….................... 320 5.6.3 Terceira inadequação: Política Romana (Legat. 141-161) …..................... 325 5.6.4 O que isso faz notar a respeito de Legat. como um todo? …....................... 334 5.7 Cenas trájicas como recurso de comunicação em Embaixada a Gaio …............. 334 5.7.1 Recepção dos espetáculos …....................................................................... 336 5.7.2 Fingir (como ator em um teatro) …............................................................. 339 5.7.3 O espetáculo da divinização ….................................................................... 342 5.7.4 Ignorância e ação: refrações do trágico …................................................. 343 5.7.5 Infortúnio, sofrimento e a inserção do corpo no texto …............................ 347 5.7.6 Conversa com um pretenso deus …............................................................. 353 5.7.7 A palinoidía na peripécia: o desfecho perdido da trajédia …..................... 358 5.8 Conclusão: apropriações, pistas de uma tragédia e o trájico ….......................... 365 CONCLUSÃO adiásporalidacomoestilo .................................................................................................. 368 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 372 13 Introdução Fílon, judeu que fala grego em uma Alexandria intercultural Fílon era um nome comum no primeiro século desta era. Nome grego, mas não exclusivamente usado por gregos. Pode-se dizer que, depois de Alexandre, a Grécia não se contém em suas fronteiras e seus nomes também não.1 Seus nomes, sua língua, sua formação cultural e escolar. Entre muitos homônimos, contudo, um específico me ocupa: Fílon de Alexandria, o qual também é conhecido como Fílon, o judeu.2 Fílon, o judeu. Essas duas palavras, assim colocadas lado a lado, trazem um paradoxo desde o princípio. O princípio do personagem histórico a que se referem, digo. Isso provavelmente se dá entre os anos 20 e 5 a.C.. Um nascimento requer um nome. Um nome grego é dado ao nascido, marca que o acompanhará por anos, provavelmente até meados da metade do século I d.C., quando morre. 3 Contudo, a outra palavra (“judeu”) também requer 1 2 3 Quanto ao relacionamento entre judeus e gregos especificamente, sabe-se que, antes de Alexandre o contato entre os dois povos era mínimo. Os gregos quase nada sabiam dos judeus. Os judeus, por sua vez, tinham uma noção um pouco maior a respeito dos gregos, mas nada que viabilizasse algo além da construção de uma imagem negativa de mercadores de escravos. As coisas mudam com Alexandre, e os caminhos de gregos e judeus se cruzam de modo mais definitivo (MODRZEJEWSKI, 1993, p. 72-73; cf. MOMIGLIANO, 1994, p. 10-11). Quanto ao uso de nomes gregos entre os judeus, Victor Tcherikover observa: “Na Diáspora, assim como na Palestina, a helenização encontrou sua primeira expressão externa na mudança dos nomes pessoais. Os papiros e inscrições oferecem um amplo material sobre esse tema. Embora nomes hebraicos e semíticos como um todo não tenham desaparecido ao longo do período helenístico, ao seu lado apareceu uma multidão de nomes como Alexandre, Ptolomeu, Antipater, Demétrio, Jasão e outros semelhantes” [In the Diaspora, as in Palestine, Hellenization found its first external expression in the changing of personal names. The papyri and inscriptions provide ample material on this subject. Although Hebrew and Semitic names as a whole did not disappear throughout the Hellenistic period, by their side appears a multitude of Greek names such as Alexander, Ptolomy, Antipater, Demetrius, Jason and the like] (TCHERIKOVER, 1999, p. 346). A necessidade de se acrescentar algo ao nome advém do simples fato de haver outras muitas pessoas que o compartilham na Antiguidade. Atualmente, Fílon é mais comumente referido como Fílon de Alexandria. Nos séculos XVIII e XIX, contudo, ele era frequentemente chamado de Philo Judaeus, isto é, Fílon o judeu. Conforme Runia, é no século XX, mais especificamente depois da Segunda Guerra, que a tendência à utilização de “Fílon de Alexandria”, com indicação mais geográfica, supera de modo mais definitivo a expressão “Fílon, o judeu”, que tem conotação mais étnica (RUNIA, 1994, p. 23-24). Este texto, que tem por finalidade introduzir a presente tese, não contém propriamente uma introdução à vida e à obra de Fílon. Seleciono somente alguns aspectos que julgo importantes para o prosseguimento do estudo. Para um leitor que desconheça o personagem histórico de que trato e seu contexto, sugiro a leitura de um dos vários textos introdutórios atualmente disponíveis. Sugiro: RUNIA, 1990, por apresentar um texto sucinto e preciso na escolha dos temas; SANDMEL, 1979, que apesar de já antigo, ainda oferece considerável ajuda para um começo bem orientado (e me parece mais adequado para um leitor iniciante que a introdução escrita por seu professor: 14 uma marca permanente, mas não verbal: o menino Fílon é circuncidado, recebendo em seu corpo o testemunho de sua etnia e da religião pátria, isto é, dos pais. Essa dupla inscrição de nosso Fílon pode ser ainda mais complexa, passando de dupla a multi, se considerarmos que seu lugar de nascimento é uma cidade no Egito4 e que, durante toda sua vida, esteve sob o domínio político de Roma. E esse domínio romano traz implicações para todas as relações estabelecidas no contexto cultural alexandrino, como se verá. Roma, Jerusalém e Atenas se condensam, se apertam de alguma forma nas ruas de Alexandria do Egito. Certamente, os esbarrões, as cotoveladas e os olhares tortos não faltariam. Contudo, devo lembrar que o encontro alexandrino já estava em processo séculos antes da emergência da obra de Fílon. Com certa recorrência, lê-se em artigos introdutórios à pessoa de Fílon a afirmação de que ele tentou conciliar a filosofia grega com a religião judaica. Assim dito, dáse a entender que ele veio com sua cultura, encontrou a outra e resolveu conciliá-las em seu discurso. Não é assim que o vejo. Ele não escolhe conciliar algo que lhe é inerente com algo que é de outro, mas tem nele mesmo a incômoda convivência de uma múltipla inscrição. Ou seja, seus escritos se envolvem em uma lida com arquivos diferentes, primeiramente, porque seu universo discursivo é assim. Reconheço, certamente, que a maneira como ele articula suas heranças poderá indicar algum objetivo mais favorável à religião judaica, ou a uma certa 4 GOODENOUGH, 1940); HADAS-LEBEL, 2003 e SCHENCK, 2005, por serem os mais recentes livros introdutórios a respeito de Fílon. Não se deve desprezar tampouco as introduções que acompanham os volumes iniciais das traduções modernas. O texto de ARNALDEZ, 1961, que figura no primeiro volume da tradução francesa, é amplo e apresenta uma discussão própria a respeito de questões relevantes. MARTÍN, 2009, por sua vez, oferece um texto recente e informado da pesquisa atual sobre o alexandrino. Embora não apresente um texto especialmente primoroso, menciono também o livro Philo's Alexandria [A Alexandria de Fílon], que apresenta a cidade em que Fílon vivia a partir de trechos de sua obra, e, assim, constrói também uma peculiar apresentação do contexto em que ele vivia (SLY, 1996). Especificamente sobre a vida do alexandrino, cf. SCHWARTZ, 2009. Os romanos se referiam à cidade como Alexandria ad Aegyptum, isto é, “Alexandria perto do Egito”, e não Alexandria in Aegypto, “Alexandria no Egito”. Isso pode ter várias implicações. David Runia, por exemplo, observa: “Alexandria é ad Aegyptum, não in Aegypto, isto é, ainda é pensada como parte do mundo grego” [Alexandria is ad Aegyptum, not in Aegypto, i.e. still thought of as part of the Greek world] (RUNIA, 2001, p. 296). O motivo pode, também, ser mais geográfico que ideológico: “A partir da perspectiva egípcia antiga, Alexandria estava localizada no lado de fora, ou simplesmente além da área que era tradicionalmente considerada ser o Egito” [from the ancient Egyptian perspective Alexandreia was located on the outer edge of or just beyond the area that was traditionally considered to be Egypt] (COHEN, G. M., 2006, p. 423). Não obstante, noto que, na prática, conforme a tese de doutorado de Kyriakos Savvopoulos, as evidências arqueológicas assinalam uma considerável presença cultural egípcia na cidade, tanto no período helenístico quanto no romano (SAVVOPOULOS, 2011). 15 forma de religiosidade judaica, melhor dizendo. Contudo, percebo que sua obra se deixa marcar por uma interculturalidade que lhe é inevitável e que atravessa toda sua escrita, deixando rastros, pistas, ainda que por vezes fugidias. Neste ponto, devo observar que a opção por referir-me a “interculturalidade” ou a “encontro” não é fortuita. Eu poderia fazer uma opção por termos como transculturação (RAMA, 20015) ou hibridação (CANCLINI, 1980), por exemplo. Por isso, passo a explicarme. A não opção por esses termos (e outros que surgiram do desenvolvimento ou embate com esses) não se deve à diferença do objeto, pois creio que uma teoria consistente pode adaptarse a objetos cronologicamente distantes. Parece-me, isso sim, que o conceito de transculturação remete a um processo que visa um fim, um término confortável. Essa perspectiva escatológica não é associável ao caso de Fílon. Ele seria o resultado de uma transculturação? Mas não há nele uma definição, uma acomodação, algo que se possa entender como resultado de um processo (desaculturação aculturação - neoculturação / língua - estruturas literárias - cosmovisão). Antes, vejo-o como em processo. Ou melhor, entendo-o como o que anda por um caminho que não chega, nem tende a uma meta. Se há em Fílon uma transculturação, esta existe porque a cultura, enquanto processo, assim como a linguagem, parece ter uma vocação trans. Mas esse trans não deve indicar a passagem de uma situação de encontro a outra de resolução, nem uma série verificável de transformações. Trata-se de um eterno trans, análogo à imagem que tenho de Alexandria: uma condensação de fronteiras, na qual, ao cruzar uma destas, o caminhante não chega a outro lado, mas a mais fronteira (por isso, as linhas se aglomeram em um ponto negro, ponto negro de pura fronteira). Língua, estruturas e gêneros literários, bem como elementos de cosmovisões diferentes são negociados dia a dia e texto a texto, em uma constante revisão e re-localização do si em um universo cultural conflituoso. Quanto ao termo hibridação6, devo dizer que me sinto impelido a adotá-lo como instrumento de reflexão, sobretudo devido às observações de Canclini referentes à relativização da identidade que se realiza por meio da consideração dos processos de hibridação (CANCLINI, 2003). Essa relação entre hibridação e mudança na concepção de 5 6 Obviamente, reconheço que o termo é cunhado por Ortiz. Contudo, como é Rama que o traz aos estudos de discursos literários, refiro-me a ele, o que indica que tenho em mente também sua aplicação do processo de transculturação aos textos latino-americanos. Segundo Canclini, e nisso ele me parece correto, transculturação, crioulização, mestiçagem e sincretismo são termos que se referem a formas específicas de hibridação. Por isso, este último termo tem um alcance mais amplo, não se restringindo a um tipo específico de mistura ou a um lugar geográfico-histórico determinado (CANCLINI, 2003). 16 identidade parece-me muito pertinente para o caso que estudo. Porém, eu seria obrigado a uma ressalva por demais drástica. Acontece que se a hibridação se dá no encontro de culturas diferentes, o que gera uma forma que apresenta elementos das duas, sem ser uma ou outra como antes, é difícil limitar sua abrangência. Vejamos o caso de Fílon. Em princípio, poderse-ia pensar que sua cultura é híbrida, resultado de um encontro greco-judaico. Contudo, os elementos dessa hibridação também se mostram híbridos. Os gregos, como mostrava Luciano de Samósata já no século segundo d.C., não gozam de uma identidade pura. Quanto aos judeus, não é preciso passar do primeiro verso de seu livro sagrado (“No princípio criou Deus o céu e a terra...” - Gn 1:1), fazendo a observação de que o termo que se traduz por “Deus” tem, em hebraico, a marca de um plural (  - elohim), embora o verbo que com ele se relaciona se apresente no singular ( - bará). Isso pode dever-se à adaptação (linguisticamente violenta como se vê) de um termo do entorno politeísta, à narrativa tendenciosamente monoteísta já então perceptível nessa tradição judaica. O que há de puro no judaísmo se sua primeira frase se marca por um empréstimo como esse? 7 Por que, então, caracterizar a cultura de Fílon como híbrida e não a cultura grega e a judaica que lhe são constitutivas? E se assim também o fizermos, não se estenderia a noção do híbrido ad infinitum, desprovendo-a de operacionalidade teórica? Por isso, seria preciso, creio, a seguinte ressalva: considero híbrida a cultura que ainda revela os elementos que a constituem em uma latente negociação. Não obstante, a abrangência desse “revelar” dependeria da capacidade de quem observa tal cultura, o que nos levaria a uma subjetividade que produziria discussões sem fim. Portanto, prefiro lançar mão de termos menos marcados como interculturalidade e encontro, desprovendo-os de sentidos teóricos que transcendam o perceptível por sua etimologia e seu uso corrente no vernáculo.8 Mas, ao mesmo tempo, observo que eles vão além da noção estanque de multiculturalidade, uma vez que supõem uma inter-relação 7 8 Sobre a existência de mudanças e interações desde o princípio da história judaica e ao longo de toda a Antiguidade, sugiro LEVINE, 2009, que aproveito adiante. A constatação não é incoerente com a persistente existência de um grupo que, ao longo de tanto tempo, se reconhece e é reconhecido como o dos “judeus”. O fato condiz com a observação de Fredrik Barth: “distinções de categorias étnicas não dependem da absência de mobilidade, contato e informação” [cathegorical ethnic distinctions do not depend on an absence of mobility, contact and information] (BARTH, 1969, p. 9). Além disso, evito assim certas antipatias nas leituras. Também isso carece de explicitação. O fato é que percebo no cenário acadêmico atual uma divisão entre pesquisadores com base nos termos adotados por uns e outros. Assim, quando alguém lê certo texto em que se adota termo que não lhe é do agrado, tende a deixar de atentar para sua argumentação, ocupando-se de destacar sua oposição ao nefasto significante. Trata-se de uma impressão pessoal. 17 intensa: Sob concepções multiculturais, admite-se a diversidade de culturas, sublinhando sua diferença e propondo políticas relativistas de respeito, que frequentemente reforçam a segregação. Em contrapartida, a interculturalidade remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas. Ambos os termos implicam dois modos de produção social: multiculturalidade supõe aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos (CANCLINI, 2005, p. 17). Há, sem dúvida, algo a que se pode referir como um problema intercultural no momento histórico da escrita de Fílon. Há ali “uma Grécia depositada numa biblioteca” e “um ponto de vista sobre a Grécia como cultura” (HARTOG, 2004, p. 119), o que se inscreverá na tessitura do alexandrino de modo contundente. Mas há também os gregos vivos 9, os quais podiam, em situações específicas, representar um problema, um obstáculo à manutenção de direitos fundamentais para a existência dos judeus na Diáspora, como a isenção ao culto ao imperador (cf. Legat. e Flacc.). Há, ainda, a lembrança da resistência judaica liderada pelos Macabeus séculos antes em face da possível perda de sua liberdade religiosa no contexto da helenização da Palestina, bem como o testemunho (incômodo, imagino) dos mártires.10 Como observei anteriormente e, provavelmente, enfatizarei novamente conforme a necessidade do texto, os judeus interagiram com diversas culturas em diversos momentos de sua história, inclusive sob o domínio de diferentes impérios. Contudo, há algo especialmente tenso no sentido cultural-religioso (e, por conseguinte, especialmente interessante) no caso da relação com os gregos. Albert Baumgarten conclui: […] o problema com a soberania grega não foi o mesmo como com outros dominadores imperiais: não foi apenas econômico, político ou militar, mas tinha importantes componentes religiosos e culturais. Os judeus, assim, perceberam a necessidade de marcar o limite entre eles mesmos e os gregos muito mais do que eles perceberam no caso de outros poderes imperiais. 11 9 10 11 A distinção entre a “Grécia como cultura” e os “gregos vivos” de Alexandria é importante porque o próprio Fílon parece não associar os dois em momento algum (cf. BIRNBAUM, 2001). A esse respeito, vejam-se os livros dos Macabeus I e II. Em uma primeira versão dessa frase, eu havia escrito “resistência ao helenismo”. Não obstante, parece sensato considerar a possibilidade de que a guerra dos macabeus não tenha sido uma resistência geral ao helenismo enquanto cultura alheia (embora esse seja um posicionamento comum), mas sim à imposição específica de regras que levavam à inobservância da Lei. Essa mudança de percepção se deve principalmente a um instigante estudo de Erich Gruen publicado no final dos anos noventa (GRUEN, 1998, p. 1-40). Certamente, não deixa de haver uma tensão que se pode chamar de “cultural” nesse caso, uma vez que a Lei não se separa da cultura dos judeus. Minha tradução de: the problem with Greek overlord was not the same as with other imperial masters: it was not only economic, political or military, but had important religious and cultural components. Jews therefore felt the need to mark the boundary between themselves and the Greeks 18 (BAUMGARTEN, 2002, p. 8)12 Então, refaço a frase que utilizei há pouco acrescentando certa ênfase: Há, sem dúvida, algo a que se pode referir como um problema intercultural especialmente tenso e significativo no momento histórico da escrita de Fílon. Então, como hipótese, entendo que o que Fílon procura em sua escrita vai além da conciliação entre filosofia grega e religião judaica, alcançando um âmbito mais complexo, no qual estão em julgamento a sua tradição e a sua identificação. Trata-se, assim o entendo, de uma negociação constante, na qual se procura uma localização do si e de sua escrita (ou, talvez inclusive, do si em sua escrita). Multi-tradição ou multi-traição? A noção convencional de tradição tende a relacioná-la à repetição. Mas há tradição que persista em existir sem que se percebam rupturas (as quais em princípio poderiam ser entendidas como oposições) que lhe concedam uma dinamicidade imprescindível?13 É precisamente por uma valorização das rupturas (e criação de novas ligações) que me parece razoável procurar a maneira como Fílon se movimenta na tradição, ou nas tradições.14 Assim, apesar da diferença vocabular que apresento, por querer entender a noção de tradição como contendo em si mesma as rupturas, concordo com a seguinte 12 13 14 much more than they felt that need with other imperial powers. Uma diferença assinalada pelo pesquisador entre a atitude dos gregos e as dos outros dominantes me parece digna de menção. Albert Baumgarten ressalta que a prévia presença dos gregos em diferentes localidades e o interesse que tinham por outros povos facilitava seu envolvimento cultural com seus dominados. Além disso, eles procuravam explicações sobre as origens dos povos a partir de seu próprio padrão relativo ao passado (BAUMGARTEN, 2002, p. 9). De fato, isso seria marcadamente problemático para muitos dos judeus, inclusive para Fílon. Fazer Abraão depender ou descender de um personagem ou grupo representado na épica homérica não seria condizente com o lugar especial que atribuía ao povo judeu. Entre os romanos, por exemplo, a resposta podia ser bem diferente. A Eneida é exemplo conhecido disso. Virgílio localiza a origem de Roma no marco da narrativa iliádica. Poder-se-ia pensar que a ligação proposta entre judeus e espartanos em I Macabeus 12:6ss sugerisse algo no mesmo sentido. Contudo, não há necessariamente dependência ou descendência dos judeus a partir dos espartanos implícita no texto. Há, decerto, alguma semelhança entre a interação Gregos – Judeus e a do par Gregos – Romanos, como procura demonstrar Martin Goodman (GOODMAN, 2008, p. 102-106). Mas há também muitas diferenças que não devem ser desprezadas, oriundas de diferenças fundamentais políticas, culturais e religiosas entre Judeus e Romanos. Nesse sentido, concordo com a ressalva de Berthelot a Goodman (BERTHELOT, 2011, p. 52-53). Para essa conclusão, dependo de BORNHEIM, 1987. A bem da verdade, nem o singular nem o plural me parecem adequados ao que intento expressar. Seria preciso, isso sim, rasurar o termo tradição, de modo que contenha em sua constituição as noções de descontinuidade e alternância, deixando entrever uma potencial pluralidade no singular. Talvez fosse um passo nesse sentido dizer “as tradição”, mas fatalmente a norma gramatical me constrange a não fazê-lo. 19 constatação de Levine: “Essa contínua e criativa tensão e interdependência entre tradição e continuidade de um lado, e reinvenção e mudança do outro lado permanece como uma característica básica e inclusive persistentemente evasiva da experiência histórica judaica” 15 (LEVINE, 2009, p. 40). É nessa tensão criativa que a tradição se faz possível para os judeus em geral, e também para Fílon em seu contexto específico. O livro mais citado e provavelmente lido por Fílon é a Torah16. Isso o aproximaria da tradição farisaica palestina17, não fosse o fato de que ele lê o texto sagrado em sua tradução 15 16 17 Minha tradução de: This ongoing creative tension and interdependece between tradition and continuity on the one hand, and reinvention and change on the other, remains a basic, yet enduringly elusive, characteristic of the Jewish historical experience. O termo Torah pode ser traduzido como instrução e se refere aos cinco primeiros livros do cânon sagrado dos judeus (a Tanakh), os quais se atribuem a Moisés. Reconheço a possibilidade de que se diga que o que Fílon lê não é estritamente a Torah, uma vez que a lê em uma tradução. Contudo, utilizo a palavra Torah em respeito a uma crença do próprio Fílon, segundo a qual também a tradução do texto ao grego foi inspirada por Deus, sendo, portanto, igualmente sagrada. Não se deve pensar, por essa menção que faço, que considero pertinente a oposição absoluta entre judaísmo helenístico e judaísmo palestino, que perdeu força desde o estudo de Martin Hengel, que buscou demonstrar que também na Judeia o judaísmo era helenizado (HENGEL, 1974). Concordo, inclusive, com o estudo de Jonathan Goldstein, que sugere que o próprio Hengel superestimou a oposição ao helenismo em certas partes de seu livro, por exemplo, ao tratar da obra de Ben Sirach. Como Goldstein, entendo que, em geral, os judeus na Antiguidade não perceberam restrições da Torah para com o helenismo em geral. Certas rejeições pontuais não configuram oposição à cultura helênica como um todo (GOLDSTEIN, 1981). Contudo, também parece-me sensato a observação de Gregory Sterling sobre o fato de que a inexistência de uma oposição ou ruptura entre as formas de judaísmo praticadas na diáspora e na Judeia não significa que as respostas dadas no contato com a cultura helênica sejam as mesmas nas diferentes localidades. Sterling demonstrou, por meio de uma comparação entre as comunidades judaicas de Alexandria e Jerusalém, que “a situação política e demográfica de cada comunidade tinha um impacto enorme sobre a maneira como os judeus dentro de cada comunidade se integravam na cultura mais ampla” [The political and demographic situation of each community had an enormous impact on how Jews within each community integratec into the larger culture] (STERLING, 2001, p. 278). Um leitor habituado aos estudos do Novo Testamento (ou do cristianismo antigo em geral) talvez se lembre do capítulo 6 do livro de Atos que, em princípio, conforme uma interpretação bastante difundida, reflete uma aguçada oposição ideológica entre “hebreus” e “helenistas”. Um problema administrativo, que envolve esses dois grupos e que é narrado logo no começo do capítulo, é entendido como chave para a interpretação do prosseguimento de todo o capítulo e dos dois seguintes. Compreendido assim o discurso de Estevão, tratar-se-ia da expressão do pensamento de judeu-cristão helenista em oposição ao pensamento judeu-cristão da Judeia. Essa interpretação, contudo, não é segura e precisa ser revista (cf. HARVEY, 1998, p. 143). É possível perceber uma questão mais relacionada à língua principal de cada grupo do que propriamente um enfrentamento de noções teológicas. A menção à questão da língua serve de ensejo para uma observação importante: não é o uso do grego simplesmente que define a adesão a elementos da cultura grega por parte de um indivíduo judeu ou de uma comunidade de judeus. Textos escritos em aramaico podem apresentar características helenísticas, como, por exemplo, parece ser o caso do manuscrito encontrado em Qunram que recebeu o nome de Genesis Apochryphon (cf. COHEN, S. J. D., 2010b). Por fim, devo reconhecer que, embora eu tenda a considerar essa ampla difusão da cultura helênica também na Judeia anterior ao século I d.C., não deixo de considerar válidas algumas críticas a essa concepção, como, por exemplo, algumas das arroladas por Feldman (FELDMAN, 2006c). Digo “algumas” por 20 ao grego e utiliza um vocabulário e método mais próximos dos utilizados pelos gregos em sua interpretação18. Além disso, mobiliza saberes filosóficos, médicos e astronômicos (entre outros) gregos no desenvolvimento e na apresentação de sua leitura. Ou seja, a própria lida com o texto sagrado não se mantém encerrada em um universo puramente judaico, quer seja por motivos ideológicos ou meramente pragmáticos. Com alguma frequência, também, ele cita versos homéricos ou se refere claramente a um ou outro lírico, tragediógrafo ou mesmo comediógrafo. Geralmente, contudo, ele procura demonstrar a manutenção de um limite entre o arquivo grego e o judaico, ou melhor, entre o arquivo grego e o mais sagrado núcleo do arquivo judaico: a Torah.19 A preocupação, que parece advir do confronto com certos “acusadores”20, concretiza-se em oposições como as que a seguir se apresentam: palaio\j me\n ouÅn #Ãdetai lo/goj, oÀti to\ qeiÍon a)nqrw¯poij ei¹kazo/menon aÃllote aÃlloij perinosteiÍ ta\j po/leij e)n ku/kl%, ta/j te a)diki¿aj kaiì paranomi¿aj e)ceta/zon: kaiì ta/xa me\n ou)k a)lhqw½j, pa/ntwj de\ lusitelw½j kaiì sumfero/ntwj #Ãdetai. o( de\ lo/goj semno/teron kaiì a(giw¯teron taiÍj periì tou= oÃntoj e)nnoi¿aij a)eiì xrw¯menoj, aÀma de\ kaiì to\n tw½n a)fro/nwn bi¿on paideu=sai glixo/menoj a)nqrw¯p% me\n eiãkasen, ou) me/ntoi tw½n e)piì me/rouj ou)deni. 18 19 20 entender que Feldman incorre, em certos momentos, no mesmo erro que acusa nos outros: supervalorização de evidências escassas e generalização a partir das mesmas, sem devida consideração da perspectiva do texto ou documento. Feldman, por exemplo, afirma o rechaço ao ginásio construído em Jerusalém a partir de 2 Mc 4:7-14 (FELDMAN, 2006c, p. 76), mas deixa de observar que o próprio texto afirma o entusiasmo de muitos judeus (judeus da Judeia, e até mesmo sacerdotes) com a instituição. A postura do judeu que escreve é combativa, mas sua contenda se dirige justamente contra a adesão demonstrada por outros judeus. A esse respeito do principal método interpretativo utilizado por Fílon, veja-se RIOS, 2009. Embora não haja consenso absoluto a respeito das origens da alegorese de Fílon, as propostas mais pertinentes consideram seriamente a importância de hermenêuticas semelhantes praticadas entre os gregos para sua constituição. Frequentemente, a interpretação praticada entre os estoicos foi evocada como fonte. O fato foi questionado por um especialista no estoicismo (LONG, 1996; 1997). Ainda assim, parece-me pertinente apontar considerável paralelo. Outros pontos de comparação também devem ser mencionados. A alegorese de Fílon, que já havia sido aproximada, equivocadamente a meu ver (cf. RIOS, 2009, p. 61-62), por Bréhier à pitagórica da Tábua de Cebes (BRÉHIER, 1950, p. 39-44), foi aproximada à interpretação da tradição neopitagórica com maior pertinência (MOTUSOVA, 2010). Uma semelhança com a prática hermenêutica dos neoplatonistas também foi claramente demonstrada (BERTHELOT, 2012). Há, pois, inegável relação entre a hermenêutica de Fílon e o mundo grego. Sucede que, talvez, seja possível dizer que a diferença se marca entre a Torah e o resto de tudo que está no arquivo, independente da origem. Alguns destes, segundo Fílon, diziam: “Eis que vossos livros, ditos sagrados, também contêm mitos, dos quais costumais rir, quando escutais outros narrando-os.” ( i¹dou\ ga\r ai¸ i¸eraiì lego/menai bi¿bloi par' u(miÍn kaiì mu/qouj perie/xousin, e)f' oiâj ei¹w¯qate gela=n, oÀtan aÃllwn diecio/ntwn a)kou/hte. - Conf. 2) 21 Canta, pois, uma palavra antiga que a divindade assemelhando-se, ora a uns seres humanos outrora a outros, viaja em redor pelas cidades, escrutinando tanto as injustiças quanto as transgressões das leis. Talvez não com verdade, mas ao menos proveitosa e convenientemente canta. Já a Palavra, de modo mais solene e santo, sempre usando as concepções a respeito do Ser, e, ao mesmo tempo, esforçando-se para instruir também a vida dos insensatos, assemelhou-o ao ser humano mesmo, não, contudo, a ninguém em especial. (Somn. 1.233-234) "Oi¸ de\ gi¿gantej hÅsan e)piì th=j gh=j e)n taiÍj h(me/raij e)kei¿naij". iãswj tij ta\ para\ toiÍj poihtaiÍj memuqeume/na periì tw½n giga/ntwn oiãetai to\n nomoqe/thn ai¹ni¿ttesqai pleiÍston oÀson diesthko/ta tou= muqoplasteiÍn kaiì toiÍj a)lhqei¿aj iãxnesin au)th=j e)pibai¿nein a)ciou=nta. “E havia gigantes sobre a terra naqueles dias” (Gn 6:4). Talvez alguém suponha que o legislador está se referindo a coisas contadas por parte dos poetas sobre os gigantes. Mas são coisas que estão tão distantes quanto possível do moldar mitos e que são dignas de andar pelas trilhas da verdade, só desta. (Gig. 58-59) Percebe-se, no primeiro trecho, no qual há uma referência à Odisseia21, uma relativa valorização do poema homérico, apresentado como uma “palavra antiga” ( palaio\j lo/goj – palaiós lógos). Contudo, o livro de Moisés o supera em solenidade e santidade. Já no segundo trecho citado, a preocupação é manter um limite ainda mais claro, observando que o que se lê no livro sagrado nada tem a ver com o moldar mitos ( muqoplasteiÍn – mythoplasteîn).22 Com base em passos como esses, percebe-se que o que alguns chamam de 21 22 Odisséia XVII 485-487. A respeito de uma aparente exceção em Praem. 23, ver nota 245, página 140. Sobre a possibilidade de Fílon admitir, ao menos em alguns casos, a presença de uma linguagem mítica com finalidade pedagógica na Torah, cf. KAMESAR, 1998. O exegeta alexandrino parece admitir, por exemplo, que Moisés tenha se expressado dessa forma em seu uso do termo “gigantes” em Gn 6:1-4 (MARTÍN, 2002, p. 275). Não se deve, contudo, pensar que fato de ele se dirigir à alegoria diante de textos que mencionam seres como anjos ou que tenham alguma semelhança com mitos gregos, por exemplo, seja sempre uma afirmação da presença de um mito. Em Conf. 14, ele deixa a elaboração de uma refutação no nível literal para os que são especialistas nesse tipo de tratamento do texto. Ou seja, ele trata de resolver alegoricamente o texto por ser essa a sua especialidade, mas não desacredita necessariamente na possibilidade de resolvê-lo também em sua literalidade. Ademais, as possíveis relações genéticas entre as leituras de Fílon e a tradição da apocalíptica judaica devem ser estudadas com cuidado, pois semelhanças pontuais podem levar a deduções precipitadas. Por exemplo, a relação entre a interpretação de Fílon em Gig. com a literatura apocalíptica e sapiencial judaica foi explorada por Loren Stuckenbruck. Sua proposta deve ser lida com cuidado. A meu ver, o autor se equivoca ao apreciar como evidência de um contato com a tradição preservada em pseudo-Eupólemo o fato de Fílon aproximar, em sua interpretação, Nemrod ao episódio dos gigantes em Gn 6:1-4 (STUCKENBRUCK, 2007, p. 138). Quem está familiarizado com a hermenêutica de Fílon perceberá que a recorrência do termo γίγας – gígas em ambos os trechos da LXX é motivo suficiente para a associação entre os dois trechos. Ao final do artigo, Stuckenbruck faz uma observação muito pertinente: o eventual contato de Fílon com tradições 22 intento conciliatório de Fílon não se faz de modo impensado. Ou seja, há um encontro em desenvolvimento, mas o escritor procura manter alguns limites que parece julgar inegociáveis. Certamente, contudo, ao marcar a diferença entre os arquivos, não deixa de ler e mobilizar ambos em sua escrita. Será, pois, possível conservar o arquivo sagrado intocado? Decerto, a própria colocação do outro, do grego, a seu lado deve modificá-lo na recepção, uma vez que, assim, ele é lido em contraste. Revela-se o sagrado em contraposição ao profano (a um profano específico, digo). Não se trata, então, do sagrado absolutizado na impossibilidade de qualquer comparação ou convívio. Há, antes, um tipo de convívio agonístico, uma negociação irresolvida. Mas talvez não seja tão viável, como parece pretender Fílon (ou faz parecer pretender), a manutenção de duas tradições diferentes mobilizadas e relidas em uma mesma escrita. Se é possível pensar, como quer o escritor argentino Ricardo Piglia, em uma estreita relação entre tradição e memória, no sentido de que “Para um escritor a memória é a tradição. Uma memória impessoal, feita de citações, na qual se falam todas as línguas.” (PIGLIA, 1991, p. 60)23, será difícil pensar em tradições isoladas numa mesma escrita. Isso, sobretudo, se considerarmos o fato de que a palavra castelhana citas, que traduzi por citações, carrega em si outra carga semântica que pode ser bem sugestiva: “tener una cita” é entendido como “ter um encontro marcado”. Pensando assim, a partir da linguagem, chega-se à noção da citação como encontro marcado, encontro no qual não há fronteira linguística. Há uma série de encontros marcados nos textos de todos os tempos, lugares e autores. Será possível controlar a tradição como memória, ao ponto de negar ao texto o direito a citas indesejadas? Ou, talvez, será impossível dissimular citas, deixando-as com aquela impressão de encontro fortuito? 23 oriundas da Judeia em hebraico ou aramaico pode se dar por meio de tradição oral, traduções ou textos escritos, o que faz com que não seja inviável uma influência de Jerusalém sobre os judeus alexandrinos (STUCKENBRUCK, 2007, p. 142). De fato, as trocas podiam ocorrer em ambos os sentidos. Mas uma pergunta pode ser repetida: Fílon veria toda essa literatura apocalíptica como tratamento de mitos? É preciso observar que falar em anjos, do ponto de vista de Fílon, não significa entrar em um universo mítico, como hoje se entende. Observo que não entendo, tampouco, que a opção pela lição que traz ἀγγέλλοι τοῦ θεοῦ – angélloi toû theoû, em vez de υἱοὶ τοῦ θεοῦ – huioì toû theoû para traduzir ‫הים‬tu ‫ל‬x‫א‬z‫י ה‬n‫נ‬qo ‫ – ב‬binei elohim (em Gig. 6) represente adesão a uma leitura mítica ancorada em uma tradição extra-bíblica. É preciso considerar a possibilidade de que essa lição seja proveniente de um sentido sugerido na própria Bíblia hebraica (cf. Sl 29:1, TM; Jó 1:6;2:1, TM>LXX; cf. também ARAÚJO, 1995, p. 133). Ademais, pode ser que ele tendesse a uma leitura alegórica também de textos judaicos secundários (isto é, que se apoiam na Torah). Minha tradução de: Para un escritor la memoria es la tradición. Una memoria impersonal, hecha de citas, donde se hablan todas las lenguas. 23 “Por isso, em literatura os roubos são como as lembranças: nunca totalmente deliberados, nunca inocentes demais.” (Idem)24. Nesse sentido, procuro encontrar algumas perceptíveis pistas de lembranças-delito na escrita de Fílon, entendendo que elas revelam deslocamentos que não se limitam a dados do arquivo judaico, mas também do grego. Esses deslocamentos na gênese da escrita filônica devem ser estudados. Decerto, não julgo possível fazê-lo com vistas a uma sistematização das influências ou um inquérito de delitos, afinal, para isso seria preciso adentrar à memória-tradição de Fílon. Além do mais, parece-me plausível ver a tradição como aquele livro de areia, que assim se chamava “porque nem o livro nem a areia têm princípio nem fim” (BORGES, 1984) 25. Resta, pois, rastrear algumas pistas, alguns indícios desses deslocamentos furtivos, para, de alguma forma, compreender sua dinâmica na escrita filônica. Será parte dessa dinâmica tornar comum o que não lhe é próprio (ou tornar próprio o que nem comum é)? Assim, um pouco diferente do que expresso por meio da linguagem até aqui e farei em outros pontos do trabalho, os arquivos não são estáticos e nem permanecem completamente separados. Fílon os tem juntos e intervém nesse conjunto, estabelecendo relações, alterando significados, escrevendo às margens, mudando posicionamentos. O presente do escritor muda o arquivo. E há mais: o arquivista não só mantém uma organização monumental que lhe é transmitida desde sempre, ele produz arquivos (DERRIDA, 2001, p. 88).26 Tanto em sua escrita da narrativa no nível da alegoria, que jaz sob a narrativa literal da Bíblia (Comentário Alegórico), quanto em sua reescrita da própria narrativa Bíblica (Exposição da Lei), Fílon gera novos arquivos que fazem parte dessa nova organização, na qual tradição judaica e tradição helenística não se opõem, mas convivem e se conhecem. E são férteis, como foi quando Adão conheceu Eva. O arquivista, então, se vê dominado pela poiética (até mesmo para suprir uma falta do arquivo, Mos. 1.1-3). Ele pode até mesmo buscar uma localização especial para os cinco livros que mais preza, o princípio e governo (ἀρχή – arkhé) de seu trabalho. Mas esse intento se desestabiliza quando reescreve (ou escreve para fora o que estava oculto debaixo) sem copiar simplesmente, mas recorrendo ao que não está nesse núcleo sacro-principal do arquivo, mas a diferentes partes dele, e, inclusive, a uma não 24 25 26 Minha tradução de: Por eso en literatura los robos son como los recuerdos: nunca del todo deliberados, nunca demasiado inocentes. Minha tradução de: porque ni el libro ni la arena tienen principio ni fin. Obviamente, devo a Mal de Arquivo essa percepção, ainda que Derrida escreva, em princípio, contra o conceito tradicional de arquivo da História, e em um contexto polêmico bem peculiar (cf. BIRMAN, 2008), sua reflexão me parece pertinente para esse tipo de arquivo textual em sentido mais amplo de que trato aqui. 24 identificada tradição oral (Mos. 1.4). De uma forma ou de outra, o que se assinala com o que até aqui desenvolvi é uma maneira específica de lidar com a noção de tradição na leitura que proponho da obra de Fílon. Não me interessa uma concepção fechada como a que se entrevê na proposta metodológica de Marius-François Guyard (GUYARD, 1994). Por outro lado, pode ser enriquecedora uma concepção que não se limite a ver na obra estudada influências de uma ou outra anterior, mas que coloque os textos lidos em uma relação menos hierarquizada. Encontro, então, em Kafka y sus precursores, de Borges, uma maneira mais adequada para pensar a escrita de Fílon e sua localização quanto à tradição. Sobretudo, porque diz: “O poema Fears and scruples de Robert Browning profetiza a obra de Kafka, mas nossa leitura de Kafka afina e desvia sensivelmente nossa leitura do poema” (BORGES, 1974, p. 90)27. De que maneiras e em que sentido a escrita de Fílon tem o poder, a dinâmica para desviar a leitura da épica homérica ou de um salmo hebreu? Percebe-se, a partir da proposta de Borges, como a relação entre textos que, permito-me dizer, compartilham uma mesma tradição, não é unidirecional. No mesmo sentido, Eliot, em seu ensaio Tradição e talento individual, observava: “Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles” (ELIOT, 1989, p. 39). Desvios e mudanças na ordem. Uma nova obra a entrar na tradição encontra seu espaço por meio de desvios e deslocamentos operados nas demais. Por outro lado, como também propunha Eliot, ela só entra na tradição por fazer-se sob um sentido histórico, uma consideração do anterior (ELIOT, 1989). Quando Fílon cita um verso grego, recortando-o e colando-o em novo lugar, lendo-o segundo sua intenção e valorizando-o de modo diverso do habitual, ele parece ceder a uma repetição do patrimônio letrado grego. Mas, ao mesmo tempo, ele se coloca, ainda que de modo marginal, nos caminhos da tradição helênica, e propicia desvios nesta. Não pretendo afirmar que a citação do arquivo grego fizesse parte de um projeto tramado por Fílon. Talvez seja precipitado propor algo nesse sentido. Prefiro relembrar Piglia (“nunca totalmente deliberados, nunca inocentes demais”), evocando, ainda, Derrida e sua observação de que herança não se escolhe, embora possa ser reafirmada (DERRIDA, 2002, p. 12). Lembro, neste passo, que Fílon não é um judeu de língua semita que se deslumbra com a cultura grega e resolve estudá-la, mas sim um judeu que fala grego (tendo essa língua como sua própria língua e não de outros, cf. Conf. 129) e que teve uma educação grega, muito 27 Minha tradução de: El poema Fears and scruples de Robert Browning profetiza la obra de Kafka, pero nuestra lectura de Kafka afina y desvía sensiblemente nuestra lectura del poema. 25 provavelmente não sendo fluente em hebraico ou aramaico. Por fim, encerro esta breve discussão sobre tradição com um questionamento do já citado Derrida: “Um herdeiro fiel não deve também interrogar a herança? Submetê-la a uma reavaliação e a uma seleção constante, correndo o risco, como disse em algum lugar, de ser 'fiel a mais de um'?” (DERRIDA, 2004, p. 334). Identificação: limites movediços entre o próprio e o comum Émile Bréhier abre o primeiro capítulo de seu livro sobre Fílon afirmando que este era um judeu fervoroso (“un Juif fervent”). Contudo, ao longo da obra, procura mostrar uma forte presença e influência grega no pensamento e no método de leitura do alexandrino, a partir do que percebe um universalismo judeu em seu fazer exegético (BRÉHIER, 1950). Wolfson, por sua vez, procura mostrar como, no período helenístico, os judeus foram uma exceção, por introduzirem algo novo na história da filosofia. Com isso em mente, o filonista procura mostrar com frequência as origens judaicas do pensamento filônico, apresentando-o não como mero dependente da filosofia grega, mas como um crítico dotado de outra forte tradição, a mesma que teria dado origem ao farisaísmo palestino (WOLFSON, 1982). Com apenas esses dois exemplos, pode-se entrever quão diversas podem ser as leituras a respeito da identidade e dos propósitos do alexandrino a partir de sua relação com a tradição sob a sombra de sua dupla inscrição. 28 Talvez uma pergunta possa condensar a complexidade do problema: O que significa ser helenizado no caso de Fílon? E por que essa pergunta se faz tão necessária no caso de Fílon? Samuel Sandmel indica que Fílon é único por representar “a primeira importante mistura (combinação) entre judaísmo e helenismo” (SANDMEL, 1974, p. 4)29. Outro estudioso dirá que “Fílon reunirá em si os diversos aspectos deste judaísmo alexandrino: sua cultura helenística, sua lealdade romana, sua fé judaica” (DANIÉLOU, 1958, p. 12) 30. Seria, pois, essa mistura ou reunião de aspectos diferentes em si o que permitiria a Wolfson e Bréhier conclusões diferentes a 28 29 30 A bibliografia a respeito de Fílon é volumosa e não caberia uma revisão que mencionasse os diversos autores que procuraram relacioná-lo mais com o pensamento grego ou, por outro lado, aqueles outros tantos que procuraram enfatizar sua lealdade e dependência com relação ao judaísmo. Para tanto, sugiro a leitura de uma artigo de Earle Hilgert (HILGERT, 1995), que expõe de modo detido a proposta de diversos autores dos séculos XIX e XX. O próprio Hilgert concluirá que “Fílon é um helenista, mas, primeiro e sempre, um judeu” [Philo was a Hellenist, but first and always a Jew] (HILGERT, 1995, p. 15). Minha tradução de: the first major blend of Judaism and Hellenism. Minha tradução de: Philon réunira en lui les divers aspects de ce judaïsme alexandrin: sa culture hellénistique, son loyalisme romain, sa foi juive. 26 respeito do mesmo personagem histórico? Em princípio, sim. Mas parece-me simplista falar de mistura ou reunião, termos que não refletem o potencial de tensão inerente ao encontro. 31 Prefiro pensar em uma negociação. Mas repito que não se trata de um encontro do representante de uma cultura isolada com outra que lhe é externa.32 O cenário precisa ser compreendido a partir da consideração da impossibilidade de mesmidade absoluta e imutável de uma cultura, ou de seu fechamento total a influências. Impossibilidade esta que caracteriza todos os grupos, inclusive o dos judeus, não só de Alexandria ou da diáspora de língua grega no século I: Apesar do fato de que, desde cedo, a identidade judaica estava em evidência e até estampada por um grau significativo de diferenciação, os judeus estavam continuamente interagindo com seus entornos e absorvendo influências de fora. Um povo pequeno no meio de uma cultura mais ampla e um império, como foram os judeus desde a era pérsica e adiante, não podia evitar ser tão afetado.33 (LEVINE, 2009, p. 37) Não há, então, uma cultura judaica pura (nem no século I d.C., nem nos séculos anteriores34) com a qual comparar a experiência de Fílon, que seria, no caso de tal tentativa, equivocadamente tida como uma tentativa de fundir “a cultura judaica” com “a cultura grega”. Há, isso sim, o encontro em si de uma interculturalidade de partida, inevitável, e que, por isso, precisa ser negociada. Um encontro vinha sendo desenvolvido no entorno do 31 32 33 34 Um artigo de David Winston intitulado Judaism and Hellenism: Hidden Tensions in Philo's Thought [Judaísmo e Helenismo: Tensões ocultas no pensamento de Fílon] me ajuda a perceber essa tensão no âmbito das noções filosóficas mobilizadas por Fílon. Winston demonstra como Fílon procura adotar noções filosóficas gregas na exposição da Bíblia, mas assinala que, em vários momentos, quando uma noção específica se choca com o entendimento proveniente do texto bíblico em si, ele pode não adotá-la, e procurar retirar ênfase do fato no sentido de não evidenciar a tensão. Contudo, diferente do que proponho e entendo ser mais pertinente a partir dos próprios indícios encontrados pelo pesquisador, Winston ainda se refere à obra de Fílon como “extraordinária síntese do judaísmo e helenismo” [remarkable synthesis of Judaism and Hellenism] (WINSTON, 1990, p. 19). Sobre as várias abordagens (com diferentes perspectivas) desenvolvidas ao longo das últimas décadas sobre a identidade de Fílon, e que rompem a dicotomia grego – judeu, cf. BIRNBAUM, 2006. Minha tradução de: Despite the fact that early on Jewish identity was in evidence and often even stamped by a significant degree of distintiveness, Jews were continuously interacting with their surroundings and absorbing outside influences. A small people in the midst of a larger culture and empire, as were the Jews from de Persian era onward, could not help but e só affected. Em seu Rethinking the Other in Antiquity [Repensando o Outro na Antiguidade], Erich Gruen demonstra que essa dinâmica de abertura ao que é alheio está presente nos encontros entre diversos grupos na Antiguidade. E, inclusive, também é observada por ele em diferentes momentos da história judaica (GRUEN, 2011, p. 277 - 351). Nesse livro, o pesquisador demonstra que a relação com o Outro não é essencialmente de rechaço e diferenciação absoluta, mas, por vezes, de acolhimento e integração. 27 Mediterrâneo (e em Alexandria especialmente) ao longo de séculos, com mudanças sociais e culturais e influências previamente sendo absorvidas em todos os lados que se encontram nessa mesa de negociação. Novas interpelações surgiam a cada momento e novas respostas eram propostas.35 Parece-me razoável concordar com Gregory Sterling, que, a partir da consideração da ampla produção literária judaica em Alexandria, de evidências epigráficas e de papiros pertinentes, e das referências feitas sobre os judeus por autores não-judeus, constata que, do ponto de vista dos judeus de Alexandria, era algo normal ser judeu e compartilhar daquilo que veio a se chamar helenismo (educação helênica, entretenimento e atividades cívicas) 36. Sterling é enfático e claro: Conquanto é um lugar comum assinalar para a observância judaica aos requerimentos da Torah como componente central da identidade judaica, eu gostaria de sugerir que, em Alexandria, o direito de participar no helenismo era intelectualmente tão importante quanto, e historicamente de maior consequência. Quando a comunidade olhava para o norte, cruzando o Mediterrâneo, ela não olhava somente ao leste, para a Palestina, mas a oeste, para a Grécia. Ambos horizontes desempenhavam papéis críticos na formação do auto-entendimento da comunidade, mas de perspectivas distintas.37 (STERLING, 1995, p. 18) Esse olhar duplo faria parte da autodefinição dos judeus alexandrinos. O autor sugere, ainda, que a chegada do domínio romano sobre Alexandria e subsequente estratificação mais definida entre diferentes etnias com limitação do acesso dos judeus à vida 35 36 37 Obviamente, quando falo de negociação, interpelações e respostas, não estou pensando em uma situação de diálogo explícito, com perguntas e respostas sendo trocadas, por escrito ou oralmente, por Fílon e interlocutores gregos ou judeus. Trata-se de uma negociação constituída no texto, e as questões enfrentadas devem ser percebidas no próprio texto. Conversas extra-texto que podem ter motivado algo no texto não nos são acessíveis. Em alguns casos, é até possível, devo reconhecer, supor algo a partir de trechos específicos, como diálogos de Fílon com exegetas que usavam métodos diferentes, com curiosos sobre a história judaica ou judeus que estavam por se apostatar. Ainda assim, para os efeitos deste estudo, não faz muito sentido a pergunta proposta por HadasLebel: “E se toda a obra de Fílon não tiver sido mais que um longo monólogo?” [Et si toute l'oeuvre de Philon n'avait été qu'n long monologue?] (HADAS-LEBEL, 2003, p. 114). É curioso notar, inclusive, que, ao menos textualmente, o “helenismo” (isto é, o termo ἑλληνισμός - hellenismós utilizado com esse sentido relacionado com a cultura), surge para nós de certa forma já em oposição ao “judaísmo” (ἰουδαϊσμός - ioudaïsmós), e vice-versa, pois ambos os termos aparecem assim utilizados pela primeira vez no mesmo texto, II Macabeus (2 Mc 2:21; 4:13-14. cf. STERLING, 2001, p. 263). Minha tradução de: While it is a commonplace to point to Jewish observance of Torah requirements as a central component of Jewish identity, I would like to suggest that in Alexandria the right to participate in Hellenism was intellectually just as important and historically of greater consequence. As the community looked northward out across the Mediterranean, it not only looked east to Palestine, but west to Greece. Both horizons played critical roles in the shaping of the community's self-understanding, but from different perspectives. 28 cívica “helenista”38 representa uma mutilação desse dado constitutivo de uma identidade. Esse fato histórico teria sido decisivo para a posterior extinção do judaísmo alexandrino tal qual vinha se desenvolvendo (STERLING, 1995, p. 17). Não há uma antítese entre judaísmo e helenismo. Portanto, não há resistência a um para a permanência no outro. É preciso, então, considerar que Fílon e muitos dos que formavam a comunidade judaica alexandrina de seu tempo não pensavam que o que faziam, nos textos ou na vida, seria uma atividade conciliatória entre duas culturas. Eles viviam e escreviam tendo essa dupla tradição como parte de uma só vida, de um só texto. É nesse contexto complexo, nessa comunidade que vê dois lados ao olhar para seu norte, que Fílon nasce e escreve. E, talvez possamos dizer que para nós, nesse cenário, nasce sua escrita e, a partir dela, nasce para os leitores de tempos futuros um personagem chamado Fílon, dotado de características que intrigam e confundem, e que, por isso mesmo convida à leitura. Observo aqui o cerne de meu interesse, ao que voltarei em breve: uma negociação feita no discurso de Fílon a respeito do si, do que lhe é próprio e do que é comum. 39 Devo destacar, também agora, a mútua definição de limites entre próprio e comum. Ou seja, quando um se define, o outro tem que ser reconfigurado e vice-versa. Além disso, é perceptível uma transitividade do termo “comum”. Ele parece pedir um complemento que o esclareça: comum com quem? 38 39 Modrzejewski explicita a mudança nos seguintes termos: “Sob o domínio dos Ptolomeus, os judeus haviam sido parte da comunidade dos 'helenos', o grupo dominante dos conquistadores falantes de grego. Quando os romanos, por sua vez, conquistaram o Egito, a situação foi completamente alterada. Não havia espaço nos limites da lei romana para a comunidade dos helenos, um conceito mais cultural que nacional. Ela era feita de diferentes elementos, cada um com sua própria identidade, e a soma desses elementos não podia ser reconhecida como uma única 'nação' ou 'povo'.” [Under the Ptolomies, the Jews had been part of the community of 'Hellenes', the dominant group of Greek-speaking conquerors. When the Romans, in their turn, conquered Egypt, the situation was altered from top to bottom. There was no room within the limits of Roman law for the community of Helenes, a cultural rather than a national concept. It was made up of differentiated elements, each with its own identity, and the sum of these elements could not be recognized as a single 'nation' or 'people'.] (MODRZEJEWSKI, 2001, p. 161). O pesquisador se apoia em Josefo, que afirma judeus e gregos em Alexandria compartilhavam a mesma denominação de τοὺς Ἕλληνας – toûs héllenas (B.J. II 487). É preciso reconhecer, contudo, que não é necessariamente o caso de que todos os judeus se encontravam nessa mesma categoria, mas, certamente, muitos sim (cf. GAMBETTI, 2009, p. 49-50). Convém notar que Victor Tcherikover antecipa a constatação de Modrzejewski, indicando, inclusive, que, ao serem submetidos ao imposto conhecido como laographia, os judeus se viram no mesmo nível social dos egípcios (TCHERIKOVER, 1999, p. 311-312), algo que será importante em algum momento ao longo desta tese, especialmente no capítulo 1. Que isso é possível de ser feito no discurso me parece claro. Ainda assim, considere-se o que Michel Meyer diz, não a respeito da mesma questão, exatamente, mas de algo próximo: “A retórica parece pois capaz de anular as diferenças para criar a identidade, tal como pode operar no sentido inverso, mas na maior parte dos casos os dois movimentos coexistem” (MEYER, 2007, p. 135). 29 Quais são os limites do que Fílon pode considerar comum com o si-mesmo? Chega-se, assim, a questões relativas ao particular e ao universal. Ellen Birnbaum aborda o tema a partir do estudo dos termos Judeu (I¦¦oudai¤o»- Iudaîos) e Israel (I¦¦srah¢¢l- Israel) na obra de Fílon. Conforme observa sua pesquisa, as palavras têm sentidos diferentes. Enquanto Israel se refere, a partir de uma suposta etimologia hebraica, ao conjunto de pessoas “que veem a Deus”40, Judeu se limita à nação, ao povo dos judeus, tanto ao histórico da narrativa bíblica, quanto ao contemporâneo, quer seja da diáspora, quer seja da Palestina. O que mais me interessa são os seguintes fatos: os dois termos não se superpõem. Ou seja, nem todos os que fazem parte dos Judeus são necessariamente Israel, e nem todos considerados Israel são necessariamente Judeus.41 Ademais, o grupo dos Judeus não está restrito aos judeus por 40 41 De fato, Fílon costuma interpretar Ισραηλ - Israel como ὁρῶν θεόν – horôn theón, “(o) que vê a Deus”. Ao fazê-lo, provavelmente, ele reproduz uma interpretação do nome em hebraico, ‫– ישראל‬ ishrael, como uma contração de ‫ – איש ראה אל‬ish roê el, “o homem (alguém) que vê a Deus” (cf. BIRNBAUM, 1996, p. 70-72). Hayward entende que Fílon chegou a essa interpretação não pela referida etimologia, mas pela leitura de Gn 28 (HAYWARD, 2000). Posteriormente, Marta Alesso, que reproduz muito do desenvolvido por esses outros dois estudos, também sugeriu que o próprio Fílon seja responsável por tal interpretação (ALESSO, 2010, p. 126). Quanto a isso, concordo com Birnbaum, inclusive porque o aproveitamento da interpretação etimológica desenvolvida por outros, possivelmente apresentada em listas de nomes e significados, é algo coerente com o que entendo que Fílon faz no caso de outros diversos nomes da Bíblia ao longo de seu trabalho exegético. Não há, de fato, registro anterior de algum exegeta que adote a mesma explicação do termo, mas alguns registros posteriores sugerem uma existência da mesma anterior a Fílon (BIRNBAUM, 1996, p. 73-74). Hayward procura reduzir essas possibilidades ao afirmar duas coisas: embora alguém mais possa ser Israel, todos os Judeus certamente são (HAYWARD, 2000, 226); o fato de que um não judeu poderia ver a Deus poderia ser entendido como uma inspiração extraordinária, como no caso da mula de Balaão (Nm 22:28; cf. Leg. 3.210). Não concordo com a primeira das afirmações, uma vez que Fílon pode ser muito crítico dos judeus que não vivem de modo acorde com sua nobreza de origem, e o faz inclusive em contraposição a prosélitos, como se verá no Capítulo 3. Quanto à segunda afirmação, não me parece completamente errada, mas um tanto desnecessária. Se Fílon não restringe claramente o termo Israel, ele tampouco afirma que não judeus específicos sejam parte desse grupo de pessoas. Os exemplos dados por Birnbaum de não judeus que têm aptidão para “ver” (Prob. 74; Prob. 140; Spec. 2.45; cf. BIRNBAUM, 1996, p. 94) talvez não sejam tão relevantes quanto ela supõe. Primeiro, porque Prob., embora certamente escrito por Fílon, tem bastante diferença com relação à maior parte de sua obra no que diz respeito ao tratamento do legado cultural grego ou não judeu em geral (cf. Primeiro Excursus do Capítulo 4). Ademais, essas referências caracterizam não judeus como aqueles que veem algo importante (a verdade, a natureza etc.), mas não a Deus. Birnbaum inclui na lista também os terapeutas (θεραπευταί – therapeutaí) descritos em Cont., e diz que Fílon não afirma, mas somente sugere que sejam judeus. Indiferente disso, pela leitura do tratado é óbvio o fato de que eles são judeus, inclusive porque são apresentados em comparação com os essênios (Cont. 1), seguem instruções de Moisés (Cont. 64) e se comportam como judeus nas sinagogas (Comparem-se Somn. 2.126-128 com Cont. 28-31. Cf. RIOS, 2009, p. 28-30). A respeito da relação desse grupo específico com os judeus em geral, cf. HAY, 2002, p. 344-345). Parece-me razoável, então, afirmar que Fílon não fecha o grupo de Israel nem o iguala ao dos Judeus, mas nada sugere que essa abertura seja tal que inclua alguém completamente ignorante da Lei mosaica. Questões pertinentes são abordadas no capítulo 3. 30 nascimento, podendo ser aumentado pelo acolhimento de prosélitos. Por tudo isso, segundo Birnbaum, não se pode considerar Fílon um particularista, ainda que seu universalismo não seja tal que aceite as outras religiões de seu entorno cultural como igualmente válidas (BIRNBAUM, 1996). Nesse sentido, a pesquisadora critica a posição de Mendelson, que poucos anos antes, havia publicado uma obra sobre a identidade judaica de Fílon, na qual, a partir de um estudo sobre a ortodoxia e a ortopraxia do alexandrino, o retrata como essencialmente particularista (MENDELSON, 1988). A pesquisa de Birnbaum tem a vantagem de observar de uma forma mais abrangente as afirmações de Fílon. Isso porque, em alguns momentos, o alexandrino produz frases que refletem um particularismo extremo. Não deve-se pensar, contudo, que negar o total particularismo ou uma alteridade absoluta deva levar à não consideração de qualquer limite. Se assim fosse, não haveria necessidade ou possibilidade de negociação. Há limites, mas nem todos são nitidamente percebidos. É possível, ainda assim, dar algum exemplo que desfaça a tentação de pensar que Fílon proponha uma continuidade ou identificação total e impensada, sem qualquer definição de um dentro e um fora. Como exemplo, cito apenas dois fatos que me parecem suficientes. O primeiro é a constatação de que, proporcionalmente à possibilidade de um não-judeu vir a tornar-se judeu pela conversão, existe a possibilidade inversa, de um judeu tornar-se um apóstata, abandonando sua origem. “Somente a apostasia implica em um rompimento com a identidade Judaica”42 (MODRZEJEWSKI, 1993, p. 83), escreve Modrzejewski. O pesquisador cita como exemplo o famoso caso de Dossiteu, registrado em III Macabeus (idem). O texto grego que seleciona, inclusive, é bem claro quanto ao desligamento do apóstata, “que muda os costumes e que se torna estrangeiro com relação aos dogmas pátrios” 43 (3 Mc. 1:3). John Barclay é mais meticuloso e ressalta que a apostasia está relacionada a perspectivas que variam entre diferentes círculos judaicos (BARCLAY, 1998, p. 93). Ainda assim, identifica dois pontos comuns que implicam na apostasia entre os diversos escritos que consulta (entre os quais está a obra de Fílon): a participação em cultos de outros deuses e a inobservância das leis relacionadas com a comida (BARCLAY, 1998, p. 91-92). No caso de Fílon especificamente, Barclay aponta para três principais tipos de apostasia: o repúdio das tradições e práticas judaicas pela ascensão social (Mos. 1.31), a adoção de costumes impuros e cultos estranhos pelo casamento com gentios (Spec. 3.29) e aqueles que rejeitam a Escritura 42 43 Minha tradução de: Only apostasy entails a break with Jewish identity. Minha tradução de: μεταβαλὼν τὰ νόμιμα καὶ τῶν πατρίων δογμάτων ἀπηλλοτριωμένος. 31 Sagrada, tratando-a como obra qualquer (Abr. 178-193; Conf. 2-13) (BARCLAY, 1998, p. 8485). Quanto à participação em outros cultos motivada pelo casamento, é preciso fazer uma observação. Não se deve pensar que a preocupação de Fílon com a possibilidade de um judeu se envolver com cultos de outras religiões se restringisse à questão do casamento misto. Sandelin demonstrou que a amplitude da questão é maior (SANDELIN, 2012b) 44. Convém observar, também, a partir de outro estudo de Sandelin, que diversas evidências epigráficas e literárias apontam para a participação efetiva de judeus em práticas religiosas de outros povos. Alguns o faziam à força, outros voluntariamente. Alguns parecem inclusive julgar viável sua participação em cultos de outras divindades sem deixar de se reconhecerem como judeus (SANDELIN, 2006). Então, a participação de um judeu em cultos alheios ao judaísmo, algo que de fato podia acontecer, parece um dado crítico, ao menos para Fílon, no que diz respeito à manutenção ou desligamento do pertencimento ao povo judeu.45 Quanto à apostasia relacionada com a abordagem da Escritura, não estou completamente convencido de que Fílon perceba tais pessoas como necessariamente apóstatas, ou, ao menos, tão definitivamente apartadas do judaísmo como aqueles que incorrem nos demais casos. Ademais, para afirmar com certeza que se tratam de apóstatas, teríamos que afirmar, antes, que se tratam de judeus (isto é, originalmente judeus), e não de pessoas de fora que tenham se interessado pelos textos dos judeus. Mas mesmo excluindo esse caso por cautela, é possível e importante notar que a possibilidade da apostasia e consequente consideração do apóstata como um “de fora”, assinala a existência de um limite mesmo para os que, em princípio, estavam “dentro” por relação genética.46 Outro fato que menciono como evidência de que, apesar de não haver um 44 45 46 Um problema pontual a se assinalar nesse artigo de Karl-Gustav Sandelin é a preocupação do autor com a presença de Fílon em eventos cívicos que poderiam comportar alguma conotação religiosa, sobretudo, porque essa preocupação se baseia na afirmação de Feldman de que a simples presença de um judeu nesses eventos comprometeria sua ortodoxia (SANDELIN, 2012b, p. 44). O anacronismo ou, ao menos, a imprecisão de Feldman ao falar categoricamente de uma suposta ortodoxia nesse contexto é flagrante. Certamente, não somente Fílon tinha tal percepção. É significativo que o mesmo Dossiteu, descrito como apóstata em 3 Mc. assumiu a função de sacerdote no Egito ptolomaico, conforme evidência de um papiro (CPJ 127e) (cf. REINHOLD; FELDMAN, 1996, p. 56-57; CROY, 2005, p. 39). Embora 3 Mc. não transmita tal informação, não é impossível conjecturar que a apostasia tenha sido associada fortemente a esse personagem histórico por esse motivo. A implicação comunitária do fato, contudo, nem sempre é discernível. Lester Grabbe, que enfatiza a naturalidade com que os judeus interagiam com a cultura helênica, faz a ressalva de que, ao menos em alguns casos, acusações de apostasia que nos chegaram podem refletir opiniões pessoais (GRABBE, 2008, p. 31). 32 particularismo absoluto, não há tampouco uma fusão impensada e abolição de limites é a constatação de Katell Berthelot em um estudo sobre o lugar dos judeus nas repartições que Fílon faz da população mundial. Fílon frequentemente lança mão da repartição do mundo entre gregos e bárbaros. E chega a utilizar o par claramente como definidor da totalidade, o que claramente acontece em Spec. 1.211, pois “gregos e bárbaros” (ἑλλήνων, βαρβάρων – ellénon, barbáron) aparece após “homens e mulheres” (ἀνδρῶν, γυναικῶν – andrôn, gynaikôn) e é seguido por “habitantes dos continentes e das ilhas” (τῶν ἐν ἠπείροις, τῶν τὰς νήσους εἰληχότων – tôn em epeírois, tôn tàs nésous eilekhóton). A questão proposta pela pesquisadora seria pensar onde se encontrariam os judeus entre essas duas opções. Há, de fato, um problema notável. Proporcionalmente notável, contudo, é a resposta de Berthelot, que resolve a questão ao perceber que Fílon tende a considerar o povo judeu como a parte do mundo comum, não sendo contado entre os demais, em uma retomada de Números 23:9, e conclui: […] a utilização do par gregos – bárbaros por Fílon não se reduz à influência de sua educação grega, mas reúne sua inspiração bíblica e sua concepção mística de Israel, povo que vê a Deus, sacerdote a serviço da humanidade (Spec. 2.162-167) e oferta de primícias a Deus (Spec. 4.180). Se o povo judeu não é contado com o número das nações, ele não permanece menos ligado a todos os povos, e tem por vocação última reuni-los um dia no culto do Deus Único.47 (BERTHELOT, 2011, p. 60-61) Nessa perspectiva quase cosmológica, então, Fílon parece considerar uma especificidade absoluta do povo judeu, mas, mesmo nessa perspectiva, isso não torna esse povo completamente desprovido de ligação com os demais. 48 E, certamente, propor uma total desconexão é menos plausível ainda se essa perspectiva cosmológica pretende fazer algum sentido a partir de uma leitura da perspectiva histórica e social. 49 Fílon estabelece uma 47 48 49 Minha tradução de: l'utilisation de la paire Grecs – barbares par Philon ne se réduit pas à l'influence de son éducation grecque, mais rejoint son inspiration biblique et sa conception mystique d'Israël, peuple ui voit Dieu, prêtre au service de l'humanité (Spec. 2.162-167) et prémices offertes à Dieu (Spec. 4.180). Si le peuple juif n'est pas compté au nombre des nations, il n'en demeure moins lié à tous les peuples, et a pour vocation ultime de les rassebler un jour dans le culte du Dieu Un. Alguns trechos podem dar uma impressão precipitada de que Fílon enquadra os judeus junto a um grupo ou outro. Ellen Birbaum menciona a expressão “nossa língua” como referência de Fílon ao grego como um exemplo de inserção entre os falantes de grego (BIRNBAUM, 2001, p. 47). Mas o fato de um escritor que usa o grego afirmar que ele e seus leitores estão entre os falantes desse idioma não é o mesmo que afirmar que todo o grupo dos judeus está. Birnbaum também menciona Mos. 2.27 como uma possível inserção dos judeus entre os bárbaros (BRINBAUM, 2001, p. 47; cf. GOUDRIAAN, 1992, p. 84-85). Contudo, como observa Berthelot, o trecho reproduz a opinião de não-judeus (BERTHELOT, 2011, p. 48). Pensando assim, concordo com Goudriaan: “Dizer que os judeus permanecem separados do resto da humanidade não implica que estejam à mesma distância de todos os povos não-judeus” [Saying 33 conexão entre a perspectiva histórica e a cosmológica, a meu ver, por exemplo, ao afirmar que o povo judeu ocupa, no conjunto da humanidade, o lugar que o sacerdote ocupa em um reino, uma vez que os sacrifícios oferecidos no Templo são em benefício de todos (cf. Mos. 1.149).50 Ademais, deve-se lembrar, o pertencimento a esse grupo à parte não é dado por parentesco somente, nem por lugar de residência. O que define o povo é mais a aderência a um conjunto bem específico de leis e a prática do monoteísmo (UBIGLI, 2003, p. 72-73)51 Se o parâmetro mais importante é a Lei e o estrito monoteísmo que ela implica, e se o povo judeu está a parte do resto, ao menos a partir de uma perspectiva cosmológica (que não implica em sua plena separação no âmbito social e histórico), é possível compreender que, em dados momentos, Fílon possa explicitar diferenças claras também para com os gregos. Diferenças teológicas são apresentadas ao longo da obra de Fílon, mas um contraste pontual, que abarca diferentes temas, aparece concentrado em Sobre a vida contemplativa. São trechos seguidos (Cont. 14, 42, 57, 68) que podem ser considerados surpreendentes, uma vez que o alexandrino está tão ligado à cultura helênica (BIRNBAUM, 2001, p. 46). Maren Niehoff explica essa característica de Cont. afirmando que o tratado foi escrito em um período tardio da vida de Fílon, quando ele se identificava, segundo ela, com a ideologia romana e, assim adotava os estereótipos comuns entre os romanos sobre os gregos, para localizar os judeus junto com a elite romana (NIEHOFF, 2001, p. 137-158). A meu ver, os trechos não devem suscitar grande surpresa, nem requerer necessariamente uma explicação muito complexa, baseada em uma cronologia hipotética. O alexandrino não afirma diretamente o pouco valor do comportamento dos gregos. Na verdade, em sua construção da comunidade dos judeus chamados “terapeutas”, que se localizava nos arredores de Alexandria, como 50 51 that the Jews keep aloof from the rest of mankind does not imply that they are at equal distance from all non-Jewish peoples] (GOUDRIAAN, 1992, p. 84). O culto judaico no Templo não só é afirmado como feito em benefício de toda a humanidade, mas também como um momento em que todo o cosmo cultua conjuntamente seu Criador (cf. Spec. 1.82-96; Mos. 2.133-135; Somn 1. 203-215). Essa compreensão confere ao culto próprio dos judeus um significado comum a toda a criação, universal. Contudo, curiosamente, essa mesma noção se mostra em completa oposição à religiosidade helenística, pois, em vez de o humano cultuar elementos do cosmo (criado), o judeu alexandrino propõe que o cosmo é que cultua o Ser (nãocriado) junto com o ser humano (HARL, 2011, p. 173; cf. BRÉHIER, 1950, p. 170). Para uma mínima exposição da interpretação cosmológica que Fílon apresenta para a veste sacerdotal, em comparação com Josefo e Sabedoria de Salomão, cf. RIOS, 2009, p. 46-48). O que pretendo demonstrar nesse trecho é a persistência de limites e definições mesmo quando há consideração do comum. Uma boa e sucinta exposição dessa realidade aparece em BIRNBAUM, 2011, p. 69-75. A autora, contudo, divide a evidências como representantes de duas correntes discrepantes no pensamento de Fílon, uma que tende para mistura cultural e outra que tende para a diferença cultural. De acordo com meu argumento, essa discrepância aparente revela na verdade uma tensa negociação. 34 exemplo de vida ideal alcançado por alguns judeus, ele estabelece uma contraposição com o ideal alcançado por alguns gregos específicos, como os atletas, os filósofos e as sacerdotisas virgens. O âmbito da comparação se faz mais amplo somente quando se entende o ideal construído como meta da vida do conjunto de pessoas. Mas o ideal construído por Fílon em sua descrição dos “terapeutas” não figura como valor compartilhado pelos judeus, mas sim proposto por ele mesmo como algo que deveria receber tal lugar. Algo mais deve ser dito: o fato de contrapor seu ideal ao dos gregos demonstra o valor deste último em sua reflexão. Assim como os textos do arquivo grego são valorizados, mas menos importantes que o texto ideal (a Torah) dos judeus, comportamentos específicos dos gregos, embora louváveis em princípio, podem revelar-se menos importantes ou dignos de honra se comparados aos pertinentes a um possível ideal de vida propriamente judaico (que gravita em torno da própria Torah, deve-se dizer). O contexto de Fílon não é, portanto, de um espaço vazio em que todos circulam sem que se pensem diferenças. Há linhas que formam um mapa. Mas elas não são dadas de antemão, para serem somente preservadas. São linhas muitas vezes esfumadas, não claramente nítidas, e constantemente negociadas. Percebo a necessidade de se pensar a diáspora como lugar de trocas muitas vezes não mapeáveis, lugar de uma negociação constante. O outro está em constante contato com o si-mesmo. Não digo que isso só aconteça na diáspora. Ricoeur procura demonstrar que o si-mesmo tem o outro como imprescindível para sua constituição em qualquer situação (RICOEUR, 1991). O que pretendo destacar é o fato de que a experiência de constantes fronteiras estabelecida na diáspora torna o contato com o outro tão cotidiano que o si-mesmo é constantemente chamado a reinterpretar-se, a tratar de seu limites e de seus alcances, em um jogo no qual o próprio outro deixa, por vezes, de ser tratado como outro, tornando-se constitutivo de uma identidade situacional. Isso deve ser frisado, essa identidade não se define em momento algum como uma mesmidade absoluta, mas como uma ipseidade marcada em uma negociação sobretudo discursiva e performática (ainda aqui dependo da referida obra de Paul Ricoeur). Quando falo em negociação, decerto, suponho que os limites com que se joga não são rígidos e definitivos, mas maleáveis conforme necessidades e estratégias. Nesse sentido, parece-me que a diáspora judaica em Alexandria exige uma noção de diferença que transcenda o binarismo tradicional, que opõe fixamente o um e seu oposto. Portanto, pode-se adotar a noção derridiana de différance como parâmetro da atual reflexão 35 sobre um caso antigo. Pois, apesar da relação estrita de Fílon com a crença e a prática religiosa judaica, percebe-se em seu texto um processo de identificação passível de deslizes, deslocamentos. Nisso, sigo inevitavelmente a proposta de Stuart Hall para a reflexão sobre a diáspora caribenha na Inglaterra dos séculos XX e XXI (HALL, 2003, p. 32; p. 58). Decerto, nem toda a reflexão de Hall será aplicável ao caso de Fílon, sobretudo porque, em alguns momentos, ele se refere a fenômenos especificamente oriundos de condições engendradas em nossos séculos. Contudo, a leitura de seus textos pode ajudar a pensar casos do passado. Por isso, a mobilizo com o cuidado de evitar imputar à obra de Fílon características dos tempos atuais, mas não privo de minha reflexão, inevitavelmente atual, o diálogo com meu universo discursivo.52 O mesmo devo dizer com respeito à alguns apontamentos de Bhabha que me parecem pertinentes. Sua reflexão lida frequentemente com problemas relacionados à cultura na era dos Estados Nacionais. Contudo, algumas de suas noções são aplicáveis, ou ao menos me servem de ponto de partida para uma reflexão mais específica e próxima do discurso filônico. Como exemplo, menciono a negociação que se dá na interculturalidade (BHABHA, 1998). Ora, percebo em Fílon justamente, como antes adiantei reiterativamente, uma constante negociação de seu lugar, dos limites de si-mesmo, do que é próprio e do que é comum com. Passo a exemplificá-lo minimamente. Em Embaixada a Gaio Fílon procura demonstrar o erro contido nos atos do imperador Caio Calígula, sobretudo no que diz respeito a sua vontade de fazer-se deus. Ademais, ele narra sua ida a Roma, como parte de uma embaixada enviada pelos judeus alexandrinos com o objetivo de negociar, de solicitar do governante uma proteção contra perseguições que sofriam, além do reconhecimento deles mesmos como cidadãos alexandrinos. Enquanto os cinco representantes da embaixada esperavam uma oportunidade de falar diretamente com Calígula, chega um judeu com uma notícia desastrosa: uma imagem de Calígula-Zeus tinha sido colocada dentro do Templo, em Jerusalém. Esse personagem cumpre, a meu ver, a função de um verdadeiro mensageiro trágico. Fílon conta, então, que, após escutarem a nefasta novidade, todos se colocaram juntos e “pranteávamos 52 Reconheço que, provavelmente, o próprio Hall desaprovaria a mobilização de seu aparato teórico para uma reflexão sobre a diáspora judaica (e antiga). Não obstante, isso pode dever-se a um equívoco com respeito às características do movimento diaspórico judaico, confundido por Hall com o sionismo (cf. BOYARIN, 2002, p. 12-13). John Barclay, na introdução de um volume intitulado Negotiating Diaspora assinala a pertinência (e também alerta para o cuidado necessário) no empreendimento desse tipo de abordagem, que considera o arcabouço conceitual atual e experiências de Diáspora de nossos tempos na reflexão a respeito das diásporas judaicas da Antiguidade (BARCLAY, 2004). 36 incessantemente, a uma só vez, em um só lugar, as sortes próprias e as comuns” (Legat. 190)53. O advérbio o(mou¤ - homoû pode significar uma simultaneidade (por isso tento traduzilo por “a uma só vez”), bem como uma coincidência espacial (por isso “em um só lugar”). Independente dessa escolha, o importante é notar que nesse caso o próprio e o comum são copranteados. Há uma distinção, deve-se notar, mas um só pranto. E o que seria o próprio e o comum nesse caso? O comum se refere, pelo contexto, ao sucedido aos judeus como povo em geral. O próprio, por sua vez, poderia ater-se ao individual (cada um chora o fato segundo sua própria experiência) ou ao geográfico, uma vez que há alexandrinos e não-alexandrinos em conjunto. Em um trecho pouco posterior, as coisas se definem um pouco mais claramente. O narrador reflete sobre a mudança de prioridade entre a defesa dos direitos no âmbito do que é próprio e a luta em um âmbito mais amplo: toiÍj ga\r mega/loij ta\ braxe/a kaiì toiÍj koinoiÍj ta\ iãdia u(poste/llein a)nagkaiÍon, wÒn oi¹xome/nwn eÃrrei kaiì h( politei¿a. pou= ga\r oÀsion hÄ qemito\n aÃllwj a)gwni¿zesqai, deiknu/ntaj w¨j e)sme\n ¹AlecandreiÍj, oiâj o( periì th=j kaqolikwte/raj politei¿aj e)pikre/matai ki¿ndunoj th=j ¹Ioudai¿wn; Pois é necessário subordinar as pequenas coisas às grandes, e as próprias às comuns. Ora, quando estas se vão, se perde também a cidadania. Pois onde está o sagrado ou o direito em se rivalizar de outro modo, procurando mostrar como nós somos alexandrinos, nós a quem um perigo ameaça a cidadania mais universal, a dos judeus? (Legat. 193-194) Antes de uma leitura atenta desses textos, alguém poderia pensar que o próprio, para Fílon, seria o relativo à cultura judaica, enquanto o comum seria o que ele compartilha com o ambiente cultural grego.54 Contudo, as coisas se revelam mais complexas. O comum pode ser o judaísmo como um todo e o próprio a comunidade judaica alexandrina. Próprio e comum se veem alterados em um jogo de perspectivas variáveis. Em algum momento, como visto, Fílon pode inclusive assumir a divisão grega de mundo entre gregos e bárbaros e referir-se a César como “aquele que curou as doenças comuns dos gregos e bárbaros” (Legat. 145)55. E se o estudo de seus textos pode levar à conclusão de que ele coloca os judeus à parte dessa divisão, como observei há pouco56, isso não está explícito em uma simples leitura do texto. No passo mesmo, para um leitor não estritamente informado do pensamento do 53 54 55 56 Minha tradução de: a)qro/oi i¹di¿aj o(mou= kaiì koina\j tu/xaj e)qrhnou=men A língua que usava, por exemplo, veio a ser chamada Grego Koiné, isto é, o grego comum, por ser a variante difundida em todo o mundo helenofônico pós-Alexandre. Minha tradução de: o( ta\j koina\j no/souj ¸Ellh/nwn kaiì barba/rwn i¹asa/menoj. Cf. p. 31-32. 37 alexandrino, nada indica que há um grupo fora dessa contagem. Falar do próprio e do comum é tratar de limites. Compreendo que, para a definição de um grupo, geralmente importa mais os limites que o separa de outros grupos do que necessariamente o conteúdo cultural que se encontra dentro desses limites (BARTH, 1969, p. 15). Mas, a partir dessa constatação, não me restrinjo a pensar o próprio de um lado e o Outro do outro lado desse limite. Esse pensamento pode ser o principal na definição de um grupo. Na negociação, por outro lado, a noção do comum se coloca em destaque. Julgo, então, válido investigar a questão da identificação (desempenhada no texto) de Fílon por meio de um mapeamento, em seus escritos, do que lhe é próprio e do que lhe é comum, tendo em mente a maleabilidade dessas noções, desses limites. Acredito que, já em Fílon, talvez por sua experiência de diáspora, a identidade não se baseia em uma mesmidade absoluta, mas em um complexo processo de identificação.57 Nesse, questões como perspectiva, situação e estratégia são fundamentais, uma vez que se mobilizam em uma constante negociação. Assim, enquanto Ellen Birnbaum procurava, conforme o título de seu livro58, o lugar do judaísmo no pensamento de Fílon, eu suspeito que haja uma certa instabilidade nos lugares ocupados por cada elemento na escrita filônica. São lugares manejáveis. Por isso, procuro, em um estudo literário, não mais que rastros do que é próprio (e do que é comum) na tessitura do alexandrino, considerada como uma cartografia que pode ser lida sempre em movimento. Comparação: recurso da alteridade, recurso do pesquisador Como comentei antes, o fato de lidar com dois arquivos literários distintos leva Fílon a estabelecer comparações entre um e outro. Hartog observa que a comparação é um recurso comum da retórica da alteridade (HARTOG, 1999, p. 229-271). A observação é válida, mas sempre devo lembrar que, ao menos no caso de Fílon, é preciso ter cuidado para não se pensar em uma alteridade radical que polarize o próprio e o outro em âmbitos nitidamente demarcados. Contudo, o fato que agora me interessa observar é que, se a comparação foi um recurso utilizado por Fílon na tessitura de sua obra, ela pode também ser 57 58 É válido enfatizar que não apresento essa característica como peculiaridade dos judeus naquele contexto. Shaye J. D. Cohen bem observou que a identidade dos judeus na Antiguidade era elusiva e incerta (COHEN, S. J. D., 1999, p. 3). Mas Joseph Geiger, muito perspicaz, demonstrou que, mesmo quanto a isso, “os judeus tinham muito em comum com o resto dos habitantes do império [Romano]” [the Jews had much in common with the rest of the inhabitants of the empire] (GEIGER, 2009, p. 145-146). The place of judaism in Philo's Thought. 38 um recurso utilizado na produção de um texto sobre esta. A bem da verdade, a própria leitura da obra de Fílon parece induzir à comparação. Os arquivos distintos com que trabalha são evocados à mente do leitor, caso este tenha um mínimo contato prévio com eles. Mesmo em um estudo detido, como o que proponho, as comparações surgem imperiosas. Como observei antes, a tessitura de Fílon se vê intrinsecamente relacionada com seu universo discursivo, com seus roubos, suas citações (citas), sua memória-tradição. Por isso, estudar sua obra implica em deparar-se com essa busca de um lugar entre tantos textos. Três tipos de comparações se mostram bem plausíveis no que diz respeito a um estudo literário da obra do alexandrino: Fílon – literatura grega; Fílon – literatura hebraica em língua semita; Fílon – literatura judaico-helenística. Os dois primeiros tipos de comparação propostos podem revelar a maneira como o alexandrino lida com os diferentes arquivos e, de alguma forma, deixar entrever algo de sua negociação discursiva dos limites. O terceiro, a meu ver, pode apresentar sua obra junto a outras que se depararam com questões semelhantes (semelhantes, não iguais) e revelar algo de específico em sua maneira de responder a estas. O que pretendo não é demonstrar relações de influência do mais antigo sobre a escrita filônica, mas ler esta obra em paralelo com outras para encontrar fios de seu tecido e as maneiras que ele tem de trançá-los. Em outras palavras, procurarei comparar para conhecer melhor meu objeto de pesquisa, não para cobrar-lhe dívidas antes despercebidas. De certo, fazendo-o, procuro também perceber como a maneira de lidar com os textos anteriores pode revelar algo sobre o que o meu autor busca ou propõe para a escritura que há de vir. A organização da tese e outros esclarecimentos O presente estudo procura ter em consideração as questões apresentadas, desenvolvendo-as conforme a necessidade das leituras que se realizarão. Divido-o em duas partes que, embora possam ser lidas individualmente, complementam-se mutuamente. Na primeira parte, apresento três questões pertinentes ao panorama intercultural de Fílon a partir de leituras de trechos de sua obra em paralelo com textos da Bíblia hebraica. Essas três questões (que se referem à definição de limites de alteridade, ao lugar de Jerusalém e da expectativa de retorno para o judaísmo de Fílon e à conversão de gentios ao judaísmo) se desenvolverão em três capítulos ou ensaios, que definirão parâmetros importantes para o desenvolvimento da parte seguinte. 39 Na segunda parte, apresento dois grandes capítulos. O primeiro abordará a relação entre interculturalidade (ou melhor, negociação intercultural) e intertextualidade (incluindo-se citações e outras referências menos evidentes) na tessitura de Fílon de Alexandria. Estudarei especificamente as maneiras como o alexandrino se utiliza dos poemas homéricos em sua obra, e como essas maneiras podem refletir a negociação. O segundo capítulo trata da aproximação que Fílon faz com o gênero trágico em um de seus tratados. Nesse ponto, será preciso pensar de modo detido sua relação com a tragédia, bem como a relação do judaísmo em geral com tal gênero. O objetivo é pensar como a utilização de elementos de um gênero literário próprio dos gregos pode ser uma maneira de tornar algo comum, e considerar que tipo de esforço atento é necessário para tanto. Por fim, apresentarei uma breve reflexão final (como minha Conclusão), que se intitulará “adiásporalidacomoestilo”. Convém que eu ofereça, ainda, alguns esclarecimentos que facilitarão a compreensão de algumas características do texto que segue. Quanto às traduções de textos em línguas antigas (grego, hebraico e latim), observo que muitas são de minha responsabilidade. Quando for diferente, o tradutor será informado no texto. As traduções de trechos da obra de Fílon, por exemplo, são geralmente minhas, salvo as dos tratados Flac. e Legat., para as quais, o mais das vezes, adoto tradução de Tatiana Faia, indicando o fato no local.59 As traduções de textos da Bíblia hebraica e do Novo Testamento também são minhas. Isso não significa que eu não considere boas muitas das traduções disponíveis. Acontece que o processo tradutório me serve como passo para o estudo detalhado do texto, e a tradução própria me permite evidenciar alguns dos detalhes que me parecem importantes de modo mais propício ao meu texto. Em geral, os textos antigos são apresentados em destaque na língua original com a tradução em seguida, mesmo se tratando de trechos pequenos. Algumas vezes, contudo, posso favorecer o fluxo da leitura inserindo frases no corpo do texto. Nesse caso, o texto fonte aparecerá em nota ou, no caso de expressões ou orações muito breves, entre parênteses no próprio corpo do texto. Resta dizer que, tanto para versos gregos quanto hebraicos, minha tradução não tem qualquer pretensão poética. Procuro manter a apresentação versificada somente com o objetivo de viabilizar o cotejo por parte do leitor. 59 Quando opto por oferecer uma tradução própria de trecho de um desses tratados, o leitor deverá entender que o faço não por julgar equivocada a tradução de Faia, mas com vistas à apresentação de um texto que realça aspectos importantes para minha leitura. 40 No caso das traduções de obras em línguas modernas, procuro, sempre que possível, aproveitar traduções já existentes em língua portuguesa. Nesses casos, o tradutor é creditado nas Referências Bibliográficas somente. Quando acesso o texto somente em língua estrangeira e o traduzo para citá-lo, apresento a versão original em nota. Essa dupla exposição do texto pode parecer excessiva, mas se justifica com dois argumentos: julgo pertinente apresentar os textos originais para possibilitar ao leitor o acesso à ideia do autor em sua própria formulação; por outro lado, julgo necessário traduzir o texto (diferente do que ocorre em algumas publicações) para viabilizar a compreensão por parte de um eventual leitor que não leia a língua original. Algo também deve ser dito sobre as transliterações. Não translitero textos citados, mas somente palavras ou expressões que apareçam no corpo de meu texto. O objetivo é possibilitar a continuidade da leitura (e, por vezes, o acompanhamento do argumento baseado em detalhes da língua) por parte de leitor não versado nos alfabetos antigos utilizados. Ao transliterar, não tenho por objetivo tornar desnecessária a exposição das palavras com seus próprios caracteres, mas viabilizar a identificação dos sons. Por isso, sobretudo no caso do hebraico, não me dedico a uma transliteração meticulosa que produza uma correspondência precisa entre sons e, ao mesmo tempo, torne possível a transliteração inversa. O leitor que leia hebraico deve valer-se das palavras escritas no próprio alfabeto do hebraico, que não deixarão de figurar no texto. Por se tratar de uma tese defendida no século XXI, alguns leitores certamente acusarão a absência do método histórico-crítico ou alguma abordagem semelhante na leitura dos textos da Bíblia. Interesso-me pela forma final do texto bíblico e não imediatamente por sua formação. Nesse sentido, me aproximo não da abordagem de Fílon, mas sim de sua apreciação do texto. O método é diferente, mas o objeto é, de modo semelhante, considerado como unidade. Folker Siegert afirma que “de certo modo, é preciso resistir a Fílon, ainda hoje, se se quer engajar-se no campo da ciência bíblica. É preciso se libertar de Fílon 'o bispo'” 60 (SIEGERT, 2011, p. 393). Ao contrário da recomendação, não resisto a Fílon, mas, em certa medida, resisto com Fílon, para compartilhar um dos aspectos de seu ponto de vista. Não me parece anacrônica essa minha opção. Não pretendo me fazer antigo. Leio, nesta tese, a Bíblia como peça literária com profunda significância histórica e para a memória cultural. E inclusive do ponto de vista dos estudos da Bíblia, é preciso reconhecer que, mesmo 60 Minha tradução de: D'une certaine façon, il faut résister à Philon, même aujourd'hui, si on veut s'engager em matière de science biblique. Il faut se libérer de Philon. 41 havendo um domínio crescente do método histórico-crítico, talvez haja ainda espaço para abordagens um pouco mais semelhantes em alguns aspectos à que desenvolvo, como me parece ser o caso de diversas abordagens da Bíblica como literatura, e também, da chamada “abordagem canônica” (canonical approach), que propõe o entendimento da Bíblia hebraica, na forma como se constituiu, como literatura sagrada religiosa para a comunidade de Israel (ainda que não despreze decididamente a crítica), e cujo maior promotor foi Brevard S. Childs, de Yale.61 O que quero ressaltar é que não me desprendo de meu tempo, de minha plataforma de observação, para simular outro lugar de observação impraticável, mas que seleciono, isso sim, uma perspectiva existente em meu tempo, que me possibilite um ponto de vista mais compatível ou harmônico com o do autor que estudo.62 Feitas essas observações, o que resta é o prosseguimento da tese, que está colocada para dar continuidade ao diálogo. 61 62 Um livro fundamental para a compreensão da proposta de Childs, que rompe com o rumo dos estudos da Bíblia que já estavam vigentes no século XX, é o seu Introduction to the Old Testament as Scripture [Introdução ao Antigo Testamento como Escritura] (CHILDS, 1979). Para uma apreciação a respeito do projeto de Childs, cf. NOBLE, 1995. Para uma observação da vida acadêmica e do pensamento de Childs ao longo de sua carreira, DRIVER, 2012. Além do método de Childs, eu mencionaria como ponto de comparação a hermenêutica teológica de Karl Barth, mas esse meu ímpeto advém mais de uma impressão de curiosas semelhanças entre Fílon e o teólogo suíço, que propriamente de constatações bem pensadas. Uma mudança radical nessa perspectiva significaria, a meu ver, uma mudança no próprio objeto estudado, como argumento na nota 437, p. 261. 42 Primeira Parte Reflexões sobre aspectos da resposta de Fílon a seu contexto intercultural apresentadas por meio de diálogos com a Bíblia hebraica 43 Capítulo 1 A morte do egípcio: Êxodo 2:11-15 e sua reescrita em um judaísmo que fala grego ...quebrando o egoísmo de seu eu, ele [Moisés] descobre o próximo. E é esta descoberta que, no fim das contas, provoca o Êxodo. O distanciamento entre os homens desapareceu. De outro, que até aqui podia se esfumar até o ponto de se esmorecer em uma nãoparecença absoluta, cada um se transformou no próximo.63 (NEHER, 1956, p. 92) Moisés golpeou o egípcio e o escondeu na areia. Esse episódio, narrado de modo rápido na Bíblia (Êxodo 2:11-15), poderia passar despercebido como um evento normal, esperado inclusive, para um momento de grande tensão. Mais que isso, poderia ter se confundido com outras tantas mortes ocorridas em guerras travadas pelos hebreus até seu estabelecimento em Canaã. Não obstante, o assassinato se dá de forma isolada, fora de uma cena de batalha. Além disso, não é motivado por uma ordem “superior”.64 Neste ensaio abordarei primeiramente a narrativa tal qual se apresenta na Bíblia Hebraica. Considerarei minimamente seu contexto dentro do corpus que constitui e analisarei o texto em seus detalhes. Para tanto, o primeiro passo será propôr uma tradução pessoal do texto, seguida de uma leitura comentada, feita a partir do texto e em diálogo com outros leitores de nosso tempo. Ao longo da leitura do texto hebraico, dialogarei com alguns importantes comentadores e importantes nomes da hermenêutica bíblica, mas procurarei verificar no texto a viabilidade de suas asserções. Intentarei, em minha leitura, ir além do mero julgamento da ação de Moisés, na intenção de alcançar a crítica do texto, de modo a demonstrar, ao final, que o crime de Moisés não é necessariamente o tema central do texto. Parece-me que a dificuldade de julgar a ação narrada pode explicar-se justamente pelo fato de que o texto não se constituiu com vistas a isso. O corpo que jaz (ou deveria jazer) sob a areia aponta para o crime, mas também para estâncias que transcendem o evento localizado entre dois indivíduos, 63 64 Minha tradução de: brisant l’égoïsme de son Moi, il découvre le prochain. Et c’est cette découverte qu’en fin de compte provoque l’Exode. L’éloignement entre les hommes a disparu. De l’autre, qui jusqu’ici pouvait s’estomper jusqu’à s’évanouir dans une non-ressemblance absolue, chacun est devenu le prochain. Isso o diferencia do assassinato de Fineias e da mulher que com ele estava, o que se narra em Números 25. 44 alcançando uma significância mais ampla, relacionada com a própria constituição de uma identidade. Posteriormente, observarei minimamente o texto apresentado pela Septuaginta, tradução da Torah ao grego, que dá início a uma grande tradição literária judaica nesse idioma. Por fim, apresentarei e comentarei de forma breve a leitura em forma de re-escrita que Fílon de Alexandria oferece para o episódio em Sobre a Vida de Moisés, contrastando seu texto com o de Ezequiel, tragediógrafo judeu que o precede no tempo. Com esses movimentos, creio que terei reunido elementos suficientes para voltar a afirmar a hipótese inicial e compreender como a questão central do texto pode reaparecer ou se esconder em um judaísmo que fala grego. 1.1 A narrativa na Bíblia Hebraica  he -te'     raW Hyi'  ' h - 11. Naqueles dias, Moisés tinha crescido e saiu para junto dos irmãos dele. Ele os viu em seus enfados. E viu um homem egípcio que golpeava um homem hebreu, um de entre os irmãos dele. 12. E ele se virou para aqui e para ali e viu que não havia nenhum homem. E golpeou o egípcio e o escondeu na areia. 13. E saiu no segundo dia. E ali estavam dois homens hebreus que lutavam entre si. E disse ao culpado: Por que golpeias teu companheiro? 14. E disse: Quem te pôs para ser um membro especial, chefe e juiz, sobre nós? Acaso tu estás pretendendo matar-me, assim como mataste o egípcio? Moisés teve medo e disse a si mesmo: “Oh! O caso se tornou conhecido...” 15. E o Faraó ouviu esse caso e procurou matar Moisés. E Moisés fugiu da face do Faraó e se estabeleceu na terra de Midiã; estabeleceu-se sobre o poço. Shemot / Êxodo 2:11-15 Devemos começar pelo começo. Mas antes da primeira palavra ( - wa-yehi, literalmente, “e aconteceu” - que aqui marca o início de um episódio a ser narrado, não sendo vertida por qualquer significante em minha tradução, mas sutilmente lembrada por um espaço em branco), devo observar em que ponto da trama maior ela emerge. Os primeiros capítulos do Êxodo são dotados de uma linha de desenvolvimento e um objetivo mais ou menos 45 definidos. Narrar a saída de Israel do Egito é, de alguma maneira, narrar a saída de Israel da condição de clãs sob opressão para a existência como povo. Nas palavras de André Lacocque, “Com o Êxodo, os clãs hebreus se tornam um povo constituído” (LACOCQUE, 1965, p. 345).65 E, embora no início do livro Deus não apareça nomeado explicitamente 66, a constituição desse novo povo parece ser tida como uma nova criação. Aqui, ele “passa do estado indiferenciado do caos àquele da criação, ele se torna ele mesmo” 67 (LACOCQUE, 1965, p. 345)68. Para se chegar a isso, a trama é narrada de maneira concisa, mas cuidadosa, em um jogo no qual, a meu ver, o trecho que agora pretendo estudar ocupa um lugar fundamental, uma vez que oferece, em seus detalhes, pistas importantes da mudança que está para ocorrer. No início do Êxodo, nos é apresentada a mudança de situação que viveram os descendentes de Jacó no Egito. Agora, eles já não são bem acolhidos. Já não contam com a simpatia conquistada por José. O Faraó teme que se multipliquem ainda mais, por isso lhes impõe um controle populacional nada pacífico. Em meio a essa situação, Moisés nasce. Sua mãe encontra uma maneira de salvá-lo da morte, e ele acaba sendo adotado pela filha do Faraó.69 É ela quem o nomeia. Pronto, o texto não nos informa nada mais sobre sua criação. Imediatamente, segue o texto de que agora me ocupo. Moisés aparece crescido.70 Em sua primeira ação narrada, ele saiu. O ponto de 65 66 67 68 69 70 Minha tradução de: Avec l'Exode, les clans hebreux deviennent un Peuple constitue. Implicitamente, contudo, o texto parece remeter a Deus desde o início, ao narrar o que poderia ser lido como o cumprimento de uma de suas promessas: a fertilidade dos hebreus. Cf. Gn 22:17. Minha tradução de: Il passe de l'etat indifferencie du chaos a celui de crdation, il devient lui-meme. Ackerman, ao estabelecer relações textuais e temáticas entre o relato da criação, do dilúvio e do nascimento de Moisés, afirma: “O narrador está claramente dizendo que o destino do homem, como anunciado na Criação e depois do dilúvio, está em processo de ser cumprido pelos descendentes de Israel” [The narrator is clearly saying that the destiny of man, as announced at the Creation and after the Flood, is in the processo of being fulfilled by the descendants of Israel.] (ACKERMAN, 1974, p. 77). Tendo sido criado o mundo e a humanidade, e tendo esta sido poupada por meio de uns poucos em uma embarcação, chega enfim o momento de que um homem, salvo por meio de outra embarcação (esta bem menor e exclusiva), coopere na gênese do povo judeu. O termo que se utiliza no texto hebraico para referir-se à “arca” de Noé no Gênesis (hAbEGt - tebah) é o mesmo que, no Êxodo, se utiliza para referir-se ao “cesto” que a mãe de Moisés preparou para colocá-lo no rio e salvá-lo da morte. Sobre a repetição do termo, conferir ACKERMAN, 1974, p. 91. No verso imediatamente anterior, há outra ocorrência do verbo crescer (ldg - gadal) exatamente com a mesma forma (l - waigdal, qal imperfeito com wav), mas com sentido levemente diverso. Ali, o crescer parece dizer respeito a um primeiro processo que se dá com a amamentação (embora o período não seja claramente definido). Aqui, por outro lado, o processo parece mais longo e, pela cena que está por narrar-se, Moisés parece já um adulto, ou, no mínimo, um jovem. A repetição pode ser vista como vestígio de uma inserção desta narrativa (de tradição Javista, como 46 origem não é nomeado, mas parece ser a casa da família do Faraó. O ponto de destino não é completamente definido. Ele vai rumo aos irmãos dele. Quem são esses? São irmãos? Então ainda estamos nos referindo a esse povo como uma família. Não lhes é dada uma designação específica? Não ainda. Mas é nesse ponto que Moisés começa a ver. Ele vê seus irmãos em seus enfados, situação que já era conhecida do leitor desde o capítulo anterior e que já nos define que se está chamando de irmãos aqueles que o são por afinidade genética, não por criação. Depois de ver a paisagem geral na qual se encontravam os seus, ele foca a visão e vê71 “um homem egípcio que golpeava um homem hebreu, um de entre os irmãos dele”. Agora, todos os “irmãos dele” aparecem designados por um termo aplicado a um indivíduo específico. O homem hebreu é um de entre os irmãos dele. E esse homem hebreu ( ish ivri) é antecedido, na mesma frase, por aquele homem egípcio (  - ish mitsri) que o espanca. A reação de Moisés é rápida, dura um pequeno versículo. Ele se vira para um lado e outro72 e vê que não há homem ( - wayare ki ein ish). Talvez pudéssemos traduzir simplesmente por “não havia ninguém”, o que seria mais natural em português, mas a 71 72 se define na Bíblia de Jerusalém) após o episódio do nascimento (que seria, por sua vez, fruto de tradições Javista-Eloístas, ou somente Eloístas, segundo os anotadores da mesma edição). Segundo Childs “Duas histórias são unidas com uma leve sobreposição” [Two stories are joined with a slight overlapping] (CHILDS, 1974, p. 28). Essa leitura, ao menos neste caso, parece-me desnecessária, uma vez que as duplas ocorrências com sentidos diferentes se repetirão no episódio. Já com relação à sintaxe do verso 11 - uma vez que o mesmo Childs indica esta impediria que este fosse tido como uma frase de reinício, “a resumptive clause” (CHILDS, 1974, p. 28-29. Para outro argumento do mesmo autor, cf. CHILDS, 1965, p. 121.) - devo dizer que parece plausível que marque sim o início de outro episódio de uma mesma história. Seja qual for o processo de criação, parece-me que o resultado é um texto em cuja leitura deve-se atentar para essa dinâmica de aproximação e distanciamento de sentido. Lê-la somente como indício ou efeito colateral de uma compilação tardia pode ser empobrecedor. Aproveito para assinalar que as questões relativas à composição do livro, enquanto crítica da forma, não são alvo de meu interesse aqui. Desde este primeiro episódio que mostra Moisés em ação, o olhar parece ser algo característico dele. No capítulo seguinte, por exemplo, conta-se que ele viu (' - waiêra) uma sarça que arde sem se consumir e propôs a si mesmo dar a volta para ver (he' - assurá-ná wereh, “darei a volta e verei”) o que acontecia ali. A atitude é observada por IHWH, que reage de forma interessante: “E viu () IHWH que ele deu a volta para ver (t- lir'ót), e o chamou Deus...” (cf. Ex 3:1ss). De forma sutil, a construção parece colocar a fala de IHWH somente após a constatação da insistência de Moisés em ver, o que pode sugerir que o fenômeno se tratava de um teste, para se averiguar a capacidade de observação do futuro legislador. Ou seja, muitos poderiam ver o fenômeno e sequer observar que o fogo não consumia a planta (leva um tempo para perceber isso). Essa capacidade de observação da sutileza parece-me importante para se entender o que está em jogo no relato de Êxodo 2:11ss. Por isso, já é atribuída a Moisés e solicitada do leitor.  - kô wakô. Literalmente, “esse e esse” ou “assim e assim”. Curiosamente, o texto parece supôr alguém que conte a história oralmente e demonstre “este e aquele lados”. Cf. Números 11:31, que usa a partícula de modo semelhante. 47 repetição insistente do termo homem ( - ish) me interessa. É a terceira ocorrência e ainda faltam duas (uma no plural e outra no singular, versos 13 e 14). Propp entende que essa repetição, que dá coesão aos episódios, “pode simbolizar a maturação e socialização de Moisés, em contraste ao reiterado yeled (criança) na unidade anterior”73 (PROPP, 1999, p. 162)74. É certa a observação, mas o que pretendo mostrar é que nesse novo âmbito em que Moisés se insere, o dos homens (dos anashim), ele é convidado, e junto com ele os leitores, a perceber que, embora todos sejam homens, há diferentes tipos deles, diferentes grupos. Voltarei a isso posteriormente, com nova perspectiva e inclusive mudando a tradução do termo. De momento, sigamos a narrativa: Ele golpeia o egípcio. Está feito. E tão feito está, que logo ele o esconde na areia. O verso 12 contém todo a ação na sequência dos passos, em uma dicção ligeira: o que ele faz antes de matar ( - waiphen kô wakô wayare ki ein ish); o assassinato (-te'  - wayakh et-hamitsri); a ocultação do cadáver ( waitmnehu bakhol). O assassinato está enquadrado pela preparação e pelo ato contíguo, em uma sequência/frase cheia de nuances complicadas, que só se deixam ler no sentido pleno quando se depara com o final: a existência do cadáver. Primeiro, observo o assassinato, para depois ponderar sobre a ação anterior e subsequente. O verbo que narra o golpe que Moisés aplica sobre o egípcio é o mesmo que narra o que esse homem egípcio fazia com o homem hebreu: hkn – nakhah. Não somos informados da intensidade do golpe que o egípcio aplicava sobre o hebreu. Mas sabemos que o golpe de Moisés foi letal. O termo usado é o mesmo, mas a força talvez não. Os que almejam justificar a atitude de Moisés dirão que o verbo tem o mesmo significado nas duas ocorrências. Martin Noth, por exemplo, afirma: “por alguma razão aparentemente trivial, um egípcio pode matar um israelita imediatamente (o verbo nikkah precisa certamente ter o mesmo sentido aqui como ele sem dúvida tem no verso seguinte e, então, significa “matar” e não somente “bater”)” (NOTH, 1962, p. 35-36).75 De modo 73 74 75 Minha tradução de: ...may symbolize Moses' maturation and socializaton in contrast to the repeated yeled 'child' of the preceding unit. Além da repetição, de termos diferentes nas duas unidades, o contraste é marcado pela mudança na função sintática. O Moisés-criança aparece quase que exclusivamente como objeto no episódio anterior (salvo no verso 10, quando diz que a criança cresceu), agora, ele-homem e os demais homens se alternam como sujeito e objeto. Minha tradução de: for some apparently trivial reason an Egyptian can kill an Israelite on the spot (the verb nikkah must surely have the same meaning here as it doubtless has in the following verse and thus means 'kill' and not just 'beat'.) 48 semelhante, Walter Vogels afirma: “O texto usa o mesmo verbo para o egípcio que maltratou um hebreu (v. 11). O resto do versículo confirma que o feriu até a morte. O assassinato é vingado por outro assassinato” (VOGELS, 2003, p. 77).76 Contudo, a meu ver, ambos estão indo além do texto ou, no mínimo, fazendo uma leitura simplificadora deste, privando-o da possibilidade de ser mais complexo do que esperam. Childs, por outro lado, marca que o autor deixa o sentido da primeira ocorrência em aberto (Bateu? Matou?), e que a morte do egípcio só é anunciada pela continuação do verso, a ocultação do corpo, não pelo verbo utilizado (CHILDS, 1974, p. 29). Essa posição parece respeitar os limites dessa narrativa concisa. A dúvida é necessária e a variação de sentido é plenamente possível, afinal ldg (gdl) tem sentidos diferentes nos versos 10 e 11, e rm ('mr) tem dois sentidos em um mesmo verso (14, dizer, simplesmente, e ter a intenção de).77 Propp parece também respeitar as possibilidades do texto, ao não impor uma repetição de significado pela repetição do significante. Mas ele vai um pouco além e afirma a diferença, não sua possibilidade: “Lexicalmente, podemos dizer, o egípcio recebe exatamente o que merece, pancada por pancada. Mas o golpe que ele recebe é diferente do golpe que ele estava disferindo” (PROPP, 1999, p. 166).78 O texto não nos permite afirmar que o egípcio de fato matou aquele hebreu que ele golpeava, mas também não nos assegura do contrário. O significante é o mesmo, mas o significado, ou a intensidade dele, pode não ser. Os dois batem. Alguém poderá afirmar que a não utilização, nesse ponto do texto, de um verbo específico para a ação de matar pode sugerir que o resultado do golpe foi além do propósito de Moisés. Talvez por isso Matthias Grenzer afirme que o que Moisés fez foi causar “um ferimento mortal involuntário” (GRENZER, 2004, p. 26). Ora, se o resultado do golpe foi revelado pela continuação do verso, seu objetivo pode ser esclarecido pela parte anterior: Moisés olha para um lado e para outro e vê que não havia homem. Minha primeira leitura procura estabelecer uma coerência entre o antes e o depois: se Moisés esconde o corpo na areia, ele olha antes para os lados para verificar se não haveria testemunhas. Assim o entende também Vogels: “Tais precauções indicam que Moisés percebe que sua ação é comprometedora” (VOGELS, 2003, p. 77). Então, há premeditação. 76 77 78 Com base nessa suposição, Vogels pode defender Moisés evocando a lei do talião (Ex 21:23-25): “O gesto de Moisés anuncia a lei do talião” (VOGELS, 2003, p. 77). Adiante, semelhante fato se verificará para o verbo  (wa-yeshev). Minha tradução de: Lexically, we might say, the Egyptian gets his just deserts, blow for blow (Cassuto 1967:22). But the beating he receives differs from the beating he was dispensing. 49 Mas a concisão do texto pode nos levar a conclusões precipitadas. Há outra possibilidade de leitura. Em Propp, encontro a sugestão de que comparemos o verso com outros da Bíblia Hebraica, sobretudo de Isaías (41:28, 50:2, 59:15b-16, 63:5), nos quais olhar e não haver nenhum homem se relaciona com a procura por (e constatação da ausência de) outro que possa ajudar ou servir como alternativa (PROPP, 1999, p. 163). Ou seja, Moisés poderia mesmo olhar para os lados para procurar outro que pudesse intervir em seu lugar ou ajudá-lo a resolver a questão. Com o devido cuidado, Propp não nega que também a outra opção é possível e até mesmo sugerida pela continuação do verso 11. Por fim, observa que pode-se pensar que o olhar de Moisés tem uma dupla função: ver se há alguém disposto a ajudar ou a denunciá-lo (PROPP, 1999, p. 163). Ou seja, Moisés poderia mesmo olhar para os lados para procurar outro que pudesse intervir em seu lugar ou ajudá-lo a resolver a questão. Enfim, o ato de Moisés é narrado, mas suas intenções não são definidas com clareza pelo texto. Uma leitura rápida poderia gerar conclusões aparentemente definitivas, mas uma observação cuidadosa parece solicitar a permanência da dúvida. Apesar dessa obscuridade do texto, muitos exegetas não se privam de julgar a ação de Moisés, o que já foi evidenciado há pouco. Childs observa que esse episódio leva a duas tendências interpretativas: uma que procura mostrar o lado louvável da ação de Moisés, de modo que ele possa ser um herói impecável, e outra que o acusa tacitamente de assassino (cf. CHILDS, 1974, p. 40ss). Seguindo alguns casos mencionados por Childs, verificando-os nas fontes e agregando outros, apresento minimamente, a seguir, alguns exemplos de hermeneutas e hermenêuticas que se dispuseram a tomar o lugar de advogados ou promotores para o caso. A tendência de justificar a atitude de Moisés aparece no Novo Testamento. No capítulo sétimo dos Atos dos Apóstolos, Estêvão reconta, antes de ser apedrejado, a história dos judeus e não deixa o episódio de lado, mas atribui uma interessante motivação para a ação de Moisés: “Mas [Moisés] julgava fazer os seus irmãos entenderem que Deus lhes dava salvação por meio de suas mãos, mas eles não entenderam” (Atos 7:25).79 Ou seja, a ação do legislador estaria justificada por sua motivação didática (um assassinato didático?), quase profética. Muitos Pais da Igreja seguiram essa tendência, além dos reformadores Calvino e Lutero. Convém oferecer um exemplo mais recente: Matthias Grenzer, teólogo católicoromano antes citado, afirma decidido: “A morte do egípcio é consequência da intenção 79 Minha tradução de: e)no/mizen de\ sunie/nai tou\j a)delfou\j au)tou= oÀti o( qeo\j dia\ xeiro\j au)tou= di¿dwsin swthri¿an au)toiÍj, oi¸ de\ ou) sunh=kan. 50 louvável de Moisés querer defender o agredido diante do agressor” (GRENZER, 2004, p. 26). Para que não faltem exemplos de leitores judeus (embora eu considere a leitura apresentada nos Atos ainda judaica, mesmo que já também cristã), menciono o Rabi Ismael, que utiliza o episódio para provar que Moisés estava disposto a dar sua vida por Israel (e pela justiça, considerando-se o segundo dia narrado) (Cf. SAÍZ, 1995, p. 168-169). É também célebre a interpretação de Maimônides. Em seu Guia dos Perplexos, o filósofo judeu enumera diferentes graus de profecia. O primeiro deles diz respeito a quando um socorro divino vem de encontro a um indivíduo e o encoraja a uma ação virtuosa e de grande importância. O assassinato do egípcio é, então, evocado como exemplo desse grau de profecia (II 45).80 Entre os que seguem a outra tendência talvez haja menos exemplos célebres à mão. Mas um considerável será Santo Agostinho, que, em Contra Faustum (XXII 70), compara a atitude de Moisés à precipitação de Pedro ao usar sua espada na cena do Getsêmani (Cf. Mateus 26:51ss). Contudo, a crítica não é atroz, uma vez que ele reconhece que a motivação das ações (de Moisés e Pedro) não foi detestável crueldade (detestabili immanitate), mas um fervor passível de correção (emendabili animositate).81 O que Childs destaca a respeito desse grupo de acusação é a inclinação à leitura psicológica que relaciona o ato a características interiores do personagem (imaturidade, impaciência etc.). 82 Bem mais recentemente, Propp, embora não pretenda se deter no julgamento, não deixa tampouco de afirmar que a atitude de Moisés é moralmente errada (PROPP, 1999, p. 166). Tendo observado o que disseram alguns hermeneutas diante da ação de Moisés no primeiro dia, passemos ao que acontece quando ele sai no segundo dia (- bayom hasheni), expressão que, como bem observa Propp (PROPP, 1999, p. 164), pode referir-se ao 80 81 82 Entre os outros graus de profecia enumerados se incluem o fato de alguém ser tomado por algo que o faz dizer palavras que não são suas, o fato de um indivíduo sonhar com um anjo que lhe diz algo, ter a visão de um anjo que lhe diz algo etc. Talvez influenciado por Maimônides, quer direta ou indiretamente, ou por escritores cristãos (ver nota seguinte), Georges Auzou, teólogo católico, apresentará a ação de Moisés como um gesto profético (cf. AUZOU, 1969, p. 72-74). Antes, contudo, de oferecer esse comentário ao debatedor, Fausto, o maniqueísta, ele observa que poderia argumentar que a ação fora divinamente permitida e já advinda de um certo caráter profético de Moisés. O fato faz-me lembrar que Childs não menciona o texto de Freud, Moisés e o monoteísmo, em que se lê: “O próprio relato bíblico atribui a Moisés certas características, às quais pode-se muito bem dar crédito. Descreve-o como sendo de natureza irascível, a encolerizar-se facilmente, tal como quando, indignado, matou o brutal feitor que estava maltratando um trabalhador judeu...” (FREUD, 1975, p. 47). Talvez Childs omita o pai da psicanálise por não considerar esse texto como trabalho de um exegeta. A bem da verdade, a decisão de Freud de conceber Moisés como egípcio, entre outros dados, o aproxima por demais de uma tradição anti-semita (ou melhor, judeofóbica) que se desenvolveu sobretudo no Egito, a partir de Maneto e, já no primeiro século de nossa era, Ápion. 51 segundo dia em uma sucessão cronológica dos fatos, ou ao segundo dia abarcado pela narrativa, mesmo que haja outros dias entre os dois narrados. Moisés saiu novamente e eis ( - wa-hine) dois homens brigando. A partícula demonstrativa parece indicar o olhar de Moisés e, ao mesmo tempo, convidar o leitor a olhar junto. E o que vemos? Dois homens hebreus em uma briga. A reação de Moisés já não é olhar e matar, mas falar. A diferença da reação pode transparecer uma maior compreensão ou brandura por parte do personagem nesse momento83, mas pode também ser tomada como resultado da surpresa causada pela cena. Ele parece procurar entender, mas sua pergunta não é dirigida a ambos, mas sim ao culpado ( - la-rasha'), isto é, àquele que está designado (pelo texto somente, ou por Moisés?) como o culpado. Trata-se de um termo jurídico - como ressalta Childs a partir da menção de outros trechos exemplares como Dt 25:1, 1 Rs 8:32 e Pr 24:24 (CHILDS, 1974, p. 28) - utilizado para designar a parte que está errada em um caso específico. Mas não deixa de ser perceptível o fato de que o sentido da palavra transcende o significado técnico aplicável a casos específicos. Os termos  (rasha') e qy (tsadik), sendo este o termo a que se opõe aquele nos trechos mencionados por Childs, podem realmente compor a oposição culpado – inocente, mas não deixam de ser usados em um sentido amplo, como representando a diferença entre ímpio e justo, o que é flagrante em alguns textos muito conhecidos.84 Minha dúvida seria, então, se um leitor atento a essa amplitude do termo (quer por uma reflexão detida, quer pelo hábito de leitura de outros textos) não se surpreenderia, como Moisés, com a constatação de que entre os homens hebreus há um (ao menos um)  - rasha'. E sabemos, pela pergunta de Moisés, que esse hebreu, assim como o egípcio do primeiro dia, batia no outro: “Por que golpeias teu companheiro?”. O verbo utilizado na pergunta é exatamente o mesmo que fora utilizado nos versos anteriores para a ação do egípcio sobre o hebreu, bem como de Moisés sobre o egípcio. Nesse episódio, um dos homens hebreus é o mau (da história), que agride um companheiro 85, um que está no mesmo 83 84 85 Cf. a leitura de VOGELS, 2003, p. 78. Confira-se, por exemplo, o Salmo 1. Reconheço que, com isso, estou considerando toda a Tanakh como compartilhando um único sistema linguístico, o que pode ser precipitado. Mas, ao menos do ponto de vista da recepção, é um procedimento plausível. O termo em hebraico é aa - ra'a acrescido do sufixo possessivo de segunda pessoa (masculino), exatamente o que aparece na parte legislativa da Torah, inclusive no Decálogo (Cf. Ex 20:17, Lv 19:18, Dt 5:21), contextos em que é frequentemente traduzido por “próximo”. Esse dado pode ser significativo, uma vez que Moisés não questionou nada ao egípcio (ao menos isso não é dito pelo texto), mas sim a esse hebreu, como se a ação deste solicitasse uma explicação por sua estranheza. 52 grupo, segundo a percepção do legislador. Mas Moisés não o mata. Depois de sua pergunta, o agressor dispara duas. A primeira o questiona sobre o que ele faz hoje: “Quem te estabeleceu como um membro chefe ou juiz sobre nós?”. Neste ponto é preciso fazer uma pausa na reflexão e observar detidamente a pergunta, pois é motivo de uma querela linguística. Há aqui mais uma ocorrência do termo hebraico Hyi' – ish, que não costuma transparecer como “homem” nas traduções deste trecho específico. Embora eu quisesse, em princípio, conservar todas as ocorrências do termo hebraico como “homem” no texto de chegada, esta pareceria por demais estranha: “Quem te pôs para homem, chefe e juiz sobre nós?”. É preciso encontrar outra solução. Alguns gramáticos assinalam que, em alguns casos, o termo pode ser usado de forma apositiva como um indefinidor.86 Assim, traduziríamos a expressão raW Hyi' (l-ish sar) de nosso texto por “um juiz”, ou Hyi' tab (bat ish cohen) de Lev 21:9 por “a filha de um sacerdote” e assim por diante. Não obstante, uma questão simples pode retirar a base do argumento: “Mas por que esse termo tem que aparecer se o substantivo sem o artigo está, por si só, indefinido?”. Decerto, há outra proposta de compreensão da expressão no verso que agora estudamos. Em 1981, Dahood publicou uma pequena nota sugerindo que o lamedh que vem junto a Hyi' – ish fosse lido como introdutor de um vocativo, o que, segundo ele, evidenciaria um sarcasmo na pergunta dirigida a Moisés: “Quem te pôs, oh mortal, como chefe e juiz sobre nós?” (DAHOOD, 1981, p. 414). Um ano depois, contudo, Couroyer publicava um artigo no qual observava a proposta de Dahood e, através de uma comparação entre o hebraico e o egípcio clássico, além da observação de outros trechos da torah, nos quais Hyi' – ish parece “designar um personagem constituído de dignidade” 87, constata que a leitura é desnecessária (COUROYER, 1982, p. 48-51). Semelhantemente, Propp repudia a leitura de Dahood como “desnecessariamente exótica”88, embora reconheça que não é gramaticalmente impossível (PROPP, 1999, p. 164). Apesar das críticas, a leitura desse lamedh como vocativo é acolhida por alguns exegetas, talvez por tranquilizá-los diante da aparente estranheza do texto. 89 De minha parte, concordo com Propp quanto à exoticidade da proposta, embora minha leitura e 86 87 88 89 O estranho, então, parece ser a violência praticada entre companheiros, integrantes de um mesmo grupo. Por isso, a pergunta. No outro caso, simplesmente a ação. Cf. WALTKE, 2006. Minha tradução de: désigner un personnage contitué en dignité. Minha tradução de: unnecessarily exotic. Cf. VOGELS, 2003, p. 78., que a aceita e a utiliza sem discussão. 53 tradução também difiram da que ele propõe. Minha tradução se baseia em um estudo de David Stein (STEIN, 2008), no qual o termo Hyi' – ish é apresentado como relacional ou de afiliação. Por conseguinte, minha tradução, que é acadêmica e apresenta uma solução meramente provisória, diferirá de grande parte das publicadas em português e se aproximará, embora por um caminho diferente, da leitura de Couroyer mencionada acima. De momento, não explicito as conclusões de Stein, uma vez que em seguida haverá melhor ensejo para fazêlo. Voltemos à frase, conforme a tradução que propus: “Quem te estabeleceu como um membro chefe ou juiz sobre nós?” De fato, Moisés parecia intervir como um chefe e estabelecer julgamento como um juiz. Depois, o hebreu disfere uma pergunta que remete ao ato de Moisés no outro dia: “Acaso tu estás pretendendo matar-me, assim como mataste o egípcio?” Moisés teve medo e constatou com surpresa90 que o caso já era sabido. É possível indagar a respeito desse caso ( - davar, “palavra”, “assunto”, “coisa”) que Moisés percebe já ser de domínio público. Refere-se somente ao assassinado antes cometido ou a algum outro detalhe de sua história, como o fato de ser, por sangue, um dos hebreusescravos?91 Seja qual for a compreensão específica de Moisés diante da fala do outro hebreu, o desenrolar o leva a fugir, pois imediatamente o Faraó decide matá-lo. O texto utiliza o verbo grh - harag, “matar”, o mesmo que o hebreu utilizou em sua segunda pergunta dirigida a Moisés. Ou seja, sabemos que Moisés matou um egípcio, mas o narrador não usou este verbo para referir-se ao ato, mas sim um com sentido mais amplo, conforme observei. Em seguida, a ação é designada com um verbo específico, mas pela boca de um dos personagens, um que é hebreu, mas também culpado/ímpio. Agora, o narrador usa o termo, mas Moisés já não é o sujeito, mas sim o objeto da ação. Parece que o texto, em sua instância narrativa, se priva de relacionar o verbo com Moisés. Embora apresente a ação e seu resultado, mantém um cuidado ao menos lexical em sua relação com o legislador. Coincidentemente ou não, mesmo esse verbo grh - harag não é o que aparece no Decálogo (Ex 20:13 e Dt 5:17), onde o verbo utilizado é r - ratsakh. Este parece exclusivo para mortes provocadas em um contexto mais privado, aquele pode também ser usado para situações de combate (Cf. GESENIUS, 1844). 90 91 A expressão  (akhen), que traduzi por “oh!” indica a surpresa, embora também possa ser vertida por “verdadeiramente”, “decerto” etc. Propp menciona E. Auerbach como responsável pela questão (cf. PROPP, 1999, p. 168). 54 Por outro lado, a reação apresentada é bem semelhante à de um assassino, mesmo se comparada ao proto-assassino do Gênesis, Caim. Em Gn 4:8, o verbo utilizado para narrar a ação de Caim é o mesmo que escutamos na segunda pergunta do hebreu culpado e depois relacionado pelo narrador ao Faraó. O mais interessante no paralelo, contudo, é a reação. Depois do diálogo com IHWH, “Caim saiu de diante da face de IHWH e se estabeleceu na terra de Nod” (d        ). Compare-se com a segunda parte de nosso verso 15: “E Moisés fugiu da face do Faraó e se estabeleceu na terra de Midiã” (     ). O verbo inicial, no caso de Moisés, é mais específico: fugir. O que se lê no caso de Caim é justamente aquele que expressa o movimento genérico de sair, o mesmo verbo que lemos duas vezes (versos 11 e 13) com referências ao movimento de Moisés que saía (do palácio?) para junto de seus irmãos.92 A última ação de Moisés nesse trecho, contudo, é marcada por duas (não uma) ocorrências do verbo b. Ele se estabelece na terra de Midiã e se estabelece sobre o poço. A repetição parece incômoda, tanto que a Bíblia de Jerusalém prefere abandonar o texto hebraico e seguir as versões grega e siríaca, que trazem dados diferentes: retirar-se para Midiã e assentar-se no poço. A opção dessas versões parece mais “lógica” ao tradutor. De fato, pode parecer mais lógica, mas o texto pode também (e acho justo que concedamos esse direito inclusive aos textos antigos) abrir mão de alguma lógica para jogar com as palavras e seus sentidos. Isso digo pensando que a repetição do termo com tamanha proximidade e sentidos parecidos, mas não idênticos, pode fazer o leitor, ao menos no fim da narrativa, atento para o fato de que aqui (isto é, nesse episódio) os termos devem receber a devida atenção, pois embora sejam lexicalmente os mesmos, apresentam nuances diferentes em cada ocorrência.93 Terminado o conto, é preciso voltar a ele mais uma vez e direcionar os dados observados a uma confluente hipótese de leitura. Antes, contudo, preciso rever o sentido do termo Hyi' - ish conforme a proposta de David Stein. Como observei previamente, Stein propõe, com base em um estudo linguístico meticuloso, que não se tome “adulto do sexo masculino” como o primeiro significado do mencionado termo do hebraico bíblico. Segundo 92 93 Decerto, a aproximação que proponho entre Moisés e Caim é meramente textual e temática. As diferenças nos detalhes dos dois assassinatos são certamente marcantes, tanto que Fílon poderá tratar os dois casos e maneira oposta (cf. MENDELSON, 1997, p. 114-115). Não obstante, justamente pela diferença entre os casos, a semelhança textual torna-se mais instigante. Referi-me a isso há pouco. Agora, apenas apresento essa última dupla ocorrência como uma evidência a mais, antes de explorar uma possível implicação do fato. 55 ele, o termo é relacional, o que assim se explica: Um termo relacional tem, com efeito, não um, mas dois referentes: um referente direto e um indireto. No caso de nosso termo Hyi', ele aponta diretamente para o indivíduo (membro, ou participante, ou representante), enquanto indiretamente se refere ao grupo, ou situação, ou conjunto ao qual aquele Hyi' está afiliado. E nosso termo funciona de modo a relacionar aqueles dois referentes um com o outro (STEIN, 2008, p. 10). 94 Ora, com esse significado e essa dinâmica do termo em mente, talvez a sua insistente repetição em nosso texto pareça ainda mais significativa. Moisés sai e vê um membro do grupo dos egípcios batendo em um membro do grupo dos hebreus (e aqui se marca que esse membro é um de entre seus irmãos, donde subtende-se ou se faz recordar que ele também é um Hyi' - ish desse grupo). Ele olha para os lados e vê que não há nenhum membro (de nenhum grupo, ou aqui o referente indireto é “o grupo dos egípcios” mas está implícito?). No outro dia, vê dois membros do grupo dos hebreus lutando e interroga: “se são membros do mesmo grupo, por que você bate nele?”. A pergunta do hebreu culpado faz muito sentido: “Quem te pôs como membro representativo, chefe ou juiz sobre nós?”. Ou seja, quem estabeleceu a você, um que vive entre os egípcios, como um membro especial em nosso grupo? Então Moisés tem medo. Tem medo porque a vida de pertencimento entre esses dois grupos chegou a um momento crítico. Esse episódio é notavelmente violento95, contudo, trata, mais que de um assassinato pontual, da questão de pertencimento. Outras palavras apresentam nele significados ou nuances diferentes em diferentes ocorrências (creio que fui bastante insistente nesse ponto), o que, a meu ver, serve para assinalar ao leitor: “veja que também o termo Hyi' ish pode ter significados diferentes, conforme muda seu referente indireto”. Há grupos diferentes. O leitor precisa atentar para isso, assim como Moisés, que, deliberadamente ou não, definiu a sua condição. Ao matar um membro dos egípcios, o referente direto, sabendo ou não, ele matou também para si o referente indireto: o Egito. A partir de agora ele não seria 94 95 Minha tradução de: A relational term has, in effect, not one referent but two: a direct referent and an indirect one. In the case of our noun Hyi', it points directly to the individual (member or party or representative), while indirectly it refers to the group or situation or party with which that Hyi' affiliated. And our noun functions so as to relate those two referents to each other. “Característico deste texto é o altíssimo nível de violência. A expressão 'matar' aparece cinco vezes (incluem-se aqui os usos de 'golpear, ferir'). Podem-se ainda acrescentar os termos 'brigar', 'maltratar', 'espancar' e 'fugir'” (ANDIÑACH, 2010, p. 48). Concordo com a impressão que tem Pablo Andiñach quanto à violência no texto. Ressalto, portanto, que essa característica da passagem é importante, mesmo com a mudança de foco que proponho, do assassinato para a definição de limites étnicos. 56 um membro aceito, mas um indivíduo a ser aniquilado pelo líder, o Faraó. Então, foge para Midiã.96 Um leitor atento pode chegar a uma leitura semelhante ainda que entenda que o termo em questão se refere a “adulto do sexo masculino”, mas a compreensão semântica proposta por Stein permite um entendimento mais claro, não só do sentido do texto como um todo, mas da recorrência do termo, em todas as suas ocorrências. Em suma: Assim como o léxico que mobiliza, a própria narrativa parece ter um referente direto, que pode ser identificado como as ações dos personagens (que são, em alguma medida explicadas nos versos), e também um referente indireto, que se relaciona com a formação de um limite entre os diferentes grupos implicados na trama. O crime, então, parece um ensejo para definir questões maiores. O texto o expõe, mas impossibilita o julgamento de seu responsável. Ao impedir um nítido julgamento pela exposição da narrativa em uma forma muito concisa, e ao negar-se a fazê-lo (o que se percebe pela escolha lexical), o texto convida à crítica. O hermeneuta, contudo, pode perder-se no julgamento e negligenciar a tarefa que lhe é encomendada. 1.2 Entre Shemot e Eksagogué, o Éksodos Sem julgar ter explorado todas as possibilidades de leitura do texto hebraico, mas sim ter alcançado uma leitura suficiente para o presente propósito, sigo o caminho e observo minimamente a tradução que se encontra na Septuaginta97. Não cabe, neste ensaio, realizar um estudo minucioso da tradução, de suas repercussões etc. O que proponho, então, é simplesmente uma observação da re-configuração lexical que a Septuaginta opera, com base em uma comparação direta entre o Texto Massorético e o grego. Decerto, convém observar que não afirmo categoricamente que o texto utilizado pelos tradutores era exatamente como o texto hebraico que agora uso. Assim, fica reduzida a relevância da hierarquia entre Texto Original – Tradução. Não obstante, a comparação pode ser proveitosa, ao menos para vislumbrar possíveis diferenças e refletir minimamente sobre as consequências destas. A seguir, apresento os dois textos marcados, de 96 97 Convém mencionar a hipótese de Propp quanto ao motivo e à natureza da fuga. Segundo ele, a ida de Moisés a Midiã é uma questão de asilo, ele estaria nessa condição por ter matado alguém sem fazer-lhe emboscada (cf. as leis em Nm 35:9-34, Deut. 4:41-43 e 19:1-13). Assim Propp encontra uma explicação para o enigmático trecho de Ex 4:24-26, que parece contar que IHWH procurou matar Moisés: “Se é assim, é a tentativa de Moisés de voltar portando uma culpa de sangue sem expiação que provoca o ataque de IHWH” [If so, it is Mose's attempt to return bearing unexpiated bloodguilt that elicits Yahweh's attack] (PROPP, 1999, p. 235). Esse texto poderá ser referido, doravante, como LXX, o texto hebraico, por sua vez, poderá aparecer referido como TM (isto é, Texto Massorético). 57 modo a transparecer as recorrências lexicais no texto hebraico e sua diferente configuração no texto grego:  he -te'      raW Hyi' ' h - 11. ¹Ege/neto de\ e)n taiÍj h(me/raij taiÍj pollaiÍj e)kei¿naij me/gaj geno/menoj Mwush=j e)ch/lqen pro\j tou\j a)delfou\j au)tou= tou\j ui¸ou\j Israhl. katanoh/saj de\ to\n po/non au)tw½n o(r#= aÃnqrwpon Ai¹gu/ption tu/ptonta/ tina EbraiÍon tw½n e(autou= a)delfw½n tw½n ui¸wn ½ Israhl: 12. peribleya/menoj de\ wÒde kaiì wÒde ou)x o(r#= ou)de/na kaiì pata/caj to\n Ai¹gu/ption eÃkruyen au)to\n e)n tv= aÃmm%. 13. e)celqwÜn de\ tv= h(me/r# tv= deute/r# o(r#= du/o aÃndraj Ebrai¿ouj diaplhktizome/nouj kaiì le/gei t%½ a)dikou=nti Dia\ ti¿ su\ tu/pteij to\n plhsi¿on; 14. o( de\ eiåpen Ti¿j se kate/sthsen [ ] aÃrxonta kaiì dikasth\n e)f' h(mw½n; mh\ a)neleiÍn me su\ qe/leij, oÁn tro/pon a)neiÍlej e)xqe\j to\n Ai¹gu/ption; e)fobh/qh de\ Mwush=j kaiì eiåpen Ei¹ ouÀtwj e)mfane\j ge/gonen to\ r(h=ma tou=to; 15. hÃkousen de\ Faraw to\ r(h=ma tou=to kaiì e)zh/tei a)neleiÍn Mwush=n: a)nexw¯rhsen de\ Mwush=j a)po\ prosw¯pou Faraw kaiì %Ókhsen e)n gv Madiam: e)lqwÜn de\ ei¹j gh=n Madiam e)ka/qisen e)piì tou= fre/atoj. A primeira cadeia lexical que quero observar é justamente a que me parece mais importante. Trata-se da que é formada pelo termo  - ish, e que está destacada em vermelho no texto acima citado. Já demonstrei sua importância. Basta, então, observar que trata-se de cinco repetições (sendo que em uma o termo está no plural). Na LXX, por sua vez, não há repetição de nem um termo sequer nos lugares em que no TM se lê  - ish. Primeiro, onde leríamos em português “homem egípcio”, o texto grego traz aÃnqrwpon Ai¹gu/ption (ánthropon Aigýption, acus.), usando um termo que se refere ao “ser humano” em geral. Em seguida, onde se tem “homem hebreu”, o texto grego se nega à repetição e apresenta tina EbraiÍon (tina Ebraîon), lançando mão de um indefinido: “certo hebreu”, ou “um hebreu”. Em seguida, no trecho em que Moisés olha para os lados e não vê homem [nenhum], a LXX faz como a maioria das traduções em português: ou)de/na (oudéna, acus.), isto é, “ninguém”. Por fim, ao referir-se aos dois hebreus que brigam, o texto utiliza aÃndraj (ándras, acus. plural), termo que remete ao “homem”, enquanto “adulto do sexo masculino”. Quanto ao 58 último ponto, o texto grego não apresenta qualquer vocábulo que seja relacionável com  ish, deixando-o sem correspondente. Não há, pois, em grego, a mesma insistência em um único termo. Parece mitigada a referência constante aos membros e a seus respectivos grupos por um termo relacional. Mas é notável, também, que o texto grego acrescenta, depois da expressão “irmãos dele” um sintagma que os identifica: “os filhos de Israel” 98, explicitando o caráter do grupo referido como irmãos de Moisés logo de início. A que conclusão podemos chegar? Em princípio, eu não iria além de afirmar que o tradutor não se sentia estilisticamente à vontade com uma repetição insistente de um só termo, e que, talvez, tenha deixado a questão da delimitação entre os grupos mais clara desde o princípio da narrativa. Ou seja, o que é desenrolado aos poucos no texto hebraico, em um jogo de complexas referências e delimitações, está já preparado com vistas a uma compreensão mais imediata no texto grego. Uma maior diversidade lexical no texto grego se verifica também na observação das outras cadeias destacadas, conforme a seguinte tabela99: Hebraico Grego Cor 1ª. katanoh/saj (katanoéssas, “tendo percebido”, “tendo entendido”). 2ª e 3ª. o(r#= (horâ, “vê”). verde 1ª e 3ª. tu/ptw (týpto, “bater”): particípio durativo, acusativo; segunda ocorrências do verbo em formas pessoa presente. diferentes (Particípio; terceira pessoa 2ª. pata/caj (patáksas, “tendo imperfeito com waw; segunda golpeado”): particípio aoristo ativo, pessoa imperfeito respectivamente) masculino. azul  (wa-yare, “e viu”): três ocorrências nos versos 11 e 12. hkn (nakhah, “golpear”): três grh (harag, “matar”): três ocorrências do verbo em formas a¦¦naire¢¢w (anairéo, “tirar”, “destruir”, diferentes: infinitivo prefixado por “matar”): 1ª e 3ª: infinitivo aoristo; 2ª: partícula interrogativa e sufixado por aoristo, seg. pessoa. pronome objeto; segunda pessoa perfeito; infinitivo.  (wa-yeshev, “e se estabeleceu”): duas ocorrências no 98 99 1ª. e)lqwÜn (elthòn, “tendo ido”) 2ª. e)ka/qisen (ekáthissen, “se violeta laranja Cf. sintagmas negritados no verso 11 do texto antes citado. Assim se lê: “...Moisés saiu para junto dos irmãos dele, os filhos de Israel” (Mwush=j e)ch/lqen pro\j tou\j a)delfou\j au)tou= tou\j ui¸ou\j Israhl.). E adiante: “...vê um humano egípcio batendo em certo hebreu, um dos irmãos dele mesmo, dos filhos de Israel” (o(r#= aÃnqrwpon Ai¹gu/ption tu/ptonta/ tina EbraiÍon tw½n e(autou= a)delfw½n tw½n ui¸w½n Israhl). Se uma palavra aparece em uma só forma, esta aparecerá na tabela. Se, por outro lado, há variação por conjugação/declinação, aparecerá a forma da entrada dos dicionários, seguida por especificações mínimas de sua forma de ocorrência. 59 verso 15. assentou”) Somente a cadeia lexical formada pelo verbo grh (harag, “matar”) conserva uma recorrência semelhante em grego. As outras apresentam variações, pela utilização de termos alternativos de um mesmo campo semântico ou outros advindos, aparentemente, de uma interpretação de diferentes significados dos termos hebraicos em seus diferentes contextos. Quero observar, ainda, que, no caso da cena em que Moisés mata o egípcio, o grego usa um verbo diferente do utilizado para referir-se à ação do egípcio sobre o hebreu ou (pela boca de Moisés) de um hebreu sobre o outro, no segundo dia. Contudo, o verbo utilizado para Moisés, pata¢¢ssw - patásso, também não é exclusivamente utilizado para casos em que há morte. 100 Ou seja, se não há correspondência lexical entre as ações, tampouco há uma caracterização imediata da ação de Moisés como um “matar” por parte da LXX, não nesse ponto do texto.101 Considero suficiente essa mínima observação sobre o texto da LXX 102. Portanto, passo ao tópico seguinte, no qual observarei textos que derivam, de maneiras diversas, dessa tradução. 1.3 Fílon de Alexandria e a morte do egípcio hÅsan 100 101 102 ga/r tinej tw½n e)festhko/twn a)ti¿qasoi sfo/dra kaiì Embora o L&S indique que o verbo significa, com frequência, simplesmente “matar” na LXX, esse não é seu sentido primeiro, nem exclusivo (cf. Ex 21:26). Cabe observar que pata¢¢ssw – patásso é frequentemente utilizado para traduzir hkn – nakhah em muitos outros trechos da Tanakh além deste que está em estudo. Uma pesquisa específica sobre esses problemas semânticos e tradutológicos é conveniente, mas extrapola o objetivo deste ensaio . Para uma apresentação geral de questões relacionadas com a linguagem da LXX, cf. HARL, 1988. A autora enumera, entre as “perdas estilísticas” da tradução grega um “enfraquecimento do vocabulário da violência” [Affaiblissement du vocabulaire de la violence] (HARL, 1988, p. 264). O fato não se verifica, a meu ver, no trecho aqui em estudo. O que há parece ser uma mudança estilística, talvez motivada pelo fato de o tradutor evitar uma repetição incomoda de alguns termos, uma questão infelizmente não abordada nesse sentido no texto de Marguerite Harl. Na LXX, o livro que lemos é chamado de eÃcodo» (éksodos, “saída”), referindo-se ao tema maior da narrativa: a saída do povo hebreu do Egito. No caso da Bíblia Hebraica, os nomes dos livros da Torah são sempre a primeira palavra significativa de cada um, donde temos, para o Êxodo, tm (Shemot, isto é, “nomes”). Por isso, o eÃcodo» -éksodos foi considerado aqui como uma escala necessária entre o tm e o e¦¦cagwgh¢¢ (Eksagogué), termo pelo qual Fílon usualmente se refere ao livro (Cf. Migr. 14, Her. 14, Her. 251 e Somn. 1.117). Conforme Naomi Cohen, a adoção desse termo por parte de Fílon pode dever-se à disseminação da tragédia homônima de Ezequiel. Este, por sua vez, e também o próprio Fílon, podem ter procurado um termo alternativo a eÃcodo» éksodos pelo fato de que este já era, então, um termo técnico utilizado no teatro grego (COHEN, N. G., 1997, p. 58ss). 60 lelutthko/tej, mhde\n ei¹j a)grio/thta tw½n i¹obo/lwn kaiì sarkobo/rwn diafe/rontej, a)nqrwpoeidh= qhri¿a, th\n tou= sw¯matoj morfh\n ei¹j do/khsin h(mero/thtoj e)piì qh/r# kaiì a)pa/tv probeblhme/noi, sidh/rou kaiì a)da/mantoj a)peiqe/steroi. tou/twn eÀna to\n biaio/taton, e)peidh\ pro\j t%½ mhde\n e)ndido/nai kaiì taiÍj paraklh/sesin eÃti ma=llon e)cetraxu/neto, tou\j to\ prostaxqe\n mh\ a)pneustiì kaiì o)cuxeiri¿# drw½ntaj tu/ptwn, prophlaki¿zwn aÃxri qana/tou, pa/saj ai¹kizo/menoj ai¹ki¿aj, a)naireiÍ dikaiw¯saj eu)age\j eiånai to\ eÃrgon: kaiì hÅn eu)age\j to\n e)p' o)le/qr% zw½nta a)nqrw¯pwn a)po/llusqai. Com efeito, alguns dos capatazes eram extremamente indomáveis e enfurecidos, em nada diferindo, quanto à selvageria, dos animais peçonhentos e carnívoros. São feras com aparência de humanos, que expõem, por rapinagem e fraude, na aparência, a forma corpórea de docilidade, sendo mais impersuadíveis que o ferro e o aço. A um destes, o mais violento, visto que não fazia concessões e, ante os pedidos, se fazia ainda mais insolente, espancando aqueles que cumpriam o encargo com mãos ágeis e sem folego, tratando-os com indignidade até a morte, ultrajando-os com todos os ultrajes, [Moisés] destruiu, julgando ser livre de culpa a ação. E era livre de culpa matar aquele que vivia para a destruição de seres humanos. (Mos. 1.43-44) Com essas palavras, Fílon narra o episódio. Percebe-se que ele, explicitamente, coloca o julgamento de Moisés em evidência. Mais que isso, ele coloca Moisés como juiz de seus próprios atos, e concorda com o veredito: matar, neste caso, foi um ato puro. 103 Fílon, aqui, narra interpretando (e interpreta narrando) de modo que lembra os midrashim que já se produziam na Judeia. Embora se sirva do texto canônico, ele acrescenta outras informações. O que ele avisa estar para fazer logo no começo de seu texto, quando diz que sua fonte não seria somente o texto escrito, mas também certa tradição oral, a que ele tinha acesso por meio de anciões de seu povo.104 Mas, seja qual for a fonte, uma coisa é certa: Fílon seleciona cautelosamente e trabalha também de modo meticuloso cada informação que traz a seu texto. Observe-se, por exemplo, a caracterização negativa daquele que será a vítima de Moisés. Após definir o grupo a que ele pertencia como feras humanoides, beirando a constituição de um monstro, ele ainda define o elemento assassinado como o mais violento dentre esses. A caracterização extremamente negativa da vítima priva o leitor de qualquer identificação com ela e, por conseguinte, o ato do matador não será repudiado de imediato. Por isso, antes de apresentar o verbo matar (a)naireiÍ - anaireî), que aparece sem sujeito-assassino explícito, 103 104 Torrey Seland utiliza este trecho de Sobre a vida de Moisés, além de outros, para demonstrar que, segundo Fílon, há casos em que é correto matar, e que, em tais casos, o assassinato deve ser considerado um “dever religioso” (SELAND, 2003, p. 11). Cf. também Ebr. 74. Essas questões serão novamente mencionadas no prosseguimento da tese. 61 vem a enorme frase que define o objeto-vítima. Outra característica importante do texto é que o “segundo dia” não acontece. Nada é dito com respeito à briga entre os dois hebreus, nem com respeito à pergunta que estremeceu Moisés. O único vestígio daquela cena é o verbo grego agora mencionado: a)naireiÍ – anaireî. Fílon o utiliza para referir-se ao ato de Moisés, mas lembre-se de que, no texto da LXX, ele só é usado pelo hebreu-culpado em sua interpelação e pelo narrador quando se refere ao intento do Faraó. Enfim, Fílon parece acrescentar um julgamento ao interior da narrativa (e reproduzi-lo em sua enunciação), o que extrapola as possibilidades de interpretação oferecidas pelo próprio texto. Por outro lado, ele toma um elemento do texto que é, por vezes, menosprezado por outros tantos hermeneutas, a saber, a necessidade da diferenciação entre hebreus e egípcios, e o potencializa ao máximo. Transformando os egípcios em quasemonstros, marcando uma alteridade extrema com respeito a eles. Além disso, a percepção de Fílon de que o texto trata de algo mais amplo do que de um crime pontual, transparece na cena seguinte, quando nos é apresentado o motivo do incômodo do Faraó. tau=t' a)kou/saj o( basileu\j h)gana/ktei deino\n h(gou/menoj, ou)k eiã tij te/qnhken hÄ a)nv/rhken a)di¿kwj hÄ dikai¿wj, a)ll' ei¹ o( qugatridou=j au)t%½ mh\ sumfroneiÍ mhde\ tou\j au)tou\j e)xqrou\j kaiì fi¿louj u(pei¿lhfen, a)lla\ miseiÍ me\n ouÁj au)to\j ste/rgei, fileiÍ de\ ouÁj probe/blhtai kaiì e)leeiÍ pro\j ouÁj a)tre/ptwj kaiì a)paraith/twj eÃxei. Tendo escutado estas coisas, o rei se irritava, tomando o fato como algo terrível, não que alguém tinha matado ou sido morto, justa ou injustamente, mas que o filho de sua filha não pensava como ele, nem os mesmos inimigos e amigos tinha para si, mas odeia aqueles que ele tem em afeição, enquanto ama os que ele censura e se compadece dos que ele tem de um modo imutável e inexorável. (Mos. 1.45) O Faraó de Fílon é, conforme o raciocínio que venho tentando demonstrar, melhor hermeneuta da ação do que aqueles que, frente ao texto, se ocupam com o julgamento de Moisés. Ele vai além da necessidade de dizer “culpado” ou “inocente”, e isso lhe permite perceber o que está em jogo de fato. 1.4 Fílon e o egípcio como Outro Fílon reconta o texto do Êxodo de modo a enfatizar uma alteridade com relação aos egípcios. Esse fato chama a atenção sobretudo quando se atenta para sua especificidade, bem como para suas implicações e possíveis explicações. 62 É preciso observar, de início, que esse procedimento não é característico de toda a literatura judaica em língua grega. Como bem sublinha Maren Niehoff, um contraste notável se encontra quando se compara o texto de Fílon com a história de Moisés como contada por Artapano, pois este, em vez de marcar uma alteridade entre os hebreus e os egípcios, estabelece uma congenialidade entre esses povos (NIEHOFF, 2001, p. 71ss).105 Decerto, entre essas duas propostas, tão discrepantes, encontram-se leiturasescritas que podem ser consideradas como intermediárias, pois não radicalizam a diferença nem indicam a igualdade. O tragediógrafo Ezequiel, por exemplo, em sua peça intitulada Eksagogué, que consiste em uma re-escrita do Êxodo em forma de teatro, não potencializa a diferenciação entre os grupos encontrados no texto. A passagem que está em estudo é contada, nessa peça, pelo próprio Moisés, que, recém chegado a Midiã, relata o motivo de sua fuga. Quanto aos personagens do “primeiro” dia, são caracterizados somente como um hebreu, um irmão, e um egípcio. Eles são vistos simplesmente como homens brigando (aÃndraj e)n xeirw½n no/m% - ándras en kheirôn nómo). O egípcio não é monstrificado como em Fílon. Na verdade, ele não é sequer acusado de estar agredindo gravemente um hebreu que não tem recursos para se defender. Ademais, ele oculta uma informação do “segundo dia”. Diz ter visto dois homens (aÃndraj du/o – ándras dýo) brigando, dois homens da mesma raça (suggeneiÍj - syngeneîs), mas não informa sobre se seriam egípcios ou hebreus. Apenas diz ter dito: “Por que golpeias o que é mais fraco que tu?” (ti¿ tu/pteij a)sqene/steron se/qen;). Assim, não fica marcada a existência de uma briga ou a presença de um indivíduo mau entre os hebreus, mas somente a intervenção de Moisés diante de uma briga desigual. Não digo, com isso, que Ezequiel estivesse deliberadamente mitigando a diferenciação entre egípcios e hebreus, mas que isso não era algo urgente em sua agenda. 106 Nesse sentido, 105 106 Cf. Praep. Ev. 9.27. Louis H. Feldman, por sua vez, procura explicar as omissões de Ezequiel com base em uma suposta configuração da audiência do autor, apoiando-se no comentário de Howard Jacobson (JACOBSON, 1983, p. 79-80). Quanto ao evento do primeiro dia, supondo que parte da audiência era formada por judeus, Feldman entende que, ao não apresentar o egípcio como opressor e ao não tentar justificar a atitude de Moisés, Ezequiel estaria mostrando a seus contemporâneos judeus que o legislador se preocupava com a situação dos hebreus e tomava partido nela (FELDMAN, 2007, p. 63), não importando-se simplesmente por questões humanitárias ou de justiça. Quanto ao segundo dia, supondo que Ezequiel escrevia para uma dupla audiência, Feldman entende que o autor pretendia que os leitores judeus, atentos para a versão bíblica (“aware of biblical version”), entendessem que se tratava de dois judeus, enquanto os leitores egípcios poderiam entender tratarse de dois egípcios, o que não lhes daria fundamento para uma crítica dos judeus (FELDMAN, 2007, p. 64). Ora, essa proposta de leitura tem seu valor e sua complexidade, mas também revela sua fragilidade. Por que os judeus estariam “atentos à versão bíblica” quando liam o episódio do segundo dia, sendo capazes de identificar a etnia dos dois que brigavam, mas não se recordariam, 63 concordo com a seguinte observação de Sarah Pearce: “É notável que, em vários sentidos, Fílon desenvolva uma hostilidade permanente para com os egípcios, a um grau sem precedentes em textos judaicos anteriores”107 (PEARCE, 1998, p. 84). Alguns autores chegam a considerar que Ezequiel demonstra uma aversão total aos egípcios (cf. GRUEN, 2002, p. 65; BARCLAY, 1996, p. 135-136). No entanto, como observa Sarah Pearce em outra publicação, as referências negativas aos egípcios encontradas na Eksagogué estão diretamente relacionadas com palavras do próprio texto bíblico. Portanto, se explicariam pela proximidade da referida tragédia com o texto canônico, e não necessariamente por uma hostilidade deliberada. Assim, a atitude especialmente negativa do autor para com os egípcios não é fato comprovado (PEARCE, 2007, p. 37. Cf. nota 217). Ele não deixa de marcar, por exemplo, a falta de hospitalidade que ocorrera no Egito com respeito ao trato com os estrangeiros, os hebreus.108 Mas nisso depende do relato bíblico, não demonstrando nenhum aguçamento da polêmica. A atitude de Fílon para com os egípcios é, pois, notável e solicita alguma explicação ou, no mínimo, reflexão. De início, é preciso observar que a apreciação negativa que ele revela não se restringe ao povo egípcio representado na narrativa bíblica, mas alcança seus contemporâneos. Isso se torna claro pela leitura de In Flaccum e Legatio ad Gaium (cf. PEARCE, 2007, p. 79-80). Não obstante, um desafio do intérprete é justamente considerar equilibradamente as implicações que a interpretação do texto bíblico e a interação com as 107 108 quando lendo o episódio do primeiro dia, que não se tratava de uma briga entre um egípcio e um hebreu, mas de uma séria agressão daquele sobre este? E, quanto ao primeiro dia, qual seria a reação dos leitores não-judeus diante de um assassinato definido somente pela etnia? Minha tradução de: it is notable that in a number of respects Philo develops a sustained hostility towards Egyptians to a degree unprecedented in earlier Jewish writings. Isso se faz inclusive pela apresentação do casamento de Moisés com Séfora, que, como observa Pierluigi Lanfranchi, parece ilustrar a relação ideal entre judeus e não-judeus, em oposição ao que ocorrera no Egito (LANFRANCHI, 2007, p. 258). Erich Gruen percebe no tratamento que Ezequiel dá a tal casamento uma visão desproblematizada do casamento com uma estrangeira e a constituição de certa introdução de elementos “internacionais e multiculturais” no ancestral dos judeus (GRUEN, 1998, p. 130). O casamento de Moisés é mencionado em Ex 2 e Nm 12:1. Há divergência a respeito da identificação ou diferenciação entre as duas menções. Há, inclusive, uma hipótese de que esse segundo texto se refira a um casamento que teria sido narrado primeiramente em um contexto da diáspora, e, em seguida, acomodado na narrativa canônica (RÖMER, 2008, p. 8-9). Neste caso, um casamento de Moisés não poderia somente ser interpretado de modo proveitoso para a Diáspora, mas gerado nesse contexto. A leitura de Thomas Römer sobre a figura de Moisés e a construção de uma identidade para a Diáspora encaminha a essa possibilidade. A Diáspora não só lê, mas também escreve a Torah conforme suas necessidades. Não me aprofundo nessa questão por entender que, pensando em um período tardio como o da diáspora alexandrina sob domínio romano, isso já não é sequer plausível. Ademais, parece-me que a proposta depende de considerável especulação. 64 questões do século primeiro têm na constituição do texto de Fílon. Peder Borgen considera o contraste que Fílon estabelece entre os judeus e os egípcios (especialmente em Legatio) como uma categoria interpretativa (BORGEN, 2005, p. 184) e o próprio conflito como um tipo de dualismo teológico radical, entre os que adoram o Deus único e aqueles que adoram os animais (BORGEN, 2005, p. 185). No entanto, falta em seu livro uma explicação mais clara de como esse discurso em princípio (e talvez só parcialmente, a meu ver) teológico está estreitamente relacionado com uma intenção política contemporânea. Concordo com Borgen que Legatio e In Flaccum devem ser entendidos como uma interpretação filônica para os eventos de seu tempo, mas parece-me necessário considerar que seu texto não é fruto e fomentador simplesmente de uma teologia contemplativa, mas de uma intervenção na própria situação da pólis em que se insere. Por isso, a vida da pólis, e não somente a do texto (e do Livro) e a do teólogo devem ser levadas em conta. Uma abordagem diferente foi realizada por Maren Niehoff em seu estudo sobre a visão de Fílon a respeito da cultura e identidade judaicas. A pesquisadora enfatizou, por um lado, o papel que os egípcios ocupam no pensamento de Fílon como o Outro extremo dos judeus.109 Por outro lado, afirmou que os gregos e romanos teriam lugares diferentes na relação com o alexandrino, uma vez que representariam, para ele, como “identidades complementares” (NIEHOFF, 2001, p. 46). Assim fazendo, ela está em acordo com o que Erich Gruen procuraria demonstrar anos mais tarde: que o encontro com outra cultura, na Antiguidade, não produzia somente uma relação de estranheza e alteridade extremas. Gruen estuda casos de diferentes encontros e conclui: Vários antigos tomaram um caminho afirmativo, colocaram o estranho em uma luz mais branda, encontraram conexões entre povos, se apropriaram da tradição de outros, se inseriram nas genealogias e lendas de estrangeiros, e aumentaram sua própria auto-percepção pela proclamação de sua participação em uma cena cultural mais ampla. 110 (GRUEN, 2011, p. 357) Ou seja, a definição de uma alteridade se faz necessária para a formação de uma 109 110 Nesse capítulo, Maren Niehoff depende da observação do antropólogo Fredrik Barth, segundo quem as fronteiras culturais são construções sociais, e não elementos objetivos dados de antemão. Assim, ela se vê instigada a procurar a oposição Judeu-Egípcio como algo que revela sua construção no texto de Fílon e não como um simples fato registrado pelo alexandrino. (cf. NIEHOFF, 2001, p. 45; BARTH, 1969). Minha tradução de: Many ancients took the affirmative route, set the alien in a softer light, found connections among peoples, appropriated the traditions of others, inserted themselves into the genealogies and legends of foreigners, and enhanced their own self-image by proclaiming their participation in a broader cultural scene. 65 diferenciação e, por conseguinte, a definição de um grupo. Mas não é o único modo de relação. Fílon, então, teria utilizado maneiras diferentes com determinados povos. Para com os gregos, uma relação mais ampla, não de marcada oposição, embora não haja necessariamente identificação (cf. NIEHOFF, 2001, p. 58). Para com os egípcios, por outro lado, alteridade total. Niehoff demonstra o fato e procura explicá-lo pelo estudo dos próprios textos de Fílon em relação com seu contexto discursivo. 111 Em sua argumentação, encontra-se inclusive uma aproximação da representação dos egípcios bíblicos em Fílon com a representação dos persas na peça de Ésquilo. As semelhanças são de fato demonstráveis. Por isso, ela pode afirmar: A construção que Fílon faz dos egípcios da Bíblia como persas tem implicações importantes para a identidade judaica. É de início óbvio que esse é o caminho pelo qual ele integra os judeus entre as nações civilizadas do Ocidente. Gregos e judeus, unidos pela oposição comum ao barbarismo, estão no mesmo lado de uma divisão básica entre leste e oeste. Ambos defendem liberdade e dignidade racional. (NIEHOFF, 2001, p. 58) 112 Por fim, a pesquisadora germano-israelense localiza a estratégia filônica em um contexto mais amplo e afirma que essa representação do Egípcio-Outro corresponde de perto à imagem que ele também tem entre os romanos. 113 Ademais, ela diz que o alexandrino “claramente queria integrar os judeus na cultura romana e, imediatamente, associá-los com os governantes do mundo”114 (NIEHOFF, 2001, p. 74). A disposição de Fílon se explica, então, como uma estratégia tomada com vistas a um melhor status sócio-cultural para os judeus. Evitar qualquer ligação com os egípcios, que formavam o nível social mais baixo na Alexandria romana, e, ao mesmo tempo, aproximar-se dos que detinham o poder é uma 111 112 113 114 Isso se faz em concordância com o que havia definido na introdução do livro: “Suas discussões sobre a identidade e cultura podem, por conseguinte, não ser entendidas pela referência a critérios externos, tais como a Bíblia e a literatura rabínica. Elas devem, em vez disso, ser apreciadas por um questionamento sobre o que faz Fílon um judeu a seus próprios olhos” [His discussions on Jewish identity and culture can therefore not be understood by reference to external criteria, suh as the Bible and rabbinic literature. They must instead be appreciated by asking what made Philo a Jew in his own eyes] (NIEHOFF, 2001, p. 5). Minha tradução de: Philo's construction of the Biblical Egyptians as Persians has importat implications for Jewish identity. It is initially obvious that this is the way he integrates the Jews among the civilized Western nations. Greek and Jews, united by their common opposition to barbarism, stand on the same side of a basic division between East and West. Both defend freedom and rational dignity. Antes, ela havia afirmado que Fílon contava com o fato de que o discurso romano avalizava sua construção dos Egípcios como o Outro (NIEHOFF, 2001, p. 49) e mencionado textos romanos como exemplo (NIEHOFF, 2001, p. 49-50). Minha tradução de: He clearly wished to integrate the Jews into Roman culture and directly associated them with the rulers of the world. 66 estratégia razoável.115 Não se trataria, segundo Koen Goudriaan, de uma estratégia de todo estranha naquele contexto. Ele percebe algo semelhante também entre alguns não-judeus, os quais, percebendo o risco de serem classificados como Egípcios, tomavam a iniciativa de denunciar a alteridade dos judeus como recurso para enfatizar sua própria adesão à identidade helênica (GOUDRIAAN, 1992, p. 90). Um fator motivador para a mobilização dessas estratégias étnicas na Alexandria do século primeiro poderia ser o fato de que o governo romano, diferente do que era feito no Egito na era ptolomaica, adotava o pertencimento étnico como forma de organizar a população, inclusive para diferenciar uma classe privilegiada e definir obrigatoriedade de impostos (GOUDRIAAN, 1992, p. 94). A leitura de Maren Niehoff - embasada nos trabalhos de F. Barth e K. Goudriaan, mas acrescida de uma aproximação da oposição proposta por Fílon com a imagem do egípcio no universo discursivo romano - não passou despercebida entre os estudiosos da obra do alexandrino. Uma grande virtude de seu livro foi a consideração do marco político do poder e da cultura de Roma na produção do corpus filônico116. Mas é também essa consideração (ou um suposto exagero nessa consideração) que motivou algumas críticas que devem ser notadas. Em seu livro inteiramente dedicado ao estudo da representação dos egípcios na obra de Fílon, Sarah Pearce faz coro com E. Birnbaum e J.M.G. Barclay, que publicaram resenhas sobre o livro de Maren, ao formular a seguinte questão: “Ela identificou o contexto correto para iluminar o pensamento de Fílon a respeito dos egípcios?” (PEARCE, 2007, p. XXV). 117 Pearce apresenta duas principais críticas à proposta de Niehoff: a complexa e variada natureza da “romanização”, o que dificultaria a consideração do que seria a perspectiva romana, inclusive de uma elite romana; a dificuldade de se comprovar a familiaridade de Fílon com a 115 116 117 Cf. GOUDRIAAN, 1992 - Importante artigo que menciono a seguir. Poucos anos antes, Alan Mendelson havia afirmado que o que Fílon fazia era simplesmente redirecionar as acusações que atingiam os judeus para o grupo mais abaixo na escala social, os egípcios (MENDELSON, 1988, p. 117-118). Mendelson chega a especular que os próprios tratados de Fílon, com sua postura contrária aos egípcios, podem ter contribuído para desgastar a relação entre as etnias na cidade de Alexandria, o que culminaria com o pogrom de 38 d.C. (MENDELSON, 1988, p. 12). Confira-se também BARRACLOUGH, 1984, p. 426, que já apresentava uma perspectiva semelhante à de Goudriaan. Em resenha, Gregory Sterling afirma: “Ela fez um sério esforço para considerar a importância de Roma para a identidade de Fílon. Na minha opinião […] é uma contribuição notável e bemvinda para um aspecto negligenciado da localização social e identidade de Fílon” [She has made a serious effort to consider the importance of Rome for Philo's identity. In my opinion […] is a noteworthy and welcome contribution to a neglected aspect of Philo's social location and identity.] (STERLING, 2002). Minha tradução de: But has she identified the right contet for illuminating Philo's thought about Egyptians? 67 literatura romana (PEARCE, 2007, p. XXV-XXVI). Em seguida, Sarah Pearce menciona um importante artigo de Carlos Lévy, no qual o francês também apresenta suas ressalvas à pesquisa de Niehoff, ao observar que a imagem que os romanos apresentam sobre o Egito não é sempre negativa (PEARCE, 2007, p. XXVI; LÉVY, 2004, p. 297). O artigo de Lévy traz, contudo, algo a favor da metodologia de Maren Niehoff. Ele reconhece que a leitura da literatura em latim não seria o único meio de Fílon adquirir o conhecimento da representação romana sobre os egípcios (LÉVY, 2004, p. 297). Sarah Pearce não deixa de notá-lo, mas volta a defender sua ressalva antes apresentada (PEARCE, 2007, p. XXVI). Concordo com Lévy e observo, inclusive, que Maren Niehoff não defende que Fílon tenha lido diretamente os autores romanos, mas, sensível às permeabilidades da cultura e consciente da circulação da sua família em um ambiente cultural romano, julga possível estabelecer uma relação. Ora, Fílon não cita textos latinos, como observa Birnbaum (BIRNBAUM, 2002). Mas isso não invalida a sua relação (não digo influência) com o mesmo ambiente cultural da produção daqueles. Tanto é assim, que a mesma Sarah Pearce, que lança mão do argumento para criticar a metodologia de Niehoff, utiliza uma semelhante em outra parte de seu estudo. Em certo ponto, ela diz que Fílon não explicita um embate com acusações anti-judaicas, mas observa que “o caráter defensivo de algumas de suas interpretações da lei judaica sugere que ele pode ter tido tais acusações em mente. Ele insiste, por exemplo, que o Shabbat não encoraja a indolência, uma acusação que era lugar-comum entre romanos, por volta do século primeiro”118 (PEARCE, 2007, p. 41-42). E entre os exemplos dessas críticas que ela arrola em nota estão textos de Sêneca, Tácito e Juvenal. Ora, assim como Fílon não dependeria da leitura direta desses textos para ter ciência do teor das críticas relacionadas ao Sábado, tampouco precisaria ler a literatura romana para conhecer parte importante de seu pensamento sobre os egípcios. Parece-me, então, que o trabalho de Maren Niehoff permanece como um passo importantíssimo no entendimento da relação de Fílon com os egípcios. Juntamente com Goudriaan, ela esclarece suficientemente a estratégia que transparece no texto de Fílon. Não nego que essa explicação deve ser acrescida de uma consideração ampla da importância do texto bíblico em todo o pensamento filônico, inclusive nessa questão (cf. LÉVY, 2004, p. 298). Mas ele não deve ser utilizado como uma maneira de julgar a correção do judaísmo ou 118 Minha tradução de: the defensive character of some of his interpretations of Jewish law suggests that he may had such charges in mind. He insists, for example, that the Shabbath law does not encourage indolence, a commonplace charge among Romans by the first century. 68 da identidade judaica de Fílon (concordo com Maren Niehoff), mesmo sendo um elemento central de toda sua atividade. Não obstante, é preciso dizer, Sarah Pearce enfatiza a Bíblia e o significado alegórico que Fílon encontra para os egípcios em suas diversas leituras. Nesse sentido e em muitos outros, seu livro a respeito da representação do Egito em Fílon é extremamente meticuloso e proveitoso. Ela é hábil em demonstrar a visão negativa que Fílon apresenta ao longo de sua obra a respeito dos egípcios e do Egito.119 Diz: Para Fílon, este, essencialmente, é o que significa ser 'egípcio': falhar em ver a Deus, o verdadeiro Deus que é eterno criador e regente deste mundo. Nessa classe de pessoas, Fílon localiza concepções imperfeitas sobre Deus, comprometimento com falsas doutrinas, deificação do material e mortal, linguagem ímpia, e até mesmo interpretações impróprias de Deus derivadas da Escritura.120 (PEARCE, 2007, p. 308) A autora percebe, então, que o “egípcio” vai além da noção étnica simplesmente. Disso estou convencido. Inclusive, parece-me proveitoso pensar assim, uma vez que revela que as fronteiras e definições são negociadas e não estabelecidas simplesmente pela origem genética. Em Leg. III 12-14, por exemplo, a separação que Moisés realiza com relação ao Faraó e o Egito com sua fuga para Midiã é entendida como um afastamento com respeito a suas próprias paixões. O afastamento físico e étnico corresponde, na alegoria, a um afastamento ético. Mas considero, também, que o fato não invalida a repercussão dessa 119 120 A egiptóloga Michèle Broze procura demonstrar certa ambiguidade no discurso de Fílon a respeito dos egípcios. Ela reconhece que, em geral, o alexandrino é crítico. Mas aponta para trechos que revelariam uma visão mais positiva. Algumas das observações de Broze são, no mínimo, instigantes, mas parece-me que ela exagera no estabelecimento de alguns paralelos ou, ao menos na relevância que encontra. (De qualquer forma, o que ela aponta não altera em nada a reflexão que exponho aqui.) Ao ler Mos. 1.23-24, em que Fílon fala da formação de Moisés, ela ressalta o fato de que a narrativa afirma que Moisés teria recebido a “filosofia por meio de símbolos” ( τὴν διὰ συμβόλων φιλοσοφίαν – tèn dià symbólon philosophían). A conclusão a que chega é que Moisés teria, segundo Fílon, aprendido o método alegórico com os egípcios (BROZE, 2011, p. 110). Em seguida, a pesquisador procura apontar para outras semelhanças entre o método alegórico do próprio Fílon e interpretações semelhantes praticadas entre os egípcios do período ptolomaico ao romano. Prefiro a postura mais cautelosa de Pearce, que, ao se deparar com a peculiar expressão citada, afirma que o sentido não é claro, que talvez se trate dos próprios hieroglifos ou de uma interpretação simbólica dos cultos propostos pelos sacerdotes egípcios (PEARCE, 2007, p. 301). Mais importante ainda que a cautela em manter a dúvida, é a ênfase que Sarah Pearce dá ao fato de que o texto de Fílon afirma também que, de tudo que lhe foi ensinado, Moisés rejeitou o que não estava de acordo com a verdade (PEARCE, 2007, 301-302). Minha tradução de: For Philo, this, primarily, is what means to be 'Egyptian': to fail to 'see God', the true God who is the eternal creator and ruler of this world. Within this class of people, Philo locates imperfect conceptions of God; commitment with false doctrines; the deification of the material and mortal; impious language; even improper interpretations of God derived from Scripture. 69 interpretação negativa mais ampla no âmbito mais restrito meramente étnico. Parece-me que ampliar uma noção negativa do restrito (representado pelo termo em seu sentido primeiro) ao amplo (representado pelo novo sentido que o termo acolhe) não retira a negatividade do primeiro. Por isso, Fílon demonstra também uma visão negativa para com os egípcios contemporâneos, sem deixar qualquer indício de que essa oposição se fundamente somente um significado metafórico. Inclusive, é preciso lembrar constantemente que o alegórico, para Fílon, não é necessariamente o único sentido verdadeiro das Escrituras. O sentido literal é, o mais das vezes, conservado e valorizado. Semelhantemente, nossa leitura de sua obra deve considerá-lo, tal qual ele se via, como alguém que considera a alma sem desconsiderar o corpo. Afinal, ele não deve ser visto como aqueles “alma somente”, os alegoristas extremos que chega a criticar duramente.121 Há, certamente, um diálogo entre sua concepção do mundo contemporâneo e sua leitura da Bíblia. Exemplo desse diálogo se percebe na interpretação alegórica desenvolvida em Fug. 148 para mesma cena do assassinato. Moisés é interpretado como a alma e o egípcio como o prazer que a tenta seduzir. A alma aniquila a tentativa do prazer. Mas, além disso, Fílon insere no significado encontrado na narrativa uma polêmica de Moisés contra as doutrinas de Epicuro (RANOCCHIA, 2008, p. 89). Pode-se dizer que a extrema diferença que Fílon procura marcar entre os egípcios e os judeus não é menor que o óbvio distanciamento entre seu pensamento e o sistema filosófico dos epicúreos. Ou seja, uma polêmica própria de sua vivência no mundo, marcada por uma radical alteridade, é reconhecida no significado alegórico da narrativa bíblica. A diferença com relação ao nosso estudo realizado a partir de Mos. reside no fato de que, em sua investigação alegórica, Fílon aproveita o texto para marcar uma fronteira entre concepções da realidade, sistemas de pensamento, o que é bem razoável, uma vez que sua alegorese lida constantemente com esse âmbito intelectual, enquanto em sua interpretação literal a fronteira é demarcada entre povos, seguindo referências étnicas do próprio sentido literal do texto da Bíblia. Como se vê, o diálogo entre a interpretação alegórica e a concepção do mundo contemporâneo é mesmo complexo. Respeita, além das leituras do hermeneuta e das contemplações do teólogo, as urgências que afligem o pensador e o “cidadão”, de tal modo que, mesmo que tratando de âmbitos diferentes, movimentos semelhantes podem ser 121 Cf. Mig. 89-90. Sobre esse trecho, conferir o importante artigo de David Hay, segundo o qual a crítica de Fílon não parece dirigida a um grupo social específico, mas a intérpretes diversos, entre os quais ele possivelmente circulava, que se viam por demais tomados pelas especulações alegóricas, a ponto de negligenciar as implicações do sentido literal dos textos (HAY, 1997, p. 42). 70 identificados na interpretação alegórica e na literal. Ambas trazem o texto antigo para o presente. E não é justamente esse o fazer de um hermeneuta: atualizar sentidos? Conclusão: o corpus do delito A delimitação étnica e social, marca de um momento de crise cultural, está na base dos textos aqui estudados. Embora o crime em si, por vezes, pareça receber toda a atenção dos leitores, o dilema tratado é mais amplo.122 Brian Britt observa que a imagem bíblica de Moisés “sugere uma luta entre o louvor a um herói e a decisão de subordinar seu prestígio à tarefa de resolver crises culturais e inaugurar tradições escritas”123 (BRITT, 2004, p. 1). O mesmo Brian acusa repetidas vezes, do início ao fim do mencionado livro, que a imagem biográfica de Moisés desenvolvida no judaísmo de língua grega por Fílon e Flávio Josefo encobre, à maneira de um eclipse, essas questões do texto, que são mais importantes que a própria vida da personagem. Não obstante, em um dos poucos pontos do livro em que cita a obra de Fílon 124, Britt se vê obrigado a fazer uma concessão: “Apesar de seu foco hagiográfico, Fílon identifica uma questão central para minha análise do texto bíblico” (BRITT, 2004, p. 118).125 Algo semelhante talvez se possa dizer quanto ao texto de Fílon que foi há pouco citado por mim. O alexandrino realmente se impõe a tarefa de narrar a vida de Moisés à maneira das biografias escritas em seu tempo para heroicizar e autorizar certos personagens históricos ou literários (cf. NAJMAN, 2003, p. 92; 122 123 124 125 Josefina Ludmer, que estuda a literatura argentina, propõe-se utilizar o delito como um instrumento crítico. Não obstante, o que percebo quanto ao tratamento dado ao texto que estudei neste ensaio é diverso. O delito, enquanto solicitador de um julgamento para a personagem, pode ser inibidor da crítica do texto. Decerto, a diferença entre os corpora, digo, o de Ludmer e o nosso, pode explicar o fato. O texto da Bíblia Hebraica, tanto por seu caráter de texto sensível (sagrado), quanto pela importância posterior do personagem que apresenta em ação, bem como por ecos judeofóbicos que produziu, tende a receber um tratamento especial por parte da tradição hermenêutica. E os hermeneutas, então, deixam de atentar para o delito (de Moisés) como “uma fronteira cultural que separa a cultura da não-cultura, que funda culturas, e que também separa linhas no interior de uma cultura” (LUDMER, 2002, p. 11). Permito-me apropriar-me do texto de Ludmer, embora, diferentemente, não tenda a uma leitura psicanalítica. Conforme meu entendimento, o crime funda culturas e separa linhas em uma estratégia textual de explicitação e chamada à percepção. O substrato freudiano, para meu propósito, é indiferente. Minha tradução de: ...suggests a struggle between hero worship and a decision to subordinate his prestige to the tasks of resolving cultural crises and inaugurating written traditions. Esta talvez seja uma crítica a se fazer ao livro. Britt é insistente em marcar as obras “biografizantes” de Fílon e Josefo como ponto de partida para o que ele chama de eclipse do texto, mas, embora analise romances variados, filmes, pinturas e, inclusive, textos da Bíblia Hebraica, não reserva nenhum capítulo à análise dessas obras do judaísmo de língua grega. Minha tradução de: Despite his hagiographic focus, Philo nevertheless identifies an issue central to my analysis of the biblical text. 71 FELDMAN, 2007, p. 16-19)126, mas seu texto ainda lida com outros aspectos do texto bíblico, e até mesmo pode potencializar um ou outro, conforme o contexto em que ele escreve e o inscreve. Uma leitura atenta de seu texto, inclusive quando contrastado com o de Ezequiel, deixa evidente que ele retoma esse dado que me parece de suma importância no texto canônico: a definição de identidades e alteridades. E ele é capaz de fazê-lo porque, ainda que a narrativa faça sombra sobre o texto, ela não o esconde por completo, assim como a areia não é um bom esconderijo para um corpo. Moisés que o diga! 126 O que esses autores assinalam não destoa da conclusão anteriormente oferecida por Philip Shuler ao se deparar com semelhanças entre De Vita Mosis e o Evangelho de Mateus. Segundo ele, as duas narrativas pertencem ao gênero das biografias de tipo encomiástico (SHULER, 1990). 72 Capítulo 2 Exílio, diáspora e saudades de Jerusalém: estudo a partir de Jeremias 29:1-14 e Fílon de Alexandria Neste ensaio, será importante marcar, em princípio, a distinção entre exílio e diáspora. Provisoriamente, direi que considero a voluntariedade ou não do distanciamento da terra de origem como dado diferenciador. O exilado é levado por força ao exílio, enquanto o disperso está na diáspora, em alguma medida, por opção (ou por necessidade sócioeconômica, mas não por imposição de outro).127 Os textos que serão analisados correspondem e respondem a fenômenos diferentes. Primeiro, abordarei a carta de Jeremias enviada aos que estavam exilados na Babilônia (Jr 29). Segundo Feinberg, as recomendações encontradas nessa carta são seguidas pelos judeus da dispersão ao longo dos séculos (FEINBERG, 1982, p. 198). Se essa percepção estiver correta, estamos diante de um documento fundamental para quem quer entender a disposição dos judeus (de qualquer judeu?) em terras alheias. Meu estudo não depende da leitura desse comentarista, podendo até mesmo suspeitar dela em algum momento. Não obstante, reconheço a importância da carta de Jeremias como texto exemplar, que contém de modo conciso os dilemas e expectativas de um povo dividido pelo exílio, o que a faz fonte privilegiada para um ensaio comparativo e relativamente breve como este. Em seguida, observarei trechos da obra de Fílon, nos quais se apresentam, direta ou indiretamente, considerações sobre a experiência de estar em diáspora. A opção por abordar fragmentos específicos da obra de Fílon se deve ao risco que eu correria, se me dedicasse a um único longo discurso, de explicitar apenas uma de suas facetas com respeito à situação em que vivia. Não quero, contudo, perder-me em referências múltiplas e confusas. Para tanto, estabelecerei diálogo com filonistas importantes, de modo a inserir-me em uma reflexão já em andamento e direcionar-me por meio dela. No decorrer das leituras, as diferenças entre diáspora e exílio se evidenciarão, mas, em algum momento, deverão também confundir-se novamente, uma vez que, como se há 127 Essa distinção de partida é tomada do uso dos termos hoje, e construída a partir do contraste entre a experiência do judaísmo de língua grega dos tempos de Fílon e a dos judeus levados à Babilônia a força. Reconheço, contudo, que uma preocupação etimológica e histórica do uso dos termos nos períodos em que tais experiências ocorreram revelaria uma complexidade maior. A esse respeito, cf. MORDZEJEWSKI, 1993, p. 65-71). A simplificação aqui adotada favorece a exposição do tema. 73 de ver, o exilado pode passar a perceber-se como em diáspora, bem como o disperso pode vir a ver-se como exilado. Ademais, permearão este estudo, ao menos tangencialmente, temas como profetismo e escatologia, que parecem relacionar-se, em princípio, com a emergência de uma saudade. A saudade de Jerusalém, então, será observada como elemento ao mesmo tempo unificador e diferenciador entre Fílon e Jeremias. 2.1 Jeremias 29:1-14: um judaísmo por correspondência     -h  r xalAH reH  < :rOm'El hAlebA  yityEl  :       -le'     h    < :h yi  dOq     :h :  yit'Ec   : 1 E estas são as palavras do rolo que Jeremias, o profeta, enviou desde Jerusalém ao resto dos anciãos do exílio, aos profetas, e a todo o povo que Nabucodonosor levou ao exílio de Jerusalém para a Babilônia, 2 depois de sair o rei Jeconias e a rainha, os eunucos chefes de Judá e Jerusalém, o artesão e o ferreiro de Jerusalém, 3 pela mão de Elassá, filho de Shapan, e Guemariah, filho de Hilquias, os quais Zedequias, rei de Judá, enviou a Nabucodonossor, rei da Babilônia, à Babilônia dizendo: 4 Assim disse YHWH dos exércitos, Deus de Israel, para todo o Exílio que foi exilado de Jerusalém 74 para a Babilônia: 5 Construí casas e habitai. Plantai pomares e comei o fruto deles. 6 Tomai mulheres e gerai filhos e filhas. Tomai mulheres para vossos filhos, e dai as vossas filhas para homens. E elas gerarão filhos e filhas. Tornai-vos numerosos aí e não diminuireis. 7 E procurai a paz da cidade que vos exilei para lá. E orai em favor dela a YHWH, pois na paz dela haverá paz para vós. 8 Pois assim disse YHWH dos exércitos, Deus de Israel: Não vos dirijam vossos profetas que, no meio de vós, advinham para vós. E não dareis ouvidos a vossos sonhos, que vós estais sonhando. 9 Porque em falsidade eles estão profetizando para vós em meu nome. Eu não os enviei, declaração de YHWH. 10 Porque assim disse YHWH, que logo que se cumprirem para a Babilônia setenta anos, visitarei a vós e confirmarei para vós minha boa palavra, para fazer-vos voltar para este lugar. 11 Pois eu mesmo conheço os pensamentos que eu penso sobre vós, declaração de YHWH, pensamentos de paz e não para o mal; darei a vós um depois e uma esperança. 12 Vós me chamareis, e vireis e orareis a mim. E escutarei a vós. 13 Vós me procurareis e me encontrareis, pois me buscareis com todo vosso coração. 14 Serei encontrado por vós, oráculo de YHWH. Eu trarei vossos cativos, ajuntar-vos-ei de entre todas as nações e de todos os lugares a que vos dispersei, oráculo de YHWH. E vos farei voltar ao lugar de onde vos exilei. É preciso localizar minimamente o texto no tempo. O acontecimento-chave que nos dará o rumo se situa no ano de 597 a.C., quando Nabucodonosor subjuga Jerusalém e leva parte do povo à força para a Babilônia. O texto parece considerar que Jerusalém ainda não foi destruída, o que ocorreria em 587 a.C.. Temos assim, um período de dez anos para a redação (cf. SCHMIDT, 2004, p. 392). Contudo, se consideramos que a carta pode ter sido escrita realmente no contexto que transparece de suas palavras (e não vejo necessidade de duvidar disso), concordaremos com Jack R. Lundbom e diremos que nosso texto provém de pouco tempo depois de 597 a.C. (LUNDBOM, 2004, p. 349).128 Afinal, não faria sentido enviar as instruções básicas para os deportados em uma carta, se eles já estivessem devidamente instalados e habituados a sua nova condição. Se o texto não é plenamente explícito quanto ao momento do envio da carta, outras informações são detalhadamente informadas. Entre o verbo “enviou” ( - shalákh), 128 Convém observar, ainda, outra opção que me aproxima do trabalho de Lundbom: a compreensão de que o TM parece conservar uma forma próxima à do texto original. Com isso, mostro-me contrário às análises de William Mckane, que privilegia, a meu ver em demasia, o texto da LXX, em sua comparação com o TM (MCKANE, 1996). Sua pressuposição constante de que os tradutores da LXX tiveram acesso a uma fonte hebraica mais antiga que a preservada pelo TM (o que explicaria a ausência de frases inteiras) não me parece acertada em todos os casos. O próprio Lundbom demonstrou que muitos dos versos rejeitados por Mckane (por sua ausência na LXX) podem faltar na tradução ao grego por erros comuns entre copistas, como o salto bordão. Como a questão extrapola o objetivo do presente estudo, simplesmente remeto aos trabalhos dos dois. No mais, observo que, seja como for, o valor literário (que é o que importa aqui) do texto preservado pelo TM não se vê diminuído. Voltarei a mencionar possíveis problemas de crítica textual somente quando houver alguma variação considerável ou dificuldade de leitura. 75 no verso 1, e o fim da frase, no verso 3, que traz “à Babilônia dizendo”, encontramos consideráveis dados sobre o ato de comunicação. Os destinatários da carta e o meio de envio estão evidentes, além do remetente, que havia aparecido como sujeito do verbo. A Jeremias se atribui a carta. Bem, por isso ela está no livro, diremos. Não pretendo abordar a discussão sobre a veracidade da atribuição, muito menos dedicar-me ao tema da formação do livro de Jeremias e da relação de cada uma de suas partes com o profeta. Não obstante, em alguns momentos, a leitura da carta enviada me levará a outros trechos da obra e à figura do próprio profeta. Farei, pois, as referências necessárias, considerando que literariamente a carta as requer. O meio de envio é bem definido: dois homens enviados a Babilônia por Zedequias. Pode-se questionar como uma carta enviada por Jeremias poderia ser levada em uma comitiva oficial enviada por Zedequias, uma vez que havia uma oposição marcante entre os dois. As especulações são muitas, mas as possibilidades também. O paradoxo, que poderia ser um ponto contrário à veracidade da carta, pode também ser lido como evidência de sua autenticidade, afinal, quem é que, tendo a opção de inventar um contexto propício, procuraria a opção mais estranha? Isso também não afetará minha leitura, portanto, apenas menciono o problema, sem qualquer pretensão de resolvê-lo. Devo ocupar-me, isso sim, um pouco mais detidamente, dos destinatários: “ao resto dos anciãos do exílio, aos profetas, e a todo o povo que Nabucodonosor levou ao exílio de Jerusalém para a Babilônia”. O grupo de destinatários começa restrito e chega a uma generalidade considerável. Primeiro, é mencionado o resto dos anciãos do exílio ( - yeter ziqnei hagolah). O sentido do termo  - yeter é debatido. Tradicionalmente se entende resto, mas, por sua raiz, o termo pode indicar algo como excedente, donde seria possível entender proeminente. A opção por resto não traz grandes problemas, e proeminente gera alguma redundância, como observado por Lundbom (LUNDBOM, 2004, p. 348). Pode-se imaginar que o grupo de anciãos a que se destina a carta é referido como um resto porque muitos teriam sucumbido durante a viagem à Babilônia, ou mesmo que muitos teriam resistido à força imperial e sido mortos por isso.129 Poder-se-ia pensar, também, em uma leitura mais abstrata do termo ancião, que passaria a indicar, mais que um grupo de pessoas, a autoridade por elas representada. Nesse caso, estaríamos falando de um resto de autoridade que havia na organização judaica da Babilônia. Não importa tanto como se lê, o que enfatizo é o próprio 129 Cf. THOMPSON, 1980, p. 545, que procura apresentar algumas hipóteses. Nenhuma, contudo, é detalhada ou respaldada por evidências. 76 termo resto, como o primeiro termo do primeiro sintagma que identifica os destinatários, ligado à preposição por um maqef:  - el-yeter, ao resto. A palavra parece desnecessária, mas ao mesmo tempo chama a atenção a ponto de poder parecer todo o destinatário. Jeremias escreve a um resto, um resto de anciãos, um resto da tradição, um resto da força de tradição que estava cativo. Junto desse resto, aparecem os profetas, aos quais, isso se notará, a carta combaterá, e todo o povo. Ademais, deve-se marcar que, aqui, todo o povo aparece como tendo sido levado ao exílio por Nabucodonosor, o que mudará, quando as palavras forem de YHWH. Parte desse destinatário coletivo aparece em seguida, mas como marcação temporal. A carta foi enviada depois que rei, rainha, eunucos, o artesão e o ferreiro foram levados. A eles chega, pois, a carta com uma mensagem surpreendente. Primeiro dado surpreendente é que o texto começa diretamente com palavras do próprio YHWH. É ele quem diz as palavras do texto, não havendo necessidade de apresentações por parte do profeta Jeremias ou de seu amanuense Baruc. Além disso, ele não vem despido de epíteto, mas apresenta-se como YHWH dos exércitos (   - YHWH tsabaot) e Deus de Israel (- elohei israel). Uma apresentação forte, que poderia gerar a expectativa de uma promessa também belicosa, de ação imediata e terrível contra Nabucodonosor, o suposto responsável pelo exílio. Mas não é o que se encontra a seguir. Construir casas e morar nelas. Plantar pomares e comer de seus frutos. Nada mais natural, esperado, cotidiano. Sim, mas isso para um contexto de paz. Essas construções com seus imperativos remetem ao oposto, a uma maldição que aparece em Deuteronômio e reaparece em outros lugares, como Amós.130 Não obstante, uma maldição pode transformar-se completamente. Por isso, assim como em Amós 9:14, nosso texto apresenta uma realidade de consecução feliz das atividades cotidianas, não de frustração. Pode-se observar, ainda, que essas frustrações, remetidas pela maldição (e paralelamente pela promessa nela refletida), tendiam a sobrevir especificamente em tempos de guerra. Jeremy Smoak demonstrou, pela 130 “[C]onstruirás uma casa e não a habitarás (h); plantarás uma vinha e não a vindimarás ()” (Dt 28:30). “[C]onstruístes casas de cantaria, mas não as habitareis ( ); plantastes vinhas esplêndidas, mas não bebereis o seu vinho ()” (Am 5:11). Traduções da Bíblia de Jerusalém. Como se nota, o primeiro item dessas maldições revela uma proximidade lexical muito marcada com Jr 29:5. No segundo, a diversidade dos termos é um pouco maior, mas o conteúdo permanece semelhante. 77 observação da iconografia e de textos assírios, que essa ameaça reflete bem o que seria o resultado de um sítio bem executado pelo exército daquele povo (SMOAK, 2008, p. 20-24). Assim, a carta de Jeremias apresenta YHWH dos exércitos prometendo, com ordens aos pares, que os tempos subsequentes não envolveriam uma condição de guerra, mas de estabilidade, ausência de combates bélicos, ou, por assim dizer, paz. Duas reações parecem surgir das ordens. A primeira é de estranhamento. Alberto Mello marcara o paradoxo de que a demora em terra estranha, no exílio, tornará possível a paz, o bem estar, que era impossível na terra própria (MELLO, 2007, p. 86) 131. É possível ter paz vivendo longe de Jerusalém? A segunda reação às ordens pode ser de espanto, pois, por esses imperativos e pelos seguintes (tomar mulheres...), se deduz que o tempo de estada em Babilônia não será curto. Afinal, além de indicar a estabilidade por ausência de conflitos, o ato de plantar e poder colher da árvore plantada indica a permanência por algum tempo no mesmo lugar. O mesmo se pode dizer sobre a construção de uma casa. Se compensa gastar força para construir a casa é porque haverá tempo suficiente para habitar nela. Mais explicitas ainda são as ordens seguintes. Ter filhos, casar filhos, ter netos... Enfim, multiplicar-se na Babilônia. 132 O tempo necessário para o nascimento de outras duas gerações não é pouco. O leitor começa, então, a suspeitar da demora. Talvez já se antecipe a ideia que só será aclarada pela promessa contida nos versos 10-14, de que o exílio durará longos anos. Por isso seria necessário ter filhos e netos, para que eles fossem os beneficiários da restauração (OSUJI, 2010, p. 244). Há mais. O verso seguinte apresenta duas novidades aos leitores: uma ordem inesperada e uma afirmação aparentemente estranha: E procurai a paz da cidade a qual vos exilei para lá. E orai em favor dela a YHWH, pois na paz dela haverá paz para vós. O verbo procurai traduz o imperativo de rd – darash. Lundbom observa que esse verbo frequentemente significa orar, no Antigo Testamento (LUNDBOM, 2004, p. 351). No entanto, o segundo verbo do verso é mais específico para esse sentido, o que me leva a pensar que rd – darash talvez conserve, aqui, um significado mais amplo, que pode incluir o orar, mas igualmente todo o comportamento da comunidade. Procurar a paz implica em evitar distúrbios, viver de modo a preservar a estabilidade local. Schmidt evidenciará a surpresa de que a shalom possa vir a acontecer fora de Yeru-shalem (SCHMIDT, 2004, p. 393). Buscar a 131 132 De modo muito semelhante, Ramiro Mincato observa: “Paradoxalmente é a longa duração do exílio que justamente poderá consentir a Israel aquilo que já era impossível na sua própria terra: ter uma vida plenamente humana, de amplo respiro, aberta ao futuro. É esta, em síntese, a mensagem da carta enviada aos exilados (c. 29)” (MINCATO, 1996, p. 44). O que talvez também não fosse possível para os que permaneceram em Judá, cf. Jr 16:1-4. 78 shalom da cidade para a qual eu os enviei. Não uma cidade específica. Poderia se tratar de mais de uma. Talvez com isso em vista, a LXX não traduz, nesse verso,  (shalom ha-'ir) por ei¹rh/nhn th=j po/lewj (eirénen tês póleos), mas por ei¹rh/nhn th=j gh=j (eirénen tês gês), a paz da terra. Nada de surpreendente, uma vez que os judeus levados ao exílio devem ter se instalado em mais de uma localidade. O que pode surpreender é o fato de que o sujeito do verbo hlg – galah já não é Nabucodonosor, como no verso 1, que apresentava a carta, mas sim a primeira pessoa do singular, o enunciador, no caso, YHWH, o próprio. Procurai a paz da cidade a cidade para a qual eu vos exilei! O verso requer, e possibilita, uma observação breve, mas imprescindível, a respeito da compreensão teológica que os profetas encontraram para o exílio. Thomas Raitt afirma que o desenvolvimento da explicação, que pode ser entendida como uma teodiceia, começa por uma questão colocada por pessoas comuns. Ou seja, o povo mesmo requisita uma explicação, formulando perguntas semelhantes a algumas que se encontram nos Salmos 133 (RAITT, 1977, p. 86-87). A explicação da parte do profeta, por sua vez, costuma vir em um oráculo de julgamento, que traduz uma concepção geral da teodiceia, a saber: “A teodiceia básica de Israel designa a desgraça como uma punição de Deus, e insiste que ela é proporcional a um pecado de igual gravidade” 134 (RAITT, 1977, p. 90). Ou seja, o oráculo dialoga tanto com uma teologia da aliança (do ponto de vista do pecado cometido pelo povo, que fere a aliança estabelecida), quanto com a teodiceia (do ponto de vista da consequência catastrófica operada por Deus) (RAITT, 1977, p. 92). Mais recentemente, Geraldo Vieira, em sua tese de doutorado sobre Jeremias 1:11 a 6:30, enfatizou o caráter educativo da punição. Em sua análise da expressão grande ruína (l - shever gadol), que aparece em Jr 4:6, diz: A contribuição do campo semântico técnico-jurídico para a compreensão do conteúdo teológico e pedagógico de grande ruína consiste especificamente na característica processual e corretiva de todo procedimento legal. [...] ...mesmo após o veredito de condenação e a sua execução, o Senhor continua educando e corrigindo o seu povo, chamando para uma nova e radical experiência de casamento e aliança (VIEIRA, 2008, p. 205). Ainda que consistentemente representado como negativo na Bíblia hebraica, o exílio não é o fim definitivo da nação, mas parte de um processo teologicamente interpretado. 133 134 Leia-se, por exemplo, o Salmo 44, versos 24 e 25. Minha tradução de: Israel's basic theodicy designates the misfortune as God's punishment and insists that it is proportionate to a sin of equal seriousness. 79 Marca o fim da desobediência na terra natal e o começo da formação de um novo Israel (ODED, 2008, p. 90). Dentro desse contexto da teodiceia e desse processo pedagógico divino será possível entender o que lemos na carta. YHWH é o que exilou Israel, mas, mesmo após essa punição, continua educando, ainda que por correspondência. Ele oferece instruções para que os que estão sob sua punição possam comportar-se de modo devido. Devem levar uma vida normal e orar pela paz da cidade em que vivem, pois a paz deles mesmos depende disso. Há uma comunhão entre eles e a cidade. Ao menos com relação a isso, há uma comunidade (de interesse) entre os judeus e os babilônios. YHWH diz o que devem fazer e, nos versículos 8 e 9, o que não devem fazer: atentar para os profetas que se dizem enviados por ele, mas que não o são. E o que estariam profetizando de tão diferente da mensagem que trazia Jeremias? Os versos seguintes apresentam o contraste. Jeremias afirma que o retorno à Judeia se dará somente dentro de setenta anos. As suspeitas dos leitores de que construir, plantar, casar e ter filhos implicava longo tempo se confirmam. Setenta anos é tempo suficiente para tudo isso. Mas os outros profetas tinham, ao que parece, uma expectativa mais rápida. Provavelmente, o embate entre Jeremias e Ananias, que dizia que Nabucodonosor cairia no prazo de dois anos (cf. Jr 28), está sendo, de alguma maneira, refletido na carta, motivado pela suposição ou constatação de que também na Babilônia alguns profetas entusiasmam o povo com promessas de um retorno em breve.135 O retorno está distante no tempo, mas deve ser esperado, inclusive porque há um prazo definido136. Setenta anos se passarão e YHWH os fará voltar “a este lugar” ( - el ha-maqom ha-ze). O ponto de referência é lembrado mais uma vez. A profecia foi em carta, mas YHWH está falando de Jerusalém, lugar referido pelo demonstrativo, e é para lá, para junto do que fala, que eles devem ser levados no futuro. No processo, o povo terá uma experiência religiosa exitosa: rezarão e serão ouvidos, procurarão a Deus e o encontrarão. Essas palavras do verso 12 e 13 soam possivelmente como uma resposta aos pedidos que podiam ser entoados em forma de lamento (cf. Salmo 102, versos 23). 135 136 Sobre a questão do embate entre verdadeira e falsa profecia, cf. OSUJI, 2010. Ainda que “setenta” não deva ser lido literalmente, mas somente como uma cifra que indica um tempo prolongado, prazo de uma vida inteira (cf. Sl 90:10), em oposição ao prazo mais imediato de Ananias, sua verbalização indica um prazo com término esperável. 80 Setenta anos. E ele os trará de volta de todas as nações (- mikol hagoim) e de todos os lugares ( - u-mikol ha-maqomot) para onde ele os havia dispersado. A carta é para os que estão na Babilônia, mas a promessa tem uma abrangência maior. Enfim, a carta traz instruções para que se acomodem devidamente na terra estranha, mas aponta para um grande retorno. Em princípio, alguém poderia pensar que a promessa dos versos 10-14 contradiz os imperativos que abrem a carta (plantem, construam, casem etc.). Mas concordo com Anthony Osuji, que percebe certa complementariedade no par: “A instrução para se estabelecer no exílio nos versos 5-9 contrapõe-se à expectativa popular da brevidade do exílio e do imediato retorno, enquanto o conselho para olhar além do exílio anula a tendência ao desesperoˮ137 (OSUJI, 2010, p. 248-249). Uma questão a se pensar seria se os conselhos antes dados valem somente para esse intervalo de setenta anos, ou também serviriam para mais tempo, para outros momentos, para outros contextos e lugares. René Krüger afirma convicto: Os conselhos de Jeremias, por sua vez, eram apenas orientações para a sobrevivência temporária no exílio, não para a instalação definitiva na terra estrangeira e estranha. Eram uma estratégia para a autoconservação do povo e, com isso, uma forma adequada de resistência até que Deus levasse seu povo de volta à sua terra. (KRÜGER, 2009, p. 31.) De modo semelhante, John Skinner entende que os conselhos apresentados na carta compõem uma espécie de “ética de ínterim”, válida para aquele momento específico, uma vez que, do contrário, destoaria do ensino geral do profeta Jeremias, que ainda guardaria certo nacionalismo (SKINNER, 1966, p. 272-273).138 Se considerarmos somente a carta, sem observar o desenrolar da história, devemos concordar com Skinner e Krüger. A ênfase no retorno, tanto no verso 10 quanto na pregação do livro de Jeremias em geral, emoldura os conselhos dados em uma situação definida, mas não definitiva. As saudades de Jerusalém têm a força de apontar para o retorno a cada passo. Nesse sentido, a shalom possibilitada na terra estranha não é plena, mas se completa com a esperança prometida de que, no futuro, ela se realizará na Judeia. Não obstante, as saudades de Jerusalém talvez não tenham sido experimentadas da mesma forma na vida diária e na 137 138 Minha tradução de: The instruction to settle in exile in vv. 5-9 counteracts the popular expectation of the shortness of the exile and immediate return while the counsel to look beyond the exile nullifies the tendency to despair. Vale observar que Skinner chega a essa conclusão apesar de não considerar o verso 10 como parte da carta original, o que anuncia sem oferecer exemplo algum do que chama de “muitas razões plausíveis” (SKINNER, 1966, p. 272). 81 produção textual. Uso as palavras de Schmidt: ...os exilados não regressaram à pátria em bloco, quando tiveram esta possibilidade sob domínio persa (após a conquista da Babilônia por Ciro, em 539 a.C.). Muitos permaneceram – apesar dos vários grupos que regressaram (cf. Ed 2:7) – de livre vontade no estrangeiro; a Golá deportada à força tornou-se diáspora. Quão favoráveis podem ter sido as condições de vida na época persa mostram os documentos comerciais da casa bancária “Murashu e Filhos”, do século 5, encontrados em Nippur, nos quais aparecem também nomes judaítas. (SCHMIDT, 2004, p. 422.) A Golá tornou-se diáspora. Por fim, estar no estrangeiro não pareceu tão ruim para muitos. Eles construíram casas, plantaram pomares, tiveram descendentes e fizeram outros negócios. Seguiram os conselhos da carta de forma primorosa, mas, ao final dos setenta anos, talvez seus filhos e netos já não ansiassem tanto pelo retorno. Afinal, retornariam a uma terra que não haviam conhecido pessoalmente. A carta de Jeremias tentou cultivar uma saudade, mas também mandou cultivar pomares e possibilitou a criação de raízes em terra estrangeira. Skinner entende que a carta não advogava pela permanência, mas pode ter servido de ensejo para uma teoria que a possibilitasse (SKINNER, 1966, p. 273). Resta observar que essa Golá transformada em diáspora não desprezou as saudades de Jerusalém, mas aprendeu novas maneiras de vivenciá-la. Financiou em parte a reconstrução da cidade de Davi (cf. Zc 6:11 e Ed 7:16), mas aprendeu, talvez com ajuda da carta de Jeremias, que a vida ao longe podia ainda ter relevância religiosa, possivelmente pela prática da oração. Não obstante, alguma tensão permanece, inclusive no nível poético. Se as saudades de Jerusalém motivaram as palavras do profeta, elas podem também ser tema de outro tipo de composição, que se atém ao lamento e parece não dar lugar à esperança. Para exemplificar, cito o Salmo 137, que foi provavelmente escrito anos após a produção de nossa carta, uma vez que menciona a destruição de Jerusalém como fato acontecido, mas ainda antes da chegada de Ciro, uma vez que o texto parece supor que Edom ainda não foi subjugada, como aconteceria com toda a região à época do imperador persa.139 139 Cf. SCHÖKEL, 1998, p. 1562 e BRIGGS, 1986, p. 485. Ambos concordam com essa datação aproximada, que me parece possível. Não obstante, a questão é disputada. Alguns entendem que o contexto é posterior ao retorno dos exilados a Jerusalém, sendo relato de experiência passada (cf. ALLEN, 2002, p. 304; FIFIELD, 2010, p. 1089). Há que se mencionar, ainda, a proposta de James William Thirtle. Ele entende que a mera menção à “Babilônia” no primeiro verso tem levado à errônea compreensão do contexto de produção do salmo, que deveria ser lido como proveniente dos tempos do reino de Judá, após a invasão dos Assírios. A favor do contexto por ele proposto, Thirtle menciona, por exemplo, o fato de que reis assírios se nomeavam “reis da Babilônia”, e as evidências de um exílio perpetrado pelos Assírios em um texto da Bíblia (2 Reis 18) e no Cilindro 82 : : hAx :  :rAk  :y yik :yitAx  :  : :valA 1 À beira dos canais de água da Babilônia, ali nos sentamos e também pranteamos, com nossas lembranças de Sião. 2 Sobre os salgueiros que há no meio dali, penduramos nossas liras, 3 pois lá, os que nos haviam levado nos pediam palavras de canto. E nossos zombadores: “Alegria! Cantai para nós de uma canção de Sião.” 4 Como cantar a canção de YHWH sobre um terreno estranho? 5 Se de ti me esqueço, Jerusalém, que se esqueça minha direita. 6 Cole-se minha língua a meu céu-da-boca se não me lembrar de ti, se não elevar Jerusalém sobre o topo de minha felicidade. 7 Lembra-te, YHWH, para com os filhos de Edom, do dia de Jerusalém, os quais diziam: “Derribem! Derribem até a fundação dela!” 8 Filha de Babilônia, destruída, Oh felicidade daquele que retribuir a ti o feito que fizeste contra nós, 9 Oh felicidade daquele que agarrar e despedaçar teus meninos contra a rocha! O tom do Salmo 137 diverge do que lemos na carta de Jeremias no que se refere à esperança e à compreensão da impossibilidade ou possibilidade de vida em paz no exílio. Os judeus são apresentados à beira dos canais da Babilônia, em um cenário composto por árvores de Taylor (THIRTLE, 1907, 134-135). Quanto a uma datação relacionada ao exílio babilônico, ele a acha insustentável por vários motivos: o salmo seria o canto de alguém que lembra do sofrimento depois de retornar do exílio e Jerusalém ainda não foi destruída. Isso já oferece um problema histórico, pois Jerusalém foi destruída antes que os exilados na Babilônia pudessem regressar (THIRTLE, 1907, 130-131). Ademais, ele imagina que, se o exílio babilônico durou longos setenta anos, um exilado que regressasse seria idoso demais para agora cantar e tocar a lira neste lamento. Certamente, hoje não nos seria necessário pensar na composição do salmo de forma tão pessoal. No entanto, o texto de Thirtle levanta questões interessantes que, se não convencem completamente, ao menos precisam ser levadas em consideração quando o objetivo é procurar uma mais precisa datação para o Salmo 137. Contudo, este não é o objetivo central deste escrito. Ainda que o contexto não seja aquele que suponho com Schökel e Briggs (durante os dez primeiros anos do exílio babilônico), a comparação da carta de Jeremias 29 com o salmo ainda se justifica, se já não por proximidade contextual ou cronológica, ao menos por semelhança temática. 83 que margeiam as águas. Seria um cenário bastante aprazível e mesmo atrativo para um povo que vivia na aridez da Judeia.140 Mas as águas que refrescam são encobertas pelas lágrimas do pranto dos exilados. Eles choram com saudades de Sião. 141 Suspendem sua alegria religiosa. Não veem possibilidade de entoar hino de seu Deus em uma terra que, apesar de aparentemente agradável, não é reconhecida como lugar para se organizarem como povo. Para a tradução de rAk - admat nekhar por “terreno estranho”, segui o comentário e Guido Ceronetti, que convém transcrever: O uso de adamah exclui que se aluda ao país estrangeiro. Trata-se do próprio solo, do terreno, de uma matéria considerada sem nome, um não-lugar. O exilado ali conhece o nome geográfico, mas lhe nega a consistência, a realidade, o poder de ser mãe de qualquer um. Nekhar, mais que estrangeiro é o ignorado, terra desconhecida, terra que não tem identidade, a que se recusa admitir como uma terra (CERONETTI, 2006, p. 412). 142 Nesse sentido, a possibilidade de acomodação, de busca de conforto no lugar do exílio não é considerada no poema. Mas é preciso ressaltar qual é o motivador desse desconforto. Bob Becking observa que, em concordância com o que tem sido descoberto pela arqueologia e epigrafia, o Salmo 137 não reclama de más condições de vida, opressão, fome etc. Sua queixa é de um sofrimento específico, causado pelo distanciamento com relação a Sião (BECKING, 2009). Não será visto como opção o esquecer-se de Jerusalém. Por isso, se me esqueço da cidade de origem, não me adianta ter minha [mão] direita, que ela não me sirva para nada; 140 141 142 Para essa argumentação, não considero a interpretação dada pelo Midrash Tehillim 522, segundo o qual os judeus choram ali porque as águas desses canais teriam causado a morte de muitos deles. Assim, como observa James L. Kugel, o início do primeiro verso poderia ser traduzido como uma expressão de causa, e não de lugar: “Por causa dos canais da Babilônia, ali...” (cf. KUGEL, 1994, p. 183). Contudo, ainda que possível, a proposta do midrash em questão não me parece obrigatoriamente aceitável. Embora a raiz do termo nos remeta simplesmente ao ato de lembrar, em conjunto com a cena evoca um estado que costumamos chamar de “saudade”. Assim, não me parece acertada a observação de Gutiérrez: “Fala de lembranças, mas não fala que tinha saudades. Talvez porque a saudade é uma forma de esperança, e a palavra esperança está ausente neste salmo” (GUTIÉRREZ, 1994, p. 32). Ora, talvez fosse conveniente uma melhor definição dos termos. Saudade é uma forma de esperança? Há quem afirme sentir saudade de entes queridos que morreram. Seja como for, indico que entendo por saudade algo como uma lembrança marcada pela forte vontade de estar junto do referente lembrado, o que leva, geralmente, a sentimentos próximos à tristeza e à percepção de uma carência. Minha tradução de: L'uso di 'adamàh esclude che si alluda al pese straniero: si tratta propio del suolo, del terreno, di una materia considerata senza nome, un non-luogo. L'esiliato ne conosce il nome geografico, ma gli nega la consistenza, la realtà, il poter essere madre di qualcuno: nekhàr più che straniero è l'ignoto, terra sconosciuta, terra che non há identità, che ci si rifiuta di ammettere come una terra. 84 e o mesmo para minha língua.143 Afinal, não cantarei nem tocarei (a não ser as minhas saudades de Jerusalém?). A única obra, a única poética possível será aquela que cuida da saudade? A única atitude para com a Babilônia será o ódio vingativo? 144 Não é o que se vê na carta de Jeremias. Em resposta a uma situação semelhante, os dois textos apontam para atitudes muito diferentes. Não obstante, não penso que seja necessário, ainda nesse período, distinguir nitidamente grupos de judeus com comportamentos diferentes (os que se acomodaram na Babilônia, os que têm esperança do retorno e os que se deprimem sem ver sentido na vida) 145. Deve-se, isso sim, compreender que o gênero literário que se está mobilizando e os objetivos almejados em cada texto requerem alguma ênfase em um ou outro aspecto de um conjunto complexo de sentimentos e atitudes diante da nova situação. Ou seja, os mesmos sentimentos e atitudes podem transitar por toda a população exilada, que os manifesta diferentemente em momentos (comunitários ou privados) específicos. Decerto, essa é uma suposição que sugere uma pesquisa detalhada sobre o tema, não uma constatação definitiva. O que entendo é simplesmente que a carta procura estabelecer um equilíbrio entre a expectativa do retorno e o estabelecimento de um cotidiano adequado ao prosseguimento da vida, enquanto o poema de lamento, representado pelo Salmo 137, que provavelmente seria cantado em situações específicas e circularia também no cotidiano do povo juntamente com outras canções, profanas ou não, cultivava enfaticamente as saudades de Jerusalém. Porque, de alguma forma, 143 144 145 Em um curioso artigo sem grandes méritos filológicos ou literários, mas com interessante respaldo técnico, por ter por autores professores de medicina, encontro a associação dos “sintomas” apresentados nos versos 5 e 6 como indicadores de um “acidente vascular da artéria cerebral média esquerda, levando a afasia motora com hemiplegia direita” (cf. RESENDE; WEBER, 2008). Esse diagnóstico não retira força da imagem poética, mas sugere que o salmista estaria descrevendo uma imagem reconhecível em sua experiência e também na nossa. O tema da vingança é marcante nos últimos versos. No verso 8, se explicita a expectativa de retribuição. A mesma, ou uma semelhante, se expressa também na cena violenta descrita pelo verso 9. Ao menos lexicalmente (talvez também como metáfora), o ato brutal pode ser visto como um retribuição proporcional. O verbo pn (naphats) que traduzi por “despedaçar”, também pode significar algo como “dispersar”, com referência a um povo ou rebanho. Assim acontece em Isaías 11:12, em que se lê: “E os dispersos (  - u-nphutsot) de Judá ajuntarei!”. Schökel e Carniti vão por esse caminho: “Podemos imaginar-nos os desterrados repartidos em grupos. Os que encontraram nova pátria na Babilônia: família, negócios, bem-estar, inclusive práticas religiosas. Os desesperados ou resignados inertes que pensam que tudo terminou, ainda que seja por culpa própria. Os que continuam fiéis ao passado político e religioso e cultivam a esperança. Os três grupos formam o fundo da pregação de Ezequiel e do Segundo Isaías, e explicam as invectivas, as chamadas à esperança, a polêmica com os deuses pagãos. O conteúdo das cartas de Jeremias (Jr 29) pode ter contribuído a fomentar a esperança. Quando Ciro promulga seu edito de tolerância e repatriação, só voltarão os que cultivaram a esperança e a saudade: 'todos os que se sentiram movidos por Deus' (Esd 1,5).” (SCHÖKEL, 1998, p. 1562). 85 Jerusalém, como objeto da saudade e da expectativa do retorno, possibilitava a existência e o viver cotidiano em uma situação de paz, sem que se perdesse a noção de pertencimento étnico, a referência a algo externo que dava ao povo da Judeia uma especificidade no meio da Babilônia. Também nisso, a carta e o salmo são, em última instância, semelhantes ou, ao menos, complementares; e a leitura de um deve levar em consideração a existência do outro. 2.2 Fílon e o judeu de colônia ¹Ioudai¿ouj ga\r xw¯ra mi¿a dia\ poluanqrwpi¿an ou) xwreiÍ xwreiÍ. hÂj ai¹ti¿aj eÀneka ta\j plei¿staj kaiì eu)daimonesta/taj tw½n e)n Eu)rw¯pv kaiì ¹Asi¿# kata/ te nh/souj kaiì h)pei¿rouj e)kne/montai mhtro/polin me\n th\n i¸ero/polin h(gou/menoi, kaq' hÁn iàdrutai o( tou= u(yi¿stou qeou= newÜj aÀgioj, aÁj d' eÃlaxon e)k pate/rwn kaiì pa/ppwn kaiì propa/ppwn kaiì tw½n eÃti aÃnw progo/nwn oi¹keiÍn eÀkastoi patri¿daj nomi¿zontej, e)n aiâj e)gennh/qhsan kaiì e)tra/fhsan: ei¹j e)ni¿aj de\ kaiì ktizome/naj eu)qu\j hÅlqon a)poiki¿an steila/menoi, toiÍj kti¿staij xarizo/menoi. Pois, pela grande quantidade de pessoas, uma única região não contém os judeus. Por essa causa, as muitas e prósperas regiões na Europa e Ásia, tanto nas ilhas quanto nos continentes, eles habitam, considerando, por um lado, como cidade-mãe a cidade sagrada, onde está estabelecido o templo santo do Deus altíssimo, por outro lado, cada um julgando como pátria as que receberam dos pais, avós, bisavós e de ascendentes ainda mais acima para morar, nas quais foram gerados e criados. E a algumas, inclusive, quando fundadas, chegaram imediatamente, tendo organizado uma colônia, sendo agradáveis aos fundadores. (Flacc. 46) Esse trecho de Contra Flaco talvez seja o mais evocado, quando se busca uma compreensão do posicionamento de Fílon com respeito à diáspora. E, de fato, é um bom começo para a presente reflexão, pois, em poucas palavras, vislumbramos a versão de Fílon sobre o motivo da presença de judeus fora da Judeia e uma proposta para a compreensão da relação desses judeus para com a terra em que vivem. Não há qualquer relação entre a saída dos Judeus de sua terra de origem com a atuação de uma teodiceia. Eles simplesmente não cabem na Judeia, pois não caberiam em nenhum país individualmente.146 De fato, Fílon não vê necessidade de uma explicação complexa, de uma teoria da diáspora, porque não percebe as comunidades da diáspora como condenadas a viver um judaísmo fragmentado ou 146 O mesmo motivo da grande quantidade de pessoas é apresentado por Fílon em Hypoth. 6 como uma das justificativas para a saída do povo judeu do Egito. O contexto é claramente apologético, o que, em alguma medida, também ocorre no trecho agora estudado. A abundância de pessoas aparece como justificativa de uma movimentação populacional livre de implicações éticas negativas. 86 desconectado, e nisso ele parece assemelhar-se aos demais judeus que viviam em colônias no Mediterrâneo (cf. GRUEN, 2002, p. 243). Ademais, os judeus que vivem agora em outras terras, as receberam de seus antepassados e as reconhecem como sua pátria. Seus pais, avós e outros antes desses viveram nesses lugares. Eles nasceram ali e ali foram criados. Não se trata de terra estranha, como a Babilônia no Salmo 137. Ao contrário, eles estão tranquilos em suas cidades e talvez não lhes parecesse estranho nem mesmo se lhes fosse pedido que orassem pelos governantes gentios.147 Não obstante, no mesmo trecho, lemos a menção de Jerusalém como metrópolis, cidade-mãe desses judeus, inclusive porque ali está o Templo do Deus altíssimo. A relação dos judeus helenísticos para com o Templo e a cidade de Jerusalém foi considerada por Daniel Schwartz a partir da pergunta: “Templo ou Cidade: O que os judeus helenísticos viam em Jerusalém?” Ele conclui que, no âmbito do judaísmo helenístico, percebe-se uma mudança de foco, do Templo para a cidade de Jerusalém. Isso teria acontecido, por um lado, pela incongruência para com o ambiente intelectual helenístico da ideia de que Deus habitasse um espaço limitado, o Templo. Por outro lado, pela alta valorização das cidades na tradição grega e helenística (SCHWARTZ, 1996). Quanto a Fílon, Schwartz enfatiza que, o mais das vezes, ele espiritualiza a noção de Templo e Cidade de Deus, o que indicaria que trechos como os que evoco neste capítulo (de Legatio ad Gaium e In Flaccum) seriam exceções (SCHWARTZ, 1996, p. 119-120).148 É preciso lembrar, contudo, que a explanação de algo como espiritual, para Fílon, não exclui seu contra-ponto material. Assim como a interpretação alegórica das Leis, não anula a necessidade de seu cumprimento literal. Deixar de perceber essa peculiaridade importante das leituras de Fílon pode nos levar a conclusões precipitadas. Andrea Lieber, por exemplo, ao discutir justamente a relação da Diáspora no pensamento de Fílon com Jerusalém e o Templo, chega a pensar que “a alegoria de Fílon alcança uma 147 148 Cf. Virt. 105. Comentando leis da Torah a respeito da maneira como deveriam ser recebidos os estrangeiros que se achegassem à terra, Fílon observa que os que se achegam devem prestar alguma honra aos anfitriões, se estes os recebem bem. Ele parece referir-se especificamente aos prosélitos (cf. 102-103), mas, ao mesmo tempo, apresenta a instrução como própria da filantropia e, com isso, parece entender a amplitude do princípio. Cf. Também Flacc. 49, em que Fílon observa que os judeus honravam a família imperial em suas sinagogas. Outra observação que pode servir para diminuir a importância do Templo para Fílon diz respeito ao fato de que “o lugar sagrado e objeto de alegorização mais frequentado é a tenda do tabernáculo que Moisés construiu no deserto” [el lugar sagrado y objeto de alegorización más frecuentado es la tienda del tabernáculo que construyó Moisés en el desierto] (ALESSO, 2007, p. 13), e não o Templo. Contudo, deve-se observar que, como Fílon alegoriza predominantemente a partir da LXX, é completamente esperado que o Tabernáculo, não o Templo, figurasse com mais frequência em suas interpretações. 87 verdadeira democratização do sacerdócio”149 (LIEBER, 2007, p. 209). Jutta Leonhardt-Balzer corrobora minha afirmação ao evidenciar a relevância social dos ritos em seu sentido literal, ressaltando que o sentido espiritual que Fílon atribui aos mesmos não diminui a importância de sua realização histórica repetidas vezes (LEONHARDT-BALZER, 2007, p. 40-43). Allen Kerkeslager também afirma a importância simbólica do Templo para grande parte dos judeus ao longo da Antiguidade, mesmo entre os que não chegavam a fazer a peregrinação a Jerusalém, embora lembre que alguns se opunham ao mesmo (KERKESLAGER, 1998, p. 122). Templo e cidade são importantes também em sua concretude. Então, temos uma patrís e uma metrópolis. Ou melhor, uma metrópolis e uma significativa gama de possíveis patrídes. Fílon parece mobilizar uma configuração diferenciada, ao menos terminologicamente, que explicita o que se poderia chamar de “dupla lealdade” 150, pois, como observa Erich Gruen, é recorrente nos textos judaicos helenísticos o tema da Palestina como patrís (GRUEN, 2002, p. 240). Essa relação com a patrís não é necessariamente equivalente à noção moderna de patriotismo, que é marcado por um sentimento de amor e devoção. Nisso, concordo com a ressalva de Isaiah Gafni (GAFNI, 1997, p. 47). No entanto, ainda que essa declaração da cidade de residência como pátria tenha implicações mais práticas que sentimentais, sua importância não deve ser negligenciada. Gafni diz que o que é implicado pode ser “meramente que os judeus – como outros – se relacionam com o lugar de sua residência da maneira própria, pela manifestação do requerido grau de lealdade e devoção para o bem estar e a segurança da patrís”151 (GAFNI, 1997, p. 47). Compreendo que a frase se acomoda bem na argumentação do pesquisador, mas o termo “meramente” ainda assim me parece desnecessário. A declaração de Alexandria como patrís pode ser bem pragmática e até mesmo querer transparecer uma lealdade judaica, mas não se reduz a fins apologéticos. Podese entrever na referência aos antepassados e mesmo no fato de que os judeus habitantes dessas diferentes patrídes foram gerados e criados ali uma relação de apego, mesmo porque a vida dessas pessoas estava cotidianamente ligada a seu lugar de residência. Por isso, a peregrinação com vistas a prestar sacrifício no Templo pode ser apresentada por Fílon como um tipo de 149 150 151 Minha tradução de: Philo's allegory accomplishes a true democratization of the priesthood. “Theirs is thus a double loyalty” (HORST, 2003, p. 143). Minha tradução de: merely that Jews – like other – relate to their place of residence in the proper manner, by evincing the requisite degree of loyalty and devotion to the well-being and security of the 'patris'. 88 teste para a verificação da boa disposição do homem. 152 Deixar seu lugar de residência e viajar longamente para prestar o sacrifício não é pequena prova de devoção. Nas suas palavras: o( ga\r mh\ me/llwn qu/ein eu)agw½j ou)k aÄn u(pomei¿nai pote\ patri¿da kaiì fi¿louj kaiì suggeneiÍj a)polipwÜn ceniteu/ein, a)ll' eÃoiken u(po\ dunatwte/raj o(lkh=j a)go/menoj th=j pro\j eu)se/beian u(pome/nein tw½n sunhqesta/twn kaiì filta/twn wÐsper tinw½n h(nwme/nwn merw½n a)parta=sqai. Pois aquele que não está disposto a sacrificar de modo puro não suportaria ir ao estrangeiro, deixando para trás a pátria, amigos e parentes, mas é verossímil que permaneça, levado por uma atração mais forte do que aquela direcionada à devoção, em vez de afastar-se do que lhe é mais habitual e mais amado, como se fossem partes que se unificaram. Spec. 1.68 Certamente, há uma percepção de pertencimento e acomodação no lugar de residência, uma ligação com a patrís, ainda que essa ligação não se traduzisse em uma devoção intensa e sentimentalista e não fosse a mais importante na definição das identidades. Se, para Fílon, a terra onde se vive pode ser identificada como pátria, foi preciso encontrar outro termo e outra concepção para a cidade de Jerusalém. Que concepção seria esta? Até que ponto se ligam emocionalmente à metrópolis? Existe um desejo de abandonar a pátria e retornar definitivamente para a metrópolis? Começarei por esta última pergunta. Harry Wolfson entende que, por causa das dificuldades inerentes à vida em diáspora, sobretudo a possibilidade de contaminação com os costumes gentios, o desejo do retorno, inclusive marcado por uma era messiânica, estava fortemente presente em Fílon. Ele baseia sua argumentação sobretudo em um trecho de Sobre prêmios e penas, no qual Fílon realmente parece indicar a esperança do retorno a partir da interpretação de Números 24:7 (WOLFSON, 1982, p. 395ss). No entanto, as conclusões apontadas não convencem de imediato, pois qualquer leitor da obra de Fílon percebe que, embora seja aparentemente correta a leitura de Wolfson, o trecho abordado parece destoar do conjunto da obra. 153 Por 152 153 Sobre a peregrinação ao Templo de Jerusalém, cf. KERKESLAGER, 1998, p. 104-109). O autor observa que a viagem não era realizada anualmente por todos os judeus da diáspora, mas somente por alguns, geralmente homens, devido aos altos custos envolvidos. O fato de que Fílon se refere a um festival que teria presenciado entre os “terapeutas” (Cont. 64-89), que ele supõe tratar-se da Páscoa, possibilita a afirmação de que, ao menos uma vez, ele teria considerado possível fazer uma peregrinação mais curta, para essa comunidade sectária localizada perto de Alexandria, em vez de empreender uma longa jornada a Jerusalém (KERKESLAGER, 1998, p. 107). Com isso, o autor pretende demonstrar que a peregrinação anual não era vista como obrigatória, havendo outras opções mais acessíveis, e que também fomentavam a constituição de uma identidade judaica. Thomas H. Tobin parece ter a mesma impressão, quando diz: “Não obstante, se De praemiis não tivesse sido preservado, ninguém teria imaginado que Fílon tivesse escrito esse tratado” [Nevertheless, had De Praemiis not been preserved, no one would had imagined Philo had written suach a treatise] (TOBIN, 1997, p. 94). 89 isso, convém atentar para as críticas de Collins, que observa algumas debilidades na leitura do outro filonista. Segundo ele, Fílon aponta mais para a vitória da virtude do que para a intervenção de um rei messias. Além disso, o tratado como um todo apontaria mais para uma distinção entre virtuosos e maus do que para uma definição estritamente étnica. Ademais, dever-se-ia considerar que, para Fílon, o significado simbólico dessa recompensa, que Wolfson identifica fortemente com uma era messiânica, é mais importante que os eventos realizados no mundo cotidiano (COLLINS, 2000, p.134-136). Ainda assim, Collins reconhece que há uma dimensão política nessa escatologia de Fílon, mas observa: A escatologia de Fílon difere daquela de muitos escritores apocalípticos e da maior parte dos livros sibilinos não tanto nos conceitos em si, mas no grau de urgência. A escassez de referências à escatologia nacional mostra que ela não estava no centro de seu pensamento. Fílon fala de Jerusalém como a metrópolis dos judeus, mas admite que “eles tinham fortemente aquela terra como sua terra pátria ... na qual eles nasceram e foram criados” (Flacc. 46). Fílon se mostra ávido por estabelecer os direitos dos judeus nas terras em que eles são “colonos e amigos, avidamente buscando igualdade de privilégios como habitantes e já estando próximos, no status, a cidadãos, diferindo pouco dos nativos” (Mos. 1.35). A conquista de direitos em Alexandria está de longe mais alto, na agenda de Fílon, do que o retorno a Jerusalém. (COLLINS, 2000, p. 136-137)154 Parece que Wolfson enfatiza consideravelmente algo que, na obra de Fílon em si, não recebe tanta ênfase. Mas Collins pode, também ele, ter se precipitado ao considerar a diferença entre a escatologia de Fílon e dos oráculos Sibilinos como uma questão de urgência e não de conceito. E essa comparação me leva a um artigo de Thomas H. Tobin, no qual o estudioso jesuíta compara justamente a escatologia de Fílon, a partir do tratado Sobre Prêmios e Penas, com aquela encontrada nos oráculos sibilinos. Tobin propõe uma interpretação a meu ver muito instigante e pertinente para esse discurso destoantemente escatológico de Fílon. Em linhas gerais, entende que o alexandrino deve ter composto sua escatologia em contraposição aos oráculos sibilinos, no intuito de demonstrar que uma escatologia correta deveria ater-se aos livros de Moisés como os verdadeiros oráculos e que ela deveria ser conquistada pela observação da Lei por parte dos judeus, sem derramamento 154 Minha tradução de: Where Philo's eschatology differs from that of many apocalyptic writers and from that of most of the sibylline books is not so much in the actual concepts as in the degree of urgency. The paucity of references to national eschatology shows that it was not at the heart of his thought. Philo speaks of Jerusalem as the metropolis of the Jews, but he admits hat “they severally hold that as their fatherland ... in which they were born and reared” (In Flaccum 46). Philo is eager to establish the rights of the Jews in the lands in which they are “settlers and friends, eagerly seeking equality of privilege with burgesses and already being near in status to citizens, differing but little from natives” (De Vita Mosis 1.35). Attainsment of rights in Alexandria is far higher on Philo's agenda than return to Jerusalem. 90 de sangue, e não pela vingança de povos inimigos específicos, por meio de batalhas sangrentas. Além disso, ele assinala que Fílon teria se contraposto aos oráculos sibilinos, isto é, teria oferecido um caminho também escatológico, comparável àquele, mas diferente, para evitar que a popularização desses oráculos engendrasse algum levante da população judaica contra as autoridades romanas, o que, sem dúvida, não lhe pareceria proveitoso (TOBIN, 1997). Ora, considerando acertada a leitura de Tobin, entendo que o trecho que parecia destoante do conjunto da obra de Fílon pode se explicar por meio da observação de seu ambiente discursivo mais amplo e da situação social que ele vislumbrava. E a observação de Collins permanece, em parte, pertinente, mas agora pode ser completada: a pouca atenção que o alexandrino dedicou à escatologia no plano político realmente demonstra que sua agenda o encaminhava a outras questões, e, completando, mesmo quando se dedicou a ela, sua intenção última parece ter sido acalmar os ânimos, de modo que sua verdadeira agenda não fosse impossibilitada por causa de perturbações sociais.155 Resta, ainda, refletir sobre o lugar de Jerusalém como metrópolis. Se o objetivo de Fílon não era promover uma ardente esperança de retorno, porque venerar a cidade? Seria uma atitude estranha cultivar uma saudade sem que houvesse realmente uma vontade de retorno? Então, que lugar é esse de Jerusalém para o judaísmo de língua grega? John Barclay explica o “forte apego emocional à terra” expresso na literatura da Diáspora com base em três dados: a centralidade de Jerusalém expressa nas Escrituras, a celebração anual da Páscoa e as peregrinações, além do próprio nome da etnia ( I¦oudai¤oi ioudaîoi), que os relacionava (etimologicamente) com a terra ( I¦oudai¢a - Ioudaía) (BARCLAY, 1996, p. 421-422)156. Embora não seja possível avaliar com precisão a intensidade da participação dos judeus da diáspora nas peregrinações, ou a maneira como se liam nas diversas sinagogas os textos da Bíblia que exaltam Jerusalém, a observação de 155 156 Não se deve, contudo, desconsiderar a relevância histórica e comunitária do empreendimento contemplativo e do progresso da alma descrito nas interpretações alegóricas de Fílon. O desenvolvimento individual de cada ser humano pode ser visto como um caminho para a consumação de um tempo escatológico, não após a morte ou o fim deste mundo, mas na própria história do mundo (pela adoção da Lei mosaica por todos os povos). A esperança escatológica pode não ser, afinal, um corpo estranho no corpus filônico, se seus textos forem lidos atentamente. A ênfase dada é que pode ser específica e destacável em um trecho específico, como acontece em Praem. (MARTÍN, 2010, p. 192-193). Daniel Schwartz chega a mencionar a possibilidade de que (I¦oudai¤oi – ioudaîoi) proviesse de I¦oudai+smo¢» (ioudaismós), mas, dada a pequena evidência de difusão deste último termo na Antiguidade, não insiste na hipótese (SCHWARTZ, 1996, p. 118). 91 Barclay aponta para possíveis elementos constitutivos de uma continuidade do judaísmo, apesar de seu deslocamento territorial. No entanto, a centralidade de Jerusalém pode ir além de uma questão emotiva ou de uma fidelidade ao texto sagrado, uma vez que tem implicações (talvez explicações, como se há de ver) no contexto contemporâneo dos judeus da diáspora. Peder Borgen observa que Fílon dá evidências de que “Jerusalém era o centro de uma rede que ligava conjuntamente os judeus da Palestina e os da Diáspora” 157 (BORGEN, 2005, p. 20). Em seguida, o pesquisador norueguês nota que Fílon compreendia os judeus como uma só nação, não importando se viviam na Judeia ou na Diáspora (BORGEN, 2005, p. 21). Ou seja, a diferenciação clara entre dois judaísmos pode ser mais uma construção posterior do que uma realidade percebida pelos judeus do Segundo Templo. Por isso, Gruen chega a afirmar que “Eles [os judeus] não se descrevem como parte de uma diáspora” 158 (GRUEN, 2002, p. 243). E adiante ressalta a interdependência existente, e, por conseguinte, a importância de Jerusalém: A auto-percepção dos judeus do Segundo Templo projetava uma estreita solidariedade entre centro e diáspora. As imagens de exílio e separação não os perseguiam. Eles não eram compelidos a escolher entre a restauração da Eretz Israel e o recurso à Palavra como sua “pátria portátil”. O que afetava os habitantes de Jerusalém afetava os judeus em todo lugar. O tema da experiência entrelaçada e da identidade interdependente é reiterado com impressionante frequência e variedade. 159 (GRUEN, 2002, p. 247) O que afeta Jerusalém afeta a todos os judeus, sem delimitação de fronteira. É o que percebemos claramente na narrativa que Fílon apresenta em Embaixada a Gaio. Mas embora Jerusalém preocupe aos judeus da Diáspora, inclusive territorialmente, no sentido de que se preserve o Templo e a cidade, não os preocupa tê-la como lugar de residência (GRUEN, 2002, p. 252).160 No caso de Fílon, contudo, é possível alcançar uma maior compreensão de sua 157 158 159 160 Minha tradução de: ... Jerusalem was the center of a network which tied the Palestinian and the Diaspora Jews together. Minha tradução de: They did not describe themselves as part of a diaspora. Minha tradução de: The self-perception of Second Temple Jews projected a tight solidarity between center and diaspora. The image of exile and separation did not haunt them. They were not compelled to choose between restoration to Eretz Israel and recourse to the Word as their “portable homeland.” What affected the dwellers in Jerusalem affected Jews everywhere. The theme of intertwined experience and interdependent identity is reiterated with impressive frequency and variety. Convém assinalar que se constata certa escassez de preces que pedem o reajuntamento dos judeus na Judeia no âmbito das diásporas. Isso contrasta com a abundante ocorrência desse tipo de pedido em textos oriundos da própria Judeia, inclusive entre os escritos da seita de Qumran, cujos membros se consideravam voluntariamente exilados por causa da corrupção do Templo (cf. CHAZON, 2007). 92 definição de Jerusalém como cidade-mãe. Maren Niehoff propõe uma leitura bastante elaborada para o problema. Um diferencial de sua abordagem é a relevância que ela encontra no contexto imperial romano para a compreensão da obra de Fílon. Nesse sentido, observa que o papel central que Fílon concede a Jerusalém pode ser compreendido a partir da relação das colônias gregas para com as cidades de origem e, em especial, em comparação com a posição de Roma no Império. Assim, “a lealdade a Jerusalém proporcionaria a eles [judeus educados] o mesmo tipo de identidade que a cidadania romana – uma identidade que, apesar de ser étnica na origem, transcendia as estreitas fronteiras de um estado específico e criava o senso de comunidade mundial”161 (NIEHOFF, 2001, p. 36). Assim, a centralidade de Jerusalém não proporciona somente uma piedade religiosa direcionada para aquela cidade, mas também uma aproximação com o padrão romano de identificação, além de uma concepção de comunidade que transcende as fronteiras e as questões locais (cf. NIEHOFF, 2001, p. 44). Torrey Seland aborda a questão a partir de uma perspectiva diferente: os estudos pós-coloniais. Ele questiona pontos da argumentação de Maren Niehoff, como sua suposição de que os leitores de In flaccum e Legatio seriam somente judeus, para os quais Fílon escreveria com o objetivo de centrar suas identidades na referência àquela cidade (SELAND, 2010, p. 26). Contudo, apesar das divergências, ele percebe que Niehoff observou aspectos importantes, que deveriam, segundo ele, ser interpretados a partir da noção de mimetismo e hibridação. Seland afirma, de modo compatível com o proposto por Niehoff, que “Fílon está mimetizando os processos de colonização, tanto o grego quanto o romano” (SELAND, 2010, p. 26)162. Além da diferença na terminologia utilizada, a grande variação entre os resultados dos dois pesquisadores reside no fato de que Torrey Seland entende que Fílon está escrevendo em resposta ao Império, como em uma escrita de oposição, na qual ele lança mão do recurso da mimetização, o que levaria à hibridação e que é recurso comum em contextos semelhantes ao dele. Sendo assim, Fílon não estaria preocupado em conceder certa estratégia identitária aos colegas judeus, mas em informar os Romanos, em tom ameaçador, que os judeus estavam espalhados, à maneira das colônias, por todo o mediterrâneo, e que, por conseguinte, incomodá-los em seu monoteísmo poderia gerar conflitos em todas as partes do Império Romano (SELAND, 2010, p. 27). 161 162 Minha tradução de: Loyalty to Jerusalem would provide them with the same kind of identity as Roman citizenship – an identity which, though ethnic in origin, transcended the narrow boundaries of a specific state and created the sense of world-wide community. Minha tradução de: Philo is here mimicking the colonization processes, both Roman and Greek. 93 Entendo que, embora seja sim possível pensar que Legatio e In Flaccum foram escritos com um público leitor romano em mente, é inevitável considerar que Fílon sabia que seu texto seria lido por colegas judeus. Assim, ao longo da escrita, ele teria um duplo leitormodelo em mente, o que poderia gerar uma dupla estratégia. Ao mesmo tempo em que ele responde, por meio de uma mimetização, ao Império, ele se comunica com os seus. Inclusive porque, o próprio ato de “escrever em resposta ao Império”, quando lido pelos que estão de alguma maneira subjugados, produz mudança em sua maneira de ver a si mesmos, não somente o Império. Niehoff e Seland, assim, apresentam hipóteses não completamente excludentes. Sarah Pearce, contudo, é mais enfática em sua leitura contrária à de Niehoff. Em um artigo dedicado exclusivamente a Jerusalém como cidade-mãe na obra de Fílon, a pesquisadora britânica dedica algumas páginas para assinalar debilidades da leitura de Niehoff. Entre outros pontos problemáticos, que sugeririam que a hipótese se baseia não nas evidências textuais somente, mas também em conjecturas, Pearce aponta para o fato de que a ideologia romana a respeito da identificação com Roma não era unânime, e que, podia apontar para uma realidade muito diferente de qualquer uma que fosse aplicável aos judeus: A ideologia romana (de forma alguma acolhida positivamente por todos os romanos) expressa a dominação política de Roma no mundo e a subjugação de povos e terra ao poder de Roma, e não uma vasta expansão dos cidadãos romanos. No tempo de Fílon, é claro, os cidadãos romanos não constituíam nada parecido com uma vasta expansão, mas eram, pelo contrário, uma minoria da população do Império.163 (PEARCE, 2004, p. 30) Sarah Pearce propõe, então, que se leia a referência a Jerusalém como cidade-mãe em Fílon não a partir de uma comparação com a posição de Roma, o que seria ir além dos textos, mas como mobilização de termos e conceitos oriundos do próprio texto bíblico (cf. Is. 50:1; Sal. 86:5 etc.), que em algum momento apresenta inclusive o termo utilizado pelo alexandrino (cf. Is. 1:26 na tradução grega), ainda que Fílon possa certamente usar esses termos tendo em mente a lógica das colônias gregas, que seria um ponto de comparação mais apropriado que Roma e seu Império (PEARCE, 2004, p. 33-34). Além disso, Pearce observa que, em alguns trechos, Fílon parece referir-se a Jerusalém como metrópolis para assinalar sua função como de uma capital somente, o que seria comum entre outros falantes de grego no 163 Minha tradução de: The Roman ideology (by no means embraced positively by all Romans) expresses Rome's political domination in the world and the subjugation of peoples and land to Rome's power, and not a vast expanse of Roman citizens. In Philo's time, of course, Roman citizens did not constitute anything like a vast expanse but were rather a minority of the Empire's population. 94 Império Romano ao indicarem a cidade central de um povo, com um grande templo geralmente, sem que isso implique em colonialismo (PEARCE, 2004, p. 34-35). Há, ainda, uma observação importante na exposição de Pearce que me parece especialmente útil. Tanto em Flacc. 46 quanto em Legat. 281-282, dois passos em que Fílon, em princípio, pareceria utilizar o termo metrópolis para ressaltar a centralidade de Jerusalém, não há uma exaltação da importância da cidade: O contexto da afirmação de Fílon mostra que ele não retrata Jerusalém como tendo maior ou menor significância que as pátrias ou colônias. Pelo contrário, a μητρόπολις é mencionada para introduzir as colônias, sobre as quais Fílon foca a atenção. A ênfase é sobre o amplo fenômeno dos judeus que se sentem enraizados em outras terras onde, como em Alexandria, eles estão preparados para defender suas instituições até a morte. 164 Assim, para Maren Niehoff, apontar para Jerusalém e exaltá-la como centro do judaísmo pode não significar simplesmente um desejo de retorno, mas o contrário, uma estratégia para conciliar a dispersão com a unidade, tornando possível a manutenção de uma sem prejuízo da outra. Torrey Seland veria nisso, também, uma maneira de afirmar essa unidade e amplitude do povo judeu diante dos que regem o poder político e militar. Já Sarah Pearce pensa em uma continuidade com relação à representação de Jerusalém na Bíblia, mas sem que esta cidade receba uma exaltação especial, pois especialmente em foco estaria, pelo contrário, a exposição das numerosas colônias, surgidas a partir dessa capital. Tendo a concordar com a cautelosa leitura de Pearce, que mitiga a impressão inicial de que a referência a Jerusalém como metrópolis por parte de Fílon possa ser profundamente significativa, laudatória ou submissa. Desfaz-se a necessidade de se conjecturar a respeito de uma estratégia complexa de identificação arquitetada pelo alexandrino, a qual, embora possível, permanece improvada a partir da leitura dos textos em si. 165 Fílon diz: Jerusalém é a 164 165 Minha tradução de: The context of Philo's statement shows that he does not portray Jerusalem as having greater or less significance than the fatherlands or colonies: rather, the μητρόπολις is mentioned in order to introduce the colonies on which Philo focuses attention. The emphasis is on the widespread phenomenon of Jews who feel rooted in other lands where, as in Alexandria, they are prepared to defend their institutions to the point of death. Não estou, ressalto, negando a possibilidade de que a proposta de Maren Niehoff seja pertinente. Apenas indico que a tomo como possibilidade, não como fato comprovado pelos textos. E mais, a tomo como uma possibilidade entre outras. E parece-me que, ainda que Fílon tenha em mente a relação de Roma com o Império ao falar da relação de Jerusalém com suas colônias – pois não julgo a imprecisão da comparação como fator determinantemente impossibilitador da mesma – essa ideia não é mobilizada de forma enfática nos textos, não podendo ser considerada, portanto, o cerne da estratégia do alexandrino. Não obstante, minha resistência a essa leitura não se deve a qualquer dúvida quanto à possibilidade de que Fílon tenha acesso às ideias desenvolvidas entre os pensadores romanos que escreviam em Latim. Por isso, no capítulo anterior, pude concordar com outra leitura de Niehoff que pressupõe esse tipo de relação. 95 capital. Mas a frase completa seria algo assim, com as colônias como tópico: Muitas colônias há, das quais Jerusalém é a capital. A saudade dessa capital não é, portanto, permeada por uma dor que gera inatividade de um indivíduo ou por uma ativa desvalorização do lugar em que ele está. Conforme venho pensando neste texto, tanto no que se refere ao exilado na Babilônia quanto ao disperso no mundo greco-romano, ela manifesta-se, não como uma experiência sentimental do indivíduo, mas como uma disposição comunitária, que parece ser cultivada de diferentes formas, quer pela profecia, pelo lamento, ou pela exposição das Escrituras. E digo saudade, não nostalgia, porque uma interpretação etimológica deste último termo ( no¢sto» - nóstos, “retorno”, e a¦lgh¢ - algué, “dor”) poderia levar à inexata ideia de que a manutenção de Jerusalém no pensamento precisaria se manifestar como uma espera dolorosa pelo retorno. Conclusão A postura de Fílon apresenta uma diferença e uma semelhança para com a carta. Ou melhor, apresenta diferença justamente na semelhança. Tanto Fílon quanto o autor da carta procuram acalmar os ânimos ao lidar com o risco trazido pelos anúncios de um desenrolar escatológico eminente. Mas o fazem de modo diverso. Na carta, encontramos a denúncia aberta de uma falsa profecia, que deveria ser destituída de seu valor profético e substituída pelo novo anúncio, que informava justamente o adiamento dos eventos escatológicos. O alexandrino, por sua vez, apresenta uma escatologia baseada na hermenêutica da Torah, que se contrapõe à popular e mais animosa escatologia sibilina. Ambos, Fílon e a carta, procuram respaldar sua versão da escatologia em uma autoridade que faltaria ao anúncio a que se opõem. O profeta se respalda na afirmação de que suas palavras constituem a verdadeira profecia. O hermeneuta, como não poderia ser diferente, encontra seu argumento no fato de que ele parte do Livro. Se considerarmos o desenvolvimento do judaísmo na Babilônia, talvez em uma época não muito posterior à da carta, outra semelhança com diferença poderá ser observada. Tanto os judeus da Babilônia quanto os judeus de Alexandria estão bem ligados a seus lugares de residência e procuram até mesmo afirmar essa ligação e certa lealdade. Mas Isaiah Gafni parece ter alguma razão ao contrapor as motivações dessa alegação: A questão aqui não era a necessidade de convencer gentios (ou judeus) da lealdade e honrável pedigree histórico e social da comunidade judaica local, mas, antes, criar e manter um suporte teórico para a emergente e crescente 96 assertividade judaica babilônica diante de outras comunidades judaicas, mais notavelmente aquela da terra de Israel (GAFNI, 1997, p. 57). 166 A constatação parece dar conta do grande material disponível de fontes judaicas da Babilônia que chegavam a afirmar a maior pureza do judaísmo praticado naquele lugar, inclusive sobre o praticado na Judeia (cf. GAFNI, 1997, p. 52ss). Decerto, como antes assinalei, parece-me prudente não atribuir a afirmação de lealdade local, ao menos no caso de Fílon, exclusivamente a uma intenção apologética. Não obstante, a leitura de Gafni para o caso babilônico me leva a mencionar outro dado importante no pensamento de Fílon, em que se pode entrever uma comparação do seu judaísmo com o da Judeia: a inspiração da tradução grega da Torah (Mos. 2.40). Embora não haja uma afirmação de superioridade, há sim a de igualdade de importância da leitura praticada no judaísmo helenofônico de Alexandria. Se os primeiros cativos na Babilônia recebiam a notícia que poderiam enviar suas mensagens ao Eterno em oração, os habitantes judeus de Alexandria sabiam por Fílon que poderiam receber a mensagem do Eterno em sua própria língua, o grego, sem prejuízo algum em comparação com os leitores da Judeia. O Templo está em Jerusalém, mas o Livro os acompanha, o que torna o cotidiano religioso possível, mesmo que, em ocasiões, a custosa viagem se faça necessária e uma (em certa medida) importante referência identitária esteja entre distantes e saudosas colinas. 166 Minha tradução de: The issue here was not the need to convince Gentiles (or Jews) of the local Jewish community's loyalty and honorable social and historical pedigree, but rather to create and maintain a theoretical underpinning for the emerging and growing Babylonian Jewish assertiveness vis-à-vis other Jewhish communities, most notably that of the Land of Israel. 97 Capítulo 3 Para lá de Nínive: a conversão de não-judeus em Jonas, Rute e Fílon A conversão de não-judeus ao judaísmo e sua integração na sociedade dos hebreus (ou a possibilidade de que isso ocorra) não é um fato unanimemente reconhecido como recorrente na Bíblia hebraica. Parece que, em geral, os dilemas religiosos, as rebeliões e convites à conversão acontecem dentro dos limites do próprio povo de Israel. Mas é possível encontrar no cânon hebraico referências a fenômenos que, em princípio, poderiam ser considerados como conversões coletivas ou individuais. Neste ensaio, abordarei dois textos da Tanakh que lidam de perto com a conversão de não judeus. No livro de Rute, encontro exemplo de conversão individual. Já no livro de Jonas, dois casos de conversão coletiva. 167 Em seguida, estudarei o que Fílon diz sobre os conversos, estabelecendo um possível diálogo entre suas ideias e aquelas comunicadas pelos referidos livros canônicos. Antes, contudo, é necessário introduzir uma questão, não com o objetivo de respondê-la definitivamente, mas para esclarecer o tema da reflexão que inicio: A conversão de não-judeus era algo almejado pelo judaísmo na Antiguidade? O cristianismo nasceu missionário, se considerarmos os relatos do livro de Atos. Mas a questão não é tão clara quando se trata do judaísmo antigo, quer seja o dos tempos do primeiro templo, seja o do segundo templo, ou o posterior a sua destruição. Joseph Rosenbloom, citando passagens supostamente universalistas de Isaías e dos Salmos, se mostrava convencido de que a conversão dos gentios aparecia como algo esperado no âmbito da Bíblia hebraica. “O fenômeno da conversão, não formalmente articulado, mas amplamente praticado contudo, foi algo sempre crescente durante o período bíblico” (ROSENBLOOM, 1978, p. 31)168. Semelhantemente, Albert Goldstein havia encontrado grande simpatia na Bíblia Hebraica para com a possibilidade da conversão e 167 168 Os dois livros estão afastados um do outro nas ordens tradicionais do cânone (Rute, na Bíblia Hebraica, aparece entre os demais “escritos”, os ketuvim, entre Provérbios e Cantares, e na Bíblia Cristã, o livro está após Juízes, o que se justifica pelo fato de que a narrativa localiza justamente no tempo dos juízes o seu contexto. Jonas, por sua vez, figura entre os livros proféticos). Mas eles guardam uma semelhança marcante quanto ao gênero literário. Juntamente com Ester, são as únicas narrativas curtas apresentadas sob a forma de livros independentes. Minha tradução de: The phenomenon of conversion, not formally articulated but widely practiced nonetheless was ever-increasing one during the biblical period. 98 integração dos gentios. Sobre Esdras-Neemias, o único livro 169 que, segundo ele, parece apresentar uma nota negativa com respeito ao proselitismo, afirma: Também esses dados são dignos de nota: Esdras-Neemias não tem absolutamente nada a favor ou contra a conversão dessas mulheres e crianças ao judaísmo. O ideal profético do proselitismo simplesmente não entrou em suas mentes afiadamente focadas […] A situação toda é única. Nada do tipo ocorre em outro lugar na Bíblia, nem, até onde concerne ao assunto, em toda a história judaica subsequente. A atitude que Esdras-Neemias tomou contra os estrangeiros como tais é contrária àquela dos seus predecessores bíblicos, e não passou sem ser desafiada por seus sucessores literários. 170 (GOLDSTEIN, 1965, p. 26.) Mais recentemente, Kenton Sparks assinalou que a atitude favorável que se encontra no Deuteronômio com respeito aos “forasteiros” (rg - gerim) facilitava a assimilação de forasteiros não-judeus à comunidade religiosa israelita (SPARKS, 1998, p. 283)171. Assim, a própria Lei favorecia o acolhimento do estrangeiro residente em Israel que quisesse se converter, embora nem todos quisessem. O mesmo autor, baseado em textos de Ezequiel e do Código de Santidade (Lv 17-26), observa que, durante os primeiros tempos do Exílio babilônico, os sentimentos étnicos e os limites que eles traziam se intensificaram, provavelmente motivados pela ameaça de assimilação naquele contexto. Por isso, se enfatizavam marcas de pertencimento, tais como a observação do Shabbath, a preocupação com a pureza ritual e a participação nas atividades comunitárias (SPARKS, 1998, p. 314-315). No entanto, ele observa: […] apesar das primeiras impressões, os fortes sentimentos étnicos dos exilados não os privava de acolher os não-israelitas que desejassem se unir à sua comunidade. Isso era especialmente evidente na atitude muito apoiadora que ambos, o código de Santidade e Ezequiel, têm para com o rg (SPARKS, 1998, p. 315).172 169 170 171 172 Esdras e Neemias, que hoje figuram como livros independentes na maioria das edições da Bíblia, compunham originalmente um só livro na Bíblia Hebraica. Minha tradução de: Also worth noting are these items: Ezra-Nehemiah had nothing at all to say for or against coverting these women and children to Judaism. The prophetic ideal of proselytism just does not seem to have entered their sharply focused minds […] The entire situation is unique. Nothing of the sort occurs elsewhere in the Bible nor, for that matter, in all subsequent Jewish history. The stand which Ezra-Nehemiah took against foreigners as such is contrary to that of their Biblical predecessors, and did not go unchallenged by their literary successors. Muito embora o autor entenda que essas leis de apoio aos gerim surgiram como esforço para facilitar a entrada de forasteiros israelitas do Norte na comunidade. Minha tradução de: in spite of first appearances, the strong ethnic sentiments of the exiles did not prevent them from embracing the non-Israelites who desired to join their community. This was especially evident in the very supportive attitude that both the Holiness Code and Ezekiel had toward the rg. 99 Parece haver acordo quanto à abertura do judaísmo dos tempos bíblicos para a recepção de convertidos. No entanto, isso não indica necessariamente um intento missionário. A conversão era, ao que parece, algo aceitável. Mas, seria algo almejado? Vários autores, como William Braude (BRAUDE, 1940), Bernard J. Bamberger (BAMBERGER, 1968) e Louis Feldman (FELDMAN, 1993,1994)173, responderiam afirmativamente. No mesmo sentido, em um pequeno artigo, o rabino Leonardo Alanati afirma de forma rápida que “...até o século IV da era comum, o judaísmo era proselitista e se esforçava para expandir o número de seus fiéis” (ALANATI, 1993, p. 20).174 Não obstante, a concepção do judaísmo antigo como uma religião proselitista tem sido vista como um erro. Três importantes textos originalmente publicados no início da década de 1990 tratam dessa questão com cuidado e são, a meu ver, imprescindíveis para a discussão. Em 1991, Scot McKnight publica seu livro A Light to the Gentiles [Uma luz para os gentios], no qual analisa variada gama de evidências e defende veementemente que os judeus estavam abertos aos que se aproximavam, considerando-se como luz disponível para os gentios, mas que não se empenhavam em buscar novos adeptos (MCKNIGHT, 1991). No ano seguinte, Shaye Cohen escreveu um artigo intitulado Was Judaism in Antiquity a Missionary Religion? [O Judaísmo na Antiguidade era uma religião missionária?], no qual apresenta de modo sistemático seis possíveis posturas de uma religião para com os convertidos e a conversão. Em um extremo, ele apresenta o primeiro retrato do judaísmo como uma religião verdadeiramente missionária, com uma política bem organizada de expansão pela conversão. No outro extremo, está o retrato do judaísmo como uma religião que não aceita convertidos. Entre os dois polos, estão posturas intermediárias, sendo que somente a segunda concederia, assim como a primeira, o status de "religião missionária" ao judaísmo, com a diferença de que a "missão" seria, no caso da segunda postura, resultado de iniciativas individuais, não de uma iniciativa organizada e sistemática. A terceira postura seria a de um judaísmo aberto aos de fora e ávido por aceitar não-judeus interessados no judaísmo. A quarta e quinta representam atitudes mais fechadas, aproximando-se do extremo da exclusividade absoluta. Cohen considera que o judaísmo só foi agressivamente missionário, enquadrando-se na primeira postura, na época das conquistas dos macabeus, o que teria sido 173 174 Como se verá, Feldman revê seu posicionamento posteriormente. O título do artigo de Alanati “Percorrendo o mar e a terra para fazer um prosélito: Proselitismo judaico no início do cristianismo” remete a Mt 23:15. A respeito desse versículo, que, em princípio, parece indicar a atribuição de uma prática proselitista ao judaísmo farisaico, confira-se o Excursus ao final do capítulo. 100 uma exceção notável. Em seguida, avalia evidências que indicariam o judaísmo na Antiguidade como bem enquadrado na segunda postura, de uma religião missionária, mas não sistematicamente organizada nesse sentido. No fim, ele chega à conclusão de que: [...] tanto na terra de Israel quanto na Diáspora, o judaísmo não era uma "religião missionária". Antes, era aberto aos convertidos e não levantava obstáculos em seu caminho, mas com poucas notáveis exceções ele também fazia pouco ou nada para solicitá-los. As poucas notáveis exceções exemplificam a postura número 2, mas a regra geral é a postura 3, que não é a postura de uma religião missionária (COHEN, S. J. D., 2010, p. 307).175 No mesmo ano em que Shaye publicou seu artigo, Claude Orrieux e Edouard Will lançaram o livro "Proselytisme Juif"? Histoire d'une erreur [Proselitismo judeu? História de um erro], no qual afirmam que nenhum texto concernente aos guerim (TM) / prosélytos (LXX) sugerem a ideia de um "proselitismo" convertedor e que nem o estabelecimento do monoteísmo absoluto refletido nos textos proféticos introduziu uma atividade missionária da parte dos israelitas. Além disso, os dois procuram demonstrar que a atribuição de uma intensa atividade missionária por parte dos judeus do período bíblico e posterior é um erro motivado por questões ideológicas e teológicas do cristianismo, sobretudo de teólogos liberais alemães do século XIX. Uma virtude do livro de Orrieux e Will em comparação com o antecessor escrito por McKnight consiste na atenção que dão às evidências utilizadas contra a tese que defendem, no sentido de demonstrar detalhadamente o erro que entendem existir na interpretação das fontes (ORRIEUX;WILL, 1992). Mais recentemente, de modo harmônico para com essas críticas, Terence L. Donaldson observou que o fenômeno da conversão ao judaísmo tem múltiplos testemunhos textuais e arqueológicos, mas não o atribuiu ao resultado de uma prática missionária, e sim a uma atração dos gentios pelo judaísmo, sobretudo por causa do culto monoteístico, do diferente modo de vida prescrito na Lei, e pelo caráter inclusivo da comunidade. Ele assinalou também, da parte dos judeus, uma comum prontidão em acolher o gentio que se aproximava do judaísmo, oferecer-lhe instrução e encorajamento (DONALDSON, 2007, p. 483-492). Já Louis Feldman indica que mudou sua visão com respeito ao proselitismo judaico. Em artigo relativamente recente, ele afirma que já não encontra evidência de 175 Minha tradução de: […] in both the land of Israel and the diaspora, was not a “missionary religion. Rather it was open to converts and did nothing to raise obstacles in their path, but with a few notable exceptions exemplify stance no. 2, but the overall pattern is stance no. 3, which is not the stance of a missionary religion. (Note-se que o artigo foi originalmente publicado em 1992. O meu acesso ao mesmo se deu por meio de sua reimpressão em uma coletânea de 2010. Por isso, a referência bibliográfica pode parecer destoar da época assinalada em meu texto.) 101 atividade missionária, mas que, na Antiguidade, os judeus se mostravam abertos àqueles que quisessem se converter. E ele vai além e afirma que provavelmente muitos de fato se converteram (FELDMAN, 2006, p. 205-206). Com base em um estudo demográfico fortemente baseado nas informações oferecidas por Josefo, Feldman chega à conclusão de que o grande aumento na população judaica pode ser bem explicado justamente por um grande número de conversos (FELDMAN, 2006, p. 237). Uma questão a pensar seria como haveria tantos convertidos se não havia atividade missionária por parte dos judeus. O autor, primeiramente, observa que não é completamente seguro que não houvesse qualquer material escrito com o intuito de difundir a religião judaica, embora nada que se enquadre de forma definitiva nesse tipo de texto tenha sobrevivido. Além disso, lembra que a maioria dos convertidos eram, provavelmente, iletrados, e que devem ter sido convertidos por contato oral, ainda que não houvesse esforços organizados para tanto (FELDMAN, 2006, p. 243). Essa observação de Louis Feldman é importante. De fato, mesmo o cristianismo, reconhecido como uma religião intensamente missionária desde o princípio, teve no contato oral o grande meio de persuasão para a conversão. As cartas de Paulo, por exemplo, são destinadas a comunidades cristãs já constituídas, mas sua atividade missionária se fazia por viagens e conversas pessoais, se considerarmos os relatos do livro de Atos. Se quiséssemos depender exclusivamente do registro das cartas neotestamentárias, talvez não pudéssemos reconhecer a amplitude da responsabilidade de Paulo na conversão de novos adeptos para o cristianismo incipiente. Portanto, é possível que a difusão do judaísmo não dependesse necessariamente de textos, mas de conversas. Ainda que essas talvez não tenham sido desenvolvidas por um missionário especialista como Paulo, mas por habitantes de uma cidade para com seus vizinhos gentios.176 Feldman, contudo, tem o cuidado de indicar somente o que os indícios 176 Neste ponto, considero conveniente observar que, mesmo depois dos primeiros anos da década de 1990, nem todos os pesquisadores da área se viram convencidos da inexistência de um proselitismo judaico. James C. Paget, por exemplo, entende que os argumentos contrários não se baseiam em evidências (ou ausência de evidências) suficientemente significativas. Ele percebe, então, no proselitismo cristão, uma apropriação de prática já colocada em andamento pelo judaísmo anterior (PAGET, 1996). Embora o artigo de Paget apresente uma argumentação cuidadosamente estruturada e, em alguns momentos, bastante convincente, prefiro não me unir a ele e afirmar, com os outros já mencionados pesquisadores, a inexistência de um proselitismo organizado por parte do judaísmo do início do século I d.C. e anterior. Decerto, insiro o termo “organizado” por considerar nossa incapacidade de acessar os acontecimentos cotidianos dos judeus daquele período, e para indicar que não desconsidero algumas das suspeitas de James Paget. Convém observar, também, que a proposta do pesquisador não permanece sem apoio. John Dickson adota e defende os argumentos de Paget repetidas vezes no primeiro capítulo de seu livro (DICKSON, 2003). Um ponto negativo a se assinalar nas análises de Dickson diz respeito justamente à abordagem de dois textos de Fílon que serão abordados a seguir, como Spec. 1.320-323 (DICKSON, 2003, p. 37). Ele 102 apresentam como fato: muitos judeus pareciam estar dispostos a acolher e ensinar aqueles que se interessavam pela conversão. E esses interessados, segundo ele, provavelmente eram motivados por diversas razões, “especialmente vantagens econômicas e as instituições de caridade dos judeus” (FELDMAN, 2006, p. 252)177. Tendo apresentado minimamente o que se tem pensado a respeito da conversão ao judaísmo na Antiguidade, passarei ao estudo dos casos que selecionei. Seria Jonas um exemplo isolado de missionário vacilante mas exitoso no âmbito do judaísmo antigo? E Rute, não seria sua história um exemplo motivador para novas conversões? E quanto a Fílon, ele simplesmente aceitava os prosélitos ou chegava a almejá-los? Questões como essas permearão as páginas seguintes. 3.1 A mensagem, o profeta de má vontade e os gentios bem dispostos: o caso de Jonas Um livro aparentemente simples, por vezes chamado de “livrinho”, Jonas guarda desafios hermenêuticos bastante complexos. As discussões aquecidas e apaixonadas sobre a historicidade ou não da narrativa (ou de partes dela) são acompanhadas e entrelaçadas por questões ainda mais instigantes: a datação do texto, seu gênero, sua localização no cânone, seu relacionamento com os outros textos proféticos etc. Como tenho uma busca específica a cumprir, tentarei não me perder em inquirições que, embora convidativas, não contribuem para o estudo sobre o tema da conversão. Deixo, pois, as especulações de lado e começo a contar o conto de modo sucinto, sem me esquecer de parar em dois momentos específicos e apresentar a tradução de dois trechos especialmente importantes, para analisá-los com algum detalhe. A primeira frase não é estranha para um livro que se encontra entre os profetas: “A palavra do Senhor aconteceu a Jonas, filho de Amati” 178. É uma frase muito semelhante às que lemos com respeito à experiência de outros profetas e importantes personagens da Bíblia hebraica179, tão marcada como tradicional que uma expressão semelhante será usada em grego para referir-se à vocação de João Batista no Evangelho Segundo Lucas180. No caso de Jonas, a palavra ouvida foi a seguinte: “Levanta! Vai até Nínive, a 177 178 179 180 parece sobrevalorizar a evidência, tendendo a enfatizar demasiadamente o ímpeto de fazer prosélitos, não necessariamente implicado no texto de Fílon. Minha tradução de: especially economic advantages and the charitable institutions of the Jews. yaGtim Como exemplo, menciono: Abraão (Gn 15:1), Samuel (15:10), Salomão (1Rs 6:11), Elias (1Rs 17:2 e diversas outras ocorrências), Isaías (Is 38:4), Ezequiel (Ez 1:3). Cf. Lc 3:2. 103 grande cidade, e clama contra ela, pois chegou à minha presença a maldade deles” 181. Diante de um chamado divino como esse, alguns profetas argumentam que não são aptos, como Moisés que diz ser gago, Isaías que diz ter lábios impuros e Jeremias que diz ser jovem. Jonas, contudo, nada diz. Ele escuta, levanta e vai. Mas vai para o lado contrário, para Társis. Ora, por que ele foge? O leitor não é informado. Se o problema é ele não gostar de estar entre gentios, não faz sentido, pois vai para um porto cheio de estrangeiros, para tomar um navio cheio de mais estrangeiros e ir se esconder em uma longínqua cidade estrangeira. Só na cena final da história Jonas contará a Deus (e a nós) o motivo de sua atitude. Contentemo-nos, pois, com a leitura desta cena. Enquanto Jonas dorme no fundo do navio, uma tempestade amedronta todos os demais, que gritam a seus deuses, cada um ao seu deus (wyAh - waiz'aqu ish el-elohaiv). Logo, o comandante vai até o profeta, o acorda e o convida a também clamar a seu próprio deus. Parece que Jonas não reage. Os marinheiros lançam sortes para ver quem era a causa da desgraça. Como a sorte aponta para Jonas, eles pedem que ele explique quem é e o que faz ali. Jonas expõe sua confissão: “Eu, eu sou hebreu. A IHWH, Deus do Céu, eu venero, aquele que fez o mar e a terra” 182. Ao ouvirem isso, os homens são tomados por grande temor, afinal, se a caracterização do deus de Jonas está correta, como ele poderia pensar em fugir desse deus indo de navio a outra cidade? 183 Jonas diz que devem jogá-lo ao mar, para que tudo se acalme. Os marinheiros ainda tentam chegar à terra, mas não conseguem e encerram assim sua participação na história: h :AtyiWAv AGt : : E chamaram a IHWH e disseram: 'Ah, IHWH, que não pereçamos por causa da vida deste homem! E não coloques sobre nós sangue inocente, pois tu, IHWH, conforme desejaste, agiste. E ergueram Jonas e o jogaram ao mar. E o mar parou com sua ira. E os homens temeram a IHWH com grande temor. E sacrificaram um sacrifício a IHWH e fizeram votos. (Jonas 1:14-16) Há algo de surpreendente em cena. Os marinheiros que há pouco clamavam cada um a seu deus, agora dirigem seus clamores a YHWH, que lhes havia sido apresentado,   -le'     183 As atitudes de Jonas não são coerentes com a noção teológica revelada por sua confissão (KILPP, 2008, p. 53). 181 182 104 inclusive pelo nome, por Jonas. Como observa Sasson, a sutil mudança do verbo usado para referir-se ao ato de evocar, clamar, sugere a alteração na disposição religiosa dos marinheiros (SASSON, 1990, p. 131-132). No verso 5, o verbo usado é qz (z'q), que se usa como “invocar”, mas também “gritar”. Já no verso 14, a ação deles é exposta pelo verbo rq (qr'), “chamar”, que é o que o texto usa quando faz referência às falas de Jonas a Deus (1:3 – verso em que o próprio comandante sugere a Jonas que ele chame o seu Deus - e 2:3). Lexicalmente, sugere-se que agora eles imitam a forma de devoção de Jonas. Eles são piedosos, têm um temor religioso que os faz implorar a esse deus recém conhecido que não lhes impute a culpa pela morte do homem que haveriam de lançar ao mar. Depois, no verso 16, prestam um culto ao deus. Sacrificam a ele e fazem votos especificamente a ele. O reconhecimento é muito razoável, afinal, acabam de presenciar um sinal considerável e amedrontador184 de que a confissão de fé de Jonas poderia estar certa. Um deus que tivesse criado o mar de fato teria poder para interferir naquela tempestade. Algumas questões costumam aturdir os leitores: Como os marinheiros oferecem sacrifícios em um barco? Eles tinham animais a disposição para isso? Sabiam sacrificar a YHWH? Que votos fizeram? As leituras são muitas e, por conseguinte, muitas são as respostas plausíveis (cf. STUART, 1987, p. 464-465). Mas o que me importa não muda, independente das respostas que forem dadas a essas questões. O que preciso pensar é justamente a compreensão que se pode ter diante cena como um todo. Milton Schwantes exclama: “Tornam-se hebreus!” (SCHWANTES, 1991, p. 30). Parece exagerada a constatação. Os marinheiros se voltam a YHWH naquele momento, mas isso não quer dizer que tenham desistido de cultuar seus deuses. A própria cena em que o comandante insta Jonas a buscar seu próprio deus lembra que, naquele contexto, cada um cultua seu deus mas não descrê dos que são cultuados pelos demais. Nelson Kilpp é mais cuidadoso. Observa que não se mencionam símbolos de pertencimento à religião judaica importantes durante a época à qual ele atribui o livro 185: a circuncisão e a observância do 184 185 O temor é dado importante no processo que os marinheiros experimentam. Tanto que há, conforme a demonstração de Sasson (SASSON, 1990, p. 138), uma progressão na representação desse medo no aumento de sua expressão quando comparados os versos 5 – os marinheiros temeram -, 10 – os marinheiros temeram um grande temor - e 16 – os marinheiros temeram um grande temor a YHWH (duplo objeto direto). O temor também terá seu lugar na conversão dos ninivitas. Assim como Schwantes, Kilpp entende, por razões linguísticas e de conteúdo, que o livro de Jonas deve ser de algum momento próximo ao fim do império Persa. Intérpretes mais conservadores atribuirão a composição da obra ao tempo da vida do profeta Jonas mencionado em 2Rs 14:25, durante o reinado de Jeroboão II no século VII a.C.. 105 sábado. Ademais, lembra que sacrifícios e votos compõem a expressão religiosa de vários povos antigos (KILPP, 2008, p. 57). Ou seja, eles cultuam esse novo deus da forma como cultuavam os seus. Suspeita-se, assim, que os marinheiros se voltem momentaneamente ao deus que havia acabado de revelar sua força para cultuá-lo, mas que não tenham abandonado suas outras crenças. Não lhes é dada sequer informação detalhada sobre o culto dos hebreus, para que possam converter-se ao judaísmo. A outra conversão coletiva que pretendo observar pode trazer mais elementos à reflexão. Por isso, sigamos a história. Jonas é engolido por um grande peixe, que é usado como meio de transporte coercivo, para que ele, que permanece com sua já conhecida má vontade186, volte ao lugar de onde havia saído no momento do chamado. Ele pretenderia razoavelmente cumprir o voto feito dentro do peixe (2:9), indo ao Templo para oferecer um sacrifício, mas seu plano é ironicamente frustrado (SHARP, 2009, p. 181). Em vez de ir para o núcleo de sua religião, ele é novamente levado para fora. A palavra de YHWH ocorre novamente a Jonas e, desta vez, ele não tenta fugir. Detenho-me no relato de como foi a transmissão da mensagem e a reação por parte dos ninivitas: hAl   -dav       hAmEh sAmAxeh- '   hAv :hAWAv ' E se levantou Jonas e foi a Nínive, conforme a palavra de IHWH. E Nínive era uma cidade grande com relação a Deus, um caminho de três dias. E Jonas se pôs a entrar na cidade, caminho de um dia. Ele clamava e dizia: 'Mais quarenta dias e Nínive será destruída!' E os homens de Nínive confiaram em Deus, proclamaram jejum e se vestiram com sacos, desde o maior até o menor deles. E o caso 186 A prece proferida por Jonas no ventre do peixe que o transporta pelo mar poderia ser vista como indício de uma mudança de disposição, reconhecimento do erro. Contudo, pode ser mais adequado reconhecer a ironia construída nos detalhes do texto, e entender que o tom crítico persiste também nessa parte da narrativa: Jonas procura manipular a divindade (SHARP, 2009, p. 180). Até o fim do livro, ele permanece inalterado em sua posição (SHARP, 2009, p. 182). 106 alcançou o rei de Nínive. E ele se levantou de seu trono, retirou o manto de cima de si, cobriu-se com um saco, e se assentou sobre a cinza. E proclamou e disse em Nínive, a partir de decreto do rei e de seus grandes, dizendo: 'O Humano, o animal, gado grande ou rebanho de pequeno porte, não provem coisa alguma. Não se alimentem. E não bebam água. E cubram-se com sacos o humano e o animal. E clamem a Deus com força. E retorne cada um de seu caminho mau e da violência que está em suas mãos. Quem sabe Deus retorna e demonstra compaixão, e faz retornar o furor de sua ira, e não pereceremos?' E Deus viu aquilo que fizeram, que voltaram de seu caminho mau. E Deus teve compaixão deles, a respeito do mal que disse haver de fazer a eles, e não fez. (Jonas 3:3-10) A mensagem que Jonas anuncia é breve. Ele só fala de uma destruição iminente. Não há argumentos, explicações. Mas é o suficiente. A reação inicial parte das pessoas comuns, que, nas ruas, poderiam ter tido contato imediato com o discurso de Jonas. Elas saem de seu comportamento cotidiano para demonstrar contrição. Em seguida, indiretamente, o assunto se faz conhecido pelo rei. Ele também faz mostras de arrependimento e decreta que todos o façam. Com o rei, a reação alcança toda a comunidade, tanto pelo fato de que ele representa a totalidade dos ninivitas, quanto pela ordem que dá a todos eles. E “todos” inclui, curiosamente, os animais. Ele diz também que todos devem clamar a Deus, mas o nome YHWH não é usado, uma vez que não foi declarado na mensagem de Jonas. Logo, ordena que cada pessoa da cidade volte atrás em suas más ações. “Voltar” e “retornar” são os termos que utilizo para traduzir o verbo hebraico b - shuv, que é usado também com o sentido metafórico relacionado à conversão, ao arrependimento. A questão fundamental é saber de que é que se volta atrás. Nada se diz a respeito de uma mudança de prática religiosa por parte dos ninivitas. Eles não se voltam para o culto centrado no Templo de YHWH, mesmo porque não receberam instrução para tanto, mas somente retornam das maldades que estavam fazendo. E isso basta para que esse Deus volte atrás e deixe de executar o que havia planejado. Também com relação a essa conversão, Milton Schwantes acredita em uma adesão à religião dos hebreus: “Em todo caso, não se trata apenas de conversão ética. Trata-se também de conversão ao Deus de Jonas: 'creram em Deus' (3,5). Os ninivitas aderem por completo à religião do profeta, ainda que este não se dedique muito à sua tarefa de profetizar, de evangelizar: Gasta cinco palavras em um dia!” (SCHWANTES, 1991, p. 32). Parece-me, contudo, um exagero concluir tudo isso a partir dessa única expressão:         - creram […] em Deus. Em minha tradução, inclusive, optei por adotar o verbo “confiar”, pois entendo que se trata de uma crença nesse Deus com respeito à mensagem que eles haviam escutado. Ou seja, eles confiaram que aquela mensagem vinha de 107 um deus e que ele a cumpriria. É digno de nota, inclusive, o fato de que, enquanto a expressão confiar/crer em YHWH é comum na Bíblia hebraica, confiar/crer em Deus (elohim) só aparece nesse trecho de Jonas e no Salmo 78 (SASSON, 1990, p. 244). Se nos ativermos ao texto, perceberemos indicações do retorno de uma condição ética degradada. O que se apresenta é uma conversão ética (cf. KILLP, 2008, p. 95. WILL; ORRIEUX, 1992, p. 79). Cada membro do povo retornou de seu caminho mau. E “esta sincera conversão vive na esperança de que Deus se converta”187 (WOLFF, 1982, p. 144), o que de fato acontece. Deus viu que retornaram de seu caminho mau e, por isso, retornou de seu propósito.188 Não há, contudo, uma conversão como mudança de religião, adesão a uma prática religiosa específica. Neste sentido, a conclusão de Gottwald parece acertada: Não há indicação de que o livro urja uma missão para converter nações estrangeiras ou que aborde a questão sobre se os prosélitos deviam ser incorporados a Israel caso viessem voluntariamente. Contudo, uma vez que aqueles que dão a inesperada resposta positiva a Yahweh são estrangeiros, a força do livro consiste em um alerta contra o prejulgamento e a visão estereotipada dos gentios. (GOTTWALD, 1985, p. 561)189 De modo semelhante, Jonathan Magonet observa que há uma inversão inesperada na narrativa de Jonas. Geralmente, na Bíblia hebraica, nos deparamos com um profeta bom que fala contra povos maus. Aqui, contudo, temos bons pagãos (utilizo este termo porque o autor o utilizou) e um profeta problemático, o que força o leitor a re-examinar as posições que ele julgava bem definidas (MAGONET, 1983, p. 94). James Limburg vai na mesma direção ao destacar que o representante israelita na narrativa não desempenha muito bem seu papel, ao contrário dos não-judeus, que “são retratados como admiráveis seres humanos” 190 (LIMBURG, 1993, p. 59). Assim, embora o livro de Jonas não represente ou fomente a conversão ao judaísmo, ele, no mínimo, solicita uma consideração diferente do não-judeu, 187 188 189 190 Minha tradução de: Questa sincera conversione vive nella speranza che Dio si converta. Isso digo com referência a Jonas 3:10. Entendo, contudo, que a frase final do livro suscita problemas mais complexos de interpretação. Seria uma pergunta retórica? Uma afirmação irônica? Ou, simplesmente, uma afirmação da futura destruição (historicamente real) de Nínive? Para uma discussão a respeito, confira-se ZVI, 2009, que defende que é gramaticalmente possível ler a frase tanto como pergunta quanto como afirmação. Cf. também, no mesmo periódico, a resposta de Philippe Guillaume ao artigo de Ehud Zvi (GUILLAUME, 2009), na qual ele enfatiza a pertinência da leitura da frase como afirmativa e afirma que a leitura da mesma como pergunta é inadequada. Minha tradução de: There is no indication that the book enjoins a mission to convert foreign nations or that it addresses the issue of whether proselytes should be incorporated in Israel if they come voluntarily. Nonetheless, because those who make the unexpectedly positive response to Yahweh are foreigners, the force of the book is to caution against prejudging and stereotyping Gentiles. Minha tradução de: are portrayed as admirable human beings. 108 uma consideração mais aberta à percepção de aspectos positivos.191 3.2 A moabita exemplar e o Deus da sogra: o caso de Rute  -le' yi  :yAh    yi E disse Rute: Não insistas comigo para abandonar-te, para voltar de junto de ti, pois para onde fores, irei. Onde quer que habitares, habitarei. Teu povo será meu povo; teu deus será meu deus. Onde quer que morreres, morrerei e lá serei sepultada. Assim faça YHWH a mim, e acrescente assim, pois a morte é que fará separação entre tu e eu. (ou: se algo além da morte fizer separação...) (Rute 1: 16-17) Quem profere essas palavras é Rute, “a moabita” (  - ha-moabiah). Ela é assim caracterizada repetidas vezes ao longo da narrativa, como se fosse necessário lembrar o leitor dessa característica específica da protagonista. Ela não somente é estrangeira, mas integrante de um povo que deveria ser excluído da assembleia de YHWH, segundo Deuteronômio 23:3, por sua atitude para com os hebreus nos tempos do Êxodo. Porém, se eles não foram acolhedores naquele tempo, parecem ter se comportado de modo diferente para com a família de Noemi, a sogra de Rute. Ela migrara com o marido e filhos para a terra dos moabitas e, não só se estabeleceram bem por lá, mas também encontraram esposas moabitas para os filhos. Agora, tendo os homens morrido, Noemi está a ponto de regressar para a terra de seu povo. Uma das noras aceita seu conselho e volta para a casa do pai. Rute, porém, se nega a deixá-la e a convence de seu firme propósito com a fala citada. 191 Concordo com Douglas Stuart quanto ao fato de que Jonas não deve ser considerado como um tratado universalista em oposição às reformas apresentadas em Esdras-Neemias (STUART, 1987, p. 434-435). De fato, o embate não fica claro no texto, uma vez que os principais temas que ocupam Esdras-Neemias não se apresentam nem de relance no nosso livrinho. E, também é verdade, os ninivitas e os marinheiros não são retratados como pessoas que recebem o mesmo privilégio de Israel, o de ser separado como povo escolhido. Mas, se a narrativa não pode ser chamada com precisão de “universalista”, ela, ao menos, furta subsídios de um pretenso “particularismo” absoluto e, ao fazê-lo, esquiva-se agilmente desses rótulos, propondo, a meu ver e como outros observaram, uma re-consideração dos estereótipos. 109 É interessante notar que a decisão de Rute a leva a uma situação de extrema incerteza. Em princípio, ela não teria um status legal favorável em Israel. Ela é uma estrangeira192, mas não é chamada de ger, inclusive porque esse é um termo masculino. Agnethe Siquans observa que o autor confere a ela um status por meio de dois passos: relacioná-la por meio da narrativa, não do léxico, à situação dos gerim e apresentá-la como “esposa do morto”, com a mesma expressão utilizada em Dt 25:5, de modo a valer-se da lei do levirato (SIQUANS, 2009). Mas minha questão não será tanto o estatuto social de Rute em Israel, mas sim sua motivação ao dispor-se a enfrentar toda essa incerteza e declarar sua lealdade incondicional a Noemi. Em princípio, pode-se entrever em sua fala a declaração de uma conversão. Tanto que é esse desenvolvimento que a fala de Rute toma no Rute Rabbah193. Cito um breve fragmento para exemplificar: “... a deixar-te ou a retornar de seguir-te, pois aonde você for eu irei, e onde você morar eu morarei, seu povo será meu povo, e seu Deus meu Deus” “Sob todas as circunstâncias, eu pretendo me converter, mas é melhor que isso seja por meio de sua ação e não pela de outro” Quando Noemi a ouviu dizer isso, começou a expor a ela as leis que governam os prosélitos. Ela disse a ela: “Minha filha, não é costume das mulheres israelitas ir a teatros e circos construídos por idólatras”. Ela disse a ela: “Aonde você for eu irei”. Ela disse a ela: “Minha filha, não é costume das mulheres israelitas habitar em casas que não têm Mezuzah” Ela disse a ela: “Onde você morar, eu morarei”. (Rute Rabbah para Rute 1:16, XX:i, 2A e B e 3 A, B, C, D e E)194. A forma como o Rute Rabbah completa os vazios do texto, neste caso, com supostas falas de Noemi entre as sentenças de Rute, lembra justamente que no texto de Rute em si essas falas não figuram. O que quero observar é que se essa ampliação é necessária para esclarecer o contexto de uma conversão, talvez isso ocorra porque, no texto canônico, esse contexto não esteja evidente ou enfatizado. Por isso, Erich Gruen pode afirmar: “A promessa para Noemi foi uma promessa pessoal, não uma decisão religiosa” (GRUEN, 2011, p. 298) 195. 192 193 194 195 Como observei, o leitor é lembrado constantemente do fato pela repetição do epíteto “moabita”. Mas o texto pode manter a origem estrangeira da personagem em evidência também, conforme procura demonstrar Timothy Lim, por meio de pequenos detalhes linguísticos nas falas de Rute, que fariam perceber alguma limitação, apesar da fluência considerável (LIM, 2011). Também nos Targumim algo semelhante acontece. Rute aparece como protótipo de um prosélito (Cf. NIELSEN, 1997, p. 49). Texto traduzido a partir da tradução em inglês que se encontra em NEUSNER, 1989, p. 80. Minha tradução de: The pledge to Naomi was a personal pledge, not a religious decision. 110 De fato, Rute parece expressar mais sua fidelidade à sogra que uma mudança religiosamente motivada. “Seu deus será meu deus” é uma afirmação entre outras. Está concatenada com outras ações. Ela não define que vai a Israel, mas declara que vai aonde Noemi for. Ela não define especificamente onde habitará, mas deixa claro que será junto de Noemi, onde quer que ela esteja. Ela define sim o povo a que pertencerá, pois sabe qual é o povo de Noemi. Por fim, ela sabe qual é o deus de Noemi e diz que ele também será seu deus. Mas o motivo não é uma compreensão teológica mudada ou uma experiência religiosa resultante de um chamado divino, mas sua decisão de seguir a sogra. Não é que “YHWH, o único Deus, será meu Deus”, mas “o teu, será o meu”. Tua direção, teu lugar de habitação, teu povo, e, inclusive, teu deus. O resto da narrativa também encaminha a essa leitura, pois YHWH praticamente não aparece na trama. Além disso, determinada cena pode ajudar a pensar especificamente a relação de Rute para com seu novo entorno social e religioso. Em Rute 2:12, Boaz, o futuro marido de Rute, se encontra com ela pela primeira vez e lhe diz que sabe do que ela havia feito por Noemi. Em seguida, tece uma espécie de desejo de boas vindas, desejando que lhe retribua YHWH, o Deus de Israel, “sob cujas asas ela foi se refugiar” (:wyAp   Rute 2:12). Imediatamente, ela responde sem referir-se a YHWH, mas expressando seu desejo de achar graça diante de seu senhor, isto é, de seu interlocutor, Boaz. A mudança de referência na conversa poderia passar despercebida. No entanto, a repetição do termo “asa” em outra conversa chama a atenção. Rute foi, seguindo instruções de sua sogra, procurar deitar-se com Boaz no meio da noite. Quando percebe sua presença, ele pergunta quem está lá. Ela diz seu nome e acrescenta um ousado pedido de casamento: “Estende a borda de teu manto (em hebraico,  - knaphekha, que significa, também, “tua asa”) sobre tua serva pois tu és parente” (Rute 3:9). Nehama Aschkenasy bem observa que Rute parece dizer aqui que tipo de asas ela busca para seu refúgio, não a esperança do auxílio do Deus dos hebreus, mas o casamento com Boaz (ASCHKENASY, 2007, p. 450). Ainda que não negue ou desdenhe da religião de Israel, ela deixa claro, com suas falas e atitudes, que sua preocupação se resolve no âmbito social. Poder-se-ia pensar que Rute estaria afirmando a ação de YHWH por meio das ações comuns humanas, mas isso seria fazer dela uma teóloga, o que extrapola o texto.196 196 Kirsten Nielsen entende que há uma inter-relação oculta entre ação humana e controle de Deus nos capítulos 2-3, e sugere o jogo com a palavra “asas” como evidência (NIELSEN, 1997, p. 31). Contudo, ela não considera implicações advindas do fato de que a palavra não é usada diretamente pelo narrador, mas dita por Boaz e repetida por Rute. Parece-me mais sensato atribuir a existência do jogo a uma repetição deliberada pela personagem. E, se assim for, como afirmei, é pouco 111 Pois bem, ainda que a conversão religiosa não seja o principal intento de Rute, nem promover ou exemplificar o proselitismo, o objetivo de Rute, o texto apresenta algo interessante para a presente reflexão. O que Erich Gruen procura demonstrar ao apontar para a falta de ênfase na conversão é o fato de que a narrativa trata com naturalidade a integração de uma estrangeira na sociedade israelita (GRUEN, 2011, p. 293-299). Essa naturalidade pode não ser absoluta. A tensão que se percebe quando se aproxima o livro de Rute de EsdrasNeemias, também pode transparecer em vestígios dentro do próprio texto. Uma evidência de semelhante tensão pode estar na fala do capataz em Rute 2:6-7, pela ênfase na procedência da mulher e pelas suspeitas de sua atitude, reveladas na leitura de Jonathan Grossman (GROSSMAN, 2007). Outra evidência poderia transparecer na fala do “parente mais próximo” do falecido marido de Rute. Em Rute 2, ele se interessa por adquirir o terreno de Noemi, mas, ao ser informado por Boaz de que ao fazê-lo teria também que casar-se com Rute, ele lhe cede o direito. Por fim, é notável que Rute entre na genealogia de Davi. Contudo, quando ela dá à luz um filho de Boaz, Noemi é quem o toma nos braços para criá-lo. E as mulheres dizem que Noemi teve um filho (cf. Rute 4:16-17). Rute sai do foco. Mas, ainda que essa tensão entre aceitação e reservas para com o estrangeiro ecoe no interior da própria narrativa, é sim notável que a protagonista consiga seus objetivos na sociedade israelita mesmo sendo “a moabita”. E, ainda que o foco mude, é notável que ela seja aquela a viabilizar a continuidade da linhagem que culminará no nascimento de Davi. É notável também que, ainda que a religião não seja o tema principal da narrativa em momento algum, e que a conversão de Rute não seja motivada por implicações teológicas, mas por uma lealdade descomunal, é uma moabita que se converte e se comporta de modo exemplar em sua fidelidade, empenho e obediência. É uma moabita, convertida (ainda que por um motivo pessoal não necessariamente religioso), que se torna um exemplo a ser imitado pelos leitores israelitas (cf. BUSH, 1996, p. 53). 3.3 O primeiro judeu e outros exemplos para os prosélitos segundo Fílon Em toda a vasta obra de Fílon que nos chegou, não há menção sobre os casos de Rute, dos marinheiros ou dos ninivitas como exemplos de conversão ao judaísmo. Mas o alexandrino encontra um modelo ainda mais célebre para os convertidos: Abraão. provável que sua intenção seja estabelecer uma reflexão teológica. A alternativa que sugeri no texto me parece mais razoável. 112 No livro de Gênesis197, lemos que Deus chamou Abraão. Este ouviu o chamado e o aceitou. Deixou sua família e foi para onde Deus havia mandado. Não há explicações sobre a vida pregressa do patriarca, sobre seu cotidiano ou seus pensamentos prévios que o teriam conduzido a essa resposta imediata ao que Deus lhe ordenara. Há informações sobre sua genealogia e lugar de procedência, nada mais. Fílon, contudo, apresenta o caso de outra maneira. Em Sobre as Virtudes (212ss), quando está a dissertar sobre a “nobreza de nascimento” (eu¦ge¢neia - euguéneia), o alexandrino apresenta "o mais antigo membro do povo dos Judeus" (tou= tw½n ¹Ioudai¿wn eÃqnouj o( presbu/tatoj ge/noj) de forma cuidadosa. Ele é Caldeu. Filho de um astrólogo, partilhava da crença de que o céu e o mundo como um todo são deuses. Esse erro de entendimento é apresentado como uma grande marca de falta de nobreza, pois impedia o conhecimento do único Deus, do não-criado, criador de tudo, que o raciocínio humano não pode conter. E é justamente depois de ter uma noção (eÃnnoian labwÜn - énnoian labòn) dessas coisas e de receber uma inspiração (e)piqeia/saj - epitheiásas) que ele abandona seu país e tudo mais, pois percebeu que era preciso deixar aquele entorno politeísta para chegar à compreensão do Ser.198 Dois dados da exposição nos são interessantes, porque parecem favorecer a compreensão e aplicação da narrativa ao caso dos prosélitos contemporâneos de Fílon. Na narrativa canônica, o chamado é o único motivador da saída de Abraão. Aqui, ao lado deste, aparece outro que pode ser mais coerente com a experiência (ou experiência esperada por parte de Fílon) dos convertidos do século um: uma percepção intelectual. Além disso, o abandono do país do pai tem como causa, aqui, o afastamento do politeísmo. Para Fílon, decerto, era imprescindível que alguém que abraçasse a fé dos judeus estivesse convicto do monoteísmo199. A descrição de Fílon prossegue: aÀma de\ kaiì to\n po/qon oÁn e)po/qei gnw½nai to\ oÄn prosanerri¿pise lo/gia xrhsqe/nta, oiâj podhgetou/menoj e)piì th\n tou= e(no\j a)oknota/tv spoudv= zh/thsin vÃei: kaiì ou) 197 198 199 Cf. Gn 11:29-32 e 12:1-4. Peder Borgen bem observa que essa motivação intelectual da migração de Abraão nessa leitura mais literal do texto, que possibilita sua associação com o tema do prosélito, tem certo contato com as interpretações alegóricas do mesmo movimento, pois nesta também está implicada a questão da busca por mais apurado conhecimento (cf. BORGEN, 2005, p. 217-218). Ao final de De Opif. (170-172), Fílon diz que Moisés ensinou muitas coisas, dentre as quais, havia cinco mais belas e melhores ( pe/nte de\ ta\ ka/llista kaiì pa/ntwn aÃrista ), a saber, que há um Deus, que Ele é um somente, que Ele criou o mundo, que o mundo criado é um somente, que Deus exerce sua providência sobre o mundo. 113 pro/teron a)nh=ken hÄ tranote/raj labeiÍn fantasi¿aj, ou)xiì th=j ou)si¿aj®tou=to ga\r a)mh/xanon®, a)lla\ th=j u(pa/rcewj au)tou= kaiì pronoi¿aj. E, de uma só vez, os oráculos recebidos reavivaram o desejo que sentia de conhecer o Ser. E, sendo guiado por esses oráculos, prosseguia, com esforço sem qualquer hesitação, na busca do Um. E não desistiu antes de receber uma visão mais nítida, não da essência – pois isso é impraticável -, mas da existência e providência dele (Sobre as Virtudes 215). Além da percepção intelectual, aparece agora um desejo de conhecimento. E a relação desse desejo com o chamado narrado pelo texto canônico é construída a partir da imagem de um braseiro que é reavivado pelo vento. Há um desejo em Abraão, e este é fortalecido pelos oráculos divinos que ele recebe. Da parte do humano, então, há dois dados não explicitados na narrativa do Gênesis - a obtenção de uma noção intelectual a respeito do Ser e um desejo de conhecê-lo -, ambos os quais poderiam gerar uma pronta identificação, tanto por parte dos eventuais leitores prosélitos quanto à sua experiência, quanto por parte dos leitores judeus que se relacionavam com prosélitos e possíveis candidatos a tais. Fílon prossegue observando que, na Bíblia, Abraão é o primeiro a respeito do qual se diz ter crido em Deus (pisteu=sai le/getai t%½ qe%½ prw½toj). Em seguida, observa que essa é a mais firme das virtudes (th\n tw½n a)retw½n bebaiota/thn) e que, junto com esta, ele adquiriu também todas as outras. Com isso, ele foi mudado para melhor com relação a tudo: os olhos, a pele, a estatura, postura, movimento e voz. Isso porque o Espírito de Deus lhe conferiu ao corpo uma beleza especial, persuasão a suas palavras e entendimento a seus ouvidos (217). Uma completa transformação.200 Em seguida, Fílon reforça sua observação de 200 Esse detalhe do processo de “conversão” de Abraão narrado por Fílon me faz perceber algumas semelhanças com a conversão da protagonista feminina do romance José e Asseneth. Asseneth também é transformada em um processo assessorado por um anjo (José e Assenth 14ss). Isso, inclusive, parece ser um acontecimento requisitado para a conversão, pois, antes, ao orar por ela a Deus, José pede: “remodela-a com tua mão” ( a)na/plason au)th\n tv= xeiri¿ sou - anáplason autèn têi kheirí sou, 8.11). E esse fato é marcado mesmo sendo Asseneth apresentada no começo da narrativa como visualmente comparável a Sara, Rebeca e Raquel, pois “nada tinha de semelhante com as filhas dos egípcios, mas era em tudo semelhante às filhas dos hebreus” (Kaiì auÀth ou)de/na eiåxen oÀmoion tw½n qugate/rwn tw½n Ai¹gupti¿wn, a)lla\ hÅn kata\ pa/nta o(moi¿a taiÍj qugatra/si tw½n ¸Ebrai¿wn , 1.7). Essa descrição, inclusive, parece uma antecipação, uma preparação para a conversão que viria a ser narrada. Assim como Abraão tem algo que antecede sua conversão, no caso, uma curiosidade intelectual, Asseneth tem uma predisposição visual, funcional na narrativa. Outros pontos de comparação me parecem significativos. Um exemplo, certa ênfase no abandono do politeísmo e, diretamente relacionado a essa ação um desligamento da parentela. No caso de Asseneth, esse desligamento não é definitivo, pois se revela como problema em sua oração, quando diz que os pais a renegam porque ela abandonara seus deuses (12.11), mas se resolve posteriormente. Outra semelhança considerável é a utilização da personagem como exemplo que favoreceria outros futuros convertidos, em uma 114 que essa atitude de desprendimento com relação a sua parentela e interesse em se aproximar de Deus é uma grande marca de nobreza desse Abraão convertido. E afirma de modo claro: ouÂtoj aÀpasin e)phlu/taij eu)genei¿aj e)stiì kanw¯n, dusge/neian me\n th\n e)c a)lloko/twn no/mwn kaiì e)kqe/smwn e)qw½n, aÁ li¿qoij kaiì cu/loij kaiì suno/lwj a)yu/xoij i¹soqe/ouj a)pe/neime tima/j, katalipou=si, kalh\n d' a)poiki¿an steilame/noij pro\j eÃmyuxon t%½ oÃnti kaiì zw½san politei¿an, hÂj eÃforoj kaiì e)pi¿skopoj a)lh/qeia. Este é padrão de nobreza (eu)genei¿a) para todos os prosélitos, os quais abandonaram a vulgaridade (dusge/neia) das leis estrangeiras e dos costumes desregrados, que atribuem honras semelhantes às divinas a pedras e madeiras e, em conjunto, a coisas desprovidas de alma, e instalaram uma bela colônia junto a uma politeia verdadeiramente vivente e provida de alma, da qual a verdade é guardiã e supervisora. (Virt. 219) Abraão e sua história representam o padrão, a medida de nobreza para todos os prosélitos. A descrição do que fazem estes é muito importante. Como Abraão, eles abandonam (katalipou=si - katalipoûsi) a prática politeísta, fomentada por leis estranhas e espécie de expansão do significado da conversão pontual (15.16ss). O anjo que dirige a transformação de Asseneth após sua oração lhe muda o nome de um modo semelhante ao que se lê na narrativa bíblica. Ela já não seria chamada Asseneth, mas seu nome seria “Cidade de Refúgio” (po/lij katafugh=j- pólis kataphygês). A explicação é dada: “pois em ti muitas etnias buscarão refúgio, e sob tuas asas muitos povos serão protegidos, e em teu muro serão guardados os que se agregam a Deus por meio do arrependimento” ( dio/ti e)n soiì katafeu/contai eÃqnh polla\ kaiì u(po\ ta\j pte/ruga/j sou skepasqh/sontai laoiì polloi¿, kaiì e)n t%½ tei¿xei sou fulaxqh/sontai oi¸ proskei¿menoi t%½ qe%½ dia\ metanoi¿aj , 15.6). Depois desse trecho, segue um trecho que exalta o arrependimento, algo que não seria estranho para Fílon. Pois bem, na narrativa de José e Asseneth, a conversão tem lugar importante por ser o que viabiliza o casamento do patriarca hebreu com uma egípcia. A maneira como essa conversão é apresentada, apesar de seus componentes visuais peculiarmente maravilhosos (cf. 16.13), de maneira semelhante em vários sentidos à maneira como Fílon reescreve a “conversão” de Abraão. Tendo a pensar que, se esse romance judaico foi escrito, como se costuma pensar, antes de I d.C. por um escritor judeu (cf. COLLINS, 2000, p. 103-110; GRUEN, 1998, p. 89-99), pode refletir, em um gênero diferente, uma preocupação semelhante a de Fílon. Contudo, Ross Kraemer propõe que a datação correta seria muito diferente, não antes do terceiro século d.C., e que não há como definir se o autor era um judeu, um gentio temente a Deus ou um Cristão (KRAEMER, 1998, p. 225-285). Embora a proposta de Kraemer pareça diminuir, em princípio, a relevância das semelhanças encontradas, na verdade é possível propor que em muitos aspectos o conteúdo da narrativa retoma tradições mais antigas e especificamente judaicas, que podem facilmente remeter ao contexto de Fílon ou aproximado. Recentemente, contudo, Rivka Nir foi além e dedicou todo um livro a afirmar que o romance seja não só entendido como proveniente do terceiro ou quarto séculos d.C., mas também que como tendo sido escrito certamente por um cristão, não dizendo respeito absolutamente ao judaísmo de língua grega (NIR, 2012). A discussão a respeito da correção ou não das propostas de Kraemer e Nir, contudo, extrapolam o objetivo central deste estudo, de modo que tratá-las de modo detido exigiria espaço e tempo além dos disponíveis. Por isso mesmo, apresento essa possível aproximação com a conversão narrada no romance como nota e não no corpo do texto, o que a tornaria parte componente da argumentação e exigiria uma definição mais precisa sobre proveniência e datação. 115 costumes desregrados, e se instalam em um lugar melhor. A imagem sugerida poderia fazernos crer que Fílon está se referindo unicamente aos prosélitos como aqueles que foram, nos tempos relatados pelo Pentateuco, habitar na Judeia com os hebreus. Não obstante, em outro trecho, deixa claro que não lê o termo como indicando mero deslocamento geográfico. Em Sobre as leis especiais, pelo fato de o termo prosélytos não ser comum fora da LXX, o alexandrino explica seu significado dizendo que eles são assim chamados “a partir do fato de que se achegaram (proselhluqe/nai - proselelythénai) a uma politeia nova e que ama a Deus - os quais desconsideraram as composições míticas (muqikw½n plasma/twn - mytikôn plasmáton), e abraçaram a verdade sem mistura” (Spec. 1.51)201. Já em Questões sobre Êxodo 2:2, ele reconhece que o termo tem os dois sentidos possíveis: o meramente relacionado à mudança de lugar de habitação, e aquele relacionado à adesão das leis e costumes. O que se constata até aqui está em acordo com o que Gregory Sterling encontra em sua pesquisa sobre a conversão em Fílon. Segundo ele, no pensamento do alexandrino a esse respeito: Há dois aspectos: o primeiro é a conversão do politeísmo, e o segundo é a reforma ética. Este último é claramente influenciado pelo conceito [de arrependimento presente] na filosofia helenística, como sua inclusão de virtudes e vícios helênicos deixa evidente. O último é uma extensão de sua orientação judaica.202 (STERLING, 2008, p. 87-88) Só me parece pertinente esclarecer que a influência da filosofia helenística se dá na forma de apresentação do conteúdo ético, mas não necessariamente na noção de aperfeiçoamento ético, uma vez que esta também se faz presente na Bíblia hebraica. Ademais, outro aspecto propriamente judaico, e importante a meu ver, marca a conversão ao judaísmo de Fílon. Para discerni-lo, voltemos pois ao recém citado trecho de Sobre as Leis Especiais. Além de assegurar que a compreensão de Fílon para o termo prosélytos transcende o meramente geográfico, o texto nos informa algo mais a respeito da mudança que vive o convertido. Se em Sobre as Virtudes, os prosélitos são vistos como aqueles que abandonam leis estranhas e costumes desregrados, aqui outro item aparece como abandonado: “composições míticas” (muqikw½n 201 202 plasma/twn - mytikôn plasmáton). Afirmações Minha tradução de: a)po\ tou= proselhluqe/nai kainv= kaiì filoqe/% politei¿#®, oiá muqikw½n me\n a)logou=si plasma/twn, perie/xontai de\ a)kraifnou=j a)lhqei¿aj. Minha tradução de: There are two aspects: the first is turning from polyteism to monotheism and the second is ethical reform. The latter is clearly influenced by the concept in Hellenistic philosophy as his inclusion of Hellenic virtues and vices makes evident. The former is an extension of this with a Jewish orientation. 116 semelhantes, e com a mesma expressão, se encontram em Sobre as Leis Especiais IV 178 e em Sobre as Virtudes 102. Em Sobre as Leis Especiais I 308, os prosélitos deixam a pátria e as “composições mentirosas” (yeudw½n plasma/twn – pseudôn plasmáton). Esses textos fazem pensar que, para Fílon, o convertido adere a novos costumes e leis e, também, a um novo arquivo discursivo. Ele deixa os mitos e escolhe os livros de Moisés. Mas essa escolha não deveria incluir, no entender de Fílon, algum tipo de “queima de livros” ou proibição de leitura, porque ele mesmo lia e bem conhecia os textos que chamava de mitos. É sensato entender que ele fala de uma mudança não de textos lidos, mas de textos aos quais o convertido dedica sua confiança e lealdade. Mas voltemos ao texto sobre a nobreza, no qual Fílon lança mão de Abraão como exemplo. Após o trecho que citei, no qual Abraão é apresentado como medida de nobreza para os prosélitos, o alexandrino observa que há exemplos de mulheres que também zelaram pela nobreza demonstrada por Abraão. Ele acrescenta, então, o exemplo de Tamar, a qual, segundo seu relato, vivia em meio ao politeísmo, mas que no meio da escuridão profunda, viu um estreito raio de luz da verdade. Então, mesmo correndo risco de morte, ela foi para o lado da devoção, sem se preocupar com a preservação de sua vida, ou se viveria bem. “Ela passou a considerar 'viver bem' como nada além do ser cultuadora e suplicante da única Causa”203 (Virt. 221). Em seguida, Fílon extrai outro exemplo da narrativa canônica: as servas de Lia e Raquel. Na narrativa de Gênesis, cada uma das esposas de Jacó dá a ele sua própria serva com o objetivo de que estas gerem filhos no lugar delas204. Na apresentação de Fílon, esse objetivo não aparece. Ele diz simplesmente que as criadas são promovidas a um nível de honra quase igual ao das esposas legítimas. E são as próprias esposas legítimas, Lia e Raquel, que as promovem (Virt. 223). Essa atitude benevolente das filhas de Labão é apresentada como algo reconhecidamente difícil de se crer (a)pisto/taton - apistótaton). Por isso, uma importante frase é acrescentada como comentário: fqo/noj ga\r ou)k ei¹soiki¿zetai sofw½n yuxaiÍj, ou mh\ paro/ntoj koinopragou=si tw½n a)gaqw½n. Pois o ciúme não habita as almas dos sábios. E não estando este presente, eles compartilham as coisas boas que possuem (Virt. 223). 203 204 Minha tradução de: to\ de\ kalw½j a)ne/feren e)p' ou)de\n eÀteron hÄ th\n qerapei¿an kaiì i¸kesi¿an tou= e(no\j ai¹ti¿ou. Cf. Gn 30. 117 É como se Fílon fizesse um parêntese na narrativa para explicar o motivo de uma ação narrada, e, ao mesmo tempo, apresentar, a partir dela, uma verdade geral, válida inclusive para seus contemporâneos. Em seguida, ele retorna à narrativa para observar que havia uma bondade recíproca entre os membros daquela complexa família, tanto entre os filhos e as diferentes mães, quanto entre os meio-irmãos, que, embora se reconhecessem como meio-irmãos da raça, não julgavam digno estimar uns aos outros pela metade (224-225). Isso porque eles supriam o aparente prejuízo da relação esforçando-se para coincidir na harmonia e na união dos costumes (225). Ao lado de Abraão, o padrão de nobreza para os prosélitos, aparecem Tamar, que escolhe servir a Deus mesmo sem se preocupar com o benefício material que isso lhe trazia 205, e a família de Jacó, que demonstra a aceitação dos que estão fora da linhagem pura e o esforço para preservar a unidade. Entrevejo nos três exemplos uma intenção didática de apresentar parâmetros de conversão para os prosélitos – motivação e procedimento para com os costumes novos e antigos - e de relação entre os prosélitos e os judeus por nascimento – acolhimento e honra. Ao finalizar os exemplos, Fílon se encaminha para a conclusão do tratado, na qual deixa evidente sua opinião de que confiar que se possui nobreza com base no que foram ou fizeram os antepassados é um erro dos mais graves. Porque “a Lei avalia cada um por si mesmo, concedendo louvores ou punições segundo as virtudes e vícios dele mesmo, não dos parentes” (Virt. 227)206. Posso acrescentar, ainda, um trecho que deixa a questão bastante explícita: eÃstw ga\r h(miÍn mi¿a oi¹keio/thj kaiì fili¿aj eÁn su/mbolon h( pro\j qeo\n a)re/skeia kaiì to\ pa/nta le/gein te kaiì pra/ttein u(pe\r eu)sebei¿aj: ai¸ d' e)k progo/nwn a)f' aiàmatoj auÂtai lego/menai sugge/neiai kaiì ai¸ kat' e)pigami¿aj hà tinaj aÃllaj o(moiotro/pouj ai¹ti¿aj oi¹keio/thtej a)porripte/sqwsan, ei¹ mh\ pro\j to\ au)to\ te/loj e)pei¿gontai, th\n tou= qeou= timh/n, hÁ pa/shj e(nwtikh=j eu)noi¿aj aÃlutoj desmo/j e)stin Com efeito, que haja para nós somente uma relação de familiaridade e um só símbolo de amizade: a disposição de servir a Deus e o falar e agir sempre em favor da piedade. Já essas ditas relações de parentesco, oriundas dos progenitores a partir do sangue, bem como aquelas relações de familiaridade que se dão conforme casamentos mistos ou por algumas outras causas de modo semelhante, sejam rejeitados, se não se dirigem para o mesmo fim, a honra de Deus, que é o elo indissolúvel de toda a benevolência unificadora. 205 206 Talvez Fílon não se visse livre para dizer exatamente o mesmo de Abraão, seu primeiro exemplo, em vista da promessa de Deus em Gn 12:1-3. Minha tradução de: tou= no/mou dokima/zontoj eÀkaston au)to\n e)f' e(autou= kaiì mh\ suggenw½n a)retaiÍj hÄ kaki¿aij e)painou=ntoj hÄ kola/zontoj. 118 (Spec. 1.317) Esse ensino207 é o mesmo que o faz afirmar, em outro passo, que o bom prosélito encontrará lugar no céu, enquanto a pessoa má, ainda que tenha nobreza por nascimento, irá ao Tártaro (Praem. 152)208. E se o prosélito podia compartilhar do acolhimento no desenrolar escatológico, também no cotidiano histórico presente, Fílon esperava que fosse bem recebido e integrado pelos judeus, uma vez que entendia que isso era o que determinava a Lei: keleu/ei dh\ toiÍj a)po\ tou= eÃqnouj a)gapa=n tou\j e)phlu/taj, mh\ mo/non w¨j fi¿louj kaiì suggeneiÍj a)lla\ kaiì w¨j e(autou/j, kata/ te sw½ma kaiì yuxh/n, <kata\ me\n sw½ma> w¨j oiâo/n te koinopragou=ntaj, kata\ de\ th\n dia/noian ta\ au)ta\ lupoume/nouj te kaiì xai¿rontaj, w¨j e)n diairetoiÍj me/resin eÁn eiånai z%½on dokeiÍn, a(rmozome/nhj kaiì sumfue\j a)pergazome/nhj th=j kat' au)to\ koinwni¿aj. Ele [o legislador] ordena aos membros da nação que amem os prosélitos, não somente como amigos e parentes, mas também como a si mesmos, segundo o corpo e a alma. Com respeito ao corpo, agindo de modo comum na medida do possível. Com respeito à reflexão, sofrendo e alegrando-se com as mesmas coisas, de modo que pareçam, em partes diferentes, ser um só ser vivo, que a comunhão torna completamente unido e harmonizado em um único e mesmo ser (Virt. 103). O próximo que se deve amar como a si mesmo, segundo Fílon, não é o judeu por nascimento somente, mas também o prosélito. Este não é um corpo estranho, mas parte de um mesmo corpo. É isso que Fílon encontra na Lei e é o que ele descreve como o que acontece em seu mundo (cf. Legat. 211). Encontro em Fílon, então, não somente a disposição para acolher os prosélitos, 207 208 Observe-se a semelhança com o que, segundo os Evangelhos, ensinava João Batista diante da suposta pretensão de suficiência do pertencimento étnico dos fariseus e saduceus. Confira-se Mt 3:7-10, sobretudo o versículo 9, onde se lê: “E nem conjectureis dizer entre vós mesmos: Temos a Abraão por pai. Eu vos digo que Deus pode erguer filhos a Abraão destas pedras!” ( kaiì mh\ do/chte le/gein e)n e(autoiÍj, Pate/ra eÃxomen to\n ¹Abraa/m, le/gw ga\r u(miÍn oÀti du/natai o( qeo\j e)k tw½n li¿qwn tou/twn e)geiÍrai te/kna t%½ ¹Abraa/m.). Ellen Birnbaum sugere que a frase com que Fílon fecha esse trecho de Sobre Prêmios e Punições traz a conclusão de que Deus aceita a virtude inclusive daqueles que não têm nobre nascimento, não restringindo essa virtude especificamente àquela dos prosélitos. Ou seja, ele poderia estar se referindo a qualquer ser humano virtuoso (BIRNBAUM, 1996, p. 206). No meu entender, o paralelo que ele apresenta com o prosélito levaria o leitor a restringir a significação do termo. Seja como for, permanece como fato interessante para a discussão a inclusão do prosélito que vai ao Céu e da outra pessoa que vai ao tártaro como exemplos ( paradei¿gmata - paradeígmata), que, sendo vistos, farão com que todos os seres humanos ( pa/ntej aÃnqrwpoi - pántes ánthropoi) ponderem a respeito dessa maneira de agir de Deus. 119 mas também a expectativa de que eles realmente se aproximem e sejam bem recebidos por todos os judeus. Isso, conforme a leitura que ele realiza de Ex 12:37-38, teria acontecido já nos tempos do Êxodo. Muitos dos que saíram do Egito entre os Hebreus teriam se juntado a eles por terem se tornado prosélitos (e)phlu/tai - epelýtai) ao admirarem (a)ga/menoi agámenoi) o amor a Deus. Outros, por terem passado a ter bom senso ( meteba/lonto swfronisqe/ntej - metebálonto sophronisthéntes) a partir dos sofrimentos que haviam afligido seu próprio povo (Mos. 1.147). De uma forma ou de outra, pessoas de outros povos se ajuntam aos hebreus por um aprendizado, ou por observação da experiência dos hebreus, ou por observação de sua própria experiência. Não há, contudo, uma clara propaganda com vistas à conversão. O princípio da mudança (a busca, a percepção intelectual, o desejo) parte do prosélito. De modo diverso, Louis Feldman, em um texto do início da década de noventa, quando procurava defender a ideia de que houve sim algo que se pudesse chamar de proselitismo judaico, encontra uma breve evidência de que Fílon quisesse que o judaísmo fosse divulgado em praça pública. Ele menciona Sobre as Leis Especiais 1.320 - em que Fílon repreende certos místicos que restringem seus conhecimentos a poucas pessoas, quando deveriam compartilhá-lo no meio da ágora de modo que todos os homens pudessem ter uma vida melhor e mais feliz – como evidência de uma estratégia missionária (FELDMAN, 1993, p. 318). Contudo, mesmo se considerarmos esse texto, que não é acompanhado por outros semelhantes, não teríamos que reconhecer que Fílon expõe necessariamente um modus operandi para uma atuação proselitista. Ele pode estar simplesmente enfatizando a necessidade de que o ensino da Lei não seja esotérico, mas aberto e disponível a todo que queira dele desfrutar. Em seguida, Feldman, faz de Abraão um missionário, simplesmente pelo fato de que, no trecho que antes mencionei (Virt. 217), lhe é atribuída persuasão na voz e capacidade de entendimento nos ouvidos. No entanto, Abraão, nesse trecho, é apresentado somente como convertido, não como convertedor. Se, no trecho, Fílon ressalta que os servos do patriarca julgavam suas palavras serem melhores que de costume, provavelmente o faz no sentido de enfatizar a mudança intelectual (e discursiva) associada à conversão. Entender a narrativa como a apresentação de um modelo de missionário é, no meu entender, algo arbitrário. Peder Borgen, que segue no mesmo sentido de Feldman sem referir-se a ele, soma aos trechos comentados outros dois como evidências que também apontariam para a 120 possibilidade de um intento proselitista por parte de Fílon. Ele afirma que “conforme Virt. 177 Moisés ativamente se aproxima dos gentios. Ele convida politeístas e oferece a eles instrução, exortando-os a mudarem dos muitos deuses para Deus, o Criador e Pai de tudo” 209 (BORGEN, 2005, p. 223). É preciso observar, contudo, que, no passo, Fílon discute o tema do arrependimento. Ele observa que a ausência total de pecados é algo próprio de Deus (ἴδιον θεοῦ – ídion theoû), ou talvez também do homem divino (τάχα δὲ καὶ θείου ἁνδρός – tákha dè kaì theíou andrós). Em seguida, em contraposição (marcada pela introdução da partícula δέ - dé após um μέν - mén, que introduzia a oração anterior), diz que mudar dos erros para uma vida irrepreensível (ἀνυπαίτιος - anypaítion) é próprio daquele que é sábio (φρονίμου phronímou) e não ignora completamente o que convém (τὸ συμφέρον εἰς ἅπαν οὐκ αγνοήσαντος - tò sumphéron eis hápan ouk agnoésantos). Logo, Fílon diz que é a tais pessoas (τοὺς τοιούτους – toùs toioútous) que Moisés ajunta e instrui. Ou seja, mesmo neste texto, e mesmo se considerássemos que Fílon pretende fazer dessa ação de Moisés um paradigma para seu tempo, não há referência a uma pregação à multidão para que alguns passem a aderir à Lei. Há uma predisposição de um grupo que está intelectualmente disposto. O outro texto sugerido por Borgen é Legat. 245, no qual Fílon informa que Petrônio tinha rudimentos da religião e filosofia judaicas, que teria adquirido em lições no passado por seu interesse pela cultura. Contudo, mesmo que essas lições tenham sido dadas por judeus, o que não é improvável, a aquisição de informação sobre o judaísmo por parte de um não-judeu é indício, no máximo, de uma abertura para recepção, e não de proselitismo. Concordo, pois, com Edouard Will e Claude Orrieux, que não encontram texto algum que justifique a visão de Fílon como missionário judeu (WILL; ORRIEUX, 1992, p. 81-99). Inclusive, convém mencionar que eles percebem que a conversão em massa dos gentios à Lei só se encontra, no pensamento de Fílon, como expectativa escatológica (cf. Mos. 2.17-44), que deveria ser fruto da Providência divina, não do proselitismo. O papel dos judeus seria simplesmente o de testemunhar a Lei por meio de suas vidas (WILL; ORRIEUX, 1992, p. 92). Contudo, não se deve desprezar a relevância do desejo expresso por Fílon de que os povos todos abandonassem suas leis e seguissem as de Moisés. Ainda que não resultasse em um ânimo missionário, a esperança do desenrolar escatológico podia influenciar a 209 Minha tradução de: According to Virt. 177 Moses actively reached out to the gentiles. He invites polytheists and offers them instruction, exhorting them to turn away from the many gods to God, the Creator and Father of all. 121 disposição dos judeus em seu trato no tempo histórico. Se algo estava para acontecer em um tempo definido pela Providência, nada mais natural que agir de acordo com isso, o que significaria, segundo penso, estarem abertos à integração dos convertidos e dispostos a colaborar com sua conversão (provavelmente depois que eles, os gentios, se interessassem por ela). E, coerente com isso, Fílon celebra a tradução da Torah ao grego como evento que a tornava acessível à metade do mundo que não a lia (Mos. 2.27). Ou seja, se o momento em que os povos abandonariam suas leis para aderirem à de Moisés está no horizonte escatológico, isso não torna menos relevante ou louvável um evento histórico que parece facilitar a realização daquilo que se espera. Outras atitudes que direcionassem ao mesmo fim também não seriam louváveis ou relevantes, inclusive escrever um tratado acessível aos gentios a respeito da vida de Moisés?210 Para a apreciação de uma questão final, é preciso lembrar da distinção que Ellen Birnbaum percebe, no pensamento de Fílon, entre as entidades Israel e Judeus, e pensar na relação dos prosélitos para com esses dois grupos. Eles se tornam parte dos Judeus ou de Israel? Nas palavras da própria autora, encontramos o seguinte: […] Embora ele apresente ambas as entidades potencialmente abertas a forasteiros, os prosélitos deviam ser associados com os Judeus, mas não necessariamente com “Israel”. Como a visão de Deus mesmo, “Israel” parece ser uma entidade elusiva e mutável, capaz de abarcar quem quer que seja espiritualmente qualificado, sem importar a sua ancestralidade. Os Judeus, por outro lado, são definidos por nascimento e fé e culto do único Deus. Se alguém não é nascido na nação, pode se tornar Judeu – não com base na habilidade espiritual, como no caso de “Israel” - mas por meio de uma escolha deliberada. Abandonando seu passado para se unir a uma nova politeia, os prosélitos executam somente essa escolha.211 Como Birnbaum percebe que Fílon toma o termo Israel a partir de uma interpretação etimológica (“aquele que vê Deus”)212, que o deixa aberto e o retira do âmbito 210 211 212 Louis Feldman entende que Sobre a vida de Moisés foi escrito primeiramente com vistas a um público não judeu (cf. FELDMAN, 2007, p. 11-16). Ele afirma, inclusive, que a passagem há pouco comentada a respeito do abandono das leis e adesão à lei de Moisés por parte dos não-judeus (Mos. 2.44) refere-se a uma desejada conversão em massa (FELDMAN, 2007, p. 14). Minha tradução de: Although he presents both entities as potentially open to outsiders, proselytes are to be associated with the Jews, but not necessarily with “Israel.” Like the vision of God itself, “Israel” appears to be an elusive and changeable entity, able to encompass whoever is spiritually qualified, regardless of ancestry. The Jews, however, are defined by birth and belief in and worship of the one God. If one is not born into the nation, one may become a Jew – not on the basis of spiritual ability, as in the case of “Israel” - but through a delibarate choice. By leaving their past to join a new polity, proselytes exercise just such a choice. Como mencionado na Introdução, Fílon provavelmente compreende (ou, mais provavelmente, segue a compreensão de uma tradição que assim o indicava) que o termo se tratava da junção de um grupo de palavras como l hr  (ish roê el). Confira-se a discussão da autora sobre a 122 meramente étnico, ela aventa a possibilidade de que não-judeus sejam, aos olhos de Fílon, Israel, caso alcancem a visão do Ser. Já a entrada no grupo dos Judeus requereria uma conversão marcada por uma escolha deliberada de abandono de certas coisas e união a outras novas. Os prosélitos, então, seriam aqueles que entram no grupo dos Judeus. Um não-judeu membro de Israel poderia, em hipótese, permanecer não-judeu ou prosélito. Donaldson entende essas duas possibilidades de adesão (aos Judeus e a Israel) como dois padrões de universalismo apresentados por Fílon (DONALDSON, 2007, p. 275). Mas logo observa um paradoxo. Embora em Virt. 65 Fílon apresente a observação da Lei como um caminho paralelo ao da filosofia, tendo ambos o mesmo fim, o conhecimento da Causa, em outros trechos ele nega que a razão possa, por si mesma, alcançar Deus (Ebr. 4-6; Mos. 2.6). A constatação do problema é muito pertinente. A conclusão, talvez, nem tanto. Ele diz: “Então, com uma parte de sua mente, Fílon acreditava que a lei a a filosofia eram duas rotas para o mesmo destino, enquanto, com a outra, sustentava que o destino só podia ser alcançado por meio da Lei” (DONALDSON, 2007, p. 275) 213. Essa alegada divisão da mente do alexandrino pode ser mais facilmente afirmada que a mudança de pensamento ao longo de sua produção, uma vez que a datação de seus escritos é muito complicada de se fazer com correção. No entanto, é uma alegação quase aleatória. Seja como for, não será preciso pensar em variação de pensamento no tempo ou em compartimentos da mente, se considerarmos que o alexandrino lança mão de estratégias didáticas e de negociação em seus escritos, não refletindo a todo momento necessariamente seu pensamento de forma direta. Aproximar o caminho proposto pelo judaísmo ao da filosofia e igualar o Deus dos judeus à Causa da filosofia pode ser algo compreendido nesse sentido, tanto se entendemos que o público almejado era judeu, quanto se, pelo contrário, esperamos um público gentio. Ao gentio culto, ficaria claro que a proposta da Lei não era algo incompreensível, desatinado, mas, pelo contrário, um modo de conduzir uma multidão àquilo a que poucos conseguiam chegar por meio da filosofia. Quanto ao judeu de Alexandria, isso influenciaria em sua auto-estima, uma vez que perceberia sua fé valorizada nos padrões da cultura que o acolhia e convidava por vezes à apostasia. Algo mais há de ser observado. O trecho em questão (Virt. 65) não fala de 213 origem da etimologia em BIRNBAUM, 1996, p. 70-77. Minha tradução de: Thus with one part of his mind Philo believed that the law and philosophy are two routes to the same destination, while with another he held that the destination could be attained only through the law. 123 qualquer filosofia, mas da mais aprovada (dokimwta/thj - dokimotátes), que não somente possibilita o conhecimento da Causa de todas as coisas, mas também que o faz ao rejeitar o engano dos deuses criados. A simpatia de Fílon para com essa filosofia e a possibilidade de utilizá-la comparativamente na exposição do judaísmo pode residir no fato de que ela contribui com parte considerável para a adesão à fé dos judeus. Ele não diz que a filosofia é completa em sua função. Pode entendê-la como colaboradora. Quanto aos prosélitos e sua relação com as duas entidades a que se refere Birnbaum (Judeus e Israel), é preciso observar que, diferente do que ela parece definir no trecho citado, também a adesão ao grupo dos judeus por meio da conversão pode incluir uma habilidade espiritual ou perspicácia intelectual. Foi justamente o que encontramos nas histórias de Abraão e Tamar, como apresentadas por Fílon em Sobre as Virtudes. E ambos são apresentados como padrão para os prosélitos, para os que se convertem e passam a integrar a sociedade dos judeus, e não para os supostos espiritualmente privilegiados que poderiam permanecer gentios e, ainda assim, ser considerados Israel. Fílon se mostra aberto à conversão. Nesse sentido, ele apresenta uma abertura universal e, até mesmo, a esperança de um reconhecimento universal da superioridade da Lei mosaica. Ele não é particularista. No entanto, seu suposto universalismo não é aberto e plural, no sentido de valorizar de modo igualitário as diversas manifestações culturais e religiosas. Alguns dos elementos de sua escrita que parecem indicar certo universalismo podem, na verdade, ser entendidos como marcas de sua disposição à negociação, ao diálogo, ou reflexo de sua preocupação didática. Essa disposição e essa preocupação não podem ser menosprezadas como algo secundário. Inclusive, entendo que só são possíveis, na maneira como Fílon as realiza, porque ele não é completamente exclusivista, mas reconhece, em última instância, algo que hoje chamaríamos de relativização dos lugares sociais e pertencimentos étnicos. E talvez isso provenha mais de sua concepção teológica do que, propriamente, de suas especulações filosóficas. Em Sobre o Querubim 119-120, encontramos uma interessante afirmação de que todos os seres humanos (e tudo o que é criado) são, no fim das contas, com relação a Deus, “estrangeiros e forasteiros” ( e)phlu/twn kaiì paroi¿kwn epelýton kaì paroíkon). Somente Deus seria de fato cidadão ( poli¿thj – polítes), enquanto os seres humanos que assim se chamam o fariam por catacrese. Todos somos recém chegados ao mundo, como a uma cidade. Isso não exclui o fato de que ele observa o povo judeu como 124 especialmente eleito, como sacerdotes de toda a humanidade214, mas possibilita a conversa compreensível com seus co-forasteiros, desde que não se comprometa o único verdadeiro Cidadão e sua Lei. 3.4 Conclusão Depois de apresentar uma leitura das cenas de conversão do livro de Jonas e Rute e de trechos da obra de Fílon que tratam de semelhante questão, parece-me sensato reconhecer que nenhuma das obras reflete um ímpeto proselitista. 215 Por outro lado, nenhuma apresenta os não-judeus como irremediavelmente ruins ou desprovidos de nobreza. Ao contrário, mesmo no livro de Jonas, no qual não há conversão à religião dos judeus, os gentios são apresentados com características positivas. No livro de Rute, por sua vez, uma moabita aparece como exemplo a ser seguido. E em Fílon, de modo claro, encontramos a afirmação de que um não judeu convertido é mais nobre que um judeu que não vive de modo condizente com sua origem. Assim, embora com diferenças nas ênfases ou na recorrência do tema, é possível perceber uma continuidade entre o que se encontra na Tanakh e em Fílon, ainda que este não lance mão de nem de Jonas, nem de Rute em momento algum. Como de costume, mantém-se restrito ao Pentateuco, mas o lê de modo a fazer sentido com relação a suas questões contemporâneas e sua negociação. 214 215 Cf., por exemplo, Abr. 98, Mos. 1.149, Spec. 1.97, entre outros trechos. Parece-me pertinente a comparação que Gregory Sterling estabelece entre o judaísmo do Segundo Templo e o cristianismo com relação à prática proselitista: “Aquilo que os judeus do Segundo Templo empregaram passivamente, os primeiros cristãos perseguiram ativa e agressivamente” [What Second Temple Jews employed passively, early Christians pursued actively and aggressively] (STERLING, 2008, p. 95). Convém observar que, antes de chegar a essa conclusão, Sterling constatou que a noção de conversão transmitida pelo Novo Testamento, sobretudo em Lucas e Atos, segue de perto o padrão encontrado em Fílon (STERLING, 2008, p. 89ss). Ainda que algumas noções sejam partilhadas, a grande diferença prática entre judaísmo e cristianismo incipiente permanece relevante. Nesse sentido, é importante o estudo de Michael Bird, que considera o problema a partir da consciência da inexistência de uma missão judaica e da relação com os gentios durante o próprio movimento de Jesus (BIRD, 2007). 125 Excursus único do Capítulo 3 A respeito da fala atribuída a Jesus em Mateus 23:15, que não evidencia necessariamente proselitismo judaico no século I Percorrendo o mar e a terra para fazer um prosélito: Proselitismo judaico no início do cristianismo, título do artigo de Leonardo Alanati mencionado rapidamente em meu texto como exemplo de pensamento que afirma a prática proselitista no judaísmo do século I, parece fazer alusão a uma fala de Jesus em Mateus 23:15: Οὐαὶ ὑμῖν, γραμματεῖς καὶ Φαρισαῖοι ὑποκριταί, ὅτι περιάγετε τὴν θάλασσαν καὶ τὴν ξηρὰν ποιῆσαι ἕνα προσήλυτον, καὶ ὅταν γένηται ποιεῖτε αὐτὸν υἱὸν γεέννης διπλότερον ὑμῶν. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque percorreis mar e terra para fazer um prosélito, e quando ele se torna isso, vós o fazeis filho da Geena, duas vezes mais que vós. Durante algum tempo, o testemunho desse versículo somente era responsável pela inferência de que havia uma intensa prática missionária no judaísmo antigo. Assim, concluíase a partir do texto um dado pretensamente histórico, que, logo, era utilizado para explicar o texto, em um exercício cíclico vicioso. Entre os comentadores do Evangelho, há de fato aqueles que afirmaram a existência do proselitismo judaico para explicar o versículo, procurando outras evidências para a historicidade da prática, como se não se apoiassem no próprio versículo para inferir o seu contexto histórico. Rinaldo Fabris, por exemplo, assim comenta: O segundo “ai” confirma esse juízo negativo tomando em consideração a atividade missionária do judaísmo, presente com numerosas colônias nos centros mais importantes do litoral mediterrâneo. A plena conversão de um pagão ao judaísmo mediante o rito da circuncisão comportava a plena observação das leis segundo as interpretações dos mestres. Nessa crítica do proselitismo judaico se percebe o eco daquele conflito entre os dois grupos missionários, judaico e cristão, que se encontram nas zonas da diáspora. A igreja de Mateus vive um momento particularmente feliz de expansão missionária entre os pagãos.216 (FABRIS, 1982, p. 470) O biblista deduz haver um caráter missionário do judaísmo nas colônias da 216 Minha tradução de: Il secondo “guai” conferma questo giudizio negativo prendendo in considerazione l'attività missionaria del giudaismo, presente com numerose colonie nei centri più importanti del bacino mediterraneo. La piena conversione di un pagano al giudaismo mediante il rito della circoncisione comportava la piena osservanza della legge secondo l'interpretazione dei maestri. In questa critica del proselitismo giudaico si averte l'eco di quel conflitto tra i due gruppi missionari, giudaico e cristiano, che si scontrano nelle zone della diaspora. La chiesa di Matteo vive un momento particolarmente felice di espansione missionaria tra i pagani. 126 diáspora. Mas a existência das comunidades de diáspora não é necessariamente evidência de prática missionária. Tratava-se de comunidades que viviam em outros territórios, não de pontos de apoio para missões de caráter religioso. Ainda assim, ele toca em dois pontos que convém ressaltar, pois apareceram em outras propostas que apresentarei. Por um lado, ele apresenta a ideia de que o texto reflete um conflito entre a comunidade de Mateus e grupos missionários judaicos. Como se verá, há proposta que justifica a frase como oriunda de semelhante encontro. Decerto, não do encontro de grupos missionários, mas da comunidade cristã, que teria realmente um caráter missionário, com a comunidade judaica, que não o teria. Outro ponto levantado pelo comentador que voltará a este texto em seguida é o reconhecimento de que uma “plena” conversão requereria a circuncisão. Na leitura que proporei como hipótese, não tanto a circuncisão, mas o reconhecimento de que há uma “plena” conversão, que requer algum tipo de oficialização, diferente da mera simpatia ou da aceitação na comunidade como “temente a Deus”, será vital. Outros comentadores, de modo semelhante, parecem não ter encontrado problemas na frase. Albright e Mann, por exemplo, não discutem qualquer problema de historicidade ou veracidade. Apenas frisam que a crítica se dirigiria a um grupo de judeus extremamente legalistas, que praticariam algo não compartilhado pelo judaísmo em geral (ALBRIGHT; MANN, 1982, p. 280). Warren Carter, por sua vez, tem o cuidado de apontar para o fato de que a conversão ao judaísmo na Antiguidade é bem atestada, mas não considera com o devido cuidado a possibilidade de que a existência de conversões não seja fruto de proselitismo ativo. Apenas menciona testemunho de autores latinos que parecem, em princípio, acusar os judeus de tentar agregar outras pessoas a seu grupo, sem discutir acuradamente os textos, nem considerar o contexto em que surgem.217 E diz: Mateus não contesta a missão e esforços do proselitismo, visto que os discípulos são ensinados a fazer o mesmo (cap. 10; 28,18-20). O problema é o impacto da obra e ensino dos fariseus. Se eles não podem interpretar e discernir os propósitos de Deus e não reconhecem Jesus como Messias, então seus prosélitos não recebem, na perspectiva do evangelho, o que eles precisam para entrar no império de Deus. O seu destino é o inferno/Geena. (CARTER, 2002, p. 569) James LaGrand também afirma que Jesus se referia a uma prática proselitista que 217 Peter Schäfer apresenta uma leitura detalhada dos principais textos latinos que evidenciariam uma oposição ao proselitismo judaico (são trechos de Horácio, Tácito e Suetônio, entre outros), e demonstra que não há querela propriamente contra o proselitismo nos mesmos (SCHÄFER, 1998, p. 106ss). 127 seria comum entre os fariseus. Embora tenha escrito seu livro já em meados da década de 1990, LaGrand não se refere às obras publicadas poucos anos antes, que negam veementemente a prática proselitista entre judeus do século I d.C.. O peculiar de sua leitura consiste no motivo teológico que encontra para a crítica. Segundo ele, Jesus estaria, em conformidade com a própria teologia judaica, que ele encontra expressa em um discurso atribuído ao Rabbi Helbo (III ou IV d.C.), a afirmar que os fariseus estariam apressando o fim escatológico. Isto é, ao se esforçarem para converter gentios, estariam tentando fazer por esforço próprio algo que deveria ser deixado em espera para o tempo adequado (LAGRAND, 1999, p. 157). Ou seja, o problema não seria propriamente a prática, mas o momento em que se realiza. Por outro lado, há leitores que acusam o texto de não só não ser historicamente correto, mas também de deliberadamente não dizer a verdade. 218 Conforme a leitura de Claude Orrieux e Edouard Will, a frase não atesta a prática proselitista no judaísmo antigo. Segundo eles, a fala deve ser lida a partir da compreensão de um contexto especialmente polêmico que existiria entre a comunidade judaico-cristã, na qual teria sido composto o Evangelho de Mateus, e o judaísmo farisaico-sinagogal. Dessa forma, se compreenderia que Mt 23:15 atribui aos judeus uma prática comum não no judaísmo, mas no cristianismo. A frase, então, teria sido construída já no período de redação do Evangelho e seria intencionalmente não veraz, não condizendo com a realidade da prática judaica (ORRIEUX; WILL, 1992, p. 115136). Esse tipo de leitura tem a seu favor o estudo de Andrew Overman, publicado pouco tempo antes, que, em resumo, lê o Evangelho de Mateus como escrito a partir de uma situação específica de polêmica para com o judaísmo formativo, que vinha se desenvolvendo simultaneamente. Overman afirma: O atrito e, por fim, a separação entre o judaísmo de Mateus e o formativo têm a emoção e o conflito de um rompimento familiar. Não se pode estar certo sobre se o desenvolvimento social e as formas de legitimação adotadas pela comunidade de Mateus, no final, resultaram na sobrevivência e perpetuação da comunidade. É obviamente verdade, contudo, que ao menos por um tempo, a comunidade de Mateus e o judaísmo formativo se desenvolveram e cresceram lado a lado e em oposição um ao outro. Em sua competição e desacordo um com o outro, eles foram forçados a se desenvolver e mudar. Assim, o judaísmo formativo e a comunidade de 218 A diferenciação entre historicidade e veracidade que incluo na reflexão reside nas diferentes possibilidades que se divisam. O texto pode errar ao tentar refletir o contexto histórico, o que o torna historicamente falho. Pode, por outro lado, distorcer os fatos históricos com uma intenção definida, o que o torna não verdadeiro. 128 Mateus se apoiam um no outro e não podem ser entendidos ou abordados separadamente um do outro.219 (OVERMAN, 1990, p. 160-161) Não pretendo e nem caberia afrontar a teoria de Overman, que tem sido bem aceita pelos biblistas atuais.220 Mas, em certa medida, terei que desconsiderá-la em minha leitura. Isso não significa que eu a despreze. Acontece que, ainda que o contexto redacional do Evangelho seja de vital importância para a compreensão do texto, e que a ausência da frase em estudo no Evangelho de Lucas possa favorecer uma leitura que a tome como invenção engenhosa da comunidade de Mateus, não é completamente descartável a possibilidade de que a frase tenha sido realmente proferida no período de enunciação anunciado pelo texto, e que, posteriormente, tenha sido aproveitada exclusivamente na comunidade de Mateus por se adequar de modo oportuno em seu contexto. No contexto da redação do Evangelho de Lucas, por outro lado, talvez parecesse desnecessário acrescentar essa crítica em meio a tantas outras. Enfim, não convido o leitor a descartar a leitura de Overman, mas a considerar uma possibilidade, seguindo outra perspectiva. O exercício que faço é pensar a possibilidade de que alguém tenha proferido a frase do versículo 23:15 do Evangelho de Mateus na primeira metade do século I d.C., sem cometer erro histórico nem ter a intenção de mentir deliberadamente. Parece-me possível ler o verso como representação de uma realidade histórica judaica, mesmo se consideramos como certa a inexistência de prática proselitista por parte dos judeus do século I d.C.. Mas, para tanto, seria preciso rever o sentido da expressão “fazer um prosélito” e lê-la como se referindo não a uma pregação proselitista, mas sim à realização de uma instrução catequética ou a um ritual de conversão.221 O substantivo ‫ גר‬- ger, que, na Bíblia Hebraica, não designa especificamente o novo adepto da religião dos judeus, mas o forasteiro, em período posterior passa a indicar o 219 220 221 Minha tradução de: The struggle and eventual separation between formative and Matthean Judaism have all the emotion and conflict of a family falling apart. One cannot be sure if the social developments and the forms of legitimation adopted by the Matthean community in the end resulted in the survival and perpetuation of the community. It is / obviously true, however, that at least for a time the Matthean community and formative Judaism developed and grew alongside of and over against one another. In their competition and contention with one another they were forced to develop and change. To this extent, formative Judaism and the Matthean community have a stake in one another and cannot be understood or engaged apart from each other. Embora eu, realmente, não me alinhe com os decididos admiradores da obra, compartilhando de algumas ressalvas que podem ser vislumbradas na resenha de Stanley Saunders (SAUNDERS, 1994). Geralmente, as conversões eram oficializadas por um batismo (banho ritual), circuncisão e um sacrifício no Templo. 129 convertido. Mas há, ainda, outra inovação linguística que é de vital importância para meu argumento: o verbo correlato a esse substantivo ganha, com o tempo, um factivo (no piel ‫)גייר‬, que indica justamente a ação de receber formalmente um gentio como parte de uma comunidade por meio da conversão oficial.222 Orrieux e Will dirão que essa mudança linguística é tardia, o que talvez serviria para negar a possibilidade de que o texto do Evangelho expressasse, em grego, esse sentido comum em língua semita (cf. ORRIEUX; WILL, 1992, p. 53). Não obstante, é preciso observar a grande falibilidade das datações dessa natureza, sobretudo por serem tardios os registros escritos dos pensamentos dos sábios da Judeia. Nada impede que o verbo hebraico viesse sendo utilizado oralmente com o novo sentido desde o século I d.C. ou um pouco antes, e que só viesse a aparecer registrado com a compilação tardia dos escritos rabínicos. Pois bem, é preciso lembrar que os mesmos autores reconhecem que os sheliahim do judaísmo sinagogal, diferentemente dos apóstoloi cristãos, não viajavam para fazer uma missão exterior, mas interior, isto é, organizar e fomentar a ortodoxia das sinagogas (ORRIEUX; WILL, 1992, p. 122). Embora tampouco se registre um trabalho específico desses “missionários interiores” com os convertidos, não é impossível pensar que os que guardam a ortodoxia tivessem papel na confirmação de conversões. É bom resumir a presente hipótese: a expressão ποιῆσαι ἕνα προσήλυτον (poiêsai héna prosélyton) de Mt 23:15 pode ser correlata ao inovador factivo do verbo rg (gar), e referir-se, então, a algo que não estaria muito distante da realidade histórica. Os “missionários do interior” podiam viajar longas distâncias para formalizar uma só conversão (de um gentio que tivesse se interessado pelo judaísmo). A falta de relatos que remetam a ações dos sheliahim com essa natureza específica não nos tem que levar necessariamente a desacreditar definitivamente da historicidade da prática, pois é normal que as fontes antigas não nos forneçam um relato completo de tudo quanto se fazia. Quanto à afirmação de que eles faziam o convertido vir a ser filho da Geena, algumas leituras me parecem plausíveis. Por causa de seu ensino destoante da proposta cristã, poderia ser dito por alguém que fala no âmbito do cristianismo incipiente que o missionário judeu leva o convertido ao “inferno”. Ou, se pudéssemos pensar a partir do ensino paulino a 222 Essa informação de que o verbo passa a significar algo como “fazer um prosélito” ou “iniciar alguém na fé judaica” é comunicada pelos próprios Orrieux e Will. É confirmada, também, pelo Dicionário de Marcus Jastrow (ver referências). Além do Talmud, o Bereshit Rabbah registra uso do verbo com sentido semelhante. 130 respeito da Graça e da Lei, talvez a afirmação se esclarecesse um pouco mais. Mas, mesmo sem considerar o corpus paulino, poderíamos encontrar em falas relatadas no próprio Evangelho, e atribuídas ao mesmo período de enunciação da fala de Mt 23:15 (inclusive nos embates com Jesus e seus discípulos), referências ao rigor com que os fariseus aplicavam a Lei. Isso possibilita uma explicação: Eles mandariam à Geena, isto é, aplicariam a Lei de forma a condenar os recém-convertidos, de forma ainda mais dura do que faziam consigo mesmos. O próprio versículo 4 do capítulo 23 serve como exemplo de fala consistente com essa visão do ensino dos fariseus: “Amarram fardos pesados e os colocam sobre os ombros das pessoas, mas eles mesmos nem com o dedo querem movê-los”223. No restante do discurso que segue ao versículo 15, também há referência ao ensino dos fariseus com respeito à observância das leis. Eles são chamados de “guias cegos” (ὁδηγοὶ τυφλοί – hodegoì typhloí), que coam mosquitos, mas engolem um camelo. Certamente, uma acusação pesada e adequada para alguém que se dedica a instruir um novo convertido, mas que não se relaciona diretamente com a busca por novos convertidos.224 Assim, concluo que o versículo do Evangelho pode não afirmar o proselitismo judaico, mas referir-se a uma prática realizada para com pessoas previamente convertidas e em fase de conversão, já no período ao qual se atribui a enunciação da frase ali escrita (e não somente no período de redação do texto). Para tanto, basta-me aventar a possibilidade de que a expressão ποιῆσαι ἕνα προσήλυτον (poiêsai héna prosélyton, “fazer um prosélito”) seja lida como indicando não uma pregação para conversão, mas sim a formalização (catequética e/ou ritual) da conversão de alguém que tenha se achegado ao judaísmo por interesse próprio. Não haveria, pois, necessariamente incompatibilidade entre a frase, mesmo se a consideramos oriunda do período de enunciação, e o que se tem afirmado em pesquisas recentes a respeito da inexistência de um ímpeto missionário no judaísmo antigo, paralela à existência de considerável número de conversões.225 223 224 225 δεσμεύουσιν δὲ φορτία βαρέα καὶ ἐπιτιθέασιν ἐπὶ τοὺς ὤμους τῶν ἀνθρώπων, αὐτοὶ δὲ τῷ δακτύλῳ αὐτῶν οὐ θέλουσιν κινῆσαι αὐτά. Faço essa breve referência que faço a outros versículos do capítulo 23 de Mateus como exemplo de ensinos também atribuídos ao período de enunciação de Jesus. Não pretendo fazer, contudo, um estudo do contexto no qual a frase de Mt 23:15 aparece no Evangelho. Isso envolveria questões relativas à redação feita a partir do que se considera enunciado por Jesus. Minha questão é mais pontual e simples: É possível pensar na frase de Mt 23:15 dita por alguém (no caso, Jesus), que fala com verdade (isto é, indicando uma realidade existente) na primeira metade do século I (durante o período de vida de Fílon)? O fato de ser Jesus o falante e de a frase estar no Evangelho, é algo que, embora gere repercussões e agravamentos óbvios, é alheio à minha reflexão. Certamente, apresento a conclusão enfaticamente como “possibilidade” por reconhecer que seria necessário executar outros movimentos metodológicos antes de afirmar de modo mais definitivo o 131 Ressalto que não é somente essa minha leitura, que apresento mais como exercício de reflexão sobre uma possibilidade que como hipótese a ser defendida, que harmoniza a frase e o contexto histórico tal qual preponderantemente entendido hoje. Outra possibilidade de leitura é apresentada por Martin Goodman, que também entende não ter havido na Antiguidade nenhum esforço missionário judaico. A proposta de Goodman consiste em que se entenda a frase como se referindo a um esforço dos fariseus por converter outros judeus ao farisaísmo, e não gentios ao judaísmo (GOODMAN, 2007, p. 100).226 Percebe-se que há diferentes maneiras de ler o versículo do Evangelho de modo a eximi-lo do papel de único testemunho em favor do proselitismo judaico no século I. E é notável que é possível ler a frase, inclusive, sem negar a possibilidade de que tenha sido proferida no período de enunciação declarado pelo texto, isto é, durante a vida do próprio Jesus227, sem negar a veracidade da afirmação, e sem afirmar tampouco o proselitismo judaico. que proponho. Entre esses movimentos está a verificação da existência e do sentido de expressão grega semelhante em outros escritos do contexto judaico, além de uma investigação mais aprofundada sobre a relação de um sheliakh com o processo de conversão. Não é esse o foco desta tese e, portanto, deixo essas especulações para eventual pesquisa posterior. Observo somente que, depois de realizada esta parte da pesquisa e estabelecido o texto, constatei semelhança, não na abordagem necessariamente, mas na constatação, entre o que proponho aqui e o proposto em MCKNIGHT, 1991, p. 177, e, mais recentemente, em BARNETT, 2000, p. 272. 226 O argumento de Irina Levinskaya segue pelo mesmo caminho, cf. LEVINSKAYA, 1996, 35-46. 227 Como se nota, aquele período de tempo que se costuma indicar como período do Jesus histórico, eu prefiro indicar como período da enunciação (anunciado pela narrativa), em contraste com o período da redação. 132 Segunda Parte Encontros vários: A interculturalidade negociada na intertextualidade de Fílon de Alexandria 133 Capítulo 4 Versos prosélitos: um Homero circuncidado para se encontrar com Moisés Há encontros que são claramente marcados. Na presente reflexão, a citação ocupará o lugar destes. Com isso, quero ressaltar que essa forma de referir-se a outro texto não é a mais importante ou relevante realização da intertextualidade, mas, isso sim, aquela que se mostra de forma mais imediata. Pois há também encontros que querem parecer não marcados, mas que podem deixar evidências do contrário. Ou outros que, ainda que realmente não marcados, acontecem. Este capítulo será dividido em seis tópicos principais. Os três primeiros são como notas introdutórias de questões importantes para uma melhor apreciação do estudo que se seguirá. No primeiro tópico, exponho de modo sucinto algumas relações dos poemas homéricos com os judeus na Antiguidade e, a título de antecipação, com Fílon. No segundo, procuro contextualizar minimamente a prática da citação em um contexto mais próximo do de Fílon. Isto é, busco observar a citação como fenômeno na Antiguidade, para possibilitar algum entendimento sobre o que significa, em seu próprio contexto histórico e discursivo (e histórico do discursivo), aquilo que o alexandrino faz ao recortar um poema e aproveitá-lo em seu texto. No terceiro, abordo a questão da citação dos poetas nos tratados de Fílon mesmo, tentando responder à seguinte pergunta: Por que Fílon cita os poetas? Já no quarto tópico, que inicia propriamente as leituras de citações, abordarei os encontros marcados, isto é, citações que Fílon faz de versos homéricos, considerando o texto repetido e suas implicações no sistema que o acolhe. No tópico seguinte, tratarei de outros encontros mais discretos com os poemas de Homero, marcas mais sutis de intertextualidade, que favorecem uma relação, mas não de modo inevitável. São, como antes sugeri, encontros menos demorados ou com ares de desinteresse, como encontros fortuitos. No sexto tópico, continuarei tratando desses encontros fortuitos, mas mais especificamente dos que se dão no tratado Sobre a vida de Moisés, livro primeiro. Devo observar que a escolha por Homero não se baseia na escassez de encontros com outros autores nos textos de Fílon. Na verdade, líricos e dramaturgos também passeiam pelos escritos do alexandrino. Contudo, era preciso fazer algum recorte. Escolhi fazê-lo pela seleção de um autor específico. E Homero parece ser o mais apropriado quantitativa e 134 qualitativamente. Ele é o autor mais frequente nos textos estudados, e tem lugar especial, tanto na história da literatura (grega), quanto na apreciação do próprio Fílon, que o chama de “o mais glorioso dos poetas que há entre os gregos” (τῶν παρ᾽ ἕλλησι ποιητῶν ὁ δοκιμώτατος – tôn par' héllesi poietôn ho dokimótatos, Mut. 178). Ademais, em Abr. 10, de passagem, Fílon observa que, mesmo havendo uma multidão de poetas, Homero é chamado “poeta” por excelência (κατ᾽ ἐξοχήν – kat' eksokhén).228 Além disso, talvez não somente Homero tenha lugar especial no texto de Fílon, mas também este na história do texto de Homero. Maren Niehoff argumenta que Fílon e Plutarco “são os primeiros autores conhecidos na tradição platônica a reintegrar Homero no discurso filosófico, antecipando assim os neoplatonistas” 229 (NIEHOFF, 2012, p. 128). Como o alexandrino viveu uma geração antes de Plutarco, ele aparece como o primeiro. Mas Niehoff reconhece que Plutarco não depende de Fílon, embora compreenda que a relação de ambos com a cidade de Alexandria tenha viabilizado a mudança que realizam na apreciação dos poemas Homéricos. No caso específico de Fílon, que é o que me interessa imediatamente, os motivos são assim expostos pela pesquisadora: Fílon era capaz de fazer isso [superar a crítica de Platão a Homero e reintegrá-lo na cidade dos filósofos] porque ele, como um judeu relativamente conservador, estava comprometido em manter a santidade da Escritura, um texto de natureza mitológica similar à épica de Homero. Ademais, Fílon era familiar com a abordagem aristotélica da épica 230, que gozava de considerável popularidade na comunidade judaica de Alexandria.231 (NIEHOFF, 2012, p. 135) Fílon, então, para negociar o estatuto da Torah, o que define a validade de sua 228 229 230 231 Fílon terá percebido o uso há muito praticado (cf., por exemplo, em Platão, Górgias 485d). Mas, certamente, a consideração que faz não é dele somente, mas feita a partir das de outros leitores gregos. Para mencionar somente um autor como exemplo, opto por um quase contemporâneo de Fílon. Strabo, assim como Fílon no trecho mencionado, evoca a posição especial de Homero com relação ao termo “poeta” em uma comparação. No caso do geógrafo, o fato de o Mar Negro ser chamado de “Mar” é comparado ao fato de Homero ser chamado de “poeta”: “Julgava-se que era o maior de nossos mares. Por isso, por excelência (κατ᾽ ἐξοχήν – kat' eksokhén), o chamavam propriamente de 'Mar', como Homero, 'poeta'” [καὶ γὰρ μέγιστον τῶν καθ᾽ ἡμᾶς ἐνομίζετο, καὶ διὰ τοῦτο κατ᾽ ἐξοχὴν ἰδίως πόντον προσηγόρευον, ὡς ποιητὴν Ὅμηρον.] (Geog. I 2,10). Minha tradução de: are the first known authors in the Platonic tradition to reintegrate Homer into the philosophical discourse, thus anticipating the Neo-Platonists. A relação de Fílon com a abordagem aristotélica praticada em Alexandria, bem como de seus antecessores judeus do período helenístico, é apresentada por Maren Niehoff em outra obra (NIEHOFF, 2011), que será apresentada por mim adiante. Minha tradução de: Philo was able to do so because he, as a relatively conservative Jew, was committed to maintaining the holiness of Scripture, a text of similar mythological nature as Homer’s epics. In addition, Philo was familiar with the Aristotelian approach to the epics, which enjoyed considerable popularity in the Jewish community of Alexandria. 135 religião e tem consequências imediatas na constituição de sua identidade, acaba por entrar em outra negociação, que se refere justamente ao estatuto do principal par de poemas do arquivo grego. E, certamente, de minha parte, entendo que é razoável considerar que ele realiza essa negociação motivado, sim, pela similar empreitada referente à Torah, mas também pelo uso dos poetas em obras de outros filósofos (alheios à tradição platônica) que ele lia e aproveitava em seus escritos. Como observarei adiante de modo breve, citar poemas em meio à argumentações não é algo novo em Fílon. Inclusive, tragediógrafos, tão reprovados quanto Homero por Platão, eram citados com frequência. Com isso, não pretendo invalidar a constatação de Niehoff. Pelo contrário, intento enfatizar a complexidade da negociação em que Fílon se vê envolvido, pois sua motivação pode ser dupla: estabelecer um estatuto especialmente proveitoso para a Torah, o que favorece seu texto em seu contexto restrito do judaísmo de língua grega, mas também justificar uma prática comum entre seus pares gregos e romanos.232 Ou seja, se o resultado é duplo, o ponto de partida pode ser também. A dinâmica entre próprio e comum se mostra verdadeira também aqui. 232 Obviamente, para tanto, não considero Fílon exclusivamente ligado à tradição platônica. Decerto, ele se relaciona de perto com o platonismo, talvez inclusive com influência do de Antíoco de Ascalão, mediada por Eudoro de Alexandria (DILLON, 2008, p. 232), mas não está submetido a nenhum tipo de fidelidade estrita. Tem autonomia para fazer escolhas, rejeitar algumas ideias e acolher noções de outras escolas, como do estoicismo (BONAZZI, 2008, p. 251). Ele pode, inclusive, silenciar noções pontuais de Platão, enquanto aproveita outras pertinentes ao mesmo tema, como no caso de seu aproveitamento da psicologia platonista (DILLON, 2010, p. 169). Por sinal, a respeito desse mesmo tema, é possível afirmar que Fílon se utiliza tanto do modelo psicofisiológico platonista quanto do estoico, conforme as possibilidades e necessidades do contexto exegético (REYDAMS-SCHILS, 2008, p. 194). Não me parece difícil perceber essa diversidade no pensamento de Fílon se não o compreendo, como não faço de fato, como filósofo interessado em ser sistemático, mas como um exegeta, como faz Peter Borgen (BORGEN, 2005). Nas palavras de Runia: “Uma vez que Fílon deve ser considerado, antes de tudo, como um exegeta das Escritures filosoficamente orientado, é melhor, a meu ver, não descrevê-lo sem alguma qualificação como um 'filósofo'” [Because Philo should be regarded above all as a philosophically orientated exegete of scripture, it is better, in my view, not to describe him without qualification as a 'philosopher'] (RUNIA, 1986, p. 445). Convém acrescentar que a própria Maren Niehoff sugere uma perspectiva diferente a respeito do relacionamento de Fílon com as escolas filosóficas de seu tempo. A partir de uma hipotética ordenação cronológica dos tratados do alexandrino, ela procura demonstrar (habilmente, como de costume) uma mudança na maneira como se posiciona entre o platonismo e o estoicismo. Ele passaria de um reflexo mais direto do platonismo alexandrino, perceptível em seu Comentário Alegórico, que seria mais antigo, a uma maior consideração do estoicismo em uma etapa posterior. Ele teria chegado, inclusive, a uma tentativa de síntese inovadora entre o transcendentalismo platonista e o imamentismo estoico em Opif., motivado por seu maior contato com o ambiente romano, em que o estoicismo experimentava grande importância, e por sua compreensão da importância de Roma em seu mundo. Fílon, segundo Niehoff, seria “o mais romanizado dos platonistas alexandrinos” [the most Romanized of the Alexandrian Platonists] (NIEHOFF, 2010b, p. 38). 136 4.1 Homero, os judeus e Fílon Essa consideração de Fílon a respeito do destaque de Homero entre os poetas não é estranha. De um ponto de vista amplo, a leitura de Homero figurava como parte da formação de um homem culto233. Pensando especificamente no contexto judaico, é perceptível que a épica grega (Homero, obviamente sendo reconhecido como ícone dessa tradição) marca presença entre os judeus da Antiguidade, que respondem a isso de diversas maneiras. No plano literário, é possível mencionar uma instigante referência que aparece numa tradução latina de uma crônica perdida escrita originalmente em grego no século V d.C.. O texto, conhecido como Excerpta Latina Barbari, constitui-se como uma lista de governantes do Egito paralela com outra de autoridades sacerdotais da Judeia. O registro não apresenta uma cronologia corretamente ajustada. Quando se refere ao reinado de Ptolomeu XII, que ocorreu entre 80 e 51 a.C., diz que em Jerusalém os sumo-sacerdotes eram Simão e João, que, na verdade, exerceram a função entre 142-104 a.C.. Nesse período, de difícil identificação pela confusão do cronista, é inserida a anotação do seguinte fato histórico: “Nesses tempos, era conhecido em Alexandria Sósates, o Homero Hebreu”234. Não temos nenhum verso que seja atribuído a tal autor, nem sequer outra referência a tal poeta em textos da Antiguidade. Contudo, não deixa de ser possível que a crônica esteja certa, e que a obra do Homero Hebreu, como a de outros autores que favoreceriam uma melhor compreensão do contexto daqueles tempos, tenha se perdido ao longo dos séculos (cf. COHEN, S. J. D., 2010c). Não é impossível que um judeu alexandrino tenha se dedicado a escrever versos com estilo homérico ou conteúdo semelhante a ponto de ser reconhecido dessa forma. Para permanecer no âmbito do que nos é conhecido de forma mais segura, é possível dizer com certeza que pelo menos dois poetas, Fílon 235 e Teódoto, se aventuraram na composição de poemas épicos com temas especificamente judaicos, ambos sendo citados por Alexandre Poliístor e transmitidos a nós por meio da obra de Eusébio de Cesareia. 236 Esse Fílon parece ter se dedicado a uma reescrita de episódios da Bíblia anteriores ao estabelecimento de Jerusalém. E Teódoto, no escasso trecho que nos chegou, refere-se à cidade de Siquém.237 Infelizmente, poucos são os versos que nos chegaram, o que impede uma 233 234 235 236 237 Ler os grandes poetas do passado fazia parte da formação comum (cf. Congr. 15) a que se submetiam os jovens livres de famílias com certas condições. Minha tradução de: Hisdem temporibus Sosates cognoscebatur ille Ebraicus Omirus in Alexandria. Que não deve ser confundido com nosso Fílon. O fato de terem sido citados por Alexandre Poliístor estabelece um terminus ante quem. Ambos os poetas escreveram antes da primeira metade do século I a.C.. A referência a Siquém poderia sugerir que se tratasse de um poeta samaritano, não propriamente 137 reconstrução que possibilite a amplitude dos temas tratados nas obras e as ressonâncias propriamente homéricas que apresentam. Ainda assim, com base no disponível, há quem afirme que Teódoto apresenta um estilo tomado de empréstimo da Ilíada (BERTHELOT, 2011, p. 145). Independente da precisão dessa afirmação, esses dois poetas permanecem como testemunho do apelo que a épica grega podia exercer sobre judeus dados às letras.238 A relação de judeus com a épica homérica, contudo, não se restringia à produção de poemas com temas próprios inseridos nessa tradição. Além do âmbito literário, outras áreas da vida de um judeu podiam ver-se marcadas pelos poemas homéricos, inclusive sua morte. Uma pequena parte das inscrições judaicas encontradas até hoje, apenas 19 das 2000 totais, aparecem em versos métricos. Trata-se de epitáfios que seguem as características dos epitáfios helenísticos em geral. A maioria se encontra em Leontópolis, no Egito (HORST, 1998, p. 2728). É digno de nota, contudo, que inclusive dois epitáfios encontrados em Beth She'arim 239, datados como oriundos do século III d.C., apresentam vocabulário e expressões homéricas reconhecíveis. Cito apenas os versos finais de um deles, que julgo suficientes para explicitar o fato: καὶ γ᾿ἐλθ[ὼν ε]ἰς Ἅδην Ἰοῦστο[ς … αὐτ]όθι κεῖμα[ι] σὺν πόλλοισιν ἑοῖς, ἐπὶ ἤθελε Μοῖρα κραταίη. Θάρσει, Ἰοῦστε, οὐδεὶς ἀθανατος. E tendo ido ao Hades, eu, Justus, jazo aqui, com muitos dos meus, visto que o quis a Moira poderosa. Coragem, Justus, ninguém é imortal! (BS II 127) Ir “ao Hades”, como observa van der Horst, não implica em uma concepção do mesmo como a dos gregos e seus poetas. Parece, pelo contrário, que se mantém a noção que na Bíblia hebraica é comunicada pelo termo ‫×ל‬Ø‫א‬q‫ ש‬- sheol. Mas, como o mesmo pesquisador 238 239 judeu, mas Collins me parece convincente ao demonstrar o contrário (COLLINS, 2000, p. 57-60). Menos significativo me parece o fato de que, conforme a transmissão de Eusébio (Praep. Ev. XIII 12ss) e Clemente de Alexandria (Strom. V, 14, 107), Aristóbulo citou versos (inventados) de Homero e Hesíodo para provar que ambos teriam tomado da Bíblia a ideia de que o sétimo dia é sagrado (cf. BERTHELOT, 2011, p. 145). Ainda que o testemunho dos escritores cristãos seja correto e identifique corretamente a fonte, deve-se observar o fato de que o texto não cita os autores épicos em destaque, mas entre muitas outras referências a vários filósofos e poetas. Há um importante cemitério em catacumbas de Beth She'arim. A localidade teria ganhado importância como lugar para sepultamento a partir do século II d.C.. Estava, inclusive, provida de estrutura adequada para banhos rituais adequados para grande público. Tais banhos seriam prescritos pela tradição rabínica aos que tiveram contato de segundo grau com o morto durante o funeral, isto é, que tenham tocado aqueles que tocaram o morto (cf. AMIT; ADLER, 2010. Para um detalhamento que explicita a relação entre os preceitos da Halakhah e os banhos rituais após sepultamentos, elucidando a questão dos locais para banho junto aos cemitérios, não restritos aos de Beth She'arim, confira-se ADLER, 2009). 138 observa, a referência à “Moira poderosa” é mais marcante. A expressão é formular para encerramento de versos nos poemas homéricos e dificilmente se harmoniza com a cosmovisão do judaísmo e da Bíblia hebraica (HORST, 1998, p. 35-36). E mesmo se apropriando de Homero, Justus se apraz em afirmar que está sepultado entre muitos dos seus (σὺν πόλλοισιν ἑοῖς – sùn pólloisin heoîs), outros judeus. É curioso observar que a localidade de Beth She'arim, na Galileia, norte de Israel, era um importante centro para os estudiosos do judaísmo, sendo também a tumba de muitos deles. Isso faz com que van der Horst indague: […] por que há dois epitáfios métricos em grego homérico na necrópolis de Beth She'arim, que era o lugar do túmulo do Rabino Judah ha-Nassi, o codificador da Mishnah, e de outros rabinos e de suas famílias? A frase de Tertuliano Quid Hierosolymis cum Athenis poderia ser refeita aqui como Quid Mishnae cum Homero?240 (HORST, 1998, p. 41) Responder a pergunta de van der Horst me seria impossível. Eu só observaria que existe a possibilidade da coincidência. Inclusive, é bom observar que não sabemos com certeza onde o Justus que ali está sepultado passou sua vida. 241 Como se tratava de um lugar muito requisitado para sepultamentos, não é impossível que viesse de outra localidade. Mas, ainda assim, depois de perceber por meio do epitáfio que a épica homérica poderia ser revestida de importância na vida de um judeu a tal ponto que ele a deixa gravada em seu túmulo, a pergunta “Quid Mishnae cum Homero” serve como ensejo para passar a outra questão, não relativa à Mishnah, mas à própria Torah. O que tem Homero com o estudo da Torah? Com a Torah em si, talvez Homero nada tenha, em princípio. Mas com a leitura da Torah, a leitura de Homero talvez tenha mais do que se vinha supondo. É comum que, ao se estudar as origens da leitura alegórica da Bíblia, se mencione a leitura alegórica dos poemas homéricos entre os gregos. Mas a relação pode ser mais intricada se for possível perceber uma relação entre os judeus alexandrinos e o estudo dos textos literários gregos desenvolvido na cidade. 240 241 Minha tradução de: […] why two metrical epitaphs in Homeric Greek in the necropolis of Beth She'arim which was the burial-place of Rabbi Judah ha-Nasi, the codifier of the Mishnah, and of other rabbis and their families? Tertullian's phrase Quid Hierosolymis cum Athenis could be rephrased here as Quid Mishnae cum Homero? Talvez van der Horst considere que Justus seja daquela região por dizer que está enterrado com os seus, conforme um dos versos que citei, mas não é possível precisar o que se deve entender por “seus”. Poderia ser sim sua família, mas também os demais judeus. Quiçá se trate da referência de alguém que, tendo vivido em outras terras, é sepultado em Israel. O verso 4, que não mencionei, refere-se a “minha Beth She'arim”, mas justamente a parte que identifica a cidade como própria do que profere as palavras é reconstruída, não estando legível na inscrição em si: ἐ[ν οἷς Β]εσάρ[οις] – e[n hoîs B]esár[ois]. 139 Em um estudo especificamente focado na questão da nomeação dos gêneros literários do Pentateuco por Fílon, Adam Kamesar encontra evidências de que ele reproduziria uma classificação dos gêneros elaborada no meio judaico-helenístico alexandrino séculos antes, em consonância com o que se desenvolvia entre os gramáticos de orientação aristotélica em sua abordagem da literatura grega. O pesquisador demonstra a novidade de sua observação nas seguintes palavras: “É algo surpreendente, pois isso sugere que pode ter havido um elo entre a interpretação judaico-helenística e a pesquisa peripatética/alexandrina muito mais consistente do que se reconhecia antes”242 (KAMESAR, 1997, p. 187). Mais recentemente, Maren Niehoff, não sem reconhecer a pertinência da pesquisa de Kamesar (NIEHOFF, 2011, p. 9), promoveu considerável avanço na reflexão. A pesquisadora propõe que é perceptível uma relação, seja de repulsa ou de apropriação, entre vários escritores judeus de Alexandria e as pesquisas em torno dos poemas homéricos que se realizavam no Museu da cidade, que se contrapunham às interpretações alegóricas. Os judeus de Alexandria que lidavam com o estudo da Bíblia não seriam informados a respeito de Homero somente pela via popular da recepção dos poemas, mas também pelo meticuloso estudo dos textos que ali se desenvolvia: Meu argumento a favor de conexões estreitas entre a pesquisa bíblica e homérica também aponta para a integração dos judeus alexandrinos na cultura da elite da cidade. Pensadores judeus estavam familiarizados com os métodos acadêmicos desenvolvidos e discutidos no Museu, que permanecia sem impacto visível entre a mais ampla população do Egito helenístico. 243 (NIEHOFF, 2011, p. 13) Em uma primeira parte de sua pesquisa, que consiste sobretudo na comparação de interpretações da Bíblia no âmbito do judaísmo de língua grega com métodos alexandrinos revelados em escólios dos poemas homéricos, a autora estuda indícios do relacionamento com a pesquisa do Museu em obras que teriam sido escritas por judeus em meados do segundo século a.C. na cidade de Alexandria: a Carta de Aristeias, e escritos de Demétrio, o cronógrafo, e Aristóbulo.244 O autor da Carta de Aristeias teria uma atitude conservadora frente ao que se desenvolvia nos estudos homéricos, reagindo contra qualquer possibilidade 242 243 244 Minha tradução de: This is somewhat surprising, for it suggests that there may have been a link between Judaeo-Hellenistic interpretation and Peripatetic/Alexandrian scholarship which was much firmer than has been previously acknowledged. Minha tradução de: My argument for close connections between Homeric and biblical scholarship also points to the integration of Alexandrian Jews in the elite culture of the city. Jewish scholars were familiar with academic methods developed and discussed at the Museum, which remained without visible impact among the broader population of Hellenistic Egypt. Desses dois últimos só nos chegaram fragmentos. 140 de se esmiuçar o texto da LXX com vistas a encontrar nele interpolações tardias (NIEHOFF, 2011, p. 19ss). Já os outros dois apresentariam posturas bem mais favoráveis e em sintonia com o que se desenvolvia no Museu, apresentando formas de interpretação bem mais próximas daquelas da tradição aristotélica (NIEHOFF, 2011, p. 38-74). Em seguida, Maren Niehoff aborda especificamente a obra de Fílon. Primeiro, ela procura demonstrar que certos (e vários) intérpretes das escrituras a que Fílon se opõe em seus textos, sem mencionar seus nomes, aplicavam justamente métodos em uso pelos gramáticos do Museu. A partir das informações que o próprio Fílon oferece a respeito da prática hermenêutica desses intérpretes opositores, a pesquisadora consegue identificar três diferentes tipos de abordagem praticados por judeus em Alexandria: mitologia comparada (NIEHOFF, 2011, p. 77-94), estudo do texto em perspectiva histórica (NIEHOFF, 2011, p. 95-111) e crítica textual, no sentido mesmo da tentativa de identificação de uma versão mais confiável do texto, livrando-o de interpolações (NIEHOFF, 2011, p. 112-129). Por fim, a pesquisadora foca suas análises nas interpretações do próprio Fílon, estudando seus tratados conforme a já tradicional divisão em Comentário Alegórico, Exposição da Lei e Questões e Respostas. Especialmente na série chamada Comentário Alegórico, que seria destinada a um público já instruído nas escrituras judaicas, Niehoff constata que Fílon demonstra desenvoltura ao aplicar em sua interpretação da Bíblia métodos de estudo literal do texto próprios da pesquisa praticada em Alexandria sobre os textos de Homero. Contudo, Fílon não resolve os problemas do texto da maneira como se fazia entre os homeristas alexandrinos. Ele não admite assinalar trechos da Torah como interpolações, nem compará-los com mitos.245 Recorre, pois, à alegoria de conteúdo platônico para mostrar que os 245 Alguém poderia dizer que Maren Niehoff se esquece de mencionar Praem. 23 como uma exceção em que Fílon aceita tratar a narrativa bíblica como mito comparável a mito de outra cultura. Cheguei a cogitar uma crítica nesse sentido, já que o trecho não é mencionado no livro. Mas embora o trecho seja especialmente interessante, entendo que não contém, no entender de quem o escreve, comparação de mitos. Ele afirma que aquele que os gregos chamam pelo nome Deucalião é chamado Noé entre os hebreus. Contudo, parece não considerar ambos como personagens de mitos comparáveis, mas como uma mesma figura, sem negar sua historicidade. Inclusive, localiza Noé/Deucalião no tempo, indicando o dilúvio como referência. O modo como os aproxima é semelhante ao que faz a respeito de Sócrates e Taré em Somn. 1.58.. Assim, parece-me haver uma aproximação muito interessante no passo, mas não uma consideração da narrativa bíblica como mito. Há, talvez, a partir do ponto de vista de Fílon, uma interpretação do texto bíblico com relação a sua localização em histórica, o que não deixa de ensejar uma reflexão e uma pesquisa que seria proveitosa, inclusive tendo em consideração o contexto dos estudos homéricos em Alexandria. Infelizmente, Fílon menciona a identificação de Noé e Deucalião como uma mesma figura de passagem e não desenvolve a reflexão, de modo que não é possível apreender todas as implicações que ele percebe no fato. É possível que ele retirasse um pouco da ênfase na identificação, como faz no prosseguimento do referido trecho de Somn. 1 a respeito de Sócrates e Taré. 141 aparentes problemas do texto em seu sentido literal se explicam pelo sentido oculto que proporcionam (NIEHOFF, 2011, p. 133-151).246 Há, certamente, questões controversas propostas por Maren Niehoff que, provavelmente, devem ser discutidas nos próximos anos. Algumas afirmações categóricas que faz podem parecer resultado da sobrevalorização de pequenos indícios em estado fragmentar.247 Mas, entre outros alcances de seu livro, ela demonstra, com indícios pontuais, algo que já era bastante razoável pensar: Fílon está atento para os métodos de leitura nãojudaicos que se realizavam há séculos em Alexandria e, especialmente, está informado das leituras literais que se faziam de Homero. Seria mesmo inusitado pensar que um estudioso atento para os mais diversos âmbitos da cultura helenística, da filosofia, da historiografia e da literatura, negligenciasse algo que se desenvolvia em sua própria cidade. Ora, disso conclui-se que Fílon e alguns de seus colegas judeus alexandrinos não estão somente habituados à leitura de Homero, mas também ao estudo detido de seu texto, conscientes dos vários tratamentos que são dados a seus versos. O alexandrino não será, pois, capaz somente de decorar alguns versos do poeta de Quios e mencioná-los esporadicamente. Se essa impressão é verdadeira, o que é reforçado pelo livro de Niehoff, posso supor que Fílon não só lê Homero, mas entende de Homero, a ponto de mobilizar seus versos em sua escrita de modo competente e arguto. Erkki Koskenniemi observou que Fílon cita Homero com frequência e, apesar de 246 247 O estudo de Niehoff me parece muito mais consistente que o empreendido por Folker Siegert, que compara a abordagem de Fílon com a de Strabo. Siegert nega qualquer uso consciente por parte de Fílon de métodos do Museu. Alguns pontos de seu texto me parecem especialmente problemáticos. Por exemplo, ele acusa erro por parte de Fílon defender textos “prescritivos” quando uma crítica foi feita a textos “narrativos” em Conf. 2 (SIEGERT, 2011, p. 396-397). Um leitor de Fílon sabe que para o alexandrino essa distinção entre texto “narrativo” e “prescritivo”, embora percebida como diferença de gênero textual, não é absoluta. A parte narrativa da Torah também é Lei para Fílon. Outro ponto que me parece falho é acusar o não recurso de Fílon à crítica textual, pela comparação de manuscritos (SIEGERT, 2011, p. 399), e não ressaltar que a atitude é justificada pela concepção claramente formulada que ele tem a respeito da inspiração, da perfeição verbal, e necessidade de preservação integral do texto da LXX em seus detalhes. Certamente, contudo, que esses descuidos do professor Siegert não se devem a uma falta de conhecimento por parte do pesquisador, mas sim ao tom apaixonado e combativo de seu texto, no qual chega a afirmar que no âmbito da Igreja “se canonizou a negligência de Fílon” [on a canonisé la négligence de Philon] (SIEGERT, 2011, p. 401). Maren Niehoff demonstrou que não se trata de negligência, mas de uma opção pensada de Fílon a não adoção dos métodos utilizados nos estudos homéricos praticados em Alexandria. Estou pensando em afirmações como a seguinte, a respeito dos judeus alexandrinos cujas leituras seriam percebidas a partir do texto de Fílon, que os combate: “Eles fizeram uma contribuição altamente original para a pesquisa alexandrina, porque aplicaram noções aristotélicas de modo ainda mais consistente a seu próprio texto fundacional que seus colegas gregos tinham feito no contexto da épica homérica” [they made a highly original contribution to Alexandrian scholarship, because they applied Aristotelian notions even more consistently to their foundational text than their Greek colleagues had done in the context of the Homeric epics.] (NIEHOFF, 2011, p. 129). 142 apontar para a possibilidade de que tenha esses versos decorados por consequência de sua formação, chega a supor que o alexandrino tivesse uma biblioteca particular provida com os poemas do educador da Grécia (KOSKENNIEMI, 2010, p. 304). 248 Ademais, o que é mais importante, o pesquisador finlandês observou que, embora demonstre ser preciso, para preservar inclusive as peculiaridades dialetais dos versos citados, Fílon pode deliberadamente alterar algo no texto por razões teológicas (KOSKENNIEMI, 2010, p. 322). A constatação de Koskenniemi é certa. Contudo, resta observar melhor a dinâmica das citações na negociação desenvolvida por Fílon, e, inclusive, perceber como essas “razões teológicas” se inserem no processo intercultural. Katell Berthelot dá um passo nessa direção, e procura demonstrar por meio de alguns exemplos que: Fílon cita ou se refere a Homero como a um autor, se não inspirado, ao menos dotado de uma grande sabedoria. A obra homérica pode ser invocada para dar suporte a um ensinamento filosófico, como no mundo grego, mas também para ilustrar a verdade de um ensinamento bíblico, ou seu significado universal. Existe para Fílon uma convergência e um acordo, em certos casos ao menos, entre os dois grandes textos de referência da cultura grega e da cultura judaica, um e outro se reforçando mutuamente no plano hermenêutico.249 (BERTHELOT, 2011, p. 150) Nesse breve trecho, Berthelot consegue evidenciar a complexidade da relação de Fílon com Homero, ou melhor, das relações que se mostram nos escritos de Fílon com respeito aos poemas homéricos. Sugerir que Fílon pudesse considerar Homero um autor inspirado me parece um exagero.250 Felizmente, a pesquisadora não chegou a tal nível de ênfase. Além desses detalhes, a única diferença que eu marcaria é que, do meu ponto de vista, a tal convergência que ela entende existir para Fílon, é, antes, algo construído pelo alexandrino, negociado no discurso em momentos específicos. Por isso, ela tem que fazer certa ressalva, dizendo “em certos casos ao menos”. Não se trata de algo que existe, que há, estaticamente, mas de algo que se negocia, algo que, como a identidade que é construída por 248 249 250 A hipótese me parece ter caráter bastante imaginativo. Contudo, embora não tenha indícios que a sustentem, tampouco gera consequências importantes. O máximo que julgo poder ser dito é que Fílon provavelmente tinha acesso, de alguma forma, aos poemas homéricos em manuscritos. Minha tradução de: Philon cite ou se réfère à Homère comme à un auteur sinon inspiré, du moins doté d'une grande sagesse. L'oeuvre homérique peut être invoquée pour étayer un enseignement philosophique, comme dans le monde grec, mais aussi pour illustrer la vérité d'un enseignement biblique, ou sa portée universelle. Il existe pour Philon une convergence et un accord, dans certains cas au moins, entre les deux grands texts de référence de la culture grecque et la culture juive, l'un et l'autre se renforçant mutuellement sur le plan herméneutique. Volto a essa questão adiante, ao mencionar citação feita por Sêneca, na qual certo texto de um poeta é apresentado como possivelmente inspirado (p. 148). 143 meio dos discursos, se coloca de modo diverso conforme a situação. Essa hipótese influenciará em alguma medida as leituras que apresentarei neste capítulo. 4.2 A prática da citação na Antiguidade Em princípio, citar é algo simples. Consiste em recolher parte de um discurso e fazê-la acolhida em outro. Mas, para tanto, é preciso um escritor, um discurso que possa acolher parte de outro, e esse outro discurso, que é necessariamente dotado de alguma característica que o faça citável. Julie Sanders bem observa: … a adaptação e a apropriação tendem, em geral, a operar dentro dos parâmetros de um cânone estabelecido, servindo certamente, algumas vezes, para reforçar tal cânone ao assegurar um interesse continuado na fonte original do texto, embora em circunstâncias revisadas de entendimento. 251 (SANDERS, 2006, p. 97-98) Embora Sanders se ocupe de objetos de estudo e fenômenos intertextuais diferentes daquele que é estudado aqui, a citação em um autor da Antiguidade, sua observação é útil em diferentes sentidos. Primeiramente, por assinalar a necessidade de um cânone, isto é, de um texto ou conjunto de textos que seja entendido por um grupo de pessoas como tendo valor especial, que o faça ser continuamente lido, referido e reconhecido. Além disso, ela faz notar que, embora o texto que lança mão do outro dele se sirva, também serve a ele, pois contribui para sua perpetuação no cânone. Mas a autora bem fala de “circunstâncias revisadas de entendimento”, que se instauram no novo texto, ou, no caso específico do fenômeno que me interessa, no texto citante. Essa dinâmica será observada no caso de Fílon. Como se verá, ao citar Homero, ele não deixa de participar de uma comunidade de literatos que perpetuam a canonicidade do poema. Poder-se-ia pensar, inclusive, que contribui de modo especial para a perpetuação de tal canonicidade em seu âmbito mais específico (como quer que o consideremos ou nomeemos: judaísmo helenístico, helenismo judaico, literatura religiosa judaica e cristã etc). Mas também será evidenciado de modo claro o fato de que Fílon pode propiciar novo entendimento dos versos que cita. Ele não é subserviente ao cânone, mas um leitor/escritor que ativamente se impõe no processo de criação, não restringindo seu texto a si mesmo, mas também não doando sua significação a uma autoridade literária alheia de modo definitivo. Ele negocia sentidos, referências e estatutos de canonicidade. Bem, mas o que me fez citar o trecho do livro Sanders, que ensejou esses 251 Minha tradução de: … adaptation and appropriation tend on the whole to operate within the parameters of an established canon, serving, indeed at times to reinforce that canon by ensuring a continued interest in the original or source text, albeit in revised circunstances of understanding. 144 comentários antecipados, em princípio, foi a relevância do cânone nas relações intertextuais. E o fiz para assinalar que, quando se trata de estudar citação em textos antigos, um problema é a frequente indisponibilidade do registro do discurso do qual advém o texto citado, o que, frequentemente, torna inviável identificar com precisão o fenômeno, ou mesmo identificá-lo absolutamente se o trecho do discurso alheio não é apresentado como tal no texto que o acolhe. E ainda que a citação não seja anunciada, não é possível dar a ela outro nome, como considerando que o escritor usurpasse palavras alheias esperando que isso passasse despercebido, pois é igualmente possível que o trecho que ele aproveita fosse amplamente conhecido pelos receptores almejados para seu texto, embora completamente ignorado por nós, isto é, que a fonte fosse evidente e não precisasse de apresentação. 252 Considerarei, então, nesta discussão inicial, preferentemente apenas as citações que se declaram como tal. Recolher parte de um discurso e apresentá-lo em outro, explicitando o ato com informação mínima de sua origem exótica é uma prática antiga. Semônides de Amorgos, lírico do século sétimo a.C.253, cita um verso em uma elegia, atribuindo-o a outro, indicado como “o homem de Quios” (χῖος ἀνήρ – khîos anér). O verso é tomado da Ilíada (VI 146), núcleo de um conhecido símile que contrapõe folhas e seres humanos. O lírico desenvolve nos versos subsequentes à citação uma ideia semelhante à que é comunicada pelo símile homérico em seu contexto original. Embora em um contexto poético, Semônides produziu uma espécie de citação com alguma importante semelhança para com o tipo de repetição do discurso alheio que me interessa em Fílon. Ele cita um verso de Homero para, a partir desse texto dotado de autoridade tradicional, expor um ensinamento. É um ato diferente do praticado pelo comentador, por exemplo, que somente repete trechos do poema para expor sua interpretação sobre o mesmo. Embora comente o texto recolhido, o poema de Semônides não se apresenta meramente como comentário com vistas à explicação do verso somente, mas como meio de transmissão de um ensinamento.254 252 253 254 O problema se faz ainda mais complexo se considerarmos como possíveis citações fenômenos de um período (anterior ao de Fílon) de maior importância da oralidade, no qual a escrita ainda não era o meio (exclusivo) utilizado para a composição dos poemas. Há uma persistente discussão a respeito da autoria e, por conseguinte, da datação do poema. M. L. West, por exemplo, considera que o poema não deve ser atribuído a Semônides de Amorgos nem a seu tempo. Adoto, contudo, o ponto de vista defendido por Teodoro Rennó Assunção (ASSUNÇÃO, 2004, p. 72 - 76; ASSUNÇÃO, 2007, p. 40-42). Tomo o poema de Semônides como exemplo por ser possivelmente uma das mais antigas e preservadas ocorrências de citação explícita entre os poetas arcaicos. Se fosse o caso de seguir com outros exemplos entre líricos, seria possível mencionar a correção de Mimnermo (6W) por Sólon 145 A citação da obra de poetas por não poetas também não é estranha em ambiente helênico. E não só retores, mas também os mais afamados filósofos de Atenas recorreram a versos poéticos para ilustrar suas exposições. Decerto, a citação de Homero em Platão implica em problemas complexos, tanto pelo gênero dialógico de seus escritos, que atribui as palavras a terceiros, quanto pela conhecida posição de seu protagonista predileto, Sócrates, com respeito ao poema homéricos. Embora as citações existam em quantidade razoável nos diálogos, é possível perceber que são feitas não com a função de respaldar um ensino ou comprovar uma afirmação, mas para a demonstração da impertinência das próprias citações. Homero é citado para atestar a necessidade de se silenciar Homero quando se busca, pela dialética, uma compreensão ampla das coisas (cf. BOUVIER, 2004). Aristóteles, por sua vez, não citou os poetas somente para comentá-los como poesia, seja positiva ou negativamente. Na Ética a Nicômaco, por exemplo, recorre a diferentes poetas, e, inclusive, para explicitar uma noção de “coragem”, cita palavras proferidas por Diomedes e Heitor na Ilíada255 (Étic. Nic. III 8), além de outros versos e expressões dos poemas homéricos. A obra dos poetas talvez sirva como exemplo que facilita a compreensão justamente por ser algo compartilhado por aquele que ensina e por aquele que recebe o ensino. Entre os estoicos, Crisipo foi especialmente profuso em citações dos poetas. E foi criticado por esse costume. Segundo Diógenes Laércio, em um de seus tratados, Crisipo teria citado a Medeia de Eurípides quase toda, de modo que alguém que a lia respondeu ao que lhe perguntava o título do livro que tinha nas mãos: “a Medeia de Crisipo” (Χρυσίππου Μήδειαν – Khrysíppou Médeian, Vida dos Filósofos Ilustres VII, 7, 180). Ademais, Apolodoro ateniense teria afirmado em tom crítico: εἰ γάρ τις ἀφέλοι τῶν Χρυσίππου βιβλίων ὅσ᾽ ἀλλότρια παρατέθειται, κενὸς αὐτῷ ὁ χάρτης καταλελείψεται. Se alguém retirasse dos livros de Crisipo todas as passagens alheias que são citadas, restaria para ele uma folha em branco. (Vida dos Filósofos Ilustres VII, 7, 181) Embora não tenhamos disponíveis longos tratados escritos por Crisipo, uma 255 (26 G. e P.) (Cf. ASSUNÇÃO, 2002/2003) ou alguma utilização de Homero por Píndaro (cf. NAGY, 1990). Ilíada XXII, 100 e VIII, 148-149, respectivamente. 146 consulta aos fragmentos que nos chegaram, bem como aos relatos a respeito de seus escritos256, é suficiente para confirmar o fato de que ele costumava citar trechos de obras poéticas para respaldar e comunicar seu próprio ensino. Plutarco repetidas vezes relata citações feitas por Crisipo, como no seguinte trecho: Χρύσιππος ἀποφαίνει μήτε κακίας ὑπερβολὴν ἀπολείπειν μήτε κακοδαιμονίας τὸν βίον ὥστ᾽, εἰ λάβοι φωνήν, εἰπεῖν ἂν αὐτὸν τὰ τοῦ Ἡρακλέους γέμω κακῶν δή, κοὐκέτ᾽ ἔσθ᾽ ὅπου τεθῇ. Crisipo mostra que a vida não admite acréscimo de males nem de tristeza, de modo que, se tivesse voz, ela poderia dizer as palavras de Héracles: 'estou cheio de males, e já não há lugar para que mais se coloque.' (De Stoic. 31) Além de registrar a citação que Crisipo realizou, Plutarco revela minimamente como o verso257 se relaciona com o argumento do filósofo. Neste outro trecho, isso fica ainda mais claro: μικρὸν προελθών ‘τὰ γὰρ ἐπιγιγνόμενα’ φησὶ ‘πάθη ἐκκρούει τοὺς λογισμούς, καὶ τὰ ὡς ἑτέρως φαινόμενα βιαίως προωθοῦντα ἐπὶ τὰς ἐναντίας πράξεις:’ εἶτα χρῆται μάρτυρι τῷ Μενάνδρῳ λέγοντι οἴμοι τάλας ἔγωγε, ποῦ ποτε φρένες ἡμῶν ἐκεῖνον ἦσαν ἐν τῷ σώματι τὸν χρόνον, ὅτ᾽ οὐ ταῦτ᾽ ἀλλ᾽ ἐκεῖν᾽ ᾑρούμεθα; Indo um pouco adiante, [Crisipo] diz: “Pois as paixões que sobrevêm repelem os raciocínios e fazem os fenômenos pareceram diferentes, urgindo com força para as ações contrárias.” Em seguida, como testemunho, se utiliza de Menandro que diz: 'Ai de mim, eu mesmo um sofredor, onde é que nossos miolos estavam no corpo naquele tempo, que não escolhemos isso, mas aquilo?' (De Virt. 450c) Crisipo, então, ao expor um pensamento estoico, recorre a versos do comediógrafo como testemunho. E, embora os dois exemplos que escolhi sejam de Plutarco, não é preciso suspeitar que esse fato seja atestado somente por ele. Diógenes Laércio, Galeno e outros também o deixam evidente. Por essa avultada quantidade de citações e pela característica das mesmas, Erkki Koskenniemi chega a afirmar: Obras clássicas levavam testemunho para a filosofia estoica, desde que fossem corretamente interpretadas. Isso é precisamente também o que Fílon fazia. Ele estava certo de que a Escritura continha a última verdade, e que uma parte (na verdade, a melhor parte) da sabedoria grega clássica era compatível com ela. Aqui nós temos a razão para as numerosas citações en 256 257 Sugiro consulta a Stoicorum veterum fragmenta (ARNIM, 2004) ou a um dos tratados de Plutarco em que há explícita polêmica contra os estoicos. Nesse caso, trata-se de um verso de Eurípides: Herc. Fur. 1245. 147 passant nos textos de Fílon. Crisipo forneceu a ele tanto o conceito quanto o modelo literário.258 (KOSKENNIEMI, 2006, p.147-148) A explicação do recurso de Fílon aos poetas gregos meramente embasada em uma prática semelhante comumente realizada por um autor específico não me parece apropriada. Ainda que a semelhança seja flagrante em alguns casos, é preciso considerar a distância temporal entre os autores, não no sentido de negar a possibilidade de relação direta entre um e outro, mas para considerar a repercussão da prática da citação, intensificada talvez por Crisipo, em um plano mais amplo do universo discursivo compartilhado por Fílon. Dos tempos de Crisipo (século III a.C.) ao tempo de Fílon, não existe um vácuo, mas uma vasta produção escrita realizada por diferentes autores. Não me vejo em condições de aferir com precisão a dimensão do passo que o filósofo estoico dá além do que praticava Aristóteles, por exemplo. O máximo que posso dizer é que ele conferiu uma dinamicidade à citação que se faz ecoar em textos posteriores. Ele não é o modelo de Fílon, mas propulsor de toda uma tradição, de um recurso que se torna comum. Assim, não diria que Fílon cita necessariamente porque Crisipo citou. Mas ele, talvez, cite, porque em seu tempo, em parte devido a Crisipo, o tipo de citação que faz é reconhecido como recurso discursivo plausível. Em artigo posterior, Koskenniemi ampliará um pouco sua leitura e diz que Fílon “segue a maneira de Crisipo e dos estoicos” (KOSKENNIEMI, 2010, p. 322). É prudente a ampliação, ainda que sem referências nominais. A ausência de nomes de outros estoicos citantes talvez se dê pela incerteza de qual escolher como exemplo. Eu não hesitaria em mencionar Sêneca, filósofo que escreve em latim, mas que tem considerável importância por ser um prolixo e muito conhecido estoico contemporâneo de Fílon. Em De Brevitate Vitae, por exemplo, encontramos: quibusdam nihil, quo cursum derigant, placet, sed marcentis oscitantisque fata deprendunt, adeo ut quod apud maximum poetarum more oraculi dictum est, verum esse non dubitem : "Exigua pars est vitae, qua vivimus." A alguns não agrada nada que dirija seu curso, mas as calamidades (os destinos) os surpreende enquanto se deitam e bocejam, de tal modo que não duvido que seja verdade o que é dito no maior dos poetas à maneira de um oráculo: “Escassa é a parte da vida que vivemos”. (Brev. Vit. II, 2) O trecho é interessante porque também Fílon pode apresentar poetas com esse tom 258 Minha tradução de: Classical works bore witness to the Stoic philosophy, provided they were correctly interpreted. This is precisely what also Philo did. He was certain that the Scripture contained the ultimate truth, and that a part (actually the best part) of classical Greek wisdom was compatible with it. Here we have the reason for the numerous quotations en passant in Philo's texts. Chrysippus offered him both the concept and the literary model. 148 laudatório, aqui aparente pela expressão “o maior dos poetas” (maximum poetarum)259, e pode também, até mesmo, aproximar um verso poético aos oráculos (cf. adiante p. 196-197). Mas seria precipitado, certamente, afirmar uma dependência entre os dois. Lembro que o que almejo evidenciar é simplesmente a vigência do recurso à citação de poetas nos textos de pensadores do século I. Sem dúvida, contudo, as semelhanças entre esses e outros autores não devem ocultar a significância de pequenas diferenças e peculiaridades de cada um. Cito mais um trecho de Sêneca que facilitará o argumento. Ele cita um verso das Geórgicas de Virgílio (III 66): Clamat ecce maximus vates et velut divino ore instinctus salutare carmen canit: Optima quaeque dies miseris mortalibus aevi prima fugit. "Quid cunctaris ?" inquit, "Quid cessas? Nisi occupas, fugit." Et eum occupaveris, tamen fugiet ; itaque cum celeritate temporis utendi velocitate certandum est et velut ex torrenti rapido nec semper ituro cito hauriendum. Hoc quoque pulcherrime ad exprobrandam infinitam cunctationem, quod non optimam quamque aetatem sed diem dicit. Eis que o maior poeta declara, e canta um proveitoso canto como se impelido pela fala de um deus: 'O melhor dos dias da vida, para um mortal miserável, é o primeiro a ir-se.' “Por que hesitas?” - diz - “Por que ficas parado? Caso não tomes posse, ele se vai”. E se tiveres tomado posse dele, ainda assim se irá. Por conseguinte, é preciso competir com a celeridade do tempo na velocidade em que ele deve ser usado, e como de uma rápida torrente, que não vai correr para sempre, é preciso beber velozmente. E também é excelente, para que seja reprovada a procrastinação sem limites, o fato de que não diz o melhor 'período da vida', mas 'dia'. (Brev. Vit. IX, 2) O pequeno trecho exemplifica a utilização de um verso poético 260 para o ensino de uma doutrina e, ao mesmo tempo, realça o valor sapiencial atribuído ao mesmo pelo filósofo, por meio de uma descrição da enunciação do poeta como inspirada por uma divindade. Fílon também recorrerá a poetas ilustres em seus ensinos, e, de modo semelhante, não deixará de conceder-lhes adjetivos de modo benevolente, conforme adiantei. Mas a inspiração divina, para ele, implica em questões que não teriam ocupado o filósofo romano. Assim, não é esperado que um tipo de inspiração divina seja atribuído por Fílon a um poema épico, lírico ou peça trágica.261 Uma semelhante relação com a divindade podem ter as palavras da Torah e de sua tradução ao grego (Mos. 2.37-40)262, além das de um profeta (Conf. 44, Cher. 49), do 259 260 261 262 Embora receba tal caracterização por parte do filósofo, o autor do verso nos é desconhecido. Trata-se do verso 66 do terceiro canto das Geórgicas de Virgílio. O exemplo que contraponho a Fílon é latino, mas, entre os gregos é considerável a atribuição de algo semelhante a Homero (Cf. BUFFIÈRE, 1956, p. 25-31). cf. PAUL, 2000, 207-213. 149 livro de Reis (Conf. 148), e até dele mesmo (Cher. 27).263 Quanto a palavras de poetas, o alexandrino pode concordar que tenham sido ditas “de modo filosófico” (φιλοσόφως – philosóphos, Prob. 48), ou “não sem propósito” (οὐκ ἀπὸ σκοποῦ – ouk apò skopoỹ, Abr. 134). Poetas podem ser corretos filosoficamente e pertinentes no que dizem. Mas implicar a divindade, concebida por Fílon como única e pessoal, no que é proferido no poema teria implicações subsequentes. A concepção teológica (assim como outros tantos fatores) interfere na arquitetura das citações. Outro ponto de comparação ensejado pelo trecho citado é o elogio à precisão das palavras apresentadas no verso, algo que é comparável aos elogios que Fílon faz à formulação das frases, não dos poetas, mas frequentemente de Moisés (cf. Somn. 2.72). Além de servir como exemplo para uma mínima comparação contemporânea, que permite vislumbrar o empreendimento de Fílon como algo esperado em seu ambiente discursivo, mas também dotado de especificidades, a menção a Sêneca suscita oportunidade para outra observação. Como era tanto filósofo quanto poeta, faz lembrar que a relação entre poesia e estoicismo não teve um sentido apenas. A naturalidade com que os filósofos citaram vários poetas, é a mesma com que doutrinas filosóficas da escola se introduziram em versos poéticos. Isso aconteceu tardiamente, entre os fins do século I a.C. e do I d.C., na produção literária romana (GILL, 2006, p. 60), mas já tinha um exemplo antigo no Hino a Zeus, de Cleantes264. Não pretendo explorar todas as possíveis repercussões dessa interação dinâmica entre filosofia estoica e poesia, mas mencioná-la torna mais compreensível a plausibilidade da citação de textos poéticos no século I d.C., em meio a argumentos a respeito de ética, cosmologia ou outro assunto próprio dos filósofos. Provavelmente, Fílon não recorre a Crisipo de modo isolado, como tendo escolhido seu modelo. Ele se forma como escritor em um ambiente que favorece semelhante recurso. Embora essa relação com a prática de outros escritores contemporâneos seja suficiente para justificar a prática de citação, não é fora de propósito considerar que Fílon perceberia nisso algum paralelo com sua experiência de citar o texto bíblico, tanto para interpretá-lo quanto para embasar a interpretação de outro texto bíblico em estudo. Por isso, observarei rapidamente a questão da citação da Bíblia em contexto judaico anterior a Fílon. No âmbito da própria Bíblia hebraica, será difícil apreciar com precisão processos 263 264 Muito embora não pareça de todo impossível que, em princípio, algo parecido pudesse ser dito a respeito de palavras algum escritor grego, em alguma situação específica, já que o grupo dos pitagóricos, por exemplo, pode ser caracterizado como “sacratíssimo” (ἱερώτατον – hierótaton, Prob. 2) Considero o referido hino como expressão da doutrina estoica conforme a leitura de ASMIS, 2007. 150 de citação e alusão. São quase inexistentes as citações 265, e é difícil distinguir a existência de reais alusões ou de meras coincidências ou utilizações de tradições comuns, devido à dificuldade de datação e, por conseguinte, de estabelecimento de relação cronológica entre os textos.266 Fora da Bíblia hebraica, contudo, as citações da Torah e de outros livros da Tanakh se farão frequentes em textos que, como muitos dos de Fílon, procuram dar-lhes interpretações. Será o caso dos Pesharim encontrados nos manuscritos de Qumran (cf. BERRIN, 2005), de diversos textos do Novo Testamento, e da interpretação rabínica que se pode discernir a partir da Mishnah (cf. SAMELY, 2002). Conforme Devorah Dimant, as citações praticadas nesses textos são predominantemente “citações de exposição”, isto é, são bem definidas, e apresentam o trecho bíblico para fazer uma exposição de seu significado em seguida. Diferentemente, em outro grupo de textos, os chamados apócrifos ou pseudepígrafos, a pesquisadora encontra mais citações que ela chama “citações de composição”, que se manifestam geralmente como repetições que, eventualmente não anunciadas, são utilizadas na composição de um novo texto, o qual, embora conceda interpretação às palavras bíblicas, não o faz de modo explícito (DIMANT, 1988, p. 382-383). Entre os pseudepígrafos e apócrifos, Dimant encontra alguns exemplos de citações explícitas, seja pela introdução do nome do responsável pelas palavras no texto bíblico ou alguma outra indicação da fonte (DIMANT, 1988, p. 385), seja pela referência a um personagem ou circunstância da narrativa bíblica que providencia uma espécie de aviso quanto à citação (DIMANT, 1988, p. 391). A maior parte das repetições de trechos dos discursos bíblicos, contudo, ocorre como citações implícitas. Expressões ou frases inteiras do texto bíblico passam a fazer parte de um novo texto sem que sejam anunciadas (DIMANT, 1988, p. 400ss). Parte da literatura estudada por Dimant sob os nomes de pseudepígrafos e apócrifos foi produzida ou traduzida em Alexandria. Ainda assim, é difícil afirmar categoricamente que Fílon a tenha acessado com frequência e em grande quantidade. Mas é razoável ter em mente que, ainda que estivesse ancorado em uma tradição de escrita grega, tendo sido instruído na formação comum dos gregos 267, ele fosse capaz de reconhecer uma 265 266 267 A única explícita de que tenho conhecimento está em 2 Reis 14:6, que cita Dt 24:16. Cf. uma discussão a esse respeito entre ESLINGER, 1992 e SOMMER, 1996. Que Fílon era instruído na formação comum dos gregos e além é obviamente evidenciado pela forma e conteúdo de seus próprios escritos. Há, ainda, alguns trechos destes que o assinalam, como Spec. 2.230. Cf. MARTÍN, 2009, p. 14-15; BORGEN, 2005, p. 16-17. 151 prática de citação dinâmica, variada e, em alguma medida, semelhante, sendo realizada em outros textos que tratavam e recuperavam temas e palavras das Escrituras. No decorrer deste capítulo, ficará patente que o alexandrino também apresenta semelhante dinamicidade e variedade no uso das citações dos poemas gregos, fazendo repetições de versos e expressões tanto anunciadas (por vezes, com precisa indicação da fonte) quanto implícitas, pelo entrelaçamento de palavras alheias em seu próprio texto. 4.3 Qual a apreciação de Fílon a respeito dos poetas? É possível antecipar que a complexidade e variedade do uso das referências a Homero (e outros poetas) em Fílon refletem uma proporcional complexidade que ele tem na apreciação dessas obras, que não deixa de estar relacionada, de alguma forma, com a negociação intercultural que se percebe em sua escrita. Em dois trechos de Todo homem bom é livre, tratado filônico que apresenta um uso dos textos poéticos diferente do que se verifica na maioria dos demais268, o alexandrino justifica o recurso aos poetas: Th=j de\ spoudai¿wn e)leuqeri¿aj ma/rture/j ei¹si poihtaiì kaiì suggrafeiÍj, wÒn taiÍj gnw¯maij àEllhnej o(mou= kaiì ba/rbaroi sxedo\n e)c au)tw½n sparga/nwn e)ntrefo/menoi beltiou=ntai ta\ hÃqh, pa=n oÀson e)c u(paiti¿ou trofh=j kaiì diai¿thj e)n taiÍj yuxaiÍj kekibdh/leutai metaxaratto/menoi pro\j to\ do/kimon. Testemunhas a respeito da liberdade dos bons são os poetas e escritores, em cujos entendimentos tanto gregos quanto bárbaros sendo criados quase desde os próprios cueiros são aperfeiçoados quanto aos costumes, moldando novamente em forma genuína tudo que, nas almas, foi adulterado por meio de alimento e modo de vida condenáveis. (Prob. 98) dia\ ti¿ de\ ou) me/llomen; paideutaiì ga\r ouÂtoi¿ ge tou= su/mpantoj bi¿ou, kaqa/per i¹di¿# goneiÍj paiÍdaj kaiì ouÂtoi dhmosi¿# ta\j po/leij swfroni¿zontej Por que não haveríamos de fazê-lo [nos dedicarmos ao que dizem os poetas]? Pois eles são educadores da vida como um todo, assim como os pais dão senso aos filhos no âmbito privado, eles o dão aos cidadãos no âmbito público. (Prob. 143) Diferente, e praticamente oposto ao que se encontra na República de Platão, os poetas (e escritores de textos em prosa) são elogiados por Fílon pelo potencial que seus escritos têm de promover um aperfeiçoamento moral dos cidadãos, algo apresentado como fato observado na realidade. É, obviamente, algo adequado para ser afirmado em um texto no 268 Fato que será evidenciado no primeiro Excursus disposto ao final deste capítulo (p. 196). 152 qual se lança mão repetidas vezes de textos poéticos em meio aos argumentos. Mas é inevitável lembrar da diferenciação que Fílon estabelece entre o texto bíblico e o de Homero, com vistas a excluir a possibilidade de se abordar os livros de Moisés como invenção. A obra dos poetas tem valor, mas não se iguala ao das Escrituras. Se bem observados, os trechos citados de Prob. não invalidam essa diferenciação. Mas a questão se torna mais complexa se considerado um trecho em que Fílon discute justamente a utilidade da formação comum, e de cada uma de suas partes. O estudo da poesia, que aparece como parte do estudo das letras (γραμματική - grammatiké), tem sua utilidade descrita da seguinte maneira: grammatikh\ me\n ga\r i¸stori¿an th\n para\ poihtaiÍj kaiì suggrafeu=sin a)nadida/casa no/hsin kaiì poluma/qeian e)rga/setai kaiì katafronhtikw½j eÃxein a)nadida/cei tw½n oÀsa ai¸ kenaiì do/cai tufoplastou=si, dia\ ta\j kakopragi¿aj, aiâj tou\j #)dome/nouj par' au)toiÍj hÀrwa/j te kaiì h(miqe/ouj lo/goj eÃxei xrh/sasqai. Com efeito, o estudo das letras (γραμματική - grammatiké), ao ensinar histórias que há nos poetas e autores de prosa, produzirá entendimento e abundante aprendizado, e ensinará a agir com desdém para com todas as coisas que as vãs opiniões inventam, por meio das desventuras, as quais se conta que os heróis e semideuses cantados entre eles experimentaram. (Congr. 15) Novamente, em contraste com o que se declarava na República de Platão, a poesia pode sim servir para o progresso moral. A relação com a proposta de Platão fica evidente se se percebe, como faz Maren Niehoff, a utilização dos termos δόξα – dóksa e νόησις - nóesis, que têm lugar justamente no processo recomendado pelo filósofo ático para o progresso moral e intelectual (NIEHOFF, 2012, p. 131). Mas é preciso lembrar que, mesmo nesse trecho, o estudo da poesia constitui-se como parte da formação comum, da παιδεία – paideía, que não é o alvo final daquele que progride intelectual e moralmente. Usando da alegoria do próprio Fílon, lembro que Abraão não fica somente com Agar, mas a tem como uma etapa necessária. Seu filho legítimo, contudo, lhe é gerado por Sara. Ao dizer que a poesia é útil para a formação, Fílon não a coloca no mesmo nível das Escrituras, ou mesmo da Virtude. Algo semelhante é percebido também em Somn. 1.233-234. No trecho, Fílon defende a superioridade da lição encontrada nas Escrituras, mas, ao mesmo tempo, reconhece o proveito dos versos referidos da Odisseia, ainda que não sejam verdadeiros. Ou seja, no mesmo trecho, o alexandrino defende também a poesia, e compõe essa defesa justamente como contraponto a uma acusação encontrada em um trecho da República (381e) (NIEHOFF, 153 2012, p. 131-132), em que Sócrates remete aos mesmos versos e afirma que quem conta coisas desse tipo blasfema contra os deuses e faz as crianças serem medrosas. Fílon, por sua vez, vê utilidade pedagógica nos mesmos versos, como invertendo a crítica do filósofo. Então, a diferenciação que Fílon considera haver entre o texto de Moisés e Homero não implica na exclusão total deste último, mas aparece como um ponto de partida a ser observado e mantido em evidência. Em alguns trechos, como já observei, Fílon informa que a obra de Moisés está à parte por não haver mitos (μῦθοι - mŷthoi) em seus livros. Mas, ainda que a oposição esteja clara, talvez fique ainda mais evidente ou completa em um trecho específico. Em Det. 124, Fílon fala sobre a origem de Isaque, cujo artífice (δημιουργός demiourgós) teria sido o Deus não-criado. Em seguida, a aproximação com a arte poética começa a se realizar. Fílon diz que, conforme testemunho de Sarah 269, Deus é o poeta (ποιητής - poietés) responsável pelo “riso”, isto é, Isaque. Poderíamos supor que a aproximação é ocasional, e que o termo ποιητής - poietés é usado em seu sentido mais geral, significando “aquele que faz” alguma coisa, sem relação específica com o campo semântico da poesia. Mas, no prosseguimento do texto, Fílon fala de uma poética de Deus de maneira tal que leva certamente à percepção de que o que ele realiza é uma comparação entre textos: eiã tij ouÅn i¸kano/j e)stin a)kou=sai th=j qeou= poihtikh=j, ge/ghqe me\n e)c a)na/gkhj au)to/j, sugxai¿rei de\ kaiì toiÍj a)kroatikw½j pro/teron e)sxhko/sin. e)n de\ tv= tou= qeou= poihtikv= mu/qou me\n pla/sma ou)de\n eu(rh/seij, tou\j de\ a)lhqei¿aj a)sineiÍj kano/naj aÀpantaj e)sthliteume/nouj, ou)d' auÅ ta\ fwnh=j me/tra kaiì r(uqmou\j kaiì me/lh a)koa\j dia\ mousikh=j yuxagwgou=nta, ta\ de\ fu/sewj au)th=j teleio/tata eÃrga th\n iãdion eu)armosti¿an keklhrwme/na. Então, se alguém é apto a escutar a arte poética de Deus, ele necessariamente se regozija, e também se alegra junto com os que antes já eram afeitos a escutá-la. Na arte poética de Deus não encontrarás nenhuma composição de mito, mas todas as ilesas regras da verdade registradas em uma estela. Também não encontrarás os metros da voz, nem ritmos e melodias que dispersam a audição por meio da música, mas as mais perfeitas obras da própria natureza, que receberam por parte, cada uma, a adequação que lhe é própria. (Det. 125) Nesse passo, além de asseverar que a obra composta por Deus não contém mitos, Fílon observa também que não está escrita em versos. Sem dúvida, o intento é manter um claro limite que separa o texto sagrado do que hoje chamaríamos “literatura”, pois, como Adam Kamesar observa, no século I, em geral, a presença de mito e metro caracterizavam 269 Cf. Gn 21:6. 154 uma obra como poesia (KAMESAR, 1997, p. 160-161)270. Parece-me, pois, que a ênfase nessa diferenciação é proporcional à sua importância no projeto de Fílon, o que não é estranho, uma vez que a definição do estatuto do texto estudado é, razoavelmente, algo básico e necessário com antecedência para o empreendimento de um exegeta.271 E isso se revela inclusive na necessidade que ele expressa de que o prosélito adote tal diferenciação com segurança, como observei no capítulo anterior.272 Ora, se ele considera a especificidade do texto de Moisés quando se dispõe a interpretá-lo, seu (potencial) leitor também deveria fazê-lo. Mas, como também observei no referido trecho do capítulo anterior, Fílon não requer que o prosélito (e, logicamente, também o judeu por nascimento) abandone a leitura dos poetas, mas a aprecie de modo diferente. Não é difícil perceber que esse conhecimento da poesia não produz submissão ao objeto estudado, pois não se trata da verdadeira filosofia ou da virtude em si. Essa será encontrada na obra de um verdadeiro filósofo chamado Moisés. 273 Mas essa lida com a obra poética sem submissão (mas com consideração) é componente importante para uma negociação intercultural, pois não será o caso, em uma negociação, de negar a uma tradição inteira qualquer validade, como se não fosse sequer necessário conhecêla. Então, essa diferenciação de partida, ou “de segurança”, eu diria, entre a Torah e a poesia grega não limita o variado uso dos poemas homéricos. Como venho argumentando, não há exclusão, interdição do conhecimento. Pelo contrário, nessa negociação será imprescindível a capacidade de lidar com a obra poética grega, de mover-se com segurança em seus meandros, sabedor de seus detalhes, de modo a envolver-se com ela pensadamente, aproveitando o que convém e silenciando o que é prejudicial em cada situação. A seguir, por meio de exemplos, veremos como isso se dá nos escritos de Fílon. 270 271 272 273 Kamesar argumenta que o mito (μῦθος - mŷthos) ocupa no período helenístico e posterior o lugar que, em Aristóteles, era ocupado pela mímesis (μίμησις - mímesis) na identificação da obra poética (KAMESAR, 1997, p. 161). Maren Niehoff, conforme mencionei há pouco, entende a afirmação da ausência de mitos nas Escrituras como uma tentativa de interdição a uma abordagem do texto sagrado nos padrões dos gramáticos alexandrinos. (Cf. acima p. 140, em que apresento a pesquisa exposta em NIEHOFF, 2011.) Cf. p. 115-116. Her. 301. Cf. LÉVY, 2003, p. 106. Cf. também CLIFFORD, 2007, sobre a consistente construção elaborada por Fílon de um Moisés filósofo. Para Fílon, “'filosofia' é sobretudo o estudo e a prática da Lei judaica ou, em outros termos, os ensinos contidos nos livros de Moisés” ['philosophy' is above all the study and the practice of Jewish Law or, put in different terms, the teachings contained in the books of Moses] (PEARCE, 2011, p. 118-119). Assim como Sarah Pearce, remeto a NIKIPROWETZKY, 1974, p. 97-116 para uma abordagem mais aprofundada sobre a “filosofia” em Fílon. 155 4.4 Encontros marcados: O mohel-escritor274 tem faca e estilo nas mãos Na Introdução, referi-me à citação como encontro, lançando mão de uma especificidade da língua hispânica utilizada por Ricardo Piglia em um artigo sobre o tema. Sugeri e sugiro que, na citação, o encontro entre diferentes arquivos é bem definido, ainda que suas motivações e repercussões nem sempre sejam também assim. Isso acontece porque, embora o trecho citado seja verbalmente idêntico ao encontrado em seu contexto original, sua realização é diversa. O enunciado se repete, mas a enunciação é nova, única. O enunciado é repetido, a enunciação não, ela é repetidora, como observa Antoine Compagnon (cf. COMPAGNON, 1979, p. 55-57). Assim, o texto repetido está em um sistema diferente e entra em um novo jogo de significados, sem, contudo, deixar de fazer parte de seu sistema original. Portanto, ele estabelece uma relação entre os dois sistemas. O estabelecimento dessa relação, eu o chamei de encontro. Quando Fílon cita um verso homérico, retirando-o de seu contexto cultural, de seu tempo, de seu canto, e trazendo-o para sua prosa, seu argumento e negociação, ele provoca uma série de repercussões que merecem ser pensadas. Homero existe como poema antigo. Existe também como patrimônio cultural da cultura grega e helenista do tempo de Fílon. E passa a coexistir, dentro do sistema criado pelo próprio Fílon, com o arquivo ali predominante, o Pentateuco. Para pensar essa coexistência, é bom observar também que, quando se destacam palavras de um texto para deixá-las em evidência em outro, é normal que o valor dessas palavras seja alterado. Inclusive porque se, no texto original, elas eram parte da concatenação de um discurso ou poema, sem que detivessem um lugar especial, no novo contexto elas são emolduradas pelas palavras próprias do autor. Elas são isoladas, selecionadas, recortadas de seu contexto, e são revestidas do poder (e são alvo da expectativa) de concentrar um sentido em si mesmas, independente de seu contexto originário. E esse sentido que as palavras citadas passam a possuir (ou que se espera que possuam) pode ser gerado de modo complexo, a partir das palavras em si, sem dúvida, mas também destas em relação ao seu novo ambiente e, possivelmente, também pela memória de seu ambiente primeiro. Exemplos podem esclarecer e aproximar a reflexão ao caso específico de Fílon. Em Sobre os Sonhos (1.52ss), Fílon discorre sobre a saída de Taré, Abraão e sua 274 Mohel (lhm) é o nome dado, na tradição judaica, para o responsável pela remoção do prepúcio no rito da circuncisão. 156 família da Caldeia rumo a Harã. Esta última cidade é interpretada por ele como “a metrópole dos sentidos”275. A Caldeia, por sua vez, é representada como o lugar daqueles que investigam os astros. Então, a mudança é entendida como um aviso da palavra sagrada àqueles que se dedicam ao estudo do universo antes de se conhecerem a si mesmos. No meio de um discurso atribuído à própria palavra sagrada, lemos: a)na/baine nu=n ei¹j ou)rano\n kaiì katalazoneu/ou periì tw½n e)keiÍ, mh/pw dedunhme/noj gnw½nai kata\ to\ poihtiko\n gra/mma oÀtti¿ toi e)n mega/roisi kako/n t' a)gaqo/n te te/tuktai Sobe agora ao céu e vangloria-te das coisas que há ali, ainda não tendo sido capaz de notar, conforme o escrito poético, 'o que de bom e de ruim se produziu no teu palácio' (Somn. 1.57). O escrito poético (τὸ ποιητικὸν γράμμα – tò poietikòn grámma) a que Fílon se refere é a Odisseia. Mais precisamente, ele cita o verso 392 do canto IV. Em seu texto, o termo palácio parece assumir um significado metafórico, referindo-se ao corpo do indivíduo, uma vez que disso ele está a falar, justamente a respeito do autoconhecimento. Assim, o verso ganha um sentido em si mesmo, livre da concatenação em que se inseria na narrativa original. Um sentido livre, mas não absolutamente distinto. No passo da Odisseia do qual foi extraído o verso, quem fala é Idotea. Essa figura mitológica orienta Menelau a procurar seu pai, Proteu, para saber como regressar à casa. Ela diz que, além do caminho, ele lhe diria, caso o monarca quisesse saber, o que de bom e de ruim se produziu no palácio dele durante o tempo que esteve errante. Portanto, pude dizer que o sentido novo que o verso recebe em Fílon não é absolutamente distinto, pois também no poema a questão é de vir a conhecer. No poema, não é o narrador que canta essas palavras, mas a filha de Proteu, que diz que o pai iria fazer saber o que há na morada, no sentido literal. No texto de Fílon, não é Fílon que diz essas palavras, mas a “palavra sagrada”, que observa que o seu interlocutor ainda não sabe o que há na morada, no sentido metafórico. Pela instauração do significado metafórico, o sentido que o verso tem no contexto mitológico e narrativo é transportado e transformado no contexto da hermenêutica de Fílon, adaptando-se, de maneira semelhante à de um item lexical que se adapta a diversas (mas também semelhantes) estruturas sintáticas em diferentes frases.276 275 276 Cf. Somn. 1.41. Noto que o mesmo verso de Homero é utilizado em Mig. 195 com o mesmo sentido, em argumentação semelhante. Ali, contudo, não são explicitadas as figuras de Sócrates e Taré. Mais importante, talvez, é observar que também em Plutarco se encontra o mesmo verso retirado da narrativa homérica e trazido isolado para um contexto em que recebe sentido mais amplo ( De 157 Com essa adaptação, um verso de Homero pode ser utilizado em um discurso da “palavra sagrada”, não para respaldar, divulgar ou valorizar o mito grego, mas para explicitar um ensinamento que é extraído, por uma hermenêutica peculiar, do texto bíblico. Esse ensinamento, por sua vez, também está relacionado ao arquivo grego. Não ao literário, mas ao da filosofia.277 Isso se nota pela frase seguinte no mesmo discurso da palavra sagrada: “Conhece-te a ti mesmo” (γνῶθι σαυτόν – gnôthi sautón, Somn. 1.57). A colocação do verso homérico quase junto a essa oração deixa claro que as palavras de Idotea são de fato associadas à máxima délfica que, por sua vez, é mobilizada no ensinamento socrático. 278 Isso é flagrante se considerado o fato de que Sexto Empírico afirma que “Sócrates nos exortou a não examinarmos nada mais que 'o que de bom e de ruim se produziu no teu palácio'”279 (Adv. Log. 21)280. Ademais, posteriormente, o verso aparece da mesma forma relacionado com o ensinamento socrático em Diógenes Laércio (Vidas 2,21). Diógenes Laércio, contudo, afirma recuperar informações de Demétrio de Bizâncio. Como tal historiador viveu antes de Fílon, é preciso reconhecer a possibilidade de que o alexandrino tenha aproveitado o verso seguindo uma tradição já existente. Há mais a dizer a respeito. Fílon não restringe a referência a Sócrates a essa menção de seu ensino, mas menciona seu nome no trecho que segue: to\n tro/pon tou=ton Qa/rra me\n ¸EbraiÍoi, Swkra/thn de\ àEllhnej o)noma/zousi: kaiì ga\r e)keiÍnon e)gghra/sai fasiìn tv= periì tou= gnw½qi sauto\n a)kribesta/tv ske/yei, mhde\n eÃcw tw½n kaq' e(auto\n filosofou=nta. a)ll' o( me\n aÃnqrwpoj hÅn, Qa/rra d' au)to\j o( lo/goj o( periì tou= gnw½nai¿ tina e(auto\n prokei¿menoj oiâa de/ndron eu)erne/staton, iàn' eÃxoien eu)marw½j oi¸ fila/retoi to\n periì h)qopoii¿an drepo/menoi karpo\n swthri¿ou kaiì h(di¿sthj e)mpi¿plasqai trofh=j. Esta figura, os hebreus nomeiam Taré, e os gregos, por sua vez, Sócrates. 277 278 279 280 Comm. 1063 d-e). Curiosamente, o contexto da citação de Plutarco é marcado por uma polêmica contra Crisipo. Como se verá, a partir de fatos mencionados a seguir, é possível suspeitar que a citação deste verso por Plutarco no trecho seja feita como referência à filosofia de Sócrates. A distinção entre arquivo literário e filosófico é feita a partir da perspectiva atual. Decerto, reconheço que é possível considerar, em alguma medida, a obra de Platão como também pertencente ao arquivo literário. Embora a máxima délfica seja mais antiga que Platão, e apareça em diferentes contextos, pareceme sensato considerar que Fílon a associa diretamente a Sócrates. Isso se confirmará adiante. No que diz respeito ao ensino desenvolvido por Fílon no trecho, parece-me razoável considerar a semelhança no aproveitamento da máxima com relação ao realizado em Fedro 229e. Minha tradução de: o( Swkra/thj parh/ggelle mhde\n aÃllo zhteiÍn ei¹ mh\ oÀtti toi e)n mega/roisi kako/n t' a)gaqo/n te te/tuktai. Cf. também Adv. Eth. 2. Sexto Empírico introduz o mesmo verso afirmando que Sócrates ensinou isso ser o mais necessário a se buscar ( a)nagkaio/taton zhteiÍn – anagkaiótaton dzeteîn). 158 Pois verdadeiramente dizem que este envelheceu na mais rigorosa observação referente ao “conhece-te a ti mesmo”, nada filosofando fora das coisas relacionadas a si mesmo. Entretanto, ele era um ser humano, enquanto Taré é o próprio arrazoado a respeito de alguém conhecer a si mesmo, proposto como uma árvore muito bem brotada, para que os amantes da virtude tenham como saciar-se facilmente com um alimento salvador e agradabilíssimo, colhendo para si o fruto da formação de caráter. (Somn. 1.58) Homero, que não é nomeado, é usado como forma de referência ao ensino socráticos e, assim, antecipa a entrada em cena do próprio Sócrates. Este, por sua vez, é aproximado a Taré e elogiado por sua vida. Mas é também diferenciado do personagem bíblico, pois este não é simplesmente um ser humano com uma vida limitada a determinado tempo, mas um arrazoado, um discurso (λόγος – lógos) a respeito de tal modo de vida. E Taré-discurso é apresentado como árvore convidativa, para que os amantes da sabedoria recorram a ele. Sendo assim, os judeus amantes da sabedoria não precisam recorrer ao exótico, mas a algo que está plantado no próprio arquivo hebraico. De modo paralelo, alguém que julgue que procurar tais coisas é buscar algo alheio deve reavaliar sua consideração e perceber a presença do mesmo princípio, de modo ainda mais potente, nas próprias Escrituras. O verso homérico pode ter sido utilizado, no presente caso, de modo semelhante e, em alguma medida, subordinado à utilização da figura de Sócrates, isto é, como ponto de comparação e demonstração de harmonia com o arquivo grego, não para exaltação deste, mas defesa da pertinência do judaico. Aplicar um novo sentido filosófico ou teológico para um verso da narrativa homérica é recurso utilizado de modo ainda mais explícito em Sobre a confusão das línguas 170. E nesse trecho, fica também evidente o fato de que a negociação começa já no cuidado com o recorte feito para a citação. Ao interpretar o relato da Torre de Babel, Fílon se depara com uma fala atribuída ao próprio Deus, a qual, segundo ele, merece ser observada de modo não incidental (ske/yasqai d' ou) pare/rgwj aÃcion – sképsasthai d'ou parérgos áksion). Trata-se do verso 7 do capítulo onze de Gênesis: “Vamos, descendo, confundamos ali a língua deles” 281. O problema que ocupa a leitura do alexandrino é a possibilidade de que se suspeite de uma multiplicidade de deuses pelo uso da forma plural do particípio (kataba/ntej – katabántes) e do verbo sugxe/wmen – synkhéomen, na primeira pessoa do plural. Em vez de negligenciar o 281 Minha tradução de: deu=te kaiì kataba/ntej sugxe/wmen e)keiÍ au)tw½n th\n glw½ttan. 159 detalhe, o intérprete refere-se a outros trechos em que semelhante peculiaridade ocorre. 282 Em seguida, diz que é preciso dizer antes de tudo ( lekte/on ouÅn e)keiÍno prw½ton – lektéon oûn ekeîno prôton) que nada que existe tem a mesma honra que Deus, e que há somente um governante, regente e rei (eiâj aÃrxwn kaiì h(gemwÜn kaiì basileu/j – heîs árkhon kaì hegemòn kai basileús). Logo, introduz os versos homéricos da seguinte maneira: to\ ga\r ou)k a)gaqo\n polukoirani¿h, eiâj koi¿ranoj eÃstw, eiâj basileu\j ou)k e)piì po/lewn kaiì a)nqrw¯pwn le/goit' aÄn e)n di¿kv ma=llon hÄ e)piì ko/smou kaiì qeou=: e(no\j ga\r eÀna poihth/n te kaiì pate/ra pa/lin kaiì despo/thn a)nagkaiÍon eiånai. Pois “Não é boa a liderança dividida por muitos; que haja um líder, um rei” não se diria a respeito de cidades e seres humanos com mais justiça do que a respeito do mundo e de Deus, pois de um é forçoso que o criador, pai e senhor, por sua vez, seja também um. (Conf. 170) Fílon demonstra estar atento para o fato de que está transportando o verso de seu contexto (Ilíada II 203-4), no qual se falava de autoridade entre humanos, e adaptando-o para a relação teológica entre Criador e criação. Uma questão seria pensar o motivo desse esforço por adaptar um verso homérico à argumentação monoteísta, se estava certamente acessível na memória do escritor a frase recitada em Deuteronômio 6:4: “Escuta Israel: IHWH é nosso Deus, IHWH é um!”.283 A primeira grande diferença entre a citação efetivada e esta que suponho acessível e facilmente utilizável no contexto em questão talvez seja a amplitude do alcance das duas, bem como sua capacidade de produção de compreensão. Enquanto o verso canônico, conhecido como shemá, demarca seu público e nomeia o Deus de que fala 284, o verso homérico, conforme o recorte operado por Fílon, reflete a experiência cotidiana de todos os habitantes do Império Romano de seu tempo. Além disso, os judeus, que já tinham o shemá na memória285, agora podiam ver o monoteísmo ser respaldado por um verso que era patrimônio comum de todos. A sua fé, então, não era mais defendida meramente como sistema fechado, dotado de sentido somente enquanto se restringisse o âmbito dos pensamentos, mas como algo coerente com a existência cotidiana e com a totalidade do 282 283 284 285 Ele menciona Gn 1:26 e Gn 3:22. Minha tradução de:  O verso soa mais restrito, mesmo quando considero a possibilidade aventada por Birnbaum (ver cap. 3) de que Israel, em Fílon, não se refira exclusivamente aos judeus por nascimento ou conversão, e o fato de que na LXX o nome IHWH se vê substituído pelo termo comum κύριος – Kýrios, Senhor. Embora não haja evidências definitivas de que o shemá fosse recitado publicamente, a importância do versículo no judaísmo antigo, inclusive no âmbito helenofônico, é perceptível (cf. LEONHARDT, 2001, p. 139-140). 160 mundo existente. Mas, como sugeri há pouco, a seleção e o recorte do trecho citado são importantes para que a amplitude da citação não comprometa limites impostos pelo próprio argumento. Para demonstrar esse aspecto da citação, é preciso lembrar rapidamente o contexto original do trecho citado. Agamenon havia testado os guerreiros dizendo que poderiam perder a guerra. O teste resulta em uma debandada geral rumo aos navios. Atena vai a Odisseu e o encarrega de colocar ordem nas coisas, de modo que as naus não zarpassem, o que, se acontecesse, colocaria fim à guerra sem que se tivesse alcançado o objetivo da mesma. Odisseu anda por entre as pessoas e diz palavras convincentes aos poderosos e aos do povo. A estes últimos, ele ordena que esperem as instruções dos superiores. Então, emite a frase que Fílon cita no trecho agora em estudo. Para facilitar a lembrança, volto a transcrevê-la: “Não é boa a liderança dividida por muitos; que haja um líder, um rei”. Mas a frase, no poema, continua com as seguintes palavras: “ao qual o filho de Cronos, o de tortuoso conselho, deu o cetro e os julgamentos, para que deliberasse entre eles” (Ilíada II 204-205)286. É uma deusa que motiva a fala de que se extrai o trecho citado. E há mais: nessa mesma fala, mais precisamente no segundo verso citado, do qual apenas duas palavras são recolhidas, a diversidade de deuses é explícita. O próprio princípio da monarquia, no verso, é atrelado a um respaldo de Zeus, filho de Cronos. A seleção do trecho a ser citado e seu recorte preciso permitem que ele seja extraído sem que nele restem evidentes resquícios de seu contexto politeísta original. Assim, Fílon pode lançar mão do princípio monárquico, o mesmo que no poema que cita é respaldado por um deus inserido na mitologia politeísta dos gregos, para respaldar a existência de um só Deus. Uma citação de fato instigante quando observada de perto, pois lembra que a movimentação do alexandrino entre os arquivos não é fortuita, mas negociada e atenta. E ainda outro dado relevante pode ser acrescentado à reflexão. A primeira metade do verso (“Não é boa a liderança dividida por muitos” - οὐκ ἀγαθὸν πολυκοιρανίη) é utilizada por Fílon em Legat. 149 para respaldar como positiva a ação de César Augusto, ao constituirse sozinho como primeiro imperador romano. Ou seja, embora nesse outro trecho Fílon também mantenha o contexto politeísta excluído, ele conserva um elemento do contexto original do verso: a defesa do princípio monárquico. No trecho, César Augusto é elogiado de modo a fazer contraste a Gaio Calígula, que, segundo Suetônio, teria usado, pelo menos uma 286 Minha tradução de: %Ò dw½ke Kro/nou pa/i+j a)gkulomh/tew skh=ptro/n t' h)de\ qe/mistaj, iàna/ sfisi bouleu/vsi. 161 vez, a outra metade do verso homérico e começo do seguinte (“que haja um líder, um rei” - εἷς κοίρανος ἔστω, εἷς βασιλεύς) para destacar a unicidade do governo durante um banquete com nobres (Cal. 22)287. Pela natureza marcadamente de contraposição da passagem de Fílon em Legat. 149288, não me parece de todo impossível que ele esteja utilizando o verso sabendo que era utilizado por Calígula, como para demonstrar sua melhor adequação a César Augusto. Isso pode fazer suspeitar que a aplicação do verso para a defesa do monoteísmo poderia também ter sido ensejada pela mesma polêmica, ou alguma semelhante. Já que Calígula queria ser considerado um deus, não seria fora de propósito fazer notar em Conf. 170 que o verso por ele usado para ressaltar seu poder exclusivo é melhor aplicado ao Deus verdadeiro. Mas, nesse ponto, há mais suposição que evidência. O que se pode afirmar com segurança sobre Conf. 170 a partir da leitura de Legat. 149 é que Fílon não só reconhece que o verso em seu contexto original trata da monarquia como sistema de governo entre humanos, e não do princípio monoteísta, mas também está ciente de que o verso pode ser usado, por meio da citação, justamente para a defesa de sistemas monárquicos vigentes no mundo extrapoema. Ele está, pois, atento para a diferença da leitura que faz e da recontextualização que implementa para o verso. Mas é importante notar que um movimento semelhante já havia sido realizado por Aristóteles na Metafísica (1076a), pois o filósofo cita o mesmo verso homérico ao tratar da unidade do princípio cósmico.289 Uma questão que surge e que merece ser mencionada, ainda que sua solução nem sempre seja viável, consiste em inquirir se Fílon, ele mesmo, lê o texto de Homero e opera essas interpretações que lhe atribuem outro sentido, ou se tem acesso a essas leituras por intermédio de outros intérpretes. É de se supor que Fílon conhecesse interpretações alegóricas produzidas por intérpretes de Homero. E isso fica evidente quando se constata que ele realmente coincide com algumas interpretações que nos chegaram por outros caminhos. Nesse sentido, Robert Lamberton menciona, entre outras, a interpretação do epíteto homérico de Hefesto (xwlo¢» - kholós) que transparece em Sobre a Eternidade do Mundo 127290, a qual 287 288 289 290 Suetônio parece ser crítico sobre essa vontade de Calígula de reafirmar e destacar a todo momento sua posição. No mesmo trecho em que narra a citação do verso por parte de Calígula, observa que este atribuía a si mesmo uma porção de títulos, entre os quais o de “melhor e maior César” (optimus maximus Caesar, Cal. 22.1). O trecho será estudado adiante, no capítulo seguinte (p. 325ss). Sobre essa citação em Aristóteles, seu uso em Fílon e, posteriormente, entre autores cristãos, cf. MARTÍN, 1997. A referência ao deus pela utilização da palavra que lhe serve de epíteto é garantida pela expressão “como dizem os poetas” ( $ fasin oi¥ poihtai¢). Concordo com Colson, que observa como impossível, embora engenhosa, a emenda proposta por Cumont, pela qual o próprio nome do deus 162 também foi conservada em um escólio (LAMBERTON, 1986, p. 52). Outra interpretação interessante mencionada pelo estudioso encontra-se em Sobre os Sonhos 2: ou)x o(r#=j, oÀti o( gh/inoj oÃgkoj, ¹Ada/m, oÀtan aÀyhtai tou= didu/mou cu/lou, qnv/skei, dua/da timh/saj pro\ mona/doj kaiì to\ geno/menon pro\ tou= pepoihko/toj e)kqauma/saj; a)lla\ su/ ge tou= me\n kapnou= kaiì ku/matoj e)kto\j baiÍne kaiì ta\j katagela/stouj tou= qnhtou= bi¿ou spouda\j w¨j th\n fobera\n e)kei¿nhn xa/rubdin a)podi¿draske kaiì mhde\ aÃkr%, to\ tou= lo/gou dh\ tou=to, daktu/l % yau/svj. Não vês que a “massa de terra”, Adão, quando tocou a árvore dupla, morreu, havendo honrado a duplicidade em vez da unidade, e tendo admirado o criado em vez daquele que [o] fez? Mas tu, sai “para fora da fumaça e da onda”, e escapa das absurdas diligências da vida mortal, como daquela temível Caríbdis, e não toques, como na expressão, nem com a ponta do pé, nem com o dedão. (Somn. 2.70) Fílon deixa de falar sobre Adão por um momento para dirigir-se à audiência e fazer um alerta. Ele cita um verso da Odisseia (XII 219) sem anunciá-lo, mas menciona o nome de Caríbdis, o que torna mais fácil reconhecer a procedência do mesmo. Fica claro que ele compartilha de uma interpretação tradicional, que lê a viagem de Odisseu como a da alma racional, que retorna do mundo criado para sua morada celestial (LAMBERTON, 1986, p. 52). No mesmo sentido, John Dillon entende que o uso frequente que Fílon faz do verbo νήχω – nékho, “nadar”, para descrever o esforço do ser humano para superar a existência material, “sugere seu conhecimento da alegorização do naufrágio de Odisseu perto da Feácia no canto V da Odisseia, em que Homero usa o verbo repetidamente”291 (DILLON, 1981, p. 183). A esses exemplos, outros podem ser agregados. Em Dec. 54, Fílon demonstra estar informado dos significados alegóricos físicos atribuídos a vários dos personagens da mitologia grega: Core, Deméter, Plutão, Possêidon, Hera, Hefesto, Apolo, Ártemis, Afrodite e Hermes. Em seguida, em Dec. 56, Fílon se refere aos Dióscuros (cf. Odisseia XI 298-303) como se representassem dois hemisférios, um sobre e outro sob a terra. A mesma lição é transmitida por Sexto Empírico em M. IX, 37. Trata-se de uma interpretação que resolve em um significado físico o par de personagens míticos. 291 apareceria no texto de Fílon. Como Lamberton não cita o texto ao comentá-lo, não sei se considera a emenda como correta para afirmar o que afirma. Não obstante, o texto como nos chegou pareceme suficiente para se reconhecer a referência ao deus grego e o conhecimento da tradição alegórica referente a ele nesse trecho de Aet.. Não obstante, um problema adicional pode tirar importância da evidência: a autoria do tratado Sobre a eternidade do mundo é colocada em dúvida (cf. Início do Excursus que segue este capítulo). Minha tradução de: suggests his acquaintance with the allegorizing of Odysseus' shipwreck off Phaeacia in Odyssey V, where Homer employs this verb repeatedly. 163 Contudo, em sua leitura da Bíblia, Fílon pode explicar um dado da narrativa resolvendo-o em um sentido alegórico físico e, alternativamente, o que parece preferir, em um sentido moral. De modo semelhante, ele parece conhecer outro sentido para Castor e Pólux. Os mesmos personagens parecem receber, de passagem, outra interpretação em Somn. 1.150. A alternância entre vida e morte dos irmãos gêmeos serve como ponto de comparação para a vida do praticante, que é irregular e se alterna entre o progresso e o retrocesso no aperfeiçoamento moral/espiritual. Interessante notar que, no passo, os irmãos não são mencionados de forma alguma. Cito o trecho de modo estendido para assinalar alguns detalhes: iãswj de\ kaiì to\n e(autou= bi¿on o( a)skhth\j fantasiou=tai kli¿maki e)oiko/ta: fu/sei ga\r a)nw¯malon pra=gma aÃskhsij, tote\ me\n proi+ou=sa ei¹j uÀyoj, tote\ d' u(postre/fousa pro\j tou)nanti¿on, kaiì tote\ me\n kaqa/per nau=j eu)ploi¿# tv= tou= bi¿ou, tote\ de\ dusploi¿# xrwme/nh. e(terh/meroj ga/r, w¨j eÃfh tij, tw½n a)skhtw½n o( bi¿oj, aÃllote me\n zw½n kaiì e)grhgorw¯j, aÃllote de\ teqnewÜj hÄ koimw¯menoj. kaiì ta/xa ou)k a)po\ skopou= tou=to le/getai: sofoiì me\n ga\r to\n o)lu/mpion kaiì ou)ra/nion xw½ron eÃlaxon oi¹keiÍn, aÃnw foita=n a)eiì memaqhko/tej, kakoiì de\ tou\j e)n àAidou muxou/j, e)c a)rxh=j aÃxri te/louj a)poqnv/skein e)pitethdeuko/tej kaiì ei¹j gh=raj e)k sparga/nwn fqora=j e)qa/dej oÃntej. oi¸ d' a)skhtaiì® meqo/rioi ga\r tw½n aÃkrwn ei¹siìn®aÃnw kaiì ka/tw polla/kij w¨j e)piì kli¿makoj badi¿zousin, hÄ u(po\ th=j krei¿ttonoj moi¿raj a)nelko/menoi hÄ u(po\ th=j xei¿ronoj a)ntispw¯menoi, me/xrij aÄn o( th=j a(mi¿llhj kaiì diama/xhj tau/thj brabeuth\j qeo\j a)nad%½ ta\ brabeiÍa ta/cei tv= belti¿oni, th\n e)nanti¿an ei¹sa/pan kaqelw¯n. E, talvez, também, o praticante veja em aparição sua própria vida, assemelhada na escada. Pois, por natureza, a prática é uma tarefa irregular, que ora avança para o topo, ora volta em rumo contrário, e, assim como um navio, ora faz bem a viagem da vida, ora com dificuldade. Pois uma alternância de dias, como dizia alguém, é a vida dos praticantes, um tempo vivendo e estando desperto, noutro tendo morrido ou estando adormecido. E, provavelmente, isto não é dito sem acerto, pois os sábios receberam por parte um lugar olímpico e celestial para habitar, tendo aprendido sempre a frequentar o alto, enquanto os maus, os recônditos no Hades, tendo do princípio ao fim tratado de morrer e sendo, das fraldas à velhice, acostumados com a perdição. Os praticantes, por sua vez – visto que são os que fazem a fronteira dos extremos – caminham frequentemente para cima e para baixo, como por uma escada, ou sendo puxados para cima pela melhor sina, ou sendo arrastados de volta pela pior, até que Deus, árbitro deste conflito e combate, distribua os prêmios à melhor equipe, acabando totalmente com a oposta. (Somn. 1.150-152) Como se vê, apenas o resultado de uma possível leitura alegórica dos Dióscuros aparece, seguindo uma leitura da escada vista por Jacó em Betel, que é retomada e melhor 164 explicada no parágrafo seguinte. A exposição que se inicia com a interpretação de um elemento da narrativa bíblica, continua com a apresentação de uma leitura semelhante de um mito grego. Pode tratar-se de um rastro que indica que a origem do significado encontrado para a narrativa bíblica se encontra na leitura do mito grego. Mas pode, também, ser o caso de que a própria leitura da narrativa bíblica tenha propiciado a percepção de um possível paralelo, no nível literal, com o mito dos gêmeos. E, então, uma leitura desenvolvida para a aparição da escada de Betel a Jacó pode ter sido aplicada ao mito grego. Ambas as possibilidades apontam para uma interessante relação entre os dois arquivos na realização da alegorese de Fílon. Mas, nesse último caso, tendo a pensar não em uma relação exclusiva com o poema homérico, embora inicialmente possa ser assim. O que me faz suspeitar de outra referência poética para o argumento de Fílon (e como possibilitadora da aproximação entre o trecho da Bíblia e o dado do mito) é a informação de que a alternância de que fala não se dá somente entre vida e morte, como nos versos da Odisseia, mas também entre “lugar olímpico e celestial” e “os recônditos do Hades”. Ora, essa referência espacial com oposição vertical é justamente o que torna o mito dos gêmeos visualmente mais próximo da aparição da escada em Betel, texto bíblico interpretado no trecho por Fílon.292 E, se essa alternância de lugares não aparece em Homero, figura sim em Píndaro. Ao final da décima Nemeia, encontro a seguinte fala de Zeus que pressagia o futuro pós-vida dos irmãos com uma descrição mais próxima daquela explicitada no texto de Fílon: καὶ τόδ᾽ ἐξαύδασ᾽ ἔπος: ‘ἐσσί μοι υἱός: τόνδε δ᾽ ἔπειτα πόσις σπέρμα θνατὸν ματρὶ τεᾷ πελάσαις στάξεν ἥρως. ἀλλ᾽ ἄγε τῶνδέ τοι ἔμπαν αἵρεσιν παρδίδωμ᾽: εἰ μὲν θάνατόν τε φυγὼν καὶ γῆρας ἀπεχθόμενον αὐτὸς Οὔλυμπον θέλεις ναίειν ἐμοὶ σύν τ᾽ Ἀθαναίᾳ κελαινεγχεῖ τ᾽ Ἄρει, ἔστι τοι τούτων λάχος: εἰ δὲ κασιγνήτου πέρι μάρνασαι, πάντων δὲ νοεῖς ἀποδάσσασθαι ἴσον, ἥμισυ μέν κε πνέοις γαίας ὑπένερθεν ἐών, ἥμισυ δ᾽ οὐρανοῦ ἐν χρυσέοις δόμοισιν.’ E proferiu a seguinte palavra: 'Tu és meu filho. Mas ele, logo depois, tendo se aproximado de sua mãe o marido, semente mortal semeou o herói. Mas, vamos, ainda assim, a ti uma escolha eu concedo. Se fugindo da morte e da velhice odiada tu queres habitar o Olimpo comigo, com Atena, e com Ares de lança negra, é teu este lote. Mas se a respeito de teu irmão 292 Outro possível motivo concorrente para a aproximação talvez seja o fato de que Jacó tem um irmão gêmeo, Esaú. Os dois, então, podem ser tidos como um potencial ponto de comparação hebreu para o par de irmãos do mito grego. Contudo, é preciso ter em consideração o fato de que o irmão de Jacó não é mencionado no texto de Fílon, enquanto, por outro lado, a variação vertical da localização recebe considerável ênfase. 165 contendes, e tens em mente tudo compartilhar igualmente, por uma metade, poderás respirar estando debaixo da terra, por outra metade, nas moradas de ouro do céu. (Nemeia X 150ss)293 Não afirmo definitivamente que Fílon tenha necessariamente se baseado no poema de Píndaro, embora isso seja possível, mas sim que ele acessa o mito em uma forma mais completa (e visualmente complexa) que aquela exposta rapidamente na Odisseia, uma forma mais próxima daquela transmitida na Nemeia X. É interessante notar que, em Legat. 84, Fílon ressalta o fato de que um dos irmãos era mortal e outro imortal, algo que, como notado por Smallwood em sua tradução anotada, não está explícito no poema homérico, que afirma que ambos são filhos do mesmo pai humano, enquanto o poema de Píndaro marca a diferente paternidade, um sendo filho de Zeus e outro de um herói. Também isso parece indicar um afastamento de Fílon com relação à versão da Odisseia. Contudo, em Legat. 85, um detalhe faz aumentar a suspeita de que Fílon não depende tampouco exclusivamente dos versos de Píndaro, pois, diferente do que acontece no poema, é o próprio Pólux que “alcança fazer uma troca admirável” (θαυμαστὴν ἐμεγαλούργησεν ἀντίδοσιν – thaumastèn emegaloúrgesen antídosin). Ele é o responsável pela concepção da possibilidade do compartilhamento de sua condição com o irmão, e não Zeus. Nisso, Fílon se aproxima da versão transmitida em Fasti V 715-720 de Ovídio. Nos versos do poeta latino, não é o deus que oferece a divisão entre os dois irmãos, mas Pólux que faz semelhante proposta. Ou seja, a mesma diferença que distancia a versão de Ovídio da de Píndaro também afasta Fílon do poeta grego, que, justamente por essa similaridade na diferença, se aproxima do poeta latino. Mas, apesar dessa diferença pontual, a versão de Ovídio se assemelha à de Píndaro e pode, em alguma medida, depender dela. Nesse passo específico, uma semelhança notável e importante para a discussão a respeito de Fílon é o fato de que a proposta feita por Pólux consiste em dividir entre os dois (partire duobus) o céu (caelum) que seria dado a um somente. Após a fala, também, o poema diz que, com o que disse o 293 Antes ainda, nos versos 100 - 110, o poema inicia a referência ao mito por uma descrição do estado pós-vida dos gêmeos, eles alternam o lugar de existência entre “junto do querido pai Zeus” (παρὰ πατρὶ φίλῳ Δὶ - parà patrì phíloi Dì) e “sob as profundezas da terra, nos buracos de Terpna” (ὑπὸ κεύθεσι γαίας ἐν γυάλοις Θεράπνας – hypò keýthesi gaías em guálois Therápnas). Certamente, essas expressões indicam o Olimpo e o Hades (ou o mundo subterrâneo) respectivamente. Mas a semelhança lexical que encontro entre o texto de Fílon e a fala de Zeus me fez preferir citá-la em detrimento desse outro trecho igualmente significativo. 166 personagem, ele “redimiu o irmão com a localização alternada” (alterna fratrem statione redemit). Percebe-se, então, que o deslocamento espacial alternado, e não somente a alternância entre vida e morte, é referido por Ovídio de modo semelhante ao de Píndaro e Fílon. Como Ovídio viveu pouco antes de Fílon, seu testemunho é bastante significativo, pois, ainda que não especulemos um acesso do alexandrino ao poema em latim, os versos de Fasti revelam, no mínimo, que, em período próximo ao dele, o mito circulava em forma semelhante à que se faz reconhecer em seus escritos. Em face de tais semelhanças, é necessário ter cautela. O máximo que constato a partir das evidências é que o alexandrino não se restringe à leitura dos poemas homéricos no aproveitamento dos mitos e suas leituras. Ainda assim, não é despropositado pensar na possibilidade de que o poema de Píndaro (e, talvez também, outro que siga a mesma tradição e uma possível interpretação alegórica antiga da mesma) tenha alguma influência na aproximação. Não obstante, ainda que a relação com o mito grego deixe rastros que nos possibilitam suspeitas, Fílon não a explicita nesse caso.294 Mais frequentemente mencionada e mais precisa evidência no sentido de um aproveitamento de leituras alegóricas realizadas entre os gregos é a convergência de conteúdo entre uma interpretação alegórica comumente realizada para a relação entre Ulisses e Penélope, na Odisseia, e uma que Fílon desenvolve para os casamentos de Abraão no livro de Gênesis. A interpretação de orientação estoica indica que, na Odisseia, os pretendentes têm acesso somente às servas de Penélope, mas não à própria, enquanto o herói somente chega a tê-la, porque esta significa a filosofia, enquanto aquelas, a formação comum. 295 Em Congr. 9ss, Fílon afirma que Agar, a primeira a gerar filho para Abraão, é a formação comum (παιδεία - paideía). O patriarca tem que passar por ela para depois chegar a alcançar a virtude (ἀρετή - areté), significada por Sara. Essa proximidade de conteúdo entre a alegorese de Fílon e a dos intérpretes do poema homérico sugere que o alexandrino, que desenvolve seu método, ao menos em parte, a partir do que esses realizam, pode recorrer também ao conteúdo encontrado por eles.296 294 295 296 Se confirmada a leitura de John Dillon, haveria um exemplo semelhante de referência sutil, até mesmo dissimulada, a uma leitura alegórica alheia em Deus 155-158, Somn. 2.183 e 249. A leitura seria do personagem iliádico Ganimedes e não foi transmitida por outra fonte (DILLON, 1981). Contudo, não me vejo convencido pela exposição de Dillon de que Fílon de fato se refira a Ganimedes nos trechos mencionados. Parece-me bem possível que a ideia comunicada lhe seja sugerida por outros motivos. Cf. Plutarco, De liberis educandis 7d, além Vidas dos Filósofos II 79, de Diógenes Laertius. Para detalhamento, cf. COLSON, 1917. Entre outros vários autores que se referiram a isso, cf. COLSON, 1917, em artigo a respeito da 167 Outro indício desse fato está em uma relação demonstrada por Adam Kamesar entre uma interpretação alegórica exposta por Fílon para Moisés e seu irmão (Mig. 76-81), Arão, e uma interpretação conservada no escólio-D da Ilíada para Oto e Efialtes (Il. V 385). Kamesar é cuidadoso em demonstrar que a interpretação registrada no escólio é proveniente do período helenístico, provavelmente anterior a Aristarco (séc. III-II a.C.), o que o torna possivelmente conhecido por Fílon. Embora reconheça que seria possível que Fílon ou outro judeu helenístico houvesse chegado a uma tal interpretação por conta própria, o pesquisador se mostra convencido de que as semelhanças entre as leituras são muito consistentes, e considera que a prática de apropriação de leituras praticadas entre os gregos era comum (KAMESAR, 2004). Há, ainda, um trecho de Fílon concernente à leitura alegórica de Homero especialmente digno de nota: De Providentia II 34-41. Buffière se refere a ele como exemplo em um capítulo no qual trata das acusações e defesas que os poemas homéricos receberam de filósofos ao longo dos tempos (BUFFIÈRE, 1956, 20-21). Mas é preciso ressaltar que não se trata do segundo fragmento de De Providentia preservado em grego, mas sim do segundo livro da série de três conservados em armênio e apresentados em sua tradução ao latim na edição de Richter. À organização dessa edição se refere a numeração. O tratado é, na verdade, um diálogo entre Fílon e Alexandre, seu sobrinho. Este último, que tem a palavra entre os parágrafos 34 e 39, tece acusações contra Hesíodo e Homero, sobretudo com respeito a coisas que dizem a respeito dos deuses. A estas investidas, a partir do parágrafo 40, Fílon se opõe apresentando a necessidade de se perceber que os poetas falavam de fenômenos da natureza. Ele chega a mencionar somente algumas relações alegóricas (Hefesto com o fogo, Hera com o ar e Hermes com a razão), mas indica haver muitas outras. Afirma, então, que se o interlocutor compreendesse essas coisas não seria mais acusador, mas um elogiador desses poetas. E é incisivo ao dizer que se ele não admite as regras da alegoria ou dos sentidos permanecerá como uma criança, na ignorância (Prov. II, 41 – Richter). A mesma promoção que Fílon faz, em seus tratados exegéticos, da leitura alegórica da Torah, aqui é utilizada na defesa dos poemas épicos gregos. E, inclusive, a educação segundo Fílon; WOLFSON, 1982, p. 145-146, que menciona o fato ao discorrer sobre o lugar da educação comum na formação e pensamento de Fílon; ALEXANDRE, 1967, em sua introdução à tradução francesa do tratado Congr.; SANDMEL, 1970, p. 20-21, que se refere a essa semelhança justamente quando procura demonstrar a relação entre a alegorese filônica e a interpretação dos estoicos; AMIR, 1984, em um breve artigo que aborda justamente transferências de alegorias gregas a motivos bíblicos em Fílon; BERTHELOT, 2011, p. 148-149, que, como eu, procura justamente respaldar o fato de que Fílon conhecia interpretações alegóricas de Homero. 168 expressão “regras da alegoria”297, que aparece algumas vezes naqueles tratados, indicando, ao que parece, alguns subsentidos previamente conhecidos para alguns elementos da narrativa bíblica, figura aqui indicando algo pertinente à tradição interpretativa desses poemas. Isso indica claramente um conhecimento de Fílon a respeito não somente da existência de uma prática de alegorese aplicada aos poemas homéricos, mas também de algumas leituras e dos conteúdos frequentemente encontrados como subentendidos.298 Certamente, se, como comentei no início do capítulo, Maren Niehoff demonstra que Fílon tinha ciência do tratamento literal dos poemas homéricos que se desenvolvia em Alexandria, não é mesmo estranho que conhecesse e se interessasse por leituras alegóricas dos poemas mesmos desenvolvidas pela tradição filosófica. Isso pode se refletir no sentido que ele dá para alguns dos trechos que cita, e favorecer a possibilidade da citação em alguns casos, mas toda a maneira como cita não se explica pelo recurso a esse conhecimento. O jogo próprio de Fílon requer outras estratégias. Ainda que algumas vezes se apoie em leituras tradicionais, sua dinamicidade como escritor não fica diminuída por isso. É notável que ele pode, por exemplo, não somente usar parte do discurso de uma personagem divina da Odisseia para respaldar sua própria teologia, mas também colocar um verso homérico no discurso de um personagem bíblico. Em 297 298 A expressão “regras da alegoria”, que aparece na edição de Richter como regulas alegoriae, ocorre algumas vezes, nos tratados de Fílon preservados em grego, em construções com κανόνες kanónes ou νόμοι – nómoi (cf. Abr. 68, Spec. 1.287, Somn. 1.73 e Somn. 1.102), mas seu sentido não é identificado com precisão. A esse respeito, cf. RIOS, 2009, p. 92-93. Katell Berthelot procura demonstrar que, diferente do usualmente considerado, a relação de Fílon com a interpretação alegórica de Homero o aproximaria mais dos neoplatônicos (que lhe são posteriores, mas que reproduziriam características de platonistas anteriores) que dos estoicos. Conforme a pesquisadora, “o conhecimento e uso da obra homérica é similar, de muitas maneiras, ao dos neoplatonistas: ele defende o poeta contra seus acusadores, ele o cita em seu comentário sobre as Escrituras como os neoplatonistas fariam em seus comentários sobre Platão, e ele usa interpretações alegóricas de versos homéricos em sua própria obra” [Philo’s knowledge and use of the Homeric work is similar in many ways to those of the Neo-Platonists: he defends the poet against his detractors, he quotes him in his commentary on Scriptures as the Neo-Platonists would do in their commentaries on Plato, and he uses allegorical interpretations of Homeric verses in his own work] (BERTHELOT, 2012, p. 164). A dificuldade no estudo de Berthelot, reconhecida inclusive por ela própria, é a escassez de testemunhos seguros contemporâneos de Fílon a respeito da interpretação alegórica de orientação platônica. O texto que ela aborda com ênfase é O antro das ninfas, de Porfírio (séc. III d.C.). Uma evidência de semelhança entre neoplatonistas e Fílon feita pela pesquisadora é especialmente digna de nota. Ela observa que, em Quest. Gen. 3,3, Fílon faz referência tanto a Homero quanto a Platão, combinando a referência às Sereias que ocorrem na Odisseia com as que se fazem ao final da República (BERTHELOT, 2012, p. 163). Embora não haja propriamente uma interpretação alegórica explicitamente demonstrada, o trecho permite a Berthelot perceber semelhança com o que fariam os neoplatonistas, e, também, me serve como mais um indício da capacidade de Fílon de conhecer e mobilizar Homero e as leituras de Homero. 169 Sobre José 265, em meio a palavras proferidas a seus irmãos, José se refere a seu Deus nos seguintes termos: eÃxomen to\n a)ge/nhton, to\n aÃfqarton, to\n a)i¿dion, "oÁj e)for#= pa/nta kaiì pa/ntwn e)pakou/ei" kaiì tw½n h(suxazo/ntwn, to\n a)eiì ble/ponta kaiì ta\ e)n muxoiÍj th=j dianoi¿aj Temos o [pai] não-criado, imperecível, eterno, 'o qual tudo supervisiona e escuta a todos', inclusive os que guardam silêncio; e que sempre vê até aquilo que está no interior da mente (Ios. 265). O verso citado aparece uma vez na Ilíada e duas na Odisseia caracterizando o Sol, que, é preciso lembrar, além de ser o astro, é um deus nos poemas. Inclusive, as ocorrências do verso citado na Odisseia (XI 109 e XII 323) se dão em um contexto em que o Sol é claramente referido como deus, a saber, o episódio em que os companheiros de Odisseu comem as vacas sagradas do deus Sol. A divindade do Sol está também explícita na ocorrência da expressão na Ilíada (III 277), uma vez que se dá na prece que Agamenon faz a algumas divindades, entre elas, e caracterizado pelo verso, o Sol. A citação no discurso de José não é anunciada ou emoldurada por qualquer referência ao poeta, ao poema, ou de que se trata de um verso poético. O José de Fílon furtivamente usa o verso homérico, sem dar-lhe crédito. Poder-se-ia dizer que se trata de uma expressão formular, pronta para ser repetida pelo aedo que canta o poema, facilitando a composição da narrativa com a métrica adequada. Isso faz lembrar que a noção de autoria é diferente no contexto dos poemas homéricos. Mas, no tempo de Fílon, a noção de autoria dos poemas atribuídos a Homero está bem consolidada. A expressão, ainda que formular, é, então, tida como de Homero, e colocada deliberadamente no discurso de José, como se ele fosse o aedo que encontra essa ajuda para seu discurso. E ele aproveita a caracterização do deus grego, mas a aperfeiçoa, indicando que o seu Deus alcança não só o que se vê e o que se ouve naturalmente, mas também o não dito, enclausurado ainda na mente. O Sol, tal como o caracteriza o verso homérico, se assemelha ao Deus de José, caracterizado de modo semelhante, por exemplo, em Jó 28:24. Mas não chega a perscrutar as mentes, como é o caso do Deus do patriarca, que assim é descrito após a citação homérica, em concordância com os versos do Salmo 139, por exemplo.299 299 De modo semelhante, Fílon aplica a Deus muitos epítetos costumeiramente usados para divindades gregas. Wolfson assinala que, já que escreve em grego, é natural que ele lance mão dessas expressões por saber que, embora fossem palavras comuns na religião popular grega, expressavam bem descrições que as próprias Escrituras faziam de Deus (WOLFSON, 1982, p. 39). De fato, no trecho que agora estudo, a coerência entre a descrição da divindade grega e algumas descrições do 170 Fílon seleciona o verso e, como no exemplo anterior, o recorta segundo seu objetivo, privando-o de seu referente original e adotando-o como predicado para outro, tirando-o do mito e levando-o para o relato bíblico. E ele faz esse recorte de modo tranquilo, dando a impressão de que o verso sempre descrevesse o Deus dos judeus. Ou melhor, revelando a possibilidade de que o verso abandonasse um contexto e se adaptasse de modo mais verdadeiro a outro.300 Algo semelhante acontece em Sobre fuga e encontro 61. Fílon havia afirmado que o modo de vida mais livre da morte está baseado em ter amor e amizade para com Deus. Logo, passa a exemplificar os opostos. De um lado, apresenta Nadab e Abiu como exemplos positivos, os quais, ainda que mortos fisicamente na narrativa bíblica (Lv 10:1-3), são vivos por seu relacionamento com Deus, o que é demonstrado por meio de citações de Levítico e dos Salmos. Do outro lado, aparece Caim e o oráculo sobre ele proferido, segundo o qual ele recebeu um sinal que indicava que não devia ser morto se encontrado por alguém (Gn 4:15). Então, Fílon o associa à “impiedade” e afirma que esta realmente não pode ser extinta. Logo, introduz uma citação de Homero, afirmando que o que diz o [escrito] poético se adapta (ἁρμόττειν - harmóttein) à maldade. Somente um verso, o 118 do canto XII da Odisseia, é citado: “Ela não é mortal, mas um mal imortal”301. A maneira como introduz o verso de Homero deixa claro que ele está consciente de que o que faz é aplicar o que se diz de uma coisa a outra. E é de fato o que faz. 302 No poema, o que Circe descreve com o verso é Cila, o monstro que Odisseu enfrentaria em breve. Na adaptação que Fílon faz do mesmo, não importa mais a deusa Circe nem o monstro. É notável que Fílon não acrescenta a essa citação nenhuma que seja do Pentateuco ou de outro livro judaico, mas somente uma expressão muito citada de certo Heráclito com vistas a descrever esse que está vivo do ponto de vista biológico, mas desprovido de alma e morto 300 301 302 Deus de Fílon encontradas na Bíblia é verificável. Parece-me que seria proveitoso observar, como ponto de possível comparação, outra experiência semelhante no século I d.C., oriunda de uma aproximação de uma concepção teológica semelhante à de Fílon com uma obra poética grega. O exemplo que me parece mais plausível é a citação de meio verso no discurso atribuído a Paulo no capítulo 17 do livro de Atos. Apesar das diferenças, há uma dinâmica que lembra a que encontro nesse exemplo e nos seguintes que tomo dos textos do alexandrino, sobretudo no que diz respeito ao recorte cuidadoso e atribuição de novo sentido no novo contexto. Explicito o fenômeno no Segundo Excursus ao final deste capítulo (p. 204). Minha tradução de: h( de/ toi ou) qnhth/, a)ll' a)qa/naton kako/n e)stin. Que ele está atento para a adaptação que faz fica claro quando se constata que, em outro tratado, falando sobre a loucura, ele lança mão do mesmo verso, mas, de modo diferente, fazendo uma comparação explícita: “como o monstro Cila, é um mal imortal” ( wÐsper h( memuqeume/nh Sku/lla, kako\n a)qa/nato/n e)stin – Det. 178 – Grifo meu). 171 com relação à vida que há em Deus: “mais jogados fora que sujeira” (κοπρίων ἐκβλητότερον – korpíon ekbletóteron). Esse tipo de citação, em que o autor parece fazer conscientemente a aplicação de um verso a um tema que nada compartilha com o contexto original, acontece também em Quem é herdeiro das coisas divinas 189. Nesse trecho, é citado o verso 97 do canto nono da Ilíada: “Em ti terminarei, e de ti começarei” 303. Trata-se de uma fala de Nestor a Agamenon, e a utilização da segunda pessoa deixa claro que Nestor fala justamente de Agamenon. Fílon lança mão do verso dizendo que poderia ser proferido por todo e qualquer número para a unidade. Como no caso da aplicação à impiedade de uma descrição de Cila, também neste, no qual se aplica uma fala sobre Agamenon à unidade, o novo tema guarda escassa semelhança com o originário. Digo escassa, e não nenhuma, porque um exercício de observação poderá nos levar a suspeitar que a monstruosidade é comum a Cila e à Impiedade personificada em Caim304, e que a unicidade do poder é elemento relevante para a expressão composta para a fala de Nestor. De modo diverso, em outras ocasiões, Fílon pode de modo muito claro citar Homero sem conceder ao trecho citado um significado alternativo ou, a um predicado específico, outro sujeito. Em Sobre a mudança de nomes 179, após caracterizar o responsável pelo verso como o mais glorioso dentre os poetas que há entre os gregos, ele cita uma expressão utilizada por Atena para enfatizar a velocidade das naus dos Feaces no canto VII da Odisseia, verso 36: “como asa de pássaro ou um pensamento” 305. O que lhe interessa na expressão citada é a menção do pensamento como algo extremamente ágil, a ponto de servir como imagem de coisa veloz. Seu interesse se dá porque, no trecho do tratado, interpreta a frase “disse em sua mente” (tv= ga\r dianoi¿# eiåpen – tê gàr dianoía eîpen) de Gn 17:17, e afirma que “em sua mente” é uma expressão relevante, pois, de outra forma, a fala de Abraão neste ponto do relato seria incompatível com o que dele se diz em Gn 15:6, uma vez que neste versículo se lê que Abraão creu, e, agora, ele diz palavras de dúvida. O detalhe observado por Fílon é que ele não profere, mas diz em sua mente simplesmente, e isso porque o Texto Sagrado, no detalhe, apresentaria essa dúvida não como duradoura, mas sim como extremamente passageira, “em sua mente”, e não chegando à boca (Cf. Mut. 178). 303 304 305 Minha tradução de: e)n soiì me\n lh/cw, se/o d' aÃrcomai. Inclusive, o sentido etimológico de “monstro” se reflete na narrativa canônica pela colocação do sinal em Caim. Minha tradução de: ὡς εἰ πτερὸν ἠὲ νόημα. 172 A expressão homérica, com seu sentido próprio, auxilia o alexandrino a demonstrar a peculiaridade de uma expressão que poderia passar desapercebida em uma leitura desatenta do Pentateuco. Especificamente nesta aproximação dos arquivos, Fílon não tem que se preocupar com a atribuição de sentido especial ao texto épico. Ele somente recolhe e, em um exercício quase de linguista, de reflexão semântica, utiliza a expressão para lançar luz sobre um elemento da linguagem de outro texto. Algo semelhante ocorre em Sobre a Migração de Abraão 156. Fílon lê de modo peculiar as queixas dos hebreus no deserto a respeito dos alimentos que costumavam ter no Egito e já não tinham. Os alimentos representam as paixões, e o choro dos hebreus (Nm 11:4) em meio a seus lamentos pode não ser de tristeza, mas de alegria por se verem livres de tais paixões. Então, para justificar a associação do choro com a alegria, diz que é justamente a partir dessa possibilidade que ele julga que o [escrito] poético diz (a)f' ou kaiì to\ poihtiko\n ei¹rh=sqai¿ moi dokeiÍ) “rindo entre lágrimas” (dakruo/en gela/sasa – dakryóen gelásasa). Uma expressão do texto homérico, estranha pelo aparente paradoxo, ajuda o intérprete do texto bíblico a ilustrar e defender a pertinência de sua afirmação. E ele diz que entende nesse sentido peculiar a expressão poética. A leitura é inusitada, pois uma leitura do trecho de onde ela provém (Ilíada VI 484) deixa a impressão de que a cena é realmente triste, já que quem ri entre lágrimas é a esposa de Heitor que se despede do marido que voltará para a batalha. As lágrimas existem por esse motivo, e o riso, ao que parece, pelo filho e pela prece que Heitor acaba de fazer por este. O choro é pela guerra. O riso, por uma cena doméstica, familiar. Contudo, Fílon não se interessa pela cena, mas pela expressão isolada. Interessa-se por ela assim, pois assim lhe é proveitosa, assim como, no parágrafo seguinte de seu texto, seriam proveitosos versos de dois Salmos, lidos com sentido bem diferente do costumeiro, também transformando cena de sofrimento em expressão de felicidade (cf. Mut. 157).306 306 O recurso aos versos dos Salmos é, neste caso, muito semelhante ao que se faz ao verso da Ilíada. De fato, embora Fílon pareça reconhecer os Salmos como divinamente inspirados, o uso que faz dos mesmos difere muito daquele que faz do Pentateuco (cf. RUNIA, 2001). Em alguns trechos, ele apresenta versos dos Salmos como prova (revestida de autoridade em seu argumento retórico), mas o mesmo faz com versos da literatura grega. A respeito das citações de Fílon de textos dos Profetas e Escritos (Tanakh, excluída a Torah), devo sugerir a leitura de COHEN, N. G., 2007, embora eu não me veja convencido de sua tese central, que consiste em afirmar que as citações de Fílon evidenciam a existência de uma Haftarah no judaísmo do Segundo Templo. Isto é, com base na série de leituras sinagogais dos profetas que temos hoje disponível, Cohen procura demonstrar que muitas das citações que Fílon faz dos profetas se devem a leituras desses que seriam feitas ciclicamente nas sinagogas de Alexandria após a leitura da Torah. 173 Quando digo que Fílon demonstra estar consciente de que, ao citar, está não só selecionando um trecho, mas também apresentando uma leitura do mesmo, estou inferindo a disponibilidade de algo que chamei de sentido mais fácil, ou costumeiro. Como observei, em Mig. 156, ele diz que “julga” que o verso homérico se refere a determinada situação. E “julga” por saber da existência de outro sentido, no presente caso, como procurei demonstrar, um sentido mais óbvio e adequado à narrativa épica em comparação com aquele que ele propõe. Mesmo que nos pareça o mais óbvio, convém apresentar indício de que esse outro sentido mais simples estaria acessível na Antiguidade. Recorro, pois, a um escólio, que evidencia que essa possibilidade de interpretação mais simples (em oposição à outra que entende o choro como de alegria) circulava de fato entre intérpretes antigos: δακρυόεν γελάσασα : δυνατῶς ῥηθὲν ἀνερμήνευτόν ἐστιν· οὐ γὰρ ἁπλοῦν τὸ πάθος, ἀλλά σύνθετον ἐξ ἐναντίων παθῶν, ἡδονῆς καὶ λύπης. εἰς γέλωτα μὲν γὰρ αὐτὴν προήγαγε τὸ βρέφος, εἰς δακρῦον δὲ ἡ περὶ Ἕκτορος ἀγωνία. οὐκ ἐνόησεν οὖν Καλλίμαχος τὸν στίχον εἰπών· “ἐπεὶ θεὸς οὐδὲ γέλασεν ἀκλαυτί” ᾠήθη γὰρ ὑπὸ τῆς διαχύσεως τοῦ γέλωτος τὰ δάκρυα γενέσθαι. “Rindo entre lágrimas”: Muito possivelmente, o que foi dito é de difícil interpretação. Pois não é simples a afecção, mas composta a partir de afecções opostas: prazer e dor. O recém-nascido a leva ao riso, enquanto a agonia a respeito de Heitor [ou, a batalha de Heitor], às lágrimas. Então, Calímaco não apreendeu o verso ao dizer: 'visto que nem deus riu sem pranto', pois suspeitava que as lágrimas eram geradas pela extensão do riso. (Scholia Vetera ad Iliadem VI 484) Em vez de considerar a possibilidade de um choro de alegria, o intérprete admite que a aparente contradição nas palavras da narrativa provém da complexidade do narrado, como fiz em minha primeira leitura há pouco. Também em Sobre a vida contemplativa 17, Fílon cita o poeta e apresenta uma leitura como sua opinião a respeito do citado: tou=to/ moi dokeiÍ kaiì àOmhroj ai¹ni¿casqai e)n ¹Ilia/di kata\ th\n a)rxh\n th=j triskaideka/thj r(ay%di¿aj dia\ tou/twn tw½n e)pw½n: "Musw½n t' a)gxema/xwn kaiì a)gauw½n ¸Ipphmolgw½n, glaktofa/gwn a)bi¿wn te, dikaiota/twn a)nqrw¯pwn," w¨j th=j me\n periì bi¿on spoudh=j kaiì xrhmatismo\n a)diki¿an gennw¯shj dia\ to\ aÃnison, dikaiosu/nhn de\ th=j e)nanti¿aj proaire/sewj eÀneka i¹so/thtoj, kaq' hÁn o( th=j fu/sewj plou=toj wÐristai kaiì pareuhmereiÍ to\n e)n taiÍj kenaiÍj do/caij. Parece-me que isso é o que também Homero declarou enigmaticamente na Ilíada, no princípio da décima terceira rapsódia, por meio destes versos: 'dos missos que lutam de perto, e dos ilustres hipemolgos, dos abios / dos que 174 são sem meio de subsistência 307 e se alimentam de leite, os mais justos dos seres humanos', como se a diligência a respeito dos meios de vida e negócios fosse também generatriz da injustiça, por meio da desigualdade, enquanto, tomando-se o caminho oposto, a justiça fosse consequência da igualdade, conforme a qual a riqueza da natureza é repartida e sobrepassa aquela que existe nas vãs glórias. (Cont. 17) Há alguns aspectos dignos de comentário nesse trecho. Algo notável é a maneira como os versos são localizados detalhadamente no poema. Vimos, no caso das citações comentadas anteriormente, que Homero nem sempre aparece nomeado. Aqui, não somente seu nome é mencionado, mas também o nome da obra e a precisa localização dos versos. Talvez, esse fato atípico se dê por não se tratarem de versos muito afamados da Ilíada, o que poderia gerar dúvidas sobre a precisão da atribuição dos mesmos a Homero. Mas também pode dever-se a outros fatores por nós desconhecidos (e porventura triviais, como a disponibilidade de um rolo aberto no momento da escrita, ou como a inserção da informação por parte de um copista primoroso por detalhes do tipo). Mais importante, contudo, é o aspecto que me motivou a mencionar o trecho. A relação proposta por Fílon entre as duas metades do segundo verso não está explícita no poema. Por isso, ele inicia sua apresentação afirmando que se trata de algo que lhe parece. A existência de outra leitura, como opção ou concorrente de outras possíveis, transparece na escrita do comentário. No caso dessa interpretação, talvez a opção que ele faz possa ser melhor percebida. Fílon entende o termo a)bi¿wn – abíon como significando aqueles que são privados (o a sendo lido como privativo) de abundante meio de subsistência ( bi¢o» – bíos).308 Logo, refere-se a essa escassez geral do povo de que se fala como motivo de serem os mais justos seres humanos, pelo fato de que todos viviam em igualdade de condições e sem anseios por coisas supérfluas. A Fílon parece que Homero fala a respeito disso. E esse parecer é alcançado por meio de uma leitura que explora o verso em detalhe e sinaliza que algo está implicado, para usá-lo conforme a necessidade. Se bem observado, parece que Fílon não só seleciona o trecho e faz uma leitura, 307 308 As duas opções em itálico serão alvo de uma discussão que se seguirá. Será preciso discernir se Fílon entende o termo como nome próprio de um povo ou como adjetivo. Mantenho a dúvida na tradução, pois definir entre uma ou outra opção seria dar a resposta antes da reflexão. O termo tem sido entendido pela ampla maioria dos intérpretes e tradutores como nome de um povo (Por exemplo: Carlos Alberto Nunes, A. T. Murray e Samuel Butler). Mas, a leitura de Fílon, em um primeiro momento, me pareceu tomar o termo como mero adjetivo, que caracterizaria, então, os hipemolgos. Adiante, apresentarei argumentos contrários a essa minha primeira impressão, que, como se verá, é consonante com a posição de Félix Buffière. 175 mas também escolhe uma tradição hermenêutica que o lê de certa maneira. Segundo Buffière, ele segue uma corrente que relacionava os hipemolgos com esse tipo especial de organização comunitária que se poderia chamar comunista (BUFFIÈRE, 1956, p. 362-364).309 A ocorrência serve como exemplo para que Katell Berthelot possa afirmar que “as passagens que ele [Fílon] cita ou aquelas às quais faz alusão são frequentemente aquelas que se encontram sob a pluma dos autores gregos”310 (BERTHELOT, 2011, 147).311 Mas o estudo de Félix Buffière traz à cena algo mais, que também especialmente importante. Não é simplesmente o caso de Fílon citar o que outros citam, mas de acompanhar a leitura dos poemas homéricos praticada entre os intérpretes gregos. O pesquisador francês o demonstra ao observar um paralelo com os escólios da Ilíada (Venetus A a Il. XIII, 6). Conforme a leitura de Buffière, os escólios apresentam dois modos de se interpretar o nome a)bi¿wn – abíon: como nome de um povo, ou como adjetivo, que só poderia ser ligado a ¸Ipphmolgw½n – Hippemolgôn. O intérprete que o toma como nome entende que esse povo, o dos Abios, constituía uma comunidade que compartilhava tudo. Se for tomado como adjetivo, os escólios apresentam diferentes opções de sentido: “os que ignoram a violência”, “os que não usam o arco”, “os que têm vida longa”, “os que não conhecem nossa existência civilizada” e “os que não têm meios de vida” (BUFFIÈRE, 1956, p. 362-363). Assim, o que Fílon faria seria simplesmente adotar, em sua leitura apresentada em Cont. 17, o último desses sentidos arrolados (BUFFIÈRE, 1956, p. 363). Contudo, a leitura que faço dos escólios me sugere um ponto de complexidade que talvez não tenha sido explorado pelo pesquisador francês. Considere-se o seguinte trecho: Ἀβίων: τῶν νομάδων Σκυθῶν, ὅθεν καὶ ὁ Ἀνάχαρσίς ἐστιν· οὓς δή φησι δικαιοτάτους εἶναι ἁπάντων, ὅτι κοινοὺς ἔχουσι παῖδας καὶ γυναῖκας καὶ τὰ πάντα πλὴν ξίφους καὶ ποτηρίου. τούτοις δὲ αὐτομάτως ἡ γῆ βίον φέρει οὐδέν τι ζῷον ἐσθίουσιν. τούτους Ἀισχύλοσ “Γαβίρους” φησιν. Ἀβιοι δε ἐκλήθησαν ἢ παρὰ τὸν βίον ἢ τὴν βίαν. 309 310 311 Inicialmente, atentei para esse aspecto da observação de Buffière a partir da leitura do artigo de Katell Berthelot (BERTHELOT, 2011, p. 147-148). O texto de Buffière, por sua vez, me remeteu aos escólios. E estes, como se verá, me fizeram desconfiar da precisão da leitura de Buffière, aceita por Berthelot. Minha tradução de: Les passages qu'il cite ou auxquels il fait allusion sont souvent ceux que l'on retrouve sous la plume des auteurs grecs. Como disse antes no caso do aproveitamento que Fílon pode fazer de leituras alegóricas então tradicionais de Homero, esse tipo de envolvimento com a prática citante de outros autores gregos [Não vejo porque, como repetirei em outra ocasião, não considerar Fílon como um autor grego entre outros nesse momento.] não reduz a importância da sagacidade do escritor alexandrino. Ao contrário, ele se mostra capaz de entrar em um jogo no qual não só o poema homérico é considerado quando está para ser recortado para, em seguida, entrar em seu texto. Ele pode considerar também algumas marcações deixadas por outros escritores. 176 Dos ábios: Dos nômades da Cítia, de onde também é Anacársis. Estes, então, diz ser os mais justos de todos, porque têm em comum os filhos, as mulheres e todas as coisas, exceto a espada e o copo. E para estes a terra traz espontaneamente o meio de vida (βίον – bíon). Não comem nenhum animal. Estes Ésquilo diz “gabirus”. E são chamados ábios ou por causa de “meios de subsistência” (βίον - bíon) ou por causa de “violência” (βίαν - bían). (Scholia Vetera ad Iliadem XIII, 6) Depois desse trecho seguem os significados arrolados por Buffière para o termo a)bi¿wn – abíon, que ele entende ser tomado pelos intérpretes antigos como adjetivo. O que me chama a atenção é o fato de que a mesma interpretação apresentada no escólio que entende que a)bi¿wn – abíon é o nome de um povo também oferece sutilmente a explicação etimológica desse nome. Com isso em mente, suspeito que os significados dados não indicam necessariamente que os intérpretes responsáveis pelos mesmos pretendem explicar um adjetivo ligado a hipemolgos. Um indício disso é o fato de que, nos escólios, não há nenhuma referência ao termo que seria adjetivado. Volto, pois, ao texto de Fílon e percebo que ele mesmo também não informa que entende a)bi¿wn – abíon como adjetivo. O leitor é que o deduz. Mas, se o alexandrino tomasse o termo como simples adjetivo ligado a hipemolgos, como Buffière pensa acontecer, por que diria que lhe parece que Homero disse tais coisas enigmaticamente (αἰνίξασθαι – ainíksasthai)? Se uma simples leitura literal explicitasse o sentido, o verso não teria caráter enigmático. Deve-se notar que o verbo αἰνίσσομαι – ainíssomai é utilizado por Fílon com frequência para indicar que o que está dito é passível de uma interpretação alegórica. E uma das maneiras que Fílon utiliza para acessar as ὑπόνοιαι – hypónoiai, isto é, os sentidos ocultos de uma narrativa, é justamente a observação do sentido etimológico de nomes presentes no texto. Isso ele faz frequentemente em sua leitura da Torah.312 Entendo, pois, que Fílon não está, em Cont. 17, a explicar um adjetivo que seria ligado a ¸Ipphmolgw½n – Hippemolgôn, mas sim expondo uma interpretação do nome de um povo, os ἄβιοι – Ábioi. E, fazendo o percurso inverso, não da leitura dos escólios para depois ler Fílon, mas de Fílon para depois ler os escólios, suspeito que aqueles significados ali explicitados também não são necessariamente sentidos de um adjetivo, mas explicações de um nome. Esse confronto com a leitura de Buffière pode aparentemente ter me desviado do estudo central que faço por algum tempo, mas pareceu-me importante por evidenciar a complexidade das relações intertextuais (e da cautela necessária para o estudo das mesmas). 312 cf. RIOS, 2009, p. 127; RUNIA, 2004; GRABBE, 1988. 177 Fílon não somente cita do arquivo grego aquilo que outros citaram, e não somente o lê como outros leram. Ele escolhe versos e leituras para aplicar o que lhe parece melhor. Ele tem opinião a respeito do sentido do verso homérico. E, conforme a necessidade de seu texto, ele, de modo pensado, coloca esse poema (bem como outros do arquivo grego) em contato com a Torah, e pode até mesmo adotar eventualmente um método semelhante de exposição para ambos. Entretanto, é preciso observar que a relação entre os arquivos nem sempre é completamente controlável, inclusive porque nem sempre os únicos discursos envolvidos na aproximação são o texto de origem do qual se extrai o trecho citado, o Texto Sagrado e o texto final do autor. Em Sobre a confusão das línguas, um primeiro problema com o qual Fílon se depara é a acusação de certas pessoas de que os livros sagrados dos judeus contêm mitos, semelhantes aos que eles tanto criticam quando lidos em outros escritos.313 Então, duas histórias que seriam paralelas ao relato da Torre de Babel são expostas, como modo de demonstrar que este está no mesmo âmbito delas, não merecendo consideração especial. Uma delas é uma fábula, segundo a qual, houve dias em que humanos e animais compartilhavam uma única linguagem (Conf. 6-8). A outra, que é apresentada antes, é extraída da Odisseia, mais precisamente, do canto XI, quando Odisseu, ao relatar o que havia visto em sua viagem ao Hades, entre tantos personagens mitológicos, diz ter visto Ifimedeia, sobre cujos filhos relata um mito. Para introduzir a citação, que é curta e precedida por uma explicação breve do mito, Homero é, como em outro trecho antes mencionado, caracterizado como o maior e mais glorioso dos poetas (o( me/gistoj kaiì dokimw¯tatoj tw½n poihtw½n – ho mégistos kaì dokimótatos tôn poietôn). Os versos citados são o 315 e o 316: “Planearam colocar a Ossa em cima do Olimpo, e sobre a Ossa / o Pélion de florestas trementes, para que o céu pudesse ser escalado”.314 Logo, vem a explicitação do paralelo proposto: ãOlumpoj de\ kaiì ãOssa kaiì Ph/lion o)rw½n o)no/mata. pu/rgon de\ o( nomoqe/thj a)ntiì tou/twn ei¹sa/gei pro\j tw½n to/te a)nqrw¯pwn kataskeuazo/menon qelhsa/ntwn u(p' a)noi¿aj aÀma kaiì megalauxi¿aj ou)ranou= yau=sai. Olimpo, Ossa e Pélion são nomes de montanhas. No lugar destes, o legislador introduz uma torre construída por seres humanos de então, os quais planejavam, por estupidez e arrogância, tocar o céu. (Conf. 5) 313 314 Conf. 2. Trecho citado em nota na Introdução (Cf. página 20). Tradução de Frederico Lourenço para: ãOssan e)p' Ou)lu/mp% me/masan qe/men, au)ta\r e)p' ãOssv Ph/lion ei¹nosi¿fullon, iàn' ou)rano\j a)mbato\j eiãh 178 De modo semelhante ao dos homens de Babel, Oto e Efialtes intentaram escalar até os céus. O método usado, contudo, difere. Em vez de construírem uma torre, decidiram fazer uma pilha de montanhas. Eles não tiveram êxito. Foram impedidos por Leto, filho de Zeus, que os matou enquanto ainda jovens. A semelhança faz com que se perceba o texto de Moisés como mera adaptação do mito grego. A dinâmica desta citação é complexa, pois, como observei, quem a requisita não é a própria argumentação do autor, mas a crítica de outros. E até mesmo os comentários que a emolduram parecem ser resultado de uma reprodução dos argumentos desses críticos por parte de Fílon, um empréstimo de voz.315 Por isso, diferente do que observei sobre outros casos, o recorte operado não livra a citação de seu contexto mítico. Ao contrário, aproxima do cânone judaico justamente esse aspecto do texto homérico, de modo burlesco talvez. Digo “talvez” por lembrar que Maren Niehoff está convencida de que o que esses supostos críticos estão a fazer é, simplesmente, aplicar ao estudo das Escrituras o método de comparação de mitologias, comum no tratamento de outros textos em Alexandria (NIEHOFF, 2011, p. 79ss). É possível que o fizessem de modo não polêmico ou zombeteiro, e que Fílon o tomasse e o apresentasse como crítica, como uma forma de fazer seu leitor compartilhar de sua aversão a tal tipo de leitura. Assim, este caso peculiar não reduz a importância do recorte nos outros casos. Pelo contrário, como ponto de contraste, deixa mais evidente a sagacidade da escrita do alexandrino. O motivo de Fílon se referir a essas críticas, ou a esse tipo de leitura, trazendo ao texto inclusive os argumentos dos tais opositores do Livro Sagrado, pode residir no fato de que talvez fossem por demais divulgadas entre os mais instruídos para que fossem completamente negligenciadas. Por outro lado, elas lhe servem também como modo de encaminhar-se ao método alegórico. Ele não responde às críticas dos acusadores. Apenas sugere que os que se dedicam especificamente ao sentido literal do texto poderiam fazê-lo, enquanto anuncia que seu caminho seria outro, o da leitura alegórica. Como não é meu objetivo mapear todas as citações que Fílon faz de Homero, e como julgo que as que foram comentadas já são suficientes, passo a um comentário breve, antes de seguir ao tópico seguinte. Percebo que as citações de Homero têm diferentes funções em Fílon e aparecem de diversas formas. Mas são sempre escolhidas, recortadas e coladas 315 Ele mesmo, quando chega o momento de confrontar os que compõem e arquitetam com maldade essas críticas (tou\j dh\ tau=ta suntiqe/ntaj kaiì kakotexnou=ntaj - Conf. 14), abdica-se de fazê-lo, e, sem respaldá-las tampouco, indica que procurará outro caminho, o da leitura alegórica. 179 conforme as necessidades e os limites da negociação estabelecida na escrita do alexandrino. Em Fílon, o poeta não tem a autoridade de definir um pensamento, mas somente a tarefa de ilustrar ou respaldar algo que ele já encontrou no Pentateuco ou que julga coerente com este. Homero não é o educador do judeu-alexandrino; não molda seu pensamento. Mas, sendo citado tantas vezes, decerto, esteve presente em seu processo de formação como conteúdo estudado. E, também, parece ser elemento considerável na estruturação didática dos escritos do alexandrino, como caminho para o estabelecimento de conexões, comunicações (como pontos de comunhão) entre o lido na Palavra Sagrada e o compartilhado pelo mundo, inclusive pelo público leitor, como patrimônio cultural helênico. Com sua importância inegável, pode aparecer nomeado ou não. Mas, até aqui, observei somente trechos nos quais ele é, ao menos, indicado como “poeta” ou “escrito poético” e copiado. Há outras situações que também podem contribuir para a reflexão que venho desenvolvendo, na medida em que, segundo penso, respaldam o que acabo de afirmar. Portanto, encaminho-me a seu estudo. 4.4 Outros Encontros Como visto, Fílon cita Homero, muitas vezes, sem mencionar seu nome ou especificar a obra da qual extrai o trecho citado. A identificação é possível justamente pela identidade das palavras transcritas. Em outros momentos, contudo, ele faz referência a alguma obra poética, de modo nada específico, e não a cita literalmente. Outras vezes, pode nem sequer explicitar a referência, mas deixá-la passível à exploração do leitor. Em Cont. 40, Fílon descreve as refeições dos terapeutas e as compara com as das outras pessoas, as quais não se controlam e, depois de ficarem completamente bêbadas, mordem umas as outras. Assim fazendo, acabam por respaldar como verdadeira (ἀποδεδειχέναι ἀληθῆ – apodedeikhénai alethê) a história (μῦθον – mŷthon) do Ciclope que comeu “bocados” (ψωμούς – psomoús) de seres humanos, devorando os companheiros de Odisseu. Além dos nomes, Ciclope e Odisseu, o termo ψωμούς – psomoús é o único extraído da narrativa homérica e trazido para o texto de Fílon. E esse termo é identificado como oriundo do texto poético pela expressão “como diz o poeta” (ᾗ φησιν ὁ ποιητής – hêi phesin ho poietés). Temos nomes de personagens, referência ao poeta e uma palavra copiada. Tratase, a bem da verdade, de uma brevíssima citação, que poderia, portanto, ter sido abordada no tópico anterior. Mas essa mínima citação, resto de poema homérico deixado em uma trabalhada e explicada referência ao episódio, serve aqui de modo apropriado como exemplo 180 de algo que está a meio caminho entre as citações antes observadas, as referências explícitas que passarei a observar e as menos claras, que também receberão alguma atenção. Dela, só observo o fato de que é usada como comparação, para reforçar a repugnância dos simpósios dos outros (τῶν ἀλλῶν - tôn állon), que podem ser justamente os gregos, em contraste com os realizados entre os “terapeutas”. Uma cena de um poema dos gregos, na qual um ser nada grego exibe toda a falta de hospitalidade e civilidade possível, é utilizada para caracterizar comportamentos de gregos. Maren Niehoff entende essa referência ao episódio do Ciclope em Cont. 40 como excepcional, por tratar-se, segundo ela, de uma referência negativa a Homero, o que destoa do que é usual nas obras anteriores (segundo a cronologia que ela considera) de Fílon (NIEHOFF, 2010, p. 100-101). Parece-me, em princípio, convincente o argumento central desenvolvido no artigo, segundo o qual, neste tratado, o alexandrino desenvolve uma oposição semelhante à realizada por alguns escritores romanos, colocando os gregos como o outro, cujos simpósios são desprezíveis, enquanto os dos terapeutas são louváveis.316 Não obstante, embora o elemento grego seja reprovável, não me parece que seja o caso de reprovar-se a Grécia como cultura. Isto é, não é Homero quem é diminuído, mas práticas dos gregos, que acabam por tornar-se semelhantes ao monstro da Odisseia, o qual, mesmo em uma leitura rápida do poema, revela-se como marcadamente não-civilizado, em oposição a Odisseu, o herói dos gregos. Ou seja, não há referência negativa a Homero, mas ao comportamento do Ciclope, que é representado negativamente por Homero mesmo. Pois bem, referência igualmente identificável, mas que de forma alguma se constitui como uma citação, ocorre em Cont. 9. Uma menção do nome de um personagem da Ilíada é o que acarreta o breve encontro. Ao criticar o culto que os egípcios faziam de animais selvagens, Fílon observa que o absurdo residia no fato de que, com isso, seres civilizados cultuavam os incivilizados, racionais, os irracionais, líderes, os subalternos, e, semelhantemente, os que tinham parentesco com o divino cultuavam seres que não se comparam nem a Tersites. Os temas das oposições estão todos explicitados (civilização, raciocínio, liderança) por palavras claras. Já o tema da beleza (oposta à feiura dos animais cultuados) só se explicita pela referência ao personagem homérico, o qual, no canto II da Ilíada é caracterizado nos seguintes termos: αἴσχιστος δὲ ἀνὴρ ὑπὸ Ἴλιον ἦλθε: φολκὸς ἔην, χωλὸς δ᾽ ἕτερον πόδα: τὼ δέ οἱ ὤμω κυρτὼ ἐπὶ στῆθος συνοχωκότε: αὐτὰρ ὕπερθε 316 Essa leitura de Niehoff foi mencionada na introdução (cf. p. 33). 181 φοξὸς ἔην κεφαλήν, ψεδνὴ δ᾽ ἐπενήνοθε λάχνη Era o mais feio que veio para Ílion: tinha as pernas tortas e era coxo num pé; os ombros eram curvados, dobrando-se sobre o peito. A cabeça era pontiaguda, donde despontava uma rala lanugem. (Ilíada II 216 – 219)317. É somente Tersites, o nome dele somente, que indica o tema da oposição. O outro item contraposto, o parentesco com o divino, poderia indicar algo além da aparência. 318 Isso indica que, no entender de Fílon, a associação com a feiura seria feita por seus leitores facilmente a partir da menção do personagem homérico. Em outros casos, não há nome de personagem mencionado, nem definição de poeta ou obra, mas somente uma expressão reproduzida e atribuída a indeterminada obra poética. Em Fug. 31, o assunto é novamente o comportamento à mesa. Ao caracterizar a maneira como o descomedido bebe, Fílon usa o advérbio χανδόν - khandón, “de boca bem aberta”, ao qual segue a expressão “como dizem os poetas” (ὡς οἱ ποιηταὶ λέγουσι – hos hoi poietaì légousi). Não diz “o poeta”, o que sugere, em princípio, que ele não associa o uso do advérbio nesse contexto como algo característico de Homero. Contudo, no canto XXI da Odisseia, encontramos o mesmo advérbio utilizado por Antínoo, um dos pretendentes de Penélope, para descrever justamente o exagero no consumo de bebida alcoólica.319 Algumas vezes, também, é possível suspeitar que Fílon usa uma expressão homérica, mas é difícil precisar a natureza da apropriação. Em Dec. 69, para enfatizar o grau 317 318 319 Tradução de Frederico Lourenço. Seria até esperado, em princípio, que o parentesco com o Divino não expressasse nenhuma relação com aparência física em Fílon, por ele se opor à associação de Deus com qualquer coisa física. Cf. Odisseia XXI 291-294. É preciso reconhecer, contudo, que o termo é utilizado por outros integrantes da tradição poética grega, entre os quais os autores de poemas épicos Nicandro e Opiano, além do tragediógrafo alexandrino Licofron. Em todos estes, encontro o termo sendo usado para referir-se à abertura da boca no momento de beber algo. Tanto é assim que a expressão xando\n pieiÍn - khandón pieîn aparece inclusive definida por um lexicógrafo chamado Hesíquio como “beber boquiaberto e continuamente com toda a boca” ( kexhno/twj kaiì a)qro/wj pieiÍn oÀl% sto/mati). Não obstante, a proximidade entre o contexto em que o termo é utilizado na Odisseia e o que se encontra no texto de Fílon favorece a relação entre os dois. Ademais, quanto ao gênero, ao menos Nicandro e Opiano seguem a tradição inaugurada pelos poemas de Homero. Certamente, esse detalhe não escaparia à percepção do alexandrino, que pode ter percebido a recorrência do termo e, por isso, mencionado que é usado por “poetas”, ainda que a aplicação do mesmo em determinado contexto tenha sido motivada por um específico, o mais glorioso de todos. Cabe acrescentar que Fílon utiliza o termo xando\n – khandón em outra ocasião, em Spec. 4.122, mas o faz sem referir-se aos poetas. Refere-se, nisso sim assemelhando esta ocorrência à de Fug. 31, a homens que levam o modo de vida entregue aos sentidos, à maneira de Sardanapalo, cuja vida havia sido contada por Ctésias em sua Pérsica. Mas esta obra não seria identificada por Fílon como de um poeta. Homero continua, então, a meu ver, a referência mais provável. 182 de ignorância que ele acusa naqueles que não são capazes de distinguir o Criador de sua obra criada, ele diz que isso “até uma criança sem entendimento sabe” (καὶ παῖς ἔγνω νήπιος – kaì paîs égno nepios). Essas mesmas palavras, ἔγνω νήπιος – égno népios, ocorrem na Ilíada (XVII 32) com um sentido parecido, e em Os Trabalhos e os Dias, em uma forma que seria mencionada posteriormente como provérbio (παροιμία - paroimía) em O Banquete de Platão (222b), conforme observa Colson em nota. Se Platão já reconhecia o dito como provérbio, é difícil afirmar com alguma certeza que um escritor muito posterior precisasse recorrer à épica grega para utilizar as mesmas palavras, se ele não dá indício algum da natureza de sua fonte. Algo semelhante, mas talvez com outra complexidade implicada, ocorre em Spec. 2.6. Ao referir-se a certo tipo de pessoas, que não distingue entre o que é sagrado e o que é profano, Fílon usa uma expressão e a anuncia como se tratasse de um dito: to\ lego/menon dh\ tou=to, "a)ni¿ptoij xersiì" pa/nta fu/rontej, w¨j de/on Como sendo adequado este dito: com as mãos sem lavar, eles bagunçam tudo. (Spec. 2.6) A expressão “com as mãos sem lavar” (ἀνίπτοις χερσί – aníptois khersí) ocorre na Ilíada (VI 266) justamente em uma cena na qual Heitor demonstra piedade ao negar-se a fazer libação a Zeus “com as mãos sem lavar” (ἀνίπτοις χερσί – aníptois khersí). Contudo, a expressão revela-se muito ligada ao tema da piedade religiosa, mas não especificamente a Homero. Ela ocorre em um conselho explícito em Os Trabalhos e os Dias (725). Não se deve fazer libação a Zeus ou a qualquer imortal “com as mãos sem lavar” (ἀνίπτοις χερσί – aníptois khersí), pois a prece não seria ouvida. Parece-me, pois, que a colocação dessas duas palavras juntas não se deve tanto à tradição homérica, mas, sobretudo, à ideia de uma pureza ritual que permeia diferentes culturas. Observe-se que pode ocorrer em contexto judaico. No Evangelho de Mateus (15:20), por exemplo, em meio a uma discussão a respeito do cumprimento da norma que manda lavar as mãos antes de comer, figura exatamente a mesma expressão. Ou seja, o muito uso da expressão em um contexto próximo daquele em que Fílon discute em seu tratado (a correção no que concerne à observação do que é sagrado), me faz considerar a possibilidade de que ele realmente tome a mesma não como própria de Homero, mas como provérbio compartilhado em diversas discussões semelhantes. O que ele faz não é apontar para a piedade homérica, mas ressaltar a impiedade daqueles que descreve por meio de um dito que é compreendido a partir da experiência religiosa de diferentes culturas. A relação com o poema me parece existir, mas não como relação intertextual gerada por citação 183 ou alusão, mas indireta, mediada por um dado cultural. Se há encontro, neste caso, trata-se de um encontro fortuito, de fato. Vê-se que não só de citações se constroem as relações com os poemas homéricos no texto de Fílon. A seguir, observo ocorrências semelhantes a essas que acabo de discutir, mas que considero especiais, por aparecerem de modo peculiar na biografia que o alexandrino escreve de Moisés, texto em que, curiosamente, Homero não é citado nenhuma vez. 4.6 Breve encontro: Moisés e Homero Em Sobre a vida de Moisés 1.60, Fílon diz que Moisés recebeu sua primeira lição sobre como ser líder ao assumir a função de pastor de ovelhas, e observa: dio\ kaiì "poime/nej law½n" oi¸ basileiÍj, ou)x w¨j oÃneidoj a)ll' w¨j u(perba/llousa timh/, prosagoreu/ontai. Pois também os reis são chamados “pastores de povos”, não como forma de desdém, mas como honra excessiva. Certamente, a analogia entre o pastor de animais e o líder de pessoas não é desconhecida em outros universos discursivos320, mas a recorrência da expressão utilizada como epíteto de reis nos poemas homéricos é bastante sugestiva321, inclusive pelo fato de que, assim utilizada, ela funciona como marcação de honra, justamente a função que Fílon demonstra perceber em seu uso. Após as leituras das citações e referências mencionadas até aqui, já nos é possível considerar Fílon um leitor de Homero, e, sem muitas dúvidas, reconhecer que ele esperava que seus leitores também o fossem, haja vista, por exemplo, a referência a Tersistes que há pouco mencionei. Portanto, embora ele não faça referência explícita a Homero, a uma obra e nem mesmo a um gênero de discurso no qual a expressão seja usada, é possível estabelecer uma relação com os usos da mesma na Ilíada e na Odisseia, e entender que ele e seus leitores mais sagazes também estavam atentos a isso.322 Até aqui, observei citações, com ou sem referência à sua fonte poética ou especificamente homérica, além de breves menções de expressões, nomes ou palavras, com referência mais ou menos explícita aos poemas homéricos de onde são tiradas, ou, como no último caso, ao menos com referência ao fato de que o dito é dito por outro. Esses vários 320 321 322 Confiram-se, por exemplo, no arquivo judaico, Jeremias 23:2 e Naum 3:18. Decerto, nos poemas homéricos, o termo lao¢» – laós parece indicar, mais do que “povo” em geral, “povo em armas”, isto é, o conjunto dos guerreiros. Donde entende-se que a expressão, na verdade, refere-se ao rei enquanto líder militar. A expressão é mencionada por Fílon também em Ios. 2. Comentarei alguma diferença adiante. 184 encontros, que vão dos mais marcados e explícitos a alguns mais rápidos e aparentemente sem muita importância, sugerem a possibilidade de que ocorram também encontros aparentemente ainda mais despropositados; encontros talvez marcados, mas despistados, com ares de acaso. Já que não se constitui como citação de um verso e que o empréstimo não é indicado com palavras, pode ser difícil identificar e assinalar com convicção esses encontros sutis. Mas ao menos um me chama a atenção. Para observá-lo com cuidado, preciso apresentar minimamente o tratado em que ocorre. E é justamente no mesmo livro em que se encontra o trecho com a expressão “pastores de povos”, Sobre a Vida de Moisés. Nesse tratado, como em outros, Fílon elabora uma espécie de reescrita do Pentateuco, recontando vidas de personagens ilustres. Sobre a vida do maior de todos, o legislador, ele escreve dois livros. O primeiro deles, especialmente, se caracteriza como uma espécie de biografia, que, diferente das outras duas grandes biografias escritas por Fílon, Sobre José e Sobre Abraão, mantém o foco quase que exclusivamente no personagem cuja vida é contada. De início, o alexandrino reclama a ausência da figura de Moisés no arquivo grego. Ele entende que o fato é consequência do mal uso que os helenos fizeram de suas próprias habilidades e da má escolha que fizeram para os temas de suas obras (Sobre a vida de Moisés 1.2)323. Algumas perguntas poderiam ser feitas a esse respeito: a tradução grega da Torah, não seria uma suficiente presença da vida de Moisés no ambiente discursivo grego? Fílon desconhecia a tragédia de Ezequiel324 ou esta não lhe parecia suficiente? Essas perguntas devem ser pensadas, mas não neste momento. Agora, importa observar que, apesar da crítica aos poetas gregos e da contraposição insistentemente marcada entre os arquivos, na tessitura filônica são deixados rastros de uma memória delituosa, como no caso da mencionada referência aos “pastores de povos”. E pode haver vestígios ainda mais discretos. Por exemplo, o seguinte trecho, o qual segue pouco depois da crítica antes mencionada aos escritores gregos: patro\j de\ kaiì mhtro\j eÃlaxe tw½n kaq' e(autou\j a)ri¿stwn, ouÁj 323 324 Sobre os autores gregos, ele diz abertamente: “A maioria destes homens ultrajou as habilidades – as quais obtiveram pela educação – compondo, em poemas e escritos em prosa, comédias e fábulas grosseiras...” (wÒn oi¸ plei¿ouj ta\j duna/meij aÁj eÃsxon dia\ paidei¿aj uÀbrisan eÃn te poih/masi kaiì toiÍj kataloga/dhn suggra/mmasi kwm%di¿aj kaiì subaritika\j a)selgei¿aj sunqe/ntej.) Peça dramática de um judeu de língua grega (mencionada no capítulo 1, e que voltará a ser objeto de estudo no capítulo 5), na qual Moisés é personagem. Pode ser que Fílon não a considere por não representar uma ampla narração da vida do legislador. 185 fule/taj oÃntaj h( o(mofrosu/nh ma=llon %©kei¿wsen hÄ to\ ge/noj. [Moisés] recebeu por pai e mãe os melhores dentre os seus, os quais, embora fossem da mesma tribo, eram unidos mais pela igualdade de pensamento do que pela procedência familiar. (Mos. 1.2) O termo furtado, ou, segundo a reflexão de Piglia325, esquecido para ser usado como novo, é ὁμοφροσύνη - homophrosýne, que traduzo por “igualdade de pensamento”. Essa caracterização do casamento dos pais de Moisés inexiste no cânon judaico. Por isso, lembro que Fílon, no início de seu texto, não restringe sua fonte, mas observa que suas informações foram obtidas tanto dos livros sagrados (ka)k bi¿blwn tw½n i¸erw½n) quanto junto a alguns dos anciãos de seu povo (para/ tinwn a)po\ tou= eÃqnouj presbute/rwn). Uma questão importante é pensar a que tipo de fonte oral Fílon estaria se referindo. Estaria falando sobre algo semelhante à Lei Oral, transmitida pelos sábios da Judeia e observada com a mesma veneração concedida à Torah? Louis Feldman entende que sim. Ele reconhece que Fílon se refere frequentemente à “lei não escrita” como se tratando da vida dos patriarcas. Mas ressalta que, ao menos em Spec. 4.149-150, ele usa a expressão de modo semelhante ao do encontrado no judaísmo praticado na terra da Judeia. Logo, Feldman observa que Fílon se refere às peregrinações que os judeus da diáspora faziam rumo a Jerusalém, sugerindo que esse trânsito de pessoas possibilitava também o trânsito da tradição produzida na Judeia. E observa também que as interpretações da Lei realizadas por Fílon têm frequentemente paralelos com a Lei Oral dos sábios palestinos. Em seguida, conclui que: Quando Fílon diz em Mos. que recorre a alguns dos anciãos da nação, ele está se referindo aos expoentes da lei oral na terra de Israel. Em outro lugar, ele se refere a costumes que são leis não-escritas que são ordenadas por homens divinamente dotados, que são maiores do que aqueles de seu próprio tempo. Isso pareceria ser uma referência aos rabinos que expunham a Lei Oral.326 (FELDMAN, 2007, p. 29) Apesar de demonstrar que Fílon reconhece a existência da tradição oral na Judeia, Feldman não consegue, a meu ver, definir, a partir do texto de Sobre a vida de Moisés, o motivo pelo qual se deve considerar que Fílon se refere, neste tratado, especificamente a essa tradição e não (ou, e não também) a uma tradição oral desenvolvida na diáspora. Se, como 325 326 Cf. Introdução. Minha tradução de: when Philo says in Mos. That he has drawn from some of the elders of he nation, he is referring to the exponents of the oral law in the Land of Israel. Elsewhere, he refers to customs that are unwritten laws that were ordained by divinely gifted men who are greater than those of his own time. This would appear to be a reference to the rabbis who expounded the oral law. 186 procurei comentar no capítulo 2, Fílon não percebe uma ruptura entre o judaísmo praticado na diáspora e o praticado na Judeia, parece-me provável que ele não estabeleça uma hierarquia que atribua maior valor à tradição oral preservada à sombra do Templo. E se percebemos que algumas de suas interpretações têm paralelo com as exposições que nos chegaram dos rabinos, é preciso ponderar também o fato de que muitas não apresentam semelhanças e, inclusive, que Fílon parece dialogar com intérpretes que desenvolviam seu trabalho em Alexandria mesmo, não na metrópole.327 Com isso, quero ressaltar que concordo com o fato de que as fontes orais a que Fílon se refere podem incluir elementos de uma tradição oral oriunda das terras de Israel, mas também que entendo que o texto não delimita geograficamente essa origem, mesmo porque essa ruptura não parece fazer parte da concepção de Fílon a respeito de sua situação. Parece-me mais cauteloso compreender que ele se refere a dois tipos de fonte, a escrita e a falada, mas não a procedências geográficas. Os anciãos do povo podem falar grego, hebraico ou aramaico. Ainda assim são anciãos. Ainda assim guardam a tradição. Independente de qual seja a fonte específica, o importante é que é justamente por sempre entrelaçar (ἀεὶ συνύφαινον – aeì synýphainon) as coisas ditas com as lidas que ele acredita produzir uma análise mais meticulosa (ἀκριβῶσαι – akribôsai), mais que as dos outros, sobre as coisas concernentes à vida de Moisés. Contudo, nesse entrelaçar de fonte lida e fonte ouvida, sendo esta última menos mapeável, a memória-tradição parece inserir dados estranhos, como essa ὁμοφροσύνη - homophrosýne que lemos no trecho citado. O dado é estranho no arquivo judaico, e pode não advir da tradição oral do judaísmo praticado na Judeia, mas do arquivo grego, como passo a demonstrar. Na Odisseia, mais precisamente no discurso de Odisseu a Nausicaa, no canto sexto, encontra-se uma singular descrição do que seria um casamento excelente. Bem ao fim do discurso, tentando conquistar benevolência da jovem desconhecida, o herói diz: soiì de\ qeoiì to/sa doiÍen, oÀsa fresiì sv=si menoin#=j, aÃndra te kaiì oiåkon, kaiì o(mofrosu/nhn o)pa/seian e)sqlh/n: ou) me\n ga\r tou= ge kreiÍsson kaiì aÃreion, 327 Ademais, os que observam as semelhanças entre interpretações de Fílon e de textos rabínicos reconhecem que os ensinamentos destes foram compilados tardiamente, séculos depois da produção de Fílon (por exemplo, COHEN, N. G., 1995). Afirmam que esses ensinamentos parecem ser antigos, até anteriores ao século I d.C.. Bem, é possível que realmente sejam antigos. Mas não se sabe exatamente a forma que teriam e as mudanças que teriam sofrido até seu registro escrito definitivo. E, se nos baseamos em possibilidades, eu poderia dizer também que é possível que esses ensinamentos rabínicos tenham sofrido influência de tradições da diáspora antes de seu registro. Essa possibilidade não costuma ser considerada. 187 hÄ oÀq' o(mofrone/onte noh/masin oiåkon eÃxhton a)nh\r h)de\ gunh/. E que a ti os deuses concedam tudo o que teu coração deseja: um marido e uma casa. Que a ambos deem igual modo de sentir (ὁμοφροσύνην – homophrosýnen), essa coisa excelente! Pois nada há de melhor ou mais valioso do que quando, sintonizados nos pensamentos (ὁμοφρονέοντε νοήμασιν – homophronéonte noémasin), numa casa habitam um homem e uma mulher. (Odisseia VI 180-184)328 A expressão “igual modo de sentir” é a tradução proposta por Frederico Lourenço para o substantivo ὁμοφροσύνην - homophrosýne e “sintonizados nos pensamentos” provém da expressão ὁμοφρονέοντε νοήμασιν (homophronéonte noémasin). No versos citados, essas palavras são usadas para definir um bom casamento. Mas elas não são usadas com frequência para este fim. Na verdade, conforme Sarah Bolmarcich, esta é a “única referência na literatura grega arcaica e clássica que sugere que a ὁμοφροσύνη - homophrosýne pode existir entre um homem e uma mulher”329 (BOLMARCICH, 2001, p. 209). As outras ocorrências costumam se referir a relações entre companheiros de combate. A própria autora observa em nota que, após o poema homérico, o primeiro a usar o termo para caracterizar inequivocamente uma relação entre marido e esposa é justamente Fílon em Sobre a Vida de Moisés (BOLMARCICH, 2001, p. 209). Ademais, convém observar, ela entende que Odisseu estaria falando de seu próprio casamento, um bom casamento pela existência desta igualdade de pensamento, que o diferiria dos demais casais apresentados na Odisseia (BOLMARCICH, 2001, p. 213). Assim, a palavra parece estar realmente em destaque no trecho, sobretudo pelo caráter não comum de sua utilização. Fato que seria acessível para alguém que, como Fílon, é não somente experiente na leitura em primeira mão do poema em si, mas também está inteirado nas leituras que se fazem do mesmo. É conveniente, neste ponto da reflexão, acrescentar uma observação a respeito da possibilidade ou não que um leitor na Antiguidade pudesse perceber que Homero concede tamanho destaque à ὁμοφροσύνη - homophrosýne como característica de um casamento exitoso. Primeiramente, procuro indícios em uma leitura dos escólios que apresentam interpretações para o trecho do canto VI da Odisseia estudado por Bolmarcich. Mas não encontro nada muito significativo. Nada que vá além de uma definição do termo como 328 329 Tradução de Frederico Lourenço. Grifos meus. Minha tradução de: the only reference in archaic and classical Greek literature that even hints that ὁμοφροσύνη can exist between a man and a woman. 188 “genuína afeição” (γνησίαν φιλίαν – gnesían philían). O termo γνησία – gnesía, que traduzo por “genuína”, poderia levantar leve suspeita de similaridade se pudéssemos com segurança reconhecer nele um outro sentido, mais ligado à sua origem etimológica: “pertencente à raça”. Afinal, Fílon informa a proveniência dos pais de Moisés como sendo da mesma tribo. Prefiro não explorar essa pequena possibilidade que vislumbro nesse escólio 330, não para abandonar a reflexão, mas para apresentar outro escólio que a justifica de modo muito mais direto. Um escólio para o verso sétimo do Canto X da Odisseia apresenta uma ocorrência importante de ὁμοφροσύνη – homophrosýne. Apesar de se tratar de um comentário ao texto, e não de um texto poético, deve-se notar que o trecho comentado do poema não inclui o termo, mas trata do tema do casamento. É o comentador que faz a associação. Assim diz: eÃnq' oÀge qugate/raj po/ren ui¸a/sin] a)rxaiÍon eÃqoj to\ sunoiki¿zein a)delfou/j. kaiì o( Zeu\j a)delfv= ouÃsv sunoikeiÍ tv= àHr#. (Il. d, 60.) megi¿sth ga\r eu)daimoni¿a kaq' àOmhron h( o(mofrosu/nh. oÀtan ouÅn t%½ th=j sunoikh/sewj e)piterpeiÍ prosupa/rxv ti fusiko\n filostorgi¿aj pa/qoj e)k ge/nouj kaiì sunanatrofh=j paidikh=j, diplasia/zetai euÃnoia. Foi nesse lugar que deu as filhas aos filhos. Era um costume antigo fazer coabitarem os irmãos. E Zeus coabita com Hera, que é sua irmã (Il. IV 60). Com efeito, a maior felicidade, conforme Homero, é a igualdade de pensamento (ὁμοφροσύνην - homophrosýne). Então, quando junto ao prazer da coabitação houver uma afecção natural de afeto, proveniente do parentesco e da criação em conjunto durante a infância, é dupla a benevolência [para com o casal]. O intérprete responsável pelo escólio demonstra perceber o destaque concedido no poema homérico à ὁμοφροσύνη – homophrosýne. E ele o faz tanto ao mencionar a palavra quando está a tratar do tema do casamento em um trecho completamente alheio àquele em que Ulisses o utiliza, quanto ao indicá-la como “a maior felicidade, conforme Homero”. É notável, também, que o verso comentado se refere a casamentos intrafamiliares. As filhas e os filhos de Éolo se casam. O escólio inicia a explicação do incesto afirmando tratar-se de um costume antigo, praticado, inclusive, entre os deuses. Logo, acrescenta o tema da ὁμοφροσύνη – homophrosýne, apresentando-a, ao que parece, como uma consequência do parentesco 330 Inclusive porque considero que o sentido que propus inicialmente é o mais plausível. Também um escólio que interpreta o verso 198 do Canto XV, contexto alheio tanto a casamentos quanto a relações de membros de uma mesma família, apresenta significado semelhante para ὁμοφροσύνη – homophrosýne. Telêmaco diz ao filho de Nestor que a viagem que fariam juntos os uniria com ὁμοφροσύνη – homophrosýne. A expressão é interpretada pelo escólio como significando “com as mais genuínas afeições” (φιλίαις γνησιωτέραις – philíais gnesiotérais). 189 original, o que, junto com a coabitação, seria um duplo proveito. O que me faz entender o escólio como especialmente importante para minha reflexão é o fato de que, antes de introduzir o tema da ὁμοφροσύνη – homophrosýne, Fílon havia explicitado justamente o parentesco dos pais de Moisés. Ambos eram da tribo de Levi, diz ele. O escoliasta apresenta a ὁμοφροσύνη – homophrosýne não como algo oriundo do relacionamento matrimonial em si, mas da peculiar proximidade sanguínea do casal. Certamente, Fílon não permitiria qualquer suspeita de incesto no caso dos pais do legislador.331 Por isso, talvez, se apressa em informar que a ὁμοφροσύνη – homophrosýne os une mais que o parentesco (e não, como no caso dos filhos e filhas de Éolo segundo o escólio, por causa de um parentesco por demais próximo). O termo tal qual utilizado no poema homérico, em destaque, conforme Bolmarcich, fazia suspeitar de uma apropriação por parte de Fílon, por haver duas coincidências: a caracterização do matrimônio de um casal ilustre e a ocorrência da palavra. O escólio comentado, por sua vez, confirma a suspeita ao acrescentar a esses dois outro dado coincidente: o parentesco prévio dos cônjuges. Parece-me razoável entender que a utilização do termo no poema juntamente com sua referência no exercício hermenêutico apresentado no escólio (ou outro semelhante que lhe tenha servido de fundamento) ensejam o aproveitamento do mesmo no tratado de Fílon. Assim, entendo que a peculiaridade do termo na Odisseia, a ocorrência do mesmo no escólio e sua aplicação semelhante por parte de Fílon para descrever o casamento dos pais de Moisés, quando consideradas juntamente com a vasta referência aos poemas homéricos por parte do alexandrino, fazem crer que o que se encontra no texto pode ser um encontro intencional disfarçado de coincidente.332 Uma característica do casamento excelente segundo a fala de Odisseu é agregada a uma descrição do casamento dos pais de Moisés. Curiosamente, como o foco do texto de Fílon é Moisés, nem sequer os nomes dos pais do legislador, frequentes na tradição judaica333, 331 332 333 Fílon afirma a pertinência das leis da Torah que interditam o incesto em Spec. 3.11ss. Inclusive, ele não deixa de mencionar ao menos um caso de incesto no arquivo grego, o de Édipo e Jocasta (Cf. adiante, p. 291). Digo “aplicação semelhante por parte de Fílon” por reconhecer que ele utiliza a mesma palavra de forma diferente em outros tratados. Ao todo, são cinco ocorrências do termo na obra filônica que nos chegou. Além do trecho em estudo, Flacc. 52, Virt. 119, Praem. 87 e Hypoth. 6.3 apresentam aplicações de ὁμοφροσύνη – homophrosýne que não estão restritas ao âmbito doméstico e, menos ainda, à relação entre homem e mulher. Em todos os trechos, contudo, percebe-se uma considerável valorização dessa qualidade, como possibilitadora de coesão social e paz. Tomados a partir de Ex 6:20. 190 são mencionados. Mas essa peculiar característica sim. Com o termo, o casamento é caracterizado como excelente. Com o mesmo termo, também, a possível suspeita de um incesto é excluída, sem que uma semelhante acusação tenha que ser pronunciada. E, é preciso concluir, Moisés é o fruto mais importante e proveitoso desse casamento, que deveria, portanto, ser especialmente bom. Se no âmbito público, a ὁμοφροσύνη - homophrosýne resulta em paz e estabilidade, no matrimônio, ela resulta, ao menos neste caso, no nascimento de um filho extraordinário, que, em seguida, se tornaria proveitoso também para o público. O elemento grego se imiscui em meio às pouco nítidas informações de uma tradição oral, que Feldman quer puramente judaica e de terras israelenses. Fílon fala grego, sua tradição fala grego, ainda que, em partes, um grego que traduz língua semita. E no comércio dos relatos, na lida com as palavras, a língua não deixa as fronteiras intactas. Assim como versos são trazidos e anunciados, outros elementos vêm mais desavisados, mas também são importantes. Resta observar algo que cheguei a mencionar de passagem há pouco: a curiosa ausência de referências explícitas aos poemas homéricos no tratado Sobre a Vida de Moisés. Esse fato poderia gerar suspeitas de que a expressão “pastor de povos” não foi retirada por Fílon de sua leitura de Homero (que ele não tenha percebido a relação), ou de que o termo ὁμοφροσύνη - homophrosýne tenha aparecido na descrição do casamento dos pais de Moisés por coincidência. Não obstante, pode haver outro modo de pensar o problema, o que procurarei desenvolver em poucas palavras a seguir. A expressão “pastores de povos” é apresentada por Fílon, em Mos. como maneira como “são chamados” os reis. Ele não aponta para uma fonte homérica ou mesmo para o gênero épico ou poético como um todo. Poder-se-ia pensar que, desde Homero, essas palavras tivessem alcançado um uso comum no linguajar cotidiano das pessoas, ou ao menos em discursos retóricos, e que, por isso, Fílon já não era capaz de identificar sua origem. Não obstante, em outro texto ele se refere à mesma expressão, em contexto muito semelhante. O líder que faz “estágio” como pastor não é Moisés, mas José: hÃrcato me/ntoi sugkroteiÍsqai periì eÃth gegonwÜj e(ptakai¿deka toiÍj kata\ poimenikh\n qewrh/masin, aÁ sun#/dei toiÍj periì po/lin: oÀqen oiåmai kaiì to\ poihtiko\n ge/noj "poime/naj law½n" tou\j basileiÍj eiãwqen o)noma/zein: Começou, contudo, a ser treinado tendo por volta de dezessete anos de nascido nas teorias relacionadas ao pastoreio, as quais estão de acordo com aquelas relacionadas à cidade; e, segundo penso, este é o motivo pelo qual o 191 gênero poético costuma nomear os reis de 'pastores de povos'. (Ios. 2) Ora, também em Sobre José a expressão não é atribuída a Homero, mas Fílon restringe seu uso aos poetas, o que ele silenciou em Sobre a Vida de Moisés. Essa referência seria suficiente para fazer suspeitar da intencionalidade do silêncio. Mas a suspeita se fortalece ainda mais se se considera ainda outro tratado de Fílon. Em Sobre o fato de que todo homem bom é livre, a afirmação é completa: à mhroj O basile/aj me\n ouÅn "poime/naj law½n" eiãwqe kaleiÍn tou\j Homero, então, tem o costume de chamar os reis de 'pastores de povos'. (Prob. 31) Diferentemente, em Mos., mencionar a expressão fortaleceria o argumento de Fílon, mas mencionar a tradição poética não fazia parte do plano. Então, ele se refere à expressão sem lembrar de seu contexto.334 O esquecimento permite essa manobra. E pode permitir algo semelhante, como a utilização do termo ὁμοφροσύνη - homophrosýne, com o qual Fílon consegue exaltar a qualidade excelente do casamento dos pais de Moisés, já expressa pelo fato de ambos pertencerem à tribo de Levi, sem ter que comprometer-se explicitamente com a tradição homérica. Por uma apropriação não anunciada, ele deixa em 334 Uma reflexão semelhante a essa que faço a partir das ocorrências da expressão “pastores de povos” poderia ser motivada pela expressão ἄχθος γῆς - ákhthos gês, “carga de terra” ou “carga para a terra”. Ela parece ser uma recuperação de ἄχθος ἀρούρης – ákhthos aroúres, “carga de terra (arável)”, que ocorre em Il. XVIII 104 e Od. XX 379. Em Mos. 1.30, a expressão ocorre no plural e com ordem inversa, γῆς ἄχθη - gês ákhthe, e não é anunciada (assim como em Congr. 171). Em Spec. 1.50, Fílon usa a expressão tal qual aparece nos poemas e acrescenta “como disse alguém” (ὡς εἶπέ τις - hos eîpé tis), anunciando que a toma de outro escritor. Já em Spec. 1.74, o anúncio se faz mais específico: “como dizem os poetas” (ὡς οἱ ποιηταί φασι - hos hoi poietaí phasi). Pode ser interessante observar que a expressão parece ter se revestido de certo valor proverbial, sendo utilizada para se referir a coisa inútil, desprovida de valor. Isso se percebe já no Teeteto de Platão (176d), bem como nos diversos trechos de Fílon mencionados. Em Mos. 1.30, de modo especial, Fílon diz que essa expressão é uma das formas que os homens que prosperaram um pouco geralmente usam para desdenhar daqueles que eles consideram como menos importantes. E é interessante que, na Odisseia, a expressão é utilizada justamente por um dos pretendentes de Penélope que, em fala dirigida a Telêmaco, refere-se de modo pejorativo a Odisseu disfarçado de mendigo (uso da expressão que já seria uma alusão ao uso da expressão por Aquiles para referir-se a si mesmo em Il. XVIII 104, conforme BAKKER, 2010, p. 48). Ainda que o uso proverbial seja um dificultador para o discernimento seguro de uma relação direta entre o trecho de Fílon e o poema homérico, a especulação a respeito não é despropositada, uma vez que em um trecho ao menos o alexandrino assinala que entende a expressão como própria dos poetas. E não destoa da reflexão que venho desenvolvendo o fato de que no tratado a respeito da vida de Moisés, a expressão aparece sem ser anunciada como retirada da tradição literária grega. Preferi, contudo, abordar o caso da outra expressão no corpo do texto, por ser mais emblemático, enquanto este caso aparece em nota, como alternativa que deve reforçar o desenvolvido. 192 seu texto alguma semelhança com o outro, como se o fizesse inadvertidamente, por semelhança das realidades narradas, e não por empréstimo textual.335 E a falta de referências explícitas à tradição literária grega em Sobre a Vida de Moisés se verifica também quando se buscam vestígios de outros autores além de Homero. Não há nenhuma citação. Em Mos. 1.279, uma palavra parece aproveitada de um trecho de Níobe de Ésquilo, o qual nos é conhecido por intermédio de uma citação presente na República de Platão. O termo é ἀγχίσποροι - ankhísporoi, que significa algo como “parente próximo”. No texto de Fílon, quem o utiliza é Balaão, que diz a Balak que os hebreus são parentes próximos de Deus. No texto de Ésquilo, apesar do estado fragmentário em que foi conservado o trecho, pode-se perceber que se fala de pessoas que são parentes próximos dos deuses, que estão perto de Zeus (cf. República III 391E). Em nota, Colson sugere que, como não há semelhante frase no texto da LXX, deve-se considerar que se trata de “uma citação consciente” (“a conscious quotation”). A semelhança do genitivo que acompanha a palavra realmente faz pensar nesse sentido, embora se possa verificar que Fílon a usa também em outro contexto336, o que poderia fazer pensar que a palavra não está tão marcada como oriunda do texto de Ésquilo, e que poderia ter-se configurado em um sintagma semelhante ao do dramaturgo por coincidência. Seja como for, se se trata de uma relação com o texto dramático, eu não diria que se configura como citação. O que acontece é mais semelhante ao caso que acabo de estudar, com o termo ὁμοφροσύνη - homophrosýne. A outra possível referência a texto literário em Sobre a Vida de Moisés, também anotada por Colson, pode também ser útil para a presente reflexão. Ou melhor, inclusive a própria nota do tradutor pode indicar algo considerável. Ele sugere que um verso de 335 336 Alguém poderia, também, supor exagero identificar uma só palavra como tomada dos poemas homéricos, o que faria o caso de ὁμοφροσύνη – homophrosýne não comparável ao da expressão “pastores de povos”. Mas não é impossível encontrar termos propriamente homéricos nos textos de Fílon, nem mesmo perceber que ele usa um termo com o mesmo sentido peculiar utilizado em um verso específico de um poema homérico. Dois exemplos são úteis para demonstrar tal fato. Em suas notas, Colson identifica o termo πανάπαλος – panápalos utilizado por Fílon em Praem. 146 como homérico, e remete a Od. XIII 223. Já em Virt. 222, Colson identifica algo mais sutil, comparável à minha observação a respeito de ὁμοφροσύνη – homophrosýne. Ele assinala que o sentido do termo κουρίδιος – kourídios, utilizado no texto filônico para se referir ao primeiro marido de Tamar, não é o mais comum de “marido legítimo”, uma vez que o segundo marido da personagem também é legítimo, e tal característica não poderia ser usada como contraste. O sentido preciso do termo é encontrado, então, como sendo o mesmo que Stephanus, em seu dicionário, encontra para o termo em seu uso em Od. XV 22. Como no caso de Tamar, o hipotético segundo marido de Penélope seria, em princípio, também legítimo. Por isso, Stephanus define o termo como significando o marido “que desposou a jovem virgem” (cui juveni virgo nupserat). É o sentido que Colson entende que Fílon tem em mente. Cf. Spec. 4.235. 193 Eurípedes, que Fílon cita em Somn. 1.154, é parafraseado em Mos. 1.31. Para facilitar a apreciação de tal possibilidade, insiro a seguinte tabela, com o fragmento que nos chegou do texto de Eurípedes, a citação em Somn. 1, e a suposta paráfrase: Fragmento 420 (Nauck) Citação em Somn. 1.154 h( mi¿a ga/r, w¨j eÃfh tij, o(r#=j tura/nnouj dia\ h(me/ra to\n me\n kaqeiÍlen makrw½n hu)chme/nouj, w¨j u(yo/qen, to\n de\ hÅren aÃnw, mikra\ ta\ sfa/llonta, kaiì mhdeno\j e)n o(moi¿% mi¿' h(me/ra ta\ me\n kaqeiÍlen pefuko/toj me/nein tw½n u(yo/qen, ta\ d' hÅr' aÃnw. par' h(miÍn, a)lla\ pantoi¿aj metaballo/n twn tropa/j. Vês os tiranos que por longo tempo aumentaram seu poder, como são breves as quedas, e em um dia a certas coisas faz cair do alto, enquanto a outras eleva para o alto. Pois um dia, como dizia alguém, a um faz cair do topo, enquanto a outro eleva para o alto, já que nenhuma das coisas que nos dizem respeito têm a natureza de permanecer em igual estado, mas se transformam em todo tipo de mudanças. Paráfrase em Mos. 1.31 tu/xhj ga\r a)staqmhto/teron ou)de\n aÃnw kaiì ka/tw ta\ a)nqrw¯peia petteuou/shj, hÁ mi#= polla/kij h(me/r# to\n me\n u(yhlo\n kaqaireiÍ, to\n de\ tapeino\n mete/wron e)cai¿rei: Pois nada é mais instável que o acaso, que joga as coisas humanas para cima e para baixo, o qual, frequentemente, em um dia faz cair o altivo enquanto eleva o humilde no alto. A primeira diferença, conforme indiquei anteriormente, é o fato de que o texto de Eurípides é copiado em Somn. 1 e não em Mos. 1. Outra diferença reside no fato de que naquele tratado, Fílon indica que está citando palavras alheias, ainda que não indique a fonte. Já na biografia de Moisés, ele não usa exatamente os mesmos termos. Eu poderia pensar que Colson é apressado demais ao afirmar a existência da paráfrase. Não poderia tratar-se de coincidência de termos? Em princípio, sim. Contudo, no texto de Mos., a menção do “acaso” (tu¢xh – týkhe) me remete à tradição da tragédia grega. Fílon não diz que cita. E não cita. Mas lembra em outras palavras, fingindo não lembrar, para tornar seu; dizer somente. Contudo, deixa o vestígio, por meio de um item lexical, da fonte voluntariamente esquecida. Assim, esse trecho, em contraste com a citação mais explícita ocorrida em Somn. 1, reforça minha impressão de que ele deliberadamente oculta as referências ao arquivo literário grego em Mos. 1. Duas questões se interpõem, antes que eu possa me encaminhar à conclusão: Por que não explicitar as relações com as tradições poéticas gregas neste tratado? E por que construir essas relações se não se quer deixá-las perceptíveis? Para a primeira pergunta, sugiro que Fílon escreve todo o tratado lembrando do que estabelece no início: a ausência de uma representação adequada de Moisés no arquivo 194 literário grego, oriunda justamente da má aplicação dos recursos por parte dos autores helênicos. Não afirmo que isso impossibilitaria a citação, mas que pode tê-lo desencorajado de fazê-lo. Talvez quisesse, neste texto, deixar em evidência somente as anunciadas fontes judaicas, escrita e oral. Quanto à outra pergunta, não encontro elementos nos textos estudados que me permitam respondê-la com convicção, mas vejo-me inclinado a considerar o seguinte: talvez fosse inviável para alguém formado com o arquivo literário grego, e habituado a mover-se por ele, lê-lo e citá-lo, simplesmente anulá-lo no momento da escrita. Além disso, talvez o próprio Fílon percebesse que, assim como a língua grega, o arquivo literário e cultural grego cooperava para a efetividade da comunicação com seus almejados leitores. Por isso, não lançaria mão somente da vocabulário e sintaxe próprios dos gregos (a língua), mas também de elementos de sua tradição literária ou inclusive provérbios (cf. Mos. 1.22), ainda que não quisesse deixar os empréstimos evidentes, já que começara o tratado com a referida polêmica. 4.7 Conclusão Tendo observado considerável parte das citações e outras referências a versos homéricos na obra de Fílon, percebo que os versos, expressões e palavras, citados ou roubados como lembrança esquecida para fazer-se invenção própria, são patrimônio de uma cultura que se impõe como comum e com grande alcance. Mas também uma cultura à qual o alexandrino parece propor a conversão. Versos prosélitos, expressões ou palavras igualmente convertidas, são aqueles e aquelas que abandonam o mito e integram a narrativa venerada por esse judeu-alexandrino, que conta o nascimento daquele que haveria de comunicar a Lei. O trabalho de seleção, recorte e colagem, ou, poderia ser dito, de acolhimento, circuncisão e reeducação, se realiza conforme um jogo meticuloso de relacionamento tenso com o outro. Um jogo que se revela não completamente controlável, nem em sua realização por parte do autor (no caso, Fílon), nem em sua análise (no caso, eu), pois as palavras estabelecem e sugerem relações que fogem ao controle. Não obstante, a maneira como Fílon realiza citações e demais referências, bem como a especificidade da realização delas em Sobre a Vida de Moisés em comparação com o resto de seus tratados, sugere que ele atenta para a importância desses encontros que faz ou permite que aconteçam em seu texto. Ele não é ingênuo, mas um engenhoso tecelão, que escolhe os fios e os tinge conforme a necessidade, inclusive com atenção para as repercussões que um nó ou outro 195 podem gerar no trabalho final, e em sua recepção. E seu engenho, por vezes, consiste em aceitar sugestões de outros tecelões, escolhendo fios-versos semelhantes e, inclusive, lançando mão das mesmas tinturas-leituras, em certas ocasiões. Em alguns casos estudados ficou patente o aproveitamento de citações feitas por outros autores e, ao menos em parte, da aplicação realizada por eles. Deve-se observar que, como no caso da produção da arte poética, também no caso de seu aproveitamento, a originalidade absoluta não é um valor necessariamente almejado. O diálogo com a tradição de outros citantes permite a construção de sentido, a tessitura de algo significativo, compartilhável, comunicável. Enfatizo que Fílon faz isso em seu texto com cuidado. Ele não deixa de manejar a faca. Não a cede definitivamente a terceiros. Mas considera cortes já feitos, como cicatrizes deixadas no texto, como resquício de outros encontros também tensos. E isso não torna seu trabalho menor, nem faz dele um mohel negligente. Pelo contrário, revela a complexidade da tarefa que executa com persistência. Ele não tem uma receita ou plano cirúrgico previamente definidos, mas atua conforme a situação, e conforme necessidades geradas pelo encontro, e não por um sistema de pensamento somente, isto é, não exclusivamente pela prescrição da Torah lida conforme sua tradição, e também não exclusivamente pelo pensamento grego, mesmo que em sua forma mais virtuosa, a filosofia. O corte e a citação, que nascem do encontro e que também realizam o encontro, seguem, de alguma maneira, requisitos do encontro, ou melhor, da negociação que se realiza nele. 196 Primeiro Excursus do Capítulo 4 Referências aos poetas em Todo homem bom é livre, que diferem consideravelmente das que se verificam nos tratados exegéticos de Fílon Ao longo deste capítulo, tratei das citações e outras referências que Fílon faz aos poemas homéricos. Abordei ocorrências nos tratados exegéticos do alexandrino, acrescidos de alguma menção a um ou outro tratado que não se enquadra nesse grupo, como Cont. e Legat.. Embora tenha restringido minha abordagem a Homero por questão metodológica, estou certo de que o observado se assemelha consideravelmente ao que acontece com a obra de outros poetas gregos nessa parte (que é a maior parte) do corpus filônico.337 Não obstante, há outros tratados de Fílon que parecem apresentar uma dinâmica diferente com respeito às citações. Penso em De Aeternitate Mundi e Quod omnis probus liber sit. Ambos divergem dos demais escritos do alexandrino a ponto de levantarem dúvidas sobre sua autoria. Dúvidas mais contundentes circundam De Aet. que foi considerado como não filônico por Roald Skarsten em sua tese de doutorado defendida em 1987338 (RUNIA, 2000, p. 53-54), aparentemente corroborando com dados concretos e sistemáticos suspeitas já muito comuns em décadas anteriores.339 Mesmo que a negativa da autoria ainda não seja consensual340, parece-me conveniente focar minha reflexão apenas no tratado menos 337 338 339 340 Não deixo de reconhecer, contudo, que as citações tomadas de outros poetas são tão importantes quanto, em vários aspectos. Haja vista, por exemplo, a famosa citação do poemas das idades de Sólon em Opif. 104. A tese foi defendida na Universidade de Bergen, Noruega. Poucos anos depois, em um artigo que anuncia e defende a utilidade da metodologia utilizada, que se baseia em um estudo linguístico apoiado pelo uso de computadores (o que, obviamente, na época, ainda era menos comum que hoje), Skarsten demonstra sua convicção no resultado obtido ao chamar o tratado de pseudofilônico (SKARSTEN, 1991). Outro tipo de dado que promove a mesma suspeita, mas que me parece ser mais frágil, diz respeito ao conteúdo filosófico do tratado quando comparado com noções apresentadas por Fílon em outras de suas obras. Um exemplo recente desse tipo de abordagem se encontra em FUGLSETH, 2006. Em sua obra introdutória à Fílon, datada de 1979, Samuel Sandmel informava que somente uma minoria dos estudiosos consideravam De Aeternitate Mundi como sendo autenticamente de Fílon (SANDMEL, 1979, p. 76). Em uma edição recente do periódico The Studia Philonica Annual, por exemplo, Lucia Saudelli oferece um artigo que estuda a transmissão do pensamento de Heráclito de Éfeso em De Aeternitate Mundi, considerando o tratado como sendo de Fílon, e meramente reconhecendo as dúvidas sobre sua autoria em uma nota (SAUDELLI, 2007). Em sua tese de doutorado (defendida no ano de 2008, no programa de pós-graduação da University of Notre Dame, cujo diretor é Gregory E. Sterling), John T. Conroy faz grande uso de Aet. como evidência do pensamento de Fílon, e apenas indica, em nota, concordar com os argumentos de Colson (da década de 1940) a favor da autoria filônica, sem mencionar o trabalho de Skarsten (CONROY, 2008, p. 80). Algo 197 problemático nesse sentido. Assim, passarei a observar algumas citações que Fílon realiza em Quod omnis probus liber sit, com o objetivo de suprir uma falta do capítulo finalizado. Ademais, essa exposição poderá ser útil para a melhor apreciação do que foi até aqui estudado, servindo como contraste. O tratado Quod omnis probus liber sit, caracterizado por Sandmel como “uma obra em grande parte secular”341 (SANDMEL, 1979, p. 36), discute a tese estoica anunciada em seu título, e, conforme sua primeira linha, é o prosseguimento de outro tratado que discutia o oposto, isto é, que todo homem mau é escravo. Ao longo da exposição sobre o tema, Fílon não se restringe a ilustrações do âmbito judaico. Usa como exemplos os sete sábios da Grécia (Prob. 73), os gimnosofistas e os magos da Pérsia (Prob. 74), assim como, no meio judaico, os essênios (Prob. 75). Ao contrário do que acontece em seus escritos exegéticos, recorre a muitas ilustrações oriundas do arquivo grego, mas a poucas da Bíblia. Mas a questão que pretendo considerar não é meramente quantitativa. A maneira de citar os poetas gregos é o que me interessa, e para confirmar o que tenho como suspeita, passo a estudar alguns poucos exemplos. Mencionei anteriormente que é em Prob. 31 que Fílon nomeia Homero como responsável por chamar os reis de “pastores de povos”342. Não se trata de detalhe pouco significativo, mas de indício de uma das características que se destacam como não exclusivas, mas apresentadas de modo consistente no tratado. Diferente do que ocorre em outros textos de Fílon, nesse, os autores dos versos são nomeados com mais frequência. A primeira citação tomada de um poeta, por exemplo, aparece introduzida da seguinte maneira: a)nafqe/gcetai ga\r e)keiÍno to\ Sofo/kleion ou)de\n tw½n puqoxrh/stwn diafe/ron: "qeo\j e)mo\j aÃrxwn, qnhto\j d' ou)dei¿j". t %½ ga\r oÃnti mo/noj e)leu/qeroj o( mo/n% qe%½ xrw¯menoj h(gemo/ni, kat' e)mh\n de\ dia/noian kaiì tw½n aÃllwn h(gemw¯n, 341 342 semelhante acontece em BOERI, 2010, que, ainda assim, oferece uma instigante leitura de Aet., que favorece, se não sua compreensão como tratado filônico, ao menos como escrito de um pensador judeu adepto da Torah. Filonistas eminentes como David Runia (RUNIA, 2008) e Maren Niehoff (NIEHOFF, 2006, 2007) também continuam estudando o tratado como sendo parte da obra de Fílon. Ademais, na mais recente apresentação das obras de Fílon, as suspeitas sobre a autoria e o trabalho de Skarsten não são mencionados (ROYSE, 2009, p. 56). Esses fatos mostram que o trabalho de Skarsten ainda não repercutiu suficientemente para mudar a concepção geral entre os estudiosos, ou não foi considerado convincente. Não encontro, porém, uma refutação precisa do trabalho do estudioso norueguês e, portanto, preferirei, por cautela, abster-me de citar Aet. como de Fílon. Não obstante, assinalo que a maneira como os textos dos poetas figuram no tratado se assemelha mais ao que acontece em Prob. que à prática que se encontra nos tratados exegéticos de Fílon. Minha tradução de: Largely a secular work. Cf. p. 191. 198 e)pitetramme/noj ta\ peri¿geia, oiâa mega/lou basile/wj, qnhto\j a)qana/tou, dia/doxoj. Ecoará, com efeito, esse verso sofocliano em nada diferente dos oráculos píticos: “deus é meu governante, mas nenhum mortal”, pois, na verdade, o único livre é aquele que tem somente a deus por comandante. Mas, segundo minha reflexão, esse é também comandante dos outros, comissionado das coisas terrenas, como substituto de um grande rei, mortal de um imortal. (Prob. 19-20) Além de Homero e Sófocles, outros nomes são mencionados ao longo do tratado, como Eurípides (99, 141), Ésquilo (143) e Íon (134). Mas, com o objetivo de ir além dessa peculiar prática de referência nominal, observo outros detalhes que podem levar a questões igualmente relevantes. A obra de onde é tirado o verso, catalogado por Nauck (688), nos é desconhecida. Aristóteles cita a primeira metade do mesmo (Ética Eudemia 1242a 37), mas apresenta Zeus (ζεύς - dzeús) no lugar de deus (θεός - theós). O nome adotado por Aristóteles, como observa Colson em nota, cumpre o requisitado pelo metro anapéstico, uma vez que ζεύς – dzeús se conta como uma sílaba longa, diferente de θεός – theós, que se dividiria em duas sílabas e prejudicaria o metro do verso. Diante do fato de que Ambrósio, que teria tido o tratado de Fílon como fonte, cita o mesmo verso traduzido ao latim utilizando Jupiter e não Deus, Colson considera sensato supor que ele tenha lido Zeus (ζεύς - dzeús) no texto de Fílon de que dispunha. Então, Fílon teria trocado Zeus (ζεύς - dzeús) por deus (θεός - theós) e um copista teria restituído a forma original na família de manuscritos da qual uma cópia chegou a Ambrósio? Ou teria Fílon utilizado a forma Zeus (ζεύς - dzeús), sem alteração, mas um copista teria piedosamente corrigido o que podia supor ser um lapso do alexandrino, e essa correção teria se perpetuado nos manuscritos que nos chegaram, mas não no que Ambrósio leu? Bem, não estou certo da pertinência dessa inquirição, pois, talvez, os dados sugeridos não sejam completamente seguros. Por exemplo, não estou completamente convencido da impossibilidade de que Ambrósio tivesse outra fonte para o verso. Mas aproveito a suspeita de que Fílon tenha citado o verso mencionando o nome de Zeus para assinalar que a relação que ele estabelece com a mitologia e a religiosidade gregas em Prob. é diferente da que se divisa nas citações que faz de Homero que estudei antes. Não seria de todo estranho que, nesse tratado, ele tivesse mantido o verso de Sófocles inalterado, ainda que, em geral, eu pense que, entre a teologia e o metro, ele preferiria manter a precisão na primeira. Ainda nessa citação, é perceptível, por exemplo, que ele compara o verso de Sófocles a um oráculo pítico. Se fossem retiradas do tratado as não muito abundantes 199 referências ao texto bíblico e a menção dos essênios, talvez não seria percebida nenhuma tensão na relação do escritor com o pensamento religioso helênico. E é curiosa precisamente a maneira como Fílon, neste tratado, parece não se importar em fazer coexistirem sem muitos cuidados as diferentes cosmovisões que subjazem nos textos com que tece seus argumentos. Em certo passo, Fílon escreve: pro\j tou/toij ti¿j ou)k aÄn eiãpoi tou\j fi¿louj tw½n qew½n e)leuqe/rouj eiånai; ei¹ mh\ toiÍj me\n tw½n basile/wn e(tai¿roij … aÃcion ou) mo/non e)leuqeri¿an a)lla\ kaiì a)rxh\n o(mologeiÍn sunepitropeu/ousi kaiì sundie/pousi th\n h(gemoni¿an, toiÍj de\ qew½n tw½n o)lumpi¿wn doulei¿an e)pifhmiste/on Por conseguinte, quem não diria que os amigos de deus são livres? Se porventura não for digno reconhecer aos companheiros dos reis, que guardam e conduzem em conjunto o comando, não somente a liberdade mas também o governo, só então será preciso atribuir a escravidão aos companheiros dos deuses olímpicos! (Prob. 42) De início, poder-se-ia pensar que Fílon estava pensando no Deus dos judeus somente. Mas, logo, ele explicita que seu referencial é o grego, pois usa o plural e ainda acrescenta o adjetivo “olímpicos”. Em Prob., o alexandrino parece realmente ocupado em argumentar a favor de uma tese estoica a partir do compartilhado pelos pensadores da tradição helenística, sem insistir em demonstrar a prevalência do texto bíblico, ou da concepção teológica judaica que ele comunica em outros tantos tratados. Por isso também, ao falar das vicissitudes da vida, ele pode elogiar aquele que “voluntaria e pacientemente permanece firme sob o que lhe vem da Týkhe”343 (Prob. 24). E se a verdadeira liberdade do homem é caracterizada, entre outras coisas, por sua postura diante do que lhe confere o Acaso, não é inusitado que importante parte dos argumentos desenvolvidos no tratado são ilustrados ou corroborados por exemplos oriundos de tragédias gregas. E mais, não se trata somente de versos soltos aos quais se atribui um novo sentido a partir de novo contexto. Entre 100 e 104, por exemplo, Fílon recorre a Héracles e suas ações na peça Syleus de Eurípides como exemplo de homem bom, diligente (σπουδαῖον – spoudaîon, Prob. 100), que não pode ser escravo. E ele se dá ao trabalho de explicitar o enredo, apresentando inclusive o diálogo entre Hermes e aquele que estava por se tornar o “dono” de Héracles. Em seguida, Fílon conta o resultado da aquisição. O senhor encontra Héracles festejando com sua propriedade, depois de ter sacrificado um touro a Zeus, e não tem como contê-lo, pois não tem autoridade sobre ele. Enfim, o enredo é explicitado, 343 Minha tradução de: e(kousi¿wj aÀma kaiì tlhtikw½j e)gkarterw½n toiÍj a)po\ tu/xhj. 200 com seus detalhes e sem omissão de nomes ligados à mitologia. Além disso, o próprio enredo é utilizado como prova do argumento, não havendo prévia incursão alegorizante para aproveitá-lo.344 É flagrante, também, a consciência que Fílon tem da natureza do exemplo que está utilizando, pois, em seguida, supõe que alguém poderia argumentar que “não se deve introduzir os nobres feitos dos heróis como prova”345 (Prob. 105), devido à especificidade desses, que têm uma natureza ligada por parentesco aos Olímpios etc. Ele passa então a um exemplo baseado em personagens históricos, Anaxarco e Zeno, que ele logo observa não terem ascendência divina, entre outros. O que percebo de notável nesse detalhe é que Fílon não só recorre ao arquivo grego para compor sua argumentação a favor de uma proposição oriunda de filósofos gregos, como também tem o cuidado de antever críticas feitas do ponto de vista de outros pensadores gregos.346 Não seria estranho que alguém supusesse que Fílon procura, com este texto, um diálogo com pares que fossem alheios ao estudo do judaísmo. Não se trataria, então, de um escrito com forte fundamentação estoica dirigido a judeus de língua grega simplesmente. Por isso, talvez, as referências a Moisés se façam pela expressão “o legislador dos judeus” (ὁ τῶν ἰουδαίων νομοθέτης – ho tôn ioudaíon nomothétes)347, e não simplesmente, como é comum na ampla maioria dos outros tratados, por “o legislador” (ὁ νομοθέτης – ho nomothétes). Não me é possível afirmar com certeza que seja esse o caso, e, menos ainda, discernir, no caso de ter sido tal o objetivo do texto, qual teria sido a repercussão do mesmo entre os pensadores gregos. Ainda assim, a própria suspeita, que se origina a partir da leitura do texto, é um dado importante. Agora, preciso seguir e comentar algo a respeito de Homero em Todo homem bom é livre, com vistas a uma maior harmonia deste pequeno texto com o ensejo proporcionado 344 345 346 347 Nisso, discordo de Erkki Koskenniemi, que afirma que a maneira como Fílon aborda os textos de Eurípides em Prob. é análoga ao que faz com o texto de Gênesis em seu Comentário Alegórico. Não percebo, no caso de Prob., uma deliberada alegorização do enredo trágico, nem dos exemplos de personagens históricos que Fílon arrola em seguida. O próprio sentido literal é apresentado como argumento. Koskenniemi percebe uma aplicação alegórica ou metafórica que resulta no seguinte: “O herói já não é um homem, que mostra coragem ao enfrentar tiranos, mas a alma que resiste aos ataques dos prazeres” [Minha tradução de: The hero is no longer a man, who shows courage in facing tyrants, but the soul withstanding the attacks of the pleasures] (KOSKENNIEMI, 2006, p. 147). Contudo, se há tal aplicação alegórica, ela é sutil, discreta e acessória, em nada se assemelhando à alegorese desenvolvida por Fílon nos livros de seu Comentário Alegórico. Minha tradução de: ou) xrh/, fh/sei tij, ta\j tw½n h(rw¯wn para/gein ei¹j pi¿stin a)reta/j Digo “outros pensadores gregos” por considerar que, nesse momento, não faz sentido não considerar Fílon como um (comum) entre eles. Cf. Prob. 29, 43 e 68. Nesse último trecho, Fílon acrescenta o adjetivo “sábio” (σοφός – sophós). 201 pelo capítulo que o antecede. Nesse texto permeado por citações de tragédias e por algum lírico (156), não há abundantes citações dos poemas homéricos. Além da já mencionada atribuição da expressão “pastor de povos”, há somente um verso citado diretamente por Fílon. O alexandrino conta um episódio a respeito de dois lutadores que tinham força de tal forma equilibrada e que estavam tão decididos a vencer que sua luta acabou com a morte dos dois por exaustão. Então, diz que alguém poderia dizer a respeito dos dois “Oh nobre, o teu ímpeto te destruirá”348, palavras que são ditas na Ilíada por Andrômaca a Heitor. Essa expressão “alguém poderia dizer” (εἴποι τις ἂν – eípoi tis àn, Prob. 112) pode não ser despropositada. Fílon percebe que em seu entorno se aplicam citações dos poemas a várias situações alheias aos poemas em si. “Alguém poderia dizer” pode não se referir somente ao conteúdo do dito, mas indicar, sem dúvida, que ele entende que alguém poderia, ao ver aquela situação ou dela vir a saber, citar aquele verso da Ilíada. O que segue deixará o fato evidente. Outras duas citações de Homero que figuram no tratado são relatadas por Fílon como tendo sido feitas por outros pensadores. Elas mostram o que ele percebia sendo feito com os poemas homéricos por aqueles que ele considera dignos de menção como exemplos de homens bons. Uma das citações é feita por Diógenes, filósofo cínico. Ele tinha sido abordado por ladrões e levado para ser vendido como escravo. No caminho, após receber pouco alimento, argumenta por receber mais e é bem sucedido. Ao repartir com os demais cativos, percebe que um deles estava abatido demais até para comer e diz: "ou) pau/sv th=j sunnoi¿aj; xrw½ toiÍj parou=sin" eÃfh: "kaiì ga/r t' h)u/komoj Nio/bh e)mnh/sato si¿tou, tv= per dw¯deka paiÍdej e)niì mega/roisin oÃlonto, eÁc me\n qugate/rej, eÁc d' ui¸e/ej h(bw¯ontej." “Não vais parar com essa ansiedade? Aproveita o que tens no presente.” disse “pois até Niobe de bela cabeleira se lembrou do alimento, quando pereceram no palácio doze crianças, seis filhas e seis filhos que estavam no vigor da juventude.” (Prob. 122) Os versos citados (Il. XXIV 602-4) fazem parte da fala de Aquiles a Príamo, e a menção à personagem mitológica é feita pelo herói com o intento semelhante ao de Diógenes, isto é, de convencer o interlocutor a comer apesar de estar em situação de infortúnio. Um episódio relatado por um personagem no poema com dada função é aplicado pelo filósofo com a mesma função. Não se trata de sagacidade para citar, mas de memória e recurso a texto 348 δαιμόνιε φθίσει σε τὸ σὸν μένος, Il. VI 407 202 pertinente ao contexto. É o tipo de artifício que faz com que Fílon esperasse que alguém citasse o verso homérico para comentar o que ocorrera aos dois lutadores mortos por exaustão. Não muito diferente, mas com algum novo procedimento, é a citação de um certo Carea que teria vivido em Alexandria, e que teria sido ameaçado pelo Ptolomeu. Em vez de emudecer diante do rancor do governante, Carea lhe responde com as seguintes palavras: "Ai¹gupti¿oisin aÃnasse, se/qen d' e)gwÜ ou)k a)legi¿zw ou)d' oÃqomai kote/ontoj." Sê senhor dos egípcios. Mas eu não me importo contigo. Nem tenho em conta que te enraiveças. (Prob. 125) No poema, a fala é de Agamêmnon dirigida a Aquiles. Decerto, o que a cita faz uma adaptação no texto para que este lhe sirva. Troca mirmidões (μυρμιδόνεσσιν myrmidónessin) por egípcios (αἰγυπτίοισιν - aigyptíoisin). Se, no episódio protagonizado por Diógenes, a mudança está somente na enunciação e no enunciador, aqui, além disso, o texto enunciado é adaptado habilmente ao novo contexto, pela mudança de uma palavra. O que esses relatos que Fílon traz a seu texto me sugerem é justamente que ele tem modelos de citação a seguir. É óbvio que isso se infere pelo que sabemos de seu contexto, mas é ainda assim proveitoso perceber que ele tem tais exemplos presentes consigo ao ponto de mencioná-los cuidadosamente. Fílon cita Homero, e cita também atos de citação de Homero. Assim como sabe da Torah e dos estudos da Torah, Fílon sabe Homero e sabe do saber lidar com Homero (o mesmo valendo para demais poetas gregos), o que é evidenciado pela antes referida pesquisa de Maren Niehoff. Isso fica evidente em Todo homem bom é livre. Mas fica evidente também a capacidade do alexandrino de variar sua negociação, de deixar móveis os limites de pertencimento e identidade. Ele é também um pensador grego, que tem exemplos enriquecedores provenientes de sua experiência peculiar, por isso cita a Bíblia, fala dos essênios e do legislador dos judeus, o que seus colegas não costumam fazer. Para finalizar e deixar patente essa disposição de Fílon, observo que entre os exemplos de homens notáveis por não se deixarem escravizar está um certo Teodoro, apelidado “ateu” (ἐπικληθέντα ἄθεον - epiklethénta átheon - 127ss). É digno de nota que Fílon, que por motivo óbvio é bastante crítico para com o ateísmo 349, aqui se utilize da ação de 349 O tom crítico contra o ateísmo aparece de forma mais ou menos discreta em diversos trechos da obra de Fílon, como por exemplo em Ebr. 77-78. É especialmente destacável que ele chega a ser incisivo em sua crítica ao chamar o ateu (ἄθεος - átheos) de ἄγονος – ágonos. Entendo o termo como significando “não nascido”, como em Il. III 40. Um significado mais comum seria “estéril”, 203 um deles, destacando e não silenciando que ele fora acusado de ateísmo, como exemplo. Alguém poderia supor que esse tipo de contradição seria indício da não autoria por parte do alexandrino.350 Há, contudo, muitas semelhanças também, tanto de conteúdo quanto na linguagem utilizada. Tende-se a afirmar que o tratado teria sido escrito na juventude de Fílon351, o que poderia servir como ponto de partida para a explicação de muitas das diferenças. Observo que, ainda que também haja distanciamento cronológico, diferenças e semelhanças se evidenciam porque acontecem em uma negociação na qual posições não são tão fixamente estabelecidas, mas contextuais e criadas no discurso com vistas a certo objetivo. Encerro este Excursus, então, considerando que pude demonstrar alguma diferença na maneira como Fílon cita os poetas em Todo homem bom é livre, e que, ademais, foi possibilitada a reflexão a respeito da questão central desta tese a partir de novos dados de não pequena relevância. 350 351 mas parece-me que a ausência de um deus é vista como motivo para ver o ateu como desprovido de pai, e não de filhos. Reforça essa minha impressão o fato de que, no mesmo trecho, em contraposição, Fílon afirma que o politeísta é filho de uma prostituta (ὁ ἐκ πόρνης – ho ek pórnes), uma vez que são como um filho que não sabe qual é seu pai verdadeiro, e que, por isso, recorre a vários (Mig. 69). Em Opif. 170, por outro lado, Fílon distingue dois tipos de ateus, como se definisse um tipo pior que o outro. Os primeiros são os que somente duvidam que haja um deus. Os outros, mais audaciosos (τολμηρότεροι - tolmeróteroi), afirmam que não há um deus. Outra muito perceptível está na maneira como, aqui, Fílon enfatiza como mostra de que o bom não se deixa escravizar a maneira como ousadamente vários sábios responderam diante daqueles que política ou socialmente estavam em posição de autoridade sobre eles. Isso difere de sua mais ponderada proposta, que aponta para a estultícia dos que falam com reis ou tiranos sem pensar nas consequências, exercendo uma franqueza fora do tempo oportuno (ἄκαιρον – ákairon), que, na verdade, não é verdadeira franqueza (cf. Somn. 2.83ss). Sobre o tema em geral, sugiro BOSMAN, 2006. Embora o autor não se dedique ao trecho de Somn. que assinalo como diferente, oferece informações contextuais relevantes para a compreensão do desenvolvimento da ideia em Fílon, e se dedica a Prob. em um tópico específico (BOSMAN, 2006, p. 42-43). Cf. SANDMEL, 1979, p. 32, assim como a introdução ao tratado na edição de preparada por Colson (Vol. IX, p. 2). 204 Segundo Excursus do Capítulo 4 Sobre a citação de meio verso de Phainómena de Arato no discurso de Paulo em Atenas (Atos 17), que apresenta alguma semelhança com a prática da citação encontrada em Fílon No Novo Testamento, cuidado semelhante a esse que encontro em Fílon, quanto ao recorte e nova contextualização de versos poéticos, acontece em uma citação presente no discurso atribuído a Paulo de Tarso no capítulo 17 do livro de Atos. Embora o contexto e a intenção caracteristicamente missionária352 do enunciador suscitem diferenças, a similar noção da divindade compartilhada por Fílon e Paulo (de Tarso ou de Atos)353 possibilita uma aproximação potencialmente interessante. Conforme a narrativa, o apóstolo vinha divulgando sua mensagem por Atenas e foi levado a expor seu ensino no Areópago. Entre seus ouvintes estavam filósofos epicúreos e estoicos. Paulo, então, inicia seu discurso de modo eloquente. Aproveitando-se de um altar dedicado “a um deus desconhecido” (ἀγνώστῳ θεῷ - agnósto theô), ele diz que vinha anunciar justamente esse deus. Em princípio, parece ganhar a simpatia dos estoicos ao condenar o culto politeísta às imagens feitas por mãos humanas, algo que 352 353 De acordo com a narrativa de Atos, contudo, apesar de o episódio ocorrer depois do concílio em Jerusalém, que estabeleceu a validade e um padrão para o anúncio da mensagem cristã entre os gentios (At 15), a ida de Paulo a Atenas não parece intencional, como se fosse parte de um plano missionário a se realizar entre os não judeus (GRAY, 2004, p. 207). Como se vê, não me dedico a discutir o problema da atribuição a Paulo de Tarso do discurso encontrado no livro de Atos. O conhecimento da filosofia e literatura gregas que o discurso implica me parece possível tanto para Paulo quanto para o autor do livro. Não ignoro, contudo, o fato de que há certo incômodo motivado por discrepâncias assinaladas entre o Paulo das epístolas e representado no livro de Atos como um todo, assim como pela aparente divergência entre a postura de Paulo diante da ideia de uma “revelação natural” em Romanos 1 e aquela que parece estar implícita nesse discurso de Atos 17 (contrário à existência de tal divergência está GÄRTNER, 1955). Mas concordo com a seguinte percepção: “A grande distância entre o Paulo de Atos e o Paulo das epístolas imaginada por um número tão grande de estudiosos é, na verdade, uma distância entre uma descrição distorcida do Paulo supostamente autêntico e uma interpretação unilateral do Paulo de Atos. É verdade que não deixa de haver alguma distância entre os dois, mas não maior do que poderíamos encontrar entre a descrição que alguém faz de si mesmo e aquela que um amigo simpatizante faz com um objetivo específico em mente” (CARSON, 1992, p. 214). Seja como for, a questão não afeta de modo imediato e prejudicial minha reflexão. Referirme-ei ao discurso como de Paulo, sem definir se penso (ou proponho que se pense) no Paulo de Tarso, autor de várias das epístolas neotestamentárias, ou no Paulo de Atos, isto é, o personagem histórico tal qual constituído na narrativa do livro de Atos, conforme determinadas estratégias. Ambas as opções não me impedem de apreender tal discurso como proveniente de um período próximo ao de Fílon, elaborado com consideráveis similaridades por um autor versado nas Escrituras judaicas e conhecedor do arquivo grego. Não digo, com isso, que não seja pertinente e interessante um estudo que considere a narrativa tal qual apresentada no livro de Atos. Um exemplo de leitura bem sucedida elaborada nesse sentido é um artigo de Patrick Gray, que explora a recepção da narrativa por seus primeiros leitores almejados (GRAY, 2004). 205 servia, ao mesmo tempo, como introdução de sua mensagem a respeito de um deus único, mas, diferente do que pensavam os estoicos, pessoal. Então, no seguinte trecho, ele se serve de meio verso de um poeta grego: ἐποίησέν τε ἐξ ἑνὸς πᾶν ἔθνος ἀνθρώπων κατοικεῖν ἐπὶ παντὸς προσώπου τῆς γῆς, ὁρίσας προστεταγμένους καιροὺς καὶ τὰς ὁροθεσίας τῆς κατοικίας αὐτῶν, ζητεῖν τὸν θεὸν εἰ ἄρα γε ψηλαφήσειαν αὐτὸν καὶ εὕροιεν, καί γε οὐ μακρὰν ἀπὸ ἑνὸς ἑκάστου ἡμῶν ὑπάρχοντα. ἐν αὐτῷ γὰρ ζῶμεν καὶ κινούμεθα καὶ ἐσμέν, ὡς καί τινες τῶν καθ’ ὑμᾶς ποιητῶν εἰρήκασιν· Τοῦ γὰρ καὶ γένος ἐσμέν. γένος οὖν ὑπάρχοντες τοῦ θεοῦ οὐκ ὀφείλομεν νομίζειν χρυσῷ ἢ ἀργύρῳ ἢ λίθῳ, χαράγματι τέχνης καὶ ἐνθυμήσεως ἀνθρώπου, τὸ θεῖον εἶναι ὅμοιον. E ele fez, a partir de um, todos os grupos de seres humanos, para habitarem sobre toda a face da Terra, tendo separado tempos prescritos e o estabelecimento dos limites da habitação deles, para buscarem a deus; para ver se o procuram e encontram. E, de fato, ele não se encontra longe de cada um de nós. Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como também alguns dos poetas que há entre vós disseram: Pois dele somos geração. Então, sendo geração de Deus, não precisamos considerar que Deus é semelhante a ouro, prata ou pedra, escultura de arte e concepção de um ser humano. (Atos 17:26-29) Percebe-se que o verso se harmoniza de modo preciso no discurso paulino contra a idolatria praticada no âmbito da religiosidade popular ateniense. As palavras deviam agradar aos filósofos, e, ao mesmo tempo, extirpar a possibilidade de que Paulo fosse reconhecido como ateu354. Mas, como toda citação, ainda que sujeita aos limites estabelecidos pelo texto citante, esta nos instiga a observar seu contexto original. As palavras que introduzem a citação se referem a “alguns” (τινες - tines) dos poetas dos gregos (τῶν καθ’ ὑμᾶς ποιητῶν – tôn kath'hymâs poietôn)355. Isso leva a uma busca no sentido de encontrar mais de um poeta que tenha escrito as palavras citadas. 356 De fato, 354 355 356 Uma acusação comum contra os judeus, uma vez que cultuavam algo que não se via e que não participavam de cultos junto com os cidadãos nas cidades em que viviam. Em contexto politeísta, aquele que venera um deus não desacredita no deus do outro. Portanto, espera-se que os habitantes de uma cidade cultuem conjuntamente em algumas ocasiões (cf. de Josefo, C. Ap. II 6; de Tácito, Historiae V 5 ). Cf. BARCLAY, 1996, p. 429-434. Aqui, encontro um problema de crítica textual significativo. Alguns manuscritos antigos apresentam καθ’ ἡμᾶς – kath' hemâs, “entre nós”, em vez de καθ’ ὑμᾶς - kath' hymâs, “entre vós”. Embora não discorde da opção apresentada pela edição que adoto, compreendendo que “entre vós” está presente em manuscritos importantíssimos e faz muito sentido no texto, não me pareceria impossível que fosse dito “entre nós”, uma vez que aquele que argumenta fala grego e se imiscui na tradição grega para alcançar seu objetivo. Não obstante, a expressão pode indicar de modo implícito não somente “entre vós [gregos]”, mas “entre vós [filósofos gregos]”. Ou seria possível, ainda, que indicasse “entre vós [atenienses]”, uma vez que o poeta citado (assim como o outro, Cleantes, possivelmente implicado), embora não seja natural de Atenas, esteve fortemente relacionado com a cidade em sua formação e produção. Outra possibilidade, que não exploro, é considerar que há mais de um autor sendo citado nesse 206 embora somente um poema nos tenha chegado com esse meio verso tal qual figura no texto de Atos, outro transmite a mesma ideia com um vocabulário diferente. Ambos, contudo, partilham da mesma escola de pensamento, a estoica, e são praticamente do mesmo período. Em seu Hino a Zeus, Cleantes começa com a seguinte invocação: κύδιστ’ ἀθανάτων, πολυώνυμε, παγκρατὲς αἰεί, Ζεῦ, φύσεως ἀρχηγέ, νόμου μέτα πάντα κυβερνῶν, χαῖρε· σὲ γὰρ πάντεσσι θέμις θνητοῖσι προσαυδᾶν. ἐκ σοῦ γὰρ γενόμεσθα θεοῦ μίμημα λαχόντες μοῦνοι, ὅσα ζώει τε καὶ ἕρπει θνήτ’ ἐπὶ γαῖαν· Oh mais nobre dos imortais, multinominado, sempre todo-poderoso, Zeus, origem da natureza, que tudo governa com lei, salve. Pois é direito para todos os mortais dirigir a palavra a ti, pois a partir de ti viemos a ser, tendo recebido por parte o ser cópia imitada de deus] nós somente, entre quantos seres mortais vivem e se movem sobre a terra À primeira vista, o filósofo parece adotar uma postura teológica mais próxima da popular, que toma os mitos como transmissão de um conhecimento religioso confiável, mas, na verdade, pode-se dizer que ele “usa crenças tradicionais para dar suporte a uma visão totalmente filosófica de Zeus”357 (ASMIS, 2007, p. 413). Trata-se, pois, não de um Zeus como deus pessoal dotado de corpo em forma humana, mas de uma força única e imanente.358 A partir desse deus, diz o poeta filósofo, somos gerados. Meio verso que transmite a mesma noção daquele que Paulo cita. E talvez seja esse o motivo de ele se referir a “alguns” dos 357 358 ponto do discurso. Poderia haver uma citação antes da expressão. Com efeito, as palavras “nele vivemos, e nos movemos, e existimos” podem ter sido tomadas de um poeta, embora não conservem a métrica de um verso (cf. LAKE, 1933, p. 250-251). Nesse caso, a citação teria sido acrescentada após a exposição, e, em seguida, outra citação seria inserida para concatenar outra parte da exposição. No entanto, devido às muitas dificuldades de apreensão da dinâmica dessa suposta citação, restrinjo minha reflexão ao caso mais evidente e mapeável, que, ainda assim, revelará uma complexidade considerável e será suficiente para o presente propósito. Minha tradução de: uses traditional beliefs to support a thoroughly philosophical view of Zeus. É difícil definir o “deus” dos estoicos e até mesmo qualificar sua concepção como monoteísta, panteísta ou politeísta, pois os mesmos autores parecem tender em momentos diferentes a descrever a divindade de diferentes formas e, inclusive, a atribuir a ela termos que pareceriam conceder-lhe certa personalidade. Essa complexidade é proveniente do método teológico estoico. Os pensadores não partem de um livro inspirado, como judeus ou cristãos, mas de uma cosmologia. Aliás, a teologia estoica é tida como parte de sua física. Além dessa observação da natureza, consideram certas preconcepções, livres de conformações ideológicas, que os humanos em geral teriam a respeito do divino. Por isso, “as várias maneiras que eles podiam representar seu panteísmo e sua justaposição de panteísmo e teísmo podem ser explicadas por referência às características peculiares da física e da metafísica estoicas” (ALGRA, 2006, p. 189). Embora os estoicos possam utilizar termos que caracterizam a divindade como quase pessoal (ALGRA, 2006, p. 187), e isso possa afetar a leitura do discurso de Paulo em Atenas, considerarei como uma diferença entre a teologia do apóstolo e a dos filósofos a convicção judaica (e cristã) da pessoalidade de Deus. 207 poetas e não a um somente. Já o verso de fato citado provém da parte inicial do poema Phainómena de Arato. Cito o trecho com o fragmento recolhido por Paulo em destaque: Ἐκ Διὸς ἀρχώμεσθα, τὸν οὐδέποτ' ἄνδρες ἐῶμεν ἄρρητον. Μεσταὶ δὲ Διὸς πᾶσαι μὲν ἀγυιαί, πᾶσαι δ' ἀνθρώπων ἀγοραί, μεστὴ δὲ θάλασσα καὶ λιμένες· πάντη δὲ Διὸς κεχρήμεθα πάντες. Τοῦ γὰρ καὶ γένος εἰμέν. ὁ δ' ἤπιος ἀνθρώποισι δεξιὰ σημαίνει, λαοὺς δ' ἐπὶ ἔργον ἐγείρει μιμνήσκων βιότοιο· Comecemos a partir de Zeus, o qual os homens nunca deixamos de mencionar. Cheias de Zeus estão todas as ruas, assim como todos os mercados das pessoas, cheio está o mar e os portos. Em todos os lugares todos precisamos de Zeus. Pois somos geração dele. E ele, favorável para com os humanos, sinalizou sua aprovação, e levantou os povos para o trabalho fazendo lembrar dos meios de subsistência. (Phaen. 1-7) Novamente, Zeus é o tema dos versos. Mas neste caso a concepção propriamente estoica é mais evidente, apesar de certa ambiguidade que possibilita também outra leitura. “Tudo está cheio de Zeus” é uma afirmação estranha se esse é concebido como uma divindade pessoal. Ao afirmar que Zeus está nos diversos lugares, então, Arato inicia seu poema com um louvor não à divindade, mas ao ensino estoico. Zeus está em tudo, preenche todo o cosmos, como uma força divina em tudo, que sugere uma espécie de panteísmo. Contudo, a primeira frase deixa outra leitura disponível àqueles que insistem em compreender Zeus conforme os mitos ou a religiosidade popular. Os homens nunca deixam Zeus sem ser mencionado. Então, tudo está cheio de Zeus porque, por todos os lados, estão falando dele. As ruas e os mercados marcam o cenário urbano repleto de pessoas que ali fazem seus negócios, vendem suas mercadorias e conversam. O mar e os portos também estão povoados por aqueles que formam um dos dois grupos de possíveis interessados nesse poema didático que diz respeito à astronomia e meteorologia. O outro grupo, os agricultores, não deixa de ser também referido nos versos finais que citei. Não me parece impossível que a ambiguidade seja deliberadamente arquitetada pelo poeta, uma vez que ele escreve um poema que exalta as teorias estoicas, mas que também está fortemente baseado na obra de Hesíodo, um poeta tradicional e responsável pela versificação de grande parte do acervo de mitos que suportam a religiosidade tradicional grega (cf. REAL, 2003). É desse poema, que já traz em si uma tensão entre uma doutrina filosófica e uma religiosidade popular, que Paulo extrai meio verso, para utilizá-lo em uma argumentação que 208 se realiza em um contexto no qual a mesma tensão se faz presente. Uma questão a se pensar seria de onde ele conheceria o poema para citá-lo. Poderia conhecê-lo diretamente ou a partir da leitura de outro autor que o citasse. As duas possibilidades me parecem completamente viáveis. Aristóbulo havia citado os primeiros versos do poema anteriormente, inclusive o meio verso utilizado por Paulo em Atenas. E, o que é previsível e importante, o escritor judeu tratou de redefinir a identidade da divindade implicada nos versos com as seguintes palavras: safw½j oiãomai dedeiÍxqai dio/ti dia\ pa/ntwn e)stiìn h( du/namij tou= qeou=. kaqwÜj de\ deiÍ, seshma/gkamen periairou=ntej to\n dia\ tw½n poihma/twn Di¿a kaiì Zh=na: to\ ga\r th=j dianoi¿aj au)tw½n e)piì qeo\n a)nape/mpetai, dio/per ouÀtwj h(miÍn eiãrhtai. ou)k a)peoiko/twj ouÅn toiÍj e)pezhthme/noij proenhne/gmeqa tau=ta. pa=si ga\r toiÍj filoso/foij o(mologeiÍtai dio/ti deiÍ periì qeou= dialh/yeij o(si¿aj eÃxein, oÁ ma/lista parakeleu/etai kalw½j h( kaq' h(ma=j aiàresij. h( de\ tou= no/mou kataskeuh\ pa=sa tou= kaq' h(ma=j periì eu)sebei¿aj te/taktai kaiì dikaiosu/nhj kaiì e)gkratei¿aj kaiì tw½n loipw½n a)gaqw½n tw½n kata\ a)lh/qeian. Eu acho que está claramente demonstrado que em todas as coisas está o poder de Deus. Então, conforme é preciso, o indiquei ao retirar os nomes de Zeus que aparecem ao longo dos poemas; Pois, o que estava na mente deles remete a Deus, de modo que assim nos é dito. Então, não foi de modo inadequado para as questões que nos foram levantadas que introduzimos estas coisas. Pois é consenso entre todos os filósofos que é preciso, a respeito de Deus, ter opiniões piedosas, o que, sobretudo, muito bem prescreve a nossa escola. Pois toda a preparação da Lei pertinente a nós está arranjada em torno da piedade, da justiça, do autocontrole e do restante de coisas boas conforme a verdade. (Praep. Ev. XIII, 12,6-7) Ou seja, o pensador judeu do Egito ptolomaico não extirpa o termo Zeus, inclusive porque ele quer provar que os autores gregos, em seus próprios textos, reproduzem os ensinamentos de Moisés.359 Para que seu argumento seja, pelo menos, tido como respeitável, ele precisa respeitar as palavras dos textos que cita e explicar a compreensão que tem das próprias palavras desses textos, sem excluí-las simplesmente, pois isso seria facilmente percebido como adulteração da evidência apresentada. A compreensão que ele tem do sentido e a mudança da palavra é, então, apresentada de modo claro. E é justamente essa compreensão, que substitui Zeus por Deus, no poema, que se perceberá no discurso de Paulo. Mas, isso é suficiente para afirmar com certeza que o apóstolo leu a obra de Aristóbulo e, por 359 Erich Gruen caracteriza a empreitada de Aristóbulo como ingênua e a define como uma campanha para transformar escritos gregos em notas de rodapé da Torah (GRUEN, 2002, p. 223). Em texto posterior, o mesmo autor enfatiza a criatividade do escritor e destaca o fato de que, quer seja essa empreitada séria ou realizada com vistas ao entretenimento, o autor opera uma reversão da alteridade (GRUEN, 2011, p. 319). 209 isso, se viu possibilitado de aproveitar o verso? Parece-me que não necessariamente. O poema de Arato era amplamente conhecido na Antiguidade. Foi traduzido ao latim mais de uma vez, vários comentários foram escrito a seu respeito por diferentes autores, e chegou a ser traduzido para o árabe. Chega-se a se afirmar que, depois da Ilíada e da Odisseia, foi o poema grego mais comumente lido (cf. TAUB, 2003, p. 47). Isso faz crer que, embora a dependência de Aristóbulo seja plausível, é completamente possível que Paulo tenha acessado o poema diretamente. E, como vimos Fílon fazer de modo semelhante, não seria estranho que também Paulo, por sua própria conta, aplicasse o verso que fala de Zeus, a seu Deus. Não seria preciso depender de Aristóbulo ou outro qualquer para isso. Seja como for, há algo que Paulo faz e que, definitivamente, não provém do texto de Aristóbulo. Ele não argumenta sobre o significado do termo Zeus. Ele o exclui. É o recorte feito pelo apóstolo cristão (que também é um judeu) que livra o trecho citado de seu contexto relacionado à divindade grega (seja ela pessoal e redutível a imagens, seja ela uma força que tudo permeia), como observei Fílon fazer algumas vezes. Talvez, em alguma medida, a fala que antecede a citação, poderia ser entendida como uma referência aos versos iniciais do poema. Paulo fala que Deus não está longe. Diz que nele todos se movem, vivem e existem. Mas, se ele parece adotar uma visão estoica, isso só se faz no discurso. Inclusive, ele pode considerar a presença da divindade a partir do próprio arquivo hebraico (cf., por exemplo, Sl 139).360 Se a dúvida permanece, na frase que segue à citação, Paulo começa a impor o novo contexto e, por conseguinte, a nova divindade à qual o verso passa a se referir, como se introduzisse uma consequência lógica do próprio verso: “Então” (οὖν - oûn), já que somos parentes do Deus (τοῦ θεοῦ - toû theoû), não vamos pensar que esse deus é semelhante às imagens feitas por mãos humanas. Ainda assim, os filósofos poderiam pensar que Paulo estaria relativamente alinhado com a doutrina estoica, e apenas usando, como os poetas, de um imaginário popular a respeito de deus, ou de deuses. E mesmo a ênfase que ele apresenta a respeito da atuação desse deus no mundo, em uma forma de providência, não seria estranha aos estoicos,361 pois 360 361 De modo semelhante, uma alusão a Gn 1:26-27, em que se diz que Deus criou o homem conforme a imagem de Deus (κατ’ εἰκόνα θεοῦ – kat'eikóna theoû), poderia ser entendida como reprodução da ideia do verso quarto do Hino a Zeus de Cleantes, conforme o qual os seres humanos são cópia imitada de deus (θεοῦ μίμημα – theoû mímema). A aparente coincidência entre concepções da Torah e da teologia estoica pode favorecer uma apressada e distorcida apreciação das fontes do discurso. Neste ponto, os epicúreos, descrentes na providência, discordariam. A situação se assemelha, em 210 eles afirmavam algo semelhante e, como vimos, chegavam a utilizar termos que caracterizavam a divindade cósmica como quase pessoal. Mas, no prosseguimento do discurso, Paulo diz que esse deus observou o tempo da ignorância (χρόνους τῆς ἀγνοίας - khrónous tês agnoías), e agora convida todos as pessoas de todos os lugares a se arrependerem (μετανοεῖν - metanoeîn). Revela-se um deus pessoal, que parece ser único, como o dos judeus, chamando todos a uma mudança de mente. E é o Deus dos judeus (afinal, um judeu está falando). E a ignorância não parece ser atribuída somente à massa que idolatra estátuas, mas também aos filósofos, que vinham escutando com atenção o discurso. Inclusive, quando fala a respeito da determinação dos limites de todos os povos, que deveriam procurar a Deus, Paulo pode estar demonstrando certo reconhecimento de que, apesar da especificidade da revelação judaica, que chega agora (νῦν - nỹn) como solução para a ignorância, os outros, no caso, os estoicos, procuravam e se aproximavam da noção de Deus em alguma medida. Mas se faltava algo para que percebessem que o embate os envolvia também, e se agitassem, Paulo acrescenta a expectativa de um dia em que esse Deus julgaria o mundo, e anuncia a ressurreição dos mortos.362 Sem sutileza alguma, o discurso deixou uma postura conciliatória, que chamava a atenção dos ouvintes, e passou a apresentar de modo contundente doutrinas estranhas ao pensamento dos filósofos. Nesse momento, os ouvintes se dão conta de que o meio verso de Arato recebera um sentido completamente novo no discurso do forasteiro. Ele havia escolhido e recortado palavras que falavam de uma força impessoal a partir do vocabulário de uma religiosidade popular. Parecia usar a porção escolhida contra essa religiosidade popular, que entendia a divindade como pessoal, antropomórfica e representável. Mas também não estava a defender uma impessoalidade da divindade. A concepção era basicamente a dos judeus: um Deus pessoal, mas invisível, único e não disponível para representação. O fato de que o livro de Atos narra todo o contexto do discurso, inclusive sua repercussão imediata, favorece essa reflexão a respeito da recepção das palavras do apóstolo. Isso não acontece no caso dos textos de Fílon, nem dos trechos em que cita poemas gregos. É 362 grau reduzido, à de Atos 23, quanto, estando sob julgamento diante de duas seitas judaicas, Paulo se posiciona a favor da doutrina de uma e ganha certa simpatia, provocando discussão entre as duas. O ensino a respeito da ressurreição também pode ser caracterizado como judaico, uma vez que fazia parte das crenças dos fariseus, conforme Josefo (BJ II 162-164) e o próprio livro de Atos (23:6-10). A esse respeito, cf. OPPENHEIMER, 1991 e TORRENTS, 1981, p. 73. E se o testemunho do livro de Atos é confiável, o próprio apóstolo Paulo era fariseu (Atos 23:6). 211 praticamente impossível precisar qual seria a reação de um leitor não-judeu. Mas não seria de todo impraticável imaginar que, em alguma medida, algum eventual leitor grego reagisse como os filósofos que escutavam Paulo no Areópago. Em princípio, recebem as palavras e esperam, já que parecem condizer com alguma ideia que se compartilha. Em algum momento, contudo, se deparam com afirmações próprias da teologia judaica e alheias ao sistema filosófico grego. Repudiam, então, o texto. Contudo, no caso de Atos, alguns teriam aceitado as palavras do apóstolo (Atos 17:34). Semelhantemente, algum leitor não-judeu de Fílon poderia, se não aderir ao judaísmo, ao menos considerar o pensamento como algo razoável e respeitável como alguma outra escola filosófica grega. Não afirmo nem sugiro que Fílon, como Paulo, tenha intento missionário ao lançar mão de versos gregos. Contudo, parece-me que há uma semelhança na negociação estabelecida no discurso de Atos 17 e em alguns passos dos tratados filônicos.363 Ambos procuram construir uma noção de que há algo comum, um compartilhamento de noções e textos, mas não deixam de apresentar também algo que lhes é próprio. Não me parece completamente apropriada a conclusão a que Lake chega para o caso de Paulo: “O que é verdadeiramente significante é que as citações gregas parecem desempenhar aqui o mesmo papel que o Antigo Testamento desempenha nos discursos dirigidos aos judeus ou em uma sinagoga”364 (LAKE, 1933, 251). Parece-me possível dizer que as citações dos poetas gregos, aqui, ocupam o lugar das citações da Bíblia. Mas isso, mais de um ponto de vista estático, como se o discurso fosse observado como um quadro, pois, quando se aproxima do mesmo com vistas à identificação de sua dinâmica, isto é, da maneira como os elementos desempenham certas e variadas funções, as diferenças são marcantes. A Lei e os Profetas são evocados para provar que os eventos históricos que haviam sucedido há pouco cumpriam o que ali já estava escrito. Em outras palavras, a tarefa do citante era fazer perceber que o que parecia estranho era próprio (daquela tradição dentro da qual se discutia). No caso da citação dos poetas gregos, a tarefa é mais fazer perceber que há um plano comum, a partir do qual o que é estranho ao outro e próprio do enunciador pode ser compreendido/acolhido. Tanto no caso de Fílon quanto no de Paulo, quando citam os poetas gregos, há negociação, há recorte, aproveitamento e comunicação. O que diferencia seus discursos não é 363 364 E a consideração dessa semelhança se torna ainda mais significativa por se tratarem de autores quase contemporâneos. Minha tradução de: The really significant thing is that Greek quotations seem here to play the same part as the Old Testament in speeches to Jews or in a synagogue. 212 tanto, a meu ver, o fato de Paulo anunciar a Cristo, dado alheio ao sistema de pensamento do alexandrino, mas a intenção final. Desde o começo, tal qual apresentado, o discurso do apóstolo parece buscar a adesão dos outros a sua crença. A mudança de concepção, o arrependimento, é seu propósito nesse discurso prematuramente interrompido. Já Fílon parece prever, em princípio, uma convivência, possibilitada pelo reconhecimento de que há algo comum além do que é próprio de cada um. E esse comum é usado para fazer o próprio ser tido como aceito, não necessariamente adotado. 213 Capítulo 5 “Situações trágicas requerem palavras trágicas”: Encontro com a tragédia e o trájico em Embaixada a Gaio A tragédia é algo a-judaico.365 L. Wittgenstein A presença da cultura helênica na escrita de Fílon não se revela apenas nas marcas deixadas em seus textos como citações reconhecíveis e alusões encontradas em um trecho ou outro. Uma forma peculiar de relacionamento intertextual que o contexto intercultural da obra de Fílon pode gerar é, segundo procurarei demonstrar, a adoção de características de um gênero literário e produto cultural essencialmente grego, a saber, a tragédia, como estratégia para a composição de um tratado (Legatio ad Gaium) que comunica (isto é, torna comum) uma experiência do ponto de vista próprio do povo judeu. E, uma vez que a experiência é comunicada, com o recurso à tragédia, por um judeu, o trágico se inscreve como trájico. A rasura que faço será explicada adiante e se justificará pela necessidade de considerar a impossibilidade do trágico grego, tal como se manifesta na Atenas do período Clássico, em uma cosmovisão de crença estritamente monoteísta, que tem como certa não só a existência, mas também a Providência de um Deus único interessado no bem do povo. 5.1 A tragédia entre os gregos: Platão, Aristóteles e períodos posteriores O teatro, a edificação, se destaca em importância na paisagem das cidades gregas. De modo proporcional, o teatro, a manifestação cultural, participa da vida dos cidadãos gregos de modo intenso e cotidiano. Não se tratava, como erroneamente poderíamos hoje supor, de uma mera forma de deleite estético ocasional. O teatro e, mais especificamente, a tragédia, que me interessa diretamente neste estudo, se constituía como parte da vida cívica, política e religiosa da população. Assim, não é sem razão que aqueles diálogos de Platão que dizem respeito à organização legislativa de cidades, em especial A República e As Leis, se ocupam de pensar a regulação da relação entre os cidadãos e as obras dramáticas, uma vez que estas contribuíam de modo contundente na formação dos mesmos. 365 Minha tradução de: Die Tragödie ist etwas unjüdisches (WITTGENSTEIN, 1999, p. 43). 214 5.1.1 Platão A República é o diálogo conhecido pela expulsão dos poetas, os trágicos inclusive, da cidade que Sócrates formula pelo diálogo com seus interlocutores. A preocupação exposta é inicialmente a possibilidade de que as más ações atribuídas a deuses e heróis nas tragédias existentes fossem imitadas pelos cidadãos guerreiros da cidade pensada no discurso. A questão dos riscos implicados pela mímesis é tratada longamente, em uma reflexão que se atém à metafísica. A poesia mimética é perversa por estar distante da realidade do mundo inteligível, da qual ela não se ocupa. Mas é possível suspeitar que o que o Sócrates de Platão teme não é tanto a forma, o gênero das composições, mas sim o conteúdo das mesmas e sua possível influência negativa do ponto de vista ético. 366 A imitação é colocada sob suspeita sobretudo pelo risco de que o objeto imitado não seja algo proveitoso, ou de que o imitador não tenha a competência para imitar um objeto válido. Afinal, Platão escreve diálogos, que não muito diferem do que fazem os tragediógrafos em suas peças, cedendo a palavra diretamente aos personagens, com pouco ou nenhum enquadramento narrativo. Ao apresentar trecho de certo diálogo, o professor José Américo Pessanha chega a exclamar: “isso e uma cena de teatro, de puro teatro!” (PESSANHA, 1997, p. 12). E atentando para essa característica dos diálogos platônicos, além de observar que Platão “não está recusando o teatro enquanto teatro, mas está simplesmente recusando o teatro das paixões, que é também um teatro ilusionista” (PESSANHA, 1997, p. 19), ele assinala que a “visão teatral dramática é inerente à filosofia de Platão, não estando simplesmente acoplada a ela como se fosse uma vestimenta” (PESSANHA, 1997, p. 33). Por isso, não é de causar espanto nos depararmos com as afirmações do ateniense anônimo, de conversa muito semelhante à de Sócrates, em As Leis VII 817. De início, diz que se deveria impedir a livre entrada dos tragediógrafos na cidade, para a qual ele e seus interlocutores pensam uma constituição enquanto caminham. Os magistrados deveriam previamente verificar a concordância das obras dos tragediógrafos com o que eles mesmos faziam. Se essa concordância não existisse, a entrada seria proibida. Afinal, os legisladores deveriam responder, segundo o ateniense, que eles mesmos também são poetas trágicos, os 366 Observo, concordando com André L. Susín (SUSIN, 2010, p. 13), que a relação específica entre o argumento metafísico (relativo ao distanciamento da Ideia) e o risco ético não é claramente desenvolvida no diálogo de Platão. Será preciso um exercício de reflexão para observar que o poeta apreende e imita somente uma aparência da virtude, nas ações concretas de certos heróis, não estudando o que é a virtude em si; o espectador por sua vez se ilude pensando que o que se apresenta é verdadeira virtude e se influencia de modo equivocado (SUSIN, 2010, p. 40-41). 215 responsáveis pela mais verdadeira tragédia, sendo a república que eles regem mímesis da mais bela e melhor vida.367 Parece, então, que o teatro não é extirpado por Platão especificamente por suas características estéticas e estruturais. Ao contrário, ele, como tudo, deve, isso sim, estar submetido à racionalidade filosófica, que seria o padrão de verificação para definir o que é proveitoso para levar as pessoas à virtude. Em O Banquete, encontramos um possível exemplo de como tragédia e comédia podem não ser consideradas de todo impróprias para o alcance da sabedoria. Tragediógrafo e comediógrafo expõem suas definições de Desejo (ἔρως - Éros), e são seguidos pelo filósofo, Sócrates. Este último consegue fazer a exposição mais completa, que dialoga com a de ambos os antecessores. O tragediógrafo, Agaton, no contexto do diálogo platônico, havia acabado de receber o primeiro prêmio em uma disputa no teatro. Agora, o filósofo o sobrepuja nesta disputa, e é, por isso, louvado. São dois concursos de virtuosidade no uso das palavras. Mas o critério deste concurso que o filósofo vence é a qualidade filosófica do discurso.368 O dado que me interessa é a afirmação, por parte do próprio Sócrates, de que se alguém fosse capaz de, ao mesmo tempo, compor tragédia e comédia, produziria algo útil à formação dos cidadãos. Neste caso, o problema apontado na arte dramática não é sua forma, pois nisso tragédia e comédia se assemelham e a união de ambas não resultaria em algo muito diferente em termos de apresentação. O problema é, antes, a incompletude inevitável no que elas transmitem, devido à falta de reflexão filosófica a embasá-las. A forma como se transmite, contudo, não é acusada de inadequação. De modo concorde com isso, Stephen Halliwell sugere que a oposição de Platão à tragédia se relaciona com a percepção do trágico como “uma filosofia em fase embrionária” (HALLIWELL, 1998, p. 347), cujo pensamento se opunha ao da filosofia que ele ensinava.369 367 368 369 Cf. o estudo de Susan Meyer a respeito desse passo. Cito a conclusão da autora por julgar que antecipa e corrobora o que se segue no texto: “Se a tragédia é o gênero que fala a respeito de assuntos sérios, então a mais verdadeira tragédia é a composição cuja fala a respeito de tais assuntos é mais correta. Na visão de Platão, o verdadeiro tragediógrafo não é o poeta que encoraja a propensão humana a lamentar nossa desgraça, mas o legislador que nos ensina que a única desgraça que pode abater-se sobre uma pessoa é falhar em alcançar a virtude” [If tragedy is the genre that pronounces on serious subjects, then the truest tragedy is the composition whose pronouncements on these subjects are most correct. In Plato's view, the true tragedian is not the poet who encourages the human propensity to lament our misfortunes, but the legislator who teaches us that the only misfortune that can befall a person is to fail to achieve virtue] (MEYER, 2011, p. 402). Nessa breve leitura de O Banquete, considero os apontamentos de EPSTEIN, 1999, p. 44-57. O trágico estaria baseado em uma visão de mundo segundo a qual o indivíduo estaria sujeito a um 216 É importante assinalar essa nuance da “expulsão dos poetas” por Sócrates 370, pois os textos de Platão serão de extrema importância para a tradição posterior, chegando inclusive, como é sabido, a influenciar consideravelmente o pensamento de Fílon de Alexandria. Este, inclusive, tem certamente a expulsão dos poetas como algo marcante e conhecido vindo de Platão371, mas não terá deixado de perceber que o teatro não tem sua validade negada de forma completa e definitiva. Decerto, também a leitura diferente oferecida por Aristóteles contribuiria para a não desvalorização do teatro. 5.1.2 Aristóteles Como se sabe, Aristóteles desenvolve na Poética uma abordagem consideravelmente diferente da que se observa em Platão.372 Em sua leitura, a tragédia não é avaliada em comparação com a filosofia em sua capacidade de conduzir à verdade ou à virtude, mas como uma arte poética independente, dotada de uma estrutura e dinâmica próprias. A mímesis não representa, por sua vez, um afastamento do objeto real ou da verdade. E o que se produz pela mímesis não tem seu valor estimado como menor pela diferença com respeito ao objeto mimetizado, uma vez que a representação não visa o engano, pois o representante não visa passar-se pelo representado. A tragédia não é vista como eticamente danosa ou corruptora, mas como uma espécie da arte poética, que deve ter suas próprias características e seus próprios recursos estudados. E se bem estudada ela se revelará inclusive proveitosa do ponto de vista didático. A tragédia pode, pois, ser definida de modo descritivo, e não expulsa de modo judicativo. ἔστιν οὖν τραγῳδία μίμησις πράξεως σπουδαίας καὶ τελείας μέγεθος ἐχούσης, ἡδυσμένῳ λόγῳ χωρὶς ἑκάστῳ τῶν εἰδῶν ἐν τοῖς μορίοις, δρώντων καὶ οὐ δι᾽ ἀπαγγελίας, δι᾽ ἐλέου καὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων παθημάτων κάθαρσιν. É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e 370 371 372 destino definido por forças exteriores. Adotar essa visão significaria fazer do mundo um palco trágico. Por outro lado, entender que o próprio indivíduo pode chegar a ter uma vida feliz pela escolha correta entre o bom e o ruim é mais adequado às aspirações refletidas nos diálogos de Platão. (HALLIWELL, 1998) A esse respeito, convém ler também ROIG, 2012, p. 143-156. Uma referência em Gig. 58-59, por exemplo, me permite afirmar isso. Fernando Santoro oferece uma interessante leitura que apresenta a especulação de Aristóteles na Poética como resposta a uma afirmação de Sócrates em Rep. 607c-d, lida como desafio (SANTORO, 2008). 217 a piedade, tem por efeito a purificação das emoções”. Poética 1449b373 O efeito da tragédia, que tem gerado intermináveis discussões ao longo de várias décadas, não é imediatamente importante para minha atual reflexão. Mesmo sem investigar sua natureza e suas repercussões, basta-me observar que se trata de algo proveitoso, ou, no mínimo, de algo não indesejado. Agora, ainda partindo da definição citada, preciso focar a reflexão em um ponto específico que me será importante posteriormente e que ainda se relaciona com a mudança de abordagem de Platão a Aristóteles: a atuação, o espetáculo. O que foi traduzido por “[imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores” é um bom ponto de partida, mesmo se traduzido de forma mais próxima do original, “por agentes, e não por um relato” (δρώντων καὶ οὐ δι᾽ ἀπαγγελίας), considerando que o termo específico para “atores de teatro” não aparece no texto. O fato que quero marcar é a consideração dos agentes, os que executam as ações, como meio de realização da tragédia. A tragédia é realizada à vista dos espectadores, e não relatada. Por isso, o espetáculo (ὄψις - ópsis) é uma das seis partes constitutivas dessa espécie de arte, juntamente com mito, caráter, elocução, pensamento e melopeia. Não obstante, como o termo usado para designar os “agentes” não é exclusivamente usado para “atores”, poderíamos pensar que Aristóteles estivesse pensando nos personagens como “agentes” e não necessariamente nos atores que os representariam. Mas outro trecho pode esclarecer a questão e ainda lançar alguma luz sobre a importância do espetáculo como constitutivo da tragédia segundo a concepção aristotélica: ἐπεὶ δὲ πράττοντες ποιοῦνται τὴν μίμησιν, πρῶτον μὲν ἐξ ἀνάγκης ἂν εἴη τι μόριον τραγῳδίας ὁ τῆς ὄψεως κόσμος: Como esta imitação é executada por atores (práttontes), em primeiro lugar o espetáculo cênico (ho tês ópseos kósmos) há de ser necessariamente uma das partes da tragédia. Poética 1449b Se o espetáculo cênico é necessariamente parte da tragédia por causa daqueles que realizam as ações, é certo que esses que realizam as ações, os agentes, não são simplesmente os personagens, pois a esses bastariam as indicações do texto. Isso é importante para que se leia o próximo trecho que cito com o devido cuidado: ἡ δὲ ὄψις ψυχαγωγικὸν μέν, ἀτεχνότατον δὲ καὶ ἥκιστα οἰκεῖον τῆς ποιητικῆς: ἡ γὰρ τῆς τραγῳδίας δύναμις καὶ ἄνευ ἀγῶνος καὶ ὑποκριτῶν ἔστιν, ἔτι δὲ κυριωτέρα περὶ τὴν ἀπεργασίαν τῶν ὄψεων ἡ τοῦ σκευοποιοῦ τέχνη τῆς τῶν ποιητῶν ἐστιν. 373 Tradução de Eudoro de Souza, como nas outras citações da Poética. 218 Quanto ao espetáculo cênico, decerto que é o mais emocionante (ψυχαγωγικὸν - psykhagogikòn), mas também o menos artístico e menos próprio da poesia. Na verdade, mesmo sem representação e sem atores, pode a tragédia manifestar seus efeitos; além disso, a realização de um bom espetáculo mais depende do cenógrafo que do poeta. Poética 1450b A primeira frase não deve ser tomada de modo equivocado. Aristóteles não diz que o espetáculo seja algo sem valor, mas que é menos relacionado à arte que ele está a estudar. Isso é bastante compreensível, uma vez que o assunto que ele estuda é especificamente a poesia, por meio do produto que se tem dela, o texto poético. Assim, ele pode reconhecer que há outra arte (τέχνη - tékhne) mais propriamente relacionada com a realização do espetáculo: a arte do cenógrafo, do fazedor de cenas. O que há de novidade nas palavras de Aristóteles é o estabelecimento dessa divisão, da possibilidade de se pensar a tragédia como texto, desconectada de sua realização no teatro, pelo fato de que “a potência da tragédia existe sem o concurso e sem os atores” (ἡ γὰρ τῆς τραγῳδίας δύναμις καὶ ἄνευ ἀγῶνος καὶ ὑποκριτῶν ἔστιν). Mas, sendo a tragédia um gênero que surgiu e se desenvolveu em meio aos concursos que definiam vencedores e perdedores diante de um público, que não lia as peças, mas via as encenações, qualquer leitor pode suspeitar que os poetas trágicos pensavam suas composições tendo em mente o que aconteceria no teatro. O “espetáculo”, como meta, certamente estaria presente no momento de criação do mito, isto é, da trama, que é, segundo Aristóteles, o mais importante elemento da tragédia. E isso se verifica em um caso contado em outro trecho da Poética: δεῖ δὲ τοὺς μύθους συνιστάναι καὶ τῇ λέξει συναπεργάζεσθαι ὅτι μάλιστα πρὸ ὀμμάτων τιθέμενον: οὕτω γὰρ ἂν ἐναργέστατα [ὁ] ὁρῶν ὥσπερ παρ᾽ αὐτοῖς γιγνόμενος τοῖς πραττομένοις εὑρίσκοι τὸ πρέπον καὶ ἥκιστα ἂν λανθάνοι [τὸ] τὰ ὑπεναντία. σημεῖον δὲ τούτου ὃ ἐπετιμᾶτο Καρκίνῳ. ὁ γὰρ Ἀμφιάραος ἐξ ἱεροῦ ἀνῄει, ὃ μὴ ὁρῶντα [τὸν θεατὴν] ἐλάνθανεν, ἐπὶ δὲ τῆς σκηνῆς ἐξέπεσεν δυσχερανάντων τοῦτο τῶν θεατῶν. Deve pois o poeta ordenar as fábulas e compor as elocuções das personagens, tendo-as à vista o mais que for possível, porque desta sorte, vendo as coisas claramente, como se estivesse presente aos mesmos sucessos, descobrirá o que convém e não lhe escapará qualquer eventual contradição. Que assim deve ser, assinala-o a censura em que incorre Cárcino: Anfiarau saía do templo, mas de tal não se apercebeu o poeta, porque não olhava a cena como espectador, e o público protestou porque o ofendia a contradição. Poética 1455a O poeta deve colocar o acontecimento que ele compõe ante seus olhos (πρὸ 219 ὀμμάτων – prò ommáton). Visualizar a cena no momento da escrita é preciso porque o texto deve funcionar bem quando for levado ao palco, transformado em espetáculo. 374 Ainda que Aristóteles proponha a possibilidade de se perceber a arte poética da tragédia como suficiente para produzir seu efeito, ele não despreza, ao menos nesse trecho citado, a implicação que o espetáculo tem para a tragédia desde sua composição escrita. Greice Ferreira Drumond Kibuuka se dedicou especificamente a esse tema e ao problema da aparente contradição entre diversos trechos da Poética, nos quais Aristóteles propõe a separação do “espetáculo”, para depois considerá-lo importante inclusive na composição das obras. Sua conclusão pode ajudar a seguir na reflexão: Na análise apresentada na Poética, é levado em conta um elemento que, mesmo sem ser elencado nos itens que caracterizam a tragédia, está presente na encenação das peças de teatro: o público. A sua preocupação ao separar a ópsis da arte do poeta, para depois, em certo aspecto, integrá-la à composição dos enredos, objetiva promulgar uma excelência poética e também qualificar o público para que ele verifique a produção dramática sob o aspecto propriamente poético. Assim, podemos observar como são concatenados os elementos que contribuem de forma positiva para o espetáculo, não considerando somente o trabalho do cenógrafo e do ator, mas, valorizando, conjuntamente, o criador de enredos, o poeta, e seu público. (KIBUUKA, 2008, p. 72) O público, como observa a autora, aparece discretamente na análise de Aristóteles, mas tem seu papel bem claro, assim como tinha nas considerações de Sócrates, uma vez que sua preocupação era o resultado da tragédia produzido nos espectadores. Mas, se Kibbuka está certa, Aristóteles dá um passo adiante e procura conduzir o espectador a uma condição diferente, de avaliador da composição poética e não de alguém passivamente conduzido375 pelo espetáculo que lhe é apresentado ante os olhos somente. Essa conclusão é importante para a reflexão que proponho, pois pretendo considerar o teatro em sua dimensão espetacular como algo presente na cultura grega após Aristóteles. E mais: preciso pensar que essa dimensão espetacular é tão importante que pode ser transportada (com todas as repercussões inevitáveis) ao interior dos textos, como estratégia de composição de um escritor que sempre tem a cena diante dos olhos quando 374 375 A partir de um estudo das próprias obras trágicas, Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa observa: “o texto de Ésquilo se propõe a ser visto e ouvido e garante, em si, todas as marcações de um bom espetáculo. Portanto, duvidamos que os poetas trágicos tenham escrito suas tragédias prevendo nelas a exclusão do espetáculo” (BARBOSA, 2003, p. 169). Lembrar que em Poet. 1450b, trecho há pouco citado, Aristóteles apresenta o espetáculo justamente como ψυχαγωγικὸν – psykhagogikòn, isto é, algo atraente, persuasivo, ou seja, aproveitando o termo em si, algo que conduz a alma do espectador. 220 escreve. Antes de dar um passo além e seguir adiante no tempo, devo mencionar um estudo de Edith Hall, no qual a pesquisadora analisa a curiosa ausência do contexto cívico no estudo de Aristóteles sobre a tragédia na Poética. Tal ausência é realmente instigante pelo fato de que o teatro esteve desde seu nascimento intimamente relacionado com a pólis ateniense. A consideração de Hall pode ser proveitosa neste momento em que pretendo observar o período que sucede a obra do filósofo: O quase total deslocamento da pólis da tragédia me parece ser uma inovação original impressionante, que antecipa o incipiente e futuro status da tragédia como uma forma de arte internacional. A tragédia estava por ser em breve consumida e apreciada por uma grande variedade de indivíduos, em situações politicas amplamente distintas, muito diferentes do ponto de vista físico, e em localidades geograficamente a grande distância do teatro ateniense de Dioniso.376 (HALL, 1998, p. 304-305) Essa ampliação do âmbito da poesia trágica é importante para o prosseguimento de meu texto, uma vez que me levará a pensar, ainda que resumidamente, em uma multiplicidade de contextos agrupados em um quadro amplo, o do período helenístico, antes de novamente focar um contexto um pouco mais específico, o judaico helenístico. 5.1.3 Além de Platão e Aristóteles Para começar a expansão do contexto, é pertinente que me refira àquele que concretamente expandiu as fronteiras de sua Macedônia e a transformou em um vasto império à disposição da difusão da cultura grega. Alexandre o Grande teve o afamado autor da Poética como seu principal professor377. E, curiosamente, Plutarco registra um episódio de sua vida que, inventado ou não, servirá de ensejo para o que segue adiante neste texto. Alexandre estava na Ásia desprovido de outros livros além da Ilíada, que sempre estava sob seu travesseiro. Pede, então, a Harpalo que lhe traga alguns. κἀκεῖνος ἔπεμψεν αὐτῷ τάς τε Φιλίστου βίβλους καὶ τῶν Εὐριπίδου καὶ Σοφοκλέους καὶ Αἰσχύλου τραγῳδιῶν συχνάς, καὶ Τελέστου καὶ Φιλοξένου διθυράμβους. 376 377 Minha tradução de: The Poetic's near-total displacement of the Polis from tragedy seems to me to be an astonishingly original innovation, which adumbrates the incipient and future status of tragedy as an international art-form. Tragedy was soon to be consumed and appreciated by multifarious individuals, in widely disparate political situations, in physical quite unlike, and in geographical locations at great distances from the Athenian theatre of Dionysus. Cf. Plut. Alex. VII. Aqui, e em minha apreciação da vida de Alexandre de modo amplo, não sigo somente o que foi registrado por Plutarco, considero também FOX, 2010. 221 E ele lhe enviou os livros de Filisto, além de várias das tragédias de Eurípides, Sófocles e Ésquilo, e ditirambos de Télesto e Filóxeno. (Alex. VIII 3) O trecho é emblemático, pois possibilita visualizar o fato de que a tragédia grega de Atenas, representada por uma coleção de textos dos três grandes trágicos, segue, enquanto objeto físico, o caminho de Alexandre. Esse movimento da tragédia em sua materialidade serve para observar que sua difusão na cultura das cidades helenizadas (ou assim criadas) pela ação do conquistador também se daria de modo rápido. Não afirmo, com isso, que a tragédia tenha estado até a formação do império de Alexandre reclusa em Atenas. Agora, contudo, a expansão tem proporções maiores e a tragédia passa a ser compartilhada como patrimônio cultural e literário de diversas localidades, como se percebe pela leitura das Vidas dos poetas trágicos, textos biográficos que teriam surgido justamente no período helenístico, e que revelam uma apresentação da sua atividade, especialmente Ésquilo e Eurípides, como menos focada em Atenas, mas mais internacionalizada, e até disputada por diferentes comunidades (cf. HANINK, 2010, p. 39-67). Certamente, a ampliação do âmbito de influência da tragédia não é proporcionado somente pelas armas de Alexandre, mas também pela língua que ele leva consigo.378 Observar que Alexandre recebe as tragédias dos clássicos atenienses serve para lembrar que não nos chegaram textos trágicos do período posterior ao dos grandes tragediógrafos do quinto século suficientemente preservados e em quantidade satisfatória para que seja possível avaliar com clareza suas características literárias. A iniciativa ordenada por Licurgo no século IV a.C. de registrar em cópias oficiais e arquivar as tragédias do século quinto, canonizando-as, tanto é indício de uma especial valorização da produção do século anterior, quanto favoreceu sua preservação mais completa em comparação com o que sucedeu à posterior. Contudo, embora também os textos de retórica do século IV a.C. acusem um apreço especial pelos tragediógrafos clássicos, a produção de tragédias não deixava de ser intensa, ainda que sob a incômoda sombra dos três mais louvados, citados e aludidos poetas trágicos (cf. WILSON, 1998). É comum que se atribua a essas obras posteriores um menor valor, como sendo reproduções pouco inovadoras do que já havia sido produzido no esplendor da tragédia ateniense do período clássico. Contudo, não é tanto a qualidade literária que importa neste ponto de minha exposição, mas sim a amplitude desse gênero artístico, que já havia 378 Cf., por exemplo, de Plutarco, Alex. XLVII 3. 222 extrapolado os limites de Atenas e deixado de estar restrito aos festivais de Dioniso. Por um lado, a tragédia parece perder sua centralidade na vida da cidade ao longo do período helenístico. Por um ou outro motivo, o concurso trágico deixa, por exemplo, de ser o espaço privilegiado para a atribuição de honras cívicas, passando a dividir esse privilégio com outras disputas de performances artísticas ou mesmo atléticas (CECCARELLI, 2010). Por outro lado, contudo, a performance trágica pode exercer uma influência mais dispersa e ampla na vida cívica, não se restringindo ao espaço ou momento das encenações. Angelos Chaniotis observa que a apresentação da vida dos homens públicos nos textos helenísticos se faz como se esses homens executassem papéis em um palco. Ele afirma: ...a teatralidade helenística não é uma invenção de seus autores contemporâneos, mas uma característica distintiva da vida nos centros urbanos helenísticos, intimamente ligada com a popularidade das performances teatrais no mundo helenístico; […] que a teatralidade na vida pública é parte da transformação da cidade helenística em uma sociedade de 'espectadores'. (CHANIOTIS, 1997, p. 224)379 Dois são os pontos importantes discutidos por Chaniotis nesse artigo e explicitados nessa citação: no período helenístico, a tragédia, indiferente de sua qualidade literária, é manifestação cultural amplamente divulgada e consumida; além disso, ela chega a tal importância na formação da cultura que não se restringe a um espaço específico, mas tem participação na maneira como as pessoas se inserem (e percebem a vida) no contexto público das cidades. Chaniotis chega a tal constatação pela observação de diferentes características da relação entre o teatro e a teatralidade, no período helenístico, para com outras instâncias públicas da vida cívica. Entre outras coisas, o autor assinala que: o teatro (a edificação) aparece como lugar de reuniões cívicas; a atuação (ὑπόκρισις - hypókrisis) se desenvolve como importante elemento das apresentações dos oradores; os políticos são descritos como se executassem performances, para as quais utilizavam diferentes vestimentas; as aparições dos reis são também verdadeiras encenações; o papel desempenhado pelo rei é associado ao de um ator; os festivais passam a ser ensaiados e assistidos como espetáculos (CHANIOTIS, 1997, p. 219-259). Praticamente todos esses dados serão verificados em uma leitura do tratado Embaixada a Gaio, que me ocupará adiante. Por ora, basta-me mencioná-los de modo a fazer perceber a presença do teatro e de sua influência nas cidades helenísticas. E mais: importa que 379 Minha tradução de: ...that Hellenistic theatricality is not a literary invention of contemporary authors, but a distinctive feature of life in the Hellenistic urban centers, closely connected with the popularity of theatrical performances in the Hellenistica world; […] that theatricality in public life is part of the transformation of the Hellenistic city into a society of 'onlookers'. 223 se perceba que tal presença não se restringe ao elemento meramente literário, mas que, pelo contrário, é marcadamente ligada ao teatro como espetáculo. Ou seja, no cotidiano prático das cidades helenísticas, a separação teórica que Aristóteles faz em sua Poética entre a poética da tragédia e a encenação da tragédia não fez com que o espetáculo recebesse menos atenção.380 Parece, isso sim, que, a partir de sua execução no âmbito do teatro, a tragédia influenciou outras “performances” da vida cívica, tornando esta, em alguma medida, teatral. De alguma maneira, ao menos parte desse quadro que Chaniotis percebe no período helenístico já se mostra em desenvolvimento nos discursos retóricos do século IV a.C.. Observando um destes, o conhecido Contra Alcebíades, P. J. Wilson constata: […] isso é uma sutil manipulação do trágico e daquilo que alguém pode chamar de tragédico (aquilo que se relaciona com a tragédia como uma instituição teatral) para representar Alcebíades como o Outro trágico dentro da cena cívica e lançar mão dos poderosos efeitos emocionais da tragédia para impulsionar sua audiência para uma ação contra a tragédia “real” que tinha lugar na polis.381 (WILSON, 1998, p. 320) Considerando que a Alexandria de Fílon já é uma cidade dominada pelo Império Romano, é pertinente observar, ainda, que a tragédia grega exerceu considerável influência também em Roma, desde o período republicano. A tragédia esteve presente não somente nos primórdios da história da literatura romana382, mas também em contextos além do literário em períodos posteriores. A presença do gênero no ensino de língua e retórica na formação da aristocracia romana possibilitou sua ampla divulgação durante longos anos (cf. GILDENHARD, 2010). Tanto é assim que é possível dizer que: “Para Cícero […] a tragédia grega tinha deixado o palco e se tornado uma presença real na sociedade romana” 383 380 381 382 383 Um curioso indício dessa percepção da tragédia como estando estritamente relacionada com o componente visual, o espetáculo, se afigura em um trecho ao final da Carta de Aristeias (312ss), texto do período helenístico. No passo, conta-se o caso de dois escritores, um historiador e um tragediógrafo, que sofreram males por quererem utilizar-se da narrativa da Bíblia em seus trabalhos. O historiador sofre uma confusão mental (ταραχὴν τῆς διανοίας – tarakhèn tês dianoías), enquanto o tragediógrafo foi acometido de catarata nas vistas (τὰς ὄψεις ἀπεγλαυκώθη – tàs ópseis apeglaukóthe). Parece que, na concepção desse escritor judeu do período helenístico, a visão está para o que escreve peças teatrais, assim como a boa faculdade mental está para aquele que faz inquirições, investigações a respeito dos acontecimentos passados, observando origens e causas. (Esse trecho da Carta de Aristeias será mencionado em outra discussão adiante.) Minha tradução de: […] this is a subtle manipulation of the tragic and of what one might term the tragedic (that which relates to tragedy as a theatrical institution) to represent Alkibiades as the tragic Other within the civic scene and to harness the powerful emotional effects of tragedy to galvanize his audience into action against the 'real' tragedy taking place in the polis. A começar pelas traduções e criações de Lívio Andrônico. Minha tradução de: For Cicero […] Greek tragedy had left the stage and become a real presence in Roman society. 224 (GILDENHARD, 2010, p. 181). Essa ampliação do âmbito da tragédia para além dos palcos, que se exemplifica tanto por sua presença na vida cívica das cidades helenísticas, quanto no pensamento do orador romano, é justamente o que torna imprescindível, neste ponto da reflexão, ainda antes de dirigir a atenção para o contexto judaico, observar a metáfora do theatrum mundi, ainda que de modo breve. 5.1.4 A metáfora do theatrum mundi Enquanto escrevo este capítulo, uma pessoa relativamente próxima faleceu. Os procedimentos fúnebres foram tradicionais, como imagino que são costumeiramente os que ocorrem em famílias católicas do interior. Um momento específico me chamou a atenção. Quando o caixão é baixado terra adentro, os presentes aplaudem. Aplaudem como se aplaude um ator que conclui sua apresentação. Os enlutados parecem se colocar como espectadores da vida do falecido, pois aplaudem não a cena que presenciam, mas a obra desempenhada ao longo de oitenta e quatro anos até o inexorável desfecho, quando se fecham as cortinas. Ora, o parágrafo acima pode parecer estranho. Mas o estranhamento se dá mais pela referência a um acontecimento real e pessoal em um escrito como este, e menos pela comparação estabelecida entre o teatro e nosso mundo, a atuação dos atores e a vida de um indivíduo, pois esse procedimento já está estabelecido como cliché há séculos. E o que me leva a abordar o tema é justamente o fato de que essa comparação, que chega a fazer-se metáfora por vezes, já era bem reconhecida nos tempos de Fílon, entre gregos e também romanos. A mais antiga comparação entre o mundo e um lugar de espetáculo se encontra na tradição pitagórica, conforme observa Jean-François Balaudé, que cita um trecho das Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres (VIII 8), no qual se atribui ao próprio Pitágoras uma analogia entre diferentes tipos de seres humanos e os diferentes tipos que se faziam presentes nas panegírias. Os filósofos são assemelhados aos espectadores, por superarem a agitação, não se prendendo às glórias, e estarem em posição privilegiada para observar (BALAUDÉ, 2009, p. 6). Jean-François encontra também em Platão duas comparações que, igualmente, antecedem de alguma maneira o desenvolvimento da metáfora do theatrum mundi entre os estoicos: o mito da caverna (República 514a – 517d), no qual a comparação se constrói por 225 meio de uma espécie de teatro de sombras; e a comparação dos seres humanos como marionetes criadas pelos deuses (Leis I 644d-645c; VII 803c-804b) (BALAUDÉ, 2009, p. 78). Apesar de ter vivido parte do quinto século, período de efervescência do teatro em Atenas, Platão não chega a desenvolver uma comparação específica entre a vida e as peças que se assistiam no teatro.384 É entre os filósofos do Pórtico, contudo, que se encontrarão as mais claras e abundantes comparações e metáforas que relacionam o mundo especificamente com o teatro. Mas ainda antes, Bion de Borístenes, um cínico que viveu entre o fim do século quarto e a primeira metade do século terceiro a.C., conforme citação presente em escrito de Teles de Megara, teria formulado a comparação de um modo claro: DeiÍ wÐsper to\n a)gaqo\n u(pokrith\n oÀ ti aÄn o( poihth\j periqv= pro/swpon tou=to a)gwni¿zesqai kalw½j, ouÀtw kaiì to\n a)gaqo\n aÃndra oÀ ti aÄn periqv= h( tu/xh. kaiì ga\r auÀth, fhsiìn o( Bi¿wn, wÐsper poih/tria, o(te\ me\n prwtolo/gou, o(te\ de\ deuterolo/gou periti¿qhsi pro/swpon, kaiì o(te\ me\n basile/wj, o(te\ de\ a)lh/tou. mh\ ouÅn bou/lou deuterolo/goj wÔn to\ prwtolo/gou pro/swpon: ei¹ de\ mh/, a)na/rmosto/n ti poih/seij. Assim como é preciso que o bom ator interprete bem o papel que o poeta lhe atribua, assim também o bom homem, o que a Týkhe lhe atribua. Pois também esta, diz Bíon, como uma poetisa, ora atribui o papel de protagonista, ora de coadjuvante, e ora de rei, ora de vagabundo. Então, sendo coadjuvante, não queira o papel de protagonista. Caso contrário, farás algo inadequado. (Perì autarkeías – Sobre a autossuficiência 1) Bíon, com essa comparação, estabelece a aproximação entre o mundo e o palco teatral não somente pela relação analógica entre os homens e os atores, mas também pela relação entre o poeta, que compunha as peças teatrais, e a Týkhe, o Acaso.385 O trecho apresenta também uma instrução que se apoia na comparação. Cada pessoa deve agir conforme o papel que lhe foi atribuído pelo Acaso, assim como, no teatro, cada ator interpreta especificamente o papel que o poeta lhe atribuiu. É razoável perceber, então, que a comparação é usada para ilustrar um ensino, facilitando sua comunicação. O mesmo acontece em outro trecho em que Teles de Megara se aproveita da 384 385 O passo em que mais se aproxima de estabelecer uma aproximação desse tipo talvez seja Filebo 50b, em que afirma que as dores vêm misturadas aos prazeres nas tragédias e comédias, tanto nas das peças teatrais, quanto nas da vida (μὴ τοῖς δράμασι μόνον ἀλλὰ καὶ τῇ τοῦ βίου συμπάσῃ τραγῳδίᾳ καὶ κωμῳδίᾳ), além de outra breve referência em Apologia de Sócrates 35b. Não traduzi o termo no texto por dois motivos: ressaltar a possível personificação e possibilitar a percepção de que o escritor não hesita em adotar a Týkhe como ponto de comparação, ainda que isso faça com que tenha que usar o feminino ποιήτρια - poiétria, “poetisa”, mesmo tendo se referido ao poeta, no masculino, na oração anterior, por ser o habitual em seu contexto cultural. 226 mesma analogia para transmitir o mesmo ensino, mas sem referir-se a Bíon como responsável pela construção. Cito-o: ¸H tu/xh wÐsper poih/tria/ tij ouÅsa pantodapa\ poieiÍ pro/swpa, nauagou=, ptwxou=, fuga/doj, e)ndo/cou, a)do/cou. deiÍ ouÅn to\n a)gaqo\n aÃndra pa=n oÀ ti aÄn auÀth periqv= kalw½j a)gwni¿zesqai. nauago\j ge/gonaj, euÅ to\n nauago/n: pe/nhj e)c eu)po/rou, euÅ to\n pe/nhta: aÃrmenoj e)n mikroiÍsi kaiì aÃrmenoj e)n mega/loisin: A Týkhe, que é como uma poetisa, cria papéis de todos os tipos, de náufrago, de mendigo, de exilado, de glorioso e de sem glória. Então, é preciso que o bom homem interprete bem o que quer que ela lhe atribua. Vindo a ser náufrago, interprete bem o náufrago. De rico vindo a ser pobre, interprete bem o pobre. Adequado nas coisas pequenas e adequado nas grandes. (Perì peristáseon – Sobre as circunstâncias 1) Embora apareçam alguns novos elementos nos vários fragmentos preservados de textos de filósofos estoicos que fazem uso de semelhante aproximação entre teatro e mundo, esses trechos de Bíon e Teles condensam ou ao menos sugerem considerável parte das possibilidades exploradas posteriormente. Entre os estoicos mais antigos, Zenão e Crisipo, por exemplo, metáforas que se utilizam do teatro são discretas, mas, em geral, já se fazem no sentido de apontar para a necessidade de harmonia corporal e psíquica do indivíduo (VEILLARD, [s.d.], p. 4). Já um discípulo de Zenão, Aríston de Quios, será mais claro ao dizer que “o sábio é semelhante ao bom ator, o qual, podendo receber o papel de Tersites ou de Agamêmnon, interpreta cada um de modo adequado”386. Aríston se aproxima do que havia dito Bíon de Borístenes. E se sua fala é lida em harmonia com uma compreensão mais ampla da cosmologia estoica, será possível considerar, com Christelle Veillard que: Se o indivíduo estoico é comparável com um personagem de teatro, é porque, em primeiro lugar, ele se encontra preso em uma cadeia de causas que Zeus teceu, ou melhor, o pneuma divino ordenador do conjunto. O deus é um sopro cálido que colocou em ordem uma série implacável de eventos que se chama Destino. Vê-se, desde já, a correspondência ideal entre a cosmologia estoica e a tragédia antiga. O mundo estoico é determinista, teleológico, providencial.387 (VEILLARD, [s.d.], p. 6) 386 387 εἶναι γὰρ ὅμοιον τὸν σοφὸν τῷ ἀγαθῷ ὑποκριτῇ, ὃς ἄν τε Θερσίτου ἄν τε Ἀγαμέμνονος πρόσωπον ἀναλάβῃ, ἑκάτερον ὑποκρινεῖται προσηκόντως. Vida dos Filósofos Ilustres VII 160 Minha tradução de: Si l'individu stoïcien est comparable à un personnage de théâtre, c'est em premier lieu parce qu'il se trouve enferré dans la chaîne des causes qu'a tressée Zeus, c'est-à-dire le pneuma divin ordonnateur de l'ensemble. Le dieu est un souffle chaud qui a mis em ordre une série implacable d'événements que l'on appelle Destin. On voit dès cet instant la correspondance idéale entre la cosmologie stoïcienne et la tragédie antique. Le mond stoïcien est déterministe, téléologique, providentiel. 227 Além disso, comparando o mundo das tragédias com o mundo tal qual entendido pelos estoicos, a pesquisadora francesa aponta para o fato de que ambos diferem pelo fato de que este último é coerente e inteligível (VEILLARD, [s.d.], p. 7). Isso possibilita ao filósofo estoico almejar passar de personagem a ator. Enquanto o personagem/homem comum segue o curso do que o poeta escreve, sem consciência do mecanismo que o impulsiona, o ator/filósofo estoico tem noção da ordem causal em que se insere e se adéqua a ela (VEILLARD, [s.d.], p. 7-8). Contudo, é importante reconhecer que a metáfora do mundo como teatro não é produtora de sentido no pensamento estoico, mas meramente um recurso de ilustração, entre outros que podem ser usados alternativamente, como a metáfora do soldado ou a do atleta (VEILLARD, [s.d.], p. 11-12). Por fim, observo que a metáfora do theatrum mundi persistiu no tempo, sendo muito utilizada inclusive no período em que Fílon escreve. Cícero (I a.C.), por exemplo, aproxima o teatro ao mundo, e, explicitamente, a natura ao poeta, em Cato Maior, diálogo no qual a metáfora parece ter uma importância frequentemente subestimada (cf. CARDOSO, 2010). E Sêneca, contemporâneo do alexandrino, também não deixa de utilizar-se de semelhante topos (cf., por exemplo, Carta a Lucílio 77,20). Tanto entre os falantes de grego, quanto entre os falantes de latim, no século I d.C., não era estranho aproximar vida e teatro, pois este último havia há muito expandido sua influência e permeava diferentes âmbitos da vida cotidiana das cidades, dos cidadãos e dos discursos. 5.2 Há tragédia na Bíblia hebraica? Decerto, não busco neste tópico encontrar um texto na Bíblia hebraica que apresente a mesma estrutura de uma tragédia grega.388 O objetivo é simplesmente apresentar, a partir de uma breve revisão bibliográfica e leitura de textos bíblicos selecionados, algumas possíveis aproximações entre o texto bíblico e a tragédia, predominantemente, por meio do trágico. 388 Embora não seja completamente impossível encontrar, não uma tragédia, mas algo caracterizável como representante do gênero dramático na própria Bíblia. Helmut Utzschneider encontra em discursos proféticos, exemplarmente Miqueias e Oseias, características que considera fundamentais de um drama (UTZSCHNEIDER, 2010). Além disso, como se verá a seguir, o Livro de Jó tem suscitado buscas dessa natureza ao longo dos séculos. O Cântico dos Cânticos também não deixa de lançar mão de uma estrutura dramática. Mas não é concebível uma aproximação do mesmo com a tragédia grega. 228 A amplitude do corpus implicado inicialmente neste estudo, que abrange vários livros de gêneros e épocas diferentes, impossibilitará uma exposição que aborde cada um dos casos potencialmente interessantes. Por necessidade, então, farei uma seleção de personagens e histórias, que serão apresentados junto à leitura de um ou outro pesquisador que tenha evidenciado uma possível relação com nosso tema. Entendo que, assim, será viável observar minimamente o alcance das similaridades e a importância das diferenças. Tenho em mente que este meu trabalho com o texto bíblico não tem seu objetivo final em si mesmo, mas é um primeiro passo no sentido de explorar a relação entre o trágico e o contexto judaico. Reconheço que há diferentes maneiras de se procurar o “trágico” em um texto (em princípio) alheio à cultura grega. Mas há um tipo de questão que se faz presente em várias dessas buscas quando o corpus em que se busca é o cânone da Bíblia (tanto da hebraica, quanto da cristã): É possível considerar histórias da Bíblia como trágicas, mesmo sabendo de peculiar seu contexto religioso (com sua concepção teológica específica)? Diferentes abordagens e diferentes respostas a essa questão poderão ser percebidas à medida em que eu apresente os exemplos a partir dos estudos de outros pesquisadores. Antes, contudo, explicito o problema, mencionando dois estudiosos que, na mesma época, afirmaram a impossibilidade de haver verdadeira tragédia (e verdadeiro trágico) na Bíblia. George Steiner, em seu muito conhecido livro The Death of Tragedy [A morte da tragédia], é categórico: Onde há compensação, há justiça, não tragédia. Essa demanda por justiça é o orgulho e o fardo da tradição judaica. Jeová é justo até mesmo em sua fúria. Frequentemente o equilíbrio entre retribuição e recompensa parece temerosamente inapropriado, ou os procedimentos de Deus parecem ser insuportavelmente lentos. Mas, no fim, não pode haver dúvida de que os caminhos de Deus para com o homem são justos. E não são somente justos, são racionais. O espírito judaico é veemente em sua convicção de que a ordem do universo e da condição humana é acessível à razão. Os caminhos do Senhor não são despropositados nem absurdos. Nós podemos apreendêlos completamente se dermos a nossos questionamentos a percepção aguçada da obediência.389 (STEINER, 1961, p. 4) Não é, portanto, o caso de desconsiderar a existência de revesses vivenciados 389 Minha tradução de: […] Where there is compensation, there is justice, not tragedy. This demand for justice is the pride and burden of the Judaic tradition. Jehovah is just even in His fury. Often the balance of retribution or reward seems fearfully awry, or the proceedings of God appear unendurably slow. But over the sum of time, there can be no doubt that the ways of God to man are just. Not only are they just, they are rational. The Judaic spirit is vehement in its conviction that the order of the universe and of man's estate is accessible to reason. The ways of the Lord are neither wanton nor absurd. We may fully apprehend them if we give to our inquiries the clearsightedness of obedience. 229 pelos personagens da Bíblia, mas de considerar a razão dessas situações nefastas. Este outro trecho provido de exemplo deixa patente o entendimento de Steiner: A queda de Jericó ou de Jerusalém é meramente justa, enquanto a queda de Troia é a primeira grande metáfora da tragédia. Quando uma cidade é destruída porque ela desobedeceu a Deus, sua destruição é um instante passageiro no desígnio racional do objetivo de Deus. […] A queima de Troia é definitiva porque se desenrolou por um entretenimento violento de humanos odiosos e a despropositada, misteriosa escolha do destino. 390 (STEINER, 1961, p. 5) D. D. Raphael, pouco antes da publicação do livro de Steiner, produziu um ensaio que aborda especificamente a relação entre religião e tragédia.391 A meu ver, há uma vantagem em seu escrito com relação ao de Steiner, oriunda do cuidado que teve para com a produção prévia a respeito do tema antes de abordar os exemplos propriamente. Por esse cuidado, talvez, enfatiza que a ausência do trágico na Bíblia não se fundamenta exclusivamente na soberania de um Deus único, mas também na submissão do “herói bíblico”392: Em resumo, a religião da Bíblia é hostil à tragédia, primeiro, porque é otimista e confia que o mal sempre é um meio necessário para um bem maior, e, segundo, porque ela humilha o homem diante da sublimidade de Deus. A tragédia, por outro lado, trata o mal como mal puro; ela lamenta o desperdício de todo tipo de dignidade humana, e não pensa que o sofrimento inocente possa ser justificado. Além disso, ela mostra o esforço humano para ser sublime, um desafio para a sublimidade da natureza e para os deuses da natureza. Se isso é verdade, por conseguinte a tragédia é dificilmente possível contra o pano de fundo da religião Bíblica. 393 (RAPHAEL, 1960, p. 51) Tendo isso considerado de antemão, passo à apreciação dos casos selecionados, sabendo que haverá ensejo para retornar a essas questões. 390 391 392 393 Minha tradução de: The fall of Jericho or Jerusalem is merely just, whereas the fall of Troy is the first great metaphor of tragedy. Where a city is destroyed because it has defied God, its destruction is a passing instant in the rational design of God's purpose. […] The burning of Troy is final because it is brought about by the fierce sport of human hatreds and the wanton, mysterious choice of destiny. O ensaio aparece como parte de sua exposição na The Mahlon Powell Lectures, da Universidade de Indiana, no ano de 1959. O fato pode estar implícito no texto de Steiner, quando fala de obediência quando dos questionamentos, mas ele não chega a explorar a importância do mesmo, nem suas repercussões na resolução do problema, como faz Raphael. Minha tradução de: To sum up, the religion of the Bible is inimical to Tragedy, first because it is optimistic and trusts that evil is always a necessary means to greater good, and secondly bacause it abases man before the sublimity of God. Tragedy on the other hand treats evil as unalloyed evil; it regrets the waste of human worth of any kind, and does not think that innocent suffering can be justified. Secondly, it shows human effort to be sublime, a fit match for the sublimity of nature and nature's gods. If this is true, it will follow that Tragedy is hardly possible against a background of Biblical religion. 230 5.2.1 Moisés Começo pelo “legislador”. E, a respeito dele, apresento um estudo de Hillel Barzel, publicado em 1974, e intitulado Moses: Tragedy and Sublimity [Moisés: Tragédia e Sublimidade]. A abordagem de Barzel é estritamente literária. Sua primeira preocupação é especificar o que busca em sua leitura. Não se trata de encontrar características do gênero literário conhecido por tragédia, que ele entende ser algo próprio e peculiar dos gregos, mas sim de procurar pelo trágico. Ele trata de apresentar a argumentação de Baruch Kurzweil, que poucos anos antes havia publicado seu ensaio Job and the Possibility of Biblical Tragedy [Jó e a possibilidade da tragédia bíblica] (KURZWEIL, 1970). Nesse, Kurzweil, que nega a existência do trágico na Bíblia, entende que toda teorização moderna a respeito do trágico parte, em alguma medida, dos fundamentos estabelecidos por Aristóteles na Poética (KURZWEIL, 1970, p. 328). Dentre os estudos modernos sobre o tema, o crítico israelense dá certa ênfase ao de Hegel394, que entende que o trágico surge na tragédia pelo confronto de duas personagens que, vistas individualmente, têm, cada uma, justificação e culpa no ato que está por se realizar.395 Kurzweil observa que, enquanto no pensamento grego os deuses podem participar dessa relativização, por existirem em condições morais semelhantes às dos humanos, na Bíblia somente o ser humano é relativo, pois Deus é absoluto. Quando o Deus absoluto interage com os humanos relativos, pode acontecer muita coisa, mas não o trágico. Outro argumento de Kurzweil aproveitado por Barzel se fundamenta na ideia de que o herói trágico chega a se encontrar isolado, desprovido de qualquer esperança, o que seria impossível em um mundo no qual há um Deus no qual se encontra socorro (KURZWEIL, 1970, p. 337338. BARZEL, 1974, p. 122-123). Hillel Barzel reconhece, então, que “nenhuma discussão sobre uma figura como Moisés poderia tentar adotar tais conceitos básicos que, como os de Hegel e Kurzweil, são tomados de um ambiente espiritual helênico, alheio àquele da Bíblia hebraica” 396 (BARZEL, 1974, p. 124). Então, a justificativa (e proposta) que ele apresenta para a busca que realiza se baseia no fato de que, ao ler a Bíblia como literatura, ele deve considerar respostas de leitura 394 395 396 Mas dá atenção também a Karl Jaspers, Max Scheler e Georg Lukacs. Para uma compreensão mais ampla do pensamento de Hegel sobre a tragédia: ROCHE, 2006. Minha tradução de: No discussion of a figure such as Moses could possibly attempt to adopt such basic tragic concepts which, like those of Hegel and Kurzweil, are drawn from an Hellenic spiritual environment utterly allien to that of the Hebrew Bible. 231 “não necessariamente baseadas na intenção do narrador escritural” 397 (BARZEL, 1974, p. 124). Assim, ele afirma que, diante de certos episódios narrados no texto bíblico, o leitor, que desconsidera o sistema de valores do narrador escritural, pode responder com sentimentos de tragédia (BARZEL, 1974, p. 124). Foi preciso apresentar de modo claro a proposta do pesquisador justamente para evitar um julgamento inapropriado de seu estudo. Agora, passo aos dois episódios da vida de Moisés que, segundo ele, podem gerar sentimentos trágicos no leitor. O primeiro se encontra no capítulo 33 de Êxodo. Trata-se de um diálogo entre Moisés e Deus. Moisés pede para ver a divindade, que responde negativamente de modo categórico, dizendo que não poderia ver sua face (‫י‬z‫פנ‬z ‫ את־‬- et-panai, “a minha face”), pois nenhum ser humano poderia vê-lo e continuar vivendo. Essa separação, depois de tantos sinais miraculosos realizados por Moisés, e depois de se dizer há pouco que IHWH falava com Moisés face a face (‫ים‬u‫פנ‬z ‫ים אל־‬u‫נ‬z‫ – פ‬panim al-panim) geraria sentimentos trágicos no leitor, segundo Barzel. Moisés seria colocado no nível dos demais humanos, quando se acreditava ter privilégios: “Ele não é tratado diferentemente de qualquer outro mortal, e sua grande estatura metafísica não lhe serve para nada. Esse momento desperta um sentimento de compaixão e assombro no leitor”398 (BARZEL, 1974, p. 128). Esse primeiro trecho selecionado pelo pesquisador não me parece muito convincente. Seria aleatório afirmar que o episódio não produz compaixão e assombro, ou, nos termos consagrados, piedade e terror nos leitores em geral. Mas afirmar que sim também pode ser. Parece-me mais provável que o leitor tome o episódio como comunicação de uma noção metafísica, mais que como uma tragédia pessoal na busca pelo conhecimento. Inclusive, o episódio não se desenvolve, no prosseguimento do texto, com qualquer tipo de lamento ou insistência da parte de Moisés. Ele não pranteia sua sina. Mas a compreende, como, imagino, deve acontecer com o leitor ensinado pela narrativa. O diálogo parece servir para limitar um possível exagero na compreensão da relação entre Moisés e o Deus que conversava com ele, mais que para explicitar uma frustração intensa do que parecia ser uma relação muito especial do legislador com Deus. E se a dinâmica do conhecer – ignorar tem papel importante no desenrolar de várias tragédias gregas, sua funcionalidade parece outra.399 Não se trata, nas obras áticas, de se 397 398 399 Minha tradução de: not necessarily based upon the intention of the scriptural narrator. Minha tradução de: He is treated no differently from any other mortal, and his great metaphysical stature avails him naught. This moment arouses a feeling of compassion and awe in the reader. Reconheço que não é objetivo de Hillel Barzel, como ele procura deixar claro em sua introdução, 232 produzir piedade e terror pela exposição da inevitável incompletude do conhecimento metafísico. Em Édipo Rei, por exemplo, o trágico perpassa a angustiante busca por conhecimento daquele que age na ignorância, e que, chegando ao conhecimento, punirá a si mesmo. Piedade e terror são gerados no público que detém o conhecimento que falta ao herói e que sabe, portanto, o que o personagem encontrará no final da busca. Édipo conhecerá, por fim, o fato de que ignorava o que estava diante de si, quando imaginava deter o conhecimento ou os meios para alcançá-lo.400 Há um reconhecimento da ignorância. Mas não é somente no desvelamento dessa que reside o trágico. Mas sim na relação (percebida pelo leitor/espectador) entre esse desvelamento e a trama. No caso de Moisés, ao menos no caso do primeiro episódio escolhido por Barzel, o leitor não é informado de qualquer repercussão da impossibilidade do conhecimento absoluto de IHWH. Ao contrário, o legislador é presenteado com a visão de IHWH de costas, algo muito além do que os demais humanos da narrativa podem acessar. Parece-me, pois, que o leitor será levado a um conhecimento e, no máximo, a uma reavaliação do lugar que ele vinha imaginando para Moisés, reconhecendo que ele compartilha de uma condição mais semelhante à do próprio leitor e à de todos os demais, o que não necessariamente conduz à dupla trágica de piedade e terror. Já o segundo episódio que Hillel Barzel apresenta, a revelação de que Moisés não entraria em Canaã, seguida de sua morte, pode ser mais trágico, se tomarmos a palavra em seu sentido mais amplo e popularmente difundido. Mas é preciso verificar sua adequação ao trágico no sentido específico trabalhado pelo estudioso, “algo que produz piedade e terror”. Curiosamente, Barzel não cita o texto da Bíblia, nem faz referência direta ao mesmo. Apenas comenta o enredo conhecido. Além disso, apresenta um trecho dos diários de Kafka, no qual o escritor, nascido em uma família judia de Praga, menciona o episódio que fecha o Pentateuco como ilustrando a incompletude da vida humana. Em seguida, cita também um poema de David Frishman, cujo título é justamente Moisés. O problema que percebo na leitura é justamente o fato de que não é especificamente na narrativa da Bíblia que se procura a possibilidade do trágico, o que era, em princípio, o proposto. A reflexão de Kafka faz uma leitura do episódio bíblico, utilizando-o como ilustração de um dado da condição humana. O poema, por sua vez, amplifica a descrição do contexto da morte de Moisés, envolvendo-o de uma profundidade e de um tom de lamento, versificando uma hipotética reflexão do legislador 400 submeter hierarquicamente o texto bíblico às tragédias gregas em sua leitura. Contudo, sendo as tragédias gregas textos especialíssimos na produção do trágico, é razoável que elas sejam observadas como ponto de comparação. Dependo de Bernard Knox nessa leitura (KNOX, 2002). 233 em seu leito de morte a respeito do fato de não ter concluído seu papel. Esses dados não estão presentes necessariamente no texto de Deuteronômio. Permito-me referir-me, para cotejo, justamente ao texto do capítulo 34 de Deuteronômio, sem considerar questões de formação do texto, por ser essa a metodologia defendida pelo próprio Hillel Barzel. Moisés sobe ao monte Nebo. YHWH lhe mostra a terra. Há descrição da visão, não de sofrimento algum. YHWH menciona a profecia feita não a Moisés, mas a Abraão, Isaac e Jacó, de que daria aquela terra à descendência deles. Logo, anuncia a seu interlocutor humano: “Fiz que a visses com teus olhos. Mas para lá não passarás” (‫ר׃‬Ø ‫מה לא תעב‬z ‫ש‬ z ×q ‫יניך‬o‫בע‬q ‫יך‬u‫ית‬u‫א‬q‫ הר‬- Dt 34:4). Todo o trágico teria que ser construído pelo leitor a partir dessa frase, pois o contexto não se encaminha para nada semelhante. Pelo contrário, Moisés tem um fim imediato, livre de ponderações entristecidas diante do término de sua vida, e é honrado por ser sepultado pelo próprio YHWH (Dt 34:6). Ademais, morre com cento e vinte anos, com a vista boa e vigor (Dt 34:7), é pranteado honrosamente por seus liderados por trinta dias, e o novo líder só ocupa seu lugar porque Moisés mesmo lhe havia imposto as mãos. E o capítulo, bem como o livro e o Pentateuco se encerram com um comentário laudatório, que destaca a singularidade do personagem. O que posso concluir é que o texto bíblico em si, neste caso, não está configurado de forma a facilitar o desencadeamento de piedade e terror. Isso não impede que o enredo seja reescrito de outras maneiras, para que o trágico seja produzido. Mas isso extrapola os limites do proposto: observar a existência do trágico no texto da Bíblia hebraica (ou, de modo mais próximo ao requerido por Barzel, a capacidade de produção do trágico a partir do texto da Bíblia hebraica). 5.2.2 Jó Jó tem lugar especial quando se trata de procurar o trágico na Bíblia, não só pelo enredo cheio de algúrias no qual o personagem se vê envolvido, mas, sobretudo, pela forma do texto em que se apresenta. O Livro de Jó tem a peculiaridade de suscitar leituras que procuram não somente encontrar nele o trágico, mas aproximar seu próprio texto ao das tragédias gregas. E esse tipo de abordagem tem longa história.401 A opinião de Teodoro de Mopsuéstia (350 – 428d.C.), que exibe um tom 401 Por isso, procurarei fazer uma revisão bibliográfica um pouco mais demorada a respeito do tema, mencionando leituras de diferentes épocas. Ainda assim, devo reconhecer que a brevidade de meu texto e a amplitude do assunto tornam impossível a exposição do panorama completo. 234 peculiarmente acusatório contra o autor do livro bíblico, é provavelmente o primeiro importante capítulo dessa história de sucessivas interpretações. O texto do próprio Teodoro sobre Jó não nos chegou completo, nem em sua língua original, o grego. Os fragmentos de que dispomos são tomados das atas do Segundo Concílio de Constantinopla 402, evento em que o teólogo foi execrado tanto por esse tipo de abordagem da Bíblia, quanto por alguns de seus posicionamentos teológicos. Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas em decorrência dessa condenação, o que temos disponível do seu texto é suficiente para apreciar de modo bastante claro o seu pensamento a respeito do Livro de Jó. Apresento, então, o seguinte trecho, que apresenta palavras atribuídas ao próprio Teodoro sobre o autor do Livro de Jó, e que me parece suficiente para explicitar a maneira como o bispo o aproxima dos autores dos autores trágicos: Et conscriptor quidem manifestus est, ex amore magno et importuno vani honoris hoc passus. ut enim semetipsum ostenderet et extranea eruditum esse doctrina, et paganorum fabularum scientiam habuisse, quas de illis quos deos putabant, firmas habebant, minimum existimavit nominationem istam inde acceptam justo imponere, quasi per eam filiam suam decorari volenti. Mihi vero ex tota libri conscriptione certus est conscriptor paganica scientia esse eruditus, ad cujus imitationem praesentem volens scripturam componere, nocuit historiae pulchritudini. Qui enim apud illos tragoedias componunt, causas quidem accipiunt ab his quae multi loquuntur, quando etiam eas contigerit quodammodo apud plurimos opinionem veritatis habere: pura autem causa utentes, suam artem et sapientiam in compositione fabularum ostendere festinant, et personas introducentes sibi placitas, et voces circumponentes eis, a quibus clariores fieri arbitrantur et decorari, ut et querimoniam et laudem quae a scriptis infertur, sive per intellectum, sive per ipsa verba scriptor peccaverit, non ad personas quarum verba confingit, legentes referant, sed ad fabulae conscriptorem. E, decerto, é um autor que se revelou às claras, a tal ponto subjugado por um grande e inoportuno amor pela honra vã, que ostentava ser ele mesmo instruído em doutrina estrangeira e ter ciência das lendas dos pagãos, as quais estimavam os deuses, e com vigor os sustentavam. E julgou algo menor atribuir a um justo um nome tomado emprestado de lá, como se movido pela vontade de adornar sua própria filha. Para mim, verdadeiramente, a partir de toda a escrita do livro, é certo que o escritor era instruído na ciência pagã. E para imitação dessa, querendo compor a presente escritura, fez dano à beleza da história. Certamente, ele [esteve] junto com aqueles que compõem tragédias – os quais são responsáveis por muitas das coisas que são ditas - quando já tinha sido capaz de ter, de alguma maneira, junto a muitos, o relato de verdade. Contudo, usando uma matéria pura, se apressam a ostentar sua arte e sapiência na composição de lendas, introduzindo personagens agradáveis para si mesmos, e arranjando sons em redor deles, aos quais foi decidido fazer mais brilhantes e decorar. 402 O Segundo Concílio de Constantinopla, que costuma ser considerado como o Quinto Concílio Ecumênico da Igreja, ocorreu no ano de 553 d.C.. 235 Assim, se o escritor errou pelo intelecto ou pelas próprias palavras, tanto o lamento quanto o louvor que foram trazidos a partir dos escritos, os leitores não os entregam às personagens criadas pelas palavras, mas ao autor da lenda. (ACTA CONCILIORVM OECVMENICORVM, 1971, p. 67-68) A apreciação negativa não é gerada por questões relativas à historicidade do personagem, mas pela forma como se apresenta a história, uma forma que seria imitação daquela própria dos poetas trágicos, que compõem lendas (fabulae). A crítica é dirigida ao escritor, porque Teodoro percebe no texto uma deliberada inventividade, que tem uma finalidade estética, não sendo o simples relato da verdade histórica, com vistas à edificação dos outros. Como acontecia com os poetas trágicos nos teatros, o autor do Livro de Jó quereria receber, ele mesmo, os aplausos por sua habilidade poética, e não simplesmente evidenciar a bela verdade da história sagrada, para que esta, e não ele, fosse louvada. Não é difícil pensar que a estrutura do texto, majoritariamente composto como diálogo, com discursos diretamente atribuídos aos personagens, e o tema controverso do livro tenham sido fatores determinantes para a leitura de Teodoro. Pouco mais de um milênio depois, já no século XVI, um homônimo do bispo de Mopsuéstia, o reformador francês Théodore de Bèze, daria um passo além. Em seu comentário de 1589, ele não só chama o Livro de Jó repetidas vezes de tragédia, como também o divide em cenas e atos, e se refere aos personagens como atores (BÈZE, 1589). 403 Não obstante, diferente do que sucedera a Teodoro de Mopsuéstia, essa aproximação com as obras dos poetas não faz com que o reformador avalie o Livro de Jó negativamente como contendo informações falsas ou influências pagãs. Seu pensamento fica claro nestas palavras: […] o discurso todo se constitui de falas intercambiadas de um para outro, à exceção do início e do fim do livro somente. E se não fosse o fato de que é fechado com um final feliz e desejado, ele poderia justamente, tanto pelo conteúdo (visto que nada pode ser pensado ou imaginado mais sério e pesado) quanto também pela extrema dignidade das pessoas que aqui conversam e raciocinam juntas, ser chamado de uma tragédia; não como um poema fingido ou forjado, mas como fato verdadeiramente ocorrido, e posteriormente escrito de modo mais fidedigno, mais sério, e, para dizê-lo em uma palavra, mais divino. Pelo que, até mesmo segundo o julgamento de um homem, nenhum escrito de nenhum poeta, no que diz respeito ao 403 Poucos anos antes, em 1556, Leone de' Sommi, tragediógrafo judeu que vivia no norte da Itália, escrevia seus Quattro dialoghi in materia di rappresentazioni sceniche [Quatro diálogos em matéria de representação cênica]. Em certo passo do primeiro dos quatro diálogos, afirma-se que não os gregos, mas Moisés teria inventado o teatro, ao escrever a tragédia de Jó (DE' SOMMI, 1968, p. 14). Não encontro, contudo, qualquer indício de que Théodore de Bèze tenha tido contato com essa obra, ou que sua reflexão tenha sido influenciada por essa breve afirmação na obra do pensador judeu. 236 conteúdo ou às palavras, pode com justiça com ele ser comparado. 404 (BÉZE, 1589) Théodore de Bèze, como homem dado às letras, não deixa de atentar para a possível aproximação entre o Livro de Jó e a obra de poetas. Como teólogo comprometido com o movimento de Calvino, não nega a autoria divina do livro. O que me interessa imediatamente aqui não é essa conciliação que ele procura em seu discurso, mas especificamente a apreciação que ele faz do conteúdo e da forma do livro. Quanto à forma, ele observa que, retirados o prólogo e o epílogo narrativos, o que resta são diálogos. A isso se une sua apreciação do conteúdo. Se desse fosse desconsiderado o que se diz no encerramento, em que Deus restitui a Jó com acréscimos tudo que lhe havia sido tirado, o texto seria propriamente chamado de tragédia. Percebo, pois, que ele procura avaliar a possibilidade de chamar o texto por esse nome tanto pela forma, quanto pelo conteúdo do enredo e caráter dos personagens. Provavelmente, ele pensa que a forma asseguraria a aproximação ao gênero dramático, mas a comédia permaneceria como possibilidade a ser aniquilada pela apreciação dos personagens. Não obstante, o teólogo do século XVI não estava disposto a extirpar o encerramento do Livro de Jó como interpolação para que este se adequasse ao gênero com o qual o comparava. As comparações com a tragédia não cessariam com a obra do reformador. Mas seria difícil superestimar o papel de Théodore de Bèze na difusão da leitura de Jó como drama. Já no século XVIII, muitos afirmavam que o Livro de Jó era do mesmo gênero das tragédias gregas, conforme testemunha Robert Lowth (LOWTH, 1815, p. 469), que era bispo da Igreja Anglicana e professor de poesia em Oxford. Lowth, não concorda com essa opinião então disseminada, e procura demonstrar que o livro não se enquadra no padrão estabelecido na Poética de Aristóteles por faltar-lhe a ação, o que faria com que se tornasse uma espécie de diálogo de ideias sem desenvolvimento. Como se uma prova da diferença fosse cobrada, Lowth se dispõe a comparar Jó com Édipo Rei e Édipo em Colono de Sófocles, verificando 404 O texto original foi escrito em latim, mas acessei uma antiga tradução ao inglês, dedicada à rainha Elizabeth I pelo próprio Théodore de Bèze. O texto citado, portanto, é minha tradução de: Moreouer this whole discourse standeth of enterchaungeable speaches to and fro, the beginning and ende of the booke onely excepted: and if it were not that it is shut up with a ioyfull and wished ende, it might rightly both for the matter, (then which nothing can be thought or imagined more graue and wightie) and also for the exceeding worthinesse of the persons, that here talke and reason together, be called a Tragedie; not as a feigned or deuised poeme, but as a thing done indeede, and afterward most faithfully, most grauely, and in a worde, most divinely written: wherewith euen in the iudgement of man, no writing of any Poet, either in respect of matter or words, may rightly be compared. 237 especificamente a diferença quanto à ação. Após o exercício, ele afirma: […] o poema de Jó não pode ser propriamente colocado em comparação com Édipo de Sófocles ou com qualquer outra das tragédias gregas. Fica evidente, eu penso, que este poema não deve ser considerado como do mesmo tipo, nem pode ser classificado com elas, a não ser que a natureza completa e a forma de um dos dois, do poema grego ou do hebraico, seja alterada, ou a não ser que o enredo ou ação seja tirado de um ou adicionado no outro. Porque sem esse item essencial nenhum poema pode ser considerado como um drama perfeito.405 (LOWTH, 1815, 479) Já no século XIX, o teólogo alemão Franz Delitzsch dedica algumas páginas da Introdução de seu comentário sobre o Livro de Jó à discussão a respeito da arte dramática que ele percebe na obra. Delitzsch afirma que Jó não é integralmente uma obra dramática, por causa dos trechos narrativos no início e no fim. Mas observa que o prólogo, embora narrativo, comporta um diálogo entre Deus e Satã, o que faz com que não seja completamente não dramático (DELITZSCH, 1866, p. 15). Neste ponto, o teólogo vai além da simples comparação do livro de Jó com um gênero literário grego, e menciona tragediógrafos específicos. O prólogo seria, quanto à forma, correspondente ao euripidiano, mas, quanto à função, se aproximaria dos prólogos de Sófocles, que instigam o leitor/espectador dando algumas informações a respeito do que está por acontecer e que será revelado aos poucos pelos atores (DELITZSCH, 1866, p. 15). Para refutar a aparente falta de ação do livro, em uma resposta a leituras como a de Lowth, Delitzsch recorre a outra comparação: assim como em Tasso de Göthe, “a deficiência de ação externa é compensada pela riqueza e precisão com a qual os personagens são desenhados”406 (DELITZSCH, 1866, p. 16). Ele recorre, pois, a uma comparação com uma obra reconhecida como trágica de um poeta alemão, escrita a fins do século XVIII, para justificar a atribuição do adjetivo “trágico” ao Livro de Jó. Poderia ter procurado entre as tragédias gregas uma que também não se enquadrasse perfeitamente com a expectativa criada a respeito da ação a partir da leitura de Aristóteles. Talvez encontrasse um ponto de comparação em Prometeu Acorrentado.407 Mas para Delitzsch isso parece indiferente, pois tem o compatriota como tão inegavelmente trágico quanto Ésquilo. 405 406 407 Minha tradução de: the poem of Job cannot properly be brought into comparison with either Oedipus of Sophocles, or with any other of the Greek tragedies. It will be evident, I think, that this poem ought not to be accounted of the same kind; nor can possibly be classed with them, unless the whole nature and form of either the Greek or the Hebrew poem be changed; or unless the plot or action be taken from the one, or added to the other: for without this great essential no poem can indeed be accounted a perfect drama. Minha tradução de: the deficiency of external action is compensate by the richness and precision with which the characters are drawn. Adiante, mencionarei a comparação entre Jó e Prometeu proposta por outros autores. 238 Em seguida, observando o desenrolar da história, que desvela a realidade pouco a pouco diante do personagem, o teólogo afirma: O próprio Jó é um herói trágico não menos que o Édipo das duas tragédias de Sófocles. O que ali é um destino inevitável, expresso pelo oráculo, no livro de Jó é o decreto de Jeová, acima de quem não há poder de controle, decretado na assembleia dos anjos. Como um doloroso quebra-cabeças, o lote de aflição vem sobre Jó.408 (DELITZSCH, 1866, p. 16-17) Não obstante essa aproximação explícita e bem definida, Delitzsch considera uma diferenciação entre o Deus verdadeiro que será apresentado no fim da história e o deus fantasmagórico contra o qual Jó luta. Este último “não é em nada diferente do inexorável destino da tragédia grega”409 (DELITZSCH, 1866, p. 17). Já o verdadeiro se mostra quando Jó se rende: Jeová aparece, e a fúria desaparece. O dualismo, que a tragédia grega preserva, aqui é reconciliado. A liberdade humana não sucumbe; mas se torna evidente que, não um poder arbitrário absoluto, mas uma sabedoria divina, cujo impulso mais interno é amor, molda o destino humano. 410 (DELITZSCH, 1866, p. 17-18) Parece que a concepção teológica, de que nos falavam Steiner e Raphael, altera o rumo da comparação de Delitzsch e permite que o trágico em sua leitura de Jó se perpetue somente de modo provisório, como ilusão proporcionada pela incompreensão da verdadeira relação do Deus com sua criação. Quando a ilusão se desfaz, as similaridades dão lugar à diferença. Uma coisa é o Livro de Jó e outras coisas são as tragédias gregas. Venho até aqui me delongando em referir-me a esses autores de séculos passados por considerar que, além de revelarem a longa data da discussão, deixam evidentes algumas questões importantes ainda hoje tanto para a apreciação do trágico na Bíblia, quanto para o estudo do trágico em outros contextos judaicos. Contudo, passo já ao século XX, e focarei inicialmente de modo breve dois tipos de atitudes para com Jó e a tragédia. Um é mais comparável ao desenvolvido por Théodore de Bèze, que procurou evidenciar a estrutura dramática do livro. O outro faz lembrar a reflexão de Teodoro de Mopsuéstia, que acusou o autor de ter feito empréstimo junto à tradição trágica dos gregos. 408 409 410 Minha tradução de: Job himself is not less a tragic hero than the Oedipus of both Sophocles' tragedies. What is there an inevitable fate, expressed by the oracle, is in the book of Job the decree of Jehovah, over whom is no controlling power, decreed in the assembly of angels. Minha tradução de: is in no way different from the inexorable fate of the Greek tragedy. Minha tradução de: Jehovah appears, and the fury vanishes. The dualism, which the Greek tragedy leaves unabolished, is here reconciled. Human freedom does not succumb; but it becomes evident that not an absolute arbitrary power, but divine wisdom, whose inmost impulse is love, moulds human destiny. 239 Em 1918, o filósofo judeu Horace M. Kallen lançou um livro que certamente chamou a atenção de seus contemporâneos: The book of Job as a Greek Tragedy [O livro de Jó como uma tragédia grega], o qual tem lugar de destaque em meio à bibliografia referente à aproximação entre Jó e a tragédia. Não porque seja especialmente acurado, mas sim pela ousadia da hipótese que oferece. Kallen não se limita a apontar semelhanças, nem a organizar o texto na forma de drama. Ele procura fazer crível ao leitor a possibilidade de que um judeu, habitante da Judeia, no século IV, tenha visitado alguma cidade helenística, e, ali, presenciado a apresentação de uma peça de teatro, mais precisamente de Eurípides. Nessa situação, como estrangeiro não versado no grego e inexperiente na apreciação do teatro, o autor do Livro de Jó teria tido uma compreensão parcial do que se passava no palco. Posteriormente, teria reproduzido em hebraico uma estrutura parecida com aquela que havia presenciado. Assim, por exemplo, teria composto o prólogo como narrativa separada do drama por ter percebido o caráter mais prosaico do prólogo que assistira no teatro e julgara tratar-se de uma narrativa introdutória. Acrescento outro exemplo curioso: o personagem Elihu, por sua vez, seria sua reprodução daquele personagem que, na tragédia de Eurípides que assistira, chegava ao palco e falava longamente, o mensageiro. Como não sabia grego, não havia sido capaz de compreender bem a função do personagem. E, assim, o filósofo judeu americano procura demonstrar que cada trecho do Livro de Jó poderia ser lido como tentativa de reprodução de uma tragédia euripidiana (KALLEN, 1918, p. 19-26). Outra conjectura, contudo, seria necessária para explicar a inexistência do coro no livro da Bíblia. O autor do Livro de Jó, mesmo não falando grego, teria sido capaz de perceber a especificidade desse componente da peça. O responsável pelo sumiço do coro, então, não seria o autor, mas um editor posterior, que teria se incomodado por pensar que os cantos do coro poderiam remeter a rituais cúlticos relacionados com as tragédias gregas. Por isso, ele teria unido as intervenções do coro aos diálogos, motivo pelo qual, hoje, teríamos trechos no Livro de Jó que parecem fazer parte de falas dos personagens, mas que não se encaixam bem no lugar em que estão, sendo comumente considerados interpolações (KALLEN, 1918, p. 34-37). Além do ensaio, em que lida com essa suposta origem do que o autor chama de A Tragédia de Jó e aborda a “filosofia” da obra hebraica, Kallen apresenta o texto de Jó, a partir de uma tradução em língua inglesa corrente à época, organizado exatamente como se fosse uma tragédia grega. 240 Embora desperte curiosidade, a proposta de Kallen não teve repercussão positiva nem entre os estudiosos da literatura clássica, nem entre os biblistas. 411 Fato é que muitas de suas observações se baseiam em conjecturas livres. Ainda assim, mesmo considerando que o cerne da proposta não é pertinente, nem seu todo exitoso, reconheço que ele pode ter apontado para possibilidades pontuais que mereceriam ser estudadas mais a fundo. Penso, sobretudo, na possibilidade de que trechos do livro tidos como interpolações possam ter sido unidos ao diálogo no processo de transmissão da obra, enquanto que, na origem, teriam sido cantos paralelos (certamente, não de um coro à maneira do teatro grego). Mas, sobre o que me ocupa neste momento, a contribuição de Kallen não demonstra qualquer consistência. Passo, portanto, a outro tipo de comparação que merece ser mencionada. Uma tragédia específica de Ésquilo foi repetidas vezes comparada com o Livro de Jó: Prometeu acorrentado. Há alguma semelhança inegável entre as duas obras. Assim como Jó, Prometeu está preso a uma situação sofrida e aparentemente sem saída. É Zeus quem lhe impõe isso. E ele recebe a visita de personagens que vêm ter com ele e falar de sua miséria. Já no final do século XIX, o professor Goodspeed observava as semelhanças, mas também alertava para a grande diferença que se percebia na concepção da divindade, mesmo reconhecendo que nossa leitura de Prometeu Acorrentado não é completa, uma vez que só temos uma peça do que seria uma trilogia (GOODSPEED, 1892). Mais tarde, na metade do século XX, William Irwin aborda a mesma comparação.412 Irwin assinala que não considera cronologicamente impossível que o autor do Livro de Jó tenha tido conhecimento da tragédia grega e especificamente de Prometeu Acorrentado. Mas reconhece que os paralelos existentes não asseguram a dependência (IRWIN, 1950, p. 93). O pesquisador observa, contudo, que um dos fatores que dificultam a apreciação mais apurada dos paralelos é o estado fragmentar de ambos os textos. Se Prometeu 411 412 Em uma resenha publicada depois do lançamento do livro, por exemplo, Claude Montefiore acusava em termos duros a falta de embasamento da proposta de Kallen. Embora reconhecesse a engenhosidade do autor e a existência de algumas ideias pontuais que mereciam ser realmente observadas, Montefiore assinalava que a teoria, como um todo, devia ser considerada um fracasso (MONTEFIORE, 1919, p. 221). Mencionar o artigo de Irwin, da metade do século XX, depois do de Goodspeed, dos fins do século XIX, não significa que eu desconsidere que houve alguma referência à comparação em questão nesse intervalo de tempo. Contudo, essas referências nem sempre vieram acompanhadas por um tratamento detalhado da questão. Penso, por exemplo, em um artigo de George Sparks intitulado The Hebrew Prometheus; Or, The Book of Job [O Prometeu Hebreu; Ou, O Livro de Jó] (SPARKS, 1903). A comparação sugerida pelo título parece servir mais como ensejo para o ensaio a respeito de Jó, do que ser, propriamente, o foco de um estudo sistemático. Ele não traz nenhuma contribuição significativa além do que já fora observado por Goodspeed. 241 Acorrentado é somente uma de três peças que estariam concatenadas, o Livro de Jó, por sua vez, apresenta interpolações de diferentes origens, que alteraram a configuração original do texto, cujo cerne primevo seria o diálogo entre Jó e seus três amigos somente. Com essa dificuldade em vista, Irwin busca outros caminhos para a comparação, e chega a procurar antecedentes oriundos de outras culturas mais antigas que forneceriam ideias fundamentais aos dois textos. Cuidadoso, não afirma definitivamente nenhuma dependência, mas reconhece uma grande diferença, proveniente da maneira própria como o poeta grego e o hebreu trataram um tema comum. A peça de Ésquilo deixaria evidente muito do pensamento que está à base do que se desenvolve no Livro de Jó, mas o autor deste teria trazido um novo elemento que vai além dos limites do desenvolvido na tragédia grega por causa de sua herança espiritual (IRWIN, 1950, p. 102). Considero, ainda, útil uma breve observação de Irwin a respeito dos trechos que ele considera como adições: “as adições oferecem a visão de vários pensadores hábeis do judaísmo antigo sobre o problema discutido de modo tão efetivo no diálogo”413 (IRWIN, 1950, p. 94-95). O que de momento quero marcar, como antecipação de uma discussão que reaparecerá em breve no texto, é o fato de que, ainda que interpolações, esses trechos refletem um desenvolvimento interno do judaísmo, que resolve em textos escritos e reescritos a sua cosmovisão. Nos anos seguintes, continuou sem consenso a questão do gênero do livro de Jó. E não deixaram de surgir propostas que procuram lidar de alguma forma com a semelhança que compartilha com a tragédia. Samuel Terrien, por exemplo, pensa em um contexto cerimonial, no qual um celebrante declamaria o poema, que se constitui como “ uma série de estrofes em estilo semilírico e semidialético” (TERRIEN, 1984, p. 9). Assim, ele imagina um contexto quase dramático para a execução do texto. Mas quando a questão é a aproximação com a tragédia grega em si, o pesquisador não considera possível uma interdependência direta, mas aponta para a possibilidade de uma “fonte comum distante e indireta” (TERRIEN, 1984, p. 9). Houve também quem buscasse outro ponto de comparação no arquivo grego, e encontrasse no Livro de Jó como um todo, tal qual nos chegou, não uma tragédia, mas uma comédia 414 (WHEDBEE, 1977). Parece-me que a tendência mais razoável seria reconhecer a multiplicidade de gêneros com os quais se pode associar o Livro de Jó, mas não forçá-lo a enquadrar-se em um 413 414 Minha tradução de: the additions give the views of various able thinkers of ancient Judaism on the problem discussed so effectively in the Dialogue. A existência dessa atribuição de duas filiações opostas – à tragédia e à comédia – acontece também com respeito à história de Sansão, como será mencionado posteriormente. 242 gênero grego específico, reconhecendo sempre, contudo, que é fundamental sua estrutura dramática, isto é, de apresentação de diálogo entre personagens. Javier Quezada, por exemplo, faz algo nesse sentido em artigo recente. Depois de apresentar numerosas tentativas de se definir o gênero do Livro de Jó ao longo da história (QUEZADA, 2006, p. 34-37), o biblista mexicano passa a argumentar a favor de sua própria definição, que procura respeitar a forma atual do livro e sua diversidade interna, chamando-o de “drama psicológico em forma de mesa redonda”415 (QUEZADA, 2006, p. 38ss). Por fim, reconhecendo minha presente impossibilidade de entrar mais a fundo na discussão a respeito do gênero literário do Livro de Jó, resta-me comentar especificamente a respeito da impossibilidade, a meu ver existente, do trágico em Jó, o que o afasta tanto de Prometeu Acorrentado, quanto das demais tragédias de Ésquilo, das de Eurípides e das de Sófocles. Como observei ao apresentar o texto de Hillel Barzel a respeito de Moisés, Baruch Kurzweil negou a presença do trágico na Bíblia justamente em um artigo cujo título faz referência a Jó. Apesar da sugestão do título, o texto mesmo do crítico israelense não se detém especificamente no caso de Jó, mas apenas o toma como um exemplo entre outros, enquanto defende a impossibilidade de existir verdadeiro trágico em toda a Bíblia. É notável, inclusive, que Kurzweil ilustre essa impossibilidade com um fenômeno externo ao judaísmo: as peças teatrais cristãs da Idade Média. Segundo ele, essas peças excluem qualquer proximidade com a visão trágica, porque o cristianismo é completamente alheio a ela. E são um exemplo concreto de algo que ocorreria de modo semelhante no judaísmo (KURZWEIL, 1970, p. 331). Quando Jó é apresentado como exemplo, o crítico, que lê o texto tal como aparece na Bíblia Hebraica, afirma: Há ocasiões em que um personagem bíblico sente a possibilidade da tragédia, mas ele não se rende a ela. […] O conhecimento trágico se aninha no coração de Jó. Ele não entende como o Valor Absoluto destruiu seu mundo relativo, feliz, o cálido e protetor mundo dos valores humanos. Repetidas vezes suas afirmações giram em torno desse estado de coisas incompreensível e inconcebível. Ele também sabe, contudo, “Tu es todo poderoso e eu sei que tu podes tudo e que nenhum intento pode ser negado a ti.” Ele se rende à superioridade do Deus onipotente: “... Eu não entendi, há coisas maravilhosas demais para mim, que eu não conheço”. Rendição desse tipo é antitrágica, é a antítese do próprio eu do herói trágico. 416 415 416 Minha tradução de: drama psicológico en forma de panel. Traduzo “panel” por “mesa-redonda” por entender que o autor pensa justamente a partir de seu contexto acadêmico. Minha tradução de: There are occasions when a Biblical figure senses the possibility of tragedy, but he does not surrender himself to it. […] Tragic knowledge does nest in Job's heart. He does not understand how the Absolute Value has destroyed his relative, happy world, the warm, protective 243 (KURZWEIL, 1970, p. 337) É semelhante a leitura de D. D. Raphael. O estudioso, já citado, também considera o texto tal qual se apresenta no cânone. Ele reconhece a plausibilidade da aproximação do Livro de Jó com a tragédia grega por causa da não explicação a respeito do mal que acomete o inocente. Mas encontra algo que, definitivamente, o afasta do trágico. E esse algo não é, como se poderia supor em princípio, o epílogo que restitui ao personagem o que lhe havia sido tirado, mas sim a maneira como Jó enfrenta o problema. Jó une o intelecto investigativo de um grego com a fé submissa de um hebreu. O verso coloca em oposição o homem e Deus, à maneira da tragédia grega, mas ao mesmo tempo opõe a audácia intelectual e a submissão da vontade. No fim, contudo, Jó faz seu intelecto rebaixar-se a um nível similar de submissão: “Eu detesto minhas palavras, e me arrependo, visto que eu sou pó e cinzas.”417 (RAPHAEL, 1960, p. 50) E convém encerrar esta breve apreciação do problema trágico no Livro de Jó com uma frase do mesmo crítico, que recupera uma comparação já tradicional a que me referi: “Prometeu desafia Zeus; Jó cobre a boca com a mão”418 (RAPHAEL, 1960, p. 51). 5.2.3 Saul Para a reflexão a respeito de Saul, trago a meu texto a leitura apresentada por J. Cheryl Exum em seu livro Tragedy and Biblical Narrative [Tragédia e narrativa bíblica]. E assim como fiz no caso do ensaio de Hillel Barzel sobre Moisés, também agora terei o cuidado de, antes de abordar especificamente a leitura que a pesquisadora realiza sobre o personagem, considerar a compreensão que ela tem do trágico e a maneira como propõe o estudo que realiza. No capítulo introdutório de seu livro, Exum procura resolver dois possíveis pontos especialmente susceptíveis a críticas em sua pesquisa: o sentido de “trágico” adotado e a consideração da possibilidade de existência do trágico na Bíblia. Primeiramente, ela procura 417 418 world of human values. Again and again his statements revolve about this incomprehensible and inconceivable state of affairs. He also knows, though, “You are all powerful and I know that Thou canst do everything and that no purpose can be withholden from Thee.” He capitulates to the superiority of the omnipotent God: “... I understood not, things too wonderful for me which I knew not.” Capitulation of this sort is antitragic, it is the antithesis of the self of the tragic hero. Minha tradução de: Job joins the questioning intellect of a Greek with the submissive faith of a Hebrew. The verse matches man with God, in the manner of Greek Tragedy, but at the same time it matches intellectual audacity with submission of the will. In the end, however, Job abases his intellect to an equal depth of submission: “I abhor my words, and repent, seeing I am dust and ashes”. Minha tradução de: Prometeus defies Zeus; Job lays his hand upon his mouth. 244 esclarecer que utiliza o termo “trágico” em um sentido amplo, não o relacionando à arte dramática somente, nem restrito a um tempo ou cultura. Além disso, aponta para a impossibilidade de uma apreensão plena do significado do “trágico” (EXUM, 1992, p.5-6). Não obstante, ela procura, desde o início, indicar o que entende constituir o trágico. O parágrafo inicial anuncia que ela explorará uma dimensão da narrativa bíblica que “revela o lado sombrio da existência, que conhece angústia e desespero, e que reconhece o precário lote da humanidade em um mundo, agora e então, confuso e não adaptável” 419 (EXUM, 1992, p. 1). Em outro ponto, ela reconhece que para que a tragédia se expresse em sua forma completamente desenvolvida é preciso haver, “de um lado, as possibilidades e fragilidades humanas em sua completude e elevadas a seus limites, e, de outro lado, um cosmo preocupado com as ações humanas”420 (EXUM, 1992, p. 6). Posteriormente, ela recorre a outros pensadores (Kierkegaard, Ricoeur e Jasper) para evocar outros elementos importantes que permeiam a tragédia: catástrofe, culpa, sofrimento, em uma conexão essencial mas não plenamente compreensível (EXUM, 1992, p. 10-11). É notável que, embora não submeta a noção ao fenômeno cultural grego, toda a tentativa da pesquisadora de descrição do trágico, de modo amplo, parece pertinente para a tragédia grega da Atenas do período clássico. Ela não utiliza o termo “trágico” sem critério, aproximando-se do sentido amplo, que faz com que se caracterize como “trágico”, no cotidiano, todo e qualquer sofrimento humano. E, certamente, isso torna sua investigação mais desafiadora e proveitosa. Quanto à presença do trágico na Bíblia, embora afirme que os capítulos seguintes de seu livro evidenciarão essa realidade, ela não deixa de apresentar seus argumentos contra dois autores que a negam. Steiner, como mencionei anteriormente, afirma ser impossível haver trágico na Bíblia porque ele é incompatível com a concepção de um Senhor que rege o mundo dos homens com justiça. O outro autor, também já mencionado, é Kurzweil, que nega o trágico na Bíblia com base na sempre disponível misericórdia divina e no caráter absoluto da definição do que é bom e do que é mau, não havendo lugar para dúvida ou ambiguidade em questões relativas a culpa, por exemplo. O argumento de Exum para refutar ambos é praticamente o mesmo. Eles leem a Bíblia como uma unidade, como se todos os textos 419 420 Minha tradução de: That reveals the dark side of existence, that knows anguish and despair, and that acknowledges the precarious lot of humanity in a world now and then bewildering and unaccommodating. Minha tradução de: On the one hand, uman possibilities and frailties undiminished and pushed to their limits and, on the other, a cosmos concerned with human actions. 245 compartilhassem de um mesmo conjunto de concepções. 421 Assim, segundo ela, eles submetem forçadamente narrativas destoantes à leitura que fazem, não dando lugar para “vozes reprimidas ou ignoradas”. Esse tipo de abordagem, segundo Exum, sempre pode ser desafiado por leituras de textos particulares (EXUM, 1992, p. 8). Há, portanto, uma clara diferença de pressupostos. Esse dado e também a discussão a respeito da definição de “trágico” são de grande importância para meu próprio estudo e serão evocados no decorrer do capítulo. Por ora, passo ao caso do primeiro rei dos hebreus. Logo de início, Exum enumera diferentes estudiosos que concordam quase unanimemente com o fato de que a ascensão e queda de Saul pode ser chamada de trágica. Segundo ela, a narrativa traz todos os ingredientes da tragédia, inclusive o principal, que ela aponta como sendo o paradoxo esquiliano da culpa humana e do deus malvado, que se realiza por meio de um papel ambivalente representado por parte da divindade (EXUM, 1992, p. 16). Em seguida, ela apresenta o método que seguirá. Tendo como objeto de leitura o texto tal qual se apresenta no cânone da Bíblia Hebraica, sem considerar qualquer questão relativa à formação do mesmo, ela o lê em contraposição à história de Sansão, a qual seria exemplo de uma visão clássica422, para evidenciar a visão trágica que se reflete nos diversos episódios 421 422 Kurzweil não somente realiza esse tipo de abordagem, como também a defende como a única pertinente, afirmando que fazer diferente é retirar a narrativa bíblica de seu contexto peculiar, que ele chama de “esfera sacra”. Julgo conveniente citar um trecho que revela a veemência do argumento do autor, que tem alguma semelhança com o que defenderei posteriormente neste estudo: “... somente um rechaço da verdade que é o fôlego de vida da narrativa bíblica faz possível a transformação de um personagem bíblico em um herói trágico. Dessacralização, em outras palavras, é a pedra angular da interpretação trágica. Contudo, a dessacralização de um texto sagrado é um ato ilegítimo e arbitrário, transformando realidade sagrada – o documento da fé sagrada – em 'ficção'”. [… only a rejection of the truth that is the life breath of Biblical narrative makes possible the transformation of a Biblical figure into a tragic hero. Dessacralization, in other words, is the cornerstone of tragic interpretation. However, the desacralization of a sacral text is an illegitimate, arbitrary act, turning sacral reality – the document of sacral faith – into 'fiction'.] (KURZWEIL, 1970, p. 339). Exum reconhece que alguns comentadores tendem a considerar trágica também a narrativa de Juízes a respeito de Sansão. De fato, Shimon Bakon, por exemplo, chega a asseverar que Sansão é uma clássica figura trágica, tanto quanto Saul. Ainda que faça a ressalva de que na tragédia bíblica, diferente do que ocorre na grega, o final infeliz tem suas causas perceptíveis por fraqueza do personagem (BAKON, 2007, p. 34). O que mais favorece a leitura de Bakon é a atenção que ele chama para os versículos 3 e 4 do capítulo 14. Sansão deseja casar-se com uma mulher filisteia. Seus pais não entendem por que ele não procura uma de seu povo. E a narrativa informa que eles não sabiam que aquilo vinha de YHWH ( ‫יא‬u‫ה ה‬z×‫ה‬q‫י‬o‫י מ‬u‫עו כ‬q z‫× לא י‬Ø ‫מ‬u‫א‬q× ×‫י‬u‫ ב‬q×), que estava a procurar pretexto para que houvesse inimizade para com os filisteus. A partir desse indício, Bakon percebe uma tensão na narrativa entre duas realidades paradoxais presentes na Bíblia hebraica: a Providência e a livre escolha. Contudo, embora essa questão possa surgir para o leitor em algum momento, ela passa completamente despercebida para o personagem. O próprio Shimon Bakon ressalta a ignorância de Sansão, inclusive com respeito a sua condição especial (BAKON, 2007, p. 39; cf. também EXUM, 1992, p. 42). Ele não tenta cumprir seu destino anunciado pelo anjo de 246 relatados a respeito de Saul. Enquanto na história de Sansão, narrada em Juízes, há uma definição clara entre vilões (os filisteus) e heróis (Sansão e os hebreus que ele defende), bons e maus, na de Saul os lugares são mais difíceis de se definir (EXUM, 1992, p. 19). A cena da morte de Sansão é marcada por uma forma de conciliação. YHWH volta a ouvir Sansão e lhe concede força para um último ato heroico. Inclusive em sua morte, Sansão cumpre o que lhe havia sido atribuído pela divindade em Juízes 13:5, e ele é devidamente sepultado por seus parentes em seguida. O contrário acontece a Saul. Ele morre sem oportunidade de conciliação. YHWH não é mais acessível. Sua morte havia sido anunciada por Samuel, quando este, já morto, foi conjurado a pedido do rei. E o fim é inexorável, sem qualquer nota de esperança ou harmonia. Enquanto o movimento experimentado por Sansão é de conciliação, no caso de Saul o que se percebe é o movimento trágico da ascensão, quando Saul é escolhido rei, à catástrofe, quando se mata, sem alternativa, e inclusive sem poder recorrer à divindade (EXUM, 1992, p. 21). A pesquisadora evoca, ainda, o âmbito das tragédias gregas. Ao referir-se à forma como Saul procura incessantemente saber, desfazer ambiguidades, receber uma resposta clara de YHWH, ela o compara a Édipo (EXUM, 1992, p. 23). Posteriormente, quando observa que o destino nefasto de Saul se estende também aos de sua família, ela compara o fato com o sucedido às casas de Atreu e de Cadmo (EXUM, 1992, p. 26). Essas comparações facilitam realmente a percepção daquilo que Exum procura demonstrar. Mas ela faz ainda outras observações importantes. Destaco em sua apreciação aquilo que me leva, de fato, a considerar plausível a aproximação entre a narrativa e o trágico: a insistente rejeição da divindade para com o rei, antecipada pela resistência à instauração da monarquia, em detrimento da teocracia então vigente, e marcada por uma ostensiva acusação das falhas morais de Saul, diferente do que ocorre com Sansão (EXUM, 1992, p. 35). YHWH a sua mãe antes de seu nascimento: começaria a livrar Israel das mãos dos filisteus. Mas, em geral, mata filisteus somente por questões pessoais. Inclusive em sua morte, quando parece cumprir de fato seu destino, em sua visão o que faz é vingar um de seus olhos furados. Sansão ignora, e em momento algum procura conhecer melhor o que lhe acontece, tampouco entra em um conflito em sua existência. Ele erra sucessivamente, desrespeitando as normas às quais estaria submetido. Nisso, como observa Exum, ele falha em algo que é fundamental para um herói trágico, ser respeitado pelo leitor/espectador (EXUM, 1992, p. 42). De fato, ele é, de alguma forma, nobre, mas, reiteradamente, tende a ser moralmente mau (aqui, obviamente, estou recorrendo à Poética de Aristóteles, por parecer útil nesse ponto). O texto não parece, então, procurar favorecer uma identificação do leitor com Sansão, o que seria necessário para a experiência de terror e piedade. Não há conflito no enredo nem na recepção, mas erro e repulsa, a não ser que se considerem versões reescritas da narrativa. Na narrativa da vida de Sansão que se apresenta na Bíblia, não há tragédia. 247 YHWH escolhe Saul, mas parece não estar disposto a perdoá-lo quando erra em seguida. Eleva-o à condição de rei, concedendo ao povo aquilo que é pedido contra sua vontade, mas, logo que o personagem erra, manda Samuel ungir outro, Davi, o rei sucessor conforme seu desejo. A partir desse ponto, Saul erra repetidas vezes, na tentativa de manter-se no lugar que lhe havia sido atribuído pela própria divindade. Saul se vê excluído estando dentro, rejeitado enquanto ainda é rei. Na tentativa de não perder o posto para Davi, ele luta contra a vontade de YHWH, que se torna uma divindade hostil, uma situação bem diferente daquela que se vislumbra no capítulo nono de Samuel I, quando um jovem Saul, belo, alto e despretensioso, se achega a Samuel, para buscar saber seu caminho de volta depois de uma busca infrutuosa por jumentas perdidas. Naquele momento, o futuro rei não podia imaginar que alguém que não conseguira ajuntar jumentas seria escolhido rei de todo um povo. E desconhecia que o caminho que buscava seria a mais insignificante das coisas em comparação com as que se seguiriam quando ele passaria a estar envolvido no projeto da divindade. Ora, Saul é transformado em outro homem por sua relação com a vontade da divindade (I Samuel 10:6). Mas isso não lhe impede de ir além da medida que lhe cabia como rei. Ele se vê em situação difícil. Ele deveria esperar a chegada de Samuel antes de ir à batalha. Samuel consultaria YHWH e indicaria o que haveria de ser feito. Saul espera, de início, mas ao ver o povo se dispersar, inquieta-se e oferece um sacrifício ele mesmo (I Samuel 13:9). Seu objetivo era agradar a YHWH e saber o caminho. Mas é nisso que, sem saber das consequências, desencadeia o fim anunciado por Samuel que chega logo quando Saul termina de cometer seu erro. Samuel fala do fim de Saul e já o faz saber que há um novo rei ungido a mando de YHWH. Realmente, há um acúmulo de similaridades entre essa narrativa e o tipo de enredo que reconhecemos como típico da tragédia, de modo que parece adequado caracterizála como trágica. Mas se o foco durante a leitura não for feito exclusivamente sobre o personagem em questão, se perceberá que sua queda coincide com a ascensão de Davi, o sucessor escolhido. Por isso, Exum tem o cuidado de chamar a narrativa de Saul de “tragédia amenizada” (tempered tragedy), justamente porque subjaz a expectativa de um reinado de prosperidade e êxito (EXUM, 1992, p. 16). Aqui reside uma questão que, a meu ver, pode ser importante na apreciação de outros textos da Bíblia hebraica. Talvez fosse possível não dizer simplesmente “tragédia amenizada”, mas algo como “inversão do alvo do trágico”. Diferente do que acontece nas tragédias gregas em geral, na narrativa de Saul e em outras narrativas 248 bíblicas, componentes de uma visão negativa ou até trágica diante da existência se apresentam no confronto de um personagem (ou conjunto de personagens) com outros que, de modo oposto, estão sob a proteção de Deus. Ou seja, se o foco da leitura é Davi, a narrativa não é trágica. Se considerado de modo amplo, o livro de Samuel, tal qual se apresenta no cânone, narra a inauguração da dinastia davídica, o rei que é um homem segundo o coração de Deus. Quem está fora dessa tendência parece estar realmente sujeito à condição trágica da existência. Mas essa presença do trágico só é percebida se a leitura se faz como através de um espelho, que parece inverter os lados, fazendo de um que não é o verdadeiro protagonista, ainda que seja provisoriamente rei, o herói trágico. O protagonista, o herói de uma outra história que se está a narrar está presente durante todo o tempo, mesmo que como mera expectativa ou subentendido de alguma maneira. Semelhantemente ao que Exum faz em sua leitura, uma contraposição entre uma narrativa de visão trágica e uma de visão clássica, o texto bíblico contrapõe seu real protagonista a outro. Certamente, esse tipo de leitura que inverte o foco revela detalhes valiosos, e pode ser realizado pelo isolamento de um personagem dentro da narrativa e pela apreciação do enredo a partir de seu ponto de vista. Terei oportunidade de voltar a essa consideração com outro exemplo. Agora, contudo, passo a outro personagem também abordado por Exum. 5.2.4 Jefté A história de Jefté é narrada de modo relativamente breve, ocupando não mais que três capítulos do livro de Juízes (10:6 – 12:7). Jefté é apresentado, de certo modo, como um personagem ambivalente logo de início (EXUM, 1992, p. 47). É guerreiro valente e filho de uma prostituta, motivo pelo qual é expulso do âmbito de sua família pelos irmãos, filhos legítimos de seu pai. Ele passa, então, a comandar um grupo de homens de comportamento moral suspeito. A liderança é dado positivo para um futuro juiz, mas o caráter dos liderados não leva o leitor à admiração. Os homens de Galaad, sua cidade de origem, só vão atrás dele quando se veem ameaçados pelos amonitas. Pedem que lhes ofereça ajuda. Haviam feito o mesmo com YHWH. Rejeitaram-no para, na situação desfavorável, recorrer a ele. Ambos, YHWH e Jefté respondem de modo semelhante, acusando a ironia da situação. Por fim, Jefté aceita se tornar chefe de todo o povo. Ele tenta resolver a querela com os amonitas por meios diplomáticos, 249 enviando mensagens, e colocando-se como representante de todo o povo, mas sem nunca deixar de evidenciar sua piedade para com YHWH, que ele menciona corriqueiramente em seus argumentos. Não obtém êxito. Prepara-se, então, para o combate. Antes de cruzar armas com os amonitas, contudo, em mais uma demonstração de piedade, faz um juramento a YHWH. Sobre esse juramento, Exum comenta: “O ápice de sua carreira, seu momento de maior glória, contém as sementes de sua tragédia”423 (EXUM, 1992, p. 49). O erro trágico de Jefté consiste justamente na enunciação do juramento, ou melhor, no conteúdo do juramento proferido, como quer Exum (EXUM, 1992, p. 50), ou, segundo penso, na escolha errada das palavras na formulação do mesmo. A pesquisadora ainda sugere que o texto poderia dar lugar a uma leitura que considerasse que o próprio espírito de YHWH teria feito Jefté jurar. Nisso, ela não me parece convincente, pois faltam evidências textuais. De qualquer modo, ela mesma indica que o conteúdo mesmo do juramento é o mais importante e deixa a questão em aberto. Cito, pois, o infeliz juramento de Jefté: ‫ י‬o‫ת‬q‫מדל‬u ‫א‬o‫צ‬o‫א אשר י‬o‫×צ‬Ø‫ה הי‬z‫י‬z‫ה‬q× ‫ י׃‬u z ‫בי‬q ‫×ן‬Ø‫י עמ‬o‫נ‬q‫ן את־ב‬o‫ת‬u‫×ן ת‬Ø ‫ת‬z‫ ם־נ‬u‫אמר א‬Ø‫ה ×י‬z×‫ ח נ ר ליה‬z‫ת‬q‫פ‬u ‫דר י‬u ‫×י‬ ‫ה׃ ף‬z‫×ל‬Ø ‫הו ע‬u‫ית‬u‫העל‬q× ‫ה‬z×‫ה ליה‬z ‫הי‬z ×q ‫×ן‬Ø‫י עמ‬o‫בנ‬q ‫מ‬u ‫ל×ם‬z‫ש‬q‫י ב‬u‫שוב‬q‫ י ב‬u‫ראת‬z ‫ק‬q ‫ל‬u ‫ י‬u‫ית‬o‫ב‬ E Jefté fez um voto a Iahweh: “Se entregares os amonitas nas minhas mãos, aquele que sair primeiro da porta da minha casa para vir ao meu encontro quando eu voltar são e salvo do combate contra os amonitas, esse pertencerá a Iahweh, e eu o oferecerei em holocausto. (BJ) E disse Jefté um voto a YHWH e falou: Se realmente entregares os filhos de Amon nas minhas mãos, acontecerá que o que quer que saia das portas da minha casa para me encontrar no meu retorno em paz de junto dos filhos de Adon será para YHWH, e o sacrificarei como holocausto. (minha tradução) Citei a tradução da Bíblia de Jerusalém além da minha porque as duas revelam interpretações diferentes que interferem de modo direto, a meu ver, na apreciação de uma possível tragicidade na narrativa. Diferente de Exum, que julga a discussão a respeito inútil (EXUM, 1992, p. 50), parece-me crucial considerar o que Jefté promete oferecer como sacrifício nessa frase que constitui o juramento. Se Jefté diz o que a tradução da BJ apresenta, ele está jurando que entregará em sacrifício um ser humano, ou, ao menos, está consciente dessa possibilidade, pois diz: “aquele que sair primeiro”. Mas o texto em hebraico, conforme procurei demonstrar por meio de minha tradução, não restringe o objeto como se tratando de uma pessoa. Ora, há uma grande diferença aqui. Se Jefté se dispõe a sacrificar um ser 423 Minha tradução de: The pinnacle of his career, his moment of greatest glory, contains the seeds of his tragedy. 250 humano, como diversas traduções indicam (assim como a BJ), sua “tragédia” se restringirá ao fato de que sua filha é que sai primeiro pela porta de casa, o que seria consideravelmente provável, sendo inclusive previsível para aquele que jura. Se, como traduzo a partir de minha compreensão do texto hebraico, o texto não restringe o objeto a um ser humano424, ele poderia proferir o mesmo voto imaginando (exatamente no sentido de criar imagem na mente) um sacrifício animal, mas errando ao não ser preciso na verbalização do imaginado. Seu voto não é espantoso, não é, em princípio, prenúncio de uma tragédia. Não. É um voto comum, mas impreciso. O erro está na falta de cuidado na escolha do termo na construção de um juramento piedoso. Aquele que jura estabelece um compromisso para com aquele a quem jura, submetendo-se às palavras juradas. Se ele fala sem consciência de todas as possibilidades futuras, dá lugar ao inesperado e cria a possibilidade da erupção do trágico, tendo culpa sem agir de caso pensado. Trata-se de uma culpa ambígua, que só se revelará quando a ele também se revelar a imprecisão das palavras, isto é, quando ele vir sua filha saindo e, associando a cena às palavras juradas, reconhecer o erro e sua consequência. Exum desconsidera essa questão, e observa somente que a gravidade do juramento está somente nas últimas duas palavras do hebraico, que revelam que esse oferecimento a YHWH não será, por exemplo, como o de Samuel por parte de Ana, mas na forma de um holocausto. Ora, o maior valor poético do juramento não está simplesmente em guardar a gravidade no último sintagma, mas sim em deixá-la prolongadamente velada pela ambiguidade. Ainda assim, a pesquisadora faz uma comparação que merece menção: Édipo não pretende matar seu pai e casar-se com sua mãe; ele o faz somente porque não conhece a identidade deles. Jefté não pretende sacrificar sua filha; ele profere seu voto sem saber a identidade “daquele que sair”. A experiência de ser apanhado em uma situação intolerável, em que alguém se encontra sem que tenha a intenção, ainda que de alguma maneira se seja responsável, levanta a noção trágica.425 (EXUM, 1992, p. 52) A consequência do juramento é o sacrifício da filha de Jefté. O texto ressalta que é a única filha de Jefté, que não tem nem outro filho nem outra filha. Exum destaca que isso faz 424 425 Robert Boling corrobora essa minha tradução, considerando que a não definição do objeto como pessoa contribui para a manutenção do suspense do texto. Ele acrescenta, ainda, a relevante informação de que as casas da Idade do Ferro pareciam acomodar de modo integrado os currais (BOLING, 2005, p. 208). Minha tradução de: Oedipus did not intend to kill his father and marry his mother; he does so only because he does not know their identity. Jephthah did not intend to sacrifice his daughter; he speaks his vow without knowing the identity of “the one coming forth.” The experience of being trapped in an intolerable situation for which one is unintentionally, yet still somehow responsible gives rise to tragic awareness. 251 como que o cumprimento do voto represente não somente a morte da filha, mas também o fim da posteridade de Jefté. Diante dessa situação, o juiz pranteia, rasga as vestes e conta à filha que havia feito um juramento a YHWH e que não poderia voltar atrás. Ela, por sua vez, não parece participar de um espetáculo trágico. Piedosa, menciona o fato de que YHWH havia feito o que se pedira, e não procura evadir-se do destino traçado pela imprecisão do juramento paterno. Apenas solicita um prazo para prantear sua virgindade, com suas amigas, pelos montes. Nada se diz sobre esse período. Quando retorna, seu pai “faz a ela o voto que tinha votado” (‫ר‬z z‫× אשר נ‬Ø ‫ ר‬q u‫) את־נ‬z‫)×יעש ל‬. Não há descrição da cena, referência ao estado emocional dos dois, e nem sequer aparece, nesse desfecho, qualquer termo referente a sacrifício ou morte. Apesar desse enredo, que talvez pudesse servir bem a uma tragédia, no sentido estrito, Exum entende que falta aos personagens (Jefté e sua filha) um desenvolvimento trágico, inclusive porque eles não insistem em lutar contra a fatalidade que lhes ocorre. Embora a pesquisadora reconheça que o juiz faz referência, no episódio que segue à morte de sua filha, à experiência nefasta que experimentara, ela não percebe, no texto, qualquer julgamento negativo a respeito do ato que ele realizara (EXUM, 1992, p. 52-59). A dimensão trágica nessa narrativa residiria, então, no silêncio de YHWH, que é muito referido por parte dos personagens, mas que não intervém de modo claro (EXUM, 1992, p. 59). Inclusive, não impede o sacrifício da filha de Jefté, diferentemente do que fizera no caso de Abraão e Isaac. Assim como na leitura do juramento, também na apreciação do desenvolvimento pós-sacrifício parece-me que Exum subestimou certos elementos do texto que podem aproximar de modo ainda mais contundente a narrativa de Jefté de uma visão trágica. A falta de um desenvolvimento trágico talvez se deva justamente à brevidade do texto, que não explicita muitas das consequências, embora talvez esteja tecido de forma a deixar algumas indicações implicadas. Lippman Bodoff lança luz sobre alguns pontos em um pequeno artigo intitulado The tragedy of Jephthah [A tragédia de Jefté]. Sua abordagem é muito diferente daquela desenvolvida por Exum. Ele parte da leitura de um Midrash a respeito de Jefté. O Midrash, segundo ele, condena explicitamente todos os envolvidos na narrativa e inclusive os que não aparecem nela. Jefté, o sumo sacerdote e os israelitas em geral são acusados de não cancelarem o juramento absurdo. Além disso, no Midrash, Deus aparece à filha de Jefté e condena a incompetência dos sábios que não são capazes de reverter a situação. Ele deixa claro que não haveria qualquer valor religioso no sacrifício. A filha, por sua vez, tem suas 252 inquietações interiores reveladas. Mas esse acréscimo da tragicidade não é o que mais me importa, uma vez que o texto que me ocupa é especificamente o que está na Bíblia hebraica. O mais importante no artigo de Bodoff, então, está na tentativa que faz de responder à seguinte pergunta: “A condenação midrashica de Jefté é completamente desprovida de base textual?” (BODOFF, 2000, p. 253). Voltando ao texto bíblico, Bodoff chama a atenção para a diferença de comportamento de Jefté, antes e depois do sacrifício de sua filha, diante das ameaças de conflito armado. Antes, ele procura ser diplomático e evitar ao máximo a guerra com um povo estrangeiro. Depois, ele não hesita em levantar seu exército contra outros hebreus, os da tribo de Efraim, e mata dezenas de milhares deles. Jefté estaria moralmente embrutecido depois da morte de sua filha (BODOFF, 2000, p. 253). De fato, não me parece que essa guerra interna seja apreciada positivamente no âmbito da Bíblia hebraica. Além disso, Bodoff atenta para um incômodo detalhe costumeiramente desconsiderado do texto massorético, ausente na LXX, e também resolvido nas demais traduções em geral. O texto hebraico diz que Jefté “foi sepultado nas cidades de Galaad” ( ‫ע‬z ‫ל‬q u‫רי ג‬zo ‫בע‬q ‫ר‬o‫ב‬z*u‫ ×י‬- Juízes 12:7).426 O Midrash, observa Bodoff, não toma esse detalhe como erro na escrita, mas como referência ao tipo de morte experimentado por Jefté. Os membros do juiz teriam se atrofiado e caído em lugares diferentes, sendo, portanto sepultados separadamente. O texto bíblico, lido juntamente com o Midrash, estaria portanto indicando que Jefté morreu de lepra, uma comum punição divina para transgressões morais cometidas por fala inapropriada, como, por exemplo, conforme Bodoff acrescenta em nota, no caso de Maria, no livro de Êxodo (BODOFF, 2000, p. 254). O detalhe linguístico é mínimo, de fato. É justamente a partir dos detalhes do texto bíblico que os midrashim se escrevem. Resta saber se, hoje ainda, estaremos dispostos a realizar uma leitura da narrativa baseando-nos em uma simples desinência nominal. Tendo a responder positivamente, pois meu interesse é literário. E o literário acontece também nos detalhes pouco perceptíveis, sobretudo em textos sucintos como o bíblico. Ademais, essa possível referência a uma morte nefasta não destoa dos sete versos do capítulo 12 de Juízes, que não trazem nenhuma apreciação positiva de Jefté. Inclusive, sua morte não é especialmente lembrada pela posteridade, como é, segundo o texto, a de sua filha vitimada. No caso de Jefté eu diria, pois, que, lida isoladamente, a narrativa parece, de fato, 426 A LXX diz ἐτάφη ἐν τῇ πόλει αὐτοῦ Γαλααδ, “foi sepultado na cidade dele, Galaad”. Muitas traduções em línguas modernas acrescentam a expressão em itálico que apresento a seguir ou alguma semelhante: “foi sepultado em uma das cidades de Galaad”. 253 apresentar algo caracterizável como trágico. Alguns elementos do texto podem favorecer essa leitura. Se não há verdadeiro trágico, ao menos há algo quase trágico, ou uma construção textual que favoreceria o desenvolvimento do trágico a partir de seus detalhes. E o afirmo talvez mais convencido que Exum. Não obstante, duas questões permanecem: Devo ler essa narrativa isolada do cânone? Não será justamente a quase ausência da divindade, uma exceção nas narrativas bíblicas, motivada por algo que não se discerne facilmente, o que viabiliza a aproximação com o trágico? A meu ver, esta última pergunta pode ser minimamente respondida nestes termos: a incômoda ausência da divindade nessa narrativa possibilita uma incômoda presença (provisória, talvez) de algo que se pode chamar de trágico; mas o incômodo aponta para o caráter extraordinário do fenômeno e faz suspeitar da leitura, e suspeitar da ausência da divindade. Tentarei alguma resposta para a primeira pergunta (e, de alguma forma, também para a segunda) a seguir, mas, para tanto, acrescento outro personagem. 5.2.5 Amã Com uma breve leitura da trama em que Amã se vê envolvido no livro de Ester, o que pretendo é evidenciar, pela observação dos limites de uma possível apreciação do trágico na narrativa, alguns pontos que, segundo penso, devem ser considerados quando se tenta responder às questões levantadas durante a discussão a respeito dos outros personagens bíblicos. Amã, filho de Amadates, foi exaltado pelo rei Assuero, sendo estabelecido acima de todos os demais oficiais. Assim, todos os servos do rei se prostravam quando passava por diante. Um, porém, chamado Mardoqueu, se recusava. Amã se enfureceu. Mas não se conteve em vingar-se somente de Mardoqueu. Quis estender a destruição que planejava a todo o povo daquele que resistia em prestar-lhe a devida honra, os judeus. Amã, nosso potencial herói trágico, expõe ao rei o fato de que a peculiar relação dos judeus com uma lei própria e estranha a todas as demais impede que eles se acomodem calmamente no império, em que se encontram espalhados. O rei assente e entrega seu anel a Amã. Agora, além da honra, ele tem o poder para ordenar o que lhe convém a respeito dos judeus, que odeia. Ele ordena que em um dia específico, escolhido por sorte, os judeus de todo o território do império sejam atacados e mortos, desde os mais velhos até os mais novos. Publica-se a ordem nos quatro cantos. Quando Mardoqueu fica sabendo disso, entra em contato com a rainha, de quem era 254 parente, para que ela interviesse no assunto. Ela logo coloca um plano em ação. Agrada o rei e o convida, juntamente com Amã, para um banquete. Nada diz a respeito durante essa refeição. Mas os convida para uma próxima vez. Mas algumas coisas acontecem a Amã antes desse segundo encontro com o rei e a rainha. Ele volta do primeiro banquete satisfeito. Mas, ainda no caminho para casa, tem o desgosto de ver Mardoqueu novamente permanecer quieto diante de sua passagem. Conta a sua mulher e amigos a respeito de tudo de bom que lhe vinha acontecendo, mas confidencia que tudo isso não apagava o desgosto que sentia diante da falta de respeito de Mardoqueu. Eles sugerem prontamente que Amã mande preparar uma alta forca e que peça ao rei, no dia seguinte, que Mardoqueu seja executado nela antes mesmo do banquete seguinte, para que possa desfrutar já completamente satisfeito do evento. Assim faria. De manhã bem cedo foi encontrar-se com o soberano. Não sabia, contudo, do que tinha ocorrido no quarto do rei durante a noite. O governante padeceu de insônia e pediu o livro das crônicas do reino para ler. Lendo, atentou para o fato de que um certo Mardoqueu o havia salvado de um atentado, mas que não tinha sido devidamente recompensado por isso. Quando estava falando com seus serviçais sobre esse assunto, chega Amã, disposto a pedir a morte do judeu insolente. O rei, contudo, começa a falar antes que ele possa se manifestar. Assuero quer saber como honrar uma pessoa. Amã, imediatamente, julga que é a ele mesmo que o governante quer honrar. Por isso, põe toda sua criatividade em ação para descrever tudo o que desejava como honraria pública. O rei diz em seguida que se faça exatamente como ele descrevera com Mardoqueu. Volta, pois, Amã aos seus amigos e mulher, depois de honrar o inimigo, e lhes conta o ocorrido. Eles comunicam um augúrio nefasto: ‫רע‬.u‫ם מ‬u‫× א‬Ø‫ת‬q‫ש‬u‫זרש א‬q× ×‫י‬z‫מ‬z‫רו ל× חכ‬q‫אמ‬Ø‫רהו ×י‬z ‫ק‬z ‫ל־אשר‬z‫ת כ‬o‫י× א‬z‫הב‬Ø ‫ל־א‬z‫לכ‬q ‫× ו‬Ø‫ת‬q‫ש‬u‫זרש א‬q‫ן ל‬z‫מ‬z‫ר ה‬o‫ספ‬q ‫×י‬ ‫י×׃‬z‫נ‬z‫פ‬q‫×ל ל‬Ø‫פ‬u‫×ל ת‬Ø‫פ‬z‫י־נ‬u‫י× לא־תוכל ל× כ‬z‫נ‬z‫פ‬q‫ל ל‬Ø ‫פ‬q‫לנ‬u z‫ל×ת‬u‫כי אשר הח‬/‫ד‬q‫ר‬z‫ ים מ‬u ‫הו‬q ‫הי‬ Amã relatou a Zares, sua mulher, e a todos seus amigos tudo que lhe sucedera. E lhe disseram os seus sábios e Zares, sua mulher: 'Se é descendência dos judeus esse Mardoqueu que começou a cair diante de ti, não poderás com ele, pois sem dúvida cairás diante dele.427 (Ester 6:13) Amã não tem tempo para refletir sobre o destino previsto pelos interlocutores. Chega o momento de ir ao banquete com o rei e a rainha. Ali, a rainha, a quem o rei oferecera a realização de um pedido, qualquer que fosse, revela que pertence ao povo que seria destruído e pede que ela e os seus tenham o direito de viver. O rei, que não sabe até então que ela é judia, pergunta quem ameaçava assim a seu povo. Ela diz que é Amã. O rei sai furioso. 427 A versão grega, explicitando o motivo da especificidade do povo judeu, acrescenta: ὅτι θεὸς ζῶν μετ’ αὐτοῦ - “porque o Deus vivente está com ele”. 255 Amã assume o lugar do suplicante, prostra-se sobre o divã da rainha implorando que ela intervenha com misericórdia para salvá-lo de um destino fatal. Tentando se salvar, ele erra, pois o rei volta e pensa que ele está tentando violentar a rainha de modo vergonhoso e descarado. Amã teria que ser executado. E um eunuco sugere que, para tanto, se utilize a própria forca que o infeliz havia preparado para Mardoqueu. Assim se faz. Esta é uma considerável parte da narrativa do livro de Ester recontada com o foco em Amã. Ele age sem saber bem o que enfrenta. Coincidências inesperadas transformam sua glória e vingança esperadas em vergonha para si mesmo. É avisado do destino que o espera, mas tarde demais. Tenta se salvar, mas só erra mais e se condena de modo inexorável. Lida assim, desse ponto de vista, a história possibilita uma fácil aproximação com o trágico. Mas, para lê-la assim é preciso inverter o foco. O personagem principal (quer seja Ester, Mardoqueu ou o povo judeu que eles representam) não experimenta uma tragédia, ainda que, em alguns momentos, sofra sérios problemas e a ruína pareça iminente. Na narrativa, conforme texto hebraico (TM), inclusive, a divindade não se apresenta. Não há menção a YHWH no texto em momento algum. Assim como Ester, seguindo ordem de Mardoqueu, oculta sua origem étnica (o que é necessário para que Amã aja desconhecendo a presença de uma judia na corte), o texto oculta YHWH. Mesmo no momento de desespero, quando Ester se recusava a ajudar, Mardoqueu não se refere à divindade de modo explícito. Mas suas palavras parecem deixar pistas do que se esconde: ‫יך‬u‫ית־ ב‬o‫ וב‬q‫את‬q× ‫ר‬o‫×ם אח‬Ø ‫ק‬z‫מ‬u‫ ים מ‬u ‫הו‬q ‫× לי‬Ø ‫ה יעמ‬z‫צל‬z ‫ה‬q× ‫את ר×ח‬Ø.‫ת ה‬o‫ע‬z‫י ב‬u‫חריש‬ u ‫ש ת‬o‫ם־החר‬u‫י א‬u‫כ‬ ‫כות׃‬q‫ למל‬q‫עת‬4u‫את ה‬Ø ‫ז‬z‫ת כ‬o‫ע‬q‫ם־ל‬u‫ע א‬o ×Ø‫י י‬u‫ ו ומ‬o‫אב‬Ø‫ת‬ Pois se de fato te mantiveres calada nesta oportunidade, alívio e livramento se levantarão de outro lugar para os judeus, mas tu e a casa de teu pai perecereis. E quem sabe para este momento alcançaste a realeza? (Ester 4:14) A esperança de socorro, que ao longo da Bíblia hebraica, é dirigida ao Deus (cf., por exemplo, Sl 121:1-2 ou Jr 14:8), também aqui se mostra, mas de modo discreto, velado. O socorro428 haveria de vir de “outro lugar” (‫ר‬o‫×ם אח‬Ø ‫מק‬z ‫מ‬u – mimakom 'akher). Mardoqueu ainda sugere em uma pergunta que Ester pode ter alcançado a posição que tinha alcançado antes 428 Esse socorro é expresso, no texto, por duas palavras em hebraico, ‫ה‬z‫צל‬z ‫ה‬q× ‫ – ר×ח‬rewakh wehatsalah, que traduzi por “alívio e livramento”. ‫ ר×ח‬- rewakh tem um sentido ligado à noção de espaço, intervalo, donde se tem a ideia de “respiro”, “trégua”. Essa ideia é completamente oposta à situação do herói trágico, que se vê fechado e cada vez mais oprimido em um mundo que lhe é hostil e sem saída. Ester só poderia ser personagem de uma tragédia se se recusasse a reconhecer o socorro ensinado por Mardoqueu e insistisse em não ver a saída. Mas a transmissão do conhecimento é bem sucedida. Então, ela não se debate contra o transcendente, mas se alinha com seu plano. 256 com vistas à situação presente, considerando a possibilidade de uma relação causal por detrás dos acontecimentos. Mas essa relação causal, ou a origem dela, não é indicada, mas fica oculta. E, pode-se pensar, o jogo de revelação e ocultamento permeia o livro de Ester de diferentes maneiras. No próprio início, o que proporciona a entrada de Ester no palácio é justamente uma tensão entre o desejo de Assuero de mostrar a rainha Vasti e a decisão desta de se ocultar (Ester 1:9ss). Ora, o fato de YHWH não ser apresentado, não indica necessariamente sua ausência. Ele pode estar como subentendido na trama e na leitura que se faz do livro.429 Ester serve como exemplo de que o contexto do livro, não necessariamente no cânone da Bíblia, mas no meio cultural judaico antigo, torna quase inevitável que se completem informações não dadas de modo pleno em uma mínima coerência com o pensamento religioso judaico contemporâneo, difundido e explicitado em outros textos. Se o governante humano, Assuero, não oferece a todos sua presença, restringindo a visita de pessoas não convocadas, ameaçando intrusos de morte, o texto parece não julgar pertinente impor a presença vocabular de um Governante consensualmente entendido, que não se precisa mencionar. Não se precisa, mas sua presença é tão facilmente suposta (tanto pela própria trama quanto pela crença compartilhada pelo povo que está implicado na narrativa), que foi explicitada na tradução grega do texto por meio de trechos acrescidos como pseudo-traduções. Os acréscimos evidenciam a presença da divindade de modo claro desde o início da narrativa grega de Ester. O texto se inicia por um sonho apocalíptico de Mardoqueu que antecipa o desenrolar da trama, e que, como fechamento de um círculo, recebe a interpretação no último capítulo. Além disso, se no texto hebraico se diz somente que se fazem jejuns (4:16), em grego, grandes orações são apresentadas. As orações de Mardoqueu e Ester ao Senhor (Κύριος) também definem a quem eles recorrem, e quem age por traz dos acontecimentos. Assim, o responsável430 pelos acréscimos gregos instaura a presença de YHWH e 429 430 Poder-se-ia pensar, inclusive, que o texto mimetiza nas palavras a invisibilidade da atuação da divindade na realidade. Ou seja, o texto faz considerar a presença sem explicitá-la, como convidando os leitores a perceberem-na, ainda que invisível, não só na narrativa, mas também na realidade. Certamente, ao dizer “o responsável” e “acréscimos”, realizo um grande simplificação do fenômeno para benefício de meu texto (seguindo a hipótese mais simples: um texto hebraico semelhante ao que temos foi trabalhado por um tradutor e um responsável por trechos acrescidos e resultou no texto grego). Reconheço que a questão das origens dos acréscimos, que não devem ser tratados necessariamente como oriundos de uma única fonte, gera grandes discussões e pouco 257 impossibilita de modo mais definitivo uma leitura do texto como contendo elementos trágicos do ponto de vista dos personagens principais. Essa presença que ele verbaliza e, assim, explicita, contudo, está implícita no texto hebraico se a leitura deste é feita tendo em consideração seu contexto cultural. O texto grego, a meu ver, explica o que se implica no texto hebraico. Mas vai além em diversos detalhes. E aqui reside algo notável. Alguns dos acréscimos gregos parecem constituir a trama de um modo que poderia ser comparado ao das tragédias gregas, ou desenvolver cenas breves do texto hebraico de uma maneira cara à arte dramática helênica. O sonho divinatório no início da narrativa tem caráter mais ou menos enigmático, e poderia, portanto, servir como uma forma de prenunciar de modo confuso os acontecimentos nos quais o personagem se debateria em seguida, sem bem entender a mensagem e, portanto, o funcionamento das coisas.431 Afinal, ele mantém o sonho no coração e se esforça para tentar interpretá-lo, mas a explicação completa só virá depois dos acontecimentos todos. Já o comportamento não-verbal de Ester, explicitado em 4:17k (LXX), antes de sua oração, introduz um componente visual ausente no texto hebraico, o qual poderia fornecer, em princípio, uma visualização que favoreceria a comparação com cenas de tragédias gregas, mas que é também semelhante a outras cenas de súplica ou luto da Bíblia hebraica.432 Visualmente, também, o acréscimo que abre o quinto capítulo, narrando a arriscada entrada de Ester à sala do rei, constrói uma cena que indica o seu esforço em parecer agradável aos olhos do rei, sua aflição interna, o olhar poderoso do rei e seus desmaios. 433 431 432 433 consenso (cf. JOBES, 1995; MARTIN, 1975). Até mesmo o fato de serem “acréscimos” esses trechos que aparecem no grego mas não no TM é alvo de discussões. Charles Torrey afirma categoricamente, após diversas observações linguísticas, que a versão mais antiga do livro teria sido escrita em aramaico. Desta, a versão grega de que dispomos seria uma tradução, e o texto hebraico, uma tradução abreviada (TORREY, 1944). Essa e outras propostas, embora importantes, não influenciam diretamente a argumentação que desenvolvo aqui, por isso não a desenvolvo. Em princípio, essa funcionalidade do sonho poderia favorecer uma comparação com sonhos encontrados nas tragédias gregas, como nos Persas de Ésquilo, em que o sonho de Atossa também tem esse caráter alegórico antecipativo, seguindo, ao que parece, uma tradição já registrada no sonho de Penélope com os gansos, na Odisseia (MESSER, 1918, p. 64; a leitura de George Devereux para o referido sonho direciona a outra interpretação, mas não me parece de todo convincente se considerado o texto da tragédia em si e em sua dinâmica com a tradição, cf. DEVEREUX, 1976, p. 1-20). Não obstante, é preciso observar que os sonhos de José têm uma funcionalidade semelhante na narrativa de Gênesis. Entre outros muitos exemplos possíveis, considerem-se os seguintes: I Reis 21:27; Esdras 9:3; Lamentações 2:10. Erich Gruen se mostra convencido de que esta cena é construída com vistas a um ironia sardônica. 258 Enquanto no texto hebraico tudo se resolve com um só gesto (o rei estende o cetro e, com isso somente, se indica que ele a recebe em paz), na versão grega tudo se narra com vistas à exposição do conflito interior e construção de uma cena, com imagens em ação, coerente com aquele. Esse acréscimo de Ester é um texto misto, uma mistura de narração com falas dos personagens, mas, assim como os textos dramáticos (não necessariamente criados para o palco), possibilita uma aproximação com o teatro observada por Helmut Utzschneider em sua pesquisa a respeito do gênero dramático: Textos dramáticos e teatro estão intimamente conectados. […] textos dramáticos em si mesmos são teatrais no sentido da palavra grega ϑεάομαι, que significa “olhar para, contemplar”. Textos dramáticos são inerentemente (audio)-visuais sem serem colocados no palco. Qual a aparência do falante ou de seu interlocutor? Como estão vestidos? Como é sua expressão facial? Em que ambiente eles se movem? Que sons acompanham a performance dos atores? Respondendo implicitamente essas questões, os textos são, eles mesmos, “sinestéticos”.434 (UTZSCHNEIDER, 2010, p. 69). Mas se todo esse imaginário colocado em palavras favoreceria inclusive uma eventual encenação do texto, outro dado no mesmo trecho o afasta do universo da tragédia grega. Para evidenciar tanto uma coisa quanto a outra, faço uma longa citação da passagem: Καὶ ἐγενήθη ἐν τῇ ἡμέρᾳ τῇ τρίτῃ, ὡς ἐπαύσατο προσευχομένη, ἐξεδύσατο τὰ ἱμάτια τῆς θεραπείας καὶ περιεβάλετο τὴν δόξαν αὐτῆς καὶ γενηθεῖσα ἐπιφανὴς ἐπικαλεσαμένη τὸν πάντων ἐπόπτην θεὸν καὶ σωτῆρα παρέλαβεν 434 Os seguidos desfalecimentos da rainha, bem como o diálogo que se desenrola com o rei revelariam falta de sinceridade de Ester, o que teria sido antecipado por uma certa hipocrisia percebida em sua prece. O interpolador helenístico, segundo Gruen, teria diminuído a honra de Ester ao expandir assim a narrativa (GRUEN, 1998, p. 185). O resultado seria uma narrativa permeada por um humor negro ausente no texto hebraico, que seria estritamente sério (GRUEN, 1998, p. 186). Não me convence plenamente essa leitura. Alguns elementos, a meu ver, podem ser bem interpretados de outra maneira. Embora, no acréscimo em questão, Ester possa parecer destoar de sua fala determinada no TM (4:16), em que se mostrava disposta a intervir ainda que isso a levasse à morte, os desmaios que sofre, por exemplo, não estão em desacordo com a condição física que se poderia supor a partir do próprio TM, pois ela, assim como os outros judeus, se dedica a jejuar por três dias. Não é, pois, necessariamente fora do normal (do prosseguimento previsível e sério) que ela tenha que se apoiar nas servas e que desfaleça em alguns momentos, conforme se verifica na longa citação que faço a seguir. Não obstante, ainda que o pesquisador esteja correto em sua apreciação do acréscimo, o que se evidencia nessa suposta falta de sinceridade de Ester é justamente sua capacidade de interpretar de acordo com seus objetivos, o que não prejudica minha reflexão, talvez inclusive a favoreça como possibilidade. Ou o responsável pelo acréscimo coloca os personagens como em uma cena, ou, mais ainda, destaca um personagem para ser atriz de uma cena que ela constrói intencionalmente. Seja como for, a teatralidade da narrativa se evidencia claramente. Minha tradução de: Dramatic texts and theater are closely connected. […] dramatic texts in themselves are theatrical in the sense of the Greek word ϑεάομαι, which means 'to look at, to behold'. Dramatic texts are inherently (audio-)visual without being staged. What do the speaking or addressed persons look like? How are they dressed? What is their facial expression? In which environmment do they move? Which noises accompany the performance of the actors? By implicitly answering these questions, the texts themselves are “synaesthetic”. 259 τὰς δύο ἅβρας καὶ τῇ μὲν μιᾷ ἐπηρείδετο ὡς τρυφερευομένη, ἡ δὲ ἑτέρα ἐπηκολούθει κουφίζουσα τὴν ἔνδυσιν αὐτῆς, καὶ αὐτὴ ἐρυθριῶσα ἀκμῇ κάλλους αὐτῆς, καὶ τὸ πρόσωπον αὐτῆς ἱλαρὸν ὡς προσφιλές, ἡ δὲ καρδία αὐτῆς ἀπεστενωμένη ἀπὸ τοῦ φόβου. Καὶ εἰσελθοῦσα πάσας τὰς θύρας κατέστη ἐνώπιον τοῦ βασιλέως, καὶ αὐτὸς ἐκάθητο ἐπὶ τοῦ θρόνου τῆς βασιλείας αὐτοῦ καὶ πᾶσαν στολὴν τῆς ἐπιφανείας αὐτοῦ ἐνεδεδύκει, ὅλος διὰ χρυσοῦ καὶ λίθων πολυτελῶν, καὶ ἦν φοβερὸς σφόδρα. καὶ ἄρας τὸ πρόσωπον αὐτοῦ πεπυρωμένον δόξῃ ἐν ἀκμῇ θυμοῦ ἔβλεψεν, καὶ ἔπεσεν ἡ βασίλισσα καὶ μετέβαλεν τὸ χρῶμα αὐτῆς ἐν ἐκλύσει καὶ κατεπέκυψεν ἐπὶ τὴν κεφαλὴν τῆς ἅβρας τῆς προπορευομένης. καὶ μετέβαλεν ὁ θεὸς τὸ πνεῦμα τοῦ βασιλέως εἰς πραύτητα, καὶ ἀγωνιάσας ἀνεπήδησεν ἀπὸ τοῦ θρόνου αὐτοῦ καὶ ἀνέλαβεν αὐτὴν ἐπὶ τὰς ἀγκάλας αὐτοῦ, μέχρις οὗ κατέστη, καὶ παρεκάλει αὐτὴν λόγοις εἰρηνικοῖς καὶ εἶπεν αὐτῇ Τί ἐστιν, Εσθηρ; ἐγὼ ὁ ἀδελφός σου, θάρσει, οὐ μὴ ἀποθάνῃς, ὅτι κοινὸν τὸ πρόσταγμα ἡμῶν ἐστιν· πρόσελθε. καὶ ἄρας τὴν χρυσῆν ῥάβδον ἐπέθηκεν ἐπὶ τὸν τράχηλον αὐτῆς καὶ ἠσπάσατο αὐτὴν καὶ εἶπεν Λάλησόν μοι. καὶ εἶπεν αὐτῷ Εἶδόν σε, κύριε, ὡς ἄγγελον θεοῦ, καὶ ἐταράχθη ἡ καρδία μου ἀπὸ φόβου τῆς δόξης σου· ὅτι θαυμαστὸς εἶ, κύριε, καὶ τὸ πρόσωπόν σου χαρίτων μεστόν. ἐν δὲ τῷ διαλέγεσθαι αὐτὴν ἔπεσεν ἀπὸ ἐκλύσεως αὐτῆς, καὶ ὁ βασιλεὺς ἐταράσσετο, καὶ πᾶσα ἡ θεραπεία αὐτοῦ παρεκάλει αὐτήν. E aconteceu que no terceiro dia, quando parou de orar, ela desvestiu-se do manto de súplica e cingiu-se com sua glória. E, tendo se tornado resplandecente, clamou ao Deus supervisor de tudo e salvador . Tomou suas duas servas favoritas. Sobre a primeira se apoiou, como tendo grande cuidado. A outra a acompanhava erguendo seu vestido. E ela corava no auge de sua beleza, com seu rosto alegre como de satisfação, mas seu coração angustiado pelo temor. E, tendo adentrado por todas as portas, colocou-se de frente para o rei. Ele estava assentado no trono de seu reino e vestido com toda vestimenta e paramentos das aparições dele, repleto de ouro e pedras preciosas. Era muito terrível! E tendo erguido seu rosto flamejante de glória, no auge da cólera, olhou. E a rainha caiu, e mudou sua cor em um desfalecimento, e encurvou sua cabeça sobre a serva que ia adiante. E Deus mudou o espírito do rei direcionando-o à mansidão. Ele ansiosamente saltou de seu trono e a tomou em seus braços até que se recuperasse. E a chamava com palavras pacíficas, e disse: “O que há, Ester? Sou teu irmão. Tem coragem, de modo algum morrerás, porque nossa ordenança é comum435. Aproxima-te!” E tendo levantado seu cetro de ouro, o colocou sobre o pescoço dela, saudou-a e disse: “Fala comigo!” E ela lhe disse: “Eu te vi, senhor, como um anjo de Deus, e se agitou meu coração por temor de tua glória. Porque és maravilhoso, senhor, e tua face é cheia de graças.” E enquanto ela estava a conversar, caiu por seu desfalecimento. O rei se perturbou, e todo o grupo que cuidava dele a chamava. (Ester 5:1ss) O mesmo trecho que constrói toda uma cena a partir de uma passagem sucinta do texto hebraico, descrevendo reações físicas de modo detalhado, também é insistente em inserir Deus explicitamente na narrativa. Inclusive, apresenta esse Deus como “supervisor de 435 Não me decido entre duas interpretações que difeririam a tradução: Nossa ordenança é comum, no sentido de que é aplicada aos comuns e não aos membros da realeza, ou é comum no sentido de ser compartilhada pelos dois a autoridade da ordem e não a subserviência à mesma? 260 tudo e salvador”, uma caracterização que deixa óbvio o papel dele no funcionamento dos acontecimentos narrados.436 O que era suspeita, indicação velada, na fala de Mardoqueu no texto hebraico, aqui se revela claramente pela caracterização do Deus e por sua ação seguinte. Ele muda a inclinação do coração do rei, intervindo de modo a direcionar o curso das coisas. E esse Deus ao qual se clama, que tudo observa e que intervém, impede que os personagens principais se vejam sem saída, lutando contra um mundo sem lógica e sem recursos. Se, por um lado, a capacidade de conhecimento de Mardoqueu e Ester não é plena, se desconhecem o funcionamento das coisas, apenas suspeitando de algo, por outro lado, eles contam com a saída de recorrer ao Deus que tudo sabe. E mesmo no texto hebraico, que não revela a ação do Deus, Mardoqueu mostra uma esperança. Só há algo (parecido com o) trágico no livro de Ester do outro lado da narrativa justamente porque esse outro lado (como um leitor desavisado) ignora a presença velada, na narrativa, do Deus (não mencionado, mas subentendido) que governa os acontecimentos que atravessam a história do povo judeu. 5.2.6 Considerações finais sobre o trágico e a Bíblia É possível ler o texto de Ester desconsiderando a religiosidade que o emoldura pelo fato de que a divindade é textualmente excluída? É possível ler uma narrativa bíblica fora desse mesmo contexto discursivo, separando-a do cânone (ou do contexto cultural que faz do cânone uma narrativa)? Certamente, leituras assim são possíveis e praticadas com frequência. E não é raro que realcem detalhes intrigantes do texto, despercebidos em leituras que suprem lacunas automaticamente sem dar devida atenção à configuração real do escrito em suas minúcias. Mas, também, é muito razoável e pertinente ler as narrativas considerando o sistema de sentido no qual vieram a coexistir e, sobretudo, puderam persistir em existência. Isso não significa necessariamente que se deva impor uma suposta uniformidade do significado comunicado em detrimento do texto que o comunica. Mas, inclusive, eventuais variações e ênfases diferentes podem ser melhor entendidas se pensadas a partir da relação que uma narrativa estabelece com os textos e o universo cultural com os quais dialoga. É 436 Esse papel e essa capacidade da divindade são explicitados de modo ainda mais óbvio no início da prece de Mardoqueu: “Senhor, Senhor, rei que tem poder sobre todas as coisas, porque tudo está sob tua autoridade, e não há o que se oponha a ti em teu querer salvar a Israel” (Κύριε κύριε βασιλεῦ πάντων κρατῶν, ὅτι ἐν ἐξουσίᾳ σου τὸ πᾶν ἐστιν, καὶ οὐκ ἔστιν ὁ ἀντιδοξῶν σοι ἐν τῷ θέλειν σε σῶσαι τὸν Ισραηλ· Ester 4:17b) O pensamento está em consonância com o sugerido discretamente pela antes citada fala de Mardoqueu no texto em hebraico (Ester 4:14). 261 preciso reconhecer que a mesma história dinâmica da escrita e leitura dos textos, que os ajuntou em um cânone, tende a conservá-los fora da esfera do trágico.437 Muitas narrativas da Bíblia Hebraica podem ser caracterizadas como trágicas por alguns leitores. Além das leituras apresentadas acima a respeito dos personagens mencionados (Moisés, Jó, Saul, Sansão, Jefté e Amã), outros já foram tidos como trágicos, como por exemplo Jeremias (BAKON, 1991) ou Davi (COHEN, H. H., 1965). Não obstante, se há o cuidado de se restringir a noção de “trágico”, respeitando-se minimamente o que informa sua manifestação no contexto ático438, e se há uma disposição para se ler o texto bíblico como parte de uma história cultural e discursiva específica, é mais difícil afirmar a presença do trágico na Bíblia. O caso de Jefté, por exemplo, que considerei ao longo destas páginas como o que pode ser aproximado ao trágico de modo mais convincente, muda de sentido quando se considera o quadro maior de sua inscrição: Não há tragédia na Bíblia. Isso não é o mesmo que dizer que não há 437 438 Entre o risco da redundância e o da incompreensão, prefiro o primeiro. Portanto, tento deixar a proposta desse parágrafo mais clara com esta nota. Não estou negando que as várias narrativas da Bíblia Hebraica tenham surgido em momentos diferentes, que possam apresentar concepções teológicas e cosmológicas diversas, ou que apresentem qualquer polifonia interna. Estou marcando que, para a presente leitura, que se interessa por um autor judeu do século I, a Bíblia hebraica deve prioritariamente ser lida como Bíblia judaica (em um sentido específico que passo a explicar). Ela está atrelada a uma concepção específica que difere da mais difundida atualmente, que possivelmente me levaria a uma leitura fragmentar do Livro. O fato de a Bíblia que estudo ser judaica (porque o autor que me interessa imediatamente é religioso judeu) faz com que ela seja outro livro, diferente, por exemplo, da Bíblia cristã ou da Bíblia hebraica dos leitores acadêmicos em geral, ainda que tivesse os mesmos livros, na mesma ordem, com as mesmas palavras, porque o fato de ser judaica confere aos diversos textos ali apresentados uma sintaxe – perceba que uso o termo em sentido amplo e diferente do meramente gramatical - específica que conecta os discursos em uma configuração específica com vistas à constituição de significados dentro de um universo de sentido específico, o judaico. Lê-la desprezando essa sintaxe que está evidente para os leitores da Bíblia judaica (e, claro, não estou pensando em toda a gama de possibilidades dentro do judaísmo) é, de alguma maneira, ler outro livro, que, ainda que interessante, é outro. (Para aproveitar os exemplos: A Bíblia cristã tem outra sintaxe e outro universo de sentido. É outro Livro. Já a Bíblia, quando estudada pelo método histórico-crítico no meio acadêmico, tem uma sintaxe quase inexistente, ou flutuante. São livros.) Ainda assim, reconheço que a leitura desse(s) outro(s) livro(s) (que é igual) pode favorecer, por meio de uma comparação com a leitura do primeiro (que também é o mesmo), a descoberta de detalhes enriquecedores. Isso é o que tento expressar no texto. Para ajudar a compreensão disso que talvez eu não consiga explicar devidamente por inabilidade, considere-se Pierre Menard, autor del Quijote (BORGES, 1971). Reconheço que a noção de trágico mais estrita de que dispomos hoje reflete uma leitura das tragédias clássicas, mas que não necessariamente era pensada e entendida de modo semelhante ao longo da Antiguidade. Contudo, entendo que, ainda que seja em alguma medida anacrônico, no sentido de que se trata de uma tentativa de sistematização bastante posterior, cuidar dos limites dessa noção é fundamental para que a mesma tenha alguma utilidade para a reflexão, pois, de outra forma, encontraríamos o “trágico” em tudo o que é experiência negativa na existência humana, ou, ao menos, em tudo o que é inesperado e negativo. Para a pensar a variação de significados do termo “trágico”, confira-se MOST, 2001. 262 sofrimento inocente. Por exemplo, Abel e a filha de Jefté são ambos vítimas inocentes de uma morte prematura. Mas as histórias de suas mortes, tais como contadas na Bíblia, não estão livres para levantar qualquer problema teológico. O mal é causado pelo homem, e a moral é que nós podemos e devemos escolher evitar os pecados de Caim e Jefté. […] Na narrativa mais antiga da Bíblia há vasto material para tragédia. […]. Da forma como são contadas na Bíblia, contudo, essas histórias não são apresentadas como tragédias, mas como lições morais sobre as sérias consequências da culpa humana, e se os eventos descritos são lições morais, eles servem para um bom objetivo.439 (RAPHAEL, 1960, p. 44-45) Caso se insista em afirmar a presença do trágico na Bíblia, será preciso fazer ressalvas, ou, no mínimo, assinalar o caráter extraordinário do fenômeno. 5.3 Outras experiências judaicas com a tragédia Além do cânone da Bíblia Hebraica, há vasto material escrito no meio judaico na Antiguidade. Vários judeus se dedicaram a traduzir, comentar e narrar. E à medida em que a realidade na qual se inseriam mudava, mudavam também algumas necessidades e possibilidades que se apresentavam quando se dispunham a escrever. O diálogo com a cultura helênica, cada vez mais implicada no dia a dia de todos os povos do Mediterrâneo e outras regiões, se fazia quase inevitável. Certamente, sendo o teatro grego um importante elemento dessa cultura, os judeus também estavam sujeitos a relacionar-se com ele. E como, apesar da importância, o trabalho com os textos não ocupava toda a vida da maioria dos judeus, esse relacionamento ocorria tanto na escrita quanto na experiência cotidiana. Então, as duas formas básicas do relacionamento de judeus com o teatro que pretendo abordar de modo breve neste texto são estas: a que se realiza na convivência com o teatro em si, a construção e o espetáculo ali encenado; e aquela que se dá, na leitura e escrita, com o gênero literário. Sobre a interação cotidiana dos judeus com o teatro, pouco se pode afirmar com certeza, tanto quando se pensa no que acontecia nas diversas comunidades da Diáspora, quanto quando se pensa nas diversas cidades da Judeia. Fato é que havia alguma interação, 439 Minha tradução de: There is no tragedy in the Bible. This is not to say that there is no innocent suffering. For instance, Abel and Jephthah's daughter are both innocent victims of an untimely death. Buth the stories of their death, as told in the Bible are not allowed to raise any theological problem. The evil is caused by man, and the moral is that we can and should choose to avoid the sins of Cain and Jephthah. […] In the earlier narrative of the Bible there is plenty of material for Tragedy. […] As told in the Bible, however, these stories are not presented as tragedy but as moral lessons on the dire effects of human guilt, and if the events described are moral lessons they serve a good purpose. 263 fosse ela positiva, de frequência e participação, fosse de rechaço. Indícios de que judeus frequentavam apresentações de peças nos teatros são poucos, resumindo-se quase totalmente a alguns trechos da obra do próprio Fílon, que serão mencionados em outro tópico adiante, e a uma inscrição do século II d.C. em um teatro na cidade de Mileto, a qual parece indicar assentos privativos de judeus.440 Já a postura contrária, de restrição, está registrada no Talmud Babilônico (Abodah Zarah 18b). O argumento contra a presença de um judeu no teatro fundamenta-se na possibilidade de que as apresentações promovam cultos a ídolos; e, no caso de não haver tais cultos, baseia-se em uma interpretação do Salmo 1, que aplica o primeiro verso, especialmente a expressão “não se assenta nos assentos dos zombadores” (‫ב‬z‫ש‬z‫ים לא י‬u‫צ‬o‫×שב ל‬Ø ‫מ‬q‫)וב‬, como recomendação para não se assentar em meio ao público do teatro. Certamente, reconheço que o Talmud é posterior ao período que me interessa de imediato. E mesmo podendo ser considerado registro de tradição oral previamente existente, dificilmente se poderia dar a datação precisa das afirmações ali encontradas. Ainda assim, serve como testemunho de que a discussão existiu. E se a proibição foi afirmada de modo claro, é possível que advenha de certo apelo do teatro entre os judeus, ainda que não se possa mensurar a quantidade ou frequência da presença deles nos espetáculos. Nos livros dos Macabeus também não se encontra referência específica ao teatro. Enquanto outros espaços tipicamente helênicos 441 são mencionados em meio à tensa relação dos judeus com a dominação estrangeira, o teatro permanece sem referência. Posteriormente, por outro lado, no ano 28 a.C., segundo Josefo, Herodes introduziu não somente jogos atléticos, mas também o teatro na própria cidade de Jerusalém. O historiador ressalta a estranheza desse tipo de espaço e das apresentações para os judeus da cidade: πρῶτον μὲν γὰρ ἀγῶνα πενταετηρικὸν ἀθλημάτων κατεστήσατο Καίσαρι καὶ θέατρον ἐν Ἱεροσολύμοις ᾠκοδόμησεν, αὖθίς τ᾽ ἐν τῷ πεδίῳ μέγιστον ἀμφιθέατρον, περίοπτα μὲν ἄμφω τῇ πολυτελείᾳ, τοῦ δὲ κατὰ τοὺς Ἰουδαίους ἔθους ἀλλότρια: χρῆσίς τε γὰρ αὐτῶν καὶ θεαμάτων τοιούτων ἐπίδειξις οὐ παραδίδοται. 440 441 A inscrição, catalogada sob o número 748 no Corpus Inscriptionum Judaicarum, apresenta: τόπος εἰουδέων τῶν καὶ θεοσεβῶν – “lugar dos judeus, os que também são tementes a deus”, ou, “lugar dos judeus e dos tementes a Deus”. A ausência de outro testemunho a respeito do comportamento cotidiano desses judeus de Mileto dificulta a interpretação das implicações da inscrição. Apenas me refiro a ela, então, como evidência da presença deles no teatro, sem aprofundar nos possíveis desdobramentos. Estou pensando em “ginásio e efebia” (γυμνάσιον καὶ ἐφηβεῖον – 2 Mc 4:9). 264 Pois, primeiro, estabeleceu uma disputa quinquenal de jogos atléticos para César, e construiu um teatro em Jerusalém, bem como um anfiteatro muito grande na planície. Por um lado, ambos se destacavam pelo alto custo; por outro lado, eram alheios ao costume dos judeus, pois o uso deles e a apresentação de tais espetáculos não faz parte da tradição. (AJ XV 8:1) No prosseguimento do texto, contudo, Josefo se detém em duas coisas que pareciam especialmente repugnantes aos judeus: a morte de homens por animais ferozes, por parecer-lhes impiedade (ἀσεβὲς – asebés), assim como o abandono dos costumes próprios para a realização desse tipo de exercício; e, sobretudo, certos monumentos a vitórias bélicas que estavam dispostos justamente ao redor do teatro, juntamente com inscrições que remetiam a feitos de César. O problema consistia no seguinte fato: δοκοῦντες γὰρ εἰκόνας εἶναι τὰς τοῖς ὅπλοις περιειλημμένας, ὅτι μὴ πάτριον ἦν αὐτοῖς τὰ τοιαῦτα σέβειν, οὐ μετρίως ἐδυσχέραινον. Pois, julgando serem imagens que estavam envolvidas pelas armas,visto que não era costume pátrio tais coisas venerar, estavam imoderadamente desgostosos. (AJ XV 8:1) Em seguida, diante dos protestos contrários, Herodes chama os principais do povo e os conduz ao teatro (εἰς τὸ θέατρον – eis tò théatron) para oferecer-lhes uma demonstração que transforma as queixas em risadas: ele manda retirar as armas de um monumento para que vissem que se tratava de um pedaço de madeira 442, e não da imagem de um homem, por debaixo dos ornamentos. É importante ressaltar esses detalhes para evitar uma confusão. Embora o teatro seja o plano de fundo para os acontecimentos, a contenda não é para com as peças teatrais443, que não são especificamente mencionadas, mas sim para com uma suposta incompatibilidade religiosa bem determinada e resolvida, ao menos parcialmente, por uma 442 443 Parece que o teatro construído por Herodes como um todo era feito de madeira, pois não deixa traços na arquitetura posterior de Jerusalém (PATRICH, 2002). Não há como identificar precisamente o tipo de peça teatral que se apresentaria em Jerusalém, se é que haveria mesmo esse tipo de performance. Poder-se-ia conjecturar que se trataria de peças comumente apresentadas em outras cidades do mundo helenístico, já que Herodes promove a presença de estrangeiros em Jerusalém. Não é de todo impossível, contudo, que alguma das obras tivesse ligação com a história dos judeus, como estratégia para agradar alguns deles. Conjectura-se, a partir de uma rápida e não muito segura menção de Dionísio Periegeta, conforme texto transmitido pelo bispo bizantino Eustácio de Tessalônica, que Nicolau de Damasco, historiador e escritor grego, amigo de Herodes, que viveu anos em Jerusalém, teria escrito uma tragédia a respeito de Suzana. O texto diz somente: “[...] também conforme aquele que escreveu a peça de Suzana, penso que o Damasceno...” ( kaqa\ kaiì o( gra/yaj to\ dra=ma th=j Swsa/nnhj, oiåmai o( Damaskhno/j). A atribuição da autoria dessa obra perdida a Nicolau de Damasco é coerente com o que dele se sabe, e possível pelas datas de vida de Nicolau e do Periegeta. Contudo, permanece sem comprovação e não livre de disputa (cf. JACOBSON, 1983, p. 4). Se verídica, não seria desapropriado supor que Nicolau tivesse escrito a peça a pedido e pelo interesse de Herodes, para representação em Jerusalém. 265 demonstração mais precisa dos fatos. Inclusive, após esse incidente, segundo o historiador, grande parte dos judeus deixa de lado sua insatisfação para com o governante, enquanto outros, em menor grupo, mantinham o repúdio. Não é possível, pois, fazer uma análise precisa da relação entre judeus e o teatro nos primeiros séculos d.C. e no período anterior. O que se pode afirmar é que, entre os próprios judeus, não havia unanimidade a respeito. Além disso, é notável que, como Josefo consegue registrar e o Talmud parece também indicar, a primeira grande preocupação evidenciada é a de se evitar a participação em um culto estranho ao do monoteísmo, desprovido de representação imagética, praticado entre os judeus. No plano literário, não se constata uma repulsa específica ao gênero dramático ou à tragédia especificamente. Talvez um único texto do judaísmo helenístico, um trecho da Carta de Aristeias, possa levantar suspeitas (infundadas, como se verá) de uma polêmica contra o uso do gênero.444 Uma passagem ao final da Carta de Aristeias (312-317) conta que, depois de escutar a leitura do Pentateuco recém traduzido, Ptolomeu se admira e pergunta a Demétrio como poderia ser que uma obra como aquela podia não ter sido aludida por historiadores e poetas. Demétrio responde demonstrando a sacralidade do Livro, que impediria que sua exposição fosse feita como se se tratasse de um livro qualquer. Ele conta dois breves episódios para exemplificar. Um historiador que planejava se utilizar da Lei em um de seus textos sofre uma desordem mental e, ao se recuperar, é comunicado por sonho que o motivo era o fato de querer comunicar a homens comuns as coisas divinas (τὰ ϑεῖα – tà theîa), e precisa desistir do intento para reaver a saúde. E Demétrio teria ouvido, em primeira mão, da parte de um poeta trágico chamado Teódecto (παρὰ Θεοδέκτου τοῦ τῶν τραγῳδιῶν ποιητοῦ – parà Theodéctou toû tôn tragoidiôn poietoû) que este pretendia utilizar acontecimentos registrados no texto sagrado como tema para uma peça (πρός τι δρᾶμα – prós ti drâma), mas que foi acometido de catarata nos dois olhos antes de fazê-lo. Após perceber o motivo da aflição, o poeta clama a Deus e é curado. Se lido fora do contexto, o episódio da catarata do tragediógrafo poderia ser entendido como interdição à utilização da tragédia como meio de expressão da narrativa bíblica. Não obstante, deve-se perceber o (duplo) objetivo da argumentação no diálogo, que procura justificar a ausência de referências à Torah em autores 444 Erkki Koskenniemi afirma que a Carta de Aristeias e Josefo “criticam tragediógrafos gregos que tentaram usar material bíblico em suas peças” (criticises Greek tragedians who tried to use biblical material in their dramas). Quanto a Josefo, ele se refere a AJ XII 113, sem observar, ao que parece, que, no trecho, o historiador está simplesmente recuperando o relato presente na Carta de Aristeias (KOSKENNIEMI, 2005, p. 77). 266 gregos, e, ao mesmo tempo, exaltar a sacralidade do livro. O primeiro objetivo é destacado por Collins, quando o pesquisador se opõe a uma curiosa hipótese de Trencsenyi-Waldapfel, que entende o trecho como sinal de um ataque contra a tragédia de Ezequiel (COLLINS, 2000, p. 225). Além disso, o fato de que a questão não é especificamente voltada contra um gênero literário fica claro quando se observa que a interdição ocorre também no caso do historiador, responsável por um tipo de escrita não tão distante, ao menos no que se refere ao discurso, do encontrado nas próprias páginas da Bíblia. Se a ideia de uma peça teatral com tema bíblico fosse completamente restringida pelo texto de Aristeias, o trabalho de Josefo também seria. E o historiador judeu não parece entender o texto nesse sentido. Não há, pois, restrição explícita. Por outro lado, as evidências esparsas de que dispomos não possibilitam a constatação de uma contínua tradição da arte teatral judaica, embora alguns tenham tentado isso demonstrar, de modo não convincente (BELKIN; KAYNAR, 2002, p. 871). A única peça de teatro judaica que nos chegou da Antiguidade é a de um escritor chamado Ezequiel, e que passarei a comentar agora, para depois apresentar alguma influência da tragédia na escrita de Flávio Josefo, historiador que viveu pouco tempo depois de Fílon. 5.3.1 ΕΞΑΓΩΓΗ, tragédia de um judeu O texto de que dispomos é, na verdade, um conjunto de fragmentos. E, como é usual, também é fragmentar a informação que dispomos a respeito do autor e da obra em seu contexto. Mas como se trata de uma obra cuja especificidade é inegável, por ser a única peça trágica escrita por um judeu que nos chegou da Antiguidade 445, houve considerável esforço para a elucidação de incontáveis questões e melhor apreciação do escrito. Há variadas hipóteses sobre autoria, datação e lugar de origem do texto, bem como sobre sua audiência almejada e sua divulgação. Não havendo possibilidade de discutir cada uma dessas hipóteses de modo detido, restrinjo-me a relatar os entendimentos de Pierluigi Lanfranchi, o mais recente pesquisador dedicado especificamente à Eksagogué, comparando sua proposta, se 445 Thomas D. Kohn (KHON, 2002) propôs que essa “única” tragédia não fosse única, mas um conjunto de quatro peças. A concepção de que se trata de uma peça somente seria oriunda de uma apreciação errônea dos fragmentos. Contudo, Howard Jacobson (JACOBSON, 2003) demonstrou de modo contundente a inadequação da proposta de Kohn, e a pertinência da visão tradicionalmente aceita de que a Eksagogué é uma tragédia em cinco atos. Pierluigi Lanfranchi, posteriormente, corrobora a veemência com que Jacobson responde ao artigo de Kohn (LANFRANCHI, 2006, p. 22), mas demonstra suspeitas sobre a precisão e o fundamento textual para a divisão da peça em cinco atos (LANFRANCHI, 2006, p. 31). 267 eventualmente isso parecer proveitoso, com a de outros autores. Lanfranchi afirma que a obra de Ezequiel “deveria ser compreendida como produto da apropriação 'ativa' da parte dos judeus da diáspora do patrimônio cultural dos gregos”446 (LANFRANCHI, 2006, p. 3). Essa afirmação revela duas coisas: a ideia de que a Eksagogué é oriunda da diáspora, e a consideração de um papel ativo dos judeus da diáspora diante do legado cultural grego. Essa percepção é sumamente importante, pois leva a uma apreciação mais adequada da literatura judaica em língua grega, não permitindo que esta seja considerada como fruto de uma impensada e ingênua assimilação. 447 Já a localização da obra em algum lugar da diáspora, apesar de parecer óbvia, já foi contestada por pesquisadores que propuseram que a obra (ou ao menos o autor) teria se originado em Jerusalém. Lanfranchi, suspeita que a tragédia tenha sido escrita em Alexandria, mas, apesar de arrolar indícios de tal procedência, tais como a existência de uma tradição teatral na cidade, o calendário de tipo egípcio implicado em alguns trechos, e a posterior utilização da obra por parte de Fílon 448, o pesquisador opta pela prudência e apenas assegura que a produção é testemunho da vida cultural “das comunidades da diáspora de língua grega na época helenística”449 (LANFRANCHI, 2006, p. 13). O único fato que poderia causar algum estranhamento na localização da Eksagogué na diáspora é o nome do autor. O nome “Ezequiel” não era comumente utilizado nas comunidades da diáspora de língua grega. Nenhum outro autor ou personagem histórico conhecido no judaísmo de língua grega é assim nomeado. Lanfranchi observa que a raridade do nome fez com que se pensasse que pudesse tratar-se de um pseudônimo, inclusive porque é conhecida a existência de pseudepígrafos atribuídos ao profeta Ezequiel. Contudo, ele entende que o conteúdo da tragédia não é típico do textos que costumavam buscar beneficiar-se com a atribuição a um autor de renome histórico ou mítico (LANFRANCHI, 2006, p. 9). Então, o pesquisador sugere que se aceite o nome Ezequiel como o verdadeiro nome do autor da 446 447 448 449 Minha tradução de: devait donc être comprise comme un produit de l'appropriation “active” de la part des Juifs de la diaspora du patrimoine culturel des Grecs. Erich Gruen aborda a Eksagogué de modo bastante apropriado, reconhecendo a utilização de convenções, mas também a inserção de elementos novos, o que evidencia a complexidade da obra e a perspicácia de seu autor (GRUEN, 1998, p. 128-135). Em um breve artigo, o autor consegue expôr instigantes convergências lexicais e exegéticas que encontra entre a Eksagogué e o tratado Sobre a Vida de Moisés de Fílon, as quais permitem que conclua que Fílon conhecia a obra. Mas o pesquisador não deixa de reconhecer as diferenças oriundas dos gêneros literários desenvolvidos pelos autores, bem como opções exegéticas divergentes em alguns momentos (LANFRANCHI, 2007b). Minha tradução de: des communautés de la diaspora de langue grecque à l'époque hellénistique. 268 Eksagogué, que, a confiar no testemunho de Clemente de Alexandria e Eusébio de Cesareia, seria poeta de tragédias450, e não de uma só peça (LANFRANCHI, 2006, p. 10). Além do nome e de ter escrito tragédias, nada se sabe sobre Ezequiel. Quanto à data, Pierluigi Lanfranchi assinala que dispomos do terminus post quem, que seria a tradução da LXX, que Ezequiel utiliza, e o ante quem, que seria a obra de Alexandre Poliístor, que cita a Eksagogué em sua obra. Então, temos que considerar que qualquer época é possível entre a segunda metade do século III e a primeira do século I a.C.. Definir algo além disso teria caráter meramente conjectural (LANFRANCHI, 2006, p. 10).451 Uma questão importante para meu texto, e também não negligenciada por Pierluigi Lanfranchi, diz respeito ao gênero do texto de Ezequiel. A Eksagogué tem sido chamada de “tragédia”, desde Eusébio e Clemente, com correção? O pesquisador reconhece a necessidade de discutir o assunto por duas causas fundamentais: por um lado, a aparente violação das convenções dramatúrgicas, assim como a falta de elementos constitutivos da tragédia; por outro lado, a inexistência do que se considera trágico no enredo. De início, Lanfranchi enfrenta a ligação entre a noção corrente de trágico, ligada a uma visão radicalmente pessimista da existência no mundo, e a definição do gênero, da tragédia. Ele afirma que há uma confusão na atrelagem dos termos. A noção que se construiu de “trágico” a partir do conjunto preservado das peças do século V a.C. não serviria como padrão para a definição do gênero em períodos posteriores. Quando se depara com a afirmação de que não há trágico e tragédia no âmbito do judaísmo, Lanfranchi observa a falta de consenso entre os biblistas a respeito, referindo-se inclusive ao livro de Exum, que abordei no tópico anterior, como evidência da dificuldade de se definir o que viria a ser o “trágico”, e não tanto a tragédia enquanto gênero literário (LANFRANCHI, 2006, p. 17-18). Ou seja, ele reafirma a necessidade de se desatrelar os conceitos. Para ele, é possível falar da tragédia sem falar do trágico, e de uma tragédia sem trágico. Quanto às inadequações da Eksagogué às supostas convenções do gênero, 450 451 Pode ser interessante observar que Clemente (Strom. I 23 155:1) diz que ele é “o poeta das tragédias judaicas” (ὁ τῶν Ἰουδαϊκῶν τραγῳδιῶν ποιητής). Certamente, não faltam pesquisadores dispostos a se arriscarem em tentativas sem base textual ou evidências históricas razoáveis. Howard Jacobson observa que alguns propuseram que Ezequiel teria escrito depois de Josefo, pois, de outra maneira, segundo eles, o historiador o teria mencionado. Outros quiseram desvalorizar a figura de Alexandre Poliístor como terminus ante quem, sugerindo que Eusébio teria citado a Eksagogué a partir de uma leitura em primeira mão. Tanto essas propostas quanto outras, que, respeitando minimamente as evidências, apontam para alguma época específica no intervalo entre a segunda metade do século III e a primeira do I a.C., carecem de argumentos consistentes (JACOBSON, 1983, p. 5ss). 269 Lanfranchi procura demonstrar que estas não eram, no período helenístico, as mesmas percebidas no período clássico, uma vez que o gênero estava em constante evolução e apresentava novidades. Além disso, segundo ele, a Poética não deve ter sido lida por Ezequiel e seus espectadores ou leitores, os quais consideravam a obra como uma tragédia sem que isso levantasse qualquer questão, “pois ela se coloca em continuidade com os modelos clássicos e obedece às convenções do gênero em suas características literárias e dramatúrgicas” 452 (LANFRANCHI, 2006, p. 19). A peça de Ezequiel não só seria reconhecível por seus contemporâneos como tragédia, como também poderia ter sido contemplada em uma encenação real e não lida somente. Lanfranchi observa que as supostas incompatibilidades da obra com a encenação não são tão impeditivas quanto julgam seus proclamadores. A representação de Deus não se fazia necessária. Poder-se-ia utilizar somente uma voz vinda de fora de cena, o que é sugerido por uma fala de Deus no texto (v. 100-103), além de algo semelhante já ter sido realizado previamente inclusive em tragédias clássicas. Já a representação de milagres, como o da sarça ardente e da transformação do bastão em serpente, que requereriam tecnologia inexistente no período, não seria irrealizável.453 Haveria recursos para tanto. No mais, o grande esforço empreendido para adaptar o texto narrativo do Êxodo em peça dramática, bem como a existência de falas que parecem ter seu sentido pleno percebido somente na visualização da cena parecem indicar uma realização da peça no palco (LANFRANCHI, 2006, p. 35-38). A veracidade histórica de tal encenação permanece improvada, mas o pesquisador convence, ao menos, da criação do texto com vistas à encenação. Ademais, sugere que a Eksagogué pode ter sido encenada em algum festival judaico (LANFRANCHI, 2006, p. 64), o que me parece bastante plausível. É razoável imaginar que em festivais, como o que celebrava a produção da Septuaginta na ilha de Faros, segundo Fílon (Mos. 2.41), houvesse lugar para a apresentação de uma peça como a de Ezequiel, como um entretenimento com conotação didática/religiosa.454 Rachel Davies (DAVIES, 2008), contudo, vai além e propõe que a 452 453 454 Minha tradução de: car elle se pose em continuité avec les modèles classiques et obéit aux conventions du genre dans ses caractéristiques aussi bien littéraires que dramaturgiques. Uma leitura do texto em si pode fazer com que as cenas dos milagres (da sarça ardente, do bastão transformado em serpente e da mão que se torna branca) evidenciem não a impossibilidade da performance, mas o contrário. O estudo de Jacques van Ruiten sobre a reescrita desses episódios do Êxodo na Eksagogué demonstra indícios de que certas alterações se devem ao fato de que o texto de Ezequiel foi pensados para o palco (RUITEN, 2006). Penso no público da Eksagogué como preponderantemente formado por judeus, embora Fílon diga que não judeus também participassem do referido festival. John Barclay, pelo contrário, considera 270 Eksagogué foi escrita por Ezequiel em Alexandria, para servir como uma performance litúrgica em substituição ao sacrifício. Segundo a autora: […] é precisamente a resistência da obra à “Tragédia” que é crucial. Ao transformar a narrativa bíblica em drama grego, Ezequiel se nega a realizar os usuais movimentos dos tragediógrafos; em vez de dar voz aos silêncios de uma narrativa épica, ele adota a estrutura dramática como uma maneira de negociar o problema do sacrifício no exílio. O fato em si de a tragédia de Ezequiel não cumprir com o que se espera de uma tragédia clássica é importante; a Eksagogué não expande o que a narrativa bíblica elide. Ao contrário de prover respostas, o uso de Ezequiel do gênero trágico se torna uma maneira poderosa de negociar questões contemporâneas. […] a Eksagogué é uma substituição litúrgica para o sacrifício da Páscoa, ordenado no texto bíblico, mas impossível durante a Diáspora, em sua – então tradicional – forma ritual, e [...] pode ser vista como parte da tradição midráshica judaica.455 (DAVIES, 2008, p. 398-399.) Cito esse longo trecho, porque me permitirá apontar o motivo de meu desacordo com grande parte da proposta, bem como o acordo com alguns detalhes importantes. Primeiramente, observo que a suposta resistência à tragédia acusada por Davies pode ser percebida erroneamente por nossa falta de conhecimento a respeito do gênero no período helenístico. Subordinar a peça de Ezequiel às tragédias clássicas não é bom caminho, como observou Lanfranchi. Outro problema que se mostra neste trecho e fica mais claro ao longo do artigo é uma confusão entre a diáspora (note-se que ela usa a expressão “durante a Diáspora”!), o exílio e o período após a destruição do Templo. Supor atitudes dos judeus na diáspora a partir do que se espera de exilados não é razoável. Mais grave ainda é supor suas 455 que a peça visa a um público não judeu (BARCLAY, 1996, p. 136). Ellen Birnbaum expõe diferentes hipóteses sobre o festival e sobre a identidade desses muitos não-judeus que, segundo Fílon, comemoravam com os judeus, mas afirma que não é possível resolver nenhuma das questões com segurança (BIRNBAUM, 2011). Parece-me que várias das hipóteses são plausíveis. Por exemplo, entendo que a festa poderia ser acompanhada por não numerosos não-judeus como diz Fílon, mas por alguns interessados que fossem amigos de judeus (e, nesse caso, Fílon teria exagerado por ênfase). Mas suspeito que é possível também pensar que a curiosidade de muitos, em um contexto politeísta, poderia fazê-los querer presenciar a celebração de uma religião alheia. O que não me parece sensato é julgar que o relato de Fílon seja completamente inventado. Seus primeiros leitores conterrâneos acusariam imediatamente a falsidade nesse caso. Minha tradução de: […] it is precisely the work's resistence to “Tragedy” which is crucial. In transforming the biblical narrative into Greek drama Ezekiel refuses to make the usual tragedians' moves; rather than giving voice to the silences of an epic narrative, he adopts dramatic structure as a way of negotiating the problem of sacrifice in exile. The very fact that Ezekiel's tragedy does not comply with what is expected of a classical tragedy is important; the Exagoge does not expand what the biblical narrative elides. Instead of providing answers, Ezekiel's use of the tragic genre becomes a powerful way of negotiating contemporary concerns. […] the Exagoge is a liturgical replaceent for that very Passover sacrifice commanded in the biblical text but impossible during the Diaspora in its – by then traditional – ritual form, and […] it may be seen as part of the Jewish midrashic tradition. 271 atitudes e interpretar seus vestígios a partir do conhecimento que temos do período posterior a 70 d.C., quando o judaísmo passa a experimentar mudanças intensas rumo a uma ortodoxia específica. Ora, o judeu da diáspora não se via como exilado e tinha sim um Templo. A peregrinação a Jerusalém era realizável. Ademais, ela entende que Ezequiel se aproveita da conotação cúltica do contexto original das tragédias gregas clássicas na formulação de sua peça litúrgica substituta do sacrifício pascal. Ao fazer essa relação, ela desconecta a obra de seu contexto discursivo imediato de modo radical, desconsiderando que outros autores helenísticos podem ter adaptado textos narrativos ao teatro, e operado diversas mudanças ao fazê-lo, sem que tivessem qualquer intenção litúrgica.456 Por fim, a ênfase que Davies percebe que Ezequiel daria à etiologia da Páscoa, e que ela reconhece existir em menor grau no próprio texto bíblico, pode dever-se simplesmente a um caráter instrutivo e não ritual necessariamente. O que julgo acertado é o reconhecimento de que o texto constrói uma negociação. Mas entendo que o negociado não é o culto ou a comunicação com a divindade necessariamente, mas a adaptação da tradição a novas formas de comunicação. Outro ponto relevante que ela procura ressaltar é o caráter midráshico da peça, o que é de fato importante para compreender o que dela nos chegou, e que havia sido sugerido por Howard Jacobson anteriormente (JACOBSON, 1983, p. 26). O que percebo na Eksagogué é, pois, uma tragédia helenística escrita por um judeu, entre outras que ele mesmo pode ter escrito. Não se pode definir como foi sua recepção. Mas não é fora de senso supor que ela tenha sido encenada em festivais judaicos em Alexandria, não como rito ou liturgia, mas como uma obra para deleite dos judeus com um tema que exaltava sua história e transmitia suas tradições próprias de um modo comum. 5.3.2 Josefo e a tragédia na história A presença da Eksagogué neste estudo não requereu muita explicação. Afinal, trata-se de uma peça de teatro, escrita por um judeu antes do período em que Fílon escreve, e 456 Penso no caso do papiro identificado como P.Oxy. 2382, mencionado por Lanfranchi como tragédia do período helenístico, assim como a Eksagogué (LANFRANCHI, 2006, p. 32). O documento conserva versos (ao todo quase vinte, mas somente seis conservados de modo a serem legíveis) que parecem advir de uma peça helenística baseada na história do rei lídio Giges, narrada por Heródoto (cf. SOMMERSTEIN, 2002, p. 122). Há, contudo, uma discussão insolúvel sobre a datação da peça. Inclusive, há quem sugira que não terá sido o caso de um poeta trágico helenístico adaptar um trecho de Heródoto, mas de que este tenha se utilizado da peça cujos versos se apresentam no papiro, que seria, pois, bastante mais antiga, anterior a Sófocles inclusive (BELLONI, 2000). 272 que foi lida por este. Já a rápida menção que farei a Josefo parece solicitar que eu explicite a razão, uma vez que não se trata de um tragediógrafo, nem de um predecessor do alexandrino. Nascido em 37 d.C., o sacerdote e, posteriormente, historiador judeu não poderia ter escrito nada em tempo para que Fílon o lesse. 457 Contudo, o que procuro não é nenhum tipo de dependência, fonte ou origem para a estratégia que tentarei observar em Embaixada a Gaio, mas sim alguma experiência que apresente similaridades que auxiliem na compreensão do texto. E, nesse sentido, mencionar Josefo é pertinente, pois, apesar das grandes diferenças da experiência dos dois autores, algo há de comum entre eles, não há como negar. Além disso, Josefo figura neste capítulo por ter se aproveitado da tragédia de forma persistente em seus textos. Louis Feldman ressalta a quase simultaneidade da invenção da tragédia e da historiografia grega, e observa que essa proximidade temporal não constitui a única relação entre os dois gêneros. Semelhanças e claras influências dos trágicos sobre os historiadores são perceptíveis na obra de historiadores de ambas as principais escolas, a de Aristóteles e a de Isócrates (FELDMAN, 2006, p. 413-417). Quanto a Josefo especificamente, Feldman demonstra como é vasto o uso que ele faz da obra dos trágicos da Atenas clássica, tanto no que diz respeito a palavras e expressões que deles toma emprestadas, quanto a temas a eles relacionados que o historiador introduz em suas narrativas. Josefo estaria particularmente em débito com Eurípides, o mais popular tragediógrafo do período helenístico e posterior (FELDMAN, 2006, p. 425ss), mas não deixaria de apresentar importantes contatos temáticos e vocabulares com tragédias de Sófocles (FELDMAN, 2006, p. 427ss). É notável, também, que, pela observação de acréscimos que introduz em sua reescrita de textos bíblicos, é possível constatar que Josefo intenta aumentar a dramaticidade de várias narrativas das Escrituras, por exemplo, intensificando e mantendo o suspense na apresentação das cenas ou enfatizando a ironia existente (FELDMAN, 2006, p. 420ss). Feldman cataloga ressonâncias dos trágicos na obra de Josefo e as comenta, atentando para o propósito narrativo e literário imediato do historiador. Mas um estudo mais detido e com um foco mais específico pode revelar outros detalhes importantes e sugerir uma funcionalidade da opção do historiador pela tragédia. É o que percebo ser tentado na tese doutoral de Honora Chapman, intitulada Spectacle and Theater in Josephus's Bellum 457 Inversamente, o historiador pode ter tido acesso pelo menos a alguma parte dos escritos de Fílon. Josefo se refere ao alexandrino em Antiguidades Judaicas e a ele se refere como se tratando de um homem “não inexperiente na filosofia” (φιλοσοφίας οὐκ ἄπειρος – philosophías ouk ápeiros), Ant. 18:8. 273 Judaicum [Espetáculo e Teatro em Bellum Judaicum de Josefo]. A partir da concepção de um público múltiplo pretendido pela obra de Flávio Josefo, formado pela elite romana, por gregos e por judeus falantes de grego, Chapman procura demonstrar como funciona e qual o objetivo da construção trágica e espetacular de algumas cenas de A guerra judaica.458 De início, a pesquisadora observa que o teatro e o espetáculo estavam no centro da vida romana no século I d.C., e que chegava a influenciar a escrita de obras em princípio alheias ao palco cênico, incluídos aí os historiadores (CHAPMAN, 1998, p. 1-3). Com isso em mente, ao longo da tese ela procura demonstrar que Josefo faz uso da teatralidade como artifício literário para produzir nos leitores a reação que almeja, com vistas a favorecer uma leitura dos acontecimentos que permita a atribuição da culpa pela destruição de Jerusalém aos rebeldes, e não ao povo judeu como um todo.459 Antes de analisar as três cenas selecionadas 458 459 A opção pelo estudo de Chapman, que se deve a uma adequação ao propósito de meu texto, não significa que eu desconsidere outros estudos pertinentes e importantes. Suresh Shenoy oferece uma boa revisão da bibliografia que aborda B.J. como uma obra literária (SHENOY, 2006, p. 15-36). Ademais, o próprio autor desenvolve uma ambiciosa abordagem que pretende demonstrar que quase a totalidade do texto de B.J. é escrito como uma tragédia, seguindo o modelo de Sêneca. Dessa forma, segundo o autor, deve-se concluir que: “Como o gênero da história narrativa é essencialmente diferente do gênero da tragédia de cinco atos narrativa, é lógico concluir que B.J. é um trabalho com dois distintos textos literários em dois distintos gêneros.” [Since the genre of narrative history is essentially distinct from the genre of narrative five-act tragedy, it is logical to conclude that B.J. is a work with two distint literary texts in two distinct genres] (SHENOY, 2006, p. 272). O autor percebe duas narrativas que correm juntas e simultâneas, da mesma forma que fantasia e história compartilham o mesmo texto. Com essa imagem, ele descreve a complexidade do texto de Josefo e faz atentar para a importante dimensão literária da obra, que seria resultado de uma deliberada determinação do autor no sentido de escrever uma tragédia narrativa, uma vez que não se tratam de elementos da tragédia trazidos ao texto simplesmente. Uma dificuldade não resolvida na proposta é a questão da relação entre a cronologia dos eventos históricos e a estruturação da narrativa como tragédia ao modo de Sêneca. A estrutura e ordenação da apresentação dos acontecimentos não se deve, em princípio, à realidade dos fatos simplesmente? Nesse caso, a semelhança estrutural com a tragédia poderia ter se realizado ao acaso. Ao menos, teríamos que pensar na possibilidade de que, ao aproveitar o modelo de Sêneca, Josefo o fez por perceber a coincidência do mesmo com os eventos. Essa dificuldade de demonstração e o ambicioso alcance da tese de Shenoy me fizeram preferir referir-me mais detidamente a Chapman. Mas deve-se considerar, também, o recente estudo de Yuval Shahar, que demonstra como Josefo descreve a topografia das cenas de sítio e batalha com detalhes e precisão terminológica, mas opera uma seleção de informações conforme o que convém para a exposição do enredo. O pesquisador sugere que se perceba o papel de Josefo como o de um “gerente de palco” (stage manager) (SHAHAR, 2011). O estudo, detalhado em observações topográficas a partir dos textos de Josefo e dos próprios lugares mencionados (apresentados ao leitor por fotografias), é importante por demonstrar que o historiador não se importa simplesmente com a precisão ou o volume das informações, mas com a construção da narrativa. Ele mostra com palavras o que o leitor precisa ver para acompanhar a cena. Por isso Shahar chama Josefo também de “dramaturgo” (dramatist). Como se verá a seguir, minha proposta para a leitura de Legatio tem alguma semelhança com a de Chapman para A Guerra Judaica, mas também algumas diferenças em seus detalhes e na formulação geral da finalidade. 274 para seu estudo, a saber, a destruição do Templo, o canibalismo da judia faminta e o suicídio coletivo em Massada, ela observa que Josefo narra dois episódios espetaculares 460 que revelam sua expectativa com respeito à reação do público romano diante dos espetáculos, o que poderia evidenciar o tipo de reação que ele esperaria com a construção de diversas cenas trágicas ao longo de seu texto (CHAPMAN, 1998, 14-17). Os leitores seriam capazes de estabelecer conexão entre o que contemplam e leem e a tradição das tragédias gregas, além de estarem susceptíveis aos mesmos sentimentos que as tragédias geravam em seus espectadores. Ao longo dos três capítulos em que analisa cada uma das três cenas escolhidas para sua tese, Chapman realiza uma leitura cuidadosa e é convincente ao demonstrar que Josefo deliberadamente se utiliza de elementos próprios das tragédias gregas e do espetáculo para construir sua narrativa. Além disso, ela consegue sugerir possíveis intenções de Josefo, pois não quer somente informar o que ele faz, mas decifrar o porquê. Para não me alongar demais neste ponto, seleciono apenas um exemplo de modo a ilustrar o tipo de leitura da autora. Um dos mais famosos relatos de A Guerra Judaica é aquele do filicídio e canibalismo cometido por uma certa Miriam, que, durante o cerco a Jerusalém, corroída pela fome e pela pressão dos rebeldes que dela requeriam comida, mata seu bebê de peito para dele se servir e oferecer também àqueles. Chapman demonstra que a narrativa (inclusive as falas atribuídas aos personagens, com destaque para o pequeno discurso da mãe diante da criança que ela estava por matar) está permeada por um vocabulário que remete à tragédia grega. Não há dúvida, que o próprio acontecimento já favorece tal conexão, embora também pudesse fazer com que o historiador se referisse a um semelhante episódio registrado na Bíblia hebraica (II Reis 6:28ss). Chapman entende que o fato de Josefo escolher apresentar o ocorrido como sem precedentes e silenciar a narrativa de II Reis se explica como estratégia para ressaltar a importância do que está por contar (CHAPMAN, 1998, p. 61). Eu percebo nisso a capacidade do autor mobilizar os discursos nos quais é versado de modo pensado, com vistas à construção de um texto com um objetivo. Ecoar um texto (ou certo aspecto dele) enquanto silencia outro é marca de uma astúcia discursiva, que pode ser considerada como fundamental para o escritor, e, em especial, para o escritor envolvido em uma negociação intercultural. Essa discussão teve e ainda encontrará espaço nesta tese. Por ora, volto à 460 Tratam-se da súplica de Antígono diante de Sóssio (BJ 1:346ss), que debocha do oponente e o chama de Antígona, além da cena do aprisionamento do próprio Josefo, que é observado pelos romanos e provoca piedade neles (BJ 3:393ss). 275 interpretação de Chapman. Ela propõe uma pergunta pertinente: Como apresentar a narrativa de uma judia que mata seu filho para cometer canibalismo e evitar que os leitores da elite romana repudiem imediatamente tal personagem e os judeus em geral?461 Josefo encontra sua resposta na tragédia grega. Josefo intencionalmente usa a linguagem da tragédia para encorajar seu público a ter piedade de Miriam. Loucura trágica e desespero dominam o relato de Josefo da fome. Para o episódio de Miriam, o historiador intencionalmente evoca as descrições de Eurípides das circunstâncias desesperadores de mães tais como Medeia e Agave nas Bacantes, com vistas a aumentar o pathos.462 (CHAPMAN, 1998, p. 53) Essa e outras constatações semelhantes possibilitam a Chapman afirmar que: Espetáculo e tragédia operam como princípios centrais que guiam a produção de história por parte de Josefo. Josefo usa esses recursos literários com vistas a convencer seu público da inocência da maioria dos judeus na rebelião, enfatizar a tragédia da queda de Jerusalém e a destruição do Templo, e convidar seus leitores a identificarem-se com o constante reconhecimento de Tito do valor do Templo.463 (CHAPMAN, 1998, p. 171) Sem dúvida, Honora Chapman contribuiu com sua tese de modo louvável para a compreensão da obra de Josefo, bem como para a percepção das possibilidades de apropriação de recursos relacionados com a tragédia e os espetáculos por parte de autores de textos narrativos. Faltou-lhe, segundo penso, contudo, uma problematização acerca das implicações dos sistemas de pensamento na aproximação que Josefo opera, pois ele não deixa suas concepções teológicas de lado, mas, ao mesmo tempo, importa um vocabulário e um arcabouço conceitual próprios da tragédia grega. Chapman não se envereda nas questões relacionadas ao conceito estrito de trágico. E essa discussão, ao que me parece, pode prover 461 462 463 Essa pergunta me faz pensar em outra razão para o silêncio de Josefo com respeito ao texto de II Reis. Ora, mencionar outro ato de canibalismo semelhante praticado por mulheres judias poderia favorecer a generalização por parte de leitores não-judeus, que tomariam o fato não como coincidência, mas como perniciosidade própria de um povo, alimentados e alimentando os discursos antijudaicos existentes. Pela mesma razão, Josefo pode insistir no caráter sem precedentes do episódio, precavendo-se de que se entenda o fato como comum para um judeu (assim como enfatiza o fato de o Santo dos Santos não conter nada, possivelmente para opor a alegação de que ali os judeus adorariam uma cabeça de asno, cf. CHAPMAN, 1998, p. 27-28). Minha tradução de: Josephus finds his answer in Greek tragedy. Josephus purposely uses the language of tragedy to encourage his audience to pity Mary. Tragic madness and desperation dominate Josephus’s account of the famine. For the episode of Mary, the historian purposely evokes Euripides’ descriptions of the desperate circumstances of mothers such as Medea and Agave in the Bacchae in order to increase the pathos. Minha tradução de: Spectacle and tragedy operate as central principles guiding Josephu's production of history. Josephus uses these literary devices in order to convince his audience of the innocence of the majority of Jews in the rebellion, to emphasize the tragedy of the fall of Jerusalem and the destruction of the Temple, and to invite his readers to identify with Titu's constant recognition of the value of the Temple. 276 questões intrigantes e urgentes, tanto quanto as questões fundamentalmente literárias: Como Josefo articula sua crença monoteísta com uma apresentação trágica de diversos eventos d'A Guerra Judaica? O trágico está subordinado, enquanto visão de mundo, ainda que se apresente robusto no texto? O trágico é utilizado, assim como a tragédia, como recurso para exposição ao grego e ao romano, como se fosse uma forma de linguagem, sem competir com a visão que o próprio autor tem da existência no mundo? Questões como essas, levantadas a partir da obra de Josefo, podem me servir para pensar o caso de Fílon, que é o tema desta tese. Deixo, pois, os escritos do historiador e passo aos do exegeta alexandrino. 5.4 Fílon e o teatro No capítulo anterior, mencionei certa querela de Fílon para com os poetas gregos em Mos. 1.2, que, segundo ele, teriam usado seus talentos de modo inadequado, compondo em verso e prosa “comédias e fábulas grosseiras” (kwm%di¿aj kaiì subaritika\j a)selgei¿aj – komoidías kaì sybaritikàs aselgeías). Em princípio, ele parece generalizar sua crítica aos poetas gregos, responsáveis pela ausência de exposição a respeito de Moisés no arquivo helênico. Mas se restringe a mencionar como exemplo de mal uso das capacidades literárias somente esses dois gêneros. As fábulas grosseiras (ou licenciosas) são o exemplo de texto desaprovado escrito em prosa. Não é possível definir com certeza as características específicas dessa espécie de fábula a que Fílon se refere 464, mas o adjetivo que ele acrescenta sugere ao menos alguma temática própria que ele tem em mente. Já o exemplo de texto em verso exemplificado na reprovação nos é bem conhecido, a comédia. Esse passo marca algo importante para a apreciação de outros gêneros em Fílon, pois deixa evidente que ele se incomoda não com um gênero literário específico por sua forma ou modo de recepção, mas sim com os temas que o caracterizam. Ter isso em mente é importante ao pensar a relação de Fílon com o teatro, pois, se em Sobre a Vida de Moisés ele começa em tom crítico aos poetas helênicos em geral, mas exemplifica especificamente com gêneros ligados a temas cômicos, burlescos ou licenciosos, em Sobre a Agricultura, ele acusa ouvidos e olhos como sendo insaciáveis e, como evidência, aponta para as grandes multidões que aplicam seus sentidos aos prazeres do teatro, mas acaba, também nesse passo, sinalizando para um tipo específico de espetáculo que repudia: 464 subaritika\j – sybaritikàs. Sobre a dificuldade de especificação das características das fábulas assim referidas, cf. DIJK, 1997, p. 107-109. 277 e)peiì po/qen aÃlloqen ta\ pantaxou= th=j oi¹koume/nhj qe/atra nomi¿zomen a)muqh/twn muria/dwn a)na\ pa=san h(me/ran plhrou=sqai; oi¸ ga\r a)kousma/twn kaiì qeama/twn hÀttouj kaiì wÕta kaiì o)fqalmou\j xwriìj h(niw½n e)a/santej fe/resqai kaiì kiqarista\j kaiì kiqar%dou\j kaiì pa=san th\n keklasme/nhn kaiì aÃnandron mousikh\n perie/pontej, eÃti de\ o)rxhsta\j kaiì tou\j aÃllouj mi¿mouj a)podexo/menoi, oÀti sxe/seij kaiì kinh/seij e)kteqhlumme/naj iãsxontai kaiì kinou=ntai, to\n e)piì skhnh=j a)eiì po/lemon sugkrotou=si mh/te th=j tw½n i¹di¿wn mh/te th=j tw½n koinw½n e)panorqw¯sewj pefrontiko/tej, a)lla\ to\n e(autw½n oi¸ dustuxeiÍj dia/ te o)fqalmw½n kaiì wÓtwn a)natre/pontej bi¿on. Afinal, que outra origem julgamos haver para o fato de que, em todos os lugares do mundo habitado, os teatros se enchem todos os dias de incontáveis milhares de pessoas? Pois esses escravos dos sons e espetáculos, que permitem que os ouvidos e olhos se levem sem rédeas, que tratam com honra citaristas e cantores que acompanham a cítara, bem como tudo quanto é música débil e sem masculinidade, aprovando dançarinos e outros mímicos (porque ficam parados e se movem em posições e movimentos efeminados), sempre aplaudem a contenda sobre o palco, sem terem tomado em consideração nem o aprimoramento de si próprios, nem o comum, mas, desgraçados, desperdiçam a vida por meio dos olhos e ouvidos. (Agr. 35) Espetáculos trágicos também poderiam ser criticados no trecho, por também seduzirem os sentidos do espectador, mas, embora não mencione a comédia especificamente, a descrição da música e dos gestos aponta para espetáculos do gênero, ou outros semelhantes.465 Erkki Koskenniemi sugere que a apreciação negativa de Fílon contra espetáculos de caráter cômico condiz com a escassez de citações de comédias por sua parte, sendo contada por ele apenas uma de Menandro (KOSKENNIEMI, 2006, p.146-147). E, se atentamente considerada, é significativa a observação que Fílon faz ao citar 465 Em princípio, a breve referência ao fato de que os espectadores aplaudem contendas ou guerras (πόλεμος - pólemos) sobre os palcos poderia servir para a inclusão da tragédia na crítica. Ainda assim, a ênfase me parece permanecer no gênero cômico (ou outro que guarda certa semelhança com esse, como o mimo), que também inclui confrontos que são aplaudidos. Fílon dá certo destaque em sua crítica para a representação de traços efeminados no palco, elemento recorrente na comédia (embora, no contexto originário da comédia em Atenas, isso se dê a partir de um sistema moral diferente do de Fílon e, portanto, tendo como base um código de conduta sexual específico não compartilhado pelo judeu alexandrino). Essa apreciação negativa do homem efeminado e da prática homossexual, que facilita o ataque à comédia, é comum nos textos de Fílon (cf. Somn. 1.9, Abr. 135 e Cont. 59ss, trecho em que se refere ao diálogo O Banquete de Platão. A respeito da prática da homossexualidade segundo a visão de Fílon, cf. SZESNAT, 1998, que utiliza o trecho mencionado de Cont. Como ponto de partida para sua boa e abrangente reflexão, bem como SZESNAT, 1999, que trata especificamente do homossexualismo feminino, com uma leitura bem cuidada, ainda que eu não esteja convencido de sua conclusão final a respeito dos motivos do alexandrino. Cf., ainda, ELLIS, 2003, que sistematiza a amplitude e os motivos da crítica de Fílon.). Seja como for, isto é, ainda que consideremos a tragédia como sutilmente implicada na crítica, é preciso reconhecer que o problema combatido por Fílon não é a existência do gênero teatral em si, mas o exagero que pode haver na recepção. 278 Menandro: qauma/sioi de\ a)retaiì hÀ te eu)tolmi¿a kaiì h( e)n t%½ de/onti parrhsi¿a pro\j tou\j a)mei¿nouj, w¨j kaiì to\ kwmiko\n a)yeudw½j ma=llon hÄ kwmikw½j ei¹rh=sqai dokeiÍn aÄn pa/nq' o( dou=loj h(suxa/zein manqa/nv, ponhro\j eÃstai: metadi¿dou parrhsi¿aj. E admiráveis virtudes são a coragem e a franqueza oportuna para com os superiores, de modo que o cômico parece falar mais com verdade do que com comédia: “todo escravo que aprenda a guardar silêncio / será mau. Dálhe um tanto de franqueza.” (Her. 5) O alexandrino cita versos de uma comédia, porque esse verso curiosamente não parece próprio de comédia.466 Em outro trecho aparentemente desconsiderado por Koskenniemi, palavras atribuídas a Menandro são outra vez citadas. Novamente, não há menção do nome do autor. Não há tampouco referência ao gênero em que se insere, mas somente uma valoração do dito: "megi¿sth d' a)rxh\ kakw½n" w¨j eiåpe/ tij ou)k a)po\ skopou= "ta\ li¿an a)gaqa/." “O grande princípio dos males”, como alguém disse não sem propósito, “é o excesso de bens”. (Abr. 134) Mas mesmo considerando também essa ocorrência, que é significativa, pois, novamente, Fílon encontra algo sério e pertinente sendo dito por um cômico, a pouca referência à comédia é flagrante em sua obra. São apenas essas duas citações de Menandro, além de, no máximo, raras alusões ou ressonâncias improvadas de Aristófanes.467 No que diz respeito às peças dos trágicos, Fílon é muito menos escasso em citações dos textos, e menos crítico diante das apresentações no teatro. 468 Não obstante, ele não deixará de se aproveitar, em dado momento, do baixo prestígio que a classe dos atores 466 467 468 Por duas vezes, estando ao citar um mesmo verso de Públio Siro, escritor de mimos, gênero cômico comum no século I d.C., Sêneca tece comentários que indicam uma preocupação semelhante à de Fílon. Em Tranq. XI 8, diz: “Nunca me terei vergonha por um bom dito de um autor ruim” (Numquam me in [voce] bona mali pudebit auctoris). E, a respeito do mesmo verso, em Cons. Marc., diz: “É um verso excelente e digno que não fosse proveniente de um palco” (Egregium versum et dignum qui non e pulpito exiret). Uma das mais conhecidas está em Cont. 63. Mas tanto essa, de caráter temático, quando outras de caráter linguístico, como Somn. 1.123, não indicam necessariamente um recurso direto à obra de Aristófanes. Reconheço que em Congr. 61-62, em uma interpretação dos personagens Esaú e Jacó, Fílon tece comentários negativos tanto à tragédia quanto à comédia. Sua argumentação não é detalhada, mas parece ecoar a crítica platônica e está diretamente conectada com a interpretação (etimológica, inclusive) dos personagens. Embora seja testemunho de uma ideia conhecida e mobilizada por Fílon em sua hermenêutica, parece-me apressado pensar que represente sua postura definitiva a respeito do teatro, haja vista o uso que ele faz do mesmo. 279 gozava em Roma (cf. Legat. 204469). Mas essa apreciação do ator não é necessariamente acompanhada por uma proporcional apreciação negativa da arte teatral (mesmo se pensamos nessa em sua realização espetacular e não somente em sua existência livresca) ou dos que a assistem. O próprio Fílon não hesita em afirmar sua presença frequente no teatro. Isso faz em Ebr. 177, quando, para comprovar o fato de que as pessoas reagem de diferentes maneiras à mesma coisa, afirma que, muitas vezes (πολλάκις - pollákis), ele mesmo viu no teatro como uma mesma música executada “pelos atores trágicos que atuavam no palco ou pelos tocadores de cítara”470 provocava reações diferentes em diferentes pessoas que compunham o público. Ou seja, ele afirma ir ao teatro e atentar tanto para o palco quanto para os outros integrantes do público que, como ele, se entretêm com as apresentações. Ainda que de modo breve, para não me desviar do foco deste texto, observo que o cotidiano do teatro, enquanto edificação, observado por Fílon não se restringe a exibições de peças. Também no teatro, os filósofos discutem doutrinas a respeito da virtude. Nesse caso, novamente, o alexandrino descreve uma reação variada do público. A maior parte das pessoas nem presta atenção nas palavras, pois tem a mente em outras ocupações, embora o corpo esteja ali. Outros tantos, escutam, mas logo que termina a exposição, se esquecem de tudo. Há outros, ainda, que escutam e se lembram, mas somente repetem as palavras escutadas. Um pequeno grupo, escuta, memoriza e coloca em prática, também em ações, o que aprendeu (Congr. 64). Mas se, nesse caso, os ouvintes são os que, em sua maioria, não agem de modo competente, em outros casos o teatro é um dos lugares em que pessoas ruins enganam as outras com suas palavras. Algumas, inclusive, usam repetidamente frases louváveis sobre virtudes. Mas são enganadores, e esse discurso que exibem é como uma bela máscara (προσωπεῖα καλά - prosopeîa kalá) escondendo um rosto feio (Mut. 198).471 O teatro, então, se mostra como lugar dinâmico no que diz respeito ao conhecimento, acolhendo um jogo de discursos, pertinentes à filosofia, mas também palavras de sofistas ardilosos. Como no caso das artes cênicas, em que um tipo de apresentação pode ser bem valorizado e outro execrado por Fílon, também os ensinamentos dados no teatro parecem requerer um discernimento atento por parte do ouvinte. Além de lugar de arte e conhecimento, o teatro é lugar de mobilização política e manifestação de vontades de grupos, como se percebe na aglomeração dos que perseguem os 469 470 471 Esse e os demais trechos de Legat. mencionados de passagem neste tópico serão novamente abordados em seguida. Minha tradução de: tw½n a)gwnizome/nwn e)piì th=j skhnh=j trag%dw½n hÄ kiqar%dw½n. Cf. trechos semelhantes: Somn. 1.122 e Abr. 20. 280 judeus e, no teatro, clamam pela instalação de estátuas nas sinagogas (Flacc. 41). E se uma multidão pode lançar mão do teatro para fomentar a mobilização popular e manifestar seu interesse, um governante também pode preparar no teatro um espetáculo de tortura de judeus eminentes para agradar a multidão insatisfeita (Flacc. 74, 95, 173). E esse espetáculo sangrento pode, inclusive, mesmo prolongando-se para fora do teatro, ser emoldurado por outras atrações mais próprias das artes cênicas: o( d' ou) teteleuthko/taj e)piì staurw½n kaqaireiÍn, zw½ntaj d' a)naskolopi¿zesqai prose/tatten, oiâj a)mnhsti¿an e)p' o)li¿gon, ou) th\n ei¹j aÀpan, o( kairo\j e)di¿dou pro\j u(pe/rqesin timwri¿aj, ou)k aÃfesin pantelh=. kaiì tau=t' ei¹rga/zeto meta\ to\ plhgaiÍj ai¹ki¿sasqai e)n me/s% t%½ qea/tr% kaiì puriì kaiì sidh/r% basani¿sai. kaiì h( qe/a dienene/mhto: ta\ me\n ga\r prw½ta tw½n qeama/twn aÃxri tri¿thj hÄ teta/rthj wÐraj e)c e(wqinou= tau=ta hÅn: ¹IoudaiÍoi mastigou/menoi, krema/menoi, troxizo/menoi, kataikizo/menoi, dia\ me/shj th=j o)rxh/straj a)pago/menoi th\n e)piì qana/t%: ta\ de\ meta\ th\n kalh\n tau/thn e)pi¿deicin o)rxhstaiì kaiì miÍmoi kaiì au)lhtaiì kaiì oÀsa aÃlla skhnikw½n a)qu/rmata a)gw¯nwn. Flaco, contudo, ordenou não que descessem da cruz os que haviam morrido mas que se crucificassem os vivos, a quem a ocasião concedia uma breve anistia, não em definitivo, não para sua completa absolvição, mas como mero adiamento da pena. Fez isto depois de eles terem sido espancados em pleno teatro e torturados pelo fogo e pela espada. E este espectáculo tinha várias partes. As primeiras exibições do programa prolongavam-se desde o amanhecer até à terceira ou quarta hora e consistiam no seguinte: Judeus a serem chicoteados, dependurados, torturados na roda, espancados e conduzidos pelo meio da orquestra em direcção à morte. Após essa bela exibição entravam os bailarinos, os mimos, os tocadores de flauta e todos os outros divertimentos próprios das competições teatrais. (Flacc. 84-85, Tradução de Tatiana Faia, com alterações.) O diferentes usos do teatro referidos por Fílon evidenciam como este tinha considerável importância para o desenrolar da vida cívica em Alexandria. É possível suspeitar que o fato de ser o teatro o espaço em que tantas coisas aconteciam poderia favorecer também uma extensão do teatro em âmbitos além do artístico da vida da cidade. O trecho citado acima é característico nesse sentido. As execuções são apresentadas como espetáculos para deleite de uma multidão insatisfeita, e elementos próprios do teatro se introduzem em meio a essa apresentação cruel, extrapolando seu contexto original. Fica claro que o teatro está tão ligado ao cotidiano da cidade que a arte que tem ali sua sede se estende de alguma maneira para além do tempo das apresentações cênicas. Há uma permeabilidade do dramático no cotidiano e nas maneiras de se perceber e expressar esse 281 cotidiano. Então, não seria estranho que as pessoas se utilizassem do teatro de diferentes maneiras como algo compartilhado, que facilitaria a exposição e compreensão daquilo que se comunica. Embora não seja improvável que a cena macabra que Fílon diz ter sido arquitetada por Flaco tenha ocorrido de modo semelhante ao narrado 472, ela parece caricaturesca. Isto é, ainda que histórica, pode ser tomada como exemplo peculiarmente destacado da maneira como acontecimentos diversos se aproximam da arte dramática. E isso acontece de tal modo que o escritor alexandrino chega a utilizar-se do teatro para explicar diferentes âmbitos da vida cotidiana, de ações de personagens bíblicos, ou mesmo do cosmos como um todo. A ação de esconder as verdadeiras intenções, simulando algo diverso com vistas a um objetivo específico, é explicada pela aproximação com a encenação teatral. Os que assim agem, agem como se faz no teatro (ὡς / ὥσπερ ἐν θεάτρῳ - hos/hósper en theátroi). Assim é com relação a pessoas, em geral, que agem traiçoeiramente (Spec. 4.185), com relação aos conselheiros egípcios de Flaco, que escondem do governante o ressentimento que guardam (Flacc. 19), e também com respeito ao Faraó, que é alegoricamente “a mente que ama o corpo” (νοῦς φιλοσώματος – noûs philosómatos), mas simula o desejo de estar junto de Sarah, alegoricamente, a “virtude” (ἀρετή - areté) (Abr. 103). Além disso, como observarei com mais detalhes adiante neste capítulo, o costume de Calígula de se fantasiar é apontado como algo próprio do teatro (Legat. 79); e Fílon mesmo, junto de seus colegas da embaixada enviada a Calígula, pode sentir-se como em um teatro (Legat. 368). Também significativo é o fato de que o teatro figura como elemento para comparações com o próprio cosmos. Em Opif. 78, Fílon se propõe o seguinte problema: Por que Deus teria criado o mundo como um todo para somente depois criar o ser humano? A resposta vem sustentada em uma comparação. Assim como primeiro se prepara o teatro e o espetáculo em seus detalhes para depois se convidar o público, Deus preparou o mundo com diversidade de coisas e, depois, convidou o ser humano para a existência. 473 O ser humano, então, é recebido no cosmos, que é o “mais santo teatro” ( qe/atron i¸erw¯taton - théatron hierótaton), repleto de coisas para uso e deleite, bem como corpos celestes luminosos e sempre móveis, para observação e estudo. Mas, certamente, nem todos os espectadores desse 472 473 Do ponto de vista atual, a espetacularização da execução e a consideração do sofrimento alheio como meio de entretenimento desprovido de qualquer inconveniente ético podem parecer impróprias, mas não destoam em nada do que se percebe contexto romano do século I (cf. KYLE, 1998, p. 53-55). Devo reconhecer que, nesse trecho, o teatro não figura exclusivo na comparação, mas compartilha seu lado da analogia com outro tipo de exibição preparada para o público, os jogos atléticos. 282 teatro do Universo têm o mesmo ponto de vista e capacidade de contemplação. Alguns, inclusive, não se prestam a observar o espetáculo. Isso se evidencia quando Fílon compara os dois extremos, espectadores privilegiados, que seriam as almas sem corpo, e os homens subjugados pelas paixões e necessidades do corpo: yuxaiì me\n ga\r aÃsarkoi kaiì a)sw¯matoi e)n t%½ tou= panto\j qea/tr% dihmereu/ousai qeama/twn kaiì a)kousma/twn qei¿wn, … wÒn aÃplhstoj au)ta\j ei¹selh/luqen eÃrwj, mhdeno\j kwlusiergou=ntoj a)polau/ousin. oÀsai de\ to\n sarkw½n fo/rton a)xqoforou=si, baruno/menai kaiì piezo/menai aÃnw me\n ble/pein ei¹j ta\j ou)rani¿ouj perio/douj a)dunatou=si, ka/tw de\ e(lkusqeiÍsai to\n au)xe/na biai¿wj di¿khn tetrapo/dwn gv= proserri¿zwntai. As almas sem carnes e sem corpos, que passam os dias no teatro do Universo, desfrutam, sem que nada atrapalhe, visões e sons divinos, pelos quais já adentrou nelas um amor insaciável. Mas quantas carregam o fardo da carne, oprimidas e pressionadas, não podem olhar para cima, em direção às circunferências celestes; tendo sido pelo pescoço violentamente arrastadas para baixo, como se faz com quadrúpedes, foram firmemente fixadas na terra. (Gig. 31) Apesar de não chegar a ser quantitativamente insistente e repetitivo o recurso ao teatro nas descrições cosmológicas de Fílon, servindo como ilustração em alguns trechos somente, é curioso notar que sua presença no pensamento do autor é considerável, de modo que, inclusive, pode aparecer em uma relação cosmológica inversa. Explico: se o teatro pode ser usado para explicar elementos da natureza existente, um elemento da natureza pode explicar o teatro. É o que se pode verificar em Post. 104, em que Fílon afirma que os teatros das cidades prósperas (κατὰ πόλεις εὐδαίμονας - katà póleis eudeaímonas) eram construídos a partir de um modelo (παράδειγμα - parádeigma) da natureza, a orelha humana, formada por uma série de círculos menores dentro de círculos maiores. Até aqui, observei indícios relevantes da presença do teatro, enquanto edificação e arte espetacular, nos escritos de Fílon. Devo observar também que ele parece ter lido os consagrados tragediógrafos gregos, isto é, que o teatro enquanto gênero literário também é de seu conhecimento. Não será difícil encontrar ensejo para passar de um assunto ao outro, isto é, do palco ao texto, pois, no tempo de Fílon, ao menos um poeta trágico da Atenas clássica ainda tinha sua obra comumente levada ao palco, e o alexandrino, leitor e escritor, podia ver (para, logo, lembrar ou imaginar lembrança de) texto, palco e público juntos: pr%¯hn u(pokritw½n trag%di¿an e)pideiknume/nwn kaiì ta\ par'Eu)ripi¿dv tri¿metra diecio/ntwn e)keiÍna "tou)leu/qeron ga\r oÃnoma panto\j aÃcion, kaÄn smi¿kr' eÃxv tij, mega/l' eÃxein 283 nomize/tw", tou\j qeata\j aÀpantaj eiådon e)p' aÃkrwn podw½n u(p' e)kplh/cewj a)nasta/ntaj kaiì fwnaiÍj mei¿zosi kaiì e)kboh/sesin e)pallh/loij eÃpainon me\n th=j gnw¯mhj, eÃpainon de\ kaiì tou= poihtou= sunei¿rontaj, oÁj ou) mo/non th\n e)leuqeri¿an eÃrgoij a)lla\ kaiì touÃnoma au)th=j e)se/mnunen. Há pouco, quando atores exibiam uma tragédia e passavam por estes trímetros de Eurípides: “Pois o termo livre é digno de todo o universo / ainda que alguém tenha pouco, que julgue ter muito”, eu vi todos os espectadores levantando-se sobre a ponta dos pés pelo assombro, e com voz alta e gritos seguidos combinando louvor à máxima e louvor também ao poeta, que exaltou não somente a liberdade com as ações, mas também o próprio nome dela. (Prob. 141) Os versos que Fílon cita são de uma tragédia de que não dispomos na atualidade. Contudo, são citados também por Estobeu, que cita também dois versos que os antecedem e indica pertencerem à peça Auge de Eurípides (Flor. 49,3).474 Há uma mínima variação vocabular entre a citação de Fílon e a de Estobeu, o que pode sugerir que o alexandrino cita os versos consultando um manuscrito, ou pela memória de leitura anterior 475, ou, no mínimo, por uma meticulosa atenção ao texto escutado. Seja qual for o meio, o que me interessa é perceber que, no trecho citado, Fílon pode observar e aproveitar em sua exposição simultaneamente referências aos atores no palco, ao texto em sua forma precisa, e à reação do público. Espetáculo e texto estão imbricados de tal forma que o significado comunicado pelas palavras se realça pela reação dos que as escutam. Essa aproximação entre teatro e texto teatral faria supor, em princípio, que Fílon haveria de citar os trágicos com a mesma frequência com que se refere ao teatro. Não obstante, isso não acontece, ao menos não em todos os seus tratados. A aproximação verificada na citação servirá, então, para fazer-nos atentar antecipadamente para o fato de que o texto parece ser tão acessível quanto o espetáculo para Fílon, o que se confirmará pela observação de algumas citações, não tão abundantes nos tratados filônicos, à exceção de Prob.476, mas certamente significativas. Uma das citações de tragediógrafos que ocorrem fora de Prob., também ocorre nesse tratado. Trata-se de quatro versos que Nauck atribui ao drama satírico Sylleus477, de 474 475 476 477 Catalogado por Nauck sob o número 275. Cf. STOBAEUS, 1823, p. 298-299. Erkki Koskenniemi está convencido de que Fílon cita os trágicos de memória devido a variações de vocabulário encontradas nas citações (KOSKENNIEMI, 2006, p. 140). Tratado que, como procurei demonstrar, lida com textos do arquivo literário grego de modo diferente do que se percebe nos demais. Observei, inclusive, que, de modo peculiar, Fílon cita em Prob. Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Íon, referindo-se a eles pelo nome. Cf. fragmento 687 de Nauck (p. 575-576). 284 Eurípides, provavelmente porque Fílon o cita, em Prob. 99, pouco antes de recorrer à referida peça. Colson, contudo, em nota no trecho, sugere que Nauck tenha se precipitado na atribuição. Ainda que os versos não sejam parte de Sylleus, nesse trecho, Fílon informa que o autor é Eurípides e que o personagem que os profere é Héracles. O que me importa ressaltar é que esses mesmos versos são citados uma outra vez no próprio Prob. (25), e duas outras vezes, em Leg. 3.202 e Ios. 78, sem que Fílon nomeie autor ou personagem. A citação tal qual se realiza em Ios. 78 revela algo interessante, por isso convém citá-la: "pro\j tau=q'" w¨j o( tragiko/j fhsin "iãtw me\n pu=r, iãtw de\ fa/sganon". "pi¿mpra, ka/taiqe sa/rkaj, e)mplh/sqhti¿ mou pi¿nwn kelaino\n aiâma: pro/sqe ga\r ka/tw gh=j eiåsin aÃstra, gh= d' aÃneis' ei¹j ai¹qe/ra, priìn e)c e)mou= soi qw½p' a)panth=sai lo/gon." Como diz o trágico: “Pois então, que venha o fogo, e que venha a espada.” “Põe fogo, queima minhas carnes, enche-te de mim bebendo meu sangue escuro. Pois para baixo da terra as estrelas estarão, e a terra se lançará para o éter, antes que de mim se dirija para ti uma palavra aduladora!” (Ios. 78) O primeiro verso citado provém de uma fala de Etéocles na peça As Fenícias de Eurípides. Os demais, são os que, como disse, aparecem em outros três trechos, sendo, em um deles, atribuídos a uma fala de Héracles em alguma obra de Eurípides. Erkki Koskenniemi se admira com o fato de esses versos se confundirem aqui. Afirma que a explicação mais simples seria que Fílon tivesse se enganado e unido os versos como procedentes de uma só peça. Logo, contudo, reconhece que em ambos os textos Eurípides lida com o mau uso do poder humano, o que também se reflete no contexto em que Fílon cita o texto: um homem político que age como José, não permitindo que nada o impeça de cumprir seu dever (KOSKENNIEMI, 2006, p. 144). O pesquisador, contudo, talvez não tenha encontrado um dado importante que faz perceber a coerência da citação, e não chega a concluir o que parece espreitar. Não julgo problemática a conjunção das citações. Koskenniemi ressaltou, ainda que de passagem, algo importante, mas talvez não com os termos mais precisos. Os três textos, isto é, o discurso do qual provém o verso citado de As Fenícias, os quatro versos citados de obra desconhecida de Eurípides, e o discurso citante imaginado por Fílon para o verdadeiro político (ὁ πολιτικὸς ὄντως - ho politikòs óntos), indicam a obstinação de quem 285 não se submete ao outro que lhe quer retirar o poder e fazê-lo submisso. Não há, no texto, nenhuma repercussão de uma discussão sobre a justiça ou injustiça, e possíveis complicações éticas do poder exercido por Etéocles. É preciso lembrar que, embora possamos acessar os contextos originários dos textos que Fílon cita, não se deve subordinar de modo direto, necessariamente, a citação a seu contexto original. Fílon pode citar um verso retirando-o completamente de seu contexto, ou adotando somente uma faceta do mesmo. Portanto, repito, a faceta do contexto originário que Fílon aproveita do verso de As Fenícias é unicamente a obstinação de manter o poder, e não se deixar escravizar. E, nesse ponto, convém atentar para um fato não suficientemente assinalado: os quatro versos sem fonte determinada são acolhidos em contextos de pensamento semelhantes em todas as quatro vezes em que aparecem nos textos de Fílon. As duas primeiras ocorrências que mencionei se encontram em Prob. como ilustração a favor da tese central do tratado, o fato de que todo homem bom é livre, e não aceita ser escravizado. Esse tratado provavelmente foi escrito antes que os outros dois que repetem a citação, sem, contudo, alterarem o contexto. Em Leg. 3.202, Fílon diz que o sábio racional, que, obstinado e resoluto, se opõe a todos os sofrimentos, ao contrário dos que estão sujeitos às percepções sensoriais, poderia com jovial insolência (neanieusa/menoj – neanieusámenos) declamar essas palavras para o sofrimento. Ou seja, ele não se deixa escravizar pelas paixões e sentidos, mas permanece livre, um tema recorrente nos escritos de Fílon. Quanto à ocorrência da citação em Ios. 78, para perceber como seu contexto não dista daquele argumentado em Prob., basta observar que o discurso em que se encontra é atribuído ao verdadeiro político que, percebendo que o povo tem uma autoridade despótica, “não concordará em ser [ele mesmo] escravo, mas livre” 478 (Ios. 67). Tudo isso faz suspeitar que Fílon, tendo citado os quatro versos de Eurípides em Prob., quer por perceber ele mesmo a adequação dos mesmos ao tema, quer por tomar a citação de outro autor, mantém os mesmos quatro em seu repertório como citação plausível para discussões a respeito do mesmo tema. E, assim, os utiliza duas outras vezes na parte que nos chegou de sua obra. Inclusive, há pequenas variações vocabulares entre as citações, o que, como informei anteriormente, é indício, segundo Koskenniemi, de que elas são feitas de memória. Volto, agora, ao fato de estarem unidos os quatro versos a um de As Fenícias, na 478 Minha tradução de: au(to\n d' ou)x o(mologh/sei dou=lon a)ll' e)leu/qeron. 286 citação de Ios. 78, para observar que seria improvável que esses quatro versos citados repetidas vezes por Fílon para um mesmo contexto de reflexão, como item de um estoque de citações, fossem confundidos por ele involuntariamente como prosseguimento de um verso de outra peça. Deve-se notar que ele mesmo não diz, ao introduzir os versos, que formam parte do mesmo discurso. Apenas indica um único poeta trágico, o que não é errado, uma vez que Eurípides é autor de ambos. Parece-me muito razoável considerar que Fílon une deliberadamente as citações, aproveitando que o contexto de ambas é coerente com o que ele constrói, marcadamente pelo comum tema da obstinação do governante, e decisão de não se fazer escravo. Em vez de suspeitar de um erro do alexandrino, então, eu posso assinalar o trecho de Ios. 78 como marca da argúcia de Fílon para selecionar, recortar, rearranjar e citar um texto trágico. Isso é possível porque, além de espectador, como indiquei, ele está atento para a tragédia enquanto texto. E se alguém ainda indaga a respeito de como ele teria chegado a esse verso específico de As Fenícias quando pensa em alguém que resiste a se tornar escravo, basta ler o verso anterior proferido por Etéocles e a resposta se faz óbvia: ἄρχειν παρόν μοι, τῷδε δουλεύσω ποτέ; Estando o governar a minha disposição, quando serei escravo deste? (As Fenícias 420) Considero o observado a respeito dessas citações suficiente para demonstrar que o trabalho de Fílon com o texto dos poetas trágicos é atento e consciente. A partir daqui, então, mencionarei somente alguma outra citação para assegurar que o observado não se resume a um fenômeno extraordinário. Em Leg. 1.6-7, Fílon afirma que as coisas criadas por Deus não se findam ou permanecem imutáveis como os objetos criados pelo ser humano, mas que o fim de uma coisa é início de outra. Constata, então, a veracidade de três versos de um poeta trágico: wÐste a)lhqe\j eiånai to\ lego/menon oÀti qnv/skei d' ou)de\n tw½n gignome/nwn, diakrino/menon d' aÃllo pro\j aÃllo morfh\n e(te/ran a)pe/deicen. Assim, é verdade o que diz: “Nenhuma das coisas criadas morre: sendo separada uma coisa da outra, produz uma nova forma.” (Leg. 1.7) A peça da qual foram tirados esses versos, que se chamaria Crisipo e seria de 287 Eurípides, não nos chegou, mas esses e outros versos que os antecedem foram muito citados na Antiguidade, de modo que é possível reconstituir minimamente o contexto e perceber o corte feito por Fílon. Cito o fragmento completo para facilitar a exposição: GaiÍa megi¿sth kaiì Dio\j Ai¹qh/r, oÁ me\n a)nqrw¯pwn kaiì qew½n gene/twr, hÁ d' u(grobo/louj stago/naj noti¿aj paradecame/nh ti¿ktei qnhtou/j, ti¿ktei bota/nhn fu=la/ te qhrw½n: oÀqen ou)k a)di¿kwj mh/thr pa/ntwn neno/mistai. xwreiÍ d' o)pi¿sw ta\ me\n e)k gai¿aj fu/nt' ei¹j gaiÍan, ta\ d' a)p' ai¹qeri¿ou blasto/nta gonh=j ei¹j ou)ra/nion pa/lin hÅlqe po/lon: qnv/skei d' ou)de\n tw½n gignome/nwn, diakrino/menon d' aÃllo pro\j aÃllou morfh\n e(te/ran a)pe/deicen. A enorme Terra e o divino Éter, Ele, gerador dos humanos e dos deuses, Ela, úmidas precipitações de chuva recebendo, pare mortais, e pare pasto e raças de animais selvagens; donde, não injustamente, mãe de todos é considerada. E vai de volta o que se produz a partir da terra, para a terra, o que brota do Éter genitor, para a esfera celeste vai novamente. Nenhuma das coisas criadas morre: sendo separada uma coisa da outra, produz uma nova forma. (Nauck, frag. 839) Não sabemos o que segue aos versos que temos disponíveis, mas o trecho que os antecede é suficiente para que percebamos que o corte que Fílon realiza evita trazer a seu texto a Terra e o Éter personificados como deuses. Reconheço, contudo, que a seleção pode ter sido efetuada nessa medida por outros motivos, como pelo fato de que os três versos formam uma pequena parte que se adapta precisamente à argumentação em curso. É de se notar, inclusive, que, entre os vários autores que recorreram a esse trecho de Eurípides em seus discursos, alguns selecionaram exatamente os mesmos versos que encontramos na citação de Fílon.479 Mas em vez de retirar a 479 Inclusive, em duas das vezes em que ocorre em Aet., texto que tem a autoria de Fílon posta em dúvida (cf. p. 196), os versos são os mesmos (Aet. 5 e 144). No mesmo tratado, porém, aparece a citação com a inclusão de mais quatro versos anteriores (Aet. 30). 288 importância do trecho para a reflexão que desenvolvo, esse fato pode acrescentar outro dado relevante, ao menos como suspeita: Fílon não só pode selecionar e citar a partir de sua própria leitura dos textos, mas também permitir-se entrar em uma comunidade de citantes. Certamente, não será fácil comprovar o fato, pelas dificuldades de datação de alguns autores e a possibilidade da coincidência ou da existência de textos terceiros como fontes comuns. Mas é, ao menos, razoável pensar nesse sentido. E, assim, o jogo que a citação estabelece no texto escrito se torna ainda mais complexo. Há que se pensar a relação entre o texto (e contexto original) do trecho citado com o texto (e contexto) do discurso no qual se cita, e com o texto que o texto que cita se dedica a comentar (no caso de Fílon, geralmente, algum trecho da Torah). E a esse quadro já complexo é plausível acrescentar a consideração de uma pouco nítida, mas existente relação com outros textos (com seus diferentes contextos) que citam o mesmo trecho. E, assim, se considerariam, também, as relações entre texto citado e seus diferentes contextos de citação. No caso da citação desses três versos especificamente, porém, os outros citantes que os citam assim, conforme a catalogação de Nauck, são posteriores a Fílon. A respeito de um deles, Clemente de Alexandria, por ser sabido que se utilizou da obra de Fílon ao longo de seus escritos480, poderia se pensar que tivesse meramente recolhido a citação a partir de Leg. 1.7. Mas evidência contrária à dependência (exclusiva, ao menos) de Clemente para com Fílon no caso dessa citação é o fato de que o autor cristão informa dados que Fílon silencia a respeito do trecho citado: nome do poeta e da peça. 481 Decerto, não é impossível que, ao ler a citação em Fílon, Clemente reconhecesse a fonte e a quisesse indicar. A ampla quantidade de possibilidades me levam ao campo da conjectura, ao qual talvez não seja adequado adentrar neste ponto de meu texto. Portanto, permito-me somente uma observação a mais: o contexto em que a citação aparece na obra de Clemente é bastante peculiar. Não se trata de uma ilustração ou prova inserida em uma argumentação, mas de uma comparação. Clemente se dispõe a demonstrar que os autores gregos, tanto filósofos e historiadores, quanto poetas e retores, têm o costume de plagiar suas ideias. Começa, então, a arrolar uma grande série de paralelos entre trechos de diferentes autores. Esses versos de Eurípides, por exemplo, se contrapõem a trechos de Platão, Empédocles, e de um historiador. A quantidade de trechos de 480 481 A utilização da obra de Fílon na escrita dos Stromata, obra de Clemente em que se encontra a citação em estudo, é bem demonstrada por HOEK, 1988. Clemente, que diz se tratar de trecho de Crisipo de Eurípides, é o único a identificar a peça. Outros identificam somente o poeta pelo nome. As ocorrências em Aet., por sua vez, apenas informam tratar-se de versos de um poeta trágico. 289 diferentes autores comparados me faz suspeitar que Clemente não tenha se valido somente das obras em suas formas originais, mas de algum tipo de antologia previamente organizada, ou de citações que, antes, já as aproveitariam como ilustração de certas ideias. Isso facilitaria a associação temática entre os trechos, e, além disso, sugeriria a mim um exemplo da dinamicidade dos processos de citação que há pouco supus existir no caso de Fílon. Antes de seguir, apresento um trecho que serve como indício de que esse suposto fenômeno foi importante na escrita do alexandrino: pro\j toi¿nun toiÍj ei¹rhme/noij e)nargesta/th pi¿stij e)leuqeri¿aj i¹shgori¿a, hÁn oi¸ spoudaiÍoi pa/ntej aÃgousi pro\j a)llh/louj. oÀqen kaiì ta\ tri¿metra filoso/fwj e)keiÍna/ fasin ei¹rh=sqai: "ou) ga\r meteiÍnai tw½n no/mwn dou/loij eÃfu." kaiì pa/lin: "dou=loj pe/fukaj, ou) me/testi¿ soi lo/gou." Então, além do que já foi dito, a mais efetiva prova da liberdade é a igualdade no direito de falar, a qual todos os bons têm uns para com os outros. Donde também dizem ser dito filosoficamente os seguintes trímetros: “pois não foi dado por natureza aos escravos o ter parte nas leis” - e também - “És escravo por natureza, não tens parte no discurso”. (Prob. 48) Observe-se que Fílon diz que outros afirmam que esses trímetros são ditos de modo filosófico. Ou seja, ele provavelmente os havia lido citados em escritos alheios, nos quais eram assim caracterizados. Não sabemos a fonte de nenhum dos versos, mas sabemos, ao menos, que o segundo foi citado no século seguinte por Marco Aurélio (Aur. XI 30) como transmitindo algo verdadeiro. Não é estranha a coincidência, já que o imperador filósofo era expoente do estoicismo em sua época, e no tratado em que Fílon cita o verso o que ele defende é justamente uma tese estoica. O importante é que essa ocorrência dupla do verso e a maneira como Fílon o introduz em seu escrito deixam claro que aproveitar citações alheias não é algo que se encontra fora do hábito de nosso escritor. Mas o que importa diretamente neste tópico é a observação de que Fílon não se nega a citar trecho de um poeta trágico grego, seja como for o complexo e não completamente mapeável jogo implicado nessa citação, quando está a interpretar Gênesis e a explicitar, então, sua compreensão cosmológica a partir da leitura das Escrituras. Uma discussão semelhante a essa pode ser instigada também pela citação de dois versos de Antíope de Eurípides (Nauck, 200) em Spec. 4.47. Fílon discute o mandamento que proíbe o falso testemunho, e passa a expor a necessidade de não se deixar levar por alguém que se corrompe. Então, passa a afirmar que isso é válido também quando aqueles que agem injustamente e solicitam ação semelhante de um indivíduo são numerosos como grandes 290 multidões. A questão não é cosmológica, como antes, mas política: fu/sei ga\r eÀpesqai kalo/n, a)kolouqi¿# fu/sewj d' a)nti¿palon oÃxlou fora/. e)a\n ouÅn kata\ qia/souj kaiì poluanqrw¯pouj o(mi¿louj a)geiro/menoi¿ tinej newteri¿zwsi, tou/toij ou) sunainete/on w¨j to\ a)rxaiÍon kaiì do/kimon th=j politei¿aj no/misma parako/ptousi: sofo\n ga\r eÁn bou/leuma ta\j polla\j xe/raj nik#=, su\n oÃxl% d' a)maqi¿a meiÍzon kako/n. Pois é bom seguir a natureza, mas o impulso da multidão é rival do prosseguimento da natureza. Então, caso alguns que se ajuntam em confrarias e aglomerações muito numerosos façam inovações [revolucionárias], com eles não é preciso consentir, visto que falsificam a antiga e estimada moeda da cidadania: “pois uma deliberação sábia as muitas mãos / vence, com a multidão a ignorância é o maior mal.” O contexto originário completo dos versos não nos é acessível. Mas é possível inferir, através do pequeno trecho disponível, que não se distancia muito do tema político que Fílon desenvolve em seu texto. E, observe-se, o texto bíblico a partir do qual o exegeta alexandrino constrói sua argumentação não conduz, em princípio, a essa reflexão de âmbito político.482 Mas o intérprete leva o discurso a esse ponto, por meio de desdobramentos de uma aplicação do sentido da lei e, segundo penso, apoiando-se de modo sutil no segundo versículo do capítulo 23 do livro de Êxodo. Eis o versículo bíblico, que Fílon lê na LXX: οὐκ ἔσῃ μετὰ πλειόνων ἐπὶ κακίᾳ. οὐ προστεθήσῃ μετὰ πλήθους ἐκκλῖναι μετὰ πλειόνων ὥστε ἐκκλῖναι κρίσιν. Não seguirás junto com os muitos para o mal. Não assentirás com as assembleias483 para tender junto com a maioria, de modo a dobrar a justiça. (Ex 23:2) Mas ele não cita o versículo bíblico. O que faz é inserir os versos do poeta trágico sem anunciar que o faz, aproveitando-se, inclusive, da conjunção ( ga\r – gàr) que é parte do próprio verso citado e não uma inserção do escritor para encaixá-lo no discurso. Os versos aparecem como uma máxima sem indicação de procedência. Em princípio, só o conteúdo sapiencial é que importa. E importa justamente para auxiliar o escritor na demonstração de algo que já não se divisa claramente, mas sim implicitamente na Lei que ele está a comentar. Não há, como se percebe, ocorrência vocabular coincidente entre os versos e o versículo que 482 483 Não no sentido a que Fílon encaminha a reflexão. Reconheço, contudo, que a legislação mosaica, o decálogo incluído, implica uma dimensão política, como ocorre em geral com toda legislação. Esse é um possível sentido do texto grego lido sem que se considere o TM, que diz: ‫;ב‬u‫ה על־ר‬n ‫לא־תענ‬q×, o que se pode traduzir por “e não testemunharás em uma disputa”. Como Fílon não lia o texto em hebraico, preferi manter, na tradução, um entendimento a partir do texto grego somente. Se o sentido judicial pode ser percebido, isso se dá de forma menos imediata. 291 citei da LXX. Mas há termos de um mesmo campo semântico que facilitam a relação. É o suficiente para o exegeta, que está conduzindo uma leitura contextualizada, recorrer discretamente aos versos gregos, que provavelmente tornam mais imediata a relação entre o contexto da leitura e a exposição almejada. Mas, ainda que haja essa discrição de não anunciar a citação, o leitor atento, pode-se pensar, perceberia a métrica e, quiçá, reconheceria a origem dos versos. Isso não seria problema. Pelo contrário, o escritor alexandrino parece mesmo deixar poesia a ser encontrada em seu texto prosaico, talvez como pistas de sua formação, ou mostras de que também participa do arcabouço literário comum aos escritores do mundo habitado falante de grego. Se o contexto histórico e social da leitura que realiza é o do mundo helenofônico, não é estranho que ele cite um texto tradicional grego. Não há, como antes indiquei, grande variedade de citações explícitas de trágicos a mencionar nos tratados de Fílon, se excluído Todo homem bom é livre. Há, sim, além desses casos mencionados aqui e de outro já apresentado no capítulo anterior 484, alguns possíveis contatos verbalmente menos explícitos. Como exemplo, eu poderia mencionar uma frase que parece elaborada a partir de um verso de Eurípides (Ifigênia em Áulis 122) em Mos. 1.135. Mereceria algum destaque, também, uma referência ao mito de Édipo em Spec. 3.15ss. O alexandrino estava a observar a pertinência das leis da Torah contra variados tipos de incesto e, depois de relatar que a prática era comum entre os persas, diz: tau=t' e)pra/xqh to\ palaio\n kaiì par' àEllhsin e)n Qh/baij e)piì tou= Lai¿+ou paido\j Oi¹di¿podoj kaiì e)pra/xqh kat' aÃgnoian, ou)x e(kousi¿% gnw¯mv, kaiì oÀmwj tosau/thn kakw½n fora\n hÃnegken o( ga/moj, w¨j mhde\n e)lleifqh=nai tw½n ei¹j th\n a)nwta/tw barudaimoni¿an. E tais coisas foram praticadas antigamente também entre os gregos, em Tebas, no tempo de Édipo, filho de Laio. E foram praticadas na ignorância, não com uma deliberação voluntária. Não obstante, o casamento trouxe tal profusão de males, que não faltava nada do que conduz à consternação em seu nível mais extremo. (Spec. 3.15) Fílon faz referência aos acontecimentos apresentados em Édipo Rei de Sófocles, e, no trecho subsequente, aos que figuram em Sete Contra Tebas de Ésquilo. Não há, contudo, citação de versos ou referência explícita aos textos dos poetas, embora a ênfase na ignorância de Édipo possa nos fazer lembrar com precisão da composição sofocliana. O mito somente é aproveitado, como se fosse referente a eventos muito antigos, mas realmente ocorridos entre os gregos. 484 Cf. p. 193. 292 Alusões como essa podem ser esparsas na obra de Fílon, mas, junto com as citações apresentadas, e com o que ele diz a respeito do teatro, me parecem suficientes para evidenciar que ele se relaciona de modo próximo com essa arte poética e cênica (espetáculo e texto), e que ele a conhece de primeira mão, e a utiliza, com frequência, de modo pensado. 5.5 O tratado Embaixada a Gaio na obra de Fílon e sua contextualização histórica/teológica Embaixada a Gaio é um dos poucos tratados em que Fílon não se dedica a fazer uma interpretação ou reescrita do texto da LXX. Trata, isso sim, de questões históricas contemporâneas. Outros escritos dessa natureza são Sobre a vida contemplativa e Contra Flaco. O primeiro é bastante diferente no sentido de que não aborda de modo direto tensões entre os judeus e outros grupos com os quais conviviam, mas relata o modo de vida de uma comunidade judaica que se encontrava separada da vida urbana, nos arredores de Alexandria, e que é identificada como comunidade dos “terapeutas” (θεραπευταί – therapeutaí).485 Contra Flaco, por outro lado, se assemelha a Embaixada a Gaio não só por tratar de tensões vivenciadas pela comunidade alexandrina na qual Fílon vivia, mas também por referir-se, em alguns trechos, a um mesmo período e aos mesmos acontecimentos. Esses dois tratados são, pois, especialmente importantes quando se busca alguma compreensão sobre a relação de Fílon com a cidade de Alexandria de seu tempo, com a comunidade judaica, com o poder romano, e, enfim, com a vida política. Se a participação política de Fílon não nos é completamente clara mesmo com esses dois tratados disponíveis, produzindo um persistente confronto de interpretações divergentes, certo é que seria praticamente impossível pensá-la se não os tivéssemos. Suporíamos, a partir dos demais escritos, que ele era um pensador contemplativo desconectado dos acontecimentos que o cercavam e, no máximo, estranharíamos alguns 485 Sobre o significado do termo e a identidade desses judeus, que chegaram a ser considerados como cristãos por Eusébio (H.E. II 17), como uma mera invenção de Fílon, ou como um ramo dos próprios essênios (VERMES, 1975, p. 30-36), cf. TAYLOR, 2006, p. 54ss; TAYLOR; DAVIES, 1998; CALABI, 2008, p.173-181. Sobre a habilidade retórica mobilizada por Fílon para a construção do tratado, cf. ALEXANDRE JR., 2001, que sugere que o tratado pode servir como um alerta para que os judeus não se deixem assimilar completamente. David Hay percebe que Fílon exalta as características judaicas que mais preza como sendo fortemente presentes entre os “terapeutas”. O autor entende que um dos objetivos do tratado pode ser convidar os leitores judeus a se orgulharem desse modo de vida e a aprenderem com os “terapeutas”, mesmo sem se unirem literalmente a seu modo de vida monástico (HAY, 2002, p. 348). Certamente, Fílon não busca explicitar um retrato neutro da comunidade dos “terapeutas”, mas a apresenta de modo elogioso e constrói um texto que alcance esse objetivo. 293 trechos que acabaríamos por considerar enigmáticos. Por isso, não me parece despropositado o trabalho de Goodenough, que considera primeiro esses dois tratados “políticos” de Fílon para, com base no contexto percebido a partir deles, interpretar elementos dos escritos exegéticos (GOODENOUGH, 1938, p. 21ss), ainda que eu considere precipitadas muitas de suas conclusões. Pela leitura de Flacc. e Legat., Goodenough caracteriza Fílon como “um político destemido e experiente”486 (GOODENOUGH, 1938, p. 20). Não nego que Fílon tenha tido certa importância política na comunidade alexandrina, uma vez que foi escolhido para compor e até mesmo chefiar a embaixada dos judeus enviada a Gaio para tratar de uma negociação política urgente.487 Mas é preciso considerar que há, por outro lado, alguma relutância de Fílon diante dessas ocupações. Parece-me importante considerar com atenção as seguintes palavras: å n pote xro/noj, oÀte filosofi¿# sxola/zwn kaiì qewri¿# tou= H ko/smou kaiì tw½n e)n au)t%½ to\n kalo\n kaiì peripo/qhton kaiì maka/rion oÃntwj nou=n e)karpou/mhn, qei¿oij a)eiì lo/goij suggino/menoj kaiì do/gmasin, wÒn a)plh/stwj kaiì a)kore/stwj eÃxwn e)neufraino/mhn, ou)de\n tapeino\n fronw½n hÄ xamai¿zhlon ou)de\ periì do/can hÄ plou=ton hÄ ta\j sw¯matoj eu)paqei¿aj i¹luspw¯menoj, a)ll' aÃnw meta/rsioj e)do/koun a)eiì fe/resqai kata/ tina th=j yuxh=j e)piqeiasmo\n kaiì sumperipoleiÍn h(li¿% kaiì selh/nv kaiì su/mpanti ou)ran%½ te kaiì ko/sm%. [...] e)fh/dreue d'aÃra moi to\ kakw½n a)rgalew¯taton, o( miso/kaloj fqo/noj, oÁj e)capinai¿wj e)pipeswÜn ou) pro/teron e)pau/sato kaqe/lkwn pro\j bi¿an hà me katabaleiÍn ei¹j me/ga pe/lagoj tw½n e)n politei¿# fronti¿dwn, e)n %Ò forou/menoj ou)d' oÀson a)nanh/casqai du/namai. Houve um tempo em que, dedicando meu tempo à filosofia e à contemplação do cosmo e do que há nele, eu usufruía da mente verdadeiramente feliz, desejável e bela. E me deleitava em estar sempre junto dos lógoi e dogmas divinos, dos quais eu nunca estava saciado e satisfeito. Não ocupava meus pensamentos com nada baixo ou rasteiro, nem me arrastando para perto da glória, ou da riqueza, ou dos agrados sensoriais do corpo, mas parecia que sempre me movia elevado do chão, por uma inspiração da alma, e que circulava na companhia do Sol, da Lua, do cosmo e do céu em conjunto. […] Mas, então, me espreitava o mais doloroso dos males, a inveja que odeia o bem, a qual, sobrevindo de repente, não cessou de me puxar antes de me lançar à força para o grande mar dos cuidados com a cidadania, pelo qual sendo levado não sou capaz nem mesmo de vir à tona. (Spec. 3.1 e 3) Embora tenha surgido a hipótese de que as agitações cívicas a que Fílon se refere no trecho fossem justamente os eventos narrados em Flacc. e Legat. (cf., por exemplo, 486 487 Minha tradução de: a fearless and experienced politician. A esse respeito, há um testemunho externo em Josefo (AJ XVIII 259-260). 294 WINSTON, 1981, p. 329), é mais difundida a ideia de que se tratasse de situações que antecederam tais eventos, mas que podem, inclusive, ter sido um prelúdio para os mesmos (BORGEN, 2005, p. 171-175). Fato é que distúrbios contemporâneos impossibilitaram a dedicação total do alexandrino a seu trabalho contemplativo. Mas essa contraposição no texto de Fílon entre ocupação contemplativa e ocupação política pode sugerir, também, que uma coisa tenha levado à outra. Não é impossível que sua habilidade política e até mesmo sua representatividade sejam oriundas de seu trabalho reflexivo e de sua dedicação à compreensão das possibilidades de exposição de seus pensamentos gestados em seu lugar intercultural. Ou seja, sua posição de negociação em uma questão histórica real pode ser consequência da capacidade de negociação intercultural reconhecida em seus textos. Seu lugar de destaque no círculo intelectual dos judeus alexandrinos (juntamente com sua óbvia formação consistente e seu prestígio familiar) pode ter contribuído para que fosse levado a ocupar-se de questões práticas urgentes. Isso não significa necessariamente, contudo, que tenha exercido um cargo político determinado na comunidade judaica alexandrina.488 Se o trabalho intelectual de Fílon pode ser considerado, em parte, motivo de seu engajamento em questões políticas contemporâneas, não é menos verdade que essa participação, posteriormente, se tornaria parte de seu trabalho intelectual. Isso se dá ao menos no caso dos eventos mais drásticos, que vieram a tornar-se texto em Flacc. e Legat.. E esse aproveitamento do vivido na composição do relato não se faz de modo imediato, como se se tratasse somente de reproduzir em palavras a experiência presentificada pela memória. É possível perceber o esforço do intelectual de quem não somente conta, mas pensa a respeito do que está por contar (interpretativo) e a respeito da maneira como contar (expressivo). 489 Por isso, Peder Borgen pode afirmar que “Contra Flaco e Embaixada a Gaio devem ser vistos 488 489 Em AJ XVIII 259-260, logo após afirmar que Fílon foi líder da embaixada, Josefo informa que ele era “não inexperiente em filosofia” (φιλοσοφίας οὐκ ἄπειρος – philosophías ouk ápeiros). Martin Goodman questiona o motivo dessa caracterização relacionada com a embaixada, e observa que, a partir dos muitos testemunhos a respeito de embaixadas, pode-se dizer que não era comum que filósofos fossem os escolhidos como representantes, e informa, inclusive, que nenhum filósofo foi enviado como embaixador durante o período imperial (GOODMAN, 2011, p. 39; cf. Visão divergente em LYONS, 2011, p. 2). Observo, então, que não estou propondo que a comunidade judaica alexandrina (parte dela) tenha enviado Fílon por ser filósofo. Na verdade, entendo que ele fosse visto em seu meio, a partir de seus muitos escritos, como intelectual hábil nos conhecimentos gregos e comprometido com a religiosidade judaica, exegeta e escritor prolixo. A presença do termo no relato de Josefo pode ter outros motivos, como o próprio Goodman observa (GOODMAN, 2011, 44-45). O fato de realizar certo esforço intelectual em meio a momentos turbulentos é evidenciado por Fílon no prosseguimento do trecho citado de Spec. 3. Ele diz que erguia a cabeça e inspecionava o entorno com os olhos da alma (τοῖς τῆς ψυχῆς ὄμμασιν - toîs tês psykhês ómmasin, Spec. 3.4). 295 como interpretação teológica de eventos históricos. Tanto motivos bíblicos quanto helenísticos foram mobilizados na interpretação de Fílon para os eventos” 490 (BORGEN, 2005, p. 285). É oportuno acrescentar a consideração de Daniel Schwartz, que entende que, ao escrever esse par de tratados, Fílon se coloca como um romancista didático e religioso: “As histórias de Fílon são frequentemente prazerosamente lidas e escutadas ao serem lidas, mas esse prazer, às vezes, é resultado de uma disposição para se afastar dos fatos com vistas a tornar a história mais dramática.”491 (SCHWARTZ, 1990b, p. 119).492 Bem, é justamente essa empreitada interpretativa e criativa, com perceptível mobilização de motivos bíblicos e helenísticos em conjunto, associada à disposição de se fazer escritor, atentando para a construção de uma narrativa dramática, que me possibilitará falar da expressão de certo “trájico” em Legat.. Por ora, contudo, basta alertar o leitor sobre esse aspecto interpretativo e expressivo desses dois tratados históricos do alexandrino.493 490 491 492 493 Minha tradução de: […] are to be seen as theological interpretation of historical events. Both biblical and Hellenistic motifs have been worked into Philo's interpretation of the events. Minha tradução de: Philo's histories are frequently quite enjoyably read or heard read, but this enjoyment sometimes results from a willingness to depart from the facts in order to make the story more dramatic. Um exemplo de como a consideração dessa característica dos tratados históricos de Fílon é relevante para sua compreensão pode ser visto em um artigo de Allen Kerkeslager. O autor investiga a menção que Fílon faz de três pessoas que aconselhavam Flaco: Dioniso, Lampo e Isidoro. Mas ele o faz considerando que o texto não é meramente histórico, mas que Fílon “cuidadosamente moldou a estrutura geral do texto, a retórica e o vocabulário para conformar a modelos e temas derivados da filosofia, da historiografia clássica, dos romances antigos e do teatro. Assim, ele criou uma tragédia literária de proporções épicas a partir de eventos que, para os de fora, podem ter parecido ser uma mera colisão na estrada da história provincial romana. A narrativa resultante é repleta com um protagonista trágico reminiscente dos dramas lendários da hýbris e uma população saqueada descrita com o evocativo imaginário de uma conquista militar.” [carefully molded the text’s overall structure, rhetoric, and wording to conform to models and themes derived from philosophy, classical historiography, ancient novels, and the theater. In this way he created a literary tragedy of epic proportion out of events that for outsiders might have seemed to be a mere bump in the road of Roman provincial history. The resulting narrative is replete with a tragic protagonist reminiscent of legendary dramas of hubris and a plundered population described with the evocative imagery of a military conquest.] (KERKESLAGER, 2005, p. 52). Embora o estudioso não se dedique à uma exposição das características literárias do texto como um todo, esse pressuposto que estabelece rege sua investigação a respeito da participação do trio mencionado na narrativa, de modo que encontra explicação literária para sua presença na trama contada por Fílon e absência na história dos eventos. A desconsideração da criação literária faria com que a busca fosse em outra direção e, certamente, infrutífera, ou meramente especulativa. Convém observar que não ignoro o fato de que Fílon não é o único a escrever história de semelhante maneira. Em diferente medida, talvez, apresentei uma prática comparável em Josefo (cf. p. 271ss). Ademais, isto que Horst observa a respeito de Flacc. serve perfeitamente para Legat.: “O In Flaccum de Fílon não é somente uma peça de historiografia, é mais que isso. O livro de Fílon não é, contudo, excepcional visto que não há documento histórico da Antiguidade que se esforce por uma objetividade completamente afastada ou desinteressada. Era parte e porção da arte do historiador em tempos antigos levar uma mensagem, quer fosse moral, filosófica, religiosa ou 296 Agora, antes de seguir para a observação de aspectos específicos do texto, convém considerar minimamente os eventos históricos que o motivam. 494 Começo mencionando os acontecimentos que são narrados tanto em Legat. quanto em Flacc.. Trata-se de uma perseguição aos judeus alexandrinos levada a cabo por outros moradores da cidade. Um primeiro momento da crise tem seu início justamente em um tipo de encenação teatral, segundo o relato de Flacc.. Agripa passava por Alexandria, e a população local não perdeu a oportunidade de zombar dele e dos judeus que o honravam. Tomaram um louco chamado Carabás, conhecido por vagar nu pela cidade, e o levaram ao ginásio. 495 Vestiram-no improvisadamente de rei e chamaram-no “Marim”, termo que seria usado em aramaico, língua de Agripa, para referir-se a um rei. Isso faziam como se tratando de um mimo teatral (w¨j e)n qeatrikoiÍj mi¿moij - hos en theatrikoîs mímois, Flacc. 36-39)496. O trecho de Flacc. que cito a seguir explicita parte importante do desenvolvimento da crise, quando deixa de ser uma representação burlesca e passa a transformar-se em uma realidade cruel: o)li¿gaij ga\r uÀsteron h(me/raij ti¿qhsi pro/gramma, di' ou ce/nouj 494 495 496 antirreligiosa, e os 'eventos' narrados eram usados para esse fim. Com referência a isso, fala-se de historiografia 'retórica', ou de historiografia 'dramática', 'trágica' ou 'empática', mas não há designação geralmente aceita para o gênero” [Philo's In Flaccum is not just a piece of historiography, it is more than that. Philo's book is, however not exceptional in só far as there is no historical document from antiquity that strives for completely detached or disinterested objectivity. It was part and parcel of the art of the historian in ancient times to convey a message, either moral or philosophical or religious or anti-religious, and the 'events' narrated were used for this purpose. In this connection, one speaks of 'rhetorical' historiography or of 'dramatic' or 'tragic' or 'empathic' historiography, but there is no generally accepted designation for the genre] (HORST, 2003, p. 11). Observo que não tenho qualquer pretensão de que esta apresentação do tratado e de seu contexto histórico seja completa e satisfatória por si mesma. Faço-a somente na medida da necessidade para a análise a que me encaminho. Para uma apresentação abrangente e exaustiva, sugiro o comentário de SMALWOOD, 1961, e, para uma reconstrução histórica de eventos de alguma forma relacionados ao tratado, convém recorrer também a GAMBETTI, 2009 (ambos aproveitados ao longo deste meu estudo). Também é preciso comunicar com satisfação que, enquanto escrevo esta tese, Tatiana Faia (Universidade de Lisboa) prepara uma introdução notavelmente ampla, que acompanhará sua tradução anotada de Embaixada a Calígula (tradução que já é utilizada nesta tese). Os responsáveis pelos distúrbios começam sua ação no ginásio, logo se dirigirão ao teatro. Ocupam esses dois lugares cívicos propriamente gregos para, em seguida, avançarem sobre espaços que seriam, em princípio, próprios dos judeus, as sinagogas e as casas de famílias judias. O domínio espacial sobre a cidade revela o intento de afirmar Alexandria como cidade grega, com a segregação dos judeus (cf. ALSTON, 1997). Seguindo o vocabulário que venho adotando: um grupo de gregos queria demarcar como próprio (e exclusivo) deles espaços que Fílon e outros judeus entendiam como comum. Em seguida, se propuseram a impedir também que os judeus tivessem espaços próprios espalhados pela cidade. Fílon diz que Agripa desembarcou discretamente em Alexandria, de passagem para a Judeia e pretendendo não ser notado. Há, contudo, certa dúvida a esse respeito. Suspeita-se que a encenação burlesca organizada no ginásio pelos alexandrinos seja uma paródia de alguma aparição do rei durante sua estadia na cidade (KUSHNIR-STEIN, 2000, p. 235). 297 kaiì e)ph/ludaj h(ma=j a)peka/lei mhde\ lo/gou metadou/j, a)ll' a)kri¿twj katadika/zwn. ou ti¿ aÄn eiãh turanni¿doj e)pa/ggelma meiÍzon; au)to\j geno/menoj ta\ pa/nta, kath/goroj, e)xqro/j, ma/rtuj, dikasth/j, kolasth/j, eiåta dusiì toiÍj prote/roij kaiì tri¿ton prose/qhken e)feiìj w¨j e)n a(lw¯sei toiÍj e)qe/lousi porqeiÍn ¹Ioudai¿ouj. oi¸ de\ labo/ntej aÃdeian ti¿ pra/ttousi; pe/nte moiÍrai th=j po/lew¯j ei¹sin, e)pw¯numoi tw½n prw¯twn stoixei¿wn th=j e)ggramma/tou fwnh=j: tou/twn du/o ¹Ioudai+kaiì le/gontai dia\ to\ plei¿stouj ¹Ioudai¿ouj e)n tau/taij katoikeiÍn: oi¹kou=si de\ kaiì e)n taiÍj aÃllaij ou)k o)li¿goi spora/dej. ti¿ ouÅn e)poi¿hsan; e)k tw½n tessa/rwn gramma/twn e)c%¯kisan tou\j ¹Ioudai¿ouj kaiì sunh/lasan ei¹j e(no\j moiÍran braxuta/thn. Alguns dias mais tarde, de facto, [Flaco] promulgava um edicto no qual nos declarava estrangeiros e imigrantes, não nos concedendo qualquer direito a defender a nossa causa, mas condenando-nos sem julgamento. Que maior declaração de tirania poderia haver? Flaco assumiu, sozinho, todos os papéis: acusador, inimigo, testemunha, juiz, carrasco. Em seguida, aos dois primeiros crimes acrescentou um terceiro, permitindo, como no saque de uma cidade, a quem assim o desejasse, espoliar os Judeus. Garantida a impunidade, que fazem as pessoas? A cidade tem cinco quarteirões, que são designados pelas cinco primeiras letras do alfabeto. Dois deles são também chamados quarteirões judaicos, pois aí habitam Judeus em grande número e não são poucos os que vivem dispersos pelos restantes. Que fizeram então? Expulsaram os Judeus de quatro desses quarteirões e concentraram-nos numa pequeníssima parte de um só. (Flacc. 54-55, Tradução de Tatiana Faia. Acréscimo meu.) Flaco, governante de Alexandria, é acusado como o grande responsável pela perseguição em Flacc., como revela de modo contundente esse trecho. Segundo esse tratado, ele o fazia na tentativa de agradar o imperador Gaio, a quem temia grandemente. Em Legat., de modo diverso, Gaio deixa de ser apresentado somente como pretexto e passa a ser o responsável direto pela perseguição. Sandra Gambetti bem observa que essa variação revela não um problema de precisão histórica, mas uma questão que deve ser explicada a partir de um ponto de vista historiográfico, considerando-se a possibilidade de diferentes datas de composição para ambos tratados. Flacc. teria sido escrito antes da morte de Gaio, enquanto Legat. é posterior. Enquanto o imperador estava vivo, Fílon não o teria podido acusar diretamente. Acusava somente Flaco, que já estava morto. Após a morte do imperador e a ascensão de Cláudio, por outro lado, ele já poderia atribuir àquele, de modo aberto, a culpa por mais esses crimes (GAMBETTI, 2009, p. 16). Convém ressaltar que ao menos o fato de que Legat. foi escrito depois da morte de Gaio é certo, uma vez que Fílon se refere a Cláudio como imperador (Legat. 206). Antes de ir além desses acontecimentos e seguir com outros fatos expostos 298 especificamente em Legat., cito outro trecho, que revela a extrema violência a que chegaram os eventos. Depois de relatar as consequências econômicas do cerceamento espacial, Fílon relata os sofrimentos impostos àqueles que saiam dos limites recém-estabelecidos: oi¸ dustuxeiÍj. eu)qu\j ga\r sunarpasqe/ntej u(po\ tw½n th\n o)xlokrati¿an e)piteixisa/ntwn dolofonou=ntai kaiì suro/menoi kaiì patou/menoi dia\ th=j po/lewj a(pa/shj e)canalw¯qhsan, ou)deno\j u(poleifqe/ntoj me/rouj, oÁ dunh/setai koi66 nwnh=sai tafh=j. muri¿ouj me/ntoi kaiì aÃllouj polutro/poij kakw½n i¹de/aij e)pitethdeume/naij ei¹j xaleph\n w©mo/thta kateirga/santo kaiì die/fqeiran oi¸ lelutthko/tej u(p' a)grio/thtoj ei¹j qhri¿wn fu/sin: tou\j ga\r oÀpv tu/xoi fane/ntaj tw½n ¹Ioudai¿wn hÄ kate/leuon hÄ cu/loij kate/kopton ou)k eu)qu\j e)piì ta\ kairiw¯tata me/rh ta\j plhga\j fe/rontej, iàna mh\ qa=tton teleuth/santej qa=tton kaiì th\n tw½n o)dunhrw½n a)nti¿lhyin a)po/qwntai. tv= de\ tw½n sumforw½n a)dei¿# kaiì e)kexeiri¿# tine\j e)pineanieuo/menoi, tw½n a)mblute/rwn oÀplwn a)logh/santej, a)nela/mbanon ta\ pa/ntwn a)nusimw¯tata, pu=r kaiì si¿dhron, kaiì pollou\j me\n ci¿fesin a)neiÍlon, ou)k o)li¿gouj de\ puriì die/fqeiran. hÃdh de\ kaiì genea\j oÀlaj, aÃndraj meta\ gunaikw½n, te/kna nh/pia meta\ gone/wn, e)ne/prhsan oi¸ pa/ntwn a)nhlee/statoi kata\ me/shn th\n po/lin, mh\ gh=raj, mh\ neo/thta, mh\ pai¿dwn aÃkakon h(liki¿an oi¹ktisa/menoi: kaiì o(po/te cu/lwn uÀlhj a)porh/seian, fru/gana sulle/gontej kapn%½ to\ ple/on hÄ puriì die/fqeiron, oi¹ktro/teron kaiì e)pimhke/steron oÃleqron toiÍj deilai¿oij texna/zontej, wÒn ta\ sw¯mata h(mi¿flekta a)namiìc eÃkeito, xaleph\ kaiì o)dunhrota/th qe/a. Pobres homens... Imediatamente agarrados por aqueles que contra eles haviam atiçado o poder da multidão, foram assassinados à traição, arrastados à força por toda a cidade e espezinhados. Foram completamente desfeitos: nada restou do corpo que se pudesse sepultar. Outros, em número incontável, foram subjugados e aniquilados com recurso às mais diversas formas de violência, postas em prática para satisfazer a crueldade atroz daqueles que, enlouquecidos, foram reduzidos, pela ferocidade demonstrada, à condição de animais selvagens. Onde quer que avistassem Judeus, apedrejavam-nos ou agrediam-nos com bastões, evitando atingi-los de imediato com golpes em partes vitais para impedir que, morrendo de forma mais rápida, também mais rapidamente se libertassem da consciência dos seus sofrimentos. Alguns tornaram-se mais impetuosos, devido à impunidade e licença com que podiam praticar estes crimes e, desprezando armas menos violentas, recorreram às mais eficazes de todas – ferro e fogo. Muitos pereceram pela espada e não poucos foram mortos pelo fogo. Para cúmulo de tudo isto, os mais impiedosos queimaram em plena cidade famílias inteiras: os maridos com as suas esposas, as crianças pequenas com os seus pais, não lhes despertando qualquer compaixão nem a velhice, nem a juventude, nem a idade inocente das crianças. Quando faltaram troncos para os queimar, juntaram restos de madeira e matavam-nos mais por asfixia do que propriamente pelo fogo, inventando uma morte mais lenta e dolorosa para esses infelizes, cujos corpos meio queimados jaziam desordenadamente, num espectáculo penoso e extremamente aflitivo de se ver. (Flacc. 65-68, 299 tradução de Tatiana Faia) Além de explicitar o alcance dos acontecimentos, esse trecho me possibilita antecipar uma observação importante: na exposição, há um cuidado com a descrição visual dos eventos, e, inclusive, uma consideração do narrador de que os mesmos se constituem como um “espetáculo penoso e extremamente aflitivo de se ver” (xaleph\ kaiì o)dunhrota/th qe/a - khalepè kaì odynerotáte théa). A violência real se mostra como espécie de espetáculo. Pouco adiante, inclusive, Fílon afirma que os que praticavam tais atos de violência, como nos mimos teatrais (wÐsper e)n toiÍj qeatrikoiÍj mi¿moij – hósper en toîs theatrikoîs mímois), fingiam ser eles mesmos as vítimas. Há uma cena construída que está além do curso normal do mundo. Papéis são invertidos e isso pode ser visto por todos, como se Alexandria fosse um grande palco: anciãos que regiam as questões da comunidade judaica foram conduzidos ao teatro e açoitados em público, outro espetáculo muito lamentável (θέαν οἰκτίστην – théan oiktísten, Flacc. 74); pessoas inocentes eram torturadas no teatro com fogo e espada para logo serem crucificadas (Flacc. 84); no teatro, também, os espectadores passavam a ser tiranos e ordenavam que mulheres judias comessem carne de porco, as que se recusavam eram torturadas (Flacc. 95-96). É preciso notar que Fílon se coloca como espectador, e não como ator nesses eventos, e nem tampouco indica o motivo de sua ausência na cena do conflito.497 Mas sua posição poderá ser alterada em outras situações, sobretudo em Legat.. O espetáculo cruel que teve lugar em Alexandria aparece já terminado e é evocado como algo passado no tempo da narrativa de Legat.. É mencionado como consequência direta do fato de os judeus se recusarem a reconhecer Gaio como um deus, o que seria também o único motivo de inimizade do imperador para com esse povo específico. Como o próprio título do tratado indica, a narrativa se concentra em eventos que ocorrem durante o tempo em que uma embaixada havia sido enviada por judeus alexandrinos para ter com o imperador. Essa embaixada não é prontamente recebida para expor suas questões e discutir uma solução. Há uma espera de meses até que o imperador se dispusesse finalmente a recebê-la. Havia, também, uma embaixada contrária enviada de Alexandria, que estava ali para se opor aos 497 A partir dessa constatação, discuto a possibilidade de se considerar o escrito de Fílon como testemunho literário em um artigo no qual tomo Primo Levi como ponto de comparação, e a reflexão de Agamben sobre a testemunha como referência teórica (RIOS, 2009/2010). Não desenvolvo o tema aqui para não me afastar do foco principal deste capítulo. Mas remeto ao artigo por julgar complementar a reflexão nele estabelecida, embora, em alguns trechos, haja certa coincidências com o que aqui se apresenta, uma vez que se trata de resultado da mesma pesquisa. 300 interesses dos judeus. Uma questão a se resolver é a natureza desses interesses que estão em discussão. Smallwood observa que é razoável pensar que o primeiro objetivo da embaixada enviada pelos judeus fosse requerer o retorno às condições usufruídas antes dos distúrbios de 38 d.C. (descritos nas citações anteriores), inclusive a garantia do direito à liberdade religiosa. Mas a autora acrescenta a possibilidade de que os enviados pudessem negociar também a respeito do anseio de alguns judeus alexandrinos de adquirirem a completa cidadania grega (SMALLWOOD, 1961, p. 24-25). Nesse sentido, a embaixada dos outros alexandrinos poderia ser vista como obstáculo às pretensões dos judeus de alcançarem o direito à plena cidadania alexandrina (STAROBINSKI-SAFRAN, 1987, p. 63-64). Não há unanimidade a esse respeito. Aryeh Kasher, por exemplo, discorda duramente dessa proposta e afirma não haver evidências de que os judeus alexandrinos em qualquer momento almejaram a cidadania na polis grega. O pesquisador entende que eles buscavam igualdade de direitos para o grupo e não esse tipo de adesão oficial (KASHER, 2008, p. 118-119). 498 Parece-me concorde a posição de Kraus Reggiani, que, ao observar as expressões utilizadas por Josefo para referirse à condição política dos judeus no Egito (ἰσομοιρία – isomoiría, BJ II 487; ἴση τιμή – íse timé, Ap. II 35; ἴση πολιτεία – íse politeía, AJ XIX 281), sugere que o adjetivo ἴσος - ísos não deve ser lido como indicando identidade, mas equivalência (REGGIANI, 1984, p. 579). Em Legat. 194, de fato, Fílon indica que a preocupação central dos que estavam na embaixada era mostrar que eram “alexandrinos” (Ἀλεξανδρεῖς - Aleksandreîs). Mas o termo não deve nos levar apressadamente a considerar que Fílon se refere a todos os judeus residentes em Alexandria, nem a uma cidadania alexandrina plena. Smallwood entende que a palavra, no passo, indica somente a requisição do direito de residir na cidade, como ocorria antes do já referido encurralamento perpetrado contra os judeus pelos outros alexandrinos (SMALLWOOD, 1961, p. 194)499. Sylvie Honigman, por sua vez, afirma que, se lermos o termo com um sentido estritamente jurídico, teremos que considerar falsa a afirmação de Fílon, uma vez que os judeus, em geral, não desfrutavam de cidadania plena em Alexandria. 500 Honigman afirma: 498 499 500 O pensamento de Kasher a respeito da busca dos judeus por igualdade de direitos no Egito sob domínio romano em geral, não restrito ao caso de Fílon, está mais detalhado em KASHER, 1985. Sobre a questão a partir dos textos de Fílon, cf. páginas 233-261. Uma sistematização resumida e clara das conclusões do autor figura nas páginas 260 e 261. Cf. também SMALLWOOD, 1961, p. 255. Não obstante, tem-se como plausível que alguns dos judeus, entre os mais abastados, como é o caso de Fílon e sua família, desfrutassem dessa cidadania plena, usufruindo de todos os benefícios da 301 “os judeus são alexandrinos, se a palavra tem um sentido cultural e não jurídico” 501 (HONIGMAN, 1997, p. 81). Aryeh Kasher observa que o termo é usado com um sentido mais amplo não somente por Fílon. A partir do estudo de evidências encontradas em papiros e inscrições, ele assinala que “o termo 'Alexandrinos' era usado na vida cotidiana para denotar não somente os cidadãos da polis grega, mas também a origo de residentes permanentes da cidade, e, na minha opinião, especialmente aqueles que possuíam uma politeia”502 (KASHER, 2008, p. 117). Essa politeia mencionada é considerada por Kasher como uma cidadania alternativa determinada pelo pertencimento a um políteuma (comunidade etnicamente demarcada e inserida na cidade como unidade relativamente autônoma), e paralela à cidadania da polis grega. Voltarei a mencionar esse assunto específico. Por ora, continuo apresentando a proposta de Sylvie Honigman. Ela adota a noção de estratégias étnicas de Goudriaan 503, compreendendo que um dos objetivos de Fílon consiste em evitar que os judeus se confundam no mesmo estatuto dos egípcios. Assim, entre igualar-se aos egípcios e identificar-se com a parcela da população na qual se reconhece mais nitidamente a preservação da cultura grega, Fílon escolherá a segunda opção. Ele não ignoraria a diferença de estatuto entre os judeus e os cidadãos gregos, mas afirmaria o pertencimento a Alexandria de maneira relutante e, de certa forma, utópica (HONIGMAN, 1997, p. 88). Mas até mesmo a afirmação “utópica” pode ser feita com vistas a uma reivindicação. É preciso considerar que, ainda que a igualdade não fosse uma realidade, havia de fato um conjunto de direitos usufruídos pelos judeus alexandrinos que os aproximaria dos cidadãos plenos em muitos sentidos, embora não pudessem ser considerados iguais: De um ponto de vista institucional, a comunidade judaica era equivalente e paralela à comunidade dos cidadão alexandrinos, com a exceção do ginásio, cuja filiação era limitada aos cidadãos. Ambas tinham a gerousia; ambas eram isentas da laographía; e ambas tinham as mesmas obrigações e privilégios em matéria judicial (acesso à justiça e formas de punição mais lenientes). A única diferença era que serviços públicos eram impostos aos 501 502 503 cidade de Alexandria em tempos de paz (cf. RUNIA, 2000, 362-364). Minha tradução de: les Juifs sont Alexandrins, si le mot a un sens culturel et non juridique. Minha tradução de: the term “Alexandrians” was used in daily life to denote not only the citizens of the Greek polis, but also the origo of permanent residents of the city, and, in my opinion, especially those who possessed a politeia. Ver Capítulo 1, p. 65. 302 judeus.504 (GAMBETTI, 2008, p. 63)505 Havia, pois, uma série de direitos que podiam ser alvo de discussão, inclusive no contexto das embaixadas enviadas a Roma. Mas a que grupo de judeus cabiam esses direitos? Um dado importante a se considerar é o de que há diversidade de judeus em Alexandria. Assim como se fazem notar diferentes abordagens do texto bíblico sendo praticadas na cidade a partir dos comentários de Fílon, outras diferenças com implicações mais imediatas para a questão dos direitos podem ser vislumbradas. A reivindicação de direitos da embaixada, no entender de Honigman, não se referiria a toda a população judaica em Alexandria, mas somente àqueles que, como Fílon, faziam parte da elite social da cidade (HONIGMAN, 1997, p. 89). Sylvie Honigman ressalta, assim, a diversidade interna entre os judeus de Alexandria, o que me parece sensato. Concordo que a unidade religiosa (e étnica) não impediria diversidade de estatutos jurídicos. A hipótese da existência de um políteuma judaico na Alexandria do século I d.C. que abarcaria toda a população judaica da cidade costuma fazer pensar que a única forma de ascensão e reconhecimento seria coletiva, pela conquista de direitos por todo esse políteuma, mas falta comprovação para esse tipo de afirmação (HONIGMAN, 1997, p. 89-90). Inclusive Aryeh Kasher, que procura demonstrar a pertinência histórica da afirmação da existência de um políteuma judaico em Alexandria506, reconhece que tal instituição não seria composta pelo conjunto total de residentes judeus de Alexandria (KASHER, 2008, p. 120). Sandra Gambetti ressalta que o políteuma judaico em Alexandria teve aparentemente, em sua origem, um caráter militar, como organizações semelhantes registradas em outras localidades. Além disso, reconhece que tal organização teria um espaço geográfico definido na cidade, também oriundo da época em que era uma organização militar (GAMBETTI, 2008, p. 43ss). Contudo, com o domínio romano, a organização perde seu sentido originário. Não há mais necessidade ou possibilidade de organização militar paralela ao exército romano. Roma ratifica os privilégios usufruídos por aqueles que eram membros 504 505 506 Minha tradução de: From an institutional point of view, the Jewish community was equal and parallel to the community of the Alexandrian citizens, with the exception of the gymnasium, whose membership was limited to citizens. Both had the gerousia; both were exempt from the poll-tax; and both had the same obligations and privileges in judicial matters (acces to justice and more lenient forms of punishment). The only difference was that public services were imposed on Jews. Quanto à imposição de serviços públicos aos judeus alexandrinos, ver afirmação de Josefo em Ap. 2.64. Tal existência é, segundo Kasher, não apenas sugerida por um trecho da Carta de Aristeias 308310, mas também confirmada por diferentes indícios literários, epigráficos e papirológicos (KASHER, 2008). 303 do políteuma, mas, ao mesmo tempo, desfaz a diferenciação clara entre membros e nãomembros, os que descendem do antigo políteuma e os que chegaram posteriormente à cidade. Isso gera um problema posterior. A princípio, os judeus em geral recebem direito de residência em Alexandria, mas muitos não podem comprovar que detêm tal direito (GAMBETTI, 2008, p. 76). Ademais, esse direito coletivo não isenta os indivíduos de, posteriormente, apresentar suas próprias comprovações: A administração periódica do censo, com a concomitante verificação dos níveis de privilégios, claramente agravaram a situação na área e contradisseram o reconhecimento geral inicialmente concedido para os judeus coletivamente por Augusto e Tibério. Os objetivos políticos dos reconhecimentos gerais não são congruentes com os da administração fiscal. Essa combinação idiossincrática produziu o cenário que fez a vida de alguns judeus alexandrinos cada vez mais difícil. 507 (GAMBETTI, 2008, p. 76) Ou seja, havia direitos provenientes do passado, mas nem todos os judeus que naquele momento residiam em Alexandria eram capazes de comprovar oficialmente que os detinham. Se a embaixada que Fílon encabeça está disposta a cobrar manutenção ou extensão de direitos, isso não significa que esteja necessariamente preocupada com todos os judeus que vivem em Alexandria. Por outro lado, parece-me que esse tipo de consideração advém mais de uma preconcepção oriunda da constatação do elitismo de Fílon do que de indícios do caso específico. No tratado em si, não há uma explícita diferenciação entre uns e outros judeus da mesma cidade. O que há, por outro lado, como visto, é o reconhecimento de que um dilema que aflige os judeus enquanto comunidade espalhada por todo o mundo é uma preocupação mais urgente que a questão que se restringe aos judeus alexandrinos. 508 E mesmo essa questão restrita está relacionada com a profanação de várias sinagogas em Alexandria, sem que haja diferenciação entre uma e outra pelo grupo que a frequentava. Fato é que, ainda que a intenção inicial da embaixada fosse relacionada com um grupo restrito de judeus de Alexandria, ela acaba por se relacionar com todo o conjunto de judeus do mundo habitado, e a querela com Gaio atinge uma dimensão quase cósmica, pois se 507 508 Minha tradução de: The cyclical administration of the census, with the concomitant verification of the grounds for privileges, clearly exacerbated the situation on the ground and contradicted the general grant initially awarded to the Jews collectively by Augustus and Tiberius. The political goals of the general grants were not congruent with those of the fiscal administration. This idiosyncratic combination produced the scenario that made the lives of some Alexandrian Jews increasingly difficult. Para um estudo detalhado a respeito da noção de uma comunidade judaica mundial em Fílon, que compreende inclusive os prosélitos, e sua expressão como uma cidadania comum definida pela adesão à Lei de Moisés e caracterizada por uma comunhão entre todos os membros, cf. CARLIER, 2008. 304 torna um confronto com o próprio Criador. Durante a longa espera pela audiência, há oportunidade para que outros fatos ocorram e se entrelacem na história. É justamente o que acontece. Enquanto acompanham os deslocamentos do imperador, Fílon e os outros judeus que o acompanham se inteiram do propósito do imperador de erigir uma estátua sua no Templo de Jerusalém. Esse propósito, então, que se relaciona com a autoproclamação de divindade por parte de Gaio, e consequente inimizade para com o povo judeu, passa a ser enfocado de modo detido pelo texto. Poder-se-ia dizer, então, que Legat. é um tratado sobre a intenção do imperador de se fazer deus, sobre a reação dos judeus a isso, e, simultaneamente, sobre a resposta específica dos judeus alexandrinos, que, ao mesmo tempo, se esforçavam por defender certos direitos da própria comunidade. Parece, em princípio, que o surgimento da notícia a respeito do intento do imperador redireciona completamente o tema do tratado. Contudo, a mudança pode ser somente de âmbito, e não tanto de tema. Sandra Gambetti sugere que a embaixada dos judeus não teria ido por sua própria iniciativa a Roma para cobrar reconhecimento de direitos em geral, mas que teria sido convocada para apresentar sua defesa contra acusações que teriam sido apresentadas por iniciativa da embaixada dos outros alexandrinos. Ademais, o tema da acusação seria especificamente o não reconhecimento da divindade de Gaio, e não outros direitos em Alexandria (GAMBETTI, 2008, p. 216). Se os distúrbios em Alexandria haviam incluído a profanação das sinagogas pela introdução de imagens que representavam o imperador-deus, e a repulsa dos judeus a isso servia de ensejo para a acusação, o âmbito se expande com a notícia da possível profanação do Templo, mas o tema permanece o mesmo. Dentre os direitos que os judeus alexandrinos detinham ou esperavam deter, o que está de fato em discussão é o de continuarem isentos do culto ao imperador. O tema de Legat. se mostra, então, bastante definido. Mas há um elemento fundamental a esclarecer: se os judeus resistem contra um imperador que quer inapropriadamente ser considerado deus, é porque consideram que só um ser deve ser propriamente ser reconhecido como tal. Os judeus reconhecem a farsa do deus falso por serem capazes de ver o Deus verdadeiro, que se ocupa de cuidar do que acontece na história. Fílon expõe esse ponto a respeito da Providência já no início do tratado nos seguintes termos: kaÄn ei¹ aÃpistoi gego/nasi¿ tinej tou= pronoeiÍn to\ qeiÍon a)nqrw¯pwn, kaiì ma/lista tou= i¸ketikou= ge/nouj, oÁ t%½ patriì kaiì basileiÍ tw½n oÀlwn kaiì pa/ntwn ai¹ti¿% proskeklh/rwtai, i¸kanaiì [tou=] peiÍsai au)tou/j. tou=to de\ to\ ge/noj Xaldai+stiì me\n ¹Israh\l kaleiÍtai, ¸Ellhnistiì de\ e(rmhneuqe/ntoj tou= o)no/matoj 305 "o(rw½n qeo/n", oÀ moi dokeiÍ pa/ntwn xrhma/twn i¹di¿wn te kaiì koinw½n eiånai timiw¯taton. No entanto, mesmo que alguns se tivessem tornado descrentes em relação ao facto de Deus velar pelos homens, e sobretudo por esta raça de suplicantes, que o Pai e Senhor do universo, origem de todas as coisas, tomou para junto de si, a presente ocasião e as muitas e importantes questões que nesta se decidem, seriam suficientes para os persuadir deste facto. Em língua caldaica esta raça é denominada Israel, nome que em grego se traduz por «vendo deus», coisa que estimo ser mais preciosa do que todos os tesouros públicos e privados. (Legat. 3-4, Tradução de Tatiana Faia)509 A exposição construída em Legat. abarca, então, a articulação entre acontecimentos históricos que se relacionam com uma querela a respeito da divindade do imperador e uma compreensão desses acontecimentos a partir da intervenção sobrenatural daquele que é verdadeiramente a divindade. Peter Frick assinala essa característica como fundamental tanto em Legat. quanto em Flacc.: “os tratados Legatio ad Gaium e In Flaccum constituem um esforço deliberado de Fílon no sentido de recapitular a história de seu povo a partir do tema abrangente da providência de Deus”510 (FRICK, 1999, p. 184). Além de mencionar o trecho há pouco citado do início do tratado, o autor afirma que se percebe o tema da providência divina ao longo de todo o texto. Ele coleciona alguns passos bastante significativos: a expectativa da providência é utilizada como consolo (Legat. 196); Deus intervém e muda a disposição (θυμόν - thymón) do imperador (Legat. 367); e Fílon apresenta sua opinião (μοι δοκῶ - moi dokô) de que “ a mão de Deus, através da sua providência, protege invisivelmente os que são injustiçados” 511 diante de um fato favorável (Legat. 220) (FRICK, 1999, p. 187-188). A percepção dessa relação entre esse dado da abertura de Legat. e o conteúdo do tratado como um todo é significativa, uma vez que esse discurso inicial (Legat. 1-7) parece, a primeira vista, estranho na composição do conjunto. Mas, certamente, há outros detalhes 509 510 511 Convém notar que este é o único trecho fora dos tratados exegéticos em que Fílon utiliza o termo Ἰσραήλ - Israel. Além disso, como observa Ellen Birnbaum, trata-se de uma ocorrência peculiar, em que se percebe claramente a associação entre “Israel” e os judeus contemporâneos (BIRNBAUM, 1996, p. 105-107). A observação da autora é importante, pois se considerássemos aqui o termo em seu sentido mais amplo discernido por Birnbaum (cf. Introdução, p. 28ss), a providência não estaria relacionada necessariamente com os judeus. Mas eu diria: não está relacionada exclusivamente aos judeus por nascimento. Minha tradução de: […] the treatises Legatio ad Gaium and In Flaccum constitute Philo's deliberate effort to recapitulate the history of his people from the overarching theme of God's providence. Tradução de Tatiana Faia para: qeou= moi pronoi¿# dokw½ th\n xeiÍra tw½n a)dikoume/nwn a)fanw½j u(pere/xontoj. 306 importantes no trecho que precisam ser pensados para que se possa compreender sua pertinência. Um dado que me interessa diretamente é a ocorrência do termo τύχη - týkhe, que se costuma traduzir por “acaso”, contraposto a φύσις - phýsis, “natureza”. Um erro comum, segundo Fílon, é achar que o acaso é mais estável que a natureza, quando o inverso é que é verdadeiro. Como David Runia observa, o sentido de natureza (φύσις - phýsis) é extremamente amplo, e pode se referir à estabilidade do mundo natural, mas também ao âmbito inteligível. E, no caso de Fílon, que tem uma orientação teológica bem clara, a natureza deve se relacionar com seu criador, Deus que é a fonte de ordem e estabilidade do mundo (RUNIA, 2002, p. 357-358). Já na desordenada instabilidade do âmbito humano se experimenta o acaso e as frequentes mudanças de ventura (εὐτυχία - eutykhía, cf. Legat. 114) para desventura (ἀτυχία - atykhía, cf. Legat. 196), afinal, todas as coisas humanas (ta)nqrw¯peia pa/nta - t'anthrópeia pánta), tanto as da alma, quanto as do corpo e as externas, não são nunca estáveis (cf. Somn. 1.192). Ou seja, Fílon afirma que confundimos as coisas e perdemos a noção do que é estável (Deus) e do que instável (Acaso), confiando na permanência do que muda. Talvez, uma grande tarefa de Legat. e de seu leitor seja desfazer a confusão, identificando aquilo que é efêmero, e valorizando devidamente a fonte da estabilidade, Deus, por sua providência. Em outras palavras, é preciso discernir onde impera o trágico (as ações humanas), e o que está no âmbito da providência. Além de contribuir para a compreensão a respeito dessa contraposição entre acaso e natureza, David Runia reafirmou que o tema principal do tratado inteiro, que já figura nesse trecho introdutório, é a providência divina (RUNIA, 2002, p. 369). Ademais, sistematizou o propósito do trecho Legat. 4-7 da seguinte maneira: A introdução da seção teológica em 4-7 tem um objetivo triplo: (1) explicar a relação especial entre Deus e Israel, aqui identificado com o povo judeu; (2) em seguida, localizar o papel da providência dentro da natureza divina; (3) antecipar o tema da afirmada rivalidade entre Deus e o megalomaníaco imperador Gaio, o que vai desempenhar um papel tão proeminente no restante do trabalho.512 (RUNIA, 2002, p. 370) A relação da providência e da contraposição entre a divindade responsável pela providência e o imperador pretensamente divino com o todo do tratado está bem estabelecida. Se resta alguma dúvida a respeito do governo de Deus sobre os acontecimentos 512 Minha tradução de: The introduction of the theological section in 4-7 has a triple purpose: (1) to explain the special relationship between God and Israel, here identified with the Jewish people; (2) to further locate the role of providence within the divine nature; (3) to anticipate the theme of te purported rivalry between God and megalomaniac emperor Gaius which will play such a promient role in the remainder of the work. 307 que ocorrem entre os humanos, basta ler os parágrafos 6 e 7, que encerram esse prólogo filosófico, observando que a razão não alcança o Ser, mas somente suas potências (δυνάμεις dynámeis), com as quais ele se relaciona com o universo criado. Fílon arrola entre essas potências as benéficas e punitivas, para logo afirmar o caráter benéfico também das punitivas, afirmando não só a realidade da providência, mas também a realidade e utilidade das punições divinas. Contudo, uma questão levantada por Runia, conforme ele próprio reconhece, permanece sem uma completa explanação: Fílon parece combinar dois sentidos bem diferentes de visão mental (ὄψις). Nas seções da abertura a visão envolve o correto discernimento de eventos históricos. Em 5-5, contudo, a visão tem a ver com “ver Deus”, o papel especial de Israel. Interpretamos essa visão em termos do reconhecimento da existência de Deus, e a observança dos dois primeiros mandamentos. Eu creio que deve-se permitir que a ambiguidade se mantenha. É até mesmo possível que Fílon a tenha introduzido deliberadamente. A devoção a Deus e a observança de seus mandamentos não significam automaticamente reconhecimento e compreensão de seus atos. Fílon indica na narrativa que ele mesmo ficou aquém nesse quesito.513 (RUNIA, 2002, p. 370) Ainda que a visão de Deus não capacite imediatamente a pessoa a compreender o desenvolvimento histórico, não é difícil perceber que, se a atuação desse Deus é mesmo providencial, a noção correta a respeito dele e de sua ação é requisito básico para uma devida compreensão da história. Não me parece tão ambígua, pois, a colocação em paralelo. Há uma inevitável complementariedade. Observar os acontecimentos leva à comprovação da existência da divina providência. E a consideração da existência desse Deus único (que é providencial) possibilita a compreensão do desenrolar histórico (sobretudo, quando diz respeito aos judeus). Contudo, estabelecer essa consideração tão simples a respeito do tema, sem considerar devidamente todas as implicações da questão levantada por Runia, não é o motivo que me leva a fazer menção do problema. O que pretendo é deslocar a reflexão do conteúdo filosófico para o plano literário (não sem a percepção de que o que se constrói no plano 513 Minha tradução de: Philo appears to combine two quite different meanings of mental vision (greg). In the opening two sections vision involves the correct discernment of historical events. In 4-5, however, vision has to do with “seeing God,” the special role of Israel. We have interpreted this vision in terms of the recognition of God's existence and the observance of the first two commandments. I believe the equivocation has to be allowed to stand. It is even possible that Philo has introduced it deliberately. Devotion to God and observance of his commands do not automatically mean recognition and comprehension of his acts. Philo indicates in the narrative that he himself fell short in this respect. 308 literário também pode, em seguida, repercutir em alguma resolução para a questão filosófica). Parece-me conveniente considerar a ocorrência do termo ὄψις - ópsis com diferentes nuances nesse breve trecho inicial do tratado como uma antecipação de outras ocorrências que se darão em seguida. É preciso considerar, inclusive, que ainda no parágrafo 5, ὄψις - ópsis figura como significando simplesmente contemplação física de seres humanos em contraposição à contemplação da divindade, de modo que os dois âmbitos são trazidos para uma mesma construção de sentido: ei¹ ga\r presbute/rwn hÄ u(fhghtw½n hÄ a)rxo/ntwn hÄ gone/wn oÃyij kineiÍ tou\j ble/pontaj pro\j ai¹dw½ kaiì eu)kosmi¿an kaiì sw¯fronoj bi¿ou zh=lon, po/son ti nomi¿zomen a)reth=j eÀrma kaiì kalokagaqi¿aj a)neurh/sein e)n yuxaiÍj, aiá to\ genhto\n pa=n u(perku/yasai to\ a)ge/nhton kaiì qeiÍon o(ra=n pepai¿deuntai, to\ prw½ton a)gaqo\n kaiì kalo\n kaiì euÃdaimon kaiì maka/rion, ei¹ <de\> deiÍ ta)lhqe\j ei¹peiÍn, to\ kreiÍtton me\n a)gaqou=, ka/llion de\ kalou=, kaiì makario/thtoj me\n makariw¯teron, eu)daimoni¿aj de\ au)th=j eu)daimone/steron, kaiì ei¹ dh/ ti tw½n ei¹rhme/nwn teleio/teron. Com efeito, se a visão dos anciãos, dos mestres, dos líderes, dos pais, leva aqueles que os contemplam a um sentimento de pudor, a uma boa conduta, à busca de uma vida sóbria, que base de virtude e excelência pensamos nós descobrir em almas que olharam para além de tudo o que foi criado e aprenderam a ver o que não foi criado e o divino, que, antes de tudo, é bom, belo, feliz, abençoado, e, para dizer a verdade, superior ao bom, mais belo do que o belo, mais feliz do que a própria felicidade, ou existirá algo que seja mais perfeito do que aquilo que foi mencionado? (Legat. 5, Tradução de Tatiana Faia.) Além de correlacionar dois diferentes tipos de ὄψις - ópsis, Fílon me parece apontar para outro, uma vez que aponta para a reação do espectador diante daquilo que contempla. Ver os anciãos e ver a Deus produzirá algo determinado ou, ao menos, esperado nas vidas e almas dos espectadores, como a contemplação do espetáculo trágico deve produzir certo efeito. Essa recorrência do termo e de outras expressões relacionadas com a visão, com certa variação de sentido, compõe uma sutil e dispersa indicação da construção de uma proposta de interpretação dos acontecimentos que estão por ser narrados como uma ὄψις ópsis, isto é, como um espetáculo que precisa ser compreendido a partir da consideração da falta de compreensão. Nisso consistirá, penso, a importância da relação do termo ὄψις - ópsis com diferentes formas de compreensão. A visão (ὄψις - ópsis) como percepção (do desenrolar histórico, da realidade metafísica, ou das intenções ocultas do interlocutor pelo 309 comportamento não-verbal, por exemplo) figura como meio de se tentar compreender o espetáculo (ὄψις - ópsis) que se desenrola. A limitação interpretativa do espectador (que se faz narrador) se deverá à incapacidade de conciliar todos esses tipos de visão em um exercício articulado de leitura dos acontecimentos. Isso porque ele só percebe a possibilidade de conciliação quando as cortinas se fecham. Não é por acaso, entendo, que a tragédia grega desenvolve de modo recorrente a questão da ignorância (e da cegueira metafórica) daqueles que agem no palco. No começo do espetáculo, Édipo é cego tendo olhos, como Israel pode não reconhecer o papel de Deus nos acontecimentos mesmo sendo o povo capaz de ver a divindade. Por isso diz: “até certo ponto nós, os anciãos, somos ainda crianças” 514 (Legat. 1). Os que deveriam, em princípio, ser aptos, nem sempre o são. Mas é de se esperar que, como o prólogo filosófico antecipa, a potência punitiva de Deus tenha parte nos fatos. Há uma justiça superior e absoluta para levar as coisas à ordem. Então, proponho que tanto quanto a providência, a ὄψις - ópsis é um importante elemento articulador do tratado. Mas o esclarecimento pleno dessa proposta virá somente quando eu apresentar a questão da constituição do trájico em Legat.. Por ora, só antecipo uma possível articulação do termo com outro tema que ainda não mencionei: a virtude. Fílon convidará seus leitores a não enxergarem somente as aparências que se apresentam, mas também as virtudes (e seus opostos) que se ocultam, como Aristóteles que convidava a uma consideração do teatro além do espetáculo visual (ὄψις - ópsis). A virtude, deve-se dizer, aparece no próprio título do tratado em quatro das cinco famílias de manuscritos. Conforme Smallwood, o título completo que figura nas famílias CGOM é “De Fílon, Das virtudes 1, o qual é sobre a sua embaixada a Gaio” (Φίλωνος ἀρετῶν ά ὃ ἐστι τῆς πρεσβείας πρὸς Γάιον– Phílonos aretôn a, hò esti tês presbeías pròs Gáion). A família M só omite o numeral α, “1” (SMALLWOOD, 1961, p. 37). 515 Não é, pois, despropositado pensar 514 515 Tradução de Tatiana Faia para: ãAxri ti¿noj h(meiÍj oi¸ ge/rontej eÃti paiÍde/j e)smen. Esse passo foi usado para afirmar que Fílon era idoso quando escreveu Legat., mas parece ser construído a partir de um trecho de Platão (Timeu 22B 4-8), o que, conforme Runia observa, retira força do mesmo como referência cronológica sobre a vida do alexandrino (RUNIA, 1986, p. 77). No entanto, Legat. 142 permanece como testemunho de que Fílon tinha, pelo menos, uma idade mais avançada que a dos demais integrantes da embaixada. Além disso, deve-se observar que o aproveitamento do trecho do Timeu não é simples, feito sem certa seleção de sentido, como se tratando de referência à antiguidade histórica de um povo, mas enfatiza o aspecto cognitivo da antítese, que se comunica metaforicamente. Eusébio de Cesareia oferece uma forma de interpretação ao dizer que Fílon acrescentou o título Sobre as virtudes com zombaria e ironia (μετὰ ἤθους καὶ εἰρωνείας Περὶ ἀρετῶν ἐπέγραψεν – metà éthous kaì eironeías Perì aretôn epégrapsen, HE II 18.8). Não me parece acertada a leitura do historiador cristão. 310 que, de alguma forma, o tema das virtudes também se relacione com a ὄψις - ópsis e a providência ao longo do tratado. A meu ver, é possível considerar que a virtude da piedade, isto é, a devoção (εὐσέβεια - eusébeia) dos judeus possibilita a providência divina para com eles e sua compreensão, enquanto o vício que se lhe opõe, a impiedade (ἀσέβεια – asébeia) do imperador, o impede de ver o verdadeiro Deus, e proporciona sua punição. O próprio tratado e o prosseguimento deste estudo evidenciarão o fato. Agora, contudo, será preciso demonstrar de modo sucinto a complexidade da negociação estabelecida no tratado e os variados recursos da argumentação, pois, essa variedade no argumento serve como indício da possibilidade de outras formas de variedade, inclusive de aproveitamento de um gênero literário propriamente grego, a tragédia. 5.6 Política Romana, Cultura Grega e Teologia Judaica: negociação em Legat. A diferença entre Criador e criatura é fundamental no pensamento de Fílon (cf. Somn. 1.77; II 70). Portanto, qualquer aproximação entre um elemento criado e o Criador é motivo de alerta. Expressões antropomórficas da narrativa bíblica, por exemplo, merecem uma interpretação que desfaça qualquer confusão (Deus 51-69; Somn. 1.234-237). O caso do antropomorfismo do divino é quase o oposto do que se discute aqui. Se, por um lado, a referência a Deus como tendo corpo humano requer uma explicação (que justificará as expressões antropomórficas como modo de favorecimento à função didática do discurso em detrimento de sua adequação estrita à verdade), 516 por outro lado, o caso de um ser humano que é referido ou refere-se a si mesmo como sendo divino também solicitará um esforço de explicação ou refutação não menos significativo. 516 Nessa leitura que ressalta a função didática do texto, Fílon considera a perspectiva daquele que recebe a informação. É notável que a noção da perspectiva é considerada pelo exegeta também para a interpretação de ações e palavras relacionadas com personagens da narrativa bíblica. De certa forma, então, o que ele faz ao resolver a questão da representação antropomórfica da divindade nas Escrituras consiste em um aproveitamento de uma abordagem hermenêutica em um âmbito mais amplo, que inclui elementos extra-textuais (cf. NOVICK, 2009). Van der Horst entende que, quando Fílon estabelece essa explicação, “[a] doutrina de Platão da absoluta imutabilidade de Deus prevalece sobre a concepção antropomórfica de Deus encontrada em Moisés” [Plato's doctrine of the absolute immutability of God prevails over Moses' anthropomorphic conception of God] (HORST, 2006, p. 132). O pesquisador ainda ressalta que a solução encontrada por Fílon é aproveitada pelos primeiros teólogos cristãos platonizantes (HORST, 2006, p. 133). Para um detalhado estudo sobre a concepção de Deus em Fílon e sua relação com a tradição filosófica, cf. CALABI, 2008. Conforme a autora, ao traduzir as noções bíblicas para uma linguagem platônica, Fílon se depara com o problema de noções como do segundo deus e da hierarquia ontológica próprias do médio platonismo. O alexandrino, então, dá a Deus características que o “primeiro deus” tem no médio platonismo, sem incluir a hierarquia, que não condiz com seu monoteísmo (CALABI, 2008, p. 38). 311 Decerto, tendo lido Gn 1:27517, Fílon não pode negar que haja alguma semelhança entre o ser humano e Deus. Mas essa semelhança se dá especificamente a partir da parte mais nobre que ele considera haver no ser humano: a mente. O desenvolvimento da ideia na obra do alexandrino parece seguir indicações do platonismo, e tornar-se mais semelhante a Deus não é algo negativo, mas desejável e até possível em alguma medida, como Helleman observa: O assemelhamento a Deus se torna possível por esse ponto de contato [a identificação da mente como a imagem de Deus no ser humano]. O processo de assemelhamento, por conseguinte, significa para Fílon, como significou para Platão, o cultivo daquilo que é mais elevado na alma e já aparentado com o divino, purificando-o e conformando-o à natureza divina até o ponto em que a natureza divina é apreensível, isto é, acessível para o conhecimento ou a visão da alma.518 (HELLEMAN, 1990, p. 65) Mas ser semelhante ou assemelhar-se não é o mesmo que ser chamado deus. 519 Algo mais próximo a isso ocorre nos casos de Moisés e de Calígula. O primeiro caso solicita explicação por parte do exegeta alexandrino, inclusive porque aparece no texto que ele se dedica a comentar. Em Êxodo 7:1, trecho em que a LXX lida por Fílon reproduz literalmente o TM, lê-se: ‫יאך׃‬u‫ב‬q‫יה נ‬q‫ה‬u‫יך י‬u‫ן ח‬Ø ‫אהר‬q× ‫ה‬Ø‫ע‬q‫פר‬q‫ים ל‬u‫לה‬x‫ יך א‬u‫תת‬q‫ ה נ‬o‫רא‬q ‫שה‬Ø ‫ה אל־מ‬z×‫ה‬q‫אמר י‬Ø ‫×י‬ καὶ εἶπεν κύριος πρὸς Μωυσῆν λέγων Ἰδοὺ δέδωκά σε θεὸν Φαραω, καὶ Ααρων ὁ ἀδελφός σου ἔσται σου προφήτης· E disse o Senhor [TM: YHWH] a Moisés: Eis que te dei [como] Deus para o Faraó, e Arão, o teu irmão, será teu profeta. (Êxodo 7:1) Mesmo tendendo a exaltar a figura de Moisés como um personagem histórico especialíssimo, e mesmo tecendo uma interpretação alegórica (a respeito da mente e das paixões) para o versículo citado, por meio de um recurso à noção do assemelhamento a Deus (cf. Sacr. 8-10), Fílon encontra uma oportunidade para desfazer o possível mal entendido e ratificar a diferença do que é absolutamente diferente, segundo sua concepção teológica. 517 518 519 O texto da LXX, acessado por Fílon, diz: καὶ ἐποίησεν ὁ θεὸς τὸν ἄνθρωπον, κατ’ εἰκόνα θεοῦ ἐποίησεν αὐτόν, ἄρσεν καὶ θῆλυ ἐποίησεν αὐτούς. Uma possível tradução seria: “E Deus fez o ser humano, conforme a imagem de Deus o fez, macho e fêmea os fez”. Minha tradução de: Assimilation to God is made possible by that point of contact; the process of assimilation, accordingly, means for Philo, as it did for Plato, a cultivation of that which is highest in the soul and already akin to the divine, purifying it and conforming it to the divine nature inasmuch as that divine nature is 'knowable', i.e. Accessible to the soul's knowledge or vision. Para um tratamento mais amplo do tema da divinização do ser humano no judaísmo helenístico, cf. HOLLADAY, 1977, que apresenta um longo capítulo dedicado especificamente à discussão do tema em Fílon. 312 Como Wendy Helleman assinala (HELLEMAN, 1990, p. 68), o seguinte passo é bastante elucidativo: h( de\ Mwuse/wj skhnh\ sumbolikw½j ouÅsa a)nqrw¯pou a)reth\ klh/sewj, ou)x u(pa/rcewj, a)ciwqh/setai, mi¿mhma kaiì a)peiko/nisma th=j qei¿aj e)kei¿nhj u(pa/rxousa. tou/toij eÀpetai kaiì to\ Mwush=n, o(po/te xeirotoneiÍtai "qeo\j tou= Faraw¯", mh\ pro\j a)lh/qeian gegenh=sqai, do/cv de\ mo/non u(polamba/nesqai: qeo\n ga\r dido/nta me\n oiåda kaiì xarizo/menon, dido/menon de\ ou) du/namai noh=sai, le/getai de\ e)n i¸eraiÍj bi¿bloij: "di¿dwmi¿ se qeo\n Faraw¯", tou= didome/nou pa/sxontoj, ou) drw½ntoj: drasth/rion de\ to\ oÃntwj oÃn, ou) pa/sxon, a)nagkaiÍon eiånai. ti¿ ouÅn dia\ tou/twn suna/getai; oÀti o( sofo\j le/getai me\n qeo\j tou= aÃfronoj, pro\j a)lh/qeian de\ ou)k eÃsti qeo/j, wÐsper ou)de\ to\ a)do/kimon tetra/draxmo/n e)sti tetra/draxmon: a)ll' oÀtan me\n t%½ oÃnti paraba/llhtai, aÃnqrwpoj eu(reqh/setai qeou=, oÀtan de\ aÃfroni a)nqrw¯p%, qeo\j pro\j fantasi¿an kaiì do/khsin, ou) pro\j a)lh/qeian kaiì to\ eiånai, noou/menoj. A tenda de Moisés, que é simbolicamente a virtude do ser humano, será considerada digna de ser designada (não de ser realmente) como representação e cópia existente da divina. De modo coerente com tais coisas é também o fato de Moisés, quando é designado “deus do Faraó”, não ter se tornado [deus] verdadeiramente, mas somente ser tido como tal na aparência. Pois sei que deus dá e agracia, mas não posso conceber que seja dado. É dito nos livros sagrados: “Dou-te [como] deus ao Faraó”. Aquele que é dado é passivo, não agente. E é forçoso que o verdadeiro Ser seja ativo, não passivo. O que então se conclui a partir disso? Que o sábio é chamado deus do falto de senso, mas que não é verdadeiramente deus, assim como a moeda falsa de quatro dracmas não é uma moeda de quatro dracmas. Mas, por um lado, quando comparado com o Ser, será achado como pessoa de Deus. Por outro lado, quando comparado com uma pessoa falta de senso, é concebido como deus na aparência e opinião, não em verdade e essência. (Det. 160-162) Mesmo no caso de Moisés, a possibilidade da plena identificação com Deus é negada por meio de um exercício de leitura atenta do texto, que restringe sua significação. 520 E, é preciso notar, essa resolução do problema é necessária porque o próprio texto bíblico 520 Fílon resolve um problema hermenêutico e teológico, negando a real divindade de Moisés. A meu ver, outros trechos em que a divindade parece ser atribuída a Moisés (como Mos. 1.158) devem ser lidos a partir desse trecho que relativiza o fenômeno. Peder Borgen discorda dessa posição, afirmando que o texto não deixa de apresentar o legislador como “deus” em sua relação com os homens, restringindo somente sua posição com relação a Deus, no que se opõe declaradamente a RUNIA, 1988, p. 60-61 (BORGEN, 1996, p. 152). Convém observar uma questão importante levantada por Runia no texto referido: a aproximação do ser humano com a divindade é abordada por Fílon a partir de duas perspectivas: uma teológica, outra filosófica. Pela perspectiva teológica, a diferenciação do ser humano é claramente estabelecida (como vimos). Já a partir da reflexão filosófica, não fica tão clara a distinção do homem para com a divindade por não ser fácil a apreensão do limite entre a verdadeira divindade e a divindade derivada de Deus que se apresenta na mente humana (cf. RUNIA, 1988). 313 proporcionou o dilema por seu modo de apresentar certa realidade. Não foi Moisés que se afirmou como Deus. Esse será o caso de Gaio Calígula, quase uma imitação fraudulenta de Moisés (BORGEN, 1996, p. 153), que não solicitará somente interpretação, mas também uma aberta resistência por parte dos judeus, e refutação por parte de nosso exegeta e escritor. Parece-me viável organizar os argumentos de Fílon em três blocos, que visam demonstrar que a pretensão de Gaio é inadequada de três diferentes maneiras: em comparação com a política romana previamente desenvolvida, com o legado cultural grego e com a teologia judaica. 5.6.1 Primeira inadequação: Cultura Grega (Legat. 78 - 113) Depois do trecho inicial do tratado, que discuti brevemente, Fílon relata a ascensão de Gaio ao poder, o período em que esteve gravemente enfermo, e como, depois de recuperado, perverteu-se completamente (ou melhor, revelou sua perversão já existente). As atitudes nefastas do governante são explicitadas, inclusive o assassinato de pessoas próximas a ele. Após essas práticas já odiosas, Gaio começa a almejar a divinização e até se convence dela: tau/thn th\n u(po/lhyin e)nsfragisa/menoj tv= dianoi¿# perie/feren o( h)li¿qioj e)n e(aut%½ muqiko\n pla/sma w¨j a)yeudesta/thn a)lh/qeian. kaiì e)peidh\ aÀpac e)qrasu/nato kaiì a)peto/lmhsen ei¹j tou\j pollou\j e)cenegkeiÍn th\n a)qewta/thn e)kqe/wsin au(tou=, ta\ a)ko/louqa kaiì sun%da\ pra/ttein e)pexei¿rei kaiì oiâa di' a)nabaqmw½n e)k tou= kat' o)li¿gon ei¹j to\ aÃnw prov/ei. Tendo gravado na mente este juízo, o tolo começou a carregar em si uma fantasia mítica, como se esta fosse a mais pura das verdades. Depois, mal se sentiu confiante, ousou apresentar a todos a mais blasfema divinização de si mesmo, procurando tornar as suas acções coerentes e harmoniosas e avançar aos poucos, como que prosseguindo por degraus, até ao topo. (Legat. 77, Tradução de Tatiana Faia.) O que segue imediatamente é um relato de como o imperador procurou expor aos outros a sua condição divina de modo gradual. Primeiramente, começa a se comparar aos chamados semideuses (ἡμίθεοι - hemítheoi), como Héracles, Dioniso e os Dióscuros, procurando para si mesmo as honras de todos eles. Como em um teatro, Gaio se transforma alternadamente em cada um desses semideuses, apresentando-se vestido da forma como tais eram visualmente representados. Em sua oposição, Fílon não busca desqualificar a mitologia grega. Pelo contrário, chega inclusive a lançar mão da mesma ao comparar as sucessivas transformações de Gaio 314 com a habilidade semelhante de Proteu na Odisseia. O que faz de fato é desenvolver uma longa crítica a partir da seguinte observação: kai¿toi ti¿ parash/mwn eÃdei soi, Ga/ie, oiâj eÃqoj a)skeiÍsqai ta\ tw½n ei¹rhme/nwn a)fidru/mata; e)xrh=n ga\r zhlou=n ta\j e)kei¿nwn a)reta/j. Que necessidade tinhas tu, Gaio, dos atributos que é hábito as estátuas daqueles de que falei envergarem? Na verdade, devias ter emulado as suas virtudes. (Legat. 81. Tradução de Tatiana Faia.) Fílon assinala, então, atitudes virtuosas de Héracles (a eliminação de monstros maléficos), de Dioniso (a invenção do vinho que traz felicidade o mundo) e dos Dióscuros (o compartilhamento da condição imortal motivado pelo amor fraternal), para, logo, comparar as mesmas com as atitudes perpetradas por Gaio. Ele não trata os mais próximos com o amor que havia entre os Dióscuros, mas os mata. Não inventa algo que traz alegria, como Dioniso, mas somente artes que transformam felicidade em infortúnio. Tampouco livra o mundo das ameaças e injustiças, como Héracles, mas, covarde, o enche de desordem. Novamente, noto que as ações dos semideuses transmitidas pela mitologia grega não são questionadas ou criticadas. Ao contrário, Fílon as apresenta como positivas. Ele poderia, por exemplo, tecer críticas a Dioniso com facilidade, mas prefere exaltar o aspecto positivo daquilo que a tradição grega transmite. Ele não demonstra inadequação dos personagens míticos em si, mas do imperador que quer assumir suas honras. Ele imita a aparência das estátuas, mas não as ações dos personagens representados por elas. Convém notar, pois, que há aqui também uma relação com a ὄψις - ópsis. Gaio pode se fazer parecer com os semideuses (e deuses) no que se refere ao visual somente, mas não no que concerne às virtudes. Ou seja, se o espectador considera somente a ὄψις - ópsis que se apresenta ao olho físico, não alcançando a ὄψις - ópsis mais profunda que Fílon propõe, será enganado por Gaio. Só o digo como observação a respeito da recorrência do tema. Sigamos com o texto. Fílon apresenta, então, o próximo degrau galgado por Gaio: assemelhar-se aos deuses Hermes, Apolo e Ares. A vestimenta e os acessórios que usava para fazer-se como esses deuses são devidamente descritas. Logo, Fílon volta a apresentar seu argumento atribuindo-o aos pensamentos do público que presenciava os espetáculos de Gaio: eiåta toiÍj tau=ta o(rw½si kata/plhcij hÅn e)piì t%½ paralo/g%, kaiì e)qau/mazon, pw½j o( ta)nanti¿a drw½n oiâj i¹so/timoj eiånai proaireiÍtai ta\j me\n a)reta\j au)tw½n e)pithdeu/ein ou)k a)cioiÍ, toiÍj de\ parash/moij ei¹j eÀkaston skeua/zetai. kai¿toi ta\ peri¿apta tau=ta kaiì prokosmh/mata coa/noij kaiì a)ga/lmasi 315 proskaqi¿drutai, dia\ sumbo/lwn mhnu/onta ta\j w©felei¿aj, aÁj pare/xontai t%½ ge/nei tw½n a)nqrw¯pwn oi¸ timw¯menoi. As pessoas que então assistiam a estas exibições ficavam consternadas pelo inesperado da situação e espantavam-se, interrogando-se, como é que alguém, que fazia exactamente o contrário daqueles deuses a que aspirava ser igual, por um lado não reclamava o direito de praticar as virtudes daqueles, mas, por outro lado, usava as insígnias próprias de cada um. Porém, estes ornamentos e faixas são colocados nas estátuas e imagens, como símbolos reveladores do auxílio que os deuses honrados prestaram à raça dos homens. (Legat. 98, Tradução de Tatiana Faia.) Em seguida, alguns dos apetrechos desses três deuses são associados a suas ações, que, logo, são contrapostas às ações de Gaio, de modo a revelar a inadequação de sua apropriação dos mesmos objetos. Hermes calça sandálias por ser mensageiro de boas coisas, afinal, é profeta e intérprete (ἑρμηνέα καὶ προφήτην – hermenéa kaì prophéten) dos deuses (“a partir do que é nomeado Hermes”, a)f' ou kaiì ¸Ermh=j w©no/mastai - aph' hoû kaì Hermês onómastai). Mas Gaio só tem a divulgar seus atos odiosos. Já o caduceu de Hermes é símbolo dos tratados conciliadores, enquanto Gaio nada fez de pacífico. De modo semelhante, a partir da imagem de Apolo, afirma que a coroa com raios fulgentes que Gaio levava na cabeça ao imitá-lo certamente não condizia com sua real vontade de manter seus feitos vergonhosos na obscuridade. Quanto aos objetos que portava nas mãos, diz que deveria invertê-los. O arco estava na mão esquerda, como relegado a um segundo plano, enquanto as graças ocupavam a proeminência na mão direita. Como era ávido em atacar, devia levar o arco na mão direita e, como era ganancioso ao olhar para as propriedades alheias, não sendo em nada generoso, deveria esconder as graças ou mesmo deixá-las cair. Além dessa leitura das imagens, Fílon discorre a respeito da arte médica associada a Apolo, deus que seria presto a curar doenças causadas por outros, e acusa o imperador pretensamente divino de fazer o oposto, promovendo doença e ferimentos a numerosas pessoas. Note-se que Fílon silencia o fato de que Apolo também pode causar moléstias físicas, como se lê no começo da Ilíada, por exemplo.521 Como observei no caso de Dioniso, Fílon ressalta aspectos positivos dessas divindades gregas, com o intuito de destacar a inadequação da associação de Gaio às mesmas. Se ele ressaltasse dados mais nefastos transmitidos pela tradição grega, seu empreendimento precisaria ser alterado. Não seria inviável tecer duras críticas à atitude imperador, mas, ao mesmo tempo, a crítica seria lida como um ataque ao 521 Em nota, Smallwood lembra também de Édipo Rei (149-150) (SMALLWOOD, 1961, p. 203). 316 legado cultural grego, o que não lhe interessa fazer.522 Ademais, devo observar que a menção específica de que Apolo cura doenças causadas por outros (ὑφ᾽ ἑτέρων ἐγγινομένας - hyph' hetéron enginoménas, Legat. 106) parece indicar a deliberada intenção de silenciar, no trecho, a possibilidade de se associar o deus à causa das doenças. Por fim, o alexandrino menciona a relação de Apolo com os oráculos. Cito o trecho por entender que a maneira como ele apresenta a função dos oráculos faz lembrar o tema da visão e do conhecimento, que foi tratado no tópico anterior e que é importante para este capítulo como um todo: le/getai mh\ mo/non i¹atro\j a)lla\ kaiì ma/ntij a)gaqo\j ¹Apo/llwn eiånai, xrhsmoiÍj prole/gwn ta\ me/llonta pro\j w©fe/leian a)nqrw¯pwn, iàna mh/ tij e)piskiasqeiìj au)tw½n periì to\ aÃdhlon a)proora/twj kaqa/per tuflo\j toiÍj a)boulh/toij w¨j lusitelesta/toij e)pitre/xwn e)pempi¿ptv, promaqwÜn de\ to\ me/llon w¨j hÃdh paro\n kaiì ble/pwn au)to\ tv= dianoi¿# ou)x hÂtton hÄ ta\ e)n xersiìn o)fqalmoiÍj sw¯matoj fula/tthtai, pronoou/menoj tou= mhde\n a)nh/keston paqeiÍn. Diz-se que Apolo não só é médico mas também um excelente profeta, capaz de prever o futuro através dos seus oráculos para auxílio dos homens, para que ninguém permaneça na escuridão perante factos obscuros – e, desta forma, imprevisivelmente, correndo como um cego, se precipite numa situação desvantajosa como se fosse lucrativa – , mas, pelo contrário, para que conhecendo antecipadamente o futuro como se fosse já presente e vendo-o com os olhos da inteligência não esteja menos vigilante do que em relação ao que vê diante de si com os olhos do corpo, tomando cuidado para não sofrer nada de irreparável. (Legat. 109, Tradução de Tatiana Faia.) As palavras oraculares tão úteis de Apolo são contrapostas às palavras de Gaio, que só trazem perturbação às pessoas. Algo permanece não dito, mas pode estar implicado. A habilidade que Apolo tem de ver o futuro de forma tão nítida, de modo a avisar os homens, para que possam evitar algo irreparável (ἀνήκεστον - anékeston), não é partilhada por Gaio. Ele ignora o devir. Não pode avisar aos súditos sobre o que sucederá, pois nem para si mesmo tem esse conhecimento. Ele também corre como cego no palco do mundo. Depois de Apolo, Fílon precisa, para seguir a estrutura que vinha construindo, demonstrar o que há de bom em Ares que não é coerente com as atitudes de Gaio. Parece uma tarefa mais desafiadora, já que Ares, pode-se dizer, é tão belicoso quanto o imperador que o alexandrino vem apresentando no texto.523 Nesse ponto, então, a destreza hermenêutica do 522 523 Inclusive porque, como observa Ellen Birnbaum, não percebe qualquer conexão feita por Fílon entre a cultura grega e os hostis alexandrinos que ele enfrenta em Legat. e Flacc. (BIRNBAUM, 2001, p. 57). Parece-me possível especular que a própria ordenação da exposição tenha sido estabelecida por 317 exegeta é mobilizada no sentido de viabilizar uma solução. Ele faz uma rápida comparação visual, indicando que o corpo e a mente de Gaio são efeminados e fracos, nada semelhantes aos de Ares. Imediatamente, contudo, deixa a imagem do deus, passa silencioso pelo conteúdo literal das narrativas tradicionais, e acessa um significado mais profundo: th\n ãArewj ouÅn, ou)xiì tou= memuqeume/nou, tou= de\ e)n tv= fu/sei lo/gou, oÁn a)ndrei¿a keklh/rwtai, du/namin ou)k iãsmen a)leci¿kakon ouÅsan kaiì bohqo\n kaiì parasta/tin a)dikoume/nwn, w¨j kaiì au)to/ pou dhloiÍ touÃnoma; para\ ga\r to\ a)rh/gein, oÀper bohqeiÍn e)sti, kata\ glw½ttan ãArhj w©noma/sqai moi dokeiÍ, kaqairetiko\j pole/mwn, dhmiourgo\j ei¹rh/nhj, hÂj e)xqro\j me\n hÅn eÀteroj, e(taiÍroj de\ pole/mwn, th\n eu)sta/qeian ei¹j taraxa\j kaiì sta/seij meqarmozo/menoj. Conhecemos ou não o poder de Ares – não o deus da mitologia, mas o da natureza da razão, a quem a coragem foi atribuída por herança – que afasta os males, ajudando e defendendo os injustiçados, como o próprio nome indica? É que, segundo me parece, é de arêgein, sinónimo de ajudar, que etimologicamente provém o nome de Ares, destruidor de guerras e artífice da paz. A mesma paz de que o outro, Gaio, é inimigo, pois é amigo de conflitos e transforma a estabilidade em tumultos e sedições. (Legat. 112113, Tradução de Tatiana Faia.) Em outras palavras, Fílon reconhece a coragem (ἀνδρεία - andreía) como o poder, ou a potência própria de Ares, não do Ares conforme o que é relatado nos mitos (μεμυθευμένου – memytheuménou), mas conforme o discurso (ou a razão) no nível da φύσις phýsis, isto é, o discurso observado na profundidade em que comunica uma verdade a respeito da Natureza. Trata-se do sentido natural encontrado no personagem divino por meio de uma leitura que busca reconhecer a concepção da natureza (φυσιολογία - physiología) contida nos personagens.524 Esse estudo da φύσις – phýsis, que não abarca somente a contemplação do 524 causa da dificuldade. Na apresentação dos semideuses, Fílon construiu uma estrutura quiasmática. Primeiro, ele apresentou suas virtudes na seguinte ordem: Héracles (Legat. 94), Dioniso (82) e Dióscuros (84). Em seguida, após uma interpelação dirigida a Gaio, que faz a transição para as comparações das ações do imperador com as virtudes apresentadas dos semideuses. Essas comparações figuram na ordem inversa: Dióscuros (Legat. 87), Dioniso (88) e Héracles (90). Quando se tratava dos deuses, a ordem não é invertida, mas repetida, de modo que a comparação direta entre Gaio e Ares é deixada para o final: Hermes (Legat. 94), Apolo (95), Ares (97) / Hermes (Legat. 99), Apolo (103), Ares (111). A dificuldade de resolução, que solicitaria uma abordagem diferente (do que Fílon tinha feito com relação aos semideuses e outros deuses), como se verá, para o caso de Ares, pode ter fomentado o abandono do quiasmo. O tratamento da dificuldade é adiada e a abordagem diferente não figura no meio da argumentação. Φυσιολογία – physiología e ἀλληγορία – allegoría não são sinônimos no corpus filônico (MATTEI, 2006, p. 29), mas a relação entre a leitura alegórica e o acesso ao conteúdo relativo à φύσις – phýsis em um texto é recorrente. Embora Steven Di Mattei tenha buscado demonstrar que, segundo Fílon, a φυσιολογία – physiología está no texto mesmo da Torah e não em sua leitura alegórica, ainda me parece pertinente a consideração de Nikiprowetzky (NIKIPROWETZKY, 318 mundo físico, concreto, mas também de aspectos da alma humana, por meio da interpretação de textos e personagens é comumente vislumbrado como constituinte do projeto interpretativo de Fílon para a Torah. Contudo, em De Providentia II 40, o alexandrino afirma a existência de inclusae physiologiae, “fisiologias ocultas” nos poemas de Homero e Hesíodo. Ou seja, um deus grego como Ares também pode ter significados ocultos que revelam verdades sobre a φύσις – phýsis. Então, no caso de Ares, com o objetivo de prosseguir em apreciações positivas das divindades para mostrar, em seguida, a inadequação da aproximação das mesmas a Gaio, Fílon recorre a uma interpretação que acessa o sentido oculto, uma interpretação alegórica. O procedimento é até previsível, se lembramos que o recurso à alegoria é comum quando o sentido literal não parece apropriado. No presente caso, o termo apropriado pode ser usado em dois sentidos: “decoroso ou eticamente proveitoso”, ou, simplesmente, “apropriado ao argumento em desenvolvimento”. Convém observar que o acesso a um sentido em certa medida semelhante ao encontrado por Fílon para Ares nos é transmitido em Plutarco. Em Amat. 14, Ares é um deus mas também “a parte enérgica e viril que há em nós” (τὸ θυμοειδὲς ἡμῶν καὶ ἀνδρῶδες – tò thumoeidès hemôn kaì andrôdes). No trecho, o que se discute é justamente o fato de que alguns, como Crisipo, haviam feito acusações contra o deus: ὁ δὲ Χρύσιππος ἐξηγούμενος τοὔνομα τοῦ θεοῦ κατηγορίαν ποιεῖ καὶ διαβολήν: ἀναιρεῖν γὰρ εἶναι τὸν Ἄρην φησίν, ἀρχὰς διδοὺς τοῖς τὸ μαχητικὸν ἐν ἡμῖν καὶ διάφορον καὶ θυμοειδὲς Ἄρην κεκλῆσθαι νομίζουσιν. E Crisipo, ao explicar o nome do deus, faz acusação e profere injúria: pois diz que Ares vem de “anaireîn” [“destruir”], dando origem aos que julgam ter-se chamado Ares a parte belicosa, discordante e enérgica que há em nós. (Amat. 13) Ora, o que Fílon faz, como vimos no trecho, é justamente escolher uma parte, ou aspecto, mais nobre da alma humana para associar a Ares: a coragem. Por isso mesmo, em seguida, ele não pode apresentar a etimologia adotada por Crisipo ou outra semelhante. 525 Como fez com o sentido, precisa selecionar uma origem melhor para o termo. Escolhe o verbo 525 1974, p. 103-109). Não é o caso de identificar a leitura alegórica com a φυσιολογία – physiología. De fato, esta “está” no texto no entender de Fílon, assim como os significados alegóricos. O que deve-se observar posteriormente é que a φυσιολογία – physiología está presente no texto, ao menos algumas vezes, como subentendido, acessado pela leitura alegórica. Em Alegorias de Homero, Heráclito afirma: o( ãArhj ou)de/n e)stin aÃllo plh\n o( po/lemoj, para\ th\n a)rh\n w©nomasme/noj, hÀper e)stiì bla/bh. Isto é: Ares não é outro que não “a guerra”, nomeado a partir de “ruína” [arèn], que é “dano”. 319 ἀρήγειν – arégein, “ajudar” e inverte a apreciação costumeira. Ares não representa o ímpeto de guerra, mas a ajuda na guerra, no sentido de debelá-la. Após esse breve, mas intrincado exercício de leitura (de Fílon e nosso), curiosamente, Gaio pode ser considerado o oposto de Ares por promover a guerra. Talvez esse deus tenha sido o mais desafiador na construção do argumento. Algumas das divindades imitadas por Gaio, como os Dióscuros, apresentavam características positivas óbvias. No caso de Dioniso, Fílon só precisou enfatizar os efeitos positivos do vinho e silenciar os negativos.526 No caso de Apolo, bastou silenciar que ele não só cura, mas também causa doenças. Somente Ares requereu uma leitura mais engenhosa. Mas, por fim, Fílon parece ter alcançado seu objetivo. Contrastou os deuses e Gaio. Eles têm virtudes que o imperador não tem. Gaio não somente não é como os deuses, mas chega a ser o oposto deles em vários sentidos. Decerto, o que quero enfatizar é que Fílon só pode refutar a pretensão do imperador nesses termos por conhecer a tradição dos mitos gregos e ser capaz de estabelecer interpretação para os mesmos. Assim, é capaz de acusar o imperador e não a cultura de que ele se apropria. O pensador judeu não pretende se colocar como misantropo. Mesmo entendendo que o nome “deus” não é aplicado de modo próprio a tais personagens (cf. Mos. 2.204-205; Dec. 52ss), ele não rejeita partilhar da cultura comum.527 Ao contrário, argumenta a partir dela e até se mostra como aquele que a defende de seu mau uso. 528 Sua contenda não é 526 527 528 Há uma crítica constante em Fílon contra o excessivo consumo de vinho. Uma acusação dura e que deve ser considerada está em Plant. 146, trecho em que Fílon menciona o comportamento das bacantes. Sobre o fato de que efeito do vinho pode variar de pessoa para pessoa, cf. Somn. 2.164165. E mesmo do ponto de vista religioso, Fílon entenderia prudente não atacar os ditos deuses alheios, para que essa atitude não servisse de ensejo para ofensas ao verdadeiro Deus (cf. Spec. 1.53; Mos. 2.203-204; Q.E. 2.5). Mais uma vez, ele revela que o discurso não deve somente expor com precisão o pensamento, mas também ser cauteloso a respeito de sua recepção e repercussão. Esses trechos, contudo, não devem ser entendidos como sinal de aceitação da existência de outros deuses, como uma concessão ao politeísmo, o que, mesmo estando em oposição ao pensamento de Fílon, não deixou de ser proposto (cf. DORAN, 2001). Em um estudo no qual menciona esses trechos de Legat., mas em que aborda outros de modo mais detido, Monique Alexandre constata que Fílon “elabora com força e precisão a oposição fundamental entre judaísmo e helenismo, monarquia divina e politeísmo, com as crenças apresentadas conforme uma hierarquia. […] Mas ele sabe também expressar um respeito prudente com relação aos deuses dos pagãos. Ele praticamente não hesita em mencioná-los, adotar um sentido alegórico dado a certas figuras divinas, assim fazendo um uso cultural e não religioso.” [élabore avec force et précision l'opposition et hiérarchie entreront dans l'héritage des apologistes chrétiens. […] Il n'hésite guère à les désigner, à reprendre tel sens allégorique donné à certaines figures divines, em faisant un usage culturel et non religieux] (ALEXANDRE, 2011, p. 147). Parece-me precisa a constatação. A única alteração que eu proporia seria na apresentação do problema. Não me parece exato falar em “oposição fundamental entre judaísmo e helenismo”, 320 dirigida contra o legado cultural compartilhado por todos os povos abarcados pelo império romano, mas contra alguém que fez uso indevido desse legado. Resta observar que o próprio Fílon parece demonstrar satisfação com o que alcançou em sua argumentação: åAra/ ge hÃdh memaqh/kamen e)k tou/twn, oÀti ou)deniì qew½n a)ll' ou)de\ h(miqe/wn e)comoiou=sqai deiÍ Ga/ion, mh/te fu/sewj mh/te ou)si¿aj a)lla\ mhde\ proaire/sewj tetuxhko/ta th=j au)th=j; Será que a partir destas observações já conseguimos aprender que não é justo assemelhar Gaio a nenhum dos deuses ou semi-deuses, uma vez que não possui nem a sua natureza, nem a sua substância, nem as suas intenções? (Legat. 114, Tradução de Tatiana Faia) 5.6.2 Segunda inadequação: Teologia Judaica (Legat. 114-118) Após essa exposição da contradição entre semideuses e deuses gregos e o imperador romano, Fílon observa que isso não impediu Gaio de prosseguir em seu intento, pois “o desejo é cego” (τυφλόν ἡ ἐπιθυμία – thyphlón he epithymía). Mesmo o erro sendo óbvio, não é percebido. O grande poder desse imperador que erra em sua cegueira é que produz a ruína dos judeus. O cego entra em confronto com o povo que vê a Deus. E é justamente essa compreensão própria da divindade que gera, segundo Fílon, a especial inimizade de Gaio para com os judeus: mo/nouj ga\r ¹Ioudai¿ouj u(peble/peto, w¨j dh\ mo/nouj ta)nanti¿a provrhme/nouj kaiì dedidagme/nouj e)c au)tw½n tro/pon tina\ sparga/nwn u(po\ gone/wn kaiì paidagwgw½n kaiì u(fhghtw½n kaiì polu\ pro/teron tw½n i¸erw½n no/mwn kaiì eÃti tw½n a)gra/fwn e)qw½n eÀna nomi¿zein to\n pate/ra kaiì poihth\n tou= ko/smou qeo/n. Pois os Judeus eram os únicos de quem Gaio suspeitava, como se fossem os seus únicos opositores deliberados. De certa forma, por terem sido ensinados desde a mais tenra infância, por pais, pedagogos, professores e, mais do que isso, pelas suas leis sagradas, pelos seus costumes não escritos, a considerar que o Pai e criador do universo é um Deus só. (Legat. 115, Tradução de Tatiana Faia, com alterações minhas em itálico) O alexandrino voltará a explicitar a maneira como a concepção teológica judaica não é compatível com a ideia da divinização de Gaio. Antes, porém, justifica a consistência dessa concepção pela prática do ensino que começa já na infância. Aos pais é ordenado pela Lei ensinar a unidade de Deus aos filhos (cf. Dt 6:4-7). Fílon, a partir de seu contexto, acrescenta os pedagogos e mestres. Além disso, destaca que são ensinados também pelas leis mesmo neste caso. 321 sagradas e pelos costumes não escritos. As leis sagradas (ἱεροί νόμοι – hieroí nómoi) são facilmente relacionadas com as leis de Moisés. Nesse passo, contudo, ele prefere referir-se a algo de seu contexto imediato, isto é, as leis escritas, e não ao legislador que as escreveu, diferente do que faz em Opif. 170-171, quando se refere à mesma concepção teológica. Provavelmente, a diferença se dá porque discorrer sobre a origem das leis desvirtuaria o foco do texto de Legat., e poderia, inclusive, fazê-lo tangenciar questões que requereriam uma postura apologética inadequada para o desenvolvimento do discurso. É mais difícil, por outro lado, definir o que seriam os costumes não escritos (ἄγραφα ἔθη – ágrapha éthe). A expressão tende a ser lida como correlata a ἄγραφος νόμος – ágraphos nómos, o que me parece sensato. O próximo passo em sua interpretação, que seria identificar o significado dessas duas expressões nos textos de Fílon, gera controvérsias. Smallwood, comentando esse trecho de Legat., rapidamente associa as leis não-escritas de Fílon à chamada “lei oral”, considerando que na primeira metade do século I já se poderia chamar assim a tradição oral que culminaria nos escritos rabínicos séculos depois. Ela faz, inclusive, menção ao uso do termo halakha e sugere que o termo ἔθος - éthos, usado por Fílon, é tradução do mesmo (SMALLWOOD, 1961, p. 208). Mary Smallwood não estava sozinha nessa proposta. Ela tem o cuidado de observar que não há unanimidade a respeito e mencionar uma série de autores que, à época, davam suporte a seu comentário. Mais recentemente, Naomi Cohen é a maior representante dessa linha de pensamento. Ela afirma veementemente que certas similaridades entre interpretações de Fílon e escritos rabínicos indicam uma relação entre os dois que deve ser entendida no seguinte sentido: Fílon conheceu e adotou elementos da lei oral que se transmitia na Judeia e que, posteriormente, seria registrada por escrito pelos rabinos (COHEN, N. G., 1995). Há, certamente, pesquisadores que apresentam dura oposição a essa perspectiva, assinalando o fato de que Fílon usa a expressão conforme o entendimento da mesma no próprio contexto helenístico. John W. Martens reconhece que, em alguns trechos, Fílon pode utilizar a expressão para referir-se a costumes judaicos, mas nunca à halakha ou forma precursora desta que fosse investida de autoridade. Ademais, afirma que a expressão é sem dúvida tomada de empréstimo dos gregos (MARTENS, 2003, p. 186). 529 Ele reconhece, pois, certa multiplicidade de sentidos da expressão. Um dos possíveis sentidos é relacionado com a Lei Natural, que é também relacionada com a vida dos patriarcas (MARTENS, 2003, p. 88). 529 Confira-se o debate estabelecido diretamente entre os dois autores pela oposição radical em que se encontram: MARTENS, 1992 e COHEN, N. G., 1993. 322 Esse sentido amplo, construído a partir de uma noção filosófica grega, e que também se relaciona com a própria Lei escrita, é detidamente estudado por Hindy Najman, que, como Martens, também se opõe à proposta de Naomi Cohen (NAJMAN, 1999, 2003). Pensar que Fílon se refere à Lei Natural ou a costumes comuns praticados por todos os humanos em Legat. 115 me seria proveitoso, pois ele estaria a afirmar que os judeus aprendem algo que lhes é próprio a partir de algo que é compartilhado por todos. A diferença estaria na peculiar capacidade de aprender dos judeus, chamados neste tratado diretamente de Israel. Contudo, preciso ter em mente a consideração de Martens a respeito da especificidade do trecho: Em duas ocasiões, Fílon fala de ἄγραφα ἔθη (Legat. 115; Hypoth. 8.6) como uma parte da lei pela qual os judeus são guiados. Podem ser, certamente, a lei oral dos judeus, mas é duvidoso que Fílon tenha em mente leis rabínicas ou palestinas específicas. É mais provável que ele esteja a se referir a costumes judaico-alexandrinos, ou costumes judaicos em geral. Sua intenção em ambas as passagens é provavelmente apologética, isto é, ele quer demonstrar que os judeus também seguem os costumes de seus anciãos. Fílon usa o termo ἔθη em ambas as passagens e isso não é um acidente; se Fílon quisesse afirmar que essas práticas eram o mesmo que a lei, ele as teria designado como νόμοι (ou talvez θεσμοί). O costume não devia contradizer a natureza (Ebr. 18), apesar de poder fazê-lo (Decal. 136), mas não ocupa o mesmo nível da lei.530 (MARTENS, 2003, p. 88) Tendo a concordar que, nesse caso, Fílon se refere a algo próprio dos judeus. Mas ele o faz utilizando um vocabulário que dá a entender que os judeus têm isso em comum com os outros povos, isto é, é comum seguir os costumes próprios. A diferenciação entre lei e costume, neste caso, a meu ver, é que os costumes não-escritos são o conjunto do que se faz na vida. Mas, como o que se faz é (ou deve ser) feito conforme a Lei, conclui-se que os costumes não-escritos são quase, em última consequência, o cumprimento vivo da Lei, a vida dos judeus. Não dos judeus deste ou daquele lugar, mas dos judeus enquanto adeptos da Escritura. As vidas dos patriarcas, como narradas por Moisés, eram a Lei Natural não-escrita, que passa a ser rememoradas na parte legislativa do Pentateuco. Em seguida, ela é interpretada e vivida pela comunidade judaica (NAJMAN, 2003, p. 62-63). 530 Minha tradução de: On two occasions Philo speaks of the ἄγραφα ἔθη (Legat. 115; Hypoth. 7.6) as a part of the law by which the Jews are guided. These may indeed be the oral laws of the Jews, but it is doubtful that Philo has in mind particular Rabbinic or Palestinian laws. He is most likely referring to Alexandrian Jewish customs, or Jewish ustoms in general. His intention in both these passages is probably apologetic, namely, he wants to demonstrate that the Jews too follow the customs of their elders. Philo uses the term ἔθη in both passages and it is not an accident; had Philo intended to state that these practices were the equivalent of lay he would have designated them as νόμοι (or perhaps θεσμοί). Custom should not contradict nature (Ebr. 18), though it can (Decal. 136), but it does not occupy the same level as law. 323 Entendo, então, ἄγραφα ἔθη – ágrapha éthe nesse sentido. Trata-se de uma só expressão que se conecta com o que é próprio dos judeus e o que é comum a toda humanidade, e, assim, conecta também esses dois polos. Não afirmo que o propósito do escritor seja exatamente esse, mas que sua tentativa de equilibrar a referência, não enfatizando nenhum dos extremos, resulta em uma configuração do texto que permite essa leitura. O meio de transmissão do ensino está apresentado. Agora, convém seguir e observar o conteúdo desse ensino implementado por pessoas, leis e costumes. Antes de fazêlo, contudo, Fílon marca o contraste informando que os outros povos todos continuaram adulando Gaio, ao ponto de que alguns trouxeram de entre os bárbaros o costume de se prostrarem diante do imperador (Legat. 116). Ao marcar o ato de prostrar-se, que em princípio não indica adoração como Fílon parece sugerir531, como “costume bárbaro” (βαρβαρικόν ἔθος - barbarikòn éthos), o texto realça novamente a inadequação da divinização do imperador conforme a cultura comum do âmbito greco-romano. Os judeus, que não são apresentados como bárbaros, não só eram os únicos a resistir, mas também estavam dispostos a fazê-lo até as últimas consequências. Afinal, tinham o costume de enfrentar até a morte se a mais simples de suas tradições ancestrais fosse destruída, uma vez que cada uma delas é como uma parte de uma edificação, e, se retirada, comprometeria o todo. No caso da afronta de Gaio, não se tratava de movimentar uma parte pequena, mas a maior das que há (to\ me/giston tw½n oÃntwn - tò mégiston tôn ónton). Nesse ponto, então, Fílon explicita qual é essa parte tão importante da tradição ancestral dos judeus, expondo a noção fundamental de sua teologia: mikro\n de\ ou)k hÅn to\ kinou/menon, a)lla\ to\ me/giston tw½n oÃntwn, a)nqrw¯pou genhth\n kaiì fqarth\n fu/sin ei¹j a)ge/nhton kaiì aÃfqarton oÀsa t%½ dokeiÍn qeoplasth=sai, oÀper a)sebhma/twn eÃkrinen eiånai xalepw¯taton ®qa=tton ga\r aÄn ei¹j aÃnqrwpon qeo\n hÄ ei¹j qeo\n aÃnqrwpon metabaleiÍn®, di¿xa tou= kaiì ta\j aÃllaj ta\j a)nwta/tw kaki¿aj a)nade/casqai, a)pisti¿an o(mou= kaiì a)xaristi¿an pro\j to\n tou= ko/smou panto\j eu)erge/thn, oÁj tv= au(tou= duna/mei toiÍj me/resi pa=si tou= panto\j a)fqo/nouj periousi¿aj a)gaqw½n e)kdi¿dwsin. Porém, esta não era uma pequena alteração, mas a mais importante das realidades: que uma natureza de homem, engendrada e corruptível, fosse forjada a tal ponto que se pudesse assemelhar à de um deus, não engendrada e incorruptível, facto que o povo judaico julga ser a mais abominável das blasfémias – na verdade, mais depressa se muda um deus em homem do que um homem em deus –, para não falar da aceitação de todos os outros vícios 531 Cf. SMALLWOOD, 1961, p. 209. 324 mais graves, a descrença e, ao mesmo tempo, a ingratidão para com o benfeitor de todo o cosmo, que, por meio do seu poder, reparte em superior abundância dádivas excelentes por todas as partes do universo. (Legat. 118, Tradução de Tatiana Faia.) Adoto a tradução de Tatiana Faia sem alterações, para explicitar a maneira como entendo que um leitor não judeu compreenderia o comentário de Fílon. Contudo, parece-me que um leitor “iniciado” na filosofia pátria dos judeus não imaginaria que o alexandrino fala da natureza de “um deus”, mas de Deus. Isso é importante, inclusive, porque um judeu conhecedor dos mitos gregos perceberia o fato de que os deuses gregos são gerados (a partir de cópulas inclusive) como uma diferenciação de seu Deus que é não criado (ἀγένητον agéneton), e é Criador. A crítica, então, é explicitamente dirigida ao homem que quer se fazer deus, mas também, implicitamente, a uma concepção errada a respeito da divindade, que permite a tentativa de tomar sua forma. Uma natureza humana moldar-se à forma da natureza de Deus (qeoplasth=sai - theoplastêsai) no que for possível para a aparência (t%½ dokeiÍn - tôi dokeîn) é algo julgado pelos judeus como o mais grave dos atos de impiedade, não somente por ser uma tentativa de atribuir ao ser humano algo que não lhe é próprio, mas também por atribuir a Deus, na tentativa de imitá-lo, algo que ele não compartilha com o mundo criado, um imaginário que possa ser imitado na aparência. Ou seja, o erro é duplo. Erra-se na concepção do humano. Erra-se na concepção do divino. Sem avisar, Fílon estabelece uma diferença entre o Deus dos judeus e os deuses mitológicos dos gregos, que ele havia mobilizado há pouco em sua argumentação.532 É nesse sentido que leio o comentário que Fílon acrescenta a respeito de ser mais viável Deus adotar a forma (μεταβαλεῖν - metabaleîn) de um ser humano, que um ser humano a de um Deus. Fílon não admitiria que a natureza divina se transformasse em humana. O Deus transcendente não poderia se corromper. Mas poderia aparecer em forma humana (cf. Abr. 532 Embora Fílon tenha utilizado o imaginário relativo aos deuses gregos, deve-se lembrar que ele o faz em benefício da argumentação, sem que isso implique em uma adesão religiosa às imagens. O mais das vezes, o alexandrino é muito crítico ao culto de estátuas (cf. Decal. 72ss). Sandelin reconhece que a crítica de Fílon se baseia fortemente na interpretação das Escrituras, ainda que se complemente, por vezes, com a noção do platonismo relativa à diferenciação entre corpo e alma (SANDELIN, 2012, p. 73). O artigo de Sandelin provê uma ampla apreciação de diversos trechos de Fílon a respeito do assunto. Contudo, não me parece convincente a demonstração de uma apreciação positiva de Fílon com relação às estátuas a ponto de poder-se considerar a existência de uma verdadeira ambivalência. Ademais, minha tendência a pensar em negociação, faz com que eu tenha reserva para com expressões da seguinte natureza: “Fílon não consegue sempre resistir à fascinação que as estátuas dos deuses cria em sua mente” [Philo cannot always resist the fascination statues of the gods create in his mind] (SANDELIN, 2012, p. 75). Os textos em si não me sugerem esse tipo de “fascinação”. 325 142; Somn. 1.234), porque o ser humano tem uma forma a ser tomada como aparência. Já o ser humano não pode se fazer Deus sequer em aparência, pois Deus não tem forma a ser imitada. Fílon ainda faz menção a outros vícios extremos (ta\j aÃllaj ta\j a)nwta/tw kaki¿aj - tàs állas tâs anotáto kakías): descrença e ingratidão (a)pisti¿an o(mou= kaiì a)xaristi¿an - apistían homoû kaì akharistían) com respeito ao Benfeitor de todo o cosmo. Rapidamente, pela apresentação dos vícios, Fílon remete às verdades ensinadas por Moisés, conforme o já mencionado trecho de Opif. 170-172. Ao acusar a descrença, ele afirma a necessidade da crença no Benfeitor, que, mencionado sozinho, é apresentado como único. O repúdio à ingratidão, por sua vez, vem acompanhado de uma afirmação da providência. Ora, em Opif., Fílon apresenta estas cinco lições fundamentais: Deus realmente existe, Deus é um, o mundo foi criado, o mundo criado é um, e Deus exerce sua providência em favor do mundo. Tudo o que diz respeito a Deus (e não ao mundo) no trecho está resumidamente apresentado neste passo de Legat.. Moisés, contudo, não é mencionado. Só nos lembramos dele pelo conteúdo do ensino. Esse que é colocado como um deus para o Faraó estabelece um ensino que evidencia a inadequação do intento de Gaio de colocar-se como deus para todos os seus súditos. 5.6.3 Terceira inadequação: Política Romana (Legat. 141-161) Essa oposição dos judeus à sua divinização faz com que Gaio empreenda uma guerra contra eles (Legat. 119). Os habitantes de Alexandria viram nisso uma oportunidade para exercer o ódio que há muito escondiam, atacando-os abertamente, fazendo conforme mencionei antes (Legat. 120). Flaco, governador da província, vê a situação e, em vez de controlá-la, incentiva a que continuassem (Legat. 132). A responsabilidade dos atos violentos parece compartilhada por esses três. Mas o mais importante é que, dentre os abusos praticados, estava a colocação de imagens em honra ao imperador dentro das sinagogas. Fílon afirma que os alexandrinos não o faziam verdadeiramente para honrar Gaio, mas sim para ofender os judeus (Legat. 137). Para comprovar sua afirmação, Fílon observa que os alexandrinos nunca haviam erguido imagens em honra aos Ptolomeus nas sinagogas, mesmo sendo eles considerados deuses. Ironicamente, Fílon observa que era natural que cultuassem homens como deuses, afinal, cultuavam até mesmo os animais (Legat. 138-139). Em seguida, concebe a possibilidade de que alguém contra-argumentasse afirmando que um imperador 326 merece mais honra que um rei, o que justificaria o maior esforço de impor o culto no caso de Gaio (Legat. 140). A resposta de Fílon a esse hipotético argumento é o que me interessa agora. Ele afirma que também aos antecessores de Gaio, os imperadores César e Tibério, não se fizeram coisas semelhantes. Inicia, então, uma comparação, para demonstrar que ambos eram mais merecedores de honra que aquele. Sobre Tibério, Fílon é breve. Afirma que em seu tempo não houve qualquer guerra nem no mundo grego nem em terras bárbaras, e que, até o fim da vida, ele concedeu a todos a “paz e as boas coisas oriundas da paz” (εἱρήνην καὶ τὰ τῆς εἰρήνης ἀγαθά - eirénen kaì tà tês eirénes agathà, Legat. 141). Em seguida, o alexandrino diz que Tibério era mais nobre que Gaio quanto à ascendência, que tinha grande educação e que alcançara idade avançada (Legat. 142). Por fim, questiona o motivo de não o terem honrado como diziam honrar Gaio, com o objetivo de evidenciar que a verdadeira razão da profanação das sinagogas não era a honra ao imperador, mas o ódio contra os judeus. Alguém que seja versado em outras fontes a respeito de Tibério, como Tácito ou Josefo, estranhará o retrato estritamente positivo que Fílon constrói nesse trecho e, também, a versão que apresentará para a expulsão de judeus de Roma durante seu governo (Legat. 159161). Por isso, é importante que se tenha em mente o referido questionamento com que ele encerra o passo, para reconhecer o objetivo de seu texto. Voltarei a isso, mas comento antes o relato a respeito de Augusto, que também ajudará na reflexão. A primeira frase de Fílon para introduzir o primeiro imperador romano marca o tom laudatório de seu comentário: “E quanto àquele que excedeu a natureza humana em todas as virtudes?”533 (Legat. 143). O imperador é o responsável pela instauração da paz em um mundo que estava em constante conflito e prestes a se autodestruir. Por isso, é digno que o chamem de ἀλεξίκακος - aleksíkakos, “afastador de males”. Em Legat. 112, Fílon havia utilizado esse mesmo epíteto para Ares, que, como observei, ele apresenta como aquele que acaba com as guerras, justamente o que diz ter feito Augusto. Smallwood nota que o epíteto é comumente usado também com relação a outras divindades, e sugere que Fílon o adote para Augusto como uma observação de que é mais pertinente para este que para Gaio (SMALLWOOD, 1961, p. 228). Lembrando do argumento que está em desenvolvimento no tratado, pode-se pensar que, de fato, a associação de Augusto a uma divindade servirá como mostra de que, mais que Gaio, ele merecia ser honrado de modo especialíssimo, o que não fez 533 Tradução de Tatiana Faia para: ti¿ de/; o( th\n a)nqrwpi¿nhn fu/sin u(perbalwÜn e)n a(pa/saij taiÍj a)retaiÍj, 327 com que os alexandrinos profanassem as sinagogas dos judeus. Ou seja, se isso fizessem por desejo de honrar o imperador, o teriam feito antes em honra a outro mais merecedor. Também me parece importante essa repetição do epíteto por realizar uma conexão linguística, por repetição lexical, de duas partes do tratado que, a meu ver, devem ser lidas como complementares, o que, inclusive, definirá minha proposta de interpretação adiante. Sigamos com a leitura do texto de Fílon, que afirma que esse é o César que curou as doenças comuns (τὰς κοινὰς νόσους - tàs koinàs nósous) de gregos e bárbaros (Legat. 145), algo que o faz semelhante a Apolo, perceba-se. Ele também libertou o mundo e retirou dos mares os piratas (Legat. 146). Segue, então, um trecho que convém citar: ouÂtoj o( ta\j po/leij a(pa/saj ei¹j e)leuqeri¿an e)celo/menoj, o( th\n a)taci¿an ei¹j ta/cin a)gagw¯n, o( ta\ aÃmikta eÃqnh kaiì qhriw¯dh pa/nta h(merw¯saj kaiì a(rmosa/menoj, o( th\n me\n ¸Ella/da ¸Ella/si pollaiÍj parauch/saj, th\n de\ ba/rbaron e)n toiÍj a)nagkaiota/toij tmh/masin a)fellhni¿saj, o( ei¹rhnofu/lac, o( dianomeu\j tw½n e)piballo/ntwn e(ka/stoij, o( ta\j xa/ritaj a)tamieu/touj ei¹j me/son proqei¿j, o( mhde\n a)po kruya/menoj a)gaqo\n hÄ kalo\n e)n aÀpanti t%½ e(autou= bi¿%. Foi ele que elevou todas as cidades à liberdade, quem trouxe ordem à desordem, que civilizou e harmonizou todos os povos hostis e selvagens, quem expandiu a Hélade com outras terras gregas, quem helenizou o mundo bárbaro nas regiões mais importantes; foi ele o guardião da paz, que distribuiu por cada homem a parte que lhe pertencia e outorgou os seus benefícios de forma pródiga, sem nunca, em toda a sua vida, ter escondido para proveito próprio algo de bom ou de belo. (Legat. 147. Tradução de Tatiana Faia.) Augusto é apresentado como libertador das cidades e helenizador dos povos. Ora, a expansão da cultura grega é apresentada como um dos bons feitos de Augusto, ao lado da afirmação de que ele harmonizou povos hostis e selvagens. A cultura comum parece ser um meio de organização adequado para a humanidade, uma forma de estabelecer a possibilidade da paz. Não por acaso, o heroico imperador também é descrito como guardião da paz e benfeitor. Inclusive, no trecho que segue, será chamado por esse termo, εὐεργέτης - euergétes, o mesmo utilizado com referência a Deus em trecho já citado (Legat. 118), e que havia sido utilizado em Alexandria anteriormente com relação a Ptolomeus. Após essa elogiosa apresentação, Fílon volta a denunciar o fato de que para com esse imperador os alexandrinos não agiram com tamanho afã a ponto de profanarem as sinagogas. Questiona se isso representava uma negligencia para com tão honrado governante e explica o motivo: esse César prezava pela preservação dos costumes ancestrais de cada 328 povo. O alexandrino, então, expõe exemplos de atitudes respeitosas de Augusto e afirma que as mesmas se seguiram sob Tibério (Legat. 159), para, em seguida, voltar a tratar de Gaio. É preciso ir além da constatação e tentar entender o que motiva o tom abertamente laudatório dos relatos de Fílon sobre Augusto e Tibério. Tratar-se-á de uma simulação com vistas a adquirir a benevolência dos leitores favoráveis a Roma? Ou o pensador estaria realmente convencido do caráter benéfico do império quando sob esses dois imperadores, e quereria difundir essa perspectiva entre os outros judeus alexandrinos? Essas duas perguntas sugerem dois dos vários caminhos possíveis para a reflexão. A diversidade de respostas sugeridas ao longo do último século de estudos filônicos é considerável e apresenta perspectivas bastante divergentes. Goodenough afirma que Fílon “amava os romanos não mais que o capitão de um minúsculo barco ama um furacão”534 (GOODENOUGH, 1938, p. 7). Ele sugerirá, então, que o encômio a Augusto e Tibério deve ser entendido não como dirigido a esses dois imperadores por uma adesão convicta, mas como uma forma disfarçada de exposição de uma concepção a respeito do rei ideal (GOODENOUGH, 1938, p. 101-103; 1940, p. 88-89). Vários autores se interessaram por relações intrincadas do discurso. Um exemplo seria a consideração da adoção de uma terminologia inspirada na filosofia grega na construção do retrato dos imperadores, o que Fílon faria com vistas a explicitar uma filosofia política própria que favoreceria a valorização do papel do judaísmo em seu relacionamento com a Lei (GUIGNARD, 1998). Outro tratamento empreendido foi a observação de que, junto à terminologia comumente utilizada para louvor de governantes, Fílon insere características judaicas no discurso (BORGEN, 2005, p. 186). Isso, a meu ver, é natural, uma vez que o autor não mantém uma fronteira clara entre o âmbito judaico e o grego no que diz respeito a muitas das noções que mobiliza em seus diversos tratados. Barraclough, por sua vez, percebe na apreciação positiva de Fílon para Tibério e Augusto, e negativa para Gaio, Flaco entre outros, uma especial valorização não das pessoas, mas da manutenção da ordem vigente e uma simétrica desvalorização da emergência de mudanças e desestabilizações. “Paz, harmonia, justiça – essas são as virtudes que Fílon valoriza”535 (BARRACLOUGH, 1984, p. 450). E, claro, essa concepção não tem necessariamente uma conexão clara com as histórias dos patriarcas da Bíblia, que experimentam constantes mudanças. É importante observar que, embora Barraclough busque 534 535 Minha tradução de: loved the Romans no more than the skipper of a tiny boat loves a hurricane. Minha tradução de: Peace, harmony, justice – these are the virtues Philo prizes. 329 demonstrar de modo continuado e pormenorizado as inadequações das interpretações de Goodenough no que diz respeito ao posicionamento político de Fílon frente a Roma, não se opõe radicalmente à proposta de o estudioso no que diz respeito ao retrato de Augusto e Tibério, uma vez que continua vislumbrando, nas elogiosas palavras de Fílon, a constituição de um ideal que se contrapõe ao nefasto reinado de Gaio. No lado oposto, encontram-se autores que, sem entrar em detalhes a respeito da construção do discurso e sua repercussão, afirmam que Fílon era realmente pró-Roma e julgam ser sincero o louvor que tece a Augusto e Tibério, como é o caso de John Barclay (BARCLAY, 1996, p. 74). Seguindo essa perspectiva que não questiona uma apreciação positiva do império por parte de Fílon, há pesquisadores que assinalaram semelhanças entre seu discurso e o de autores romanos. Hadas-Lebel se expressa enfaticamente: O louvor de Fílon a Augusto, benfeitor da humanidade, só era igualado em Carmen Saeculare ou em Odes de Horácio. Fílon atribui a ele virtudes super-humanas (Legat. 143), quase não recusando a considerar divino o imperador; havia pouco para distinguir sua admiração daquela de qualquer romano.536 (HADAS-LEBEL, 2006, p. 57) A historiadora reconhece uma admiração a partir das palavras de Fílon, sem considerar a possibilidade de que algo mais mobilizasse seu discurso. Ele teria adotado essa visão idealizada de Roma por compreender que ninguém escaparia a esse poder (HADASLEBEL, 2006, p. 58). Como Hadas-Lebel, Maren Niehoff também se interessa pela proximidade entre Fílon e autores romanos no que se refere à representação de Tibério e, sobretudo, Augusto, mas interpreta essa relação de outra forma. Niehoff considera os textos de Fílon como expressão de uma continuada atitude pró-Roma (NIEHOFF, 2001, p. 112), e demonstra por meio de algumas semelhanças consideráveis que o trecho em louvor dos imperadores que lemos em Legat. reproduz a ideologia e a autoimagem próprias dos romanos acerca do Império. 537 Além disso, a 536 537 Minha tradução de: Philo's praise of Augustus, benefactor of humanity, was only equalled in the Carmen Saeculare or the Odes of Horace. Philo credited him with superhuman virtues (Legatio 143), short of refusing to consider the Emperor divine, there was little to distinguish his admiration from that of any Roman. Em artigo mais recente, Niehoff sugere que a longa permanência de Fílon em Roma lhe terá possibilitado um consistente contato com a ideologia romana, comunicada em língua grega pelos próprios intelectuais romanos ou com ajuda de assistentes bilíngues (NIEHOFF, 2012b, p. 364), o que certamente é uma reação a críticos que sugeriam a impossibilidade de Fílon reproduzir elementos da ideologia romana por não acessar o latim. Ademais, ela sugere que a experiência de relatar parte da vida dos imperadores romanos terá influenciado na escrita das biografias de personagens bíblicos que sua obra contém (NIEHOFF, 2012b, p. 365; cf. NIEHOFF, 2011b). 330 pesquisadora considera que o tratado é dirigido a leitores judeus, e que tem o objetivo de disseminar essa atitude a favor de Roma entre os judeus alexandrinos. E se o público alvo não era gentio, o louvor a Augusto não deveria ser lido como mero encômio apologético, somente para funcionar como modelo ideal ao qual se contraporia Gaio (NIEHOFF, 2001, p. 118). Katell Berthelot não corrobora o entendimento de Niehoff e reafirma, por meio de leitura de diferentes tratados de Fílon, que ele não era decididamente a favor Roma, nem compactuava com toda a ideologia a respeito do império, tendo ressalvas tanto do ponto de vista prático, social, quanto no que dizia respeito a sua concepção teológica (BERTHELOT, 2011, p. 186-187). Embora eu não perceba uma vigorosa contenda de Fílon para com o império em si, tampouco percebo um entusiasmo de sua parte a favor do mesmo. O estudo de Berthelot é especialmente proveitoso no sentido de que questiona o resultado da leitura de Niehoff. De minha parte, concordo com percepção de Barraclough sobre o fato de que Fílon preza, sobretudo, a estabilidade social (e a manutenção liberdade religiosa). Certamente, no âmbito da reflexão, aspectos ideológicos de Roma divergem de sua concepção de mundo. Mas isso não conduz necessariamente a um embate que vá além da discussão de noções. Ele não se levanta contra o império ou contra a existência de um imperador, mas especificamente contra Gaio, pela maneira imprópria com que exerceu sua função. A respeito do trecho que me interessa diretamente, Berthelot sugere que tem uma importante função retórica e que, como outros autores já haviam sugerido, serve para descrever um governante romano ideal em oposição a Gaio (BERTHELOT, 2011, p. 168). Além disso, opondo-se à proposta de Niehoff, afirma: Ainda que suas obras tenham sido dirigidas predominantemente a uma audiência judaica, Fílon era uma figura por demais pública para expressar sua crítica ao Império abertamente em qualquer de seus tratados. Deve-se, por conseguinte, ler nas entrelinhas, e a dimensão retórica da descrição laudatória do reinado de Augusto e de Tibério em Legat. deve ser considerada, ainda que se considere que Legat. era, em princípio, para uma audiência judaica – uma questão que permanece em debate. 538 (BERTHELOT, 2011, p. 176) Concordo com o fato de que a dimensão retórica do trecho deve ser considerada ainda que pensemos em um público judaico. A autora observa, também, que essa questão da 538 Minha tradução de: Even if his works were mostly directed at a Jewish audience, Philo was too much of a public figure to express his criticism of the Empire openly in any of his treatises. One must therefore read between the lines, and the rhetorical dimension of the laudatory description of Augustu's reign and that of Tiberius in the Legatio must be taken into account even if one considers that the Legatio was intended primarily for a Jewish audience – an issue that remains debated. 331 identificação do público alvo permanece em debate. Trata-se de um debate ao qual não pretendo me prender. Reconheço ambas as possibilidades como plausíveis. O tratado faz sentido se pensarmos em um público judaico. Como observa Per Bilde, serviria como consolo e lição a partir de uma dificuldade superada com a ajuda de Deus, de modo que propicia maior confiança, a exemplo de outros textos judaicos mais antigos, como o livro de Ester. Ao mesmo tempo, o autor reconhece características de Legat. que constituem uma apologia política dirigida a não-judeus, e, até mesmo, ameaças pouco veladas sobre uma possível sublevação dos judeus espalhados por diversas localidades do império (BILDE, 2009). Reconheço, então, a necessidade de se considerar a possibilidade de uma dupla audiência almejada. E mais: deve-se ter em mente a complexidade existente mesmo em um possível público exclusivamente judaico. Assim como o autor, os leitores judeus viviam em um contexto intercultural, compartilhando, discutindo e repudiando ideias oriundas de diferentes fontes. Não podemos afirmar que Fílon só pudesse escrever para judeus no sentido de convencê-los de uma visão pró-Roma. É igualmente possível que ele visse em Alexandria possíveis leitores judeus extremamente devotos do império e quisesse fazê-los reconsiderar parte de sua concepção. Devo dizer também que, ao considerar a possibilidade de um público misto, de judeus e não-judeus, não indico que o tratado efetivamente tenha sido lido por ambos os públicos. Trata-se de uma concepção sobre o processo de escrita, não de circulação. Nesse sentido, um fato é certo: Fílon sabia que ao menos seus pares judeus leriam seu texto, que alguns simpatizantes do judaísmo também poderiam fazê-lo, e que talvez algum não judeu, mesmo romano o pudesse ler eventualmente. Antes de seguir, parece-me importante ressaltar a seguinte observação de Bilde: Fílon, assim, parece comunicar que o imperador Calígula, esse “inimigo mortal” dos judeus, também era um inimigo da aristocracia romana e das verdadeiras e sadias tradições romanas. Ao conectar a política hostil de Calígula para com os judeus com sua quebra de outras tradições romanas, Fílon encontra uma forma muito astuta de concordar com a crítica da aristocracia a esse imperador, que predomina na historiografia romana, por exemplo, em Suetônio (Gaius Calígula 26-27) e Dion Cássio (Hist. 59, 2425).539 (BILDE, 2009, p. 110.) Em princípio, essa observação reforça a possibilidade de um público alvo não539 Minha tradução de: Philo thus seems to communicate that the Emperor Caligula, this “mortal enemy” of the Jews, was also an enemy of the Roman aristocracy and the true and healthy Roman traditions. By linking together Caligula’s hostile policy towards he Jews with his breach of other Roman traditions, Philo manages very cleverly to agree with the aristocratic critique of this Emperor, which dominates in Roman historiography, e.g., Suetonius (Cal. 26-27) and Dion Cassius (Hist. 59,24-25). 332 judeu, ou, ao menos, um público inteirado da crítica romana a Gaio. Talvez, contudo, algum pesquisador que siga a perspectiva de Niehoff possa argumentar algo diverso: que o dado foi interpretado erroneamente, e que o que se deve concluir é que Fílon de fato adotou a opinião que circulava entre os intelectuais romanos e que a queria comunicar aos judeus para que abandonassem qualquer anseio anti-romano. Quero observar que, se Bilde está certo, sua constatação revela, mais que a delimitação de um público alvo, a habilidade de Fílon para usar de discursos alheios com vistas a seu próprio objetivo. Será possível, penso, vislumbrar alguma outra mostra dessa habilidade sem subordiná-la à questão do público. Trato, então, de deixar o público alvo do tratado como incógnita, mas possivelmente misto, e passo a reconsiderar o encômio aos imperadores a partir de seu contexto no próprio tratado. Não desconsidero, para tanto, as conexões encontradas por Niehoff entre a apresentação de Fílon a respeito dos imperadores e do império e a de autores envolvidos na ideologia própria de Roma. Somente reinterpreto seu significado. Parece-me que se nos víssemos obrigados a apressadamente identificar a reprodução do discurso próRoma nesse passo de Legat. como expressão de uma admiração ao império e adesão à sua ideologia, teríamos que nos obrigar a considerar, igualmente, que Fílon tem como reais todos os deuses e semideuses gregos sobre os quais discutiu anteriormente. Afinal, ele não negou a existência dos mesmos, nem criticou suas falhas morais e a precariedade teológica na apresentação dos mesmos. Ao contrário, destacou as mais nobres virtudes que se encontram nos mitos e, até mesmo, fez um esforço hermenêutico para viabilizar uma apreciação positiva de Ares, não inventando uma interpretação, mas selecionando dados para sua exposição. Isso ele fez com vistas ao contraste. É óbvio que, de certa forma, mobilizou uma concepção alheia. Sim, pois, ainda que o conjunto de mitos que subjaz à descrição daquelas divindades seja parte de uma herança cultural comum, a maneira de compreendê-lo é diferente, alheia à concepção teológica de Fílon. Quanto aos elogios dos imperadores, é viável pensar algo semelhante. Fílon os tece com vistas a uma argumentação, para proveito do entendimento e não da verdade das coisas. Como selecionou dados visuais e lendários dentre os muitos disponíveis acerca dos deuses, agora, seleciona uma concepção a respeito de Roma e dos imperadores e a mobiliza para o contraste almejado. Trata-se de um arcabouço ideológico alheio? Não tão alheio, eu diria, uma vez que ele está implicado na questão por estar sob o poder de Roma e negociar com Roma. Mas é, sim, alheio por não adequar-se completamente a suas noções teológicas e 333 cosmológicas. Como Fílon é capaz de argumentar a partir da cosmovisão mitológica dos gregos, também o é a partir da cosmovisão política dos romanos, adotando diferentes perspectivas, conforme a necessidade, ainda que haja certa inadequação de conteúdo com relação a sua própria cosmovisão judaica. A inadequação, contudo, não impede que Fílon utilize o marco ideológico romano como recurso, da mesma forma como ele não se viu impedido de afirmar que Apolo julga apropriado curar as doenças (νόσους ἰᾶσθαι- nósous iâsthai) causadas por outros, para, logo, afirmar que Gaio causava doenças (νόσους - nósous) aos que estavam sadios, demonstrando que, mesmo que usasse uma vestimenta como a de Apolo, dele se afastava no que concernia às virtudes. E convém realmente reforçar a relação entre estas duas partes do tratado: aquela em que são discutidas as virtudes dos deuses e sua falta em Gaio, e aquela em que se apresentam as virtudes de Augusto e Tibério. Não é pouco significativo, pois, que Augusto é aquele que curou as doenças comuns a gregos e bárbaros (ὁ τὰς κοινὰς νόσους ἑλλήνων καὶ βαρβάρων ἰασάμενος - ho tàs koinàs nósous Hellénon kaì barbáron iasámenos). No contexto imediato do trecho em estudo, Fílon demonstra que os imperadores anteriores eram mais merecedores de honras e, nem por isso, a reverência por parte dos alexandrinos a eles ensejou a profanação das sinagogas, pelo que se devia concluir que o motivo desses atos no tempo de Gaio não havia sido realmente honra ao imperador, mas ódio aos judeus. Por isso, ao referir-se aos imperadores, e a Augusto sobretudo, ele os aproxima, sem declará-lo, no que diz respeito a suas virtudes, das divindades cujos ornamentos Gaio usurpava, evidenciando que, se fosse o caso de reverenciar a tal ponto algum governante por proximidade aos deuses, isto é, aos deuses considerados entre os alexandrinos agressores, seria pertinente que o tivessem feito com respeito aos anteriores. Por isso, não é de se estranhar que a descrição do significado do caduceu de Hermes se adeque mais ao papel desempenhado por Tibério (exagerado por Fílon540). Também não é de se surpreender que, em sua representação visual, Apolo porte graças (χάριτας - kháritas) em sua mão direita, uma posição de destaque (95) coerente com sua generosidade, que Gaio devesse deixar cair as graças (χάριτας - kháritas) por não ser conceder boas coisas aos súditos (105), enquanto Augusto é aquele que distribuiu graças (χάριτας kháritas) com liberalidade (147). Como observei há pouco, também, Augusto recebe um epíteto antes atribuído a Ares: ἀλεξίκακος - aleksíkakos, “afastador de males”. Eu poderia 540 Cf. SMALLWOOD, 1961, p. 227. 334 dizer por Fílon: será que já conseguimos aprender que, embora Gaio não se assemelhe em nada às virtudes e intenções dos deuses e semideuses de que se fantasia, esses outros imperadores sim? E ainda assim, esse Augusto virtuoso não impôs aos judeus que o cultuassem como deus, nem seus súditos importunaram os costumes ancestrais desse povo. O culto ao imperador na forma como praticado pelos alexandrinos é demonstrado como inadequado a partir de uma consideração da política prévia do próprio império romano. Claro, essa consideração é feita de forma a favorecer o argumento, e não com vistas a um relato meticuloso dos fatos, ou a uma exposição direta da visão do autor. Fílon não está a expor suas noções simplesmente, mas a negociar. E nessa negociação ele assume lugares diferentes. Não define-se como defensor de uma identidade revestida de um discurso monotonal, mas permite que certa polifonia se propague ordenadamente, com vistas a um objetivo complexo. Isso precisa estar claro durante a leitura, pois, de outra forma, erroneamente a meu ver, se tomará o discurso de Fílon como representando um pensamento ao qual ele é realmente adepto. 5.6.4 O que isso faz notar a respeito de Legat. como um todo? Neste ponto de meu discurso, é provável que o leitor esteja se perguntando o motivo desse longo trecho que praticamente nada informa a respeito da tragédia ou do trágico em um capítulo que disso deveria tratar. Devo, pois, explicitar o seu papel no percurso dessa reflexão. A observação dessa longa negociação visa a demonstrar claramente que Fílon pode mobilizar diferentes concepções em sua escrita, inclusive sem mencionar imediatamente seu próprio ponto de vista a respeito das mesmas, se isso não convier ao texto em construção. As implicações disso são várias e até mesmo preocupantes para quem quer entender um autor antigo. Mas o que quero destacar é simplesmente que essa maleabilidade existe, que Fílon adota discursos com os quais não precisa concordar plenamente, que ele acolhe diferentes concepções e as transforma em recursos seus. Isso será importante para a leitura especificamente focada no trájico, que surge a partir de um desses acolhimentos dinâmicos. 5.7 Cenas trájicas como recurso de comunicação em Embaixada a Gaio Por fim, resta observar como Fílon se apropria de elementos da tragédia e do trágico na escrita de Legat. e como tais elementos são mobilizados no texto. Que a tragédia tem alguma importância nas páginas de Legat. deve ser algo simples, uma vez que há 335 referências explícitas ao gênero. O que pretendo é algo um pouco mais complexo: demonstrar que as diferentes referências ao par tragédia / trágico no tratado constitui um fio condutor que se revela proveitoso para uma leitura de todo o texto, e não somente de trechos específicos, nos quais essas referências são mais evidentes. Um estudo que considero como precursor deste 541 foi empreendido por Francesca Calabi a respeito da linguagem teatral em Contra Flaco. A pesquisadora começa apresentando a relação entre o teatro e a prática da oratória política, demonstrando que ambos buscam suscitar emoções no público e compartilham de recursos semelhantes, e menciona brevemente também a aproximação entre representação teatral e vida humana (CALABI, 2003, p. 9194)542. Em seguida, Calabi discorre sobre subtemas que são especialmente perceptíveis em Flacc., tais como a simulação e engano no exercício do governo político, a perseguição como espetáculo, e inversão de destinos e espetacularização. Com respeito à apropriação que Fílon faz da metáfora da vida humana como interpretação de um papel, a partir da observação da crítica do alexandrino a Flaco, a pesquisadora conclui: Aquele que recita assume um papel, e, assim, se assemelha a um mímico ou ator; ele “representa” um papel, mas não o vive. Há, por assim dizer, uma inversão na metáfora do ator com respeito à interpretação estoica. Para estes, trata-se de uma questão de se interpretar um papel com elegância e distanciamento, observando-o de fora. Em vez disso, para Fílon, o homem virtuoso, identificado na temporalidade e na escolha de sua ação, vive suas ações em primeira pessoa. O político se torna um ator que recita um papel somente quando isto não é um meio de virtude, mas o engano e a auto representação daquele que mascara sua perversidade. 543 (CALABI, 2003, p. 110) Fílon adota a metáfora que outros pensadores utilizam para descrever uma realidade neutra ou positiva, mas a faz descrever uma realidade pervertida pela não consideração da existência e atuação de Deus. A percepção dessa mudança realizada por Fílon é uma conclusão importante do estudo de Calabi, e, certamente, a tenho em consideração. Ao final do artigo, a autora observa de modo breve a ocorrência da linguagem 541 542 543 Embora eu tenha tido conhecimento do mesmo somente após a concepção do projeto desta pesquisa. Os exemplos evocados pela autora praticamente não coincidem com os que utilizei antes neste capítulo, o que torna os dois estudos, este e o de Calabi, em alguma medida, complementares. Minha tradução de: He who recites assumes a role, and thus resembles a mime or an actor; he “represents” a part, but does not live it. There is, so to speak, a reversal in the actor metaphor with respect to a Stoic interpretation. For the latter, it is a matter of reciting a part with elegance and detachment, observing it from outside. Instead, for Philo the virtuous man, identified in temprality and in the choice of his action, lives his actions in the first person. The politician becomes an actor who recites a part only when it is not a means of virtue, but the deceit of the self-representation of he who would mask his wickedness. 336 teatral em Legat.. Ela ressalta como elementos importantes certa ênfase na questão moral e a deificação de Gaio como representação (CALABI, 2003, p. 111-116). Aproveito do artigo de Francesca Calabi não somente as noções ali bem sistematizadas, mas também, em alguma medida, a forma de apresentação. Em vez de seguir o texto de Fílon em sua ordem linear, dividirei este estudo em pequenos tópicos temáticos, que abordarão diferentes aspectos da utilização da tragédia no tratado. Em seguida, considerarei o conjunto de evidências com vistas a uma conclusão. 5.7.1 Recepção dos espetáculos A mais clara referência à recepção de espetáculos em Legat. é narrada por Fílon de modo a explicitar a relação de Macro para com Gaio. Nos eventos sociais, era ele quem instava o imperador a manter o decoro544, inclusive porque se via como responsável pela ascensão de Gaio ao trono e não queria que seu trabalho fosse desperdiçado: o(po/te ouÅn hÄ katadarqo/nta e)n sumposi¿% qea/saito, periani¿sth stoxazo/menoj aÀma me\n tou= pre/pontoj aÀma de\ kaiì th=j a)sfalei¿aj®eu)epibou/leuton ga\r o( koimw¯menoj®, hà tinaj e)kmanw½j o)rxhsta\j o(rw½nta hÄ eÃstin oÀte sunorxou/menon hÄ e)piì mi¿moij ai¹sxrw½n kaiì skwmma/twn mh\ u(pomeidiw½nta semno/teron a)lla\ meirakiwde/steron kagxa/zonta hÄ kiqar%dw½n hÄ xorw½n th=j e)mmelei¿aj h(ttw¯menon, eÃstin oÀpou kaiì sun#/donta, eÃnutte plhsi¿on kaqezo/menoj hÄ kata keklime/noj kaiì e)pe/xein e)peira=to. Deste modo, sempre que o via a dormir num banquete, fazia-o acordar, com o duplo objectivo de manter o decoro e pela sua segurança – pois o homem que dorme é vulnerável a um ataque –; ou vendo-o arrebatado com alguns dançarinos, ou quando por vezes ele se juntava à dança, ou ainda ao rir desenfreadamente, da forma mais pueril, para um actor de piadas obscenas em vez de se limitar a sorrir gentilmente, de forma mais digna, ou cedendo ao poder da harmonia dos tocadores de cítara ou dos coros, chegando ocasionalmente a juntar-se aos cantos, nestas ocasiões, Macro, sentado ou reclinado perto dele, dava-lhe uma cotovelada e tentava refreá-lo. (Legat. 42. Tradução de Tatiana Faia.) Em vez de permanecer como espectador, Gaio se introduzia de modo ridículo no 544 O mesmo tipo de crítica a comportamento inadequado diante de um espetáculo pode ser encontrado sob a pena de um escritor quase contemporâneo de Fílon e que também demonstra alguma influência estoica. Plínio o jovem informa, a respeito de uma Ummidia Quadratilla, que “tinha uma trupe de pantomima e a encorajava com mais extravagância do que convém a uma mulher nobre” [Habebat illa pantomimos fovebatque, effusius quam principi feminae convenit.] (Ep. VII 24). A respeito do próprio Gaio, Smallwood observa que Suetônio (Cal. 54) e Dion Cássio (LIX 5) descrevem o comportamento do imperador de modo semelhante, e sugere que é crível a atitude de Macro, que seria semelhante à de Burrus e Sêneca para com Nero (SMALLWOOD, 1961, p. 181). 337 espetáculo, em uma espécie de prévia de sua autoproclamação como deus. Seu conselheiro, contudo, insistia na necessidade de assumir de modo devido e superior o lugar de quem assiste de fora aquilo que se apresenta: eiåta eÃfasken: "oÀtan paratugxa/nvj skhnikoiÍj a)gw½sin hÄ gumnikoiÍj hÄ toiÍj kata\ ta\j i¸ppodromi¿aj, mh\ sko/pei ta\ e)pithdeu/mata, a)lla\ th\n e)n toiÍj e)pithdeu/masi kato/rqwsin, Noutra ocasião dizia-lhe: “Quando estás presente em concursos teatrais ou atléticos, ou naqueles das corridas de cavalos, não observes os actos praticados mas a recta conduta presente nos actos praticados [...]” (Legat. 45. Tradução de Tatiana Faia.) A exposição a respeito da maneira própria de colocar-se enquanto receptor dos espetáculos é clara: o imperador não devia observar somente os atos, mas a correção dos mesmos. Ou seja, não deveria simplesmente reagir como as massas, mas analisar o que era visto no sentido de discernir as ações. Colson, em nota, sugere que se entenda o termo κατόρθωσις - katórthosis, traduzido por Tatiana Faia como “reta conduta”, em seu sentido estoico, que indica o estado moral que gera κατορθώματα - katorthómata, isto é, algo feito de modo correto, virtuoso. Em resumo, Gaio era um espectador estulto orientado por um pretor filósofo. Adiante, o imperador anulará o conselho pelo assassinato do conselheiro, e suas ações não evidenciarão qualquer atenção para a correção de seus próprios atos, mas sim a perpetuação do desempenho do ridículo. Como questões morais não figuravam entre as prediletas de Gaio, que se contentava com o riso simples, também sua recepção de outras mensagens podia se ver prejudicada. Parece-me interessante assinalar a maneira como os relatos dos sofrimentos dos judeus alexandrinos, à época da profanação de suas sinagogas na cidade, eram recebidos pelo imperador como se se tratasse de peças literárias. Inclusive, a leitura dos relatos enviados repetidamente daquela cidade lhe agradavam mais que obras de prosadores e poetas. E Fílon ainda observa que ele era acompanhado por criados nas zombarias e risadas (Legat. 165). Ora, não tendo aprendido a apreciar de modo digno as obras dos poetas, Gaio se vê preso a uma perversa recepção de relatos verídicos, colocando-se não como governante, mas como um simples espectador entre outros. Fílon apresenta Gaio como péssimo espectador no que diz respeito à apreciação e valorização da potencialidade moral daquilo que é visto, lido ou ouvido. E, certamente, esse exemplo do comportamento errado sugere ao leitor que tome uma atitude diferente. É preciso 338 analisar o espetáculo que se desenrola, e não somente usufruir dele. O escritor do tratado, neste caso, assume o lugar do conselheiro, e indica que há uma maneira apropriada e outra inapropriada de recepção. Isso será importante porque Gaio deixa de ser o espectador impróprio e passa a ser o próprio espetáculo que demanda todo o mundo habitado como espectador. Sabedor disso, Hélicon, um egípcio inimigo dos judeus, que é apresentado como escravo da casa imperial muito íntimo de Gaio (Legat. 166), é seduzido pela proposta da embaixada opositora à dos judeus, que lhe prometia honras quando fosse com o imperador a Alexandria (Legat. 172). Ele se entusiasma com a possibilidade por saber que não só tão importante cidade estaria presente na ocasião, mas também, por pouco, toda a terra habitada (σχεδόν τι τῆς οἰκουμένης skhedón ti tês oikouménes), por meio dos mais gloriosos e dos olhos (ὄψις - ópsis) das outras cidades, isto é, pessoas importantes que serviriam como olhos para posterior divulgação do acontecimento em suas próprias cidades (Legat. 173). Além desse episódio com Hélicon, a figura do outro conselheiro de Gaio é significativa, pois trata-se de Apeles, ator trágico assim apresentado por Fílon: oÁj a)kmv= me\n th=j prw¯thj h(liki¿aj, wÐj fasin, e)kaph/leuse th\n wÐran, eÃcwroj de\ geno/menoj e)piì th\n skhnh\n parh=lqen. oÀsoi de\ skhnobatou=sin e)mporeuo/menoi qeataiÍj kaiì qea/troij, ai¹dou=j ei¹si kaiì swfrosu/nhj a)ll' ou)k a)naisxunti¿aj kaiì a)kosmi¿aj e)rastaiì th=j a)nwta/tw; dia\ tau=ta ei¹j th\n tou= sumbou/lou ta/cin o( ¹Apellh=j parh=lqen, iàna bouleu/shtai Ga/ioj meq' ou me\n w¨j skwpte/on, meq' ou de\ w¨j #)ste/on, u(perba\j ta\j periì tw½n oÀlwn ske/yeij, w¨j ei¹rhneu/esqai kaiì h)remeiÍsqai ta\ pantaxou= pa/nta. […] segundo consta, na flor da adolescência vendia a sua juventude, tendo ido para o palco quando se tornou demasiado velho para isso. Aqueles que se apresentam no palco, fazendo das audiências e dos teatros o seu negócio, serão eles amantes do pudor e da moderação e não da licenciosidade extrema e do excesso? Por esta razão ascendeu Apeles ao cargo de conselheiro: para que Gaio fosse adestrado por um assessor na arte de escarnecer e por outro na arte de cantar, abandonando desta forma a consideração dos assuntos de estado e dos ideais de manutenção de paz e ordem por todo o império. (Legat. 203-204. Tradução de Tatiana Faia.) O imperador deixa de lado sua tarefa fundamental e se constitui como espetáculo grosseiro, assessorado por um conselheiro completamente falto de virtude 545, mas 545 Smallwood observa que Gaio chocava a opinião pública por associar-se aos atores de forma íntima. Sugere que se considerem Dion Cássio 59 5,2 e Caligula 55, de Suetônio (SMALLWOOD, 1961, p. 264-265). Este último afirma, inclusive, que um ator chamado Mnester era beijado no palco (inter spectacula osculabatur) pelo imperador. Fílon se aproveita do desprezo à classe dos atores e 339 experimentado naquilo que lhe agradava. O mundo que o assiste a se fazer passar por um deus pode reagir de duas maneiras: tomar parte na encenação, como fizeram as pessoas em geral, ou assistir a tudo de uma perspectiva diferente e analisar a correção dos atos praticados, como fizeram os judeus. 5.7.2 Fingir (como ator em um teatro) Há uma recorrente referência em Legat. a fingimentos e dissimulações, e diversos personagens se veem envolvidos em tentativas de enganar a outros. Até o próprio Fílon, ocupado em pensamentos a respeito do desenrolar dos acontecimentos, oculta (στέγω - stégo) sua inquietação dos outros judeus (Legat. 184). Mas mesmo quando não se trata de si mesmo, em diversos momentos, o narrador tem o domínio tanto daquilo que se comunica quanto das intenções ocultas, e, sem se preocupar em justificar a origem desse conhecimento, o faz chegar ao leitor. Este, ao seguir pelas páginas do tratado, percebe a importância do auxílio desse guia para a interpretação dos fatos nesse contexto em que até mesmo toda uma população pode agir com dissimulação, como é o caso da multidão alexandrina que revela um ódio há muito encoberto como por fumaça (τὸ τυφόμενον ἐκ μακρῶν χρόνων μῖσος - tò typhómenon ek makrôn khrónon mîsos, Legat. 120), e finge, como já foi observado, que os subsequentes atos de profanação das sinagogas não eram motivados por esse ódio, mas por veneração ao imperador. Ellen Muehlberger, em um artigo sobre Legat., interessou-se especificamente pela utilização desse recurso que poderia ser chamado de representação da “teatricidade”, conceito que a autora toma emprestado dos Estudos Culturais546, não diretamente, mas a partir de um livro da historiadora Shadi Bartsch. Bartsch apresenta a ligação de Nero com a representação e o palco como marco de um novo paradigma para a concepção do teatro. O imperador deixa a plateia e assume o palco. A plateia, por sua vez, se vê observada pelo ator, que representa um papel mas não deixa de ser um governante implacável. Opera-se, então, uma certa inversão nos lugares (BARTSCH, 1994, p. 2-3). Ela observa que as principais fontes historiográficas a respeito de Nero (Tácito, Suetônio e Dion Cássio) o apresentam em situações em que a plateia precisa representar e desempenhar o papel adequado para não perder a vida. Mas o mais importante 546 do comportamento de Gaio para reforçar a imagem que constrói. Francesca Calabi ressalta que Fílon evoca especificamente o difundido moralismo romano acerca das artes cênicas (CALABI, 2003, p. 115-116). Especialmente de Domination and the Arts of Resistance de James C. Scott (SCOTT, 1990). 340 para a discussão de Muehlberger é o fato de Bartsch reconhecer no texto de Tácito um aproveitamento dessa inversão que faz de todo aquele que se faz presente junto do imperador um ator: […] para Tácito, essa possibilidade de uma nova teatricidade no lugar do teatro ia ganhar sua própria e peculiar tonalidade naquele outro assunto que ocupava o palco do teatro e parecia envolvido pelo teatro também quando fora do palco – a política imperial.547 (BARTSCH, 1994, p. 3.) Pois bem, o que Muehlberger busca demonstrar em seu artigo é que o recurso que Bartsch entende começar com Tácito já é utilizado por Fílon em Legat.. A primeira cena que a autora evoca com vistas a essa demonstração consiste na troca de cartas entre Petrônio e Gaio. Petrônio está comovido pela performance dos judeus que haviam suplicado que não avançasse com o plano do imperador de erigir uma estátua no Templo, e envia uma carta na qual esconde sua verdadeira disposição e simula um outro motivo para um atraso no cumprimento da tarefa: questões técnicas e logísticas (Legat. 248ss). Ao ler a carta, Gaio reconhece a dissimulação e, furioso, tende a ameaçar o súdito, mas, por precaução e medo que tinha dos súditos que lideravam grandes exércitos, também simula desconhecer o real motivo de Petrônio (Legat. 254ss). Ellen Muehlberger observa nessa interlocução uma diferença com respeito ao vislumbrado no caso de Tácito e Nero. No escrito de Fílon, não só os outros simulam em face do imperador, mas também o próprio imperador o faz (MUEHLBERGER, 2008, p. 52). Outra cena de dissimulação observada por Muehlberger se dá em um encontro de Gaio com Agripa (Legat. 261-275), na qual o rei da Judeia se mostra incapaz de ler os sinais do corpo de Gaio e de ocultar seu próprio pavor, por não conseguir controlar as reações de seu corpo (MUEHLBERGER, 2008, p. 52-59).548 Além de observar essas cenas isoladas, Muehlberger considera que o tratado como um todo pode revelar uma dupla leitura das ações de Gaio: enquanto a multidão percebe somente o que ele simula, Fílon percebe suas reais intenções, pois quando ao começar a agir 547 548 Minha tradução de: […] for Tacitus this possibility for a new theatricality at the site of the theater was to cast its own peculiar tinge on that other business that took the stage at the theater and seemed suffused with theater when offstage as well -imperial politics. O encontro entre Gaio e Agripa termina com este sofrendo um ataque, que o faz desfalecer e encerra o diálogo. Muehlberger sugere e explora a possibilidade de que se trate de um colapso fingido, e o lê também como representação. Discordo dessa especulação, sobretudo porque o próprio texto afirma que ele perdeu a consciência do que ocorria e esteve desacordado por mais de vinte e quatro horas (Legat. 266). Ou seja, houve um ataque involuntário e real, ao menos do ponto de vista da narrativa. Certamente, o acontecimento narrado pode diferir (e, muito provavelmente difere, neste caso) do que historicamente sucedeu (cf. SCHWARTZ, 1990b, p. 118-119). 341 com crueldade não experimentava uma mudança, mas somente revelava o que estava oculto sob o fingimento da hipocrisia (Legat. 22) (MUEHLBERGER, 2008, p. 60). Essa dupla realidade, simulada e real, possibilitaria a Fílon expressar sua posição contrária a Gaio, mas não ao império (MUEHLBERGER, 2008, p. 66). Por fim, a pesquisadora ressalta o fato de que Fílon antecede Tácito na utilização do recurso da teatricidade como jogo de dissimulação de intenções, e afirma que o mobiliza de modo mais complexo inclusive (MUEHLBERGER, 2008, p. 66).549 Ao expor o estudo de Muehlberger, relatei os principais trechos de Legat. em que a dissimulação figura de modo relevante. Convém acrescentar, contudo, que no próprio tratado se apresenta uma avaliação negativa do ato de ocultar a realidade, e, o que é mais surpreendente, essa avaliação é colocada como partindo de Gaio. Esse mesmo, que tem capacidade de dissimular e interpretar dissimulações alheias, ao ler a carta que Agripa lhe envia após recuperar-se do ataque que sofrera, reage da seguinte maneira: v)tia=to me\n th=j ei¹j tou\j o(mofu/louj aÃgan a)reskei¿aj mo/nouj a)nqrw¯pwn a)fhnia/zontaj kaiì e)ktrepome/nouj au)tou= th\n e)kqe/wsin, e)pv/nei de\ to\ mhde\n e)n e(aut%½ suskia/zein kaiì e)pikru/ptein, aÀper eÃlegen eiånai dei¿gmata e)leuqeriwta/twn kaiì eu)genesta/twn h)qw½n. Censurava a sua excessiva obsequiosidade em relação aos seus compatriotas (o(mofu/louj - homophýlous), únicos de entre os homens que se recusavam a obedecer-lhe e eram adversos à sua deificação. Aprovava, porém, o facto de ele não ocultar nem disfarçar nada que havia em si mesmo, o que, dizia, era prova da mais livre e nobre das índoles. (Legat. 332. Tradução de Tatiana Faia. Com alterações minhas em destaque.) O imperador entregue às paixões é capaz de partilhar uma noção estoica. Poderse-ia pensar que Fílon queria acrescentar o comentário elogioso a Agripa e, não de propósito, por descuido, o coloca na boca de Gaio. Porém, ele pode também considerar verossímil que Gaio tenha lampejos de sapiência oriundos de sua instrução prévia.550 O que deve-se notar agora, a partir desse trecho, é simplesmente o fato de que a dissimulação é implicitamente contraposta à franqueza no próprio tratado. Assim, temos o fenômeno e sua apreciação negativa pelo elogio de seu oposto. Resta, contudo, lembrar que, 549 550 A autora também afirma que Fílon é um judeu alexandrino com habilidade na apologética e na retórica crítica dos romanos, o que, no entender dela, seria um retrato novo do pensador alexandrino (MUEHLBERGER, 2008, p. 67). Na verdade, ela somente corrobora a mencionada pesquisa de Niehoff publicada sete anos antes, que parece desconhecer (NIEHOFF, 2001). Cf. Leg. 3.210. Em outro trecho, Fílon coloca na boca de Gaio (em uma fala dirigida a Macro, Legat. 53-56) um pequeno discurso retórico bem ordenado em estrutura periódica (ALEXANDRE JR., 1999, p.238-240). 342 se Bartsch chama esse mesmo recurso, quando ocorre em Tácito, de “teatricidade” a partir de certo comportamento desenvolvido por Nero e seus súditos (comportamento que teria fomentado esse aspecto na escrita), podemos relacioná-lo com o teatro também em Fílon pelo fato de que, embora não em Legat., ele descreve a simulação desempenhada no cotidiano político como algo que se realiza como no teatro (Spec. 4.185; Flacc. 19; Abr. 103). 5.7.3 O espetáculo da divinização É também de modo teatral, que Gaio se disfarça de deus: “como no teatro, ele assumia um disfarce e depois outro diferente” 551 (Legat. 79). E, como observei, em dado momento, Fílon concede ao público desses espetáculos a capacidade de perceber a inadequação dessa imitação que se apoia no figurino, mas não na reprodução das virtudes (Legat. 98). Como no caso das simulações realizadas nas interlocuções políticas e sociais, também nessas performances de Gaio está implicado o engano, mas de uma forma peculiar, que se explicita neste trecho: ¸ O de\ Ga/ioj e(auto\n e)cetu/fwsen, ou) le/gwn mo/non a)lla\ kaiì oi¹o/menoj eiånai qeo/j. eiåta ou)de/naj euÂren ouÃte ¸Ellh/nwn ouÃte barba/rwn e)pithdeiote/rouj ¹Alecandre/wn ei¹j th\n th=j a)me/trou kaiì u(pe\r fu/sin a)nqrwpi¿nhn e)piqumi¿aj bebai¿wsin: deinoiì ga/r ei¹si ta\j kolakei¿aj kaiì gohtei¿aj kaiì u(pokri¿seij, pareskeuasme/noi me\n qw½paj lo/gouj, a)neime/noij de\ sto/masi kaiì a)xali¿noij pa/nta fu/rontej. hÂj aÃpeiroj wÔn Ga/ioj u(pela/mbane t%½ oÃnti nomi¿zesqai par' ¹Alecandreu=si qeo/j, e)peidh/per ou) plagi¿wj a)ll' aÃntikruj aÀpasin e)xrw½nto katako/rwj toiÍj o)no/masin, oÀsa toiÍj aÃlloij eÃqoj e)pifhmi¿zesqai qeoiÍj. Mas Gaio enaltecia-se a si mesmo: não só dizia ser um deus como também pensava sê-lo. E não descobriu ninguém, nem entre Helenos nem entre bárbaros, mais apropriado do que os Alexandrinos para corroborar o seu desejo desmedido e acima da natureza humana. Pois os Alexandrinos são hábeis em lisonjas, enganos e hipocrisias, sempre prontos com discursos aduladores, tudo confundem com as suas línguas soltas e sem freio. […] Gaio ignorava isto e supôs que os Alexandrinos o consideravam realmente um deus, porque eles usam à saciedade, e não de forma equívoca mas abertamente, títulos que para outros homens, segundo o costume, estão reservados às divindades. (Legat. 162;164. Tradução de Tatiana Faia.) Ora, aquele que poderíamos considerar inicialmente como um que assume o lugar de ator, na tentativa de, com seu figurino e representação, enganar o público, acaba se revelando também enganado, porque julgava ser real a ilusão que construía. E esse auto551 Tradução de Tatiana Faia para: wÐsper e)n qea/tr% skeuh\n aÃllote a)lloi¿an a)nela/mbane. 343 engano era reforçado por parte de seu próprio público, que corrobora o erro. Isso acontece porque Gaio é inexperiente, ignorante (ἄπειρος - ápeiros) a respeito do pouco valor que esse público específico dá ao termo “deus” (θεός - theós), aplicando-o inclusive a animais irracionais.552 O imperador não é um ator simplesmente, porque acredita ser verdade aquilo que simula. Também não é um bom ator no sentido da metáfora do theatrum mundi, porque julga ser seu papel a desempenhar no mundo justamente um papel vetado a qualquer ser humano. Sua ignorância a respeito disso e a sua falta de experiência para distinguir o significado da mensagem de aprovação do público alexandrino começam a fazer com que Gaio deixe o lugar de ator que engana para encaminhar-se ao de personagem que está enganado. 5.7.4 Ignorância e ação: refrações do trágico A ignorância é assinalada em diversas partes de Legat. como motivo para a falta de precaução para situações adversas, interpretações mal feitas e ações erradas. A população do império em geral erra quando, depois de lamentar pela doença de Gaio, se alegra com sua recuperação: wÐsper ga\r e)k noma/doj bi¿ou kaiì qhriw¯douj nu=n prw½ton a)rxo/menoi metaba/llein pro\j to\ su/nnomon kaiì o(modi¿aiton [...] e)gegh/qesan a)gnoi¿# th=j a)lhqei¿aj: tuflw¯ttei ga\r 552 Na verdade, Fílon estava consciente de certa reputação negativa que os egípcios tinham entre os romanos (cf. BERTHELOT, 2000, p. 213), e não lhe seria estranho que o imperador soubesse do culto dos animais, algo que comumente chamava a atenção de escritores gregos e romanos (cf. BERTHELOT, 2000, p. 201; PEARCE, 2007, p. 248-264). Quanto ao motivo da intensa oposição de Fílon à prática religiosa egípcia, não me parece necessário supor que se explique como uma forma de adequar o judaísmo aos valores do mundo esclarecido (cf. NIEHOFF, 2001, p. 48-49). Embora isso possa acontecer como efeito secundário, a maneira como o alexandrino expõe suas críticas com um argumento claramente teológico sugere que seu motivo seja oriundo de sua compreensão do texto bíblico e de sua concepção da divindade (cf. BERTHELOT, 2000, p. 214). A conclusão de Sarah Pearce a respeito do posicionamento do Egito no pensamento de Fílon me parece importante inclusive para a análise que venho fazendo neste texto: “Deus chama Israel, “aquele que vê a Deus”, para fora do Egito, para separá-lo do Egípcio – a falta de visão de Deus – e para rumar em direção à visão de Deus seguindo as palavras de Moisés” [God calls Israel, 'the one who sees God', out of Egypt, to separate from the Egyptian – the failure to 'see God' – and to journey towards the vision of God by following the words of Moses] (PEARCE, 2007, p. 308). Ao escutar os egípcios, Gaio se torna um cego guiado por cegos. Ambos falham em ver a Deus por desconhecerem a filosofia de Moisés, que ensina a diferença entre Criador e criatura. Gaio se engana e vê o divino em si mesmo, enquanto seus guias se enganam há séculos ao verem o divino até mesmo em animais selvagens. Que Fílon desconhece ou negligencia detalhes da concepção religiosa que resulta na veneração dos animais entre os egípcios (PEARCE, 2007, p. 242ss), parece-me indiferente. Ele observa a prática religiosa, que, não raro, dista consideravelmente das noções mais profundas preservadas pelos mais restritos grupos que detêm o saber teórico da religião. 344 o( a)nqrw¯pinoj nou=j pro\j th\n tou= sumfe/rontoj oÃntwj aiãsqhsin ei¹kasi¿# kaiì stoxasm%½ ma=llon hÄ e)pisth/mv xrh=sqai duna/menoj. Na ignorância da verdade, alegravam-se como se agora, pela primeira vez, estivessem começando a mudar da vida nômade e selvagem para a vida regrada e gregária, […] Porque a mente humana é cega para a percepção daquilo que realmente convém, sendo capaz de utilizar-se mais da imaginação e da conjectura do que da ciência. (Legat. 20-21. Minha tradução.) A população do império, como um personagem coletivo, celebrava a recuperação de Gaio como se tratasse de algo excelente, mas o faz por uma limitação intelectual comum aos seres humanos. A mente, que em outros tratados é caracterizada por Fílon como a mais nobre parte do ser humano (Somn. 1.35), que, estando livre da percepção sensorial (αἴσθησις aísthesis), é capaz de vislumbrar os mais celestes raios de luz (Somn. 1.84), aqui está cega para a percepção (αἴσθησις – aísthesis) do que realmente convém. Essa constatação parece indicar um paradoxo. Mas não é difícil perceber que os dois tipos de percepção são diferentes, e suspeitar que a mente da multidão que celebra não se vê livre das percepções sensoriais, mas, pelo contrário, ofuscada por elas. E assim continua depois que Gaio revela sua verdadeira maldade de modo óbvio: Kaiì to\ pra=gma hÃdh peribo/hton toiÍj e)pallh/loij tw½n prw¯twn a)ndrw½n fo/noij e)gege/nhto, w¨j dia\ panto\j sto/matoj duska/qarta aÃgh sunhxeiÍsqai, fanerw½j me\n ou) dia\ de/oj, h)remaiote/r# de\ tv= fwnv=. kaÃpeita e)k metabolh=j®oÃxloj ga\r a)ni¿druton e)n aÀpasi, kaiì boulaiÍj kaiì lo/goij kaiì pra/gmasin®a)pistou=ntej, ei¹ ouÀtwj a)qro/an e)nde/dektai troph\n o( pro\ mikrou= xrhsto\j kaiì fila/nqrwpoj iãsoj te kaiì koinwniko\j eiånai nomisqeiìj Ga/ioj, a)pologi¿aj e)sko/poun kaiì diereunw½ntej euÀriskon, Por esta altura, o facto tornou-se notório, devido a sucessivos assassínios de homens ilustres, a tal ponto que estes crimes inexpiáveis eram o assunto de conversa de todos, não abertamente, por receio, mas a meia voz. Depois disto, deu-se a viragem – pois uma multidão é instável em tudo, em objectivos, palavras e acções –, não acreditavam, não admitiam a completa mudança de Gaio, que, até há pouco tempo, fora considerado bom, gentil, justo e sociável, procuraram desculpas e, examinando cuidadosamente, descobriram-nas. (Legat. 66-67. Tradução de Tatiana Faia.) Depois da ignorância, vem a oportunidade do desvelamento do erro por uma série de acontecimentos óbvios. Mas a multidão resiste em reconhecer o julgamento errado que fizera, e prefere, de modo obstinado, aplicar a mente para encontrar explicações que 345 justifiquem o rumo que as coisas haviam tomado. Outro grupo de pessoas que tem sua ação dificultada pela falta de algum conhecimento é justamente a comunidade judaica alexandrina, que, pouco depois de ter sido encurralada em uma pequena parte da cidade, perece sem ter acesso a bens essenciais, porque seus membros não haviam estocado mantimentos, “uma vez que não tinham sido advertidos por oráculos ou presságios para esta súbita calamidade” 553 (Legat. 124). Neste caso, contudo, a breve explicação não imputa limitação intelectual aos que ignoram, mas ressalta a imprevisibilidade do acontecimento. Inclusive, não há má interpretação ou desconsideração de oráculos, mas inexistência dos mesmos. Deixando esses grupos, passo a um personagem individual cuja ignorância permite uma situação peculiarmente danosa. Macro, prefeito do pretório, é apresentado como responsável por Gaio alcançar a posição de imperador. Ele havia convencido Tibério das qualidades do jovem. Além disso, cercava-o de cuidados e orientações, para evitar que fosse assassinado. Sua esposa, que, conforme Fílon sugere, tinha uma relação mais que amistosa com Gaio, incentivava Macro a continuar a fazê-lo. Então, o( de\ th\n diafqora\n me\n tou= ga/mou kaiì th=j oi¹ki¿aj a)gnow½n, th\n de\ kolakei¿an euÃnoian a)kraifnesta/thn eiånai nomi¿zwn, a)pata=tai kaiì lanqa/nei toiÍj strathgh/masi tou\j e)xqi¿stouj w¨j filta/touj prosie/menoj. Sem se aperceber da destruição do seu casamento e da sua casa, Macro acreditava que a adulação da esposa era a mais pura benevolência. Desta forma, enganado por estratagemas, acolheu os seus inimigos mais hostis como se fossem os mais queridos amigos. (Legat. 40. Tradução de Tatiana Faia.) Por não saber (ἀγνοῶν – agnoôn), Macro continua agindo errado, preservando o próprio verdugo. Como resultado, sofre uma morte cruel, na qual o infeliz (δείλαιος – deílaios) foi forçado a matar a si mesmo pelas próprias mãos (Legat. 61). A respeito das maquinações no perigoso âmbito político romano, também a própria embaixada da qual Fílon faz parte ignora muitas coisas. Eles vigiavam os passos de seus adversários, exteriores à corte de Gaio, provavelmente a embaixada alexandrina adversária, enquanto ignoravam (ἀγνοοῦντες - agnooûntes) a presença de um inimigo que se escondia (ἐμφωλεύοντα - empholeúonta) no interior, Hélicon. Sem conseguir tornar tal adversário mais propício, eles se veem sem saída (ἐν ἀπόροις - en apórois) e sem recursos (ἐν 553 Tradução de Tatiana Faia para: ou) proeutrepisme/nwn ta\ e)pith/deia kata\ mantei¿an tw½n e)capinai¿wn kakopragiw½n 346 ἀμηχάνοις - en amekhánois). Enviam, então, uma carta de súplica ao próprio imperador. Mas lhes passava despercebido (ἐλελήθειμεν - elelétheimen), que enganavam a si mesmos, pois insistiam em pensar que se encontrariam com um justo juiz, quando, na realidade, o que lhes esperava era um inimigo (Legat. 180). Ignoravam (ἀγνοοῦντες - agnooûntes) que tinham passado por uma tempestade durante a viagem a Roma, mas que ali os aguardava uma ainda mais forte, pois aquela no mar era fruto da natureza (φύσις - phýsis), que é salvadora (φύσις δὲ σωτήριον - phýsis dè sotérion), enquanto essa outra advinha de um homem e seus caprichos (Legat. 190).554 Para evitar a ignorância que proporciona ações inadequadas, é preciso interpretar sinais e refletir além do que se vê com os olhos, para revelar o que está oculto sob as ações de outros personagens, e ter uma correta concepção a respeito da realidade metafísica. Em dado momento, enquanto a embaixada dos judeus acompanhava os movimentos de Gaio na esperança de ter o direito à audiência, ele aparece nos jardins, junto ao rio Tibre, acena demonstrando benevolência (εὐμένεια – euméneia) e manda dizer que ouviria a causa. Imediatamente, muitos se alegram, inclusive aqueles integrantes da embaixada “que se deixam levar por aparências superficiais”555 (Legat. 181). Fílon, porém, tem uma reação diferente: e)gwÜ de\ froneiÍn ti dokw½n peritto/teron kaiì di' h(liki¿an kaiì th\n aÃllhn paidei¿an eu)labe/steroj hÃmhn e)f' oiâj eÃxairon oi¸ aÃlloi. "dia\ ti¿ ga/r" eÃfaskon a)nakinw½n to\n e)mautou= logismo/n, "tosou/twn oÃntwn presbeutw½n sxedo\n a)po\ pa/shj gh=j a)figme/nwn, h(mw½n eiåpe to/te mo/nwn a)kou/sesqai; ti¿ boulo/menoj; ou) ga\r h)gno/ei ge oÃntaj ¹Ioudai¿ouj, oiâj a)gaphto\n to\ mh\ e)lattou=sqai. Parece que em virtude da minha idade e de outra educação eu era um pouco mais prudente: aquilo de que os outros se alegravam tornou-me mais reservado. Agitando a minha própria consciência, disse: “Por que motivo, estando presentes embaixadas de quase todo o mundo, disse Gaio que escutaria apenas a nossa? Qual a sua intenção? Decerto não ignora que, sendo Judeus, nos contentaríamos com não sermos tratados de modo inferior aos restantes.” (Legat. 182. Tradução de Tatiana Faia.) Curiosamente, o lado oposto também tem alguma habilidade nesse sentido. No diálogo já referido entre Agripa e Gaio, o rei da Judeia, que não sabia absolutamente nada 554 555 Convém lembrar do prólogo do tratado, em que Fílon contrapõe Natureza e Acaso, afirmando a estabilidade da primeira e instabilidade desse último. Como comentei há pouco, a instabilidade e o acaso estão no âmbito das coisas humanas, onde certamente estão Gaio e suas ações. Tradução de Tatiana Faia para: oÀsoi taiÍj e)pipolai¿oij para/gontai fantasi¿aij. 347 (ᾔδει ἁπλῶς οὐδέν - édei haplôs oudén) a respeito da tensa discussão epistolar empreendida entre Petrônio e Gaio a repeito do Templo 556, não consegue discernir o que ocorre com o imperador, que parece agitado. Em princípio, não encontra (εὕρισκεν - héurisken) uma explicação e pensa que o problema seria com outros. Logo, repara que o imperador olha só para ele, mas não sabe qual o problema. Gaio intervém: e)ptohme/non d' ouÅn kaiì a)porou=nta qeasa/menoj au)to\n Ga/ioj® hÅn ga\r deino\j e)k th=j fanera=j oÃyewj a)fane\j a)nqrw¯pou bou/lhma kaiì pa/qoj sunideiÍn® "a)poreiÍj", eiåpen " ¹Agri¿ppa; pau/sw se th=j a)pori¿aj. e)piì tosou=to/n moi xro/non sundiatri¿yaj h)gno/hsaj, oÀti ou) tv= fwnv= mo/non a)lla\ kaiì toiÍj oÃmmasi fqe/ggomai ma=llon hÄ ou)x hÂtton eÀkasta diashmai¿nwn; Gaio apercebeu-se de que ele estava preocupado e desesperado – pois era hábil em compreender os desejos e sentimentos ocultos de um homem a partir da sua expressão visível. “Estás desesperado, Agripa, — disse-lhe, mas eu vou pôr fim ao teu desespero. Depois de teres passado tanto tempo comigo, ainda ignoras que falo não apenas com a voz mas também com os olhos, fazendo-me compreender igualmente bem, se não melhor?” (Legat. 263-264. Tradução de Tatiana Faia.) Gaio tem habilidade semelhante à de Fílon. E acusa a falta da mesma em Agripa. Pensará que essa capacidade lhe é suficiente. Mas, se no relacionamento entre humanos ele consegue habilmente discernir sinais e obter assim o conhecimento, ele, que pensa ser deus, desconhece as mais básicas noções que possibilitam algum conhecimento a respeito da atuação do Deus único. Ele é hábil para observar um tipo de ὄψις - ópsis, mas completamente obtuso com relação a outro: a ὄψις - ópsis da real divindade, algo que não falta a seus opositores judeus, Israel. 5.7.5 Infortúnio, sofrimento e a inserção do corpo no texto O discernimento das intenções ocultas passa, muitas vezes, por uma interpretação mais precisa dos gestos, movimentos e reações corporais involuntárias. Comportamento dos olhos, tremor, modo de andar e outros detalhes são importantes nesse sentido e trazem o corpo ao texto, como algo que também deve ser lido. Em alguns trechos, porém, de modo especial, corpos são exibidos para serem lidos tanto pelos personagens no interior da narrativa quanto pelos leitores do texto. A narrativa expõe um espetáculo (ὄψις - ópsis), para que o leitor o 556 Lembro que não me ocupo da questão propriamente histórica. Pode ser tido como inventivo o fato de Agripa não saber de nada (cf. SCHWARTZ, 1990a, p. 86-87), mas o que importa para minha análise é a narrativa, não diretamente a história. 348 assista atentamente, e reaja. Um trecho que me parece ser construído dessa maneira é o que relata a conversa entre Agripa e Gaio, que termina com o ataque sofrido pelo primeiro (Legat. 267), mas por já tê-lo apresentado em outra parte da reflexão, discuto outros dois talvez ainda mais significativos: o momento em que chega ao grupo de Fílon a notícia sobre o plano de colocação de uma estátua no Templo, e o encontro entre um grupo de judeus suplicantes e Petrônio. Na primeira cena que apresento, Gaio havia viajado de Roma a Dicearquia em visita a suas várias casas de campo luxuosamente ornamentadas (τὰς ἰδίας ἐπαύλεις πολλὰς καὶ πολυτελῶς ἠσκημένας - tàs idías epaúleis pollàs kaì polutelôs eskeménas), e os judeus da embaixada o seguiam esperando a oportunidade da audiência. Nesse meio tempo: fronti¿zousi de\ h(miÍn th=j u(poqe/sewj®a)eiì ga\r klhqh/sesqai prosedokw½men®prose/rxetai¿ tij uÀfaimo/n ti kaiì taraxw½dej u(poblepo/menoj, aÃsqmatoj mesto/j, kaiì mikro\n a)po\ tw½n aÃllwn a)pagagw¯n ®plhsi¿on ga\r hÅsa/n tinej®"h)kou/sate" eÃfh "ta\ kaina/;" kaiì me/llwn a)pagge/llein e)pesxe/qh, dakru/wn a)qro/aj fora=j e)nexqei¿shj. kaiì pa/lin a)rca/menoj deu/teron e)pesxe/qh kaiì tri¿ton. aÀper o(rw½ntej h(meiÍj e)ptoh/meqa kaiì parekalou=men mhnu=sai to\ pra=gma, ou xa/rin e)lqeiÍn eÃfasken: "ou) ga\r eÀneka tou= dia\ martu/rwn klai¿ein: ei¹ de\ aÃcia dakru/wn e)sti¿, mh\ mo/noj a)po/laue th=j lu/phj: e)qa/dej gego/namen hÃdh kakopragiw½n." o( de\ mo/lij me\n a)nalu/zwn de\ oÀmwj kekomme/n% t%½ pneu/mati¿ fhsin: "oiãxetai h(mw½n to\ i¸ero/n: a)ndria/nta kolossiaiÍon e)swta/tw tw½n a)du/twn a)nateqh=nai Ga/ioj prose/tace Dio\j e)pi¿klhsin au)tou=." A nós, que refletíamos sobre a questão – pois tínhamos sempre a expectativa de sermos chamados- aproxima-se uma pessoa que nos olhava com olhar ensanguentado e perplexo, completamente ofegante e, conduzindo-nos um pouco para longe dos outros – pois havia algumas pessoas por perto – disse: “Ouvistes as novidades?” E, quando estava a ponto de nos contar, foi interrompido, pois lhe saía uma incessante corrente de lágrimas. E, tendo começado de novo, por uma segunda vez foi interrompido, e por uma terceira ainda. Vendo isso, nós nos agitamos e pedimos que contasse o assunto pelo qual havia vindo. Alegávamos: “Pois não foi com o intuito de prantear com testemunhas que vieste. E se são coisas dignas de lágrimas, não padeças sozinho da tristeza. Já estamos acostumados a infortúnios.” E ele, embora com dificuldade, soluçando e com a respiração entrecortada, disse: “Nosso Templo se foi! Gaio ordenou erigir na parte mais interna do santuário uma gigantesca estátua humanoide dele mesmo apelidada de Zeus.” (Legat. 186-188. Minha tradução.) O nome desse que traz a notícia não importa, não é mencionado. Seu nome ou sua origem (se estava na mesma região, se vem de Roma ou Jerusalém) não são essenciais. Para o 349 enredo, o que importa é a notícia que traz, que revela o grande problema até então silenciado. Mas não é a informação e o enredo somente que importam, mas também a cena, o espetáculo (ὄψις - ópsis), que expõe a maneira como se comunica a notícia, a tensão envolvida, a gravidade do que se diz. Por isso, embora o nome do mensageiro não apareça, seu corpo sim. Vemos seus olhos, seu movimento ofegante e assustado, suas lágrimas. E isso não é um quadro, mas uma ação. Ele tenta falar, e o choro não permite, por três vezes. Com a insistência dos ouvintes, ele consegue falar, mas com uma dificuldade que também nos é possível ver. E, então, a gravidade da notícia se revela coerente com a gravidade expressa pelo corpo desse mensageiro trágico, que chega à cena para acrescentar uma informação que revela a situação antes desconhecida e propicia o desenrolar dos acontecimentos. Na tragédia clássica, o mensageiro (ἄγγελος - ángelos), geralmente, entra no palco para trazer alguma informação nova. Ele costuma permanecer anônimo e pode estar associado empaticamente aos acontecimentos que narra (SÁNCHEZ, 2006, p. 114;116-117). Há alguma semelhança com o personagem que Fílon traz à cena. Mas há algumas diferenças, devo reconhecer. A mais óbvia é o fato de que, na tragédia, o mensageiro costuma narrar algo que testemunhou, um acontecimento presenciado. No caso de Legat., ele somente traz uma informação de algo que estaria ainda por acontecer (embora sua reação e a dos ouvintes seja como a de quem já vê o acontecimento em desenvolvimento). Outra diferença, mais técnica que propriamente relacionada com o conteúdo do enredo, é o fato de que o mensageiro trágico supria uma limitação material do teatro (SÁNCHEZ, 2006, p. 112). Mostrar, por meio de ação no palco, o que acontecia a alguns quilômetros seria algo difícil para o tragediógrafo (a não ser que recorresse à imaginação do deslocamento espacial, o que não parece ter sido muito apreciado). Pois bem, Fílon não tem essa limitação. Ele, que revela até mesmo os pensamentos de Flaco ou Gaio, poderia inserir a notícia de outra forma na narrativa. Talvez, contudo, essa diferença seja na verdade uma inversão. Se o tragediógrafo recorre ao discurso do mensageiro para a economia da ação dramática, e, por isso, o personagem é frequentemente prolixo (SÁNCHEZ, 2006, p. 115-116), Fílon recorre ao corpo de seu mensageiro para a economia das palavras dissertativas, e, por isso, seu sofrimento (πάθος páthos) é tão evidenciado. Um personagem típico da tragédia é trazido ao texto de Legat., e é reconfigurado pela apropriação de outro elemento também frequente na tragédia, mas não tão associado a esse personagem específico, a demonstração corporal do sofrimento. Não fosse o corpo do mensageiro em sofrimento, só teríamos uma frase 350 introduzindo a mensagem. Alguém chega e anuncia. O conteúdo da informação a respeito do Templo seria o mesmo. Mas o corpo comunica mais que a notícia. Ele explicita a recepção da mesma, sua repercussão na pessoa em cena, e diz ao espectador/leitor, também dotado de um corpo capaz das mesmas reações, que tipo de experiência era aquela. O mensageiro de Fílon não é só voz, mas carne que se faz verbo, e torna comum um conhecimento de difícil explicação, mas de imediato reconhecimento pela exposição. Não por acaso, os primeiros espectadores daquela cena, que estão também inseridos na narrativa, respondem com o corpo, expressando seu terror: qaumasa/ntwn de\ to\ lexqe\n kaiì pephgo/twn u(p' e)kplh/cewj kaiì mhde\ proelqeiÍn eÃti duname/nwn® a)xaneiÍj ga\r ei¸sth/keimen o)ligodranou=ntej kaiì katarre/ontej periì au(toiÍj, tw½n swmatikw½n to/nwn e)kneneurisme/nwn®, eÀteroi parh=san ta\j au)ta\j fe/rontej w©diÍnaj. Enquanto estávamos atônitos pelo dito, congelados pela consternação e já não podendo ir adiante – pois jazíamos de pé mudos, tendo poucas forças e desfalecendo por causa de nós mesmos, uma vez que estavam exaustos nossos vigores corpóreos – outros se aproximavam trazendo as mesmas aflições. (Legat. 189. Minha tradução) A comunhão do sofrimento se revela na reação dos corpos daqueles que, em seguida, lamentam conjuntamente seus infortúnios (τύχας - týkhas) próprios e comuns (ἰδίας ὁμοῦ καὶ κοινὰς - idías homoû kaì koinàs, Legat. 190). Se o problema eram as sinagogas de Alexandria, agora é também o Templo. Mas talvez alguém diga que essa cena não é suficiente para fazer perceber que esse corpo que se insere no texto constitui-se como uma espécie de espetáculo (trágico) a ser assistido. Convém, então, passar ao outro trecho, que explicitará a relação, e ensinará a maneira como se deve observar o corpo. Petrônio tentava encontrar um modo de cumprir a ordem de Gaio a respeito da estátua sem provocar grandes tumultos entre os judeus. Ele convoca os sacerdotes e líderes dos judeus na intenção de convencê-los a aceitar a ordem imposta, pensando que, assim, as pessoas menos importantes se convenceriam com facilidade. Não só estes não são convencidos, como uma multidão acorre ao encontro de Petrônio ao saber o que estava acontecendo. São pessoas de Jerusalém e região, que se ajuntam como se convocadas por um só sinal pré-combinado, sendo que o sinal que havia de fato era simplesmente o sinal do sofrimento comum (τοῦ κοινοῦ πάθους τὸ σύνθημα - toû koinoû páthous tò sýnthma, Legat. 225). Fílon oferece a imagem ampla de um palco imenso dizendo: “a multidão dos Judeus 351 subitamente chegou, cobrindo toda a Fenícia como uma nuvem, para consternação daqueles que ignoravam quão numeroso é este povo” 557 (Legat. 226). Em seguida, ainda faz saber o volume assustador do som, afirmando que, antes de começarem a súplica, somente clamavam e gritavam em pranto e que, mesmo depois de se calarem, o som ecoava na região. Eram homens e mulheres, dos mais jovens aos mais velhos (Legat. 227). Logo, começa a súplica em si: e)peiì de\ o( Petrw¯nioj e)c a)po/ptou katefa/nh, pa=sai ai¸ ta/ceij kaqa/per keleusqeiÍsai prospi¿ptousin ei¹j eÃdafoj o)lolugh\n qrhnw¯dh tina\ meq' i¸kethriw½n a)fieiÍsai. paraine/santoj de\ a)ni¿stasqai kaiì proselqeiÍn e)ggute/rw, mo/lij a)ni¿stanto kaiì kataxea/menoi pollh\n ko/nin kaiì r(eo/menoi dakru/oij, ta\j xeiÍraj a)mfote/raj ei¹j tou)pi¿sw periagago/ntej tro/pon e)chgkwnisme/nwn, prosv/esan. Quando se avistou Petrónio, todos os grupos se lançaram por terra como se lhes tivesse sido ordenado, lançando gemidos de lamento e os gritos próprios dos suplicantes. Quando os exortou a levantarem-se e a chegarem-se um pouco, eles levantaram-se com relutância, vertendo pó sobre as cabeças e chorando abundantemente. Aproximaram-se com as mãos atrás das costas como se estivessem amarradas. (Legat. 228. Tradução de Tatiana Faia.) Novamente, agem como se ensaiados, mas o fazem espontaneamente, movidos pela dor. Lançam-se ao chão, e só se levantam quando convocados. Mas vão com as mãos como que amarradas, indicando sua disposição submissa e não de guerra. A quantidade de pessoas assusta, mas o corpo de cada um, ao mesmo tempo e em harmonia com os dos demais, comunica a intenção de suplicante. O concílio dos anciãos é que dirige as palavras a Petrônio. Dizem que estavam todos lá, homens, mulheres e seus filhos, dispostos não a lutar, mas a morrer voluntariamente se tivessem que ver o Templo profanado, sem necessidade de guerra. E eles vão além, afirmando: ti¿j de\ xrei¿a stratia=j; au)toiì kata/rcomen tw½n quma/twn oi¸ kaloiì i¸ereiÍj, parasthso/menoi t%½ i¸er%½ gunaiÍkaj oi¸ gunaikokto/noi, a)delfou\j kaiì a)delfa\j oi¸ a)delfokto/noi, kou/rouj kaiì ko/raj, th\n aÃkakon h(liki¿an, oi¸ paidofo/ntai: tragikw½n ga\r o)noma/twn deiÍ toiÍj ta\j tragika\j sumfora\j u(pome/nousin. eiåt' e)n me/soij sta/ntej kaiì lousa/menoi t%½ suggenik%½ aiàmati®toiau=ta ga\r ta\ loutra\ toiÍj ei¹j #Àdou faidrunome/noij®a)nakeraso/meqa to\ iãdion e)pikatasfa/cantej au(tou/j. 557 Tradução de Tatiana Faia para: h( de\ tw½n ¹Ioudai¿wn plhqu\j e)capinai¿wj wÐsper ne/foj e)pista=sa pa=san Foini¿khn e)pe/sxe, kata/plhcin toiÍj ou)k ei¹do/si th\n tou= eÃqnouj poluanqrwpi¿an e)rgasame/nh. 352 Que necessidade há de um exército? Nós mesmos, excelentes sacerdotes que somos, daremos início aos sacrifícios. Ao Templo traremos as mulheres e assassinos de mulheres seremos. Traremos irmãos e irmãs e seremos assassinos de irmãos. Traremos rapazes e raparigas, na idade da inocência, e seremos assassinos de crianças. Para aqueles que sofrem acontecimentos trágicos é necessário utilizar a linguagem da tragédia. Diante de todos permaneceremos então, banhados no sangue dos nossos familiares – na verdade estes são os banhos que nos purificam para o Hades – e somaremos o nosso sangue ao deles, matando-nos a nós mesmos. (Legat. 234 – 235. Tradução de Tatiana Faia) Como se percebe, nesse trecho se encontra não só a descrição de um possível desfecho trágico para os judeus, mas também uma explícita referência que expõe uma relação consciente com a tragédia. A meu ver, essa frase não deve ser menosprezada, mas retida como um sinal que pode direcionar a leitura. Em seguida, no mesmo discurso, os anciãos demonstram conhecer algo da mitologia grega, pois comparam o resultado de ver o Templo profanado com a visão de Górgona. Como Fílon, os anciãos (pela pena de Fílon) se fazem entender recorrendo a algo comum, ou melhor, a um conjunto de coisas comuns, partilhadas por todo o império helenizado por Augusto: tragédia, mito e corpo. A súplica é concluída com um pedido específico de que Petrônio permitisse que tentassem por um tempo convencer Gaio a abandonar o plano. Findo o discurso, Fílon se refere novamente ao corpo dos suplicantes, como para enfatizá-lo, e narra seu efeito: Tau=ta de\ diecv/esan u(p' a)gwni¿aj kaiì peripaqh/sewj aÃsqmati poll%½, kekomme/n% t%½ pneu/mati, r(eo/menoi kata\ tw½n melw½n a(pa/ntwn i¸drw½ti, meta\ fora=j a)pau/stwn dakru/wn, w¨j hÃdh sunalgeiÍn tou\j a)kou/ontaj kaiì to\n Petrw¯nion®hÅn ga\r kaiì th\n fu/sin eu)menh\j kaiì hÀmeroj®u(po\ tw½n lexqe/ntwn kaiì o(rwme/nwn sunhrpa/sqai: e)do/kei ga\r au)t%½ kaiì ta\ lego/mena eiånai dikaio/tata kaiì oi¹ktra/ tij h( tw½n o(rwme/nwn peripa/qhsij. e)pecanasta\j de\ meta\ tw½n sune/drwn e)bouleu/eto ta\ prakte/a kaiì e(w¯ra tou\j me\n pro\ mikrou= panta/pasin e)nantioume/nouj e)pamfoteri¿zontaj, tou\j de\ e)ndoiasta\j e)pirre/pontaj hÃdh t%½ plei¿oni me/rei pro\j eÃleon: Fizeram este apelo arquejando de angústia e emoção, numa voz entrecortada. O suor escorria-lhes pelo corpo e eles choravam incessantemente, de tal modo que, quem os escutava sentiu a sua dor e Petrónio – que era por natureza gentil e civilizado – deixou-se levar pelo que fora dito e pelo que observara. Pareceu-lhe que o que fora dito era muito justo e que a emoção manifestada por quem o confrontava era digna de piedade. Retirou-se em seguida com os seus conselheiros para ponderar qual a melhor acção. Viu que aqueles que há pouco se opunham totalmente aos Judeus agora se dividiam e que os cépticos estavam, na sua maioria, inclinados à piedade. 353 (Legat. 243-244. Tradução de Tatiana Faia.) O corpo e palavra fazem com que os ouvintes sintam junto a mesma dor (συναλγεῖν - synalgeîn). E isso porque o espectador (exemplificado por Petrônio) se deixa levar não só pelo que é dito, mas também pelo que é visto ( u(po\ tw½n lexqe/ntwn kaiì o(rwme/nwn - hypò tôn lekhthénton kaì horoménon). Aqueles que suportam acontecimentos trágicos parecem não usar somente de termos trágicos (τραγικῶν ὀνομάτων - tragikôn onomáton), mas também um corpo que inscreve o trágico em sua performance, em seu espetáculo (ὄψις - ópsis). E, assim, se produz piedade (ἔλεος - éleos) nos espectadores. Apresentar o corpo do mensageiro e dos suplicantes, transcrever em palavras a mensagem de sua performance não é um exercício textual despropositado, mas pensado com vistas a apresentar um espetáculo capaz de produzir um efeito determinado: comunicação e comoção. Trazer ao texto o corpo e sua reação é fazer comum um saber que talvez não se consiga expressar verbalmente. Mais que explicar causas e discutir conceitos, é mostrar uma realidade e fazê-la conhecida. Para isso, o filósofo dá lugar ao dramaturgo. Aquele que exalta a mente e o afastamento das ilusões da percepção sensorial cede à capacidade de comunicação do corpo.558 5.7.6 Conversa com um pretenso deus Depois de páginas de exposição dissertativa, “transcrição” de cartas e narração de eventos que tiveram lugar antes e durante a presença da embaixada em Roma e região, Fílon se aproxima da cena da audiência. Antes, não deixa de delinear ainda melhor o caráter de Gaio, afirmando que, mesmo quando parecia oferecer favores, o que resultava no fim era sofrimento para o que se achava favorecido. Assim, assinala que também entre os nobres romanos ele tinha certas inimizades. Mas relembra a maior culpa que recaía sobre ele, demonstrando a oposição que fazia a Deus: ti¿ fv/j; su\ me\n aÃnqrwpoj wÔn ai¹qe/ra kaiì ou)rano\n zhteiÍj proslabeiÍn, ou)k a)rkesqeiìj t%½ plh/qei tw½n tosou/twn h)pei¿rwn, nh/swn, e)qnw½n, klima/twn, wÒn a)nh/yw th\n a)rxh/n; to\n de\ qeo\n ou)deno\j tw½n e)ntau=qa kaiì par' h(miÍn a)cioiÍj, ou) xw¯raj, ou) po/lewj, a)lla\ kaiì to\n braxu\n ouÀtwj peri¿bolon au)t%½ 558 Convém que eu reconheça que a reflexão estabelecida nesta parte do capítulo foi possibilitada pelo contato que tive com um pensamento apresentado por Graciela Ravetti em artigo intitulado Performances escritas: o diáfano e o opaco da experiência (RAVETTI, 2003), embora não haja qualquer semelhança com relação ao objeto de estudo aqui abordado, e nem, a rigor, uma harmonia quanto ao método de leitura. 354 kaqierwqe/nta kaiì kaqosiwqe/nta xrhsmoiÍj kaiì logi¿oij qesfa/toij a)fele/sqai dianov=, iàn' e)n t%½ th=j tosau/thj gh=j peribo/l% mhde\n iãxnoj mhde\ u(po/mnhma kataleifqv= timh=j kaiì eu)sebei¿aj th=j ei¹j to\n oÃntwj oÃnta a)lhqh= qeo/n; Que dizes? Tu, que és um homem, desejas anexar o éter e o céu? Não te chega a multidão de continentes, ilhas, povos, regiões, sobre os quais deténs a soberania? Julgas que Deus nada merece neste nosso mundo, nem uma terra, nem uma cidade, nem este pequeno recinto que lhe foi dedicado e devotado por oráculos e profecias divinas? Pensas privá-lo disso, para que no círculo deste mundo não reste qualquer trilho, qualquer memória de honra e reverência para com o verdadeiro Deus vivo? (Legat. 347. Tradução de Tatiana Faia.) Logo, começa por dizer que considera conveniente recordar o que haviam visto e ouvido (εἴδομέν τε καὶ ἠκούσαμεν - eídomén te kaì ekoúsamen), e observa que, assim que chegaram, reconheceram (ἔγνωμεν - égnomen) a partir do olhar e dos movimentos (ἀπὸ τοῦ βλέμματος καὶ τῆς κινήσεως - apò toû blémmatos kaì tês kinéseos) de Gaio, que ele era para eles como que um opositor, não um juiz. E ele não se comportou, de fato, como juiz, não seguiu qualquer procedimento formal, antes, “as suas acções foram as de um tirano cruel com um franzir de sobrancelha despótica”559 (Legat. 350). Nos trechos seguintes, Fílon cumprirá o que propôs, relatando não somente as falas, mas sons, espaço e movimentos. Mais que isso: deixará clara a aproximação com o teatro ao recordar o lugar em que ocorre a audiência e comentar: “Nesse lugar, com efeito, contra nós que estávamos presentes, estava para se levar à cena (σκηνοβατεῖσθαι skenobateîsthai) a peça dramática (δραματοποιία - dramatopoiía) de todo nosso povo”560 (Legat. 351). Gaio manda que abram todas as suas casas de campo para que as possa inspecionar. Nesse cenário e nessa situação, a embaixada dos judeus é levada à sua presença. Ao chegarem, reclinam-se e o saúdam de modo próprio. O imperador responde de modo apropriado e filantropo (ἐπιεικῶς καὶ φιλανθρώπως - epieikôs kaì philanthrópos), o que os faz temer, sabedores de seus enganos. A primeira fala de Gaio lhes é dirigida com deboche e riso (σαρκάζων ἅμα καὶ σεσηρὼς - sarkádzon háma kaì seseròs). Depois de perguntar se eram eles os que se negavam a reconhecer sua divindade, mas que reconheciam somente um deus que não pode ser 559 560 Tradução de Tatiana Faia para: tura/nnou de\ a)meili¿ktou despotikh\n o)fru\n e)panateiname/nou ta\ praxqe/nta. Minha tradução de: keiÍqi ga\r e)piì parou=sin h(miÍn h( kata\ panto\j tou= eÃqnouj eÃmelle skhnobateiÍsqai dramatopoii¿a. 355 nomeado,561 Gaio estende as mãos em direção ao céu e profere um vocativo (πρόσρησιν prósresin) que não é permitido ouvir nem dizer (Legat. 353). Smallwood entende que Gaio teria proferido o nome de Deus (‫)יה×ה‬, o tetragrama (SMALLWOOD, 1961, p. 318). Frank Shaw entende ser improvável que se trate da pronúncia do tetragrama, mas sugere que o imperador tenha pronunciado uma versão grega do nome, Ιαώ - Iaó, que, conforme ele observa, seria conhecida inclusive por autores não judeus (SHAW, 2005, p. 41ss). Não importa tanto a forma pronunciada, mas sim a possibilidade de que se tratasse do nome, o que parece reforçado pela ênfase com que Fílon se refere à interdição de sua escuta ou pronúncia. Mas, ainda que se tratasse somente de um título utilizado para invocar o Deus de modo escarnecedor, o gesto de Gaio pode ser apontado como expressão clara de sua desmedida (ὕβρις - hýbris) em sua polêmica para com os judeus e sua divindade. A reação da embaixada opositora é imediata. Eles se alegraram ao perceberem o desprezo de Gaio pelos judeus e “[g]esticulavam, dançavam e chamavam-no pelos nomes de todos os deuses.”562 (Legat. 354). Em meio a essa cena bem definida, um membro da embaixada opositora se destaca desse coro (χορός - khorós)563 e tece uma acusação, alegando que os judeus eram os únicos que não haviam sacrificado ao imperador. Ao que Fílon e seus colegas respondem, gritando a uma só voz (ἀναβοησάντων δὲ ἡμῶν ὀμοθυμαδὸν anaboesánton dè hemôn homothymadòn), que os judeus haviam oferecido sacrifícios não em uma, mas três ocasiões. Gaio imediatamente observa que em favor dele (ὑπὲρ ἐμοῦ - hypèr emoû), mas não a ele haviam sacrificado (ἐμοὶ τεθύκατε - emoì tethýkate). O trecho que segue apresenta a reação dos judeus e outras informações que me parecem muito relevantes para meu propósito: fri¿kh bu/qioj eu)qu\j kate/sxen h(ma=j e)piì t%½ prote/r% kaiì tou=to a)kou/santaj, hÁ kaiì me/xri th=j e)pifanei¿aj a)nexu/qh. kaiì tau=q' aÀma le/gwn e)pv/ei ta\j e)pau/leij, a)ndrw½naj katanow½n, gunaikwni¿tidaj, ta\ e)n e)pipe/d%, ta\ u(per%½a, aÀpanta, ai¹tiw¯menoj e)ni¿aj w¨j e)llipeiÍj kataskeua/j, e(te/raj e)pinow½n kaiì prosdiata/ttwn poluteleste/raj au)to/j. eiåta h(meiÍj e)launo/menoi parhkolouqou=men aÃnw ka/tw, xleuazo/menoi kaiì katakertomou/menoi pro\j tw½n a)ntipa/lwn w¨j e)n qeatrikoiÍj mi¿moij: kaiì ga\r to\ pra=gma mimei¿a tij hÅn: 561 562 563 Concordo com van der Horst que identifica, por uma simples observação gramatical, como errônea a tradução de Colson que relaciona o termo ἀκατονόμαστον - akatonómaston com o próprio Gaio e não como referindo-se ao Deus dos judeus (HORST, 2006, p. 49-50). Tradução de Tatiana Faia para: e)pexeirono/moun, a)nwrxou=nto, ta\j qew½n a(pa/ntwn e)pwnumi¿aj e)pefh/mizon au)t%½. Tanto esse termo quanto ὕβρις - hýbris, que há pouco utilizei, são trazidos por mim para a reflexão, não estando presentes no texto de Fílon. 356 Imediatamente um profundo tremor se apoderou de nós ao escutarmos estas palavras, que se juntaram às anteriores, o que se reflectiu até na nossa aparência. Enquanto dizia isto, percorria as casas de campo, inspeccionando os aposentos dos homens, das mulheres, os pisos inferiores, os andares superiores, tudo: considerava algumas das mobílias defeituosas, sugeria outras e ordenava a aquisição de umas mais caras. Nós fomos então arrastados e seguimo-lo para cima e para baixo, enquanto os nossos adversários troçavam de nós e nos insultavam como nas farsas teatrais, e, de facto, toda aquela situação não passava de uma farsa. (Legat. 357-359. Tradução de Tatiana Faia.) Fílon relata a reação às palavras na aparência dos judeus. O corpo reage ao dito. Além disso, o movimento do imperador, seguido pelas duas embaixadas, revela o espaço. O leitor visualiza, agora, entradas e saídas em aposentos, subidas e descidas de escadas, e, até mesmo, as mobílias. Por fim, o comportamento dos adversários o faz remeter aos mimos (ou farsas) teatrais (θεατρικοῖς μίμοις - theatrikoîs mímois). E pela constatação da falta de vontade para buscar a justiça, o alexandrino reconhece como uma verdadeira representação de um mimo o que ocorria ali. Fílon retoma o diálogo com a próxima pergunta do imperador, que dizia respeito ao fato de os judeus não consumirem carne de porco. Os opositores riem tanto por prazer quanto para agradar o imperador, mas são repreendidos por um servo, que os censurou por um comportamento por demais descontraído na presença de Gaio. A resposta dos judeus procura apaziguar e evitar uma discussão aprofundada. 564 Simplesmente afirmam que cada povo tem o costume de não comer alguma coisa. Um dos judeus acrescenta, como exemplo, que alguns povos não consomem carne de carneiro. Ao que o imperador “disse rindo: É verdade! Porque não é gostosa!”565 (Legat. 362).566 564 565 566 A profundidade e o prolongamento da explanação diferem, por exemplo, da resposta dada por Eleazar diante de Ptolomeu, a respeito das leis alimentares, na Carta de Aristeias (143ss). Fílon também não teria poucas palavras a respeito, se considerarmos o desenvolvido em Spec. 4.100ss, em que ele relaciona as leis alimentares como desenvolvimento do décimo mandamento, que ele cita recortado: “Não desejarás” (οὐκ ἐπιτιμήσεις – ouk epitiméseis), “indicando que em sua visão o princípio concernente a esse mandamento é o desejo em si (ἐπιθυμία), não o objeto do desejo” [indicating that in his view the principle concern of this Commandment is desire itself (ἐπιθυμία), not desire's object] (SVEBAKKEN, 2009, p. 2). Em seu argumento, o exegeta alexandrino apresenta as normas alimentares mosaicas como uma forma desenvolvida pelo legislador com vistas ao exercício do auto-controle (ἐγκράτεια - enkrateía), para que o desejo (ἔρως - éros) não impere (cf. SVEBAKKEN, 2009, p. 187ss). Calígula certamente não se deleitaria nesse tipo de discussão. O breve diálogo, então, também serve como mostra de que, realmente, tanto como escritor, quanto como embaixador, Fílon não usa as palavras para expor seu pensamento sem considerar a repercussão daquilo que diz. Pelo contrário, ele seleciona informações conforme a oportunidade, negociando e não simplesmente informando. Minha tradução de: gela/saj "euÅ ge" eiåpen, "eÃsti ga\r ou)x h(de/a." A fala jocosa do imperador, curiosamente, favorece algo estabelecido por Fílon em sua 357 O deboche prossegue até que, finalmente, Gaio se interessa pela questão dos direitos políticos dos judeus. Estes começam a argumentar habilmente, mas, ao perceber a consistência de seu discurso, Gaio o interrompe e corre para outro cômodo, e passa a orientar seus criados sobre a restauração das janelas (Legat. 364). Depois, voltava a dar-lhes atenção, mas, pouco depois de retomarem a palavra, seguia o imperador para outra sala e começava a falar de quadros (Legat. 365). Já sem forças para seguir no jogo do imperador, Fílon e os outros judeus com ele abandonam o palco, mas não fisicamente. Abandonam o espetáculo (ὄψις - ópsis) teatral em que se viam inseridos, para recorrerem à visão (ὄψις - ópsis) da divindade, e o resultado é positivo: ou)ke/ti ta\j yuxa\j e)n au(toiÍj eiãxomen, a)ll' u(p' a)gwni¿aj eÃcw proelhlu/qesan i¸keteu/ein to\n a)lhqino\n qeo/n, iàna tou= yeudwnu/mou ta\j o)rga\j e)pi¿sxv. o( de\ labwÜn oiåkton h(mw½n tre/pei to\n qumo\n au)tou= pro\j eÃleon: kaiì a)neqeiìj pro\j to\ malakw¯teron, tosou=ton ei¹pwÜn "ou) ponhroiì ma=llon hÄ dustuxeiÍj eiånai¿ moi dokou=sin aÃnqrwpoi kaiì a)no/htoi mh\ pisteu/ontej, oÀti qeou= keklh/rwmai fu/sin", a)palla/ttetai prosta/caj kaiì h(miÍn a)pe/rxesqai. Não tínhamos já em nós as nossas almas; na nossa angústia estas haviam-se soltado para fazer uma súplica ao verdadeiro Deus, para que este aplacasse a cólera de quem reivindicava falsamente esse nome. Apiedando-se de nós, Deus abriu-lhe o coração à misericórdia. Ele tornou-se mais gentil 567, dizendo apenas: «Parece-me que estes homens não são perversos, antes infelizes e tolos por não acreditarem que me foi atribuída uma natureza divina.» E retirou-se ordenando que partíssemos também. (Legat. 366-367. Tradução de Tatiana Faia.) Fílon, então, diz que ao saírem era como se saíssem de um teatro ou de uma prisão, pois o que ali acontecera parecia mais apropriado a esses lugares que a um tribunal (Legat. 368). Diz que se sentiram aliviados, não simplesmente por não morrerem, mas porque sabiam que sua morte não representaria a preservação de nenhum costume sagrado, mas que, pelo contrário, representaria perdição também para os que haviam enviado a embaixada (Legat. 369).568 interpretação da interdição do consumo da carne suína. Moisés a teria proibido justamente por ser a mais saborosa de todas (Spec. 4.101). Ou seja, um dos judeus compara essa proibição com o costume de outros povos que não comem carne de carneiro. Logo, é o imperador que, em meio ao riso, faz o leitor lembrar de uma especificidade do costume judaico. Os judeus não comem carne de porco não por conveniência, mas por auto-controle. 567 Cf. a semelhança com o ocorrido no trecho de Ester citado na página 259. 568 Esse trecho do tratado, em que Fílon justifica a satisfação por não ser martirizado, parece ser escrito contra acusações (reais ou supostas) de covardia por parte de outros judeus. Trata-se de uma 358 O tratado encaminha-se ao fim, com o a explicitação das inquietações que aturdiam os judeus à espera do veredito que o imperador tomaria a partir de uma audiência tão descuidada (Legat. 370-372).569 A última frase do tratado, deixo para comentá-la no tópico seguinte. Agora, resta considerar que também essa leitura da narrativa da audiência revela uma aproximação com o teatro, que se sustenta durante todo o trecho, pela apresentação da maneira de falar e dos movimentos dos interlocutores, pela exposição do espaço em que a cena se desenrola, e pelas próprias referências às artes cênicas. 5.7.7 A palinoidía570 na peripécia: o desfecho perdido da trajédia eiãrhtai me\n ouÅn kefalaiwde/steron h( ai¹ti¿a th=j pro\j aÀpan to\ ¹Ioudai¿wn eÃqnoj a)pexqei¿aj Gai¿+ou: lekte/on de\ kaiì th\n palin%di¿an. Eis expostos de forma resumida os motivos do ódio de Gaio contra todo o povo judaico. É agora necessário relatar a palinódia. (Legat. 373. Tradução de Tatiana Faia.) O texto do tratado se encerra como que anunciando uma continuação, pela informação de que faltava ser dita a παλινῳδία – palinoidía. Discernir o significado dessa palavra aqui será um passo necessário para a compreensão do teor do prosseguimento da narrativa, que não nos chegou. A partir de uma abordagem etimológica, será fácil dizer que se trata de um “novo canto” ou de algo que se canta de novo. Não é por acaso que o termo figura como título de um poema de Estesícoro, no qual o poeta reverte o que havia dito anteriormente sobre Helena.571 Posteriormente, a palavra se afasta de sua referência específica ao gênero lírico e passa a indicar basicamente uma “retratação”, a emissão de afirmação que contradiz alguma anterior. 569 570 571 justificativa da performance. Parece-me, ainda, que pode ser considerado como um precursor de textos cristãos posteriores, como Apologia de Fuga, de Santo Atanásio. Essa expectativa não deve ser desconsiderada. Andrew Harker sugere que a referência à intervenção divina no sentido de Gaio se tornar mais gentil (junto com a resposta de Gaio) implica que o imperador “verbalmente confirmou a isenção dos judeus do culto imperial” [verbally confirmed the Jews' exemption from the imperial cult] (HARKER, 2008, p. 17). Não me parece ser esse o caso necessariamente. A referência à intervenção divina e à maior gentileza posterior de Gaio pode ser proveniente do fato de que os próprios embaixadores não foram imediatamente mortos, o que parece ter sido um receio constante. Se a isenção do culto imperial tivesse sido confirmada já na audiência, a questão de maior gravidade já estaria ali resolvida, e a narrativa deveria incluir uma referência clara ao fato. Embora o termo esteja dicionarizado em português como “palinódia”, prefiro adotar uma transliteração do grego. Cf., por exemplo, Fedro 243b. 359 No que temos da obra de Fílon, há três trechos em que ocorre o termo παλινῳδία palinoidía. Além deste em Legat., ocorre em Post. 179, com referência a uma oração de Raquel. A prece dirigida a Deus em Gn 30:24, pedindo-lhe outro filho, é παλινῳδία palinoidía com relação ao pedido que ela havia feito a Jacó em Gn 30:1. O que ela diz, de certa maneira, é uma retratação do dito anteriormente pelo reconhecimento do destinatário correto para o pedido que faz. Já em Somn. 2.292, o termo, em princípio, parece referir-se simplesmente ao arrependimento (cf. SMALLWOOD, 1961, p. 324). Não obstante, se bem observado, percebe-se que também aí há uma possível referência à retratação, pois o trecho fala de pessoas que negam a existência e soberania de um Deus único, apresenta o discurso dessas pessoas, e, em seguida, sugere a possibilidade de lançarem mão da παλινῳδία palinoidía como forma de apaziguarem a divindade. Ou seja, a palinoidía, também aqui, pode ser pensada como discurso que retrata o anterior. Além disso, o erro que torna necessária a παλινῳδία - palinoidía é semelhante em Somn. 2.292 e Post. 179: um erro no discernimento a respeito do lugar de Deus. Raquel faz a um ser humano um pedido que deveria ser dirigido a Deus. Os censurados de Somn. 2.292 negam a existência de Deus e requerem para si mesmos algo que cabe à divindade somente (Somn. 2.291). A confusão entre humano e divino perpassa, então, os três trechos em que o termo é usado por Fílon, uma vez que a presença dessa mesma questão é clara também em Legat.. Acrescento ainda outro detalhe que me parece muito significativo, o qual se revela na introdução do discurso dos acusados no mencionado trecho de Somn. 2: e)pitrag%dou=ntej gou=n kaiì e)pikompa/zontej ei¹w¯qasin oi¸ katage/lastoi le/gein tau=ta: h(meiÍj oi¸ h(gemo/nej, h(meiÍj oi¸ dunasteu/ontej: e)f' h(miÍn o(rmeiÍ ta\ pa/nta: a)gaqw½n kaiì tw½n e)nanti¿wn ti¿nej aiãtioi <oÀti mh\> h(meiÍj; to\ <euÅ kaiì> kakw½j e)rga/sasqai ti¿sin oÀti mh\ h(miÍn a)yeude/stata a)na/keitai; fluarou=si de\ aÃllwj oi¸ duna/mewj a)ora/tou ta\ pa/nta fa/skontej e)ch=fqai, hÁn prutaneu/ein tw½n kata\ to\n ko/smon a)nqrwpei¿wn te kaiì qei¿wn nomi¿zousi. Expressando-se tragicamente e se gabando, os ridículos costumam dizer coisas assim: “Nós somos os líderes! Nós somos os poderosos! Todas as coisas se ancoram em nós! Quem é a causa das coisas boas e das opostas se não nós mesmos? O agir bem e mal se apoia em quem, se não em nós? E falam coisas sem sentido de outra maneira, quando alegam que todas as coisas estão ligadas a um poder invisível, o qual julgam presidir as coisas humanas e divinas que existem no cosmo. (Somn. 2.291. Minha tradução.) O modo como se expressam é caracterizado como trágico. Isso poderia dever-se à 360 seriedade com que emitem o discurso ou ao exagero na expressividade. Mas pode relacionarse também com seu conteúdo. E, nesse sentido, Fílon reconheceria como relacionada com o trágico a atitude de requisitar para si mesmo o que é de Deus somente. Por isso (além de outros motivos, claro), talvez, os acontecimentos em torno da pretensa divinização de Gaio sejam relatados como se houvesse uma tragédia em andamento. Bem, retomarei parte do exposto, mas é preciso seguir na tentativa de discernir o conteúdo da παλινῳδία - palinoidía de Legat.. Colson, em nota, sugere que παλινῳδία palinoidía só poderia significar algo como retratação no trecho se o conteúdo da narrativa que se seguiria fosse forçar aqueles que duvidavam da Providência a se retratarem. Ele suspeita da possibilidade de um erro de transmissão manuscrita, que teria substituído o termo παλινοδία palinodía, que, segundo o Sudas, significa ἐναντία ὁδός - enantía hodós, isto é, “caminho oposto”, pelo que hoje temos no texto. Smallwood não menciona essa sugestão de Colson relacionada com a crítica textual, mas concorda que o sentido de retratação seria estranho no trecho e propõe que Fílon utilize o termo com outro sentido: “narrativa de uma inversão da fortuna” 572, que a autora sugere, sem desenvolver, que talvez não ocorra nesse passo somente (SMALLWOOD, 1961, p. 325). Van der Horst, seguindo sugestão de Clara Kraus de que a παλινῳδία - palinoidía em Fílon sempre é fruto de um arrependimento, entende que o que seguiria no texto seria “a história do arrependimento de Gaio a respeito da injustiça e maldade infligida sobre os judeus”573 (HORST, 2003, p. 43). Conforme o próprio pesquisador observa, isso criaria um paralelo com Flacc., uma vez que a parte final do tratado apresenta justamente um discurso de reconsideração colocado na boca do próprio Flaco, no qual ele admite seus atos perversos e a existência e providência do Deus dos judeus (Flacc. 170-175). A meu ver, então, Colson e Smallwood erram ao supor que o termo παλινῳδία palinoidía se refere à própria narrativa de Fílon que seguiria a partir dali, e não a um componente que seria central nessa narrativa: o discurso de retratação de Gaio antes de sua morte.574 É preciso, contudo, considerar alguns detalhes importantes. Flaco só profere sua 572 573 574 Minha tradução de: an account of a reversal of fortune. Minha tradução de: a story of Gaiu's repentance about the injustice and evil he had inflicted upon the Jews. Se julgássemos inapropriado o que proponho, isto é, tomar o termo que se refere à continuação da narrativa como indicando somente uma parte (ainda que central) da mesma, e nos obrigássemos a reconhecer, como Colson e Smallwood, a παλινῳδία – palinoidía como o próprio prosseguimento da narrativa de Fílon, ainda assim minha conclusão seria diversa. Eu proporia que o discurso que 361 retratação depois que sua situação é alterada por uma série de desgraças (Flacc. 148ss).575 Ou seja, é provável que Gaio só reconhecesse seu erro quando prestes a encontrar o fim de sua vida. Além disso, o discurso de Flaco reflete mais um reconhecimento da perversidade das próprias ações e espanto diante das inevitáveis punições do que propriamente a confissão de um arrependido. Como Flaco, e como Raquel em sua παλινῳδία - palinoidía, Gaio poderá ter proferido uma reconsideração pelo reconhecimento inevitável do erro, e não por um arrependimento. Παλινῳδία - palinoidía será justamente esse discurso de reconsideração a partir do que se aprendeu. Um último detalhe deve ser acrescentado: O reconhecimento de Flaco não o livra da punição. Ele continua exilado por um tempo, angustiado e em pânico com medo do que viria a ocorrer. Um dia Gaio decide mandar matá-lo. Quando Flaco vê os assassinos chegarem, tenta fugir correndo. Mas está em uma ilha. É alcançado, mas se debate como um animal selvagem. Por isso, não conseguem matá-lo com poucos golpes certeiros. Até que, por fim: diatmhqeiìj de\ kaiì diakopeiìj xeiÍraj, ba/seij, kefalh/n, ste/rna, pleura/j, w¨j i¸erei¿ou tro/pon kreourghqh=nai, eÃkeito, th=j di¿khj sfaga\j i¹sari¿qmouj toiÍj fo/noij tw½n e)kno/mwj a)naireqe/ntwn ¹Ioudai¿wn e(niì sw¯mati boulhqei¿shj e)rga/sasqai. kaiì o( me\n to/poj aÀpaj aiàmati katerreiÍto dia\ pleio/nwn flebw½n, aiá kata\ me/roj dieko/phsan, krounhdo\n e)kxeome/n%: surome/nou d' ei¹j to\n o)rwrugme/non bo/qron tou= nekrou= ta\ pleiÍsta me/rh dielu/eto, tw½n neu/rwn katesxisme/nwn, oiâj h( koinwni¿a sunedeiÍto pa=sa tou= sw¯matoj. Com as mãos, os pés, a cabeca, o tronco, os flancos decepados e despedaçados, finalmente caiu por terra, desmembrado como a vítima de um sacríficio. A justiça quis assim infligir neste único corpo feridas em número igual ao dos Judeus ilegalmente assassinados. O local ficou completamente inundado de sangue, que corria como de uma fonte, das inúmeras veias, dilaceradas umas após outras. Enquanto o cadaver era arrastado para a cova que fora aberta, a maior parte dos membros deslaçaram-se-lhe, porque haviam sido dilacerados os ligamentos que asseguram a junção de todo o corpo. (Flacc. 189-190. Tradução de Tatiana Faia.) Flaco reconhece o erro, mas isso não impede que seja morto como um animal sacrificado, com o corpo despedaçado como em um ritual das bacantes. Volto ao caso de Gaio. Não me parece sem sentido considerar que a continuação 575 segue seria uma retratação do próprio Fílon na medida em que, no prévio, a negação da tragédia dos judeus não é contundente. Há uma incerteza sobre os acontecimentos, medo e descontrole físico. A retratação seria o firme reconhecimento da Providência e a reafirmação da confiança que não permite vacilação. Seria, pois, a negação da tragédia e afirmação da trajédia (ver tópico seguinte). Não obstante, agora, prefiro desenvolver a proposta apresentada no corpo do texto. Confira-se a abundância de expressões que se referem a mudança repentina no trecho subsequente. 362 da narrativa de Fílon, que imagino não se tratar necessariamente de outro grande tratado, mas talvez de um encerramento perdido do próprio Legat., deveria incluir a παλινῳδία - palinoidía do imperador em algum momento depois que ele percebesse a completa mudança de sua situação, seguida da narrativa de sua morte, que seria a retribuição por sua impiedade (τὰ ἐπίχειρα τῆς ἀσεβείας - tà epíkheira tês asebeías), como havia acontecido no caso de Apeles e Hélicon (Legat. 206). Convém observar que, assim como a piedade, εὐσέβεια – eusébeia, é frequentemente mencionada entre as demais virtudes listadas por Fílon, o vício oposto, a impiedade, ἀσέβεια – asébeia, também aparece com frequência. E se a primeira merece recompensas, para segunda não são poucas as punições (cf. STERLING, 2006, p. 121-122). A impiedade de Gaio para com Deus é óbvia. Assim, não lhe faltam somente as virtudes dos deuses gregos, mas, “a mais elevada e maior virtude” (ἀρετῆς τῆς ἀνωτάτω καὶ μεγίστης aretês tês anotáto kaì megístes, Abr. 60 ). Na verdade, como a piedade é a mais excelente origem (ἀρχὴ ἀρίτη - arkhè aríste) de todas as outras virtudes (Decal. 52)576, era inevitável que fosse assim. Por faltar-lhe a visão (ὄψις - ópsis) de Deus, ele age sem piedade, e, por conseguinte, é completamente falho com respeito às demais virtudes. Por isso, a punição é certa e catastrófica. Ainda que com certo caráter especulativo, parece-me conveniente observar que Fílon teria tido a oportunidade de narrar a morte de Gaio também com alguma aproximação com relação à tragédia, de modo coerente com o que constrói ao longo de Legat., conforme a versão que escolhesse para seu relato. Embora os relatos apresentados por Suetônio (Cal. 58) e Josefo (AJ 19) tenham sido escritos em períodos relativamente próximos ao evento, e ofereçam versões que poderiam ter servido ao propósito de Fílon577, parece-me mais adequado para meu próprio 576 577 Em outro trecho o destaque da εὐσέβεια – eusébeia é compartilhado pela φιλανθρωπία – philanthropía (Virt. 95), o que pode remeter ao tema do amor a Deus e ao próximo como principais princípios da Torah. Para uma reflexão a respeito do motivo do grande destaque que a εὐσέβεια – eusébeia recebe em Fílon (diferente do que ocorre em filósofos gregos anteriores) confira-se a reflexão de STERLING, 2006. Daniel Schwartz está convencido de que Josefo preservou o desenrolar que Fílon teria escrito. As verdadeiras intenções de Gaio e Petrônio teriam se revelado. Gaio teria ordenado que Petrônio se matasse, mas, antes de cumprida a ordem, teria sido assassinado. Providencialmente, a mensagem do imperador com a ordem teria sido atrasada, de modo que a notícia de sua morte chegasse primeiro, Petrônio se visse livre, e inclusive reconhecesse a providência de Deus (AJ XVIII 309). Para chegar a essa conclusão, o historiador procura demonstrar que Josefo se utiliza do relato de Fílon ou de uma fonte comum (que ele sugere que pode ter sido escrita também por Fílon, e que traria o relato focado na figura de Petrônio). Diferente de mim, Schwartz entende (sem apresentar discussão a respeito) παλινῳδία - palinoidía como “resolução da crise” (SCHWARTZ, 1990a, p. 21). Sem tratar da hipótese de que Fílon tenha escrito um texto focado em Petrônio, somente sugiro 363 propósito mencionar o relato de Díon Cássio. Este viveu quase dois séculos depois da morte de Gaio Calígula, mas, ainda que não seja possível afirmar que todos detalhes por ele reproduzidos circulavam desde o período em que Fílon escreve, ao menos sua composição serve como exemplo de uma possibilidade. Segundo Díon, Gaio recebera um oráculo (θεοπρόπιον - theoprópion) pouco antes de ser morto, o qual afirmava que devia se guardar de Cássio. O imperador calcula que se tratava de Gaio Cássio, governante da Ásia, e manda prendê-lo. Contudo, o oráculo se referia a outra pessoa: Cássio Quéreas, centurião frequentemente ridicularizado por Gaio (HR LIX 29). O oráculo que anuncia a morte e o erro na sua interpretação constituem uma oportunidade para desenvolvimento de um enredo trágico, que Fílon possivelmente teria aproveitado com alguma adaptação.578 Na verdade, no que temos do texto do alexandrino, se não há revelação oracular, há, ao menos, uma sugestão que aponta no mesmo sentido, mas em consonância com o tema do tratado. Pelas palavras da carta de Agripa 579, Fílon expõe mais de um aviso: kaiì ga\r ei¹ toiÍj oi¹kh/torsi th=j xw¯raj a)ph/xqonto dusmeneiÍj oÃntej, a)ll' ai¹dw¯j ge/ tij hÄ fo/boj ei¹sv/ei paralu=sai¿ ti tw½n e)c a)rxh=j nenomisme/nwn e)piì timv= tou= poihtou= tw½n oÀlwn kaiì patro/j: vÃdesan ga\r e)k tou/twn kaiì tw½n o(moiotro/pwn ta\j tw½n qehla/twn kakw½n fuome/naj a)nhke/stouj sumfora/j. hÂj xa/rin ai¹ti¿aj a)sebe\j spe/rma spei¿rein eu)labou=nto dedio/tej, mh\ qeri¿zein a)nagkasqw½si tou\j e)p' o)le/qr% panteleiÍ karpou/j. Pois, ainda que fossem nossos inimigos e odiassem os habitantes da nossa região, o pudor ou o medo sempre os impediu de pôr fim a práticas ancestrais em honra do criador e pai do universo. Sabiam que destes e de outros actos semelhantes brotariam irreparáveis infortúnios, fruto de divina punição. Por este motivo, tiveram o cuidado de não semear ímpia semente, não fossem depois forçados a colher os frutos de uma devastação total. (Legat. 293. Tradução de Tatiana Faia.) paraklhteu/ousi 578 579 toiÍj no/moij au)tokra/torej pro\j que se considere que o encerramento de Legat. não deve enfatizar a figura de tal romano, embora a possa mencionar. A παλινῳδία – palinoidía, que deve ser o discurso de Gaio e não todo o texto de Fílon, deveria incluir (como a de Flaco) o reconhecimento da providência de Deus para com o povo judeu. Esse reconhecimento e a punição de Gaio devem ter sido os pontos principais da narrativa em Legat., e não o papel de Petrônio nesse ponto da trama. O próprio Díon Cássio acrescenta um oráculo vindo de um certo Apolônio, do Egito. Além disso, Suetônio enumera vários tipos de sinais que anunciavam antecipadamente a morte do imperador (Cal. 57). Não há motivo para considerar que Fílon não tenha criado o texto da carta. Daniel Schwartz reuniu evidências (em um breve trabalho comparativo que considerou o restante do tratado) que indicam a autoria filônica do texto (SCHWARTZ, 1990, p. 200-202), e sugeriu que Josefo não teria se utilizado da carta por reconhecer que era inventada (SCHWARTZ, 1990, p. 22). 364 au)tokra/tora, Sebastoiì pro\j Sebasto/n, pa/ppoi kaiì pro/gonoi pro\j eÃkgonon, plei¿ouj pro\j eÀna, mononouxiì fa/skontej: e)n taiÍj h(mete/raij boulh/sesin aÁ me/xri kaiì th/meron e)fula/xqh no/mima mh\ kaqe/lvj: kaiì ga\r ei¹ mhde\n e)k th=j katalu/sewj au)tw½n a)panthqei¿h pali¿mfhmon, a)ll' hÀ ge tou= me/llontoj a)dhlo/thj kaiì toiÍj qarralewta/toij, ei¹ mh\ katafronhtaiì tw½n qei¿wn ei¹si¿n, ou) pantelw½j e)stin aÃfoboj. Diante do imperador, são advogados das nossas leis imperadores, são os próprios Augustos que intercedem junto de Augusto, avós e antepassados nos defendem perante o seu descendente, muitos perante um, e é quase como se dissessem: «Não condenes costumes que, por nossa vontade, foram até hoje preservados, pois, ainda que por sua abolição nada de mal te suceda, contudo, a incerteza do futuro nunca cessa de inspirar terror até aos mais audazes, mesmo quando estes não desprezam os assuntos divinos.» (Legat. 322. Tradução de Tatiana Faia.) As ações presentes repercutiriam em punições futuras. No primeiro trecho, o ato pouco piedoso é apresentado como semente de impiedade (a)sebe\j spe/rma - asebès spérma), que gera um fruto nefasto que o semeador é forçado a colher. Em seguida, os imperadores anteriores dão o aviso. Não se trata da construção de uma cena em que um espírito é evocado do além, como o de Samuel no caso de Saul. Mas ao colocar o discurso direto na boca desses notáveis mortos, o texto mesmo cria uma certa fantasmagoria verbal, eu diria. Não há afirmação exata do que haverá de ocorrer, mas um alerta a respeito de uma possibilidade que não é completamente livre de terror (aÃfoboj - áphobos) para ninguém. Tendo em mente a preparação oracular de Díon, e a quase oracular de Fílon, consideremos o contexto e o modo da morte do imperador, conforme a narrativa do historiador: Ὡς δὲ καὶ αὐτὸς ὁ Γάιος καὶ ὀρχήσασθαι καὶ τραγῳδίαν ὑποκρίνασθαι ἠθέλησεν, καὶ διὰ τοῦτο ἑτέρας τρεῖς ἡμέρας προήγγειλε, οὐκέθ´ οἱ περὶ τὸν Χαιρέαν ὑπέμειναν, ἀλλὰ τηρήσαντες αὐτὸν ἐκ τοῦ θεάτρου ἐξελθόντα ἵνα τοὺς παῖδας θεάσηται, οὓς ἐκ τῆς Ἑλλάδος καὶ τῆς Ἰωνίας τῶν πάνυ εὐγενῶν ἐπὶ τῷ τὸν ὕμνον τὸν ἐς ἑαυτὸν πεποιημένον ᾆσαι μετεπέπεμπτο δῆθεν, ἀπέκτειναν ἐν στενωπῷ τινι ἀπολαβόντες. Καὶ αὐτοῦ πεσόντος οὐδεὶς τῶν παρόντων ἀπέσχετο, ἀλλὰ καὶ νεκρὸν αὐτὸν ὄντα ὠμῶς ἐτίτρωσκον· καί τινες καὶ τῶν σαρκῶν αὐτοῦ ἐγεύσαντο. Τήν τε γυναῖκα καὶ τὴν θυγατέρα εὐθὺς ἔσφαξαν. E como o próprio Gaio quis dançar e interpretar uma tragédia, e por isso anunciou outros três dias [de festividades], aqueles que estavam com Quéreas não esperaram mais. Mas vigiavam quando ele saiu do teatro para contemplar os garotos verdadeiramente nobres que haviam sido enviados da Grécia e Jônia com o fim de cantarem o cântico composto para ele mesmo (pretensamente). Então, interceptando-o em uma passagem estreita, o mataram. E depois que ele caiu, nenhum dos presentes se conteve, mas, 365 mesmo quando já era um cadáver, o feriam. Alguns até provaram de sua carne. E, imediatamente, mataram sua mulher e sua filha. (HR LIX 29. Minha tradução.) Imediatamente antes de narrar a cena da morte, Díon Cássio observa que Gaio queria dançar e encenar uma tragédia. O tipo de peça mencionado e o tipo de morte narrado a seguir são facilmente conectados. Fílon teria tido a oportunidade de explorar a relação. Gaio queria atuar em uma tragédia no palco, mas não percebeu que sua própria vida era uma tragédia que se realizava no mundo, e que já estava nas últimas cenas. Ademais, a crueldade da cena em que os assassinos provam da carne do imperador não teria sido desprezada pelo alexandrino, nem o desprezo ao cadáver relatado por Suetônio (Cal. 59).580 O que pretendo sugerir ao recorrer ao relato da execução de Gaio é simplesmente que Fílon pode ter prosseguido (ou poderia prosseguir) com a utilização do recurso ao gênero trágico na escrita da parte faltante de Legat.. O fim do texto seria a identificação daquele que se pensava deus e almejava infligir sofrimento ao povo judeu, o povo do Deus verdadeiro. O fim dessa confusa história permeada por ignorâncias, apreensão, zombaria e ameaça se dá com a identificação da verdadeira vítima, não do Acaso, mas do Deus que, por sua Providência, cuida dos judeus. Decerto, antes do golpe final, como sugeri, Gaio teria proferido (ou pensado) sua παλινῳδία - palinoidía, isto é, um reconhecimento de seu erro de julgamento com relação a Deus (e ao relacionamento deste com o povo judeu). 5.8 Conclusão: apropriações, pistas de uma tragédia e o trájico O percurso deste estudo sobre Legat. e a tragédia grega revela diferentes apropriações por parte de Fílon, que vão além de uma relação do texto do alexandrino com a referida arte cênica/poética somente. Fílon se apropria da mitologia grega, e faz uso de concepções morais comuns entre os romanos, da ideologia imperial, bem como de recursos retóricos que seriam comuns entre os romanos, como é o caso da teatricidade. Revela-se, assim, a hospitalidade de sua escrita, mas também a dinamicidade com que lida com os diferentes elementos acolhidos. Há muitos possíveis caminhos de reflexão, mas devo seguir o rumo planejado e voltar à questão específica da tragédia em Legat.. Pela recorrência de referências ao teatro e sua recepção, e pela diversidade de recursos que possibilitam uma aproximação do texto com as artes cênicas, algo que julgo ter 580 Convém lembrar que também na obra de Suetônio a respeito da vida dos Césares é perceptível a presença do drama, seja da tragédia ou do mimo, inclusive na construção dos relatos sobre as mortes (BRANDÃO, 2005). 366 ficado explícito pelas páginas anteriores, considero que Fílon escreve Legat. tendo um claro objetivo de jogar com a tragédia e o trágico. Por exemplo, ele desenvolve todo um cuidado visual com as cenas que apresenta, o que condiz com a importância da tragédia como espetáculo em cena no mundo helenístico e romano, e refere-se ao comportamento de pessoas na vida social como se tratando de atores em um palco, o que condiz com a difusão da metáfora do theatrum mundi. O que ele faz não é escrever algo novo de difícil apreciação para seu mundo contemporâneo. Pelo contrário, ele recorre a um tipo de produção cultural que é comum em seu tempo, e que também é pertinente para o tema tratado, por habitualmente refletir assuntos sérios ou solenes. E, ao lançar mão desse elemento comum, ele pretende fazer comum uma experiência própria dos judeus (ou melhor, a partir da perspectiva própria dos judeus).581 Não obstante, o que Fílon faz não é um trabalho com o “tragédico” somente, isto é, ele não usa somente de recursos do trágico enquanto gênero literário ou artístico espetacular. Ele chega a jogar com o trágico enquanto noção de existência no mundo.582 Ao longo do tratado, a possibilidade do trágico paira sobre diversos personagens, que agem em um mundo que não compreendem. É como se houvesse pistas espalhadas para que fosse buscado pelo leitor, ao longo das páginas, o alvo fatal do Acaso. Os leitores, como os judeus da embaixada no momento dos eventos, confundem-se e ficam apreensivos, como crianças desconfiando do que há de mais seguro. Contudo, no fim, revelar-se-ia a definição, que consiste no direcionamento do fim trágico para o adversário dos judeus, por intervenção providencial de Deus. O Acaso não governa a ação até o fim, mas somente nos limites do 581 582 Não defino, com isso, o público almejado. Tornar algo comum pode servir também para os próprios judeus, que passam a reconhecer o que lhes é particular a partir de uma expressão comum com a produção cultural mais ampla. Há (também) uma funcionalidade interna. Parece-me interessante, ainda que haja diferenças a considerar, a constatação de Anthony Forte para o caso de BJ de Josefo: “A linguagem dos poetas trágicos serve não somente para ser deleite do público não judaico, mas também auxiliava a comunidade judaica a entender a profunda tragédia de sua história, especificamente a calamidade do sítio a Jerusalém e a destruição do Templo” [The language of the tragic poets served not only to delight Josephus' non-Jewish audience, but it also assisted the Jewish community in understanding the profound tragedy of their history, namely the misfortune of the siege of Jerusalem and the destruction of the Temple] (FORTE, 2006, p. 52). Nesse caso, o uso do trágico é diferente pois o evento a ser interpretado é completamente diverso. O Templo realmente havia sucumbido. Mas a percepção da funcionalidade do recurso ao trágico também para o público judaico é importante, ainda que requeira mais reflexão a respeito de sua acomodação ao lado da teologia judaica. Haverá, certamente, necessidade de considerável esforço para a reflexão. Mas esse esforço foi inevitavelmente necessário pelo próprio acontecimento da destruição. Fílon não chegou a testemunhar o incidente. Decerto, a possibilidade de uma separação entre o trágico e a tragédia é mais uma impressão atual do que uma atitude visualizada no tempo de Fílon. 367 âmbito humano. E os judeus têm uma relação especial com aquele que é sobre-humano. Como no caso da Bíblia, conforme a reflexão apresentada anteriormente, a crença em um Deus único interessado no bem de um povo específico afasta o desenvolvimento do trágico no meio judaico. Isso não quer dizer, como venho tentando explicitar, que só haja apropriação da tragédia e total desconsideração do trágico. Há, isso sim, uma reconfiguração do trágico por sua adequação à crença judaica. É nesse sentido que rasuro a palavra e a escrevo “trájico”, inscrevendo em seu centro um J que remete ao novo âmbito em que a noção figura, o judaico. O trájico tem aparência de fim irreparável, de aporia, e gera ansiedade pela iminência da catástrofe. Mas esta é revertida, e quem se torna vítima é o adversário impiedoso, seja ele Amã, Flaco ou Gaio. Do encontro com a tragédia no texto de Fílon, o que resulta é a emergência do trájico, que tem potencialidade comunicativa e didática, para quem quer que seja dirigido. 368 Conclusão adiásporalidacomoestilo A necessidade da conclusão gera certo incômodo, pois se apresenta quando ainda há muito por desenvolver. Vem como uma oclusão forçada da boca enquanto ainda há fôlego para emitir palavras, para tentar entender e explicitar o entendido. Por outro lado, é preciso dividir discursos e pesquisas em etapas. O que coloco, então, é uma etapa. O próprio Fílon, certa vez, escreve Horácio: “A vida é breve, a arte, por outro lado, é grande” ( "braxu\j me\n ga\r o( bi¿oj," eÃfh tij, "h( de\ te/xnh makra/" , Somn. 1.10). Seria o caso de transformar o aforismo, não sem antes fazer o leitor lembrar da versão mais romantizada de Tom Jobim (porque é bom lembrar de coisas belas), e dizer: “O doutorado é breve, Fílon, por outro lado, é muito grande”. E por falar no maestro Antônio Carlos, não perco a oportunidade de fazer um esclarecimento: Fílon é tão grande quanto todos são. Não pense que tratarei de defendê-lo como mais único que todos os outros únicos. Fenômenos tão interessantes quanto os contemplados nesta tese ocorrem pelas mãos e mentes de diversas pessoas, em diversos lugares e diversas artes. Não será menos importante a negociação empreendida por Burle Marx em seus jardins de lagos ameboides e plantas brasileiras, a apropriação de gêneros que se vislumbra e se degusta na cozinha de Eduardo Avelar, ou, quiçá, o gesto de qualquer viajante que se faz entender quando preciso. Mas Fílon é o assunto que me ocupou. É sobre quem eu falo. (E se o leitor percebe algum prolongamento neste preâmbulo, será certamente por algum titubeio para encontrar a maneira devida de abordar diretamente a questão. Mas, sim, é preciso terminar antes do prazo.) Ao longo dos cinco capítulos desta tese, observei aspectos do pensamento de Fílon sobre seu entorno - como a alteridade e constituição da identidade, a sua consideração sobre a vida na diáspora, e sobre a possível integração de não judeus ao judaísmo - além de vestígios literários da negociação intercultural que ele desenvolve na escrita. Para cada capítulo, escrevi uma pequena conclusão, e, na medida de minha possibilidade, procurei desenvolver um trabalho claro e com um fim discernível. Mas convém retomar minimamente o desenvolvido, com vistas a uma compreensão panorâmica do que foi apresentado. O pensamento de Fílon, vislumbrado na primeira parte da tese, é coerente com as estratégias textuais que ele realiza, as quais foram objeto da segunda parte. O alexandrino entende as 369 diferenças entre judeus e não judeus como variáveis. Isto é, ele marca uma alteridade radical para com os egípcios, mas negocia de modo mais plácido semelhanças e diferenças com gregos e romanos. A separação existe, mas as distâncias não são sempre as mesmas. Isso se percebe na apropriação que faz da palavra alheia e antiga. E o faz, também, porque, assim como sua vida, seu texto se localiza comodamente no contexto intercultural alexandrino. Não há uma dor pelo retorno a um lugar exclusivo, separado e purificado do contato com algo que se poderia dizer estranho. A escrita grega não é “terra estranha”, na qual seria impossível produzir significado, mas parte constituinte de um texto proveitoso. Mas, existindo no contexto intercultural, Fílon valoriza de modo especial a filosofia pátria e a Lei mosaica. Por isso, espera que não-judeus reconheçam o caráter especial da religião judaica e se convertam, abandonando o politeísmo e se aderindo ao culto d'Aquele-que-é. Da mesma forma, as apropriações literárias encontradas na obra filônica são caracterizadas por certa transformação, que entendo a partir de uma comparação com a conversão religiosa. Isso faço, inclusive, por entender que certas mudanças realizadas nas apropriações estudadas são motivadas pelas concepções religiosas do exegeta escritor. Por isso, versos são recortados e aproveitados de determinada maneira, como visto no quarto capítulo, e um gênero grego, a tragédia, acolhido com considerável reformulação. A consideração de diferenças e semelhanças, a intenção da permanência, e a expectativa de mudança religiosa, então, são dados do pensamento de Fílon que têm reflexões nos rastros de interculturalidade encontrados em sua escrita. O título que dei a esta conclusão é escrito com as letras unidas, que fazem qualquer estudante de grego se lembrar de quando se deparou pela primeira vez com um manuscrito e precisou dividir as palavras. O que eu pretendia era justamente que o leitor tivesse essa oportunidade de escolher, ou talvez desfrutar de duas opções. A questão será ler “a diáspora lida como estilo” ou “a diáspora lida com o estilo”. A primeira opção remete à possibilidade de se encontrar nos autores judeus das várias diásporas algo que se possa caracterizar como um traço de estilo compartilhado entre eles. Tanto pelo fato de que esta tese se dedica especificamente à obra de Fílon, quanto pela atual cautela para com generalizações, prefiro somente sugerir que a diáspora pode favorecer um estilo de escrita caracterizado por uma abertura, acolhimento e transformação, que, no caso de Fílon, se realiza em uma complexa negociação intercultural na escrita. Algo que caracteriza a produção escrita de Fílon é resultado do encontro entre culturas, do encontrar-se em diáspora. 370 O estilo do disperso se constitui pelo ajuntamento de diferentes elementos discursivos de diferentes procedências: gregos, judeus e romanos (ou até greco-judaico-romanos). A afirmação é ainda ampla, e torná-la mais específica com segurança requereria exercícios de leitura e exposição para os quais não há espaço neste estudo. Por isso, talvez, seja melhor explorar a outra possibilidade de configuração da frase. Em “a diáspora lida com o estilo”, o termo “estilo” é o instrumento de escrita. 583 Seria cômodo alterar o verbo do qual “lida” é particípio, e entender que se tratasse de “lidar”, não de “ler”. Nesse sentido, a afirmação é óbvia: os que estão em diáspora se dedicam a escrever (como também fazem os que não estão). É verdade que poderíamos pensar em algo mais complexo: a diáspora é um espaço de lidar com a escrita de uma forma específica, com múltiplas vozes a conciliar. Mas convém explorar o sentido da expressão com o próprio verbo “ler” também: escrever é uma maneira de se ler a diáspora. Na escrita, interpreta-se a realidade intercultural de Alexandria e do Mediterrâneo. No ato de escrever, organizam-se informações e se definem limites, diferenças, comunhões. Parte considerável da produção escrita de Fílon consistiu na interpretação de textos das Escrituras. Mas tanto nesses tratados exegéticos, quanto nos tratados em que lida mais diretamente com eventos históricos, como é o caso de Embaixada a Gaio, ele interpreta os acontecimentos de seu próprio tempo, afinal: “como um texto, a ação humana é uma obra aberta, cuja significação está 'em suspenso'” 584 (RICŒUR, 1986, p. 197). As ações ou performances dos próprios judeus (alexandrinos), dos (outros) alexandrinos, egípcios, gregos e romanos são interpretadas na escrita de modo a se produzir uma compreensão que permita a localização no mundo. Próprio e comum se definem na linguagem, pelo estilo. Não há só próprio, pura alteridade. É preciso reconhecer o comum, pois de outra forma não há nenhuma comunicação, mas uma tendência à anulação do outro (ou de si mesmo). Mas, embora a constatação seja simples, o processo não se desenvolve de modo impensado e tranquilo. A definição de limites e compartilhamentos exige um exercício intelectual considerável, atento e, ao que parece, criativo. Fílon seleciona versos, gêneros, discursos, noções e interpretações e as mobiliza, ressignificando-os muitas vezes. E isso faz por e para se entender como judeu-alexandrino sob o domínio do império romano, sem jamais deixar de se colocar (no texto e na cidade) 583 584 Não ignoro que Fílon devia escrever seus longos tratados em papiro (ou pergaminho) para o que não se usa propriamente o estilo, mas tinta e um tipo de caneta, um κάλαμος – kálamos. Mas a utilização do termo como representativo da escrita por metonímia certamente será compreendida. Minha tradução de: [...] comme un texte, l'action humaine est une œuvre ouverte, dont la signification est “en suspens”. 371 como uma alma cidadã do mundo e amiga de Deus (cf. Somn. 1.243: kosmopoli¿tidej yuxaiì kaiì qeofileiÍj – kosmopolítides psykhaì kaì theophileîs), como um daqueles que vê a Deus. 372 Referências Bibliográficas Edições e traduções: ACTA CONCILIORVM OECVMENICORVM. 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