Biotemas, 21 (2): 83-90, junho de 2008
83
ISSN 0103 – 1643
Hábito alimentar do peixe-espada adulto, Trichiurus lepturus, na
costa norte do Rio de Janeiro, sudeste do Brasil
Vanessa Trindade Bittar*
Bernardo de Figueiredo Leão �aste��o
Ana Pau�a Madeira Di Beneditto
Universidade Estadual do Norte Fluminense/UENF, Laboratório de Ciências Ambientais/LCA
Centro de Biociências e Biotecnologia/CBB, Av. Alberto Lamego, 2.000, CEP 28013-602
Campos dos Goytacazes – RJ, Brasil
*Autora para correspondência
vatrindade@gmail.com
Submetido em 18/09/2007
Aceito para publicação em 10/01/2008
Resumo
O presente estudo tem como objetivo caracterizar o hábito alimentar do peixe-espada adulto, Trichiurus
lepturus, no norte do Rio de Janeiro através da avaliação de conteúdos estomacais. A amostragem incluiu 350
espécimes, com comprimento total entre 100 e 163cm, coletados entre 2004 e 2006. Para cada espécie de presa
calcularam-se as freqüências de ocorrência, numérica e de biomassa, porte (comprimento e peso) e Índice de
Importância Relativa (IIR) na dieta. O comportamento alimentar de canibalismo foi registrado. De acordo com
o IIR, os itens preferenciais foram os peixes T. lepturus, Pellona harroweri, Chirocentrodon bleekerianus,
Lycengraulis grossidens, Peprilus paru, Chloroscombrus chrysurus, Odontognathus mucronatus, Stellifer
brasiliensis e Isophisthus parvipinnis, além do crustáceo Pleoticus muelleri. Os cefalópodes Loligo plei e L.
sanpaulensis ocorreram ocasionalmente nos conteúdos estomacais analisados. Na costa norte do Rio de Janeiro,
T. lepturus apresenta dieta composta por organismos neríticos de hábitos pelágicos e/ou demersais associados a
áreas costeiras e estuarinas, sendo peixes e crustáceos os itens mais representativos na dieta.
Unitermos: Trichiurus lepturus, peixe-espada, hábito alimentar, canibalismo, norte do Rio de Janeiro
Abstract
Feeding habits of the cutlassfish, Trichiurus lepturus, in northern Rio de Janeiro. The aim of the
present study was to describe the diet of the adult cutlassfish, Trichiurus lepturus, in northern Rio de Janeiro,
through stomach content analysis. The sampling included 350 specimens measuring between 100 and 163cm
in total length, collected from 2004 to 2006. For each prey species, the frequency of occurrence, density and
biomass, body length and weight, and Index of Relative Importance (IRI) were calculated. The cannibalistic
feeding behavior of the cutlassfish was also recorded. According to the IRI, the preferential prey species were
the fishes T. lepturus, Pellona harroweri, Chirocentrodon bleekerianus, Lycengraulis grossidens, Peprilus paru,
Chloroscombrus chrysurus, Odontognathus mucronatus, Stellifer brasiliensis and Isophisthus parvipinnis, and
the crustacean Pleoticus muelleri. The cephalopods Loligo sanpaulensis and L. plei occurred occasionally in
the stomach contents analyzed. The diet of T. lepturus in northern Rio de Janeiro was composed of pelagic and
demersal prey species, associated with estuarine and coastal areas. The fish species and one crustacean species
were the most representative items in its diet.
Key words: Trichiurus lepturus, cutlassfish, feeding habits, cannibalism, northern Rio de Janeiro
Revista Biotemas, 21 (2), junho de 2008
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V. T. Bittar et al.
Introdução
Trichiurus lepturus, L. 1758 (Perciformes, Trichiuriidae) é uma espécie cosmopolita denominada comumente
de peixe-espada ou espada. Distribui-se em águas quentes
e temperadas, entre 60оN e 45оS, com salinidades entre 33
e 36ppm e temperaturas superiores à 16ºC. No Oceano
Atlântico, a espécie se distribui do Canadá (~40°N), até
a Argentina (~37°S), desde a linha de costa até profundidades em torno de 350m (Magro et al., 2000; Martins e
Haimovici, 2000; FAO, 2005; Magro, 2006). Apresenta
hábito demerso-pelágico e é considerado oportunista e
voraz quanto à alimentação (Martins e Haimovici, 2000;
FAO, 2005; Chiou et al., 2006).
A espécie é predominantemente piscívora, inclusive pratica o canibalismo, mas cefalópodes e crustáceos
peneídeos também fazem parte de sua dieta (Wojciechowski, 1972; Martins et al., 2005; Chiou et al., 2006).
Apresenta heterogeneidade espacial e temporal influenciadas pela disponibilidade de alimento (Martins et al.,
2005). No litoral do Rio Grande do Sul, sul do Brasil,
fêmeas adultas e os juvenis permanecem na região da
plataforma continental durante o inverno para se alimentarem e os machos adultos movimentam-se além
dos limites da plataforma (Martins e Haimovici, 2000).
A proximidade da costa acentua a intensidade alimentar
para suprir as necessidades energéticas associadas ao
crescimento, a reprodução e a desova (Martins e Haimovici, 2000; Chiou et al., 2006; Magro, 2006).
Trichiurus lepturus está entre as seis espécies com
maior volume de desembarque pesqueiro mundial (Martins e Haimovici, 1997; FAO, 2005). Além da importância comercial em algumas regiões, apresenta relevância
ecológica. A posição trófica dos indivíduos adultos dessa
espécie é imediatamente subseqüente àquela ocupada
por elasmobrânquios e pequenos cetáceos (Chiou et al.
2006). No litoral sudeste e sul do Brasil, o peixe-espada
já foi registrado como item alimentar desses animais (Di
Beneditto et al., 2001; Santos et al., 2002; Aguiar, 2003),
mas também se levanta a possibilidade de que seja um
potencial competidor trófico do pequeno cetáceo Pontoporia blainvillei, que se distribui em regiões costeiras e vem
sofrendo declínio populacional devido a ação antrópica
(Bassoi, 1997 e 2005; Di Beneditto et al., 2001).
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A ausência de determinadas espécies de peixes na
pesca comercial praticada em determinadas regiões do
litoral brasileiro pode ser decorrente da exclusão trófica
causada devido a presença de T. lepturus (Magro et al.,
2000). No sul do Brasil, grandes concentrações de T. lepturus estão associadas ao declínio de espécies de peixes
comercialmente importantes, tais como Micropogonias
furnieri (corvina), Umbrina canosai (castanha) e Cynoscion guatucupa (pescada) (Martins e Haimovici, 1997).
Apesar da possibilidade de declínio populacional de
algumas espécies de peixes na presença de T. lepturus e
da possível competição trófica com Pontoporia blainvillei, não há informações referentes a sua dieta, bem como
aos seus hábitos alimentares e suas inter-relações no
litoral norte do Rio de Janeiro. Dessa forma, o presente
estudo investiga pela primeira vez o hábito alimentar de
T. lepturus na região, com o intuito de contribuir para o
entendimento da dinâmica trófica envolvendo esse peixe
e auxiliar futuros estudos sobre a ecologia da espécie
e sua estruturação trófica, bem como de suas presas e
potenciais competidores tróficos.
Material e Métodos
Os limites geográficos considerados para a costa
norte do Rio de Janeiro são a localidade de Barra do
Itabapoana (21º18’S), no município de São Francisco do
Itabapoana, e o município de Macaé (22º25’S) (Muehe
e Valentini, 1998) (Figura 1). As coletas dos espécimes
estudados foram realizadas a partir da dinâmica usual das
pescarias praticadas com redes de espera por embarcações sediadas no porto de Atafona (21º37’S) (Figura 1).
De modo geral, o campo de pesca dessas embarcações
está compreendido entre os limites da costa norte do estado do Rio de Janeiro e as redes de espera são lançadas
de menos de uma (1) a cerca de 42 milhas náuticas da
linha de costa, em profundidades que variam entre 5 e
70m (Di Beneditto, 2003).
Os espécimes adultos de T. lepturus medindo entre
100 e 163cm de comprimento total foram coletados
mensalmente entre agosto de 2004 e julho de 2006. No
total, avaliou-se o conteúdo estomacal de 350 indivíduos como amostra representativa do hábito alimentar da
espécie na região.
Hábito alimentar do peixe-espada no norte do Rio de Janeiro
A necropsia dos peixes foi realizada ainda nos
entrepostos de pesca. O comprimento total em cm foi
inferido com o auxílio de fita métrica e em seguida os
animais foram abertos na porção ventral com o auxílio
de tesoura e pinça. Posteriormente, os estômagos foram
retirados da cavidade abdominal através de cortes em
sua porção inicial e terminal e cada estômago foi acondicionado em saco plástico contendo solução de álcool
aquoso 70%.
Em laboratório, o conteúdo estomacal recuperado
foi triado, identificado e quantificado sob estereomicroscópio com auxílio de coleções de referência das espécies
de presas potenciais que se distribuem na região (Di
Beneditto et al., 2001) e guias taxonômicos específicos
(Boschi, 1963; Figueiredo e Menezes, 1978; 1980 e
2000; Menezes e Figueiredo, 1980 e 1985; Clarke, 1986a
e 1986b; Cérvigon et al., 1993; Costa et al., 2003).
Brasil
Estado do Rio de Janeiro
B. Itabapoana
Rio Paraíba do Sul
Atafona
Cabo de São Thomé
Macaé
85
A análise das presas (peixes, cefalópodes e crustáceos) recuperadas nos estômagos levou em consideração
a quantidade predada (densidade = nº de indivíduos e
biomassa consumida em gramas) e o seu porte (comprimento do corpo em cm e biomassa individual em
gramas). A biometria dos itens recuperados, tais como
otólitos de peixes, bicos de cefalópodes e cefalotórax
de crustáceos, foi realizada sob estereomicroscópio com
ocular micrométrica acoplada. As relações biométricas
entre as estruturas supracitadas e o porte dos organismos
permitiram estimativas quanto às dimensões das presas
consumidas a partir de equações de regressão (Bastos,
1990; Di Beneditto et al., 2001; Bassoi, 2005).
Para cada espécie de presa calculou-se o percentual
de freqüência numérica (%FN), definido como a densidade da presa (número de indivíduos) dividida pela
densidade total de presas consumidas, o percentual de
biomassa (%W), definido como a biomassa da presa
dividida pela biomassa total de presas ingeridas e o
percentual de freqüência de ocorrência (% FO), definido
como o número de estômagos em que a presa ocorre
pelo número total de estômagos com presença de itens
alimentares. A importância de cada espécie de presa na
dieta foi determinada através do Índice de Importância
Relativa (IIR) (Pinkas et al., 1971): IIR= [(%FN + %W)
x %FO].
Devido às diferenças das presas quanto a digestibilidade e preservação de estruturas com relevância taxonômica e biométrica no conteúdo estomacal do predador,
conforme relatado por Fitch e Brownell (1968) e Clarke
(1986b), optou-se por calcular o IIR separadamente para
cada grupo de presas (peixes, cefalópodes e crustáceos).
Dessa forma, subestimativa ou superestimativa quanto
à importância das espécies de presas puderam ser minimizadas. O presente estudo considera que as estimativas
de porte, biomassa e densidade (nº de indivíduos) das
presas representam as quantidades mínimas consumidas
pelo T. lepturus.
Resultados
FIGURA 1: Mapa do Rio de Janeiro, destacando a costa norte e seus
limites geográficos (Barra de Itabapoana e Macaé), o
rio Paraíba do Sul, o porto de Atafona, o Cabo de São
Thomé e o perfil batimétrico da região costeira.
A caracterização da alimentação de T. lepturus
adultos no norte do Rio de Janeiro baseou-se na análise
de 350 conteúdos estomacais de espécimes com compriRevista Biotemas, 21 (2), junho de 2008
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V. T. Bittar et al.
mentos totais entre 100 e 163cm (média= 126 ± 12,36).
Deste total, 343 conteúdos continham itens alimentares
e puderam ser utilizados na análise da dieta. Vinte e oito
espécies de presas perfazendo 1.676 indivíduos e 5.710g
foram registradas a partir dos estômagos com presença
de itens alimentares.
O percentual da densidade, biomassa (g) e freqüência de ocorrência relativa dos grupos de espécies
de presas na dieta de T. lepturus está indicado na figura
2. A maior densidade foi registrada para o grupo dos
crustáceos, e os peixes corresponderam ao maior percentual da biomassa e da freqüência de ocorrência nos
estômagos.
Os peixes registrados em torno de 58% (n= 200)
dos estômagos (Figura 2) incluíram 23 espécies (Tabela
1). Cerca de 65% das espécies de peixes identificadas
como presas são representantes das famílias Sciaenidae,
Engraulidae e Clupeidae. As espécies T. lepturus, Pellona
harroweri, Chirocentrodon bleekerianus, Lycengraulis
grossidens, Peprilus paru, Chloroscombrus chrysurus,
Odontognathus mucronatus, Stellifer brasiliensis e Isophisthus parvipinnis totalizaram 96,2% do somatório do
IIR e destacaram-se, nessa ordem, como os principais
peixes consumidos (Tabela 1).
Do total de peixes, doze apresentam hábito demersal, oito são pelágicos e três podem ser considerados
como demerso-pelágicos. Com exceção de Pagrus pagrus, os peixes consumidos são caracteristicamente neríticos e 65% do total estão associados a regiões estuarinas.
Dentre as quatro principais espécies, P. harroweri, C.
bleekerianus e L. grossidens possuem hábitos pelágicos,
sendo as duas últimas associadas a estuários (Figueiredo
e Menezes, 1978; 1980 e 2000; Menezes e Figueiredo,
1980 e 1985; Di Beneditto, 2000), enquanto T. lepturus
apresenta hábitos demerso-pelágicos (FAO, 2005).
O comportamento de canibalismo foi registrado
e revelou o consumo de co-específicos com até 100cm
de comprimento. Entretanto, a média do comprimento
da maior parte dos peixes consumidos não ultrapassou
cerca de 10cm (Tabela 1). A maior amplitude de densidade de uma determinada espécie de peixe por estômago
foi verificada para P. harroweri (1-5 indivíduos) e de
biomassa para T. lepturus (0,2-649g).
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Densidade
Biomassa
FO
FIGURA 2: Percentual da densidade (nº de indivíduos), da biomassa (g) e da freqüência de ocorrência relativa dos grupos de presas registradas no conteúdo estomacal de
Trichiurus lepturus na costa norte do Rio de Janeiro,
entre agosto de 2004 e julho de 2006 (n= 343 conteúdos estomacais).
Os crustáceos foram registrados em 19,8% (n=
68) dos estômagos (Figura 2). Pleoticus muelleri, Xiphopenaeus kroyeri e Artemesia longinaris estavam
presentes nos conteúdos estomacais, e a primeira espécie foi a mais representativa (Tabela 1), sendo as referidas espécies consideradas bentônicas (Di Beneditto,
2000; Costa et al., 2003). A média do comprimento
da maioria das presas ficou em torno de 3cm e a maior
amplitude de densidade e de biomassa por estômago
foi registrada para P. muelleri (1-178 indivíduos e 0,137g, respectivamente).
Os cefalópodes podem ser considerados como
itens secundários na alimentação, pois foram registrados em apenas 4,3% (n= 15) dos estômagos (Figura 2). Foram identificadas as espécies Loligo plei e L.
sanpaulensis, com o maior consumo da primeira, correspondendo a 96% do IIR referente aos cefalópodes
(Tabela 1). As referidas espécies apresentam hábitos
demerso-pelágicos (Roper et al., 1984). O comprimento do manto da maioria dos indivíduos não ultrapassou
10cm e a maior amplitude de densidade e biomassa por
estômago foi observada para L. plei (1-3 indivíduos e
2-193g, respectivamente).
Hábito alimentar do peixe-espada no norte do Rio de Janeiro
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TABELA 1: Percentual de freqüência numérica (%FN), percentual de biomassa (%W), percentual de freqüência
de ocorrência (%FO), Índice de Importância Relativa (IIR) e o comprimento total (CT) das espécies
de presas consumidas por Trichiurus lepturus na costa norte do Rio de Janeiro entre agosto de 2004
e julho de 2006 (n= 343).
PRESAS
IIR
�T (cm)
Máx
Média
%FN
%W
%FO
Trichiurus lepturus
4,4
40,2
8,0
356,5
3,4
100,0
43,7
38,0
Pellona harroweri
12,3
8,5
14,0
290,6
4,5
11,4
7,8
1,7
Chirocentrodon bleekerianus
6,5
9,8
9,0
146,9
6,4
16,5
10,6
3,4
Lycengraulis grossidens
3,3
9,0
6,0
73,4
5,2
24,6
9,5
5,8
Peprilus paru
6,0
2,4
8,0
67,0
1,3
5,3
4,7
2,2
Chloroscombrus chrysurus
2,2
4,2
4,0
25,6
28,9
32,9
31,0
1,5
Odontognathus mucronatus
2,7
1,8
4,5
20,5
5,4
17,3
9,8
4,6
Stellifer brasiliensis
2,7
1,6
3,0
12,8
2,6
7,6
4,6
1,9
Isophisthus parvipinnis
1,4
2,4
2,5
9,5
6,0
14,6
10,4
3,5
Paralonchurus brasiliensis
0,8
6,1
1,0
6,9
4,7
22,6
13,6
12,7
Bagre bagre
1,1
3,5
1,5
6,8
1,1
17,4
9,3
11,5
Anchoa filifera
1,6
0,5
2,5
5,4
3,9
6,0
4,7
0,9
Cynoscion jamaicensis
0,5
3,9
1,0
4,5
7,5
13,9
10,7
4,6
Anchoviela lepidentostole
1,4
0,3
2,5
4,1
5,3
6,6
5,8
0,6
Arius spixii
1,9
0,1
2,0
4,0
0,8
5,2
3,0
3,2
Orthopristis ruber
0,5
1,7
1,0
2,2
12,4
12,4
12,4
12,4
Stellifer sp.
1,6
0,3
1,0
1,9
1,7
5,7
4,1
2,1
Pagrus pagrus
0,3
2,5
0,5
1,4
8,9
8,9
8,9
8,9
Trachurus lathami
0,5
0,4
1,0
0,9
7,1
17,2
12,2
7,1
Prionotus punctatus
0,5
0,1
1,0
0,6
0,3
4,9
2,8
2,3
Porichthys porosissimus
0,3
0,9
0,5
0,6
15,6
15,6
15,6
15,6
Anchoa sp.
0,3
0,0
0,5
0,1
6,0
6,0
6,0
6,0
Macrodon ancylodon
0,3
0,0
0,5
0,1
*
*
*
96,3
95,5
42,9
8222,9
2,7
3,5
3,1
0,4
Artemesia longinaris
3,1
0,5
8,6
30,6
4,3
4,3
4,3
4,3
Xiphopenaeus kroyeri
0,3
0,6
8,6
7,3
3,2
5,5
4,4
1,6
Loligo plei
59,1
99,0
83,3
13173,7
1,0
24,0
10,2
7,6
Loligo sanpaulensis
22,7
1,6
25,0
608,7
1,75
11,5
6,5
4,5
Min
dp
Peixes
*
�rustáceos
Pleoticus muelleri
�efa�ópodes
IIR = [(%FN+%W) x FO]; dp; desvio padrão; * porte não estimado.
Revista Biotemas, 21 (2), junho de 2008
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V. T. Bittar et al.
Discussão
No norte do Rio de Janeiro (~22ºS), T. lepturus
adultos exploraram preferencialmente as águas costeiras para obtenção dos recursos alimentares. Seu hábito
alimentar foi predominantemente piscívoro, apesar do
registro de crustáceos e cefalópodes, predando preferencialmente presas pelágicas, fato também registrado
por Wojciechowski (1972) na Mauritânia, Martins et
al. (2005) e Magro (2006) no Brasil, além de Chiou
et al. (2006) em Taiwan. A piscivoria associada principalmente aos organismos pelágicos pode ser uma
estratégia para minimizar o tempo de forrageamento,
favorecendo o ganho energético e/ou nutricional, e/ou
ser devido a maior facilidade de captura desses animais
durante seu deslocamento. Além disso, as presas mais
abundantes na região (Di Beneditto, 2000) compõem a
dieta de T. lepturus, o que demonstra a sua plasticidade
alimentar. Essa amplitude da dieta pode estar associada
a adaptação da espécie as mais variadas condições ambientais e já foi registrada no sul do Brasil (Martins et
al., 2005) e em Taiwan (Chiou et al., 2006).
Os peixes das famílias Scianidae, Engraulidae e
Clupeidae foram os mais representativos, com destaque para seus co-específicos, além de P. harroweri, C.
bleekerianus e L. grossidens. No entanto, ao comparar
as espécies predadas na região com aquelas encontradas no sul do Brasil, nota-se uma composição específica distinta entre essas áreas. No sul do Brasil (~32ºS),
Engraulis anchoita, T. lepturus e C. guatucupa são as
presas preferenciais (Martins et al., 2005). Variações na
composição específica da dieta podem ser reflexos da
composição faunística distinta entre as áreas geográficas que compõem a distribuição da espécie. Essa preferência intraespecífica pode estar refletindo não apenas
essa disponibilidade, mas também a habilidade comportamental em localizar, selecionar, capturar, ingerir e
digerir esses organismos e/ou ser resultante da competição intraespecífica e/ou interespecífica pelo alimento
ao longo da distribuição da espécie.
Trichiurus lepturus selecionou peixes com porte
em torno de 7 a 10cm, dimensões de presas também
registradas em outras regiões (ver em Martins et al.,
2005). A seleção do porte pode estar associada ao cres-
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cimento somático, reprodução, desova e a maior habilidade de locomoção e desenvolvimento morfológico
dos adultos de T. lepturus. Martins et al. (2005) relatam que a maior fonte de energia para essa espécie no
sul do Brasil são presas pelágicas de pequeno porte,
embora presas grandes também façam parte da sua alimentação, sendo este padrão o mesmo registrado para
a região estudada.
No norte do Rio de Janeiro verificou-se o comportamento de canibalismo, fato já reportado na literatura
(Barreiros et al., 2003; Martins et al., 2005; Chiou et
al., 2006). A presença de co-específicos partidos em
até três pedaços de tamanhos similares foi registrada
nos estômagos dos indivíduos analisados. Em alguns
casos, os tamanhos corporais dos co-específicos registrados como presas foram semelhantes ao do predador.
A partição da presa em três pedaços pode ser um comportamento natural da espécie, e já foi registrado por
Martins et al. (2005) que descreveram a alta voracidade
de T. lepturus durante o canibalismo: antes de cortar
as partes do corpo da presa através de mordidas para
facilitar sua ingestão, o indivíduo utiliza suas maxilas
para arrancar a cabeça do co-específico a ser consumido. Esse comportamento pode estar associado a morfologia corporal da espécie, principalmente do aparato bucal, facilitando a ingestão de presas de tamanhos
variados, incluindo co-específicos de mesmo tamanho
(Martins et al., 2005).
O comportamento de canibalismo é comum em
peixes e alguns dos fatores que podem estar relacionados
com a sua ocorrência se referem a: densidade populacional e diferenças de tamanho entre os co-específicos
(Claessen e Roos, 2000; Dou et al., 2000; Atencio-Garcia
e Zaniboni-Filho, 2006; Fessehaye et al., 2006), disponibilidade de alimento (Dou et al., 2000; Atencio-Garcia e
Zaniboni-Filho, 2006) e características comportamentais
(Fessehaye et al., 2006). Dou et al. (2000) descrevem que
o canibalismo pode ser vantajoso para alguns indivíduos
da espécie canibal, inclusive com benefícios nutricionais.
Além disso, pode favorecer a redução da competição por
espaço, alimento e parceiros sexuais.
Chiou et al. (2006) verificaram que o canibalismo
em T. lepturus é acentuado quando há maior abundância
de indivíduos na população ou escassez de presas. No sul
Hábito alimentar do peixe-espada no norte do Rio de Janeiro
do Brasil, Martins et al. (2005) relatam que o canibalismo
é importante principalmente para os indivíduos adultos,
podendo ocorrer devido a elevada abundância de presas
co-específicas, comportamento gregário da espécie durante a alimentação e diminuição da produtividade biológica no ecossistema marinho daquela região nos meses
de verão e outono. No norte do Rio de Janeiro, a escassez
de presas parece não ser o fator que esteja conduzindo
a espécie ao canibalismo (Di Beneditto et al, 1998; Di
Beneditto, 2000; Di Beneditto et al., 2001) devido a alta
produtividade biológica associada à desembocadura do
Rio Paraíba do Sul. No entanto, os demais fatores não
podem ser desconsiderados como explicativos para tal
comportamento na região.
Apesar da predominância da piscivoria, os crustáceos peneídeos apresentaram relevância como item
alimentar. A importância de crustáceos na dieta de T.
lepturus já foi reportada para outras regiões (Martins
et al., 2005; Chiou et al., 2006). A espécie P. muelleri,
uma das presas preferenciais de T. lepturus na área de
estudo, distribui-se desde áreas rasas até cerca de 600
metros de profundidade, em todo o Oceano Atlântico
Ocidental (Costa et al., 2003), o que pode ser indicativo
de que T. lepturus apresenta movimentação ao longo do
gradiente batimétrico na região.
A espécie T. lepturus apresenta relevância ecológica na região estudada, tendo sido reportada como importante recurso alimentar para os cetáceos (Di Beneditto
et al., 2001) e considerada como predador de topo de
cadeia, consumindo espécies que são importantes como
recursos pesqueiros na região, tais como: a pescadafaneca, Isopisthus parvipinnis; o goete, Cynoscion jamaiscensis; o pargo, Pargus pargus; a pescada-foguete,
Macrodon ancylodon e os camarões barba-ruça, Artemesia longinaris e sete-barbas, Xiphopenaeus kroyeri.
De acordo com os dados do presente estudo, T. lepturus
pode ser considerada como uma das espécies chave na
manutenção da estrutura e do funcionamento da cadeia
trófica marinha do norte do Rio de Janeiro. No entanto,
faz-se necessário a realização de estudos referentes ao
fluxo de matéria e energia entre T. lepturus, suas presas,
seus competidores e predadores, de modo a promover a
elaboração de um modelo bioenergético para a espécie
na região.
89
Agradecimentos
Agradecemos aos pescadores do porto de Atafona
e a técnica de campo Silvana R. Gomes pelo auxílio nas
coletas; a Dra. Ilana R. Zalmon e ao Dr. Leandro R. Monteiro pelo auxílio; a FAPERJ (Proc. E-26/170.670/2004)
pelos recursos financeiros; V.T. Bittar agradecece a Bolsa
de Estudos conferida pela UENF e A.P. Di Beneditto
agradece ao CNPq (Proc. 305160/2006-0) pela concessão de Bolsa de Produtividade em Pesquisa.
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