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O JUDEU

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O <strong>JUDEU</strong>CAMILO CASTELO BRANCOEsta obra respeita as regrasdo Novo Acordo Ortográfico


A presente obra encontra-se sob domínio público ao abrigo do art.º 31 doCódigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos após a morte doautor) e é distribuída de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita,o benefício da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo asua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquercircunstância. Foi a generosidade que motivou a sua distribuição e, sob omesmo princípio, é livre para a difundir.Para encontrar outras obras de domínio público em formato digital, visite-nosem: http://luso-livros.net/


Isto é grave, porque é atroz ...A. HERCULANODa Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Prólogo


À Memória deAntónio José da Silva,Escritor português assassinado nas fogueiras do Santo Ofício em Lisboa, aos19 de Outubro de 1739


PARTE PRIMEIRA


CAPÍTULO IHá um fenómeno moral, muitas vezes repetido, e todavia inexplicável: é aesquivança desamorosa de mãe a um filho excluído da ternura com queestremece os outros, filhos todos do mesmo abençoado amor e do mesmo paique ela, em todo o tempo, amara com igual veemência. Tristíssima verdade,exemplificada como o principal dos absurdos e lamentáveis enigmas dacondição humana! Mistério é este vedado às dilucidações filosóficas; e,portanto, mais defeso ainda às superficiais averiguações de um romancista,que, muito pela rama apenas e imperfeitamente, pode desenhar o exterior dosfactos, abstendo-se de esmerilhar causas incógnitas ao comum dos homens.Exemplo desta aberração — se devemos chamar aberrações às deformidadesmorais que não dependem da vontade humana — era uma nobilíssima fidalga,que, em 1699, residia no seu palácio da Rua Larga da Bemposta, em Lisboa.Chamava-se esta dama D. Francisca Pereira Teles, e era esposa de Plácido deCastanheda de Moura, contador-mor dos contos do reino, e filha dooctogenário Luís Pereira de Barros, comendador de S. João do Pinheiro,morgado da Bemposta, chamado também o contador-mor, por haverexercitado aquele importante cargo, que renunciara no seu genro.Teria quarenta e dois anos, D. Francisca. Era mãe de três galhardos rapazes. Oprimeiro, chamado Garcia, amava ela em extremo; o segundo, que era Jorge,


desestimava com entranhado desafeto; o terceiro, chamado Filipe, não seestremava do amor ao primeiro.Que havia de estranho e desamável em Jorge para exceção assim odiosa?Qualidades justamente dignas de sentimento inverso. Na infância distinguirasedos irmãos pela quietação e meiguice. Na juventude avantajava-se-lhes emaplicação e engenho na cultura do espírito, já mancebo, se não era isento deculpas, seus irmãos excediam-no em crimes.Porque não amava, pois, D. Francisca, de preferência, o filho Jorge, se osoutros, sobre serem ineptos, lhe estavam dando grandíssimos desgostos emcada dia?E mais triste coisa ainda: o pai compartia da indiferença, senão desafeto, damulher àquele filho! Às estouvices de Jorge aplicava a severa correção dovício; à libertinagem de Garcia e Filipe chamava “verduras da juventude”.Jorge, porém, tinha um amigo na família, amigo que a Providência lhe dera noseu avô Luís Pereira de Barros, pai da sua mãe. Afeiçoara-se o velho àmansidão do neto infantil; vira-o crescer nos seus braços com brandurasameigadoras, como se a criança previsse o futuro desamor dos pais, e estivessede contínuo a granjear a amizade do avô. Aumentava a ternura do velho àmedida que o desprezo da mãe recrudescia.O menino, refugindo aos maus tratos dos pais, acolhia-se aos joelhos doancião, que, trémulo de cólera, se erguia a exprobrar as ruins entranhas da


filha. Isto, em vez de melhorar a posição de Jorge, agravava o quase ódio deD. Francisca, porque saíam logo a conjurar contra o jovem a emulação deGarcia e Filipe, emulação fundada num tesouro, que o seu avô tinhaescondido em lugar ignorado, tesouro de que, diziam eles, Jorge esperava serherdeiro.A existência de um cofre recheado de moedas de ouro antigas e pedras de altovalor, trazidas das índias e Brasil por pais e avós do contador-mor, não eraimaginária, nem fabulada pelo velho, em razão de se lhe irem as faculdadesmorais desfalcando e deperecendo.Passara assim o caso:Luís Pereira de Barros, contador-mor dos contos do reino, assistiu com outrosfidalgos do paço ao jantar de Afonso VI, no dia 23 de Novembro de 1667.Concluído o jantar, el-rei retirou-se à sua câmara, e Luís Pereira ao seu quarto.Ao fim da tarde, entraram no paço violentamente João da Silva, tenentegeneral,e o marquês de Marialva, à frente de alguns oficiais. Foram emdireitura aos aposentos do rei, cujas portas fecharam por fora com chaves quelevavam.


Espertou o contador-mor ao insólito ruído que ia no paço, e correu aosquartos do rei. Um capitão de cavalos meteu-lhe uma espada à cara, e disselhe:“Recue, senão espeta-se!“Estacou Luís Pereira, e ouviu o bradar do rei, que batia à porta do vestíbulocom a coronha de um bacamarte carregado com vinte e quatro balas. O criadoleal do monarca atraiçoado e preso era tão afeto a Afonso VI, quantovaloroso. Quis remeter contra o vestíbulo, foi ferido na face, e ali expediria aalma, se o marquês de Marialva lhe não acudisse, exclamando:— Primo Luís, não vertas o teu sangue inutilmente! Afonso está presopara nunca mais ser livre. Se te faz engulho a honra do país, vai-te embora,antes que o povo amotinado te leve no esquife ou nas alabardas.De feito, Afonso VI começara naquele momento a sua agonia de dezasseisanos por trevas de cárceres.Luís Pereira de Barros saiu do paço escoltado por alguns oficiais enviadospelo Marialva, e entrou nas suas casas da Bemposta, no intento de sair doreino.A tormenta do povo começava a rugir não longe da Bemposta. O contadormortemeu-se de ser atacado, roubado e morto na sua casa. Abriu os seuscontadores, e lançou num cofre as riquezas mais graúdas. Desceu às lojas dopalácio, e escondeu-se no desvão de uma velha cavalariça, sobraçando o cofre,e a filha, que teria então treze anos. A onda popular esbravejou à porta do


palácio; mas um brado sobrelevou à grita, clamando que os amigos do infantederam escolta protetora ao contador-mor.Desandou a mole da plebe contra as casas de Henrique Henriques deMiranda, privado do rei preso; e Luís Pereira, assim que o rumor cessou, pornoite alta, saiu da escuridade das lojas, e passou algumas horas velando orepouso da filha, que já não tinha mãe.Ao romper da manhã, acompanhado de um escudeiro muito seu privado,desceu ao jardim com o cofre, e tomou por senda arborizada até sumir-se nomais afogado de um bosque, onde, no centro de um tanque seco, estava umatosca estátua de Neptuno. Arreou-a do soco onde assentava, e destapou umquadrado de pedra, em forma de caixa, onde, noutro tempo, a água represavapara dali repuxar à boca da estátua. Depôs nesta caixa o cofre precioso,ajustou sobre ela a base da estátua, cobriu as junturas com terra tirada à mãode um lameiro húmido, cobriu esta camada com outra de terra seca, e retirousepela vereda mais furtiva.Ao entardecer deste dia, despediu alguns servos, e com a filha e poucoscriados passou ao Alentejo, e jornadeou toda a noite. Ao abrir da manhã,chegou a uma das suas quintas, e tratou em fechar a ferida da face.Aqui se deteve quatro anos, sem curar de saber se os cargos e regalias lhetinham sido tirados pelo infante, governador do reino; até que, um dia, omarquês de Marialva lhe mandou perguntar se vinha exercer as funções de


contador-mor, no qual encargo fora provisoriamente nomeada pessoa que nãoconvinha ao serviço, nem, convindo, seria efetiva nele, enquanto o primo LuísPereira de Barros não se exonerasse.Era tempo de casar Francisca. Plácido de Castanheda de Moura, alcaide-morde Basto, comendador de S. Salvador de Sarrazes e S. Paio de Oliveira deFrades, a tinha pedido. O contador cedeu-lhe a filha, e o cargo, mediante oconsenso do infante. Voltou a família para Lisboa, e para o palácio daBemposta; mas o tesouro não foi exumado do seu esconderijo, nem LuísPereira declarou à filha ou genro onde ele estava.— Não tendes precisão do dinheiro nem das pedras, que lá estão — diziaele. — de um momento para outro, espero rebeliões e tumultos, porque opobre Afonso sexto tem amigos, e a Divina Providência não pode verimpassivelmente a perversidade com que lhe roubaram o trono, a mulher e aliberdade. Quando romperem os tumultos, romperão as joldas de salteadores,e então nos será preciso esconder o precioso. Deixá-lo estar, que o não roemas toupeiras. Quando eu vir o céu sereno, e a paz consolidada, então ireibuscá-lo. E, se eu morrer de repente, já sabeis que trago neste dedo um anel,em cujo interior do aro encontrareis decifrado o enigma, sem recorrerdes aolivrinho de São Cipriano, nem às revelações das mouras encantadas oudesencantadas nos orvalhos de São João.


A cobiça de D. Francisca e do marido, e os ardentes desejos de Garcia eFilipe, grandes dissipadores, respeitavam o segredo do ancião, e não ousavamesquadrinhar nos pardieiros e subterrâneos da parte velha do palácio a lura docobiçado tesouro.Eis a razão dos ciúmes da mãe e irmãos, quando viam Jorge mais querido doavô, e mais recolhido com ele em secretas conversas.Desde certo tempo, Luís Pereira, como desconfiando talvez que osperdulários sobrinhos se atrevessem, estando ele adormecido, a tirar-lhe o aneldo dedo, quis, sem motivar o acto, que Jorge dormisse no quarto dele. Estainovação mais assanhou a mãe; todavia, o prudente marido observou-lhe quese houvesse de modo que não azedasse a ira do pai, sob pena e risco dealguma hora o velho dar o segredo, o cofre e rica independência a Jorge.Ansiosamente espiava D. Francisca modos de contraminar o afeto do velho.Deparou-se-lhe um, que a Providência dos inocentes lhe inutilizou.


CAPÍTULO IIEstava em casa destes fidalgos uma criada de vinte anos de idade, bela, órfã depai e mãe, que ambos tinham sido queimados, como judeus, no auto-de-fé de1685. O compassivo Luís Pereira tirara das presas da miséria aquela menina decinco para seis anos, e deu-lhe, no batismo, nome de Maria, para lhe tirar damemória o nome Sara; e assim, com o tempo, a lavar de toda a suspeita dehebraísmo. A triste criança recordava-se dos mimos da sua casa e carinhos dospais, um ano depois que fora arrancada aos peitos estreitados de ambos.Depois, nunca mais os vira; e, somente aos dez anos, soubera o horrendosuplício que sofreram. Julgava-os presos, desterrados, mas não pulverizados afogo, e confundidas suas cinzas no lodo do Campo da Lã.Aos dez anos, Sara ainda se lembrava do rosto da sua mãe. Quando queria, apedido do seus amos, compará-la, dizia: “Quando me olho ao espelho, pensoque a vejo a ela.“Ora, Sara ou Maria muitas vezes ouviu D. Francisca exclamar ao contemplála:— Muito finda és, menina! se a tua mãe assim foi, que pena ser ela judia!Que bela criatura comeu o fogo!... Oxalá, ao menos, que ela se convertesse àúltima hora! Assim, pode ser que as tuas rezas lhe aliviem as penas dopurgatório.


— E ela há de estar ainda penando no purgatório?! — perguntava Mariaaos quinze anos, com mais juízo que inocência.— Pois então!, se ela não conhecia o verdadeiro Deus! — emendava D.Francisca.— Se O não conhecia, para castigo bastou queimarem-na neste mundo.No outro mundo conhece ela o verdadeiro Deus, e adora-o, como decertohavia de adorá-lo cá, se O conhecesse.O castigo do fogo, na outra vida já não lhe aproveita lá... parece-me.— Estás a dizer heresias, rapariga! — acudia D. Francisca com severidadepia. — Acho que ainda não entendeste bem o teu catecismo... Ferve-te o mausangue nas veias...Maria não replicava: ia ler o seu catecismo, e pedia ao verdadeiro Deus lhepermitisse que a sua mãe e pai vissem as lágrimas dela, e a levassem para si.Dois filhos do fidalgo tratavam-na com liberdade de amos poucoescrupulosos em respeito à pureza e à dependência; Jorge, porém, da mesmaidade dela, e o seu companheiro de infância, ao tocar nos quinze anos, mudoua facilidade do trato e confiança em cerimoniosa seriedade — mudança queMaria, muito magoada, estranhou. A compostura grave de Jorge e aestranheza contristada de Sara exprimiam o alvorecer de dois sentimentosiluminados por estrela de má sina.


Amavam-se, e tão desde o íntimo à flor da alma, que um dia, ao perpassaremum pelo outro num corredor solitário do palácio, pararam, fitaram-se, e umnos olhos do outro viram-se espelhados nas lágrimas.— Tu choras, Sara! — disse ele.— Não, senhor Jorge... Estou alegre... Pensei que me aborrecia... Gosto deo ouvir chamar-me Sara: pensava eu que vossa Senhoria me desestimavaporque era esse o meu nome, antes de me chamar Maria.— Para mim — volveu ele — serás sempre Sara. Mais te amo, quanto maisodiada te vejo do mundo.— Mais me ama!... — exclamou ela.— Sim...— Oh, meu Deus!... — clamou ela pondo as mãos suplicantes.— Mais te amo, sim... Não vês que também eu sou perseguido?! No peitodo meu avô é que eu tenho coração de pai, mãe e irmãos. Toda a minhafamília me detesta! Que mal faço eu?...— Isso pergunto eu a Deus, senhor Jorge!... — balbuciou ela.— Não temos pai nem mãe, Sara! — disse o jovem. — Os teus eramisraelitas, e amavam-te muito; mas mataram-tos: os meus são cristãos,abominam-me, e dizem que os judeus morrem como devem morrer. Que hei


de eu pensar destas tristezas do mundo? O pensar e ler faz-me um grande malao espírito...Nisto, reteve-se, e disse em sobressalto: — Vai, vai, Sara: ouço as passadas daminha mãe... E fugiram, cada um pela sua porta lateral do corredor. Depoisdeste encontro, repetiram-se uns curtos colóquios ajeitados pelo acaso oufurtivamente diligenciados, bem que as expressões trocadas fossem tãodesmaliciosas e honestas que podiam ser ouvidas por toda a gente, excetuadosos familiares do Santo Oficio. Maria encontrara no coração de Jorge piedadecom os infelizes hebreus; gostava de ouvi-lo carpir a sorte dos que gemiamavexados sob a vigilância dos hipócritas, até que a crueza e ferocidade lhesiluminava com o círio amarelo e com as labaredas o caminho do purgatórioou do irremissível inferno.Quatro anos de melhorada vida e parca satisfação correram entre as duasalmas, que se amavam e acoutavam de todos para se falarem, exceto do velhoLuís de Barros, que não tinha no seio peçonha que vertesse nos singelosgalanteios do seu neto e da mocinha, salva por ele da fome, da prostituição, eDeus sabe se da fogueira.E, entretanto, no ânimo de D. Francisca entrara a suspeita, encarecida pelodesejo que ela tinha de levá-la à prova. Foi grande parte nisto o desdém ealtiveza com que a judia repulsava as liberdades brutais de Garcia e osdesonestos ímpetos de Filipe, chegando a acusá-los à mãe.


— E o senhor Jorge não te incomoda? — replicou a fidalga comdesabrimento.— O senhor Jorge?... — disse Maria, corando.— Ah!, coras?... — acudiu a matreira vitoriosa. — Então sempre é certo!...— Certo o quê, senhora? — tartamudeou Maria.— Não gaguejes, impostora! Eu já o desconfiava... Ora cautela, cautela,que eu sou tão boa como má, quando os ingratos me voltam do invés!Maria, sem acordo da sua situação para rebater as suspeitas, confirmou-as coma mudez. Saiu da presença da fidalga, chorando. Terrível confissão aquela,cujo efeito, ainda o mais desastroso, segundo a lógica da humana maldade,ninguém podia prever.Assim que o lanço se ocasionou, a judia referiu a Jorge o acontecido: o jovemtremeu, ocultou os seus pavores, e foi desafogar-se com o avó, sem contudo,menos respeitoso, lhe confessar quanto amava Sara. A grande e terrível afliçãode Jorge era o medo de vê-la ainda nas garras da suprema Inquisição.Consolou-o o avô, desvanecendo-lhe preocupações horríveis sobre o futuroprocedimento da sua mãe. Dizia-lhe o velho:— Pois não vês que a tua mãe é minha filha? Seria capaz ela da fereza quea tua imaginação concebeu? É verdade que eu me espanto dos sentimentosdesavergonhados desta filha que eduquei religiosamente, sem biocos nem


visagens piedosas; mas sim com o mais depurado espírito das sãs virtudesantigas. Assim a tive até casar, assim a entreguei ao teu pai, que se me figuroumancebo de bom e forte carácter, e creio que o é, salvo na fraqueza com queaplaude todas as vontades da mulher. Isto está mau; mas, meu filho, nãoposso eu já melhorá-lo. Comigo ninguém já conta senão para me beijarem acadavérica mão quando me tirarem este anel! — disse o ancião entre riso echoros. — No entanto, Jorge, a respeito desta rapariga, aconselho-te que nãoa inquietes; primeiro porque é nossa serva, segundo porque é uma pobre, semparentes em Portugal, sem ninguém. se a tua mãe a expulsa de casa, que fará?Perde-se; e, se tu a tomares ao teu encargo, perdida está, Entretém-te com osteus livros; mas lê pouco do Montaigne e Brantôme. Fiz mal em dar-tos.Discutes de mais: tendes às dúvidas luteranas. Bem sei o que é. Começas aodiar a Inquisição: também eu, há muito, a odeio; todavia, resigno-me com aépoca, porque ninguém pode pôr peito de encontro às ideias do seu tempo.Tu ou os teus filhos vereis a revolução dos espíritos e costumes. A Alemanhacá virá, como foi à França, e as demasias da religião há de cauterizá-las o ferrodo soldado, assim como o fogo do frade queima hoje em dia os rebeldes àsoberania dos pontífices.Do discurso do velho facilmente inferimos que ele tinha lido Montaigne, eadivinhado Voltaire, que naquele tempo, teria quatro anos. E, todavia,religioso e santo ancião era aquele! Se pudesse viver mais cinquenta anos,aceitaria cordialmente as reformas do conde de Oeiras; mas, como justo e


humano, odiaria o déspota, o coração duro, que não soube colher frutos semregar a árvore com muito sangue inútil.Ficara o velho, sentado e acurvado na sua poltrona, rodando entre osescamados dedos a sua caixa de tabaco de Espanha, e pensando nosembaraços de coração em que via enleado o seu querido neto, quando D.Francisca aproximou-se dele acariciando-lhe as farripas de alvíssimo cabelo,que lhe caíam nas espáduas.— Jantou muito pouco, meu pai! — disse ela.— É verdade, filha: vai-se-me o apetite; a vida quer ir-se...— Não pense nisso...— Não pensava, não. Quem já adivinha e contempla a aurora do diagrande, não volta os olhos para a noite do dia passado...— Já cá esteve o Jorge, depois de jantar? — perguntou ela, caindo dechofre no ponto.— Saiu agora daqui. Deteve-se D. Francisca sem saber como começar. Opai relanceou-lhe os olhos penetrativos, e abaixou a cara, continuando a rodara caixa de ouro entre os dedos.— Receio — disse ela — que o Jorge nos prepare desgostos grandes.


— Como assim? — perguntou serenamente o velho. — Então que há denovo?— Uma ação indigna de um neto de Luís Pereira de Barros.— Olá... então é coisa de maior!... Conta-me lá isso com ânimodesapaixonado, filha.— O pai está assim com uns ares de gracejo!...— São ares de velho, que tem visto muito mundo, e muita fraqueza. Sãooitenta e quatro anos vividos em épocas muito desgraçadas e revoltas. Ora dizlá, que eu te escuto muito sério.— Eu lhe conto, meu pai. Jorge, se já não é amante da judia, procura sê-lo— disse com azedume fictício D. Francisca, e esperou a indignação do pai,que se ficou impassível. O silêncio de ambos ia-se delongando, quando ovelho disse:— Provas.— As provas é andarem eles conversando a ocultas, e Maria corar quandoeu a interroguei.— Se ela não corasse, provava melhor as tuas suspeitas... Não te parece?!— Corou de medo — acudiu D. Francisca.— Não corou de medo — contradisse o velho.


— Então de que foi? De vergonha?— Não podia envergonhar-se de amar um teu filho. Seria o sangue docoração, que lhe subiu ao rosto a pedir-te misericórdia.— E hei de eu tê-la?— Porque não, se Jesus Cristo a teve com mulheres criminosas?!... Maria éuma daquelas a quem Jesus diria: “Vai em paz, que não pecaste.“— Ora essa!... O pai tem coisas!... — replicou sorrindo contrafeita. — Ediria Jesus Cristo isso mesmo à judia!...— Isso é ignorância, filha. Jesus Cristo nasceu entre judeus, e sobre judeusderramou os tesouros da sua misericórdia, e aos judeus perdoou o deicídioquando se foi ao seio de Abraão.— Parece-me que o pai não faz bem em dizer semelhantes coisas a Jorge!...— Não me repreendas, filha, que eu tenho oitenta e quatro anos.— Eu não o repreendo — volveu Francisca brandamente mas VossaSenhoria bem sabe o que são rapazes que leem os livros dos hereges.— Vamos ao ponto, Francisca, e deixa lá os livros dos hereges... Então quequeres tu?— Que o pai repreenda meu filho, já que ele me não respeita.


— Calúnia, teu filho respeita-te; e, se te não ama, a culpa é tua. Nãorevivamos a questão do teu desamor a este filho. Pejo-me de entrar nela. Bastadizer-te que não tens nem tenho porque censurar Jorge. Aconselhá-lo sim: jáo aconselhei.— E entende o pai que não devo dar mais passo algum?— Entendo.— E quando a desgraça for irremediável?— E quando o céu cair sobre nossas cabeças? Os actos mais inocentes dohomem podem encaminhá-lo à desgraça. Não vejas o péssimo, quando nemsequer te assustam aparências do mau.— De maneira — retorquiu a filha irritada — , de maneira que devocontinuar a ter em casa a judia!...— Deves, em consideração à inocência dela, e à minha vontade, porque fuieu que a fui buscar a casa do pobre atafoneiro que a recolheu.— E Jorge pode fazer o que quiser!...— Não: há de fazer o que o for justo, e o que as circunstâncias lhedisserem que é o melhor.D. Francisca, rubra de despeito e cólera, exclamou:


— O pai perde-me aquele rapaz! O seu apoio é que lhe dá uma sobranceriaorgulhosa nesta casa!— Vai-te, que me estás incomodando — concluiu pacificamente o ancião.Saiu D. Francisca, e foi contar ao marido a conversa com o pai.Plácido de Moura, obtemperando aos frenesis da esposa, disse-lhe:— O teu pai está louco: é a decrepitude. Não faças caso dele, e executa oque te parecer acertado.— Dizes bem — acudiu ela — ; mas o anel?— O anel que tem? Ele não o levará para a sepultura... Nós teremoscuidado.— E se Jorge lho apanha?...— Deixa-te disso. O velho há de morrer insensivelmente sem julgar quemorre. Não o desampares tu, assim que o vires mais enfraquecido. Eu voutratar de obter um governo no ultramar para Jorge. O caso é desviá-lo daqui.— Um governo! E logo um governo! — interrompeu a esposa.— E Garcia? E Filipe? Que carreira começam?— Não querem sair de Lisboa. As mulheres, as freiras de Odivelas, as deChelas, as comendadeiras, enfim, as funçanatas da corte não os deixam tratarda vida. Deixá-los, que estão novos, e têm futuro independente. A nossa casa


está grande, e o tesouro do teu pai, segundo o que lhe ouvi, quando elecalculou os cabedais que o teu avô trouxe da Índia, e a herança do teu tio, quemorreu em Alcácer Quibir, deve orçar por cento e cinquenta mil cruzados emdinheiro e pedras.— Pois então — condescendeu D. Francisca — não te descuides: deixá-loir para o ultramar, e depressa antes que ele pratique alguma indignidade. Mas opior é se o pai nos embarga a ida de Jorge...— Qual? Eu encarrego-me de convencê-lo. Este diálogo fora escutadoinvoluntariamente por Sara. Estava ela numa alcova riçando e anelando acabeleira da sua ama, quando os dois esposos entraram à sala contígua.Susteve-se, indecisa se sairia; mas, desde as primeiras palavras, ficouestupefacta e como chumbada ao pavimento, e sem respiro.Azado a oportunidade, disse pelo alto a Jorge quanto ouvira. O jovem deu-sepressa em avisar o avô. Sorriu-se o velho da ansiedade do neto, e disse-lhe:— Este anel tem feitiço: ele te salvará, rapaz. Enquanto a Maria, se ela fordespedida, nós a salvaremos. És tu homem de bem?— Peça-me provas, meu avô! — acudiu o jovem.— Olha para essa infeliz menina como eu olho. Quando a tentação tedobrar, ergue-te e diz: “O meu avô quer que eu seja homem de bem!“


CAPÍTULO IIIPlácido de Castanheda de Moura, volvidos alguns dias, disse ao sogro:— Trato de arranjar posição a Jorge: é preciso tirá-lo desta vida deestudante, que não vai dar a coisa nenhuma.— Pensas erradamente, Plácido: a vida de estudante vai dar à sabedoria,que é tudo.— Mas não é profissão lucrativa, queria eu dizer. Lembro-me de lhearranjar um governo dos subalternos na Índia ou no Brasil.— Bom começo de vida é; mas seria bom que começasses pelo mais velho— observou Luís de Barros intencionalmente.— Esse tem o morgadio... — acudiu o genro.— Que pode desbaratar — disse o ancião — , se o deixares na liberdade,no ócio e dissipação em que vive.— É rapaz: nós não fomos melhores, meu pai...— O que tu foste, mal o sei; eu de mim, comecei a ser homem de bemdesde os quinze anos... Lembrava-me que requeresses o governo para Filipe,que não tem morgadio.— Filipe tem inteligência muito curta.


— Então já te parece que o estudar serve de alguma coisa... Vens dar-meparte da tua resolução, a respeito de Jorge, ou pedes o meu parecer?— Desejava ouvi-lo...— Deixa estar o rapaz em casa: é-me necessário, criei-o eu nestes braços,quero-lhe muito. Isto não é parecer, é súplica.— Cumpra-se a vontade do pai; porém, Francisca vive desgostosa porcertos amorinhos de Jorge com a judia...— Sempre a judia! — atalhou sorrindo tristemente o ancião. — Danteschamava-se Maria a desventurada criatura; de há tempos para cá, sempre quefalam dela, chamam-lhe, em tom de desprezo, “a judia”!... A tal respeito, já eudisse a Francisca bastante e de mais. Ela que to refira, se ainda o ignoras. Tu ea tua mulher sois maus! — bradou de repente o ancião, erguendo-seconvulsamente sobre os encostos da poltrona. — Sois maus, sois feras paraeste filho, que é um bom rapaz, e para aquela mocinha, que é uma desgraçada!Andai! Andai! Apertai bem a coroa de espinhos sobre as cãs de quem vos deutudo, e reservou para si o amor do neto, que lhe quereis roubar!— O pai é injusto! — exclamou o corrido genro. — Não consente queJorge dê contas das suas ações a quem lhe deu o ser ?!...


— Consinto e quero; mas reservo para mim o direito de vos pedir contas avós, e Deus mas pedirá a mim. Deixai-me na paz que os meus anos e os meustrabalhos carecem.O velho escondeu o rosto entre as mãos, e Plácido de Castanheda foi relatar àesposa a irritação do pai.— Está decidido! — exclamou ela. — Jorge põe-nos o pé na garganta! Edaqui a pouco a judia fará o mesmo...E soltou uma gargalhada, articulando entre os impulsos do maldoso riso:— Havia de ter graça!... Não!... Dela eu me vingarei!... Eu sou filha deDona Maria Teles — prosseguiu ela com disparatada cólera. — Tenho sangueda rainha que fez enforcar a gentalha em frente do paço de a par SãoMartinho. Sou Teles, e basta!— Não te aflijas! — acudiu Plácido. — Não é para tanto o caso, menina...Se alguém te ofendesse, filho ou criada, bastaria a mão do teu marido, ou ascorreias dos teus lacaios para te vingarem!Ao mesmo tempo, Luís Pereira mandava sentar Jorge à sua escrivaninha, edizia-lhe:— Escreve o que eu vou dizer. Olha que vais dar-me prova de homem debem. Escreve.E ditou:


Eminentíssimo e muito reverendo cardeal, arcebispo, primo e senhor meu. O jovem que vosleva esta é vosso parente, e o meu neto, Jorge de Castanheda de Barros. Dai-lhe a vossabênção, e consenti que vos ele beije os pés. Depois fazei-me a mim mercê, como a primo, eamigo vosso desde que vos beijei, quando eu tinha quinze anos, aos peitos da vossa mãe, asenhora condessa D. Leonor de Mendonça, minha muito prezada prima e senhora; mercê,digo, me fareis de mamordes escrever, e rubriqueis ordem ou aviso para que no Convento daMadre de Deus seja recebida como secular, a expensas minhas, uma donzela familiar destavossa casa, que houve nome batismal de Maria Luísa de Jesus, e antes fora Sara deCarvalho, filha de hebreus que morreram no fogo. Deus vos guarde anos dilatados, primo,prelado, cardeal, e senhor meu.Casa, 2 de Novembro de 1699Vosso servo e primoLuís Pereira de BarrosJorge escrevia com os olhos turvos de lágrimas. O avô, atraneto, e disse:— Essas lágrimas não envergonham, filho; e a obediente coragem com queescreveste, sem levar mão do papel, é a tua meritória façanha de homem debem. Ora vai. Os lacaios que tirem fora o meu coche. Irás como teu avó


costumava ir ao paço dos príncipes da Igreja, quando eles não eraminquisidores...O cardeal D. Luís de Sousa acolheu muito benigno o seu parente, cruzou-lhemuitas bênçãos, e mandou que sem demora lhe entregassem o avisosolicitado.Posto em presença do avô o consternado Jorge, com a ordem do arcebispo,chamou Luís de Barros o seu velho escudeiro António Soliz, e ordenou-lheque pedisse à Sra. D. Francisca o favor de vir àquela sala.E a Jorge disse:— Vai, e espera que eu te chame. Entrou a fidalga.— Chamei-te, minha filha — disse o velho — , para te avisar de que Mariavai recolher-se ao Convento da Madre de Deus. Assim acabam teus dissaborese receios.— Então vai para criada de alguma freira? — perguntou ela em tom demenoscabo.— Não vai para criada de freira. Vai como secular.— Quem a sustenta?!— Eu.— O pai?!...


— Sim filha.— Pode fazer o que quiser... — disse com má sombra.— Agradecido à condescendência — redarguiu Luís de Barros, sorrindo.— Tenho ainda a pedir-te que dispenses uma das tuas criadas para ir com elaaté ao convento.— Pois sim...— E com as duas irá o Jorge.— O meu filho?! Não sei se me parece bem um meu filho a acompanharcriadas!— Assim como o teu pai foi ao cardenho do atafoneiro buscar Sara, a filhados judeus queimados, do mesmo modo pode sem desaire ir teu filhoacompanhar ao convento Maria, a cristã.— Bem... Faça-se em tudo a vontade de vossa Senhoria.— Agradecido, filha. Dá ordem para que Maria venha falar-me.D. Francisca transmitiu à serva o recado por uma escrava.Maria, trémula e lacrimosa, entrou à antecâmara do fidalgo. já a triste nova daclausura lhe tinha soado por intermédio de Jorge.


— Vem cá, menina — disse ele. — Salvei-te do infortúnio da orfandade háquinze anos: não pude remediar todas as dores que perseguem a filha sem painem mãe; fiz, porém, o que pude.Entraste nesta casa como criada, e vais sair como senhora. No Convento daMadre de Deus tens uma cela e uma pensão abundante; e na prioresa destacasa acharás uma amiga. Vai com Deus, e prepara-te.Jorge, novamente chamado, escreveu, conforme os dizeres do avô, uma cartaà sua parenta soror Leonarda, prioresa da Madre de Deus. Ao fim da tarde,Maria foi, lavada em lágrimas, despedir-se de D. Francisca. A fidalga voltoulheas costas, dizendo:— Quem havia de supor que esta raça maldita viria perturbar o sossego daminha casa!?... Nós faremos contas...Repelida tão desabridamente, foi despedir-se de Plácido de Castanheda deMoura, que restringiu o seu menospreço às palavras: “Passe bem. “Filipe e Garcia andavam no picadeiro amestrando cavalos, e dispensaram asdespedidas da criada.Luís de Barros não pôde evitar que Maria, ajoelhada, lhe beijasse os pés.Apertou-a ao seio, e disse-lhe:— Sê virtuosa para nos encontrarmos no céu; que na terra, não nosveremos mais.


Jorge esperava, no pátio, Maria e a criada que lhe era companhia. Por ordemdo velho, entraram no coche, carruagem sua especial dele. À portaria daqueletriste mosteiro, Jorge proferiu as primeiras palavras na presença da criadaparticular da sua mãe. Foram estas:— Maria, não desanime. Temos vinte anos.— Até ao Dia do Juízo? — disse ela arquejante.— Ânimo! — murmurou ele apertando-lhe a mão. D. Francisca,informada deste breve e aflitivo diálogo, exclamou:— Eu vos tomo à minha conta, canalhas!... Que vergonha!... Um neto deMaria Teles!... Um filho de Francisca Pereira Teles apertar a mão da criada dasua mãe... da judia!...


CAPÍTULO IVRedobraram os maus tratos de D. Francisca ao filho Jorge. Plácido, divertidonos seus importantes encargos, lavava as mãos da responsabilidade daquelaflagelação. O jovem, vencida a paciência pelos sorrisos dos irmãos e alusõeschocarreiras e pungentes da mãe, já fugia de se juntar à família nas horas derepasto. Para não exacerbar os padecimentos do avô, ocultava-lhe aperseguição; mas o velho sabia tudo da lealdade do seu escudeiro. Já Luís deBarros premeditava retirar-se para o Alentejo com o seu neto; mas aconsumpção de espíritos e forças era já tamanha e tão rápida, que o anciãoreceava finar-se no caminho.Quando a filha desconfiou do propósito do pai, inflamou-se de ira contraJorge. O fatal anel tomava-lhe no pescoço as proporções de um cadeadoestrangulador. A raiva lutava nela com os cálculos; mas o génio irascívelsubjugava todos os protestos astuciosos. Raivando em assomos de ódio,gritava D. Francisca Teles que daria de bom grado o tesouro por satisfazer asua vingança!Soube ela que Jorge, de dias a dias, se demorava no locutório do convento, eque o escudeiro do seu pai entregara à prioresa da Madre de Deus quantia dedinheiro considerável.


A exasperação devorava-a. Não teve mão de si que não arguisse, em rostodele, seu pai de tresloucado pela idade. O velho pôs as mãos voltado para oseu santuário, e murmurou a frase de um santo: Amplius, amplius, Domine(“Mais, mais, Senhor!”)Ninguém ousava contrariá-la. O marido tremia dela. Os filhos davam nenhumvalor aos seus desgostos e acessos furiosos.Um dia, D. Francisca mandou tirar a sua sege, e deu ordens secretas ao lacaio.Parou à porta de D. Veríssimo de Lencastre, inquisidor-geral, e o seu parente.Entrou, deteve-se largo espaço, e saiu com o rosto afogueado de feroz alegria.Quando entrou em casa, bateu rijo o pé no pavimento, e disse à sua aia:— Eu descendo de Leonor Teles! Sou Teles, não sou Barros! Ao outro dia,o padre capelão do Mosteiro da Madre de Deus entregava ao escudeiro deLuís de Barros uma carta da prioresa. Leu-a o velho, e exclamou:— Minha filha é perversa! Vai tu chamar Jorge. A aflição dera-lhe forçaspara levantar-se de golpe da sua poltrona de entrevado.— Jorge! — clamou ele convulsivo — , está em perigo a liberdade e talveza vida de Maria. Os oficiais da Inquisição foram ao convento. A prioresaescondeu a pobrezinha.— Meu Deus! — exclamou Jorge. — Espera: Deus escuta o teu grito... Eusinto-me com os espíritos claros e vigorosos. É preciso tirá-la do mosteiro...


tirá-la de Lisboa... tirá-la da fogueira. A tua mãe quer arrastá-la até lá... Poderástu e o Soliz transportarem-me nos braços até ao coche?... Podeis, que eu vosajudarei. Que me levem a casa do duque do Cadaval... já, já.Foi o ancião em braços até à carruagem. D. Francisca, espantada do sucesso,quis atalhar-lhe a passagem, com termos de filial amor. Luís de Barrosrelanceou-lhe os olhos, e bradou-lhe:— Parricida! A filha gritou que acudissem ao pai que estava louco.Confluíram os criados. E o velho, vendo-se rodeado, simplesmente disse:— Deixai-me passar que não estou louco. Os servos, manietados peloaspeito venerando do ancião, abriram-lhe passagem. Francisca esbravejava,com os olhos cravados no dedo do anel.Entraram na carruagem, depois de Luís de Barros, Jorge e o escudeiro. Ofidalgo amparava-se nas espáduas de ambos, com a cabeça inclinada ao braçodo neto.O duque, avisado de que tinha entrado ao pátio o coche do venerandocontador-mor, desceu a abrir-lhe a portinhola. O velho chamou a si o ouvidodo duque, e contou-lhe a situação da reclusa da Madre de Deus.— Lutamos com uma força invencível — disse o duque. — Não obstantelutaremos. Vai buscar-se à noite. Previna Vossa Senhoria a prioresa. Amanhã


estará na minha casa; depois irá para Oeiras; e depois pensaremos. O maisacertado é tirá-la de Portugal, ou pelo menos de Lisboa.— Sairá de Lisboa e de Portugal. — obtemperou Luís de Barros. — Étambém o meu parecer. Salve-ma por três dias, senhor duque.Ao fechar-se o dia, as avenidas do Convento da Madre de Deus estavamsitiadas de espias, que a prioresa e outras religiosas espreitavam dos raros efrestas dos dormitórios. Por volta da meia-noite, os esbirros e familiares daInquisição desampararam o posto, e daí a duas horas, na torre da igreja, aotravés dos rótulos, transluzia uma lanterna, sinal convencionado com Jorge.Acercaram-se então da portaria dois homens encapuzados, que escondiam alibré da casa de Cadaval. A pouca distância parara uma sege, e dentro delauma matrona, que devia ser alguma das aias da duquesa.Abriu-se a portaria subtilmente; saiu Sara, convulsiva de medo; os criadosladearam-na com as mãos nas misericórdias das espadas, e conduziram-na àsege. A judia sentou-se ao lado da mulher, que lhe disse em voz animadora.— Não tenha medo, que tem bom padrinho. A sege despediu a galopedesapoderado, rodeando por Odivelas, até entrar à estrada de Oeiras.Apearam no vasto pátio de uma quinta. A aia da duquesa subiu com Sara,conduziu-a a um quarto, e disse-lhe:


— Fique sossegada até nova determinação do senhor duque. Assim que selevantar, a mulher do feitor desta quinta virá receber as ordens da VossaSenhoria.No entretanto, Luís Pereira de Barros pensava em transferir Sara ao Brasil, nointuito de a salvar nalguma das colónias, e mormente na do Rio de Janeiro,onde o fidalgo tinha um sobrinho governador, e Sara parentes que no começodo reinado de D. Manuel se tinham expatriado para ali, pressagiando asobranceira tormenta.Jorge, com o coração repassado de angústias, escutava, sem ousar contraditálos,aqueles desígnios do avô, que redundavam em completa separação da suaquerida Sara.Passava isto na manhã do dia 4 de Agosto de 1699. Às onze horas deste dia,abriram-se as portas dos templos de Lisboa para deixarem sair e entrarprocissões de imagens milagrosas que se cruzavam dumas igrejas para outras.A cidade estava consternada, por saber que a rainha D. Maria Sofia Isabel deNeuburgo, segunda mulher de Pedro II, estava a arrancar da vida. Às cincohoras e meia da tarde expirou a formosa soberana com trinta e três anos deidade, quando o Senado preparava festejos para celebrar o aniversário do seucasamento.Feriaram-se todos os negócios e actos do Governo, exceto os processos ecogitações do Tribunal do Santo Ofício. A conversão das almas, e o purificá-


las ao fogo, não devia ser coisa que a morte de uma rainha estorvasse. OConvento da Madre de Deus foi de novo visitado pelos familiares, quando ocadáver da rainha era levado ao Mosteiro de S. Vicente de Fora, e as torresululavam as suas tremendas elegias.As naus, já aprestadas para levarem ferro para o Brasil, ferraram âncora. Atristeza oficial não permitia que os secretários de Estado se distraíssem dechorar a enorme perda. Esta contrariedade penalizou Luís Pereira de Barros, edeu largas ao coração de Jorge.Instava, porém, o duque sobre a urgência de remover a judia de Oeiras, vistoque o inquisidor se via amartelado por reiteradas requisições do promotor doSanto Oficio.Alvitrou o duque enviá-la para a Beira Alta. Na Covilhã se tinha estabelecidouma família hebraica, com quem os marqueses de Ferreira, avós do duque,tinham tido relações de boa amizade. Esta poderosa família, enganando a boaféde uns familiares e comprando a ferocidade de outros, vivia na Covilhãtranquilamente, e protetora oculta dos israelitas perseguidos.O duque preveniu o chefe da família, que por vezes fora seu hóspede emLisboa, e o mesmo foi ir o velho hebreu à capital, donde se partiu com Sara,disfarçada em filha sua.Jorge contentou-se desta ida, e mais que tudo da promessa de algumas cartas,por mediação da aia da duquesa.


Ao mesmo passo, Luís de Barros pedia a Deus um pouco de vigor que otransportasse ao Alentejo com o seu neto. A convivência da filha era-lheinsuportável. Francisca fumegava de enfurecida por se ver acalcanhada pelajudia, que todas as tentativas de vingança lhe malograra. Este ódio declinavasobre Jorge manifestamente. Contra o pai não apontava ela o insulto porque láestava o anel, como escudo de diamante, a quebrar-lhe a fúria. Cresceu aoextremo a raiva, quando ela soube que o velho ordenara aprestos para serecolher à quinta do Alentejo.Fora marcado o dia 27 de Outubro para a partida de Luís de Barros e Jorge;mas, por volta do meio-dia, tremeu a cidade de Lisboa com tamanhasconvulsões, e tanto foi o terror nos espíritos do velho que as poucas forças selhe quebrantaram.Cobriram-se as ruas de procissões de penitência. Os dominicanos prometiamserenar a vingança divina queimando mais alguns centenares de marranos,epíteto que era a quinta-essência do sarcasmo contra os israelitas, no entenderdos devotos. D. Francisca Pereira Teles abundava nas ideias dos frades,atribuindo os terremotos, que duraram vinte dias com intermitências, à iradivina contra os cristãos-novos.Disseminou-se então grande cópia de exemplares de um livro intitulado:Sentinela contra Judeus, Posta na Torre da Igreja de Deus, etc., traduzida do


espanhol por Pedro Lobo Correia, escrivão da Contadoria-Geral da Guerra eReino.Releu Francisca o livro com as entranhas escaldadas de alegre rancor, sepodemos dizer assim.Dum capítulo intitulado: “Os que Favorecem aos Judeus... nunca Terão BomFim...“, sublinhou algumas linhas, e mandou o livro ao pai. As linhasassinaladas diziam, depois da narrativa de um certo rei inglês que passou àespada milhares de judeus: “Infiram daqui os que tiverem mediano juízo, quehavendo tantos nestes nossos tempos, de donde nos podem vir senão delestantas desgraças, como experimentamos, de guerras, mortes, fomes, roubos,insultos, onzenas, falta de crédito... “D. Francisca Pereira escreveu em seguimento na mesma linha: “e terremotos.“Na página seguinte sublinhou as palavras... “quão danoso é para os cristãosvelhosque esta vil canalha ache amparo em pessoas grandes e qualificadas, aquem de ordinário se acolhem vendo-se oprimidos... “Luís Pereira de Barros leu atentivamente as palavras marcadas. Mandou quelhe dessem da sua estante o livro dos Evangelhos, e traçou uma cruz àmargem dos versos 36 e 37 do capítulo VI do Evangelho de S. Lucas, emandou a Bíblia à filha. Os versos diziam:


Sede, pois, misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso.Não julgueis e não sereis julgados, não condeneis e não sereis condenados.Perdoai e sereis perdoados.


CAPÍTULO VOs irmãos de Jorge, acirrados pela mãe, ocasionavam, a cada passo, insidiosasprovocações que os acobertassem do ódio do avô, caso espancassem Jorge, avaler, como a vontade lhes pedia.O irmão esquivava-se, e desarmava-os com a prudência muito recomendadapelo avô. Garcia e Filipe, todavia, não perdiam lanço de o chacotearem àconta da sua gravidade hipócrita, e presunção de sábio. Jorge redarguia comdesprezador silêncio.Um dia, porém, Garcia, como andasse jogando a barra com outros fidalgos noquintal, disse, galhofando, a Jorge, que passava:— Ó mano, pega lá desta alavanca, a ver onde chega o teu pulso.Jorge parou, e respondeu sorrindo:— Se eu tivesse um bom pulso antes quisera exercitá-lo na espada.Filipe acudiu com sarcástico remoque: — O teu pulso dava-se melhor com asmanilhas das mulheres...Retrucou Jorge, sorrindo ainda:— Não sendo elas tão valentes como a Brites de Aljubarrota... Serianecessário que fossem das muitas que há tão linguareiras como tu.


— Boa palavra! — exclamou Garcia.— Olha, mano, a língua de Filipe corta menos que a espada...— Basta que regulem... — voltou Jorge.— E tu? — interveio Filipe. — Que armas jogas?— Tenho duas no meu cabido de armas: uma é a prudência, outra é odesprezo; e, se alguma hora precisar de armas brancas ou negras, para me tirara limpo de alguma honrada façanha, pedirei de empréstimo as vossas, manos.— Eu só empresto as minhas a quem puder com elas — disse Garcia.O inepto Filipe acrescentou: — Eu também.— Qualquer asno albardado poderá com elas — disse Jorge, fazendo gestode retirar-se.— Olha cá — disse Garcia — , que notícias nos dás da judia?— Nenhumas — respondeu o jovem serenamente, bem que lhe entrasse ocoração em nojos, e o sangue em quenturas.— Vê-la-emos cedo de sambenito e carocha? — disse, cascalhandobrutalmente, Filipe.— Desejas esse espetáculo? — perguntou Jorge. — Que mal te fez adesgraçada mulher?


— O bem fê-lo ela a ti... — redarguiu o irmão com intenção desonesta. —Guapa rapariga é!... Se o Santo Oficio ta pilha, temos assadura... nem o avô tasalva.— Cala-te que te estás envilecendo, meu irmão! — disse Jorge sofreandoos ímpetos.— Vilão és tu! — bradou Garcia — , que nos estás sujando com essesamores próprios de criado de escada a baixo! Essas paixões costumam medrarnas cavalariças...— Sois uns tolos maus... — concluiu Jorge, dando-lhes as costas.— Olé! — vozeou. Garcia — , não te vás, perro de regaço; vem cá repetirisso, covarde!Jorge retrocedeu, e disse:— Deste-me nas costas um nome que me não cabe: diz-mo no rosto,Garcia.Os jovens, que tinham assistido silenciosos à altercação, aproximaram-se deGarcia, e pediram-lhe que não fosse injusto com Jorge. O insultador, porém,rompendo os diques do ódio represado, repetiu a injúria, crescendo sobre oirmão. Jorge esperou-o impassível. Garcia arrojou ao chão a alçaprema quetinha sobraçada, e lançou-se-lhe arca por arca. Os fidalgos acudiram; mas já atempo que o peito do agressor arquejava debaixo de um joelho de Jorge.


Filipe covardemente lançara mão da alavanca: os amigos e parentesarrancaram-lha, conclamando que não praticasse um vilíssimo feito.Este lance foi visto e ouvido de D. Francisca Pereira Teles, desde a primeirapalavra até que um dos filhos queridos caiu torcido pelo filho odiado.Levantou ela grande alarido, e foi queixar-se ao pai.Luís de Barros mandou-a esperar, e ordenou que viesse Jorge à sua presença.Entrado o jovem disse-lhe:— Conta-me o que há passado. Jorge, sem deslizar um ápice da verdade,referiu o sucesso, posto que a mãe, às vezes, o interrompesse, clamando:— Mentes! Finda a narração, Luís de Barros mandou chamar Garcia,Filipe, e os fidalgos testemunhas do conflito. Voltado a ambos os netos, oancião disse:— Um de vós conte o que sucedeu. Nenhum respondeu, encarando-seambos reciprocamente. Luís de Barros, dirigindo-se aos amigos e parentes dasua casa, relatou o caso como o tinha ouvido a Jorge, e perguntou:— Amigos, é verdade o que Jorge me referiu? Lembrai-vos de quem soispara não mentir a um velho que viu nascer vossos pais e mães.Os interrogados, comovidos pelo respeito e pela consciência, responderam:


— É verdade. E um acrescentou:— Eu pedi ao primo Garcia que não fosse injusto para seu irmão.— Bem! — disse o velho — , falaste verdade, Jorge! Deus te abençoe.Podeis ir todos à vossa vida. A minha filha, sê boa mãe. Nada mais te digo.Pudera chamar-te fera; mas as feras amam os filhos. Garcia e Filipe, mausfuturos vos agouro... E vós, jovens de bom carácter, sede sempre o que fostesagora, quando pesardes o ouro da vossa palavra. Ide todos em paz; e tu, Jorge,fica.As conscienciosas testemunhas, por amor do seu depoimento, receberam, forados aposentos do velho, sinais de ódio nos trejeitos com que D. Francisca osencarou.Os dois corridos mancebos voltaram-lhes as costas, quando eles se dispunhama dar-lhes satisfação por não poderem mentir aos cabelos brancos de Luís deBarros.A descendente da rainha sanguinária chamou os filhos à sua antecâmara,disse-lhes com torvo rosto;— Sois uns poltrões, se vos não desforçardes deste insulto! É o que mefaltava ver!... Jorge a calcar-vos aos pés!... Isto não pode continuar assim ...Dizei ao vosso pai que Jorge há de sair desta casa, ou vós a deixais!


— Nada disso... — atalhou Garcia. — Há de deixá-la ele, ou eu lhe cortoas goelas!— Também eu — acudiu Filipe.— Se o avô não estivesse ali — disse Garcia — , eu lhe juro, mãe, que elenão veria o sol de amanhã...— O maldito anel!... — murmurou D. Francisca. — Aquele infernal anel!...Vós nunca pensastes no modo de quebrar este encantamento?...— Eu já — disse Filipe — , mas não lhe vejo furo. Como se lhe há detirar?— Não sei, não sei! — disse com raivoso desalento a mãe. E acrescentou:— O pior é se eles vão para o Alentejo depois deste caso... E, se o vosso avôlá morre, adeus, tesouro!— Se o avô desse o anel a Jorge — objetou Garcia — , o pé não o punhaele cá para desenterrar o dinheiro e as joias. nós supõe que o tesouro está naslojas, ou nos entaipamentos da parte velha do palácio. Nós cavaríamos atéencontrar: não tenha medo a mãe que o anel aproveite ao Jorge.— Pensas bem! — disse alegremente D. Francisca. — Atiram-se a baixo asparedes velhas, e cavam-se os terrados das lojas. Eu lembro-me que o vossoavô, quando saiu com o cofre nos braços, era de madrugada, e demorou-secoisa de uma hora.


O cofre está enterrado dentro de casa: ele não o ia esconder na terra da quinta,com medo que alguma vez os lavradores o achassem.— Isso é assim — concordaram os filhos.— A mãe não tenha pesar de perder o anel — disse Garcia. — Por amordisso, não sofra o avô nem o Jorge. Se forem para a quinta, deixá-los ir.Ao mesmo tempo, Luís Pereira de Barros dizia a Jorge: — Não pensemos najornada, filho, que eu não posso. Olha tu como os pés me estão inchando!... jáme pesam para a cova... Isto acaba já... Vou para os oitenta e cinco; e, se Deusme desse outra família, figura-se-me que chegaria aos noventa ou mais...— Eu sou causa de muitos desgostos do meu avô — interrompeu Jorge.— Se eu tivesse saído dentre os meus, creio que o meu avô teria maissossegada velhice... Se ainda fosse tempo, eu iria para longe...— E poderias deixar-me nesta solidão a ver-me assim morrer de dores decorpo e alma? Poderias, Jorge?O jovem ajoelhou diante do ancião, e aqueceu-lhe com os lábios as mãosenregeladas. Nos vincos daquela veneranda face luziam as lágrimas, em quepareciam vir os últimos raios da luz dos olhos que tão copiosas tinhamchorado, desde o dia em que o seu querido Afonso VI perdera a liberdade, atéàquela hora em que parecia oferecer-se-lhe o neto como continuador da suaexistência amargurada.


E, como em prática de si consigo mesmo, murmurava ele:— De que te servirá a riqueza, malfadado rapaz? Rico era eu, e quantasinvejas tive dos meus servos e dos meus escravos!... Riquíssimo e rei era ofilho de Dom João quarto, e da prisão de Sintra mandava pedir a esse bárbaro,que aí está no trono, que lhe mandasse o enxota-cães do palácio paracompanhia!... Mais feliz sou eu que vejo à minha beira umas lágrimas deamoroso coração, uns olhos consternados que se fitam nos meus, e não vêm,como os da minha filha, todos os dias, averiguar se este anel ainda aqui está...De nada te valerá o tesouro que ele encerra, filho, se a tua estrela é má!... OlhaJorge, assim que eu fechar olhos, o segredo que este anel te disser confia-o donosso fiel António Soliz, que finge não o saber... Ele te ajudará, e tu protege-odepois... Não terás escavações que fazer...— Meu avô! — interrompeu Jorge — , por caridade, não me fale de modoque me obrigue a considerá-lo morto!... Enche-me de amargura, que é mais doque pode comportar a minha despedaçada alma!... Faça por viver, meu amigo,meu amparador! Afugente essa ideia terrível, que o quebranta! Lembre-se demim... Lembre-se daquela infeliz menina que, pela sua morte, vem a perder oamparo que hoje tem...— Ampará-la-ás tu, Jorge...... — atalhou Luís de Barros.— Eu!...


— Sim, tu, o teu ouro, o teu ouro não manchado... ouviste?... Nãodesonrado... Olha que não é salvação de mulher, seja ela qual for, o dar-lheamparo a troco da pureza... compreendes-me, filho?— Sim, meu avô... Eu não penso...— Não pensas, não, Jorge... Tu és um anjo: se deixares de o ser, serásmuitíssimo mais desgraçado.


CAPÍTULO VIA fuga de Sara não descoroçoou o ânimo vingativo de D. Francisca Teles,nem esfriou as inculcas de D. Veríssimo de Lencastre, instigado pela ilustredama, cujo desembaraço por gabinetes de deputados e conselheiros do SantoOfício arguia a desenvoltura de costumes nos primeiros anos de casada.Não obstante, a judia estava segura em companhia dos Sãs da Covilhã, ricosfazendeiros e laboriosos artífices, posto que ao conhecimento do bispo daGuarda chegasse a nova de existir uma cara desconhecida entre os familiaresde Simão de Sã.Porém, como quer que o bispo fosse criatura do duque de Cadaval, e oshebreus muito da amizade deste fidalgo grande privado do rei, a denúncia nãosurtiu efeito.A Inquisição teria de envergonhar-se da sua impotência, se não descobrisse oparadeiro de Sara. Os agentes mais ladinos puseram peito a lavar esta nódoado Santo Oficio, e vingaram o intento pelo mais fácil dos expedientes, bemque derradeiro na execução.Um dominicano, confessor no Convento da Madre de Deus, ganhoufacilmente a consciência das suas confessadas, empenhando-as no


descobrimento do destino de Sara. Estas religiosas eram das mais reformadase venerandas, usavam cilícios, e avergoavam as santas costas com disciplinasàs sextas-feiras. A prioresa, ainda assim, guardara delas e de todas o segredodo destino da cristã-nova, porque assim o prometera ao seu parente ebenfeitor Luís Pereira de Barros.Possuídas do Lúcifer de Domingos de Gusmão — Lúcifer que, infernalmenteengenhoso, andou aí três séculos enroupado nas túnicas apostólicas paraescarnecer e desacreditar a mansidão triunfante do filho de Deus — , as trêsfreiras predestinadas assediaram a confiança da prioresa com tais ardis,segredados pelo espírito das trevas — às vezes lucidíssimo — que a embaídasoror Leonarda chegou a declarar que a serva do seu primo Luís Pereira estavada mão do duque de Cadaval. Não satisfaziam estas informações o SantoOfício. Prosseguiram as possessas nas suas inculcas, e descobriram que a judiapassara do convento para Oeiras. Daqui avante, começava a ineficácia dodemónio no espírito das esposas do seu rival. Fez-se-lhe ver que era precisoenvolver a cauda, esconder as pontas na cabeleira de algum familiar do SantoOfício, e ingerir-se em Oeiras.O feitor do duque, sujeito de entranhas ímpias, que por vezes foraencarregado de despejar um arcabuz no peito do conde de Castelo-Melhor,inimigo político do Cadaval, como estivesse a entrouxar para a eternidade,ofereceu a infâmia da perfídia como desconto dos seus pecados, e lançou-a no


egaço da túnica de um frade de S. Domingos, delatando que a judia foralevada de Oeiras pelo hebreu Simão de Sã para a Covilhã.Os agentes da Inquisição na Guarda receberam ordens; o bispo foi consultadono expediente da execução, e preveniu o hebreu de modo que a procedênciado aviso ficasse ignorada.Simão de Sã avisou o duque, assegurando-o do bom recado em que estavaSara, muito a salvo da perseguição. O duque inteirou disto o seu amigo Luísde Barros, aconselhando-o, sem impedimento da segurança do hebreu daCovilhã, a pensar no modo de transladar a sua afilhada ao Brasil. E juntava:“Se a filha de Vossa Senhoria não desistir desta pervicaz perseguição, maishoje mais amanhã, a avezinha cai nas garras do milhafre.“Reparou Jorge no riso ferino da sua mãe, e numas casquinhas que elagarganteava, quando podia ser ouvida do filho. Com esta mudança na torvacatadura de D. Francisca Teles coincidiu o aviso do duque. O ancião decifroua alegria satânica da filha, e cobrou-lhe rancor do íntimo.Sobre-excitado pelo ardor do sangue, Luís Pereira sentiu-se um pouquinhoavigorado, não já para jomadear, mas bastante para transferir-se com Jorgepara casa do seu primo Diogo de Barros da Silva, bisneto como ele do grandehistoriógrafo João de Barros.D. Francisca viu sair as arcas e contadores do pai. Correu alvoroçada à câmaradele, e perguntou:


— Que mudança é esta, meu pai?O ancião olhou-a muito no rosto, e respondeu:— Perguntas se o anel também se muda, Francisca?— Que me faz o anel?!... O que eu lhe peço, senhor, é que me diga a causadesta saída, que vai dar que falar na corte e na cidade!...— Tenho medo de ti e da Inquisição... — murmurou o velho com alegresombra. — Não vás tu acusar-me de judaizante, Francisca... O fanatismo e avingança aboliram as leis da natureza. Não há pai por filho nem filho por pai.Agora deixa-me dirigir estas coisas... Jorge, manda preparar o meu coche.Francisca trincou a língua até esvurmar sangue empestado. Para resfolegar dopeito afogado de ira, lembrou-se do alvitre de Garcia no propósito de cavar edemolir até descobrir o tesouro. Saiu de ímpeto e afogueada da presença dovelho, o qual, encostando a face ao peito, disse:— Quanto eu quis a esta filha!... Como eu me separo dela às portas dotribunal do Altíssimo, onde vou dar contas do mimo com que foi criada nosmeus braços!... Filha sem mãe... Não chegou a ouvir a virtuosa que lhe deu oleite... A minha santa mulher, que dor seria a tua no céu, se de lá pudesses veresta filha de quem tu, quase morta, me dizias: “Deixo-te o coração no seiodesta criancinha!“...


Enxugou as lágrimas, e pediu a Jorge e ao escudeiro que o vestissem. Depois,olhou em derredor de si, sobre as alfaias restantes dos seus aposentos, e disse:— Naquele quarto nasci... Ao fim de oitenta e quatro anos daqui me vou...e ninguém amaldiçoarei em respeito à imagem do meu pai, que ali deixopendente, para que nesta casa fique, ao menos, o retrato de um varão justo.Desce-me daquele prego o retrato da tua avó, Jorge: esse irá connosco...Desconfio que os teus irmãos, com as parceiras da sua libertinagem, cheguematé este recinto onde ela morreu.Em seguimento, Luís de Barros, olhando muito de perto o retrato da suaesposa, apertou o painel ao seio, esteve-se alguns minutos a desabafar emsoluços, e quase esvaído de alento acenou que o levassem dali. No trajeto aocoche ninguém lhe saiu ao encontro. E o velho ia dizendo a sós consigo:— E, todavia, Deus sabe que eu não amaldiçoei esta família... nemvingança lhe peço... Misericórdia, misericórdia para eles e para mim...Luís de Barros, na luxuosa aposentadoria que o primo lhe alfaiara, achou-serodeado de parentes e amigos que o génio desabrido de Francisca Telesafugentara do palácio da Bemposta. Radiava o contentamento da paz em voltadele. Cada pessoa competia com as outras em adivinhar-lhe os desejos. E, nãoobstante, o ancião tinha saudades do seu quarto, e da soledade a que se afizeracom o neto. Os importunos afetos dos parentes hospedeiros, e frequentesvisitas doutros molestavam-no. Pesava-lhe a esvaída cabeça; era-lhe pouco o


ar para o peito em que havia represa de muitas lágrimas, e receios por aquelapobre Sara que muito o agonizavam.Passados dias, o duque deu-lhe aviso de ter sido assaltada a casa de Simão deSã pelos esbirros do Santo Oficio. O assalto baldara-se. A casa do hebreutinha subterrâneos com entradas inacessíveis à solércia dos quadrilheiros daInquisição, bem que sagazmente afuroados em avenidas de calabouços.Recresciam-lhe, pois, as angústias ao excruciado ancião, agravadas pelosilêncio consternador de Jorge, que não ousava lastimar Sara para nãodilacerar a alma do avô. Tratos vãos! Não cabiam mais paixões naqueletrespassado peito.O inquisidor, já impacientado com as teimosas solicitações de D. Francisca, einformado pelo duque de Cadaval da índole vingativa da brava filha de Luís deBarros, recebeu-a de má sombra, e disse-lhe que a judia já não estava naCovilhã, segundo informações fidedignas. Os colegas dominicanos de D.Veríssimo, mais desconfiados e menos dobradiços a respeitos e rogos doduque, prometeram a D. Francisca não levantar mão da empresa piedosa.Com esta promessa de fogueira, cedo ou tarde, se foi alimentando o cancroroedor das entranhas da fidalga.


CAPÍTULO VIINos últimos dias do ano de 1699, Luís Pereira de Barros disse a Jorge:— Não chego ao novo século...— Olhe que são hoje vinte e três de Dezembro, meu avô — atalhou Jorge.— Bem sei, filho, bem sei... Acabo com o meu espírito em toda a luz, quen Senhor lhe deu. Não tive ainda hora de me esquecer; e, contudo, oesquecimento, neste meu triste acabamento de corpo, seria um favor do céu.Falemos com tempo, Jorge.— Vai falar-me de morrer... — interrompeu o neto. — Não quero ouvilo...— Hás de ouvir-me, que não tens querer. E tirou do dedo o anel, dizendo:— Lê essas palavras que aí estão escritas no reverso do arco. Jorge hesitavaem pegar do anel. Luís de Barros instou:— Lê, Jorge...O jovem, alimpando as lágrimas, leu:NA CAIXA DE NEPTUNO.


— Percebes? — perguntou o velho. — Quer dizer que o cofre está nodepósito daquele Neptuno do chafariz do bosque. Sabes?— Sim, meu avô.— Dá-me uma carteira que está na quinta gavetinha daquele contador.O neto foi buscar a carteira, e o velho continuou:— Lê o que diz a última folha de um caderninho que aí está. Jorge leu:NOTAContém o cofre vinte e quatro contos de reis em variadas moedas de ouro.Item: duas dúzias de brilhantes que foram do meu avô Pedro de Barros e Almeida.Item: as joias encastoadas em pentes de ouro, e quinze anéis que foram da minha avó DonaLeonor de Barreiros.Item: os copos da espada com diversa pedraria, que o meu avô materno Dom Jorge deBarreiros trouxe do governo da Baía.Item: o retrato da minha mulher, sobre marfim, broslado de cercadura de diamantes, que lhedera sua mãe Dona Inácia Teles de Meneses.


— É isso mesmo — disse Luís Pereira — , lembro-me muito bem. Tiraessa folha de papel do caderno, e guarda-a, para que dês no futuro o apreço decoração que deves dar a alguns desses objetos de família.— É cedo para eu me fazer depositário desta nota — disse Jorge.— Não é cedo; é a hora ao justo. Agora, guarda esse anel, não já por amordas letras, porque de memória as tens; mas porque foi o primeiro e único anelque tive na minha vida. Deu-mo em mil seiscentos e trinta e seis Dom João deBragança, que, passados quatro anos, era rei de Portugal. Tinha eu vinte e umanos e andávamos a caçar na tapada de Vila Viçosa. Atirei a um veado com talagilidade e perícia, que o duque, arrebatado de gosto, sacou do dedo este anel,e mo deu, dizendo-me: “Se eu fosse rei, Luís, fazia-te monteiro-mor doreino.“ — “Antes contador-mor dos contos do reino, senhor duque e o meupríncipe”, lhe disse eu, beijando-lhe a mão. E, quatro anos depois, era ele rei, eeu contador-mor. Aí tens o anel e a sua história, meu filho. Agora, escuta.Depois da minha morte, não te dês pressa em ir buscar o cofre. As entradasdo palácio da Bemposta hão de ser espiadas noite e dia. Os alviões e enxadas,se não trabalham já na escavação das lojas e derrubamento das paredes, assimque eu fechar olhos, não há de haver braço inerte naquela casa. Os teus passoshão de ser vigiados de sol a sol. se os teus irmãos souberem que tens no dedoo anel, serão capazes de te mandar matar à hora do dia. Esconde-te, senecessário for. Na segunda gaveta daquele contador de pau-santo acharás


dinheiro que farte para viver seis anos fora de Portugal. Será prudência que tealongues da vingança dos nossos. Farás isto?— Farei o que o meu avô ordenar.— Mais: o dinheiro, que está na terceira gavetinha, dá-lo-ás a AntónioSoliz, meu honrado escudeiro, que é filho natural daquele Simão Pires Soliz,que, em mil seiscentos e trinta, foi sentenciado como sacrílego, queimadovivo, e inocente padeceu. Eu tinha então quinze anos. em frente da minhacasa morava a mulher que houvera de Simão Pires um filhinho, e acabava de odar à luz quando ao pai da criança lhe estavam cortando as mãos em vida. Amulher morreu.A criança ficou nos braços da comadre. Soube-se isto na nossa casa. Pedi àminha santa mãe que ma deixasse ir buscar. Alegrou-se o coração da virtuosa.Fui com uma escrava buscar o menino, que é este velho que vês ao pé de mimhá tantos anos. Queria deixar-to como herança; mas prevejo que o teu viverserá inquieto; e ele tem sessenta e nove anos: carece de repouso. Dá-lhe, pois,o dinheiro para que o meu António goze, desafogados de cuidados, os últimosanos.Terminou o testamento verbal de Luís Pereira de Barros. Jorge recadou oanel, e a nota cortada do caderno.


Neste dia, D. Francisca Pereira Teles, sujeitando a ira a uma tardia astúcia, ou,porventura, esporeada de remorsos, procurou o pai. Assim que ao ancião lhaanunciou o neto, disse ele, sorrindo a Jorge:— Aí vem, pois, minha filha visitar o anel. Empresta-mo, para que ela nãoescandalize esta família com alguns assomos de desesperação. Para mim, parati e para todos é bom que ela o veja. Digam-lhe que eu a recebo. Queroperdoar-lhe antes de me ver com a face do supremo juiz.De feito, D. Francisca, ao beijar a mão do pai, cravou no anel os olhos. Oancião estremeceu e arquejou ao lembrar-se que era aquela a filhaenternecidíssima, o bálsamo das suas chagas trinta anos antes. Nublaram-selheos olhos de água, reparando nela como quem para sempre se despedia.— Porque não vem para sua casa, meu pai? — disse D. Francisca.— Já agora — respondeu ele tardiamente — aqui me virão buscar poucomais morto do que saí da minha casa.— Pois tem piorado, meu querido pai?— Não: tenho melhorado. Estou cada vez mais perto do termo da viagem.A canseira é maior; mas a vista da pátria alegra o viandante fatigado.— E porque não quer morrer no seio da sua família? — tomou a filha.— Porque a não tenho pelos laços do coração: os do sangue que montam?A minha família toda está figurada em Jorge...


D. Francisca fez um gesto repugnante.O pai continuou: — Queres ver teu filho?— Como Vossa Senhoria quiser...— Não, filha: como for tua vontade.— E desejará ele ver-me?— Entendo que sim... António — disse Luís de Barros ao escudeiro — ,diz ao menino que venha ver sua mãe.— Deixe-o estar... deixe-o estar — atalhou D. Francisca.— António — disse o velho — , não digas nada. E baixou a carapensativa, enquanto a filha exclamava: — Pois eu não sei que ele me odeia?!Não sei que por causa do tesouro do pai faz guerra aos irmãos e a todos? Nãosei que ele é capaz de todas as abjeções e hipocrisias para ficar com o segredodo dinheiro? _ Foi a isto que vieste? — perguntou Luís de Barros, depois delarga pausa.— Não, senhor: eu vim vê-lo, e pedir-lhe que tome para a sua família.Toda nós está espantada da sua saída!— Sei que toda nós está espantada, de mais o sei... — disse o ancião. — Jáagora não há para que lhe aumentemos o espanto com a minha tomada para a


casa onde nasci. Não vou.. Agradeço a tua visita, e vai com a graça de Deus ecom a minha bênção.— Permite-me, ao menos, que eu continue a visitá-lo?— Sim... — murmurou o pai.— E quer ver seus netos? — tomou ela.— Não. Perdoo-lhes, para que me deixem... E tu se tens lá, no secreto datua vingança, alguma nova aflição que me dês, não venhas aqui.— Pois assim me lança de si?! — exclamou D. Francisca refinando amalícia com a impostura.— Eu queria morrer com Jorge ao meu lado — disse o velho — e tu nãopodes estar onde ele está.— Que me importa? Deixá-lo estar...— Não. ódios ao pé de um agonizante são maus sentimentos para ajudar abem morrer. Francisca, não és boa mãe, como te hei de eu aceitar como boafilha?!— Sou mãe injuriada, insultada, e escarnecida! Sou filha desprezada eesmagada por um pai iludido pelas astúcias de um perverso!... — bradou elavoz em grita.


— Basta! — clamou o velho — , esta casa não é a tua! Não meenvergonhes, nem te cubras de vilipêndio aos olhos dos nossos parentes. Saidaqui! Vai pregar aos frades de São Domingos a virtude purificante do fogo!Vai cavar na masmorra da pobre Sara! Vai ver quantas espadanas de sanguesujam os guadamecins do inquisidor-geral! Sai-te, coração de hiena!Na sala próxima estavam já os donos da casa, atraídos pelos roucos brados doancião.D. Francisca passou por entre eles flamejante de raiva. Nem . de leve acenoucom a cabeça. Saltou à sege, e partiu com a garganta recingida da serpente doódio, que lhe afogava os soluços.


CAPÍTULO VIIIA família entrou de roldão na antecâmara de Luís de Barros, protestando nãomais deixar subir D. Francisca Teles à presença do pai. O ancião nãorespondia às perguntas, nem assentia às reflexões. Parecia surdo, ou falecidode entendimento.O abalo extenuara-lhe muito das restantes forças. Inclinara ele a cabeça para oombro de Jorge, que lhe não despregava os lábios da cara. O escudeiro colavaa face à respiração do seu amo, desconfiando da brevidade da morte. Jorgemurmurou:— Parece-me que está adormecido... Não façamos rumor. Não tenhasmedo, António... O meu avô não pode estar morto...E o ancião acenou com a cabeça negativamente. As pessoas da casa retiraramsepé ante pé, cuidadosas em fazer-lhe ministrar os sacramentos. Assim queelas saíram, Luís Pereira restituiu o anel ao neto, e disse com vozes cortadasde pausas ansiosas:— Não te aflijas, filho, que ainda não é a hora... António — continuou,chamando o escudeiro — , é tempo de ir à Congregação chamar o meu padreManuel Bernardes... que venha ouvir-me de confissão, e dizer-me as suas


últimas revelações da outra vida... Parece que dá saúde ao corpo e à alma ouviraquele altíssimo espírito do meu oratoriano...Adormeceu o ancião reclinado na espádua do neto um breve sonoentrecortado por passageiras dores, que ele acusava com gemidos eestremecimentos.Acorreu prestes o douto e apostólico Manuel Bernardes, o qual, com o rostoradioso de alegria, se assentou à beira do seu confessado de vinte e cinco anos,perguntando-lhe:— Já vos alvorece o dia almejado, meu velho amigo? Temos à vista o faroldo céu? Ora, pois, atiremos o ligeiro esquife à garganta das vagas encapeladas,deixá-las remugir, e vamo-nos de nado à praia, que lá estão os anjos comroupas enxutas para nos entrajarem das galas do empíreo.Jorge, obedecendo a um aceno do sublimado místico, saiu da câmara, e foichorar nos braços de António, que estava em joelhos e mãos postas na salavizinha.Quando estas coisas corriam, Garcia, Filipe e Plácido de Castanheda deMoura, com alguns criados de mais conta, andavam escavando nas lojas ealuindo paredes meio esburacadas. D. Francisca dirigia a exploração com umaatividade digna de melhores resultados. O marido apalpava os terrenosbatendo com a alçaprema; e onde quer que a pancada batesse em oco, ou a


imaginação lho fizesse parecer, aí caíam as enxadas e alviões com suadafreima.Ao escurecer, abriram mão da obra, e gizaram as escavações do dia seguinte.— O cofre há de aparecer — dizia D. Francisca — , ainda que se arrase opalácio!— Não será prudência isso!... — observava o marido timidamente.— Qual prudência nem meia prudência! — vozeava a consorte, batendo opé rijo. — Há de aparecer o cofre, porque ele está em casa; e, se esperas peloanel, então, meu amigo, histórias! Que dizes tu, Garcia?— Eu digo que sim: o tesouro está lá por baixo, e nós havemos de achá-lo,sem arrasarmos a casa. A mãe já disse muitas vezes que o avô desceu asescadas para o pátio de dentro com o caixote.— Foi assim — confirmou a mãe.— Então não há que duvidar — disse Garcia — , se não estiver numa lojaestá na outra. Havemos de cavar...— Até ao inferno! — disse Filipe.— Credo! — atalhou D. Francisca. — Não fales em inferno, menino, quese me arrepiam os cabelos.


— Isto é um modo de falar! — emendou o filho. — Havemos de cavar atéonde toparmos o dinheiro.— Asneira no caso! — interveio Plácido de Castanheda. — O teu avô nãoteve tempo de fazer grande cova, já porque foi sozinho, já porque se demoroucerca de uma hora, como diz tua mãe. E então é escusado cavar muito aofundo. O mais que se deve procurar é até à fundura de três palmos; e, se nãoaparece, pôr o sentido e o trabalho noutro lugar.— Deixa lá os meninos com o negócio, que eles são mais espertos do quetu — contraveio D. Francisca.— Pois façam lá o que quiserem — concluiu Plácido para não assanhar amulher, que já tinha o sobrolho avincado.No dia seguinte, começaram os desaterros nas cocheiras antigas. Um doscavadores sentiu estalar debaixo da enxada coisa sonora como tampa, eexclamou: “Cá está! “Concorreram os interessados por diferentes portas do palácio. D. FranciscaPereira, descendente da rainha Leonor Teles, surgiu à porta da cocheira desaia branca e pantufas de liga. Plácido de Castanheda de Moura saiu de outraporta encapuzado num reguingote, a espirrar muito endefluxado.Os fidalgos novos arremangavam as camisas para com as próprias mãosdesbastarem a camada de terra, e ressurgirem o cofre do seu túmulo de


quarenta e três anos, Acocoraram-se todos em redor da cova. Filipe e Garciaesgaçavam as unhas mimosas agadanhando na terra. Lobrigaram uma clareirade superfície sólida do quer que era. A cor era preta.— Preto era o caixote — disse alvoroçada D. Francisca. — Bem melembro: era preto com cintas de cobre.Continuaram a descobrir sem tomarem fôlego. A fidalga, de impaciente, quistambém sujar a sua mão de marfim. O contador-mor, em atenção aosreiterados espirros, abstinha-se de humedecer as mãos. Grande júbilo!Encontraram uma argola. Garcia perguntou:— Minha mãe, o cofre tinha argola?— Havia de ter por força... — disse ela — Achaste-a?— Cá está.— Então venha uma corda, e puxemos — disse Filipe.— Isso é asneira! — admoestou o pai.— Porque é asneira?! — interpelou D. Francisca.— Ora supomos — explicou Plácido — que o caixote está podre docontacto húmido da terra: se está podre, desfaz-se com o empuxão e entornaseo conteúdo.— És parvoinho! — retrucou a esposa. — Venha a corda!


— Arranjem lá... — condescendeu o contador-mor, abrindo a boca parafacilitar o espirro.Enfiaram a corda pela argola, e puxaram os dois fidalgos e dois lacaios. Deude si a tampa: repuxaram, e a tampa ressaltou de um sacão.D. Francisca fez pé a trás com a mão no nariz. Filipe e Garção saltaram parafora da cocheira. Plácido parecia espirrar o cérebro. Os criados exclamavam:— Com dez diabos! Fedor assim só no inferno! — Examinado o local peloservo mais corajoso de nariz viu-se que a tampa era de lousa, e o que elatapava era o suspiro do escoadouro das fezes, que naquele ponto se haviaentupido.Se este acaso fosse obra providencial, muita gente havia de crer que aProvidência castiga como Aristófanes e como Juvenal. Aquele género dezombaria, se não foi odorífero, caiu perfeitamente de molde na ocasião.D. Francisca foi respirar sais antipútridos. Os filhos, de modo que a mãe osnão ouvisse, riam com as mãos nas ilhargas. Os criados, para riremimpunemente, puseram-se de barriga ao chão, abafando as cascalhadas.Plácido de Castanheda de Moura franzia as fossas nasais para provocar oespirro e desinfecionar a cabeça.Quando se encontraram à mesa do almoço, e encararam uns nos outros, entãofoi o desabafarem numa gargalhada estrídula e compacta.


CAPÍTULO IXEstavam ainda à mesa, quando um lacaio de Diogo de Barros da Silva chegoucom a notícia de que tinha passado da vida às oito horas da manhã o senhorLuís Pereira de Barros.— O coche na rua! — exclamou Francisca Pereira. E correu para otoucador a vestir-se. Os filhos, um momento perplexos, perguntavam ao pai:— Vamos lá? Plácido não os ouviu. Reconcentrara-se com doloroso rosto,e disse:— Pobre velho!... Santo homem... Devia expirar nos braços da filha, queele tanto amou...— E o anel? — perguntou Filipe.— Não fales agora em anel, filho! — disse o pai. — Reza por alma do teuavô, que foi um português dos que já não há...— Ora!... — resmoneou Filipe, e saiu com Garcia pressurosamente aperguntarem à mãe, de fora da recâmara:— Nós que fazemos, mãe?— Vesti-vos de luto para me acompanhardes. Entretanto, o genro de Luísde Barros encerrou-se no seu quarto para chorar, e pedir à alma do seu sogro


que lhe perdoasse a fraqueza com que se ele deixara maniatar pela condiçãodespótica da sua mulher.Urna hora depois, D. Francisca e os filhos apearam do coche à porta deDiogo de Barros.As senhoras da casa perguntaram secamente à sua parenta se queria que osaimento se fizesse dali ou do palácio da Bemposta.D. Francisca não respondeu à pergunta, e disse que queria ver o pai.— Eu vou conduzi-la, prima Francisca Teles — disse Diogo.— Jorge está lá? — perguntou ela.— Não, minha senhora. Jorge está com dois médicos à cabeceira, porqueperdeu o alento às seis horas, quando o avô lhe disse adeus, e não o recobrouainda. Ao pé do cadáver estão os meus filhos, e o escudeiro António Soliz.— Vamos, primo Diogo — disse D. Francisca. Entraram ao quartoiluminado ainda pelos círios, que ardiam ao lado do Crucificado. Dir-se-ia quedaquele recinto saíra, tangida por mão invisível, uma clava de ferro, que bateuno peito daquela mulher. Saltou ela um passo a trás, e amareleceu como se ocadáver se levantasse para amaldiçoá-la. Avançou amparada no braço deDiogo, e retrocedeu ainda, murmurando:— Não posso...


— Pois não entremos, prima... Eu compreendo o seu horror...— O meu horror? — perguntou ela assombrada.— Sim!... Vossa Senhoria encheu de fel aquele honrado coração que aliestá morto.— Não me diga essas coisas nesta ocasião! — exclamou ela.— É quando Deus manda que lhas diga, minha senhora.— Expulsa-me, não é assim? — disse ela, desprendendo-se-lhe do braço.— Não, minha prima, não a expulso, porque é filha de Luís de Barros;porém, quando aquele cadáver tiver saído, as nossas relações, minha senhora,fecham-se no jazigo dele.D. Francisca relanceou os olhos aos dois filhos, que fitavam sinistramenteDiogo. Retrocederam à sala. A filha de Luís de Barros sentou-se ofegante edisse:— Posso saber que destino teve um anel que o meu pai tinha no dedo?— Pode, minha senhora. Desse anel, que o duque de Bragança tinha dadoao seu pai, ficou herdeiro seu filho Jorge.— Herdeiro!... Veremos isso! — exclamou ela.— Pois veremos, minha senhora — tomou Diogo — , lembro-lhe,todavia, que é muito imprópria a ocasião para discutir-se a herança do anel.


— Mas há de discutir-se! — interveio Garcia. — E há de entregá-lo, que otesouro é da mãe, e de todos por morte dela — disse Filipe.— Respeitem o cadáver do seu avô, senhores! — exclamou Diogo deBarros erguendo-se hirto e formidável de majestade. — Respeitem o cadáverdo santo homem que apunhalaram com desgostos!D. Francisca levantou-se, e disse:— Vamos, meus filhos! Primo Diogo, queira dizer a Jorge — continuouela cacarejando um riso repulsivo — que vá buscar o tesouro quando quiser.— Lá o esperamos... — acrescentou Garcia.— E o cadáver? — perguntou o velho fidalgo a D. Francisca. — Dá-meVossa Senhoria a honra de lhe dar sepultura?— Sim, como queira, e eu pagarei as despesas — respondeu ela já da porta.— É uma mulher que fala... — disse um filho de Diogo de Barros.— E um homem! — replicou Garcia.— Dois! — disse Filipe. — Eu já sei como o mais possante dos dois sedobra debaixo de um joelho... — redarguiu o filho de Diogo.— Basta! — exclamou o velho, impondo silêncio ao filho. — Quem dirá oinfame espetáculo que vem dar uma filha do primeiro sangue de Portugal aopé do seu pai morto!


D. Francisca já tinha descido com os filhos.O contador-mor, pela primeira vez na sua vida conjugal, deliberou semconsultar a esposa. Assim que soube o sucedido na casa dos parentes do seusogro, saiu, fechado na sege, com o intento de conduzir o cadáver para aBemposta.— Isto é um opróbrio! — disse ele à mulher, que não ousou contrariá-lo.Diogo de Barros recebeu-o com fria cerimónia, e acedeu à trasladação dodefunto, vendo a compunção com que Plácido de Castanheda de Mourabeijara a mão do seu sogro.Depois, como ele perguntasse pelo seu filho Jorge, encaminhou-o ao quartoem que o jovem chorava e secava as lágrimas no rubor febril das faces. DissePlácido algumas palavras afetuosas ao filho, e acrescentou:— Não estejas a incomodar esta generosa família: vem para a tua casa,assim que puderes.Jorge respondeu:— Não irei, meu pai: beijo-lhe as mãos por essa caridade; mas a vontadedo meu avô pode tanto comigo como se ele vivesse. Eu não caibo na casa dosmeus pais; mas tenho o restante do mundo como casa. A terra à grande, e nãohá aí infeliz que não tenha uma parte do céu que o cubra.


Poucas mais frases se trocaram. Plácido saiu a providenciar os aprestos para osaimento; e, ao cair da tarde, o esquife de Luís de Barros foi assentado na essada capela da Bemposta.


CAPÍTULO XAo terceiro dia de sepultado Luís de Barros, continuaram as escavações edesmoronamentos nas lojas, tulhas e adegas da Bemposta. Os baixos daquelepalácio eram já ruínas de casa incendiada. Os pátios foram deslajeados; asavenidas do jardim descalçadas; as paredes dos aposentos do finado anciãoesgaravatadas e descaliçadas em todos os pontos suspeitos. Plácido deCastanheda benzia-se clandestinamente, e dizia entre si:— Qualquer hora os tetos abatem sobre nós! Ficamos sem casa e semtesouro!D. Francisca Pereira ordenou que, durante a noite, se espiassem as entradasdo palácio, temerosa de que o filho Jorge entrasse a desenterrar o cofre. Tevemanhas de fazer vir à sua presença o velho escudeiro do seu pai, e prometeulhea doação dumas casas em Lisboa, se ele desse algum indício do local emque o pai enterrara o dinheiro.— Nunca mo disse, senhora — respondeu António Soliz.— Nem tu desconfiaste? — volveu ela.— Nem quis desconfiar, senhora. Foi coisa em que nunca pensei.— Quando meu pai deu a Jorge o anel, estavas presente?


— Não, senhora.— E a ti não te deixou nada?— Deixou de mais para viver sossegado o restante da minha vida; mas se oque ele me deixou fizer falta a Vossa Senhoria, aqui o virei trazer, e irei servir,que ainda posso comigo.— Quem te fala nisso, António!... acudiu ela. — O que eu queria era fazerterico, meu velho amigo, quanto mais tirar-te o que tens!... Queres tu ser rico?— De que me servia a mim ser rico, senhora? Com pouco se vive e commuito se morre.— Se fosses rico, podias fazer bem aos teus parentes.— Não os tenho, ou não os conheço, bem sabe Vossa Senhoria os meusprincípios; quando a fidalga era menina, fartas vezes lhe contei o funesto fimdo meu pai, e a morte despedaçadora da minha mãe.— Bem sei; mas... olha que sempre é bom ser rico... E em pouco estavateres tu do pé para a mão uma das minhas melhores casas na Rua das Esteiras,e a melhor horta de Campolide.António desconfiou de uma proposta aviltante. Fez-se cor de cal, formalizouse,levantou a cabeça, e disse:


— Eu não sei que vossa Senhoria quer dizer-me. Veja lá, senhora, que falacom o António Soliz que a fidalga conhece há mais de quarenta anos! Olheque eu tenho a minha honra de pobre, senhora Dona Francisca, e deveconhecer-me...— Conheço... — atalhou a fidalga abespinhada — , conheço-te comocriado do meu pai.— Tive esse honroso emprego: Deus mo tirou.— Está bom... Podes sair... Queira Deus que o anel te não saia caro a ti...— Eu não fujo, minha senhora — volveu serenamente Soliz — , às ordensde vossa Senhoria estou aqui, e onde a fidalga souber que eu esteja.— Vai-te! Estou farta de palavreado! — terminou a iracunda senhora.António dobrou o corpo a meio na mais reverente cortesia, e saiu.Jorge ouviu a narração que o escudeiro fazia do sucedido, Ambos, de pronto,adivinharam que o intento de D. Francisca devia ser propor ao escudeiro ofurto do anel, ou a delação das letras gravadas no arco.O parecer de Diogo, conformado com a vontade do defunto, era que Jorge deBarros saísse de Lisboa para além-mar, ou ficasse em terra afastada da capitalaté se ocasionar melhor monção de assenhorear-se do pomo da discórdia, queera o tesouro, aquela boceta de peçonha, já envenenadora de algumas vidas.


Jorge aceitou o alvitre que era propriamente o seu. Impulsava-o para aprovíncia da Beira o coração. As angústias da saudade do avô eram-lhe aindaafiadas pelo medo da prisão de Sara. Quinze dias eram já volvidos, desde queele recebera a última carta da sua amiga, por intermédio da aia da duquesa.António foi ao palácio do Cadaval, falou com o duque, e soube que Simão deSã, para iludir os espiões do Santo Ofício, aconselhara a sua hóspede a nãocorresponder-se temporariamente com alguém. O duque fez saber ao neto deLuís de Barros que as recomendações do tribunal tinham afrouxado, depoisque ele esclareceu o inquisidor-geral sobre a índole vingativa e injusta daperseguidora; sem embargo das tréguas, era, todavia, necessário —recomendava o duque — desconfiar sempre da crise sazonática dosanguinário leão de S. Domingos.A 10 de Janeiro de 1700, Jorge de Barros e o seu escudeiro António Solizsaíram de Lisboa, caminho da cidade da Guarda, com valiosas cartas para obispo e primeiros fidalgos daquela cidade. Ao primeiro encontro com osnobres, que aporfiavam em hospedá-lo, Jorge benquistou-se na estima detodos, e criou à volta de si afeições sinceras, que o indemnizavam daingratidão e malquerença dos seus, sem contudo lhe mitigarem a saudade doavô.Simão de Sã, consciente do puro afeto de Jorge à filha dos hebreusqueimados, avisou a sua hóspede da morte de Luís de Barros, e da chegada doneto à Guarda. Permitiu-lhe que escrevesse uma carta de pêsames, e ele


mesmo foi o portador a Jorge — No meado de Fevereiro, depois de setrocarem algumas cartas os dois amigos de infância, Jorge saiu da Guarda, efoi hospedar-se em casa do abastado israelita da Covilhã.Alvoreceu uma estação de felicidade serena para Jorge de Barros. Era aprimeira. A família do hebreu eram meninas e jovens de muita polícia,virtudes e saber. Simão de Sã passava por fiel observante dos preceitos docristianismo; e os seus filhos apenas nascidos, tinham sido lustrados na piabatismal. Com a condição de ser tão hipócrita como os perseguidores dosjudeus, Simão gozava créditos de cristão-velho, sossego e ordem no seucomércio. Algumas ameaças de inquietação costumava ele remi-las a dinheirode contado sobre o telónio em que os ultrajadores de Cristo negociavam a pazdos hebreus poderosos.O viver íntimo desta família judaica era patriarcal. Jorge estranhou areciprocidade de amor dos irmãos, a ternura de Rebeca pelos seus filhos, orespeito dos filhos, a devoção com que eles amavam os pais.Sara estava mais formosa do que tinha sido. Aquele ambiente de paz coava-lhear de saúde aos pulmões e luz de dignidade ao espírito. A tristeza do coraçãomagoava-a sem aspereza, porque lhe sorriam esperanças, e a promessa deJorge era tão sagrada para ela como para Simão de Sã os seiscentos e trêspreceitos da lei explicados por Abraão de Ferrara, médico português e o seuascendente.


Narrava Jorge com suave mágoa os seus desgostos a Sara, desde que ela saírado Convento da Madre de Deus. Ela escutava-o com o ar melancólico deRute, e um lançar de olhos respeitoso, como se naquele mancebo, tão fidalgo,tão senhor e rei da sua alma, ela visse o Booz das santas escrituras. Amavamseassim a reverem-se espelhados nos olhos um do outro, e com referência aofuturo de ambos nem palavra aventuravam.Soube Jorge que a afilhada do seu avô se voltara de coração e consciência àspráticas da religião judaica, e as usava secretamente para não causardesagradável estranheza ao seu amigo. Observou ele, no primeiro mês dehospedagem em casa de Simão de Sã, desde quinze de Fevereiro a quinze deMarço, se praticaram quatro festividades e quatro solenes jejuns.Perguntou ele a Sara: — Que festividades foram estas?... Não me respondes,minha amiga?! Tão sagrado é o mistério que até de mim o escondes!— Não... eu digo-lhe, se quer, senhor Jorge... Este é o nosso mês de Adar,que começou em meado de Fevereiro dos galileus. No oitavo dia celebramoscom o jejum a morte de Moisés. No dia nono, jejuamos porque é oaniversário da divisão das escolas de Shammai e de Hillel. No décimo terceirodia, é o grande jejum de Ester; e no décimo quarto a grande festa Purim, oudo resgate do povo. Agora segue o mês do Nisa. Amanhã jejuamos emsentimento da morte de Nadal e Abin, filhos de Aarão. No décimo quarto é afesta da Páscoa. No quinto, dezasseis e vinte e um, havemos de jejuar por


causa do primeiro, segundo e sétimo dia dos ázimos; e no vigésimo sextocomemora-se a morte de Josué, filho de Nun. Se quer — disse Sara —ensino-lhe todo o nosso calendário.— Não — disse Jorge — , o que eu muito desejava era ler os vossos livros.O senhor Simão consentirá que eu os veja? Parece-me que já lobriguei numquarto que nunca mais vi, nem sei onde é, uma grande livraria.Sorriu-se Sara, e disse:— Esse quarto que viu, pode o senhor Jorge procurá-lo na casa toda que onão encontra, salvo se o senhor Simão lhe disser que comprima um botão debronze do tamanho do seu anel. Mas, se quer, eu farei que lhe abram a porta.— Desejo muito, porém, não vá ser isso inquietação ao nosso velho...Neste mesmo dia, Simão de Sã conduziu Jorge de Barros à sua livraria. Comoreposteiro à porta da biblioteca, via-se um painel, que figurava o Sermão daMontanha, quadro fraudulento com que o hebreu edificava os hóspedescristãos. O quadro enrolou-se, quando o dedo de Simão carregou na cabeçadourada do prego em que o painel impendia. Descobriu-se um espaço deparede coberta de arrás como o restante da saleta. O hebreu acurvou-se:carregou noutra mola, que fez subir enrolada uma espécie de cortina.— Aqui tem os meus livros, senhor Jorge. Muitos não lerá, que sãohebraicos; mas deles há muitos em latim, castelhano e português. Aqui tem O


Livro da Fé Demonstrada pela Razão, de Scem Tou de Leão. Aqui tem OLivro dos justos, de Samuel Chasid, impresso em mil quinhentos e oitenta eum. Este é o Pão das Lágrimas, de Samuel Ozeda de Saphet. Aqui tem oTalmude compendiado por Salomão Luria, e a Lâmpada de Ouro, do mesmoescritor. Aqui tem a justiça dos Séculos e mais dezasseis volumes do judeuportuguês Isaac Abravanel, descendente de David, nascido em Lisboa em milquatrocentos e trinta e sete, e falecido em Veneza por mil quinhentos e oito,quando ali fora conciliar os portugueses com os venezianos. Aqui está oFacho do Preceito e mais seis volumes do israelita português Joseph BenDon. David Ben Don Joseph Abem Jachiia, falecido na Itália em milquinhentos e quarenta e nove. Estoutro é o “O Livro da Luz”, do hebreuportuguês Jos Ciiahu. Agora lhe ofereço um livro do meu ascendente Abraãode Ferrara que exercitou a medicina em Lisboa. Lindíssimo é essoutro livro deAbraão Sabua, também português: chama-se o Ramilhete de Mirra. Aqui estáo celebrado comentário sobre o Pentateuco, do médico do Porto, chamadoMenachem Porto, pai do grande cabalístico Abraão Ben Sechiel Cohert Porto,cujas Aldeias de Jair lhe ofereço, como leitura encantadora. Finalmente,senhor Jorge de Barros, aí estão mil volumes de escritores judaicos.Começou Jorge a sua leitura pelo Pão das Lágrimas. Sara e Judite, filha deSimão, sentaram-se uma de cada lado da cadeira do jovem, e ouviam-no. Eraum quadro mimoso para pintura!


CAPÍTULO XICessaram as escavações na Bemposta. D. Francisca Pereira consultou osjurisconsultos para autorizar um requerimento pedindo a prisão de Jorge,como ladrão do anel. Os homens da lei denegaram-lhe apoio a semelhanteescândalo da sã moral das famílias, e da faculdade que as leis concedem a umavô de dar ao neto um anel não vinculado, nem testado a outrem porinstrumento público.Ao mesmo tempo, soube D. Francisca Pereira que o filho tinha saído deLisboa com destino a Castela, engano que os filhos de Diogo de Barrosfizeram de indústria propalar.Cuidaram os obreiros das escavações em entulhar as covas e murar as paredesaluídas, porém, nos lanços do palácio antigo, acontecia que umas paredes sedesmantelavam enquanto os alvenéis refaziam outras. A fidalga espreitavaainda as paredes derrocadas; mas o entusiasmo da esperança esvaíra-se maisdepressa que os aromas nada orientais do cofre saudado com tamanhosjúbilos.Dizia D. Francisca Pereira:— Se esta casa não fosse vínculo, e o cofre aqui não estivesse, vendia-se,que está muito velha e fede que tresanda desde que se cavou nas lojas.


Dias depois que ela isto dissera, a procurou o provedor das obras do paçopara lhe anunciar que o Sr. D. Pedro II lhe queria comprar o palácio, e ascasas, hortas, jardins e bosques contíguos, no intento de construir ali umpalácio real para sua irmã a Sra. D. Catarina, viúva de Carlos II, rei deInglaterra.Digamos breves palavras desta rainha.O leitor sabe que o libertino e empobrecido filho de Carlos I aceitou dePortugal dois milhões de cruzados e a ilha de Bombaim; e, como suplementoàquela, para o tempo, enorme quantia, também aceitou a irmã de Afonso VIcomo esposa.D. Catarina era senhora de egrégias virtudes e primorosa entre as maisexcelentes princesas do seu tempo; porém a formosura com ela tinha sidosovinamente dadivosa.Um poema de abalizado autor, entre os muitos que então celebraram aquelefaustoso casamento, pregoa maravilhas da formosura da princesa. Eis aqui umfragmento da musa dadivosa do notável poeta de Barcelos. Está já embarcadaa rainha na passagem para Inglaterra:Via-se a nau feliz empavesadaFlâmulas, e bandeiras tremulando,


A quem a nau de Colcos celebradaEstava entre as estrelas invejando;E a carroça da Deusa namorada,Que de Chipre as boninas vai pisando,Vendo na nau mais alta formosuraTeve em pouco esta vez sua ventura,Esta oitava pode não prestar; mas fica sempre o mérito de dar ideia de umaesquadra, porque tem três naus.A seguinte é mais conceituosa, e orça pela outra na puxada da metafóricabeleza da rainha:Os cavalos do Sol, que cada diaPascendo estrelas, bem beber salgado,António Vilas-Boas e Sampaio: “Saudades do Tejo e de Lisboa na ausência daSenhora Catarina rainha da Grã-Bretanha. “


Se Faetonte deles se confiaSegunda vez se vira despenhado:O seu gosto fora só, sua alegriaLevara Catarina, e o seu cuidado,Era tomar a estrada do Ocidente,Para trocar coa nau, que o não consente.Os poetas são a indemnização das senhoras feias, mormente se elas sãoprincesas. Não assim os historiadores. Goldsmith reduziu a proporçõesmedianíssimas a formosura de D. Catarina para explicar o desamor edevassidão de Carlos 11. Historiador melhormente conceituado ainda, DavidHume exprime-se deste teor:Testemunhas de crédito dizem que Carlos II deliberou esposar uma princesade Portugal, sem avisar os ministros, nem ceder a nenhumas contradições. Ochanceler, Ormond, e Soulhampton impugnaram-lhe o alvitre com numerosasobjeções, e mormente insistiram no boato geralmente derramado que aprincesa era incapaz de conceber; sem embargo, todos os argumentos foramrebatidos. Proposto em conselho o negócio, conckmaram todas as vozes


aprovando o príncipe, e o parlamento condescendeu também. Assim seefetuou, sob cor de universal consenso, aquele desgraçado casamento comCatarina, princesa de virtudes imaculadas; bem que não vingasse nunca fazerseamar do rei por graças pessoais. Não obstante, a atoarda da sua esterilidadeparece que era falsa, pois duas vezes foi declarada em estado de gravidez.À falta do amor do marido, a irmã de Afonso VI acrisolou-se em amor aDeus. Escrevia cartas muito católicas ao papa Alexandre VIII e aos cardeais,pedindo nomeação de bispos para Portugal, e prosperidades para os católicosde Inglaterra. Guerreou diplomaticamente os hereges, conquanto o maridofavorecesse a Reforma. Também escrevia cartas ao provincial dos arrábidos dePortugal, pedindo-lhe oito frades, incluindo “um pregador de satisfação, e osmais proporcionados para entoarem o nosso canto de que se há de usar nocoro”.E para lá foram os frades ajudá-la a passar o arrastado tempo. Pobre mulher!Que entretimento aquele! Oito frades da Arrábida! Que piedoso martírio, eque alma tão feriada a Deus, e conquistadora da bem-aventurança! Aindaassim, com tão piedoso viver, foi acusada no Parlamento de querer propinarpeçonha ao marido! O rei propriamente saiu por honra e defesa dela. Algunsdeputados opinavam que se degolasse Catarina com o cutelo de Carlos I e deMaria Stuart; porém o desterrado amigo de Afonso VI, o marquês de Castelo-Melhor, tanto rogou e defendeu a irmã do seu rei perante os inimigosconjurados dela, que vingou não a prenderem sequer. Em paga destes bons e


capitalíssimos serviços, o premiou a rainha com muito dinheiro e joias, comque ele fundou o morgadio chamado de Santa Catarina, em comemoração dainfeliz e dadivosa senhora. Os fradinhos também estiveram a pique de seremdependurados. Um dia, os parlamentários cercaram-lhe o convento, e foramdentro procurar armas. Encontraram umas disciplinas. O Castelo-Melhor,tirando-as fora do prego, disse aos fidalgos invasores: “Estas são, senhores, asarmas com que estes pobres homens vos intentam conquistar; e, se quem osacusa a eles usara destes instrumentos, vos pouparia esta visita; e ao povo aperturbação em que está.” Apesar disto, diz um historiador arrábido que osseus irmãos tiveram muitas vezes na garganta o fio do cutelo.Morreu Carlos II, já convertido à fé católica, em 1685. D. Catarina, passadosoito anos, escreveu ao seu irmão Pedro II significando-lhe o desejo de voltar aPortugal, depois de uma ausência de vinte e três anos incompletos. O rei dePortugal tratou logo da transferência da irmã. Em 20 de Janeiro de 1693,entrou a rainha da Grã-Bretanha em Lisboa, e recolheu-se ao paço deAlcântara. Daqui mudou para o palácio do conde de Redondo a Santa Marta;e, não contente do local, passou para o do conde de Aveiras, em Belém. Porúltimo, resolveu edificar palácio no sítio da Bemposta.Estas divagações enfadosas eram necessárias para de mais longe explicar aquem isto ler a missão do provedor das obras do paço a D. Francisca PereiraTeles e ao seu marido Plácido de Castanheda de Moura.


CAPÍTULO XIISe acontecesse D. Francisca Pereira gostar da sua casa da Bemposta, ser-lhe-iainútil responder ao rei que a não vendia. Felizmente para ela, a casa estavaabalada, e por isso as reais ordens alegraram-na. Tratou logo em transferir-separa o seu palácio da Pampulha.A escritura da venda vai ser textualmente translada do tomo nove doGabinete Histórico, de frei Cláudio da Conceição. Reza assim:Aos quatro dias do mês de Julho de 1701, na cidade de Lisboa, Rua dosMouros a S. Pedro de Alcântara, nas casas em que vivia o desembargadorBartolomeu de Sousa Mexia, juiz dos Contos do Reino e Casa, achando-se aípresente como procurador de ebrei, e da outra Sebastião Leite de Faria,escrivão da mesa dos despachos dos Contos, em nome, e como procurador dePlácido de Castanheda de Moura, contador-mor dos mesmos Contos, porvirtude de uma procuração, que apresentou, e assim o doutor Manuel Gomesde Palma como procurador de D. Francisca Pereira Teles, mulher do ditoPlácido de Castanheda de Moura, foi dito perante o tabelão, que eles eramsenhores e possuidores de umas casas, e outras pequenas com as suas hortas,sitas nesta cidade à Rua Larga da Bemposta, que parte dele é morgado de queele dito Plácido de Castanheda de Moura é administrador por cabeça da suamulher, e a outra parte livre e desembaraçada, partem todas pelas suas devidas


e verdadeiras confrontações com que por direito devam partir; nas quais seestá fazendo um palácio para a rainha da Grã-Bretanha, e em razão do ditosenhor ordenar que se vendessem segundo a avaliação que delas se fez, quesão pelo que toca ao dito morgado, por preço de dezasseis contosquatrocentos e sessenta e seis mil seiscentos e sessenta e seis réis, de que odito senhor daria juro real em sub-rogação dele, e livre por doze contosnovecentos e setenta e sete mil quinhentos e quarenta e sete réis, resolveram odito Plácido e a sua mulher em vender, e sub-rogar as ditas casas pelo preçoreferido. O dito senhor dará um juro real para que fique tocando ao ditomorgado, em satisfação da parte do dito morgado, a seguir a natureza dele,ficando uma coisa pela outra sub-rogada, de sorte que as ditas casas domorgado fiquem livres para a dita rainha, para quem el-rei.Pedro mandou-as comprar, para que ela faça delas o que lhe parecer, e a ditaquantia que se há de dar do juro real fique sendo do dito morgado de que éadministrador o dito Plácido por cabeça da sua mulher: e parte das casas quesão livres as vendem por doze contos novecentos e setenta e sete milquinhentos e quarenta e sete réis de que logo ali recebeu o dinheiro decontado, com a condição seguinte:Foi dito pela dita D. Francisca Pereira Teles que o seu pai o contador-morLuís Pereira de Barros lhe dissera, que na ocasião dos motins recolhera nasditas casas em parte oculta grande quantidade de dinheiro, cujo lugar constavadas letras de um anel, que ele trazia no dedo, ordenava que na hora da morte


se lhe tirasse; e porque o dito anel desapareceu, e o dito dinheiro se nãoachou, no caso que nalgum tempo apareça e se descobrir, lhes ficarápertencendo a eles vendedores in solidum ou aos seus herdeiros e sucessores!Assim o outorgaram, pediram e assinaram... etc.Seguem outras condições estipuladas acerca de pagamento do juro dospadrões, nada importantes à urdidura da história.Quando à Covilhã chegou, em carta de Diogo de Barros, a notícia da vendado palácio da Bemposta e cópia da escritura, Jorge deu como perdido otesouro, quer se ensenhoreasse dele sua família, quer o sonegassem os alvenéise mais operários do reviramento pelo qual tanto as casas, jardins, como hortase bosquetes deviam geralmente passar desde os alicerces e raízes. Não semcausa entendeu ele que o tosco Neptuno seria apeado, e logo a caixa dorepuxo ficaria a descoberto. Este fundado susto afligiu-o grandemente, porquenaquele cofre, além da riqueza destinada a futuros contentamentos, estavamobjetos sacratíssimos para seu avô e para ele.Bem que Simão de Sã o contrariasse, Jorge planeou ir aforrado a Lisboa,entrar à quinta enquanto as demolições se faziam na casa, e subtrair o cofre.Parecia-lhe isto fácil e inquestionável. As razões alegadas convenciam; e, sobretodas, com uma argumentava ele de muita força:


— Se meu avô soubesse que eu nenhuma diligência pusera em salvar demãos estranhas, ou ainda da posse da minha mãe, aquele tesouro, amaldiçoarme-ia!Deu-se, portanto, pressa em executar o intento, que lhe parecia desempecidode todo embaraço.É de saber que Filipe, Garcia, e outros familiares de D. Francisca, desde queos derribamentos começaram, vigiavam juntos ou à vez os pedreiros ecavadores. Era já notória em Lisboa a condição da escritura: muita gente,levada da curiosidade, concorria às obras da Bemposta, na esperança deassistir é exumação do tesouro, que os mais imaginosos asseveravam serenormíssimos cabedais que Afonso VI, antes de ser preso, confiara ao seuamigo Luís Pereira de Barros.Alguns obreiros da reedificação conchavaram-se em sonegar dos vigilantesespreitadores os lugares em que algum indício topassem do caixão enterrado.Estremunhados pela espora da cobiça, erguiam-se à meia-noite os que ficavamde guarda às ferramentas, e cavavam e revolviam entulhos, até à madrugada,nos sítios que deixavam de véspera intencionalmente mal rebuscados. Pormaneira que as avenidas do palácio quase arruinado eram tão vigiadas de diacomo de noite.


D. Francisca Pereira, avisada dos trabalhos noturnos, mandou para as obraspernoitar criados de confiança, os quais, conluiados com os pedreiros,prosseguiam nas escavações, pactuados em repartirem irmãmente o tesouro.Das pesquisas interiores passaram a descalçar e cavar no chão doscaramanchões, e no lajeado das fontes. Chegaram a desguarnecer as paredesdos azulejos, e a derrubar estátuas do jardim para descoser as pedras daspeanhas. Da noite ao dia era prodigioso o progresso das ruínas, no decurso detrês semanas.Os incansáveis exploradores aproximaram-se uma noite do tanque doNeptuno; saltaram dentro alguns; levantaram a tampa do aqueduto por ondese desobstruía noutro tempo o encanamento. Palparam. Entrou o mais afoitoà mina, e voltou praguejando, e dando ao diabo a alma e os braços de quementerrara o dinheiro e os trazia tresnoitados. O deus do mar, que ali estavacom a boca aberta, parecia rir deles. Um dos pedreiros reparou na cabeça deNeptuno, e disse que lha quebrava, se não fosse a imagem de S, Pedro.Perguntou outro porque tinha ele o gadanho na mão, sendo o costume usar S.Pedro de chaves. O interrogado satisfaz a crítica do companheiro,esclarecendo que o pau com três ganchos era ferramenta de andar à pesca, notempo em que o santo vivia de pescar; pela qual razão o meteram os antigosnaquele tanque.


Com estas e outras interpretações não lidas nos florilégios, nem na LegendaÁurea, de Voragine, afastaram-se dali os pedreiros, e foram desfazer uma casade fresco já meio desmantelada no fundo do bosque.Numa destas noites de Agosto, por volta de onze horas, avizinharam-se dasobras de Bemposta dois sujeitos rebuçados de maneira que deram nos olhosde alguns pedreiros deitados em palestra no terraço onde tinha sido o pátio dopalácio: a muita calma e o muito encapotar-se dos vultos eram coisas que senão compadeciam sem suspeita dos alvenéis.Era Jorge de Barros e o escudeiro António Soliz. Jorge parou em frentedaquelas ruínas, e disse:— António, vê tu a casa do meu avô!...E o velho, debulhado em lágrimas, apenas respondeu com soluços.— Ainda há nove meses que saímos daquela porta com o meu avô nosbraços!... — continuou Jorge. — Que voltas, António!... Que mudanças!...— Não se esteja afligindo, senhor Jorge — disse o escudeiro, — Pensemosno a que viemos... Eu vejo no pátio uns homens que nos estão olhando...— Que nos faz a nós isso? Passemos adiante. Vamos rodear a quinta: podeser que alguma parte do muro já esteja arrasada. A minha opinião é que otanque do Neptuno já lá vai...


Deram volta ao muro da quinta, e não acharam lanço acessível. Desandaram,praticando no modo de entrarem, mediante uma escada, na seguinte noite.Pararam novamente diante da fachada do palácio. O escudeiro quis evitar queo amo se aproximasse de um pedreiro que saíra à rua e se assentara no frisodo cunhal da casa tangendo numa bandurra, e cantarolando trovas, alusivasaos dois embuçados que ele imaginou amadores das próximas vizinhas. Diziaa letra:O luar da meia-noite,Tu és o meu inimigoEstou à porta de quem amo,E não posso entrar contigo.O pedreiro, se não era o inventor da trova, não tinha obrigação de ser maiscorreto que o menestrel. Acercou-se Jorge do epigramático trovador, e disselhe:— Amigo, boas noites.


— Deus o guarde, senhor! — respondeu cortesmente o pedreiro, comovisse lampejar, na orla do reguingote do embuçado, a ponteira amarela de umabainha.— Estais folgando com a vossa bandurra? — disse Jorge.— É verdade, senhor: nós com a calma nem dormir pode.— Sois, pelos modos, alvenel da casa da senhora rainha da Grã-Bretanha...— Sim, senhor.— Vão adiantadas as obras?— Isto vai de galope: não cansam braços nem dinheiro.— E o tal tesouro apareceu? — voltou Jorge.— Qual tesouro nem qual carapuça!Têm aí cavado nesse chão que é um por demais! A quinta está toda minada, eaté à data de hoje o que apareceu é pedregulho. Eu acho que o tal velhote, quemorreu, enterrou tanto dinheiro na quinta como o que eu tenho, que não énenhum!— E minaram também a quinta? — perguntou Jorge com interesse.— Sim, senhor, tudo até lá baixo.— E também chegaram à mata?


— Ora!, como o senhor sol! Havia lá uma casinha de fresco de portaaguçada à antiga; puseram-na de feitio que parece uma cisterna.— Então também desfizeram o tanque...— O tanque que tem o São Pedro com a gadanha? Nada esse lá está. Achoque foi por amor do santo que o não escangalharam, mas já lá andaramhomens na mina aqui há quatro noites atrás, e saíram de lá sem uma de trêsréis.Os filhos do senhor contador-mor, de quem era este palácio, também láforam, assim que souberam que os pedreiros lá tinham ido. Os fidalgosdesconfiam de toda a gente, e não querem sair de cá. De dia vêm eles, e denoite trazem criados a rondar a casa e a quinta. Afinal, amanhã ou depois vemtudo isto a baixo; e, assim que os alicerces começarem, o dinheiro, se cá está,cá fica.O escudeiro, temeroso de que alguma impensada pergunta do seu amo desseao pedreiro suspeitas da localidade do cofre, levou-o dali tirando-obrandamente pelo braço.Àquela hora recebia D. Francisca Pereira Teles denúncia de ter saído daCovilhã seu filho Jorge.A precatada fidalga, mediante o valimento do seu marido com os recebedoresem todas as cabeças de comarcas, conseguira estabelecer na Guarda e Covilhã


uma atalaia aos passos do filho. Surpreendê-lo no lanço em que elepessoalmente diligenciava apossar-se do cofre era a última esperança emáximo empenho da infatigável mulher. Neste propósito, desistiu deespicaçar o Conselho Geral da Santa Inquisição, formado de frades de S.Domingos. Avisadamente pensou ela que afugentar a judia, caso ela estivessena Covilhã, seria afugentar o possuidor do segredo. Perder-se o cofre para ela,embora se perdesse também para Jorge, não lhe era suficiente consolação. D.Francisca antes queria o dinheiro que ver Sara na fogueira, ou pelo menosoptava pela mais incerta das coisas, visto que os frades eram menosengenhosos em desencantar tesouros do que em transferir ao inferno a almaextraída de um corpo queimado.Recebida a nova e confirmada no dia seguinte por um próprio, que seguira oitinerário de Jorge, com distância de cinco léguas, D. Francisca chamou aconselho os filhos, que, logo ao primeiro aviso, saíram com os criados arondar a Rua da Bemposta, uma hora depois que Jorge retirara a hospedar-seem casa de Diogo de Barros. Para a noite seguinte, deliberaram Garcia e Filipeemboscar-se com os criados nas vizinhanças da casa entre as árvores daquinta, e esperarem a provável entrada dele pelos muros.O plano traçado era vigiar a direção de Jorge; e, logo que ele denunciasse como rumor de deslocação de pedra o local do cofre, afugentarem-no a tiros depólvora seca. As maternais entranhas de D. Francisca Pereira tiraram a partidoque, somente em último recurso, fizessem sangue.


Ao anoitecer, os irmãos de Jorge recolheram-se com quatro criados à quinta, econfiaram a ronda exterior do palácio ao mais valente e sagaz de todos, postoque sexagenário, o qual era o cocheiro do defunto Luís Pereira de Barros. Estehomem, posto que de condição bastante má para atraiçoar a confiança daama, tinha uma fibra incorrupta no coração: era o reconhecimento ao velhoescudeiro António Soliz, que muitas vezes o socorrera em apertos de dinheiro,quando, no meado do mês, tinha esvaziado por tavernas e bordéis o ordenadoe a quantia a maior que o fidalgo lhe dava para as despesas da cavalariça. Demais disto, se Luís de Barros por outros motivos queria despedi-lo, oescudeiro requeria-lhe o perdão do criado, e conciliava a indulgência do amo.Ora, o escudeiro condoía-se deste homem, por analogia de desgraça com a suasorte no berço. O povo tumultuoso matara-lhe o pai, arcabuzeiro inofensivo,que cumpria suas obrigações de soldado à porta do paço, e nem sequerapontara o ferro ao peito dos invasores. Luís de Barros condoera-se da viúva edo filho recém-nascido, alimentou-os, e levou para seu serviço o rapaz maldotado de instintos, mas amparado pela misericórdia do fidalgo e bondade doescudeiro.Era, pois, este o encarregado de vigiar que Jorge se não introduzisse poralguma das portas do já quase derruído palácio. Ao fim da tarde, saiu ele, e foia casa de Diogo de Barros. Procurou António Soliz; e, como lho negassem,insistiu dizendo:


— Ora vamos, não me queiram enganar, que é escusado... Digam-lhe láque está aqui o Bonifácio cocheiro.Dado o aviso, António apareceu, e não hesitou em chamar Jorge, assim queBonifácio lhe contou o modo como a fidalga soubera da chegada deles aLisboa.Ouviu Jorge os pormenores da emboscada, pagou generosamente a denúncia,e despediu o cocheiro do seu avô. Nessa mesma noite, dizia ao seu tio Diogode Barros:— Sou uma baixa alma, meu tio.— Porquê, Jorge?!...— Porque deixei um tesouro de alegrias inestimáveis, e vim procurar outrocuja conquista me poderia custar a vida; e, se acontecesse sair-me eu ilesodesta façanha, o ouro e pedras que o cofre encerra não bastariam a comprarum contentamento. Fique-se embora o dinheiro que tem condenação fatal! Euvou-me a toda a pressa procurar o tesouro que deixei; e esse sei eu e juro quehei de encontrá-lo... é o coração de Sara.E, nesta mesma noite, saiu de Lisboa.


CAPÍTULO XIIID. Francisca duvidou das informações dos seus espias da Guarda, e Covilhã,ao fim de oito dias de inútil espera na Bemposta.Enquanto os fidalgos, espancando o sono para espertarem os criados,passavam más noites escondidos por entre ramagens e rimas de entulho, ovelho Bonifácio remoçava as cãs numa taverna de Andaluz, ou se adormeciaregaladamente sobre a enxerga mais convizinha da pipa do Colares. Bem deestômago, melhor de algibeira, e ótimo de consciência, Bonifácio entendia quejá na terra saboreava o céu das boas ações.Enfim, recolheram-se as roldas e sobrerroldas, porque D. Francisca teve avisoda volta de Jorge à Covilhã. Então tratou ela que o filho desenterrara o cofrelogo na primeira noite da entrada em Lisboa. Mandou que se interrogassem ospedreiros sobre se algum desconhecido penetrara a quinta naquela noite.Contou um pedreiro que estivera falando com dois homens embuçados, ereferiu algumas perguntas que um deles lhe fizera. Isto bastou a considerar-selograda irremediavelmente D. Francisca. Abrasaram-na chamas de rancor aofilho e à memória do pai. Insultou o marido que meigamente a consolava.Solicitou de novo, para a captura do filho, ordens absurdas que Diogo deBarros contraminava. Passou-lhe pelo espírito revolvido em infernos de


impotente vingança denunciar o filho à Inquisição como renegado ecircunciso por amor de Sara.Na preparação deste projeto, cuja protérvia não ultrapassa os limites lógicosda vingança na alma desmoralizada, salteou-a castigo da visível Providência.Filipe corria amores no mosteiro de Odivelas com uma religiosa de famíliamuito ilustre de Lisboa, senhora desempoeirada e voluntariosa que trazia oconvento em descrédito e as superioras constemadíssimas. Os gemidos davirtude escandalizada já tinham chegado ao paço. Pedro II, depois dofalecimento da sua segunda mulher, caíra em si, se não é mais exato dizer queo demónio do remorso lhe caíra às cavaleiras. Como quer que fosse, o rei fezsebeato, amicíssimo de frades ascetas, zeloso guarda das leais esposas doSenhor, e desafeiçoado às infiéis. Os queixumes da prelada de Odivelascomoveram-no e irritaram-no contra a freira e contra o filho do contadormor.Chamou à sua presença os pais de ambos os delinquentes: o da freiraquis desculpar-se com a pertinácia de Filipe de Moura Teles; e Plácido deCastanheda fingiu que podia muito com o filho, e o desprenderia para sempredos criminosos afetos.Esteve alguns dias a religiosa fechada como em prisão nos seus luxuososaposentos; e Filipe, repreendido pelo pai, transigiu por algum tempo com avontade do rei, e rogos carinhosos da mãe.


Porventura, o amarem-se muito, e a condição inflexível de ambos, fez quereincidissem, volvido um mês, nas mesmas imprudências de colóquiosnoturnos, já não insuspeitos de escalada. Foram outra vez à ourela do trono aslágrimas da comunidade levadas por frei Manuel de S. Plácido, da OrdemTerceira, muito querido do rei Pedro II mandou prender no Limoeiro Filipede Barros, e remover a religiosa incorrigível para um convento da Beira.O valimento do contador-mor, e instâncias de D. Francisca Pereira comparentes donas de honor, conseguiram a liberdade de Filipe, sob condição denão mais inquietar a freira.Estas coisas tinham passado nas três semanas anteriores à ida de Jorge aLisboa, e no entanto o conde de S. Vicente, pai da religiosa inflexível,conseguiu levá-la da Beira para o mosteiro de Chelas.Eram amores mal sorteados aqueles! Filipe, sem resguardo dos irmãos dela,homens de honra e já fatigados de aquinhoarem do descrédito da irmã,aparecia em Chelas, espotreando o folheiro cavalo, cortejando a dama que lhefazia os costumados sinais, e deixava cair bilhetes esperançosos de mais felizesencontros.Avisada a família da freira, saíram para Chelas os dois irmãos, que serviamgrandes postos no exército. Um deles afastou-se da estrada para não seremdois os agressores; o outro saiu de frente a Filipe de Barros, e levou da espada,assim que Filipe se deu ares de acometê-lo. A pugna foi rápida e funestíssima


para o filho de D. Francisca Pereira. O estoque saltou-lhe da mão, ao tempoque a espada do contendor lhe ensopava em sangue os rufados da gorjeira.Era ao cair da tarde, quando D. Francisca pensava em denunciar Jorge àInquisição, e recebia a nova de estar seu filho Filipe morto na azinhaga deChelas.Era de lama petrificada a alma daquela mulher! Em vez de dobrar o pescoçodebaixo da — mão da Providência, rompeu em blasfémias que as masmorrasda Inquisição nunca tinham ouvido dos israelitas postos a tormento.Plácido de Castanheda de Moura foi queixar-se ao rei. Pedro II, ouvidas asexclamações do contador-mor, disse-lhe secamente:— Ide queixar-vos perante os juízes, que não sou eu ministro das leis. Setivésseis uma filha, e um libertino vo-la andasse desonrando, e os vossosfilhos matassem o libertino, e o pai dele aqui viesse queixar-se como vós,mandá-lo-ia, como vos mando, requerer vossa justiça onde cumpre. Matar sóDeus: castigar matadores só a lei. Pedro primeiro, o justiceiro, não sei se vosfaria tanta honra como eu. O vosso filho, segundo estou informado, nãoprestava para nada. Além de que — acrescentou o rei — quem viu morrervosso filho?! Como sabeis que o mataram os filhos do conde de São Vicente?— Eles foram, senhor, que já o tinham ameaçado — respondeutimidamente Plácido.


— Ameaças não provam: e de mais, vosso filho mal fez em desprezar oaviso, e vós mal fizestes em desatender as minhas reflexões.O sobrolho de Pedro II impunha silêncio. O contador-mor genufletiu com aperna direita, arqueou-se como se agradecesse uma mercê, e saiu, à s recuadas,consoante o cerimonial, da presença do rei mal-assombrado.O irmão de Afonso VI não perdoara aos descendentes de Luís de Barros, oqual, desde a prisão daquele singular desgraçado, nunca mais pisara tapetes dopaço, nem mais quisera encarar no incestuoso verdugo do seu rei.Os homicidas chegaram impunemente à presença de Pedro II. Oscorregedores, e quantas gamachas decoravam o templo da justiça, não tinhamque ver com os filhos de Bernardo de Távora, general de batalha, conde de S.Vicente.Naqueles tempos de tanta saudade, para os pregoeiros das virtudes dos nossosantepassados, casos de homicídio, denegridos por mais atrozes circunstânciasdo que a morte do filho do contador-mor, se executavam com análoga e maisescandalosa impunidade. Aqui vem de molde referir um sucesso, que nãoprende com este romance, e todavia dá a medida da força das leis emantagonismo com a força bruta dos pulsos fidalgos.Seis anos depois do período em que vai correndo esta narrativa, já quando osesplendores de D. João V iluminavam mais os espíritos, passou o casoseguinte, referido pelo Cavalheiro de Oliveira:


“Um corregedor guardava uma porta da igreja da casa professa dos jesuítas,quando ali se celebrava grande festividade. Somente o rei havia de entrar poraquela porta.Chegaram aqui o marquês das Minas e o conde da Atalaia; mas o corregedorcom razão lhes vedou o passo. Insistiram eles, dizendo ao ministro que asordens recebidas não podiam entender-se com pessoa da sua esfera.Redarguiu o corregedor que as ordens ninguém excetuavam, e portanto, semque o rei entrasse, não podia ele permitir que entrasse quem quer que fosse.Aqueles senhores podiam entrar por outras portas francas a toda a gente. Nãoobstante, obstinadamente exigiram do corregedor uma distinção que ele nãopodia dar-lhes sem transgredir os deveres... Os dois fidalgos, depois de oterem insultado, passaram às últimas. O conde da Atalaia deu com o chapéuna cara do corregedor, e o marquês das Minas traspassou-o com a espada, ematou-o. Em seguida cavalgaram, e saíram do reino. O marquês das Minas foiperdoado e voltou ao reino.“Crê o leitor que, não obstante o perdão, o marquês das Minas passaria orestante da vida sequestrado das graças do monarca e da convivência daspessoas de bem? Não faça juízos temerários, leitor: o marquês das Minasrecebeu o indulto, e ao mesmo tempo o bastão de general.Já vimos a justiça dos homens: agora vejamos a da Providência. Servia noexército português um castelhano chamado D. Juan de la Cueva, que não dava


“excelência” ao seu general, marquês das Minas, sem que este lhe desse“senhoria”. Ora, o marquês, assassino do corregedor — diz o Cavalheiro deOliveira — , era soberbo e arrogante. Um dia, ao entardecer, saía ele daportaria da congregação de S. Filipe Néri, a tempo que desgraçadamente Juande Ia Cueva ia entrando. Cortejou ele o marquês que lhe não deu a pretendida“senhoria”, e por isso De Ia Cueva lhe não deu “excelência”. O general,grandemente irritado, levantou o bastão e proferiu palavras ameaçadoras. DeIa Cueva, sem lhe dizer palavra, traspassou-o com a espada. O marquês nãotugiu nem mugiu: quando caiu por terra, já ia morto. O padre, que oacompanhara até à portaria, e era confessor dele, apenas teve tempo de lheapertar a mão. D. Juan de Ia Cueva pôde escapar-se, e refugiou-se emEspanha.Na jurisprudência divina a justiça mais seguida é a pena de Talião.


CAPÍTULO XIVD. Francisca Pereira caiu afinal extenuada. O esbravejar da raiva prostrou-a. Orancor ao filho Jorge declinou mais assanhado sobre os filhos do conde de S.Vicente. As pragas, que ela jurou sobre aquela família, tão próspera nosreinados de Pedro II e João V, pensaria ela que se empregaram, cinquenta etrês anos depois, na família Távora, se pudesse antever os cadafalsos, e oesquartejamento e as labaredas, na Praça da Junqueira!Mas a neta de Leonor Teles não se contentaria com prever a morteafrontosíssima dos descendentes do homicida. Mãe, a um tempo extremosacom aquele filho, e ferina de coração, pedia a brados vingança pronta eestrondosa. Era-lhe incomparável agonia não ter filho que ousasse afrontar-secom os Távora, porque o efeminado Garcia atendia seriamente a conservar-se,e mandar à posteridade sua raça na pessoa do seus descendentes.Esqueceu-se, pois, da teia que andava urdindo contra Jorge; ou, a nãoesquecer-se, reservou a postema para supuração mais oportuna.E, entretanto, o hóspede de Simão de Sã planeava ganhar sua vida,fundamentar alguma base de negócio ou indústria com o dinheiro que o seuavô lhe tinha mandado tirar das gavetas do contador. O israelita desviava-o demisteres incompatíveis com o seu nascimento, ofertando-lhe dos seus havereso necessário para sossegadamente esperar monção de tomar conta assim do


tesouro, como do património advindo por morte de pai ou mãe. Estagenerosidade não o demoveu; todavia, Jorge de Barros, combatido peloespírito de raça, ao qual as ideias do tempo o avassalavam, projetou ir fora dePortugal, e, salvo da crítica, mercadejar ou estabelecer oficinas, entregando amordomia do seu tráfico a António Soliz.Simão de Sã tinha em Amesterdão parentes, uns fabricantes de estofos, eoutros tipógrafos abastados, bisnetos de judeus que, em tempo de D. Manuel,João III, e do cardeal-rei, para lá tinham fugido ao latrocínio, à violação dassuas filhas, e ao fogo. A intercessão de séculos e da longitude não bastará aromper os laços de sangue entre os holandeses, que falavam da pátria do seusavós com a herdada saudade do seus pais, e os Sãs da Covilhã, que davamconta aos outros do infortúnio desesperançado dos israelitas portugueses.Jorge tencionava, portanto, ir morar em Holanda, levando recomendaçõespara os hebreus poderosos de Amesterdão.Sara escutava com opressivo silêncio estas deliberações, e não ousavaperguntar a Jorge qual seria depois o seu destino dela. E o rapaz, aocontemplá-la assim triste e calada com a sua imensa dor, entreabria-lhe numsorriso uns vagos lampejos de luz de bem-aventurados, que ela não sabiaexplicar-se nem perguntar.


Um dia, duas semanas antes da projetada viagem, Jorge recolheu-se comSimão de Sã e Sara à livraria, em que o mais das horas lhe fugiam entretidas edesassombradas de penosas cogitações.A judia não desfitava os olhos dele, enquanto os lábios se não abriram comestas palavras:— Meu bom amigo, eu afiz-me a olhar em Sara como nas suas filhas.Como filha a encontrei querida e estimada nesta casa. Aqui a respeitei como atinha respeitado sob o teto protetor da casa do meu avô, onde ambos noscriámos. Dito isto, senhor Simão de Sã, eu não pergunto a Sara se me ela querdar a sua vida como sei que me há dado o coração; a Vossa Senhoria perguntose lhe praz o nosso casamento.Sara ergueu-se sobressaltada com as mãos erguidas, desatando dos lábios umai, já quando as lágrimas lhe tremiam nas pálpebras. Simão foi de encontro aopeito de Jorge, e abraçou-o com veemência de arrebatada alegria. Depois,desprendido dos braços de Jorge, tomou Sara pela mão, levou-a às mãos domancebo, e disse-lhes muito comovido:— Sois dignos um do outro; e eu, pelo muito que vos quero, e pelo muitoque a Deus tenho pedido boa sorte para vós, digno sou também destecontentamento.Jorge continuou, largando as mãos de Sara: — A ti me ligo, pobre menina,porque te quero muito, e vi que a nobre alma do meu avô te considerava


como se te tivesse destinado para a minha mulher. Porém, se menos teamasse, Sara, ainda assim te diria: sê minha esposa, pelo que tens padecido;aceita-me esta remuneração dos involuntários perigos em que arrisquei tuavida. A minha mãe queria-te morta, doce criatura que Deus defendeu da ira deuma mulher, cujas entranhas, assim que eu nasci, ficaram para mim cheias depeçonha. Deus me defendeu a mim com o anteparo do meu avô, porque aProvidência de cristãos e israelitas viu que ambos nós éramos injustamenteperseguidos. A perseguição dá-nos tréguas; mas voltará mais assanhada talvez;confiemos na proteção do Alto. Agora, enquanto a tempestade se estáformando, fujamos para algum remanso. Vais comigo para Holanda; serás oamparo e estímulo das minhas forças, quando a desgraça as quebrantar.Nasceste no trabalho, serviste ingratos, endureceste o teu seio na peleja contraa dureza do teu destino. Não estranharás a pobreza, quando ela chegar. Estáscontente, Sara?— Senhor Jorge! Abençoada seja a sua resolução! Abençoada e perdoadaseja sua mãe, que me preparou esta alegria! — exclamou Sara com transporte,beijando-lhe as mãos.E Jorge atalhou-a:— A nossa união será feita com o ritual católico. O meu espírito não estápreocupado de religião nenhuma; todavia, a mesma razão de uma quaseindiferença faz que eu não passe da religião com que me criaram para outra,


cujos dogmas me não convencem. O casamento, como sacramento, já podemuito sobre a consciência: é um hábito que assumiu as proporções deconsagração e identificação de duas vidas numa. Desejo, portanto, que nosligue o sacerdote católico: qualquer outra cerimónia seria supérflua, se osenhor Simão de Sã pensa que o cerimonial mosaico é indispensável aocasamento.— Não, senhor Jorge — disse Simão — , o Deus de israelitas e cristãos melivre de contrariá-lo. Respeitemos reciprocamente a nossa fé. A minha filhaJudite vai também ligar-se ao meu sobrinho Eflakim. Há de ir ao templo doscristãos, porque nessa conta são tidos; depois, hão de ligar-se conforme ocerimonial da bênção judaica; mas meu sobrinho e a minha filha seguemrigorosamente a lei mosaica. Se o senhor Jorge consente, eu farei que as duasalianças se celebrem no mesmo dia, e será depois testemunha da bênçãonupcial da minha Judite, segundo o ritual hebreu.Jorge aceitou alegremente o convite. Entregou a Simão a certidão do batismode Sara; e, voltando-se à jubilosa menina, disse:— Lembras-te do meu avô quando na pia batismal te pôs a mão na cara?— E o senhor Jorge segurava nas mãos a coroa de Maria, mãe de Cristo...— recordou ela.— Quem então diria!... — balbuciou o jovem.


— Éramos tão pequeninos então!... — volveu a judia. — O senhor Jorgesentava-se ao pé de mim, quando me via chorar com saudades da minha mãe,e dizia-me: “Anda brincar comigo, que eu peço ao meu avô.” Outras vezes, iadizer àquele santo velho, que está na glória dos justos, que eu estava aperguntar se a minha mãe tinha morrido no auto-de-fé. O senhor Luís deBarros mandava-me chamar para ao pé de si, e distraía-me com meiguices,que eu agradecia com lágrimas...— Não recordes — atalhou Jorge — que eu ainda não tenho coração quesem torturas escute falar do meu avô. O futuro, Sara, o futuro! Sejamosdignos da bênção daquele santo homem.


CAPÍTULO XVCelebraram-se as núpcias de Jorge de Barros e Maria de Carvalho. Causouestranheza o sucesso aos fidalgos da Covilhã, porque o acto foi público. Oenlace de mancebo da primeira nobreza com uma cristã-nova era casosingular, desde que D. Manuel desprestigiara a riqueza dos hebreus, roubandolhacom a vida. Não acontecia assim na época em que os israelitas senobilitavam em Portugal, à semelhança de um Moisés Navarro que instituiuem Santarém um dos maiores vínculos do século XIV com permissão de D.Pedro I.Assim que a notícia soou fora do templo, meteu-se logo a caminho umportador para a Guarda, e daqui para Lisboa cartas avisando D. FranciscaPereira Teles do despejo, senão apostasia, do filho.À hora, porém, em que a fidalga devia receber a nova, já Sara e o seu maridoteriam no mar alto a defesa das ondas, levantadas entre o seu amor e o paçodos Estaus.Como se disse no capítulo anterior, Simão de Sã destinou que, no mesmo dia,se casassem sua filha Judite com Eflakim. Como simulados cristãos, os noivosreceberam as bênçãos do padre católico, e foram depois secretamenterevalidar sua união segundo o ritual judaico.


Jorge era já como da família, bem que não praticasse o mosaísmo. Foi-lhepermitida a assistência ao acto, que ele ardentemente desejava presenciar.— Para satisfazer-lhe completamente a sua curiosidade — disse Simão deSã — convém referir-lhe as cerimónias que já precederam esta final cerimóniado casamento. Há seis meses que o meu sobrinho Eflakim entrou nesta casa,e, em presença de testemunhas, disse a minha filha: “Sê minha mulher.” Aomesmo tempo deu-lhe um anel, cerimónia que aboliu a outra mais antiga deuma moeda de indeterminado valor. Depois, meu sobrinho dotou minha filha,porque entre nós as mulheres não podem levar aos maridos dotesconsignados em escrituras. Assim que os noivos reciprocamente consentiram,o rabino proferiu uma breve oração em louvor de Deus que permitiu ocasamento e proibiu o incesto. Os mancebos e donzelas, que assistiram a esteacto, lançaram ao chão as bilhas que trouxeram, quebrando-as, comopresságios de abundância e prosperidade. Os esposos beberam depois algumasgotas de vinho de uma taça comum, e quebraram-na também. Quer istosignificar a comunidade e fragilidade dos bens da fortuna. Eis aqui o que, háseis meses, se passou. Agora, verá o restante. Como não temos sinagoga, ascerimónias fazemo-las em casa.Conduzido, depois desta breve narração das precedentes cerimónias, a umasala luxuosamente decorada com antigos adornos, que deviam ter sido detemplos anteriores à perseguição, viu Jorge de Barros entrar a noiva cintilantede pedraria, debaixo de um docel, arvorado por quatro mancebos. Todas as


pessoas, que estavam na sala, à entrada de Judite, disseram: “Bendita sejaquem chega.“. Em seguida, acenderam círios, rodearam a noiva, e cantaramuma suave e afinadíssima melodia. Depois, a esposa fez três giros em redor doesposo, em virtude de Jeremias ter dito: “A mulher rodeará o homem.” Assimque ela parou, Ebakim deu duas voltas em redor de Judite.Os circunstantes, logo depois, espargiram alguns grãos de trigo sobre osesposos, exclamando: “Crescei e multiplicai-vos”, enquanto Simão de Sãsemeava num vaso de terra algumas daquelas sementes, para depois,desabrochados os grãos, os levar aos esposos como símbolo de prontapropagação.Colocou-se a esposa à mão direita do marido, porque o salmista dissera: “Atua mulher está à tua direita.” Voltou-se ela para o lado do meio-dia, e cobriusecom um manto chamado talete, do qual também se cobriu o esposo,porque Rute disse a Booz: “Estende o teu manto sobre a tua serva.” O rabinotomou um copo de vinho, e ofereceu-o a Ehakim, bendizendo o Senhorporque criou o “homem e a mulher, e defendeu o incesto e ordenou omatrimónio”. Elfakim bebeu daquele vinho, deu um anel sem pedra a Judite, edisse-lhe: “Eis que és minha esposa, conforme o rito de Moisés e de Israel.“Repetiu-se a oferta do vinho à esposa por um gomil estreitíssimo, visto queera donzela. Se fosse viúva, a boca do gomil devia ser mais ampla. Enquantoos assistentes entoaram seis bênçãos, os esposos beberam, e lançaram fora ovaso, em sinal de alegria e abundância.


Seguidamente, passaram à mesa onde estava posto um primoroso jantar. Oprimeiro prato servido a Judite foi uma galinha e um ovo. Assim que a noivaprovou da galinha, trincharam-na e repartiram-na pelos convivas. Nesteponto, Simão de Sã pegou do ovo, sorriu-se, e riram todos, exceto Jorge.— Sabe o que este riso quer dizer, senhor Jorge? — perguntou Simão.— Não sei.— É que a praxe manda que se atire o ovo ao nariz do cristão que assistir àcerimónia.— Em tal caso — disse Jorge — não quebrantem o ritual. Aqui lheofereço o nariz.— Está dispensado — disse Judas Ben Tabbay, o rabino que viera deBragança celebrar o casamento.Durante o jantar, cantaram-se sete bênçãos. Ao anoitecer, dois hebreus deidade, denominados “paraninfos”, conduziram os esposos ao seu aposento.Assim findaram aquelas cerimónias. Havemos de alcunhá-las de ridículas,quando expurgarmos a nossa religião doutras que sobre-excedem aquelas emridiculez.


SEGUNDA PARTE


CAPÍTULO IDesde 1701, ano em que Jorge de Castanheda de Barros casou, até 1712,resumiremos os factos contingentes à nossa narrativa, poucos e de medianointeresse.D. Francisca Pereira, sabedora do casamento do filho, saltou enfurecida comose lhe espremessem fel e vinagre na chaga da outra maior punhalada.— Um filho assassinado, e outro judeu! — exclamava ela. — E eu semmarido, nem parentes que me vinguem!Estes brados iam espedaçar o marido, que caíra enfermo e aborrecido da vida,assim que reconheceu impossível vingar-se dos Távora, e granjear abenevolência do rei. Excruciavam-no, ainda por cima das suas dores, osdespropósitos iracundos da esposa que, a cada hora, lhe chamava homem delama, e pai sem entranhas nem honra.Plácido de Castanheda de Moura em meado do ano de 1703 já não vivia.Aquele homem enervado pelo servilismo aos caprichos da mulher, não teve,em fins de vida, vigor de alma com que reagir aos empuxões da adversidadeque o atiraram à sepultura. Acabou sem lágrimas de ninguém, a não serem asde Jorge, que recebeu a triste nova em Amesterdão.


D. Francisca ficou bastante rica para não lastimar a perda do rendoso ofíciodo seu marido. Garcia de Moura Teles, engolfado nas delícias sórdidas de umavida desbragada, não tinha tempo de carpir a morte do pai, que ele nuncarespeitara nem amara.Recebeu a viúva novas informações da Guarda. Noticiavam — lhe aexpatriação de Jorge com a mulher. Com esta notícia, convenceu-se D.Francisca Pereira de que Jorge levara o tesouro da Bemposta, e saíra para oestrangeiro a gozar-se de uma rica independência.Em 1704, Garcia casou, contra vontade da sua mãe com uma mulher decondição humilde e reputação mareada. Garcia ensenhoreou-se naadministração dos vínculos paternos, e separou-se da mãe, injuriando-a.Pouco depois, como o palacete em que ela morava pertencia aos vínculos dopai, obrigou-a judicialmente a despejar. D. Francisca, esmagada, mas aindavivaz como os fragmentos da serpente, começou a vingar-se dos filhos,desbaratando a sua meação e vínculos, em toda a casta de desperdícios, semque a idade a embaraçasse de ganhar fama de acabar desonesta comocomeçara sua vida de esposa. Aos cinquenta e dois anos, D. Francisca Pereirapassou a segundas núpcias com um sujeito de meia-idade, filho sacrílego dobispo de Leiria, D. Fr. José de Lencastre. Este bispo era irmão do cardeal D.Veríssimo de Lencastre, e o seu sucessor nas honras de inquisidor-geral.


Cristóvão de Lencastre, marido de D. Francisca, mediante o valimento do seupai, conseguiu o elevar-se a lugares importantes. Presume-se que a viúva dePlácido de Moura encontrou neste segundo o vingador do primeiro marido.O filho do bispo galaneava em pompa de librés, carroças e arreiamento decavalos; todavia, ao par com ele ninguém vira a mulher. Diziam que a máfilha, má esposa e pior mãe expiava, na soledade da sua câmara, desprezadados seus próprios criados e escravos.Entretanto, Jorge de Barros, Sara, e o escudeiro António Soliz gozavamcontentamento, sossego e prosperidades em Amesterdão. O velho, mordomodos cabedais do seu amo, aventurara também os próprios no comércio danavegação, que os judeus portugueses e espanhóis tinham ensinado em grandeparte aos holandeses. Abalançaram-se a maiores empresas, todas afortunadas.Jorge, deixando a mercancia à responsabilidade e perspicácia de Soliz, repartiaseu tempo entre as alegrias domésticas e a convivência com os hebreus doutosda Península, que tranquilamente escreviam, filosofavam e doutrinavam emAmesterdão. Fez-lhe grande estranheza a distância a que viviam dos outrosjudeus os israelitas desterrados de Portugal e Espanha. Hebreu português querecebesse como esposa uma judia alemã, era logo expulso da sinagoga,excluído de todos os encargos eclesiásticos e civis, e nem sepultura lheconcediam entre os portugueses.


Indagando a causa desta divergência entre membros de uma mesma nação,perseguidos pelo mesmo ódio, soube Jorge que os hebreus portugueses eespanhóis se tinham em conta de representantes da tribo de Judá, a maisnobre das tribos, enviada à Espanha, no tempo do cativeiro de Babilónia.Como quer que fosse, os judeus portugueses eram os melhormenteconceituados e respeitados em Holanda. No correr de dois séculos da suaresidência naquela paragem, apenas se citava raro exemplo de judeu portuguêspunido por alguma malfeitoria.Em Amesterdão frequentava Jorge de Barros as famílias dos Nunes, Ximenes,Teixeiras, Prados, Pereiras, e outras donde, volvidos anos, saíram o barão deBelmonte, ministro de Espanha em Holanda, D. Álvaro Nunes da Costa,ministro de Portugal, Machado, que mereceu a privança de el-rei Guilherme, obarão de Aguilar, tesoureiro da rainha de Hungria, e muitos outros hebreus,donde procedem famílias hoje ilustres em títulos e riqueza.Sara encontrou parentes na Haia, descendentes dos irmãos do seus bisavós, edestes soube que existiam outros no Rio de Janeiro, apelidados Silvas, um dosquais, João Mendes da Silva, advogava naquela cidade com grandes créditos.Abriram as duas famílias correspondência amiudada. Sara admirava as cartasdiscretas e instrutivas da sua parenta Lourença Coutinho, mulher do advogadoSilva.


As famílias de Silvas e Coutinhos, no meado do século XVI, tinham emigradopara a Holanda; e, no reinado de D. João IV, reavido do novo mundo oterritório usurpado pelos holandeses, passaram ao Rio de Janeiro, fiados noprivilégio de inviolabilidade com que os governos portugueses angariavampopulação para aquelas colónias americanas.Lourença Coutinho convidava instantemente Sara a transferir-se ao Brasil;porém, Jorge, contente da mediania do seus recursos, e do trato dos hebreuscom quem afetuosamente se dava, desconvencia sua mulher do desejo depassar ao Novo Mundo.Algumas vezes, a imaginação de Jorge de Barros desferia um voo alto, paralonge, e baixava sobre aquele Neptuno da quinta da Bemposta. Lia o catálogoque o avô lhe dera dos valores encerrados no cofre, e, apesar dodesprendimento de ambições, inquietavam-no desejos de possuir uma riqueza,que podia ser fortuna para muitos netos de portugueses que pobrementedivagavam pela Europa. “Quem sabe”, dizia ele entre si, “em que mãos caiu otesouro! É impossível que a rainha Dona Catarina conservasse aquele tanque ea estátua grosseira do Neptuno. “A estas incertezas respondeu Simão de Sãcom uma carta datada em Janeiro de 1706.Dizia-lhe que a rainha da Grã-Bretanha morrera de cólica no palácio daBemposta em 31 de Dezembro do ano findo, e que ele, por estar nessaocasião em Lisboa, intencionalmente fora ao palácio com o pretexto de


assistir aos responsórios cantados na magnificente capela que D. Catarinaedificara no palácio. juntava Simão de Sã que, depois do saimento do cadáverpara Belém, se ficara conversando com um criado ordinário da defunta acercadas obras que a virtuosa senhora mandara fazer naquele palácio tão poucotempo gozado. E, como a pergunta viesse a molde, inquiriu ele do atenciosocriado, como quem conhecera a quinta em antigos tempos, se um tanque emque havia uma estátua tinha sido reconstruído. O criado respondeu que não,porque a senhora rainha gostava muito de ir sentar-se à beira do tanque porser sítio de muitas sombras e frescura.— Mas então — disse Simão de Sã — a estátua, que estava em seco, tornaa deitar água pela boca.— Não, senhor. A sua Majestade, quando o arquiteto das obras quisrepuxar a água, disse que não bulisse no que estava, porque era feia coisa aboca do Neptuno a servir de bica; e, além disso, a queda da água no tanque adistraía das suas orações e lhe molestava a cabeça.Não obstante, Simão de Sã receava que D. Pedro II, herdeiro da irmã,continuasse as obras, e apeasse o Neptuno.Como quer que fosse, o cofre existia ainda. Jorge de Barros entreviu apossibilidade de havê-lo ainda, e mais facilmente, quando o palácio daBemposta estivesse desabitado.


No fim do ano de 1706, Jorge de Barros deliberou viajar com a sua mulher,adoentada gravemente pelos ares da Holanda. Aconselharam-lhe regiõesquentes, e nomeadamente o Brasil. Foi já saúde para Sara a alegria de ir ver asua parente Lourença Coutinho, a qual, na última carta, lhe dava a fausta novade ter salvado a vida ameaçada do seu terceiro filhinho.António Soliz ficou em Amesterdão, curando do negócio do seu amo.Em Março de 1707, já Sara e o seu marido estavam hospedados no Rio deJaneiro em casa de João Mendes da Silva, pessoa de teres e consideração,muito lido em leis, aparentando fervor de católico, nas devotas poesias em queexercitava a musa enfastiada dos autos; e em consciência mais filósofo, maisespinosista que judeu. As delícias de Lourença eram os seus três filhos André,Baltasar, e o mais novo dos três, António, que tinha dois anos. Das poesias domarido ria ela como sincera judia que era.Sara, sedenta da felicidade de mãe, afagava o gracioso Antoninho,confessando o pesar de não ser dela, e a inveja que a sua amiga lhe fazia comtrês lindos meninos.— Se eu tivesse uma filha — dizia Sara a sua prima — , desde já noscomprometíamos a fazê-la esposa do teu António.— Ainda estás muito em tempo de entrar comigo em contrato — diziaLourença. — Tens vinte e seis anos, Sara. As mulheres querem-se mais novasque os maridos. Se, dentro de dez anos, fores mãe de uma menina, a tua filha


será minha, quando tiver quinze anos, e o meu António será teu. Estamoscomprometidas por juramento?— Sim, prima — assentiu alegremente Sara. — Pode ser; não pode, Jorge?— perguntou ela com adorável lhaneza ao marido.Jorge sorriu-se, e o doutor João Mendes festejou a pergunta com uma boagargalhada, que tingiu de púrpura o rosto de Sara.


CAPÍTULO IIRecobrara-se de vigor a esposa de Jorge de Barros. A vida no Brasil era-lhemais divertida e variada. O marido planeava em transferir para o Rio deJaneiro o seu negócio, e o velho Soliz, que era o afortunado diretor de todasas empresas. Neste propósito, escrevia aos seus amigos de Amesterdão,quando recebeu consternadora notícia da morte do seu António.O escudeiro legava ao neto de Luís de Barros, padrinho e benfeitor dele,todos os seus bens de fortuna, economias de cinquenta anos, e o capital que oseu defunto amo lhe mandara entregar, acrescentado com os lucros docomércio. Os livros de razão deixara ele, com o depósito dos haveres, empoder de um hebreu digno da confiança, a quem dera dois abraços para osseus amos, quando voltassem à Holanda.Deu-se pressa Jorge em embarcar para a Europa, prometendo aoscontristados Silvas voltar para o Brasil, tão depressa liquidasse a sua casacomercial.No começo de 1709, Jorge de Barros dava sepultura honrosa ao seu escudeiroem Amesterdão, e tornava conta do negócio, no intento de o trespassar, evoltar cedo ao Brasil. Não alcancei, todavia, quais embaraços lhe estorvaram aexecução do intento. Porventura, rogos de amigos, transtornos mercantis, outalvez esperanças de vir a Portugal diligenciar senhorear-se do tesouro o


embaraçariam. O certo é que em 1711 Jorge demorava ainda na Holanda, eneste ano deu Sara à luz o primeiro e almejado filho, que foi uma menina, àqual puseram nome Leonor, na pia batismal. Escreveu Sara alvoroçadamente asua prima Lourença Coutinho noticiando-lhe o nascimento da esposa deAntónio. Foi grande contentamento em casa dos Silvas; e de uma parte e deoutra se ratificaram os juramentos com pueril solenidade.Neste decurso de quatro anos, por vezes recebeu Jorge de Barros notícias dasua família de Portugal, por mediação do hebreu da Covilhã. Garcia de MouraTeles, ao passo que a juventude das famílias ilustres do reino cercava Badajoz,ou morria cortada das armas francesas em Xerez de los Cavaleros, ouassaltava valorosamente Ciudad Rodrigo e muitas praças pugnacíssimas, atéassentar no trono Carlos HI, contra as pretensões de Filipe de França:enquanto os brios lusitanos assim lampejavam os seus derradeiros clarões emépoca já tão apagada de crenças e efeminada por delícias, Garcia de Mouravivia em Lisboa vida de libertino, apodrentado de vícios, e apontado comoexemplo de jovens desonrados e perdidos por míngua de pai, de mãe e demestres. A mulher com quem casara, fugindo aos maus tratos dele, requeriadivórcio, e levantamento do dote com que fora nupcialmente dotada peloinepto marido. Garcia, desprezando os processos judiciários, contubernara-secom uma cigana mulher de fascinações mágicas, celebrada em Lisboa pela suabeleza e artes diabólicas, por efeito das quais alguns mancebos e velhos setinham empobrecido.


D. Francisca Pereira, já também separada do filho do inquisidor-geral, bebiagota a gota o fel que envasilhara para a velhice, afastada de parentes, opróbrioe irrisão da sociedade e dos salões, onde ela outrora entrava com o aprumo deuma soberba vergôntea de tronco real.Jorge de Barros lastimava a rápida e desastrosa queda de tão próximosdescendentes do respeitado contador-mor e amigo de D. João IV e AfonsoVI. Enojava-o seu irmão e a sua mãe; todavia, assomos de piedade oimpulsavam a salvar de uma ignominiosa e desamparada velhice a criatura quelhe dera o ser. Dominou-se, porém, entendendo que as caridosas tentativasseriam inúteis, senão parvas. De mais disso, sua mãe e irmão eram ainda ricos:ele é que trabalhava para viver, mercadejando, e emparelhando-se com gentede baixa extração para ganhar o pão e decência da sua família.Vacilava Jorge entre fazer-se de vela para o Rio de Janeiro, ou dar primeiroum novo assalto ao tesouro da Bemposta. Este desejo acometia-o sempre queele atentamente olhava sobre o anel do seu avô. Sara divertia-lhe o ânimodestas apreensões, rogando-lhe que não expusesse sua liberdade e vida, agoraque Deus lhe dera uma filhinha, um tesouro do céu ao pé do qual o tesouroda Bemposta era um caixão de vil pó.Pôde muito com ele esta santíssima poesia de mãe. Resolvido tinha finalmentepassar ao Novo Mundo com os seus bens já liquidados, quando um amigo doRio de Janeiro, no princípio de 1713, lhe escreveu noticiando-lhe a prisão de


Lourença Coutinho e do seu marido, suspeitos de judaísmo, e como taisremetidos a Lisboa ao Santo Oficio. Dentro desta carta vinham duas linhas deLourença para Sara. Diziam assim:Apenas posso dizer-te que vou presa para Lisboa com o meu marido e os meus três filhos.Deus me ampare e dê paciência para as torturas.Tua prima LourençaRompeu Sara em altos clamores, quando isto leu. Jorge, alguns minutosaturdido e perplexo, saiu do seu aflitivo recolhimento exclamando:— Vamos para Portugal, que esta família não tem lá ninguém que lhevalha. Agora, é um dever que nos sacrifiquemos, Sara. Vamos, que eu contocom amigos e parentes.Na primeira embarcação que aproava ao Porto, vieram Jorge, e Sara com afilhinha de oito meses nos braços. Do Porto jornadearam para a Covilhã,onde os recebeu surpreendido Simão de Sã. Dali escreveu o hospedeiroisraelita para Lisboa, pedindo que lhe noticiassem a chegada do navio em quevinham presas cinco famílias do Rio de Janeiro.Quando o navio chegou à barra de Lisboa, já, em casa de Diogo de Barros,estava Jorge. Sara prudentemente ficara na Covilhã, por ver que os seus


créditos no tribunal da fé não deviam ser melhores que os de LourençaCoutinho.João V iniciava o seu estúpido reinado borrifando de sangue a máscara dehipócrita. Como estivesse doente de uns flatos em 1760, foi o filho de PedroII arejar-se na convalescença até Azeitão. Pernoitou em Coina, e foi ao outrodia visitar diversos frades, em companhia dos manos Francisco, António eManuel, e do bispo capelão-mor D. Nuno da Cunha de Ataíde, homem decoração mau, figadal inimigo de hebreus e hereges, merecimentos que lheganharam em 1712 o barrete de cardeal e as insígnias de inquisidor-mor,concedidas pelo santíssimo papa Clemente XI.João V saiu do castelo de Palmela, onde foi de visita, por tal maneira movido àconversão dos judeus — graças às súplicas do capelão-mor, e às de D. JoséPereira de Lacerda, prior de Sant'Iago, cuja cabeça da ordem era o designadocastelo — que logo ali prometeu ao Diabo e a S. Domingos disputar a um asalmas que lhe lá caíam, e ao outro a glória de as içar à bem-aventurança pormeio dos guindastes e roldanas das torturas chamadas “da corda”.Apontado neste fervoroso voto, começou postergando vilissimarnente ostratados solenes que asseguravam aos hebreus das colónias brasileiras ainviolabilidade do asilo. A piedade puxava pelo ânimo do rei, que mais tardefazia Mafra, ao mesmo tempo que violava o mosteiro de Odivelas, onde tinha,ali mesmo, paredes meias com o templo do Senhor, uma freira com filhos,


astante devassa para se não inquietar com a justiça de Deus e com oescândalo da comunidade.(*) Assim foi que do poder secular partiram ordenspara serem presos além do Atlântico, e remetidos aos calabouços do Rossio,os portugueses suspeitos de judaísmo.[(*) D. João V, nos seus primeiros anos de amores com a religiosa bernarda, entrava noconvento debaixo do pálio. Diz a tradição que, uma vez, saindo o rei de se entreter com afreira, ao despedir-se da prelada, lhe dissera: “Que ides fazer agora?” — “Vou”, respondeua prelada, “com a comunidade pedir em coro a Deus a saúde da vossa Majestade. “Estaspalavras abalaram João V. Em consequência do qual abalo, mandou ele construir umacasa com passadiço para o convento, a fim de evitar o escândalo de entrar pela portaria.]Quem denunciou a família dos Silvas, e que motivo dera Lourença Coutinhopara ser especialmente acusada de hebraísmo? Não o dizem os muitosbiógrafos franceses, italianos, brasileiros e portugueses, que têm comemoradoos infortúnios daquela família. Nem Barbosa, na Biblioteca Lusitana, nemSismondi, na Littérature du midi de Europe, nem Ferdinand Dinis, nem JoãoManuel Pereira da Silva, no Plutarco Brasileiro, nem Varnhagem, nem JoséMaria da Costa e Silva, nem Vegezzi Ruscalla, na biografia d'li GiudeoPortughese, Uma palavra enche esta lacuna: INFÂMIA, que não há nomeainda inventado com que dar em sombra uns longes da protérvia da


Inquisição, daquele braço ensanguentado que feria no rosto a honra dePortugal com o cetro dos reis.Achou Jorge de Barros, auxiliado pelos parentes, engenhoso expediente defazer chegar às mãos de João Mendes da Silva algumas palavras escritas,animando-o a confiar no valimento dos amigos. Lourença Coutinhoreconheceu a letra, e disse:— Temos aqueles bons anjos por nós. Desembarcados, foram conduzidosentre quadrilheiros e chusma de plebe ao palácio dos Estaus. Lourença levavapela mão seu filho António, que tinha então seis anos. André e Baltasar iampela mão do pai, e choravam, muito aconchegados dele, circunvagando osolhos horrorizados.Lourença, às portas da santa casa, foi separada dos filhos e do esposo por doisfamiliares de boas palavras, que a conduziram através de salões. João Mendesficou no vasto pátio, rodeado dos filhos, o mais novo dos quais chamava pelamãe lavado em lágrimas. O alanceado pai olhava como idiota sobre as criançasque se lhe cingiam com as pernas. Daí a pouco, João Mendes e os filhosreceberam ordem de sair, que estavam livres para o fazerem.— E minha mulher? — perguntou o advogado.— Está presa para ser interrogada.— Interrogada em quê? — disse o aflito marido.


— Ela o saberá — voltou mal-encarado o familiar do Santo Oficio. — Vácom Deus, que não tem que fazer aqui.Saiu João Mendes por entre a multidão, que os soldados afastavam a murros epontapés. Desviou-se das mãos do gentio, e manteve-se no coberto doConvento de S. Domingos, encarando na casa de lúgubre aspeto em que lheficava a mãe do seus filhos. E chorava acariciando os meninos, quando umdesconhecido se acercou dele, e lhe disse:— É o senhor João Mendes da Silva?— Sou esse desgraçado.— Jorge de Barros espera-o. Siga-me, e entre na casa onde eu entrar. Nãoreceie, que eu sou primo do marido de Sara; e anime-se que a sua mulher temprotetores.


CAPÍTULO III— Estou sem esposa! — exclamou João Mendes atirando-se aos braços deJorge, que lhe não podia responder embargado pelos soluços. — Os meusfilhos estão sem mãe? — perguntou ainda em aflitivo ansiamento o advogado.— Não, senhor — respondeu o velho Diogo de Barros. — Há de terbrevemente esposa, e estes meninos sua mãe. Não chorem, filhinhos, que amãe não corre perigo.— Não? — clamou João Mendes, querendo ajoelhar aos pés de Diogo deBarros. O velho susteve-o nos braços, e disse-lhe:— Sossegue: meu sobrinho lhe dirá que Diogo de Barros pode algumacoisa com o inquisidor-geral Nuno da Cunha. Vou sair. Escreva a sua esposa,que as suas cartas hão de ser-lhe entregues, através de todos os embaraços.Saiu a falar com o inquisidor o digno sobrinho de Luís Pereira de Barros. Noentanto, Jorge aquietou o terror do seu amigo e a inquieta consternação dosmeninos com as esperanças de que o seu ânimo estava convencido. JoãoMendes quis escrever a Lourença, mas o que tinha na alma para ela eramlágrimas inexprimíveis, angústias que lhe enturvavam a razão, gritos e nãopalavras, frenesis que o faziam saltar da cadeira, e correr para os filhos emgemidos e gestos de mortal desesperação. Suplicava-lhe Jorge de mãos postas


que fizesse um esforço para enfrear a sua agonia, lembrando-se da coragemcom que os seus avós tinham sofrido maiores dores, os tormentosinexprimíveis da separação eterna do seus filhos, o espetáculo da violação dassuas mulheres, o desvario horrendo de matarem às próprias mãos as suascriancinhas.Aplacava-se a intervalos a ansiedade de João Mendes; mas o desesperar-se ecarpir-se redobrava nas intermitências, e então era o pedir ele a Deus lhelevasse os filhos para lhe não falecer coragem de matar-se, quando sua mulherfosse condenada à morte.Jorge, como visse que João Mendes não atinava com escrever duas linhas,escreveu ele a Lourença Coutinho, incutindo-lhe valor para esperar a suapróxima liberdade. Referiu-lhe a situação do marido e dos filhos. Pedia-lheque chorasse como desafogo, e se lembrasse sempre deles para sentirnecessidade de vida e alento.Ao entardecer, chegou Diogo de Barros com bom rosto. O inquisidorprometera-lhe tirar com a máxima brevidade o depoimento das testemunhasno Brasil; e, se as culpas não fossem mais graves do que a denúncia as fazia,assegurava a Diogo de Barros que no prazo de cinco meses ou menos se fariaauto-de-fé, e então Lourença Coutinho sairia livre.Enquanto a João Mendes da Silva, juntou o inquisidor, podia estardescansado, e tratar da sua vida, que nenhuma carga lhe faziam as denúncias.


— Cinco meses! — exclamou João Mendes. — E há de estar minha infelizmulher cinco meses encarcerada!... E não hei de vê-la, nem ela há de ver seusfilhos!... ó senhor Barros!... Eu morrerei antes de se acabar esse grande prazode tempo!...— Morrerá, se for um fraco... — atalhou o velho.— E ela... — redarguiu o Silva — , ela... quem lhe deu força para vivercinco meses em masmorras?— Há de dar-lha o Altíssimo, e há de dar-lha seu marido... Qual angústiadeveria ser a sua, senhor Silva, se a sua mulher igualasse em posição algumaspessoas que entraram hoje com ela, para saírem no mesmo auto-de-fécondenadas ao fogo!? A senhora Lourença Coutinho, segundo coligi dasmeias palavras do cardeal-inquisidor, é a única de quem meras suspeitasprometem breve termo de prisão. Até pode acontecer que, antes do prazo doscinco meses, consigamos libertá-la, ou pelo menos melhorar-lhe o cárcere,transferindo-a para algum recolhimento, como tem acontecido com presaslevemente culpadas.Diogo de Barros, voltando-se para o sobrinho, continuou: — Olha que oinquisidor perguntou-me se tu abjuraras a religião católica em Holanda.Respondi que não, e ele sorriu-se. É preciso supor que os sorrisos de uminquisidor são como o abrimento da boca dos crocodilos. Cautela, Jorge! Atua mãe não há idade nem desgraça que lhe amolgue a índole rancorosa. A tua


mulher é filha de hebreus, que muita gente viu morrer no Terreiro da Lã.Olhai por vós, que eu receio não vos poder valer, se uma vez cairdes nas mãosdos dominicanos. A tua presença em Lisboa é inútil para a liberdade dasenhora Lourença Coutinho. Com pesar te digo que vás para a Covilhã, e tenão detenhas lá mais tempo do que eu te prescrever. Assim que te eu disserque fujas, foge, porque eu hei de saber pontualmente quando se passaremordens para a vossa captura.— E sabê-lo-á, meu tio? — perguntou Jorge. — O segredo do infametribunal ser-lhe-á revelado?— Não chames infame ao Tribunal da Suprema Inquisição — acudiuDiogo de Barros, sorrindo — porque eu... sou familiar do Santo Ofício.— O tio!? — exclamou Jorge.— Sim, eu: entendi que assim era necessário para salvar-te. Pedi que meaceitassem, logo que soube do teu casamento com Sara. Na qualidade deempregado da Inquisição ofereço ao senhor doutor João Mendes da Silva omeu préstimo, se lhe sirvo como portador das suas cartas para sua mulher.Ora, ambos estão vendo que o ser familiar do Santo Ofício tem prerrogativasnão despiciendas; e, depois de tudo, e por cima de tudo, asseveram os filhosde São Domingos que os familiares da santa empresa gozam na bemaventurançaum lugar distinto, sentados logo abaixo do trono de Torquemada,de Pedro Arbués, e doutros apóstolos da redenção de Israel. E agora —


continuou Diogo de Barros batendo no ombro de João Mendes — peço-lheencarecidamente que venha com os seus filhos sentar-se à mesa deste vigilanteda Inquisição. Precisamos comer para assistirmos a esta deplorável tragédiaque vai correndo há não sei quanto mil anos debaixo dos olhos daProvidência.


CAPÍTULO IVA prisão de Lourença Coutinho, nos cárceres do Rossio, foi das menostenebrosas. Não obstante, a esposa de um marido amado e de três filhosestremecidos, desde a primeira hora em que foi arrancada aos braços deles,ficou num torpor de espírito, numa insensibilidade estuporosa, que pareciaalheá-la de refletir na sua miséria.Não sei descrever aquela primeira noite. Lourença olhou para as trevas danoite como para a luz da sua primeira aurora nos cárceres da Inquisição:aqueles olhos, sempre abertos, pareciam ter cegado, ao mesmo tempo que amemória do passado se escurentara também.Às oito horas levantaram-na de um tamborete, e conduziram-na a outroquarto. O chaveiro que a foi guiando, disse-lhe ao entrar na outra prisão:— Este quarto é bem melhor; isto nem é cárcere; tem grades sobre oRossio; é como quem está na sua casa.— E meu marido? e os meus filhinhos?— Esses não vieram — respondeu o guarda.— Vieram — insistiu ela.— Não, senhora: foram-se embora lá para onde quiseram.


— E eu fico? — exclamou ela.— Por ora, fica; mas, cá pelas minhas contas, Vossa Senhoria não está cámuito tempo. já hoje chegaram ordens do senhor inquisidor-mor para se lhedar um dos quartos reservados.— E eu posso ver meus filhos e o meu homem? — disse Lourença.— Olhe, se eles ali passarem no terreiro, pode vê-los à vontade. Isto aqui ésó não sair à rua; que o mais não há em Lisboa janelas de tanta vista.— E então que é dos meus filhos? Onde ficaram eles? Aqui rompeu ela emdesabafado gemer e chorar, correndo às reixas, e chamando os filhos e omarido, com os olhos esgazeados sobre quantas pessoas iam passando.O guarda ordenou-lhe que se aquietasse, quando não, corria perigo de desceràs masmorras.Lourença encolheu-se a tremer com as mãos postas, e bebeu as lágrimas comos soluços que a estrangulavam.Às dez horas foi conduzida pelo guarda a um recinto vasto, pouco iluminado,e de profundo teto. Viu um velho de agradável sombra, que a mandou sentar,e a esteve contemplando alguns segundos, como quem desconfiava da insâniada infeliz mulher. Falou-lhe no marido e nos filhos; deu-lhe uma volumosacarta; asseverou-lhe que a sua desgraça não iria além da privação da liberdade


por alguns meses, e pediu-lhe que fosse escrever sobre uma banca das queestavam na sala duas palavras de mulher corajosa para seu prostrado marido.Lourença ouvira tudo taciturna; recebera a carta sem abri-la; o familiar doSanto Oficio esperava que ela se erguesse a escrever as palavras pedidas, eLourença permanecia imóvel.— Então? Escreve, senhora? — disse Diogo de Barros. — Olhe que eusou tio de Jorge: confie em mim.— E os meus filhinhos? — perguntou ela impetuosamente achegando-sedo velho.— Os seus filhos e marido são meus hóspedes. Eu hei de conseguir trazerlheà sua vista os meninos; mas tenha ânimo. Por amor deles, sustentecoragem de mãe. Verá que este infortúnio acaba depressa. Quer ler a carta doseu marido?— Ah! — exclamou ela — , é do meu marido esta carta... é?— Sim, é; e outra de Jorge, escrita quando o atribulado doutor não podiasenão chorar.Lourença leu em convulsivo tremor, enquanto as lágrimas a deixaram.— Não posso! Não vejo nada, meu Deus! — bradou ela.


— Pois lerá no seu quarto, quando puder; mas se agora conseguisseescrever algumas expressões consoladoras ao seu marido... Pode? Queralevantá-lo do seu mortal abatimento? Quer que os seus filhos não tenham dechorar a perda do pai?— Sim!... — clamou ela. — Diga-me o que hei de escrever VossaSenhoria.— O que lhe parecer melhor para que ele se persuada que a senhora temforças para resistir a esta adversidade.— Oh, meu Deus! — disse ela. — É a primeira vez que minto ao meumarido... Vá!... que viva ele para que os meus filhos não acabem na indigência...E escreveu um quarto de papel grande, com vertiginosa celeridade.— Veja... — disse ela a Diogo de Barros. — E ele acreditará?O familiar do Santo Oficio leu, e disse: — Não acreditará que a senhora estátranquila, como lhe diz; mas crerá que sente o favor divino da resignação.Agora, senhora, ver-me-á de três em três dias; e das grades do quarto que temverá todos os dias, às onze horas, seu esposo e filhos à portaria do Mosteirode S. Domingos. Se com estes intervalos de felicidade, ainda não concedida ahebreus, a senhora Lourença fraquejar e sucumbir, dir-lhe-ei que é pordemasia frágil, principalmente quando recebe de mim a certeza da sua


liberdade, sem beber do cálix amargo — continuou ele abaixando a voz —que nesta casa são obrigados a beber os mais inocentes.Achou Lourença em si a alma de mãe e esposa, relendo a carta do marido, naausência de Diogo de Barros. Prostrou-se largo tempo com a face no chão,orando não sei se ao Deus de Jacob, se ao de S. Domingos de Gusmão, se àProvidência Divina que vale mais que os outros. Orou, e sentiu-se confortada.Às onze horas, dadas na torre dos dominicanos, correu à janela, e viu oesposo e os filhos. Os meninos, agrupados diante do pai, olhavam contra asgrades donde lhes transluzia um pano branco. João Mendes, cauteloso daobservação dos transeuntes, relanceava para lá os olhos, e passava por eles olenço que lhe embebia as lágrimas.Os dias foram assim passando arrastados. A pobre mulher sentia-se amparadade Deus. Era o hábito da desgraça, este dom misericordioso da naturezahumana que se deixa identificar com a dor, a ponto de dulcificar a peçonhacom os choros. É, todavia, provável que está Deus nisto. Esta conformidadeserena, e quase saborosa, não na sentem os celerados.João Mendes da Silva, obrigado a obtemperar à sua saudade, e distrair oespírito em planos pertinentes à subsistência de mulher e filhos, deliberouabrir escritório de advogado em Lisboa. Pensava ele que lhe não devolveriammais os seus haveres no Brasil, talvez já confiscados, como era de lei, assimque o tribunal da fé entendia com a consciência dos possuidores. A


Inquisição, por facilitar o caminho do céu aos judeus, aliviava-os do peso dosbens terrestres, e convertia estes bens em regalias dos fiéis. Estes fiéispercebiam o espólio gradualmente, segundo sua categoria, desde o monarcaaté o derradeiro esbirro do Santo Oficio.Algumas pessoas de valia, aparentadas com os Barros, inculcaram a perícia doadvogado vindo do Brasil. Assim que João Mendes abancou, e, abafando ocoração na onda das lágrimas, se prestou a ouvir o arrazoado dos clientes, aconcorrência foi tal que o seu nome emparelhou com o dos primeirosjurisconsultos.Jorge de Barros, saudoso da sua família, deixou Lisboa, e a liberdade deLourença encarregada ao generoso tio. Alguma vez, o tesouro da Bempostalhe beliscou o desejo de uma tentativa; mas ele tinha jurado a sua mulher,empenhando a vida da filhinha, que se não exporia às suspeitas, nem arriscariaa sua segurança.Neste tempo, Jorge de Barros considerava-se mais que remediado em bens defortuna. Metade dos seus teres quisera ele dar ao marido de LourençaCoutinho; porém, o advogado, se não tinha bom sangue, estreme de partículasjudaicas, era dotado daquela estimável compleição de homens que a sipróprios se obrigam a se remirem e proverem com o trabalho. Nisto, osjudeus eram santos. O trabalho era o seu martírio deles.


CAPÍTULO VConfiado na vigilância de Diogo de Barros, Jorge estanciou alguns meses naCovilhã, esperando a liberdade de Lourença Coutinho, com o propósito de seencontrarem as duas famílias em porto de mar, donde saíssem para o Brasil.Ao fim de três meses, chegou do Rio de Janeiro o instaurado processo. Odefensor de Lourença, para destruir dois depoimentos que arguiam a presa dejudaizar na observância da lei velha em certas festividades e jejuns, alegava,juntando aos autos, algumas poesias devotíssimas que João Mendes da Silvaescrevera e mandara imprimir em Portugal, nomeadamente duas, uma aopadre Santo António de Pádua, e outra ao príncipe de Gandia S. Francisco deBorja, louvando-lhe a heroica humildade com que se ele albergara no Portoentre os pobres do Hospital de Santa Clara.As esperanças dos protetores de Lourença, não obstante os bons serviços dopromotor do Santo Oficio, ficaram bastante aquém do que se lhes antolhara.A presa estava de antemão absolvida, sem confissão, sem interrogatório, semtortura; mas era forçoso que saísse reconciliada para não haver quebra naspraxes inquisitoriais; e, como reconciliada, somente em auto-de-fé podia sair.Felizmente para ela, naquele ano celebrou-se ainda o santo espetáculo emJulho, e não, como era costume, em Outubro, na primeira dominga doAdvento. Aos nove de Julho, pois, saiu Lourença da Igreja de S. Domingos,


onde entrou sem hábito, e foi, recebida a penitência da imposição doinquisidor, entregue ao familiar Diogo de Barros.Na Covilhã foi a nova recebida com tamanhas exultações, que, ao parecer dosvizinhos de Simão de Sã, o Messias esperado tinha aparecido finalmente.Lourença entrara no palácio dos Estaus ainda formosa; cento e sessenta diasdaquele ambiente empestado das abafadas cavernas, em que apodreciamcentenares de presos, bastaram a alvejar-lhe os cabelos e a enrugar-lhe a pele.Os filhos fitavam-na como se a não conhecessem. O marido beijava-lhe orosto, e inundava-lho de choros como se com os beijos quisesse ressumar ascores doutro tempo, e com as lágrimas refrigerar-lhe a aridez da cútis. Sarapediu encarecidamente a sua prima que fosse recobrar a saúde extenuada nosares sadios da Covilhã, e, se o marido não pudesse ir, levasse consigo os trêsmeninos.João Mendes aplaudiu a ida da esposa, porque temia perdê-la, bem fundadonos receios do médico hebreu Diogo Nunes Ribeiro.Permaneceram Lourença e os três meninos na Covilhã por espaço de doismeses. António, o mais novo dos pequenos, andava, sempre que o deixavam,com Leonor nos braços.Entrançava flores com que a engrinaldava; afofava-lhe coxins de folhagem àsombra das árvores; inventava brinquedos e trejeitos com que fizesse rir acriança.


Dizia Sara a sua prima: — Não te parece coisa estranha o amor do teuAntónio à pequenina?!— Maravilha-me isto! — confirmava Lourença. — Eu já pensei se Deusestará criando o coração destas crianças para se quererem, desde que nós tãoalegremente nos conjurámos a casá-los!...— Será assim... — obtemperou Sara.— Mas, prima!... — tomou Lourença com tristeza — , que mágoa tenho setu sais de Portugal e eu cá fico!...— Pois não tomas para o Rio de Janeiro?!— Parece-me que não... O meu marido sabe que tem inimigos lá, que hãode continuar a persegui-lo. As testemunhas, que juraram contra mim,adivinhou ele quem foram. João Mendes era o primeiro letrado, e o maisprocurado. A inveja é um inimigo inexorável. Se voltarmos para o Rio, diz ele,e talvez tenha razão, que em breve tornaremos presos para Portugal. paraalém do mais, meu marido, por influência do teu Jorge, ganhou muitos amigosem Lisboa, e custa-lhe a vencer o muito trabalho que tem. Dinheiro pordinheiro, diz ele que lucra mais em Portugal; com a vantagem de lhe seremmais saudáveis os ares de Lisboa. Outra razão dá ele: é a educação dos filhos.Os mais velhos quer formá-los em medicina; e ao nosso António tencionaformá-lo em leis para lhe suceder no escritório. Eu não sei com que motivoshei de contrariar estas razões de João Mendes. Como sabes, meu marido é


mais velho que eu dezasseis anos: tem já cinquenta e sete, e precisa derepouso: as viagens incomodam-no muito; e uma nova desgraça, como esta daminha prisão, cortar-lhe-ia o fio da vida. Já vês, minha querida prima, que osnossos pequeninos noivos vão ser separados, e Deus sabe se tornarão a verse.Porque não ficas tu em Portugal?— E a Inquisição? — disse Sara. — Pois a maldita viria aqui perseguir-te?Os parentes do teu marido, aquele honrado Diogo de Barros não conseguiráque te deixem viver tranquila?— Diz Jorge que não. O inquisidor-geral supõe que o meu marido se fezhebreu. A mãe dele é o meu terror enquanto viver. E eu sei que, se cair nasgarras dos verdugos, não tomo a ver a luz senão a das chamas. Se aquiestamos sossegadas, é porque Dona Francisca Pereira não sabe que estamosaqui!... ó prima!... Se hoje me arrancavam ao meu marido e à minha filhinha!...— exclamou Sara apertando estremecidamente a criança contra o seio. — Seme tiravam a minha filha, como eu fui arrancada ao regaço da minha mãe... daminha pobre mãe!— Não, não, Deus nos livre! — atalhou Lourença. — Sai, sai de Portugal,que tu não sabes o que é uma hora dentro daquelas paredes negras!... Quemsabe se a minha vinda à Covilhã será causa a perturbarem o teu sossego!...— Não, prima, não é. Ninguém sabe aqui a tua vida, nem o teu nome foradesta casa. Jorge recebe aviso, logo que a nossa liberdade for ameaçada. Eu


preciso destes ares, e o meu pobre Jorge, por amor de mim privado da pátria,também goza mais saúde aqui. Vê tu, filha!... Este Jorge, nascido para tanto,com espíritos tão levantados, sujeitou-se à vida de mercadejar em queijos eespeciarias. Se o contador-mor Luís de Barros julgaria que educava para estedestino o seu querido neto!._ E agora diz ele que precisa de trabalhar muitopara educar e dotar esta menina. De casa não espera ele património nenhum;porque a mãe, antes de morrer, vende e dá tudo para nenhum filho seaproveitar de nada. Olha tu que desgraçada e castigada mulher aquela! Nãoestima ninguém, e não tem nesta vida pessoa que a estime, alma que lhe dêuma sede de água na febre da agonia! No que parou aquela senhora que euconheci tão respeitada na corte, e visitada das mais ilustres fidalgas!... DissemeJorge que até as escravas a estavam menosprezando! E mais é ainda rica!Se um dia empobrecer, será necessário que o meu marido a vá tirar da lamadas ruas!... Ora aí tens, minha querida Lourença! Aí vamos nós para aquelesfrios nevoeiros e ardentes febres da Holanda. Queira o Senhor que o meumarido não adoeça... A sua misericórdia me leve deste mundo, se eu ainda heide ver a minha Leonor sem pai...— Que sustos! — interrompeu Lourença.— O teu marido é forte, e rapaz. Se adoecer em Amesterdão vai paraLondres ou para Roma, ou para qualquer cidade de Itália, onde está muitagente da nossa nação, que vos há de acolher e rodear de contentamentos. Nãote dê preocupação o futuro de Leonor. João Mendes vai mandar liquidar a


nossa casa do Rio de Janeiro, e empregar em Lisboa o capital. O meu Antóniohá de formar-se; e, quando tiver vinte e dois anos, será doutor, e bastanteremediado para manter as regalias da nossa Leonor abundantemente...O diálogo foi interrompido por Jorge de Barros, que entrou lendo uma carta.— De quem é? — perguntou Sara.— É do tio Diogo — respondeu com um sorriso de amargura o marido.— A Inquisição fareja-te, minha Sara!...


CAPÍTULO VIO caso extraordinário do casamento de um fidalgo, descendente de avós epais cristãos-velhos, com a filha dos judeus queimados no auto-de-fé de 1685,deixou viva e duradouramente impressionados e escandalizados os ânimosdos frades dominicanos e mais oficiais do Tribunal. Poderia conjeturar-se quea consorte de Jorge de Barros se convertesse de coração à fé católica paraesposar o cristão; porém, esta pia hipótese encontrava o procedimento doscasados, ausentes logo da pátria, e residentes entre judeus, num país de heresialivre, onde as portas das sinagogas se abriam francamente ao culto satânico daraça deicida. Se a judia, ligada sacramentalmente a Jorge de Barros, era cristã,porque fugia? Se o marido era cristão, como lhe consentia a consciênciabaralhar-se com hereges, e hebraizantes descarados na Holanda, terra demaldição em que o Demónio armara suas tendas contra Cristo e contra oSumo Pontífice?! Estas interrogações admirandas faziam-nas os peitosequâmines, lógicos e consternados dos filhos do glorioso patriarca S.Domingos.Que a judia se despenhasse no Inferno, muito doía isto aos padres, porque erauma alma por quem correra sangue das chagas do Redentor; mas que aperversa arrastasse na sua queda a alma do marido, este desastre era lança


penetrantíssima que trespassava corações menos sensíveis que os daquelespovoadores das altas regiões da bem-aventurança!O remédio que lhes ocorria mais heroico e expeditivo, depois de largascogitações, era queimar a judia, e purificar a alma contaminada do marido aofogo em que estalassem os ossos da mulher.Treze anos tinham derivado; e tão largo termo não bastou a delir da memóriados frades aquele salutar pensamento. Prova é que, ao cabo de tantos dias,quando os familiares da cidade da Guarda avisaram D. Nuno da Cunha, oinquisidor-geral, em papéis escritos do punho de D. Veríssimo de Lencastre, edo bispo que lhe sucedeu no ofício, encontrou notas recomendativas acercade Sara de Carvalho, e Jorge, marido dela, filho de Plácido de Castanheda deMoura.O cardeal recebeu o aviso da existência de Sara na Covilhã, e mandou oficiarao Conselho Geral. Ao mesmo tempo, porém, o secretário do cardeal avisavao familiar Diogo de Barros com estas palavras: “Eu demoro quinze dias aparticipação aos frades, para dar tempo aos culpados a fugirem do seu vagar.”Esta fora a má nova que Jorge de Barros lera a sua mulher. Num dospróximos dias, Lourença Coutinho voltou para Lisboa, cobrindo de lágrimasas mãos do seu protetor, e as faces de Sara e da filhinha. António tambémchorou muito abraçado em Leonor, quando a criança lhe deitava os braços emalto choro, ao afastarem-se.


Volveu Jorge de Barros a fazer sua residência em Amesterdão. Lançou mão,outra vez, da indústria comercial, e com mais atividade, em razão de ter umafilha. Se dantes passava algumas noites entretidas nos saraus literários daportuguesa D. Isabel Correia, depois escasseava-lhe o tempo às amenidadesdo espírito. As suas noites e horas do dia feriadas eram repartidas entre ocoração e o repouso. No coração concentrara ele os prazeres da inteligência.A filha era-lhe tudo o que já Sara não podia ser, após doze anos deconvivência. A hebreia fora-lhe a paixão, única; mas uma paixão, por serexclusiva, não faz que a felicidade da alma seja permanente. Se alguma hora,todavia, Jorge de Barros, que não saíra excetuado de comum lodo, erasurpreendido por vagos desejos de distrair-se em afetos novos, a filhinhareclamava para si a exuberância do coração do seu pai, e vingava senhoreá-la.As notícias de Lisboa iam miudamente nas cartas de Lourença Coutinho paraAmesterdão. Os diálogos epistolares das duas israelitas versavam no máximosobre as suas alegrias maternais. Lourença escrevia a Sara que o seu filhoAntónio era muito esperto, e causava espanto ao mestre de primeiras letrasmais afamado em Lisboa, o padre Lourenço Pinto. No profetar deste idóneosujeito, o pequeno António, se a morte o não apanhasse, havia de ser coisa deprodígio, principalmente em poesia; porque, entre oito e nove anos de idade,fazia versos que Lourença avaliava muito superiores aos do pai. Se houvermosde crer nestes encarecimentos da extremosa mãe, António já andava nas asasda fama, e algumas famílias ilustres folgavam de o terem pelas suas casas com


os filhos de quem ele era condiscípulo. Uma destas pessoas era José deOliveira e Sousa, contador-mor dos Contos do Reino, que sucedera noelevado cargo ao defunto Plácido de Castanheda de Moura. Aquele fidalgotinha um filho, de nome Francisco Xavier, mais novo três anos que António, eigualmente admirável por a precocidade do seu engenho. Era coisa para muitorir ver as duas crianças a contenderem sobre elegâncias de poesia portuguesa,repetindo trechos de Miranda e Ferreira, de Bernardes e Camões. António,contra o parecer do alegre auditório, sustentava com razões pueris que GilVicente era superior a Camões. A comédia era, no pensar do menino, amelhor forma da poesia, a mais agradável e recreativa. E os ouvintesinstigavam-no a discorrer sobre estes e outros assuntos. Referia LourençaCoutinho difusamente estas áfricas do filho, e ao mesmo tempo as grandesvirtudes da esposa de José de Oliveira — à parte os delírios da sua fé católica— , conhecimento e amizade que devia ao seu Antoninho. D. Isabel da SilvaNeves era o nome da mãe do pequeno Francisco Xavier, legitimamentevaidosa do seu menino como a outra mãe; e, por aliança de simpatias ematernidade, muito íntima da esposa do advogado João Mendes.Não obstante, Lourença Coutinho motejava das crendices piedosas da suaamiga, contando a Sara que D. Isabel tinha no santuário duas imagens, uma daConceição, e outra da nossa Senhora da Graça, as quais ela amarrava uma àoutra com um fio de pérolas, quando pretendia delas algum favor. Referiamais que a sua amiga tinha um Santo António, que ela frequentemente


incomodava, assim que a mais insignificante coisa se lhe perdia. Ora, seacontecia o Santo não dar pronta notícia do objeto perdido, a devotadesterrava o padre Santo António da companhia dos outros santos, e exilavaopara um canto escuro da alcova por espaço de vinte e quatro horas; findasas quais, se o objeto não tinha ainda aparecido, o rebelde santo era amarradopelo pescoço com uma guita, e pendurado à borda do poço, até lhe dar águapela barba. Se a coisa perdida vinha a descobrir-se, então saía o santo dacisterna, e era processionalmente conduzido ao oratório, por entre lâmpadas eperfumes, terminando o triunfo por um lauto jantar ao qual eram convidadosos parentes e amigos. juntava judiciosamente Lourença que estas irrisóriassuperstições eram aprovadas por um frade muito sábio, irmão do contador,chamado frei Francisco do Menino Jesus, prior dos Carmelitas, o qual estavacontinuamente ensinando ao pequenito Francisco histórias em que figuravamfeiíssimos demónios com grandes caudas e retorcidas pontas e pés cabruns.Dos seus dois filhos André e Baltasar dizia Lourença que não podia esperarnada na carreira das letras, porque eram o inverso do irmão em inteligência;pelo que João Mendes desistira de os mandar a Coimbra, e esperava mandálosadministrar as suas fazendas no Brasil, se eles ou elas não levassemdescaminho.


CAPÍTULO VIIEm 1715, Sara de Carvalho escrevia à sua amiga com muitas lágrimas,noticiando-lhe que Jorge começava a queixar-se de sofrimentos do peito,supervenientes a umas teimosas sezões que o deixaram enfermo para sempre.Noutra carta imediata, dava-lhe parte da sua ida para Roma, onde o marido iaprocurar a restauração das forças, posto que ela, convencida da sua fatal sina,pressagiava a curta vida do seu Jorge, e a si se acusava de ser a causainvoluntária de tamanha infelicidade, supondo que o seu marido, restituídoaos ares pátrios, poderia convalescer. Da filhinha Leonor dizia que eram seislindíssimos anos, com um toque de sobrenatural pressentimento nos olhossempre tristes, e nos jeitos melancólicos, ao invés de todas as crianças.De Roma escreveu mais animada contando por miúdo as progressivasmelhoras do seu marido. Nomeava os israelitas portugueses que lá encontraranumerosíssimos, vivendo ricos e sossegados, ali mesmo debaixo dos olhosindulgentes do papa.Muito se admirava ela da bondade do chefe da Igreja Cristã, e da cruezabárbara dos seus subalternos em Portugal; mas, no decurso da carta, dava aentender que os hebreus compravam muito cara a tranquilidade que tinhamem Roma.


Lourença, contente da boa nova que a viera desafogar de ansiosos cuidados,voltou a referir alegres coisas do seu António, como quem as contava à futurasogra do seu filho. O menino estava já suficientemente instruído emHumanidades para entrar na Universidade; porém, faltava-lhe a idade paramatricular-se. Dava-lhe a notícia de ter ele escrito uma comédia, que o pai lerae rasgara logo, querendo castigá-lo, porque a comédia feria os verdugos daInquisição, pondo em imagens um conciliábulo de demónios, discutindo omelhor modo de acabar com a religião do Galileu, e concluindo por saírem doinferno com três refinadíssimos demónios, chamados Domingos de Gusmão,Torquemada, e Pedro de Arbués, vestidos de frades dominicanos.Não obstante as severas ameaças de João Mendes, o pequeno reproduzira dememória as cenas principais da comédia trágica, e leu-as a sua mãe, segundoela dizia, com uma graça e declamação que fazia ora chorar, ora rir.Temia, porém, Lourença que o filho em Coimbra se desmandasse, e abrisse oseu abismo e o da família toda; pelo que lhe rogara com lágrimas que tivessemuita prudência, e fingisse quanto pudesse que era cristão.Contava ela que D. Isabel não cessava de catequizá-lo para lhe incutir bem noâmago as suas doutrinas piamente engraçadas. Do pequeno Francisco Xavierdizia que nunca vira menino tão esperto, e ao mesmo tempo tão visionário.Tinha onze anos, e confessava-se todos os meses e comungava com umareverência edificante. António ria-se da devoção do seu amigo, não em


presença dele, mas em conversa com a mãe, que o admoestava a não dizercoisa que o pequeno pudesse transmitir à sua família. Dois padres de grandenomeada em Lisboa, o congregado Inácio Ferreira, e o loio LourençoJustiniano, confessores e mestres do menino do contador, profetizavam queFrancisco Xavier de Oliveira havia de ser um luminar da cristandade, porquejá lhe descobriam no olhar e no dizer um não sei quê de predestinação. “Vêtu, minha amiga”, dizia Lourença, “corno em Portugal se inutilizam osgrandes engenhos, e abafam os alentos e arrojos dos espíritos! O meuAntoninho diz que o seu amigo está já tolhido, e quando chegar aos dezoitoanos estará sandeu. Mas não imaginas como eles se querem. “O António nãosai de casa dele, ou ele da nossa, exceto nas horas em que o Francisquinhoestá orando com a mãe ou no confessionário, enquanto o meu poeta engenhacomédias, com as quais João Mendes e eu temos ocasiões de rir até mais nãopoder.“Ajuntava Lourença, com respeito à família do contador-mor José de Oliveira eSousa, que naquela casa se acreditava que el-rei D. Sebastião havia de voltar,quebrado o seu encanto: de maneira que D. Isabel não consentia que se lhefosse à mão nesta esperança em que ela punha tanta fé como na ressurreiçãodos mortos. Era grande parte nesta loucura um franciscano sebastianista,ancião de mais de noventa anos, chamado frei Vicente Duarte. OuviraLourença Coutinho, da própria boca do frade, esta lenda persuasiva da vindainfalível de el-rei D. Sebastião: “Andava por Lisboa, no fim do século


dezasseis, um sincero sebastianista a quem alguns incrédulos escarneciam. Umdia, disse ele aos zombadores: — Acreditareis, que Dom Sebastião há de vir,se esta vara de marmeleiro, metida na terra, florescer e frutificar?“ –Acreditamos — , responderam os circunstantes.E o sebastianista”, prosseguiu dramaticamente frei Vicente Duarte, “empresença de cem pessoas, cravou o bordão na terra, e para logo a varabracejou ramos, que se vestiram de flores, e estas se formaram em belíssimose maduros marmelos. Quantos estavam e provaram da fruta, se converteramdo íntimo à fé e esperança do sebastianismo. O meu pai”, continuava o frade,“comeu daqueles marmelos prodigiosos”.“Ora aqui tens, minha Sara”, juntava Lourença, “como está a razão de pessoasda primeira linha em Lisboa! Dona Isabel é uma das mais distintas damas, e, àsemelhança desta, dizem-me que há centenares delas que ensinam aos seusfilhos a crença de frei Vicente Duarte dos marmelos! Vê tu que marmelada!Queres tu saber uma coisa mais espantosa? Há aqui ricos mercadores quevendem os seus géneros com a condição de receberem o pagamento deles,quando vier Dom Sebastião. O meu marido já viu escrituras destes contractos,lavradas há cinquenta anos, e postas em juízo, se pode haver juízo para tolicesdeste tamanho! Diz João Mendes que ainda agora há velhacos que se fingemsebastianistas para lograrem os miseráveis vendedores a prazo tal! Eu fazia dePortugal uma ideia muito diversa, quando estava no Brasil, O meu António


diz que em Lisboa não há senão duas espécies de gente: fanáticos e hipócritas;com os primeiros estão os verdugos da humanidade, com os outros estão ospatifes. Eu creio que ainda há gente boa como Diogo de Barros e a sua santafamília, e como esta senhora minha amiga, que tem tanto de boa como deembrutecida por frei Vicente e outros, não sei se hipócritas se fanáticos.A respeito de frades, vou contar-te um caso galante acontecido há dias. O teuJorge há de folgar de o saber, porque sei que ele ainda é parente de um dospersonagens desta comédia, que o meu António promete escrever. O condeda Atalaia tinha uma manceba muito bonita, segundo dizem. Ninguém seatrevia a disputar-lha, porque temiam o conde. Tentou a empresa um fradefranciscano, e ganhou-a. Uma criada da manceba infiel denunciou a traição aoseu amo. O conde fingiu uma caçada, despediu-se da pérfida, e escondeu-sena cidade. Pouco depois, entrou o frade, e imaginou que estava na sua casa.Quando era meio-dia estavam dormindo sossegadamente. Eis que bate à portao conde, e a criada abre prontamente. O frade, trajado como o inocente Adão,escondeu-se debaixo da cama. O conde da Atalaia entra no quarto, vê oshábitos de São Francisco, olha para debaixo do leito, e exclama: — Quer tusejas demónio quer tu sejas frade, não te toco; mas ordeno-te que saltes daípara fora, que desças as escadas e vás para o teu convento: isto imediatamente.— O frade queria vestir-se, e o conde não deixava. Ajoelhou-se o francisco,pedindo-lhe que antes o matasse e o não obrigasse a sair naquele feitio. Oconde foi inexorável até ao momento em que o frade lhe disse: — Que


desonra Vossa Senhoria vai causar ao nosso comum padre São Francisco,expondo-o desta forma na pessoa de um do seus indignos filhos, à zombaria eescárnio do povo! — Ora o conde, como era irmão da Ordem Terceira de SãoFrancisco, abalado pelo medo de ofender o padre comum, perdoou-lhe, edisse-lhe que se vestisse.E vai o frade, tão depressa lançou mão do hábito, arranca duas pistolas, meteasà cara do conde, e diz-lhe que o matava, se lhe não cedia a jovem. O conde,acovardado diante da fúria do agressor, saiu de casa, não sei se com intençãode voltar. O certo é que o frade saiu com a manceba, e até agora, que já sãopassados quinze dias, ninguém sabe dizer onde param, apesar das pesquisas detodos os quadrilheiros.Aqui tens como está Lisboa, minha Sara. Deus me livre que esta carta fossedar à mão dos que purificam o ar corrompido de Portugal com as fogueiras dasanta fé!...”


CAPÍTULO VIIIEm 1716, recrudesceram os padecimentos de Jorge de Barros. Saiu de Roma,e vagueou pelos ducados italianos, experimentando alternadamente oramelhoras, ora empioramento do achaque do peito.Instado por Sara, escreveu ao seu tio Diogo de Barros a pedir-lhe que lhesegurasse a ida para a pátria, cujos ares lhe poderiam ainda renovar o sangue.Diogo sondou o ânimo do Santo Ofício, e colheu péssimas induções da suaraiva ao marido da judia.De Roma tinham vindo ao inquisidor-geral avisos da embaixada, exagerandoos serviços que Jorge de Barros andava lá diligenciando a favor da naçãojudaica em Portugal, fazendo reviver no espírito de Clemente XI escrúpulos esuspeitas, acerca do estilo de processar os judeus em Portugal, tais como asoutras que o padre António Vieira tinha suscitado em 1674 por meio do seuopúsculo oferecido a Clemente X, com o título Notícias Recônditas do Modode Proceder a Inquisição de Portugal com os Seus Presos.Na verdade, Jorge de Barros, testemunha presencial dos flagícios corri que oscristãos-novos sem culpa se viam atormenta — dos em Portugal, solicitouaudiência de alguns cardeais de mais humana índole, e advogou a causa doshebreus, afervorando as súplicas com a justiça das razões. Os israelitas


espanhóis e portugueses instigavam-no a ser-lhes seu amparador, oferecendoindeterminados cabedais para vencer algum pequeno relaxe nas gonilhas doseus pobres irmãos, e doutros que vagamundeavam espoliados dos haveresque a Inquisição lhes confiscara na pátria. Não surtiram efeito as suas ativasinteligências e diligências com alguns membros do Sacro Colégio.Empeceram-no as humilhações hipócritas da corte portuguesa aos pés dopapa.No ano de 1716 concedera Clemente XI ao rei D. João V o erigir-se em igrejapatriarcal e metropolitana a real capela. Esta concessão era um chover copiosode prosperidades sobre Portugal, as quais o piedoso rei não sabia como pagarà munificência do bispo de Roma. Nunca tão do íntimo se tinham amado asduas cortes! Estava no trono de D. João I, o perdulário que havia de despejaro ouro do Brasil, contado por milhões, nos cofres de S. Pedro. Clemente XInão era homem que pudesse aplicar um ouvido ao som dos dobrõesportugueses e outro às súplicas de um advogado de judeus. O dinheiro dosisraelitas era humilde regato em comparação do Páctolo da corte. Com a bullaaurea enriqueceu o pontífice esta nossa terra de parvos, com a prosperidadede mais um cabido metropolitano com seis dignidades, e dezoito cónegos,chamados “principais”, que trajavam de bispos, e mais doze prebendados,após outros ministros eclesiásticos para o serviço da patriarcal. Todos estessujeitos de ilustríssimo sangue, e estômago correspondente em lustre eelasticidade, eram favores que Roma, a pedido do devoto monarca, fazia ao


erário, Ao mesmo tempo, D. João V lançava a primeira pedra daquela vastamole de granito e mármore que aí está chamada Mafra, coisa de triste epavoroso aspeto, monumento que a si se levantou um braço real, como se aqualidade do braço o ressalvasse, posteridade além, da nota de se ter imergidono tesouro da pátria, tirando e espalhando às rebatinhas mãos-cheias de ouroque deviam cair em estradas, em colónias, em benefícios da navegação, embenefícios da agricultura, em recultivação das terras de D. Dinis, cujos aradosD. Manuel e João IH converteram em espadas e mandaram ensopar nosangue das nações de além-mar.Baldaram-se, pois, os rogos de Jorge de Barros; mas, assim mesmo, noConselho do Santo Oficio, o nome do generoso causídico da raça maldita foiduplamente cintado de negro.Razão tinha Diogo de Barros para afastar seu sobrinho de Portugal, embora omatassem lá fora os ares pestíferos de Roma ou de Amesterdão. Antes morrerà beira das lagoas pontinas ou dos lameirais holandeses que nas labaredas doCampo da Lã.Em dispendiosas viagens de dois anos e interrupção de trato mercantil sedesfalcou o capital de Jorge. Atenuava-se ele a olhos vistos, quando se detinhaa pensar no futuro de Sara e da filha, se a moléstia o matasse naquele seuandar de reino para reino, em cata da saúde que, a intervalos curtos, lhe abria


luz de esperança, e logo o descaía na escuridão das suas longas noites de velare gemer com Sara e Leonor à beira do seu leito.Lembrou-se a esposa do clima brasileiro, onde ela recobrara saúde. Oenfermo deixava-se levar como criança a toda parte. Bastava que Sara lhedissesse: “Rogo-te que vamos em nome da nossa filha. “Leonor, quando amãe falava assim, ia acariciar as faces de Jorge, e repetir a súplica no maismavioso tom e sorriso de anjo da esperança.Pouco tempo se detiveram no Rio de Janeiro. O governador da Baía, idopouco antes de Portugal, avisou Jorge de Barros do perigo que a sua liberdadecorria em território português. Deu-se pressa em voltar à Europa, com amoléstia agravada e o coração mais angustiado.Alguns israelitas, seus companheiros de viagem, induziram-no a irexperimentar os ares de Londres. Desejava Jorge permanecer ali, porque anação hebraica, em parte alguma — a não ser na Polónia, chamada “paraísodos judeus” — gozava tanta liberdade e consideração.Não tinha sido assim até 1649, época em que um espanhol escreveu eofereceu ao Parlamento certa Apologia dos Hebreus, Uma razão alegava oapologista, que tem muita originalidade, e milagrosamente ponderou no ânimoda Câmara. Dizia ele: “Se os avós destes hebreus crucificaram o Messias,parece, em conformidade com o Evangelho, que os chefes e doutores da leiforam unicamente os réus de tal crime, ao passo que o povo exclamava: —


Hossana, filho de David! “e que a posteridade não deve ser punida de umaculpa já expiada por tantas gerações. “Ajuntava o defensor que devia serrespeitado o carácter do povo de Deus, que os israelitas ainda tinham, comorelíquias de uma aliança pactuada com eles solenemente por Jeová.Finalmente, dizia a representação que a tolerância de Inglaterra atrairia abênção do Senhor ao reino que, nos cem anos últimos, tinha sido firmíssimosustentáculo da verdade e valhacouto de infelizes.Cromwell estava à frente do Parlamento. Sustentou a discussão a favor daapologia, e desatou as cordas opressivas da liberdade dos judeus.Não soube ainda a História nem o souberam os hebreus de Inglaterra a quemdeveram a sua redentora apologia. O incógnito benfeitor, no remate da suasúplica, escreve: “Lo que tengo escrito no ha sido a pedimento de ninguno de Ia nacián delos judios. Solo quiero mostrar lo que a tanto tiempo tengo en mi corazón, y sobre todo es miintención fundada en la gloria de Dios.“Desde Cromwell — o qual, no entender de alguns judeus tão gratos quantoestúpidos, era o seu verdadeiro Messias — a nação de Israel construiusinagogas em Londres, e desassombradamente comerciou por igual com ospapistas e protestantes.Quando Jorge de Barros ali chegou já nenhuma baliza odiosa estremava osjudeus da família humana. Em Londres, com muita distinção das outrasparagens, o hebreu assumira a sua perfeita dignidade de homem. Em nenhum


dos mais poderosos negrejava o ferrete da usura. Os costumes eram maisexemplares que propriamente os da severa Grã-Bretanha.Esta sociedade cativou o espírito de Jorge; mas o ar de Inglaterra deslaçavalheas fibras dos pulmões. Saiu para Itália pela terceira vez. Tomou casa emVeneza, onde por aquele tempo demoravam dois mil hebreus, com as suassinagogas, seu cemitério, e comércio desafogado de opressão, graças ao papaInocêncio XI que, desde 1671, lhes quebrara os ferros com que a República ostinha sopeado.Desde Veneza, escreveu Sara à sua amiga Lourença Coutinho, a quem rarascartas enviara no espaço de três anos, e de nenhuma esperava nem pediraresposta, por não ter permanência em reino algum.Lourença Coutinho noticiou a ida do seu filho para Coimbra, com bemagouradas esperanças de ser ótimo estudante, e sucessor dos créditos do seupai. António vinha sempre ao propósito de se ratificarem as promessasmútuas do casamento.Narrando, como era costume dela, sucessos esquisitos de Lisboa naquelesdias, escreveu Lourença Coutinho.“Vou-te contar o caso do doutor Machuca, em que toda nós de Lisboa fala. Oteu Jorge há de conhecer, pelo menos de nome, este médico de maiorescréditos. Dizem que ele tem vista dupla, e adivinha ou vê tudo que nós tem nointerior do corpo e do espírito. A algumas mulheres casadas diz-lhes que a sua


doença são ciúmes dos maridos; aos mancebos recomenda-lhes que divirtamo espírito de pensarem na fidelidade de tal e tal dama; a este doente diz que oseu mal foi comer uma azeitona contra as prescrições da dieta, àquele reprovater provado um gomo de laranja. E o caso é que adivinha sempre, e com istoganha rios de dinheiro.Um outro médico muito infeliz nas curas e abandonado dos doentes foi ter-secom ele, e disse-lhe, segundo o doutor Machuca referiu ao meu marido: —Tu, digno homem, sabes que eu sou muito ignorante ou muito desgraçado:fomos condiscípulos, estudámos nos mesmos livros, começámos a curar aomesmo tempo: tu estás muito acreditado e riquíssimo; eu, ninguém sabe comome chamo, nem eu sei como hei de sustentar minha família. Em nome deDeus te conjuro que me digas uma parte do segredo da tua felicidade.O Machuca, apiedado das lástimas do seu colega, respondeu: “Meu amigo, eunão adivinho: o que faço é espreitar sagazmente certas coisas que, ao parecerdos estúpidos, são extraordinárias. Por exemplo: entro na alcova de umdoente: sei que está ali uma rapariga incapaz de observar a abstinênciaprescrita; casualmente descubro ao pé do leito um caroço de azeitona ou umacasquinha de laranja; tomo-lhe o pulso, e digo-lhe: “A menina comeu disto oudaquilo? E vai ela nega, e eu insisto; ela cora, e eu teimo. Aí está logo toda afamília persuadida que eu adivinhei. E à imitação deste caso, os outros, meucaro colega, são assim naturais e simples. — “Bem”, disse o médico infeliz, —farei por imitar-te.“


Sai de casa do Machuca o pobre homem, e topa na rua uma mulher que ochama para ir ver o marido, que tem febre. O doutor senta-se à cabeceira dodoente, vê-lhe a língua; e, relançando a vista, segundo o sistema do Machuca,descobre que o doente debaixo do travesseiro tinha uma gabela de feno.— Vossa Senhoria comeu feno”, diz o doutor. “Feno?!”, pergunta oenfermo.— Sim, feno! O seu mal procede de ter comido ferio.— Vossa Senhoria é um bêbado! — , exclama o doente.– E você”, replica o doutor, — é uma carruagem que come feno!”— Que besta minha mulher me trouxe!”, torna o doente.— Mais besta é quem como feno! — , replica o médico.O doente enche-se de ira, salta da cama, e juntamente com a mulher empurrao doutor do alto da escada à soleira da porta.Aqui tens o ridículo e ao mesmo tempo triste caso que faz rir hoje toda agente. Eu chamo-lhe triste, porque o médico foi para casa com um ombroderreado da queda.Tenho pedido notícias da Sra. D. Francisca Pereira Teles. Dizem-me que jánão sai à rua, porque entreveceu, e vive quase sozinha num velho palacete quetem no Bairro da Alfama, porque os outros lhe tiravam o filho Garcia e o


marido. Ambos estes senhores vivem alegre vida; mas nenhum deles érecebido na corte. O Sr. Garcia de Moura Teles é teu cunhado, e por isso nãorepetirei o que a respeito dele ouço dizer. Basta que saibas que todas as portasdas famílias honestas se lhe fecham. A companhia dele são as cómicas ecómicos espanhóis do Bairro Alto, que vieram para aqui há dois anos, e têmcausado grandíssimos dissabores aos pais de família...“


CAPÍTULO IXSara já não achava graça na história do doutor Machuca. Lavavam-naenchentes de lágrimas, quando recebeu a carta da sua amiga. Jorge pioraratanto, que já se não podia erguer, nem planear inúteis mudanças para outroclima.Quis ele ouvir a carta, e chorou no período em que Lourença escrevia dodesamparo de D. Francisca Pereira, e da penosa agonia com que a DivinaProvidência a castigava, amarrando-a ao leito de entrevada. Sara respondeucom lágrimas às do esposo, e disse:— Se esta senhora nos quisesse receber na sua companhia, com queamizade e amor a não trataríamos na sua triste enfermidade!...— Talvez rejeitasse a minha submissão — disse Jorge — , porque Deusnão quer que ela aceite... A justiça divina opera só: a nossa caridade para coma minha desgraçada e criminosa mãe seria oposição aos decretos daProvidência... Não pode ser uma filha impunemente má... Sofreu muito meuavô... Dores, como as dos últimos anos daquele santo velho, Deus as não façaprovar à filha desavergonhada!... Eu sei que ele lhe perdoou; sei; mas a justiçadivina é menos indulgente: quer que os ofendidos indultem os agravos queparticularmente receberam, e reserva para si o castigo, a execução de uma leigeral e inquebrantável. A minha mãe há de padecer, expiar, e recordar-se


muito tempo das agonias do seu pai. Fez-me infinita compaixão o seudesamparo dela! Aquilo é que é angústia humanamente incomportável! O meuavô tinha, quando morreu, muitos parentes e amigos em volta de si. Ela nãoterá ninguém! Eu beijava as mãos frias do velho, que morrera serenamente,abençoando-me; minha mãe acabará amaldiçoando o filho que odiou, e achora hoje; amaldiçoando também o filho que tanto amou, e a despreza na suaúltima miséria! Ó Sara — prosseguiu Jorge, apertando ao seio as mãos daesposa — , ó Sara, que infernos tem este mundo!... Não há outros, não teassustes da existência doutros, minha querida amiga; não ensines a tua filhaoutros infernos: mostra-lhe somente aquele em que penou sua avó...Passados alguns segundos de silenciosa cogitação, Jorge prosseguiu:— Tens tu ânimo, Sara, para combinar comigo no que te cumpre fazer, sea minha vida for tão breve quanto...— Não! — atalhou ela. — Não! Por Deus te rogo, pela filhinha, Jorge, poreste anjo te suplico...E, como os soluços a entalassem, continuou a súplica em lágrimas, corri querefrigerava as mãos ardentes do marido.— Sossega, sossega — disse meigamente Jorge — , que eu não digo maisnada... Tens razão... é ainda muito cedo para pensarmos nisto... Pode ser queeu melhore... Aos trinta e oito anos, a natureza ainda vence a morte.Mudaremos de terra, assim que eu poder levantar-me. Os médicos dizem que


os portos de mar são nocivos aos meus achaques; vamos procurarmontanhas... Quem me dera as da nossa pátria, ó Sara! — disse ele, com muitasaudade, olhando por uma janela, como a procurá-las, e talvez a vê-las nailusão da febre as montanhas da sua terra!— Vamos nós! — exclamou ela de súbito e alvoroçada. — Vamos, Jorge?— Para onde, Sara?— Para a Covilhã... nós esconde-se... O nosso Simão fará que vivamossem risco nem medo até que estejas restabelecido.O alvoroço de Sara comunicou-se ao espírito do marido, porque a saudade dapátria o dispusera a aceitar um alvitre, que noutra hora recusaria porimprudente.— E quem sabe?! — disse Jorge com exaltada alegria, estreitando a filha aopeito.— Quem sabe?! Pode ser que eu me cure com um mês ou dois de respiraraquela saúde das montanhas da Covilhã!... De dia, não sairei; dormiremos; masde noite, iremos por aquelas veigas fora, e subiremos às serras, e veremosromper a aurora, já de volta para os esconderijos do nosso Simão: queres,Sara? Vamos?...— Hoje mesmo... se te pudesses erguer... — acudiu a alegre senhora,crendo que já via cor de saúde nas faces escarnadas de Jorge.


— Erguer-me poderia eu... poderia, que a esperança é uma forte e celestialmedicina; mas o pior é a viagem por este mau tempo que faz! Os balouços donavio, assim nesta fraqueza em que estou, quem sabe se me acabariam o restodas forças... Se te parece, escrevamos primeiramente a Simão, esperemosresposta que há de ser boa, no entretanto vou-me eu avigorando, e aPrimavera chega também. O mais acertado acho que é isto, Ao outro dia, commuita vontade e pouquíssimo vigor, saiu Jorge de Barros da cama, dando amão à filhinha, que presumia ser amparo do pai, e recurvando o braço direitopelo pescoço de Sara. Deu alguns passeios numa saleta, saiu à janela que seabria sobre uma praça muito soalheira, e ali esteve alguns minutos gozando oar tépido de um meio-dia de Dezembro sem nuvens na Itália. Dizia ele que selhe estava aliviando muito a opressão do peito, como se àquele sol sederretessem os tumores que lhe impediam a inspiração do ar. Sara, de jubilosa,desfazia com beijos as faces de Leonor.Por espaço de vinte dias, aquelas melhoras, quando não aumentassem,conservaram-se; porém, o contentamento do enfermo e da esposa tanto asencareciam que já um nem outro sabiam falar senão em vida para alegresfuturos. A morte costuma assim zombar com algumas das suas presas, como afera com a vitima, quando a deixa fugir já ferida, e salteando-a outra e muitasvezes, renova o gozo de lhe rasgar as carnes, até que de uma assentada adespedaça.


Jorge de Barros passeava um dia no cais do desembarque, porque esperavacartas de Amesterdão, por onde as de Simão de Sã lhe eram enviadas. Umnavio holandês, que naquela manhã ancorara, devia levar-lhe a suspiradaresposta do hebreu da Covilhã.Uns passageiros saltavam das gôndolas ao cais; outros vinham de longeacenando às pessoas que os esperavam em terra. Sara, reparando numadaquelas gôndolas, porque lá vinha uma senhora acenando para o cais muitoagitada, expediu um grito e exclamou:— Ó Jorge!... ó Jorge!...— Que é?! ...— Acolá vem Judite!...— Que Judite?— A filha de Simão... e o pai também... não vês?— É ele! — clamou Jorge.— E o marido de Judite lá vem também, não é?— São eles!, são eles! — bradaram juntos os esposos agitando os braços, eaproximando-se do canal.— Venho trazer-vos a resposta da vossa carta — clamou Simão de Sã, aopassar-se da gôndola para terra.


— Ó Judite! — exclamou Sara, apertada ao seio da sua amiga.— Corno teu marido está desfigurado! — disse Judite ao ouvido de Sara,querendo esconder de Jorge o espanto e as lágrimas.— Se tu o visses há vinte dias! — volveu Sara. — Só a esperança de voltarà pátria parece-me que o arrancou à morte... Esperávamos hoje a vossaresposta, para sairmos daqui, e vós vindes nesta ocasião...— Vem ouvir meu pai, que ele está contando a Jorge a razão da nossafuga...— Fuga! — atalhou Sara. — Pois vindes fugidos?! A quê?— À Inquisição. Afinal, chegaria a nossa vez da fogueira, se nãotivéssemos bons amigos em Lisboa...Recolhidos à residência de Jorge de Barros, contou Simão de Sã que aperseguição se acendera com bravura inexorável contra os hebreus,principalmente simulados cristãos-novos, refugiados pelas províncias, e commais particularidade contra ele Simão de Sã, porque tinha lutado peito a peitocom um fidalgo da Guarda, que lhe quisera roubar uma filha, violentando-a.Ora, sucedendo que o fidalgo, contuso das mãos do hebreu, era irmão de umministro secular do Conselho Real, dignidade atinente ao Conselho do SantoOficio.(*)


[(*) O Conselho do Santo Ofício tinha presidente, que era o inquisidor-geral, e conselheiros sem númerocerto. Entre estes, eram também nomeados ministros seculares, chamados do Conselho Real, dos maisabalizados em letras e autoridade. O secretário do rei era-o também do Santo Ofício. Mediante ele, secomunicava a Inquisição com a coroa. Este secretário expunha vocalmente ao rei os negócios da Inquisição,e não por escrito, para assim impedir que os segredos do Santo Oficio se soubessem. A perseguição aofavorecido judeu da Covilhã foi tão ativa e poderosa que o duque de Cadaval, protetor de Simão de Sã,apenas pôde antecipar o aviso vinte e quatro horas antes do assalto dos esbirros.]Simão de Sã, com a sua numerosa família, fugiu sem mais demora que aprecisa para entrouxar o mais urgente, especialmente o muito dinheiro que, jáde herança de avós, tinha amuado no cofre para o caso previsto da fuga,enfim realizado, quando ele menos se temia da Inquisição. Expondo-se aorisco de incutir suspeitas em Espanha, Simão de Sã, coadjuvado por valiososparentes que o acompanharam desde Bragança, ganhou porto de mar, ondevoltou o navio que o desembarcou nas salvadoras praias de Holanda. Logoque aposentou sua família em Amesterdão, fez-se ao mar em demanda deJorge de Barros, com o seu genro e filha, para pessoalmente acudir àinquietação do seu amigo, e demovê-lo do propósito de entrar em Portugal,numa época tão infamada do recrudescido barbarismo do Santo Ofício.Entristeceu-se amargamente o enfermo Jorge, e logo se viu quanto asmelhoras dele pendiam da esperança de ainda ver o céu de Portugal. Sara,posto que os hebreus da Covilhã lhe prometiam distrair-lhe o esposo das


saudades da pátria, animava Jorge a insistir no seu intento, lembrando-lhe quepodiam viver desconhecidos nalguma aldeia da província mais afastada deLisboa, e menos vigiada pelos esbirros da Inquisição. Jorge respondia:— Tanto monta morrer em Holanda como em Portugal Agora vejo que asminhas melhoras eram um milagre da esperança. A esperança era aquele viverda Covilhã, onde passei os mais ditosos dias da minha vida. já não existem ascondições que se me figuravam. Noutro qualquer ponto de Portugal ser-me-iatão penosa a existência como aqui. Iremos todos para Amesterdão. O que meresta da felicidade passada és tu e eles: bom e doce será o morrer entre vós.Ao menos, Sara, quando eu fechar os olhos, tu e a minha filha vereis muitosolhos piedosos em redor de vós, e uma família que vos será amparo. É grandeesmola da Providência este juntarmo-nos em tempo que tu corrias o perigo dete veres sozinha com uma criança em terra estranha.No discurso desta e doutras falas, Sara debulhava-se em choros, porque viadefinhar-se o rosto e apagar-se o lume febril dos olhos do seu marido. Entãoera o vertiginoso abraçar-se com a filha, e erguê-la ao seio, como se amostrasse a Deus, naquele seu afligido rogar, que era mais por soluços quepalavras.Alguns dias passados em busca de navio, as duas famílias passaram paraAmesterdão. Os padecimentos de Jorge aumentaram na viagem, bem que ele,condoído das penas de Sara, fingis — .se vigor e esperanças, que ninguém já


alimentava por serem a cada hora mais declarados os sintomas de próximofim.Um dia, Jorge de Barros disse à mulher, olhando sobre o anel do avô:— Há quanto tempo nos não lembra este anel!... Vamos falar disto, que énecessário, Sara. Tu conheces perfeitamente o local onde está o tesouro.Ainda te recordas?— Recordo, Jorge.— Pois, por amor da nossa filha, não o esqueças nunca. A mim já me nãoaproveita; e a ti... futura-se-me que também não; mas pode ser que a nossaLeonor alguma vez encontre o acaso que lhe restitua o património do seu pai,que outro não lho restituirão os descendentes do meu irmão Garcia. Assimque Leonor compreender as tuas explicações, ensina-lhe a significação dasletras deste anel, e descreve-lhe em miúdos a forma do tanque e da estátua,que cobre o depósito da água, onde está o cofre. Quem sabe? Passados anos, anossa filha poderá sem risco ir a Portugal, e talvez que a justiça lhe façarestituir o que ela legitimamente herdou do seu pai. Os reis, que hoje possuemo palácio dos meus avós, podem e devem dispensar a posse de uns bens defortuna que, segundo consta da escritura da venda, claro é lhes nãopertencem. Ainda mesmo que o tesouro haja de ser repartido entre maisherdeiros, o quinhão de Leonor, como minha filha, há de ser o maior detodos, porque os herdeiros atuais dos haveres dos meus avós sou eu e o meu


irmão. Leonor é minha única herdeira; e, como tal, meeira nos bens livres queexistirem por morte da minha mãe... Fatigam-te estas observações, Sara? Tempaciência... São necessárias; não as percas da memória... Chora-me, lembra-tesempre de mim; porém, não seja isso motivo a que te esqueças do futuro deLeonor. Olha que ela e os nossos netos hão de pedir esmola, se nosdescuidarmos de olhar para a única fortuna que lhes deixamos... bem sabesque nenhuma outra lhes resta além do segredo deste anel.


CAPÍTULO XEram o amor de Sara e os cuidados extremos da família Sã, e porventura asorações da inocentinha Leonor, que iam tendo mão da vida de Jorge.Na Primavera de 1719 descansaram os sobressaltos da esposa que, durante oInverno, não tivera dia do seu que não passasse cortado de angustiososreceios, porque a desconfiança dos médicos alanceava o coração dainconsolável senhora.Reanimou-se algum tanto o enfermo. Nem aquele sol, nem aquelas árvorestinham o aquecer e florir da pátria; todavia, o ar que lhe filtrava às cavernasulceradas dos pulmões parecia coar bálsamos cicatrizadores. Renasceramesperanças e contentamentos.Neste tempo, chegaram a Amesterdão cartas de Portugal. Lourença Coutinhofechara a sua com obreia negra.— Morreu-lhe, talvez, o marido ou algum filho à minha pobre amiga!... —disse Sara alvoroçada.— Ou pode ser que morresse minha mãe... — observou Jorge.Quando Sara começava a ler a sua carta, entrou Simão de Sã de golpe,exclamando:


— O seu irmão já não vive!— O meu irmão morreu?! — perguntou Jorge.— De desgraça... de grandíssima desgraça.— Como Filipe? — atalhou Jorge.— Pior... pior!... — disse Simão.— Ah!... — exclamou abruptamente Sara, que continuara lendo a carta deLourença Coutinho.— Que é? — perguntou Jorge.— O senhor Garcia — disse ela — morreu... enforcado!...— Enforcado! — bradou Jorge. — Enforcado um neto de Luís Pereira deBarros! Oh!, que vaso de ignomínia a Providência impõe aos descendentes domais honrado homem de Portugal!... Enforcado!... Que infâmia praticou meuirmão para tão aviltante morte!...— A minha carta diz o seguinte — respondeu Simão de Sã, e leu osseguintes períodos:-... Há cinco anos que o rei Dom João quinto foienfeitiçado, como cá dizem os pios cristãos, por aquela encantadora cigana,que eu, há três anos, te mostrei nas hortas de Chelas, chamada Margarida doMonte.


“Lembrado estás de te eu contar quantos desterros, quantos homicídiosenegreciam a vida de Margarida, desde que o rei perdeu o tino por ela, sendocausa de tantas desgraças não poder a boémia guardar ao rei mais fidelidadedo que tinha guardado aos outros mancebos e cúmplices da sua desenvoltura.“O rei, irado de ciúme, obrigou-a a entrar no convento das domínicas daRosa, na paróquia de São Lourenço; e violentou-a a professar, com muitíssimavergonha das outras religiosas, que se deram por grandemente agravadas de talparceira. Tamanho foi o escândalo na cidade, quanto inúteis os queixumes dascândidas filhas de Domingos de Gusmão, de escaldante memória.“Margarida do Monte, ao tempo que professava, ia declarando que não criaem Deus nem no Diabo; mas professou, sob ameaça de ir presa para a Torrede São Gião, e lá dar a ossada do mais galhardo corpo que ainda viram olhosmortais!“Deram-lhe no convento luxuosos aposentos. A índia não teve mais que dessepara ornamento dos profanos retretes, câmaras, recâmaras e antecâmaras dacigana domínica. Serviam-na criadas com ar de damas de honor, e ali estavacomo irmã de um rei a Margaridinha do Monte que há quinze anos aquiapareceu em Lisboa, trazida de Santarém pelo conde de Óbidos, como suamanceba, e com ele esteve, enquanto outro conde lha não empolgou, e outroa este, e não sei quantos ao último, até que o rei, fascinado dela numas


touradas, a tomou, julgando que lhe cabia a honra de ser o derradeiro eabsoluto possuidor da boémia.“E, por se enganar redondamente, e ter coração curto, julgou que o vingar-seera roubá-la a alheios olhos, e amansá-la no convento para depois a retomarpurificada dos braços do beato Domingos.“Ninguém se atrevia a requestá-la no Convento da Rosa, posto que elaprovocasse os mais audazes freiráticos de Lisboa: temiam o rei, e punham osolhos nalguns mancebos ilustres, que por causa dela andam desterrados, maisfelizes que outros enterrados.“Era preciso que o maior doido destes reinos se amoldasse aos caprichosvingativos da cigana: apareceu Garcia de Moura Teles, irmão do honradomarido de Sara.“Já sabes que este Garcia com as demasias da sua despejada vida alheava de sitodos os amigos e parentes. Rara semana se passava sem que algum enormeescândalo estrondeasse por conta dele, ou da mulher, de quem ele há muito seafastou, facultando a entrada da corrupção por todas as portas da casa, ondehabita a esposa, criatura de vilíssima extração e piores instintos.“Foi este homem, que já não era novo, quem se abalançou às temeráriasasneiras dos vinte anos.


“Como visse Margarida do Monte na grade de uma secular extravagante doConvento da Rosa, aceitou-lhe a requesta, e correu regularmente com visitas ecorrespondência para o convento.“Parece que o rei o soube, e enfurecido até mais não poder, quis pessoalmentematá-lo; todavia, os áulicos desvaneceram-no do intento, prometendo-lhevingá-lo oportunamente, sem que o nome real ficasse enxovalhado nosucesso.“Gente bem informada me conta que uma freira confidente de Margarida forahabilmente comprada por agentes do paço, para trair a confiança da boémia, ereferir dia por dia o andamento dos amores dela com o alucinado Garcia deMoura.“E o caso foi que a traidora denunciou o dia e hora em que, disfarçado emcarvoeiro, Garcia de Moura havia de entrar no Convento da Rosa.“Os ministros da real vingança providenciaram a espionagem tãoacertadamente que o disfarçado carvoeiro foi agarrado no momento em queentrava com um saco de carvão sobre os lombos derreados.“Apenas agarrado pelos quadrilheiros, despojaram-no de quatro pistolas queescondia num cinturão, levaram-no ao corregedor do bairro, e daqui para oLimoeiro.


“Ninguém esperava que um caso destes, segundo o exemplo doutrosanálogos, fosse castigado com mais severa sentença que um desterrotemporário; porém, como o negócio era com o rei, os mais avisadosesperavam que o desterro fosse para sempre e para alguma das mais inóspitaspossessões.“Eis senão quando corre um boato de que o preso seria condenado à morte.Os parentes de Garcia de Moura, quando isto souberam, saíram todos asuplicar como grande mercê o degredo do pobre louco. A mãe, que estavaentrevada, ordenou que a levassem assim à presença do rei. Dom João, assimque lha anunciaram, saiu por outra porta, e foi para a quinta de Alcântara. Adesgraçada mulher voltou para casa dando brados de doida, e clamando aopovo que não deixassem matar um neto de Luís Pereira de Barros, e um filhodela, que tinha nas veias sangue real. Do povo havia quem chorasse e quemrisse. Eu fui um dos que choraram, porque a conheci em tempos de muitogrande valimento e formosura por igual. Em tempos de virtude é que, a dizerverdade, nunca a eu conheci.“Dos parentes o que mais ativamente entendeu na salvação do preso foiDiogo de Barros, e com ele a parentela que fala de Luís Pereira como de umsanto. Baldou-se tudo!“Ontem, por volta das dez da manhã, correu que se estava carpintejando umaforca no Campo da W (Local onde é hoje o Terreiro do Paço.), a tempo que


um regimento de arcabuzeiros se formava à porta do Limoeiro. Toda nósentendeu que ia ser enforcado Garcia de Moura. Fecharam-se as janelas demuitas casas principais. A indignação era grande; mas o terror maior. Acompaixão já perdoava as travessuras escandalosas de Garcia; mas ninguémousava proferir palavra de descontentamento.“Ao meio-dia, saiu Garcia de Moura Teles entre dois frades de Arrábida, quelhe diziam as costumadas pregações, enquanto dois homens o amparavampelos sovacos. Eu o vi: ia como morto; não pude encarar naquele espetáculopor muito tempo.“À uma hora e três quartos correram-lhe o laço, quando já pouca vida lhepoderia a corda apertar na garganta...Simão de Sã interrompeu a leitura, porque Jorge de Barros, perdida a cor e oalento, caiu para sobre a espádua da sua mulher.Passado largo espaço, deu sinal de acordo: eram torrentes de lágrimas, e vozesininteligíveis. O hebreu. arrependera-se de ler a carta, sem predispô-lo aescutá-la. Pensava ele que Jorge devia de odiar bastante o irmão para nãosentir tão profundo o golpe.Depois das lágrimas, sobreveio uma torva serenidade ao rosto de Jorge, e logoestas pausadas palavras:


— Um irmão assassinado pelos Távora; outro... enforcado... Enforcado,santo Deus!... Um neto de Luís Pereira de Barros enforcado!...Confluíam palavras consoladoras da esposa, de Simão, e de todos. Parecia nãoouvi-las, nem ver quem lhas dizia.— Aquela pobre senhora... a minha infeliz mãe!... — murmurou ele.E, voltando-se para Simão de Sã, perguntou: — e a minha mãe ainda vive?— A carta não diz nada a tal respeito.— E a tua carta? — perguntou Jorge à esposa. — Que diz a Coutinho?— Não a h toda... Vou ver — respondeu Sara, correndo os olhos porsobre as muitas páginas da carta.Parou num relanço da última página, e leu: — O honrado Diogo de Barros,segundo me diz a minha amiga Dona Isabel, mulher do contador-mor, vaihoje buscar a senhora Dona Francisca para sua casa, porque se conta queenlouquecera, e diz e faz coisas de furiosa. Vê tu, Sara...Sara susteve-se, e Jorge disse: — Vê tu... o quê? Lê o mais.Sara leu: — Vê tu que espantoso castigo o desta senhora!... Os dois filhos queela amava tão miseravelmente mortos!... Esta infâmia da forca para ela que tãosoberba era da sua fidalguia!...


— Está bom... — atalhou Jorge. — Agora... deixem-me sozinho... deixemmechorar...O leitor faz-me certamente a justiça de supor que eu não imaginei um D. JoãoV que amou uma cigana, chamada Margarida do Monte, a qual, na qualidadede freira domínica, se fez amar de um mancebo ilustre, que, por se fingircarvoeiro para entrar à cela da dileta do rei, morreu na forca. Se eu suspeitasseda desconfiança injusta do leitor, copiaria o seguinte período com que oCavalheiro de Oliveira me justifica e abona: “... Eu vi o soberano arrastarpesadíssimas cadeias, em que muito tempo esteve cativo por astúcia ou feitiço,como se dizia, de Margarida do Monte, criatura da raça boémia. Quantasdesordens, exílios, e até mortes se não efetuaram por intrigas daquela mulher!Morreu ela finalmente encarcerada no Convento da Rosa de Lisboa, emqualidade de religiosa da ordem do patriarca de S. Domingos. Este novo pai,que à força lhe deram, não a tomou mais ajuizada. Induziu ela um peralvilho avisitá-la na cela; prestou-se ele aosseus apetites, e foi desgraçadamentesurpreendido, e pouco tempo depois enforcado. Entrara ele no convento,disfarçado em carvoeiro; e, como foi apanhado com o disfarce, hoje é maisconhecido pelo nome de Carvoeiro da Rosa, que pelo seu nome de batismoou de família.O amor das ciganas, naquele tempo, era funesto, invencível e fatal. Nosegundo volume desta narrativa virá melhor lance de exemplificar o prestígio


das mulheres daquela raça que lá vai perdida na confusão de raças que, aindabem, se fundiram, à luz da civilização, no molde universal da humanidade.Que ideia formavam nossos avós da raça que tanto se chamava boémia comoegípcia? Uns diziam que saíra da Tartária, e infestara a Europa em 1417, compassaporte de Sigismundo, rei da Hungria, e recomendações de algunspríncipes, que a veneravam como raça de profetas,videntes eextraordinariamente iluminados em coisas das altas regiões, cumprindodecretos de Deus, que a mandara cruzar a face da Terra, sob condição de nãopossuir um palmo dela. A juízo dos príncipes que os protegiam, os ciganosexpiavam a culpa do seus antepassados, moradores do Egipto, os quaisrecusaram receber Jesus e a sua Mãe Santíssima, perseguidos por Herodes.Cuidavam outros que os boémios procediam da Pérsia; e, de sete em seteanos, saíam em caravanas, obrigados por lei, a buscarem sua vida pelo mundoalém, por não terem pátria que lhes abastasse o sustento.Outros, por derradeiro, consideravam-nos descendentes das dez tribos deIsrael, cativas de Salmanasar, rei da Assíria.Como quer que seja, os filhos da misteriosa origem, em Alemanha eramchamados ziguener, em Itália cingari ou zingari, e nas Espanhas ciganos ouziganos.Se a história nos não diz coisa importante acerca de ciganos em Portugal, alegislação claramente nos assevera que eles por aqui estancearam em grandes e


perigosas caravanas. Também se nos dá a inferir da legislação que algunsmonarcas lhes deram indulgente faculdade de viverem em determinadaslocalidades do país: quais elas fossem não posso eu de pronto assinar;presumo, porém, com muitas probabilidades que algumas vilas das carairas deTrás-os-Montes e Beira Alta eram o paradeiro legal dos ranchos queanualmente visitavam as feiras principais da nação.Citarei de passagem as cartas régias, que tenho à mão, pertinentes ao assunto,que merecia ser difusamente versado por quem o investigasse com mais sabere paciência indagadora.Na Ordenação Filipina lá encontro uma carta régia de 17 de Agosto de 15 5 7“sobre a saída dos ciganos do reino. “É enviada ao corregedor da comarca dePinhel, e reza deste teor nos pontos concementes ao nosso intento: “Pela leidos capítulos de cortes que el-rei meu senhor e avô, que santa glória haja, fezem Évora no ano de 1535, é mandado sob as penas nela conteúdas, que nãoentrem ciganos nos meus reinos e senhorios, por se evitarem alguns delitosque cometem e fazem em muito dano e prejuízo do povo; e porque me é ditoque os ditos ciganos entram nos ditos meus reinos... Hei por bem e vosmando que os não consintais estar nem andar em lugar algum dessa comarca;e se alguns, agora ou ao diante, deles nela andarem ou estiverem os prendereise procedereis contra eles à execução das ditas penas... O que assim hei porbem sem embargo de quaisquer provisões de el-rei meu senhor e avô, ouminhas que os ditos ciganos ou alguns deles tenham para poderem entrar ou


andar nos meus reinos, as quais em todo revogo... E a estes tais que assimtiveram as ditas provisões assinareis termo de trinta dias para que saiam dosmeus reinos... Jorge da Costa a fez em Lisboa a 17 de Agosto de 1557.”Devia de ser urgentíssima esta carta régia, lavrada vinte e quatro dias depois damorte de D. João III.Não sei até que ponto foram obedecidas as ordens da regência. Podeconjeturar-se que a disciplina se relaxou logo, ou poucos anos corridos;porque dezasseis anos depois, por alvará de 14 de Março e apostila de 15 deAbril de 1573, D. Sebastião, referindo-se ao desprezo com que eramesquecidos os regimentos e leis antigas, junta que os ciganos “fazem muitosfurtos, e insultos e delitos de que o povo recebe grande opressão e trabalhos”.Pelo que, manda apregoar em todos os lugares públicos a saída dos ciganos eciganas, e mais pessoas que com eles andarem, dentro de trinta dias, nãoobstante as provisões de D. João III ou dele propriamente.E acabados os ditos trinta dias, acrescenta o pregão, os ciganos que seencontrarem sejam logo açoutados e degradados perpetuamente para as galés.Enquanto às mulheres — diz a apostila — como não podem sofrer a pena dasgalés, sejam publicamente açoutadas com baraço e pregão, e lançadas doreino.O rigor das penas não enfreou a ousadia das hordas boémias. De envolta comelas andavam portugueses e estrangeiros de diferentes nações disfarçados em


ciganos, e falando a linguagem deles, não aparentada com língua nenhumaconhecida dos lexicógrafos.Ao meu juízo, estas conquistas de estrangeiros e portugueses quem as faziameram as ciganas, mulheres sobremodo formosas.A lei, que manda matar os ciganos e ciganas, rebeldes aos alvarás jásumariados, é de Filipe I. Do contexto da lei colhe-se quão poderosas etemíveis se tinham feito as quadrilhas boémias em Portugal, com as quais sebandeavam portugueses entrajados de ciganos, e falando a linguagem deles.Não era já atrevimento raro entrarem nas povoações de mão armada,saquearem as casas, e repelirem as justiças e tropas. Para aqueles que, notermo de quatro meses, não despissem os trajos da sua raça, não falassemlíngua portuguesa ou castelhana, e não convizinhassem em povoados, asentença era de forca no local onde fossem encontrados. Às mulheres dosciganos, presos nas galés de Lisboa, ordenava a lei que se afastassem no prazodos quatro meses, sob pena de serem açoutadas com baraço e pregão, edegradadas para o Brasil.Esta lei, à primeira vista severa, concedia aos ciganos um fácil direito denaturalização, facultando-lhes residirem em Portugal, mais amplamente doque lho tinham concedido as provisões dos reis antigos. Foi ela, enquanto amim, que, em grande parte, acabou com as hordas vagabundas, dando, para


assim dizer, pátria a milhares de famílias que não conheciam berço nemsepultura.Todavia, algumas caravanas daquela insociável raça, talvez as mais ferozes,nem se temeram da forca, nem se lisonjearam com a permissão de se fazeremportuguesas. Grandes senhores em Portugal as protegiam, nomeadamente oconde de Óbidos no fim do século XVII. Refere um contemporâneo queanualmente na grande feira de Santarém se juntavam muitos, e se alojavam nasabegoarias daquele conde na aldeia de Pernes. O Cavalheiro de Oliveira, entãorapaz, e dado aos amores das ciganas, ia passar a Pernes as três semanas dafeira; e, segundo confessa, acariciava as mulheres e filhas dos ciganos, epresenteava-lhes os filhinhos. “Entendi”, escreve ele, “que era este o melhor,senão único expediente, de me livrar dos insultos e malvadez desta espécie degente. E nisto me não enganei, que eles, como escravos, me obedeciam,chamando-me seu senhor, e adorando-me; e devo confessar, em pró deles,que nunca recebi mínima desfeita dos que formavam aquele rancho, e maisvivi com eles por espaço de quinze ou dezasseis anos. Os meus amigos evizinhos da mesma povoação não podiam gabar-se do mesmo. Como erammaus para aqueles miseráveis recebiam o retorno da mesma natureza. Osciganos respeitavam no extremo o conde de Óbidos, seu benfeitor. Creio quenão hesitariam expor a vida em serviço dele; pelo menos assim mo diziamenergicamente e com mostras de sinceridade. Também me diziam que a suaíndole em geral lhes não permitia pagar o bem com o mal, e jamais poderiam


ser ingratos a quem os beneficiava. Convencido estou disto por um lance queporei como exemplo e prova, o qual é raro em verdade e pode ser que único.A 7 de Novembro de 1727, entre onze horas e meio-dia, quando eu iaatravessando o pinhal da Azambuja, o Ziedel, rei ou diretor da cáfila, acercousede mim com mais três que eu não conhecia. Estavam eles armados declavinas e pistolas; e, bem que eu estivesse armado como eles, tendo somentecomigo dois criados, e um só com que podia contar, as forças eram muitodesiguais. O Ziedel decerto me não temia, podia impor-me a lei, bastava-lhearremeter comigo para eu lhe entregar a bolsa, e a vida, se ele a quisesse.Saudou-me o gentil salteador com quanto respeito imaginar se pode, econfessou que desde alguns meses vagueava naquela floresta, à frente de umaquadrilha de bandidos, que viviam tão-somente de roubar os passageiros.juntou que se teria ele a si em conta de infame, se levemente me molestasse; e,para de todo me tranquilizar, deu-me um bilhete assinado pelo seu punho, istoé, uma espécie de passaporte escrito nas costas de uma carta, que era um setede paus, pelo que ordenava aos demais sócios que me deixassem livrementepassar. De feito, este passaporte foi-me utilíssimo. Meia hora antes de entrarem Azambuja, encontrei a quadrilha que me respeitou tanto como o chefe.Seriam uns quinze a vinte celerados que eu não conhecia, e três dos ciganosque eu vira na aldeia de Pernes, os quais me trataram com. muitaconsideração, alegando os pequenos favores que lhes eu tinha feito. Esteshomens, embora os julgueis infamados por aquele grupo de salteadores, não


quiseram, por mais diligências que fiz, aceitar duas moedas de ouro que lhesofereci.“Ora, da tribo destes salteadores é que saíra aquela Margarida do Monte,amante de D. João V, freira dominicana da Rosa, por amor de quem foraenforcado Garcia de Moura Teles, que revive na tradição, com o cognomentode Carvoeiro da Rosa.


CAPÍTULO XINão bastava Sara e a filha a divertirem o pensamento de Jorge, torvamentefixo e concentrado no suplício afrontoso do seu irmão. Pode ser que estesucesso o abalasse pouco, se a doença, ulcerando-lhe, digamos assim, o órgãoda sensibilidade, o não predispusesse a ver na desgraça do seus irmãos e dasua mãe uma fatal estrela que sinistramente o perseguia a ele e perseguiria suamulher e filha.Esta pertinaz apreensão, debalde combatida com razões e carícias, desfechouem monomania que ameaçava completo desconcerto de juízo. Jorge, abraçadoa Leonor, falava-lhe do funesto destino que ela havia de cumprir; e, se a mãe,lavada em lágrimas, o contradizia, apelando dos prognósticos dele para abondade de Deus, Jorge, num tom de declamação trágica e suspeita de insânia,exclamava:— E tu, Sara, se melhor morte não te colher cedo, morrerás como tua mãee como teu pai! Morrerás na fogueira!... e a nossa filha morrerá como tu ecomo eles!...Os dias passavam todos assim escuros. Não volveu um só de esperanças. Aenfermidade acelerava-se tanto ao seu fatal remate, que já não havia na ciêncianem na piedade respiradouro aos apertados corações das duas famílias que,em volta do enfermo, pareciam indistintas pela paixão das lágrimas. Jorge de


Barros dizia a Simão de Sã que a Providência trouxe-ora da Covilhã parareceber uma viúva e uma órfã, no desamparo de marido e pai. Explicava-lhe oestado dos seus minguadíssimos haveres, deplorando a quase pobreza em quedeixava sua família. Lembrava-lhe expedientes quase impraticáveis paradesenterrar o tesouro da Bemposta; e pedia-lhe que por conta das futurasriquezas da sua mulher, ou filha, adiantasse Simão de Sã o empréstimonecessário para a subsistência de ambas.Com estas melancólicas disposições, e outras mais dolorosas práticas com asua mulher, passaram os últimos dez dias de Jorge de Barros; até que a morte,tão esperada e todavia de surpresa para todos, lhe desatou a alma dos vínculosdo corpo cortado de dores acerbas. A religião de Jorge resplandeceu nasúltimas horas, senão de modo que todos creiam que aquela alma se juntou aDeus, pelo menos não há cabal argumento que nos induza tristemente apensar que se perdeu. Jorge expirou sem o cerimonial católico, é isso verdade;mas também não aceitou o cerimonial judaico. Quando ele viu o rabino comdez testemunhas em volta do seu leito, acenou que se retirassem, e disse:— A testemunha da minha consciência é Deus. O Senhor de bondade e demisericórdia me julgará sem ouvir o depoimento das testemunhas da minhaconfissão (*)


[(*) Quando um hebreu entra em trabalhos de agonia, acercam-se-lhe do leito um rabino e dez testemunhas,que lhe ouvem a confissão dos pecados, feita alfabeticamente. Cada letra simboliza um pecado dos maiscomuns; porém, se o moribundo tem espírito e boa inteligência para se exprimir sem os símbolos, confessa-seà maneira dos cristãos. O enfermo pede a Deus que lhe dê saúde, ou se amerceie da sua alma; eprincipalmente lhe pede que contrapese nas culpas as dores do trespasse como expiação. Os amigos doagonizante juntam-se na sinagoga a orar por ele, com um nome diverso do que ele tinha, a fim de mostraremque é já outro homem pelo arrependimento. Os que permanecem na câmara águardam o instante da morte,e alguns beijam a face do defunto, costume antiquíssimo, como de Filon se infere, quando lastima que jacobnão pudesse dar o derradeiro beijo no seu filho, inesperadamente morto. Esta usança, significativa desupremo adeus às almas queridas, passou aos pagãos, se havemos de chamar usança a um acto em que étudo a ternura, a paixão e a dilacerante saudade.]Leonor foi anjo da esperança, como ajoelhada à beira da sepultura do pai,pedindo a sua mãe que por amor dela se não lançasse à mesma sepultura. Seteanos tinha então Leonor, encantadora criança a quem os pressagiadoresvaticinavam desventuras, tirando os seus horóscopos de um ar triste epensador com que a menina punha os olhos naquele céu triste como ela, e porlargo espaço se detinha no seu enlevo, julgando que via o pai, ou Deus sabe seestas visões as permite Deus aos seus anjos deste mundo. Sara pôde, pois,levantar-se da sua prostração, aquecer o rosto quase frio de morte nos lábiosda filha, e enxugar as lágrimas para poder ver o escabroso caminho por ondehavia de atravessar guiando a sua orfãzinha pobre.


Os poucos teres, administrados por Simão de Sã, pareciam dar lucrosbastantes para alimentação de Sara e Leonor, ou, mais exatamente, fingia ohebreu da Covilhã que a herança de Sara era mais valiosa do que pensavaJorge.O comércio de Simão prosperara em Amesterdão mais desassombradamenteque em Portugal. Isto lhe compensou a perda dos bens de raiz na pátria, logoconfiscados pelo Santo Ofício, visto que a fuga do proprietário indiciavaexuberantemente o judaísmo de Simão e dos seus parentes, tambémespoliados.Leonor ia crescendo em graças de corpo e espírito. Sara obedecia à vontadedo marido que, nas suas viagens e trato com sociedades diversíssimas daportuguesa, criara desejos e invejas de ver sua filha instruída varonilmentecomo tantas damas que se lhe depararam no estrangeiro, especialmente emItália, nas famílias israelitas. Em Amesterdão abundavam matronas ilustradas,feitas na convivência da judia portuguesa Isabel Correia. Com estas estudavaLeonor as prendas literárias, sem descurar das outras.Decorreram cinco anos. A correspondência de Lourença Coutinho, com maisou menos resguardo da espionagem da Inquisição, nunca descontinuou.Lourença, como mulher que muito padecera e pagara tributo grande delágrimas à saudade de Jorge, seu livrador, inventava ditames consoladores paradespenar o coração de Sara. O plano de casar o seu António com Leonor não


sofrera a menor quebra. Queria ela que o consórcio se realizasse logo que ofilho concluísse a formatura em Coimbra; mas este desejo era embaraçadopelo medo do perigo que Sara poderia ainda correr em Portugal.Sara, rogada pela sua amiga, mandou-lhe o retrato de Leonor, o qual foi dadoao académico António José, nas férias do seu último ano de estudos.António José da Silva, que assim se assinava o canonista, respondeu ao mimocom arrebatada e amorosa poesia, da qual sua mãe fez presente a Leonor, Amenina respondeu com ingénua doçura aos versos em breves linhas de prosa,nem entusiastas nem esperançadas. Quase que a isso a compelira suavementea mãe, referindo-lhe então o pacto jubiloso que ela com a mãe de Antóniotinham feito, seis anos depois de ter nascido a prometida esposa. Leonor, comum sorriso de precoce gravidade, achava graça à brincadeira de duas mãesfelizes.No fim do ano de 1726, recebeu Sara a notícia de ter morrido D. FranciscaPereira Teles, em casa dos primos Barros, depois de sete anos de rematadademência, com acessos de fúria aterradora. Constava, no dizer de LourençaCoutinho, que fora exemplar em horror a morte dela, porque a Providênciajusticeira lhe dera luz de razão nas suas últimas vinte e quatro horas para queela visse a vida que deixava, e os méritos que levava à presença do juizSupremo. E assim, acontecera o sair-lhe à porta da eternidade o ancião LuísPereira, o pai, amaldiçoando-a; o marido tombado à sepultura por desgostos


afrontosos que lhe ela dera; os filhos perdidos pela perdição moral da suamãe, que lhes empeçonhara os instintos com a licenciosa vida que lhesfavoneara. E, como então lhe dissessem que o seu filho Jorge tinha já morridodesde muito em Holanda, D. Francisca revelara um prazer feroz na certeza deque ele, como judeu que se fizera, estava no inferno irremediavelmente. Estehediondo espetáculo de uma agonia em arrancos, interpolados de esgares dejúbilo, não havia quadro de horrores desta vida com que compará-lo! Aspiedosas exclamações dos frades não puderam com ela nada. As vinte equatro horas lúcidas não lhas dera Deus para o arrependimento, se não paraque ela entrasse noutro mundo com a memória do que tinha sido neste. Eramestas e outras as reflexões que o advogado João Mendes fazia a sua mulher, eela comunicava à sua amiga.No tocante aos haveres de D. Francisca Pereira Teles, a opinião de JoãoMendes da Silva era que Leonor, filha de Jorge, pouquíssimo ou nada poderiacobrar. O vínculo muito deteriorado, por morte de Garcia de Moura, passaraao primogénito da mulher, com quem não fazia vida. O segundo marido deD. Francisca senhoreara-se do restante da casa, sobrecarregando-a de ónus edívidas, reais e fictícias, das quais era já coisa quase impraticável desembaraçaro património de Jorge de Barros. Por este lado, Sara não tinha que esperar dePortugal. Porém, dizia Lourença: “Ainda te fica o tesouro da Bemposta,porque eu não ouvi dizer nem levemente que alguém o descobrisse. Nopalácio residem os infantes Dom Francisco e Dom António, irmãos de Dom


João V; e, como meu marido conhece o capelão-mor, algumas vezes lhe temfalado no tesouro, para o sondar, e o capelão diz que o tal tesouro era aguarda avançada da maluquice de Dona Francisca. Este capelão tem um filhoque é almoxarife da Bemposta, e acredita que o tesouro existe, porque ouviucontar a história do anel. Andou ele algum tempo atrás do meu marido,querendo saber em que parte do mundo estavam os herdeiros de Jorge deBarros para se entender com eles a respeito do tal anel; mas meu marido,cautelosamente, lhe mentiu, dizendo que nunca ouvira falar em tal coisa; paraque não fosse o homem revolver a quinta, e por arte do diabo encontrar otesouro.Olha que eu tenho esperanças de ainda te ver a ti possuidora das riquezas doteu marido, minha Sara. Mais tarde ou mais cedo, vens para Portugal. Istodepende de espreitar o ânimo da Inquisição. Meu marido volta que ainda écedo; mas a minha saudade faz-me persuadir que o meu velho é muitotimorato. Eu penso que podias estar em Lisboa com outro nome, enquantoesta sanha dos algozes não abranda. Dos teus inimigos já não vive nenhum.Não sei quem te iria acusar agora!Mais receio me faz o meu António com as suas imprudências lá por Coimbra,segundo alguns estudantes hebreus me avisam. Vive muito ligado, quando estáem Lisboa, com aquele Francisco Xavier, filho da minha amiga Isabel dequem já muitas vezes te falei. Este Francisco não é judeu nem cristão: diz eleque é filósofo, e não se esconde para cortar nos frades e na Inquisição. Quem


viu-o tão devoto e crendeiro há oito anos! Acho que o respeitam por causa doconde de Tarouca, com quem ele está sempre; mas temo que o meu filho sejao responsável pelos delírio dele.O Antoninho queixa-se da frieza da sua futura noiva, dizendo que a atmosferada Holanda lhe nevou no coração. Quando ele cá veio a férias de Páscoa, eu,para ouvi-lo, disse-lhe que desconfiava da nenhuma inclinação da nossaLeonor para o matrimónio, à vista da glacial tibieza das suas cartas. O rapaz,ouvindo isto, deu dois passeios na sala, e recitou uma décima, que me fez rir, eaqui ta mando para que também te rias. Vê tu que graça tem o diacho dopoeta:Toda a mulher que não forInclinada ao matrimónio,Há de levá-la o Demónio,Se não a levar amor:Trate logo de deporO seu tirano desdenhar;Porém, se não abrandarO seu vigor, deve escolher


Ou casar por não morrer,Ou morrer por não casar.(*)[(*) Esta décima está numa das óperas de António José da Silva.]Não te persuadas tu, Sara, que o meu António tem génio folgazão. Não fazesideia das tristíssimas horas que o afastam da convivência da família! Fecha-seno seu quarto, encosta a face às mãos, e fica-se num torpor de que só euconsigo acordá-lo com muitas carícias. já uma vez me disse que tinhapressentimento de grandes infortúnios. de outra vez, pediu licença ao pai parasair de Portugal, embora tivesse de granjear a sua subsistência no estrangeiroexercitando algum baixo ofício. Mas (coisa singular!) tudo que escreve éalegre! Diz ele que nas horas de maior tristeza tira da imaginação as cenas maisengraçadas das comédias que tem já tecidas para lá para o futuro asaperfeiçoar.O pai grita-lhe que estude Direito Canónico, e ele o que faz é ler e reler umgrosso livro que ele chama o seu Plauto, e outro chamado Gil Vicente.Que impertinências as minhas quando te falo neste meu filho tão querido!Desculpa os excessos do meu coração, Sara, porque és mãe. Pede comigo a


Deus que os presságios dele se não realizem; e a tua inocente filha que peçatambém, porque o céu não pode ser surdo às orações da nossa linda Leonor. “


CAPÍTULO XIISara tinha vivas saudades de Lisboa, como se alguma hora de felicidade lhetivesse reverdecido uma palmeira no deserto da sua árida juventude. ódiodevera ela sentir à terra em que pai e mãe lhe queimaram as labaredas, aindaacesas para os seus desventurados irmãos. Simão de Sã não entendia assaudades de Sara; combatia-lhas para despersuadi-a de voltar a Portugal,enquanto o rodar do tempo não esmagasse os sanguinários fanáticos,recrudescidos num reinado em que os errados pressagiadores tinham previstoo melhoramento dos hebreus, inferindo a conjetura do alívio que elesexperimentavam em todos os estados, tirante Espanha.Sara parecia condescender; não cessava, porém, de recomendar a LourençaCoutinho que averiguasse o ânimo do Santo Ofício, e a chamasse logo que opudesse fazer com segurança.O doutor João Mendes da Silva, fiado no parecer do familiar do Santo OficioDiogo de Barros e do contador-mor José de Oliveira e Sousa, disse a suamulher que podia afoitamente chamar Sara, não para a companhia deles, maspara a dos Barros, que, sem embargo de ela pertencer à comunhão judaica, arecebiam como viúva de Jorge de Barros.Simão de Sã, postas as coisas neste pé de segurança, não impugnou a saída deSara, senão com as suas lágrimas e as da família que se tinha afeito a julgar que


as duas senhoras eram suas e para todo o sempre. Fraca oposição era a daslágrimas ao fulgor atrativo daquela funesta estrela que o moribundo Jorge deBarros vira iluminando o destino dos seus!Recebeu Sara a herança muito aumentada do seu marido, e saiu deAmesterdão entregue à família do cônsul espanhol na Haia, que retirava paraEspanha, em embarcação que se dirigia a Sevilha. Simão de Sã, temeroso daInquisição de Sevilha, a primeira na Península, o manancial de fogo quederivara por sobre o território das Espanhas, e cortara os mares até às índias,agourou mal da passagem de Sara por sobre aquele chão maldito ensopado desangue de hebreus; não obstante, a viúva deu nenhum peso aos agouros deSimão, tendo como impossível o estorvar-lhe o passo o Santo Ofício numaterra em que ela não era conhecida, indo para além do mais em companhia deuma família cristã e muito considerada em Espanha.O rosto do hebreu ressumbrava o desgosto profundo da quase ingratidão deSara, que, por amor de Lourença Coutinho, podia separar-se sem lágrimas daspessoas que a tinham salvado nos dias da perseguição. Ao mesmo tempo, osolhos de Leonor afogavam-se em choros, protestando contra o procedimentoinexplicável da sua mãe, que trocava uma existência segura e pacífica pelossobressaltos de Portugal, donde cada hora estavam fugindo os hebreus comos seus haveres, a muito custo subtraídos à vigilância da Inquisição.


— Torna para nós, se a tua mãe se perder, e a ti te deixarem, minha filha— disse Simão em segredo a Leonor. — Volta para a família em cujo seionasceste, menina. As minhas filhas acalentaram-te nos teus primeiros sonos.O teu berço foi o delas. Ama e obedece a tua mãe; mas, se ela te faltar, voltapara nós.Sara olhava com supersticioso medo para as lágrimas de Leonor, quando, nomar alto, a menina voltava o rosto amargurado para os nevoeiros em que lheficava Holanda e nós querida da sua infância. Falava-lhe a mãe do céu, dasárvores, dos laranjais, do sol, das estrelas de Portugal. Leonor, numa dessasdescrições das delícias da sua Lisboa, por amor do sol, das estrelas, doslaranjais, atalhou-a, dizendo:— E as fogueiras, mãe?!— Que horrível pergunta, minha filha!... Pelo amor de Deus, não me falesnisso!... Pois não viste a carta de Lourença?!— Vi... e também, viu-a o senhor Simão — respondeu Leonor. — E amãe bem sabe com que terror ele nos viu partir...— Era a amizade que nos tinha, menina...— Pois sim... mas... melhor fora... Sara precisava de que alguém lhe dessealento para não se deixar vencer do medo da filha. A coragem, com que sedespedira, ia-lhe minguando. Já o arrependimento começava a dar-lhe tratos.


A si mesma se perguntava ela, com feminil versatilidade, como puderasacrificar a paz e tal qual satisfação que tinha em Holanda, a um pueril prazerde voltar à terra onde apenas tinha uma amiga, pela qual deixava tantas e tãoprovadas em grandes aflições!E Leonor continuava a chorar silenciosa. A família espanhola julgava mais desi que das tristezas de Sara e da filha. Bem que tolerantes, a esposa e maisdamas do cônsul castelhano olhavam de soslaio para as judias, cuja companhiatinham aceitado, porque o cônsul era muito obrigado a Simão de Sã e outroshebreus portugueses que, ao invés do seu costume, lhe tinham emprestadodinheiro sem onzena. Cá, porém, no mar alto, os cuidados das damasenjoadas, com as israelitas portuguesas, podiam sem injúria igualar-se a umacompleta indiferença, como se receassem saltar do mesmo bote, no cais deSevilha, acamaradadas com gente de tal raça.A bordo do navio, viajava um mercador de Valhadolide, homem de meiaidade,que desde o embarque fitou Leonor com olhos requebrados, e nãoperdia azo de lhe dizer finezas. De Valhadolide era também a família docônsul.Sara, bem que notasse o desgosto com que a sua filha escutava forçada asgalanices algum tanto serôdias do espanhol, conversava com ele por ser oúnico passageiro que de melhor sombra se esmerava em obsequiá-la, com osolhos sempre envesgados à sombria e formosa menina. O espanhol, que os


seus patrícios consideravam muito, ofereceu a Sara o seu valimento, em paísonde realmente lhe era necessário, visto que ela era cristã-nova, segundoouvira dizer a um familiar do cônsul. Aqui viu a hebreia quão malrecomendada fora a uma gente que a denunciava e punha em risco de serpresa em Espanha. Aos sustos de Sara acudiu o mercador com a promessa dasua eficaz proteção.A viúva, convencida da insinuante bondade dos quarenta ou mais anos do seucompanheiro de viagem, relatou o essencial da sua vida, com indiscretalhaneza. Péssima qualidade têm as boas almas: é serem comunicativas, abertas,dadas com infantil expansão. O espanhol ouviu com interesse a história decuja revelação Sara se arrependeu, logo que a filha lhe disse:— Deus queira que a mãe se não arrependa de falar tão sinceramente comuma pessoa desconhecida!... Não sei que mal o coração me diz destehomem!...— Isso é injustiça, filha!... — atalhou Sara. — Pois nós há de desconfiar dequem nos trata com tanta cortesia, e nos oferece os seus serviços em terraestranha...— Toda a terra é estranha para nós, minha mãe... em toda a parte noscercam inimigos, desde que saímos do amparo do senhor Simão.— És visionária, Leonor! Fazes-me medo!... já estou arrependida...


Entretanto, o negociante de Valhadolide não cessava de galantear Leonor que,temendo o despeito do pertinaz requestador, lhe recebia menos severamenteas graças e delicadezas enfadonhas.Aportaram a Sevilha. Daqui, tencionava Sara, dirigida por pessoa a quemSimão de Sá a recomendara, seguir por terra para Portugal. O mercador, aquem o tempo ia escasseando segundo o intento não desonesto do seu afeto aLeonor, declarou-se, pedindo à mãe a mão da filha. Sara respondeu que omarido dela lhe fora destinado já antes de ter nascido.O espanhol contraditou esta fútil objeção inventariando as suas riquezas epoderio, não sem deixar transparecer o despeito em que o desprezo de taloferecimento poderia deixá-lo. Leonor instava com a sua mãe a pronta saídade Sevilha, principalmente depois que os cristãos-novos a quem vieramrecomendadas lhes incutiram receios de alguma vilania vingativa de talhomem.Já aterrada e desnorteada, Sara não sabia que fazer. Faleceu-lhe o ânimo aindaantes de se avistar com a sombra da Inquisição. Os hebreus em cuja casa elasse hospedaram, assustados do risco em que tais hóspedes poderiam pôr o seusossego, estavam em ânsias de os despedirem. Sara foi ter com a família docônsul, pedindo-lhe auxílio. A família condoída ofereceu-lhes levá-las consigopara Valhadolide, e de lá enviarem-nas cautelosamente para Portugal. É desupor que o mercador opulento chamasse ao seu partido a família do cônsul;


porque muito espantadas as senhoras censuravam Leonor por não aceitar tãorico marido, que o mais auspicioso dos acasos lhe deparava.Nesta desordem de coisas, e aflitivas vacilações de Sara, dizia Leonor:— Veja, minha mãe, a paz que deixamos, e a inquietação que nosatormenta!Sara, como se visse desamparada de melhor conselho, abraçou a cavilosaproteção das damas espanholas, e seguiu com elas para Valhadolide.


CAPÍTULO XIIIRecolhidas à casa da família, que se mostrava agora mais desvelada, Sara,passados alguns dias, pediu que lhe deixassem seguir para Portugal, visto que asua filha não aceitava as propostas do mercador. Já a paixão do homemdegenerara em rancorosa vingança. As hospedeiras damas abriram-se comSara, agourando-lhe mal da sua rejeição. O pretendente afrontado pela recusa,segundo elas afirmaram, era irmão de um conselheiro do Santo Ofício; e maldelas, se a vingança respirasse pela denúncia!A atribulada viúva nem já destas mulheres se fiava para lhes comunicar o seuplano de fuga. Não obstante, aprestava-se para fugir, até ganhar algumapovoação dos subúrbios, donde pudesse comodamente seguir jornada porcaminhos desfrequentados.Não podiam fazer-se em segredo estes aprestos: faltava à aflita Sara a precisaserenidade para iludir a família que a espiava, sem perder lanço de tentarreduzir a repugnância de Leonor. O espanhol recebeu aviso dos intentos deSara e da última deliberação da filha, a qual respondera:— Que aceitaria de melhor vontade morrer queimada que viver casadacom tal homem.


A mãe censurou-lhe a desabrida resposta, quando convinha dissimular.Leonor respondeu:— Já se me não dá de acabar, porque perdi as esperanças de ter um dia desossego. Se não for aqui, será em Portugal... Ninguém foge à sua estrela...A desesperação, efeito do arrependimento já sem remédio, levou deimpetuoso impulso a viúva de Jorge de Barros a fugir de Valhadolide numaentreaberta, quando o maior número das pessoas da casa estava na missa. Asduas fugitivas levavam consigo apenas o dinheiro abundante que Simão de Sãlhes dera, a título de herança de Jorge.O passo era louco. O mercador não dava folga às suas espias. A formosura deLeonor era já notada para passar desapercebida sob a mantilha sevilhana. Asduas mulheres, denunciando-se pela ansiedade com que procuravam um guiasem determinarem a direção, não reparavam em dois quadrilheiros que asseguiam de perto. Pararam à porta de uma igreja, donde saía muito povo, nointento de se entremeterem na multidão, e saírem por alguma das portas dacidade. O povo reparava nelas, e mais ainda nos conhecidos águazis que asnão perdiam de vista, e só com o reparo as delatavam às turbas. Leonor tremiaaconchegada da sua mãe, e murmurava:— Aqueles dois homens vêm prender-nos... Um mancebo, que seavizinhara delas, como ouvisse vozes portuguesas, perguntou a Sara:


— Se têm medo da Inquisição, fujam, que as seguem os esbirros... Sãoportuguesas?— Sim, senhor — disse Sara ao mancebo que fizera a pergunta emportuguês. — Para onde fugiremos?— Entrem na igreja, que eu vou ver se lhes dou escape por uma porta dasacristia.Quando elas rompiam o concurso do povo contra a porta da igreja, osfamiliares, perante quem se desimpedia espontaneamente a passagem,tomaram-lhes o passo, e ordenaram-lhes que os seguissem. O português disseentre si: “É tarde... estão perdidas...“As presas puseram nele os olhos lacrimosos, como se esperassem a salvaçãodo jovem que as quisera salvar.O povo aglomerava-se em redor delas: os esbirros acenaram aos alabardeirosde um corpo de guarda, que desempeçaram o trânsito. No entretanto, o jovemportuguês correu a casa do alcaide, e anunciou-se com o nome FranciscoXavier de Oliveira.Era o filho de D. Isabel Neves, amiga de Lourença Coutinho. Noutro lugar sedirá o que levara a Valhadolide o amigo de António José da Silva.O alcaide recebeu sem detença o filho do contador-mor dos Contos dePortugal, seu antigo amigo.


— Então? — perguntou o alcaide — , tornou-lhe a fugir a endiabradacigana?— Não, senhor: outra razão mais séria me faz importuná-lo. Acabam deser presas duas portuguesas por quadrilheiros da infame Inquisição.— Fale baixo, seu doido! — atalhou o alcaide. — São duas senhoras, queme parecem ser mãe e filha.— Judias ou feiticeiras?— Não sei. São duas senhoras, e uma delas tem a formosura dos serafins!— Então que quer o senhor? Que eu as vá arrancar dentre os ferros? —perguntou o alcaide sorrindo.— Bem sei que não pode.— Ainda bem que sabe.— Quero simplesmente que saiba quem elas são.— Isso pode ser: volte daqui a duas horas.O alcaide entrou no Tribunal do Santo Oficio, antes que o inquisidor entrasse,Como pessoa de muita confiança entre os oficiais da casa, pôde facilmenteaproximar-se das presas, que tinham sido conduzidas a uma antessala, ondeera costume esperarem os réus que os chamassem ao primeiro interrogatório.


Leonor levantou-se à chegada do alcaide, cuja posição social se revelava noaprumo mesurado da andadura. Sara quis erguer-se; porém o tremor daspernas, e convulsão de todo corpo, não lho consentiram. O que ela pôde foipôr as mãos.— Sentem-se, senhoras — disse o alcaide — , que eu não sou inquisidor.Venho aqui saber quem são, porque há pessoa que se interessa pelas senhoras,e pode em Portugal ser-lhes muito prestadio. Não me enganem que se podemprejudicar.— Minha mãe — disse Leonor — é Sara de Carvalho, e eu sou LeonorMaria de Carvalho.— Donde são?— Eu nasci em Lisboa — disse Sara — e a minha filha nasceu também emPortugal, na vila da Covilhã. À pessoa, que se interessa na salvação destasdesamparadas mulheres, diga Vossa Senhoria que eu sou a viúva de Jorge deBarros, neto do contador-mor dos Contos do Reino Luís Pereira de Barros.— Tá! — exclamou o espanhol — , que eu já ouvi falar nas senhoras aocavalheiro que me cá mandou!... Conhecem Francisco Xavier de Oliveira?— De Oliveira? — clamou Sara — , o filho da senhora Dona Isabel,mulher do contador-mor?...— É esse mesmo.


— Oh!, senhor!... diga-lhe que uma das presas é a prometida noiva e aindaparenta do seu amigo António José da Silva.. .— Que está preso nos cárceres da Inquisição em Lisboa...— Preso!... desde quando? — perguntou Leonor.— Há dois meses. Sei-o do seu amigo Xavier de Oliveira... Mas salva-se...Podem ter a certeza de que se salva. Agora, tratemos de ver o destino que assenhoras têm. Senhora Sara... dou-lhe de conselho que use doutro nome...Nunca foi batizada? Ouvi dizer que sim...— Fui... e chamaram-me Maria.— Pois chame-se Maria... Adeus que são horas. Conte com alguns amigos.Francisco Xavier de Oliveira, assim que soube os nomes das presas, apressoua jornada para Lisboa, no propósito de fazer que o Santo Ofício requisitassepara ali as cristãos-novas como portuguesas.O interrogatório começou ao fim da tarde. Até essa hora, os familiares daInquisição andaram colhendo informes das presas, já por intermédio dassenhoras a quem elas tinham sido recomendadas, já diretamente do mercador,que as denunciara. Nas bagagens das judias não aparecera documento que asculpasse: graças aos cuidados de Simão de Sã, que as não deixara sair com omínimo vestígio de hebraizantes, rasgando quantas cartas de LourençaCoutinho a indiscreta Sara entesourava.


O interrogatório foi breve. A viúva balbuciava respostas cortadas de soluços.Leonor respondia com assombrosa presença, baixando os olhos sobre asmãos, que cruzara no alto do selo.Disse quem era seu pai, donde vinha, e para onde ia. Às perguntasconcementes à religião que seguia, disse que amava Deus como criador, e ascriaturas inteligentes como seus irmãos, filhos do mesmo Deus.Sobre as fórmulas exteriores das suas crenças, não respondeu. Apenas disseque recebera o sacramento do batismo, porque seu pai era cristã o e a sua mãebatizada. Como as respostas não satisfizessem cabalmente às perguntas, oinquisidor insistiu sobre saber se ela e a sua mãe seguiam o rito judaico.Leonor, após alguns instantes, respondeu:— Nem esse nem outro. O meu pai mandava-nos que amássemos Deus eo próximo, e dizia-nos que a mais divina religião era a mais ardente caridade.Anoiteceu.O inquisidor saiu, ordenando que conservassem juntas as presas, até novaordem num dos quartos reservados aos presos por meras suspeitas.Quando chegou a casa, encontrou o alcaide que o esperava sentado ao fogãoda sua ilustríssima reverendíssima.O alcaide, que havia passado duas horas em casa do cônsul vindo de Holanda,arrancou às senhoras o segredo da paixão vingativa do mercador. As damas,


emordidas na consciência, contaram o sucesso exprobrando o proceder dodenunciante, e arguindo-se a si mesmas de quase coniventes naquela trama vil,por até certo ponto entenderem que Leonor faria um excelente casamento.Ora, o alcaide foi contar esta história ao inquisidor, que confirmou terrecebido a denúncia de um irmão do negociante, conselheiro do Santo Ofícioe cónego da sé.— Se Vossa Senhoria — disse o inquisidor — ouvisse as respostas da filhae lhe visse o rosto, meu alcaide, desculpava a protérvia do denunciante! Quebela e que discreta!... Ora bem, não será o Santo Oficio instrumento dasvinganças do velho alucinado; mas há de fazer-se o que for de justiça.— Justiça, é mandar as desgraçadas para Portugal — disse o alcaide.— Deixe-as estar, que não lhes há de faltar alimento nem luz. São hojecinco de Outubro... No dia vinte e seis de Janeiro celebra-se auto público dafé. Sairão ambas reconciliadas nesse dia, se até então não aparecerem provasagravantes. Está Vossa Senhoria autorizado a poder-lho revelar, visto que semminha autorização já por lá andou. Foi muito notória a prisão: não tenhoremédio senão fazer o que faço.— Quatro meses! — exclamou o alcaide.— Parece que se espanta!? — disse o inquisidor, sorrindo. No dia seguinte,Sara e Leonor recebiam a boa nova por uma carta do alcaide. Logo depois


eceberam as suas bagagens, e licença para mandarem comprar os alimentosque lhes aprouvesse.Divulgou-se a infâmia do denunciante. Era o alcaide o propalador. Aconjuração formada contra ele deu de si um perseguirem-no com chufas eapodos tão pungentes que o homem, ao fim de quinze dias, saiu deValhadolide a esconder a sua ignomínia. O alcaide, porém, não era sujeito quese contentasse com o desterro do vilão. Descobriu-o no esconderijo de umaquinta a duas léguas distante da cidade. Lá mesmo lhe fez zumbir os apuposdo gentio desbragado a quem ele estipendiava e largo tempo sustentou na suamissão justiceira que disparou em desconcertarem as faculdades inteligentesdo infausto refugiado. O mercador, passados anos, acabou sua vida numa casade orates. Das perversas qualidades que tivera uma só sobrevivera à perda darazão deste homem, a que eu não dei nome porque lho não encontrei nosapontamentos subsidiários desta narrativa. A perversidade sobrevivente foilembrar-se ele até à última hora da judia, que o sandeu sanguinário esperavasempre ver na fogueira.No auto público da fé celebrado na Igreja de S. Pedro da cidade deValhadolide, em vinte e seis de Janeiro de 1727 saíram, livres e “reconciliadaspor culpas de judaísmo,” dizia a rubrica da lista, Maria de Carvalho, natural deLisboa, de idade de quarenta e sete anos, e Leonor Maria de Carvalho, naturalda Covilhã, de Portugal, de idade de catorze anos.


À saída do cárcere as duas senhoras encontraram, como companheiros paraPortugal, o velho Diogo de Barros, tio de Jorge, e Francisco Xavier deOliveira, o galhardo mancebo que as quisera salvar.— E o nosso amigo António José da Silva? — perguntou a amiga deLourença Coutinho.— Está livre — disse Francisco Xavier de Oliveira. — Apenas lhequebraram os dedos na tortura.


PARTE TERCEIRA


CAPÍTULO IConcluiu formatura em cânones António José da Silva por 1726. O seu pai, oeminente jurisconsulto João Mendes da Silva, contava setenta anos feitos, evergava ao peso da idade e da muita e principal clientela que granjeara com oseu talento jurídico e a sua estremada honradez. Chamou, por isso, o filho acoadjuvá-lo para, mais tarde, o ficar substituindo.Forçando o engulho e repugnância que os autos lhe faziam, o recente bacharelabancou no escritório do seu pai, coagindo o espírito inquieto a prestaratenção às enfadosas exposições consultivas, e às áridas respostas do velho,que era um poço nas Institutas de Justiniano e Decretais.As três horas, que António José sacrificava de cada dia à prática forense,eram-lhe remuneradas com a plena liberdade das outras. O uso, que ele faziado seu tempo, conquanto desagradasse ao pai, não lhe era contrariado.Escrevia comédias, vestia de melhor linguagem umas que tinha urdido nomais verde dos anos, e arquitetava outras para refazer mais tarde. Propensãoaprazível para estudos tinha uma só: era o teatro, não já modelado pela escolafrancesa, que então dava ao mundo policiado as regras dramáticas; masacostado algum tanto à feição cómica de Gil Vicente, com as inverosímeisperipécias de Lope de Vega e dos filiados à grande e ainda vivedoura escolacastelhana. Ponderar e discriminar a índole literária de António José,


cognominado o Judeu, seria impertinência nesta narrativa, onde raro leitorantepõe o lucro da instrução ao deleite da curiosidade.A seu tempo, farei conhecidos, de relance, alguns passos da breve carreiraliterária do filho de Lourença Coutinho. Então julgará o leitor domerecimento dele, sem que o ensinem a destrinçar sistemas, escolas, métodos,e centenares de subtilezas impróprias deste escrito, e aliás importantes a quemestuda e de muito lustroso trato para quem as professa competentemente.É já sabido que o mais familiar amigo de António José da Silva era, desde osalvores da juventude, Francisco Xavier de Oliveira, o filho da dileta amiga deLourença Coutinho.Silva tinha vinte e um anos quando se formou, e Oliveira corria então nosdezanove.O bacharel ficou maravilhado, quando de volta de Coimbra encontrou o seuamigo, não mais desmoralizado que os mancebos da sua geração, masmuitíssimo mais desempoado que todos, em matérias de crença religiosa. Eramuito neste espanto o caso de ter sido Francisco Xavier educado pelodevotíssimo frei Francisco do Menino Jesus, tio dele, e muito a miúdoconfessado com o oratoriano Inácio Ferreira, e com o cónego de SantoAgostinho padre Lourenço Justiniano, como Lourença Coutinho referia numadas cartas a Sara, escritas treze anos antes.


Desde os dezasseis anos, o filho do contador-mor José de Oliveira revelouimperiosa vocação para a vida dissoluta; sem embargo, a piedade, os acessosde fervor cristão, entremetiam-se nas extravagâncias do rapaz. Ainda entãoFrancisco Xavier se confessava todos os meses, aproveitava quantos jubileus amagnânima Santa Sé proporcionava à salvação das almas, e não consentia aAntónio José a mínima galhofa das coisas venerabundas da Igreja CatólicaApostólica Romana.Nesse tempo ainda, época do seu primeiro namoro, deu ele um irrefragáveltestemunho de crendeira piedade. Contava ele, cinquenta anos depois, quetinha, naquele tempo juvenil, um oratório com umas vinte imagens de santosda sua particular estima. Entre todos, os mais rogados e importunados eramSanto António e S. Gonçalo de Amarante. Uma vez, lhes pediu que tocassemo coração de uma beleza rebelde. “Os dois santos”, diz ele, “provavelmenteocupados em negócio de mais importância, não fizeram caso dos meusrequerimentos. Despeitado com o menospreço, atei-os um ao outro, e pulosfora do santuário, desterrando-os para debaixo da minha cama. Como, porém,os não sensibilizasse com o mau tratamento, visto que a minha deidadecontinuava nos seus rigores, condenei-os a descerem ao poço; e logo os fuibaixando com ameaças de afogá-los, se me não fizessem o favor. Aconteceuentão que a rapariga me respondeu a muitas cartas, que eu lhe tinha escrito, eassim salvou as duas imagens do naufrágio; e eu acreditei que devia aos doissantos a minha fortuna.“


Outro sinal da sua razoável piedade: Francisco Xavier embarcou num botepara ir à Póvoa, cinco léguas distante de Lisboa, à margem do Tejo.Surpreendeu-o uma borrasca, em frente de Sacavém. O barco estava já emapuros de mostrar a quilha. Francisco ajoelha e invoca a milagrosa Senhora daPenha. Quebra o vento, e consegue o barco abicar a terra. Assim que chegou aLisboa, o jovem foi à Penha de França com toda a parentela agradecer àSenhora o milagre. Fez dizer muitas missas em ação de graças. Deu dinheiroaos frades da casa, e pendurou um painel que representava o sucesso. “Estepainel”, diz ele, e nós trasladamos as palavras do devoto para que algumcurioso possa ainda ver na Capela da Senhora da Penha o ex-voto doCavalheiro de Oliveira, “este painel foi pendurado no muro da igreja, e creioque ainda lá estará.“Estes e outros casos abonavam o espanto de António José da Silva, quando,na volta de Coimbra, lhe perguntava:— Que é feito da tua fé, meu Francisco?Pergunta-me antes o que fez a minha razão, iluminada pelo estudo —respondia Francisco Xavier.— Pois que te disse a tua razão a respeito daquele painel que eu te vi levarà igreja da Penha? Lembras-te que me chamaste ímpio porque eu me ri docaso?... Como foi que a tua razão te falou?


— Disse-me que os cristãos imitavam os idólatras nestes votos de painéis equejandas oferendas. É a mesma história do templo de Apolo na ilha deNânfio, erigido por Jasão, depois que os argonautas se salvaram de umatempestade, ao recolherem-se de Colcos. É a mesma usança dos ex-votos notemplo de Hierápolis, o mais milagroso dos deuses siríacos.É a mesma necedade dos enfermos curados que penduravam painéis notemplo de Esculápio. já Horácio falou desta costumeira, como sabes da odequinta:... Me tabula sacerVotivaparies indicat humidaSuspendisse potentiVestimenta maris Deo.Tíbulo também costumava, como eu, recorrer à deusa em cujo templo sependuravam painéis.— Sabes tu — continuou o jovem Oliveira — o que respondeu o filósofoDiágoras a um sujeito?— Nada, não sei.


— O sujeito, apontando-lhe para muitos painéis de naufrágios, à imitaçãodo meu, disse-lhe: “Presumes que os deuses não fazem caso dos negócios dahumanidade. Ora não vês tu este grande número de painéis, provando quetanta gente se salvou de naufragar, em virtude dos votos feitos aos deuses?”— ”Sim”, respondeu Diágoras, “vejo isso; mas também vejo que os afogadosnão se fizeram pintar. ““A sagrada parede de que pende o meu votado painel, testemunha que eu alipendurei as minhas vestes húmidas, em honra do possante Deus do mar.“— Mas... — redarguiu o bacharel Silva — a que se deve a transformaçãomoral em que te encontro? Quando começaram as tuas dúvidas sobre a fécega do teu tio frei Francisco do Menino Jesus?— Eu te conto. Um dia fui de peregrinação a Nossa Senhora do Cabo como padre António Gomes, e com o doutor José Antunes Cardoso. O padregostava igualmente do bom e do mau vinho; porém, um vinho, que lá lhederam para dizer a missa, era tão mau que o padre, quando estava adesparamentar-se na sacristia, soltou estas coléricas palavras: “O vinho docálix tinha um sabor de todos os diabos! Meus amigos, recomendo-vos quenão bebais vinho ao jantar, a não vos darem algum que não seja daquele queeu consagrei.” Aqui tens tu como e quando começaram as minhas dúvidassobre o dogma da transubstanciação. Parece incrível que tão pouco arlevantasse tamanha tempestade no meu espírito! Entrei a pensar como aquele


vinho, que era vinagre, se transformara em sangue de Cristo! Confessei-medisto, porque me atormentavam os escrúpulos. Os confessores, todos à uma,me disseram que o demónio entrara em tentação comigo. Quandocomungava, assaltava-me a suspeita de que eu engolia um bocado de obreia!Depois, quando fechava as cartas, punha-me a olhar para as obreias, e a dizer:“Quanto vos lamento, minhas pobres obreias! Um padre transformar-vos-iaem Deus, e vos tomaria objetos de adoração universal; ao passo que eu vosmolho de saliva, e vos obrigo a fechar cartas! Sois todas da mesma espécie eda mesma farinha; porém, o vosso destino varia até ao infinito!... etecetera“Destes desalentos, deste horrível descrer, ainda eu pude algum tempo arrancarà minha alma, e submetê-la às consolações reanimadoras dos padres que meouviam e combatiam as dúvidas. Lia Mallebranche, que terminantemente medizia: “É preciso crer no dogma da transubstanciação, sem tentar entendê-lo.”E eu fia muito Mallebranche para cada vez entender menos o dogma e oautor. Enfim, meu caro António José, para te não enfadar mais, basta dizer-teque, perdida a fé num dogma, perdi-a em todos. Depois, vieram aquelesterríveis combates com a hipocrisia, em que saí mortalmente ferido nocoração. A morte de Catarina... bem te lembras... há anos...O leitor precisa saber que morte foi esta de Catarina. Será propriamenteFrancisco Xavier de Oliveira quem lha refira: “O conde de Povolide e maisdois familiares do Santo Ofício quase me arrancaram dos braços uma amanteque eu amava em extremo. Era uma rapariga de vinte anos, mais simpática do


que bela, e tão espirituosa quanto bem feita. Era uma cristã papista, exageradanas suas devoções como eu o tinha sido. Ia à missa, ao confessionário e àcomunhão; orava à Virgem e aos santos; e as almas do purgatório eram assuas advogadas prediletas. Comia de tudo, gostava de presunto, e muito dechouriças de porco. Numa palavra, a rapariga guardava o domingo, nuncaabrira a Bíblia; e bem longe de saber o que era sabat e judeus, ignorava quetivesse existido neste mundo um Moisés. Como havia de saber Catarina queMoisés legislara? Ora, tudo isto, junto ao amor que eu lhe tinha, fez que eudespropositasse em brados contra semelhante prisão. Impuseram-me silêncio,e os meus amigos trataram de me vexar por me verem apaixonado por umajudia encarcerada no Santo Ofício. Dezoito meses depois, fez-se auto-de-féem que a rapariga devia aparecer, e ouvir ler sua sentença publicamente. Claroé que não faltei ao concurso. Qual foi, porém, meu espanto, quando ouvi apresa confessar que tinha guardado inviolavelmente o sabat, que não haviacomido carne de porco, e que se abstinha de certas comidas, que eu lhe viracomer um trilhão de vezes com furioso apetite! A minha surpresa redobrou aoouvir ler a sentença, que a mandava queimar, porque tinha sido diminuta naconfissão, quer dizer, que não tinha podido achar ou adivinhar os nomes dasfalsas testemunhas que depuseram contra ela!... Às dez horas da noite, como acondenada fosse entregue ao braço secular, conduziram-na à Relação, cujosministros até hoje usaram sempre a covardia de confirmar cegamente assentenças todas da Inquisição, sem que peçam ou revejam os processos dos


condenados. Como aqui me era permitido falar à desgraçada, perguntei-lhecomo pudera ela mentir tanto para provavelmente salvar a vida, e se deixavamorrer por não querer denunciar os cúmplices, ou antes os acusadores.Respondeu-me: “Sendo os meus acusadores falsas testemunhas, que eu nuncavi talvez, era-me impossível nomeá-los. Deus me é testemunha de que morroinocente; tu melhor que ninguém sabes que eu sou cristã, e todo o mundo oficará sabendo pelo formal desmentido que dou agora a tudo que confessei naInquisição, a respeito do meu judaísmo, protestando diante deste juiz quejamais professei fé que não fosse a de Jesus Cristo, e na sua santa religiãoquero morrer. “Pouco depois, entraram os ministros a interrogá-la. Publicamente sustentouque morria na lei de Jesus Cristo, nem soubera nunca da existência doutra.Esta confissão não a salvava de morrer, e assaz o sabia ela. Não obstante,insistiu neste sentimento até ao derradeiro momento da sua vida, que lhe foitirada da meia-noite para uma hora, sendo estrangulada por mão do carrasco,e logo lhe levaram o cadáver para ser queimado no local em Lisboa destinadoa semelhantes execuções.”Continua o Cavalheiro de Oliveira, com a serenidade dolorosa em que adesgraça de longos anos lhe tinha congelado o coração:“Bem que eu naquele tempo respeitasse o Tribunal da Inquisição, nem porisso deixei de me expor a toda a ferocidade do seus ministros, bradando


altamente contra a barbaridade do seu proceder. Sejam-me testemunhas doisinquisidores ainda vivos, os senhores Silva e Gomes, a quem eu fiz severascensuras, e os quais, como bons amigos, me aconselharam silêncio, figurandomeo perigo a que a minha imprudência me expunha. Segui o conselhoacompanhado das ameaças daqueles senhores. Calei meus queixumes; todavia,os meus amigos sabem que, desde aquele dia, formei péssima opinião doprocessar deste maldito Santo Oficio. “


CAPÍTULO II— Outra coisa? — perguntou António José. — Tu eras sebastianista, háum ano. Esperas ainda o rei?— Não me fales nisso, que é a minha grande vergonha! Imaginas tu queamizades perdi de parentes, e graves amigos que endeusavam o meu talento, elhe queimavam incensos no altar do Bandarra? Minha mãe ainda hoje chora,quando se lembra que eu já não sou sebastianista! E eu choro, quando melembro que me deixei seduzir por aquele soez franciscano Vicente Duarte,cujas histórias tua mãe ouvia com uma fingida dor de dentes para que nãovissem o ímpio riso!— Então agora em que crês? — perguntou o hebreu.— Na vinda do Messias, decerto não — respondeu com chocarreiro risoFrancisco Xavier. — E tu esperas?— Espero que não venha confundir-se com os patifes deste globo; masque ele não veio é certo.— De acordo contigo. Não veio, com o nome que lhe deram. já tinhavindo, e chamava-se Sócrates; voltou a vir, e chamou-se Lutero.— Estás protestante?


— Sim!, protesto contra todos os embusteiros e hipócritas; protesto, emnome de Deus, contra todos os que lhe infamam o nome.— Isso é justo. E de amores, como te corre a vida? Quem amas? Duraainda o reinado da Joana Vitorina? A cigana decerto deslumbrou a memóriada pobre estrangulada da Inquisição, e daquela Amónia Clara...? (*)[(*)Os amores de Amónia Clara devem ser contados por ele: D. António Manuel, irmão do conde de VilaFlor possuiu, três anos completos, a encantadora Antónia, Um transporte de ciúme indispô-los a ponto deser despedida a formosa manceba por D. António. Caiu-me em sorte; e, posto que D. António searrependesse de a ter assim tratado, o mal já não tinha remédio. Antoninha não quis mais ouvir falar dele,e ele não ousava nem podia reclamar um bem, cujo legitimo possuidor eu era, porque lha não tirei por forçaou velhacaria. Antónia, como fosse um dia confessar-se ao cura da sua freguesia, o confessor propôs-lhe queme abandonasse, e consentisse em fazer as pazes com D. António. A rapariga extremamente magoada comtal conselho no confessionário, negou-se a aceitá-lo, e de volta revelou-me tudo. Custou-me a crê-la, porque oconfessor era pessoa muito do meu conhecimento, Além de que suspeitei que Amónia me estava encarecendoos favores, querendo mostrar-me que por amor de mim desprezava um piegas suspiroso da estofa e méritosde D. António. Sem embargo, como eu sabia que este homem era particular amigo do cura dos Anjos, quisconvencer-me da verdade da solicitação que a rapariga com juramento me certificava. Neste propósito,mandei-a, passados dias, procurar o padre, e dizer-lhe, que estando de mal comigo, e refletindo no que lheconvinha, resolvera aceitar o seu conselho, e voltar para D. António e por isso pedia ao cura que fosse acasa dela ao outro dia entre dez e onze horas da manhã, asseverando-lhe que eu, a tal hora, estava noTribunal. O pobre cura caiu na esparrela, chegou à hora combinada, e declarou a Antoninha qual era aforça da paixão que D. António por ela conservava, acrescentando que ninguém melhor do que ele amerecia, e dali se ia logo a levar-lhe a boa e inesperada nova. Nisto, saí eu de um esconderijo, e disse-lhe que


para ir mais depressa, saltasse pela janela, o infame recoveiro! Um raio, se caísse sobre o padre, decerto omataria; mas atarantá-lo tanto como ele ficou decerto não. Ajoelhou-se-me aos pés, pedindo-me em nome deJesus Cristo e da sua Santíssima Mãe que lhe perdoasse o ultraje e desgosto que me ele queria dar. Euestava iradíssimo, e resolvera castigá-lo deveras, porque estava na minha mão perdê-lo. Não obstante,deixei-o; e disso me não arrependo. Quatro anos depois fez-me uma grosseria na sua igreja, ofendeu-me, edeu azo a que eu contasse o caso a dois amigos dele: logo que o soube, tratou de reconciliar-se comigo.Desprezei-o então, e ainda o desprezo se está vivo, muito mais pela sua ingratidão que por os seus outrosdesregramentos. “]— A Joana é fatal! — disse Oliveira. — Fatal como todas as da sua tribo.Traz-me o coração debaixo dos pés. É a mais vergonhosa e mais doceescravidão da minha vida. A minha mãe chora muito por mim; porém aslágrimas que eu tenho chorado pela cigana... são incomparavelmente mais.Enche-me o peito de brasas a maldita com os ciúmes que me faz!— Olha lá... — atalhou António José. — Como foi aquela passagem deexpulsares o diabo do corpo da mãe dela?... Falaram-me nisso em Coimbra...Crês, ao menos, que o diabo entra nos corpos?— Entra, e sai facilmente pelo processo que eu empreguei na mãe deJoana. Aí vai a receita. Corria como coisa averiguada que a velha estavaincubada de demónio. Os trejeitos e destemperos, que ela fazia em casa, erampavorosos. Não me deixava parar meia hora sossegado com a filha. Derepente, começava a escumar, a rolar os olhos, a ranger com os dentes, e a


caretear visagens de tamanho horror, que se me arrepiavam os cabelos. Oscriados andavam de dia e de noite a chamar confessores e exorcistas. Entrei asuspeitar que a energúmena era uma perversíssima impostora. Entendi-mecom a filha, comuniquei-lhe as mesmas desconfianças, e ela concordou.“Havemos de curá-la”, disse eu a Joana. Véspera de Natal, entra o tal demóniocom ela por volta de onze horas da noite. Escabujava nos braços da filha,dava pontapés de derrear um elefante, coleava-se como serpente e pinchavacomo uma cegonha no sobrado. Depois caiu em letargia aparentementemortal. Eu já me tinha preparado para a cura. Levava comigo dois tijolos quemandei aquecer até os abrasear, e depois ordenei a Joana que os achegasse àssolas dos pés da mãe, os quais estavam nus e fora do leito, onde eu a mandaraPôr. Parece que o demónio dela estava alerta; porque assim que eu falei emtijolos quentes, recobrou os sentidos de golpe, sentou-se na cama, chamou-mebárbaro algoz, e disse contra a filha insolências diabólicas. O certo é, amigoAntónio, que a velha nunca mais foi vexada de diabo nenhum, e passaregularmente. Aqui tens como foi.— E com a Joana, como te vais dando?— Já te disse: sempre traspassado das agulhas do ciúme. Agora, está aí emLisboa um castelhano que me dá que fazer. Já lhe segui de noite o vulto para oatravessar com a espada; mas as mortificações, que eu tenho causado aosmeus pais, são já tantas, que me não posso resolver a matar o homem. Joanajá teve o desaforo de me dizer que o não acha feio nem desprezível. Eu quis


cevar nela a minha raiva; mas deves saber que a cigana é mulher de faca, e nãose ensaiaria em mim se me esfaqueasse, porque o exemplo já ela o deu comum dos meus predecessores na posse daquele formoso seio, cofre de umpéssimo coração...— E amas assim uma mulher?! — atalhou António José da Silva.— Amo, amo miseravelmente! Pergunta ao duque de Cadaval porque amaele a Paulina que o atraiçoa todos os dias; pergunta ao conde de Aroucaporque ama aquela impudentíssima Rocha, que o cobre de irrisória ignomínia;pergunta ao rei porque amou com tão cega paixão a dissoluta Margarida doMonte que morreu freira no Convento da Rosa, o ano passado! (*)[(*) O amante de Paulina era D. Jaime Pereira, cunhado de el-rei D. João V. Tirante a miséria daquelesescandalosos amores, o duque foi um dos mais respeitáveis e respeitados fidalgos do seu tempo. A mancebado conde de Tarouca, mulher da ínfima plebe, chamava-se a Peles de alcunha; mas como casasse com umfulano Rocha, criado do conde de Tarouca, tomou-lhe o apelido. “Como bom homem, que era este marido”,diz o Cavalheiro de Oliveira, “conseguiu ser criado supranumerário da imperatriz Amélia.” O Cavalheiroreferia-se à imperatriz da Áustria, onde o conde de Tarouca pai do conde em questão foi ministroportuguês. A tal Rocha ou Peles fugiu ao conde para os braços do padre Domingos de Araújo Soares,capelão particular, que tinha sido, do conde. “Este padre”, diz Oliveira, “nunca disse missa: única virtudeque ele praticou. Era um celerado de profissão.” Cumpre saber que o conde tinha tirado a Rocha ao pai,insulto de que o padre vingou o velho. O cronista, a respeito desta balbúrdia de perfídias, exclama com umpoeta francês: Amour, amour, quand tu nous tiens, Onpeut bien dire, adieu, Prudence!]


— Tens um sestro fatal! — observou António José. — E quando tu, hátrês anos, falavas em morrer héctico de amores pela atriz espanhola ZabelGamarra!— É verdade... já sabes que ela professou nas Agostinhas no Convento deSanta Mónica?— Já sei. E o marido professou também?— Não: foi-se embora, depois de receber seis mil cruzados, que lhe deu,em troca da esposa, o marquês de Gouveia...— Não é cara — disse António José.— Quanto achas tu que levou de Portugal aquela Petronilha do Dom Joãoquinto?— É incalculável. O sabido e notório é que ela levou de Lisboa trintabestas carregadas, e que as damas de primeira plana de Espanha, quandoviram-na carregada de joias no teatro de Madrid, assombraram-se do tamanhodos brilhantes. Vê tu onde foram cair as joias das rainhas de Portugal, e asmais preciosas, que vieram do Oriente no reinado de Dom Pedro segundo!...Voltando à Gamarra, deixa-me contar-te episódios galantes, que iamdescambando em tragédia, e pode ser que afinal disparem em terrívelcatástrofe. O marquês de Gouveia bebe os ventos pela mulher, principalmente


depois que a meteu no convento e lhe vestiu o hábito. Soror Isabel folga deter acorrentado às grades do mosteiro o grande senhor. Aconteceu, há meses,mandá-lo chamar a Gamarra, ao mesmo tempo que o rei. O marquês vacilavaaflitivamente, sem saber decidir-se. Sai o marquês, entra no coche, e diz aococheiro que o leve à corte; mas, a meio caminho, manda desandar para oConvento de Santa Mónica. Para encarecer o seu amor, diz à freira que el-rei oestava esperando; porém, antes desagradar ao rei que à sua amada. “Se nãoprocedesses assim, não me verias mais”, disse-lhe soror Isabel. “Mas”, tomouo marquês, “calculas quanto arrisco por amor de ti?“ — “Deves arriscar”,redarguiu ela, “antes que todo es mi dama”, juntou ela, em espanhol, com otítulo da comédia de Calderón. “Quem se não sacrificar por mim não me ama,nem me agrada.“ Seguiu-se dar-lhe o marquês o seu retrato engastado emcírculo de brilhantes, e jurar obediência eterna. Depois, com o consentimentodela, foi ao rei. Este diálogo ouvi-o eu da grade próxima, porque eu estavacom ela quando se anunciou o marquês...— Então é certo que a amas e és... amado, como os outros. —interrompeu António José.— Não. Sou confidente do único homem quê ela sinceramente ama.Conheces o meu amigo Valentim da Costa Noronha?— Também esse! Casado! Pai de quatro lindos filhos! Esposo de umavirtuosíssima senhora!...


— Tudo lhe sacrificou à funesta mulher! Está sem amigos, semconsideração, sem filhos, sem mulher, e receio muito que breve esteja semvida. Já duas vezes os sicários do marquês lha quiseram roubar. de uma vez oajudei eu a defender-se, contra quatro assassinos. Se o não matarem, mais hojemais amanhã, alguma ordem do rei o manda fechar nalguma torre... Adespejada mulher, depois que o marquês saiu da grade, fez-me portador doretrato e dos brilhantes do amante, como presente a Valentim de Noronha!...O amigo de António José da Silva previra o destino de Valentim de Noronhanuma das duas hipóteses. Por ordem régia, Noronha foi encarcerado noLimoeiro, a pedido do marquês de Gouveia. Ao fim de nove meses de prisãorigorosa, teve o preso a boa sorte de morrer o marquês no vigor da idade. Nãoobstante, D. Gaspar de Moscoso e Silva, tio do marquês defunto, e sumilherda cortina de el-rei D. João V, embargou por muito tempo o livramento dopreso, para assim vingar o afrontado sobrinho.A freira, assim que o marquês expirou, quis voltar para o marido, querepresentava nos teatros de Espanha. Obstaram-lhe as leis à renunciação dosvotos com que professara. Gamarra tomou o mais sumário dos expedientes.— Agora, falemos de ti. A judiazinha tem-te escrito? Conta-me algumacoisa da esquisita Leonor dos teus sonhos... Que sabes dela? Vem paraPortugal?


— Vem brevemente. A última carta de Sara para a minha mãe diz que porestes seis meses, deixam a nevada Holanda em que o coração da pobremenina morre de frio! Olha que ainda me não escreveu palavra que não venhaentanguida do frio lá da terra! Aos versos responde na mais chá e sovina prosaque inventaram mulheres desamoráveis.— Tu és um tolo sincero! — exclamou de golpe Francisco Xavier. — Poistu podes amar seriamente a rapariga, que nunca viste, só porque te disse tuamãe que ela, muitos anos antes de nascer, já era destinada tua mulher?— Posso e amo — disse António José. — Fantasiei-a. Não sabes tu o queé fantasiar, meu sebastianista? Pois tu não imaginavas, há pouco tempo, umrei Dom Sebastião que tinha morrido século e meio antes? Então que tem queeu espere a felicidade de uma mulher, que vive, e se veste das cores celestesque a minha fantasia lhe dá? Sei que ela é formosa: que tem que eu a imagineformosíssima? Sei que é instruída: que faz que eu a fantasie uma das irmãsSigeias? Se os meus sonhos hão de acabar, quando me ela aparecer, poucoperdi: os adornos, que a minha imaginativa lhe deu, são propriedade minha;posso dá-los a quem eu quiser depois. Isto que tem de extraordinário?— Pois — tomou Oliveira — se não queres ser tolo extraordinário, serásum tolo vulgar.Fugiu do convento, fisgou-se ao marido, que tinha ido furtivamente a Lisboa,passou a Espanha, e voltou à vida antiga do teatro. Eis aqui uma criatura à


espera de um romance em três volumes, graças às informações de FranciscoXavier de Oliveira.


CAPÍTULO IIIAntónio José da Silva granjeara fama de abalizado engenho. As suasjocosidades métricas andavam manuscritas por mãos dos entendidos, que asencareciam, por mais ou menos aquinhoarem das graças literárias da época, nonossos dias consideradas aleijões contagiosos das escolas italiana e espanhola.D. Francisco Xavier de Meneses, quarto conde da Ericeira, o mais fecundo emenos contaminado escritor português daquele tempo, recebia António Joséna sua casa, folgava de ouvi-lo recitar as suas comédias entremeadas dechistosas árias, recitava-lhe cantos da sua insulsíssima Henriqueida, eaconselhava-o a transviar-se da imitação servil dos espanhóis em composiçõesteatrais, e dos trocadilhos de Gôngora nos poemas graves, em que apenas obacharel por acaso se entretinha.Francisco Xavier de Oliveira, reputado mancebo de rara inventiva e copiosaleitura nas intercadências das notórias travessuras, era também das palestras esaraus literários do conde da Ericeira.Um dia, António José e Francisco Xavier encontraram na livraria do conde,folheando nos livros, enquanto o fidalgo não entrava, um Bartolomeu LoboCorreia, sujeito dado às letras, com o infortúnio deplorável de se não darem asletras com ele.


O conde, como amigo de gente ledora, ou porque não estremasse osincapazes, ou por se compadecer dos ininteligentes, acolhia Bartolomeu,dizendo aos mais íntimos que o pobre sujeito não tinha culpa de sairmilagrosamente mais sandeu que o pai.O pai deste Bartolomeu tinha sido um Pedro Lobo Correia, escrivão daContadoria — Geral, falecido em 1708. Este sujeito entrara no templo dasletras com o ofertório de um livro da sua lavra, intitulado Vida de Ako eOrações contra as Tempestades.O título somente, sem ajuda das parvoiçadas interiores do livro, tinha sido oepitáfio do literato, tolhido no nascedouro.Passados anos, como a paixão das letras o espicaçasse, deu-se a tradutor doespanhol, e saiu a mais modesto lume com o Nascimento, Vida e MorteAdmiráveis do Grande Servo de Deus Gregório Lopes, Natural da Vila deLinhares: Composto pelo Licenciado Francisco Losa, Traduzido na LínguaPortuguesa, e Acrescentado o Fim e Primeiro Capítulo. Ora, o fim e primeirocapítulo do livro era sobremodo tolo.Além doutras traduções, Pedro Lobo, querendo dar testemunho público dasua piedade, das excelências do seu cristianismo, e assanhado rancor à raçahebraica, traduziu do castelhano um livro revulsivo, intitulado: Sentinelacontra judeus, Posta na Torre da Igreja de Deus, & C Feito isto, e mais algunsserviços à religião da caridade e às letras portuguesas, morreu Pedro Lobo,


deixando ainda um volume, o pior e mais brutal de todos, que era o filhoBartolomeu.Estava, pois, Bartolomeu Lobo folheando os preciosos livros do conde daEriceira, quando entraram António José da Silva e Francisco Xavier. Depôsestes, entrou o padre Luís Álvares de Aguiar, prior de S. Jorge, homem desessenta anos e alegre sombra de velho em cujos olhos lampejavam ainda osclarões da juventude.António José, que sinceramente odiava Bartolomeu, já pela estupidez herdadajá pela própria, não perdia lanço de o meter a riso com salgadas galhofas napresença da fina e algum tanto livre sociedade do conde. Casualmente,relançando os olhos à livraria, o hebreu enxergou o livro em oitavo, intitulado:Sentinela contra judeus & C. Tirou o livro, e disse:— Óh Francisco Xavier, já leste um diamantino livrinho traduzido pelo paiaqui do senhor Bartolomeu? A Sentinela contra judeus!— Oh!... oh!... — cacarejou gargalhando o padre Luís Álvares. — Isso éuma obra que faz cócegas nos pés à gente.— Então porquê? — perguntou o abespinhado filho do defunto tradutor.— Porquê?! — disse o padre — , porque é obra recheada de sandices, eimoralmente porca e torpe.


— Que outro dissesse isso... — retorquiu Bartolomeu mas VossaSenhoria, que é padre, e homem bem nascido!...— Quer Vossa Senhoria — disse o presbítero — que os padres e homensbem nascidos sejam tão alarves como o senhor seu pai, que Deus haja nabem-aventurança dos pobres de espírito?António José e Francisco Xavier riram. Bartolomeu, em harmonia com a suacostumada parvoíce, riu também; todavia, o ónagro, que fareja a fêmea nasbrisas de Maio, ri com mais espírito.O filho de João Mendes abriu ao acaso o livro, leu mentalmente algumaslinhas, e disse:— Ó senhor Bartolomeu, Vossa Senhoria estará na persuasão em quemorreu seu engenhoso pai a respeito das doutrinas deste livro?— Eu creio tudo em que o meu pai creu. Tudo que ele escreveu outraduziu são verdades — respondeu o sujeito.— Bem. Então defende o que se diz aqui, respeito à raça hebraica?— Defendo, sim, senhor. São as doutrinas da Igreja; e por assim oentender, mandei reimprimir esse livro há quinze anos.— Fez Vossa Senhoria muito bem, senhor Bartolomeu — obtemperouFrancisco Xavier de Oliveira. — Estamos num país em que o livrinho do seupai há de ser ainda terceira vez impresso. (*)


[(*) Foi efetivamente reimpresso em 1748.]— Merece-o! — disse António José da Silva. — Ora digam-me, se aimortalidade não é pequeno galardão para um livro, onde se leem coisas.Atendam:... Se os homens tiveram o cuidado em sinalar os judeus, para quefossem conhecidos pelas suas traições, não menos pensou Deus de os sinalarpara confusão sua, e castigo do que mereceram seus antepassados. Não sãoem alguns muito patentes os sinais que pela sua mão lhes põe a natureza; masem outros se descobrem claros e evidentes, sem que à gente os possa o seucuidado esconder ou encobrir... Digo pois que há muitos sinalados pela mãode Deus, depois que crucificaram a sua divina majestade; uns...“Reparem nisto! — exclamou António José interrompendo a leitura. —Reparem, por honra da história natural e do defunto Lobo morto, e do Lobovivo!E prosseguiu na leitura: — Uns têm uns rabinhos que lhes saem do seu corpodo remate do espinhaço; outros lançam e derramam sangue...— Alto lá! — atalhou o padre Luís Álvares. — Estão senhoras na salapróxima: quem quiser, vá ler à rua o restante da imundícia.


— Eu já li — disse Francisco Xavier apertando as cartilagens do nariz. —Isto vapora miasmas de latrina.— E com que então — repetiu o hebreu — está Vossa Senhoriapersuadido, senhor Lobo, que alguns judeus têm uns rabinhos que lhes saemdo seu corpo do remate do espinhaço?— Estou, sim, senhor.— Já viu dessas coisas com os seus olhos penetrantes? Agora vejo eutambém que não é quimérico o anexim respetivo aos entendidos que metem onariz em tudo! Que grande alcance e que profundas investigações por lugarestão desfrequentados tem feito o seu nariz de sábio, senhor Bartolomeu!O padre Luís Álvares de Aguiar, desabafados os impulsos de riso, compôs orosto, e disse:— É grandíssimo desdouro para Portugal que este e quejandos monstrosda loucura humana corram impressos. Lastimo, senhor Lobo, que VossaSenhoria ande a fazer ganância com estes excrementos das pobres e servisvigílias do seu pai, cuja capacidade intelectual está medida por esta produção,que ele foi buscar, para traduzir, aos escoadouros de Castela. Veja, por honrasua, amigo e senhor Bartolomeu, se pode chamar a si todos os exemplaresdesta vergonhosa obra, e queime-os; queime este opróbrio do seu pai e seu.Queime-os...


— Ou dê-os — acrescentou António José — para alimentar as fogueirasde algum judeu...— Pode ser... — murmurou Bartolomeu, a ponto que vinha entrando ojovial conde da Ericeira, pedindo desculpa da demora.— Que livro lê o nosso moderno Gil Vicente? — perguntou o conde. —Ah!... Sentinela contra judeus... Isso é galante livro, que prova o adiantamentoda história natural nas Espanhas. Fala aí de uns rabinhos...— Com eles nos entretínhamos — acudiu o prior de S. Jorge.— E viram — tomou o conde — o porquê de terem rabinhos algunsisraelitas? A explicação está duas páginas adiante.— Cá está — disse António José, e leu: — Os que têm os rabinhos noremate do espinhaço são por linha direita descendentes daqueles que entreeles eram mestres, a quem chamavam rabis, e nós nomeamos rabinos; estes setentavam a julgar, e hoje ensinam sua lei como mestres e juízes, e para penasua, e sentados não possam estar sem moléstia e trabalho, lhes saem aquelesrabinhos no próprio lugar que lhes pode causar penalidade.— Parece que o senhor Bartolomeu Lobo está com azeda sombra! —atalhou o conde. — ó nosso amigo, seu pai não tem que ver com a nossacrítica. A um tradutor tão-somente se pede contas da lealdade da versão; e, ao


meu ver, esta versão do espanhol é fidelíssima. Da má substância do livro estáseu pai inculpado, amigo Lobo.— Meu pai, senhor conde — disse Bartolomeu — , não pede desculpa deter feito um bom serviço à religião. Aos judeus é que ele não fez grande favor,traduzindo este religioso livro, de que estes senhores estão zombando.Bartolomeu feriu com os olhos as costas de António José da Silva, quandoproferiu as palavras: aos judeus...O filho de Lourença Coutinho apanhou-lhe no ar o tiro, volveu-se rápido paraele, e disse:— Os judeus que tiveram a desventura de nascerem em territórioportuguês têm quinhão na ignomínia deste livro, por estar em linguagem quese parece tanto ou quanto com a portuguesa; enquanto ao mais, Deus noslivre que o Santo Ofício acreditasse na existência de rabinhos!... Aperversidade, em geral, costuma ser menos estúpida. Hoje não haverianinguém que quisesse inspecionar as tais excrescências a não ser VossaSenhoria, senhor Bartolomeu!...O conde fez a António José um expressivo gesto de silêncio. Bartolomeudeteve-se alguns instantes, e pediu licença para retirar-se, cumprimentandoprofundamente o padre, o judeu e o filho do contador-mor.


— Faz mal, senhor Silva — disse o conde gravemente depois queBartolomeu saiu — , faz mal em disparar tão certeiras flechas contra a cabeçadura 'deste homem! Vossa Senhoria esquece-se de que há no Rossio umpalácio, que se chamou dos Estaus, e hoje se chama vulcão de fogueiras.Tenha prudência. Diante de mim, diga o que quiser a favor de Moisés e contraSão Paulo; mas do maior número de sujeitos, que entram nestas salas, guardese.


CAPÍTULO IVQuinze dias volvidos, aos 6 de Agosto de 1726, entrava António José da Silva,segundo o seu costume quotidiano, no escritório do seu pai, quando trêsfamiliares do Santo Ofício lhe ordenaram que os seguisse ao Tribunal. Ohebreu hesitou alguns instantes, meditando no mais fácil meio de escapar-se.Um dos familiares, entrando-lhe no ânimo, descerrou um riso de escárnio, edisse:— Não pense em fugir, que as avenidas da sua casa estão vigiadas. Emtoda a parte há “sentinelas contra judeus”.António José da Silva entendeu a alusão. Pediu que o deixassem despedir doseu velho pai e da sua mãe, obrigando-se a subir acompanhado. Negaram-lhea licença, solicitada com lágrimas.António José saiu na frente dos três familiares, e pediu ao merceeiro vizinhoque avisasse seus pais de que elo, ia preso.No mesmo dia e à mesma hora, foi também preso o prior de S. Jorge, LuísÁlvares de Aguiar, e conduzido aos cárceres da Inquisição.A captura do filho de Lourença Coutinho não fez estranheza. A Inquisição eos devotos lembravam-se ainda da judia, que saíra absolta donde a piedaderequeria que saísse de carocha e sambenito. Grande parte de público estava


escandalizado daquele singular caso de indulgência, que, até certo ponto,ameaçava quebranto na inteireza dos inquisidores. Por isso, com a notícia daprisão de António José da Silva, os pios escandalizados sentiram a satisfaçãodesagravante.Enquanto ao prior de S. Jorge, muita e boa gente se espantou. O padreÁlvares de Aguiar, oriundo de muito ilustre família, em limpeza de sanguepodia pleitear antiguidade com a mais primorosa raça de cristãos. Corria famade que ele, desde os quinze até aos sessenta e tantos anos que tinha então, sedistinguira em femeais mundanidades, amando as mais formosas e fidalgascom requintado e versátil amor nem sempre ideal. À volta dele, no dizer doseu amigo Francisco Xavier de Oliveira, florescia uma espécie de harémespiritual, composto de tenras e juvenis belezas, das quais ele se denominavapai, sendo, ao mesmo tempo, dono e galã. Este bom padre — diz ocontemporâneo — que outra quebra não tinha senão a paixão do amor, nãodeixava ressumar a sua tendência nem por obras nem por palavras. Apenassustentava que “o amor é o complemento e epítome de toda a lei; e que achamada caridade nas Santas Escrituras não é senão o amor, segundo SãoJerónimo”. Bem que amasse idolatricamente as mulheres formosas e as demais lustrosa raça, nunca falava senão do amor de Deus; e deste amor pareciadesbordar-lhe o coração, se atentarmos nas magnas obras de caridade que eleconstantemente exercitava. Diz mais o Cavalheiro de Oliveira: “Eu vivi muitona sua intimidade. Tão excelentes no âmago eram as qualidades dele, que toda


nós o estimava, sem distinção das mais gradas pessoas de Portugal, quer pelaqualidade da sua fidalguia, quer pelo seu copioso saber.“Todos, pois, se maravilharam e condoeram. Ninguém sabia conjeturar omotivo de semelhante prisão. Quem, com efeito, mais cabalmente podiainformar a curiosidade do público, seria o filho do tradutor da Sentinelacontra Judeus.Esperemos-lhe a sentença. João Mendes da Silva, tão depressa pôdetransportar ao leito sua mulher desmaiada e como morta pelo golpe da notícia,correu a casa do conde da Ericeira a pedir a redenção do seu filho.O conde ouviu aterrado a nova, e disse:— Eu previ isto... Sei donde partiu a denúncia... Vá com Deus, que eucomeço desde já a trabalhar na salvação do pobre jovem.Daqui, foi João Mendes em cata do contador, pai de Francisco Xavier deOliveira. Encontrou-o aflito.— Também meu filho — disse José de Oliveira e Sousa — esteve em riscode ser hoje preso. Salvou-o ontem sua mãe, ajoelhada aos pés do inquisidor,porque um conselheiro do Santo Ofício se apiedou das minhas cãs, e meavisou. Não sei que hei de fazer no seu auxílio, senhor João Mendes!... Eu jásou também suspeito. Quando a Inquisição prendeu o prior de São Jorge, nãosei que haja ninguém defeso!...


João Mendes saiu desanimado. Foi ainda socorrer-se daquele Diogo deBarros, santo valedor de infelizes. O ancião algumas esperanças verteu nocoração do septuagenário, dizendo-lhe que ainda era familiar.— E então agora — disse Diogo de Barros — , agora que vinha aí a filhado meu Jorge para se efetuar o casamento! É preciso salvarmo-lo antes que elachegue. Eu não lho faço saber a ela nem a Sara. Recomende à senhoraLourença Coutinho que não diga nada para Amesterdão; ou, a dizer-lho, queas dissuada de virem a Portugal.António José da Silva foi conduzido ao chamado corredor meio novo, cárcerenúmero seis.Ao oitavo dia foi levado a perguntas à chamada Mesa do Santo Ofício. Estavaadiantada a instauração do processo. Leram-lhe o depoimento dastestemunhas que o capitulavam de judaizante. António José disse francamenteque não tinha vivido como cristão nem como israelita; mas, se lheconcedessem vida para o arrependimento, faria inteira abjuração do seuserros.Aceitaram-lhe o abjurar; todavia, como ele não confessasse que em casa doseus pais se judaizava, puseram-no a tratos, chamados do torniquete. A torturaexerceram-lha nas mãos, até lhes esbrugar a carne dos ossos. O padecente,consoante consta da consignação dos autos, no mais cruel remoer do tomo


sobre os dedos, invocava Deus, e não a Virgem, nem algum santo do reino docéu.Ao tempo deste suplício lento, com intercadência de trevas na masmorra, quefazia Francisco Xavier de Oliveira?Padecia tratos de outra natureza. Aquela Joana Vitorina, tão da sua alma, acigana requestada pelo fatídico espanhol, desapareceu-lhe um dia, deixando amãe com a condição de a mandar buscar. Francisco Xavier, com doismembrudos criados, agarrou da velha, e ameaçou-a de a pôr a tormentos atélhe arrancar o segredo do destino da filha. A demoníaca de outrora, aolembrar-se dos tijolos ardentes, revelou que a sua Joana fugira paraValhadolide com um espanhol, que lhe prometera palácios na sua terra e amão de esposo.O alucinado jovem esqueceu o pobre amigo preso, a mãe angustiada, o paique de puro medo da Inquisição caíra enfermo, tudo esqueceu, porque aserpente do ciúme se lhe enroscou no peito, e verteu peçonha aos seios daalma até lhe queimar as febras todas da amizade e filial amor.Pediu o dinheiro que não pôde furtar dos contadores paternos, e foi acaminho de Espanha. Entrou em Valhadolide, onde não conhecia ninguém;mas ao seu pai ouvira dizer que D. Rafael Hernandes de Bobadilha, alcaide deValhadolide, era seu amigo, e parente do marido de uma sua irmã, casada emBarcelona.


Apresentou-se ao alcaide: disse-lhe quem era e ao que ia. D. Rafael acolheu-ocom benignas risadas, exclamando:— Eu sei onde pára a cigana, meu ditoso rapaz!— E o covarde que ma roubou? — acudiu Xavier.— Esse foi ontem preso: está no castelo, e de lá veremos para onde as leismandam os caudilhos de salteadores. Fica Vossa Senhoria sabendo que a suaJoana teve a honra de hospedar no largo peito o coração do mais temerosobandido das Astúrias. Agora veja lá se lhe serve a criatura enfarruscada comtão abjetos amores.— Onde a encontro? — disse com veemência o português.— Na estalagem onde o salteador foi preso. Que quer Vossa Senhoriafazer à mulher?— Matá-la!— É muito bem feito! — acedeu gravemente o alcaide. — Vá matá-la, queé uma devassa a mulher! Faz um serviço à humanidade, Dom Francisco! Eu,se não tivesse que fazer, ia também dar-lhe uma cochilada no pescoço...— Dom Rafael está a zombar com a minha desventura? — interrompeu ojovem.


— Não senhor. Estou a recrear-me com Vossa Senhoria enquanto nãochega o chocolate que mandei preparar... Aí vem o chocolate. Sente-se paraaqui, rapaz. Merende, e depois irá perpetrar o ciganicídio, a uma hora própriadessas atrocidades. Deixe nascer a Lua, para os poetas de Espanha terem azode falarem na Lua, ao cantarem em funérea xácara a morte da cigana às mãosdo traído paladim Dom Francisco — o português! Ai!, que grilharia não vãofazer as musas!, que poemas a pingar sangue não vão sair do peito esfaqueadode Joana! Que leve a breca tal nome! Nunca vi Joana em verso! É pena que elase não possa crismar antes de morrer, cavalheiro! Se me dá licença, DomFrancisco, ainda vou, por amor da poesia castelhana, entender-me com obispo, a ver se a podemos crismar. Faça-me o favor de não matar a raparigaaté amanhã por estas horas!Francisco Xavier tomava o chocolate, e ria-se, quando não cravejava os dentesno beiço inferior.Terminada a refeição, D. Rafael Hernandes de Bobadilha ajeitou o aspeitogravemente, e disse:— Fui, sou e serei amigo do seu pai. Estivemos em Flandres há trintaanos: éramos ambos secretários dos ministros da nossas pátrias. O seu pai erahonrado, e fidalgo da velha estofa. Vossa Senhoria ainda então se gerava nasentranhas do nada, senhor Dom Francisco. O resultado é estar VossaSenhoria aí quase imberbe, e eu coberto de neve. Estas cãs devem — lhe


incutir a ideia de que eu já tive cabelos pretos, e experimentei tantas paixõesquantos cabelos tenho. Está Vossa Senhoria diante de um velho que lê nosrefolhos do coração. A cigana, que trouxe-o a Valhadolide, é mais amada hojedo que era antes de lhe fugir...— Oh! — atalhou Francisco Xavier. — Nada de retóricas nem de teatro,Dom Francisco. Pergunto: quer levar a cigana? Vamos: responda!— Preciso vingar-me! Quero matá-la, amando-a!— Nesse caso, mate-a! — disse o alcaide, no tom da primeira galhofa. —Eu vou mandar consigo à estalagem quem lha ensine. Morra embora a Joana,e fiquem os poetas tolhidos por causa do mais vilão nome que ainda se ouviuem tragédias! Vá, vá, dom assassino!Ergueu-se o alcaide, chamou da janela um quadrilheiro, e ordenou-lhe queconduzisse o seu hóspede à estalagem que indicou.


CAPÍTULO VÉ minha opinião que há umas lágrimas, que têm a mirífica virtude de lavaremas manchas da perfídia no rosto da mulher amada.Estas lágrimas são mágicas, são os filtros do sortilégio com que a ciência dosnossos antepassados andou às voltas e com que a piedade alimentou avoracidade das fogueiras. São lágrimas que têm e encerram virtudesluciferinas: saíram de laboratório infernal; não são o sangue de alma, como opadre Bernardes as definia.Joana Vitorina, quando Francisco Xavier entrou ao quarto em que ela estavaescrevendo, tinha o rosto aljofrado, daquelas lágrimas. A ira do jovem afogousenelas. Cruzados os braços, crispantes os beiços, acendidos os olhos,Francisco Xavier de Oliveira parou no limiar do quarto. Joana ergueu-se,lançou mão do punhal que estava sobre um bufete, despiu-o da bainha,voltou-o pela ponta, caminhou solene para o cavalheiro com os olhos nopavimento, ofereceu-lho, e disse-lhe:— Mata-me, que é um benefício matar uma mulher que os remorsos hãode matar vagarosamente.Francisco Xavier passou por diante dela, aproximou-se da mesa em que elaestava escrevendo, curvou-se sobre o papel, e leu.


Era carta que a cigana escrevia à mãe, pedindo-lhe que a mandasse buscar,porque se via desamparada em Valhadolide. Do homem, com quem fugira,apenas dizia que fora atrozmente iludida por um infame. “Está vingado”,escrevia ela, “o bom jovem que eu sacrifiquei; se o vir, diga-lhe que me nãodeseje maior desventura. “Francisco Xavier, lido aquilo, voltou o rosto à cigana, que ainda permaneciaquieta com o punhal. Depois, sentou-se, a chorar, arquejante, aflito, com orosto abafado entre as mãos. Joana aproximou-se dele, e ajoelhou, com orosto pendido para o seio, braços pendentes, e o punhal na mão direita.Francisco Xavier viu-a assim; ergueu-se de golpe; quis fugir impetuosamente.Ninguém lhe estorvou o passo; podia fugir à sua vontade; mas... o fatal enliço,a cadeia magnética parecia arrancar-lhe o coração pelas costas, quando ele iafugindo. Era a cigana!... o amor infernal daquela raça maldita de Deus, quetem por si a omnipotência de Lúcifer.O jovem girou sobre os calcanhares como manequim. Parecia uma coisafantástica: de real apenas se sentia, naquele quarto, a ridiculez dos olhares, dasposturas e do silêncio. Estava isto assim neste curioso lance de se deverem rirum do outro, quando Joana se lhe atirou ao peito, expedindo um ai estrídulo,um como grito do coração que morre. Se a não amparassem, cairia; mas nãocaiu. Os braços dele apertavam-na muito, muito; e, se os braços nãobastassem a sustê-la, creio que eles se segurariam um noutro pela identificaçãodos lábios.


Como se amavam! E, depois, não há mais que dizer no tocante àreconciliação. O alcaide chegou a lançar o jantar com o riso, quando oportuguês lhe contava a passagem com os trejeitos e transportes que deramem resultado o jurarem-se reciprocamente um eterno amor de mais algumassemanas.No dia seguinte, quando Francisco Xavier andava curando dos aprestos para ajornada, é que ele se encontrou com as duas perseguidas hebreias no adro daigreja. O leitor pode recordar-se.Deteve-se ainda três dias em Valhadolide Francisco Xavier de Oliveira àespera de alguma boa nova, com referência às presas. Com as boas esperançasde D. Rafael, saiu o jovem, acompanhado da cigana, para Lisboa.Sossegado de coração, tratou em trabalhar no salvamento de António José daSilva. Desvaliosa proteção seria a dele, já tão mal visto do Santo Oficio, que ospais incessantemente lhe pediam que fugisse de Portugal. Diogo de Barrosdespersuadiu-o de solicitar a misericórdia de S. Domingos a favor do seuamigo, como patronato inconveniente ao preso, a menos que o não quisessesobrecarregar.Os valedores do filho de João Mendes, conquanto poderosos, ignoravam etemiam a sentença no fatal dia 13 de Outubro, designado para o auto-de-fé.Contavam Diogo de Barros e o conde da Ericeira com as favoráveis alegaçõesdos qualificadores do Santo Oficio; desconfiavam, porém, do inquisidor-geral.


Soaram os sinos à chamada dos fiéis para assistirem às sentenças na igreja deS. Domingos. Entre os réus da vanguarda ia António José com o sambenito,descalço, cabeça rapada, ao lado do padrinho que lhe fora nomeado. Ir eleentre os primeiros réus, era já sinal de grande júbilo para os seus. Os quemarchavam depôs o Crucificado, erguido no meio da procissão, esses jápodiam de antemão contar com as agonias da fogueira, porque já não viam aface de Cristo. António José da Silva ouviu o sermão dos lábios piedosos deum frade dominicano, que se esteve sempre em êxtase diante da misericórdiacom que a Santa Inquisição andava em cata das almas tresmalhadas docaminho da glória para as restituir ao seu criador.Concluído o sermão, dois frades subiram ao púlpito para lerem a suma dosprocessos, e declarar as penas em que tinham sido condenados.A primeira sentença lida foi a do padre Luís Álvares de Aguiar, acusado deprostituir as suas devotas no confessionário, crime que na tortura confessara.Privado do exercício das funções eclesiásticas, foi condenado a desterroperpétuo.António José da Silva, nesta ocasião somente, soube que o prior de S. Jorgefora também vítima da denúncia de Bartolomeu Lobo Correia.Seguiram-se outros réus. Depois, um familiar conduziu pela mão AntónioJosé ao meio das galerias, ocupadas por frades, bispos, qualificadores efamiliares. Ouviu ler o processo, que o acusava de ter hebraizado. A sentença


era absolutória, visto que o réu confesso abjurava as doutrinas dos dogmasjudaicos. Em seguida levaram-no ao tope do altar, onde o fizeram ajoelhar, epôr a mão sobre um missal. Nesta postura, recitou um protesto de fé, eesperou que o inquisidor o absolvesse da excomunhão e lhe impusesse apenitência.Ultimada a leitura das sentenças, António José, ao sair do templo para entrarna Casa Santa circunvagou os olhos pela multidão, e viu Francisco Xavier deOliveira, ao par da sua mãe, que cobria o rosto e as lágrimas com a mantilha.Entrou no Tribunal, despiu o sambenito, os calções e a jaqueta parda listradade raios brancos: entregou ao alcaide da Inquisição a vestimenta, e esperouque o inquisidor, duas horas depois, lhe designasse em lista manuscrita osartigos da penitência, e lhe cruzasse a última bênção misericordiosa.Ao anoitecer, o filho de João Mendes entrou na liteira do contador-mor, e foiconduzido a casa do seus pais. Lourença Coutinho, quando lhe viu os dedosmacerados, e as articulações das falanges ainda chagadas da tortura, perdeu ossentidos nos braços do filho. O ancião, com as mãos erguidas, abafava desoluços, desviando os olhos das mal fechadas cicatrizes, que o jovemmostrava. Francisco Xavier, a praguejar, blasfemava da Providência,duvidando que ela existisse, e impassivelmente se revisse nas atrocidades destemundo.


António José da Silva, nos primeiros dias de liberdade, fez suspeitardesconcerto de juízo, à conta de uns ares sombrios e rosto empedernido emque se deixava estar, longas horas, num terrível quietismo. À primeira vez quesaiu de casa, foi ao Convento de S. Domingos tratar coisas espirituais comfrades de boa nomeada em virtude e saber. Fugia aos seus antigos conhecidos,e nomeadamente Francisco Xavier de Oliveira, que mais que todos secompadecia da estragada cabeça do pobre António. Quando o amante deJoana Vitorina lhe queria contar os sucessos de Valhadolide, António Josécortava a narrativa, pedindo que lhe não desnorteasse o espírito. Oliveira riaseà socapa dos trejeitos pios do amigo, o qual, por vezes, era na verdadeirrisório, referindo seraficamente as suas visões e sonhos beatíficos.Esta enfermidade cerebral, efeito das trevas, da insulação e tormentos daSanta Casa, guarneceu-a lentamente o correr do tempo. Este melhoramento,porém, não impedia que António José, um dia por outro, fosse ao Conventode S. Domingos conversar, instruir-se e roborar a sua piedade com os frades.Entretanto, Lourença Coutinho e João Mendes, grandemente auxiliados pelotio de Jorge Barros, curavam incansáveis do livramento de Sara e Leonor. Aoprincípio, António José ouvia falar delas com uma quase estranheza, e depoiscom piedade. Dizia ele que a desgraça era necessária, quando nos saía aoencontro fora da estrada direita, porque, sem ela, nunca nos resgataríamos deatalhos perigosos e condutores à perdição. “ Oxalá”, juntava ele, “que Sara eLeonor aprendam a verdadeira religião, como a mim me aconteceu! “


Lourença chorava quando isto ouvia. Francisco Xavier olhava-o em rostocom sincera amargura, e de si para si dizia: “Endoideceram-no! “D. Rafael Hernandes avisou o seu velho amigo José de Oliveira que as duaspresas sairiam infalivelmente no primeiro auto-de-fé; pelo que estavam sendosupérfluos os empenhos que iam de Portugal para o inquisidor equalificadores do Santo Oficio. Asseverava-lhes que o Santo Oficio emEspanha era muito menos rigoroso que o tribunal português; e, no caso dasduas mulheres, não havia nada que recear, senão a prisão de mais dois meses,num quarto bem iluminado e provido de tudo que elas à sua custa mandavamprocurar.Ao aproximar-se o dia 26 de Janeiro, Diogo de Barros, carregado de anos evirtudes, quis prestar ainda os bons-ofícios de parente à filha do seu sobrinhoJorge, indo a Valhadolide buscar as duas senhoras, para dali as conduzir para oseio da sua família. Francisco Xavier de Oliveira, o jovem romanesco,afigurando-se-lhe cavalheirosa bizarria aparecer numa hora feliz às damas, queviram-no em aflitíssimos momentos, acompanhou o ancião, muito abeneplácito do pai, que se atormentava com medo das iras do filho contra osinquisidores.E chegados estamos, pois, ao ponto em que Sara e Leonor saíram absoltas epenitenciadas da Inquisição de Valhadolide, no auto-de-fé de 26 de Janeiro de1727.


CAPÍTULO VIAposentou-se Sara em casa do tio do seu marido. Lourença Coutinho e a suaamiga encararam-se e duvidaram uma da outra. Na desfiguração destasatormentadas mulheres só a continuada reminiscência poderia entrever umassombras da antiga formosura.Sara quis ver António José, o homem formado daquela criancinha que andavana Covilhã com a sua filha ao colo, e tanto chorara por ela na despedida. Ojovem encarou estupefacto em Leonor. A visagem não era bem de espanto:estava ali o quer que fosse do idiota, que se procura no seu passado a um raiode luz, da apagada luz da sua razão, do seu amor, das suas esperanças.Leonor contemplava-o triste da comum tristeza das piedosas almas. Não otinha amado; mas afizera-se a pensar nele. Imaginava-o jovem de muitos,espíritos, de airosa presença, simpaticamente melancólico; e via ali um homemcomo entanguido de frio de alma, em espasmos de santa introversão, olhandopara ela com assombro, e para os outros com certo ar de quem pede que lhesiluminem as escuridades da memória do seu coração.Leonor, avisada por Lourença, do estado lastimoso em que a tortura lhetransformara o filho, chamava-o às recordações do passado, recitava-lhe osversos dele que recebera em Amesterdão, pedia-lhe que lhe dissesse poesias


novas; e convidou-o, uma vez, a glosar-lhe uma quadra. António José da Silvaacedeu com um sorriso, e disse:— Uma quadra espiritual... Seja! Diga que eu vou escrevê-la...Mas, ao curvar os dedos para segurar a pena, soltou um leve gemido, emurmurou:— Esquecia-me que não posso escrever... Tenho os dedos quebrados!— Infames frades! — exclamou Leonor.— Por quem é!... — acudiu António José — , por quem é!... não faleassim, Leonor! Não fale... que eu posso ser seu acusador na tortura!... Eu tinhadesejo de morrer, quando me deram os tratos; por isso não acusei meu pai e aminha mãe, mas aqueles que não podem com a dor nem com o terror damorte... esses acusam pai, mãe, esposa e filhos... denunciam-se a si, caluniamse,desonram-se, condenam-se a inferno sem fim, para não sentirem o repuxare estalar de cada fibra do seu corpo, e o gotejar de cada gota do seu sangue, eo apagar-se compassado, lento, horrendíssimo de cada faísca luminosa do seuespírito...— E como eram as torturas... como foi que lhe puseram as mãos nesteestado? — perguntou Leonor.António José da Silva fitou-a como espantado da pergunta, e disse:


— Nunca revele o que viu na Inquisição de Valhadolide, Leonor: olhe quenão há perdão para a boca imprudente que deixou passar uma palavrareveladora do que lá vai naqueles infernos!...E, dito isto, com torva e misteriosa solenidade, o filho de Lourença Coutinhosaiu impetuosamente dentre as famílias hebraicas e cristãs que o viam eouviam com os olhos marejados de lágrimas.— E aqueles nossos planos, Lourença — disse Sara. — Vê tu como adesgraça no-los desfez!... O teu filho, se assim se vai... podemos perder aesperança de o trazer a uma regular vida em que possa realizar-se ocasamento... Ele nada te diz?— Se eu lhe falo nisso, diz-me que está morto para a felicidade, e que lhenão resta esperança de restaurar nada do que perdeu. Dantes era triste; agoraestá continuamente chorando. Não pode escrever... é o maior infortúnio...Não sei como hei de distraí-lo. Anda de convento em convento. Por aí,chamam-lhe hipócrita ao meu pobre filho... O que ele está é quase demente,se a Divina Providência o não socorre... A minha esperança és tu, Leonor! —exclamou Lourença, beijando a filha de Jorge de Barros. — Tu é que hás desalvar o meu António, o teu esposo!... Dá-lhe tu calor ao coração que secongelou no frio dos calabouços. Acorda-o, filha; chama-o às alegrias destemundo...


— Eu não as tenho... — balbuciou Leonor. — Não tenho mais calor nocoração que ele...— Então não o amas?! — replicou Lourença, como admirada da frieza deLeonor.— Como podem amar-se pessoas que apenas se viram na infância! —disse a filha de Sara. — Mas com isto, senhora Lourença, não quero eu dizerque me esquivo a ser esposa do seu filho, se tal é a vontade da minha mãe, ese já esse destino me tinha dado meu querido pai. Sem ideia de casamento,minha amiga, hei de fazer quanto puder por distrair o Antoninho das suasamarguras; creia-me...Lourença levou a mão de Leonor aos lábios e, reparando, disse:— Cá está o anel do teu pai, menina!... Não o percas... Deixaram-to os daInquisição? Cá em Portugal não é costume restituir aos absolvidos as coisas,que lhe encontram, quando os prendem. A mim nunca me restituíram doisanéis de pedras e uma manilha que eu trouxe do Brasil...Não vos cortaram os cabelos na Inquisição de Valhadolide?— Não, nem nos mudaram os vestidos — disse Sara. — Então, filhas, nãodigais que sofrestes... A vossa prisão foi suave; o Deus compadecido dosinfelizes sem culpa não vos desamparou... E o tesouro? — prosseguiuLourença — , quando havereis à mão a vossa riqueza, filhas?


— Nem já pensamos em riquezas — disse Sara. — O tio do meu Jorgepresume que o cofre já não existe.— Há um ano — tomou Lourença — que o meu marido soube docapelão da Bemposta que tal coisa nunca aparecera.— Isso me disseste para Amesterdão.— É verdade: bem me lembro... E o filho do capelão, que é o almoxarifedos infantes, se souber que vós viestes de Holanda, é capaz de vos procurar aver se descobre o segredo. Tende cautela com ele, que eu não lhe tenho muitafé, apesar de se mostrar muito compadecido do meu António, e me dizer quepedira por ele aos infantes. Chama-se Duarte Cotinel Franco, andou com osmeus filhos e com o Francisquinho Xavier na escola, e Deus sabe que ele foicausa de muitos desgostos da minha amiga Dona Isabel, levando — lhe ofilho para as noitadas da Bemposta, onde vão todos os perdulários e mulheresperdidas de Lisboa. Eu não gosto dele... Não sei o que me diz o coraçãodaquele homem, que me não fez mal nenhum! São preocupações de quemanda sempre a tremer de falsos amigos... para além do mais consta-me que eleé familiar do Santo Oficio, e o pai é qualificador. Tudo isto vos conto, filhas,para que vos não confieis do tal Duarte Cotinel: basta-lhe ser filho de cigana,segundo dizem. O padre, que hoje goza boa fama, foi um dos mais libertinosclérigos de Lisboa. Agora, escolheram-no para qualificar e avaliar as culpasdos cristãos — novos, hereges e feiticeiros.


CAPÍTULO VIIFrancisco Xavier de Oliveira, desde a hora em que foram presos António Josée o prior de S. Jorge, fez ao demónio da vingança um tão fervoroso votocomo, anos antes, em perigo de naufragar, fizera à Senhora da Penha deFrança. A vítima, que ele prometeu sacrificar na hecatombe do diabo, eraaquele Bartolomeu, filho do tradutor da Sentinela contra Judeus, epropugnador dos rabinhos dos mesmos.Era incapaz de matar traiçoeiramente um homem Francisco Xavier. A suarobustez, muitas vezes provada com grandíssimo dissabor dos seusadversários deslombados, instigava-o a encarar de frente os inimigos, eesmagá-los, se a vítima ficava entre ele e uma parede. Um só homem, emLisboa, lhe disputava primazias em força: era um D. Henrique Henriques deArroios, que sustentava durante quatro minutos na palma da mão a mó de ummoinho, e, arremessando-a depois, a fazia rolar a distância de dez a quinzepassos.Em corridas de touros, um outro homem lhe competia em destreza e força:era o marquês de Alegrete, Manuel Teles da Silva, que, numa festa da Senhorada Piedade, no pátio do duque de Cadaval, estando presente o rei, cortaracerce a cabeça a um touro de uma só cutilada.


De si diz o Cavalheiro de Oliveira que, aos vinte anos, agarrava um boi e osubjugava em singular combate. junta que ninguém o venceu no atirar ao altouma bala de ferro, que recebia na queda, e três vezes sucessivas arrojava àmesma altura.Ora, um homem que assim brincava com uma bala de ferro devia deconjeturar que a cabeça de Bartolomeu nas suas mãos não pesaria mais queuma avelã.O seu máximo cuidado era sair-se limpamente da empresa para não desgostarsua família nem incomodar amigos no livramento.Bartolomeu tinha uma quinta em Oeiras, sobre o mar, onde costumava passaro Estio, em saborosa companhia dos seus livros, relendo e comentando asobras inéditas do pai, no intento de as estampar, quando a ilustração públicamerecesse tamanho brinde.Francisco Xavier farejava-lhe a pista, sem revelar a ninguém o propósito comque miudamente galopava na estrada de Pedrouços.Uma tarde, quando se recolhia, já lusco-fusco, enxergou na praia do Dafundoo pensativo Bartolomeu que se passeava filosofando à beira-mar. FranciscoXavier descavalgou, depois de ter relançado os olhos por sobre a praiadeserta. Avizinhou-se de Bartolomeu, e perguntou-lhe se achara nas suasmeditações a causa eficiente de uns rabinhos que surdiam do fim doespinhaço de certos judeus.


Bartolomeu tremia e balbuciava. Francisco Xavier, sôfrego da oportunidade,perguntou-lhe se o não abrasavam remorsos de fazer desterrarinquisitorialmente um velho de sessenta e cinco anos, e de fazer esmagar natortura os dedos de António José da Silva. Bartolomeu preparava-se paraarrancar alguns gritos do peito ansiado, quando Francisco Xavier lhe disse,segurando-o pelo pescoço:— Vossa Senhoria precisamente arde de remorsos, e carece de refrigério.Dito isto, filou-o pelas roupas do costado, sacudiu-o para ganhar impulso como balanço, e remessou-o ao Tejo. O homem escabujou alguns segundos à tonade água, sumiu-se, mostrou as pernas mais longe onde a ressaca o levou, e nãodeu mais conta de si aos olhos atentos de Francisco Xavier, que invocava asestrelas e a Lua como testemunhas daquela boa ação da sua vida. O jovemcavalgou placidamente, e, como quem depois de um feito brioso tira a limpoos corolários excelentíssimos do acto, ia dizendo consigo: “Se os cristãosdepuram os hereges no fogo, porque não hão de os homens racionais depuraros fanáticos na água? Façamos também aquaticamente nossos autos-de-fé. “Na madrugada do dia seguinte, a maré revessou o cadáver de Bartolomeu aosopé da Torre de S. Gião. A notícia chegou logo a António José da Silva, quenão sabia se devia folgar, se temer-se da possível imputação do homicídio.Francisco Xavier encontrou-o nesta vacilação, e disse-lhe:


— Não temas, parvo, que o infame denunciante morreu sem a mais levecontusão. Peguei-lhe jeitosamente pelo estofo dos vestidos, e apertei-lhe opescoço com tal cuidado, que o homem apenas passou pelo incómodo debeber água à proporção das lágrimas que fez chorar. Estás vingado, é o grandecaso. Se não te pude livrar da Inquisição, livrei a humanidade de uma fera.— E estarei eu livre das outras? — perguntou António José, comtemeroso aspeito.— Estás, se continuares nessa tua hipocrisia salutar de te gastares porconventos de frades. Faz isso que é bom; mas a mim não me enganes.— Cala-te! — acudiu o judeu. — Cala-te que eu creio em Jesus Cristo e naVirgem.— Fazes muito bem, meu amigo; diz isso a toda a gente; diz-mo também amim...— Se tu ouvisses o frei António Esteves de São Domingos... Queria que oouvisses!... Convenceu-me, reduziu-me ao puro cristianismo com razõesinexpugnáveis. O meu amigo, torna-te à tua fé antiga. Eu pedirei à Senhora daPenha que te ilumine e converta àquele fervor com que lhe pediste remédioquando as ondas te soçobravam...— Pois sim — atalhou Francisco Xavier — , pede lá o que quiseres; masconta-me alguma coisa daquela peregrina Leonor, formosa a mais não poder,


Casas ou não casas? Olha que eu, se lhe não acodes depressa, vou galanteá-la!À fé!, não me leves isto em graça!— Faz a tua vontade — disse triste e serenamente o Silva. — Eu perdi ogosto da vida. O sangue, que me tiraram, era o do coração. Quebraram-mecorpo e alma. A luz de esperança em coisas desta vida, apagaram-ma. Não vêsa minha tristeza sem intermitência de satisfação? Tudo me enfastia, cobreitédio de tudo! Como hei de eu ir associar à minha desgraça aquela menina, tãode luto já no coração de quinze anos!... Para mim e para ela há vulcões quenos refervem debaixo dos pés. de um momento para outro, cairíamosabraçados no abismo de fogo. Um inimigo basta para nos perder; um inimigoque disponha de algumas consciências vendidas! Que se não casem homem emulher em cuja cara a sociedade abriu a ferro o estigma da maldição! Doismalditos que se reproduzem em filhinhos amaldiçoados do mundo! A mãe háde arrancar o peito da boca da criança para seguir o enviado do Santo Oficio;a criança, agonizando de fome, não terá seio de cristã que se lhe abra! Tu nãovês uns meninos esfarrapados, que se aconchegam uns dos outros no cobertode São Domingos? São os filhos dos hebreus, que já morreram queimados, edoutros, cujos gemidos eles poderiam ouvir, se colassem os ouvidos à sparedes negras da Casa Santa, e se os guardas dos calabouços não cortassemcom um tagante as carnes dos que gemem. Aqueles meninos não deviam ter


nascido! Foram gerados na maldição. Foi perversidade dos pais darem a estemundo aqueles padecentes, que vão ali estender as mãozinhas descarnadas...— Aos verdugos do seus pais — atalhou Francisco Xavier. António Joséda Silva fitou com penetrantes olhos o amigo, deixou depois cair o rosto sobreo seio, e murmurou:— É assim... é assim. Os pais e mães daquelas crianças mataram-nos eles;esmagaram — nos debaixo do madeiro do Crucificado...E, erguendo-se de vertiginoso salto, exclamou:— Celerados!, celerados!, que mal fiz eu para martírio tão longo! Se tuvisses como estes ossos das mãos me rangiam entre duas lâminas de ferro quese queriam juntar através das fibras... E o sangue a espirrar debaixo da pressãodo torniquete... Olha!...E mostrava-lhe as fendas da carne esfacelada, e por entre elas o roxo dosossos, com laivos de sangue e o amarelido dos tendões que pareciamcancerados.— E podes ainda levantar essas mãos ao Deus de Domingos de Gusmão!?— perguntou ironicamente Francisco Xavier, voltando o rosto do espetáculonauseento das feridas ressumando pus sanguíneo.


António José pensou por momentos, e disse: — Não me tentes!... Deixa-mecrer para ter vontade de outra vida... Este mundo, sem fé, sem esperança, éum horror inconcebível.— Pois crê! — voltou Xavier. — Mas crê como homem que rejeita Moisése o divino Cristo. Crê em Moisés como num legislador bárbaro, e em Cristocomo num reformador dulcificado pelas doutrinas de Sócrates e de Fílon. Crêno destino do homem para além desta vida. Crê na virtude sã dos sectários detodas as religiões: crê que o verdadeiro Deus está no coração do maometanovirtuoso, do hebreu honrado, do cristão caritativo, do brâmane inofensivo. Sêhipócrita, se te é precisa à vida essa vil qualidade; mas não pervertas a tuainteligência, não aniquiles os teus dons de altíssimo engenho, não bestifiquesas tuas luminosas faculdades.


CAPÍTULO VIIIFrancisco Xavier discorreu longo tempo. Escutava-o silencioso António Joséda Silva. Quando o filho do contador-mor se retirou, a razão abafada dojovem conflagrou-se, como o rápido alar-se da chama, que rompeu súbita porentre as vigas da casa incendiada.Ressaltou-lhe a alma do quietismo letárgico em que passava os dias, no maisrecôndito e escuro da sua casa. Agitavam-no fúrias blasfemas que intimidavama família. Extenuado dos sacões que fazia com os braços ainda quebrados dosjejuns e dores do cárcere, caía prostrado e febril.Esta agitação de alguns dias acabou em sossegado repouso e lúcidoentendimento. Era, já conversável e judicioso nas suas práticas. Ia com o seupai ao escritório, e aplicava-se ao estudo da jurisprudência com tenacidade.Descontinuou as visitas aos mosteiros; mas, tal qual vez, escrevia a doisfrades, que se lhe tinham figurado mais doutos que o comum, e estranhos aosprocessos inquisitoriais, e talvez avessos e censores do procedimento do SantoOfício em grande parte dos seus actos. Ao diante, os dois frades hão de dar desi tão boa conta que a posteridade haja de os louvar como honrados amigos edefensores do talentoso hebreu.A longos termos, António José da Silva visitava Sara, nos primeiros meses.Depois, amiudaram-se as visitas. Por fim, ao cabo de um ano, o coração do


jovem não estava sossegado na presença nem na ausência de Leonor.Esperança inquieta ou inquieta saudade divertiam-lhe a ideia do estudo,mormente do árido estudo do Direito, posto que ele, vasta capacidade paratudo, despachava os feitos que o seu pai considerava dignos de mais hábil eengenhoso articulado.Já o bacharel, quando Oliveira lhe pedia vénia para galantear a judia adorável,sorria ao requerimento jocoso do amigo, e aconselhava-o que dissesse da suajustiça no tribunal dela, por ser o competente.Com as alvoradas do amor, dilucidou-se a escureza das suas cogitações,desnoitou-se — lhe o coração, repontaram ideias claras e alegres, e, a poucasvoltas, fez-se dia esplendidíssimo, vida nova no íntimo e no exterior do jovem.Renasceu o gosto e vocação da comédia. Rebuscou os seus papéis esquecidos;uns poucos existiam ainda, que o maior número deles rasgara-os JoãoMendes, receando que o Santo Ofício fizesse busca e lhes espremesse aherética peçonha que eles, apertados entre mãos de inquisidores, gotejariamcertamente.A ópera, ou comédia, que António José prediletamente polira e repolira emCoimbra, como peça com que tencionava estrear-se, era a Vida do Grande D.Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança. Esta, e mais outras comque, mais tarde, o hebreu levantou a meio a quebrada coluna da sua glória, liaele à numerosa assembleia de fidalgos que Diogo de Barros convidava em


honra do engenhoso jovem. Estas leituras, por onde o seu nome se divulgaraaté às camadas inferiores da cidade, ser-lhe-iam de muito desprazer, se Leonoras não agradecesse, como favor e brinde feito especialmente a ela. Decertoera; que a índole melancólica de António José da Silva desdizia dasgargalhadas com que o auditório vitoriava as cenas ridentíssimas do D.Quixote, da Esopaida e do Anfilrio. E todavia, Leonor, cerimoniosamente, enão do coração lhe agradecia. Do D. Quixote, especialmente, uma cena dasmais cómicas, sem ser das menos urbanas em linguagem — esmero poucousado dos dramaturgos francos e populares daquele tempo — , repetiam-nade memória os admiradores de António José da Silva. É a cena VIII. D.Quixote declama em solilóquio numa floresta, e diz:“Há dias que trago no pensamento uma coisa que me tem causado grandepreocupação! Dar-se-á caso que os meus inimigos encantadores tragamtransformada a beleza da senhora Dulcineia na figura de Sancho Pança! E osmotivos que tenho para isso é ver a paciência com que este escudeiro me aturaas minhas impertinências sem salário nenhum; e ver que jamais foi possívelver eu Dulcineia no seu original e nativo esplendor. Tudo pode ser que seja;pois se leem, nos antigos livros de cavalaria andante, outras transformações deninfas, ainda em mais ruins figuras, qual a de Sancho Pança, e porque estepensamento não é fora de conta, bom será averiguá-lo, que a diligência é mãeda boa vontade. (Entra Sancho.)


SanchoSenhor, o rocinante está esperando que Vossa Senhoria o cavalgue, e temdado tais relinchos, pulos e... que suponho nos prognostica alguma boaventura.D. QuixoteE, se bem reparo agora nas feições deste Sancho, lá tem alguns laivos deDulcineia; porque, sem dúvida, Sancho, às vezes, o vejo com o rosto maisafeminado, que quase me persuado está Dulcineia transformada nele.SanchoO meu amo está no espaço imaginário! (À parte) Ah!, senhor, toca a cavalgar,que o rocinante está selado e o burro albardado. Senhor, Vossa Senhoriaouve?D. QuixoteSim, ouço. Que seja possível — prodigioso enigma do amor! — galhardaDulcineia del Toboso, que os mágicos antagonistas do meu valor tetransformassem em Sancho Pança!


SanchoAinda esta me faltava para ouvir e que aturar! (À parte) Que diz, senhor?, estálouco?, com quem fala Vossa Senhoria?D. QuixoteFalo contigo, Sancho fingido, e com Dulcineia transformada.SanchoSe Vossa Senhoria algum dia tivesse juízo, dissera que o tinha perdido. QueSancho fingido ou que Dulcineia transformada é esta?D. QuixoteNão sei como agora fale, se como a Sancho, se como a Dulcineia! Vá comoquer que for: saberás que os encantadores têm transformado na tua vil esórdida pessoa a sem igual Dulcineia! Vê tu, Sancho amigo, se há maiordesaforo, se há maior insolência destes feiticeiros, que em mascarar o rostopuro e rubicundo de Dulcineia com a máscara horrenda da tua torpe cara!


SanchoDiga-me, senhor, por onde sabe Vossa Senhoria que a senhora Dulcineia estátransformada em mim?D. QuixoteIsso é o que tu não alcanças, simples Sancho; pois sabe que nós, os cavaleirosandantes, temos cá um tal instinto que nos é permitido conhecer onde está oengano e transformação pelos eflúvios, que exala o corpo, e pela fisionomiado rosto.Sancho... Que parentesco carnal tem a minha cara com a da senhora Dulcineia? Oraeu até aqui não julguei que Vossa Senhoria era tão louco! Julgo que nem navida de Vossa Senhoria se conta semelhante desaventura!D. QuixoteQuanto mais te desconjuras mais te inculcas que és Dulcineia; deixa-me beijarteos átomos animados desses pés, já que me não permites tocar com os meus


lábios o jasmim dessa mão, dulcíssima Dulcineia! (Chega-se D. Quixote paraabraçar Sancho.)SanchoAqui-del-rei que não sou Dulcineia! Tire-se lá!, olhe que lhe dou umacanelada!D. QuixoteOra, meu Sancho, diz-me aqui em segredo se és Dulcineia, que eu te prometoum prémio.SanchoComo, senhor, lho hei de dizer? Sou tão macho como Vossa Senhoria.D. QuixoteSancho, nesse mesmo dengue agora confirmo mais que és Dulcineia.Sancho


Ora leve o diabo o dengue! Que queira Vossa Senhoria que à força seja euensanchada, ou Sancho endulcinado! Ora pois, já que quer que eu sejaDulcineia, para cá que lhe quero dar dois coices.Tu me queres dar coices? Agora vejo que não és Dulcineia; pois Dulcineia tãoformosa e tão discreta, nunca podia ser besta, nem ainda transformada paradar o que me ofereces com a tua grosseria. “Acabada esta leitura”, prossegue Costa e Silva, “algumas vezes interrompidapelo riso, Bocage prosseguiu: — Então? Que te parece? Não é isto umalembrança bem original, bem graciosa e bem própria? E o judeu não soubetirar dela um grande partido produzindo uma cena bem cómica? W, esta ideiadevia ter ocorrido a Miguei de Cervantes!“Até aqui o amigo de Bocage. Que outra ordem de considerações maisliterárias e filosóficas não faria Elmano, ponderando o ingente infortúnio doengenhoso hebreu, mormente nos dias que passou no cárcere da Inquisição!Manuel Maria Barbosa do Bocage, se lá tivesse entrado cinquenta anos antes,não sairia para mais longa vida que António José da Silva. As feras deDomingos de Gusmão, na época de Bocage, rugiam apenas, acorrentadas àjurisprudência civil. O marquês de Pombal arrancara-lhes os dentes, eemprestara-lhos uma vez para despedaçarem o padre Malagrida.


CAPÍTULO IXLourença Coutinho, como visse restaurar-se o amor ao estudo, o gosto dascomédias, e o contente viver do filho, entendeu ativamente no consórcioalmejado e prometido de tão longe. Contava ela com a vontade do seuAntónio, e tinha como segura a condescendência de Leonor.Enganou-se na mais importante parte dos seus cálculos. Leonor, assim que asua mãe formalmente lhe lembrou os antigos compromissos, respondeu quesempre considerara brincadeira da sua mãe com a mãe de António o contratode união eterna entre duas pessoas, uma das quais nasceu alguns anos depois.juntou que aceitara a correspondência de António José, para não desagradar asua mãe, e na esperança de, alguma hora, se aproximar e sentir por ele ointeresse que a distância não podia inspirar-lhe. Acrescentou e concluiudizendo que o facto de se aproximarem não era bastante a resolvê-la a casarse,nem a sua idade era ainda própria de tão grave decisão. Pedia, pois, cincoanos de espera; e, aos vinte, se decidiria.Estas razões, literalmente traduzidas, queriam dizer que o não amava. Isto nãoé censurável nem extraordinário. O que a mim me quer parecer louvávelpouco menos de nada é que Leonor, farta de ouvir contar as travessuras, osescândalos e a libertinagem do amante de Joana Vitorina e doutras do mesmojaez, não obstante, sentisse e escondesse de todos profunda e devoradora


paixão por Francisco Xavier de Oliveira, desde que, à saída do tribunal deValhadolide, viu de novo o gentil jovem que a tinha querido salvar, e a suamãe, pela porta da sacristia! O caso não se recomenda aos louvores de quemlê, repito; mas não é estupendo nem culpável. Leonor vira a ansiedade inútildaquele português, soubera depois que a rogos dele saíra pelas desamparadaspresas o alcaide; via-se livre; e, apenas livre, dava de olhos e de coraçãoreconhecido nos olhos e talvez no coração do belo rapaz, que saíra da suaterra para, ao lado do velho Barros, lhe ser guia e companheiro. Raros amorese até poucas paixões nascem e flamejam tão desculpáveis e bonitas!Francisco Xavier, posto que não por amor, antes por cavalheirismo eobséquio ao seu amigo encarcerado, fosse a Valhadolide, durante a jornadateve uns vislumbres do sentimento que fizera nascer. Fechou os olhos da almapara não vê-los; todavia, o coração não se retraía de todo em todo aoshonestos cometimentos da lindíssima judia. Francisco Xavier dizia entre si:“Se ele a não amasse!...“, e ela provavelmente iria dizendo: “Se eles se nãoestimassem...”Ambos compreenderam e como em silêncio se comunicaram o melindre dassuas posições.Ora é certo que Francisco Xavier estava maniatado àquele baixo amor dacigana; estava, e com pejo de si pesava entre mãos o gravame de tãovergonhosos ferros; pode ser, porém, que os quebrasse de impetuoso


empuxão, se Leonor lhe dissesse: “Tenho liberdade para ser tua; podes amarmesem desonra. “Viam-se frequentes vezes na sala de Diogo de Barros. O rosto de Leonoriluminava — se, quando o jovial rapaz entrava, contando bruscamenteaventuras da devassa camarilha do Salomão português, ou rasgadamenteverberava a hipócrita devassidão do clero, sem que os brados da mãe ocoibissem. Leonor antes queria este arrojo que o assustadiço acanhamento deAntónio José; antes as risadas estrídulas do amante das ciganas que asdeplorativas lamentações, e concentrada amargura do flagelado dos cárceres;antes a descrição enérgica e fogosa de uma peça de touro que a leitura de umacomédia.Uma vez, bem se lembram, perguntava Francisco Xavier ao seu amigo seamava Leonor. A resposta foi de feitio que o mancebo poderia, sem desdouro,aceitar a alma que se lhe oferecia sem grandes rodeios. Não o fez assim. Viramque ele curou de afastar as nuvens de sobre o coração do amigo, para que oamor da israelita pudesse lá chegar com o calor da esperança e das alegrias.Depois, ao passo que António José cobrava alento e se reanimava debaixo doolhar menos amorável que piedoso de Leonor, Francisco Xavier afastava-se,pretextava jornadas, ocupações, divertimentos, e — Deus e ele sabiam a dordo sacrifício! — contava na sala de Diogo de Barros, em presença da pálidamenina, as suas paixões passadas, os seus amores presentes, e as suas


esperanças em designadas mulheres da melhor fidalguia, umas para amantes, eoutras para dentre delas eleger a esposa, a companheira da vida.E, no entanto, Lourença Coutinho admirava-se e ofendia-se das hesitações deSara, toda vez que ela a interrogava não já sobre a vontade da filha, senãosobre o tempo de se casarem os prometidos noivos.— Pois tu não sabes?... — perguntava Lourença. — Não sabes quandoserá?!— Não sei... — respondeu Sara enfim, muito apertada pelasimportunações da amiga. — Não sei, porque Leonor não declara quando, eeu, obedecendo à vontade do meu Jorge, não a obrigo a declarar-se; o maisque posso é aconselhá-la; e muitas vezes lhe tenho inculcado as vantagensdeste enlace; mas, se ela me diz que só dos vinte anos em diante se há deresolver, que queres que eu lhe faça? Esperemos, Lourença. O teu filho estánovo; ela está uma criança; os haveres de parte a parte são por enquantopoucos... Esperemos, minha amiga, e gozemos com a felicidade de ver queeles se amam tranquilamente, e não desconfiam da lealdade um do outro...— Mas o meu António não cessa de perguntar... — atalhou Lourença.— Responde-lhe isto mesmo. Diz-lhe que se goze da sua liberdade nestescinco ou seis anos, que lhe não há de faltar tempo de viver cativo dosencargos de marido e pai. Quanto mais cedo se casarem, maior número defilhos hão de deixar para aí provavelmente pobres.


Esta resposta espinhou vivamente o amor-próprio e o coração também deAntónio José. Deliberou-se a interrogar Leonor, suspeitoso de que, poracanhada modéstia, e melindre talvez inconveniente, desmerecesse noconceito da enérgica filha de Jorge de Barros. Mais dolorosa suspeita o feria, eera temer-se de que a bisneta do contador-mor, e a descendente dos Telespela sua avó materna, se quisesse esquivar ao desdouro de aliar-se a umhomem da classe meã, neto de fazendeiros e bisneto de pobres colonosjudeus, que tinham ido de Portugal para a capitania do Rio de Janeiro.Resolvido a desenganar-se por si, procurou o lanço de estar a sós comLeonor. Foi mais lastimável que eloquente. Almas aquecidas ao fogo místicodo ideal são as menos idóneas para expressarem afetos grandes sem seapoucarem nalguma baixeza, de que raras mulheres levantam o homem.Convinha-lhe um airoso orgulho; o amor abateu-o à humildade. A mulher queama não conhece isto; a que é tão-somente amada chama-lhe impertinência esensaboria.Não obstante, Leonor dava-lhe a compensação da delicadeza; e à poesia dapaixão respondia-lhe com a poesia da esperança. Era cedo, dizia ela, cedo parasi e cedo para ele.— Eu tenho sido desgraçada — juntava Leonor. — Fiquei triste, muitomais triste do que era, desde a prisão de Valhadolide. Estou a convalescer dastorturas da alma, que começaram com o falecimento do meu bom pai. As


lágrimas ainda hoje me afogam, quando me lembra, que é para sempre, airremediável perda que sofri. É preciso muito coração para nós passar destastristezas ao contentamento de esposa; e aqueles que se casam, na esperança dedespirem depois os lutos da alma, vão enganados: é o que eu penso, e nemmeu tio Diogo nem minha mãe sustentam o contrário.— Sustento-o eu — disse António José da Silva. — Com aquela décimajocosa que a sua mãe mandou para Amesterdão? Não, Leonor. Não falemosgracejando. O homem, que escrevia aquelas trovas, acabou. Delas me recordoescassamente... Vejo-as como folhas secas da minha primavera. O que eu hojelhe deveria dizer em verso, não sei eu dizê-lo. Lágrimas não se escrevem: ou asdecifra a mulher que ama, ou, senão, Deus. Porque me não ama, Leonor?— Quando lhe disse eu que o não amava, senhor Silva?... — Senhor Silva...Que urbano tratamento! — acudiu o hebreu, com dilacerante sorriso. — Quedesengano! Que calúnia eu lhe assacava quando à minha consciência dizia quea senhora Dona Leonor de Barros me amava...— Eu não sou Dona Leonor de Barros — atalhou a filha de Sara. — SouLeonor Maria de Carvalho. Os meus avós matemos apelidavam-se Carvalhos.O nome do meu pai tenho-o no coração; mas não careço dele nem paravenerar sua memória, nem para me fazer respeitar do mundo. O meu pai temilustres parentes em Lisboa. Não quero que eles o maldigam porque deu osseus fidalgos apelidos à filha de Sara, à neta de uns judeus, que as chamas


queimaram há cinquenta anos em Lisboa. Chame-me, pois, Leonor Maria deCarvalho, que eu hei de provavelmente assim morrer.António José da Silva tomou delicadamente a mão de Leonor, e disse-lhe commavioso enternecimento:— Abra-me com esta mão a porta do paraíso.— Quando for tempo, se Deus assim o tiver destinado.— Diga-me, ao menos... que não chore...— Não chore, que os homens a chorar não parecem bem.— Que fria alma! — murmurou António José.Entraram pessoas à casa onde correu este diálogo. Vinha entre elas FranciscoXavier de Oliveira, que relanceou olhos suspeitos ao rosto do seu amigo, e viulágrimas. Ao mesmo tempo, encarou em Leonor, e traduziu a veementesatisfação que a alvoroçara, no instante em que o vira.Tomou o braço de António José da Silva, e passou com ele ao jardim dopalacete. Pediu-lhe explicação das lágrimas. Silva carecia de respirar no seio doseu melhor amigo. Abriu-se, expandiu-se, desatou novos choros dos olhosinjetados, e referiu sumariamente a prática dolorosa que tivera com Leonor.Francisco Xavier escutou-o silencioso; fez com ele alguns passeios no jardim,e voltou à sala.


— Que novidades conta, senhor Xavier de Oliveira? — perguntou umadas damas da casa.— Não sei quase nada, minha senhora.— Teremos brevemente touros? — perguntou um neto de Diogo deBarros.— Provavelmente teremos, porque chegou a notícia de se ter celebrado ocasamento do príncipe Dom José com a infanta de Espanha. Logo ouvirão orepicar dos sinos que pedem luminárias. No dia treze vai o nosso amigo condeda Ericeira ao paço recitar um discurso panegírico sobre os desposórios daprincesa das Astúrias, e o marquês de Valença recita o panegírico do príncipe.Estes dois sujeitos, de quem aliás somos amicíssimos, se lhes fecharem aválvula dos panegíricos morrem entouridos. Andam há vinte anos a esmoucaras paredes do templo da memória a ver se lá se enfiam por uma fenda. Parece— me que os vindouros não lhes hão de dar mais importância do que a mim!— Cala-te, má-língua! — disse o ancião Diogo de Barros. — Deixa lá osnossos sábios trabalhar na redenção das letras pátrias. Nem todos hão de fazerversos... e travessuras, como tu.— Versos e travessuras, meu prezado amigo, está tudo por um fio. Asrapaziadas cedem o passo à circunspeção, que vai abrir-me o seu plácidoabrigo.


— Aí vem uma mentira das tuas, Francisco! — disse Diogo. — Temos oRoberto do Diabo casado! É o que nos queres encampar?— É o que vai suceder, senhor Diogo de Barros — redarguiu comgravidade Francisco Xavier. — Se eu citar o respeitável nome da senhora quevai ser minha esposa, espero que me façam a justiça de crer que eu não viriaaqui zombar, associando às minhas brincadeiras o nome de uma menina quevossa Senhoria e todos que a conhecem consideram.— Se assim é — disse Diogo — podes dizer, que todos te acreditaremos;mas reflexiona, Francisco!... Não te responsabilizes a dar explicações, se ocasamento se não realizar; nem queiras que a sociedade as dê, se as tu nãoderes.— Refleti — disse Xavier de Oliveira. — A senhora com quem vou casarmeé Dona Ana Inês de Almeida.— Nome respeitabilíssimo, na verdade — acudiu Diogo de Barros — ,tanto por nascimento como por virtudes herdadas e próprias. Conheci muitode perto o pai dessa menina, quando ambos éramos ouvidores na índia. Eledirá qual de nós volveu de lá mais abastado; mas o certo, a que ele não podefaltar, é que pobres fomos e pobres voltámos. Cada um de nós casou com asua prima, e então tivemos casa. Eu desisti da carreira para cuidar dos bens;ele seguiu os lugares, e pela escala da probidade subiu a desembargador dopaço. Parabéns te damos, Francisco, e aos teus pais. Ligas a virtude dos teus


avós às virtudes de uma estrema da família, tão antiga como a tua. Sê digno dofavor da Providência Divina!Durante o dizer de Diogo de Barros, Leonor saiu da sala, pretextandoqualquer coisa. Francisco Xavier viu sem reparar; António José da Silva viu ereparou. As restantes pessoas olharam-se reciprocamente. Uma das senhorasdisse:— Eu dou-lhe os emboras, senhor Xavier; mas...— Mas quê, minha senhora? — perguntou Oliveira. — Consta que DonaAna de Almeida é muito doente do peito, e promete pouca vida.— Assim dizem — disse o jovem — ; mas quem tem tanta vida nocoração dará dela a remanescente para alimentar o corpo, que é o mais fácil desustentar. E, se a vida do coração não bastar, dar-lhe-ei da minha, que é muitae fará o milagre de ressuscitá-la.Anunciou-se na sala que Leonor estava em ânsias aflitivas. Sara saiu logoacelerada, e as damas seguiram-na.António José da Silva acercou-se de Francisco Xavier, e disse-lhe à puridade:— Leonor amava-te.— E eu estimava-a muito a ela, e por igual a ti. Faz de conta que nãocompreendemos este incidente. É necessário que ela me odeie, se porventuraas tuas suspeitas são fundadas.


Os cavalheiros conversaram sobre coisas do Estado. Volvidos vinte minutos,Leonor entrou na sala com risonho e composto rosto. Os homens rodearamnacom perguntas sobre o seu estado.— Não foi nada — respondeu ela. — Foi uma pequena dor que a amizadedas minhas primas exagerou. Sinto-me boa.A conversa continuou. Leonor nunca estivera tão animada. Falou dosportugueses poetas com quem travara conhecimento em casa do seu pai.Recitou algumas poesias de um judeu de Leiria chamado Manuel do Leão, quelá viveu, cantando as festas de Portugal, e lá morreu para que a pátria o nãolevasse ao capitólio de algum auto-de-fé. Citou muitas poesias do judeu; disse,porém, que para si a mais dileta era uma que começava:Recolheram-se os sóis, fechou-se o dia, mas não se abriu a noite, pois se viaoutra manhã... (*)[(*) Vem a poesia no Triunfo Lusitano — impresso em Bruxelas em 1688. Manuel do Leão morreu emAmesterdão de provecta idade.]Muitos compreenderam a alusão. Pobre menina!, Julgou que eram todos tolos,excetuado Francisco Xavier de Oliveira.


CAPÍTULO XAnunciou-se no portão dos Barros o almoxarife do palácio da Bemposta, parahaver de falar à viúva do senhor Jorge, neto do contador-mor Luís de Barros.Sara, assim que recebeu o aviso, lembrou-se logo do Duarte Cotinel Franco, eda misteriosa aversão de Lourença Coutinho ao amigo do seu filho.Duarte, entrado à presença de Sara, expôs difusamente o propósito da suavisita, fundada nos boatos correntes a respeito de um tesouro enterrado naquinta da Bemposta, de um anel transmitido com o segredo do tesouro aJorge de Barros, e da cláusula da escritura de venda da dita propriedade,mostrando o traslado que ele Duarte fizera tirar da nota do tabelião. Dito isto,declarou ser desde menino particular amigo de António José da Silva, o qual,segundo a voz pública, brevemente esposaria a filha do senhor Jorge deBarros. juntou, com muitos recamos de palavreado, que ele desde muitopensava em ser o restaurador daquela riqueza soterrada; e lamentava que aviúva e filha de Jorge de Barros vivessem pobremente podendo gozar-se derica independência. E, portanto, concluindo ao fim de estirada parlenda, ia elesolicitar de Sara que consentisse em ser rica, dignando-se confiar da probidadeinteira e da amizade extremosa do amigo do seu futuro genro, ou o anel, ou adeclaração do local onde Luís Pereira de Barros enterrara o tesouro.


Sara, sem tergiversar, como quem já trazia de muito urdida a resposta, disseque poderia ser que o tesouro existisse na Bemposta, ao tempo do falecimentodo avô do seu marido; sabia, porém, que o revolvimento dos alicerces ejardins da casa, feito por ordem da sua sogra, provavelmente descobriu ocofre, se ele existia. Enquanto ao anel, disse que nunca vira ao seu marido anelcom tal significação, nem lhe constava que ele o tivesse.Redarguiu Duarte Cotinel, lastimando-se de não merecer a confiança dasenhora, e fazendo votos porque ela se não fiasse doutrem, e arriscasse ocompleto perdimento da riqueza; dando assim a entender que julgavamentirosa a negativa de Sara, e verdadeiro o boato do anel.A viúva de Jorge, ao outro dia, perguntou a António José se tinha em boaconta a probidade do almoxarife da Bemposta. Respondeu António que,desde menino, o tratava, e sempre o encontrara leal amigo, homem de bem, edotado das excelentes qualidades que em tão verde juventude o fizeram dignodo almoxarifado da Bemposta. Sara referiu o que passara com ele. AntónioJosé disse que a não aconselhava em coisa de tanto melindre, bem que, se elefosse o senhor daquele tesouro, insuspeitosamente comunicaria o segredo aDuarte Cotinel Franco.A viúva ouviu o parecer de Diogo de Barros, que foi contrário ao de AntónioJosé. A razão com que o velho desabonava o almoxarife não era judiciosa.“De tal árvore”, dizia ele, “não pode sair bom fruto. Eu conheci o tal capelão


da Bemposta, cujo filho é Duarte; conheci-o espião de Castela em Portugal eespião de Portugal em Castela. Foi frade, e secularizou-se depois. Vivia emmancebia escandalosa, e pregava sermões às rainhas mulheres de Dom Pedrosegundo. Fez-se confessor dos infantes, capelão-mor, e qualificador do SantoOfício, tendo começado sua vida na forja do pai, que trabalhava de ferreiro àporta do marquês de Ferreira, à custa do qual fez frades dois rapazes e freirastrês raparigas, que em pequenitas vendiam arféloa na Praça do Terreiro doPaço e na feira do Rossio?No entanto”, prosseguiu Diogo de Barros, “pode ser que ele seja boa pessoa.Será; mas a ocasião, diz o provérbio, faz o ladrão. Esperemos, minhasobrinha. Por enquanto, não se vos é necessário aquele tesouro.“Duarte Cotinel, descoroçoado dos bons efeitos da tentativa, procurouAntónio José, para instigá-lo a mover Sara. O hebreu desculpou-se dizendo,como sempre dissera, que não tinha certeza de existir tesouro nem o anel empoder de Sara.— Mas, se casares com a filha — observou o almoxarife — e o anel te forna mão da esposa, já sabes que aqui estou para te desenterrar o cofre, eentregar-to sem um ceitil de menos.— Sei que o farás, Duarte, e de ti só confiarei o segredo, se algum segredoexiste. Mas o mais certo é eu nunca possuir a mão nem o anel de Leonor...


Eu ainda vi relíquias desta feira há trinta anos, em tempo que a Feira da Ladracomeçava na extrema do Rossio, e abraçava o Passeio Público pelas duas ruaslaterais. Que saudades eu tenho de uma nora que ali gemia no pátio do duque,e daqueles pucarinhos dos alcatruzes! Lastimo o leitor menor de quarentaanos, que não ouviu gemer a nora. nem viu aqueles alcatruzes do pátio doduque, e nem sequer apalpou, como eu, as paredes da Santa Casa quepareciam exsudar sangue de hebreus. Hoje, no lugar dos alcatruzes, está umbarbeiro, que é nora de parvoíces políticas; no melhor do passeio, onde nósgoza sombra... de noite.No local onde gemiam judeus, hereges e feiticeiros, uma vez por outra, geme aarte; e eu, desgraçadamente, deste ofício tão santo como o outro, tambémtenho sido inquisidor.


CAPÍTULO XIDias depois daquele inesperado anúncio de casamento, Francisco Xavier deOliveira, desquitado da influência mágica da cigana, dava a mão de esposo aD. Ana Inês de Almeida, e logo na próxima semana era agraciado com amercê de cavaleiro fidalgo da casa real, e cingia a espada de cavaleiro professoda Ordem de Cristo.Leonor, até então, para sustentar o fingimento, digamo-lo assim, segurou amáscara na cara com penetrantes agulhas. Custava-lhe tormentos indizíveisaquela afetação de indiferença. Devia de estar-lhe muito enraizado na almaaquele amor, tanto mais violento no desengano, quanto abafado estivera norecôndito do peito.Sara adivinhou-a; abriu-lhe com a chave da ternura o mistério; achou umafonte de lágrimas represadas. Ajudou-a a chorar, e diligenciava sempre aliviarlheo coração, chamando-lhas à face. Leonor pediu encarecidamente à mãeque saíssem de Portugal para Amesterdão. Lembrava-lhe as profecias quefizera, ao separar-se dos ossos do seu pai e do afeto extremoso da sua queridagente, dos Sãs que tantos infortúnios, com as suas lágrimas, lhe agouraram.Não ousava Sara contradizer a filha; senão antes lhe pedia que, por piedade, anão acusasse, que o seu arrependimento lhe bastava para castigo e flagelo.


Instava, porém, Leonor na volta para Holanda, como meio de esconjuraremmaiores infortúnios, que maiores lhos pressagiava o coração.Queria Sara condescender; mas não tinha força para romper os laços com quea boa parentela do seu marido a soubera prender, não tendo em vista mais quehonrar a memória de Jorge, nas pessoas mais queridas, por quem ele tantosofrera, e, ao fim de breve e desgostosa existência, deixara pobres. Depois,não saberia Sara dizer que delícias lhe era aquele ar e viver em Lisboa, queridade fidalgos, ameigada de damas, que se não dedignavam de a chamarem suaprima. De mais disto, a amizade de Lourença Coutinho, que não cessava de aquerer disputar à posse dos parentes. Sobrevinha ainda a compaixão deAntónio José da Silva, o qual, a juízo dela, era dotado de excelências raras, epróprias da felicidade de uma esposa. Como se tudo isto não fosse empeçoaos rogos de Leonor, acrescia ainda a esperança ambiciosa, mas razoável, depossuir as riquezas da Bemposta, com as quais sua filha poderia aspirar ajovens de nascimento e bens de fortuna iguais aos tão encarecidos e invejadosdotes de Francisco Xavier de Oliveira.Assim foi protraindo Sara a decisão, até que o tempo deliu a pouco e pouco omaior da dor, de modo que Leonor, condoída da sua mãe, e gravementerepreendida pelo tio Diogo, deixou de falar na ida para Amesterdão, eaparentemente vivia conformada, saindo raras vezes às salas, e quase nunca, selhe diziam que lá estava António José da Silva.


Entrou também o desesperar e o desenganar-se na clara razão do hebreu,depois que ele, com os pés sobre a dignidade própria, lhe escreveu lamentosascartas às quais Leonor respondia com o silêncio ou com uma sequidão aindapior.Naquele tempo, o poeta apaixonado não desdenhava o socorro da musa paraexpressar a sua angústia. Nos tempos de agora, seria ridículo o malfadadoamante que, em vez de prosa a rever lágrimas, enviasse à ingrata quadrinhas desílabas acentuadas segundo a arte.Nas óperas de António José da Silva, representadas anos depois, apareceramalgumas trovas das que ele enviara a Leonor naquele período de excruciantedesesperação. Nenhum poeta de torno quereria hoje assinar, em carta escrita àsua vizinha rebelde, as seguintes quadrinhas que o hebreu mandava suplicarmisericórdia aos pés da desamorável menina:Toda a minha almaSe abrasa amante,E a cada instanteMorrendo está,Mais que os minutos


Só meus ardores;Nos teus rigoresConta não há.Mas, ai 'tirana,Se a quem te adoraFosse esta horaHora d'amar!Se ao leitor se figura que este versejar em redondilha menor era impróprio dealma apaixonada e queixosa; se entende que o verso hendecassílabo, o soneto,o majestoso soneto, foi sempre o respiradouro dos grandes poetas,crucificados no amor, como o amante de Laura, e como o suspiroso cantor deNatércia, aqui tem um dos sonetos que a impassível Leonor recebeu e leuenfastiada:Não intento favores merecer-te,Leonor, quando chego a idolatrar-te;Que excedendo os limites só de amar-te


Nunca os princípios toco de querer-te.Com razão poderias ofender-te,Se ambicioso chegara a desejar-te,Que, para ser mais fino no adorar-te,Sem prémio, o sacrifício hei de incender-te.Amar não é querer; que impura arderaA chama de Cupido, se esperaraFrutos, aonde tudo é Primavera;E, se acaso, ó Leonor, imaginaraQue na tua beleza prémio houvera,Pelo prémio a beleza desprezara.Parece mais engenhoso que apaixonado o poema. Cumpre, porém, saber, porhonra do amante desditoso, que naqueles dias de decadência literária e séculode chumbo da nossa poesia, os poetas, não só amorosos, mas aindapendurados no triângulo, expiravam proferindo trocadilhos, gongorices,


marinismos, uma coisa triste de ler-se, na qual António José ainda foi o menospecador.Hão de dizer os bardos modernos que esta poesia do hebreu é seca,desflorida, sem auras, sem borboletas. Não, senhores. António José da Silvatambém fez à sua esquiva poesias com borboletas. Por exemplo:Borboleta namoradaQue nas luzes abrasada,Quando expira nos incêndiosSolicita o mesmo ardor...Tal, ó Clóris, me imagino,Pois parece que o destinoQuer, por mais que tu me mates,Que apeteça o teu rigor!Se com tudo isto, o poeta não lograva comover Leonor, o defeito não era dapoesia, digamo-lo em pró das camenas dos nossos avós: defeituoso era o


coração da filha de Sara, se é que podemos arguir máculas em objetos quesaíram das mãos de Deus, tão primorosos quanto nos cumpre presumir queele se esmerasse na compostura interna do peito da mulher. Argumentamosfundamentados na perfeição exterior, feitas as exceções, que as há deploráveis,por dentro e por fora.


CAPÍTULO XIIFrancisco Xavier forcejou por avassalar o espírito do hebreu a outra mulher.Nem António José da Silva se deixava alcançar de olhos que poderiam atar-lheas asas da fantasia, nem as senhoras, parentas e conhecidas de D. Ana deAlmeida, se prestavam a ser amadas de um judeu, que, dois anos antes,figurara no auto-de-fé, Francisco Xavier encomiava a levantada inteligência doseu amigo; recitava com entusiasmo os versos dele; abancava-o, nos seusjantares, à direita da sua senhora. Não era tudo bastante para que uma damada sociedade alta se deixasse olhar duas vezes equivocamente pelo filho dajudia Lourença.António José olhou em si e compreendeu a sua posição aviltada nos salões deLisboa. Refugiou-se na soledade do seu quarto, restabeleceu a intimidade quetivera com alguns frades, e consigo e com eles passava as horas, umas depensamento doloroso, outras de recreada palestra literária.De longe a longe, visitava Leonor. Perante ela não proferia expressãoamorável nem queixosa. Escutava as conversas enfadonhas da sua mãe com aviúva; e, se Lourença, alguma vez, de indústria ou eventualmente, falava nosantigos projetos de casamento, em presença de Leonor, António Josédesafiava a menina a sorrir dos desígnios esquisitos das duas mães.


Leonor invejava a sorte das monjas cristãs. Aquele quieto viver à beira dasepultura parecia-lhe o bálsamo divino que a humanidade inventara pararemédio dos seus desgraçados. Disse-o à mãe, que lhe respondeu soluçante.Comunicou as suas esperanças e desejos ao tio do seu pai. Diogo de Barrosachou louvável o intento, menos a profissão, conjeturando de si para consigoque a raça materna lhe seria impedimento, que só os reis e os seus parentescostumavam vencer para darem hábito a cómicas e ciganas, umas que nãopodiam ser enterradas em sagrado, e outras que nem baptizadas eram.Margarida do Monte e a Gamarro eram exemplos recentes, e mais recenteainda o da freira de Santa Joana, amante que tinha sido de um dos infantes,mulher de mais encantos que vira Lisboa? (*)[(*) Esta religiosa, de apelido Silva, morreu esmagada entre as quatro paredes da sua cela no terramoto de1755. A beleza já devia ter morrido.]Aceitou Leonor qualquer convento, e de qualquer modo. Pediu licença à mãe,coadjuvando-se dos rogos do tio. Depois de muito chorarem, mãe e filha,venceu Leonor, com promessa de passar alguns meses de cada ano com a suafamília. Diogo de Barros preparou a entrada da sobrinha no Convento daEncarnação, de religiosas comendadeiras de Avis. Não lhe foi difícil provarque D. Leonor Maria tinha sangue da primeira nobreza, prova condicional


para poder entrar como pensionária. Entrou alegremente para lá se engolfarnas suas tristezas. Má casa lhe escolheram para quem queria viver triste. Ascomendadeiras da Encarnação eram senhoras joviais, festeiras e dadas aoamor. As suas grades eram fontes de Vaucluse, onde mais felizes Petrarcasiam poetar. A liberdade, que estas professas beneditinas gozavam de sair, soba responsabilidade da visita amiga ou parenta que as ia buscar de manhã elevar à noite, era uma liberdade geradora doutras muitas, que de si e por sigeravam variados fenómenos de geração, com os quais andam grandementepovoadas as genealogias dos grandes senhores e grandes senhoras destesreinos. Ainda assim, o vício naquela casa tinha fidalga libré. S. Bento não sehonrava de tais filhas, é isso verdade; mas a organização da sociedade de D.João V não as contava somenos elemento do seu luxo e policiamento.Leonor competia com as mais belas, e primava entre as mais discretas.Mostrou-se, deixou-se ouvir, deixou-se admirar, deixou-se amar; e, depois,sumiu-se no seu cubículo. Chamaram-lhe esquisita, louca, ingrata às dádivasda opulenta mão da natureza. Não importou. Leonor não voltou aospalratórios, nem faltou aos seus deveres de pensionária. Costurava muito, liapouco, e não rezava nada. A filha de Jorge, em coisas de religião, cria emDeus, criador, todavia imperfeito, porque ela, à imitação de abalizadosfilósofos, errava como eles, não querendo ver o perfeito no regirar evolutivodas harmoniosas imperfeições. Qual foi o autor que disse: “Homem solitário,das duas uma: ou santo ou demónio?” Da mulher sozinha, e de Leonor


especialmente, direi que se há santidade, sem beneplácito de Roma, semcamândulas e sem água benta, santa era a filha da judia Sara.Magoavam-na ainda as mordeduras da serpente do primeiro amor; soavam-lheno seio uns rebates de saudades, que, por instantes, lhe enoitavam a mais claraluz do sol da sua cela: assim era; mas ninguém lhe ouvia queixumes, aninguém consultara sobre os linimentos das suas feridas. Sofria calada erisonha?Alegremente recebia as visitas da sua mãe e parentes. Lourença Coutinho ia àEncarnação com o filho, e alguma vez o filho sem a mãe. Leonor recordava-sedas brincadeiras de ambos, na Covilhã, porque a mãe lhas entalhara namemória, contando-lhas frequentemente. Nisto passavam alguns minutos, echamavam-se irmãos.A visita de Lourença e do filho eram-lhe causa de dissabor, porque as fidalgasbeneditinas conheciam de nome Lourença, mulher do letrado judeu JoãoMendes, e mãe do poeta Silva já penitenciado pela Inquisição.Leonor sofria calada os remoques; não se queixava ao tio Diogo, por temerque a tirasse de lá. Aquele sofrimento parecia-lhe menor que o viver e tratarcom muita gente, e o não ter um cubículo seu e defeso, às importunações.E assim passou um ano, e cinco depôs o primeiro, triste sempre, sempreinflexível às maviosas súplicas que lhe fazia a mãe no sentido de aceitar onobre e leal coração de António José.


Corria o ano de 1733. Leonor tinha vinte e um anos. Consoante ela tinhaprometido, era chegado o tempo de decidir-se sobre o seu futuro. Perguntoulhea mãe qual era.— Acabar aqui — disse ela. — Quando a mãe não puder dar-me a pensão,irei ser serva de alguma senhora noutro mosteiro. E Deus sabe que sacrifíciosa mãe terá feito para me sustentar aqui!...— Nenhuns, filha. Ainda tenho algum do dinheiro que Simão de Sã nosdeu, como liquidado da herança do teu pai. Decides não casar com António?— Nenhum de nós seria feliz. Não devo enganá-lo. Falta-me o amor queele merece. Desperdicei-o... mas que remédio tem? Eu expio a minha cegueira,e ele abrirá os olhos quando Deus lhe mostrar mulher mais digna.— E por quem te apaixonaste, filha!... — disse Sara. — Digno jovem eraFrancisco Xavier; não to posso negar, nem sei desfazer naquele briosocarácter; mas, logo que te ele deu como certa a sua indiferença, deviasesquecê-lo, filha...— Não pude; fiz tudo que podia, minha mãe. Tive o pensamento de mematar!...— Deus de Israel! — exclamou Sara. — Pensava em matar-me, quandotodos me viam rir, e falar como toda nós fala das coisas interessantes da vida.Eu sabia que, se o visse, depois, não podia aviltar-me; mas podia acabar


comigo. Fugi-lhe para aqui, Poderia agora vê-lo sem alterar-me... Poderia...mas não quero experimentar. Ouvi dizer que Francisco Xavier enviuvou hádias, e que tem o pai a morrer...— É certo, filha.— Pois tenho pena imensa dele, se amava a esposa, quanto eu creio queela o amasse... Começa a ser infeliz; desanda-lhe a roda. Enquanto foi mau,tudo lhe saía à medida do desejo; agora, que vivia honradamente, morre-lhe amulher e o pai...— E já me disse que sairá de Portugal assim que lhe faltar o pai, porquenão pode viver entre estes desaforados hipócritas.— Faz bem. Quem pudera também fugir daqui!... Se a mãe soubesse quesonhos... que pressentimentos!... Porque hei de eu pressagiar para mim umdesastrado morrer!...— Como, filha? — Lembro-me da Inquisição! Tenho dias que me não saido pensamento o espetáculo horrendo!...— Oh, filha!... por misericórdia, não me assustes!... — exclamava Sara.E, poucas mais palavras ditas, a viúva saiu da grade, e entrou em casaquebrantada, queixosa e doente.Poucos dias depois, Diogo de Barros foi buscar Leonor ao Convento daEncarnação para assistir à perigosa enfermidade da sua mãe. Ao princípio,


quando Sara se queixava de dores da alma e ligeiros achaques do corpo, não seinquietaram extraordinariamente as pessoas, que se esmeravam em dar-lhealívio noutras iguais doenças de espírito; mas, assim que a febre a prostrou, jáa medicina viu-a com desconfiança. A viúva de Jorge de Barros tinhacinquenta e quatro anos; alvejavam-lhe, porém, os cabelos como aos setenta.Desde a morte do marido, o envelhecer foi tão rápido que, ainda sem asangústias e terrores do cárcere de Valhadolide, faria espanto em acabar-se edesfigurar-se assim a mulher, que aos quarenta anos dava invejas àsformosuras em flor de juventude.Leonor, aproximando-se do leito da sua mãe, compenetrou-se da certeza de aperder. Ajoelhou-se a pedir-lhe perdão dos terrores que lhe incutira com assuas visões.— Não foi isso, filha — disse Sara. — A minha morte explicam-na osanos e as desgraças do passado. Vou deste mundo aflita... porque Deus te nãolevou diante de mim.— Oxalá... — murmurou Leonor. — Do mais, que é morrer?, que sou euneste mundo?... que faço eu aqui se nem já me é concedido ver-te feliz, pobremulher?A presença de Leonor parecia angustiá-la mais. A menina retraiu-se a umcanto sombrio da alcova para chorar escondida da sua mãe.


O progresso rápido da doença ao seu termo fatal não dava intermitentes àesperança.Ao quinto dia já a febre maligna se manifestara com os piores sintomas. Osintervalos de razão lúcida eram curtos.Em um destes, Sara declarou que queria morrer na religião cristã, porque sabiaque o seu padrinho Luís Pereira de Barros morrera como um justo, e o seumarido se confiara à Divina Providência, em vida, e pedira no dia final osrecursos de um padre católico. Recebeu Sara os sacramentos corri fervor decatecúmena, Lourença Coutinho, israelita de consciência, assistiu comdesgosto à fraqueza intelectual da sua velha amiga, como ela dizia ao marido.João Mendes da Silva, que então contava setenta e nove anos, quando suamulher escondia o rosto amargurado para não ver as cerimónias da extremaunção,disse — lhe:— Deus sabe onde está a verdade, Lourença!... Nesta religião de Jesus deNazaré vejo que há exemplos de vidas e mortes exemplares. Os cristãosmorrem com uma certeza de castigo e recompensa... e nós...— Também — concluiu Lourença. Um aceno de Sara, que pareciatranquila depois de sacramentada, fez aproximar Lourença e António José.A moribunda pegou da mão de Leonor, e disse-lhe:


— Filha, atende à súplica da tua mãe. Pelas agonias desta hora te peço quesejas esposa deste infeliz jovem.Leonor beijou-lhe a mão, e murmurou: — Sim, minha mãe... serei...— Bem hajas do divino recompensador, filha do meu coração... Eu vosabençoo; sede bons; amai-vos... António, deixo-te a filha de Jorge de Barros...António José da Silva ajoelhou ao lado de Leonor. Começou o arrancar davida. Poucas mais palavras proferiu; foram curtos e quase serenos osparoxismos. Quando pensavam que Sara abria os olhos e lábios para ver econsolar quem a chorava, então foi ela que inclinou a cabeça para o ombro dafilha, e expirou.


CAPÍTULO XIIILeonor manteve a promessa feita à mãe expirante. Pediu que a deixassemdespir o luto de órfã para vestir depois as galas de noiva. Era um ano deimpaciente esperar; mas deliciosa impaciência para o hebreu. Já ele se nãotemia da quebra do juramento. E, para cúmulo de felicidade, Leonor disseralheque seria sua, tanto porque prometera, quanto, ou mais ainda, porque odesejava ser.Morrera, como se esperava, José de Oliveira, pai de Francisco Xavier. Oconde de Tarouca, ministro plenipotenciário em Viena de Áustria, elegeuFrancisco Xavier de Oliveira para seu secretário. Era esta a mais inquietaambição do inimigo dos frades: sair de Portugal, ir para onde pudessedesabafar contra os hipócritas, escolher uma religião, ou menosprezá-lastodas, sem receio de ser incomodado.Despediu-se de António José da Silva vaticinando-lhe que nunca mais severiam, salvo se o judeu procurasse terra, onde sua fantasia pudesse florir aosol de Deus, aquecer — se ao calor das ideias novas, e não estar sempre arecear-se do calor das fogueiras da fé cristã.António José da Silva, cego de amor, não teve olhos que vissem lacrimosos aida do seu primeiro amigo. Sem temor de ofender-lhe a memória, abalanço-


me a conjeturar que o judeu folgou de ver sair de Lisboa o homem, cujo nomeainda alvoroçava o peito de Leonor.Saiu de Portugal Francisco Xavier de Oliveira em 19 de Abril de 1734. Maistarde, iremos no encalço deste homem que vai indo sob o influxo de funestaestrela.O contentamento espertou as glórias adormecidas de António José da Silva, asglórias do teatro. A ópera, que ele tinha concluída para ser posta em cena, eraa Vida do Grande D. Quixote de Ia Mancha e do Gordo Sancho Pança. Acompanhia, que então representava no teatro do Bairro Alto, era boa eamestrada pelas lições e exemplo do famoso cómico espanhol AntónioRodrigues, que em Lisboa vivia lauta vida em galardão da sua eminentehabilidade?Foi D. Quixote para ensaios, que o autor dirigiu, por espaço de dois mesescom incalculáveis aflições! O leitor entendido mais ou menos em artedramática digne-se imaginar que mortificações alancearam o pobre autor, parameter em ordem os seguintes personagens da peça:Dom Quixote. Sancho Pança.A sobrinha de D. Quixote.A ama do mesmo, Teresa Pança, mulher de Sancho. Uma filha do mesmo.


Um tabelião vestido de almocreve. Uma saloia num burro, Sansão Carrasco.O seu criado. Um diabo que vem no carro.Outro diabo com muitos cascavéis Um homem que vem com o leão Belerma,Montesinos. Um que está na cova.Caliope que vem na nuvem. Apolo e as musas.Dois homens que são do moinho. Dois homens do barco. Um fidalgo. Umafidalga. Um meirinho, Um escrivão, Dois homens que locam rabecas. Umhomem que loca rabecão. Um médico, Um cirurgião. Um taverneiro. Umamulher jovem com manto. Uma mulher velha em corpo. Um escudeiro. Acondessa das barbas. Dois rebuçados. Dois homens para a audiência.Ora, todos estes personagens deviam obedecer mais ou menos ao ensino dopoeta, incluindo o burro da saloia, e o leão do homem; porém, as zangas edesalentos de António José da Silva eram incomparavelmente maiores nomodo de fazer funcionar a tempo o chamado “aparato de teatro”, peças demagnífico espetáculo, de que acíntemente dou notícia para encovar o orgulhodos maquinistas modernos. Vejam:Um carro com várias figuras dentro. Uma capoeira sobre um carro, em que iráum ledo, que sai fora ao seu tempo.


Um carro em que vem Dulcineia e várias figuras. Dois cavalos, um de D.Quixote, e outro de Sansão Carrasco. Dois burros, um para Sancho Pança, eoutro para uma saloia.O monte Parnaso com as musas, Apolo, e o cavalo Pégaso. Um barco, Umcavalo que vem pelo ar, e se lhe põe fogo. Uma nuvem. Um porco.Este último personagem não voltou à cena — digamo-lo de passagem —desde António José da Silva. Supunha-se que o senhor Mendes Lealreabilitasse o porco, aqui há anos, quando povoou de camelos o teatronormal. A ocasião era aquela. Como passou, é de presumir que o porco se nãologre de pisar outra vez o palco.Vontade de ferro e coadjuvação dos primeiros talentos de Lisboa em tramoiasteatrais, vingaram que a ópera se mostrasse ao público ansioso na noite de 14de Outubro de 1733.A ordem dos camarotes nobres estava adornada com as senhoras de primeiraplana, que mal se viam por causa das gelosias.O camarote dos frades, assim denominado por excelência, estava recheado debons e devotíssimos teólogos, cujos narizes rúbidos. a custo podiam entreverseatravés das rótulas? Na plateia, a pressão era sufocante. Pagavam-se asentradas a moeda de ouro; e, quando se anunciou que entrava em cena umporco e um cavalo que voava, os bilhetes subiriam a peça, se aparecessemvendedores.


As gargalhadas atroavam compactas desde a primeira cena. Riam os frades emcontorções de júbilo, espirravam as damas simpáticos frouxos de riso, ria todaa gente, menos os poetas de Lisboa, que se tinham enfileirado, de antemãocomprometidos a não acharem graça à comédia do hebreu. Parece quepressagiavam a trovoada eminente, e o raio fulminante da irrisão geral!Chegou a cena VIII do 1.° acto. Ouvem-se músicas melodiosas.D. QuixoteNão ouves, Sancho, uma suave harmonia?SanchoÉ verdade!, espere Vossa Senhoria, que lá vem voando o quer que é!(Desce a musa Caliope numa nuvem, e D. Quixote e Sancho ajoelham. Ocavaleiro da triste figura e o gordo pajem reverenciam a musa, que se abrenestes rogos ao donoso socorredor de aflitos.)Caliope


Valente Dom Quixote de la Mancha, cavaleiro dos leões, eu sou a musaCalíope, a primeira e principal das nove, que assistem no monte Parnaso. Aquivenho aos teus pés enviada pelo meu amo, o senhor Apolo, o qual, como sabeque tens professado a estreita religião da cavalaria andante, e tens de obrigaçãoo desfazer agravos, socorrer aflitos e restaurar honras perdidas, por essa causate manda pedir encarecidamente queiras ir ao Parnaso, aonde se ele acha,cercado de uns poetas malédicos, que o querem despojar do trono; ejuntamente para reformares a poesia, que se acha quase arruinada; para o queeu, da minha parte, como tão interessada neste desempenho, te suplico com osuave das minhas vozes, pois é certo que a música tem virtude para atrair oscorações mais duros.Sancho (À parte)Aqui nos encaixa uma ária à queima-roupa!(Caliope, defeito, cantou, enquanto o bravo pensa no modo de galgar aoParnaso. Põe suas dúvidas à deusa, que lhas corta, arrebatando-o e mais oescudeiro numa nuvem. Aqui estamos já no Parizaso. Começavam acontorcer-se os poetas da plateia, já muita gente os tem de olho, e engatilha arisada para lha desfechar na cara.)


Apolo (Aos poetas)Esperai, bastardos filhos, que cedo virá quem me vingue das vossas injúrias!PoetasJá não te reconhecemos, ó Apolo, por deus da poesia; pois qualquer de nós éApolo, e cada ideia nossa uma musa.ApoloAssim vos atreveis a profanar o decoro que se deve aos meus apolíneos raios?!(Aparecem D. Quixote, Sancho e Calíope.)PoetasToca a investir ao Parnaso!Apolo


Em boa hora venhas, valente Dom Quixote, que só a tua espada me podesegurar o trono e o laurel! Vem, vem a vingar-me destes poetazinhos, que semmais armas que a sua presunção, querem não só competir com o meu plectro,mas ainda intentam despojar-me do Parnaso; e, como as armas e as letras sãotão fiéis companheiras, quero-me valer das tuas armas para a restauração daminha ciência; e, como esta violência, que se me faz, não desmerece osempregos da tua cavalaria, peço-te que me socorras.D. QuixoteSenhor Apolo, eu tomo sobre mim o seu desagravo; e já, desde agora, se podeassentar bem nesse trono que dele ninguém o há de arrancar.SanchoSenhor meu amo, penso que estou a sonhar! Que Vossa Senhoria entre noParnaso, não é muito, porque é louco; porém, eu, que, sendo um ignorante,também cá esteja, é o que mais me admira! E daqui venho agora a concluirque não há tolo que não entre hoje no Parnaso!D. Quixote


Diga-me, senhor Apolo, e como se chamam os poetas que tanto operseguem?ApoloEssa é a desgraça, Dom Quixote; que os poetas que me perseguem não são denome; e, contudo, cada um julga que é mais do que eu mesmo.D. QuixoteDizei-me, poetas de água doce!... (O ator, que proferia a apóstrofe, fitou osolhos na turba dos vates. A hilaridade mal deixava ouvir os bradosretumbantes do esgrouviado cavaleiro.) Dizei-me, rãs que grasnais no charcoda Cabalina! Dizei-me, cisnes contrafeitos, que vos banhais no lodo daHipocrene: com que motivo quereis competir com o deus da poesia?PoetasPorque esse Apolo, como não inspira, não merece o nome de Apolo; e assimqueremos tornar-lhe o Parnaso e reparti-lo entre nós.Sancho


Senhor!, não se meta a brigar com os poetas que são piores que gigantes. VejaVossa Senhoria que eles trazem um exército de dez mil romances, quatro milsonetos, duzentas décimas, oitenta madrigais, e um esquadrão de sátirasvolantes em silva que arranha. Veja bem no que se mete!O ator, que proferia a apóstrofe, fitou os olhos na turba dos vates. Ahilaridade mal deixava ouvir os brados retumbantes do esgrouviado cavaleiro.D. QuixoteNada me assombra; porque eu só com esta espada hei de vencer quantospoetas há no mundo. Cerra Espanha! Viva Apolo!, e morram os traidores!(Grande algazarra.)ApoloA eles, meu Dom Quixote, que a vitória é nossa!SanchoAqui d’el-rei, que estou passado de parte a parte com um soneto em agudos!


D. QuixoteJá fugiram como mosquitos!SanchoAvança!, que com esta gente sou eu gente!...Felizmente para os poetas, com pouco mais, baixou a cortina do primeiroacto. Alguns saíram e não voltaram a expor-se às brutais risadas daqueleselvagem público, de todo desaparelhado dos menores rudimentos deeducação. Os mais briosos propunham-se chibatar o ator, e os mais covardesameaçavam o judeu, em tom comedido que não podia chegar aos ouvidos deAntónio José da Silva.Correu a comédia sempre vitoriada, tirante os lances em que apareciam diabosem cena, porque então os frades do camarote resmoneavam entre si, dizendose:— Como é que a censura deixou passar estas galhofas, que insultam areligião católica?— Bem se deixa ver a cauda do judeu por entre as farsadas da suatramoia!... Queira Deus que o autor não tenha de ir ainda purgar-se destas


fezes que lhe sujam o talento!... — observava um leitor de Teologia doConvento de S. Domingos.Sem embargo, a reputação de António José da Silva estava confirmada pelodelírio da multidão.


CAPÍTULO XIVOs bens de fortuna do advogado João Mendes da Silva permitiam largas aoprazer com que o velho preparava casa com excelentes cómodos para recebera esposa do seu filho.Alugou um espaçoso prédio no Largo do Socorro, trastejou-o com a mobíliadourada, que ainda hoje relembra a época de D. João V, alcatifou ospavimentos, pendurou lustres, vestiu de azulejos o pátio e paredes das escadas,limpou e areou os passeios do jardim, murou de vasos os alegretes, plantoutrepadeiras para afestoar abóbadas de folhagem; em tudo, com menineiraalegria, pensou afanosamente o ancião, pedindo conselhos a Lourença, notocante aos objetos dos aposentos de Leonor.A noiva visitou a sua futura casa, com as suas primas, alguns dias antes docasamento; e, como visse o júbilo do venerável João Mendes, de Lourença edo filho, mais feliz e menos expansivo que eles, disse entre si: “Razão tinhaminha mãe!... Esta família sente e goza as alegrias das virtudes antigas do povoescolhido.”O dia da suprema felicidade da família Silva foi o vinte de Abril de 1734. Asfestas do noivado foram muito gozar na casa de João Mendes, onde apenas seviam os Barros, únicos parentes de Jorge, que cruzavam o limiar de umhebreu. Muitos outros tinham ido suplicantes ao escritório de João Mendes


pedir-lhe a sua ciência; e esses mesmos encostavam-se despejadamente aotelónio de qualquer judeu, quando a bolsa lhes pesava menos que a fidalgasoberba e os cristianíssimos escrúpulos. É verdade que estes, depois, lançavamlenha à fogueira dos credores, e assim saldavam contas, convictos de que JesusCristo, no juízo Final, sairia em defesa deles, contra as objurgatórias do Diabo,e depoimento dos judeus roubados. Santa gente, que não tem menos razão deser canonizada que Pedro Arbués, do qual dizem que vai rezar o calendário.Leonor estimava profundamente seu marido: a consciência não a deixavadoer-se da falta daquele sentimento. A profunda estima dela valia mais que asuperficial paixão de muitas. António José da Silva não sentia necessidade deser mais amado. Se ele tivesse conhecido carícias doutras, denguices usuais econvencionais, delírios de poesia, que desfecham num insulso prosaísmo aoterceiro mês de vida marital, pode ser que Leonor lhe parecesse fria,fleumática e desamorável; porém, como ela tinha sido a mulher única da suaesperança, e perdida da sua alma a considerara, tudo que a outrem pareceratibieza de afeto, se lhe afigurava a ele amor, juízo, reflexão, e pode ser que umquebranto das amarguras da vida passada.O hebreu, aporfiando em contribuir com metade das despesas necessárias àdecência da sua casa, trabalhava muito e de fervorosa vontade nos negóciosforenses, sem, contudo, levar mão das suas composições teatrais.


Poucos dias depois de casado, assistiu ele com Leonor à primeirarepresentação da sua segunda comédia, intitulada: Esopaida ou Vida deEsopo. Nos dias deste nosso século bem criado qualquer marido queescrevesse a Esopaida não levaria sua mulher a vê-la em cena, e menos lharecitaria em família. E, naquele tempo, de tantos frades e virtudes, as coisas efrases que se figuravam e diziam no palco eram tais que hoje a polícia prendenós desbocada que as diz na rua. Aquelas senhoras não tinham nem deviamter mais melindroso ouvido que a virtuosa e pia corte de D. João IR, à qualmedianamente incomodavam as facécias obscenas de Gil Vicente, e orecitativo lúbrico e sórdido do choro de Maria Parda.A segunda comédia corroborou o triunfo que o judeu alcançara na primeira.Andava — lhe o empresário de mãos postas rogando que lhe nãodesamparasse o teatro e o público para quem já nenhum outro autorportuguês ousaria escrever, sem plausível susto de ser assobiado.Em Maio de 1735, novo drama de António José acudiu à ansiedade dasturbas, que tinham desamparado o teatro. Chamava-se a ópera: Os Encantosde Medeia. Esqueceram as vitórias das anteriores comédias, deslumbradas pelaúltima. O autor saiu nos braços da melhor gente, que frequentava o teatro daMouraria. O conde da Ericeira dignou-se visitá-lo no camarote, e chamar-lheo Aristófanes português.


Em Junho deste ano, morreu João Mendes da Silva com oitenta e um anos deidade, abençoando esposa e filho, e a carinhosa Leonor que lhe colheu aúltima luz dos olhos embaciados, e se viu espelhada neles através das lágrimasdo trespasse. Lourença Coutinho exorou muito a Deus que a levasse então; ojuiz incompreensível indeferiu o requerimento.Em Maio do ano seguinte, apesar do aumento do trabalho de escritório, que aclientela levava ao filho, tão famigerado como o pai, representou-se a quartaópera de António José, denominada: O Anfitrião.O hebreu tinha inimigos, não poderosos para o afrontarem barba por barba,mas de sobra infames para o indisporem no conceito dos piedosos. Azou-selhesa oportunidade na récita de O Anfitrião: aqui se fala em cárceres, embárbaros juízes, em patíbulos, em polés. António José não estudara a filosofiado anexim. Não falar de corda em casa do carrasco.”A palavra polé ia vibrada ao camarote dos frades, que — digamo-lo em honrada arte — estava sempre empilhado deles. No drama, um personagem entreferros recitava os seguintes versos:Sorte tirana, estrela rigorosa,Que maligna influes, com luz opaca,Rigor tão fero contra um inocente!


Que delito fiz eu para que sintaO peso desta aspérrima cadeia,Nos horrores de um cárcere penoso,Em cuja triste lôbrega moradaHabita a confusão e o susto mora!Mas ó deuses, se sois deusesComo assim tiranamenteA este mísero inocenteChegais hoje a castigar??Os poetrastos, açoutados no D. Quixote, farejaram impiedade no quarteto; osfrades viram clara alusão à injustiça do encarceramento no Santo Ofício.Estas interpretações chegaram ao conhecimento de Silva. Indignaram-no, elogo protestou não mais escrever para intérpretes estúpidos e malvados.Protestos de dramaturgo! A paixão era despótica, e tanto que venceu lutandocom os rogos de Leonor no sentido de manter inquebrantável o protesto demais se não expor às insídias de inimigos invejosos.


Tanto assim, que já no mês de Novembro de 1736, apareceu no teatro com oLabirinto de Creta. Estava cheio o teatro e os inimigos a postos para notarema lápis as frases suspeitas. O autor esmerara-se em não dar brecha àmaledicência. Não se vos depara frase ambígua nem expressão bicara nolongo drama: os celerados, porém, escavaram, escavaram até poderem mostrarintenção ofensiva e atentatória da religião cristã. Sem embargo, porém, daparcialidade odienta, os aplausos excederam as ovações passadas.Já se não irritou António José contra os biltres difamadores. Prometeu vingarsecom a fecundidade do seu talento, e preparou duas óperas para o anoseguinte. Apresentou a primeira no Carnaval de 1737, conhecida pelo título deGuerras do Alecrim e Manjerona; e, depôs esta, deu para ensaios asVariedades de Proteu.— Não quero outra vingança! — dizia ele à esposa — , hei de afastar estescães dos calcanhares com a nobilíssima arma que eles não merecem. Provarlhes-eique fundo o teatro nacional, enquanto eles escavam com as garras asepultura da sua inutilidade. O conde da Ericeira encarregou-se de dissuadiralgum inimigo dos temíveis que tenho. Os outros, os invejosos, hei deesmagá-los debaixo do peso da sua ignominiosa paixão.


CAPÍTULO XVDevíamos ter feito uma solene e festiva paragem no ano de 1735. Neste ano,aos cinco de Outubro, Leonor foi mãe. Era uma menina, que na pia batismalrecebeu nome de Lourença, por chamar-se assim sua avó e madrinha. Diogode Barros, que já o tinha sido do casamento, foi padrinho da neta do seusempre chorado Jorge de Barros.Então se consumou a felicidade de Leonor. Sentiu ela, ao estreitar ao seio afilha, que lá do íntimo se desentranhavam afetos novos, alegrias doidas,consolações inenarráveis. Parece que daquela superabundância de amor,grande parte vertia ela no coração do marido. Agora, sim: amava-o,ternamente o amava, descobria o sacratíssimo mistério do amor de esposa nasdelícias da maternidade.O primeiro aniversário de Lourencinha foi festejado com pompa. AntónioJosé da Silva abriu as suas salas aos amigos que a sua reputação lhe criara. Asociedade dos dignos homens de letras, que frequentavam o palácio dosEriceiras, gratamente se curvou a beijar no berço a filhinha do mais festejadoe popular talento do país.Agora, atemos o fio no ponto em que deixámos este ditoso pai planejandoinstrumentos para afronta e completa vingança dos baixos de traidores.


Neste tempo, recebeu António José da Silva, como em todos os paquetes,carta do seu amigo Francisco Xavier de Oliveira, respondendo na máximaparte às queixas enviadas pelo hebreu das interpretações caluniosas que agentalha literária dava às suas óperas, no intento de irritarem contra ele oSanto Ofício.Francisco Xavier dizia-lhe que saísse de Portugal quanto antes; porque se orastilho da pólvora chegava à Santa Casa, não havia forças de contramina, e aconflagração seria inevitável. Lembrava-lhe Holanda, Itália, Inglaterra comopaíses libérrimos, e alentadores de altos corações e espíritos. Prometia-lhe, seele a quisesse, posição honrosa na embaixada do ministro conde de Tarouca,homem de boa alma que tinha-o de estimar grandemente. Depois, contava-lhea realização do seu casamento em Viena com Mademoiselle Eufrosina dePuecbberg e Enzing, menina de virtudes condignas do seu distintonascimento, bem que desprovida de dote. Relatava muito de espaço edesenfadadamente um episódio que lhe sucedera, quando foi ao consistórioprestar juramento de que a sua primeira mulher tinha morrido. Trasladá-lo-eicomo ele o reconta no seu Amusement périodique do mês de Julho de 1751.Antes, porém, do extrato, releve-me o autor que por pouco tempo o detenhapara me ajudar numa averiguação importante, quando se trata da biografia,mas rápida que seja, de tão celebrado sujeito.Dizem unanimemente os biógrafos de Francisco Xavier de Oliveira que elesaíra de Lisboa, na qualidade de secretário do conde de Tarouca, para Áustria,


em 1734. Uniformes asseveram que ele ia já viúvo da sua primeira mulher, D.Ana Inês de Almeida. O senhor Inocêncio Francisco da Silva, enúnenteesquadrinhador dos traços principais da vida dos escritores que biografa noseu valioso e prestantíssimo dicionário, diz com referência a Francisco Xavierde Oliveira, firmado no parecer unânime dos seus antecessores, o seguinte:“achava-se no estado de viúvo, quando por óbito do seu pai foi nomeado parao substituir na qualidade de secretário do conde de Tarouca, então ministroplenipotenciário em Viena de Áustria. Aos 19 de Abril de 1734 saiu a barra deLisboa, deixando a pátria, para mais não torná-la a ver. “Ora, se Francisco Xavier saiu viúvo de Lisboa em 1734, e passou as segundasnúpcias em Áustria, seria absurdeza irrisória dizer-se que ele casou segundavez em 1733, isto é, que passou a segundas núpcias antes de viúvo da primeiramulher. E, entretanto, o leitor tem de julgar entre o Cavalheiro de Oliveira eos seus biógrafos, depois de ler as textuais palavras que vou copiar danarrativa propriamente dele: “An 1733, ayant résolu de contracter de secondes noces àViennel, je fus obligé de prêter en personne serment devant le consistoire de cette ville, quema première femme était morte, etc. “ É ele pois quem assevera que deliberoumatrimoniar-se segunda vez em 1733, um ano antes da sua saída de Portugal,consoante a data assinada pelos biógrafos melhormente informados. Poderáconjeturar-se que a realização do casamento foi posterior alguns anos àdeliberação de casar? Não: a hipótese é prejudicada pela afirmativa de que elesaiu de Portugal para Viena em 1734: fora preciso que ele fixasse, ao Menos,


este ano, para poder vingar a hipótese da distância temporária entre o intentoe a realização. Neste caso, por qual das datas se decide o leitor? Inclina-se acrer que todos os biógrafos se enganaram, por ser Francisco Xavier deOliveira a autoridade mais verdadeira em coisas que lhe principalmente a eletocam? Não concordamos. Eu abundo no que está dito e confirmado porbiógrafos que deviam examinar competentemente o ano em que FranciscoXavier enviuvou, e o ano em que saiu de Portugal. ao meu juízo, aincongruência destas datas procede de um erro tipográfico na última letranumérica do ano designado no periódico do Cavalheiro de Oliveira. Apublicação era feita em Londres, e eu suspeito que o escritor, naquele ano de1751, tivesse a vista muito debilitada pelo chorar, senão pela fome. Viu mal asprovas, falta que muitas vezes nos oferecem estes dois volumes. Se tal suspeitase figura argumento pouquíssimo ou nada sólido, a favor dos erradosbiógrafos do Cavalheiro de Oliveira, então vejamos se o Cavalheiro deOliveira se desmente.Que discussões eram estas do Cavalheiro com o conde?Escreve Francisco Xavier: “ — A suprema loucura — , me dizia o conde deClaravino, é o casamento, e eu não sei qual seja a estação da vida apropriada asemelhante tolice! O casamento é o pior dos males: é uma escravidão, uminferno! — “Estais em erro, senhor” lhe repliquei. — O casamento, no meumodo de ver, é o mais belo, mais cómodo, feliz e útil estado da vida. Erradoandaria eu também se dissesse que em todo casamento se associavam aquelas


excelências; mas que há aí casamentos em que elas se conjuntam, issoacreditei-o sempre e acredito ainda. Devo pugnar por tal estado. Aquele emque eu me vejo é tão desgraçado que só a selvagens convém...”Esta prática ou discussão com o conde de Claravino deu-se em 1735 e aindaem 1736. Não há aí, pois, mais evidente coisa que a impossibilidade de ter oCavalheiro casado segunda vez em 1733. Aí está, portanto, justificada aafirmativa dos biógrafos enquanto ao ano da ida do Cavalheiro para a Áustria.Parece-me agora de todo aceitável a hipótese do erro tipográfico, porque éinadmissível a leveza da contradição em escritor tão refletido.Está o leitor enfastiado já destas académicas esgaravatações. Indulte-as àquelerâncido achaque dos muitos anos que inclinam os velhos a esta coisa depeneirar a poeira dos séculos; donde resulta sair-se nós com os olhos cegos depó, sem achar pedra que valha na joeira. De mais disso, a mim custava-meque, se alguém visse a errada data destes livros do Cavalheiro, me arguisse deinventor de anacronismos inculcadamente históricos.Vamos agora todos melhorar de sorte, assistindo a um lance, com o qual sehão de ensoberbar os atuais cavaleiros da Ordem de Cristo, pelo que já daquidou os parabéns ao meu barbeiro.Narrava, pois, Francisco Xavier então a sua ida ao consistório alemão para darjuramento da sua viuvez, e continua agora:


“À entrada do tribunal o porteiro pediu-me a espada. Recusei-me. Deu-separte ao bispo-presidente da minha recusação. O prelado, que me conhecia,mandou-me dizer por um dos conselheiros, que eu devia submissão às leis dopaís, e antigos usos do consistório que não permitiam entrar alguém deespada. Redargui que o principal adorno da minha ordem consistia no uso daespada; e que um dos seus maiores privilégios era poder, e até dever trazê-laem todo o tempo, sem exceção do acto religioso da comunhão, a qual me erapermitido receber de espada à cinta. Fez-me o bispo saber que o conde deSinzendorf, poucos dias antes, indo ao consistório, não duvidara deixar aespada em poder do porteiro; que eu bem sabia que ele era cavaleiro doTosão, e podia contentar-me com tal exemplo, e segui-lo. Retorqui aoconselheiro que a Ordem do Tosão, conquanto ilustre, não fruía os privilégiosque os papas e outros príncipes tinham conferido às ordens militares. E, quetendo eu a honra de professar uma destas, não cabia no meu arbítrio despojarmedela, entregando a espada, da qual nem o rei propriamente podia privarme,salvo sendo eu culpado de crime de lesa-majestade. Enfim, disse eugracejando, mais facilmente prescindo passar sem a mulher que sem a espada:uma posso renunciá-la, a outra não.O conselheiro irritado pelo gracejo, ou cansado de mensagens, me disse de másombra: — Espanta-me que o senhor pretenda ser preferido ao conde deSinzendorf, e não distinga entre pessoas! — Respondi: — As distinções nãoestá o senhor conselheiro no caso de as fazer: não é o Cavalheiro de Oliveira


que contende com o conde: é a Ordem de Cristo com a do Tosão. Faz-memuito favor se se dignar participar isto ao senhor bispo.O bispo, depois, mandou-me entrar num quarto, onde estive sozinho umaboa hora. Em seguida, mandou-me ir ao consistório, e prestar juramento,corri a espada à cinta. Desculpou-se do acontecido dizendo que ignorava ouse tinha esquecido de que a Ordem de Cristo era militar...Desta enfatuada narrativa, passava Francisco Xavier a contar os escandalososamores de D. Luís da Cunha, ancião de oitenta anos, ministro de Portugal emParis, o qual se apaixonara na Haia por uma senhora Salvador, judia,pertencente a uma família hebraica estabelecida em Holanda, e a traziaconsigo pelo mundo. Conta que estivera ceando com ele e ela, e pasmara dotemperamento amoroso do decrépito ministro, quando lhe ele disse: “Semamor não há vida feliz; a paixão do amor é o mais agradável negócio da vida, etodos os prazeres são enjoativos, se o amor os não aduba.“ E, dito isto,tomara a mão da bela, e exclamara:Est-i rien de plus beau que Vinnocente flamme,Qu'un mérite éclatant aflume dans une âme?Et serait-ce un bonheur de respirer le jour,Si dentre les mortels on bannissait


Vamour? Non, non, tous lesplaisirs se aôutent à le suivre,El vivre sans aimer n 'est pas proprement vivre.E, depois, a Salvador, pela sua vez, tornou a mão do velhinho, e declamou:Avoir un amant d'un mente achevé,Et sen voir chèrement aimée;C'est un bonheur si haut, si relevé,Que sa grandeur nepeut être exprimée.Francisco Xavier mostrava-se vivamente compadecido da senil miséria de D.Luís da Cunha, aliás habilíssimo ministro; porém, o que ele não podiaperdoar-lhe era o escândalo de conferir a Ordem de Cristo à Salvador,lançando-lhe ao pescoço o cordão e a cruz que ela usava publicamente,denominando-se “cavaleira da Ordem Real de Portugal!“Como quer que seja”, terminava Francisco Xavier escrevendo a António Joséda Silva, “sai daí, vem para este grande mundo, onde há ridiculezas destetamanho; vem gozar a vida, repartindo-a entre a seriedade do estudo, e as


ilhantes futilidades, de que nós se pode rir impunemente. Enfardela atrouxa, e parte o mais breve que possas... “— Que te parece? — perguntou António José a Leonor. — Vamos! —exclamou ela — , mas o tesouro da Bemposta ?


PARTE QUARTA


CAPÍTULO IO expediente de vingança, que mais nobre se oferecera ao honrado ânimo deAntónio José da Silva, não dava os esperados efeitos. A guerra, primeirosurda, já rumorejava nas praças, nos conclaves pios e, pior que tudo, nascavernas do Santo Ofício.Duarte Cotinel Franco procurou, com magoado aspeito, o seu amigo deinfância para lhe recomendar precauções vigilantíssimas, assegurando-lhe quedo seu pai, qualificador do Santo Ofício, soubera que uma pavorosatempestade se estava formando sobre a cabeça do inocente autor das óperas;e, com imenso desgosto, era ele ineficaz a conjurá-la com o raciocínio.Disse António José a Duarte Cotinel que se dispunha a sair de Portugal, tãodepressa liquidasse o valor dos poucos bens que herdara.— E o tesouro da Bemposta fica? — perguntou Duarte.— Se fica!... Sei eu, porventura, se tal tesouro existe?! — E o anel nãochegaste a vê-lo? — Não há anel nenhum, homem!... — tomou António. —Em horrível anel de ferro me querem cingir e afogar o pescoço estes cafrestonsurados a quem eu não fiz mal nenhum!


E, com palavras desviadas do assunto do anel, o hebreu foi declinando aconversa para esquivar-se a perguntas, e respostas falsas com que se lhemortificava a consciência.Duarte deixou-o a pensar no tesouro. — Seria uma doidice — dizia AntónioJosé a Leonor — sairmos de Portugal, sem ao menos levarmos a certeza deque já foi roubado o cofre do teu pai. A riqueza, se é tanta como diz o rol,dar-nos-ia em toda parte do mundo uma folgada vida. Porque não tinha tuamãe confiança neste Duarte?— Porque eu lhe disse que a não tivesse — respondeu LourençaCoutinho. — E a ti, filho, conjuro-te que a não tenhas. Vai perguntar a Diogode Barros que casta de gente é esta dos Cotinéis.— Mas — tomou António — se eu fizesse as coisas de modo que nãopudesse ser logrado por Duarte? Se eu fosse pessoalmente desenterrar otesouro, e trouxe-osse comigo?— Acho que ele seria capaz de te matar lá mesmo!— Ele quem? Duarte?! — Sim, Duarte.— Ora, minha mãe!, está formando um injusto e ultrajante conceito dohomem! Que é dos crimes dele que a autorizam a conceituar assim um rapazque nunca nos fez mal, e de toda nós recebe provas de estima, e foi elevadopela sua honra ao grande emprego que tem no paço dos infantes!


— António, não te fies nele! Que interesse pode ele ter — replicouLourença Coutinho — em que tu aches e possuas o tesouro! Se tantas vezeslhe ternos dito que o tesouro é uma fábula, ou, se não é fábula, é coisaperdida, para que anda ele sempre a falar-te no anel do contador-mor?— É porque se mortifica, pensando que desconfiamos da sua lealdade... Eentão, Leonor, como entendes tu que procuremos desenganar-nos?— Eu sei!... A dizer verdade, o tal Duarte não me merece confiança; maspode ser que todos desacertem, menos tu, António. Dizes que irias tu mesmobuscar o cofre, e trazê-lo para a tua casa. Se assim for, não sei realmente comoDuarte possa roubar-to. Pode ser que a ideia dele seja receber uma porção dosobjetos. Se for isso, dá-se-lhe alguma coisa, que nos há de ainda ficar muito.Pois que outro intento há de ser o dele? Fugir com o tesouro? Isso não o faziaele, porque era perder a honra e o bom oficio que tem com esperanças deoutro melhor. O que ele quer é que o remuneres, e tu lhe darás o que for datua vontade, meu amigo. Contudo, não te animo nem desanimo. Faz o queentenderes, sem desfazer nas apreensões da nossa mãe.António José da Silva andou pensativo muitos dias. Atormentava-o o tesouro!Aquele foco de peçonha que destilara lágrimas, desgraças e ódios, no espaçode quase cinquenta anos, desde o dia em que Luís Pereira de Barros preferiraJorge entre seus irmãos com afagos prometedores da herança do segredo, atéàquela hora, para além da qual Lourença agourava novos desastres.


E, ao mesmo tempo, o conde da Ericeira e outros amigos de igual tomodiziam-lhe que saísse de Portugal por alguns anos e voltasse em melhor época.O conde lembrava-lhe que fosse a Paris estudar os grandes mestres da artecénica, aquecer-se aos átomos luminosos daquele ar todo ciência, todoinspirações, e voltasse depois a continuar a sua primazia no teatro, de teor quepudesse lustrosamente reformar, senão criar, a arte dramática em Portugal.Abraçava o hebreu alegremente estes conselhos, e retocava a sua óperachamada o Precipício de Faetonte para a fazer representar como triunfal adeusque ele dava a ingratos, a estúpidos e a celerados malsinadores da suaconsciência!Precipício de Faelonte!, que título tão pressago!... que funestos agourosLeonor aventava daquele título significativo de desastre!Duarte Cotinel, depois da representação vitoriada das Variedades de Proteu,em Maio daquele ano de 1737, procurou-o para lhe mostrar os relanços efrases da comédia, que, por ordem da censura, a requerimento do inquisidorgeral,tinham sido riscadas.Algumas frases eram estas: “Amor nos homens é o mesmo que querer bem;nas bestas muares é o mormo, e nos outros animais apetite.“— Então isto em que ofende a religião ou os bons costumes? —perguntou o hebreu.


— Não sei.— Provavelmente os censores não querem que o seu amor seja mormo!— Há de ser isso... — obtemperou o risonho Duarte. — Que maisriscaram?— Isto: “ Isso é glória do céu da boca “: dizem que metes a riso a glória docéu.— Menos a deles, que é a bem-aventurança dos parvos. Que mais?— Dizem que fazes galhofa do inferno, quando escreves isto: “Na glóriado amor há sombras do Inferno. “— Ora!, não os mando para lá por não injuriar o diabo com tais hóspedes.Tu dirás onde os hei de mandar.— Dizem mais que ultrajas as leis divinas do casamento.— Aonde?, na minha casa, ou na deles? — Na comédia. Aqui está oescândalo: “ E quem seria o magano que tal lei inventou? (a lei domatrimónio) Foi Apolo em despique do rigor de Dafrie. “— Basta! — exclamou António José. — Pleníssima liberdade a essesburros de escoucearem a minha comédia! Sujem e risquem à vontade ossevandijas. Não quero ver mais nada. Cafraria hedionda, terra empapada emsangue e lágrimas, não comerás meus ossos!


— Olha mais, António. — Não quero: faz-me nojo tudo isso, nojo evergonha de ser português! Vou mandar buscar ao teatro o Precipício deFaetonte... Vou queimá-lo...— Mas não digas nada, meu amigo... Lembra-te que em Portugal não sequeimam só óperas. Prudência, prudência, António! Qualquer denúncia podehoje perder-te.António José refletiu, abraçou Duarte, e murmurou circunvagando os olhos,como se receasse ter sido escutado:— Tens razão, Não direi nada... Tratarei em fugir, já que me não querem...O meu amigo, amanhã vou procurar-te, preciso falar contigo a sós. Ao meiodia.Lourença Coutinho ouvira as últimas palavras do filho, porque o espiavasempre que Duarte Cotinel estivesse com ele. Assim que o almoxarife saiu,entrou ela, perguntando:— Que vais fazer amanhã a casa de Duarte?— Vou lá... preciso lá ir — respondeu de má catadura António.— Vais descobrir-lhe o segredo?— Não sei. Que assédio! Que importunação!... A minha mãe quer voltar àsmasmorras do Santo Ofício? Quer ver como os meus ossos estalam noCampo da Lã?


— Oh, filho!, que desatinos estás dizendo! — exclamou a atribulada mãe.— Preciso sair de Portugal, entendeu, minha mãe? Quero salvá-la, salvarme,e a minha mulher, e a minha querida filhinha... compreende bem estaresolução feita, depois de cabalmente informado da sorte que me preparam osalgozes, cujos aparelhos de tormento já eu experimentei nestas mãos e nestesbraços?— Pois, sim, meu filho, fujamos.— Fujamos sim; mas sabe Vossa Senhoria a quem eu devo o aviso daminha futura sorte, se me aqui demorar? É a este excelente rapaz que a minhamãe detesta! É a Duarte Cotinel que me fala com as lágrimas nos olhos e ocoração nos lábios! Sou-lhe grato, estimo-o, prezo-o como ao meu irmão. Osoutros lisonjeiam-me, e perdem-me; ele, notando as minhas imprudências,manda-me fugir.— Pois sim... mas vais dizer-lhe onde está o tesouro?— E que vá? Isso que monta?— Nada... — balbuciou Lourença Coutinho, como assustada daexasperação do filho.Leonor aproximou-se da sogra, e disse-lhe afavelmente:— Deixe-o lá, mãe, deixe-o que ele já tem experiência da vida, e deveconhecer Duarte melhor do que nós...


CAPÍTULO IIDuarte Cotinel esperava em alegre sobressalto o hebreu. Falava em solilóquio,como quem precisa expandir-se, comunicar o seu rejúbilo aos seresinanimados. “Afinal”, dizia ele à sua sombra, ao demónio exultante da suaconsciência, “afinal o meu pressentimento não era um sonho. Posso ser rico! “Às onze horas entrou António José da Silva na casa do almoxarifado daBemposta. Saiu Duarte a recebê-lo, e disse-lhe com melancólicos esgares:— Virás tu despedir-te, meu querido amigo?— Ainda não. Porque mo perguntas? Queres dizer-me que devo sair já?Sabes alguma coisa?— Nada mais sei, António — respondeu com indecisão Duarte. — E tusoubeste mais do que eu te disse?— Não.— O Santo Ofício anda em cata de provas, que até hoje lhe não destesatisfatórias. Bem sabes que esta gente, quando se resolve a vitimar algumassinalado pelo ódio deles, sepulta-o nas masmorras, e depois inquire dasprovas. E estas também tu sabes que saltam da boca dos torturados, quandohá míngua de testemunhas para levar o processo à Relação, Por isso, meuamigo, não descansemos sobre a tua inocência. Fugir enquanto é tempo;


todavia, persuado-me que não é apertada a urgência de fugir já. Arranja osteus negócios, vende clandestinamente, se puder ser, os teus bens, que poucose fáceis de vender, creio que são. Pobre sais de Portugal; mas em Amesterdãoacharás hebreus que te socorram; e, se te valeres dos teus irmãos do Rio deJaneiro, que estão ricos, poderás obter casco e fundos para negociar e auferiro que as letras não podem dar a ninguém. Vais pobre, meu caro António! Oteu pai, no trastejar a casa em que moras, gastou alguns punhados de ouro,segundo corre; e tu consomes mais do que lucras para manter tua senhora emfidalgas regalias. Não te culpo disso, que ela, além da nobreza do seu pai, tema nobreza própria que a toma digna de estar em cadeiras de ouro, e servir-secom princesas. A Providência, dando-te aquela menina, indemnizou-te dasamarguras que os homens te causam com tanta crueza, que é vergonhoso falara língua destes bárbaros, que dizem falar a linguagem dos apóstolos... O meuamigo, sabes que eu espreito a borrasca inevitável que te ameaça; por agora osventos sopram de bom lado; assim que eu vir escurecer-se o céu com assombras do inferno, aviso-te. Isto já frequentes vezes to disse, António.Agora, se tens algumas ordens a dar-me, aqui estou. Queres talvez que eu meencarregue disfarçadamente da venda das tuas coisas? É isso?— Não é... Vou abrir-te a minha alma! — disse expansivamente AntónioJosé.— Ainda agora? ó ingrato!, pois ainda agora me abres a tua alma?


— Foi forçoso; violentei-me... era necessário. Não queiras que eu teexplique a razão de uma reserva indigna de ti e de mim.— Vais falar-me... — No tesouro escondido nesta quinta. Duarte compôsa custo o rosto que parecia abrasar-se e entumecer-se de alegria. Passadosinstantes, disse:— Eu sabia que o tesouro não era fábula. Respeitei a tua reserva,confessando-te que me doía, porque era mais que afrontosa para mim... etambém para ti, que me conhecias desde os onze anos.— Não mo recordes, Duarte. Perdoa-me, e escuta. Presumo que existe ocofre do antigo contador-mor, bisavô da minha mulher. Esta casa e quintaforam revolvidas desde alicerces e raízes; mas o local do tesouro não foibulido...— Então era certo existir o anel? — atalhou Duarte. — É certo existir oanel; Leonor é dele depositária, porque eu nunca mostrei leve desejo de ver asletras reveladoras do segredo, enquanto se não facilitasse a oportunidade deexumar o cofre. Dizem as letras...— Eu não te fiz a pergunta — interrompeu Duarte com veemência —para que me traduzas o que dizem as letras. Não quero saber. Basta que osaiba no momento em que me tu disseres: “É aqui. “— E porque não hás de sabê-lo já?!


— Porque não quero: são melindres que tu me hás de respeitar.— Queres que eu assim me corra de não ter sido franco e sincero, quandome interrogavas sobre o tesouro?— Não é isso, nem te sei ao certo explicar o que é. Vamos ao importante:queres tomar conta do tesouro, não é assim?— É.— Quando?... não pode deixar de ser de noite... — Seja de noite, à horaque determinares. — Convém-te hoje? — E a ti? — A mim convinha-memais amanhã, porque hoje até noite alta não posso deixar de fechar as contasdo trimestre que hei de amanhã apresentar aos infantes. Pode ser amanhã à sonze horas da noite?— Sim, meu amigo, quando menos incómodo te seja.— Ora diz-me lá, calculas que os valores escondidos te abastem paraviveres independente em Paris ou Londres?— Presumo que sim.— A quanto monta segundo o teu cálculo?— Cento e cinquenta mil cruzados, a julgar aproximadamente das verbasdesignadas numa página escrita pelo punho de Luís Pereira de Barros.


— É muito dinheiro! — exclamou Duarte. — Podes viver vida de príncipeonde quer que te sintas bem. Vai para Roma, que eu aposto que os cardeaisvão cear contigo todas as noites, sem te perguntarem por Moisés nem porCristo!— Não ambiciono aparatos ostentosos — disse António José. — O queeu queria era sossego e alegria. Tenho aquela filhinha que me está sendo umanjo recompensador, esmola e riqueza do céu. Desejo ser rico para ela.Leonor e eu, e a minha pobre mãe, com pouco viveríamos, e talvez felizes, seo terror da perseguição religiosa nos não tivesse sempre sobressaltados.— Fazes bem, fazes bem — tomou Duarte. — Foge, assim que te eudisser que fujas. Debaixo de juramento te digo, e juramento te peço para quenunca reveles o que vou dizer — te...E abaixando muito a voz, e espreitando o corredor contíguo à sala, disse:— Tens um ótimo espião por ti no Santo Ofício... É meu pai! Vê tu a queextremos chegou a amizade que te tenho. O meu pai, quinze dias antes de sedecretar a tua prisão, há de ser avisado, sem que ninguém o avise. Ele entendee lê nos recônditos desígnios daquela gente, que lhe é detestável, porque meupai, se finge tanta ortodoxia religiosa como eles, é porque os temeu e aindateme. Compreendes, António, o sagrado desta revelação?— Compreendo, meu querido Duarte! — exclamou António José da Silvaabraçando-o com entusiástico reconhecimento.


— E então já vês — insistiu o almoxarife — que escusas de fugir antes domeu aviso. Pode até ser que a tempestade se desfaça... Tem tu juízo, António.Manda as comédias ao diabo. Não escrevas senão nos autos; e, se te parecer,manda os autos também de presente à alma do Papiano e do Bártolo e doJoão das Regras que devem de estar no inferno. Amanhã és rico, riquíssimo.Não careces de trabalhar... Sabes lá tu o que é ser rico! O que é ter um coche emulas lustrosas!, lacaios e mordomos!, poetas a cantarem-te os espirros comoagouros de algum grande sucesso que vai felicitar a pátria! Nunca pensaste nasdelícias de ser rico! Os homens, os frades, os grandes, a natureza, tudo às tuasordens! E as mulheres? Não quero falar-te das mulheres, porque tens uma quevale por todas as que abrilhantam este mundo com a sua formosura; mas se tuprecisares de um serralho de anjos, pensas que não ias buscá-lo ao empíreo? óAntónio!, quando estiveres senhor dos teus cento e cinquenta mil cruzados,verás o que é tê-los, vê-los, contá-los, palpá-los, vigiá-los, convertê-los emprimaveras infinitas, em deleites intermináveis!... Oh!...Duarte, no febril afogo do seu entusiasmo, ora torpe, ora lírico, poderiadenunciar a voraz cobiça que lhe acendia entranhas e olhos, se ao lado deAntónio José estivesse um terceiro, observador de ânimo frio. O infametemeu-se da incontinência da apologia da riqueza, e desandou numa risada,exclamando:— Maganão!, estavas a estudar em mim algum Creso avarento de gozosque tencionas pôr no tablado para alegrar o povo com as suas exclamações!


— Não, meu amigo, estava a imaginar que tu, se fosses rico, em vez decobrires de ouro os caminhos da tua vida, farias com o teu ouro melhorada asorte de muitos pobres, que se tinham de alegrar mais com a esmola, que tucom a posse das riquezas da Casa de Bragança.— Pode ser que te não enganasses — volveu gravemente Duarte. — Ogozo de ser rico deixa de o ser, quando o ouro não compra as alegrias purasda alma. Tu hás de saber repartir o que até aqui te foi desnecessário. Felizesaqueles que se aproximarem de ti!Abraçaram-se. António José da Silva despediu-se com os olhos vidrados delágrimas, murmurando:— Eu queria não mais separar-me da terra onde tu vivesses, Duarte! Iguala ti só tenho um amigo neste mundo: é Francisco Xavier de Oliveira. Quandoeu lá fora o vir, dir-lhe-ei que Duarte Cotinel Franco tem uma alma irmã dasua... São duas almas que Deus formou no mesmo molde.Dito isto, saiu comovido. Duarte Cotinel sentou-se, como se a carga dainfâmia lhe dobrasse os joelhos; pôs as mãos na cabeça, e ouviu este grito daconsciência:— Que atrocidade!... Instantes depois, ergueu-se, estirou os braços,estalejou os dedos das mãos enclavinhadas, e resmoneou surdamente:— Cento e cinquenta mil cruzados!...


CAPÍTULO III— Sempre resolveste procurar o cofre, António? — perguntou Leonor.— Sim, minha querida, resolvi; mas não o digas à mãe. Custa-me a crerque ela seja capaz de julgar tão aviltantemente o nosso amigo Duarte!... Oselogios respeitosos, que ele te faz, Leonor, provam a excelente índole daquelehomem...— Mas — objetou Leonor — não te ouvi eu dizer que ele era bastanteestragado de costumes?... Então sonhei...— Disse-to; mas a desordem dos seus costumes não faz repugnância aoque se chama probidade. Era a libertinagem própria dos vinte anos a que meeu referia. Desde, porém, que se ocupou em mordomizar os rendimentos dosinfantes, não sei que ninguém o exceda em morigerada regularidade de vida.Que nos faz a nós, para o nosso intento, que ele extravaganciasse lá na suajuventude? Não goza créditos de honrado Francisco Xavier de Oliveira? Equem foi mais libertino que ele?! Ora queres tu saber? É tão escrupulosoDuarte em pontos de honra que não quis saber onde está o tesouro, e disseque bastava sabê-lo no acto em que eu lhe mostrasse o sítio, e dissesse: “Éaqui.“ Há, porventura, sombra de suspeita que nos absolva de desconfiarmosdele?


— Creio que não — respondeu Leonor com indeciso ar meditativo. —Mas...— Mas quê?!— Olha, António... As suspeitas da tua mãe pode ser que procedam deantipatia particular que tem com o homem... Será isso, será... Entretanto, omeu coração tem pressentimentos fatais... Eu, quando saí de Amesterdão,adivinhava quantas desgraças sobrevieram; ainda antes de as esperar, a meiocaminho de Portugal, estava na Inquisição. A minha mãe, olhava para mim, eexclamava: “Porque não escutei os teus presságios, minha filha! “ Isto vem aocaso de eu, com bem pesar meu, te asseverar que a minha alma está inquieta, evaticina algum passo horrível por causa daquele tesouro. Tem desgraça aqueledinheiro! Dizia-o meu pai, quando eu era menina, olhando para o anel; dizia-ominha mãe, e Simão de Sã. O meu tio Diogo, sempre que se fala no cofre daBemposta, recorda-me as aflições dos últimos dias do meu bisavô; a crueldadeferiria da minha avó; a perseguição que duas vezes minha mãe sofreu; o riscoem que esteve a vida do meu pai. Mil infortúnios!...— E mil superstições, Leonor. Essa cadeia de desgraças tem a sua lógica enatural explicação. Não é fado nem influição diabólica ligada ao tesouro.Foram ódios motivados pela ambição; mas não se segue daí que tu, legítimasenhora dele, hajas de sofrer a continuação dos dissabores que sofreram teuspais.


— Será assim!... — disse ela. — Vai... faz o que quiseres... Praza a Deusque a nossa filhinha não participe de alguma calamidade, se nós a temos sobreas nossas cabeças. Deus preserve a inocentinha! — continuou ela, soluçandocom a filha estreitada ao coração.António José da Silva, bem que forte de espírito e isento de preconceitos,estremeceu quando viu as lágrimas da esposa a derivarem à face deLourencinha.— Pelo amor de Deus! — clamou ele — , não me aterres! Tu que tens,Leonor?, que te diz o coração?, tu fazes-me fraco e crendeiro em agouros!...Diz... não queres que fale mais no dinheiro? Não falarei!... não...Leonor atalhou-o: — Isto não importa nada... Sou mãe. Não faças caso delágrimas nem de agouros, António. Faz o que quiseres; mas não me consultes.Depois, fugiu com a filha para o seu quarto, e fechou-se para que o marido anão ouvisse desabafar em altos soluços.À meia-noite deste dia, 15 de Agosto de 1737, António José da Silva saiu comDuarte Cotinel da casa do almoxarifado, por uma porta de armazém que abriapara a quinta. Chegados à cancela de um pomar, disse Duarte com muitorecatado som de voz:— Agora dirás para onde vamos. Dá-me alguma indicação.— Leva-me a um tanque onde está uma estátua de Neptuno.


— É lá em baixo, no interior do bosque. O sítio é bom, que ninguém nosouvirá cavar; mas sabes tu se já fariam obras no local?— Creio... quase tenho a certeza que o local do cofre está intacto.Caminharam de manso desviando-se das áleas onde o tapete da folhagemacusava os passos.— É aqui — disse Duarte. — Ali tens o tanque e o Neptuno.— Está seco? — perguntou António José.— Está, há muitíssimos anos. Ouvi dizer que a rainha de Inglaterra,quando fez estas obras, mandou levar daqui a água para fontes públicas.— Bem. Entremos ao tanque.— Espera... vou acender a lanterna de furta-fogo, que as copas das árvoresnão deixam entrar raio de lua.— Não acendas. — Temos que levantar alguma pedra? Então vou aojardim buscar um ferro de monte que lá pus ao anoitecer.— Não é necessário — disse António José — , ajuda-me a descer oNeptuno do pedestal.— Pois é aqui?!— É.


— Então foi milagre o conservar-se! Quantas vezes os senhores infantesme têm dito que é melhor tirar esta coisa inútil daqui para fora!... Ainda noano passado!...Duarte dizia isto com profunda mágoa. O tesouro podia tê-lo encontrado ele,e possuí-lo, sem inquietação de consciência.Deram um sacão à estátua, que estremeceu; deram-lhe outro, e deslocaram-na.Desceram-na vagarosamente, e pousaram-na sobre o rebordo do tanque.Ambos a um tempo introduziram as mãos no recipiente da água, e tatearamum corpo liso cingido de braçadeiras de metal.Ambos unissonamente exclamaram: — Está! Da veemência da exclamaçãodos dois, não poderia inferir-se qual fosse o dono do tesouro.Havia espaço entre as paredes da caixa de pedra e as argolas do cofre.Introduziram as mãos, e tiraram fora o pesado caixote.António José sentou-se. Carecia de ar. Duarte Cotinel não estava menosabafado e arquejante. Não era o cansaço; era num alegria legítima, noutro umainfernal exultação.— Vamos, Duarte? — disse António e juntou: — Estou a tremer, como sefizesse um roubo.— Também eu; mas é de contentamento de te ver rico. Vamos. Podescom o cofre?


— Posso. — Então carrega com ele, que é obrigação tua — disse oalmoxarife gracejando.Saíram do bosque; esperaram que se fechassem as janelas da recâmara de umdos infantes, e acolheram-se a casa estugando o passo.Era uma hora.— Vou acompanhar-te a casa — disse Duarte. — Estava para te pedir essefavor.— Não era preciso. Deixa-me ir armar, que há ladrões nas ruas de Lisboacomo no pinhal da Azambuja.Duarte voltou logo, entregou a António José uma pistola de dois canos, edisse-lhe:— Leva isto.— Não preciso — disse o hebreu — , vim armado. Foram da Bemposta,sem encontro suspeito, até ao Largo do Socorro.O almoxarife, à porta de António José, quis despedir-se.— Não: hás de entrar: quero que assistas à abertura do cofre; quero quevejas se me enganei.— Amanhã mo dirás, adeus, — Não consinto: hás de sabê-lo agora.Lourença Coutinho e Leonor estavam ainda a pé. Lourença orava ao Deus de


Jacob; Leonor orava ao Deus dos aflitos. Oravam ao mesmo Deus, segundominha fé em divindades.Quando ouviram bater, desceram ambas ao pátio. Viram António com ocaixão sobraçado. Lourença exclamou:— São e salvo o meu filho!— E porque não? — disse Duarte, ela não tinha visto.António José corou até às orelhas, e quase odiou sua mãe.Voltou-se a Duarte, e disse:— Minha mãe receava que os ladrões me saíssem nalguma esquina, porisso fui armado.Leonor aproximou-se do caixão, que o marido pousara sobre um escabelo dopátio, para limpar o suor. Dobrou-se ela sobre o cofre, beijou-o, e disse:— Neste caixão pôs as mãos o meu virtuoso bisavô!...— Vamos — disse António, retomando o cofre. E subiram à primeira sala.Duarte quis ainda despedir-se, alegando que naqueles prazeres de família umestranho era coisa impertinente.— Não consinto! — repetiu António com dissabor.


— Porque não há de tomar um quinhão do nosso contentamento, senhorDuarte? — perguntou Leonor, impedindo a saída. — Os amigos são semprefamília...Pousaram o cofre sobre um bufete. Eram duas as fechaduras de espelhosdourados.— É preciso arrombar — disse António José. — Dá-me um ferroqualquer, minha mãe?Lourença Coutinho trouxe o ferro de frisar com que o seu marido costumavaencalamistrar a cabeleira nos dias de aniversário natalício das pessoas reais.Quebraram a presilha das fechaduras que prendiam na lingueta, e... levantarama tampa!Havia ali coração que se regurgitava como em caso de mortal congestão. Acirculação parara no peito de Duarte, ao rangerem as perras e oxidadasdobradiças da tampa.O primeiro objeto era uma caixa de prata de lavores primorosos, baixa dealtura de uma polegada, e larga à medida do âmbito do cofre. Abriram a caixa:eram os pentes de ouro, cravejados de brilhantes, e quinze anéis, enfiadosnum agulheiro de ouro.Destas joias dizia o apontamento de Luís Pereira de Barros: “Que foram daminha avó D. Leonor de Barreiros.“


— Que admirável peça! — exclamou Duarte. — E que digna possuidoraaqui está! — continuou olhando delicadamente em D. Leonor.— Agradecida, senhor Duarte. Os meus adornos mais queridos da cabeçasão flores.A um canto daquela caixa estava inclusa outra de veludo carmesim, oblonga econvexa. Abriram-na: continha os vinte e quatro brilhantes dos quais dizia anota: “Que foram do meu avô Pedro de Barros e Almeida.”Levantaram a caixa, e descobriram a segunda camada. de uma saca de pelicatirou António José os copos de uma espada, recamados de pedras de diversascores. Desta riquíssima preciosidade dizia o contador-mor: “Copos da espadaque o meu avô materno D. Jorge de Barreiros trouxe do governo da Baía.“Noutra caixa de ouro encontraram uma miniatura, retrato formosíssimo emmarfim, com cercadura de diamantes. Era o retrato de D. Inácia Teles deMeneses, mãe de Luís Pereira de Barros. Leonor lançou mão dele, e não secansava de o contemplar.A outra camada e última era dinheiro em rolos: “Vinte e quatro contos de réisem variadas moedas de ouro”, conforme o dizer do apontamento.— Que te parece Duarte? — perguntou António José.— Erraria eu muito o cálculo? Isto valerá os cento e cinquenta milcruzados?


— Vejamos — disse o almoxarife. — Vinte e quatro contos, sessenta milcruzados, ou mais, porque as moedas antigas são pagas como de mais valor.Os brilhantes, se não valem mais, valerão outro tanto, porque estão aí duasdúzias deles, como eu ainda não vi muitos; e, se quiseres vendê-los, acharásem Londres ou Amesterdão quem te dê vinte e quatro mil cruzados. Ospentes podem valer... que sei eu!... e os copos da espada!... e a cercadura doretrato!... Finalmente, não te enganarias muito no cálculo! O que se segue éque estás riquíssimo, e eu também participo da tua riqueza por poder dar aestas duas damas os mais cordiais e jubilosos emboras, que podem alegrar ocoração de um amigo. Agora, deixo-os que está a romper o dia, e já hoje nãome deito, porque amanhã tenho jornada ao Ribatejo por causa deaforamentos. As minhas senhoras, adeus.— Espera! — disse António José, tomando seis dos brilhantes de maiorquilate e lume. — Aceita esta memória da noite de quinze de Agosto de milsetecentos e trinta e sete.— Memória!... — disse Duarte Cotinel rejeitando delicadamente — , amelhor memória é a lembrança de que contribui um pouquinho para afelicidade de uma família. Não instes comigo, que perdes o tempo, e medesgostas.Saiu.


— E então? — perguntou António José à mãe com gesto de censura — ,que lhe parece o homem? Arrepende-se dos seus preconceitos, minha mãe?— Arrependo, filho: Duarte parece-me homem de bem.— E os teus agouros, Leonor? — tomou António.— Ainda não se calaram... — respondeu ela.


CAPÍTULO IVAntónio e a sua mãe passaram o dia em análise contemplativa das pedras e dasmoedas antigas; Leonor, no entanto, como estranha ao contentamento dosseus, não se despegava de uma joia formosíssima, santa, e de divinos quilates,que era a filhinha, aqueles vinte e dois meses lindos de celestial meiguice.Chamada a dar seu parecer sobre o destino que deviam tomar, respondia queestava por tudo que o seu marido e sogra quisessem. O hebreu, a falarverdade, já mal acertava com os seus projetos da véspera: aquele resplandecerdas pedras ofuscava-lhe a memória dos planos: era um embevecimento decriança, para não dizer a absorção voracíssima de olhos de avarentocravejados no íman do ouro.Ao outro dia, Duarte Cotinel, de volta da sua jornada, procurou o hebreu,para lhe dizer que não havia nada no Santo Ofício, para que ele devesse temere apressar a saída. Lamentou que o seu António não pudesse gozar emPortugal as riquezas, e viver perto do seu mais dedicado amigo, que vinha aser ele. Aconselhou-o a que não vendesse pedra alguma em Portugal, nemrevelasse os seus haveres, porque a Inquisição não perdoava aos judeusopulentos; e, se alguma vez tinha sido piedosa, era com os indigentes, cujaalimentação corria por conta da Santa Casa.


Voltou no dia seguinte, muito rogado por António José, e chegou em ocasiãode estar o judeu castigando uma escrava da sua mãe, porque fora surpreendidaa roubar das gavetas de um contador algum dinheiro. O castigo era comdisciplinas, segundo o direito dos senhores sobre os escravos, que somentevinte anos depois foram libertos por lei do marquês de Pombal.Duarte pediu o perdão da negra, e conseguiu-o; a escrava, porém, assim queuma entreaberta se lhe ajeitou, fugiu, receosa de que uma busca à sua arca lheredobrasse o castigo.Lourença Coutinho teve pena da preta, que comprara criança no Brasil, etrouxera consigo, quando veio presa. Diligenciou encontrá-la; mas não houvenotícias dela.Duarte Cotinel saiu a averiguar, e descobriu que a preta passara o Tejo, e seassoldadara em Almada. Calou-se com o descobrimento, dando a supor que anegra se lançaria ao Tejo, desesperada como outras muitas, que preferiam amorte à servidão. (*)[(*)Naquele tempo, a vida dos escravos em Lisboa era aflitivo, e os castigos cruéis. A limpeza diária dassentinas domésticas era feita por escravas, que levavam os grandes vasos ao Tejo, desembocando de cada ruaem longas caravanas. Que deliciosa e perfumada Lisboa era aquela, à qual Jácome Ratton, comdesenfeitado estilo, denomina por excelência a “fedorenta cidade de Lisboa!“ Como D. José declarou livrestodos os escravos que entrassem no reino, as pretas eximiram-se do seu escravo de escoadouros. Depois é que


Lisboa se tomou limpa... “Então”, diz o citado coevo daqueles olorosos dias, “então os moradores deLisboa se viram obrigados à fazer os despejos das imundícies nas ruas.”]— Mas a minha escrava não era tratada com rigor, para se matar! — diziaLourença. — Tenho imensa pena dela!... Ali está ainda a arca fecha da comoela a deixou.— Era bom ver-se!... — disse o almoxarife com ares familiares de muitoamigo.— Dizes bem! — aprovou António José da Silva. — Vejamos o que elatem na caixa.— Farrapos... que há de ela ter? — observou Leonor.— Sempre é bom ver, senhora Dona Leonor — insistiu Duarte.— Pois vejam... — condescendeu a contrariada senhora. Arrombada acaixa da escrava, encontraram-se algumas miudezas, por cuja falta as senhorasnão tinham dado, coisas de insignificante valor. Concluiu o hebreu que anegra furtava, para as vender, coisas de que ela não podia usar.— Tal escrava não lhe convinha, senhora Dona Lourença — disse Duarte.— Deixe-a ir, que não se foi boa peça. O valor que ela tinha perdeu-se, é issoverdade; mas esta casa não fica hoje prejudicada com a fuga de uma preta.António José da Silva pode comprar hoje toda a África e os sertões do Brasil.


Festejaram o dito, e divertiram a conversa para outro assunto. Leonorlembrou que a sua Lourencinha fazia anos em 5 de Outubro.— Faltam cinquenta dias — disse ela. — Onde estaremos nós então?— Talvez em Paris — disse António.— Se não puderem estar sossegados em Lisboa — observou Duarte.— Pois decerto. Se eu pudesse aqui viver sossegado, não trocava paísnenhum por este, onde tu vives, meu bom Duarte.— Eu, não sei porquê — disse Leonor — , desejava festejar o segundoaniversário da minha filha fora de Portugal.— Ó Duarte — exclamou de golpe o hebreu — queres tu vir passarconnosco um ano a Paris? És homem para nos dar esse grande prazer?— Era homem para o sentir com mil vontades, se fosse livre. Sabes quenão posso renunciar à posição que ocupo, nem incumbir ninguém dotrabalhoso encargo que promete a minha futura e descansada estabilidade.Depois, meu pai está velho, está rico, segundo penso, e tem mais filhos. Se euarredar um passo contra vontade dele, vinga-se excluindo — me da herança.Que mais razões queres?— Mas — tomou o generoso coração do hebreu — faz de conta que ésmeu irmão; gastas irmãmente comigo, e nunca sentirás precisão da herança doteu pai.


— És ainda muito criança, homem! — redarguiu o almoxarife. — Estespoetas, minhas senhoras, tem absurdos que seriam lamentáveis, se não fossemengraçados! Como este louco imagina que um homem, aplicado a ganhar a suaindependência com a fadiga e sacrifício dos melhores anos da juventude,possa aceitar uma oferta que o inutilizaria aos seus próprios olhos!...Antoninho, não sejas sempre rapaz; não vás tu lá por fora arranjar algunsirmãos que fraternalmente te devorem as peças, os brilhantes, e os copos daespada do tresavô da tua senhora e a minha ama. Cuidado com os parasitas,ouviste? Olha que os portugueses, lá por essas nações, gozam fama devalentes; mas também a gozam de estúpidos que se deixam gozar. Sêcaritativo; mas não sejas pródigo...— Pareces um velho a aconselhar! — interrompeu António. — Nem quetu não tivesses trinta e dois anos como eu!— É verdade; mas há muito que vivo cá em baixo terra a terra; e tu, desdeque te conheço, encontro-te sempre nas regiões mitológicas com os Anfitriõese Alcmenas, e Proteus, e Apolos. As tuas comédias fazem crer que tu tensmuita imaginação; mas juízo não no inculcam; aliás, em vez de comédias,escreverias versos laudatórios aos reis, aos bispos, aos frades, a quantosmagnatas por aí há incapazes de tos perceberem. já fizeste versos a algumdestes estafermos?


— Não. Versos a reis, ou a filhos de reis, apenas tenho aquele epicédio quefiz o ano passado à infanta Dona Francisca.— Depois de morta. Isso de que presta?... Bem me recordo: glosavas osversos do soneto de Camões:Alma minha gentil que te partisteTão cedo desta vida...— É verdade — acudiu António José com desvanecimento. — Glorio-mede ter levado a primazia entre todos os poemas que saíram a chorar a princesa.— A chorar!, chorava lá ninguém, homem. Quem é que chora pelasenhora Dona Francisca, que Deus haja muitos anos lá sem mim? Os meuspatrões, e muito sentimentais infantes, ao outro dia da morte dela, andaram natapada da Bemposta a matar melros. Choraste-a apenas tu! Ele chorou,senhora Dona Leonor?— Não me recordo bem... mas parece-me que sim, quando ma recitou.— Poetas!... Ficaram no lugar das carpideiras que o meu avô ainda namorte do meu bisavô mandou alugar para chorarem vinte e quatro horas...


— Olha que a mim não me deram nada! — interrompeu António. — Porisso estou eu. São capazes de te dar tanto, como àquele Manuel FernandesVila Real que defendeu com a pena e com a espada, estando em Paris, osdireitos de Dom João quarto à coroa contra Filipe e contra os portuguesesacastelhanados; e, depois, como viesse a Portugal, os frades agarraram-no,deram-lhe garrote, e Dom João quarto não lhe acudiu. O António HenriquesGomes e o Manuel do Leão que também escreveram miríficas coisas em favorde Dom João quarto e de Dom Pedro segundo, se caíssem nas aboízes que aInquisição lhes tinha cá armado, eram irremediavelmente assados. Não façasversos a príncipes mortos nem vivos, António. Gasta o teu dinheiro comoquem não tem espírito de que dispor em divertimento dos outros. Queima oslivros. Auto-de-fé aos livros, e eu faço de barbeiro do novo Dom Quixote detramoias. Esquece-te de que tens lá nos escaninhos da cabeça um formigueirode versos. Deixa ser o mundo bestial à sua vontade, e adeus até depois deamanhã.


CAPÍTULO VAo outro dia, Duarte Cotinel passou a Almada, e procurou em casa de umfazendeiro a negra fugitiva. Foi-lhe apresentada a escrava, que tremiaenquanto não reconheceu o homem caridoso a quem devia o escapar-se àsmãos de António José.Chamou-a Duarte a um lado, onde os não ouvissem, e deteve-se largo tempo,Começou por lhe incutir medo à perseguição que os seus senhores iam fazerlhe,persuadidos de que ela os tinha roubado, e vendido os furtos. Fez-lhesentir que a compaixão o movera a vir ali avisá-la para que mudasse de terra enome. E, quando a negra, tremente de susto, se debulhava em lágrimas, pornão saber para onde fugisse, Duarte, ressalvando habilmente qualquerintenção dupla, disse-lhe em tom de piedade que passasse a Lisboa ao fim datarde, e fosse ter a casa dele à Bemposta, onde ficaria até se lhe arranjar amose segurança longe de Lisboa.Assim o fez alegremente a escrava. O almoxarife recebeu-a com boa sombra,mandou-lhe dar ótima ceia e excelente cama. Ao outro dia, como a negracarecesse de mudar a roupa com que fugira, Duarte proveu-a do necessário,comprando-lhe umas roupinhas e mantéus escarlates, encantadores objetosque tinham sido o sonho dela, nunca realizado. Feliciana, conquanto orçassepor quarenta anos, começava a imaginar, à vista de tantas venturas, que o


almoxarife não desgostava dela, e nutria intentos ao seu respeito, Admirava-se,porém, a preta, ao fim de três dias, das delongas não usadas, entre o desejo e aexecução, com pessoas da sua laia.Ao quinto dia de hospedagem, a escrava parecia a filha primogénita de umsova! A carapinha brunida e oleosa encaracolava-se-lhe fantasticamente. Orubi dos beiços incendidos parecia a porta do amoroso inferno que lhe ia nasentranhas do peito. As formas, aliás redondas e anchas, como que, debaixodos trajes escarlates, entremostravam graças que a natureza, desacompanhadada cor e feitio do jaqué, nunca tivera nela.Quando Duarte a chamou, em ocasião de estar sozinho, Feliciana entendeuque era chegada a hora de ouvir uma revelação de amor, feita com adelicadeza de que o seu novo amo e senhor a considerava digníssima.Principiou o almoxarife perguntando-lhe se estava contente, se era bemtratada, se queria viver em companhia dele, ou sair de Lisboa. A preta nãotinha expressões com que boquejar uns longes da sua felicidade, e confessava,no auge da sua modéstia, que não merecia o bem que estava gozando.— Visto que estás satisfeita — disse Duarte — ficarás comigo mais algumtempo; e depois, se eu desconfiar que te perseguem, passarás para uma quintado meu pai em Torres Novas; mas é necessário que te escondas, se algumavez aqui vier o senhor Silva, ou criado da casa dele, porque eu não queroindispor-me com esta família. Ora — continuou ele — diz — me cá,


Feliciana... Prometes debaixo de juramento responder às perguntas que eu tefizer?— Prometo, senhor, assim Deus me salve.— Os teus amos Silvas fazem lá algumas rezas que não sejam à moda ecostume dos cristãos?— Algumas rezas?!...— Sim: eu vou perguntar-te de modo que tu possas responder a verdade auma pessoa que te estima e promete fazer-te mais feliz ainda do que és. Oradiz-me: lá em casa era costume acender-se na sexta-feira à tarde, uma horaantes do pôr do Sol, uma lâmpada com quatro torcidas?— A senhora Lourença fazia isso todas as sextas-feiras.— E a lâmpada ficava acesa todo o sábado, não é verdade?— É sim, meu senhor.— E que fazia a senhora Lourença no sábado?— Estava lá dentro do seu quarto a ler, nem se penteava nem lavava, nempegava em agulha, nem cortava ou raspava as unhas, nem bebia vinho, nemcomia coisa gordurenta, nem escrevia.— E sabes se a senhora Lourença rezava de manhã assim que selevantava?


— Não, meu senhor; sem se lavar muito lavada, e mais coisas, não pegavano livro.— Lembras-te de algumas palavras que ela dissesse? — Uma coisa que eladizia todos os dias era isto: “Bendito sejas tu que deste ao galo instinto paradistinguir entre o dia e noite:”— Havia algum mês no ano em que a tua ama não jejuava?— Era no mês de Março. Mudava de cama ou de roupa na véspera dosdias em que jejuava?(*)[(*) Decidiram os rabinos que se não jejuasse no mês de Março, porque este tempo, como aniversário dasaída do povo hebreu do Egipto, deve ser consagrado ao reconhecimento e ao júbilo.)]— Sim, meu senhor; deitava-se num colchão duro com lençóis de estopa, esó comia ao outro dia à noite; e desde dezassete de Junho até dez de Julho nãocomia senão hortaliças, e punha cinza na cabeça.— Outra coisa: teu amo doutor também fazia essas coisas?— O senhor Antoninho?


— sim. — Nada; esse não rezava coisa nenhuma, nem jejuava. — E asenhora Dona Leonor? — Também não. — Então ela e o marido nãopraticavam acto nenhum de cristãos ?— Que eu visse, não, meu senhor. Depois de mais algumas perguntas,Duarte Cotinel tirou de uma gaveta um fio de contas de vidro amarelas, e deuoa Feliciana, dizendo:— Aí tens para enfeitares o pescoço. Gosto de ti, e quero que estejascontente.— Ora, se estou, senhor Duarte!... — balbuciou ela sinceramentecomovida. — Muito feliz sou na sua casa!— E serás uma ingrata, se me deixares!...— Isso só por morte! — clamou ela com entusiasmo. E, como visse que osenhor não tinha mais que lhe dizer, retirou-se.


CAPÍTULO VIVolvidos poucos dias, Duarte, apenas entrado na sua casa, vestiu de cólera orosto, e disse à negra:— O teu amo doutor lá te mandou procurar a Almada por dois esbirros.Se lá estivesses, a esta hora estavas em lençóis de vinagre! São cruéis os taisjudeus! Venho agora de lá, disse-lhes que eram duros contigo, que tedeixassem, porque saíras quase nua e sem real de casa deles. Provavelmentenão tomo lá. Gente com tão ruins entranhas não a quero para amiga. Ora vêtu, pobre mulher, que vontade eles têm de te esfolar!... Queira Deus que elesse não lembrem de suspeitar que estás aqui!...— O meu senhor não me deixa prender... — exclamou ela, pondo asmãos.— Não deixo, ainda que tenha de defender a casa com todos os criadosdos senhores infantes. O judeu não se atreve a cá vir; podes estar sossegada,Feliciana. Tens em mim um verdadeiro amigo e defensor.— Nossa Senhora lho pague! Muito meu amigo é, senhor Duarte! Eu nãosei porque é tão meu amigo!...— É porque tive muita pena de ti, e estou convencido de que tu erasincapaz de ser a ladra que eles dizem. Olha; eu confio tanto da tua limpeza de


mãos, que te deixo abertas as gavetas, como se te conhecesse há muitos anos.Quando quiseres comprar alguma coisa, compra, que eu gosto muito de te verasseada e satisfeita. Aqueles malvados!... É assim que te pagam trinta anos deserviços; e não se lembram que tu, se fosses vingativa, os podias perder edesgraçar. Pois não podias, Feliciana?— Como era?! — perguntou a escrava, como admirada da suadesconhecida generosidade.— Pois se tu fosses denunciar ao Santo Ofício que os teus amosjudaizavam, pensas que eles não eram logo sepultados nas masmorras doRossio?— Ah!, sim?... Pois então que me deixem... senão...— Quem sabe? — tomou Duarte — , pode ser que afinal, se te quiseresver livre da perseguição, não tenhas remédio senão... Nada... denunciá-los,não. Há de haver muito quem os acuse. Veremos como eles se portam daquiem diante... Eu queria que tu saísses, Feliciana. Custa-me ver-te aqui fechada;mas tenho medo que te prendam lá por fora, e que te castiguem ou entreguemà tua senhora, antes de eu poder valer-te! já me lembrou de te resgatar,comprando-te; porém, o ódio que eles mostram ter-te é tamanho, que, ao meuver, antes querem matar-te que vender-te. Esperemos alguns dias mais; e, seeles não estiverem quietos, pensaremos no que se há de fazer. Estasbarbaridades irritam-me. Os escravos são nossos irmãos e filhos do mesmo


Deus. Tomei à minha conta defender-te, e hei de salvar — te das fúriasdaquela maldita casta de gente, que está sempre a ver como há de abrir asveias do próximo! Que admira se eles mataram Nosso Senhor Jesus Cristo!— É verdade! — murmurou compungidamente a negra. — Eu já tenhoouvido dizer isso; e, lá no Brasil, quando prenderam a minha senhora, unshomens que viram-na passar, ficaram dizendo: “Esta é das que mataramNosso Senhor!“ Eu, depois, contei isto à senhora Lourença, e ela...— Que respondeu ela? — acudiu pressurosamente Duarte. — Disse queos tais homens eram umas bestas.— E mais nada?— Mais nada que me lembre.— Pois olha: vai recordando todas essas coisas que viste e ouviste, porquepode ser que ainda precises de as dizer, para te livrares de cair nas unhas dostais matadores de Jesus Cristo.A sessão terminou, para se continuar no dia seguinte, e nos outros. Oalmoxarife trazia sempre de fora alguma história urdida para aterrar eenfurecer a negra. A tanto lhe apurou a raiva que já afinal era ela quem pedialicença para ir denunciar os amos ao Santo Oficio.


Num daqueles dias, António José da Silva bateu ao portão da casa de DuarteCotinel. A negra precavida, assim que viu-o por uma gelosia, correualvoroçada a prevenir o novo amo.Duarte foi escondê-la muito longe da sala em que devia receber a visita doamigo.António José vinha triste, a dar-lhe parte da sua definitiva resolução de retirarse,porque o conde da Ericeira muito à puridade o avisara da necessidade desair de Portugal, porque no Santo Ofício se lhe estão forjando desgraças.— O conde da Ericeira — atalhou Duarte — não pode saber mais do queo meu pai. Os rumores, que lá se passam, muito há te disse eu que sepassavam; todavia, por enquanto, não têm sintomas assustadores. Nãoobstante, se queres ir, vai; se tens lá fora mais tranquilidade, não te demores,que o meu maior prazer é ver-te em segurança. Quando tencionas ir?— Não é já, porque o conde também me disse que eu poderia sem receioestar uns dias em Lisboa. No dia cinco de Outubro, faz minha filha dois anos,e eu tinha muita vontade de os festejar em companhia de ti e dos Barros.— Estamos hoje a vinte e quatro de Setembro... Faltam onze dias... Possoasseverar-te que não corre o mínimo sobressalto a tua liberdade nestes onzedias. E a mobília da tua casa que lhe fazes?


— Vinha oferecer-ta. — Não aceito, António, porque não sei que lhe faça.Como vês, esta casa está decentemente mobilada por conta dos infantes, e eunão tenho outra residência. Vende a mobília a quem ela seja necessária; e, senão queres figurar nisso, eu me encarrego.— Não posso dar trabalho a quem me não recebe o mais leve favor —disse António José. — Encarregarei a venda a algum parente da minhamulher. Diz-me cá: nunca pudeste descobrir que fim levou a desgraçadaescrava?— Não.— Tenho feito diligências incansáveis! Ninguém me dá notícia alguma. Aminha pobre mãe chora por ela, e queixa-se de mim, como causa de a suaFeliciana fugir. Se se matou, fica-me este remorso a trespassar-me o coração!— Ora adeus!... remorsos de castigar escravos!... Fizeste menos do quefazem os outros senhores deles que lhes despem o couro. Deixa lá a negra,que está por aí a servir, e não pensa em se matar. Assim que saíres de Lisboa,aparece ela.— Oxalá que assim seja. Hei de deixar-te uma boa esmola para lheentregares, se a vires.


Saiu António José da Silva. Duarte foi buscar a negra ao esconderijo, e disselhe:— O teu amo asseverou-me que tinha a certeza de te haver às mãos antesde oito dias.— Então fujo de Lisboa? — perguntou ela ansiada. — Não. Sossega. Euvou sair, e volto daqui a duas horas. — Não me deixe prender, senhor Duarte!— exclamou a escrava de mãos postas.— Estás pronta a fazer tudo que seja necessário para te salvar?— Estou, meu senhor!— Bem. Logo falaremos. Duarte Cotinel saiu; entrou em casa dopromotor da Inquisição, e deteve-se meia hora. Dali foi em direitura aoConvento de S. Domingos, e demorou-se com dois conselheiros do SantoOficio. Era de pronto recebido como familiar. À saída do convento, viuAntónio José da Silva que desembocava das Portas de Santo Antão.Escondeu-se. Não lhe sobrou infâmia para se defrontar com o homem que eleandava apunhalando. Era um remorso dos celerados aquele. Lampejava-lheuma luz nas trevas da alma; porém, luz do inferno, chama da consciênciainfernada.António José da Silva não o vira. Ia abstraído, pensando no modo de brindaro amigo Duarte com um gracioso e ao mesmo tempo rico presente no dia deanos de Lourencinha.


Chegou o almoxarife a casa, esteve-se momentos em recolhimento acerbo, echegou a pedir sacrilegamente ao diabo que lhe afastasse o cálix da tentação.O diabo conduziu-lhe a negra, que lhe vinha perguntar o que ela devia fazer.— Eu te chamarei... — disse ele mal encarado.Feliciana fez pé a trás, espantada da mudança. E o diabo, assim que a pretavoltou costas, foi buscar o cofre de António José, e mostrou-lhe peça porpeça a caixa dos pentes de ouro cravejados de diamantes, e as vinte e quatropedras de extraordinário lume e quilate, e os copos da espada recamados dejoias, e os vinte e quatro contos em moedas de ouro. Repôs tudo no cofre oexpositor infernal, e disse, batendo-lhe com a mão de ferro calcinado nocoração:— Cento e cinquenta mil cruzados! Levantou-se de salto Duarte, e foidentro chamar a negra. Compôs o gesto, abemolou o tom da voz afogada darápida respiração, e disse:— É necessário, se te queres salvar, que vás à Inquisição denunciar teusamos; senão, estás perdida, que eu não posso combater a perseguição que tefazem.— Pois eu vou... e que hei de dizer?... — perguntou ela, tremendo.— Tudo que sabes, tudo que viste. Não queres?— Vou onde Vossa Senhoria me mandar. Pois não hei de ir?


— Porque se não vais és presa, e além disso estás excomungada.— Excomungada!— Sim. És obrigada a denunciar dentro de trinta dias teus amos, sob penade excomunhão. Amanhã, às dez horas, irás à Mesa do Santo Ofício à CasaSanta. Diz ao alcaide que queres falar ao senhor inquisidor; lá te farão asperguntas, e tu responderás; mas olha, Feliciana, se te perguntarem o que faziateu amo doutor, responde que fazia o mesmo que a sua mãe; senão, fazesprender a mãe, e ele fica livre para te acabar a vida nos ferros do Limoeiro ounas galés.A negra foi fazer exame de consciência como quem se prepara para salvar-sedas galés.A furto, lhe caía às vezes na alma uma gota dolorosa como de chumbocandente. A negra dava upas no catre, onde não provou cinco minutos derepouso. Um raio de penetrantíssima angústia lhe atravessava, a espaços, acabeça, e ao fogo, que lhe acendia, mostrava-lhe os benefícios, afagos ecuidados com que Lourença Coutinho a tratava nas suas moléstias. Quando aslágrimas, ferventes daquele queimar, lhe ressumavam aos olhos cravados nastrevas, chamava ela no seu auxílio a lembrança das vergastadas que sofrera,doutras que a esperavam, e, depois, as gramalheiras da galé.Lutou assim até ao dia. E, ao mesmo tempo, a noite de Duarte não foi maisrepousada. Calculava ele as consequências daquele acto, que ele já, ainda que


quisesse, não podia aniquilar. Se a negra, golpeada de remorsos, revelaria nosinterrogatórios futuros que fora ele o motor da denúncia? Que pensaria omundo da riqueza inesperada? Que julgaria da perfídia do homem que perderauma família? Ocorreu-lhe a ideia valedora de todos os que não receberamainda nome condigno e significante na perversão moral, que entesta com asraias do inverosímil. Lembrou-se de matar a veneno a escrava à hora em quefosse necessário sepultá-la com o segredo.A negra não podia ser pálida diante do inquisidor que a interrogava, e dosecretário que escrevia o depoimento; mas o tremor da voz dizia o que aescuridão da pele, oleosa de aflito suor, não podia delatar. A desgraçada estavajá sentindo em corpo e alma as labaredas que se iam acendendo, a cadapalavra dela, em volta da família com quem se criara desde criancinha.Juramentada, confessada, e intimada para aparecer quando novamente achamassem, saiu. Apertou o pé caminho da Bemposta, e limpou muitas vezesas lágrimas para ver o caminho.Ansiosamente a esperava Duarte. Feliciana lançou-se-lhe de joelhos,exclamando:— Eu fiz que vão matar a minha senhora, e a senhora Dona Leonor quenunca me fez mal nenhum! Não os deixe morrer, senão eu vou atirar-me àcisterna!


— Não morre nenhum, tola! — disse Duarte. — No primeiro auto-de-fésaem todos livres; e entretanto eu tratarei de te arranjar fora de Lisboa ummodo de vida em que tu enriqueças. Hei de dar-te um bom dote para casarescom um oficial de oficio. Ergue-te, Feliciana. Então respondeste? — Sim, meusenhor; mas eles, às vezes, faziam-me dizer o mesmo de muitas maneiras, e euestava a tremer de medo daquele senhor da capa e barrete de borla, que tinhacara de meter medo...— Está bom. Vai jantar, e come bem, que os teus amos não sofrem senãoa prisão de algum tempo. já te não lembram aquelas vergastadas?...


CAPÍTULO VIIAs pessoas não lidas nas mais repulsivas páginas que temos da história dahumanidade; as que não viram ainda nem coraram de ver os irrefutáveis eimorredouros livros de Alexandre Herculano acerca da Inquisição emPortugal, desculpavelmente malsinam de inverosímil o carácter de DuarteCotinel. Faz-lhes honrosa repugnância tão extremada infâmia, quando ointento e fito dela é aferrar de um cofre recheado de riquezas por cima datorrente de lágrimas e sangue de uma família, por cima de uma fogueira quederrete as carnes e pulveriza os ossos do possuidor do tesouro. Espantam-se,e refutam de boa fé, como desnaturais e insondáveis os abismos de infâmiadonde lhes sai o homem que não pode alegar como causa da mortehorrendíssima de uma família, senão a necessidade de a roubar, e adescoragem para matá-la a ferro quando ela o recebe no seu grémioconfiadamente.Espantam-se; mas não era mais para assombros Duarte da Paz, aquele hebreuque recebia dos da sua raça ouro a torrentes para os salvar em Roma, e osvendia aos algozes sagrados de D. João III? Não era mais incrível a denúnciado parente, que esperava sonegar ao confisco do Santo Ofício os tesouros doirmão, e às vezes do pai, que expirava amaldiçoando a cega Providência, pornão saber quem o chumbara às lajes que o sol não aqueceu nunca?


O melhor e mais alto louvor que pode entoar-se a este século é não haver aíquem já aceite como praticáveis os atrozes lances de um passado, que dista denós apenas século e meio. Que dias aqueles e que dias os nossos! Como a vidae alma humana eram então desgraçadas! Que deploráveis gerações de infelizese de celerados rolaram à voragem em correntes de lama ensanguentada! Comoo sol de Deus passaria triste no céu, e o que iria no grande Espírito Criador, láem cima, cortinas adentro destes milhões de estrelas!É preciso levar o pensamento ao âmago, ao turbilhão daqueles dois séculosnefastos que marcam o nosso opróbrio desde D. João III até ao marquês dePombal, aurora do melhor dia, aurora manchada ainda de laivos de sangue,mas enfim o alvorecer, o redimir — se o homem, esquecido de Cristo,começou então, neste recanto de heróis piratas, e de apóstolos sanguinários! Ea Providência não contava como seus, como obra sua, como filhos da suaeternidade aqueles dois séculos?A Providência deixava escabujar o hebreu nas correntes da sua masmorra, edeixava aquecer-se o frade às chamas crepitantes dos seus cruentosholocaustos a Jesus.Mas um dia, a última fogueira devia apagar-se devorando o mais fanático dostonsurados, o padre que em si compendiava o ascetismo fraudulento, asilustrações fictícias do alto, os dons falazes de inspirado, as raivas teocráticas,


quantos herpes tinham roído e empeçonhado os liames que suavementeenlaçavam a humanidade com a cruz do seu mais divino redentor.Um dia acendeu-se uma fogueira; e essa fogueira, que foi a última emPortugal, ao apagar-se deixara um sedimento lodoso em que a Providênciamandou procurar as carnes, os ossos, e me quer parecer que a alma do padreGabriel Malagrida.Aqui está a Providência. Mas quem deu conta dos milhares de famílias, cujascinzas levaram os quatro ventos do céu?A Providência não as pediu — acrescenta uma blasfema filosofia.Pediu. Destes atascadeiros do mundo não podemos desferir o voo lá paraonde essas contas se pedem; cremos, porém, com a mais pia racionalidade,que os filhos de S. Domingos e filhos dos santos pontífices foram chamados acontas, e as deram como criminosos de um período do mundo em que alegislação civil não era mais misericordiosa que a eclesiástica.Eu creio que ninguém tirou uma vida que não respondesse por ela quando onome do assassinado fosse lido na lista do seu Criador.E por isso pergunto aos oráculos dos nossos dias se os caprichos dos reis nãotêm que dizer da sua justiça, quando lhes perguntarem porque alvejam aindaas ossadas nos descampados em que passaram os reis, à frente das suas reses.


Não sei qual razão haja aí que legitime o morrer dos que pelejam; contra umabandeira; e se deplore sobre a página tarjada dos que caíram nas lutasreligiosas, mais ou menos covardemente assassinados.De cadáver a cadáver não há distinção. É tudo o mesmo açougue.


CAPÍTULO VIIIChegou o dia 5 de Outubro, segundo aniversário de Lourencinha.Diogo de Barros, com todos seus filhos e netos, e alguns poucos maisparentes de Jorge, à hora do meio-dia estavam em casa do advogado AntónioJosé da Silva, depois de previamente remeterem os seus presentes em bandejasde prata cobertas com alvíssimas toalhas à cabeça de escravas, as quais iamacompanhadas por lacaios das casas respetivas.À uma hora estava o jantar na mesa. Abancaram todos alegremente,excetuado o pai da festejada criancinha, porque meia hora antes recebera umbilhete de Duarte Cotinel Franco, lastimando-se por não poder comparecer nafesta, e mais ainda por motivo de não poder desamparar um posto, dondeestava observando a tecedura de uma intriga inquisitorial contra o seu amigo,intriga que requeria urgentíssimo remédio.António José da Silva, terrivelmente surpreendido, escondeu de todos, e atéda esposa, o conteúdo do bilhete, para não perturbar a satisfação dosconvidados. Julgou ele que a intriga ou seria logo desfiada por esforços doamigo, ou viria a vingar mais tarde: como quer que fosse, absteve-se desobressaltar a família e os hóspedes, simplesmente anunciando que DuarteCotinel faltava ao jantar por desculpáveis motivos.


Lourencinha, durante o jantar, andou pelos braços de todos, e o mais dotempo esteve nos do padrinho, Diogo de Barros.O ancião, já sabedor da breve saída de Leonor, fitava olhos húmidos naafilhada, e dizia-lhe:— Não chegas a conhecer o teu decrépito amigo. Quando tiveres seteanos, tua mãe te falará de mim, e te dirá quanto quis aos teus avós, aos teuspais e a ti, anjinho do céu.— Essas lágrimas, meu tio, vêm amargurar a festa da nossa Lourença —disse Leonor. — Quem sabe ainda se nós iremos para fora? Parece-me quevamos já esquecendo...— Não esquecemos, não... — acudiu António José, reconcentrado e triste.— Pois que há, António? — perguntou Lourença.— Nada, minha mãe!... E, tomando da mesa uma alva caneca indiana,exclamou: — Bebamos à saúde de Duarte Cotinel Franco, amigo honrado,amigo dos que a Divina Providência dá aos infelizes que a não denegam nemofendem! Bebamos à saúde do generoso defensor que faltou nesta festa defamília, porque não podia ao mesmo tempo estar aqui e defendê-la dasarmadilhas dos nossos inimigos! Bebamos à saúde de Duarte!Bradaram todos, tirante Leonor e Lourença:— À saúde de Duarte!


— Tu não bebes? — perguntou António à esposa.— Estava distraída... — respondeu ela; e, pegando da sua taça, disse ela: —À saúde dos sinceros amigos!Lourença Coutinho bebeu também. António José olhou-as com severidade, emurmurou:— Sois ingratas!...— Então, senhor Silva? — exclamou Diogo de Barros. — São issopalavras que se digam?— Pois que quer Vossa Senhoria? — redarguiu o hebreu. — Ainda nãopude provar a estas criaturas que Duarte é um homem de bem!...— Nem a mim — atalhou Diogo.— Pois quê?!... — volveu António José com muito espanto — , nem aVossa Senhoria!— Não; mas não debatamos hoje essa questão, senhor doutor. Falemoslinguagem amorosa, que a nossa criancinha entenda. Chegai-me cá essabandeja de confeitos para a beira da minha afilhada...Fez-se um forte estrondo na porta da escada e calaram-se todos. Antes queentrasse criado a dar aviso, apareceu Duarte Cotinel, com a vista esgazeada edescomposto rosto.


— Que é? — perguntaram muitas vozes.— Vem cá, António!... depressa... depressa... Todos se levantaram, e só ojudeu passou com ele à próxima sala.— Vais ser preso — disse ofegante o almoxarife.— Preso?, já?...— Já os familiares e meirinhos estavam à boca da rua. Sei que a ordemtambém se entende com a tua mãe e mulher. O meu pai já não pode salvar-te;mas arrancar-te-á brevemente da prisão... Não percas agora a cabeça, António!Vem cá!...O judeu corria de um lado para o outro apertando vertiginosamente as fontes.— Vem cá... escuta-me...— Que é? — disse António com espasmo de idiota.— É preciso salvar o teu tesouro das garras da Inquisição. Bem sabes queos hebreus ricos, se podem salvar-se do fogo, saem mendigando do cárcere.— Sei... e então! — De quem confias as tuas riquezas? — De quem?... deti, de ti... Duarte!... — E já!, então deve ser já, antes que os familiares arrestemo que estiver de portas adentro. Leva-me onde está o tesouro, que eu desçocom ele para os baixos do pátio, e fujo depois que os familiares entrarem.


António correu à sua câmara: abriu o gavetão de um contador, e entregou-lheo cofre, e mal articulou estas vozes:— Não nos desampares, não nos desampares... Duarte desceupressurosamente ao pátio, e escondeu-se no quarto dos criados.Instantes depois, entraram dois familiares do Santo Oficio e dois meirinhos.Quando chegaram ao topo da escada, ouviram grande alarido de gritos,Bateram.Saiu-lhes Diogo de Barros, que devia conhecer os familiares: eram duaspessoas nobilíssimas, nascidas em duas das mais distintas casas damonarquia?(*)[(*) Os primeiros fidalgos de Portugal honravam-se grandemente com apresilharem no ombro a insígnia dequadrilheiros da Inquisição. Era uma medalha de ouro com as armas do Santo Ofício gravadas.]Diogo de Barros, com as faces cobertas de lágrimas, proferiu palavrassuplicantes, compungentes, e todavia inúteis.Um dos familiares disse:— Vossa Senhoria sabe quais são as minhas obrigações, porque, naqualidade de familiar do Santo Ofício, sabe cabalmente quais são as suas.


— Uma das presas tem uma filhinha de dois anos... — disse Diogo — ,como há de ser isto?— Como é costume — respondeu o enviado da Inquisição as criançasficam no poder de quem as quer aceitar.Os brados redobravam interiormente, porque Leonor tinha ouvido dizer aofamiliar: “As crianças ficam.”Foi dentro Diogo, e os quadrilheiros seguiram-no. Leonor girava em volta doshóspedes, como para fugir-lhes, temerosa de que lhe arrancassem a filha.António José, a um canto da sala, encarava, num letargo de brutificaçãodolorosa, os movimentos frenéticos da mulher. Ninguém sabia nem podia aliconsolar: choravam todos.Os familiares, com braços cruzados, esperavam o quebrar daquela tormenta, emediam de alto a baixo dois filhos de Diogo de Barros que, num instante deindiscreta ira, tinham posto as mãos nas guardas dos fains.António José da Silva saiu do seu estupor, e caminhou com presença de almaa encontrar a mulher numa das suas irrequietas arremetidas.— Leonor! — disse ele — , isto é irremediável. Entrega a nossa filha aosenhor Diogo de Barros.As damas rodearam Leonor, e ampararam-na. A criança expedia altos gritos.A mãe largou-a, ou por julgar que a estava estrangulando no apertar dos


aços, ou porque os sentidos lhe faltaram. Uma das senhoras passou a outrasala com a menina.Diogo de Barros pediu aos seus colegas do Santo Oficio a graça deconcederem que Leonor e a sua mãe fossem transportadas de liteira à SantaCasa.Responderam: — Não temos alçada. Pediu-lhes que o esperassem enquantoele ia falar ao cardeal inquisidor. Responderam que não podiam esperar maistempo.Leonor e Lourença cobriram as mantilhas, e desceram encostadas às espáduasde António José.Um dos meirinhos fechou as portas, depois de ordenar da parte do SantoOfício que saíssem todos os escravos e criados.Assim terminou o dia 5 de Outubro de 1737, segundo aniversário natalício dafilhinha de António José da Silva.


CAPÍTULO IXA Inquisição tinha diariamente dois conselhos, chamados ordinários. Um dasoito às onze horas; outro do meio-dia às quatro.Quando os presos chegaram à Santa Casa, já os inquisidores e secretáriotinham saído da Mesa do Santo Ofício.O alcaide conduziu-os a um vasto salão, já iluminado com lampadáriospendentes do teto esfumado, e mandou-os esperar, recomendando a Leonor,que soluçava, completo silêncio.Um guarda, ou chaveiro, ficou encostado ao batente da alterosa porta.António José sentou-se num tamborete de pau entre sua esposa e mãe.Apertou nas suas as mãos de ambas, e murmurou:— Não desanimem, que Duarte asseverou-me a nossa próxima saída.Lourença soltou um gemido, e apenas balbuciou:— Duarte!... Creio que estamos perdidas!... — Não estão... não estão...Tens coragem, Leonor?— Tenho... que sou mãe... — exclamou ela, levantando a voz.O guarda pronunciou um longo sio. Às cinco horas voltou o alcaide, e disse àspresas que o seguissem.


— Adeus! — disse Leonor ao marido, inclinando-lhe ao peito a face.Lourença Coutinho beijou o rosto do filho, e disse-lhe ao ouvido:— Até Deus, meu amado filho! António José abraçou-as a um tempo, ecaiu sobre os joelhos com elas.— Venham, mulheres! — disse o alcaide carregando o aspeito.Levantaram-se: Deus viu-os levantar-se, e separarem-se. Viu-os, porque Deusestá em tudo e vê tudo.Enquanto o alcaide não voltou, o hebreu esteve de joelhos, com o rosto sobreo tamborete. Ouviu os sonoros passos do chefe dos carcereiros; levantou-se, eperguntou — lhe:— Pode por piedade dizer-me se a minhamulher e a minha mãe ficarãojuntas?— Ficarão juntas até amanhã. Siga-me. António foi levado ao cubículoquadrado de dez palmos em que estivera onze anos antes: era o cárcerenúmero seis do corredor meio novo. O alcaide deteve-se alguns segundos paralhe mostrar a enxerga e a manta, o pote da água e o púcaro; depois saiu com alâmpada, rodou a chave, e fez as trevas profundas daquele ergástulo, porordem dos levitas de um Senhor, que tinha feito a luz universal, num dia deboa feição, antes de fazer os levitas num dia de rancor às suas criaturas. Não


sei se o hebreu ficou a pensar nisto: o blasfemar, naquela situação, seria nãovulgar virtude.Domingos de Gusmão, se está nalguma parte, e conserva a memória dosfavores que fez ao género humano, deve saber contar como foi aquela noitede António José da Silva, de Leonor e de Lourença Coutinho, e daquelacriancinha sem ver sorriso ou lágrimas de pessoa conhecida.Às seis horas e meia abriu-se a porta do cárcere número seis: o guarda depôsao lado da enxerga do hebreu um prato de arroz com uma posta de peixe, esaiu? (*)[(*)A alimentação dos encarcerados, com alguma diferença, nas horas de lha ministrarem, era a mesma emtodas as prisões inquisitoriais do território português. O autor da Inquisição de Goa, o qual, como se disse,foi muito tempo ludíbrio dela, no tocante aos alimentos, diz o seguinte: “Os presos são bem tratados; comemtrês vezes ao dia; almoço às seis horas da manhã, jantar às dez, e ceia às quatro horas da tarde. Aos pretosdão-lhes canja de arroz: chama-lhe o francês cange, ao almoço; ao jantar e ceia dão-lhes peixe e arroz Osbrancos passam melhor: de manhã dão-lhes um pão fresco de três onças, e peixe frito, fruta, e uma linguiça,se é domingo ou quinta-feira; e nestes dias, ao jantar, dão-lhes carne, um pão como o do almoço, e um pratode arroz e algum guisado com farto molho, para adubar o arroz, que é cozido simplesmente com sal; nosdemais dias o jantar é sempre de peixe; e à noite dão peixe frito, pão, arroz, e guisado; carne é que nunca láse come à noite.” Presume o desconhecido autor que a abstinência da carne leva em vista evitar indigestões.Aqueles higiénicos sujeitos poupavam os corpos salutarmente, no intento de lhes purificar as almas no fogo.Em Lisboa prevalecia a mesma piedade. ]


António José deteve-se a olhar na chama da lanterna, que o chaveiro puseraao lado do prato. Voltou o guarda, e disse-lhe que comesse.— Não posso — respondeu o preso.O guarda saiu com a luz, e correu os ferrolhos da porta. Ao romper da manhã,António José tinha os olhos cravados na alta fresta, por onde entrava o diaatravés das grades. Assim que o cubículo se aclarou, olhou em redor de si:reconheceu aquelas paredes. Viu um objeto novo: era uma cruz, feita comsangue, à cabeceira da enxerga. Algum desgraçado ali deixara aqueletestemunho da sua religião, traçado com o sangue furtado ao constritor dastorturas. Às seis horas, levaram-lhe o almoço. António José, como tivesseorado, cobrou alento. Orar a quem? Não se sabe; mas as testemunhas juradascontra ele disseram que, através das escutas da prisão, viram-no algumas vezesorar de joelhos. Orava a Deus.O certo é que se lhe fez luz de esperança. Aceitou o almoço, e comeu porqueesperava resgatar-se, depois de alguma flagelação. Deram-lhe uma vassourapara a limpeza do calabouço, um pote para determinado fim, e uma celha, queservia de cobertura ao pote, e de recetáculo de lixo. Depois, cortaram-lhe ocabelo, vestiram-no com o traje da casa, e despojaram-no de tudo que levavavestido.


O hebreu, onze anos antes, tinha deixado ali um alcaide que o tratava commenos crueza, bem que nunca lhe concedesse um livro? O novo oficial, quesubstituíra o outro, denotava a ferocidade ordinária daqueles funcionários daSanta Casa, e pode ser que extraordinária ferocidade com ele.Leonor e Lourença tinham passado a noite juntas. Não nos arrojamos abosquejar muito em sombra as presumíveis angústias das duas mulheres. Apena mais afeita a escrevê-las, ainda entre os dedos de Lorente e de AlexandreHerculano, cai desanimada. Esta ineficácia e incapacidade para descrições deagonias inenarráveis faz honra ao coração do homem.Ao outro dia, por volta de onze horas, um guarda separou as presas.Abraçaram-se. Lourença disse à esposa do filho:— Se vivermos... até ao auto-de-fé. Leonor, quando se viu sozinha,ajoelhou, e disse: — Meu Deus, graças te dou, porque me levaste minha mãe eo meu pai! Deus de misericórdia, leva-me a minha filhinha, se eu não hei demais vê-la... leva-ma, ó Senhor, para eu poder acabar resignada!Ao mesmo tempo, um oficial do Santo Ofício entrava à prisão do hebreuexortando — o a que declarasse exatamente os seus haveres, acrescentando:— Da parte de Jesus Cristo vos digo que, se estiverdes inocente, vos seráentregado tudo que o vosso for; e, se alguma coisa sonegardes, qualquer queseja a vossa inocência depois reconhecida, tudo perdereis.


António José respondeu que tudo que possuíra deixara na sua casa no Largodo Socorro; juntou que pouco herdara do seu pai, e a pequena herança aempregara em adornos da sua casa.À uma hora da tarde, o alcaide e um guarda conduziram-no à Mesa do SantoOfício, ocupada por três inquisidores e um secretário. Mandaram-no sentarem tamborete raso, único objeto desprezível no meio de ricas poltronas,tapetes, e guadamecins que exornavam o espaçoso recinto. Os inquisidoresocupavam parte das poltronas laterais à mesa. O secretário sentava-se rente aotopo da banca, voltando as costas a um grande Cristo que se alevantava até àabóbada. Começou o interrogatório, depois que ele foi ajuramentado com ummissal. Perguntaram-lhe se sabia porque fora preso. Respondeu que não.Pediram-lhe “pelas entranhas misericordiosas do nossoSenhor Jesus Cristo!”,(Eram os termos sacramentais com que pediam tudo.) que confessasse paramais depressa experimentar a bondade e misericórdia daquele tribunal com ossinceramente arrependidos.Disse o hebreu que se julgava vítima de odientos intriguistas, que tinhamquerido ver nas suas comédias alguns rebuçados insultos à religião católica.Instaram os inquisidores pela continuação das suas conjeturas. António Josérespondeu que não tinha outras.


Leram-lhe o que ele tinha dito, e mandaram-no assinar. Ao toque decampainha, entrou o alcaide, o secretário fez um gesto de cabeça, e o hebreusaiu.António José quis ler no rosto dos inquisidores uma boa nova. Figuraram-selheafáveis no trato e comovidos nos termos do interrogatório. Lembrava-seda aspereza dos outros que, da primeira vez, e logo às primeiras perguntas, oameaçaram com a tortura. Saiu animado: enviou aos corações da esposa, damãe e da filhinha um sorriso de esperança.


CAPÍTULO XNeste dia, Duarte Cotinel, a horas descostumadas, estava ainda fechado noseu quarto. A noite passou-a na vigília de um suplício atroz, com intermitentesde infernal alegria. Tinha ali o tesouro de António José da Silva. Abrira-o,remexera-o, contara as joias, contara os brilhantes: estava tudo, e mais umanel, que ele nunca vira, o anel do contador-mor, a prenda que D. João deBragança dera ao seu destro caçador na tapada de Vila Viçosa. Mas assim queele despregava os olhos das flamejantes pedras, assim que descia a tampa docofre, ressaltavam outras chamas de dentro dele, e iluminavam-lhe trêspessoas em contorcimentos horrentes, amarradas a três postes, e as labaredasa subirem, e a serpejarem por elas, e a fumarada negra a subir em colunadentre as camadas de lenha e as faíscas a lampejarem pela cerração do fumo, eos gritos estrídulos a retinirem por sobre o crepitar da fogueira.Assim que o almoxarife se afez àquela visão, e achou que o segredo mágico dea desvanecer estava no abrir do cofre e na deleitação de tirar e repor aspreciosas camadas, conseguiu conciliar o sono. Ora, a placidez, com que eledormia às onze horas da manhã era tal que ninguém poderia estremá-la daplacidez com que dorme um justo.Às onze horas, porém, foi espertado por estrondoso empuxar à porta. Saltoudo leito, e abriu as janelas para convencer-se de que havia sol, ar e luz para ele,


como para qualquer justo, que se ergue do seu catre duro de penitente paralouvar a luz, o ar e o sol de Deus.Ouviu o gritar convulso de Feliciana; vestiu-se à pressa, e abriu.A negra ia dar-lhe parte de que estava no pátio um familiar e um meirinho doSanto Oficio, em procura dela.— Olhe se me esconde, pelas cinco chagas! — exclamava ela.— Se te escondo?! Para quê? — disse ele sossegadamente. — Pois tu julgasque vais presa?— Pois então?— Não vais presa, bruta; vais ser outra vez perguntada a respeito do que jádisseste; entendes, mulher?— Perguntada outra vez? — disse ela.— Diante da minha senhora?— Não: tornam a perguntar o que já disseste, e mandam-te embora, que éo costume. Pois tu pensas que as testemunhas também são metidas na prisão?Está aí o familiar, porque é sempre assim; é ele que vai buscar as testemunhas.A escrava, não obstante as explicações confortadoras de Duarte, pensou emfugir pela quinta; mas o familiar e meirinho anteciparam-se a intimar


perentoriamente o almoxarife, por maneira que faltou à negra tempo e ocasiãode fugir.Depôs ela saiu Duarte, caminho do tribunal. A preta foi conduzida àaudiência; o almoxarife da Bemposta entrou no aposento do alcaide, onde sedemorou meia hora em prática muito recôndita.Ao capelão dos infantes, pai de Duarte, devia o alcaide a sua investiduranaquele exercício bem remunerado. O almoxarife sabia que naquele homemtinha um auxiliar poderoso e de confiança para qualquer intento, semdespender-se na compra da alma bastante abjeta para vender-se cara. A práticaentre os dois terminou depressa porque as ocupações do alcaide eram muitase pouco intervaladas de repouso, mormente naquele mês de Outubro, em queregularmente se celebravam os autos-de-fé — por cair então a primeiradominga do Advento — e serem mais frequentes os interrogatórios e torturasdos presos.Assim mesmo no breve tempo que praticaram, os pontos essenciais,respetivamente à negra, foram combinados, e as consequências más previstase remediadas.Feliciana, depois de interrogada, ouviu o seu depoimento, e assinou de cruz.Mandaram-na sair; e quando ela endireitava pelo caminho do pátio, um guardamudou-lhe a direção, dizendo-lhe:


— Por aqui. Apavorou-se a negra, e perguntou em ânsias: — Eu ficopresa? — Não: ficas ali em baixo num quarto até ver.Fecharam-na. Começou logo ela a dar gritos e a revolver-se no pavimento.Acudiram os guardas com vergastas e ameaçaram-na. Foi chamado o alcaide,para aquietá-la. Queria ele ficar a sós com a negra para acalmá-la com razõesconsoladoras, que assim convinha; mas, proibindo os estatutos da Inquisiçãoque algum oficial do serviço dos cárceres estivesse com o preso sem otestemunho doutro empregado, o alcaide valeu-se do terror para aquietá-la.Ao outro dia, o guarda avisou o alcaide de que a negra estava clamando quejurara falso, e queria ir desdizer-se à presença dos inquisidores, e contar o quese passara com a pessoa que a fizera jurar.O alcaide avisou Duarte Cotinel, que sem mais demora que a necessária paraprover — se de um frasco, foi à Santa Casa, e pouco se deteve com oconfidente.A negra não cessava de exclamar e pedir que a ouvissem. Pouco antes da horado jantar, o alcaide, com o pretexto de a castigar, entrou sozinho à prisão, etão brandamente falou à negra, tão breve lhe figurou a sua saída do SantoOficio, que a desgraçada aplacou — se, e prometeu comer e sossegar até aooutro dia na esperança de sair então.


Feliciana jantou com algum apetite; não achou travor sensível no molho dacaldeirada do peixe: comeu bem, com tenção de dormir melhor para aligeiraro tempo. Meia hora depois, quando pensava em adormecer, saltou da enxergaem gritos e ânsias, bradando por socorro. Acudiram os chaveiros. Felicianaqueixava-se de ter dores infernais no ventre; rolava-se no soalho, e levantavasede salto remetendo contra a porta para fugir. Numa destas investidas queos guardas repeliam, a negra caiu, estrebuchou, estirou as pernas emconvulsões, retorceu boca e olhos horrendamente, e morreu.José Maria da Costa e Silva, o menos imperfeito biógrafo de António José, dizo seguinte acerca desta escrava:“Lourença Coutinho, mãe do poeta, tinha uma escrava preta, porque nessetempo havia ainda escravos neste reino, e aquela escrava era desonesta edissoluta, como todas elas, e como o são quase todas as criadas.António José da Silva a castigou, e é natural que com rigor aproximado ao queem tais casos se usa no Brasil: a negra era vingativa como quase todos osnegros, e ou por malignidade própria, ou por sugestões de pessoa ou pessoasa quem se queixou, apresentou contra ele no Santo Oficio uma notícia dejudaizante e relapso...Porém, a justiça de Deus não quis que esta perversa mulher continuasse aajudar a ruína do seu senhor, nem gozasse da sua vingança tão traidoramente


procurada; pois apenas a negra entrou no cárcere possuiu-se de tais terroresque dentro em breves dias terminou a sua existência.“Eu inclino-me a crer muito mais nos efeitos do veneno de Duarte Cotinel quenos pavores e remorsos da negra.


CAPÍTULO XIEstavam em campo os poucos amigos e os muitos inimigos de António Joséda Silva.Inimigos eram os homens de letras, que se julgavam compreendidos naalegoria daqueles que D. Quixote e Sancho Pança levaram a pontapés parafora do Parnaso; eram os ouvintes piedosos das suas comédias que riam muitodas facécias indecentes e censuravam a licença desbragada do judeu; eram osfrades, que através da gelosia do seu camarote, se tinham doído das frechadasque o judeu nunca lhes apontara.Amigos tinha dois dedicados e diligentes: eram Diogo de Barros e o conde daEriceira; mas o amigo que ele em maior conta e préstimo tinha era DuarteCotinel.O conde, desde logo, anteviu o desastre, inferindo-o do sobrecenho com queo inquisidor-geral, e parente seu, D. Nuno da Cunha o desatendia em rogospertinentes ao judeu. Diogo de Barros, pela sua parte, achava de bronze opeito dos membros do Supremo Conselho. Todos, à uma, professavam ódioentranhado ao judeu que pudera salvar-se do justo castigo, para reincidir namesma culpa; e demais disso atentar contra os bons costumes expondo aopovo os quadros irreligiosos e desonestos das suas óperas, recheadas degentilidades, heresias e chascos à piedade.


Diogo de Barros, confiando no olhar suplicante da menina que tinha na suacasa, ia com ela aos inquisidores, levava-a nos braços, e ensinava a criancinhaa dizer “piedade” àqueles homens severos que lhe faziam medo.Alguns, tocando na face da menina, diziam-lhe: “Deus te afaste dos pais quetinham de perder a tua alma. “Outros, voltavam-lhe as costas, e respondiam azedamente ao solicitador daliberdade de três relapsos, que tão mal pagaram à misericórdia das entranhasdo nossoSenhor Jesus Cristo.No entanto, António José espantava-se de não ser chamado a novointerrogatório, decorridos vinte dias de prisão. O mês de Outubro tinhapassado: para ele era já ponto decidido que ainda estaria preso um ano, até aoprimeiro auto-de-fé, a não dar-se algum extraordinário e raríssimas vezessucedido caso de sair livre sem o cerimonial daquele espetáculo de morte parauns e de perdão para outros — espetáculo de “justiça e misericórdia“ comodizia a tarja que circundava o painel do fundador do Santo Oficio, arvoradona procissão, aquele S. Domingos que numa das mãos empunhava um ramode oliveira, e noutra uma espada nua.O processo estava, porém, instaurado, e o inquérito das testemunhascontinuava. Quais testemunhas?


Aqui é o ponto de colher os panos à imaginação, e encostar-se o romancistaao pouco de que pode amparar-se para não escorregar no plano inclinado dashipóteses impróprias do assunto.O processo de António José da Silva está no Arquivo Nacional da Torre doTombo: para ali foi nos cartórios das Inquisições em 1821. Alguns curiosospossuem cópia do processo; eu não vi-a, nem estou ao alcance de poder aindaconsultar as peças principais, que mereciam a publicidade, usurpada porfarragens inutilíssimas que pejam as livrarias.Costa e Silva viu o processo, ou o principal dele; todavia, um sujeito que seprezava de ser futilmente prolixo em numerosas páginas a propósito de nada,foi mais que omisso na biografia importantíssima de tão assinalado escritor, edesassisado nalgum dos esclarecimentos que levianamente dá. Outrobibliógrafo de maior tomo, o senhor Inocêncio Francisco da Silva, nãoobstante a breve e sucinta notícia com que antecede a relação das óperas dojudeu, pensa em corrigir de passagem os graves erros do seus antecessores, erestaura lucidamente a verdade de alguns essencialíssimos factos. Como querque seja, pelo que respeita ao processo, é judicioso atermo-nos ao que estiverescrito por pessoa que o haja examinado. Nesta parte, irei trasladando opouco de Costa e Silva. Diz ele:“Sepultado o suposto réu no cárcere número seis, do chamado corredor meionovo, deu-se obra ao seu processo, e como faltavam provas, e culpas


articuladas, e definidas, pois todas se reduziam às acusações vagas, tais quais aspodia dar uma negra boçal de Cabo Verde, quiseram os seus juízes, ou seusalgozes, sair da dificuldade criando-as na mesma prisão.Do seu processo... consta que os guardas foram incumbidos de o espionarpelas escutas ou buracos, que existiam nos cantos dos tetos dos cárceresdaquele terrível tribunal, dispostos de maneira que se pudesse ver e ouvirquanto neles se passava, como eu notei visitando grande parte daquelasmasmorras, quando se patentearam ao público em 1821. Que os ditos guardasquase, todos depuseram que muitas vezes viram-no ajoelhar, persignar-se, erecitar devotamente as orações cristãs; acrescentando somente alguns que elealguns dias não tocava na comida, naturalmente (diziam eles) por satisfazeraos jejuns da lei de Moisés...Consta igualmente do mesmo processo que o poeta protestou sempre pela suainocência; que produziu na sua defesa muitas testemunhas, e entre elasreligiosos graves de diferentes ordens, até da dominicana, e que todos elesafiançaram o seu zelo religioso, a sua exação no cumprimento dos preceitosda Igreja... “Quais testemunhas, pois, depuseram contra António José? Os guardas doscárceres, os oficiais subalternos e sujeitos ao alcaide, a quem incumbia adiretoria interna das prisões. Contra o testemunho dos guardas e odepoimento da escrava assassinada baldaram-se os esforços mais ou menos


conscienciosos dos frades das diferentes ordens, com quem o hebreuindustriosamente mantivera sempre boas relações, pensando que assimpreparava patronos para a crise que sempre se lhe antolhara. Duarte Cotinellevara aos antros da Santa Casa o valor do mínimo daqueles brilhantes, ecorrompera as sete consciências necessárias para fazerem prova de que opreso, algumas vezes, não comia, nem, nos interrogatórios subsequentes,confessava a razão que o fazia abster-se de alimentos.Lourença Coutinho e Leonor, levadas à confissão na tortura, ignoramos quaisrevelações fizessem, arrancadas pela mortificação. É natural que Lourença,esperançada no perdão, se acusasse de judaizante, e que Leonor, compelidapor igual esperança, mentisse aos verdugos para que em nome do Deusmisericordioso lhes perdoassem a culpa.Correram dezassete meses. O processo dos presos fechou-se em II de Marçode 1739. A sentença de morte de António José da Silva, a requerimento dopromotor, foi lavrada naquele dia, e logo relaxada ao braço secular. O acórdãoda condenação não transpirou. já aquela vida estava irremissivelmentecondenada ao fogo, e tanto o réu com grande número do seus amigosesperavam a absolvição no auto-de-fé do próximo Outubro.Decorreram ainda sete meses. Neste período, o mais concorrido espetáculodo teatro da Mouraria era a ópera do judeu, o Precipício de Faetonte, queentrara em cena, quando o autor já sofria o terceiro mês de cárcere, em


Janeiro de 1738. O público vitoriava o infeliz, sem ousar maldizer a justiça quematava lentamente o seu mais festivo e popular autor.Os frades lá estavam casquinando no seu camarote; as famílias dosinquisidores concorriam à festa do talento do hebreu, que, àquelas horas,ajoelhava pedindo à Providência um testemunho do seu poder.Avizinhou-se o mês de Outubro. António José, como nos últimos meses onão chamassem a perguntas, duas conjeturas devia de fazer: uma a da sentençajá relaxada de morte; outra a do perdão, mediante o abjurar no auto-de-fé.Não se demorou a pensar na mais pavorosa das hipóteses: fiava na suainocência, no valimento dos amigos, na fraternal amizade do seu Duarte, e,mais que tudo, na justiça de Deus.Desde o primeiro dia do fatal mês de Outubro, o coração do hebreu pulavalheno peito de cada vez que se corriam os ferrolhos do seu quarto. Fitava orosto do alcaide, que nunca se lhe voltou de frente, nas raras ocasiões queentrava à prisão; pedia aos chaveiros que lhe dissessem alguma coisa do seudestino; pedia notícias da sua mãe e de Leonor; rogava que ao menos lhedissessem se elas viviam. Não lhe respondiam, cumprindo rigorosamente asprescrições do Santo Ofício, concientes de que a morte era o castigo dainfração.Às três horas da tarde do dia 16 de Outubro, ouviu António José da Silvarumor de passos ao longo do corredor; colou o ouvido ao tabuado, e sentiu


que se vizinhavam da sua prisão. Abriu-se a porta, e logo assomou opromotor da Inquisição, e um meirinho da justiça secular.O promotor, sem encarar no preso, leu a sentença pausadamente: “Relaxadoem carne, morto, queimado, como convicto, negativo e relapso.“Lida a sentença, o meirinho lançou em volta das mãos do preso um baraço,como sinal de que tomava posse do réu que a justiça eclesiástica abandonara.António José da Silva morreu naquela hora. Estava em pé, tinha os olhosiluminados, respirava, ouvia, via, e entendia; mas estava morto.À beira dele, depois que o promotor e o meirinho saíram, ficou um homem,chorando. Era um jesuíta de S. Roque, o padre Francisco Lopes, a quemincumbiram conduzir o padecente ao oratório.O hebreu deixou-se levar. Entrou no santuário, com os olhos postos naimagem de Cristo, que lhe antepunha o padre. Ajoelhou, caiu, quando aosseus pés se fez um vácuo, um súbito aluir-se o pavimento por abismos em queele se despenhava com o peito congelado do frio das entranhas mortas.Fechou-se a porta do oratório. Num caso análogo de inexprimível tormento,perguntava Feréal, historiador da Inquisição de Espanha: “Quem pode sondaros mistérios da agonia e da morte, daquela suprema luta entre a formaterrestre e o homem imaterial? “


CAPÍTULO XIIAo aclarar a manhã do dia 18 de Outubro de 1739, abriu-se a majestosa Igrejade S. Domingos, já decorada para a celebração do auto-de-fé. Estavapomposa. Era o leão coberto de grinaldas e laçarias, enfeitado e vistoso, comas fauces abertas à espera do bodo daquele seu dia de festa, do seu almejadodomingo do Advento.O altar-mor, bem que negrejasse de crepe, resplendia com os seus dozecandelabros de prata, e doze alvíssimos círios em argentinas tocheiras. Doistronos se erguiam laterais ao altar: o da direita pertencia ao inquisidor-geral eSupremo Conselho; o da esquerda à casa real.Abaixo do arco da capela-mor, entre as naves, estava outro altar, sobre o qualse viam dez missais abertos com as suas capas de couro, relevos dourados, efechos de prata. Daqui até à porta do templo, construíram uma galeriaabalaustrada de ambos os lados, com passagem pelo centro, e bancadas nointerior: eram os lugares destinados aos presos e aos padrinhos. Panos de sedaadamascada franjados de ouro e prata pendiam dos tetos e frontispícios dascapelas, em que sobressaíam a meio relevo “figuras de boa marcenaria e todascosidas em ouro sem se ver outra coisa”, como conta frei Luís de Sousa naluxuosa descrição desta igreja, a qual não é já a que o leitor conhece.


Às oito horas já o grande espaço da vasta igreja estava ocupado por parte dasmais lustrosas famílias de Lisboa e fidalgos provincianos, que iam gozar-sedaquele espetáculo, superior em aparato ao das outras Inquisições do reino.Às nove horas e meia subiu ao seu magnífico camarote o cardeal inquisidormorD. Nuno da Cunha, e os conselheiros. O palanquim real conservoucorridas as cortinas durante aquele primeiro acto do sanguinário drama aodivino.Assim que o inquisidor-mor apareceu no adro do templo, dobraram os sinos,e logo a procissão do auto-de-fé saiu da Santa Casa, e a breves passosassomou no limiar do templo o estandarte do Santo Oficio com um longoséquito de dominicanos. O fundador da ordem, estampado num riquíssimopanal, com a lampejante espada em punho, era a insígnia do estandarte,perante o qual o povo ajoelhava e batia nos peitos. Em seguida aos fradesinquisidores, caminhavam três mulheres sem hábito; uma, com os olhos nochão, e braços pendidos, andava com firmeza: era Leonor; outra, que doisesbirros amparavam desfalecida, era Lourença Coutinho. Cada presa levava namão direita um círio amarelo. Seguiam-se os condenados a abjurarem compenitência, ou a prisão indefinida ou galés.Entre estes e outros mais desgraçados hasteava-se um grande crucifixo, com aface voltada para os que entraram primeiro no templo. Depôs a cruz, iam trêsestátuas de hebreus ausentes, condenados ao fogo, dois caixotes de ossos


doutros que tinham morrido por efeito da tortura, e três penitentes de carochae samarra ou sambenito pintado de demónios e fogueiras com fogo revolto.Um destes era António José da Silva: diziam que era, dizia-o a sentença escritana orla da samarra: mas depois de dois anos e onze dias de lágrimas e trevasdifícil seria individuar-lhe as feições antigas. O povo, o povo que se rejubilavanas óperas daquele mártir, contemplou-o, e não chorou uma lágrima!... Oh!, opovo!, a canalha de todos os tempos e costumes!António José da Silva não abrira os olhos, durante o trânsito da Inquisição àigreja. Encostado ao ombro do padre Francisco Lopes, levemente lhe acenavaquando o pálido jesuíta lhe perguntava algum artigo essencial para a suasalvação.O banco da galeria em que António José se assentou era dos últimos. Láestava entre ele e as suas mãe e esposa a imagem do Cristo, voltando-lhe ascostas, como no dia do Juízo Final, consoante rezava o evangelho doAdvento.Fez-se profundo silêncio. Um frade arrábido subiu ao púlpito, e pregou. Numdos períodos mais levantados da sua oração, exclamava ele:“É a Santa Inquisição como a arca de Noé; porém, amados irmãos, quãogrande diferença vai de uma à outra! Os animais que entraram na arca,abaixadas as águas do Dilúvio, saíram animais da natureza que tinham; aopasso que a Santa Inquisição por tal maneira muda os entes que em si encerra,


que é digno de ver-se como saem cordeiros os que tinham entradocruelíssimos lobos e ferocíssimos leões.“Terminou o sermão. Subiram dois promotores ao púlpito para lerem assentenças. Cada penitente ouvia ler o seu processo e condenação em pé , nomeio da galeria, com a tocha em punho, e o alcaide à sua beira. Depois,levavam-no à banca dos missais, ajoelhava, punha a mão sobre o sagradolivro, e esperava nesta postura que os condenados fossem tantos como osmissais. Depois, acompanhavam o promotor recitando com ele um acto de fé.Findas as cerimónias com os presos que não tinham sentença de morte,vieram os outros, os relaxados em carne. Eram três homens e duas mulheres.António José foi transportado em braços. Já não ouviu o processo. Tinhaperdido o alento, quando viu Leonor a debater-se soluçante nos braços dedois meirinhos, que lhe abafavam os gritos.Lidas as sentenças, a Inquisição, ao entregá-los à justiça secular, pediaencarecidamente às leis e aos juízes que se tivessem clemência e piedadedaqueles miseráveis, e se lhes impusessem pena capital, fosse, ao menos, semefusão de sangue.A história das ferocidades religiosas não conta maior infâmia!Acabou este acto do drama.Leonor e Lourença foram transferidas em braços para a Santa Casa.


António José da Silva ainda esperou, depois que o levaram da Relação, semconsciência de vida, a aurora do dia seguinte.Quando chegou ao Campo da Lã ardiam já as achas resinosas da fogueira.O mártir não viu-as. Devia ir quase morto, porque escassamente viram-noestrebuchar.Seio do Altíssimo!, se te não abrisses àquela alma, criada ao bafejo da tua, queserias tu, Deus?, que serias tu, palavra?Naqueles dias publicou-se um impresso, que o senhor Inocêncio Francisco daSilva traslada na biografia do Aristófanes português.Reza assim o extrato:Lista das pessoas que saíram condenadas no auto público da fé, que secelebrou na igreja do Convento de S. Domingos de Lisboa no domingo 18 deOutubro de 1739, sendo inquisidor-geral o cardeal Nuno da Cunha.Pessoas relaxadas em carne: N., 7. Idade 34 anos. António José da Silva, x. n,(cristão-novo), advogado, natural da cidade do Rio de Janeiro, e moradornesta de Lisboa ocidental, reconciliado que foi por culpas de judaísmo, noauto público da fé, que se celebrou na igreja do Convento de S. Domingosdesta mesma cidade em 13 de Outubro de 1726. Convicto, negativo e relapso.Pessoas que não abjuram nem levam hábito: N.º 5. Anos de idade 27. LeonorMaria de Carvalho, x. n., casada com António José da Silva, advogado, que vai


na lista, natural da vila da Covilhã, bispado da Guarda, e moradora nestacidade de Lisboa ocidental, reconciliada que foi por culpas de judaísmo noauto público da fé , que se celebrou na Igreja de S. Pedro da cidade deValhadolide, reino de Castela, em 26 de Janeiro de 1727. — presa segunda vezpor relapsia das mesmas culpas, Pena: cárcere a arbítrio.N.º 6. Anos de idade 61. Lourença Coutinho, x. n., viúva de João Mendes daSilva, que foi advogado, natural da cidade do Rio de Janeiro, e moradora nestade Lisboa ocidental; reconciliada que foi por culpas de judaísmo no autopúblico da fé, que se celebrou no Rossio desta mesma cidade em 9 de Julhode 1713; presa terceira vez por relapsia das mesmas culpas. Pena: cárcere aarbítrio.


CAPÍTULO XIIINo dia seguinte ao do suplício de António José da Silva, um padre vestidocom a roupeta da Companhia de Jesus, bateu à porta de Duarte CotinelFranco. Disseram-lhe que o almoxarife estava doente de cama. Instou o padrefazendo saber a Duarte que o procurava o indigno ministro do Senhor queassistira ao finado António José da Silva nos três dias do oratório.Duarte sentou-se no leito, e pediu ao pai que o deixasse a sós com o padre. Ocapelão espantou-se do resguardo do filho; todavia, retirou-se, no intento deescutar a misteriosa prática.Entrou o padre Francisco Lopes, e disse: — Senhor Duarte, compreendo asua enfermidade. A desgraça do nosso infeliz amigo pesou-lhe dolorosamente.— Aniquilou-me, senhor!... — disse Duarte, reconhecendo no jesuíta umdos muitos sábios e dos poucos virtuosos da Companhia.O padre prosseguiu, enxugando as lágrimas:— António José fez-me confidente de um segredo que apenas era sabidoda sua família. Achou-me digno de confiança. Recomendou-me que lhe desseum abraço, e um adeus até ao reino do céu, onde eu piamente creio queentrou a alma purificada do nosso pobre amigo. Depois, me disse que em


poder de Vossa Senhoria está um tesouro, que lhe ele entregara pouco antesde ser preso. É isto verdade? Não pode deixar de ser...— É verdade... — balbuciou Duarte. — Se eu não tomasse conta dotesouro, sabe Vossa Reverência que a Inquisição...— Sei, sei que ficaria a mendigar aquela pobre família, se Deus permitirque ainda se lhe abram as portas do cárcere. Se os grandes haveres de AntónioJosé não puderem servir à esposa e à mãe, lá está a filhinha em poder deDiogo de Barros, varão de Deus que a Providência escolheu como amparo dainocente. A incumbência, que o desgraçado me fez, foi que viesse eu dizer aVossa Senhoria que entregasse o cofre a Diogo de Barros, vendo ele que oencargo de guardar os objetos e dinheiro contidos nele, há de ser causa amortificações do senhor Duarte.— Prontamente... tartamudeou Duarte Cotinel. — Se o cofre estivesse nomeu poder, passá-lo-ia já às mãos do senhor padre Francisco Lopes. Careçode sair a recebê-lo de terceira pessoa a quem o confiei, não o querendo nomeu poder, porque era tido em conta de amigo do judeu, e receava daspesquisas do Santo Ofício...— Foi prudência!... — atalhou o sincero padre. — Amanhã trato disso, eamanhã mesmo, ou muito tardar depois, irei entregar o tesouro do meuchorado amigo ao senhor Diogo de Barros, com todo o segredo para que afilha não seja ainda privada do seu grandíssimo dote.


— Cumpri a minha missão, senhor Duarte. Deus lhe fecunde os seusnobres sentimentos em alegrias puras e duradouras. Fique-se com JesusCristo; e receba o abraço de António José da Silva, cujas lágrimas ainda mequeimam as faces.Saiu o padre, e entrou o pai de Duarte.— Que tesouro é esse que tinhas no teu poder? — perguntou o capelão.— Eram os haveres do Silva, que mos confiou. — E não me confiaste osegredo a mim?— Porque fiz juramento de o não confiar a ninguém. — E se eu delatasseao Santo Ofício a existência desse dinheiro que virtualmente está confiscado?— Fazia a desgraça de uma família, a troco de quatrocentos mil réis quetanto valerá o que me foi confiado.— Quatrocentos mil réis! — replicou o delegado do Santo Oficio — , mastu falaste aí no “grande dote“ da filha do judeu.— Grande lhe chamei comparativamente à indigência em que ela ficou.O capelão ficou satisfeito com a resposta explicativa. Neste mesmo dia,Duarte Cotinel, como o receio de perder o roubo, ganhado com tamanhaperversidade, lhe botasse o gume dos remorsos que o anavalhavam, saiu dacama, e remexeu todo o dia no interior do seu quarto, acondicionando num


vasto cinturão de couro os objetos contidos no cofre, que tirou de um falsopor ele aberto debaixo do catre.Ao anoitecer saiu da Bemposta, e recolheu-se numa estalagem contígua aoTerreiro do Paço, onde desvelou a noite esperando o repontar da manhã.Assim que os barqueiros saíram ao cais a encavilhar os remos nos seus botes,Duarte saltou no mais próximo do embarcadouro, e mandou remar para oBarreiro; aqui alugou carruagem, e seguiu o seu destino.O capelão, afeito às longas ausências do filho, não se admirou da demora, aofim de três dias. No entanto, o padre Francisco Lopes, preocupado com arecomendação do seu pobre padecente, procurou Diogo de Barros para saberse o tesouro estava na sua mão. O velho abriu um triste sorriso, e disse:— Crê Vossa Reverência que tal tesouro seja restituído? — Creio, sim!Pois não ouvi eu a honrada e pronta confissão do possuidor?! Não me disseele que antes de ontem, o mais tardar, viria restituí-lo?!— Mas não veio, senhor padre Francisco Lopes!...— É que se lhe agravou a enfermidade. Lá vou já daqui... Roubá-lo ele? Éimpossível! Um homem de quem António José me disse tão excelentes coisase com tantos louvores do seu desprendimento!...— Senhor padre Francisco!... — disse Diogo, e susteve-se. Depois, feitauma pausa reflexiva, continuou: — Não direi por enquanto o que sinto, o que


senti e previ sempre... Vá, vá, e volte por aqui Vossa Reverência, se lhe nãocustar.O jesuíta perguntou por Duarte. Saiu a falar-lhe o capelão, dizendo que o seufilho, no mesmo dia em que ele o procurara, saíra e não aparecera mais emcasa.— Então!... — exclamou o padre vencendo a sufocante surpresa — entãoé certo...— O quê? — acudiu o deputado do Santo Ofício. — Que se fez umroubo...— Um roubo?— De valores de cento e cinquenta mil cruzados de que o seu filho eradepositário.— Quatrocentos mil réis, me dizia ele!... — redarguiu o capelão.— Cento e cinquenta mil cruzados digo-lhe eu, senhor! — disse o jesuíta.— Seja a quantia qual for, o ladrão fugiu. Que fuja!... os olhos de Deus hãode segui — lo... a justiça dos homens o alcançará!...


CAPÍTULO XIVLourença Coutinho, quando entrou no cárcere, depois de ter visto o filhoajoelhado para ouvir a sentença, ia moribunda. Os médicos da Santa Casaaconselharam os socorros espirituais. Um frade domínico foi assentar-se aolado da enxerga de Lourença. A mãe do condenado que, àquela hora, saía dooratório para a fogueira, ouviu o gemer dos sinos, que pediam orações poralma dos supliciados. Estrebuchou, e conseguiu encostar-se à parede do seuantro. Fitou em rosto o frade que a chamava à meditação das misericórdiasdivinas. Estirou os braços, rangeu ferozmente os dentes, esbugalhou os olhosque espirravam sangue da congestão cerebral, fez um arremesso contra o filhode S. Domingos, e neste desesperado esforço, que o frade rebatia comexorcismos, arrancou da vida, batendo com a face no pavimento.Frei João do Souto, que assim era chamado o confessor dos presosmoribundos, contou com pavorosos gestos em reunião capitular que vira umalegião de demónios, quando a judia morrera, tomar-lhe posse da abria, e que ofedor sulfúreo era insuportável no calabouço. Os bons e judiciosos cronistasda Ordem Dominicana já tinham passado. Se o facto acontecesse cem anosantes, o leitor havia de lê-lo com as galas de linguagem do padre Cácegas oudaquele ilustre e degenerado visionário, chamado Manuel de Sousa Coutinho,que os frades tolheram.


O padre Francisco Lopes e Diogo de Barros divulgaram o roubo praticadopor Duarte Cotinel. O Conselho Supremo do Santo Ofício gemeu, como se aInquisição fosse a roubada. Os amigos de António José levaram àcompreensão do inquisidor-geral a intriga tramada por Duarte no intento deroubar o homem que lhe confiara os seus haveres. Nuno da Cunha avocou asi o processo, examinou-o, e viu a crueza da sentença, e a probabilidade daurdídura. O alcaide, principal testemunha contra o hebreu, confessou natortura que Duarte Cotinel se empenhava na perdição de António José. Oalcaide foi açoutado pelos algozes do Santo Ofício, e expulso por grandemisericórdia e bons serviços que tinha prestado à Santa Casa.Este providencial sucesso abriu as portas da Inquisição a Leonor, dois mesesdepois do assassínio do seu marido. Diogo de Barros e Lourencinha foramesperá-la no pátio da Santa Casa. A menina já não tinha vaga lembrança da suamãe. Chorou de medo daquela cadavérica mulher que lhe chamava filha.Leonor aqueceu as faces mortas nas da sua formosa criança, que tinha entãoquatro anos e dois meses incompletos.Cobradas forças em companhia dos Barros, a viúva de António José, jásabedora do roubo daquela amaldiçoada riqueza, pediu ao tio do seu pai quelhe desse uma esmola para se passar com a sua filha para Amesterdão. Diogoprontificou-lhe sobejos recursos para a viagem, e uma regular mesada para suasustentação. Quis ele ainda, para lhe aumentar o pecúlio, haver da Inquisiçãoo valor da rica mobília confiscada e vendida em almoeda. O Supremo


Conselho indeferiu o requerimento, sem, embargo da injusta condenação dopossuidor dos haveres confiscados.Embarcaram Leonor e Lourença. Em Amesterdão era já notória a morte deAntónio José. Da família Sã ninguém esperava que a filha de Jorge de Barrosvolvesse à luz do Sol. O aparecimento de uma senhora com uma menina aocolo em casa dos filhos de Simão de Sã fez estranheza. Quando ela disse quemera, ergueu-se um grande choro em volta das duas infelizes, choro decompaixão de verem tão avelhada a peregrina Leonor, e de alegria por lhepoderem outra vez abrir o seio carinhoso. Leonor perguntou por Simão.Disseram — lhe que tinha morrido; mas que todos os seus lhe tinhamherdado o coração.Refloriram ainda algumas graças do belo rosto da filha de Sara, Tinha vinte esete anos. As tristezas, por mais devoradoras que fossem, não podiamcombater a força reanimadora dos afagos de Lourença. Onde ela assentava osseus lábios reviçavam as fibras amortecidas e requeimadas de lágrimas.Leonor aos trinta anos dava ideias da beleza dos dezoito. Poderia ser amada eesposa, se o quisesse ser, de um rico hebreu também viúvo. Respondeu ela àproposta que não podia senão ser mãe e educadora da sua filha. Pediu que adeixassem enriquecê-la de virtudes e conhecimento antecipado das desgraçasdesta vida, para ter que lhe deixar, quando Deus a levasse.Correram-lhe, senão felizes, tranquilos os anos.


A maior pena, que ainda lá a salteou, causou-lha um homem que passava, umdia debaixo das suas janelas, mal entrajado, com amargurado rosto.Perguntou Leonor:— Quem será este homem?! Não sei quem me parece!...— É um português — disse uma senhora — ; já lhe ouvi o nome; masesqueceu-me. Um dos manos conhece-o de vista, e foi quem me disse o nomedele.Leonor foi ter com Levi de Sã, e perguntou-lhe quem era um português muitoencorpado com barbas grandes, e vestido ordinariamente.— É um homem que abjurou a religião cristã, e perdeu tudo o que tinhaem Portugal.— Como se chama?— Francisco Xavier.— De Oliveira! — acudiu Leonor.— Justamente, de Oliveira. Há três anos que anda por Holanda, e vivecom alguns israelitas que o favorecem.— Pois ele está assim necessitado?... Oh, meu Deus!, não poder eusocorrer o primeiro amigo do meu infeliz António!...


E Leonor recordou-se daquele jovial e gentil mancebo que vira no adro daigreja de Valhadolide; recordou a paixão da sua juventude, que lhe crestaraflores de coração que nunca mais enverdeceram. Chorava, como nos dias emque o amara, como naquela noite em que ele anunciara no salão de Diogo deBarros o seu casamento com D. Ana de Almeida. Este chorar tinha em si otravor doce das saudades. Era triste aquele encontro! Ver assim quebrantado epobre o homem em volta de quem radiavam todos os prazeres deste mundo,desde a riqueza até ao culto das mulheres formosas e dos homensrespeitáveis!...Leonor pediu instantemente a Levi de Sã que fizesse saber a Francisco Xavierde Oliveira o muito desejo que tinha de o ver a viúva de António José daSilva.Saiu Sã em demanda do português, e só no outro dia pôde saber que ele tinhasaído para Londres.Aqui vem de molde historiar-se o restante da vida, muito longa ainda, doCavalheiro de Oliveira.Em Novembro de 1739, chegou a Viena de Áustria a nova do suplício deAntónio José.Francisco Xavier, ferido no coração de sincero amigo, rompeu em bradoscontra a infame barbaridade dos inquisidores, sem poupar a religião divina doCristo, que não tinha que ver com a protérvia dos seus sacrílegos sacerdotes.


Raivou contra o pontífice, e não foi mais comedido nos insultos que vociferoucontra o hipócrita e boçal rei D. João V. O ministro conde de Taroucamandou-o calar-se, e respeitar o sucessor de S. Pedro, e o ungido do Senhor.Xavier retorquiu asperamente, aceitando satisfatoriamente a ameaça dademissão da secretária.Dias depois, sobreveio um caso que determinou o completo rompimento dasligações do secretário com o ministro.Andava em Viena um arquiteto milanês, chamado Inácio Maure Valmagíní,muito da privança do embaixador português. Dizia Valmagini que o rei dePortugal recompensava os biltres e vadios dos seus estados com o hábito deCristo. O conde de Tarouca sabia-o, e dissimulava, não obstante ser umestrénuo propugnador das honras daquela ordem. Francisco Xavier, comoouvisse as costumadas insolências do arquiteto na presença do ministropropriamente, ameaçou-o de o atirar pela janela à rua.O conde saiu em defesa do seu valido e Francisco Xavier separou-se doindigno embaixador e do serviço de Portugal?Em Holanda, escasso de recursos, deu-se à vida de escritor.O seu primeiro livro, impresso em 1741, eram as Memórias das suas Altezas,No mesmo ano, publicou um volume de Cartas Familiares, em Amesterdão, eo segundo das cartas em Haia. Sobre este livro, em que ele atacava o celibatodos padres, caiu a fulminante censura do inquisidor frei Manuel do Rosário,


que taxou de herético o livro. Logo em Portugal foram queimados os livrosdo Cavalheiro de Oliveira, e defesa a entrada dos que ele de futuro publicasse.“O roubo que eles me fizeram, in nomine Domini, e sem mínimo escrúpulo,causou-me grande perda”, diz Francisco Xavier.Fechadas as carairas de Portugal aos livros do herege, as condições vitais doescritor pioraram grandemente. Do seu país e até do seus parentes já nadatinha que haver nem esperar. O Santo Oficio espiava as migalhas que algumtemerário amigo tentasse enviar-lhe.Por 1744, ano em que Leonor o vira pobremente vestido, apesar dapublicação doutros livros, saiu com a sua mulher para Londres no intento derevalidar com público instrumento a sua já feita apostasia da religião católica.De feito, abraçou o protestantismo; e para logo escreveu rijamente contra ospapas, com o fervor congenial de todos os prosélitos assim das boas que dasmás causas.O afeto de infância e de saudade que o prendera à vida e à memória deAntónio José sugeria-lhe ainda enérgicos escritos em favor da raça hebreia.Em 1740, imprimira ele na Haia uma carta ao israelita Isaac de Sousa Brito,com a relação dos Privilégios Concedidos em Nápoles e Sicília à Naçãohebreia, Traduzidos do Original Ralizão.Em Londres, estreou-se o Cavalheiro com um livrinho recreativo intituladoViagem à Ilha do Amor, Escrita a Filandro.


Escrevia sempre; mas publicava pouquíssimos dos seus escritos, à míngua desubscritores. Amparavam-no as esmolas dos seus correligionários, entre osquais o fidalgo português curava de esconder a sua origem e as insígniasnobilitantes. Acerca do hábito de Cristo, dizia ele: “Me trouvant aujourd'hui àLondres je n'y fais guère voir mon ordre. Cette marque rendrait ma pauvreté plus honteuse.Le peuple anglais aime l'argent, et préfère une riche roture à une noblesse indigente.”A mesma página, vertida para português, faz ver quão grande era a tristeza dasua resignação: “Dizem que os grandes deste país consideram em muito aspessoas nobres e beneméritas em pobreza. Gozam tanto renome de ricos quede benfeitores. A minha natural timidez me não deixa avizinhá-los: não tenhoa honra de os conhecer bastantemente. Vivo restringido ao meu quarto:apenas vou fora a visitar um diminutíssimo número de pessoas honradas queusam a generosidade de me estimarem e amarem. Dizem-no, e provam-nocom os favores que me fazem. Assaz sabem eles que a mim nada me faz nemlisonjeia ser fidalgo... “Que vida tão arrastada!, que paciência tão vencedora de aviltamentos devia deser a do soberbo, e todavia generoso coração de Francisco Xavier de Oliveira!Que demorados e sempre iguais e amargurados anos até que os cabelos lhebranquearam!Em 1751, já chegado aos cinquenta, criou o seu periódico mensal, tantas vezescitado nestes livros. Durou apenas oito meses. Não há número em que ele não


advogue a causa, a liberdade dos hebreus. E, todavia, os perseguidos, queFrancisco Xavier queria resgatar das presas do fanatismo estúpido, não lheliam o periódico. Faz lástima ouvi-lo assim queixar — se: “Prova de que aignorância dos judeus reina em Inglaterra como em toda a parte, é que euapenas tenho quatro subscritores desta nação: o doutor Castro Sarmento, o Sr.Rebelo de Mendonça, o Sr. Abraão Viana, e Mr. Ratton. Atendendo aosesforços que eu nestes escritos tenho feito para acabar a injusta e cruelperseguição que se exercita em Portugal contra os judeus, não é bastante claroque eles não conhecem seus interesses, nem a candura e boa-fé com que eulhes advogo a causa? ó tempos!, ó usanças! Há cinquenta anos que a minhaobra não precisaria de mais alentos que o favor desta nação em que entãoabundavam homens assim ilustrados que generosos!Mais deplorável ainda é este amargurado queixar-se, quando a vida já lhe pesa,e ainda os anos não chegam aos cinquenta: “Minha vida pode e devecomparar-se a um rosário, cada conta do qual é uma desgraça... Idadeavançada, saúde achacosa, indigência indigna do meu nascimento; mildissabores urdidos pela calúnia e indiferença de uns que eu noutro tempoconsiderei amigos: tudo isto reunido ao perdimento de pátria e bens defortuna, por isso que abracei a religião protestante?, me desvaneceu toda aesperança de ainda ver entreluzir-me alguma alternativa neste mundo... “Noutro lanço, diz o escritor com profundo desalento: “Naturalmente amo avida, confesso. Deveria desejá-la muito duradoura; mas não, que o mesmo


seria querer premeditadamente prolongar as mágoas do meu espírito emortificações do corpo. Ainda assim, desejos de morte e fraqueza de suicida,tenham-nos os loucos e os covardes desesperados: assaz me contenta saberque sem desejar a morte, me não temo dela que queria eu hoje possuir? Umasaúde robusta? Ah!, a minha vigorosa saúde foi uma das principais causas dosdesvarios da minha vida, e de certo modo a motora das desgraças presentes...“O desventurado conta com a benquerença de cinco amigos; porém tão poucodadivosos deviam eles ser, que Francisco Xavier inveja o carvão queinutilmente arde na deserta sala de um lorde, carvão que lhe chegaria a ele parase aquecer um mês. “E está sempre a fumegar aquela chaminé”, diz ele, “paraaquentar um cão, por louca vaidade do dono!“Pobre Cavalheiro de Oliveira, já o destino dos cães ingleses te arranca invejasdaquele tão opulento e magnânimo peito!Já, neste tempo, a sua segunda esposa teria voado a melhor inundo, ouvoltaria a pedir um quinhão de alimento na mesa da sua ilustre família emViena de Áustria? Não o diz ele nem os seus biógrafos.Em 1755, escreveu Xavier de Oliveira alguns folhetos incitando osportugueses a conjurarem contra as doutrinas dos bonzos, contra os papas,contra as superstições cediças do catolicismo. A Inquisição lançou a garra aosescritos. Processou o autor, condenou-o como herege, revel convicto erelaxado à justiça secular. Queimaram-no em estátua, ao mesmo tempo que as


carnes do padre Gabriel Malagrida se torravam na fogueira vizinha, no autode-féde 20 de Setembro de 1761.O original da estátua devia de rir-se, lamentando que ao clima glacial deLondres, naquele mês, lhe não chegasse um pouquinho do calor da estátuaassamarrada e encarochada com fogo revolto e danças macabras de demónioscomígeros e caudatos!Então, muito de assento e com o riso nos lábios, escreveu ele: O Cavalheirode Oliveira Queimado em Estátua por Herege; como e Porquê? Anedotas eReflexões sobre Este Assunto, Dadas ao Público por Ele Próprio.Desde que o queimaram até ao dia em que morreu interpuseram-se aindavinte e dois anos.Escreveu nesse largo espaço muitos livros, uns que ficaram impressos, outrosmanuscritos, e muitos perdidos.Quando aquele homem chegou aos oitenta e um anos como olharia ele paraas primaveras sobre as quais gearam trinta invernos aspérrimos deinfortúnios?Que reminiscências lhe iriam ao coração congestionado de lágrimas da mulherque a Inquisição lhe estrangulou; da Antónia Clara que o pároco dos Anjoslhe queria negociar; e da Joana Vitorina, aquela fatal cigana, de quem ele


escrevia como da mulher que ele mais amara, sem exceção das duas virtuosasesposas?Deus lhe perdoaria tantas levezas da alma em desconto das muitíssimas doresde corpo com que o purificou na decrepidez mais desamparada e cortada depenúrias!


CAPÍTULO XVCONCLUSÃOEm meado do ano de 1753 desembarcou em Lisboa de um navio das Antilhasespanholas um sujeito que dizia chamar-se D. Pablo de Burgos, comercianteque tinha sido em Porto Rico.Figurava cinquenta anos com o vigor dos trinta. As longas barbas, raiadas debranco, desciam-lhe a meio peito. O olhar ensombrado por densas e longaspestanas afuzilava de sob a convexidade das pálpebras, como o fitar oblíquo eespavorido do celerado que receia ser conhecido apesar dos anos corridos e daboa compostura do disfarce.O cônsul espanhol em Lisboa recebeu da mão deste forasteiro carta dogovernador das Antilhas, apresentando-lhe D. Pablo de Burgos, que eleencontrara ricamente estabelecido em Porto Rico, desde 1741, e agora,volvidos doze anos, se resolvera a voltar à Europa, e residir em Portugal, compreferência às províncias vascongadas donde era filho.O cônsul francês acolheu-o atenciosamente, hospedou-o na sua casa, e fê-loconhecido dos ricos negociantes franceses que demoravam na capital, os quaislhe andaram mostrando as coisas notáveis de Lisboa, incluindo nestas o


palácio da Bemposta, onde o espanhol empregou mais reparos que na Capelade S. Roque e no Aqueduto das Águas Livres.D. Pablo mostrou-se muito agradado da situação e clima de Lisboa. Achouadmirável a Rua do Alecrim para ali edificar uma casa torreada com vistassobre o Tejo. Animaram — no à empresa os amigos, e o mesmo foi negociarsea compra do terreno, e apenar os melhores alvenéis, sob a direção doarquiteto João Pedro Ludovici, para, no mais breve tempo, levantarem edifíciotão majestoso e aformoseado, quanto setenta a oitenta mil cruzadospermitissem.Divulgou-se a nova em Lisboa, e já D. Pablo de Burgos não passavadespercebido pelos coches dos magnatas, que fitavam com certa veneração asbarbas do espanhol e aquela gentil compostura de velho que indiciava origemilustre, por qualquer misterioso motivo ocultada.D. Pablo saiu um dia de passeio na sua liteira, e mandou guiar para os sítios daBemposta. Ali apeou e pediu licença para dar umas voltas no magníficoárvoredo da quinta.Saiu a recebê-lo o almoxarife, com extremada cortesia; e, posto que o visitanteo dispensasse, quis o serviçal indivíduo acompanhá-lo.Residia então na Bemposta o infante D. Pedro que depois foi rei. Os filhos dePedro II tinham morrido alguns anos antes. Disse o almoxarife que tinhaentrado na mordomia daquela casa em 1740; e então lhe saiu de feição contar


que o seu antecessor, chamado Duarte Cotinel Franco, fugira com um enormeroubo feito à família do célebre autor de comédias António José da Silva que aSanta Inquisição condenara ao fogo em 1739.— Vossa Senhoria há de conhecer de nome este grande autor português.— Não me lembro — respondeu serenamente D. Pablo.O almoxarife continuou: — Fugiu o tal ladrão assim que o padre confessor docondenado se lhe apresentou a pedir-lhe que passasse o grande caixote deriquezas ao poder de um fidalgo, que morreu, há anos, em companhia do qualestava uma filhinha do judeu...— Agora me recordo — atalhou o ricaço espanhol — de ter ouvido falarnisso... Esse tal judeu não tinha mulher, ou mãe, ou não sei quem tambémpresas na Inquisição?...— Sim, senhor: tinha mulher e mãe. A mãe morreu na prisão poucodepois que ele foi queimado, e a mulher conseguiu livrar-se, porque a justiçasoube que a cobiça do tal ladrão fora a causa da morte injustíssima do grandepoeta. Depois de livre, foi-se embora, e não sei que feito é dela.— E que fim teve esse Duarte? — perguntou a indignada curiosidade dovisitante.— Sabe-o Deus! Nunca mais se tiveram notícias dele. Eu ainda vi morreraqui nesta casa o pai dele, que não era boa rês, e chegara a ser capelão-mor


dos senhores infantes, e deputado do Santo Oficio. Pois, apesar de ele ser demá casta, a ladroeira do filho buliu tanto com ele que o homem nunca maissaiu de casa com vergonha de aparecer ao público. Ainda ele era vivo quandoeu entrei; mas pouco viveu. Há bons doze anos que o come a terra. coisasingular, meu senhor! Aqui, há seis anos, andando eu a fazer obras numquarto, que tinha sido do tal ladrão, fui topar com um falso, onde achei umcaixote de pau — santo com laçadeiras de bronze, e duas fechaduras de prata,coisa riquíssima! ao meu ver aquele caixote foi o cofre donde o Cotinel levouo roubo se Vossa Senhoria o quiser ver, tenho muito gosto nisso...— Não, se me dispensa, que tenho algumas voltas que dar — respondeuD. Pablo no mais correto castelhano. E despediu-se muito agradecido.A fábrica do edifício da Rua do Alecrim progredia espantosamente. Agenerosa paga duplicava os braços dos obreiros.Ludovici aprimorava-se voluptuosamente nas graças da sua obra. Afestoava ascolunas e pilares e grinaldas; florões e laçarias caíam das cornijas formando emdescendentes ramagens os adornos laterais das janelas. A menor peça faziaconsonância à majestade do portal e espaçoso pátio, circundado de arcariasassentes em colunelos de primoroso lavor. As janelas eram frestas ogivais quea tempo deviam ser vestidas de vidros variegados. O telhado queria-o D.Pablo lajeado à volta, com cercadura de vasos e estátuas do melhor mármore ealabastro. O arquiteto incansavelmente expedia ordens a mandar vir da Itália


peças que os seus alvanéis e escultores não sabiam dignamente emoldurar earrancar das pedreiras de Mafra. Era ali naquele local um continuado pasmardas turbas, posto que D. João V as habituasse às obras magníficas. A cadapalmo que o edifício se alevantava, Ludovici, o arquiteto ou continuador dosArcos das Águas Livres, esmerava-se em exceder as maravilhas com queenfeitara a fachada do seu palacete em frente da Torre de S. Roque?E enquanto a prodigiosa casa se andava construindo, D. Pablo de Burgos oraviajava por França e Itália, ora se ia a Sintra e às quintas suburbanas de Lisboa,onde seus donos o recebiam como a sujeito que o conde de Oeiras se nãodedignava de convidar para grandes empresas industriais, visto que eleadotava Portugal como pátria e nela mandava fabricar tão grandiosa vivenda.Em Agosto de 1755 estava concluído o palácio. As alfaias tinham já vindo doestrangeiro. Vestiu-se o interno do palacete com magnificência condigna dariqueza exterior. Franquearam-se as portas à admiração pública. As primeirasdamas honraram as alcatifas chinesas de D. Pablo, e miraram-se nos alterososespelhos de Veneza, cosidos a ouro, que pendiam dos tetos sobre tremós cujofeitio deslumbrava o áureo esplendor, que vestia os torneados. Vasos etruscos,imitados nos alabastros napolitanos, dos ângulos das salas cativavam a atençãologo cativa de mais ricos adornos. Para que mais encómios se todo oencarecimento vem curto? Aquilo era um encanto de olhos, e um quebrarcorações de invejas.


D. Pablo aceitava os agradecimentos do seus hóspedes com uns ares demodéstia, última demão que faltava ao esplendor de tantas maravilhas. W, asdamas até as apostólicas barbas lhe achavam encantadoras. Concertavam-setodas as probabilidades em favor dos que pressagiavam o brevematrimoniamento do espanhol com alguma das muito fidalgas e esbeltasmeninas, cujos pais se honravam de hospedar o maduro ricaço.Deliberou D. Pablo oferecer um banquete de príncipe aos seus amigos, que jáeram numerosíssimos, em todas as jerarquias, e mareou o dia primeiro deNovembro nos convites antecipados quinze dias. Contratou os maisfamigerados cozinheiros, vestiu de limiste os criados que deviam servir àmesa, tirou das prateleiras riquíssima baixela de prata em competência de valorcom as mais preciosas louças do Japão, compradas aos netos empobrecidosdos antigos vizo-reis da Itália.Desde o romper de alva do dia primeiro de Novembro, uma chusma decriados, uns encarregados do adorno da longa mesa, outros auxiliares dosinventivos cozinheiros, não tinha mãos a medir. Era um redemoinhar de genteafanosa como em casa dos imortais glutões da Roma imperatória,predecessores beneméritos da Roma cardinalícia.Às nove horas e meia da manhã, D. Pablo de Burgos acabava de sair do leito eapresilhar um farto gibão de seda, no intento de deitar uma vista de olhos aospreparativos confiados aos servos e escravos. No momento em que


transpunha o limiar da antecâmara, sentiu vibrar-lhe a casa debaixo dos pés, elogo um soturno estrondo, o tremer convulso dos móveis, o baquear dasestátuas e jarrões depostos sobre os bufetes, o alto clamor dos criados, oestridor de louças partidas, o tropel dos servos que fugiam, e o estampidolongo de um como ruir de paredes. Era o primeiro empuxão do assoladorterramoto daquele dia.D. Pablo correu desnorteado primeiro contra a escada para ganhar a rua;depois, voltou sobre si, impelido por um demónio que lhe disse: “Olha quedeixas na tua recâmara riquezas que vão ser soterradas ou roubadas.” Entrouna recâmara, e não pôde ter-se em pé, resistindo ao impulso de um alterosoguarda-roupa de pau preto que ao voltar-se lhe roçou num ombro. Levantouse.Abriu muitas gavetas de um contador, e amontoou numa toalhapromiscuamente sacos de ouro e mãos-cheias de brilhantes.Ao sair do quarto, ouviu o gritar aflito da vizinhança. Chegou a uma janela, eviu, através de cerrada nuvem de poeira, o interior das casas vizinhas, aluídasas carairas, e os moradores em desesperadas evoluções, com os braçosestendidos ao céu sereno e límpido, como em manhã de Agosto. Fez pé a trásespavorido, e foi à escada no intento de a descer. Olha ao fundo do primeiromainel e vê um lanço de parede fendida, e os tijolos a despegarem-se, A umterceiro tremor mais rijo, foge subindo para o terraço construído à roda dozimbório. Apenas relanceia os olhos em volta por sobre o centro dasumptuosa Lisboa, a custo e escassamente lhe deixa a densa poeira dos


edifícios aluídos, descobrir um acervo de ruínas, e aqui e além multidões defugitivos, uns que serpenteiam por entre o entulho buscando a margem doTejo, outros que retrocedem espavoridos, porque o mar subia levantado emfurioso vagalhão alagando a cidade baixa.D. Pablo, naquele conflito, raciocinou. Era homem para discutir com a morteaté ao fim, se necessário fosse. De si consigo disse ele que a sua casa,construída sobre rijos e fundos alicerces, devia resistir aos solavancos doterramoto mais que as outras meio derrubadas e enfraquecidas pela velhice.Alentado pela hipótese judiciosa, desceu do terraço, e com prudente vagarespreitou o estado das paredes. As fendas não eram assustadoras. Foidescendo e chamando os criados: ninguém lhe respondeu. Abriu uma janelado primeiro andar, olhou, e viu alguns acervos de cadáveres meios enterradosnas ruínas, e algumas aflitas mães, que procuravam os filhos, enquanto osmaridos as empuxavam pelos cabelos, no propósito de salvá-las.Os abalos, posto que menores, continuavam com breves intervalos. D. Pabloatentava a orelha: já não ouvia o estrupido do desmoronamento. A grandedestruição fez-se em sete minutos.O que ressoava formidavelmente era o estridente alarido de milhares depessoas às portas dos templos, cujas abóbadas abateram sobre milhares dedevotos, que os enchiam, ouvindo missas, naquele solene dia funeral deTodos os Santos.


D. Pablo raciocinava ainda. Bem que o sólido edifício estivesse de pé sobre osprofundos cimentos, podia acontecer que ulteriores abalos o derribassem.Determinou sair com algumas preciosidades, e seguir as turbas, que fugiam nadireção de S. Roque para o alto chamado então as obras do conde de Tarouca,e depois da Cotovia, e mais tarde a Patriarcal. Quis guardar em si a pedraria eouro amoedado que ensacava; mas o peso privava-o do movimento. Nãotinha criado ou escravo que o ajudasse. Repôs os sacos do ouro nas gavetasdo toucador, e meteu às algibeiras as bocetas aveludadas das pedras preciosascomo prevenção para o caso de algum desastre no edifício, enquanto ele iaprovidenciar a mudança da baixela.Fechou o portão e saiu, caminho de Santo Amaro, onde morava o seuparticular amigo o embaixador francês, Encontrou-o passado do terror, etratando em fugir com as suas bagagens para o Lumiar.O espanhol dispunha-se a acompanhá-lo, quando correu brado de estar emchamas a cidade baixa. Outra nova igualmente aterradora sobreveio àquela.Dizia-se que ferozes joldas de ladrões assaltavam e roubavam as casasdesertas, e matavam os inquilinos que, no apuro das suas angústias, aindatinham de defender as relíquias dos seus haveres. O espanhol, sem consultar oamigo, correu à Rua do Alecrim, e presenciou logo à entrada a luta a punhaldos ladrões entre si ou contra os mais aferrados defensores das suas ruínas.Este quadro horrífico era um escabujar de demónios entre labaredas efumarada negra: o Inferno devia de ser, na fantasia do seus imaginadores, uma


pálida imitação daquela atroz realidade. Às poucas janelas dos primeirosandares que, para assim dizer, tinham engolido os sobrados superiores,dardejavam línguas de fogo, que se cruzavam com as das janelas carairas. Aestreita rua, atravancada de entulho, de madeiras incendidas e cadáveres,dificultava o trânsito. O espanhol saltou por sobre brasas e entre chamas. Aoavizinhar-se do seu palacete, viu rolos de fumo negro a romperem das janelascujos vidros tinham estalado. Atirou-se aflito contra o portão, e viu-o aberto amachado.— Estou roubado! — exclamou ele. Galgou ao terceiro andar. Quandosubiu ao primeiro mainel, viu de relance alguns marinheiros que sedisputavam o espólio das opulentas salas. No segundo andar, outra horda demarujos e homens andrajosos sobraçavam as taças, bandejas, castiçais,faqueiros e mais baixela que os criados, três horas antes, começavam a disporna mesa do banquete. Subiu ao terceiro andaime, por onde lavrava intenso oincêndio, e foi, cegado pelo fumo, até à recâmara onde tinha os contadores.Arrancou dos sacos aceleradamente, e correu para uma sala, onde as labaredasnão tinham ainda chegado. Aqui foram cruelíssimas as ânsias do homem,cruelíssimo o dilema: se saía às escadas, os ladrões lançariam mão dele, e nemvida nem ouro lhe deixariam: se ficava na sala, esperando que os salteadoresdesalojassem, o incêndio já se fazia ouvir com o seu horrífico estalejar demadeiras e desabar de vigamentos. Esta segunda ponta do dilema traspassavalhemais o peito que a outra.


Abriu uma janela e gritou por socorro.Quem havia de ouvi-lo, se todos gritavam, e os mais dignos de compaixão, sehouvesse ali compadecidos, seriam os que gritavam entalados nas soleiras dasportas, e esmagados pelas traves fumegantes?A resolução era urgentíssima, que já a sala estava escura de fumo. Lançou-seàs escadas, desceu até ao segundo mainel, por entre os ladrões que seesfaqueavam na disputada posse de um jarro de ouro. A meio da escada doprimeiro andar, sentiu-se agarrado por três homens que o seguiam a saltos detigre.— Deixa ver o que levas! — disse um, apontando-lhe a navalha à garganta.— Larga, ou reparte connosco, patife!— Este é o ricaço! — bradou outro. — Cá leva o fardel! Larga, se nãomorres, castelhano!, cão danado!D. Pablo reconheceu um dos três sicários, pelo rosto e pela voz; lançou-lhe obraço livre à volta do pescoço com brando jeito, e disse-lhe ao ouvido o querque fosse.— Tu! — exclamou o ladrão, com os olhos esbugalhados pois és tu!... éstu aquele...O espanhol sentiu cair-lhe o coração, quando viu tão contrário o efeito que eleesperava do segredo posto no ouvido daquele homem.


E o salteador prosseguiu:— Ó diabo!, tu não sabes que eu pela tua causa fui vergalhado na SantaCasa, que ainda tenho as costuras nos lombos! Não sabes que me prometestemundos e fundos se eu jurasse contra o António José da Silva, que turoubaste, alma de Satanás, e não repartiste nada comigo! Não sabes, cão, queeu ando há dezasseis anos sem ter quem me dê uma sede de água, porqueninguém me quer dar que fazer, e todos sabem que eu jurei falso contra oAntónio José, e fiz jurar os guardas que todos andam a pedir ou a roubar?— Pois eu reparto convosco, e deixai-me fugir... Aí tendes tudo... ficai comtudo... e não me mateis!Duarte Cotinel Franco arremessou aos pés dos salteadores a toalha em quelevava os sacos do ouro, por saber que os brilhantes escondidos nas algibeirasexcediam o valor dos sacos, Feito o arremesso, ia fugir; mas o antigo alcaideda Inquisição da altura de três degraus caiu-lhe sobre as costas com uma facaapontada e com tanta força e ímpeto que mais não pôde arrancar-lha dentre ascostelas retorcidas.Duarte Cotinel gargarejou um arranco debaixo dos punhais que lhe cortaramo segundo na garganta.À volta daquele cadáver travou-se uma briga de peito a peito, um cortar deferros e ressaltar de sangue que espirrava à face do morto: eram os trêsassassinos a defenderem o espólio das presas de uns que subiam, e doutros


que desciam acossados pelas chamas. Depois, seguiu-se o estampido dotravejamento dos tetos e abóbadas que se despenhava por entre os sólidos ealterosos muros. Uns ladrões premiram-se contra o portão, escoando-se pelabrecha que os machados abriram; outros, como descobrissem o cinturãocingindo o cadáver, curavam de arrancar-lho e espedaçá-lo a golpes denavalha, quando as lajes do firmamento do pátio lhes esmagaram os crânioscontra os degraus marmóreos da escada. Um destes crânios era o do antigoalcaide do Santo Ofício.Nas escavações feitas nas ruínas do palacete de D. Pablo de Burgos, quatrocadáveres se encontraram tão próximos que pareciam família muitoentreamada que num abraçado grupo arrancara da vida. Esta hipótesedesvaneceu-a a boa crítica; porque os mortos, debruçados sobre o cadávervestido de lemiste, tresandavam o bafio dos seus andrajos. A putrefaçãopermitia ainda examinar as chagas do pescoço de D. Pablo, que debaixo destenome o lastimavam amigos e a boa sociedade de Lisboa. O conde de Oeirassentia dolorosamente não ter mandado arvorar forcas nas ruas, como duashoras depois mandou para pendurar ladrões onde quer que a justiça osencontrasse. já se não podia valer à perda de um homem que tanto prometiaàs empresas industriosas de Portugal! Em compensação, responsar-lhe-iam aalma com magníficos funerais, pagos com pouquíssimo do muito e ricoespólio que os cavadores desentranharam do entulho. Para a entrega davaliosa herança, pediram-se informações para Espanha e Antilhas. Ninguém


saiu aos reclamos como herdeiro de D. Pablo de Burgos. Todavia, se, por umeventual acaso, se descobrisse que o assassinado era um Duarte CotinelFranco, celerado ladrão, cujo nome era em Lisboa ainda o provérbio dasuprema perversidade humana, a mim me quer parecer que os herdeiros setinham de acotovelar em volta daquele cadáver, provando a primazia no graudo parentesco.


CAPÍTULO XVIEPÍLOGOVolvidos vinte anos, o leão de S. Domingos já recebia resignadamente asferroadas dos insetos. As fogueiras do Santo Ofício, como se disse, tinhamsido apagadas, desde 1761, com o sangue do padre Malagrida. A estátua deFrancisco Xavier de Oliveira foi o último personagem de gesso e papelão quefigurou irrisoriamente de par com as agonias de um homem queimado emvida.Alguns hebreus voltaram à pátria do seus país, não a pedirem os bensconfiscados, mas a beijarem a terra que era cinza do seus avós.Em 1775, algumas famílias, refugiadas em Holanda, aportavam a Portugal.Entre estas, a mais numerosa era a dos Sãs, repartida noutras, que serestabeleceram em diversos pontos do país.Um neto de Simão de Sã, com uma senhora sexagenária, que era sua sogra, eoutra senhora de quarenta anos, que era sua esposa, e uma roda de mancebose meninas que eram seus filhos, foram procurar os descendentes de Diogo deBarros à Rua da Madalena. Encontraram uma casa de cinco andares no localonde a mais velha daquelas senhoras, D. Leonor Maria de Carva — lho,asseverava que tinha existido um palacete de quinze janelas num andar único.


Pediram informações explicativas às pessoas antigas do local. Breves e tristeslhes foram dadas. A maior parte da família Barros tinha morrido nas ruínas dasua casa por ocasião do terramoto de 1755. Dois netos de Diogo de Barrosque, no dia da grande desgraça, andavam caçando no Alentejo com o duquede Aveiro, tinham desaparecido em 1757, e era pública voz que o marquês dePombal os fizera morrer nas masmorras da Junqueira.D. Leonor, lavada em lágrimas, disse à filha:— Vês, Lourença?... morreu tudo... tudo, meu Deus!... Porque meconserva neste mundo a divina vontade?— Para fazer a felicidade da sua filha... — E dos seus netos... — juntaramduas meninas, que se abraçaram na viúva de António José da Silva.A divina vontade não a quis muitos mais anos conceder ao amor de filha enetos.Leonor morreu aos sessenta e seis anos, na terra onde nascera, na Covilhã,local único em que o terramoto lhe deixou algumas vivas memórias da suainfância.Lourença ainda vivia no princípio deste século. Os netos de António José daSilva abrem hoje, porventura, os livros denominados ÓPERAS DO <strong>JUDEU</strong>,e não sabem que são do seu avô, o mais desventurado e talentoso homem quea religião de S. Domingos matou em Portugal.


FIM

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