Discreto mas essencial à vida marinha, o plâncton constitui um dos mais importantes desafios da Investigação oceanográfica. Sem ele, não há vida nos mares.

Atraídos pelo frenesi dos aquários com espécies garridas ou do novo tanque que acolhe enguias eléctricas, os visitantes do Aquário Vasco da Gama, em Algés, entram a galope no mais velho museu de ciência da Grande Lisboa e talvez não valorizem um dos maiores tesouros da colecção. Exposta na Sala do Átrio, perdida entre exemplares de tubarões capturados há mais de um século perto do cabo Espichel, está uma fotografia microscópica. Foi captada em 1896 quando a própria fotografia dava os primeiros passos em Portugal e representa, com impressionante minúcia, uma raridade: plâncton. É a larva de um crustáceo decápode, congelada para a posteridade. Mas tem outra particularidade: foi captada por um rei.

Apaixonado pelo mar e pela investigação oceanográfica, Dom Carlos foi um pioneiro na Europa. Correspondeu-se com o príncipe Alberto do Mónaco com o qual partilhou descobertas e observações. Organizou cruzeiros científicos e procurou, na medida dos conhecimentos da época, realizar experiências controladas sobre variações térmicas no oceano e as correspondentes flutuações de biodiversidade.

O plâncton era então um tema em ebulição, desde que o fisiologista alemão Victor Hensen propusera este conceito, em 1887, para descrever todos os organismos à deriva nas águas do mar. Hensen queria encontrar no oceano uma correspondência com as funções metabólicas dos seres humanos. Propôs por isso que a cadeia alimentar marítima começaria pelos organismos minúsculos, designando-os por “sangue vital do mar”. Criou a sua própria rede de recolha, com uma malha mais apertada (ainda hoje usada), e aplicou o microscópio às suas capturas no mar do Norte. Em 1889, organizou uma grande expedição e ficou fascinado com o admirável mundo novo, quase imperceptível a olho nu, que emergia em cada colheita. Lançou depois um apelo às armas: era necessário alargar o campo de recolha e compreender melhor a importância daquele grupo para a sustentabilidade dos ecossistemas oceânicos. Foi ouvido no Mónaco, por Alberto. E foi ouvido em Cascais, por Dom Carlos. A oceanografia preparava-se para dar um salto de gigante. Nem só os gigantes viviam no mar.

Duas milhas ao largo do Cabo Espichel, perto do local onde Dom Carlos capturou um tubarão-carocho a 1.875 metros de profundidade, a água está hoje verde, fria e repleta de microanimais que mal se conseguem ver. Parecem milhões de cristais de açúcar suspensos na coluna de água ou “fina serradura”, como lhes chamou o naturalista Joseph Banks que integrou a viagem de exploração de James Cook. Alguns mexem-se energicamente, mas, naquela sopa primordial, são incapazes de evitar o gigante que se aproxima.

Uma baleia-sardinheira com dez metros de comprimento avança de boca aberta e, num instante, torna-se evidente como as maiores criaturas dos oceanos dependem tão directamente das mais ínfimas. Chamamos-lhe plâncton por comodidade, mas a maioria destes organismos pertence ao grupo dos copépodes. Nestas águas, formam nuvens com dezenas de metros de extensão e constituem a base da dieta das grandes baleias e de muitos outros animais.

A baleia fecha a boca e contrai a pele da mandíbula inferior, anteriormente dilatada, expelindo a água através das finas barbas de quitina. No interior da sua boca, ficam retidos milhares de animais. A cada bocada, estes cetáceos filtram milhares de litros de água e uma baleia pode engolir várias toneladas de plâncton num único dia.

Plâncton

Em contraste com a imagem de predador implacável popularizada em filmes de terror e suspense, o tubarão-baleia, o maior peixe do planeta, pode ingerir pequenos peixes e moluscos, mas alimenta-se principalmente de plâncton.

Ontem como hoje, o estudo do plâncton exige paciência, meios técnicos, conhecimento minucioso e dedicação. Henrique Queiroga, investigador do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro, gosta de lembrar que, após a descoberta luminosa deste grupo de criaturas na transição do século XIX para o século XX, o passo seguinte da investigação foi lento, pois estava dependente de inovações tecnológicas.

“Por exemplo, sobre os componentes mais pequenos do plâncton (bactérias, arqueias e vírus), embora se conheçam há muito, só há pouco mais de 30 anos se começou a compreender a sua função ecológica”, diz Queiroga. “São os principais recicladores de matéria orgânica no mar, envolvidos num ciclo microbiano que vamos conhecendo com mais pormenor.” O tempo dos entusiastas amadores já está distante. Actualmente, é necessário usar microscópios electrónicos para revelar sujeitos inferiores a 0,2 micrómetros – o femtoplâncton. Um pouco maiores, as bactérias com dimensões entre 0,2 e 2μm também requerem equipamento da mesma categoria, mas já são englobadas no picoplâncton. Existe ainda o nanoplâncton, com 2 a 20μm e o microplâncton com 20 a 200μm. Estes últimos só podem ser observados com um microscópio óptico. Espreite o ponto no final desta frase: os organismos descritos nestas categorias são mais de mil a dez mil vezes menores.

A olho nu é possível distinguir o mesoplâncton, com 0,2mm a 2mm. A escala seguinte, com 2mm a 2cm, corresponde ao macroplâncton e os restantes seres marinhos deste grupo com mais de 2 centímetros pertencem ao megaplâncton. É como se existisse um gigantesco condomínio nas profundezas do qual só temos conhecimento pela detecção irregular dos vizinhos mais corpulentos.

“Nem todo o zooplâncton, porém, vive submerso na água”, lembra ainda Henrique Queiroga. Há espécies de copépodes que vivem poucos milímetros abaixo da superfície e outras, como as caravelas portuguesas, passam a sua existência no limiar entre o ar e a água, “indecisos” sobre qual o ambiente que lhes é mais propício. “A esta classe de organismos damos o nome de nêuston.”

Se o plâncton constitui uma megalópolis submarina, Antonina dos Santos funciona como um maravilhoso arquivo de identificação. À mesa desta investigadora do IPMA e do CIIMAR, chega com frequência correspondência dos quatro cantos do mundo. Antonina especializou-se numa disciplina tão rara como minuciosa: é planctologista, com particular afeição pelos crustáceos.

IPMA

Num dos laboratórios do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, as biólogas Antonina Santos (à esquerda) e Lígia Sousa revêem os pormenores da ilustração da fase intermédia de uma larva de camarão. O plâncton está ainda numa fase de investigação precoce e todos os anos são descritas novas espécies.

Nesta área científica onde continuam a identificar-se todos os anos dezenas de novas espécies, é igualmente importante compreender as fases intermédias de cada organismo. Um camarão, que conhecemos bem na sua fase derradeira a caminho do prato, eclode num ovo e assume morfologias distintas até se tornar adulto. “Para muitas espécies, não se conhecem sequer os estádios intermédios, o seu aspecto, como se deslocam, ou como evoluem”, diz a investigadora. E esse é um quebra-cabeças difícil porque implica procurar peças sem se conhecer a imagem final do puzzle.

Antonina dos Santos gosta de evocar um dos petiscos gastronómicos portugueses, o “cavaquinho”, como exemplo máximo da morfologia mutante das espécies de plâncton. Este parente das lagostas assume até à sua fase juvenil 15 fases oceânicas, com configurações muito diferentes. Sem as conhecer, é difícil entender as dinâmicas populacionais, a sua distribuição e a dispersão, sobretudo porque pode percorrer grandes distâncias ao longo do tempo de vida. Um episódio de contaminação, um ciclo de sobre exploração do recurso ou uma alteração de habitat podem condicionar o ciclo de vida de uma espécie e das que dela dependem. Não é muito diferente de retirar aleatoriamente três ou quatro fósforos de uma construção com vários milhares de unidades e esperar que a estabilidade do mesmo não seja afectada.

A gestão de um stock de camarões com valor comercial requer por isso conhecimento de todo o ciclo de vida. “Um camarão adulto com 600 ovos pode ter uma taxa de sucesso da sua descendência muito baixa e as larvas ocupam território distinto dos adultos”, diz Antonina dos Santos. “Se souber por onde andam, em fases diferentes da sua vida, a indústria estará mais apetrechada para gerir este recurso.”

Por outro lado, várias espécies de lagostas ascendem verticalmente para desovar, subindo e descendo no elevador oceânico. Embora permaneçam grande parte da vida em profundidades regulares, libertam a prole nas correntes oceânicas depois de se deslocarem centenas de metros para zonas mais baixas da costa. As suas larvas, carnívoras e oportunistas, alimentam-se numa fase inicial de zooplâncton, que por sua vez se alimenta de fitoplâncton. Para isso, sobem quase até ao piso 0, perto da superfície. Ultrapassada a fase larvar, os juvenis e os adultos pós-desova regressam às zonas mais frias e escuras do fundo do mar, como num bailado em vários compassos.

Nos últimos anos, um estudo de investigadores da Universidade de Aveiro sobre a dispersão de mexilhões revelou que também muitos bivalves da costa de Cascais nascem, na realidade, nas águas da Arrábida. Após eclodirem com 0,2mm, as larvas de mexilhão são transportadas por correntes ao longo de dezenas de quilómetros até se fixarem no cabo Raso. O mesmo se passa com muitos outros bivalves, percebes, embora o senso comum pudesse ser levado a pensar que nunca sairiam do local onde são avistados em estado adulto.

Plâncton

Os animais gelatinosos são recursos alimentares fundamentais para animais como o peixe-lua e várias espécies de tartarugas. Apesar de a medusa do Tejo (Catustylus tagi) ser abundante, foi só em 2020, na sequência de um estudo de laboratório, que ficou documentado todo o ciclo de vida da espécie.

Este trabalho detectivesco foi desenvolvido com uma ferramenta invulgar: a impressão digital elementar. Baseia-se na análise química dos constituintes da concha dos bivalves para aferir os seus movimentos, na medida em que a água do mar tem características químicas diferentes de local para local. A concha de um bivalve é formada maioritariamente por carbonato de cálcio, mas retém outros elementos que variam de zona para zona. Para um conjunto de mexilhões adultos de um dado local, é possível, a partir da constituição química da área da concha formada na fase larvar, determinar, com um certo grau de probabilidade, em que região da costa nasceram.

Este trabalho tem implicações até para a definição do estatuto de protecção a aplicar nas áreas marinhas protegidas. Percebendo padrões e distâncias de dispersão, é possível corrigir a rede de áreas protegidas e assegurar maior probabilidade de sobrevivência das diferentes espécies ao longo do ciclo de vida. Como os investigadores lembram numa das publicações, a saga do mexilhão da Arrábida recorda que, “para viajar, basta existir”.

Ao largo de Cascais, a 30 metros de profundidade, existe um local que tem vindo a ser estudado nos últimos 17 anos. Conhecida por “Cascais Watch”, a estação integra a rede de pontos de monitorização de zooplâncton do Conselho Internacional para a Exploração dos Mares (ICES). A “Cascais Watch” está sob influência de um sistema de afloramento de nutrientes responsável pela produção de fitoplâncton e que promove uma abundância estável de zooplâncton ao longo do ano. As amostras são colhidas mensalmente, de 30m de profundidade até à superfície, com redes finas, a bordo de um navio de investigação. À popa da embarcação, Antonina dos Santos recolhe as amostras e estabiliza as microcriaturas. Só em laboratório e com lupas binoculares conseguirá identificar o que veio à rede.

Plâncton

Fotomicrografia de larva de crustáceo decápode, Lagoa de Albufeira, 2 de Novembro de 1896.

Em década e meia de monitorização, verificam-se alterações da composição do zooplâncton, nomeadamente a substituição de alguns géneros dominantes de copépodes, por outras espécies menos abundantes até há pouco tempo. Detectou-se também o aumento das larvas de bivalves (acima dos 25%), como a invasora amêijoa-japonesa. Em muitos aspectos, a saúde do plâncton funciona como o canário no fundo das minas: é um indicador da urgência de uma ameaça.

“Estes resultados correspondem a um indicador preocupante sobre o zooplâncton”, diz a investigadora. “Os copépodes, principal alimento de muitos peixes e crustáceos, parecem estar a ser substituídos por outras espécies, com consequências desconhecidas para a manutenção dos recursos marinhos e estuarinos.” A diminuição de copépodes acompanha aliás tendências já descritas na estação de Vigo, em Espanha.

Mais a norte, ao largo da Berlenga, a caminho dos ilhéus Farilhões, encontra-se a estação de amostragem “Berlenga Watch”. Sónia Cotrim, investigadora do MARE – Politécnico de Leiria, assegura a monitorização neste local. “Num mês, podemos contar trinta espécies diferentes sem predominância de nenhuma. No mês seguinte, a configuração de espécies pode ser diferente da amostragem anterior e assim sucessivamente.” Também são realizadas amostragens quinzenais mais perto da costa de Peniche, onde a diversidade de espécies é menor.

Além de um infindável número de crustáceos, animais gelatinosos, poliquetas, equinodermes, moluscos, entre outros, existem ainda larvas de peixe, que no seu estado inicial com barbatanas reduzidas e fraca mobilidade, ou ainda em ovos, navegam ao sabor de correntes, ventos e marés.

Num passeio à beira-mar, é provável que o leitor já tenha tido oportunidade de colaborar numa das mais curiosas iniciativas de ciência-cidadã em praias portuguesas do continente, da Madeira ou dos Açores. A premissa do Programa GelAvista, lançado por duas investigadoras do IPMA, requer apenas um smartphone e atenção. Mais de 1.930 observadores já partilharam 12.500 registos fotográficos de “organismos gelatinosos”, como lhe chama o programa. Para Antonina dos Santos, a multiplicação dos olhos disponíveis para a observação produziu resultados notáveis. “Detectaram-se caravelas-portuguesas em locais inesperados. Outro observador fotografou o ctenóforo Pleurobrachia pileus, que pensei não ser possível encontrar com facilidade. E até o raro ctenóforo Cestum veneris foi monitorizado em Sesimbra. Temos registos em todo o país, incluindo nas ilhas Desertas e Selvagens.”

Esta disponibilidade de dados muda a percepção. Os números revelam densidades, abundâncias, distribuições e épocas do ano mais favoráveis. Como em todas as áreas científicas, quanto mais estreita a malha da rede, mais se capta.