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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Coronavírus: casos de cepa recombinante XQ no Rio Grande do Sul. E agora?

Josué Damacena/IOC/Fiocruz
Imagem: Josué Damacena/IOC/Fiocruz

Colunista do UOL

02/06/2022 15h42

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Cientistas da Fiocruz, que vêm realizando um constante trabalho de vigilância genômica nesta pandemia, sempre de olho em qualquer coisa diferente no vírus causador da covid-19, acabam de anunciar que encontraram 25 casos da cepa recombinante XQ no Rio Grande do Sul. Ela mistura pedaços do genoma de duas linhagens da variante ômicron, BA.1 e BA.2.

A mesma cepa recombinante, cá entre nós, já tinha sido flagrada em uma única amostra de Santa Catarina, em outra de São Paulo e em mais uma de Minas Gerais também. Mas, até então, eram casos absolutamente isolados, que não chamaram tanta atenção porque aparentemente não foram adiante.

Já no Rio Grande do Sul, o que acontece é um pouco diferente. Primeiro, pela quantidade, embora ela ainda seja pequena — ora, são 25 casos. Segundo, eles não foram localizados no mesmo canto, mas em municípios diferentes. Terceiro, há um crescimento de detecções de XQ por lá ao longo do tempo, embora não se note um salto avassalador.

Em março, foram dois casos detectados, representando 0,3% dos 324 genomas sequenciados vindos de amostras gaúchas. Em abril, foram oito casos e eles já correspondiam a 8% dos 98 sequenciamentos feitos então. Em maio, a proporção pelo menos praticamente se manteve: 15 deteccões, sinal de era XQ em 7% dos 109 sequenciamento feitos.

"Ainda assim, é um crescimento discreto", reforça a virologista Paola Resende, pesquisadora do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do IOC (Instituto Oswaldo Cruz) da Fiocruz, no Rio de Janeiro, que podemos entender como uma espécie de central de todo o trabalho de vigilância que está sendo realizado. Afinal, esse laboratório é referência no vírus da covid-19 nas Américas junto à OMS (Organização Mundial da Saúde).

Mas é bom dizer que a detecção da cepa recombinante XQ no Rio Grande do Sul também envolveu pesquisadores do Centro Estadual de Vigilância em Saúde da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, do Lacen-RS (Laboratório Central de Saúde Pública do Rio Grande do Sul) e da Universidade Feevale, na cidade gaúcha de Novo Hamburgo, a qual integra a Rede Corona-Ômica BR-MCTI, ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.

Para demonstrar como crescimento de XQ é suave perto de solavancos observados antes na pandemia, Paola Resende compara: "O que acontece não é nada perto do que já vimos. Entre janeiro e fevereiro, a linhagem BA.1 de ômicron era dominante entre nós, brasileiros. Já em março, com a entrada forte de BA.2, o que notamos foi praticamente uma troca de porcentagens". Ou seja, BA.2 praticamente empurrou BA.1 para fora de campo no nosso território.

A XQ de agora — que também foi achada em outros lugares do mundo, em especial no Reino Unido — é uma combinação das duas. E o curioso é que os cientistas brasileiros nem estavam de olho nela quando foram esmiuçar com um olhar ainda mais vivo as amostras do Rio Grande do Sul.

Na verdade, no princípio, o trabalho de vigilância genômica foi intensificado em fevereiro porque o Lacen-RS tinha encontrado um caso de outra cepa recombinante, a XS, mistura de delta e ômicron que popularmente ficou famosa como "deltracon". Só que, sem querer, esse monitoramento acentuado atrás de XS — cepa que, aliás, nem foi muito além — levou todo mundo a perceber a transmissão crescente de XQ.

Como surgem cepas recombinantes

Sem pânico, mas também sem fazer pouco caso da situação. A recombinação, para começo de conversa, é um fenômeno bastante comum no universo da virologia, principalmente quando se trata de um vírus de RNA, como o Sars-CoV-2 que não nos dá um sossego.

"Ela ocorre quando temos co-circulação, isto é, dois vírus circulando ao mesmo tempo na população", explica Paola. "Aí, a chance de alguém ser infectado pelas duas cepas ao mesmo tempo passa a ser bem maior."

Agora, pense em uma célula do seu corpo e dois vírus entrando nela na mesmíssima fração de segundo. Sim, pode acontecer. "A membrana celular tem milhares de receptores servindo de porta de entrada. E os vírus são minúsculos, isto é, a célula perto deles é gigante", descreve a virologista.

Ou seja, nem imagine uma disputa ou um empurra-empurra viral para entrar. Há espaço para todos, desde que entrem simultaneamente. E, uma vez lá dentro, os dois vírus irão se replicar. Nessa hora, como em uma brincadeira com blocos de construção — que seriam os pedaços do genoma — , talvez sejam formados vírus com uma peça de um e outra de outro.

O resultado dessas trocas nem sempre faz sucesso. "Nessa mistura, podem surgir vírus que não são viáveis, quero dizer, que não conseguem infectar as nossas células", ensina Paola.

Mas, sim, às vezes dá certo, como é o caso de XQ. E, aí, a cepa recombinante vai em frente. O importante é monitorá-la para ver o quanto é capaz pra valer de ir adiante.

Na pandemia, lembra a pesquisadora da Fiocruz, cepas recombinantes são muito mais prováveis quando existe um período de transição de uma variante dominante para outra — ou, como estamos vendo, de uma subvariante de ômicron para outra. Por exemplo, ocorreram algumas recombinações quando delta passou o bastão para ômicron.

Aliás, o que colocamos sob o rótulo de "deltacron" é na realidade uma sopa com diversas letras: "A mistura de ômicron e delta deu nas cepas recombinantes XF, XD e XS, sendo esta última aquela que esperávamos ver nas amostras do Rio Grande do Sul", conta Paola. "Cada uma dessas três tem um pedacinho de tamanho diferente de delta e de ômicron."

Segundo a virologista, embora ambas ainda sejam ômicron, BA.1 e BA.2 têm características distintas. "A BA.2 possui ainda mais de facilidade de transmissão", exemplifica. Juntas pelas ruas do mundo — convivência inevitável, em especial no momento em que BA.2 chegava e, por essa facilidade para ser passada de uma pessoa para a outra, deixava BA.1 para trás —, a dupla já se recombinou em algumas novas cepas.

"Temos 'x' que não acabam mais", brinca Paola. "Existem a cepa recombinante XE, a XR, a XL, a XM, a XG, a XH... E, claro, temos a XQ, por causa da qual estamos de sentinela neste momento."

Pergunto se, em tese, uma cepa recombinante de duas linhagens da mesmíssima variante — neste caso, ômicron — não poderia ser menos alarmante do que a mistura de variantes diferentes, como tínhamos nas cepas "deltacron'. Será?

"Não é bem assim que funciona", me corrige a cientista. "Ainda que seja uma combinação exclusivamente de linhagens de ômicron, precisamos sempre nos lembrar que ela já é uma variante de preocupação. E, na dinâmica de um vírus, ainda mais como o Sars-CoV-2, pode acontecer de tudo."

Portanto, uma recombinação feito a XQ é capaz sumir de maneira rápida, se não tiver o que os cientistas chamam literalmente de fitness para replicar demais ao lado da variante do Sars-CoV-2 que está predominante na fase atual — a BA.2, antes que provem o contrário. Mas é possível que siga. "Uma cepa recombinante pode ganhar características que seriam como um aprimoramento, uma vantagem competitiva. Por isso é tão importante o trabalho de monitoramento, que diante da aparição XQ no Sul se intensifica."

Na próxima semana, aliás, a Fiocruz deverá divulgar um novo boletim com os dados das amostras de junho e, aí sim, teremos maior noção do destino da XQ — se está recuando, se continua na mesma ou avançando.

As pessoas que apresentaram a XQ

Paola Resende conta que os indivíduos que estavam infectados pela XQ no Rio Grande do Sul não apresentaram quadros mais graves do que os causados por outras cepas de ômicron — ufa! "Mas precisamos considerar que a maioria estava vacinada", ressalta.

O fato é que, com a enorme circulação de ômicron, dificilmente vamos evitar o surgimento de cepas recombinantes — seria esperar tapar o sol com peneira. Mas podemos evitar que essas cepas nos causem maiores ameaças em relação àquelas que já enfrentamos.

"Para isso, a primeira medida é não hesitar em tomar a vacina, incluindo as doses programadas de reforço, que evitam casos graves e mortes", frisa Paola Resende.

Na opinião da pesquisadora, não há qualquer motivo na fase atual da pandemia para as pessoas deixarem de exercer suas atividades normais. "Mas que a gente faça isso com consciência, sem precisar de qualquer forma de decreto ordenando o uso de máscaras em locais onde circulem muitas pessoas, como no transporte público."

O uso de máscaras e o álcool em gel ainda evitam muita infecção — que, às vezes, é por duas ou mais cepas em um descuido só, as quais, dentro de você, podem sempre se recombinar, abalando a calma que conquistamos com as vacinas.