Deus na Natureza - Grupo da Paz - Centro Espírita
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Camille Flammarion<br />
<strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong><br />
Traduzido do Francês<br />
Dieu <strong>da</strong>ns la <strong>na</strong>ture<br />
1866<br />
William Turner<br />
Arco Íris<br />
█<br />
Conteúdo resumido<br />
Esta é uma <strong>da</strong>s mais significativas obras clássicas do Espiritismo<br />
e, sem dúvi<strong>da</strong>, a obra-prima de Camille Flammarion.<br />
O autor apóia-se em princípios <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza para demonstrar a<br />
existência de <strong>Deus</strong>. Entre os assuntos magnos, tratados com alta<br />
visão, contam-se: ateísmo, força e matéria, idéia i<strong>na</strong>ta e <strong>Deus</strong>,<br />
instinto e inteligência, leis do Universo e origem dos seres. São<br />
estudos que transmitem conhecimentos basilares aos espíritas.
Revelando profundo conhecimento científico, Flammarion<br />
utiliza, <strong>na</strong> presente obra, os próprios argumentos científicos dos<br />
materialistas (sobre Biologia, Fisiologia, Antropologia, Botânica,<br />
etc.), para demonstrar a existência do Ser Soberano, criador e<br />
sustentador do Universo. Por esse motivo, a obra poderia, perfeitamente,<br />
ser também denomi<strong>na</strong><strong>da</strong> “<strong>Deus</strong> <strong>na</strong> Ciência”.<br />
Sumário<br />
Introdução ................................................................................. 3<br />
Primeira Parte – A Força e a Matéria .................................... 13<br />
1 - Posição do Problema ......................................................... 13<br />
2 - O Céu ................................................................................ 36<br />
3 - A Terra .............................................................................. 49<br />
Segun<strong>da</strong> Parte – A Vi<strong>da</strong> .......................................................... 65<br />
1 - Circulação <strong>da</strong> Matéria ........................................................ 65<br />
2 - A Origem dos Seres ..........................................................111<br />
Terceira Parte – A Alma ........................................................155<br />
1 - O Cérebro .........................................................................155<br />
2 - A Perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de Huma<strong>na</strong> ..................................................180<br />
3 - A Vontade do Homem ......................................................201<br />
Quarta Parte – Destino dos Seres e <strong>da</strong>s Coisas ......................244<br />
1 - Plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> - Construção dos Seres Vivos ..............244<br />
2 - Plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> - Instinto e Inteligência ........................281<br />
Quinta Parte – <strong>Deus</strong> ...............................................................305
Introdução<br />
Desti<strong>na</strong>-se esta obra a representar o estado atual dos nossos<br />
conhecimentos precisos, sobre a <strong>Natureza</strong> e o homem.<br />
A exposição dos últimos resultados a que atingiu a inteligência<br />
huma<strong>na</strong> no estudo <strong>da</strong> Criação é, ao nosso ver, a ver<strong>da</strong>deira<br />
base sobre a qual se há de fun<strong>da</strong>r doravante to<strong>da</strong> a convicção<br />
filosófica e religiosa. Em nome <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> razão, tão soli<strong>da</strong>mente<br />
justifica<strong>da</strong>s pelo progresso contemporâneo e por força dos inelutáveis<br />
princípios constituintes <strong>da</strong> lógica e do método, pareceunos<br />
que só através <strong>da</strong>s ciências positivas deveremos prosseguir<br />
<strong>na</strong> pesquisa <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />
Se temos, de fato, a ambição de chegar pessoalmente à solução<br />
do maior dos problemas; se estamos sôfregos de atingir, por<br />
nós mesmos, uma crença <strong>na</strong> qual encontremos repouso e pábulo<br />
de vi<strong>da</strong>; se nos anima, ao demais, o legítimo desejo de transmitir<br />
ao próximo a consolação que já encontramos; – não temamos<br />
nunca afirmá-lo ser <strong>na</strong> ciência experimental que devemos procurar<br />
os elementos de cognição, só com ela devendo marchar.<br />
O cepticismo e a dúvi<strong>da</strong> universal imperam no âmago de nossa<br />
alma e nosso olhar escrutador, que nenhuma ilusão fasci<strong>na</strong>,<br />
vigila <strong>na</strong> cripta dos nossos pensamentos. Não nos despraz que<br />
assim seja. Não lastimemos que <strong>Deus</strong> não nos houvesse tudo<br />
revelado ao criar-nos, <strong>da</strong>ndo-nos contudo o direito de discutir.<br />
Essa prerrogativa do nosso ser é ótima em si mesma, como<br />
condição maior de progresso. Mas, se o cepticismo nos atalaia<br />
vigilante, também a necessi<strong>da</strong>de de crença nos atrai.<br />
Podemos duvi<strong>da</strong>r, certo, sem por isso nos isentarmos do insaciável<br />
desejo de conhecer e saber. Uma crença tor<strong>na</strong>-se-nos<br />
imprescindível. Os espíritos que se vangloriam de não a possuírem<br />
são os mais ameaçados de cair <strong>na</strong> superstição ou de anularse<br />
<strong>na</strong> indiferença.<br />
O homem tem, por <strong>na</strong>tureza, uma necessi<strong>da</strong>de tão imperiosa<br />
de firmar-se numa convicção –, particularmente quanto à existência<br />
de um coorde<strong>na</strong>dor do mundo e <strong>da</strong> desti<strong>na</strong>ção dos seres –<br />
que, quando não encontra uma fé satisfatória, experimenta a
necessi<strong>da</strong>de de se demonstrar a si mesmo que esse <strong>Deus</strong> não<br />
existe e busca, então, repousar o espírito no ateísmo e no niilismo.<br />
Diga-se, também, já não ser a questão que ora nos apaixo<strong>na</strong>, a<br />
de sabermos qual a forma do Criador, o caráter <strong>da</strong> mediação, a<br />
influência <strong>da</strong> graça, nem discutir, tampouco, o valor de argumentos<br />
teológicos. A ver<strong>da</strong>deira questão é saber se <strong>Deus</strong> existe ou<br />
não.<br />
Note-se que, em geral, a negativa é patroci<strong>na</strong><strong>da</strong> pelos experimentalistas<br />
<strong>da</strong> ciência positiva, enquanto a afirmativa se ampara<br />
nos indivíduos estranhos ao movimento científico.<br />
Qualquer observador atento pode, ao presente, apreciar no<br />
mundo pensante duas tendências diametralmente opostas.<br />
De um lado, químicos ocupados em tratar e triturar, nos seus<br />
laboratórios, os fatos materiais <strong>da</strong> ciência moder<strong>na</strong>, por lhes<br />
extrair a essência e quinta-essência, a declararem que a presença<br />
de <strong>Deus</strong> jamais se manifesta em suas manipulações.<br />
Doutro lado, teólogos acocorados entre poeirentos manuscritos<br />
de bibliotecas góticas compulsando, folheando, interrogando,<br />
traduzindo, compilando, citando e recitando versículos dogmáticos,<br />
e declarando, com o anjo Rafael, que <strong>da</strong> pupila esquer<strong>da</strong> à<br />
pupila direita do Padre-Eterno medeiam trinta mil léguas de um<br />
milhão de varas, ca<strong>da</strong> qual equivalente a quatro e meia vezes o<br />
comprimento <strong>da</strong> mão.<br />
Queremos crer que de ambos os lados haja boa fé, que os segundos,<br />
como os primeiros, estejam animados do propósito de<br />
conhecer a ver<strong>da</strong>de. Pretendem os primeiros representar a Filosofia<br />
do século 20, enquanto os segundos guar<strong>da</strong>m, respeitosos, a<br />
do século 15. Os primeiros, passam por <strong>Deus</strong> sem O ver, como o<br />
aero<strong>na</strong>uta que sulca o espaço celeste, enquanto os segundos<br />
focalizam um prisma que retrai a imagem, colorindo-a.<br />
O observador imparcial e independente que procura explicarlhes<br />
suas tendências contrárias, admira-se de os ver obsti<strong>na</strong>dos<br />
no seu sistema particular e pergunta a si mesmo se será ver<strong>da</strong>deiramente<br />
impossível interrogar, de um modo direto, este vasto<br />
Universo e chegar a ver <strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.
Por nós, isentos de qualquer sectarismo, sentimo-nos à vontade<br />
em equacio<strong>na</strong>r o problema. Diante do panorama <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
terrestre; no âmbito <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> radiosa à luz do Sol, beirando<br />
mares bravios ou fontes múrmuras; entre paisagens de Outono ou<br />
florações de Abril; tanto quanto no silêncio <strong>da</strong>s noites estrela<strong>da</strong>s,<br />
temos procurado <strong>Deus</strong>. A <strong>Natureza</strong>, interpreta<strong>da</strong> com a Ciência,<br />
foi quem no-lo demonstrou num caráter particular. De fato, Ele<br />
está nela, visível, como a força íntima de to<strong>da</strong>s as coisas. Temos<br />
considerado <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> as relações harmônicas que constituem<br />
a beleza real do mundo e, <strong>na</strong> estética <strong>da</strong>s coisas, encontramos a<br />
manifestação gloriosa do pensamento supremo.<br />
Nenhuma poesia huma<strong>na</strong> se nos figurou comparável à ver<strong>da</strong>de<br />
<strong>na</strong>tural, e o Verbo eterno nos falou com mais eloqüência <strong>na</strong>s<br />
mais modestas obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, do que o pudera fazer o homem<br />
com seus cantos mais pomposos.<br />
Seja qual for a oportuni<strong>da</strong>de dos estudos que este trabalho objetiva,<br />
não esperamos agra<strong>da</strong>r a to<strong>da</strong> a gente, certo de haver<br />
muitos incapazes de acor<strong>da</strong>r do seu sono e outros tantos a quem<br />
longe estamos de lhes corresponder aos pendores.<br />
Acusa-se de indiferentismo a nossa época. A acusação é mereci<strong>da</strong>.<br />
Onde estão, com efeito, os corações palpitantes de puro<br />
amor à ver<strong>da</strong>de? Em que alma – perguntamos – ain<strong>da</strong> rei<strong>na</strong> a fé?<br />
Não diremos, já, a fé cristã, mas uma crença sincera, seja no que<br />
for. Aonde se vão os tempos em que as forças <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />
diviniza<strong>da</strong>s, recebiam home<strong>na</strong>gens universais?<br />
Tempos nos quais o homem, contemplativo e deslumbrado,<br />
sau<strong>da</strong>va com fervor a potência eter<strong>na</strong> e manifesta <strong>na</strong> Criação?<br />
Que é feito <strong>da</strong>queles tempos em que os homens eram capazes<br />
de derramar o sangue por um princípio, quando as repúblicas<br />
tinham à sua testa um ideal e não uma ambição?<br />
Quem se lembra dos tempos em que o gênio de um povo, esculpido<br />
em Notre Dame ou em São Pedro de Roma, ajoelhava-se<br />
e pedia, conchegado aos seus muros de pedra?<br />
Que é feito <strong>da</strong> virtude patriótica dos nossos antepassados<br />
abrindo as portas do Panteão para acolher as cinzas dos heróis do
pensamento, e relegando à noite do olvido a falsa glória <strong>da</strong><br />
ociosi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s almas?<br />
Não coremos de o confessar, já que temos a franqueza de suportar<br />
um tal aviltamento: saturados de egoísmo, nossa alma não<br />
alimenta outra ambição que a do interesse pessoal. Riqueza cuja<br />
origem permanece equívoca, louros surpreendidos, antes que<br />
conquistados, uma doce quietação, uma profun<strong>da</strong> indiferença<br />
pelos princípios, quem não verá nisso o nosso galardão?<br />
À parte, contudo, fora do mun<strong>da</strong>nismo empolgante e rumoroso,<br />
vivem os que não se conformam em baixar a fronte diante <strong>da</strong><br />
hipocrisia. Esses trabalham <strong>na</strong> solidão e esquadrinham em silenciosa<br />
meditação os abismos <strong>da</strong> Filosofia e, se se mantêm fortes, é<br />
porque não se atrofiam ao contacto <strong>da</strong>s sombras. Na ver<strong>da</strong>de, é<br />
um contraste penoso de assi<strong>na</strong>lar, quando vemos que o progresso<br />
magnífico, sem precedentes, <strong>da</strong>s ciências positivas, que a conquista<br />
sucessiva do homem sobre a <strong>Natureza</strong>, ao mesmo tempo<br />
em que tão alto nos elevaram a inteligência, deixaram resvalar o<br />
sentimento a níveis tão baixos. Doloroso sentir que, enquanto<br />
por um lado a inteligência mais demonstra a sua capaci<strong>da</strong>de,<br />
extingue-se por outro lado o sentimento, e a vi<strong>da</strong> íntima <strong>da</strong> alma<br />
mais se embota <strong>na</strong> gee<strong>na</strong> <strong>da</strong> carne.<br />
A causa <strong>da</strong> nossa decadência social (passageira, de vez que a<br />
História não pode mentir a si mesma) deve-se à nossa falta de fé.<br />
A primeira hora deste nosso século 1 marcou o derradeiro alento<br />
<strong>da</strong> religião de nossos pais. Baldos serão quaisquer esforços de<br />
restauração e reconstrução. Tudo o que se fizer não passará de<br />
simulacro, pois o que está morto não pode ressurgir. O sopro de<br />
uma revolução imensa passou sobre as nossas cabeças deitando<br />
por terra nossas velhas crenças, mas, entretanto, fecun<strong>da</strong>ndo um<br />
mundo novo.<br />
Estamos, ao presente, atravessando a fase crítica que precede<br />
a to<strong>da</strong> renovação. O mundo progride. É em vão que homens<br />
políticos e homens eclesiásticos imagi<strong>na</strong>m, ca<strong>da</strong> qual do seu<br />
lado, prosseguir <strong>na</strong> representação do passado, num proscênio em<br />
ruí<strong>na</strong>s. Impossível impedir que o progresso nos conduza a todos<br />
para uma fé superior, que ain<strong>da</strong> não possuímos, mas para a qual<br />
já caminhamos. E essa fé não será outra que a convicção científi-
ca <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>; numa escala<strong>da</strong> à ver<strong>da</strong>de pelo estudo<br />
<strong>da</strong> Criação.<br />
É preciso ser cego, ou ter interesse em iludir-se a si e aos outros<br />
(quantos neste caso se encontram!), para não ver e não<br />
ajuizar a nossa atuali<strong>da</strong>de pensante. Foi por ter a superstição<br />
matado o culto religioso, que nós o menosprezamos e abando<strong>na</strong>mos.<br />
E foi porque as características do ver<strong>da</strong>deiro se nos<br />
revelaram mais claramente, que a nossa alma aspira a um culto<br />
mais puro. E não foi senão por se haverem afirmado diante de<br />
nós os imperativos <strong>da</strong> justiça, que hoje reprovamos institutos<br />
bárbaros, tais como a guerra, que, ain<strong>da</strong> recentemente, recebia a<br />
home<strong>na</strong>gem dos homens. É, enfim, porque o pensamento rompeu<br />
os grilhões que o prendiam à gleba, que não mais admitimos, de<br />
boamente, quaisquer tentativas que nos aproximem de qualquer<br />
espécie de servilismo. Na<strong>da</strong> obstante, há em tudo, e sempre, um<br />
progresso. Na incerteza, porém, em que ain<strong>da</strong> permanecemos,<br />
entre as perturbações que nos agitam, a maior parte dos homens,<br />
ao perceberem que as suas impressões e tendências esbarram<br />
fatalmente <strong>na</strong> inércia do passado, ou se afastam silenciosos se<br />
lhes sobra força e coragem de o fazerem, ou se deixam arrastar<br />
<strong>na</strong> corrente geral, pela atração vigorosa <strong>da</strong> fortu<strong>na</strong>. É <strong>na</strong>s épocas<br />
críticas que as lutas se intensificam, intermitentes, sobre os<br />
eternos problemas cuja forma varia à feição dos tempos, a revestirem-se<br />
de um aspecto característico.<br />
Nesta nossa época de observação e experimentação, os materialistas<br />
procuram apoiar-se em trabalhos científicos e pretendem<br />
deduzir <strong>da</strong> ciência positiva o seu sistema.<br />
Os espiritualistas, em geral, acreditam, ao invés, poderem<br />
pairar acima <strong>da</strong> esfera experimental e assomar aos píncaros <strong>da</strong><br />
razão pura. Ao nosso ver, o espiritualismo para triunfar deve<br />
medir-se com o adversário no mesmo terreno e com as mesmas<br />
armas deste. Ele não perderá <strong>na</strong><strong>da</strong> do seu caráter, condescendendo<br />
em baixar à are<strong>na</strong>, e <strong>na</strong><strong>da</strong> terá a recear nessa justa com a<br />
ciência experimental.<br />
As lutas empenha<strong>da</strong>s e os erros a combater longe estão de se<br />
tor<strong>na</strong>rem perigosos para a causa <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Com o exigirem um
exame mais rigoroso <strong>da</strong>s questões versa<strong>da</strong>s, essas lutas nos<br />
ensejam a preparação de uma vitória mais completa.<br />
A Ciência não é materialista, nem pode servir ao erro. Como<br />
e por que, pois, haveriam de temê-la o espiritualismo e a ver<strong>da</strong>deira<br />
religião? Duas ver<strong>da</strong>des não se podem opor a uma terceira.<br />
Se <strong>Deus</strong> existe, sua existência não poderia ser suspeita<strong>da</strong> nem<br />
combati<strong>da</strong> pela Ciência.<br />
Para nós, temos a convicção íntima de que, muito pelo contrário,<br />
no estabelecimento de conhecimentos exatos sobre a<br />
construção do Universo, sobre a vi<strong>da</strong> e o pensamento, propiciase<br />
atualmente o único método eficiente ao aclaramento do problema.<br />
Só assim poderemos saber se devemos admitir a soberania<br />
<strong>da</strong> matéria universal ou se importa reconhecer uma inteligência<br />
organizadora, um plano e um destino imanentes.<br />
Tal, pelo menos, a forma por que o debate se nos apresenta e<br />
impõe à mente, neste nosso trabalho.<br />
Esperamos que esta tentativa de versar a existência de <strong>Deus</strong><br />
pelo método experimental aproveite ao progresso de nossa<br />
época, por estar de acordo com as suas tendências características.<br />
Ficaremos satisfeitos se a leitura deste livro deixar cair uma<br />
fagulha luminosa nos espíritos indecisos. Mais ain<strong>da</strong>, se depois<br />
de haver meditado fundo estes nossos estudos, alguma fronte se<br />
levantar cônscia de sua legítima digni<strong>da</strong>de.<br />
Se, regra geral, os ideólogos franceses não têm aplicado o<br />
método científico aos problemas <strong>da</strong> filosofia <strong>na</strong>tural, em compensação<br />
alguns sábios trataram o assunto do ponto de vista <strong>da</strong>s<br />
relações gerais manifesta<strong>da</strong>s no mundo e que lhe constituem a<br />
uni<strong>da</strong>de viva. Com prazer assi<strong>na</strong>lamos, entre as obras deste<br />
gênero, os diversos trabalhos do Sr. A. Langel, aqui mesmo<br />
utilizados várias vezes.<br />
Problemas <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e problemas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não conduzem<br />
eles, efetivamente, ao máximo problema? Exami<strong>na</strong>r as forças<br />
ativas no organismo universal não será o mesmo que exami<strong>na</strong>r as<br />
diversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>da</strong> força essencial e origi<strong>na</strong>l?<br />
As investigações que focalizam o estudo <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> podem<br />
aproveitar à Filosofia com maior segurança, às vezes, do que os
tratados ou os ditirambos especialmente consagrados à Metafísica.<br />
Os próprios escritos dos senhores Moleschott e Büchner nos<br />
ofereceram elementos de refutação.<br />
A circulação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, qual a expõe o primeiro, mostra <strong>na</strong> vi<strong>da</strong><br />
uma força independente e transmissível, dirigindo os átomos,<br />
mediante leis determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s e conforme o tipo <strong>da</strong>s espécies. O<br />
exame <strong>da</strong> Força e <strong>da</strong> Matéria estabelece, por outro lado, a soberania<br />
<strong>da</strong> Força e a inércia <strong>da</strong> Matéria.<br />
Sendo a Força e a extensão os primeiros princípios do conhecimento,<br />
e sendo a Filosofia a ciência dos princípios, poderia<br />
esta obra ser considera<strong>da</strong> antes como um estudo filosófico, se<br />
não houvéssemos resolvido limitar-nos a uma discussão puramente<br />
científica. Este, efetivamente, o seu fim precípuo e que,<br />
por bem dizer, oferece mais atrativos, mau grado à aridez aparente<br />
do trabalho.<br />
Pensamos que o único meio eficaz de combater o negativismo<br />
contemporâneo é voltar contra ele o materialismo científico e<br />
utilizar as suas próprias armas para derrotá-lo.<br />
Esse discrime compete antes à Ciência que à Filosofia.<br />
A Ideologia, a Metafísica, a Teologia, mesmo a Psicologia,<br />
dele se afastaram quanto possível.<br />
Nós não razoamos com palavras, mas com fatos.<br />
As ver<strong>da</strong>des significativas <strong>da</strong> Astronomia, <strong>da</strong> Física e <strong>da</strong><br />
Química, como <strong>da</strong> Fisiologia, são, de si mesmas, as defensoras<br />
intrépi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de essencial do mundo.<br />
Por mais difícil que à primeira vista pareça a refutação científica<br />
do Materialismo contemporâneo, nossa posição é belíssima,<br />
desde que nos colocamos no mesmo plano dos nossos adversários.<br />
E nesta guerra eminentemente pacífica, estamos, de antemão,<br />
seguros <strong>da</strong> vitória.<br />
Basta-nos, com efeito, de vez que o inimigo está em falsa posição,<br />
descobrir a fraqueza dessa posição e desequilibrá-lo.<br />
O método é simples e infalível, tão seguro que não o escondemos:<br />
deslocado o centro de gravi<strong>da</strong>de, sabe qualquer mecânico
que o individuo colhido de surpresa cai, imediatamente, a procurá-lo<br />
no solo. Eis o quadro que se nos vai deparar. Críticos houve<br />
que pretenderam ver em nosso método laivos de sorriso e um<br />
tanto de ironia.<br />
Não podemos ser juiz em causa própria, mas, ain<strong>da</strong> que a<br />
acusação tivesse fun<strong>da</strong>mento, não nos caberia culpa alguma e<br />
sim, e só, aos acontecimentos, nos quais o grotesco teria momentaneamente<br />
empa<strong>na</strong>do o sério, graças aos adversários tantas<br />
vezes arrastados às conseqüências mais curiosas.<br />
Referindo-nos à forma, devemos pedir ao leitor acredite, que,<br />
se por acaso tratarmos mais asperamente um que outro adversário,<br />
não é a nós que a falta deve ser imputa<strong>da</strong>, visto não utilizarmos<br />
esses recursos extremos senão nos casos (muito freqüentes<br />
talvez para eles) em que os adversários se obsti<strong>na</strong>m em não se<br />
deixarem vencer. Somos, então, bem a nosso pesar, levados a<br />
feri-los com uma tática mais rude, forçando-os a convir, pelos<br />
argumentos irresistíveis do mais forte, que são eles de fato os<br />
mais fracos nesta guerra de princípios.<br />
De resto, não há necessi<strong>da</strong>de de acrescentar que são sempre<br />
esses princípios que atacamos, e nunca a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de dos que<br />
os advogam. Assim, considerando-se a índole mesma <strong>da</strong> questão,<br />
exclusas ficam as pessoas do campo de batalha.<br />
Além disso, em consciência, não acreditamos pratiquem os<br />
adversários o materialismo absoluto – o dos seus interesses e <strong>da</strong>s<br />
paixões egoístas e, portanto, não temos outra intenção que discutir<br />
as suas teorias.<br />
Dividiremos nossa argumentação geral em cinco partes, no<br />
intuito de demonstrar em ca<strong>da</strong> uma a proposição diametralmente<br />
contrária à sustenta<strong>da</strong> pelos eminentes advogados do ateísmo.<br />
Assim, <strong>na</strong> primeira, li<strong>da</strong>remos por estabelecer, prelimi<strong>na</strong>rmente,<br />
pelo movimento dos astros e depois pela observação do<br />
mundo inorgânico terrestre, que a Força não é atributo <strong>da</strong> Matéria,<br />
mas, ao contrário, a sua sobera<strong>na</strong>, a sua causa diretora.<br />
Na segun<strong>da</strong> parte verificaremos, pelo estudo fisiológico dos<br />
seres, que a vi<strong>da</strong> não é proprie<strong>da</strong>de fortuita <strong>da</strong>s moléculas que a<br />
compõem e sim uma força especial a gover<strong>na</strong>r átomos, conforme
o tipo <strong>da</strong>s espécies. O estudo <strong>da</strong> origem e progressão <strong>da</strong>s espécies<br />
também aproveitará à nossa doutri<strong>na</strong>.<br />
Na terceira parte observaremos, exami<strong>na</strong>ndo as relações do<br />
pensamento com o cérebro, que há no homem algo mais que a<br />
matéria e que as facul<strong>da</strong>des intelectuais distinguem-se <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong>des<br />
químicas. A perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma afirmará o seu caráter<br />
e a sua independência.<br />
A quarta evidenciará <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> um plano, uma desti<strong>na</strong>ção<br />
geral e particular, um sistema de combi<strong>na</strong>ções inteligentes, no<br />
seio <strong>da</strong>s quais o olhar desprevenido não pode deixar de admirar,<br />
mediante sadia concepção <strong>da</strong>s causas fi<strong>na</strong>is, o poder, a sabedoria<br />
e a previdência que coorde<strong>na</strong>m o Universo.<br />
A quinta parte, enfim, como centro de convergência <strong>da</strong>s vias<br />
precedentes, nos colocará <strong>na</strong> posição científica mais favorável<br />
para julgar simultaneamente a misteriosa grandeza do Ente<br />
Supremo e a cegueira inconteste dos que fecham os olhos para se<br />
convencerem de que Ele não existe.<br />
O ver<strong>da</strong>deiro título desta obra deveria ser: – “A contemplação<br />
de <strong>Deus</strong> através <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>”.<br />
Há alguns anos que se anuncia, como estando no prelo, este<br />
trabalho e nós lhe temos modificado várias vezes o título, que, de<br />
início era puramente científico. (Da Força, no Universo.)<br />
Acabamos, fi<strong>na</strong>lmente, por nos fixarmos neste. Sem dúvi<strong>da</strong>,<br />
um título não tem essencial importância para que o autor se<br />
explique tão formalmente a respeito. Mas, no caso vertente,<br />
julgamos útil declarar desde logo que todos quantos vissem <strong>na</strong>s<br />
quatro palavras <strong>da</strong> capa a expressão de uma doutri<strong>na</strong>, errariam<br />
completamente. Aqui não há panteísmo, nem dogma. Nosso<br />
objetivo é expor uma filosofia positiva <strong>da</strong>s ciências, que, em si<br />
mesma, comporta uma refutação não teológica do materialismo<br />
contemporâneo. É, talvez, imprudentíssima ousadia o tentar<br />
assim uma sen<strong>da</strong> isola<strong>da</strong>, entre os dois extremos, que sempre<br />
aliciaram poderosos sufrágios; mas, de vez que nos sentimos<br />
impelidos e sustentados por uma convicção particular, tanto<br />
quanto por ardente amor a um novo aspecto <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, podemos,<br />
porventura, resistir ao impulso interior que nos inspira?
Ao leitor compete exami<strong>na</strong>r a obra e decidir se alguma ilusão<br />
nos seduz e se nos oculta, sob o prestígio <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />
Não podemos, to<strong>da</strong>via, eximir-nos de confessar que, desde<br />
que lemos em Augusto Comte que a Ciência aposentara o Pai <strong>da</strong><br />
<strong>Natureza</strong> e acabava de “reconduzir <strong>Deus</strong> às suas fronteiras,<br />
agradecendo os seus serviços provisórios” – sentimo-nos algo<br />
ofendidos com a vai<strong>da</strong>de do deus-Comte e nos deixamos empolgar<br />
pelo prazer de discutir o fundo científico de semelhante<br />
pretensão.<br />
Verificamos, então, que o ateísmo científico é um erro e que a<br />
ilusão religiosa é outro erro. (De passagem digamos, o Cristianismo<br />
nos parece ain<strong>da</strong> esotérico.) Nossos atuais conhecimentos<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> nos representaram a idéia de <strong>Deus</strong> sob um<br />
prisma cujo valor a teodicéia, como o ateísmo, não podem menosprezar.<br />
Aos nossos olhos, o homem que nega simplesmente a existência<br />
de <strong>Deus</strong> e o que definiu esse Desconhecido e lhe debita<br />
em conta a explicação embaraçante, são ambos criaturas ingênuas,<br />
equivalentes <strong>na</strong> erronia.<br />
Mas também não compete nos engajarmos aqui assim no método<br />
antinômico e, sobretudo, não queremos revestir-nos de<br />
aparências misteriosas.<br />
Entremos, portanto, sem mais detença no âmago do assunto,<br />
declarando que nos esforçamos por expla<strong>na</strong>r com a mais sincera<br />
independência o que acreditamos ser a ver<strong>da</strong>de.<br />
Possam estes estudos aju<strong>da</strong>r a escala<strong>da</strong> <strong>na</strong> trilha do conhecimento,<br />
a quantos tomam a sério a sua passagem pela Terra e o<br />
progresso <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de.<br />
Paris, Maio 1867.
Primeira Parte<br />
A Força e a Matéria<br />
1 - Posição do Problema<br />
SUMÁRIO – Papel <strong>da</strong> Ciência <strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de moder<strong>na</strong>. – Sua potência<br />
e grandeza. – Seus limites e tendências a ultrapassá-los. –<br />
As ciências não podem <strong>da</strong>r nenhuma definição de <strong>Deus</strong>. – Processo<br />
geral do ateísmo contemporâneo. – Objeções à existência divi<strong>na</strong>,<br />
inferi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> imutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis e <strong>da</strong> íntima união entre a<br />
força e a matéria. – Ilusão dos que afirmam ou negam. – Erros<br />
de raciocínio. – A questão geral resume-se em estabelecer as relações<br />
recíprocas <strong>da</strong> força e <strong>da</strong> substância.<br />
O século que vivemos está desde já inscrito com caracteres<br />
indeléveis <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s <strong>da</strong> História. A partir dos mais remotos<br />
tempos, <strong>da</strong>s velhas civilizações, nenhuma época viu, qual a<br />
nossa, esse magnífico despertar do espírito humano, para simultaneamente<br />
afirmar os seus direitos e a sua força. O mundo já<br />
não é o vale de lágrimas medieval, onde a alma vinha expiar a<br />
falta do primitivo pai e, confundindo-se no isolamento e <strong>na</strong><br />
oração, acreditava conquistar um lugar no paraíso, ciliciando o<br />
corpo e cobrindo-se de cinzas.<br />
Os frutos <strong>da</strong> inteligência já não atestam as longas, abstrusas e<br />
infindáveis discussões de estéril metafísica, construí<strong>da</strong>s de<br />
palitos e escora<strong>da</strong>s em sutilezas escolásticas, a que se entregaram<br />
cegamente poderosos gênios, consagrando-lhes uma preciosa<br />
vi<strong>da</strong> de estudos e despercebidos de assim perderem não ape<strong>na</strong>s o<br />
seu tempo, mas o de algumas gerações.<br />
Lá, onde em murados claustros se concentravam monges e<br />
oratórios, ouve-se agora o ruído <strong>da</strong>s máqui<strong>na</strong>s, o ranger <strong>da</strong>s<br />
engre<strong>na</strong>gens e o silvo do vapor <strong>da</strong>s caldeiras combustas.<br />
Se as instituições monásticas tiveram o seu papel no período<br />
<strong>da</strong>s invasões bárbaras, nem por isso deixou de soar a sua hora<br />
extrema, como sucede a to<strong>da</strong>s as coisas perecíveis: o trabalho
fecundo do operário e do agricultor substitui a decadência senil<br />
pela juvenili<strong>da</strong>de operosa e fecun<strong>da</strong>.<br />
No anfiteatro <strong>da</strong>s Sorbonnes, onde se discutiam exaustivamente<br />
os seis dias <strong>da</strong> Criação, as línguas de fogo <strong>da</strong> Pentecoste,<br />
o milagre de Josué, a passagem do Mar Vermelho, a forma <strong>da</strong><br />
graça atual, a consubstanciali<strong>da</strong>de, as indulgências parciais ou<br />
plenárias, etc., etc., e mil assuntos outros difíceis de profun<strong>da</strong>r,<br />
vemos hoje instalar-se o laboratório químico, no ambiente do<br />
qual a Matéria se faz docilmente pesar e mensurar; a mesa do<br />
a<strong>na</strong>tomista, sobre cujo mármore se desven<strong>da</strong>m o mecanismo<br />
orgânico e as funções vitais; o microscópio do botânico, que<br />
surpreende os primeiros, oscilantes passos <strong>da</strong> esfinge <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; o<br />
telescópio do astrônomo, que deixa entrever, para além dos céus<br />
transparentes, o movimento majestoso dos sóis gigantescos,<br />
regulados pelas mesmas leis que acio<strong>na</strong>m a que<strong>da</strong> de um fruto; a<br />
cátedra de ensi<strong>na</strong>mento experimental, à volta <strong>da</strong> qual as inteligências<br />
populares vêm grupar suas filas atentas.<br />
O próprio globo terrestre transformou-se. Circu<strong>na</strong>vegaramno,<br />
mediram-no, e já não haverá Carlos Magnos que preten<strong>da</strong>m<br />
enfeixá-lo <strong>na</strong> mão. O compasso do geômetra destituiu o cetro<br />
imperial.<br />
Oceanos e mares, em to<strong>da</strong>s as latitudes, fendem-se ao impulso<br />
<strong>da</strong>s quilhas leva<strong>da</strong>s por velas pan<strong>da</strong>s ou pela rotação <strong>da</strong>s<br />
hélices potentes e trepi<strong>da</strong>ntes.<br />
Também – dragão flamívomo – a locomotiva percorre célere<br />
os continentes e, graças ao telégrafo, podemos falar de um a<br />
outro hemisfério. O vapor deu vi<strong>da</strong> nova e inespera<strong>da</strong> a inúmeros<br />
motores; a eletrici<strong>da</strong>de nos permite auscultar, num momento e de<br />
conjunto, as pulsações <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de inteira.<br />
Certo, a Humani<strong>da</strong>de jamais conheceu fase como esta; jamais<br />
se repletou em seu seio, de tanta vi<strong>da</strong> e tanta força; jamais seu<br />
coração enviou, com tamanha pujança, a luz e o calor às mais<br />
longínquas artérias. Nem nunca o seu olhar se iluminou de um<br />
tal clarão. Por mais vastos que se deparem os progressos ain<strong>da</strong><br />
conquistáveis, nossos descendentes serão sempre forçados a<br />
reconhecer que a Ciência deve à nossa época o estribo do seu
Pégaso e que, embora engrandecendo-se e vendo o Sol ascender<br />
ao zênite, brilhante não lhes fora o dia se o não precedera a nossa<br />
aurora.<br />
Mas, o que à Ciência outorga força e poder, convém sabê-lo,<br />
é ter por base de estudo elementos determi<strong>na</strong>dos, que não abstrações<br />
e fantasmas. Assim é que, <strong>na</strong> Química, ela investe com o<br />
volume e peso dos corpos, exami<strong>na</strong>-lhes as combi<strong>na</strong>ções, determi<strong>na</strong>-lhes<br />
as relações; <strong>na</strong> Física, investiga-lhes as proprie<strong>da</strong>des,<br />
observa-lhes as relações e as leis que as regem; <strong>na</strong> Botânica,<br />
abor<strong>da</strong> o estudo <strong>da</strong>s primeiras condições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; <strong>na</strong> Zoologia,<br />
acompanha as formas existenciais e registra as funções orgânicas<br />
peculiares, os princípios <strong>da</strong> circulação <strong>da</strong> matéria nos seres<br />
vivos, sua manutenção e metamorfoses; <strong>na</strong> Antropologia, constata<br />
as leis fisiológicas em ativi<strong>da</strong>de no organismo humano e<br />
determi<strong>na</strong> o papel dos diversos aparelhos que o compõem; <strong>na</strong><br />
Astronomia, inscreve o movimento dos corpos celestes e <strong>da</strong>í<br />
deduz a noção de leis diretivas universais; e <strong>na</strong> Matemática,<br />
fi<strong>na</strong>lmente, formula essas leis e reconduz à uni<strong>da</strong>de as relações<br />
numéricas <strong>da</strong>s coisas.<br />
Essa exata determi<strong>na</strong>ção de objetivo dos seus estudos é que<br />
dá valor e autori<strong>da</strong>de à Ciência. Aí temos como e porque a<br />
Ciência se engrandece. Mas, esses títulos também lhe acarretam<br />
um imperioso dever. Se, deslembra<strong>da</strong> dessa condição de poderio<br />
ela se desvia desses objetivos fun<strong>da</strong>mentais para divagar no<br />
vácuo imaginário, perde simultaneamente o seu caráter e a sua<br />
razão de ser.<br />
E, desde então, os argumentos que pretende impor, nesses<br />
domínios exorbitantes do seu alcance e fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des, deixam de<br />
ter valor científico, e mais ain<strong>da</strong> do que isso, porque ela se<br />
desqualifica e já não pode reivindicar o nome de ciência. Tor<strong>na</strong>se,<br />
por assim dizer, em sobera<strong>na</strong> que acaba de abdicar e não é<br />
mais a ela que se ouve, mas aos sábios que peroram, o que nem<br />
sempre é a mesma coisa. E estes sábios, seja qual for o seu valor,<br />
já não serão mais intérpretes <strong>da</strong> Ciência, uma vez operando fora<br />
<strong>da</strong> sua esfera.<br />
Ora, esta é, precisamente, a situação dos defensores do Materialismo<br />
contemporâneo, aplicando a Astronomia, a Química, a
Física, a Fisiologia, a problemas que elas não podem resolver. E<br />
note-se que tais sábios não só constrangem essas ciências a<br />
responderem a problemas que lhes escapam à alça<strong>da</strong>, como ain<strong>da</strong><br />
as torturam, quais pobres servas, para que confessem a seu mau<br />
grado, e falsamente, proposições de que jamais cogitaram. São,<br />
assim, inquisidores do fato, e não <strong>da</strong> palavra. Mas, dessarte, não<br />
é a Ciência, é um simulacro de ciência que manejam.<br />
Nas seguintes controvérsias, demonstraremos que esses cientistas<br />
se encontram absolutamente fora <strong>da</strong> Ciência, que se enga<strong>na</strong>m<br />
e nos enga<strong>na</strong>m, que os seus raciocínios, deduções e conseqüências<br />
são ilegítimos e que no seu louco amor por essa virgi<strong>na</strong>l<br />
ciência eles a comprometem simplesmente e chegariam a lhe<br />
alie<strong>na</strong>r de todo a estima pública, se não houvesse o cui<strong>da</strong>do de<br />
mostrar que, ao invés <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, eles não possuem dela mais<br />
que uma ilusória sombra.<br />
A circunstância mais penosa e a razão predomi<strong>na</strong>nte que nos<br />
impelem a protestar contra as explorações de um falso rótulo<br />
radicam-se ao fato de estarmos vivendo um tempo em que se<br />
sente, ou pelo menos se pressente, universalmente, o papel e a<br />
fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Ciência. Compreende-se que fora dela é que não há<br />
salvação e que a Humani<strong>da</strong>de, tanto tempo balouça<strong>da</strong> no oceano<br />
do ignorantismo, só tem um porto a proejar – o <strong>da</strong> terra firme do<br />
saber. Também por isso, o espírito público se volta, convicto e<br />
esperançoso, para a Ciência. Tantas provas de seu poder e riqueza<br />
tem ele recebido, de um século a esta parte, que se predispôs a<br />
acatar-lhe, com simpatia e reconhecimento, todos os ensinos e<br />
teorias. Mas, nisso está, precisamente uma armadilha para o<br />
Espiritualismo. É que um certo número de cultores <strong>da</strong> Ciência,<br />
que a representam ou que se fazem dela intérpretes, ensi<strong>na</strong>m<br />
falsas e funestas doutri<strong>na</strong>s.<br />
Os espíritos sôfregos e despercebidos, que procuram em seus<br />
livros os conhecimentos de que necessitam, absorvem neles um<br />
tóxico pernicioso e suscetível de lhes destruir no âmago uma<br />
parte dos benefícios do saber.<br />
Eis porque se impõe sobrestar um tão deplorável arrastamento,<br />
aliás, tendente a universalizar-se.
Eis porque se tor<strong>na</strong> absolutamente indispensável discutir essas<br />
doutri<strong>na</strong>s e demonstrar que longe estão elas de entrosar <strong>na</strong><br />
Ciência, com tanto rigor e facili<strong>da</strong>de, quanto pregoam, mas, ao<br />
invés, que são o produto grosseiro de pensamentos sistemáticos,<br />
que, perpetuamente voltados sobre si mesmos, têm a ilusão de se<br />
crerem fecun<strong>da</strong>dos pela Ciência, embora do radioso sol que ela<br />
simboliza não hajam recebido mais que um tênue raio desviado<br />
de sua direção <strong>na</strong>tural.<br />
Há umas tantas questões profun<strong>da</strong>s que, no curso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> huma<strong>na</strong>,<br />
<strong>na</strong>s horas de silêncio e solitude, se nos apresentam como<br />
outros tantos pontos de interrogação, inquietantes e misteriosos.<br />
Tais os problemas <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> alma, do seu futuro destino,<br />
<strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong> e <strong>da</strong>s suas relações com a Criação.<br />
Vastos e imponentes problemas, estes nos envolvem e domi<strong>na</strong>m<br />
em sua imensi<strong>da</strong>de, pois sentimos que nos aguar<strong>da</strong>m, e <strong>na</strong><br />
ignorância deles não poderemos razoavelmente alie<strong>na</strong>r um tal ou<br />
qual temor do desconhecido.<br />
Assim é que, já o dizia Pascal, um desses problemas – o <strong>da</strong><br />
mortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma – é tão importante, que é preciso haver<br />
perdido to<strong>da</strong> a consciência para ficar indiferente ao conhecimento<br />
de si mesmo. O mesmo se poderá dizer quanto à existência de<br />
<strong>Deus</strong>. Quando meditamos essas ver<strong>da</strong>des, ou ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> possibili<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> sua existência, elas nos aparecem sob aspecto tão<br />
grandioso que a nós mesmos interrogamos como podem criaturas<br />
inteligentes, seres racio<strong>na</strong>is, pensantes, entregar-se uma vi<strong>da</strong><br />
inteira a interesses transitórios, sem se abstraírem uma que outra<br />
vez <strong>da</strong> sua apatia para atender a essas interrogativas preciosas.<br />
Se é ver<strong>da</strong>de, qual o temos observado, que há neste mundo<br />
homens absolutamente indiferentes, que jamais sentiram a magnitude<br />
desses problemas, menos não é que eles nos inspiram<br />
ver<strong>da</strong>deira pie<strong>da</strong>de. Aqueles que, no entanto, mais agravam a<br />
bruteza <strong>da</strong> indiferença e, de caso pensado, desdenham alçar-se ao<br />
nível destes assuntos importantes, preferindo-lhes os doces gozos<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> material, esses, – declaramo-lo em alto e bom som – nós<br />
os deixamos sem pesar, entregues à sua inércia, para considerálos<br />
fora <strong>da</strong> esfera intelectual.
O problema <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong> é primacial a todos. Nem<br />
por outro motivo é que, contra ele, se assestam as principais, as<br />
mais possantes baterias do Materialismo que nos propomos<br />
combater. Pretende-se provar, com a ciência positiva, a inexistência<br />
de <strong>Deus</strong> e que uma tal hipótese não passa de aberração <strong>da</strong><br />
inteligência huma<strong>na</strong>. Um grande número de homens sérios,<br />
convencidos do valor desses pretensos raciocínios científicos,<br />
enfileiraram-se ao redor desses inovadores recidivos, engrossando<br />
desmesura<strong>da</strong>mente as hostes materialistas, primeiro <strong>na</strong> Alemanha<br />
e depois <strong>na</strong> França, <strong>na</strong> Inglaterra, <strong>na</strong> Suíça e <strong>na</strong> própria<br />
Itália.<br />
Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou discípulos, quantos<br />
se apóiam em testemunhos <strong>da</strong> ciência experimental para<br />
concluir que <strong>Deus</strong> não existe, cometem a mais grave inconseqüência.<br />
Acusando-os dessa erronia, haveremos de justificar-nos, ain<strong>da</strong><br />
que os incrimi<strong>na</strong>dos possam, sob outro prisma, ser considerados<br />
homens eminentes e respeitáveis. De resto, é mesmo em<br />
nome <strong>da</strong> ciência experimental que vimos combatê-los.<br />
Deixamos de lado to<strong>da</strong> a ciência especulativa e colocamonos,<br />
exclusivamente, no mesmo terreno dos adversários.<br />
Não pensamos com Demócrito que, vazar os olhos, para evitar<br />
as seduções do mundo exterior, seja o melhor meio de cultivar<br />
frutuosamente a Filosofia e, muito pelo contrário, permanecemos<br />
firmes <strong>na</strong> esfera <strong>da</strong> observação e <strong>da</strong> experiência.<br />
Nessa posição, declaramos que, por um lado, não se prende<br />
imediatamente à existência de <strong>Deus</strong>, mas, por outro lado, desde<br />
que venhamos aplicar ao problema os atuais conhecimentos<br />
científicos, longe de conduzirem à negativa, afirmam eles a<br />
inteligência e sabedoria <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />
A elevação para <strong>Deus</strong>, mediante o estudo científico <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />
nos mantém em situação eqüidistante dos dois extremos,<br />
isto é: – dos que negam e dos que se permitem definir, simploriamente,<br />
a causa suprema como se houveram sido admitidos ao<br />
seu concelho. Assim, com as mesmas armas, combatemos duas<br />
potências opostas: – o materialismo e a ilusão religiosa.
Pensamos que é igualmente falso e perigoso crer num <strong>Deus</strong><br />
infantil, quanto negar uma causa primária.<br />
Em vão se nos objetará não podermos afirmar a existência de<br />
uma enti<strong>da</strong>de que não conhecemos. Precatemo-nos de presunções<br />
que tais. Certo, não conhecemos <strong>Deus</strong>, mas, sem embargo,<br />
sabemos que existe. Também não conhecemos a luz e sabemos<br />
que ela irradia <strong>da</strong>s alturas celestes. Tampouco, conhecemos a<br />
vi<strong>da</strong> e sabemos que ela se desdobra em esplendores <strong>na</strong> superfície<br />
<strong>da</strong> Terra.<br />
“Longe estou de crer – dizia Goethe a Eckermann – que tenha<br />
uma exata noção do Ser supremo. Minhas opiniões, fala<strong>da</strong>s ou<br />
escritas, resumem-se nisto: <strong>Deus</strong> é incompreensível e o homem<br />
não tem a seu respeito mais que uma noção vaga e aproximativa.<br />
De resto, to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>, e nós com ela, somos de tal modo<br />
penetrados pela Divin<strong>da</strong>de que dela nos sustentamos, nela vivemos,<br />
respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em conformi<strong>da</strong>de<br />
de leis eter<strong>na</strong>s, perante as quais representamos um papel<br />
ativo e passivo ao mesmo tempo, quer o reconheçamos, quer<br />
não. A criança regala-se com o bolo, sem cogitar de quem o fez,<br />
o pássaro belisca a cereja, sem imagi<strong>na</strong>r como a mesma se<br />
formou. Que sabemos de <strong>Deus</strong>? E que significa, em suma, essa<br />
íntima intuição que temos de um Ser supremo? Ain<strong>da</strong> mesmo<br />
que, a exemplo dos turcos, eu lhe desse cem nomes, ficaria<br />
infinitamente abaixo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, tantos são os seus inumeráveis<br />
atributos... Como o Ente supremo, a que chamamos <strong>Deus</strong>, manifesta-se<br />
não só no homem como no âmbito de uma <strong>Natureza</strong> rica<br />
e potente quanto nos grandes acontecimentos mundiais, a idéia<br />
que dele se faz é, evidentemente, exígua.”<br />
A idéia que os antepassados formavam de <strong>Deus</strong>, em to<strong>da</strong>s as<br />
épocas, sempre esteve de acordo com o grau de ciência sucessivamente<br />
adquirido pela Humani<strong>da</strong>de. Tal como o saber humano,<br />
essa idéia é variável e deve, necessariamente, progredir, pois,<br />
seja como for, ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s noções que constituem o patrimônio<br />
<strong>da</strong> inteligência deve seguir a par com o progresso geral, sob pe<strong>na</strong><br />
de ficar distancia<strong>da</strong>.<br />
No conjunto de um sistema em movimento, to<strong>da</strong> a peça que<br />
se obsti<strong>na</strong>sse em estacio<strong>na</strong>r recuaria realmente. Em nossos dias,
já não é admissível dizer-se, dogmaticamente, que tal ou tal<br />
noção é perfeita e deve guar<strong>da</strong>r o ataque <strong>da</strong> infalibili<strong>da</strong>de: ou se<br />
faz, ou se não faz parte <strong>da</strong> marcha progressiva do espírito. No<br />
primeiro caso, importa acompanhá-lo integralmente e, no segundo,<br />
há que confessar-se em atraso. Eis o que precisa ficar bem<br />
claro.<br />
Digamo-lo francamente: em ciência experimental, <strong>Deus</strong> não<br />
pode ser admitido a priori e muito menos a desti<strong>na</strong>ção, ou fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de,<br />
que presumimos apreender <strong>na</strong>s obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />
As doutri<strong>na</strong>s apriorísticas caducaram, já se não admitem.<br />
Confessemo-nos com os materialistas e perguntemos se os<br />
que tomaram <strong>Deus</strong> e não a <strong>Natureza</strong> como ponto de parti<strong>da</strong><br />
explicaram, algum dia, as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> matéria ou as leis que<br />
gover<strong>na</strong>m o mundo. Puderam eles dizer-nos <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de ou<br />
imobili<strong>da</strong>de do Sol? – se a Terra era pla<strong>na</strong> ou esférica? – quais<br />
os desígnios de <strong>Deus</strong>, etc.? Absolutamente. Mesmo porque, seria<br />
impossível. Partir de <strong>Deus</strong> para investigação e exame <strong>da</strong> Criação<br />
é processo baldo de nexo e de sentido. Esse precário método para<br />
estu<strong>da</strong>r a <strong>Natureza</strong> e inferir conseqüências filosóficas, no pressuposto<br />
de poder, com uma simples teoria, construir o Universo e<br />
fixar as ver<strong>da</strong>des <strong>na</strong>turais, desacreditou-se, felizmente, há muito<br />
tempo.<br />
Mas, pelo fato de havermos substituído a hipótese precedente<br />
pelos resultados do exame a posteriori, segue-se que devamos<br />
fechar os olhos e negar a inteligência, a sabedoria, a harmonia<br />
revela<strong>da</strong>s pela própria observação? Haverá motivo para repudiar<br />
to<strong>da</strong> e qualquer conclusão filosófica e ficar a meio caminho,<br />
temerosos de atingir o fim? E deveremos, por isso, rendermo-nos<br />
aos cépticos contemporâneos que, sem embargo de evidência,<br />
rejeitam to<strong>da</strong> luz e to<strong>da</strong> conclusão?<br />
Pensamos que não. Muito ao contrário, pelo método que preconizam,<br />
constatamos as suas recusas e inconseqüências.<br />
Antes de qualquer controvérsia, importa determi<strong>na</strong>r as posições<br />
recíprocas, por evitar mal-entendidos, esperando nós que as<br />
declarações precedentes bastem para esclarecer categoricamente<br />
a nossa atitude.
Combateremos francamente o materialismo, não com as armas<br />
<strong>da</strong> fé religiosa, não com os argumentos <strong>da</strong> fraseologia<br />
escolástica, não com as autori<strong>da</strong>des tradicio<strong>na</strong>is, mas pelos<br />
raciocínios que a contemplação científica do Universo inspira e<br />
fecun<strong>da</strong>.<br />
Examinemos prelimi<strong>na</strong>rmente, num lanço-de-olhos, de conjunto,<br />
o processo geral do ateísmo hodierno.<br />
Esse processo assemelha-se sensivelmente ao de que se utilizou<br />
o barão de Holbach, nos fins do século passado, para fun<strong>da</strong>mentar<br />
o seu famoso Sistema <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, obra de um materialismo<br />
vulgar, para a qual achava Goethe não haver suficiente<br />
desprezo e costumava averbar de – “legítima quintessência <strong>da</strong><br />
senectude, inepta e insulsa”. O novo processo, mais exclusivamente<br />
científico, to<strong>da</strong>via, consiste principalmente em declarar<br />
que as forças que dirigem, não dirigem o mundo, isto é: que em<br />
vez de gover<strong>na</strong>rem a matéria, antes se lhe escravizam e que é a<br />
matéria (inerte, cega, desprovi<strong>da</strong> de inteligência) que, movendose<br />
de si mesma, se gover<strong>na</strong> mediante leis, cujo alcance ela não<br />
pode, to<strong>da</strong>via, apreciar.<br />
Pretendem os nossos materialistas atuais que a matéria existe<br />
de to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de, revesti<strong>da</strong> de umas tantas proprie<strong>da</strong>des, de<br />
certos atributos e que essas proprie<strong>da</strong>des qualificativas <strong>da</strong> matéria<br />
bastam para explicar a existência, estado e conservação do<br />
mundo.<br />
Dessarte, substituem um <strong>Deus</strong>-espírito por um <strong>Deus</strong>-matéria.<br />
Ensi<strong>na</strong>m que a matéria gover<strong>na</strong> o mundo e que as forças químicas,<br />
físicas, mecânicas, não passam de quali<strong>da</strong>des.<br />
Para refutar um tal sistema, há que tomar, por conseguinte, o<br />
partido contrário e demonstrar um <strong>Deus</strong>-espírito, antes que um<br />
<strong>Deus</strong>-matéria, incompreensível, a reger a matéria; estabelecer<br />
que a substância é escrava antes que proprietária <strong>da</strong> força; provar<br />
que a direção do mundo não cabe às moléculas cegas que o<br />
constituem, mas a forças sob cuja ação transparecem as leis<br />
supremas.
Fun<strong>da</strong>mentalmente, o problema se resume nesta demonstração<br />
e nós esperamos que ela ressaltará brilhante dos estudos<br />
objetivados neste nosso trabalho.<br />
E de vez que os adversários se apóiam em legítimos fatos científicos<br />
para estabelecer o erro, cumpre-nos contrabatê-los com<br />
esses mesmos fatos.<br />
A bem dizer, ain<strong>da</strong> que se demonstrasse que o Universo não é<br />
mais que um mecanismo material, cujas forças não se conjugam<br />
a um motor, mas remontam a matéria, subindo e descendo incessantes<br />
num sistema de motili<strong>da</strong>de perpétua, nem por isso a causa<br />
divi<strong>na</strong> estaria perdi<strong>da</strong>.<br />
Contudo, desde os primórdios <strong>da</strong> Filosofia, a partir de Heráclito<br />
e Demócrito, o sistema mecânico do mundo constituiu-se o<br />
refúgio e o argumento dos ateus, enquanto o sistema dinâmico<br />
albergava e escorava os espiritualistas.<br />
Nós, por princípio, filiamo-nos à concepção dinâmica e combatemos<br />
o sistema incompleto de um mecanismo sem construtor.<br />
Muito judiciosamente, diz Caro: 2 – por um lado o mecanismo<br />
tudo explica, mediante combi<strong>na</strong>ções e agrupamentos de átomos<br />
eternos. To<strong>da</strong>s as varie<strong>da</strong>des de fenômenos, o <strong>na</strong>scimento, a<br />
vi<strong>da</strong>, a morte, mais não são que o resultado mecânico de composições<br />
e decomposições, a manifestação de sistemas atômicos<br />
que se reúnem e se separam.<br />
O di<strong>na</strong>mismo, ao contrário, subordi<strong>na</strong> todos os fenômenos e<br />
todos os seres à idéia de força.<br />
O mundo é a expressão, seja de forças opostas e harmoniosas<br />
entre si, seja de uma força única, cuja metamorfose perpétua<br />
engendra a universali<strong>da</strong>de dos seres.<br />
Pode-se constatar que, não obstante ser a explicação secundária<br />
<strong>da</strong>s coisas, até certo ponto, independente <strong>da</strong> primária, ou<br />
metafísica, a História atesta o fato constante de uma afini<strong>da</strong>de<br />
<strong>na</strong>tural: de um lado, entre a explicação mecânica e a hipótese<br />
supressiva de <strong>Deus</strong>; e de outro lado, entre a teoria dinâmica e a<br />
hipótese que diviniza o mundo em seu princípio.<br />
A teoria mecânica, estabelecendo a pura necessi<strong>da</strong>de matemática<br />
<strong>na</strong>s ações e reações que formam a vi<strong>da</strong> do mundo, é incom-
pleta, por isso que suprime a causa e dissipa em névoa o mundo<br />
moral. A teoria de uma força única, universal, sempre atual e<br />
formando a varie<strong>da</strong>de dos seres pelas suas metamorfoses, ajusta<br />
essa misteriosa universali<strong>da</strong>de a uma força primordial.<br />
Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o processo geral<br />
dos nossos contraditores de um erro gramatical, atribuindo à<br />
matéria um poder só cabível à força e pretendendo não passar<br />
esta de mero adjetivo qualificativo, quando lhe cabem os mesmos<br />
direitos <strong>da</strong>quela, <strong>na</strong> classe dos substantivos.<br />
Examinemos agora, nesta mesma visa<strong>da</strong> de conjunto, quais os<br />
grandes erros que marcham de paralelo e sustentam essa conduta<br />
e que havemos de encontrar sob várias formas, no curso <strong>da</strong>s<br />
nossas contraditas.<br />
O primeiro erro geral de que abusam os materialistas é imagi<strong>na</strong>rem<br />
que, pelo fato de existir <strong>Deus</strong>, importa atribuir-lhe uma<br />
vontade caprichosa e não constante e imutável, em sua perfeição.<br />
Ersted, por exemplo, sábio escrutador do mundo físico, exprimiu<br />
sensatamente as relações de <strong>Deus</strong> com a <strong>Natureza</strong>, dizendo<br />
que “o mundo é gover<strong>na</strong>do por uma razão eter<strong>na</strong>, cujos<br />
efeitos se manifestam <strong>na</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>”.<br />
O Dr. Büchner opõe a esse conceito a seguinte especiosa objeção:<br />
– “Ninguém poderia compreender como uma razão eter<strong>na</strong>,<br />
que gover<strong>na</strong>, se conforme com leis imutáveis. Ou são as leis<br />
<strong>na</strong>turais que gover<strong>na</strong>m, ou é a razão eter<strong>na</strong>. Que umas ao lado de<br />
outras entrariam, a ca<strong>da</strong> instante, em colisão. Se a razão eter<strong>na</strong><br />
gover<strong>na</strong>sse, supérfluas se tor<strong>na</strong>riam as leis <strong>na</strong>turais e se, ao<br />
revés, gover<strong>na</strong>m as leis imutáveis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, elas excluem<br />
to<strong>da</strong> intervenção divi<strong>na</strong>.” – “Se uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de gover<strong>na</strong> a<br />
matéria num determi<strong>na</strong>do sentido – opi<strong>na</strong> Moleschott – desaparece<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> a lei <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de. Ca<strong>da</strong> fenômeno se tor<strong>na</strong><br />
partilha de jogo do acaso e de uma arbitrarie<strong>da</strong>de sem pelas.”<br />
Havemos de convir que esta grave objeção é singularíssima.<br />
É um raciocínio extravagante que cai pela base. A nós nos parece,<br />
pelo contrário, que a inteligência notória <strong>na</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong><br />
demonstra, no mínimo, a inteligência <strong>da</strong> causa a que se
devem essas leis, que são, elas mesmas, precisamente a expressão<br />
imutável dessa inteligência eter<strong>na</strong>.<br />
E não será algo ridículo pretender que essa causa deixe de<br />
existir, pelo motivo do íntimo acordo com essas mesmas leis?<br />
Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua virtuosi<strong>da</strong>de<br />
é tão perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados<br />
com a poesia <strong>da</strong> sua alma! Diremos, então, que essa alma<br />
não existe, visto que para lhe admitir existência fora preciso que<br />
ela estivesse eventual e arbitrariamente em desacordo com as leis<br />
<strong>da</strong> Harmonia! Essa maneira de racioci<strong>na</strong>r é tão falsa que os<br />
próprios autores que a utilizam são os primeiros a reconhecê-lo<br />
implicitamente. Assim é que Büchner, referindo-se a milagres e<br />
ao fato de haver o clero inglês solicitado a decretação de um dia<br />
de jejum e de preces para conjurar a cólera, elogia Palmaraton<br />
por haver respondido que o surto epidêmico dependia mais de<br />
fatores <strong>na</strong>turais, em parte conhecidos, e poderia melhor jugularse<br />
com providências sanitárias, antes que com preces.<br />
Muito bem! O autor, melhor ain<strong>da</strong>, acrescenta: “Essa resposta<br />
lhe acarretou a pecha de ateísmo e o clero declarou pecado<br />
mortal não crer pudesse a Providência transgredir, a qualquer<br />
tempo, as leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.”<br />
Mas, que singular idéia faz essa gente de <strong>Deus</strong> que por si criou!<br />
Um legislador supremo a deixar-se comover por preces e<br />
soluços, a subverter a ordem imutável que ele mesmo instituiu, a<br />
violar por suas próprias mãos a ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s forças <strong>na</strong>turais! –<br />
“Todo o milagre, se existisse – diz também Cotta – provaria que<br />
a Criação não merece o respeito que lhe tributamos e os místicos<br />
deveriam deduzir, <strong>da</strong> imperfeição do criado, a imperfeição do<br />
Criador.”<br />
Aí temos os adversários em contradição consigo mesmos,<br />
quando, por um lado, não querem admitir uma razão eter<strong>na</strong> em<br />
concordância de leis imutáveis, e por outro pensam conosco, que<br />
a idéia de imutabili<strong>da</strong>de ou, pelo menos, a regulari<strong>da</strong>de, identifica-se<br />
muito melhor com a perfeição ideal do ser desconhecido<br />
que denomi<strong>na</strong>mos <strong>Deus</strong>, do que a idéia de mutabili<strong>da</strong>de e arbitrarie<strong>da</strong>de,<br />
que umas tantas crenças pretendem impor-lhe.
Um segundo erro geral, não menos funesto que o precedente<br />
e que por igual ilude nossos contraditores, é o de acreditarem<br />
que, para existir <strong>Deus</strong>, importa colocá-lo fora do mundo.<br />
Não vemos pretexto algum racio<strong>na</strong>l que possa justificar uma<br />
tal necessi<strong>da</strong>de. E antes do mais, que significa essa idéia de uma<br />
causa sobera<strong>na</strong> extramundo? Onde os limites do mundo? Pois o<br />
mundo, isto é, o espaço no qual se movem estrelas e terras, não é<br />
infinito por sua mesma essência?<br />
Imagi<strong>na</strong>is um limite a esse mesmo espaço e supondes que ele<br />
se não renova além? Será, então, possível traçar limites à extensão?<br />
Onde, pois, imagi<strong>na</strong>r <strong>Deus</strong> fora do mundo? Será fora <strong>da</strong><br />
matéria, o que se quer dizer? Mas, que é a matéria em si? –<br />
agrupamentos de moléculas intangíveis. Portanto, impossível<br />
determi<strong>na</strong>r uma semelhante posição. <strong>Deus</strong> não pode estar fora do<br />
mundo, mas no mesmo lugar do mundo, do qual é o sustentáculo<br />
e a vi<strong>da</strong>.<br />
Não fosse temer a pecha de panteísta e ajuntaríamos que<br />
<strong>Deus</strong> é – a alma do mundo. O Universo vive por <strong>Deus</strong>, assim<br />
como o corpo obedece à alma. Em vão pretendem os teólogos<br />
que o espaço não pode ser infinito, em vão se apegam os materialistas<br />
a um <strong>Deus</strong> fora do mundo, enquanto sustentamos que<br />
<strong>Deus</strong>, infinito, está com o mundo, em ca<strong>da</strong> átomo do Universo –<br />
adoramos <strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />
Entretanto, nossos adversários combatem insensatamente o<br />
seu fantasma. “Não há considerar o Universo – diz Strauss –<br />
como orde<strong>na</strong>ção regra<strong>da</strong> por um Espírito fora do mundo, mas,<br />
como razão imanente às forças cósmicas e às suas relações.”<br />
A essa razão, chamamo-la <strong>Deus</strong>, enquanto os modernos ateístas<br />
aproveitam essa declaração para sentenciar que, em não<br />
existindo fora do mundo, é que <strong>Deus</strong> não existe.<br />
“Tudo, – diz H. Tuttle – desde a tinha (perdoem a expressão)<br />
que baila aos raios do Sol, à inteligência huma<strong>na</strong>, que verte <strong>da</strong>s<br />
massas medulosas do cérebro, está submetido a princípios fixos.<br />
Logo, não existe <strong>Deus</strong>.” Logo, existe – dizemos nós – “Livre é<br />
ca<strong>da</strong> qual de franquear os limites do mundo visível – pondera<br />
Büchner – e de procurar fora dele uma razão que gover<strong>na</strong>, uma
potência absoluta, uma alma mundial, um <strong>Deus</strong> pessoal”, etc.<br />
Mas, que é o que vos fala disso? “Nunca, em parte alguma – diz<br />
o mesmo literato – nos mais longínquos espaços revelados pelo<br />
telescópio, pôde observar-se um fato que fizesse exceção e<br />
pudesse justificar a necessi<strong>da</strong>de de uma força absoluta, operando<br />
fora <strong>da</strong>s coisas.”<br />
“A força não impeli<strong>da</strong> por um <strong>Deus</strong>, não é uma essência <strong>da</strong>s<br />
coisas isola<strong>da</strong>s do princípio material” – adverte Moleschott.<br />
Ninguém terá visão tão limita<strong>da</strong> – afirma ele alhures – para<br />
enxergar <strong>na</strong>s ações <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> forças outras não liga<strong>da</strong>s a um<br />
substrato material. Uma força que pla<strong>na</strong>sse livremente acima <strong>da</strong><br />
matéria seria uma concepção absolutamente bal<strong>da</strong> de sentido.<br />
Positivamente, ain<strong>da</strong> hoje existem cavaleiros errantes, à guisa<br />
dos que outrora manobravam em torno dos castelos do Reno, e<br />
de bom grado arremetem moinhos de vento. Lídimos heróis de<br />
Cervantes, visto que, no fim de contas, qual o filósofo que hoje<br />
propug<strong>na</strong> um <strong>Deus</strong> ou forças quaisquer fora <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>?<br />
Vemos em <strong>Deus</strong> a essência virtual que sustenta o mundo em<br />
ca<strong>da</strong> uma de suas partes microscópicas, <strong>da</strong>í resultando ser o<br />
mundo como que por ele banhado, embebido em to<strong>da</strong>s as suas<br />
partes e que <strong>Deus</strong> está presente <strong>na</strong> composição mesma de ca<strong>da</strong><br />
corpo.<br />
Dessarte, a primeira trincheira cava<strong>da</strong> pelos adversários para<br />
bloquear o Espiritualismo foi por eles mesmos entulha<strong>da</strong>; e a<br />
segun<strong>da</strong> nem sequer objetiva a ci<strong>da</strong>dela, e os nossos sol<strong>da</strong>dos<br />
alemães não fazem mais que bater o campo.<br />
Um terceiro erro, capital e imperdoável em cientistas de certa<br />
i<strong>da</strong>de, é imagi<strong>na</strong>rem-se com direito de afirmar sem provas, a<br />
embalarem-se com a doce ilusão de serem os outros obrigados a<br />
acreditar sob palavra. Coisas que a ver<strong>da</strong>deira Ciência profun<strong>da</strong>mente<br />
silencia, afirmam-<strong>na</strong>s eles, categóricos. Afirmam, como<br />
se houvessem assistido aos concelhos <strong>da</strong> Criação, ou como se<br />
fossem os próprios autores dela.<br />
Eis alguns espécimes de raciocínios, cuja infalibili<strong>da</strong>de é tão<br />
ciosamente proclama<strong>da</strong>.
Que os espíritos um tanto afeitos à prática científica se dêem<br />
ao trabalho de a<strong>na</strong>lisar as seguintes afirmações:<br />
Moleschott diz que a força não é um deus que impele, não é<br />
um ser separado <strong>da</strong> substância material <strong>da</strong>s coisas (quer dizer<br />
separado ou distinto?). É a proprie<strong>da</strong>de inseparável <strong>da</strong> matéria, a<br />
ela inerente de to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de. Uma força, não liga<strong>da</strong> à matéria,<br />
seria um absurdo. O azoto, o carbono, o oxigênio, o enxofre<br />
e o fósforo têm proprie<strong>da</strong>des que lhes são inerentes de to<strong>da</strong> a<br />
eterni<strong>da</strong>de... Logo, a matéria gover<strong>na</strong> o homem.”<br />
Ca<strong>da</strong> uma destas afirmativas, ou negativas, é uma petição de<br />
princípios, a depender do sentido que dermos aos termos discutíveis<br />
utilizados; mas, em suma, o que elas resumem é que a força<br />
vale como proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria. Ora, essa é, precisamente, a<br />
questão. Os campeões <strong>da</strong> Ciência, que pretendem representá-la e<br />
falar com e por ela, não se dig<strong>na</strong>m de seguir o método científico,<br />
que é o de <strong>na</strong><strong>da</strong> afirmar sem provas. Nas dobras do seu estan<strong>da</strong>rte,<br />
com letras doura<strong>da</strong>s, estereotiparam uma legen<strong>da</strong> fulgurante,<br />
a saber: – to<strong>da</strong> proposição não demonstra<strong>da</strong> experimentalmente<br />
só merece repúdio – e, no entanto, logo de início, esquecem a<br />
legen<strong>da</strong>. São pregadores de uma nova espécie: façam o que digo<br />
e não o que eu faço.<br />
Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a força não<br />
impulsio<strong>na</strong> a matéria, exprimem um conceito imagi<strong>na</strong>tivo, <strong>na</strong><strong>da</strong><br />
científico.<br />
Ouçamos, ain<strong>da</strong>, outras afirmativas gerais: “A matéria – diz<br />
Dubois-Reymond – não é um veículo ao qual, à guisa de cavalos,<br />
se atrelassem ou desatrelassem alter<strong>na</strong>tivamente as forças. Suas<br />
proprie<strong>da</strong>des são i<strong>na</strong>lienáveis, intransmissíveis de to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de.”<br />
Quanto ao destino humano, eis como se exprime Moleschott:<br />
“Quanto mais nos convencemos de trabalhar para o mais alto<br />
desenvolvimento <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de, por uma judiciosa associação<br />
de ácido carbônico, de amoníaco e de outros sais, de ácido<br />
húmico e de água, mais se nobilitam a luta e o trabalho”, etc.<br />
E também em nosso país: “Uma idéia – diz a Revista Médica<br />
– é uma combi<strong>na</strong>ção análoga à do ácido fórmico; o pensamento
depende do fósforo; a virtude, o devotamento, a coragem, são<br />
correntes de eletrici<strong>da</strong>de orgânica”, etc.<br />
Quem vos disse tal coisa, senhores re<strong>da</strong>tores? Olhem que os<br />
leitores hão de pensar que os vossos mestres ensi<strong>na</strong>m esses<br />
gracejos, quando tal se não dá, absolutamente. Mesmo porque,<br />
do ponto de vista científico, esses raciocínios são totalmente<br />
nulos. De fato, não se sabe o que mais admirar em tais expoentes<br />
<strong>da</strong> Ciência: se a singular audácia, se a ingenui<strong>da</strong>de de suas<br />
presunções.<br />
Newton não se cansava de repetir: “parece-nos...”, e Képler<br />
dizia: “submeto-vos estas hipóteses...”. Aqueles outros, porém<br />
dizem: afirmo, nego, isto é, aquilo não é, a Ciência julgou,<br />
decido, condenou, posto que no que dizem não haja sombra de<br />
argumento científico.<br />
Um tal método pode ter o merecimento <strong>da</strong> clareza, mas ninguém<br />
o inqui<strong>na</strong>rá de modesto, nem de ver<strong>da</strong>deiramente científico.<br />
É que tais senhores têm a ousadia de imputar à Ciência a carga<br />
pesa<strong>da</strong> <strong>da</strong>s suas próprias heresias. Se a Ciência vos ouvisse,<br />
senhores (mas deve ouvir, porque sois seus filhos) – se a Ciência<br />
vos ouve, não pode deixar de sorrir <strong>da</strong>s vossas ilusões.<br />
A Ciência, dizeis, afirma, nega, orde<strong>na</strong>, proíbe... Pobre Ciência,<br />
em cujos lábios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao<br />
coração um descomu<strong>na</strong>l orgulho.<br />
Não, meus senhores, e vós bem o sabeis (cá entre nós) que,<br />
nestes domínios, a Ciência <strong>na</strong><strong>da</strong> afirma, nem nega, porque ape<strong>na</strong>s<br />
procura.<br />
Refleti, pois, que a armadura <strong>da</strong>s vossas parlan<strong>da</strong>s ilude os<br />
ignorantes e pode induzir em erro quantos não tiveram a facul<strong>da</strong>de<br />
de perlustrar os vossos estudos, e considerai que, quando<br />
nos arrogamos o título de intérpretes <strong>da</strong> Ciência, ficamos <strong>na</strong><br />
obrigação de não falsear o título, de permanecer-lhe fiel e, por<br />
conseqüência, modestos tradutores de uma causa que tem <strong>na</strong><br />
modéstia o seu primacial merecimento.<br />
Se, <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> força, em geral, passarmos à <strong>da</strong> alma, observaremos<br />
que, <strong>na</strong> esfera <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> animal, ou huma<strong>na</strong>, os adver-
sários não vacilam em afirmar, igualmente sem provas, que não<br />
existe perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de no ser vivente e pensante; que o espírito,<br />
como a vi<strong>da</strong>, mais não é que o resultado físico de certos grupamentos<br />
atômicos e que a matéria gover<strong>na</strong> o homem tão exclusivamente<br />
quanto, a seu ver, gover<strong>na</strong> os astros e os cristais. O<br />
fenômeno mais curioso é o de imagi<strong>na</strong>rem que aclaram o problema<br />
com as suas explicações obscuras:<br />
– “O espírito, diz o Dr. Hermann Scheffler 3 , outra coisa não é<br />
senão uma força <strong>da</strong> matéria, imediatamente resultante <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />
nervosa”...<br />
Mas... de onde provém essa ativi<strong>da</strong>de nervosa?<br />
– Do éter (?) em movimento nos nervos. De sorte que, os atos<br />
do espírito são o produto imediato do movimento nervoso,<br />
determi<strong>na</strong>do pelo éter, ou do movimento deste nos nervos – ao<br />
qual importa ajuntar uma variação mecânica, física ou química,<br />
<strong>da</strong> substância imponderável dos nervos e de outros elementos<br />
orgânicos...<br />
– Eis aí, suponho, bem esclareci<strong>da</strong> a questão. Virchow diz<br />
que “a vi<strong>da</strong> não é mais que mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de particular <strong>da</strong> mecânica”;<br />
e Büchner afirma que “o homem não passa de produto material;<br />
que não pode ser o que os moralistas pintam; que não tem facul<strong>da</strong>de<br />
alguma privilegia<strong>da</strong>”.<br />
– Que há em todos os nervos uma corrente elétrica – predica<br />
Dubois-Reymond – e que o pensamento mais não é que movimento<br />
<strong>da</strong> matéria. Para Vogt, as facul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> alma valem como<br />
funções <strong>da</strong> substância cerebral e estão para o cérebro como a<br />
uri<strong>na</strong> para os rins 4 . E Moleschott assegura que a consciência, a<br />
noção de si mesmo, mais não é que movimentos materiais, liga<strong>da</strong><br />
a correntes neuro-elétricas e percebi<strong>da</strong>s pelo cérebro.<br />
Teremos ensejo de assi<strong>na</strong>lar, mais adiante, um ditirambo deste<br />
mesmo autor sobre o fósforo, o peso do cérebro, as ervilhas e<br />
lentilhas. Por agora, limitemo-nos a estes edificantes testemunhos.<br />
Admiremos, sobretudo, a conclusão fun<strong>da</strong>mental: “E aí temos<br />
nós porque os sábios definem a força uma simples proprie<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> matéria. Qual a conseqüência geral e filosófica desta noção
tão simples quanto <strong>na</strong>tural? É que aqueles que falam de uma<br />
força criadora, tendo de si mesma origi<strong>na</strong>do o mundo, ignoram o<br />
primeiro e mais simples princípio do estudo <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, baseados<br />
<strong>na</strong> Filosofia e no empirismo.”<br />
E, acrescentam – “qual o homem instruído, com um conhecimento<br />
mesmo superficial <strong>da</strong>s ciências <strong>na</strong>turais, capaz de duvi<strong>da</strong>r<br />
não seja o mundo gover<strong>na</strong>do como geralmente se afirma, e<br />
sim que os movimentos <strong>da</strong> matéria estão submetidos a uma<br />
necessi<strong>da</strong>de absoluta e inerente à própria matéria?“<br />
Assim, pela só autori<strong>da</strong>de de alguns alemães, que vêm ingenuamente<br />
declarar não admitirem, seja como for, a existência de<br />
<strong>Deus</strong> e <strong>da</strong> alma, agarrando-se embora a uma sombra de noção<br />
científica por justificar as suas fantasias, teríamos nós, ao seu<br />
ver, de abjurar a Ciência, ou deixar de crer em <strong>Deus</strong>.<br />
Tivessem tido ape<strong>na</strong>s a precaução de aplicar as regras do silogismo<br />
ao seu método; tivessem tido o cui<strong>da</strong>do de propor,<br />
primeiramente, as premissas irrefutáveis e não tirar delas senão<br />
uma conclusão legítima, e poderíamos acompanhá-los no raciocínio<br />
e conferir-lhes um prêmio de retórica. Mas, vede em que<br />
consiste o seu processo:<br />
Maior – A força é uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria.<br />
Menor – Portanto, uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria não pode ser<br />
considera<strong>da</strong> superior, criadora ou organizadora dessa matéria.<br />
Conclusão – Logo, a idéia de <strong>Deus</strong> é uma concepção absur<strong>da</strong>.<br />
É assim que arvoram, antes de tudo, em princípio a tese a discutir.<br />
Combatendo cerra<strong>da</strong>mente os métodos do Cristianismo, essa<br />
gente muito se assemelha aos que, no intuito de provarem aos<br />
Romanos a divin<strong>da</strong>de de Jesus, assim começavam: – Jesus é<br />
<strong>Deus</strong>, e desse princípio não provado extraiam to<strong>da</strong>s as deduções.<br />
Convicto estamos de honrar grandemente esses escritores,<br />
aplicando aos seus postulados as regras do raciocínio, que eles<br />
talvez nunca sonharam seguir.<br />
Também poderíamos submeter-lhes as pretensões a uma outra<br />
forma mais ingênua, assim:
Antecedente – Matéria e força encontram-se sempre associa<strong>da</strong>s.<br />
Conseqüente – Logo, a força é uma quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria.<br />
Aí temos, penso, um entimema de novo gênero e de conseqüências<br />
bem evidentes, pois não? Mas, é assim que os senhores<br />
Alemães racioci<strong>na</strong>m, bem como os seus clarividentes imitadores,<br />
positivistas <strong>da</strong> nossa moder<strong>na</strong> França.<br />
No primeiro caso, o raciocínio peca pela base; e, no segundo,<br />
nem mesmo faz jus a esse reproche, porque é uma infantili<strong>da</strong>de.<br />
Certo, pesa dizê-lo, mas é a essa puerili<strong>da</strong>de, ou melhor –<br />
perversão <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de de racioci<strong>na</strong>r – que se reduz o movimento<br />
materialista dos nossos tempos. E nunca, como aqui, vem a<br />
pêlo a frase do misantropo que dizia não ser o homem um animal<br />
pensador, mas, falador.<br />
Todo o fun<strong>da</strong>mento desta grande querela, to<strong>da</strong> a base deste<br />
edifício heterogêneo, cujo desmoro<strong>na</strong>mento pode esmagar<br />
muitos cérebros sob os escombros; to<strong>da</strong> a força deste sistema que<br />
pretende domi<strong>na</strong>r o mundo, presente e futuro; todo o seu valor e<br />
potência, repousam nessa assertiva fantasiosa, arbitrária e jamais<br />
demonstra<strong>da</strong>, de ser a força uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria.<br />
E é fingindo acompanhar a rigor as demonstrações científicas<br />
e só se apoiar em ver<strong>da</strong>des reconheci<strong>da</strong>s; é confungindo-se ao<br />
estan<strong>da</strong>rte <strong>da</strong> Ciência, apropriando-se de suas fórmulas e atitudes;<br />
é, enfim, com ela mascarando-se, que os pontífices do<br />
ateísmo e do niilismo proclamam as suas belas e edificantes<br />
doutri<strong>na</strong>s.<br />
Mas a Ciência não é uma mascara<strong>da</strong>. A Ciência fala de viseira<br />
ergui<strong>da</strong>, não reivindica falsas manobras, nem luzes de falso<br />
brilho. Sere<strong>na</strong> e pura <strong>na</strong> sua majestade, ela se pronuncia simples,<br />
modestamente, como enti<strong>da</strong>de consciente do seu valor intrínseco.<br />
Nem procura impor-se e, sobretudo, não aventa coisas de que<br />
não possa estar segura. Em vez de afirmar ou negar, investiga e<br />
prossegue, laboriosamente, no seu mister.<br />
A exposição precedente já deixou adivinhar, sem dúvi<strong>da</strong>, a<br />
tática do ateísmo contemporâneo.
Ele não é fruto direto do estudo científico, mas procura insinuar-se<br />
com essa aparência.<br />
Evidente a ilusão, nesses filósofos, pois sabemos que há entre<br />
eles uns tantos conceitos sinceros. É à força de quererem conjugar<br />
à Ciência as suas teorias, que acabaram por embutir no<br />
cérebro essa união clandesti<strong>na</strong>. Essas teorias não podem invocar<br />
a seu favor qualquer <strong>da</strong>s grandes provas científicas <strong>da</strong> nossa<br />
época e, sem embargo, dão-se como resultantes de todo o moderno<br />
trabalho científico.<br />
Isso repetem, e é com essa hermenêutica que abusam dos ignorantes<br />
e <strong>da</strong> juventude desprecavi<strong>da</strong> e entusiasta, tendendo a<br />
lhes fazer crer que as ciências, à força de progredirem, acabaram<br />
por descobrir e demonstrar que não há <strong>Deus</strong> nem alma. São eles<br />
que fazem a Ciência.<br />
Dir-se-ia, em os ouvindo, <strong>na</strong><strong>da</strong> haver além deles. Os grandes<br />
homens <strong>da</strong> antigüi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média, tanto como os modernos,<br />
são fantasmas, e to<strong>da</strong> a Filosofia deve desaparecer diante do<br />
ateísmo pretensamente científico.<br />
Preciso se faz que a imagi<strong>na</strong>ção popular não se deixe iludir<br />
por simples jogo de palavras, que mais valem, às vezes, por<br />
ver<strong>da</strong>deira comédia. Importa que as criaturas pensem por si<br />
mesmas, julguem com conhecimento de causa e adquiram a<br />
certeza de que os fatos científicos, perquiridos sem prevenção,<br />
não comportam as conclusões dogmáticas que lhes querem<br />
impor.<br />
Vista de perto, a pedra angular a grande custo lança<strong>da</strong> pelo<br />
materialismo contemporâneo deixa entrever que ela não passa de<br />
velho e carcomido tronco de madeira podre e, no fundo, os<br />
partidários do sistema não estão mais seguros do seu cepticismo<br />
do que o estariam os calvos discípulos de Heráclito ou de Epícuro.<br />
Ain<strong>da</strong> que queiram convencer-nos do contrário, todo o seu<br />
sistema não passa de hipótese, mais vazia e menos fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong><br />
que muitos romances científicos.
E uma vez que são eles próprios a declarar que to<strong>da</strong> hipótese<br />
deve ser bani<strong>da</strong> <strong>da</strong> Ciência, não há como deixarmos de começar<br />
por esse banimento.<br />
Realmente, com que direito fazem <strong>da</strong> força atributo <strong>da</strong> matéria?<br />
Com que direito afirmam que a força está submeti<strong>da</strong> à matéria,<br />
que lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta<br />
de elementos inertes, mortos, indiferentes, cegos? Maior e<br />
mais fun<strong>da</strong>do é o nosso direito de inverter-lhes a proposição,<br />
derrubando-lhes o edifício pela base.<br />
Terminemos assim esta exposição do problema, decidindo<br />
que o discrime se coloca nestes termos fun<strong>da</strong>mentais: é a matéria<br />
que domi<strong>na</strong> a força, ou antes esta que domi<strong>na</strong> aquela?<br />
Trata-se de discutir e escolher uma ou outra, ou, para falar<br />
com mais exatidão – trata-se de observar a <strong>Natureza</strong> e optar<br />
depois.<br />
E, pois que os honrados campeões <strong>da</strong> matéria afirmam, com<br />
tanta segurança, o primeiro enunciado, começamos revocando-o<br />
em dúvi<strong>da</strong> e propondo a alegação contrária.<br />
* * *<br />
No rostro desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta pergunta:<br />
A força rege ou é regi<strong>da</strong> pela matéria? Este o dilema que os<br />
fatos de si mesmos devem resolver.<br />
O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira<br />
demonstração de soberania <strong>da</strong> força e <strong>da</strong> ilusão dos materialistas.<br />
Da matéria, nos elevamos às forças que a dirigem; destas, às<br />
leis que as gover<strong>na</strong>m, e destas, ain<strong>da</strong>, ao seu misterioso autor.<br />
A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e o ouvido de<br />
alguns ínfimos seres humanos recusam-se a escutá-los. A mecânica<br />
celeste lança, ousa<strong>da</strong>mente, no espaço, o arco <strong>da</strong>s órbitas e o<br />
olho de um parasita desses orbes desdenha a grandeza <strong>da</strong> sua<br />
arquitetura.<br />
A luz, o calor, a eletrici<strong>da</strong>de, pontos invisíveis projetados de<br />
uma a outra esfera, fazem circular nos espaços infinitos o movi-
mento, a ativi<strong>da</strong>de, a vi<strong>da</strong>, a radiação do esplendor e <strong>da</strong> beleza, e<br />
as imbeles criaturas, ape<strong>na</strong>s desabrocha<strong>da</strong>s à superfície de um<br />
parasita desses orbes desdenha a grandeza a confessar a fulgurância<br />
celeste! É loucura ou é tolice? É orgulho, ou ignorância?<br />
Qual a origem e a fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de de tão estranha aberração? Porque a<br />
força vital, álacre e fecun<strong>da</strong>, palpita no Sol como <strong>na</strong> borboleta<br />
que morre com a manhã; no carvalho anoso <strong>da</strong>s florestas como<br />
<strong>na</strong> primaveril violeta? – porque a vi<strong>da</strong> magnificante doura as<br />
messes de Julho e os cabelos anelados <strong>da</strong> juventude petulante e<br />
freme no seio virgi<strong>na</strong>l <strong>da</strong>s noivas? – porque negar a beleza,<br />
mascarar a ver<strong>da</strong>de e desprezar a inteligência? Porque envene<strong>na</strong>r<br />
as virtudes eter<strong>na</strong>s que sustentam a estrutura do mundo e eclipsar,<br />
tristemente, a luz imácula que desce dos céus?<br />
Antes de penetrar os mistérios do reino tão rico e interessante<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, devemos considerar o esboço material do Universo,<br />
começando por demonstrar a soberania <strong>da</strong> força no tracejar desse<br />
mesmo esboço. Dividiremos esta primeira em duas partes: o Céu<br />
e a Terra, para estabelecer em primeiro lugar, por leis astronômicas<br />
e depois pelas terrestres, que, onde quer que exista a matéria,<br />
esta jamais deixou de ser escrava servil, universalmente domi<strong>na</strong><strong>da</strong><br />
pela energia que a rege. Esta divisão não deve sugerir, de<br />
modo algum, a velha comparação do céu com a Terra, que bem<br />
sabemos serem termos incomparáveis. Considerado como valor<br />
absoluto, o céu é tudo e a Terra <strong>na</strong><strong>da</strong> é. A Terra é átomo imperceptível,<br />
perdido no seio do infinito; o céu a envolve no ilimitado<br />
e a integra <strong>na</strong> população astral, sem exceção nem privilégio<br />
particular.<br />
Reunir os dois vocábulos, é como dizer: os Alpes são uma<br />
pedrinha, o Oceano é uma gota d’água e o Saara um grão de<br />
areia. É comparar o todo a um mínimo do mesmo todo.<br />
Importa, portanto, não interpretar literalmente a nossa divisão,<br />
que só se justifica por colimar maior clareza do assunto.<br />
Para nós, terrícolas, este globo é alguma coisa, assim como para<br />
a minúscula lagarta, que aflora numa folha, esta folha algo vale,<br />
mau grado à sua insignificância no conjunto <strong>da</strong> pra<strong>da</strong>ria.
Nossa esfera de observação divide-se também, <strong>na</strong>turalmente,<br />
em duas partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso<br />
mundo.<br />
Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como<br />
nele, a matéria está em tudo e por to<strong>da</strong> a parte e não passa de<br />
coisa inerte, cega, morta, composta de elementos incapazes de se<br />
dirigirem por si mesmos; que não agem nem pensam por impulso<br />
próprio e que, nos sen<strong>da</strong>is invisíveis do espaço, tanto como nos<br />
ca<strong>na</strong>is <strong>da</strong> seiva ou do sangue, o que agluti<strong>na</strong> em átomos, dirige<br />
as moléculas e conduz os mundos, é uma Força <strong>na</strong> qual transparece<br />
o plano, a vontade, a inteligência, a sabedoria e o poder do<br />
seu amor.
2 - O Céu<br />
SUMÁRIO – As harmonias do mundo sideral – Leis de Képler. –<br />
Atração universal. – Coorde<strong>na</strong>ção dos mundos e dos seus movimentos.<br />
– A força rege a matéria. – Caráter inteligente <strong>da</strong>s leis<br />
astronômicas; condições <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong>de do Universo. – Potência,<br />
ordem, sabedoria. – Negação ateísta, inqui<strong>na</strong>ções curiosas ao<br />
organizador, objeções singulares ao mecânico. – Será ver<strong>da</strong>de<br />
que não existe no parque <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> si<strong>na</strong>l qualquer de Inteligência?<br />
– Resposta aos julgadores de <strong>Deus</strong>.<br />
A contemplação <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> oferece ao homem culto, incontestavelmente,<br />
inefáveis, particulares encantos. Na organização<br />
dos seres descobre-se o incessante movimento dos átomos que os<br />
compõem, tanto quanto a permuta constante e operante entre<br />
to<strong>da</strong>s as coisas.<br />
Justa é a nossa admiração por tudo o que vive <strong>na</strong> superfície<br />
<strong>da</strong> Terra. O mesmo calor solar, que mantém no estado líquido a<br />
água dos rios e dos mares, conduz a seiva à fronde <strong>da</strong>s árvores e<br />
faz pulsar o coração dos abutres e <strong>da</strong>s pombas. A luz que espalha<br />
a viridência nos prados e nutre as plantas com um sopro impalpável<br />
também povoa a atmosfera de maravilhosas belezas aéreas.<br />
O som que estremece a folhagem canta <strong>na</strong> orla dos bosques, ruge<br />
<strong>na</strong>s plagas marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlação de<br />
forças físicas, que abrange num mesmo sistema a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> sob a comunhão <strong>da</strong>s mesmas leis. Ora, quanto mais fervente<br />
for a nossa admiração pelo radiamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> planetária, mais<br />
extensiva e aplicável se tor<strong>na</strong>rá, em relação aos mundos que aí<br />
fulguram acima de nossas cabeças, no cenáculo <strong>da</strong>s noites silenciosas.<br />
Esses mundos longínquos que, qual o nosso, se embalam<br />
no mesmo éter, sob o império <strong>da</strong>s mesmas energias e <strong>da</strong>s mesmas<br />
leis, são igualmente sedes de ativi<strong>da</strong>de e vi<strong>da</strong>. Poderíamos<br />
apresentar este grandioso e magnífico espetáculo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> universal<br />
como eloqüente testemunho <strong>da</strong> inteligência, sabedoria e<br />
onipotência <strong>da</strong> causa anônima, que houve por bem reverberar,<br />
dos primórdios <strong>da</strong> Criação, o seu mágico esplendor no espelho<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> cria<strong>da</strong>. Mas, não é sob este prisma que desejamos<br />
aqui desdobrar o panorama <strong>da</strong>s grandezas celestes. Ape<strong>na</strong>s, para
o teatro <strong>da</strong>s leis que regem o nosso mundo, queremos convocar<br />
os negadores <strong>da</strong> inteligência criadora.<br />
Se, abrindo os olhos diante desse espetáculo, eles persistirem<br />
em sua negativa, já não teremos como nos eximir de responderlhes,<br />
em consciência, que também duvi<strong>da</strong>remos de suas facul<strong>da</strong>des<br />
mentais. Porque, para falar com franqueza, a inteligência do<br />
Criador nos parece infinitamente mais curta e incontestável que a<br />
dos ateus franceses e estrangeiros.<br />
E, como o método positivo consiste em não julgar antes de<br />
observar os fatos, corre-nos o dever de exami<strong>na</strong>r primeiro os<br />
fatos astronômicos de que falamos e depois <strong>da</strong> interpretação com<br />
que se satisfazem os nossos antagonistas. Se, depois disso, essa<br />
sua interpretação satisfizer, subscreveremos de antemão as suas<br />
doutri<strong>na</strong>s; mas, se, ao contrário, revelar-se insensata, temos,<br />
como dever de honra e por amor à ver<strong>da</strong>de, de a desmascarar e<br />
entregar ao apupo <strong>da</strong> platéia.<br />
Esqueçamos por momentos o átomo terrestre, no qual o destino<br />
nos fixou por alguns dias. Que o nosso espírito se lance ao<br />
espaço e veja rolar diante de si o mecanismo gigantesco – mundos<br />
e mundos, sistemas após sistemas, <strong>na</strong> infinita sucessão de<br />
universos estrelados. Ouçamos, com Pitágoras, as harmonias<br />
siderais <strong>na</strong>s amplas e céleres revoluções <strong>da</strong>s esferas e contemplemos,<br />
<strong>na</strong> sua reali<strong>da</strong>de, esses movimentos simultaneamente<br />
vertiginosos e regulares que enfeu<strong>da</strong>m as terras celestes <strong>na</strong>s suas<br />
órbitas ideais. Observamos que a Lei suprema, universal, dirige<br />
esses mundos. Em torno do nosso sol, centro, foco luminoso,<br />
elétrico, calorífico do sistema planetário, giram os planetas<br />
obedientes. Os mais extraordinários labores do espírito humano<br />
deram-nos a fórmula <strong>da</strong> lei, que se divide em três pontos fun<strong>da</strong>mentais,<br />
conhecidos em Astronomia por leis de Képler, operoso<br />
sábio que a descobriu graças ao seu gênio, como à sua paciência,<br />
e que discutiu opiniaticamente, 17 anos, as observações do seu<br />
mestre Ticho-Brahe, antes que distinguisse sob o véu <strong>da</strong> matéria<br />
a força que a rege.<br />
Esses três pontos são:
1º - Ca<strong>da</strong> planeta descreve em torno do Sol uma órbita elíptica,<br />
<strong>na</strong> qual o centro do Sol ocupa sempre um dos focos.<br />
2º - As áreas (ou superfícies) descritas pelo raio vetor 5 de um<br />
planeta em redor do foco solar são proporcio<strong>na</strong>is aos tempos<br />
que levam a descrevê-las.<br />
3º - Os quadrados dos tempos de revolução planetária, em<br />
torno do Sol, são proporcio<strong>na</strong>is aos cubos dos grandes eixos<br />
orbitários.<br />
A síntese dessas leis integra o grande axioma que Newton foi<br />
o primeiro a formular <strong>na</strong> sua obra imortal sobre os Princípios.<br />
Nesse livro, ensi<strong>na</strong>-nos ele – como bem adverte Herschel –<br />
que todos os movimentos celestes são conseqüências <strong>da</strong> lei, isto<br />
é: – que duas moléculas materiais se atraem <strong>na</strong> razão direta do<br />
volume de suas massas e <strong>na</strong> inversa do quadrado <strong>da</strong>s distâncias.<br />
Partindo deste princípio, ele explica como a atração exerci<strong>da</strong><br />
entre as grandes massas esféricas, componentes do nosso sistema,<br />
é regula<strong>da</strong> por uma lei cuja expressão é exatamente idêntica,<br />
como os movimentos elípticos dos planetas ao redor do Sol e dos<br />
satélites ao redor dos planetas, tal como os determinou Képler, se<br />
deduzem conseqüentes necessários <strong>da</strong> mesma lei, e como as<br />
próprias órbitas dos cometas não são mais que casos particulares<br />
dos movimentos planetários. Passando em segui<strong>da</strong> às aplicações<br />
difíceis, faz-nos ver como as desigual<strong>da</strong>des tão complica<strong>da</strong>s do<br />
movimento lu<strong>na</strong>r prendem-se à ação perturbadora do Sol, assim<br />
como se origi<strong>na</strong>m as marés <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de de atração que esses<br />
dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que a rodeia. E<br />
demonstra-nos, enfim, como também a precessão dos equinócios<br />
não passa de conseqüência necessária <strong>da</strong> mesma lei.<br />
Pois é à execução dessas leis que está confia<strong>da</strong> a harmonia do<br />
sistema planetário; é a elas que os mundos devem os seus anos,<br />
as suas estações, os seus dias; é nelas que haurem a luz e o calor<br />
distribuídos em diversos graus pela fonte cintilante; é delas que<br />
derivam a eclosão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a forma e or<strong>na</strong>mento dos corpos<br />
celestes. Sob a ação incoercível dessas forças colossais, os<br />
mundos se transportam no espaço com a rapidez do relâmpago e<br />
percorrem cente<strong>na</strong>s de mil léguas por dia, sem parar, seguindo
estritamente a rota certa e previamente traça<strong>da</strong> por essas mesmas<br />
forças.<br />
Se nos fora <strong>da</strong>do libertar-nos um momento <strong>da</strong>s aparências,<br />
sob cujo império nos acreditamos em repouso no centro do<br />
Universo, e se pudéramos abranger num olhar de conjunto os<br />
movimentos que animam to<strong>da</strong>s as esferas, haveríamos de ficar<br />
surpreendidos com a imponência desses movimentos. Aos nossos<br />
olhos maravilhados, enormíssimos globos turbilho<strong>na</strong>riam<br />
rápidos sobre si mesmos, projetados no vácuo a to<strong>da</strong> a veloci<strong>da</strong>de,<br />
quais gigantescas balas que uma força de projeção inimaginável<br />
houvesse enviado ao infinito. Admiramo-nos desses comboios<br />
ferroviários que devoram distâncias como dragões flamantes<br />
e, no entanto, os globos celestes mais volumosos que a nossa<br />
Terra deslocam-se com uma rapidez que ultrapassa a <strong>da</strong>s locomotivas<br />
tanto quanto a destas ultrapassa a <strong>da</strong>s tartarugas. A terra<br />
que habitamos, por exemplo, percorre o espaço com a veloci<strong>da</strong>de<br />
de seiscentos e cinqüenta mil léguas por dia. Rodeando esses<br />
mundos, veríamos satélites em circulação e a distâncias diferentes,<br />
mas adstritos e submissos às mesmas leis. E to<strong>da</strong>s essas<br />
repúblicas flutuantes incli<strong>na</strong>m os pólos alter<strong>na</strong>tivamente para o<br />
calor e para a luz, a gravitarem sobre o próprio eixo, apresentando,<br />
ca<strong>da</strong> manhã, os diferentes pontos de sua superfície ao beijo<br />
do astro-rei. Tiram, assim, <strong>da</strong> combi<strong>na</strong>ção mesma dos seus<br />
movimentos, a renovação <strong>da</strong> beleza e <strong>da</strong> juventude; renovam a<br />
fecundi<strong>da</strong>de no ciclo <strong>da</strong>s primaveras, dos estios, dos outonos e<br />
dos invernos; coroam de frondes as montanhas onde o vento<br />
suspira; refletem no espelho dos lagos a magia de suas paisagens;<br />
envolvem-se, às vezes, <strong>na</strong> lanugem atmosférica, fazendo<br />
dela um manto protetor, ou transformando-a em cadinho retumbante<br />
de raios e granizos; desdobram por superfícies imensas a<br />
força <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s oceânicas, que, também por si, se alteiam sob a<br />
atração dos astros, qual seio ofegante; ilumi<strong>na</strong>m crepúsculos<br />
com os matizes policrômicos dos ocasos comburentes e fremem<br />
nos seus pólos às palpitações elétricas despedi<strong>da</strong>s dos leques de<br />
boreais auroras; geram, embalam e nutrem a multidão de seres<br />
que as povoam; e renovam o filão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> desde as plantas<br />
fósseis, do passado, até o homem que pensa e son<strong>da</strong> o futuro.
Todos esses mundos, to<strong>da</strong>s essas mora<strong>da</strong>s do espaço, departamentos<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, nos apareceriam quais <strong>na</strong>ves bussola<strong>da</strong>s, conduzindo<br />
através do oceano celeste tripulantes que não têm a temer<br />
escolhos nem imperícias de comando, nem falta de combustível,<br />
nem fome, nem tempestades.<br />
Estrelas, sóis, mundos errantes, cometas fúlgidos, sistemas<br />
estranhos, astros misteriosos, todos proclamariam harmonia,<br />
seriam todos os acusadores de quantos decretam não passar a<br />
força de cego atributo <strong>da</strong> matéria. E quando, acompanhando as<br />
relações numéricas que ligam todos esses mundos ao Sol – qual<br />
coração palpitante de um mesmo ser – houvermos personificado<br />
o sistema planetário do próprio Sol – foco colossal que a todos<br />
absorve <strong>na</strong> sua esplendente e poderosa perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de – então,<br />
não tar<strong>da</strong>remos a ver nesse Sol, com o seu sistema, em trânsito<br />
pelos espaços infinitos, o atestado de que to<strong>da</strong>s as estrelas são<br />
outros tantos sóis, cercados, como o nosso, de uma família que<br />
deles recebe luz e vi<strong>da</strong>, e veremos que to<strong>da</strong>s as estrelas são<br />
guia<strong>da</strong>s por movimentos diversos e que, muito longe de ficarem<br />
fixas <strong>na</strong> imensi<strong>da</strong>de, caminham com veloci<strong>da</strong>des terrificantes,<br />
ain<strong>da</strong> mais céleres que as retro mencio<strong>na</strong><strong>da</strong>s.<br />
Só então, o Universo inteiro brilhará aos nossos olhos sob o<br />
ver<strong>da</strong>deiro prisma e as forças que o regem proclamarão, com a<br />
eloqüência maravilhosamente brutal de fato concreto, o seu<br />
valor, a sua missão, autori<strong>da</strong>de e poder. Diante desses movimentos<br />
indescritíveis – inconcebíveis mesmo, poderíamos dizer –<br />
que transportam pelos desertos do infinito essa infini<strong>da</strong>de de<br />
sóis; diante dessa catadupa de estrelas do infinito; diante dessas<br />
rotas, dessas órbitas imensuráveis, segui<strong>da</strong>s com a passivi<strong>da</strong>de<br />
dos ponteiros de um relógio, <strong>da</strong> maçã que cai, ou <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> do<br />
moinho, obedientes à lei <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de; diante <strong>da</strong> submissão dos<br />
corpos celestes a regras que a mecânica e as fórmulas a<strong>na</strong>líticas<br />
podem traçar de antemão, bem como <strong>da</strong> condição suprema de<br />
estabili<strong>da</strong>de e duração do mundo, quem ousará negar que a Força<br />
não governe, não dirija sobera<strong>na</strong>mente a Matéria, em virtude de<br />
uma lei inerente ou afeta à própria Força? Quem pretenderá<br />
subordi<strong>na</strong>r a Força à cegueira constitucio<strong>na</strong>l <strong>da</strong> Matéria e afirmar,<br />
à maneira retrógra<strong>da</strong> dos peripatéticos, que ela não passa de
atributo oculto, reduzindo-a ao papel de escrava, quando ela se<br />
impõe de tal arte e reivindica credenciais de absoluta suserania?<br />
Que <strong>Deus</strong> tal nunca permita. Que sucederia se ela, a Força,<br />
deixasse de agir e abdicasse o seu cetro? A só imagi<strong>na</strong>ção desta<br />
hipótese dissolve a harmonia do mundo e o faz esboroar-se num<br />
caos informe, digno resultado, aliás, de tão insensata tentativa.<br />
Leis universalmente demonstra<strong>da</strong>s proclamam a uni<strong>da</strong>de do<br />
Cosmos e evidenciam que o mesmo pensamento que regula as<br />
nossas marés oceânicas preside às revoluções siderais <strong>da</strong>s estrelas<br />
duplas, nos latifúndios do céu. Tais duplos, triplos, quádruplos<br />
sóis giram em conjunto, ao redor do centro comum de<br />
gravi<strong>da</strong>de, obedecendo às mesmas leis que regem o nosso sistema<br />
planetário. Na<strong>da</strong> mais próprio do que esses sistemas para nos<br />
<strong>da</strong>r uma idéia <strong>da</strong> escala <strong>da</strong> construção dos mundos – diz John<br />
Herschel.<br />
Quando vemos esses corpos imensos, encasalados, descreverem<br />
órbitas enormes, cujo percurso lhes deman<strong>da</strong> séculos, somos<br />
levados a admitir simultaneamente que eles preenchem, <strong>na</strong><br />
Criação, uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de que nos escapa e que atingimos os<br />
limites <strong>da</strong> huma<strong>na</strong> inteligência para confessar a nossa inópia e<br />
reconhecer que a mais fecun<strong>da</strong> imagi<strong>na</strong>ção não pode ter do<br />
mundo uma concepção aproximativa sequer, <strong>da</strong> grandeza do<br />
assunto.<br />
Os astrônomos que humildemente remontam ao princípio ignoto<br />
<strong>da</strong>s causas não podem eximir-se de considerar <strong>na</strong>s mãos de<br />
um ser inteligente essa atração universal, que rege inteligentemente<br />
o Cosmos. “A lei de gravitação – dizia o saudoso diretor<br />
do Observatório de Toulouse 6 – enfeixa implicitamente as grandes<br />
leis que regem os movimentos celestes e, por uma dessas<br />
coincidências notáveis que são o mais seguro índice <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de –<br />
longe de temer as exceções aparentes, as perturbações dos movimentos<br />
normais, antes delas extrai as mais brilhantes confirmações.<br />
Assim é que vemos os geômetras modernos explicarem<br />
a precessão dos equinócios pela combi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> força centrífuga,<br />
oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong> rotação <strong>da</strong> Terra, com a ação do Sol sobre o nosso<br />
menisco equatorial. Assim é que vemos, ain<strong>da</strong>, explicar-se a<br />
nutação por uma influência análoga, <strong>da</strong> Lua, sobre a luminescên-
cia mesma <strong>da</strong> Terra e, mais: – as atrações planetárias, a oscilação<br />
<strong>da</strong> eclíptica e do movimento do apogeu solar; do retar<strong>da</strong>mento de<br />
Júpiter quando Saturno se acelera, e vice-versa, quando a aceleração<br />
se dá em Júpiter, etc. Fi<strong>na</strong>lmente, é assim que sabemos por<br />
que, sob a influência solar, a média do nosso movimento terráqueo<br />
se vai acelerando de século em século e deverá diminuir<br />
mais tarde, por que a linha dos nós <strong>da</strong> Lua perfaz a sua revolução<br />
em movimento retrógrado dentro de dezoito anos e por que o<br />
perigeu lu<strong>na</strong>r se completa em pouco menos de nove anos, etc. 7<br />
Não somente, em resumo, esse princípio notável explica todos<br />
os fenômenos conhecidos, como permite, muitas vezes,<br />
descobrir efeitos que a observação não indica, de modo que se<br />
poderia estabelecer a priori, pela análise, a constituição do<br />
mundo e não nos socorrermos <strong>da</strong> observação senão em alguns<br />
pontos de referência, de que se utilizam os geômetras sob a<br />
denomi<strong>na</strong>ção de constantes, nos seus cálculos. – Tudo pois, no<br />
Universo, marcha por efeito de uma organização admirável de<br />
simplici<strong>da</strong>de, visto que os movimentos, aparentemente mais<br />
complicados, resultam <strong>da</strong> combi<strong>na</strong>ção de impulsos primitivos<br />
com uma força única agindo sobre ca<strong>da</strong> molécula material; força<br />
única, com a qual, e conseqüentemente, haja de ocupar-se, por<br />
assim dizer, o Criador. Mas, também, que desenvolvimento de<br />
poder não requer a produção incessante dessas forças, cuja<br />
existência não é essencialmente inerente à matéria! Oh! como<br />
deve ser vigilante a mão eter<strong>na</strong> que sabe, a ca<strong>da</strong> momento,<br />
renovar tais forças, até nos mais impalpáveis átomos dos inumeráveis<br />
astros desti<strong>na</strong>dos a povoar as regiões de infinita imensi<strong>da</strong>de.<br />
Não será o caso de dizer com o rei-profeta, incli<strong>na</strong>ndo-se<br />
perante tanta grandeza: Coeli e<strong>na</strong>rrant gloriam Dei?<br />
A partir de Newton e Képler, sabemos que o Universo é um<br />
di<strong>na</strong>mismo imenso, cujos elementos em sua totali<strong>da</strong>de não<br />
cessam de agir e reagir <strong>na</strong> infini<strong>da</strong>de do tempo e do espaço, com<br />
ativi<strong>da</strong>de indefectível. Esta a grande ver<strong>da</strong>de que a Astronomia,<br />
a Física e a Química nos revelam <strong>na</strong>s imponentes maravilhas <strong>da</strong><br />
Criação.<br />
Tal o sublime espetáculo do mundo, tais as leis constitutivas<br />
<strong>da</strong> sua harmonia. Ora, qual a perfídia de linguagem, ou de racio-
cínio, que os materialistas utilizam para traduzir pró-domo sua<br />
esses fatos e concluírem pela ausência de todo e qualquer pensamento<br />
divino?<br />
Eis aqui os argumentos inscritos em letras berrantes num catecismo<br />
materialista que, por seu colorido de Ciência, se tem<br />
imposto a muita gente: 8<br />
“Todos os corpos celestes, pequenos ou grandes, se conformam,<br />
sem relutância, sem exceções nem desvios, com esta lei<br />
inerente a to<strong>da</strong> a matéria e a to<strong>da</strong> partícula de matéria, como<br />
podemos experimentar a ca<strong>da</strong> momento. É com uma precisão e<br />
certeza matemáticas que todos esses movimentos se fazem<br />
reconhecer, determi<strong>na</strong>r e predizer. Os espiritualistas vêem nestes<br />
fatos o pensamento de um <strong>Deus</strong> eterno, que impôs à Criação as<br />
leis imutáveis de sua perpetui<strong>da</strong>de. Os materialistas, porém, ao<br />
contrário, não vêem nisso senão a prova de que a idéia de <strong>Deus</strong><br />
não passa de uma pilhéria. Outro fora o caso, se existissem<br />
corpos celestes caprichosos ou rebeldes, se a grande lei que os<br />
rege não fosse sobera<strong>na</strong>. É fácil (diz Büchner) conciliar o <strong>na</strong>scimento,<br />
a constelação (?) e o movimento dos orbes com os processos<br />
mais simples que a matéria de si mesma nos possibilita. A<br />
hipótese de uma força pessoal criadora é i<strong>na</strong>dmissível. Por que?<br />
Ninguém, jamais, pôde sabê-lo. Os espiritualistas admiram o<br />
movimento dos astros, a ordem e harmonia que a eles preside.<br />
Ingênuos! No Universo não há ordem nem harmonia e sim, pelo<br />
contrário, a irregulari<strong>da</strong>de, os acidentes, a desordem, que excluem<br />
a hipótese de uma ação pessoal regi<strong>da</strong> pelas leis <strong>da</strong> inteligência,<br />
mesmo huma<strong>na</strong>.”<br />
Ponderemos: Copérnico publicou Revoluções Celestes, após<br />
trinta anos de árduos labores; Galileu só depois de vinte anos<br />
fecundou a lei do pêndulo; Képler não levou menos de dezessete<br />
para formular suas leis e Newton, já octogenário, dizia não ter<br />
ain<strong>da</strong> chegado a compreender o mecanismo dos céus; e, depois<br />
disso, vêm propor-nos acreditar que essas leis sublimes e que<br />
tudo quanto esses gênios possantes mal puderam encontrar e<br />
formular não revelam no ascendente que as impôs à matéria, uma<br />
inteligência sequer igual à do homem!
E o Sr. Re<strong>na</strong>n escreve então esta frase: “Por mim, penso não<br />
haver no Universo inteligência superior à huma<strong>na</strong>.” E ousam<br />
compadrinhar-se com acidentes que propriamente o não são, para<br />
afirmarem que não existe harmonia <strong>na</strong> construção do mundo.<br />
Que seria, então, preciso para vos satisfazer, senhores criticistas<br />
de <strong>Deus</strong>?<br />
Vamos dizê-lo: primeiro, que não houvesse espaço (!) ou que<br />
esse espaço fosse menos vasto, visto haver, decidi<strong>da</strong>mente,<br />
muito espaço no infinito: “se houvéramos de atribuir a uma força<br />
criadora individual – diz Büchner – a origem dos mundos para<br />
habitação de homens e animais, importaria saber para que serve<br />
esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no qual flutuam planetas<br />
e sóis? Porque os outros planetas do sistema não se tor<strong>na</strong>ram<br />
habitáveis para o homem?” Na ver<strong>da</strong>de, formulais uma pergunta<br />
bem simples. E aí temos como esses senhores se dão à fantasia<br />
de declarar inútil o espaço, a querer que todos os globos se<br />
comuniquem entre si. O caricaturista Granville já tivera a mesma<br />
idéia, quando representou num dos seus encantadores desenhos<br />
os jupterianos em excursão a Saturno, atravessando uma ponte,<br />
de charuto à boca. E o anel de Saturno lá está como um grande<br />
alpendre, onde os saturninos vão à noite refrescar-se. Se esse é o<br />
desejado universo, cujo primeiro resultado seria imobilizar o<br />
sistema planetário, mais avisados an<strong>da</strong>riam os inventores dirigindo-se<br />
seriamente à Escola de Pontes e Calça<strong>da</strong>s, antes que à<br />
Filosofia.<br />
Que esta, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, <strong>na</strong><strong>da</strong> tem com isso.<br />
Se houvesse um <strong>Deus</strong> – ajuntam –, para que serviriam as irregulari<strong>da</strong>des<br />
e desproporções enormes de volume e distância<br />
entre os planetas e o nosso sistema solar? Porque essa completa<br />
ausência de ordem, de simetria, de beleza? Havemos de convir<br />
que é preciso ser um tanto pretensioso para admirar cenografias<br />
de bastidores teatrais e recusar ao mesmo tempo a beleza e a<br />
simetria às obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Parece-nos mesmo que é a primeira<br />
increpação que se faz neste sentido.<br />
De resto, esses senhores não nos oferecem senão negações.<br />
Negação de <strong>Deus</strong>, <strong>da</strong> alma, do raciocínio e seus poderes, sempre,
e em tudo, negação. Isso é o que propriamente lhes concerne, e<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> mais. Sua pretensa consciência científica é simples burla.<br />
Nossos espirituosos adversários não raro resvalam no plano raso<br />
<strong>da</strong>s puerili<strong>da</strong>des. Um dentre eles adverte que a luz caminha com<br />
a veloci<strong>da</strong>de de 75.000 léguas por segundo, achando que é pouco<br />
e que é ridículo para um Criador o não poder acelerá-la. Outro<br />
acha que a Lua também não gira suficientemente célere. “A Lua<br />
– diz o americano Hudson Tuttle – não gira senão uma vez sobre<br />
si mesma, enquanto completa a sua revolução em torno <strong>da</strong> Terra,<br />
de sorte que lhe apresenta sempre a mesma face. Assiste-nos<br />
legítimo direito de perguntar porque, pois se houvesse nisso um<br />
intuito qualquer, a sua execução deveria ser assi<strong>na</strong>la<strong>da</strong>.” Na<br />
ver<strong>da</strong>de, o Criador foi assaz negligente deixando de admitir esses<br />
senhores <strong>na</strong> intimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua técnica. Já se viu uma coisa assim?<br />
Deixá-los em completa ignorância dos fins que se propôs<br />
ao fazer ro<strong>da</strong>r tão ler<strong>da</strong>mente a nossa amável Luazinha!<br />
Mas, de fato: será que <strong>Deus</strong> não poderia ter tido melhor conduta<br />
a benefício de nossa instrução pessoal? Nós! “Por que,<br />
perguntamo-nos ain<strong>da</strong> 9 , a força criadora não gravou em linhas de<br />
fogo (certo em alemão) o seu nome no céu? Porque não deu aos<br />
sistemas siderais uma ordem que nos desse a conhecer, de maneira<br />
evidente, sua intenção e desígnios?” Que estúpi<strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de!<br />
Com efeito, senhores, sois admiráveis e a vossa maneira de<br />
racioci<strong>na</strong>r iguala à vossa ciência, o que aliás não é pouco.<br />
Que pe<strong>na</strong> não terdes vós mesmos construído o Universo! Sim,<br />
porque então teríeis prevenido todos estes inconvenientes...<br />
Mas, dizei-me: estais bem certos de conhecer integralmente a<br />
matéria para afirmar que ela substitui <strong>Deus</strong>, com vantagem?<br />
Será que ela vos explica completamente o estado do Universo?<br />
Que respondeis? – Bem duvi<strong>da</strong>, ata<strong>da</strong> não nos é <strong>da</strong>do saber ao<br />
certo porque a matéria tomou tal movimento em tal momento,<br />
mas, a Ciência ata<strong>da</strong> não dispõe a última palavra e não é impossível<br />
que ela nos revele um dia a época em que <strong>na</strong>sceram os
mundos.” Tal a definitiva resposta desses senhores. Por ela,<br />
ain<strong>da</strong> se confessam um tanto ignorantes.<br />
Que sucederá, então, quando se compenetrarem de que conhecem<br />
tudo, em absoluto? Ó Ciência! senão estes os frutos <strong>da</strong><br />
tua árvore?<br />
Aqui, é bem o caso de confessar, com o próprio Büchner, que<br />
a comumente invoca<strong>da</strong> profundeza do espírito alemão é antes<br />
perturbação que profundeza de espírito. “O que os alemães<br />
chamam filosofia – acrescenta o mesmo escritor – não é mais<br />
que mania de jogar com idéias e palavras, e com o que se atribuem<br />
o direito de olhar outros povos por cima dos ombros.”<br />
Não há sabedoria, inteligência, ordem, harmonia no Universo.<br />
Semelhante acusação será mesmo feita a sério?<br />
Por nós, temos que é lícito duvi<strong>da</strong>r.<br />
Em Outubro de 1604, magnífica estrela surgiu de improviso<br />
<strong>na</strong> constelação <strong>da</strong> Serpente.<br />
Os astrônomos ficaram assaz surpresos, por isso que uma tal<br />
aparição parecia contrária à harmonia dos céus. As estrelas<br />
variáveis ain<strong>da</strong> não eram conheci<strong>da</strong>s. Como, pois, <strong>na</strong>scera aquela?<br />
Fortuitamente? Engendra<strong>da</strong> ao acaso? Estas as interrogações<br />
de Képler, quando sobreveio um pequeno acidente...<br />
“Ontem – disse-o ele –, no curso <strong>da</strong>s minhas elucubrações,<br />
fui chamado para o jantar. Minha mulher trousse à mesa uma<br />
sala<strong>da</strong>. – Pensas, disse-lhe eu, que, se desde os primórdios <strong>da</strong><br />
Criação flutuassem no ar, sem ordem nem direção, pratos de<br />
estanho, folhas de alface, grãos de sal, azeite e vi<strong>na</strong>gre e pe<strong>da</strong>ços<br />
de ovo cozido, o acaso os juntaria hoje para fazer uma sala<strong>da</strong>? –<br />
Não tão boa como esta, seguramente – respondeu-me a bela<br />
esposa.”<br />
Ninguém ousou considerar a nova estrela como produto do<br />
acaso e hoje sabemos que o acaso não tem guari<strong>da</strong> no mecanismo<br />
dos astros. Képler viveu adorando a harmonia do mundo e só<br />
como extravagância admitia dúvi<strong>da</strong>s a respeito. Os fun<strong>da</strong>dores<br />
<strong>da</strong> Astronomia – Copérnico, Galileu, Tieha-Brahé, Newton,<br />
todos se acor<strong>da</strong>m no mesmo culto de Képler. 10
Não são, portanto, os astrônomos que increpam o céu de falta<br />
de harmonia.<br />
Ó mundos esplendorosos! sóis do infinito, e vós, terras habita<strong>da</strong>s<br />
que gravitais em torno desses focos brilhantes, cessai o<br />
vosso movimento harmonioso, sustai vosso curso. A vi<strong>da</strong> vos<br />
irradia <strong>da</strong> fronte, a inteligência mora em vossas ten<strong>da</strong>s e os<br />
vossos campos recebem, dos multifários sóis que os ilumi<strong>na</strong>m, a<br />
seiva fecun<strong>da</strong> <strong>da</strong>s existências. Sois levados, no infinito, pela<br />
mesma sobera<strong>na</strong> mão que sustenta o nosso globo, mercê <strong>da</strong><br />
suprema lei que incli<strong>na</strong> o gênio à adoração <strong>da</strong> grande causa.<br />
Daqui, seguimos os vossos movimentos, mau grado às inomináveis<br />
distâncias que nos separam, e observamos que esses movimentos<br />
são regulados, qual os nossos, pelas três regras que a<br />
geniali<strong>da</strong>de de Képler vingou formular. Do fundo abismal dos<br />
céus, vós nos ensi<strong>na</strong>is que uma ordem sobera<strong>na</strong> e universal rege<br />
os mundos. Vós nos contais a glória de <strong>Deus</strong> em termos que<br />
deixam a perder de vista os com que a proclamava o rei-profeta,<br />
escreveis no céu o nome desse ente desconhecido, que nenhuma<br />
criatura pode sequer pressentir. Astros de movimentação maravilhosa,<br />
gigantescos focos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> universal, esplendores do céu! –<br />
vós nos fazeis genufletir, como crianças, à vontade divi<strong>na</strong> e os<br />
vossos berços balançam confiantes <strong>na</strong> imensi<strong>da</strong>de, sob o olhar do<br />
Onipotente. Percorreis humildemente a rota a ca<strong>da</strong> qual traça<strong>da</strong>,<br />
ó viajores celestes! E desde os mais remotos séculos, desde as<br />
i<strong>da</strong>des i<strong>na</strong>cessíveis em que saístes do primitivo caos, eis-vos<br />
manifestando a previdente sabedoria <strong>da</strong> lei que vos conduz...<br />
Insensatos! massas inertes, globos cegos, brutos notívagos, que<br />
fazeis? Parai, cessai com esse eterno testemunho...<br />
Detende o turbilhão colossal dos vossos cursos múltiplos.<br />
Protestai contra a força que vos avassala. Que significa essa<br />
obediência servil? Então, filhos <strong>da</strong> matéria, não será ela a sobera<strong>na</strong><br />
do espaço? Dar-se-á que haja leis inteligentes? Forças<br />
diretoras? Nunca, jamais. Laborais num erro insigne, ó estrelas<br />
do infinito! sois vítimas do mais ridículo ilusionismo...<br />
Escutai, pois: no fundo dos vastos desertos siderais, dormita<br />
obscuro um pequenino globo desconhecido. Não tendes acaso
percebido, uma que outra vez, entre as miríades de estrelas que<br />
branqueiam a Via-Láctea, uma estrelinha de ínfima grandeza?<br />
Pois bem, essa estrelinha, como vós, é também um sol e em<br />
torno dele rolam algumas miniaturas de mundos tão pequeninos<br />
que rolariam quais grãos de areia, <strong>na</strong> superfície de um de vós.<br />
Ora, sobre um dos mais microscópicos planos desses microscópicos<br />
mundículos, há uma raça de racio<strong>na</strong>listas e, no seio <strong>da</strong><br />
raça, um núcleo de filósofos que acabam de declarar positivamente,<br />
ó magnificências! – que o vosso <strong>Deus</strong> não existe.<br />
Soberbos pigmeus levantaram-se <strong>na</strong> ponta dos pés, pensando<br />
ver-vos assim de mais perto. Eles vos ace<strong>na</strong>ram para que vos<br />
detivésseis e proclamaram, em segui<strong>da</strong>, que os ouvísseis e que<br />
to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong> estava com eles. Em alto e bom som, proclamam-se<br />
os intérpretes únicos dessa <strong>Natureza</strong> imensa. A lhes<br />
<strong>da</strong>rmos crédito, pertence-lhes, doravante, o cetro <strong>da</strong> razão e o<br />
futuro do pensamento humano está em suas mãos. Firmemente<br />
convencidos estão eles, não só <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, mas, sobretudo, <strong>da</strong><br />
utili<strong>da</strong>de de sua descoberta e <strong>da</strong> benéfica influência resultante<br />
para o progresso desta peque<strong>na</strong> humani<strong>da</strong>de. Ao demais fizeram<br />
constar que todos quantos lhes não compartilhassem a opinião<br />
estavam em contradita com a ciência <strong>na</strong>tural e que a melhor<br />
qualificação cabível a esses dissidentes retar<strong>da</strong>tários é de ignorantes<br />
obcecados. Não vos exponhais, portanto, a serdes tão<br />
desfavoravelmente julga<strong>da</strong>s por esses senhores, ó portentosas<br />
estrelas!<br />
Procedei de maneira a distinguir o nosso imperceptível sol, o<br />
nosso átomo terrestre, a nossa vermínea racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e, aderindo<br />
a esta declaração capital, paralisai o mecanismo do Universo<br />
e com ele a dimensão e harmonia; substituí o movimento pelo<br />
repouso, a luz pela treva, a vi<strong>da</strong> pela morte e, depois, quando<br />
to<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong>de intelectual for aniquila<strong>da</strong>, todo o idealismo<br />
banido <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, suprimi<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a lei, atrofia<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a força,<br />
o Universo se pulverizará, vós vos dispersareis em pó no bojo <strong>da</strong><br />
noite infinita, e se o átomo terrestre ain<strong>da</strong> subsistir, os senhores<br />
filósofos, últimos viventes, estarão satisfeitos. Não mais se<br />
poderá dizer que haja inteligência <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.
3 - A Terra<br />
SUMÁRIO – Lei <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções químicas. – Proporções defini<strong>da</strong>s.<br />
– Do infinitamente pequeno e dos átomos. – Circulação<br />
molecular sob a ação <strong>da</strong>s forças físico-químicas. – A Geometria e<br />
a Álgebra no reino inorgânico. – A estética <strong>da</strong>s ciências. – O número<br />
tudo rege. – Harmonia dos sons. – Harmonia <strong>da</strong>s cores. –<br />
Importância <strong>da</strong> lei; menor importância <strong>da</strong> Matéria, sua inércia. –<br />
O primeiro surto <strong>da</strong> força orgânica no reino vegetal.<br />
Os mesmos argumentos que tiramos do panorama do universo<br />
sideral e <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> mecânica celeste, por demonstrar o<br />
ascendente <strong>da</strong> força sobre a matéria, podem colher ao exame dos<br />
corpos terrestres. Lá, era o hino do infinitamente grande; aqui, a<br />
minudência do infinitamente pequeno. A força rege identicamente<br />
os movimentos atômicos e as órbitas imensas <strong>da</strong>s esferas<br />
siderais. Mu<strong>da</strong> de objeto, mu<strong>da</strong> de nome <strong>na</strong> classificação dos<br />
homens, mas não deixa de ser sempre a mesma força, isto é: a<br />
atração universal. Chamam-lhe coesão, quando grupa os átomos<br />
que constituem as moléculas, e gravitação, quando impulsa os<br />
astros em torno do centro comum de sua gravi<strong>da</strong>de. O nome<br />
humano não altera, porém, o fato físico.<br />
As moléculas, de constituição substancial, são forma<strong>da</strong>s por<br />
uma reunião geométrica de átomos tomados entre os corpos em<br />
Química chamados simples. Ca<strong>da</strong> molécula é um modelo de<br />
simetria e representa um tipo geométrico. Assim, por exemplo, a<br />
molécula de ácido sulfúrico mono-hidratado é um sólido geométrico,<br />
regular, um heptaedro de base quadra<strong>da</strong>, composto de 7<br />
átomos SH2O4. Os corpos simples, para formar os compostos,<br />
não se podem combi<strong>na</strong>r senão em números proporcio<strong>na</strong>is, determi<strong>na</strong>dos<br />
e invariáveis. Sabemos que se desig<strong>na</strong>m sob o nome<br />
de equivalentes os números que exprimem quanti<strong>da</strong>des ponderáveis<br />
dos diversos corpos suscetíveis de entrarem, elas ou seus<br />
múltiplos, <strong>na</strong>s combi<strong>na</strong>ções químicas e aí se substituírem mutuamente,<br />
para formar compostos quimicamente análogos.<br />
Cem partes de oxigênio, em peso, combi<strong>na</strong>m-se, por exemplo,<br />
com 12,50 de hidrogênio, para formar a água. Esta será<br />
sempre, sempre composta nessa proporção e ninguém poderá,
absolutamente, juntar à combi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> molécula de água uma<br />
partícula a mais de qualquer dos componentes. A água forma<strong>da</strong><br />
pela combustão de uma chama é, identicamente, a mesma <strong>da</strong>s<br />
fontes e dos rios. Do mesmo modo, 100 partes de oxigênio se<br />
combi<strong>na</strong>rão com 350 de ferro para formar o protóxido de ferro.<br />
Regras são essas, absolutas, às quais a matéria é força<strong>da</strong> a obedecer.<br />
A <strong>Natureza</strong> tem horror ao acaso, tanto quanto ao vácuo,<br />
como se dizia outrora. E não só esses equivalentes representam<br />
numericamente to<strong>da</strong>s as combi<strong>na</strong>ções de corpos com o oxigênio,<br />
como to<strong>da</strong>s as desses corpos entre si; de modo que, em nosso<br />
exemplo, se o ferro se combi<strong>na</strong>r com o hidrogênio, será sempre<br />
<strong>na</strong> proporção de 350 (equivalente do ferro) para 12,50 (equivalente<br />
do hidrogênio). De resto, to<strong>da</strong>s essas combi<strong>na</strong>ções obedecem<br />
a regras geométricas e a cristalização dos corpos pode<br />
sempre ser leva<strong>da</strong> a um dos seis tipos fun<strong>da</strong>mentais: – o cubo, os<br />
dois prismas retos, o rombóide e os dois prismas oblíquos.<br />
Para explicar não ape<strong>na</strong>s as combi<strong>na</strong>ções, mas também todos<br />
os movimentos múltiplos que se operam <strong>na</strong>s transformações<br />
incessantes <strong>da</strong> matéria, nos fenômenos de contração e dilatação,<br />
<strong>na</strong> manifestação <strong>da</strong>s diversas proprie<strong>da</strong>des dos corpos, admite-se<br />
que os átomos não se tocam, ain<strong>da</strong> nos corpos mais densos e<br />
mais sólidos, que estão isolados entre si e que, em razão de sua<br />
pequenez, os intervalos que os permeiam guar<strong>da</strong>m a relativi<strong>da</strong>de,<br />
proporcio<strong>na</strong>lmente exata, com os dos corpos celestes. Fi<strong>na</strong>lmente,<br />
assim como os corpos celestes se movem em torno uns dos<br />
outros, sem por isso deixarem de estar unidos num elo solidário,<br />
assim também os átomos oscilam em torno de sua respectiva<br />
posição, sem se afastarem dos limites regulados pela coesão ou<br />
pela afini<strong>da</strong>de molecular. Entre o mundo <strong>da</strong>s estrelas e dos<br />
átomos não há diferença essencial. Engrossai esse cristal, essa<br />
simples molécula, suponde-a desenvolvendo-se a ponto de<br />
atingir o volume do sistema planetário e mais – de uma nebulosa,<br />
e tereis um ver<strong>da</strong>deiro sistema, com suas forças e movimentos.<br />
Se, ao contrário, supuserdes que o sistema planetário se contrai,<br />
que to<strong>da</strong>s as distâncias se encurtam, que todos os corpos que o<br />
integram diminuem e chegam, fi<strong>na</strong>lmente, às proporções de um<br />
agregado químico, tereis regressado ao microcosmo. Além disso,
as medi<strong>da</strong>s expressivas do infinitamente grande, ou pequeno,<br />
estão em nós e não <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, de vez que tudo referimos a nós,<br />
como a um ponto de comparação. As noções de grandeza são<br />
puramente relativas.<br />
A <strong>Natureza</strong> não tem essas maneiras de ver.<br />
Os fenômenos do calor, <strong>da</strong> luz, do som, do magnetismo, explicam-se<br />
por esta concepção dos movimentos atômicos. Sob a<br />
influência dessas forças exteriores, as moléculas se retraem ou se<br />
dilatam e modificam seus movimentos, tal com fazem os mundos,<br />
precipitando o curso no perifélio e retar<strong>da</strong>ndo-o <strong>na</strong>s longínquas<br />
regiões do afélio. Quando, por um choque, produzimos<br />
vibrações num corpo sonoro, suas moléculas agitam-se em<br />
cadência, seguindo o ritmo de sua harmonia. Ora, esses átomos<br />
são de uma pequenez inexprimível. Calculou-se que o número de<br />
átomos encerrados num minúsculo cubo de matéria orgânica do<br />
tamanho de uma cabeça de alfinete, deveria atingir a cifra inconcebível<br />
de oito sextilhões, isto é, 8 seguido de 21 zeros. Suposto<br />
quiséssemos proceder à contagem, <strong>na</strong> proporção de 1.000 por<br />
segundo, haveríamos de viver duzentos e cinqüenta mil anos<br />
para completá-la!<br />
Não o vingaríamos, portanto. Mas, seja como for, a substância<br />
dos corpos é um pequeno mundo, um mundo a<strong>na</strong>lítico, no<br />
seio do qual o infinitamente pequeno é regulado por leis tão<br />
rigorosas quanto as do infinitamente grande, o sideral. Quando<br />
sabemos que uma polega<strong>da</strong> cúbica de trípole contém quarenta<br />
mil milhões de gálios fósseis; quando imagi<strong>na</strong>mos que <strong>na</strong> classe<br />
dos infusórios o microscópio nos faculta distinguir vibriões cujo<br />
diâmetro não excede um milésimo de milímetro e que esses<br />
minúsculos seres se movem <strong>na</strong> água, ágeis, providos de aparelhos<br />
de locomoção, de músculos e de nervos; que se alimentam e<br />
possuem vasos de nutrição; que procuram, perseguem, combatem<br />
a presa nos abismos <strong>da</strong> gota d'água, com veloci<strong>da</strong>de e força<br />
comparáveis à de um cavalo a galope; quando consideramos,<br />
enfim, que esses pequeninos seres são providos de órgãos sensitivos,<br />
já nos não custa crer que as moléculas de gelati<strong>na</strong> e albumi<strong>na</strong>,<br />
que os constituem, são de uma tenui<strong>da</strong>de inimaginável e<br />
que os átomos componentes se integram sem metáfora em nossa
idéia do infinitamente pequeno. Ora, esses átomos não se alteram,<br />
são invariáveis e imutáveis; as moléculas dos corpos compostos<br />
em formação, <strong>da</strong>s quais se encontram eles geometricamente<br />
associados, não mu<strong>da</strong>m mais, ain<strong>da</strong> que passando de um<br />
ser para outro. Pela troca perpétua, operante em todos os seres <strong>da</strong><br />
<strong>Natureza</strong> e que a todos os encadeia sob o império de uma comunhão<br />
substancial, pela comunicação permanente <strong>da</strong>s coisas entre<br />
si, <strong>da</strong> atmosfera com as plantas e todos os seres que respiram,<br />
<strong>da</strong>s plantas com os animais, <strong>da</strong> água com to<strong>da</strong>s as substâncias<br />
organiza<strong>da</strong>s, pela nutrição e assimilação que perpetuam a cadeia<br />
<strong>da</strong>s existências, as moléculas entram nos corpos e deles saem,<br />
mu<strong>da</strong>m de proprietário a ca<strong>da</strong> instante, mas conservam essencialmente<br />
a sua <strong>na</strong>tureza intrínseca. Reconhecemos, com os nossos<br />
adversários, que a molécula de ferro não varia, quer quando,<br />
incorpora<strong>da</strong> ao meteorito, percorre o Universo, quer quando<br />
retine no trilho ou <strong>na</strong> ro<strong>da</strong> do vagão, ou ain<strong>da</strong> quando, em glóbulo<br />
sanguíneo, reponta à fronte do poeta. Qualquer que seja, pois,<br />
o habitáculo transitório <strong>da</strong>s moléculas, elas conservam a sua<br />
<strong>na</strong>tureza e proprie<strong>da</strong>des essenciais. Os átomos são os infinitamente<br />
pequenos, sempre separados entre si e, to<strong>da</strong>via, encadeados<br />
por essa mesma força invisível que retém as esferas <strong>na</strong>s suas<br />
órbitas. To<strong>da</strong> matéria, orgânica ou inorgânica (visto ser idêntica)<br />
obedece primacialmente a essa força. Suas mínimas partículas<br />
são como astros no espaço, atraem-se e repelem-se por seus<br />
respectivos movimentos. Sob o véu dessa matéria, que se nos<br />
figura pesa<strong>da</strong> e densa, devemos, portanto, lobrigar a “força”, que<br />
a avassala e rege o mineral, pesa os elementos, orde<strong>na</strong> as combi<strong>na</strong>ções,<br />
traça regras absolutas e, gover<strong>na</strong>ndo discricio<strong>na</strong>riamente,<br />
faz dela uma escrava imbele, maleável e submissa às leis primíge<strong>na</strong>s<br />
que consagram a estabili<strong>da</strong>de do mundo. É indubitável que<br />
os estados <strong>da</strong> matéria são regulados por leis. Já admirastes,<br />
alguma vez, os processos característicos <strong>da</strong> cristalização? Nunca<br />
exami<strong>na</strong>stes ao microscópio a formação <strong>da</strong>s estrelas de neve e<br />
<strong>da</strong>s moléculas cristali<strong>na</strong>s de gelo? Nesse mundo invisível, como<br />
no universo visível, ca<strong>da</strong> movimento, ca<strong>da</strong> associação se efetua<br />
sob a direção de uma lei. É sempre o mesmo ângulo, as mesmas<br />
linhas e sucessões. Jamais as leis huma<strong>na</strong>s lograram obediência<br />
tão absolutamente passiva.
Nunca geômetra algum construiu figura tão perfeita qual a<br />
que <strong>na</strong>turalmente reveste a mais insignificante molécula.<br />
As leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> regem o movimento dos átomos nos seres<br />
vivos, como nos inorgânicos: a mesma molécula passa sucessivamente<br />
do mineral ao vegetal e ao animal, neles incorporandose<br />
segundo as leis que organizam to<strong>da</strong>s as coisas.<br />
A molécula de ácido carbônico, a exalar-se do peito opresso<br />
do moribundo em seu leito de dor, vai incorporar-se à flor do<br />
jardim, à relva do prado, ao tronco <strong>da</strong> floresta. A molécula de<br />
oxigênio que se desprende dos últimos ramos do anoso carvalho<br />
vai incorporar-se ao cabelinho louro do recém-<strong>na</strong>scido, no seu<br />
berço de sonhos. Na<strong>da</strong> podemos mu<strong>da</strong>r <strong>na</strong> composição dos<br />
corpos. Na<strong>da</strong> <strong>na</strong>sce, <strong>na</strong><strong>da</strong> morre. Só a forma é perecível. Só a<br />
substância é imortal. Constituímo-nos <strong>da</strong> poeira dos antepassados,<br />
os mesmíssimos átomos e moléculas.<br />
Na<strong>da</strong> se cria, <strong>na</strong><strong>da</strong> se perde.<br />
Uma vela que ardeu completamente deixa de existir para os<br />
olhos vulgares e nem por isso deixará de existir integralmente.<br />
Se lhe recolhêssemos as substâncias consumi<strong>da</strong>s, reconstitui-laíamos<br />
com o seu peso anterior. Os átomos viajam de um a outro<br />
ser, guiados pelas forças <strong>na</strong>turais. O acaso não colhe nessas<br />
combi<strong>na</strong>ções e casamentos. E se nesta permuta perpétua dos<br />
elementos constitutivos de todos os corpos a Natura, bela e<br />
radiante, subsiste em sua grandeza, esta potência peculiar à Terra<br />
é unicamente devi<strong>da</strong> à previdência e rigor <strong>da</strong>s leis que organizam<br />
essas transmigrações e etapas atômicas, de guarnição em guarnição.<br />
Se a organização militar <strong>da</strong> França se atribui a um concelho<br />
inteligente, parece-nos que a organização química dos seres,<br />
aliás muito superior àquela, atesta um plano inteligente e um<br />
pensamento diretor.<br />
No entanto, o papel que a lei desempenha no Universo an<strong>da</strong><br />
por aí relegado à categoria de fábula pelo autor <strong>da</strong> Resposta às<br />
Cartas de Liebig. Em sua opinião, o grande químico não tem<br />
motivos para dizer que foi a lei que tudo construiu 11 .
A lei não passaria de uma idéia geral, induzi<strong>da</strong> de caracteres<br />
sensíveis; e como se não encontra a lei senão depois <strong>da</strong>s experiências,<br />
seguir-se-ia que ela <strong>na</strong> reali<strong>da</strong>de não existe!<br />
“Enquanto acreditarem que a lei fez o mundo, em vez de a<br />
considerarem como resultante dele e por ele ilumi<strong>na</strong>ndo-se, a<br />
inteligência huma<strong>na</strong> dormirá <strong>na</strong>s trevas e a idéia há de antepor-se<br />
à experiência.<br />
Para exilar <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> o espírito, particularmente o espírito<br />
geométrico, é preciso recusar à evidência o papel representado<br />
pelo número e obsti<strong>na</strong>r-se a não ouvir a universal harmonia<br />
profusamente espalha<strong>da</strong> <strong>na</strong>s obras cria<strong>da</strong>s. A harmonia não é tão<br />
só a fraseologia musical escrita em partituras e executa<strong>da</strong> por<br />
instrumentos humanos; não consiste ape<strong>na</strong>s nessas obras-primas<br />
a justo título admira<strong>da</strong>s e aflora<strong>da</strong>s nos belos dias de inspiração,<br />
dos cérebros dos Mozart e dos Beethoven. A harmonia enche o<br />
Universo com os seus acordes. Antes de tudo, diga-se, a música<br />
propriamente dita é, de si mesma e por inteiro, forma<strong>da</strong> pelo<br />
número; ca<strong>da</strong> som é uma série de vibrações em quanti<strong>da</strong>de<br />
defini<strong>da</strong> e as relações harmônicas dos sons não são mais do que<br />
relações numéricas. A gama é uma escala de cifras e os tons,<br />
maior e menor, são criados pelos números, assim como os acordes<br />
não passam, também eles, de uma combi<strong>na</strong>ção algébrica.<br />
Depois, como a provar a exclusiva soberania do número, vemos<br />
que todo compositor há de obedecer ao compasso. Estas observações<br />
fun<strong>da</strong>mentais, sugeri<strong>da</strong>s pelo estudo do som, têm aplicação<br />
não menos valiosa no concernente à luz.<br />
Assim como os sons derivam do número de vibrações sonoras,<br />
assim as cores derivam <strong>da</strong>s vibrações luminosas. O colorido<br />
de uma paisagem vale por uma espécie de música. A verdura dos<br />
prados é forma<strong>da</strong> pelo número, qual o tema de uma melodia; a<br />
rosa que se desbotou é o centro de uma esfera de vibrações<br />
luminosas, constituindo o matiz aparente, e o rouxinol que tri<strong>na</strong><br />
em carícias, projeta no ar as vibrações sonoras características do<br />
seu tônus. Todo movimento é número, e todo o número é harmonia.<br />
Não há dúvi<strong>da</strong> de que existe, nesse estado de coisas, uma parte<br />
reserva<strong>da</strong> às leis fisiológicas <strong>da</strong> nossa organização. Os sons
audíveis começam <strong>na</strong>s vibrações lentas e acabam <strong>na</strong>s agu<strong>da</strong>s,<br />
que o ouvido pode captar, sejam de 16 a 36.850 por segundo 12 .<br />
As cores visíveis começam <strong>na</strong>s vibrações lentas e extinguemse<br />
com as mais rápi<strong>da</strong>s que a nossa reti<strong>na</strong> possa apreender, ou<br />
sejam, de 458 trilhões por segundo, a 727 trilhões por segundo 13 .<br />
Mas, não haveria como <strong>da</strong>í concluir que haja nisso ape<strong>na</strong>s<br />
uma relação fortuita entre a nossa organização e os movimentos<br />
exteriores.<br />
Sons e cores estendem-se abaixo e acima dos limites de nossa<br />
organização, igualmente subordi<strong>na</strong>dos a regras numéricas. Há<br />
sons que o ouvido humano não pode captar, assim com há cores<br />
que nos escapam à reti<strong>na</strong>. E no próprio limite de nossas percepções<br />
a relação entre estas e os nossos sentidos procede, ao menos<br />
em nossa opinião, do fato de não ter sido a construção do nosso<br />
organismo alheio ao número – o elo universal.<br />
Também a forma, em suas dissimulações mais ondeantes,<br />
pertence ao número, pois to<strong>da</strong> figura é determi<strong>na</strong><strong>da</strong> pelo algarismo.<br />
O sentido i<strong>na</strong>to <strong>da</strong> estética que nos inspira busca as formas<br />
mais puras. O círculo nos encanta com a sua curva graciosa.<br />
A Geometria, em nossas construções, não desgarra por vere<strong>da</strong>s<br />
arbitrárias. A Arquitetura apóia-se, conforme as suas aplicações,<br />
sobre a forma estética do nosso pensamento, ain<strong>da</strong> que por<br />
vezes suce<strong>da</strong> (como em nossa época por exemplo) não ter estilo<br />
algum.<br />
Até <strong>na</strong>s figuras simbólicas <strong>da</strong>s tradições religiosas desejamos<br />
simetria, simulando-a às vezes em aparente desordem. Em<br />
contemplar um emaranhado de coisas, a vista logo se nos fatiga,<br />
ao passo que se embevece e repousa ao fixar as <strong>da</strong>nças de movimentos<br />
melodiosos. Característica peculiar do reino mineral, a<br />
simetria tor<strong>na</strong>-se menos severa ao graduar-se nos reinos orgânicos.<br />
Os vegetais modelam-se pelo seu tipo ideal, mas deixam uma<br />
certa latitude às forças que os modificam, e assim é que crescem<br />
em duas direções opostas; as folhas sucedem-se no seu ciclo, em<br />
torno <strong>da</strong> haste, em número característico; suas flores não esca-
pam à ordem numérica. Número e forma são as bases <strong>da</strong> classificação<br />
vegetal. Os animais, com o manifestarem o tipo de ca<strong>da</strong><br />
espécie, dão à simetria o seu papel e o próprio homem é uma<br />
uni<strong>da</strong>de composta por duas metades simetricamente sol<strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />
Acima de to<strong>da</strong>s essas formas particulares, sobera<strong>na</strong> se nos<br />
manifesta a uni<strong>da</strong>de de plano.<br />
Nas espécies mais diferentes encontram-se a<strong>na</strong>logias significativas.<br />
Na<strong>da</strong> menos parecido com a mão huma<strong>na</strong> do que a pata<br />
do cavalo e, no entanto, se dissecardes a pata, lá encontrareis um<br />
rudimento de mão com os dedos sol<strong>da</strong>dos.<br />
Assim a ordem, a mesma ordem numérica, impera <strong>na</strong> Terra<br />
como nos céus. Não vamos pensar que as harmonias <strong>na</strong>turais,<br />
despercebi<strong>da</strong>s ao homem, hajam de ser ruídos informes e constituam<br />
exceção. O vento que suspira entre os cedros e pinheiros; o<br />
lamento <strong>da</strong>s vagas <strong>na</strong> praia arenosa; o zumbido do inseto no<br />
âmbito dos bosques; todos os indefiníveis sons que animam a<br />
<strong>Natureza</strong> são vibrações sonoras, pertinentes ao rei<strong>na</strong>do do número.<br />
O fato <strong>na</strong> aparência mais insignificante, tanto quanto o de<br />
maior vulto, resulta de leis determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s. Com que direito, pois,<br />
ousam declarar os negadores do espírito a materiali<strong>da</strong>de absoluta<br />
do Universo? Que pode a matéria só por si? Que será um átomo<br />
de oxigênio ou de carbono considerado à revelia de to<strong>da</strong> e qualquer<br />
lei? Em que caos mergulhará a <strong>Natureza</strong> se aniquilardes a<br />
força que a mantém? Imaginemos por um momento que o número<br />
deixa de existir, e esta só conjectura aniquila, de pronto, to<strong>da</strong>s<br />
as harmonias que acabamos de expla<strong>na</strong>r. Ora, perguntamos: pode<br />
a facul<strong>da</strong>de matemática pertencer à matéria? Se assim o julgá-la,<br />
resta dizer-nos que matéria será essa: oxigênio, azoto, carbono,<br />
ferro, alumínio. Evidentemente não, pois a lei supera todos esses<br />
corpos e é precisamente ela – a lei – que os combi<strong>na</strong>, casa,<br />
dissocia, separa, visto que os gover<strong>na</strong>. Que vos resta, então?<br />
Pertencerão à matéria o som, a luz, o magnetismo? Mas a experiência<br />
vos demonstra o contrário. Nisso, tendes outras tantas<br />
mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de movimento. Quem determi<strong>na</strong> um <strong>da</strong>do movimento<br />
ao som e outro à luz? Quem regula essas forças? Aparentemente,<br />
serão elas mesmas, ou uma força superior que as abran-
ja a to<strong>da</strong>s. A matéria não é, em todos os seus movimentos, senão<br />
o objeto passivo.<br />
Inegável, portanto, que <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> inorgânica a matéria é<br />
escrava e a força é sobera<strong>na</strong>.<br />
Contudo, é precisamente o que põem em dúvi<strong>da</strong> os nossos<br />
campeões do materialismo. Já tivemos o ensejo de apreciar o<br />
valor de seus argumentos no que diz com a <strong>Natureza</strong> inorgânica.<br />
Edifiquemo-nos agora, sem tar<strong>da</strong>nça, com a maneira por que<br />
explicam a <strong>Natureza</strong> orgânica.<br />
Quando queimamos cautelosamente uma planta, não é raro<br />
obtermos o resíduo de um esqueleto silicoso correspondente à<br />
forma primitiva <strong>da</strong> haste. É a substância que a constituía, proveniente<br />
<strong>da</strong> substância do solo. A planta integral encerra a mais<br />
certos corpos determi<strong>na</strong>dos por sua <strong>na</strong>tureza: assim, por exemplo,<br />
o trigo contém o glúten azotado; a videira, cal; a batata,<br />
potassa; o chá, magnésia; o tabaco, salitre, etc. A ca<strong>da</strong> planta<br />
convém uns tantos elementos minerais e a própria planta é que<br />
os sabe escolher. O agricultor inteligente a<strong>da</strong>pta a sua lavoura à<br />
<strong>na</strong>tureza do terreno e escolhe os adubos de acordo com as safras<br />
que colima. No conhecimento <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> espécie<br />
está o segredo <strong>da</strong>s searas e dos alqueives. Diante disto, os teóricos<br />
de que nos ocupamos só se explicam pela metade. A raiz<br />
absorve – dizem – de acordo com as leis fixas de afini<strong>da</strong>de, os<br />
elementos que lhe jazem em torno. E, como se temessem não ser<br />
bem compreendido o papel tão judiciosamente atribuído à tal<br />
afini<strong>da</strong>de eletiva, acrescentam (ver Moleschott) que a planta<br />
fabrica por si mesma a massa principal do seu volume. Haverá,<br />
quem, depois de uma tal declaração, ain<strong>da</strong> se negue a outorgar à<br />
força o ascendente diretivo que lhe cabe? Pois há, visto que tudo<br />
isso é dito atribuitivamente à matéria. A evaporação que faculta<br />
às raízes a absorção dos elementos <strong>da</strong> terra vegetal, dizem, e a<br />
afini<strong>da</strong>de dos líquidos através <strong>da</strong>s paredes celulares que os<br />
separam, tais as facul<strong>da</strong>des mestras <strong>da</strong> matéria, que engendram o<br />
crescimento. Eis uma pobre raiz que vegeta no cimo do rochedo:<br />
necessita de sombra, de silêncio, de uma certa alimentação de<br />
que a separam seixos e calhaus... Examinem-se-lhe os vagos,<br />
mas, enérgicos desejos: ela procura, coleia, recua, contor<strong>na</strong>
pedras, desce, sobe, lança-se ávi<strong>da</strong> a qualquer ponto que um quê<br />
de instintivo a faz adivinhar, recai por vezes desfaleci<strong>da</strong>, mas<br />
logo se reanima de novos ímpetos, derruba todos os obstáculos e<br />
chega, enfim, à Ca<strong>na</strong>ã prometi<strong>da</strong>. Desde então aí se fixa, implanta-se<br />
e afirma seus direitos de conquista. A árvore mofi<strong>na</strong> que<br />
delirava outrora em calafrios de consunção, retoma prestes o<br />
vigor <strong>na</strong>tural, bracejando pelo solo os seus ramos luxuriantes.<br />
Ousar-se-á admitir aqui, mais formalmente ain<strong>da</strong> do que <strong>na</strong><br />
cristalização mineral, a inexistência de um princípio inteligente,<br />
de uma força orgânica peculiar?<br />
Por nós, confessamo-lo sem reservas: <strong>na</strong> manifestação dessas<br />
tendências instintivas sau<strong>da</strong>mos o ser virtual, a força intrínseca<br />
do vegetal, que constrange a matéria a obedecer-lhe.<br />
Parece-nos que sois conseqüentes atribuindo à matéria essa<br />
afini<strong>da</strong>de eletiva (como se a matéria discernisse!), quando nós a<br />
inferimos no ser vegetal, que, aflorado <strong>na</strong>s condições mais<br />
díspares, sabe adivinhar por to<strong>da</strong> a parte os elementos necessários<br />
à existência <strong>da</strong> sua espécie.<br />
Ó pretensos sábios, que acreditais fabricar ciência arrastando<br />
a inteligência em campo raso de despautérios, deixai que vos<br />
acuse e lastime não terdes sabido ver, nem sentir, os cenários <strong>da</strong><br />
<strong>Natureza</strong>! O aspecto admirável de uns tantos sítios, nos quais a<br />
graça e a beleza se conjugam sob todos os prismas; a movimentação<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>na</strong> viridência constante de prados e florestas; a<br />
irisação <strong>da</strong> luz-clara, marcheta<strong>da</strong> de flocos de ouro; o perfil<br />
silencioso <strong>da</strong>s árvores; o espelho translúcido dos lagos que<br />
refletem o Sol; o calor primaveril que aquece a atmosfera; o<br />
sen<strong>da</strong>l <strong>da</strong>s selvas e o perfume <strong>da</strong>s flores: to<strong>da</strong>s as maravilhas,<br />
ternuras, carícias <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> ficaram estranhas à vossa inércia.<br />
As contemplações desta <strong>na</strong>tureza terrestre oferecem, contudo,<br />
grandes encantos e acarretam, por vezes, revelações inespera<strong>da</strong>s.<br />
Lembro-me e confesso, ain<strong>da</strong> que possais rir <strong>da</strong> minha sensibili<strong>da</strong>de<br />
– lembro-me, repito, de haver passado horas deliciosas,<br />
admirando solitariamente umas quantas paisagens. Não há<br />
categorizar aqui as impressões de que falo, pois quem tenha<br />
olhos de ver encontra-las-á por to<strong>da</strong> parte. O Sol, não posto<br />
ain<strong>da</strong>, mas nublado, ilumi<strong>na</strong>va as alturas, colorindo de matizes
delicadíssimos e esquisitos as nuvens mais altas, cúmulus louros<br />
a vogarem lentos, acima dos círrus argenteados. Um vento suave<br />
e insensível à superfície do solo balouçava aqueles grupos polícromos,<br />
nos quais os tons de feérica paleta, do áureo ao róseo,<br />
harmonizavam-se no contraste, quais acordes de um coro celestial.<br />
A meus pés fremia a on<strong>da</strong> translúci<strong>da</strong> do lago imenso, a<br />
sumir-se no horizonte longínquo. Profundo silêncio amortalhava<br />
a ce<strong>na</strong>. À beira d'água, não longe, alguns capões de árvores e de<br />
arbustos refletiam-se no espelho móbil, com proporções gigantescas.<br />
A massa equórea refletia simultaneamente a terra e o céu,<br />
opondo às luzes de cima as sombras de baixo. Quadro digno dos<br />
grandes paisagistas, que costumamos admirar <strong>na</strong>s telas de um<br />
Cláudio Lorrain e de um Poussin, mas cuja simplici<strong>da</strong>de inimitável<br />
transcende a todo poder imagi<strong>na</strong>tivo! Às vezes, o silêncio<br />
ambiente era quebrado pelo cincerro dos rebanhos distantes,<br />
tangidos ao pastoreio, quando não pelas copias de alados cantores.<br />
Diante desse conjunto de tanta beleza, vela<strong>da</strong> embora, de<br />
tanta vivaci<strong>da</strong>de, apesar de aparentemente morto, de tal eloqüência<br />
em meio do silêncio, havia um esplendor tamanho e tão<br />
imperioso, que eu me senti penetrado <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> universal, difusa<br />
no mesmo ar que respirava por todos os poros. Ela dizia-me que<br />
as árvores vivem, que as plantas respiram e sonham! Dizia-me<br />
que no ar e <strong>na</strong> luz, em que a supomos i<strong>na</strong>nima<strong>da</strong>, ela se eleva e<br />
se engrandece para a fase indecisa <strong>da</strong>s primeiras manifestações<br />
do ser. Eu bem via, com os olhos do químico, a sucessivi<strong>da</strong>de<br />
rápi<strong>da</strong> e incessante dos átomos constituintes do corpo, desde a<br />
erva tenra até a nuvem. Sabia que um di<strong>na</strong>mismo grandioso e<br />
incoercível lhe põe em circulação turbilho<strong>na</strong>r as moléculas<br />
simples, alter<strong>na</strong>tivamente combi<strong>na</strong><strong>da</strong>s <strong>na</strong> sucessão dos corpos.<br />
Contudo, no âmago desse movimento, pressentia a força que<br />
o acarreta; no fundo dessas aparências admirava a lei diretriz <strong>da</strong>s<br />
coisas cria<strong>da</strong>s. Domi<strong>na</strong>do pelo poder mesmo dessas leis, que<br />
irradiam a beleza no espaço com a mesma facili<strong>da</strong>de com que o<br />
lavrador semeia em campo fértil, profun<strong>da</strong>mente emocio<strong>na</strong>do<br />
nessa comunhão passageira do meu eu com a vi<strong>da</strong> inconsciente<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, senti-me como que transportado a uma espécie de<br />
êxtase, enquanto as imagens aéreas <strong>da</strong>quele céu magnífico se me
efletiam n'alma, qual se o fizessem <strong>na</strong> face espelhante de um<br />
lago tranqüilo.<br />
É nesses instantes de contemplação, fugazes e indescritíveis,<br />
que a idéia estética de <strong>Deus</strong> me surge mais luminosa e maiormente<br />
me avassala. São revelações estas, que não posso exprimir<br />
e nem a mim próprio definir, quando me ocorrem. Sinto-me<br />
subjugado pela necessi<strong>da</strong>de de reconhecer uma causa para essa<br />
beleza, uma causa que não posso nomear e que, <strong>na</strong><strong>da</strong> obstante,<br />
me surge com as características <strong>da</strong> própria beleza, <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de,<br />
<strong>da</strong> ternura, do amor e assim também com as do poder, <strong>da</strong> magnitude<br />
e <strong>da</strong> domi<strong>na</strong>ção. Não é mais, então, pela inteligência, mas<br />
pelo coração que me compenetro <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>. Deverei<br />
confessar que me sinto às vezes surpreso e acabrunhado por uma<br />
emoção profun<strong>da</strong>? Não, por isso que, <strong>na</strong> opinião dos contraditores,<br />
todo si<strong>na</strong>l de emoção só tem origem <strong>na</strong> centrali<strong>da</strong>de variável<br />
do coração a<strong>na</strong>tômico, ou <strong>na</strong> secreção <strong>da</strong> glândula lacrimal, mais<br />
ou menos sensível por temperamento e que, portanto, to<strong>da</strong>s as<br />
maravilhas aqui expendi<strong>da</strong>s não passam de cego resultado, baldo<br />
de senso, <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções materiais engendra<strong>da</strong>s pela química e<br />
pela física orgânicas!<br />
“O <strong>Deus</strong> eterno, onisciente, onipotente, infinitamente sábio,<br />
passou-me ante os olhos.” – exclamava Linneu, após seus admiráveis<br />
trabalhos de Botânica. – “Não o vi face a face, mas o seu<br />
reflexo me saturou o espírito de pasmo e admiração. Acompanhei-lhe<br />
o traço em to<strong>da</strong>s as coisas cria<strong>da</strong>s, e em to<strong>da</strong>s as suas<br />
obras, <strong>da</strong>s menores às maiores, e mesmo <strong>na</strong>s mais imperceptíveis,<br />
quanta força, quanta sabedoria, quanta perfeição indefinível!<br />
Observei como os seres animados se superpõem e se encadeiam<br />
no reino vegetal, os vegetais por sua vez, nos minerais que<br />
jazem <strong>na</strong>s entranhas do globo, ao mesmo tempo em que este<br />
globo gravita, num plano invariável, ao redor do sol que lhe deu<br />
a vi<strong>da</strong>. Enfim, vi o Sol e todos os astros, todo o sistema sideral<br />
imenso, incalculável <strong>na</strong> sua infinitude, moverem-se no espaço,<br />
suspensos no vácuo por um motor primário, incompreensível, o<br />
Ser dos seres, o Guia, o Conservador do Universo, Mestre e<br />
Operário de to<strong>da</strong> a obra universal...
“To<strong>da</strong>s as coisas cria<strong>da</strong>s dão testemunho do poder e sabedoria<br />
divinos, ao mesmo tempo em que se fazem tesouro e pábulo de<br />
nossa felici<strong>da</strong>de. A utili<strong>da</strong>de que elas têm testificam a bon<strong>da</strong>de<br />
de quem as fez; a sua beleza demonstra sabedoria, enquanto que<br />
por sua harmonia, conservação, proporcio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e inesgotável<br />
fecundi<strong>da</strong>de, proclamam a grandeza do poder divino!<br />
“É a isso que quereis chamar – Providência? É efetivamente o<br />
seu nome, e não há outro que o seu conselho, para explicar o<br />
mundo. É, pois, justo acreditar que há um <strong>Deus</strong> imenso, eterno,<br />
incriado, sem o qual <strong>na</strong><strong>da</strong> existe e que tenha feito e coorde<strong>na</strong>do<br />
esta obra universal.<br />
“Esse <strong>Deus</strong> escapa-se-nos à vista e, não obstante, no-la repleta<br />
<strong>da</strong> sua luz. Só em pensamento podemos aprendê-lo e é neste<br />
profundo santuário que se oculta a sua majestade.”<br />
Nossos adversários não compreendem estes arroubos d’alma.<br />
Ao demais, para sentir a poesia <strong>da</strong>s coisas, é preciso, antes de<br />
tudo, possuir a poesia dentro de si mesmo, é preciso que a alma<br />
entre em vibração. O espírito que se degra<strong>da</strong> à função de produto<br />
químico não é suscetível de emoções que tais.<br />
Por conseqüência, e já que aqui falamos <strong>da</strong> estética <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong><br />
i<strong>na</strong>nima<strong>da</strong>, notemos de passagem um exemplo <strong>da</strong> tendência<br />
dos nossos químicos para estender a to<strong>da</strong>s as coisas o rigorismo<br />
de suas concepções. Deixemo-los resvalar do ver<strong>da</strong>deiro ideal<br />
para um realismo irreal.<br />
O Sr. Moleschott é, sem favor, o apóstolo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de físicoquímica.<br />
Diga-se mesmo, de um realismo assaz exagerado.<br />
Julgai-o, pois, pela sua maneira de poetizar a <strong>Natureza</strong>.<br />
Gostais, sem dúvi<strong>da</strong>, do brilho <strong>da</strong>s flores, dos seus matizes<br />
delicados, dos seus aromas tão sutis? Pois bem: mal podeis<br />
imagi<strong>na</strong>r o que sucede quando vos debruçais sobre uma rosa<br />
para, <strong>na</strong>ri<strong>na</strong>s dilata<strong>da</strong>s, aspirar-lhe a fragrância. Ouçamos o<br />
químico:<br />
“Quando respiramos o balsâmico perfume dos prados, não<br />
absorvemos mais que ver<strong>da</strong>deiras substâncias excrementais dos<br />
vegetais.
“Seguramente, não temos o direito de nos surpreender ao<br />
vermos coleópteros fimícolas e animais outros, de uma ordem<br />
superior, comerem carniça (sic) e excrementos, bem como que<br />
todo o reino vegetal viva de excretos dos animais, uma vez que<br />
nós também nos deliciamos com substâncias decompostas por<br />
efeito <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> vegetal e cuja origem é análoga à <strong>da</strong> uri<strong>na</strong> e <strong>da</strong>s<br />
matérias fecais.”<br />
Nunca o suspeitastes? Pois aí tendes uma coisa bem séria para<br />
as flores e para quantos as estimam e admiram, porque, enfim...<br />
14<br />
Para retor<strong>na</strong>r ao assunto e termi<strong>na</strong>r pela consideração geral <strong>da</strong><br />
ação <strong>da</strong> lei no ambiente <strong>da</strong> Terra, lembremo-nos de que essa<br />
ação permanente é condicio<strong>na</strong>l à existência do mundo, tanto<br />
quanto de sua beleza. Quando os corpos vibram, quando a cor<strong>da</strong><br />
resso<strong>na</strong> ao atritar o arco; quando o sino geme ao toque do ba<strong>da</strong>lo,<br />
as moléculas se agitam cadencia<strong>da</strong>s, tal como as esferas no<br />
espaço. A harmonia <strong>da</strong>s esferas não é uma frase vã. Ela é efeito<br />
de uma força e essa força é a mesma para os dois casos, quer se<br />
chame coesão, quando grupa moléculas, quer se chame gravitação,<br />
quando junge os corpos celestes. Força primordial, elementar,<br />
que anima to<strong>da</strong> substância, ora determi<strong>na</strong>ndo uma simples<br />
aproximação molecular, ora sujeitando-a a diretivas determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s,<br />
segundo as condições em que estejam coloca<strong>da</strong>s. Essa força,<br />
podemos denominá-la físico-química. Presto havemos de verificar<br />
a existência de uma força distinta, a reger o turbilhão <strong>da</strong><br />
matéria nos seres vivos. É pelo sistema nervoso que o animal se<br />
distingue do mineral e do vegetal. A partir do estado rudimentar,<br />
onde se apresenta com os zoófitos, até o seu mais completo<br />
desenvolvimento <strong>na</strong> espécie huma<strong>na</strong>, o sistema nervoso é o<br />
índice <strong>da</strong> animali<strong>da</strong>de e preside aos fenômenos imateriais. Por<br />
ele é que percebemos to<strong>da</strong> e qualquer sensação; é ele que possibilita<br />
nossos movimentos voluntários e é por ele, ain<strong>da</strong>, que<br />
manifestamos o pensamento. Elimi<strong>na</strong>i os nervos e tereis de fato<br />
destruído a sensação. Cortai o fio telegráfico e já não transmitireis<br />
o despacho.<br />
Se o nervo ótico paralisar, ain<strong>da</strong> que intacto o globo ocular, o<br />
animal fica cego; as imagens prosseguirão, formando-se <strong>na</strong>
câmara visual, mas insensíveis. O ouvido pode estar perfeitamente<br />
são, fisicamente constituído para recolher as vibrações<br />
sonoras e, no entanto, não haverá sons perceptíveis, desde que lá<br />
não exista o nervo acústico para os captar e transmitir ao cérebro<br />
e também que haja um cérebro vivo para os receber.<br />
É, pois, de cérebro e nervos que se utiliza a força que percebe<br />
e julga.<br />
No reino vegetal, particularmente em certas espécies como<br />
sejam a sensitiva, a dionéia, o desmódio, nós reconhecemos uma<br />
energia latente, correspondente ao nosso sistema nervoso.<br />
Indiscutível é, to<strong>da</strong>via, que a força físico-química, a força vegetal,<br />
a força animal, a inteligência, não são uma só forçamatéria.<br />
Expliquem-nos, então, como uma molécula é sucessivamente<br />
anima<strong>da</strong> por forças tão distintas.<br />
Como admitir que o átomo de ferro, que agora se integra num<br />
homem, num animal ou numa planta, constituísse momentos<br />
antes a ferrugem de uma velha estátua, por exemplo? Se ele é ao<br />
mesmo tempo matéria e força, e se a força é única, como explicar<br />
produza fenômenos tão distintos?<br />
Acima <strong>da</strong> matéria existe um princípio imaterial, absolutamente<br />
distinto. Um espírito anima a matéria, qual o disse Vergílio.<br />
Diante <strong>da</strong> organização regular dos seres terrestres, não nos<br />
cabe mais que repetir a resposta, já de um século, <strong>da</strong><strong>da</strong> ao Sistema<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. A matéria é passiva e incapaz de coorde<strong>na</strong>r-se<br />
por si mesma num todo regular. Contudo, ela é dota<strong>da</strong> de umas<br />
tantas proprie<strong>da</strong>des que a fazem suscetível de obediência às leis.<br />
Ora, como pode a matéria cega ter desígnios e tender para uma<br />
fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de? Como, ininteligente, teria engendrado seres inteligentes?<br />
Como se gover<strong>na</strong>ria por leis sábias, se não conhece o que<br />
seja sabedoria? Como rei<strong>na</strong>r uma ordem majestosa entre as suas<br />
partes, se ela não conhece a ordem?<br />
Como, enfim, essa utili<strong>da</strong>de sensível e perceptível em to<strong>da</strong>s<br />
as suas operações, se ela, de fato, não tem alvo?<br />
Aí estão uns tantos problemas a que os materialistas hodiernos<br />
vão tentar responder em detalhe <strong>na</strong>s suas discussões 15 .
Assim, para resumir o estado <strong>da</strong> questão e os princípios de<br />
nossa refutação do ponto de vista do mundo inorgânico, temos<br />
estabelecido que, no céu como <strong>na</strong> Terra, a força rege a matéria,<br />
que a harmonia é constituí<strong>da</strong> pelo número e que este leva consigo,<br />
por to<strong>da</strong> a parte, o cunho intelectual. Em parte alguma,<br />
porém, a inteligência criadora aparece tão evidente como <strong>na</strong><br />
organização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>na</strong> existência do homem.<br />
É o que vamos verificar nos capítulos seguintes.
Segun<strong>da</strong> Parte<br />
A Vi<strong>da</strong><br />
1 - Circulação <strong>da</strong> Matéria<br />
SUMÁRIO – Viagens Incessantes dos átomos através dos organismos;<br />
fraterni<strong>da</strong>de universal dos seres vivos; soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />
indissolúvel entre as plantas, os animais e o homem. – Vi<strong>da</strong> aparente<br />
e vi<strong>da</strong> invisível. O ar, a respiração, a alimentação, a desassimilação.<br />
– O corpo, transformação perpétua. – O equilíbrio <strong>da</strong>s<br />
funções vitais prova uma força diretora. – A decomposição ca<strong>da</strong>vérica<br />
prova que a vi<strong>da</strong> é uma força e que essa força não é uma<br />
quimera. – Homúnculos. – Fatos e atitudes <strong>da</strong> Química orgânica.<br />
– Essa química não cria seres nem órgãos. – A Matéria circula, a<br />
Força gover<strong>na</strong>.<br />
O poder que rege os astros e desata os esplendores de sua riqueza<br />
<strong>na</strong> imensidão dos céus; a força que regula a construção de<br />
minerais e plantas, <strong>na</strong> Terra; a ordem que espalha a harmonia no<br />
mundo, vão apresentar-se-nos agora sob um outro aspecto,<br />
<strong>da</strong>ndo-nos testemunho não menos irresistível do princípio inteligente<br />
que preside os nossos destinos.<br />
Enquanto o olhar penetrante do telescópio vara os espaços<br />
infinitos, a visão a<strong>na</strong>lítica do microscópio visita os habitáculos<br />
minudentes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> superfície <strong>da</strong> Terra.<br />
Aqui, já não é ape<strong>na</strong>s a grandeza e o caráter formi<strong>da</strong>ndo <strong>da</strong><br />
energia que nos vão falar, mas, antes, o engenho, a beleza do<br />
plano, a delicadeza de sua execução e, sobretudo, a sabedoria<br />
sobre-huma<strong>na</strong> que domi<strong>na</strong> a matéria e a mol<strong>da</strong> às leis de uma<br />
vontade onipotente.<br />
Quando penetramos com os olhos <strong>da</strong> Ciência o espetáculo do<br />
mundo, to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong> nos aparece à feição de imenso di<strong>na</strong>mismo,<br />
em cujo seio se associam ou se transformam as forças<br />
extraordinárias <strong>da</strong> Física e <strong>da</strong> Química.
Fenômenos efêmeros, que ao vulgo parecem isolados, apresentam-se-nos<br />
entramados numa rede única, cujos fios são<br />
mantidos por uma força misteriosa.<br />
O mundo envolve-se em grande uni<strong>da</strong>de, nenhum elemento<br />
está isolado, nem <strong>na</strong> extensão presente, nem <strong>na</strong> História.<br />
São irmãos a luz e o calor, quer se nos mostrem juntos, numa<br />
união indefectível, quer mutuamente se façam o sacrifício de sua<br />
própria existência. A afini<strong>da</strong>de e o magnetismo casam-se nos<br />
mistérios do mundo mineral. A ponta inquieta do imã procura<br />
incessantemente o pólo. A planta eleva-se apaixo<strong>na</strong><strong>da</strong> para a luz.<br />
A Terra volta para o Sol o seu rosto mati<strong>na</strong>l. Estende o crepúsculo<br />
o seu manto sobre a noite e os tépidos perfumes dos vales<br />
aquecem os pés gelados <strong>da</strong> noite. Em aproximando-se a aurora, o<br />
beijo do orvalho deixa o seu traço <strong>na</strong> corola entreaberta <strong>da</strong>s<br />
flores. Átomos e mundos são levados por um só impulso universal.<br />
Na atmosfera mil ondulações se entrecruzam, mil varie<strong>da</strong>des<br />
de força se combi<strong>na</strong>m. Noite e dia, tarde e manhã, em to<strong>da</strong>s as<br />
estações, o mesmo movimento simultaneamente insensível e<br />
grandioso, que a nossa vista não apreende e que, aberrante de<br />
qualquer avaliação numérica 16 , se vai exercendo no laboratório<br />
do cosmos. Pois o resultado desse movimento é a Vi<strong>da</strong>.<br />
Fora deste resultado, o mundo só oferece uma atração medíocre<br />
aos espíritos curiosos. É pelos aspectos ou pelas sensações <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> que o ser pensante se liga à <strong>Natureza</strong>. Se a contemplação<br />
dos céus, por noites silenciosas, nos causa uma tristeza indefinível;<br />
se o aspecto de vastos desertos calci<strong>na</strong>dos por um sol ardente<br />
nos deixa impassíveis; se o estudo <strong>da</strong>s mais extraordinárias<br />
combi<strong>na</strong>ções químicas, opera<strong>da</strong>s numa retorta, nos impressio<strong>na</strong><br />
menos intimamente do que a visão de um pássaro em seu ninho,<br />
ou ain<strong>da</strong> a de uma violeta vicejando humildemente ao pé de um<br />
tronco, é porque essas manifestações não revelam uma vi<strong>da</strong><br />
imediata. Nossa alma é sobretudo acessível às impressões provin<strong>da</strong>s<br />
de seres viventes como nós e, de entre estes, os que mais<br />
se aproximam <strong>da</strong> nossa <strong>na</strong>tureza. O timbre de uma voz ama<strong>da</strong><br />
tem maior ressonância em nosso coração do que o ribombo de<br />
um trovão. Um raio do olhar eleito nos penetra mais fundo do<br />
que um raio de Sol. Um sorriso adorado tem sempre maior
encanto que a mais encantadora <strong>da</strong>s paisagens. No colo, nos<br />
braços, nos cabelos <strong>da</strong> mulher idolatra<strong>da</strong>, não há diamantes nem<br />
safiras, esmeral<strong>da</strong>s e pérolas, cujo brilho se não degrade ao de<br />
simples pedrarias decorativas. É que neste caso, sobretudo, a<br />
vi<strong>da</strong> nos aparece sob a sua mais bela e mais esquisita manifestação<br />
terrestre, pois que ela – a vi<strong>da</strong> – é bem ver<strong>da</strong>deiramente a<br />
grande atração <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />
Mas, a característica que mais vivamente impressio<strong>na</strong> o observador,<br />
no conjunto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terrestre, é a lei geral que preside à<br />
vi<strong>da</strong> do Universo. À primeira vista, afigura-se-nos que todos os<br />
seres estão isolados. O abeto que colma os cimos alpestres<br />
parece <strong>na</strong><strong>da</strong> ter de comum com a lebre que corre <strong>na</strong>s planuras.<br />
Certo que a rosa dos nossos jardins não conhece o leão dos<br />
desertos. Águia e condor dos altiplanos asiáticos jamais provaram<br />
o fruto dos nossos pomares. Trigo e vinha, em <strong>na</strong><strong>da</strong> parece<br />
ligarem-se à vi<strong>da</strong> dos peixes. E se nos cingirmos a divisões<br />
menos marcantes, ninguém suspeitará qualquer relação imediata<br />
entre a vi<strong>da</strong> do homem e a do vegetal que matiza os campos e as<br />
florestas.<br />
E contudo, a ver<strong>da</strong>deira reali<strong>da</strong>de é que a vi<strong>da</strong> de todos os seres<br />
terrícolas – homens, animais, plantas - é uma e única, sujeita<br />
a um mesmo sistema, tendo por ambiente o ar e por base o solo.<br />
E essa vi<strong>da</strong> universal outra coisa não é senão uma permuta<br />
constante de matéria. Todos os seres se formam <strong>da</strong>s mesmas<br />
moléculas, a passarem sucessiva e indiferentemente de uns a<br />
outros, de sorte que nenhum ser dispõe de um corpo propriamente<br />
seu. Pela respiração e pela alimentação, nós absorvemos, ca<strong>da</strong><br />
dia, uma certa porção de alimentos. Pela digestão, pelas secreções<br />
e excreções, perdemos outra determi<strong>na</strong><strong>da</strong> porção de alimentos.<br />
Assim, renova-se o corpo e, depois de algum tempo, já não<br />
possuímos um só grama do corpo material de antes. Sua renovação<br />
foi total, completa. Mediante essa permuta é que se entretém<br />
a vi<strong>da</strong>. Enquanto o movimento renovador se opera em nós, a<br />
mesma coisa se dá com animais e plantas. Os milhões e bilhões<br />
de seres viventes <strong>na</strong> superfície do globo mantêm-se, portanto, em<br />
permuta constante de seus organismos. O átomo de oxigênio, que<br />
ora estais respirando, foi ontem, possivelmente, expirado por
alguma <strong>da</strong>s árvores que orlam o bosque, além. O átomo de<br />
hidrogênio que, neste momento, umedece a pupila vigilante do<br />
leão do deserto, será o mesmo que, não há muito, molhava os<br />
lábios <strong>da</strong> mais pudica donzela <strong>da</strong> austera Albion. O átomo de<br />
carbono que neste instante arde em meu pulmão, ardeu talvez <strong>na</strong><br />
candeia que serviu a Newton para as suas experiências de ótica;<br />
e as fibras mais preciosas do cérebro de Newton talvez se encontrem,<br />
agora, <strong>na</strong> concha de uma ostra ou numa dessas miríades de<br />
animálculos microscópicos, que povoam os mares fosforescentes.<br />
O átomo de carbono que se escapa, no momento, <strong>da</strong> combustão<br />
do vosso charuto, terá talvez saído, há alguns anos, do túmulo<br />
de Cristóvão Colombo, que demora, como sabeis, <strong>na</strong> catedral<br />
de Hava<strong>na</strong>. To<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> não passa de uma constante permuta de<br />
elementos materiais. Fisicamente falando, nós <strong>na</strong><strong>da</strong> possuímos<br />
de nós mesmos. Só o ser pensante é o nosso eu. Só ele é que nos<br />
constitui ver<strong>da</strong>deira, imutavelmente. Quanto à substância que<br />
nos forma o cérebro, os nervos, os músculos, ossos, membros,<br />
carne, essa não a retemos; vai, vem, passa de um ser a outro.<br />
Sem metáfora, podemos dizer que as plantas são nossas raízes,<br />
que por elas extraímos dos campos a albumi<strong>na</strong> do sangue, o cal<br />
dos ossos. O oxigênio de sua respiração nos dá vigor e beleza,<br />
assim como, reciprocamente, o ácido carbônico que restituímos à<br />
atmosfera vai cobrir de verdura os vales e as coli<strong>na</strong>s.<br />
Quando se tem a convicção profun<strong>da</strong> dessa permuta universal<br />
<strong>da</strong> matéria, que irma<strong>na</strong>, do ponto de vista <strong>da</strong> composição orgânica,<br />
a fronde e o pássaro, o peixe e a plaga, o homem e a fera,<br />
considera-se a <strong>Natureza</strong> sob a impressão <strong>da</strong> grande uni<strong>da</strong>de que<br />
preside à marcha <strong>da</strong>s coisas. Ela, a <strong>Natureza</strong>, se nos apresenta,<br />
então, completamente transfigura<strong>da</strong> e não deixa de ser com um<br />
interesse mais íntimo que encaramos o sistema geral <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
planetária. A. de Humboldt traçou a sua fisionomia num esboço<br />
amplo, que tem o mérito de reivindicar considerações especiais a<br />
respeito. “Quando o homem interroga com argúcia penetrante a<br />
<strong>Natureza</strong> – diz ele 17 – ou quando mede, <strong>na</strong> sua imagi<strong>na</strong>ção, os<br />
vastos espaços <strong>da</strong> criação orgânica, de to<strong>da</strong>s as emoções experimenta<strong>da</strong>s<br />
a mais poderosa e profun<strong>da</strong> é a <strong>da</strong> plenitude <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,
universalmente difundi<strong>da</strong>. Por to<strong>da</strong> a parte, até nos pólos congelados,<br />
o ar repercute o canto <strong>da</strong>s aves e o zumbido dos insetos.<br />
“A vi<strong>da</strong> transpira, não somente <strong>na</strong>s cama<strong>da</strong>s inferiores <strong>da</strong> atmosfera,<br />
onde flutuam pesados vapores, mas, também, <strong>na</strong>s<br />
regiões sere<strong>na</strong>s, eteriza<strong>da</strong>s. Todos quantos remontaram, quer as<br />
cumea<strong>da</strong>s <strong>da</strong> cordilheira Andi<strong>na</strong>, quer os píncaros do Monte<br />
Branco debruçados sobre o lago de Genebra, jamais deixaram de<br />
aí encontrar seres animados. No Chimborazo, e numa altitude<br />
excedente de 2600 metros ao pináculo do Et<strong>na</strong>, vimos borboletas<br />
e outros insetos alados. Mesmo supondo que houvessem sido<br />
levados por correntes aéreas, e que lá errassem como estrangeiros,<br />
<strong>na</strong>quelas paragens a que só o ardente desejo de conhecer<br />
conduz os homens, a sua presença atesta, to<strong>da</strong>via, que, mais<br />
flexível, a organização animal resiste além dos limites traçados à<br />
vi<strong>da</strong> vegetal. Muitas vezes vimos o rei dos abutres – o condor –<br />
pla<strong>na</strong>r acima de vossa cabeça, em altitudes excedentes aos picos<br />
nevados dos Pireneus, e mesmo dos indianos. O possante carnívoro<br />
alado era, <strong>na</strong>turalmente, atraído pelos sedosos vigonhos,<br />
que às ma<strong>na</strong><strong>da</strong>s procuram aquelas pastagens coalha<strong>da</strong>s de neve.”<br />
Esta vi<strong>da</strong> que vemos difundi<strong>da</strong>, em to<strong>da</strong>s as cama<strong>da</strong>s atmosféricas,<br />
não é mais que páli<strong>da</strong> imagem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mais compacta,<br />
que o microscópio nos revela, Os ventos arrebatam, à superfície<br />
<strong>da</strong>s águas em evaporação, turbilhões de animálculos invisíveis,<br />
imóveis e com to<strong>da</strong>s as aparências de morte; seres que flutuam<br />
no ar, até que as orvalha<strong>da</strong>s os devolvam ao solo nutriz, que lhes<br />
dissolve o invólucro e, graças provavelmente ao oxigênio sempre<br />
contido <strong>na</strong> água, comunica-lhes aos órgãos uma nova irritabili<strong>da</strong>de.<br />
Nuvens de microrganismos cruzam as regiões aéreas do<br />
Atlântico e carreiam a vi<strong>da</strong> de um a outro continente.<br />
Com o autor de Cosmos, podemos acrescentar que, independentemente<br />
dessas existências, a atmosfera também contém<br />
inumeráveis germes de vi<strong>da</strong> futura, óvulos de insetos e de plantas,<br />
que, sustentados por coroas de pêlos ou de plumas, garram<br />
para as longas peregri<strong>na</strong>ções do Outono. O pólen fecun<strong>da</strong>nte que<br />
as flores masculi<strong>na</strong>s semeiam <strong>na</strong>s espécies de sexo extremado, é<br />
também, ele próprio, levado pelos ventos e por insetos alados~<br />
através de continentes e mares, às plantas femini<strong>na</strong>s que vivem
em solidão. Onde quer que o observador <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> mergulhe<br />
os olhos, aí encontrará vi<strong>da</strong>s, ou um germe pronto a recebê-la.<br />
As formas orgânicas penetram no seio <strong>da</strong> Terra a grandes<br />
profundi<strong>da</strong>des, por to<strong>da</strong> a parte as águas se espalham e infiltram,<br />
seja em interstícios formados pela <strong>Natureza</strong>, ou feitos pela mão<br />
do homem.<br />
Ninguém poderia dizer com segurança qual o ambiente em<br />
que a vi<strong>da</strong> se difundiu com maior profusão. De fato, ela repleta<br />
os oceanos, <strong>da</strong>s zo<strong>na</strong>s tropicais aos gelos polares; o ar povoa-se<br />
de germes invisíveis e o solo é sulcado por miríades de espécies,<br />
quer animais, quer vegetais. Estes incessantemente procuram<br />
dispor, mediante combi<strong>na</strong>ções harmoniosas, <strong>da</strong> matéria bruta do<br />
solo, como que tendo a função de preparar e misturar, por virtude<br />
de sua energia vital, as substâncias que, após inumeráveis<br />
modificações, hão de ser eleva<strong>da</strong>s ao estado de fibras nervosas.<br />
Abrangendo no mesmo olhar a cama<strong>da</strong> vegetal que reveste o<br />
solo, depara-se-nos em plenitude a vi<strong>da</strong> animal, nutri<strong>da</strong> e conserva<strong>da</strong><br />
pelas plantas.<br />
Por intermédio do ar é que se operam essas transformações<br />
incessantes, universais, e não por outro meio que não esse, os<br />
elementos podem transitar de um corpo a outro. Proposição é<br />
esta, tão exata, que os fisiologistas há muito repetem que todo<br />
ser vivo é produto do ar organizado. Como se opera essa organização?<br />
A partir de Lavoisier, sabemos que a respiração do homem<br />
e dos animais é ato análogo às combustões mediante as<br />
quais nos aquecemos e aclaramos. Insistamos um tanto neste<br />
ponto. A respiração estabelece uma soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de universal entre<br />
os homens, animais e plantas. Ela é resultante <strong>da</strong> união do oxigênio<br />
com o carbono e o hidrogênio dos alimentos, tanto quanto<br />
a combustão resulta <strong>da</strong> união desse mesmo oxigênio com o<br />
hidrogênio e o carbono <strong>da</strong> vela, <strong>da</strong> madeira, ou combustível<br />
qualquer. A respiração verifica-se sob a influência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />
enquanto a combustão, propriamente dita, se opera sob a influência<br />
de um calor intenso. Um e outro ato têm por fim produzir<br />
calor. É o calor desprendido <strong>da</strong> nossa respiração que entretém<br />
no corpo a temperatura de 37 graus, necessária à mantença <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>.
Lavoisier e Lieb demonstraram, há muito tempo, que todo<br />
animal é um foco e todo alimento um combustível. Se a respiração<br />
não se acompanha, como a combustão, de clari<strong>da</strong>des incandescentes,<br />
é por ser uma combustão lenta, menos ativa. Mas, por<br />
muito lenta que seja equivale, contudo, à de uma dose assaz forte<br />
de carbono. Um homem queima 10 a 12 gramas de carbono por<br />
hora, ou 250 por dia, mais ou menos, além de uma certa quanti<strong>da</strong>de<br />
de hidrogênio.<br />
Combustão e respiração viciam o ar destruindo-lhe o elemento<br />
salutífero – o oxigênio, substituindo-o por um gás mefítico – o<br />
ácido carbônico. Esta e outras causas espalham <strong>na</strong> atmosfera, de<br />
maneira constante, esse elemento insalubre. Experiências feitas<br />
com o vapor d'água condensa<strong>da</strong> em janelas dos teatros de Paris,<br />
patentearam uma combi<strong>na</strong>ção particularmente letífera.<br />
A raça huma<strong>na</strong> retira do ar, anualmente, 160 bilhões de metros<br />
cúbicos de oxigênio e os permuta por igual volume de ácido<br />
carbônico. A respiração dos animais quadruplica o resultado. Só<br />
a hulha que se extrai do solo fornece mais ou menos 100 bilhões<br />
de metros cúbicos de ácido carbônico, ao mesmo passo que<br />
outros combustíveis aumentam consideravelmente essa cifra.<br />
Junte-se-lhe ain<strong>da</strong> o produto <strong>da</strong>s decomposições e considere-se<br />
que, a despeito, esse gás não se encontra no ar atmosférico senão<br />
<strong>na</strong> proporção diminuta de 4 a 5 litros por 100 hectolitros. O<br />
ácido carbônico é solúvel n'água, a chuva o dissolve e carreia em<br />
suas bátegas, o transporta aos rios, leva-o enfim aos oceanos. Aí,<br />
ele une-se à cal e temos o carbo<strong>na</strong>to de cal, as pedras calcáreas,<br />
mármore, alabastro, ônix, polipeiros, etc.<br />
Os vegetais, a seu turno, preenchem, em escala imensa, função<br />
inversa à respiração dos animais, essencialíssima à harmonia<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, pois não somente fixa o hidrogênio <strong>da</strong> água e<br />
subtrai <strong>da</strong> atmosfera o ácido carbônico, como lhe restitui o<br />
oxigênio. (Uma folha de nenúfar dá, em 10 horas, 15 uni<strong>da</strong>des de<br />
oxigênio, proporcio<strong>na</strong>is ao seu volume.)<br />
A que transformações submetem os vegetais o carbono, o hidrogênio,<br />
o azoto, que eles absorvem do ar? É to<strong>da</strong> uma produção<br />
multifária. Conjugando cinco moléculas de carbono e quatro<br />
de hidrogênio, a <strong>Natureza</strong> forma, no citrão e no salgueiro, duas
essências que, diversas radicalmente em odorância, provêm <strong>da</strong><br />
mesma composição. Freqüentemente, a <strong>Natureza</strong> junta a estes<br />
dois elementos o oxigênio. Assim é que sol<strong>da</strong> doze moléculas de<br />
carbono e dez de hidrogênio e oxigênio, formando, a seu talante,<br />
seja a madeira, seja a batata. Outras vezes, seu trabalho é mais<br />
complexo e reúne os quatro elementos: carbono, hidrogênio,<br />
oxigênio e azoto, origi<strong>na</strong>ndo os mais diferentes produtos, tais<br />
como o trigo – precioso alimento – e a estricni<strong>na</strong> – ativíssimo<br />
tóxico.<br />
Como explicar, por exemplo, juntando um equivalente de<br />
água à substância característica <strong>da</strong> madeira, a celulose<br />
(C12H10O10), a <strong>Natureza</strong> nos dê o açúcar? Sínteses maravilhosas,<br />
a <strong>Natureza</strong> as produz silenciosamente, ao influxo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>!<br />
O reino vegetal é uma usi<strong>na</strong> imensa. Sob a ação do calor solar,<br />
to<strong>da</strong>s as rol<strong>da</strong><strong>na</strong>s entram a movimentar-se. A exemplo do<br />
mecânico que nutre a sua máqui<strong>na</strong>, a <strong>Natureza</strong> renova o combustível<br />
e os princípios do ar, e estes se transformam em madeira ou<br />
amido, em açúcar ou veneno, que constituem a polpa saborosa<br />
do fruto, o perfume sutil <strong>da</strong>s flores, o rendilhado <strong>da</strong>s folhas, a<br />
coriácea tessitura dos troncos.<br />
Os animais nutrem-se dos vegetais, gaseificam, por assim dizer,<br />
o ar solidificado e o devolvem à atmosfera, onde ele recomeça<br />
o ciclo <strong>da</strong>s transformações que, graças a ele – o ar – agente<br />
primaz <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, elo universal, jamais se interrompem.<br />
A comparação que Liebig 18 foi o primeiro a fazer, <strong>da</strong> combustão<br />
respiratória do animal com a dos combustíveis de uma for<strong>na</strong>lha,<br />
só é exata se fizermos uma idéia material do fogo nesse<br />
aparelho. No animal, todo o corpo arde lentamente, o que não se<br />
dá com a for<strong>na</strong>lha, que não arde. Na retorta huma<strong>na</strong>, continente e<br />
conteúdo queimam juntos e, assim, é mais justo tomarmos a vela<br />
como elemento comparativo.<br />
O calor é o regulador <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Descartes antecipara-se aos<br />
progressos <strong>da</strong> experimentação escrevendo este significativo<br />
conceito: “Importa não conceber <strong>na</strong>s máqui<strong>na</strong>s huma<strong>na</strong>s outra<br />
alma vegetativa nem sensitiva, nem princípio algum de movimento<br />
e vi<strong>da</strong>, além do sangue e seus espíritos, agitados pelo
calor do fogo que arde continuamente no seu coração e cuja<br />
<strong>na</strong>tureza é idêntica à que inflama os corpos i<strong>na</strong>nimados.” (Sabemos<br />
que Descartes, como Platão, considerava a alma huma<strong>na</strong><br />
como retira<strong>da</strong> num santuário, no âmago de nós mesmos, numa<br />
espécie de oposição à matéria. A vi<strong>da</strong> e as funções orgânicas<br />
dependiam inteiramente do corpo e só o pensamento era atributo<br />
do espírito.)<br />
Tal, sumariamente, o papel do ar <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Assim são os<br />
vegetais, habilíssimos físico-químicos, a nos prepararem ao<br />
mesmo tempo a alimentação, a respiração, a indumentária, o<br />
combustível e os elementos materiais <strong>da</strong> nossa existência terrestre.<br />
Importa, de conseguinte, deixarmos de considerar a <strong>Natureza</strong><br />
sob um prisma vulgar, para fazê-lo, doravante, com olhos atentos<br />
e apercebidos. Quando fixarmos a ervilha tenra que reponta nos<br />
jardins, não admiraremos ape<strong>na</strong>s o risonho tapete de verdura e a<br />
gracili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s flores que o esmaltam. Elevaremos mais alto o<br />
pensamento, imagi<strong>na</strong>remos que ca<strong>da</strong> um desses rebentos, que<br />
vamos pisando, é um benfeitor silencioso, pois, se de um lado<br />
contribuímos para embelezá-lo fornecendo-lhe ácido carbônico,<br />
sem o qual se estiolaria, por outro lado ele nos dá benevolamente<br />
todo o necessário à nossa vi<strong>da</strong> material: imagi<strong>na</strong>remos que essa<br />
harmonia é de uma perfeição sublime, visto que, se umas regiões<br />
mergulham, longos meses, nos rigores do Inverno, os ventos não<br />
deixam de estabelecer entre esses países deser<strong>da</strong>dos e o nosso<br />
uma permuta constante, que reconduz aos nossos bosques e<br />
prados o ácido carbônico expirado pelo lapônio e o esquimó,<br />
levando-lhes o oxigênio exalado dos milhões de bocas dos<br />
nossos vegetais.<br />
Se acompanharmos a elevação gra<strong>da</strong>tiva <strong>da</strong> matéria, haveremos<br />
de reconhecer com os fisiologistas em geral, e com Moleschott<br />
em particular, o seguinte processo <strong>da</strong>s permutas materiais:<br />
o amoníaco, o ácido carbônico, a água e alguns sais, eis to<strong>da</strong> a<br />
série <strong>da</strong>s matérias com as quais a planta constrói o próprio corpo.<br />
Albumi<strong>na</strong> e dextri<strong>na</strong> formam-se à custa destas combi<strong>na</strong>ções<br />
simples, por efeito de constante dispêndio de oxigênio. Essas<br />
duas substâncias dissolvem-se nos sucos <strong>da</strong> planta, que se tor<strong>na</strong>m<br />
por isso mesmo capazes de transportar-se às mais diversas
egiões, através <strong>da</strong>s hastes, <strong>da</strong>s folhas, ou dos frutos. Mercê <strong>da</strong><br />
albumi<strong>na</strong>, engendram-se corpos outros albuminosos, quais a<br />
legumi<strong>na</strong>, o glúten e a albumi<strong>na</strong> vegetal coagula<strong>da</strong>. Estas duas<br />
últimas substâncias se depositam, indissolúveis, <strong>na</strong> semente.<br />
Albumi<strong>na</strong>, açúcar e gordura são os materiais construtivos do<br />
animal, cujo sangue é um soluto de albumi<strong>na</strong>, gordura, açúcar e<br />
sais. Uma absorção mais forte de oxigênio transforma a albumi<strong>na</strong><br />
em fibri<strong>na</strong> muscular, em elementos redutíveis, cola de cartilagens<br />
e ossos, substância dérmica ou pilosa. Estas substâncias<br />
alia<strong>da</strong>s à gordura, aos sais e à água, constituem a totali<strong>da</strong>de do<br />
organismo animal. Tanto quanto a recomposição progressiva, a<br />
desassimilação é fenômeno de evolução gra<strong>da</strong>tiva.<br />
Na planta a albumi<strong>na</strong>, o açúcar e a gordura se decompõem em<br />
alcalóides, ácidos, matérias corantes, óleos voláteis, resi<strong>na</strong>,<br />
azoto, ácido carbônico e água. No animal as mesmas substâncias<br />
se resolvem em leuci<strong>na</strong>, sirosi<strong>na</strong>, criati<strong>na</strong>, hipoxanti<strong>na</strong>, ácido<br />
úrico, fórmico, oxálico, uréia, amoníaco, ácido carbônico e água.<br />
Fora do corpo a uréia decompõe-se em ácido carbônico e amoníaco.<br />
Assim, graças à vi<strong>da</strong> em si, plantas e animais revertem às suas<br />
fontes. Após a morte, a desassimilação é ain<strong>da</strong> uma evolução,<br />
não menos regular que durante a vi<strong>da</strong>. O que se dá, ape<strong>na</strong>s, é que<br />
percorre outros graus, até que chegue ao termo <strong>da</strong> decomposição.<br />
A putrefação não é mais que uma combustão lenta <strong>da</strong>s matérias<br />
orgânicas, a operar-se fora do corpo vivo. Ela representa<br />
uma espécie de respiração depois <strong>da</strong> morte e ca<strong>da</strong> átomo vai<br />
conformar ou entreter outros corpos.<br />
Tal o esboço químico <strong>da</strong> permuta vital nos dois reinos orgânicos.<br />
Agora, abordemos o assunto particular <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no reino<br />
animal. Nestes novos fatos observados, tanto como nos precedentes,<br />
estamos de acordo com os adversários. Entretanto, vamos<br />
ver as conseqüências.<br />
Aqui temos, segundo o próprio autor de A Circulação <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>,<br />
baseado em recentes trabalhos de fisiologistas alemães, o<br />
processo geral de desassimilação no animal, ou, para falar mais<br />
claramente, os principais fenômenos de permuta <strong>da</strong>s matérias
que constituem a vi<strong>da</strong>. Tratemos aqui, particularmente, do corpo<br />
humano, por ser o que mais nos interessa 19 .<br />
Sabemos hoje que a história <strong>da</strong> evolução dos alimentos e <strong>da</strong>s<br />
matérias rejeita<strong>da</strong>s depois de servirem à assimilação é a essência<br />
mesma <strong>da</strong> fisiologia <strong>da</strong> permuta material.<br />
A digestão e formação dos tecidos estão compreendi<strong>da</strong>s entre<br />
dois limites: as substâncias alimentícias e as partes constitutivas<br />
<strong>da</strong>s secreções.<br />
Assim é que todos os elementos a<strong>na</strong>tômicos do corpo se decompõem<br />
para se rejuvenescerem sem cessar. O oxigênio aspirado<br />
passa <strong>da</strong> boca pela traquéia arterial, esta se ramifica e seus<br />
últimos ramúnculos desligados são providos de vesículas laterais<br />
e termi<strong>na</strong>is, que só se intercomunicam pelo ramúnculo do tubo<br />
aéreo que as contém.<br />
Deste tubo, o oxigênio passa às vesículas pulmo<strong>na</strong>res e destas<br />
ao sangue, através <strong>da</strong> parede dupla de vesículas e vasos capilares,<br />
até que entra, com o sangue, no coração.<br />
Em segui<strong>da</strong>, o coração impele o sangue oxige<strong>na</strong>do a todos os<br />
territórios orgânicos, através <strong>da</strong>s artérias <strong>da</strong> grande circulação,<br />
que mantém todo o corpo sob sua dependência.<br />
Fi<strong>na</strong>lmente, o oxigênio penetra os tecidos através <strong>da</strong>s paredes<br />
de vasos capilares, que rematam as artérias.<br />
Enquanto isso, um fenômeno inverso se verifica, O ácido carbônico<br />
proveniente do sangue e o ar atmosférico aspirado se<br />
transformam, segundo a lei <strong>da</strong>s permutas de gases, ao penetrarem<br />
as caver<strong>na</strong>s pulmo<strong>na</strong>res, os brônquios e a própria traquéia.<br />
Depois, o ritmo respiratório, produzindo a retração do peito,<br />
expele uma colu<strong>na</strong> de ar carregado de ácido carbônico. Uma<br />
curta pausa e a essa expiração sucede a aspiração, dilata-se o<br />
peito, um ar rico de oxigênio substitui o ar expirado, que perdera<br />
uma parte desse oxigênio, e o fenômeno prossegue.<br />
Podemos comparar os pulmões a um banco: o ácido carbônico<br />
é entregue à circulação exter<strong>na</strong>, para alimento <strong>da</strong>s plantas, em<br />
troca do oxigênio recebido. O sangue provido de oxigênio escoase<br />
dos pulmões para o ventrículo esquerdo do coração, <strong>da</strong>í<br />
derivando-se para todos os setores do organismo. Começa, então,
aí, a combustão geral que, sob a forma de nutrição aqui, de<br />
elimi<strong>na</strong>ção acolá, vai acio<strong>na</strong>ndo as primeiras funções.<br />
É possível medir a intensi<strong>da</strong>de de permuta <strong>da</strong>s matérias de<br />
um organismo humano pela quanti<strong>da</strong>de de ácido carbônico, água<br />
e uréia elimi<strong>na</strong>dos em <strong>da</strong>do tempo. A rapidez <strong>da</strong>s permutas dá a<br />
medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Sua maior ativi<strong>da</strong>de verifica-se dos 30 aos 40<br />
anos. Termo médio, é nessa fase que as energias criadoras do<br />
homem atingem o apogeu.<br />
Pulmões e rins não são os únicos órgãos elimi<strong>na</strong>dores; a eles<br />
devemos juntar a pele e o reto. Os cabelos que caem, a epiderme<br />
que se escama no interior como no exterior, as unhas que aparamos,<br />
multiplicam os pontos de elimi<strong>na</strong>ção dos princípios azotados.<br />
A ativi<strong>da</strong>de elimi<strong>na</strong>tória dos pulmões e dos rins atinge a um<br />
quinze avos do peso total <strong>da</strong>s excreções e ultrapassa de muito a<br />
dos intestinos. Quanto maior ativi<strong>da</strong>de, mais rápi<strong>da</strong> a elimi<strong>na</strong>ção.<br />
Os homens entregues a trabalhos de movimento ativo elimi<strong>na</strong>m<br />
pela epiderme, em 9 horas, tanto ácido carbônico quanto o<br />
correspondente a 24 horas de repouso. Num cavalo a trote, a<br />
elimi<strong>na</strong>ção é 117 vezes mais copiosa do que em repouso. Um<br />
parelheiro inglês, que percorrera em 100 horas uma extensão<br />
correspondente a 500 horas de marcha ordinária, não perdeu<br />
menos de 14 quilos depois do feito.<br />
O trabalho mental fatiga tanto ou mais que o corporal. A expressão<br />
que utilizamos, referindo-nos a criaturas de pensamento<br />
ardente, é justa. Qualquer acréscimo de trabalho espiritual produz<br />
aumento de apetite, qual se dá com o intenso trabalho muscular.<br />
O apetite não é mais que o si<strong>na</strong>l de empobrecimento do<br />
sangue e dos tecidos, manifestando-se por meio de uma sensação.<br />
A ativi<strong>da</strong>de cerebral, assim como a dos membros do corpo,<br />
aumenta a elimi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> pele, dos pulmões, dos rins.<br />
O sangue, por sua vez, abando<strong>na</strong> constantemente aos órgãos<br />
do corpo os seus componentes, que a ativi<strong>da</strong>de dos tecidos vai<br />
decompondo em ácido carbônico, uréia e água.
Por fim, as matérias excrementícias atravessam continuamente<br />
a corrente circulatória para atingir os pulmões, os rins, a pele e<br />
o reto, de onde se elimi<strong>na</strong>m.<br />
Preciso se faz, pois, que os tecidos e o sangue experimentem,<br />
no curso regular <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, uma per<strong>da</strong> de substância só compensa<strong>da</strong><br />
pelo processo alimentar.<br />
Notável a rapidez com que se opera esse intercâmbio de matéria.<br />
A duração média <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dos que sucumbem de i<strong>na</strong>nição<br />
atinge a duas sema<strong>na</strong>s. Mas, desde que um vertebrado, seja qual<br />
for, morra de i<strong>na</strong>nição, o seu corpo terá perdido quatro dez avos<br />
do peso normal.<br />
Nos indivíduos alimentados convenientemente, a permuta se<br />
opera mais rápi<strong>da</strong> que nos esgotados pela abstinência. Moleschott<br />
e fisiologistas outros acreditaram poder concluir de certos<br />
fatos que o corpo renova a maior parte de sua substância num<br />
período de 20 a 30 dias.<br />
Impondo-se um regime regular, diversos observadores verificaram<br />
uma per<strong>da</strong>, em média, de um vinte avos do seu peso, em<br />
24 horas.<br />
O alimento ingerido e o oxigênio aspirado contrabalançam<br />
essa per<strong>da</strong>. O sangue, com efeito, não provém ape<strong>na</strong>s <strong>da</strong>s substâncias<br />
alimentares, mas, simultaneamente, <strong>da</strong> alimentação e <strong>da</strong><br />
respiração. É uma ver<strong>da</strong>de que mais avulta no concernente aos<br />
tecidos orgânicos.<br />
Perdendo o corpo diariamente um doze avos e no Estio um<br />
quatorze avos do seu peso, todo o corpo estaria renovado dentro<br />
de 12 ou 14 dias. Pelos resultados obtidos com o último observador,<br />
seriam precisos vinte e dois dias.<br />
Liebig deduziu dessa rapidez de permutas uma outra consideração.<br />
Pode-se, sem maior dúvi<strong>da</strong>, atribuir a um homem idoso 24<br />
libras de sangue. O oxigênio por nós absorvido em 4 ou 5 dias<br />
basta para transformar pela combustão todo o carbono e hidrogênio<br />
dessas 24 libras de sangue em ácido carbônico e água. Mas<br />
o sangue corresponde mais ou menos a um quinze avos do peso<br />
do corpo: se, pois, 5 dias bastam para substituir o sangue, com a
troca dos elementos, pode inferir-se que o corpo inteiro se renova<br />
em 25 dias.<br />
Moleschott e Malerf verificaram que corpúsculos de carneiro,<br />
profusamente injetados <strong>na</strong> circulação de rãs, desapareciam<br />
completamente ao fim de 17 dias. Ora, como a permuta <strong>na</strong>s rãs<br />
se opera mais lenta que nos animais de sangue quente, somos<br />
levados a crer que os glóbulos vermelhos do sangue humano se<br />
renovam totalmente em menos de 17 dias.<br />
O autor de A Circulação <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> declara, portanto, que a<br />
concordância dos resultados obtidos, partindo de três pontos de<br />
vista diferentes, é uma garantia positiva de veridici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
hipótese dos 30 dias necessários à renovação completa do organismo.<br />
Os sete anos que a crença popular fixava a essa operação,<br />
seriam um exagero colossal. “Por surpreendente que possa<br />
parecer, à primeira vista, essa rapidez – diz – concor<strong>da</strong> com a<br />
experiência em todos os pontos. Para Stahl, as andorinhas perdem<br />
num dia a gordura aprovisio<strong>na</strong><strong>da</strong> durante a noite. O desenvolvimento<br />
<strong>da</strong>s células opera-se, no sangue, em 7 ou 8 horas, à<br />
expensas <strong>da</strong>s matérias forneci<strong>da</strong>s pelo quilo. De resto, quem<br />
ignora bastarem poucos dias para que um homem emagreça a<br />
ponto de tor<strong>na</strong>r-se irreconhecível?<br />
“A rapidez <strong>da</strong> permuta <strong>da</strong>s matérias, demonstra<strong>da</strong> em to<strong>da</strong>s as<br />
experiências, é o que há de mais próprio para diminuir nossa<br />
admiração.<br />
“Essas experiências nos ensi<strong>na</strong>m que um adulto, pesando 128<br />
libras, elimi<strong>na</strong> em 24 horas cerca de 3 libras de saliva, duas e<br />
meia de bílis, no mínimo, e mais de 28 de suco gástrico; de sorte<br />
que um fumante, com o mau veso de escarrar segui<strong>da</strong>mente,<br />
pode, durante o dia, expelir 85 partes do seu peso. No período de<br />
24 horas, corre em nosso corpo perto de um quarto do seu peso,<br />
de suco gástrico a circular do sangue para o estômago e viceversa.<br />
“A celeri<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s permutas difere de indivíduo para indivíduo.<br />
“O homem, a mulher, a criança, o velho, manifestam aptidões<br />
diferentes: assim, o homem tem a proprie<strong>da</strong>de de permutar maior
quanti<strong>da</strong>de que a mulher, e o adulto mais que os velhos e as<br />
crianças. O operário e o pensador recompõem o corpo em tempo<br />
mais curto que o necessário aos ociosos e i<strong>na</strong>tivos.<br />
“Há criaturas de vi<strong>da</strong> acelera<strong>da</strong>: nelas a esperança, a paixão e<br />
o temor, que se transformam rapi<strong>da</strong>mente em confiança e alegria,<br />
precipitam a circulação do sangue. Vivem apressa<strong>da</strong>s, porque<br />
depressa se executa o seu metabolismo. Enquanto se mantém<br />
equilibrado o regime de permutas, o corpo não padece alteração<br />
no seu aprovisio<strong>na</strong>mento. É, ordi<strong>na</strong>riamente, esse, o ritmo do<br />
adulto, que se altera com os anos, para romper-se <strong>na</strong> velhice.<br />
Também a digestão vigorosa é privilégio <strong>da</strong> criança. A absorção<br />
de sólidos e líquidos igualmente se regula, mui rapi<strong>da</strong>mente,<br />
no trabalho digestivo. A ação do oxigênio e a desassimilação dos<br />
tecidos, a ela conseqüente, nunca se interrompem. Daí resulta,<br />
imediata, uma diminuição do suco nutritivo, que se pode verificar<br />
não só pelo peso, como por inspeção direta. Na i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong>,<br />
sofrem tal ou qual depressão, retraem-se. A córnea achatase,<br />
a miopia atenua-se e pode mesmo chegar ao efeito contrário –<br />
à presbiopia. Os ossos, com a velhice, perdem a elastici<strong>da</strong>de, de<br />
vez que menos ricos d'água, como <strong>na</strong> moci<strong>da</strong>de.<br />
“Uma vez rompido o equilíbrio, o desgaste dos tecidos se<br />
processa inevitavelmente. O maxilar inferior diminui de volume,<br />
o mento se tor<strong>na</strong> considerável, a pele <strong>da</strong>s mãos e do rosto tor<strong>na</strong>se<br />
mais fláci<strong>da</strong>, enruga-se, e aos músculos adelgaçados míngua<br />
contratili<strong>da</strong>de. Não podem os velhos fletir a medula espi<strong>na</strong>l e a<br />
fronte lhes pende para adiante.<br />
“Também as cor<strong>da</strong>s vocais, como que se tor<strong>na</strong>m mais secas,<br />
perdem em flexibili<strong>da</strong>de e elastério; a voz é rouca, sur<strong>da</strong>, ou<br />
metálica e áspera. Depois dos 50 anos o peso do cérebro também<br />
começa a diminuir.<br />
“Tudo deve contribuir, <strong>na</strong> velhice, para avolumar a desproporção<br />
entre a sanguificação e a desassimilação. Com a matéria,<br />
a força decresce. Suavemente, aproxima-se o fim; a morte é um<br />
esgotamento resultante do empobrecimento material.” 20<br />
Estas alegações são contestáveis. Ain<strong>da</strong> não está provado que<br />
o corpo humano se renova completamente no período de um
mês. Tecidos há que só se renovam assaz lentamente, <strong>da</strong>do que<br />
todos eles se renovem.<br />
Em to<strong>da</strong>s as i<strong>da</strong>des se têm encontrado células embrionárias<br />
que, no entanto, se desti<strong>na</strong>m a desaparecer no próprio feto. Os<br />
humores <strong>da</strong> pálpebra, seqüentes a peque<strong>na</strong>s inflamações (terçóis),<br />
em regra não são reabsorvidos antes de um ano. As unhas<br />
não se renovam em menos de seis meses. No estado de saúde,<br />
seu crescimento é de 2 milímetros por mês, de sorte que, se<br />
guardássemos a unha do indicador num estojo cilíndrico, durante<br />
sessenta anos – tal como fazemos para conservar plantas raras –<br />
não teríamos afi<strong>na</strong>l uma garra excedente de um metro e meio.<br />
Assim, poderíamos contraditar os 25 dias e solicitar lapso um<br />
pouco mais longo para a renovação do organismo. Não é, porém,<br />
de mês ou de ano que se trata. O tempo não vem ao caso, como<br />
diz a sátira francesa, e, muito pelo contrário, quanto mais rápi<strong>da</strong><br />
e vultosa se faça a renovação <strong>da</strong> matéria corporal, mais aproveita<br />
à nossa teoria.<br />
Os materiólatras deduzem dos fatos aqui exarados a sua famosa<br />
assertiva, declarando prova<strong>da</strong> a inexistência <strong>da</strong> alma,<br />
mediante essas transformações químicas. Para nós, ao invés<br />
(note-se o contraste), essas mesmas transformações induzem a<br />
declarar demonstra<strong>da</strong>, doravante, a existência <strong>da</strong> alma. Antes,<br />
porém, de argumentar, apraz-nos contrapor um simples reparo a<br />
tão categórica afirmativa adversa, que proclama com tamanha<br />
segurança e com ver<strong>da</strong>de inconteste a só existência <strong>da</strong>s moléculas<br />
materiais e que só elas constituem o ser vivente, do berço ao<br />
túmulo.<br />
Por um lado, afirmais que o corpo vivo não passa de um conjunto<br />
de moléculas e, por outro, dizeis que todo esse corpo se<br />
rejuvenesce mensalmente... Ao nosso ver, são duas proposições<br />
difíceis de conciliar. Como explicar o envelhecimento, se esse<br />
corpo material, <strong>na</strong> sua quali<strong>da</strong>de de moléculas químicas, nunca<br />
teve mais que um mês de i<strong>da</strong>de? O turbilhão vital, <strong>na</strong> frase de<br />
Cuvier, o qual se sucede constante sob e sobre a nossa pele,<br />
nossa própria carne, sangue, ossos, cabelos, todo o corpo, é qual<br />
vestimenta que se renova de si mesma. O corpo do sexagenário,<br />
ou do octogenário, não tem mais que um mês, assim como o <strong>da</strong>
criança que ape<strong>na</strong>s começa a an<strong>da</strong>r. São, assim, sempre novos,<br />
os corpos e, certo, não podemos deixar de admirar essa engenhosa<br />
lei <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Entretanto, é também indubitável haver no<br />
mundo pessoas de to<strong>da</strong>s as i<strong>da</strong>des, <strong>na</strong> escala dos anos. O Sr.<br />
Moleschott conta, ao que presumo, 45 e o Sr. A. Comte deveria<br />
orçar pelos seus 79. Vós, Sr. Vogt, <strong>na</strong>scestes no ano <strong>da</strong> graça de<br />
1817. Temos assim, ca<strong>da</strong> qual, a nossa i<strong>da</strong>de. Cá por mim, sei<br />
que carrego menos de 20 lustros, que o Sr. Schopenhauer registraria<br />
muito breve. Ora, se é ver<strong>da</strong>de que nosso corpo se renova<br />
mensalmente, ou anualmente – se assim o preferirem – que é que<br />
envelhece em nós?<br />
Digamo-los ain<strong>da</strong> uma vez: não serão essas moléculas constitutivas<br />
do corpo, que ain<strong>da</strong> há pouco não nos pertenciam e<br />
integravam-se num frango ou numa perdiz, num grão de trigo ou<br />
de sal, numa gota de vinho ou de café, por nós absorvidos, e que,<br />
ao demais, são imutáveis e, como coisa morta, não podem envelhecer.<br />
Logo, existe em nós alguma coisa além dessas moléculas.<br />
Nosso organismo tem envelhecido.<br />
Prossigamos e entremos agora no âmago <strong>da</strong> questão. Permiti,<br />
antes de tudo, assi<strong>na</strong>lar que a todo instante a fraqueza do vosso<br />
sistema se traduz pela inconseqüência força<strong>da</strong> <strong>da</strong>s expressões.<br />
Sois os primeiros a conceituar a velhice como uma falta de<br />
equilíbrio entre a recomposição e a elimi<strong>na</strong>ção. À vi<strong>da</strong>, ple<strong>na</strong>,<br />
normal, chamais equilíbrio funcio<strong>na</strong>l. Ensi<strong>na</strong>is que, havendo<br />
equilíbrio de sanguificação e elimi<strong>na</strong>ção, o corpo não se altera<br />
em sua provisão geral de matéria. Esse equilíbrio mantém-se <strong>na</strong><br />
i<strong>da</strong>de adulta. É possível pesar um homem de 30 a 40 anos, a<br />
longos intervalos, sem constatar qualquer alteração de peso que<br />
se não explique por ganho ou per<strong>da</strong> imediatamente precedente.<br />
Pois, muito bem: mas, pergunto eu, quem organiza esse equilíbrio?<br />
Pretendeis, bem sei, que não há força alguma interior a presidir<br />
a essa renovação molecular, mas tenho essa vossa pretensão<br />
como vani<strong>da</strong>de insustentável. A hipótese puramente materialista,<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a assimilação circulatória <strong>da</strong>s moléculas ao movimento<br />
do vapor no alambique ou <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de nos tubos de Geissier,
não explica o crescimento nem a vi<strong>da</strong>, nem a decadência, a<br />
senectude, a morte.<br />
Para que haja equilíbrio, para que haja organização no agenciamento<br />
<strong>da</strong>s moléculas, é preciso que haja direção. De resto,<br />
tanto como Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire, não negais essa<br />
direção. Mas, como conceber direção sem força motriz? Ousareis<br />
negá-lo? Essa força diretriz não é um amálgama de proprie<strong>da</strong>des<br />
confusas, antes é sobera<strong>na</strong>, necessária, pois é quem rege o turbilhão<br />
vital, assim como a atração rege o turbilhão de esferas<br />
planetárias.<br />
Se não houvesse em nós uma força diretora, como explicar a<br />
formação e o desenvolvimento do corpo, nos moldes do tipo<br />
orgânico, do berço ao túmulo? Porque, depois dos 20 anos, esse<br />
corpo que absorve tanto ar e tanto alimento, como <strong>da</strong>ntes, pára<br />
de crescer?<br />
Quem distribui harmonicamente to<strong>da</strong>s as substâncias assimila<strong>da</strong>s?<br />
Após o crescimento em altura, quem limita a espessura?<br />
Quem dá força ao homem maduro, quem repara de contínuo as<br />
peças <strong>da</strong> máqui<strong>na</strong> anima<strong>da</strong>?<br />
Sem admitir uma força orgânica, típica, vital (não nos atenhamos<br />
à palavra), como explicar a construção do corpo? O Sr.<br />
Scheffer diz que são as forças química e física. “Ca<strong>da</strong> qual – dilo<br />
ele – exerce sobre as outras uma influência que dá ao organismo,<br />
em to<strong>da</strong>s as suas peças, uma certa uniformi<strong>da</strong>de de ordem<br />
mais eleva<strong>da</strong>. As ações especiais <strong>da</strong>s forças individuais se conjugam,<br />
a seguir, num efeito total e formam uma resistência coorde<strong>na</strong>dora<br />
<strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes num todo unitário, em que<br />
se desenha o tipo fun<strong>da</strong>mental de to<strong>da</strong> a proprie<strong>da</strong>de individual.”<br />
Eis o que se pode chamar uma luminosa explicação. Somente<br />
resta explicar como se produziriam to<strong>da</strong>s essas maravilhosas<br />
combi<strong>na</strong>ções, à revelia de uma uni<strong>da</strong>de virtual, organizadora.<br />
Quem constrói esse organismo? Como podem as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />
matéria operar sobre um plano, em conformi<strong>da</strong>de com uma idéia<br />
que, por si, não podem ter? Como sabe o organismo, tão seguramente,<br />
escolher os alimentos que lhe convêm? Quem determi<strong>na</strong><br />
a reprodução fiel <strong>da</strong> espécie? É, portanto, mais fácil admitir<br />
todos os acasos, como diz Tissot, do que supor um princípio
essencialmente ativo, dotado de potência organizadora e com<br />
facul<strong>da</strong>des de exercê-la no sentido de tal ou tal tipo específico?<br />
“No homem, respondem, no seu conteúdo material e <strong>na</strong>s substituições<br />
de substância que nele se operam, a função química tem<br />
o seu papel, produz as partículas corporais capacita<strong>da</strong>s a servirem<br />
de suporte, ou substrato, de todo o edifício. Organiza-o a<br />
força vital, resultante de to<strong>da</strong>s as combi<strong>na</strong>ções e desta organização<br />
é que resulta a força espiritual.” Aí temos, patente, mero<br />
palavreado que <strong>na</strong><strong>da</strong> explica.<br />
Vários materialistas, e com eles Mulder, riem-se <strong>da</strong> doutri<strong>na</strong><br />
<strong>da</strong> força vital e comparam essa força a “uma batalha trava<strong>da</strong> por<br />
milhares de combatentes, como se não estivesse em jogo ape<strong>na</strong>s<br />
uma força que dispara os canhões, maneja os sabres, etc. O<br />
conjunto dos resultados, acrescenta Mulder, não é mais o resultado<br />
de uma única força, de uma força de batalha, mas a soma<br />
<strong>da</strong>s forças e combi<strong>na</strong>ções inúmeras, em ativi<strong>da</strong>de num tal acontecimento.”<br />
Concluem, assim, que a força vital não é causa, mas<br />
efeito.<br />
À comparação não falta justeza e tem, ao demais, a i<strong>na</strong>preciável<br />
virtude de aproveitar mais a nós do que aos seus próprios<br />
imagi<strong>na</strong>dores. De fato, é evidente, o que constitui a força de um<br />
exército e ganha a peleja não é tão só o esforço particular de<br />
ca<strong>da</strong> combatente, mas, sobretudo, a direção global, a inteligência<br />
do generalíssimo, o plano <strong>da</strong> batalha, a ordem sobera<strong>na</strong> que, do<br />
cérebro do organizador, se irradia aos subchefes e vai, através<br />
dos batalhões, até aos sol<strong>da</strong>dos, molas arregimenta<strong>da</strong>s.<br />
Convencer-se-á alguém que não foi Napoleão quem venceu<br />
em Austerlitz? Perguntem a Thiers (que sabe mais do que o<br />
próprio Napoleão) se essas batalhas inolvidáveis, tanto quanto as<br />
ganhas e empenha<strong>da</strong>s de surpresa não revelam, acima do valor<br />
pessoal de ca<strong>da</strong> combatente, o gênio lugubremente célebre que<br />
vingava atirar ao túmulo, num relance de olhos, milhares de<br />
criaturas em apogeu de força e ativi<strong>da</strong>de.<br />
Se a um exército se impõe, imprescindível, o governo de um<br />
chefe e que uma severa discipli<strong>na</strong> o abranja <strong>na</strong> uni<strong>da</strong>de de milhares<br />
de sol<strong>da</strong>dos, com maior soma de razão importa que uma
força governe a matéria, reduzindo à uni<strong>da</strong>de harmônica os<br />
milhões de moléculas que sucessivamente a conformam.<br />
Só mediante essa força é que existe o corpo, tal como se dá<br />
com o regimento, que, não sendo mais que uma enti<strong>da</strong>de abstrata,<br />
existe por virtude de lei, antes que pelo valor de ca<strong>da</strong> sol<strong>da</strong>do.<br />
Chegam os conscritos novos, dá-se baixa aos velhos e de sete em<br />
sete anos está o regimento renovado. Nesse período, há licenças<br />
temporárias, engajamentos particulares e uma que outra modificação<br />
<strong>na</strong>s moléculas componentes do exército. Desculpem: ca<strong>da</strong><br />
oficial ou sol<strong>da</strong>do não é mais que um número, sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />
não entra em linha de conta. Podem os oficiais ser comparados<br />
aos zeros <strong>da</strong> ordem decimal, ou, por falar com mais elegância –<br />
chefes de deze<strong>na</strong>s ou cente<strong>na</strong>s; mas, singularmente considera<strong>da</strong>,<br />
sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de pouco mais vale que um caçador. Os próprios<br />
coronéis mu<strong>da</strong>m, sem que o regimento deixe de existir <strong>na</strong> sua<br />
forma idêntica. Sofrem os generais, igualmente, essas transições,<br />
que em <strong>na</strong><strong>da</strong> prejudicam a existência <strong>da</strong>s respectivas briga<strong>da</strong>s e<br />
divisões. A hierarquia militar é uma uni<strong>da</strong>de e é nisso que reside<br />
a sua eficiência. Quanto às partes componentes <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de, não<br />
são conheci<strong>da</strong>s. Indubitável, que um coronel à testa do seu<br />
regimento, ou um general <strong>na</strong> ativa, têm mais importância, do<br />
ponto de vista do serviço, do que um simples gra<strong>na</strong>deiro; <strong>da</strong><br />
mesma forma que um átomo de gordura cerebral tem maior<br />
importância do que um folículo de unha.<br />
Mas, o que constitui o tronco, ou o nó, de uma fonte de galhos<br />
extensos não é por si mesmo a fonte integral. Logo, a comparação<br />
dos adversos aproveita mais à nossa do que à sua tese.<br />
Qual o homem culto, o observador de boa fé, que ousará negar<br />
seja o nosso organismo engendrado por uma força especial?<br />
Qual a diferença de um cadáver para um corpo vivo? Há duas<br />
horas que o coração de tal homem deixou de bater; ei-lo estendido<br />
no leito funerário, a vi<strong>da</strong> escapou-se-lhe independente de<br />
qualquer lesão, sem que houvesse distúrbio orgânico. Seu estado<br />
desafia autópsia minuciosa. Quimicamente falando, não há<br />
diferença alguma entre este e o corpo que vivia esta manhã. Em<br />
que diferem, repito, o corpo vivo e o ca<strong>da</strong>vérico? Pela vossa<br />
teoria, eles não diferem, têm o mesmo peso, tamanho, forma.
São os mesmos átomos, as mesmas moléculas, as mesmas proprie<strong>da</strong>des<br />
físico-químicas. Chegais mesmo a ensi<strong>na</strong>r que essas<br />
proprie<strong>da</strong>des estão inviolavelmente liga<strong>da</strong>s aos átomos. Aí<br />
temos, portanto, o mesmo ser!<br />
Mas, não vedes que uma tal conseqüência vale por conde<strong>na</strong>ção<br />
formal do vosso sistema?<br />
Porque a ver<strong>da</strong>de é que um ser vivo difere, evidentemente, de<br />
um morto. Isso é coisa tão vulgarmente sabi<strong>da</strong>, que não podeis<br />
contestar. Confessai, pois, que uma hipótese que ensi<strong>na</strong> não ser a<br />
vi<strong>da</strong> senão um conjunto de proprie<strong>da</strong>des químico-atômicas, cai<br />
pela base e pela cúpula, de vez que, <strong>na</strong>scimento e morte, alfa e<br />
ômega de to<strong>da</strong> a existência, protestam vitoriosamente contra as<br />
conclusões dessa hipótese.<br />
Chega a ser quase ultrajante para a inteligência huma<strong>na</strong> a<br />
obrigação de sustentar que um corpo vivo difere de um morto e<br />
que neste já não existe força anímica. Afirmar que a vi<strong>da</strong> é algo é<br />
assim como afirmar que há luz em pleno dia. Devemos, porém,<br />
ensejar a que os antagonistas de além-Reno venham pôr os<br />
pontos nos is.<br />
Preciso se faz que seja a força constitutiva <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> uma força<br />
muito especial, visto que, frente a ela, as moléculas corporais se<br />
distribuem harmônicas, numa uni<strong>da</strong>de fecun<strong>da</strong>, ao passo que em<br />
sua ausência essas mesmas moléculas se separam, se desconhecem,<br />
se combatem e deixam logo cair em total dissolução esse<br />
organismo que se faz pó.<br />
Preciso, também, se faz que essa mesma força exista de uma<br />
forma particularíssima, pois que, de um lado, não sendo vivos<br />
todos os corpos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e, de outro lado, sendo os corpos<br />
vivos compostos com o mesmo material dos inorgânicos, diferem,<br />
contudo, dos primeiros, pelas especiais e admiráveis proprie<strong>da</strong>des<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Preciso, ain<strong>da</strong>, seja a vi<strong>da</strong> uma força sobera<strong>na</strong>, visto não passar<br />
o corpo de um turbilhão de elementos transitórios, em mutação<br />
constante de to<strong>da</strong>s as suas partes, persistindo ela, enquanto<br />
que a matéria passa.
Concluir-se-á, <strong>da</strong>í, com Buffon, que haja no mundo duas espécies<br />
de moléculas, isto é: orgânicas e inorgânicas?<br />
Que as primeiras sejam células vivas, dota<strong>da</strong>s de sensibili<strong>da</strong>de<br />
e irritabili<strong>da</strong>de, a passarem-se de um a outro ser vivo sem se<br />
imiscuírem nos corpos inorgânicos, enquanto que as segun<strong>da</strong>s<br />
não entram <strong>na</strong> constituição geral <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>?<br />
Mas a Química orgânica demonstrou, à sacie<strong>da</strong>de, que os<br />
elementos <strong>da</strong> matéria vivifica<strong>da</strong> são os mesmos que os do mundo<br />
mineral, ou aéreo, o que vale por dizer elementarmente oxigênio,<br />
hidrogênio, azoto, carbono, ferro, cal, etc.<br />
Dir-se-á, então, com o botânico Dutrochet e com o a<strong>na</strong>tomista<br />
Bichat, que a vi<strong>da</strong> seja uma exceção temporária às leis gerais <strong>da</strong><br />
matéria, uma suspensão acidental <strong>da</strong>s leis físico-químicas, que<br />
acabam sempre imolando o ser ao governo <strong>da</strong> matéria? Mas é<br />
uma idéia que não vacilamos em proclamar errônea, de vez que a<br />
vi<strong>da</strong> é o alvo mais elevado e mais fulgurante <strong>da</strong> Criação, a<br />
perpetuar-se através <strong>da</strong>s espécies, desde os primórdios do mundo.<br />
De resto, digam e pensem como entenderem, a vi<strong>da</strong> não deixará<br />
de ser uma força, superior às afini<strong>da</strong>des elementares <strong>da</strong><br />
matéria.<br />
O que caracteriza os seres vivos é a força orgânica que agluti<strong>na</strong><br />
essas moléculas, segundo a conformação específica dos<br />
indivíduos e conforme o seu tipo específico. “As ver<strong>da</strong>deiras<br />
molas de nosso organismo – dizia Buffon – não são estes músculos,<br />
artérias e veias, mas forças interiores, que não obedecem de<br />
modo algum às leis <strong>da</strong> grosseira mecânica por nós imagi<strong>na</strong><strong>da</strong> e<br />
às quais tudo desejaríamos subordi<strong>na</strong>r 21 .” Em vez de procurarem<br />
conhecer as forças por seus efeitos, trataram de as afastar e até<br />
banir <strong>da</strong> Filosofia. Elas reapareceram, contudo, e mais imponentes<br />
que nunca.<br />
Cuvier, mais explícito, o declara, de vez que observara diretamente<br />
não passar a matéria de simples “depositária <strong>da</strong> força,<br />
por esta constrangi<strong>da</strong>, de antemão, a marchar no mesmo sentido<br />
que ela, bem como que a forma dos corpos lhe é mais essencial
que a matéria, visto que esta transmu<strong>da</strong>, enquanto que aquela se<br />
conserva”.<br />
As experiências de Flourens, sobretudo, evidenciaram a mutabili<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> matéria, a contrastar com a permanência <strong>da</strong> força,<br />
que, a bem dizer, é o que tem de essencial o ser. Uma dessas<br />
experiências consiste em submeter um animal, durante trinta<br />
dias, ao regime <strong>da</strong> granza, que, sabemo-lo, é uma substância que<br />
tinge de vermelho os objetos dela impreg<strong>na</strong>dos. No fim de um<br />
mês o animal apresenta um esqueleto de cor vermelha. Em se lhe<br />
<strong>da</strong>ndo, a seguir, o alimento usual, os ossos entram a branquear,<br />
começando pelo centro, de vez que a renovação incessante, dos<br />
ossos como <strong>da</strong> carne, opera-se do interior para o exterior. Outra<br />
experiência consiste em descar<strong>na</strong>r um osso e rodeá-lo de um fio<br />
de plati<strong>na</strong>. Pouco a pouco, o anel de plati<strong>na</strong> se recobre de cama<strong>da</strong>s<br />
sucessivamente forma<strong>da</strong>s e acaba ficando no interior do<br />
osso. Eis que assim se renovam os ossos. A carne e os tecidos<br />
moles sofrem uma ação mais rápi<strong>da</strong>.<br />
Com Quatrefages verificamos “duas correntes contrárias a<br />
circularem <strong>na</strong>s profundezas do ser: uma extraindo incessante,<br />
molécula por molécula, alguma coisa do organismo, e outra<br />
reparando, relativamente, to<strong>da</strong>s as brechas que, por mais extensas,<br />
acarretariam a morte”. A força orgânica, que constitui o<br />
nosso ser, oculta-se sob a vestimenta variável <strong>da</strong> carne, mas nós<br />
sentimo-la palpitante em seu ardente vigor. Ela nos conforma,<br />
dirige, gover<strong>na</strong>. Atentai nesses representantes primitivos <strong>da</strong><br />
escala zoológica, nesses crustáceos protegidos de uma couraça<br />
contra as subversões <strong>da</strong> crosta terre<strong>na</strong>; detende-vos nesses anelídeos,<br />
nesses vermes que, seccio<strong>na</strong>dos, continuam a viver. Arrancai<br />
à lagosta uma pata e esta lhe re<strong>na</strong>scerá com todos os seus<br />
caracteres. Cortai-a de uma salamandra e vê-la-eis integralmente<br />
reconstituí<strong>da</strong>. Esmagai a cau<strong>da</strong> de um lagarto, ela lhe re<strong>na</strong>scerá.<br />
Seccio<strong>na</strong>i a minhoca em muitos pe<strong>da</strong>ços e ca<strong>da</strong> qual recuperará o<br />
que lhe falte. A flor de coral, destaca<strong>da</strong> de sua matriz, vai, através<br />
<strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, constituir nova árvore. Será a matéria, só por si,<br />
que opera tais coisas? Será que coisas tais não revelam a ação<br />
constante <strong>da</strong> força típica que modela os seres segundo a espécie,
e que, sem dúvi<strong>da</strong>, lhe é mais essencial do que as moléculas<br />
orgânicas com as suas proprie<strong>da</strong>des químicas?<br />
E, que haveremos de concluir <strong>da</strong> metamorfose dos insetos,<br />
essas formas transitórias, <strong>na</strong>s quais só a força persiste, através<br />
<strong>da</strong>s fases de letargia e ressurreição? A fale<strong>na</strong> que adeja, no ar<br />
luminoso, não será o mesmo ser há pouco existente <strong>na</strong> larva ou<br />
<strong>na</strong> lagarta?<br />
Diante de fatos que tais é claro, incontroverso, que uma força,<br />
seja qual for (o nome pouco importa), organiza a matéria, segundo<br />
a forma típica <strong>da</strong>s espécies, animais vegetais.<br />
Ora, nossos contraditores não vacilam em afirmar que <strong>na</strong><strong>da</strong><br />
existe, absolutamente, e que tudo se pode explicar com as proprie<strong>da</strong>des<br />
químicas <strong>da</strong>s moléculas. Pretende, Moleschott, que “o<br />
conjunto <strong>da</strong>s circunstâncias, esse estado mediante o qual a afini<strong>da</strong>de<br />
material engendra as mesmas formas persistentes, recebeu<br />
de Henle, a exemplo de Scheiling, o nome de força típica. Esta<br />
força típica é um pequeno passo precedente à força vital, visto<br />
comportar tantos estados de matéria quantos sejam os órgãos e as<br />
espécies. Mas, a força padronizadora de plantas e animais é uma<br />
idéia tão oca, tão pueril quanto à <strong>da</strong> força vital a que se radica.”<br />
O Sr. Wirchow chama-lhe pura superstição, incapaz de negar<br />
parentesco com a crença demoníaca e com a pesquisa <strong>da</strong> pedra<br />
filosofal.<br />
Quanto ao autor do Estudo de Filosofia Positiva, esse fecha<br />
os olhos e clama: – “de real só há corpos”.<br />
Bois-Reymond, a seu turno, declara, em uma obra sobre a<br />
eletrici<strong>da</strong>de animal, que a pretensa força vital não passa de<br />
quimera.<br />
Se os nossos antagonistas se obsti<strong>na</strong>m em sustentar que os<br />
organismos estão submetidos a forças intrínsecas, não têm mais<br />
do que afirmar o seguinte: – “a molécula material, entrando no<br />
turbilhão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, recebe por algum tempo o dom de novas<br />
forças e tor<strong>na</strong> a perdê-las quando o turbilhão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, agastado, a<br />
rejeite definitivamente <strong>na</strong>s plagas <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> i<strong>na</strong>nima<strong>da</strong>”.<br />
É um raciocínio falso, o desses senhores, de vez que basta à<br />
molécula a só entra<strong>da</strong> no turbilhão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> para que se comporte
de conformi<strong>da</strong>de com o tipo individual que momentaneamente a<br />
retém. Para conservar o cepticismo, são obrigados, qual já o<br />
vimos, a fazer vista grossa à diferença que distingue o corpo vivo<br />
do ca<strong>da</strong>vérico. Não se pode haver mais por duvidosa, <strong>na</strong> opinião<br />
de Du Bois-Reymond, a questão de saber “se a diferença – única<br />
cuja possibili<strong>da</strong>de admitimos – entre os fenômenos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong><br />
viva e morta, existe realmente. Uma diferença dessa espécie não<br />
existe. Nos organismos, forças novas não se agregam às moléculas<br />
materiais, nem força alguma que não esteja em ativi<strong>da</strong>de fora<br />
dos organismos. Portanto, não há forças que se possam chamar<br />
vitais. A separação entre supostas <strong>na</strong>turezas, orgânica e inorgânica,<br />
é absolutamente arbitrária. Os que teimam em mantê-la, os<br />
que pregam a heresia <strong>da</strong> força vital, seja com que rótulo for,<br />
fiquem certos de haver jamais atingido as lindes do próprio<br />
raciocínio”.<br />
Note-se, de passagem, esta firmeza e mais este leve tom de<br />
arrogância com que se referem aos que divergem <strong>da</strong>s suas teorias.<br />
Veja-se como emitem as mais contestáveis proposições.<br />
“As proprie<strong>da</strong>des do azoto, do carbono, do hidrogênio, do<br />
oxigênio, do enxofre, do fósforo – afirmam – existem de to<strong>da</strong> a<br />
eterni<strong>da</strong>de. Provem-nos o contrário... Calam-se? É que não têm<br />
razão? E com isso, está ganha a parti<strong>da</strong>. As proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />
matéria não podem mu<strong>da</strong>r, quando entra <strong>na</strong> composição de<br />
vegetais e animais. Logo, é evidente que a hipótese de uma força<br />
peculiar à vi<strong>da</strong> é absolutamente quimérica!”<br />
Objetam, enfim, que essa força não existe, porque “força sem<br />
substrato material é idéia abstrata, desprovi<strong>da</strong> de senso”.<br />
Por nós, não vemos a necessi<strong>da</strong>de de admitir que não exista<br />
uma força típica, ou que essa força seja extrínseca à matéria. Os<br />
nossos negativistas incidem, aqui, no mesmo erro de quando se<br />
trata <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>, que declaram só possível de conceber<br />
fora do mundo. É sempre o mesmo princípio que está em<br />
jogo. Ao demais, nos seria fácil demonstrar que todos os conhecimentos<br />
humanos se reduzem, última ratio, à noção <strong>da</strong> força e<br />
<strong>da</strong> extensão; poderíamos invocar o testemunho <strong>da</strong> Matemática,<br />
<strong>da</strong> Física, <strong>da</strong> Química, <strong>da</strong> História Natural em seus três reinos:<br />
Mineralogia, Botânica, Zoologia; a ciência do homem: Psicolo-
gia, Estética, Moral, Teologia <strong>na</strong>tural, Filosofia; ciências que,<br />
to<strong>da</strong>s, iriam esbarrar no mesmo nó substancial, isto é, a força e a<br />
extensão. Não cabe, entretanto, fazer aqui um dicionário. Bastenos<br />
considerar do ponto de vista <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> esta dupla questão e<br />
notar, igualmente, o predomínio <strong>da</strong> força sobre a extensão.<br />
Bichat definia a vi<strong>da</strong> como conjunto de funções que resistem<br />
à morte. Sem tomarmos puerilmente, ao pé <strong>da</strong> letra, essa definição,<br />
perguntamos: qual a primeira imagem que nos oferece o<br />
exame <strong>da</strong> estrutura de um vegetal ou de um animal? Certo, é a<br />
coorde<strong>na</strong>ção <strong>da</strong>s funções orgânicas que constituem o ser vivente.<br />
E que será essa coorde<strong>na</strong>ção, senão um sistema de forças desti<strong>na</strong><strong>da</strong>s<br />
a movimentar a máqui<strong>na</strong> anima<strong>da</strong>?<br />
Deste ponto de vista, o que a tudo sobreleva é a idéia dinâmica.<br />
Bani<strong>da</strong> ela, o que nos fica é <strong>na</strong><strong>da</strong> mais que um cadáver.<br />
Se, <strong>da</strong> descrição do órgão apropriado ao seu funcio<strong>na</strong>mento e<br />
desse conceito de forças particulares remontarmos ao conjunto<br />
do seu e à sua conservação, desde o começo ao fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />
concluiremos com Cuvier que “a vi<strong>da</strong> é um turbilhão contínuo,<br />
cuja diretiva, por mais complexa que seja, permanece constante,<br />
tal como a espécie de moléculas que consigo arrasta, mas não as<br />
moléculas individuais em si mesmas”. Aqui, ain<strong>da</strong> há reconhecer<br />
a presença <strong>da</strong> força, que, através <strong>da</strong> incessante mutação dos<br />
corpos, lhes assegura e conserva a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> forma. Ela –<br />
essa força – é pois a característica principal de todo organismo. E<br />
frisamos estas palavras de Cuvier: “as moléculas individuais<br />
circulam perpetuamente, mas a espécie permanece sempre<br />
idêntica”. Essa permanência devemo-la à força.<br />
Que sucederia, por exemplo, se ape<strong>na</strong>s a forma se salvaguar<strong>da</strong>sse<br />
e nenhuma direção virtual presidisse à eleição <strong>da</strong>s moléculas<br />
químicas? Teríamos, a breve trecho, o mais heterogêneo dos<br />
corpos imagináveis, ain<strong>da</strong> que guar<strong>da</strong>ndo a perfeição <strong>da</strong> sua<br />
formação.<br />
Imagi<strong>na</strong>i, por exemplo, que o elemento essencial de uma face<br />
clara de neve, que o coralino de uns lábios, a gracili<strong>da</strong>de de uma<br />
boca, o matiz expressivo de uns olhos puleros, fossem, ocasio<strong>na</strong>lmente,<br />
refeitos por moléculas de outra espécie, como, por
exemplo, do iodo, que se tor<strong>na</strong> negro ao contacto <strong>da</strong> luz, do<br />
ácido butírico, fundente ao Sol, ou de um sal qualquer, solúvel<br />
pela umi<strong>da</strong>de, etc... Que belos espécimes <strong>da</strong>ria assim a Humani<strong>da</strong>de!<br />
E contudo, eis aí ao que se chega, em negando a existência<br />
de uma força vital.<br />
Passando do indivíduo à espécie, ain<strong>da</strong> aí notamos o predomínio<br />
necessário <strong>da</strong> força. Se ca<strong>da</strong> indivíduo se mantém vivo, é<br />
graças à sua dinâmica íntima. Se as espécies vegetais ou animais<br />
permanecem, é graças à força inicial que, só ela, pode caracterizar<br />
a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> espécie, transmissível à descendência e<br />
existente em estado latente, ou sensível, no óvulo vegetal como<br />
no óvulo animal.<br />
Como pôde este carvalho enorme sair <strong>da</strong> ínfima bolota caí<strong>da</strong><br />
ao solo? Como se fez carvalho, ao lado <strong>da</strong> fava que expeliu a<br />
faia; <strong>da</strong> batata, que engendrou o pinheiro; <strong>da</strong> amêndoa, que se<br />
fez tumba do pilriteiro desdobrando-se em bagas escarlates; ou<br />
ain<strong>da</strong>, ao lado do grão de trigo e de aveia, <strong>na</strong> mesma terra, com o<br />
mesmo sol e a mesma chuva; em suma: <strong>na</strong>s mesmíssimas condições?<br />
Porque será que os elefantes de hoje são exatamente idênticos<br />
aos de que Pyrrhus se utilizava, há 20 séculos, e o corvo de Noé<br />
(se é que Noé existiu) se vestia do mesmo luto destes que aí<br />
sulcam os nossos céus de Setembro? Certo, porque o germe<br />
orgânico não reside somente <strong>na</strong> estrutura a<strong>na</strong>tômica, mas, também<br />
e sobretudo, em uma força especial que se encarrega, sem<br />
enganos possíveis, <strong>da</strong> organização do ser, de modo a não <strong>da</strong>r a<br />
um cavalo uma cabeça de carneiro, nem a um coelho uns pés de<br />
pato!<br />
Afirmando tão apaixo<strong>na</strong><strong>da</strong>mente a inexistência de uma força<br />
especial nos seres vivos e que a vi<strong>da</strong> mais não é que o resultado<br />
<strong>da</strong> presença simultânea <strong>da</strong>s moléculas constitutivas do animal ou<br />
vegetal, justo seria procurassem, os arautos de tão au<strong>da</strong>ciosas<br />
afirmativas, comprová-las experimental e ain<strong>da</strong> que modestamente.<br />
Improvisai um único, e o mais ínfimo ser vivo, e... nós<br />
nos renderemos. Vejamos: aqui está uma garrafa com carbo<strong>na</strong>to<br />
de amoníaco, cloreto de potassa, fosfato de so<strong>da</strong>, cal, magnésia,<br />
ferro, ácido sulfúrico e sílica.
Sois vós mesmos a confessá-lo 22 que nesse frasco está contido<br />
o princípio vital, completo, de plantas e animais. Fazei, portanto,<br />
uma plantinha, um só bichinho... Como assim? Calai-vos? Na<strong>da</strong><br />
obstante, sois patrícios de Goethe! Não vos lembrais do lúgubre<br />
laboratório de Wagner, atochado de aparelhos esquisitos, disformes;<br />
de fornos e cubos desti<strong>na</strong>dos a fantásticas experiências?<br />
Ele, Wagner, já tem <strong>na</strong>s mãos a garrafa.<br />
Apelai para a vossa memória e ouvi a ce<strong>na</strong> maravilhosa do<br />
eterno Mefistófeles a dialogar com o alquimista.<br />
Wagner, atento ao forno: “O sino tangeu, percussão formidável!<br />
Abalou as paredes negras, ferrugentas. Oh! a incerteza desta<br />
expectativa tão solene não pode prolongar-se muito. As trevas<br />
como que se desfazem, estou a ver no fundo <strong>da</strong> lente algo que<br />
reduz 23 como carbono vivo, ou, melhor, como esplêndido diamante,<br />
a clarear de mil facetas a escuridão ambiente. Agora, uma<br />
luz pura, branquíssima. Bem, desta vez espero que não escapara...<br />
ah! maldição, quem bate assim à porta, justamente...<br />
Mefistófeles: (entrando) – Que há?<br />
Wagner: (baixinho) – Está-se fabricando um homem...<br />
Mefistófeles: – Um homem? Mas, que amoroso casal meteste<br />
aí nessa chaminé?<br />
Wagner: – Ora, valha-me <strong>Deus</strong>! Essa velha fórmula de procriar<br />
já foi, há muito, reconheci<strong>da</strong> um simples gracejo. O foco<br />
sutil de onde brotava a vi<strong>da</strong>, a força suave que de si exalava, e<br />
tomava e <strong>da</strong>va, desti<strong>na</strong><strong>da</strong> a formar-se por si mesma, alimentando-se<br />
a princípio <strong>da</strong>s substâncias circunvizinhas e, a seguir, de<br />
substâncias estranhas, tudo isso caducou e perdeu o seu prestígio.<br />
Se o animal ain<strong>da</strong> lhe encontra prazer, ao homem convém,<br />
por dotado de mais nobres quali<strong>da</strong>des, uma origem mais pura e<br />
mais alta. (Voltando-se para a for<strong>na</strong>lha) Quanto brilho! veja...<br />
Dora em diante, é lícito esperar que, se de cem matérias, e por<br />
mistura – pois tudo depende <strong>da</strong> mistura – conseguimos com<br />
facili<strong>da</strong>de compor a massa huma<strong>na</strong>, aprisioná-la num alambique,<br />
coobá-la a preceito, a obra se completará em silêncio. (Voltandose<br />
de novo para a for<strong>na</strong>lha) É o que está sucedendo: a mesma<br />
clareia-se e mais convicto me deixa, a ca<strong>da</strong> instante. Tentamos,
judiciosamente, experimentar o que se chamava – mistérios <strong>da</strong><br />
<strong>Natureza</strong> – e o que ela produzia outrora, organizando, fazemo-lo<br />
hoje cristalizando.<br />
Mefistófeles: – A experiência vem com a i<strong>da</strong>de e a quem quer<br />
que tenha vivido bastante, <strong>na</strong><strong>da</strong> ocorre de novo, <strong>na</strong> Terra. Por<br />
mim, confesso que <strong>na</strong>s minhas viagens encontrei, bastas vezes,<br />
muita gente cristaliza<strong>da</strong>...<br />
Wagner: (que não tirara o olho <strong>da</strong> sua lente) – A coisa está<br />
crescendo, brilhando, fervendo... Um instante mais e a obra<br />
estará consuma<strong>da</strong>. Não há ideal grandioso que à primeira vista<br />
não pareça insensato; contudo, doravante, queremos sobrancear<br />
o acaso e dessarte, futuramente, um pensador não deixará de<br />
fabricar um cérebro pensante...<br />
(Contemplando a redoma embevecido) O cristal retine, vibra;<br />
comove-o uma força encantadora, ele como que se perturba e se<br />
aclara, o sucesso não tar<strong>da</strong>. Já estou a ver a forma elegante de<br />
um homenzinho gesticulando... Que mais desejar? Que pode o<br />
mundo querer de melhor? Eis o mistério a desnu<strong>da</strong>r-se! Atenção!<br />
Esse timbre se articula, vozeia, fala!<br />
Homúnculo: (de dentro <strong>da</strong> redoma, para Wagner)<br />
– Bom dia, papai! então sempre era ver<strong>da</strong>de, hein? Toma-me,<br />
aconchega-me ao teu seio com ternura, mas, olha, não me apertes<br />
muito, senão... quebras o vidro. Isso é a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s coisas:<br />
ao que é <strong>na</strong>tural, só o Universo pode bastar; mas o artificial, ao<br />
contrário, reclama o limitado. (Voltando-se para Mefistófeles)<br />
Tu aqui? Velhaco... Mas, ain<strong>da</strong> bem que o momento é azado e<br />
graças dou porque boa estrela te trouxe a nós. Já que estou no<br />
mundo, quero agir e meter desde logo mãos à obra. Hábil és tu<br />
para me desbravar o caminho.<br />
Wagner: – Uma palavra ain<strong>da</strong>... Até aqui, muitas vezes me vi<br />
indeciso, quando moços e velhos me vêm cumular de problemas.<br />
Ninguém, por exemplo, ain<strong>da</strong> compreendeu como a alma e o<br />
corpo, tão intimamente conjugados e ajustados entre si, a ponto<br />
de os julgarmos para sempre inseparáveis, vivem em luta sem<br />
tréguas e chegam a envene<strong>na</strong>r a própria existência... e depois...
Mefistófeles: – Alto lá! Eu antes quisera saber a razão por<br />
que o homem e a mulher não se entendem. Esta é uma questão<br />
que te há de custar a resolver. Isso é o que vale tentar e o petiz<br />
deseja fazê-lo...“<br />
Voltai, porém, a pági<strong>na</strong> do libreto. Vamos ao 1º ato, é Fausto,<br />
é a velha e nova Ciência quem fala:<br />
Como tudo se movimenta para o trabalho universal! Como<br />
operam e cooperam as ativi<strong>da</strong>des to<strong>da</strong>s, umas pelas outras!<br />
Como sobem e descem as forças, a permutar de mão em mão<br />
seus vasos de ouro, a tocá-los com as suas asas que exalam,<br />
nesse vaivém, do céu à Terra, uma como bênção de universal<br />
harmonia!<br />
“Estupendo espetáculo! Mas... ó tortura! <strong>na</strong><strong>da</strong> mais que espetáculo!<br />
Onde apreender-te, ó <strong>Natureza</strong>! Ó fontes de to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>!<br />
que abranjeis e nutris céus e terras, onde estais? Para vós se<br />
voltam os seios desnutridos, correis aos borbotões, inun<strong>da</strong>is o<br />
mundo, enquanto em vão me consumo.”<br />
Sim. Em vão vos consumis, tentando reivindicar para o homem<br />
a obra do Criador. É em vão que escreveis: A onipotência<br />
criadora é a afini<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>... Com todo o vasto conhecimento<br />
<strong>da</strong> matéria e <strong>da</strong>s suas proprie<strong>da</strong>des, não conseguistes engendrar<br />
sequer um cogumelo.<br />
Creio, porém, que de o fazer decimais e vos desculpais. O<br />
que não podemos, pode a <strong>Natureza</strong>, visto que ela ain<strong>da</strong> é mais<br />
hábil que nós. (Bela modéstia, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de.) Mas, então, que<br />
fazeis <strong>da</strong> inteligência, uma vez que, por outro lado, presumis não<br />
haver espírito <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>? Mas vamos adiante. Demais – acrescentais<br />
argutamente –, se ain<strong>da</strong> não produzimos seres vivos por<br />
processos químicos, temos, to<strong>da</strong>via, produzido matérias como,<br />
por exemplo, o ácido característico <strong>da</strong> uri<strong>na</strong>, e o óleo essencial<br />
<strong>da</strong> mostar<strong>da</strong> (éter alilsulfociânico), o que muito nos lisonjeia.<br />
Detenhamo-nos, pois, um instante, <strong>na</strong>s decisivas manipulações<br />
destes ilustres químicos.<br />
A partir dos fins do último século, como adverte Alfredo<br />
Maury 24 , tem-se reconhecido que as matérias que se desenvolvem<br />
nos vegetais e nos animais, recolhi<strong>da</strong>s dos seus restos,
encerram quase exclusivamente carbono, oxigênio, hidrogênio e<br />
azoto. Daí se concluiu serem estes quatro corpos os princípios<br />
básicos elementares de to<strong>da</strong>s as substâncias orgânicas e que se<br />
encontram muitas vezes combi<strong>na</strong>dos com alguns outros corpos<br />
simples e diversos sais minerais.<br />
Este primeiro resultado nos ensinou que, se vegetação e vi<strong>da</strong><br />
são forças à parte, insusceptíveis de se confundirem com o<br />
simples movimento, com a afini<strong>da</strong>de e a coesão, elas de si <strong>na</strong><strong>da</strong><br />
criam e ape<strong>na</strong>s apropriam o material do reino mineral que as<br />
rodeia. De fato, os quatro elementos orgânicos existem inteiramente<br />
formados <strong>na</strong> atmosfera. O ar é um composto de oxigênio e<br />
azoto, associados à peque<strong>na</strong> porção de ácido carbônico, ou seja<br />
de carbono combi<strong>na</strong>do com o oxigênio. A atmosfera tem, ao<br />
demais, em suspensão, o vapor d'água e ninguém ignora que a<br />
água é um composto de oxigênio e hidrogênio. Portanto, as<br />
matérias orgânicas tiram dessa massa fluídica e inorgânica que<br />
as envolve e compenetra o nosso globo os elementos de sua<br />
composição. Quanto às outras substâncias encontra<strong>da</strong>s, por<br />
assim dizer, acidentalmente, em sua trama, são apropria<strong>da</strong>s do<br />
solo. As plantas os sugam e os animais, nutrindo-se <strong>da</strong>s plantas,<br />
os assimilam.<br />
A Química pode criar imediatamente esses elementos orgânicos<br />
e foi o Sr. Büchner o primeiro a proclamá-lo, com entusiasmo.<br />
Os químicos fizeram o açúcar de uva bem como vários<br />
ácidos orgânicos. Criaram, dizem, diferentes bases orgânicas e<br />
entre elas a uréia, substância orgânica por excelência, em desmentido<br />
aos médicos que os argüiam de incapazes de obter<br />
produtos do organismo. Dia a dia vemos aumentarem as experiências<br />
químicas no sentido de criar combi<strong>na</strong>ções. O Sr. Berthelot<br />
conseguiu engendrar, de corpos inorgânicos, os derivados <strong>da</strong>s<br />
combi<strong>na</strong>ções de carbono e hidrogênio e esta descoberta, mau<br />
grado ao seu desacordo com a <strong>na</strong>tureza orgânica, forneceu um<br />
ponto de parti<strong>da</strong> para a composição artificial dos corpos orgânicos.<br />
Hoje se fabrica o álcool e perfumes preciosos do carvão vegetal;<br />
<strong>da</strong> ardósia extraem-se velas; o ácido prússico, a uréia, a<br />
tauri<strong>na</strong> e quanti<strong>da</strong>de de corpos outros, havidos outrora por só
criados de substâncias vegetais ou animais, tor<strong>na</strong>m-se obteníveis<br />
de simples elementos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> inorgânica. Assim, apagou-se,<br />
graças a essas manipulações, a clássica distinção entre a <strong>Natureza</strong><br />
orgânica e inorgânica.<br />
Em 1828, produzindo uréia artificial, Woehler derrubou a velha<br />
teoria que sustentava só possíveis as combi<strong>na</strong>ções orgânicas<br />
engendra<strong>da</strong>s por corpos orgânicos. Em 1856, Berthelot criou o<br />
ácido fórmico com substâncias inorgânicas, isto é, óxido carbônico<br />
e água, aquecendo estas matérias com a potassa cáustica e<br />
sem cooperação de planta ou animal qualquer. Logo após, conseguiram<br />
diretamente desses elementos a síntese do álcool.<br />
Chegaram mesmo a produzir a gordura artificial do ácido oléico<br />
e <strong>da</strong> gliceri<strong>na</strong>, duas substâncias que se podem obter por processos<br />
exclusivamente químicos, e aí temos um dos resultados mais<br />
extraordinários até hoje conseguidos <strong>na</strong> Química sintética.<br />
Desses <strong>da</strong>dos, o autor de Força e Matéria concluiu que importa<br />
banir <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> Ciência a idéia de uma força orgânica,<br />
produtora dos fenômenos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, por maneira arbitrária e independente<br />
<strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Tal como ele, também repelimos<br />
o arbitrário, mas guar<strong>da</strong>mos a força. Ele nos garante que a pretendi<strong>da</strong><br />
distinção rigorosa entre o orgânico e o inorgânico é<br />
meramente arbitrária. Mas, nisso, tem contra si os representantes<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terre<strong>na</strong>, em sua totali<strong>da</strong>de.<br />
Sem embargo, Carl Vogt acrescenta que, “alegar a força vital,<br />
não passa de circunlóquio para mascarar ignorância, espécie de<br />
alçapões de que a Ciência está cheia e pelos quais se salvam<br />
sempre os espíritos superficiais, que recuam ante o exame de<br />
uma dificul<strong>da</strong>de, para somente se contentarem com milagres<br />
imaginários”.<br />
Neste caso, a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> força vital representaria hoje uma<br />
causa perdi<strong>da</strong>. “Nem os esforços dos <strong>na</strong>turalistas místicos, no<br />
intuito de reanimar essa sombra; nem os lamentos dos metafísicos<br />
esconjurando as pretensões e a irrupção iminente do materialismo<br />
fisiológico e contestando-lhe o contingente filosófico; nem<br />
as vozes isola<strong>da</strong>s que assi<strong>na</strong>lam fatos <strong>da</strong> Fisiologia ain<strong>da</strong> obscuros;<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> disso pode salvar a força vital de próxima e completa<br />
ruí<strong>na</strong>.
Há alguns anos, Bunsen e Playfer mostraram – diz o autor de<br />
A Circulação <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>, e Rieken confirmou logo após – que é<br />
possível obter cianogênio (combi<strong>na</strong>ção de azoto e hidrogênio) à<br />
custa de substância inorgânica. Por outro lado, sabemos que o<br />
hidrogênio, no momento em que se separa <strong>da</strong>s suas combi<strong>na</strong>ções,<br />
pode unir-se ao azoto para formar o amoníaco. De resto, pode-se<br />
ir do cianogênio ao amoníaco. Basta expor ao ar o cianogênio<br />
dissolvido em água, para que se vejam flocos par<strong>da</strong>centos desagregando-se<br />
do líquido, si<strong>na</strong>is de decomposição, em segui<strong>da</strong> à<br />
qual encontramos o ácido carbônico, o prússico, amoníaco,<br />
oxalato de amoníaco e uréia, dissolvidos no líquido. O ácido<br />
oxálico é uma combi<strong>na</strong>ção de carbono e oxigênio que, pela<br />
mesma quanti<strong>da</strong>de de carbono, não contém senão três quartos do<br />
peso de oxigênio e ácido carbônico. O ácido oxálico é o causador<br />
do pala<strong>da</strong>r acidulado de aze<strong>da</strong>, <strong>da</strong> oxáli<strong>da</strong> e de muitas plantas<br />
outras. É um ácido orgânico que, conforme acabamos de dizer,<br />
podemos preparar mediante corpos simples, sem o concurso de<br />
qualquer organismo.<br />
“Assim, ficamos agora conhecendo três substâncias – exclama<br />
Moleschott –: uma base orgânica – o amoníaco; um principio<br />
acidulante orgânico – o cianogênio, e um ácido orgânico – o<br />
oxálico, que podemos fabricar com corpos simples.<br />
“Não há muitos anos, acreditava-se possível preparar um e<br />
outro mediante decomposição de combi<strong>na</strong>ções orgânicas as mais<br />
complexas, mas ninguém imagi<strong>na</strong>ria obtê-las de elementos<br />
simples. No amoníaco temos uma combi<strong>na</strong>ção de azoto e hidrogênio,<br />
sem partilha de corpos orgânicos. Este enigma, que a<br />
esfinge <strong>da</strong> força vital nos antepunha como espantalho, para<br />
impedir o nosso avanço <strong>na</strong> preparação artificial <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções<br />
orgânicas, foi resolvido por Berthelot. Ele derrubou a esfinge e<br />
seus adoradores, substituindo-os por uma plêiade de investigadores,<br />
a cujas mãos passou os fios que lhes deverão servir para<br />
levar avante a trama <strong>da</strong>s descobertas, a fim de reproduzirem<br />
to<strong>da</strong>s as peças do mundo orgânico.”<br />
Acrescentamos que se obtém hoje o ácido acético, fazendo<br />
passar por três estados um combi<strong>na</strong>do de cloro e carbono, que<br />
são: percloreto de carbono, ácido cloracético e cloreto de carbo-
no, bem como que a combi<strong>na</strong>ção direta de carbono e hidrogênio<br />
dá a síntese do acetileno 25 .<br />
Mais fácil ain<strong>da</strong> é preparar o ácido fórmico com o só auxílio<br />
de corpos simples, qual o conseguiu o professor do Colégio de<br />
França, operando com a potassa úmi<strong>da</strong> sobre o gás óxidocarbônico,<br />
num globo de vidro à prova de fogo e por espaço de<br />
setenta e duas horas, à temperatura de 100 graus 26 .<br />
De resto, a <strong>Natureza</strong> extrai as substâncias orgânicas <strong>da</strong> mesma<br />
fonte a que recorrem os químicos em seus experimentos de<br />
laboratórios.<br />
Certamente, palmeamos a duas mãos (mesmo porque com<br />
uma só fora impossível) essas admiráveis tentativas <strong>da</strong> Ciência e<br />
não é a nós que poderiam reprochar embargos ao gênio criador<br />
do homem. Ele, o homem, está <strong>na</strong> Terra para conhecer a <strong>Natureza</strong><br />
e senhorear a matéria. O conhece-te a ti mesmo dos antigos se<br />
traduz em nossos dias pelo estudo do mundo exterior e é por esse<br />
estudo fecundo que ver<strong>da</strong>deiramente aprenderemos a conhecernos<br />
a nós mesmos.<br />
Acreditamos, com o Sr. Maury, que o alcance de tantas descobertas<br />
compensa de sobejo o esforço para as compreender.<br />
Que ciência nos poderá mais cativar do que a que nos revela a<br />
matéria de que nos constituímos e nos alimentamos; as substâncias<br />
com as quais estamos em contacto, os efeitos físicos que se<br />
operam dentro e fora de nós, onde transitam e como rejeitamos<br />
as partículas incessantemente assimila<strong>da</strong>s?<br />
Não são assuntos de somenos, estes, particularistas e momentâneos:<br />
antes são problemas que abrangem a humani<strong>da</strong>de física<br />
em sua totali<strong>da</strong>de, é o mundo dos seres a que pertencemos que<br />
está em jogo.<br />
Despendendo amiúde muito trabalho e inteligência para penetrar<br />
no dé<strong>da</strong>lo de mesquinhas controvérsias e fatos insignificantes,<br />
como descurarmos o que mais interessa, ou seja, esta maravilhosa<br />
<strong>Natureza</strong> no seio <strong>da</strong> qual <strong>na</strong>scemos, vivemos e morremos;<br />
que nos precede e nos sobrevive, fornecendo a to<strong>da</strong>s as<br />
gerações os princípios essenciais de sua própria existência?
Mas, nem por isso nos associamos às pretensas conseqüências<br />
que os senhores materialistas deduzem, conseqüências que os<br />
senhores Berthelot, Pasteur, e os químicos práticos são os primeiros<br />
a repudiar. Os materialistas presumem ter a chave mais<br />
difícil do enigma, uma vez que podem produzir gás artificial<br />
com os corpos simples. Misturando-se cia<strong>na</strong>to de potassa e<br />
sulfato de amoníaco, a potassa combi<strong>na</strong>-se com o ácido sulfúrico<br />
e o ácido ciânico com o amoníaco. Esta última combi<strong>na</strong>ção não é<br />
cianeto de amoníaco e sim uréia. Admirai agora a ilação: “É<br />
graças a esta brilhante descoberta que Liebig e Woehler abriram<br />
dilata<strong>da</strong>s perspectivas nessa via e conquistaram um eterno galardão,<br />
<strong>da</strong>ndo, um tanto involuntária e despreconcebi<strong>da</strong>mente, a<br />
prova de que, doravante, a flama <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> se resolve em forças<br />
físicas e químicas.” Que honra para Liebig e Woehler o serem<br />
assim arrastados para as <strong>na</strong>scentes do Aqueronte. Nossos adversários<br />
gostam desse rio e <strong>da</strong>s suas margens sombrias. “Certo –<br />
acrescentam –, o químico isento de preconceitos, que não fala a<br />
serviço do trono e do altar, contando tranqüilamente com a<br />
vitória certa, pode sorrir do pobre filósofo, cujo saber não ultrapassa<br />
o conhecimento <strong>da</strong> uréia e que acredita impor limites ao<br />
poder do fisiologista.” Que altar e que trono nomeariam ministros<br />
uns tais lógicos? A própria Ciência vive retraí<strong>da</strong> em seu<br />
santuário e os deixa ron<strong>da</strong>r o tempo, a repicar o sino e fazer<br />
evoluções.<br />
Que conclusão definitiva tira a escola materialista dessas manipulações?<br />
A de que a Química e a Física nos oferecem provas<br />
evidentes de que as forças conheci<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>s substâncias inorgânicas,<br />
exercem a sua ação, tanto em a <strong>Natureza</strong> viva como <strong>na</strong><br />
morta.<br />
Pela mesma razão que os obrigou a divinizar a matéria, em<br />
substituição a <strong>Deus</strong>, vemo-los animar, sem cerimônias, a matéria<br />
para destro<strong>na</strong>r a vi<strong>da</strong>.<br />
“As ciências – diz o autor de Força e Matéria – perseguiram<br />
e demonstraram a ação dessas forças no organismo de plantas e<br />
animais e, às vezes, até <strong>na</strong>s combi<strong>na</strong>ções mais sutis. No presente,<br />
está geralmente constatado que a Fisiologia, ou seja a ciência <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, já não pode prescindir <strong>da</strong> Química e <strong>da</strong> Física e que ne-
nhum processo fisiológico se opera à revelia <strong>da</strong>s forças químicas<br />
e físicas.”<br />
“A Química – diz a seu turno Miahle – tem, incontestavelmente,<br />
parte <strong>na</strong> criação, no crescimento, <strong>na</strong> existência de todos<br />
os seres vivos, seja como causa ou como efeito. As funções <strong>da</strong><br />
respiração, <strong>da</strong> digestão, <strong>da</strong> assimilação e <strong>da</strong> secreção não se<br />
realizam senão por meio <strong>da</strong> Química. Só ela nos pode desven<strong>da</strong>r<br />
os segredos <strong>da</strong>s importantíssimas funções orgânicas.”<br />
O hidrogênio, o oxigênio, o carbono, o azoto, declaram-no<br />
enfaticamente os materialistas, entram <strong>na</strong>s mais diversas condições<br />
de combi<strong>na</strong>ções nos corpos e agregam-se, separam-se,<br />
atuam obedientes às mesmas leis que os regem fora desses<br />
corpos. Os próprios corpos compostos podem apresentar os<br />
mesmos caracteres. A água, a mais volumosa substância de todos<br />
os seres orgânicos, sem a qual não há vi<strong>da</strong> animal nem vegetal,<br />
penetra, amolece, dissolve, adere, cai, segundo as leis do peso, e<br />
evapora-se, precipita-se, forma-se dentro como fora dos organismos.<br />
As substâncias inorgânicas, os sais calcários que a água<br />
contém em estado de composição, ela os deposita nos ossos dos<br />
animais ou no vaso <strong>da</strong>s plantas, onde essas substâncias afetam a<br />
mesma solidez que no domínio inorgânico. O oxigênio <strong>da</strong> atmosfera,<br />
que, nos pulmões, entra em contacto com o sangue venoso,<br />
de cor negra, comunica-lhe a cor vermelha, que o sangue adquire<br />
quando agitado num vaso em contacto com o ar. O carbono<br />
existente no sangue sofre, com esse contacto, os mesmos efeitos<br />
<strong>da</strong> combustão opera<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> parte, transformando-se em ácido<br />
carbônico. Pode-se razoavelmente comparar o estômago a uma<br />
retorta <strong>na</strong> qual as substâncias, postas em contacto, se decompõem,<br />
se combi<strong>na</strong>m, etc., segundo as leis gerais de afini<strong>da</strong>de<br />
química. Um tóxico, entrado no estômago, pode ser neutralizado<br />
pelos mesmos processos exteriormente utilizados. A substância<br />
morbífica porventura lá fixa<strong>da</strong> neutraliza-se, destrói-se, mediante<br />
remédios químicos, como se este processo se operasse num<br />
frasco qualquer, que não no interior de um organismo. A digestão<br />
é ato de pura química. Longe poderíamos prosseguir no<br />
assunto. A observação – diz Miahle – nos ensi<strong>na</strong> que to<strong>da</strong>s as<br />
funções orgânicas se operam mediante processos químicos e que
um ser vivo pode comparar-se a um laboratório de química, em<br />
que se processam os atos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em seu conjunto. Menos evidentes<br />
não são os processos mecânicos determi<strong>na</strong>dos pelos<br />
organismos vivos. A circulação do sangue se realiza pelo mais<br />
perfeito mecanismo imaginável. O aparelho produtor assemelhase,<br />
perfeitamente, aos aparelhados por mãos huma<strong>na</strong>s. O coração<br />
tem válvulas e êmbolos, tal como as máqui<strong>na</strong>s a vapor, cujo<br />
funcio<strong>na</strong>mento produz ruídos distintos. Entrando nos pulmões, o<br />
ar friccio<strong>na</strong> as paredes dos brônquios e engendra o sopro respiratório.<br />
Inspiração e expiração são resultantes de forças puramente<br />
físicas. O fluxo ascensio<strong>na</strong>l do sangue, <strong>da</strong>s extremi<strong>da</strong>des inferiores<br />
do corpo para o coração, contrário às leis de gravi<strong>da</strong>de, não<br />
pode verificar-se senão por um aparelho puramente mecânico. É<br />
também por um processo mecânico que o tubo intesti<strong>na</strong>l, graças<br />
a um movimento peristáltico, expele os excrementos de alto a<br />
baixo e, ain<strong>da</strong>, por processo mecânico se verificam os movimentos<br />
musculares de homens e animais.<br />
A estrutura do olho radica <strong>na</strong>s mesmas leis <strong>da</strong> câmara-escura,<br />
e as ondulações do som transmitem-se aos ouvidos como a<br />
qualquer outra cavi<strong>da</strong>de. “A Fisiologia tem, pois, absoluta razão<br />
– concluem Büchner e Schaller – propondo-se provar, hoje, que<br />
não mais existe essencial diferença entre o mundo orgânico e o<br />
inorgânico.”<br />
Não há diferença entre o orgânico e o inorgânico! Mas, convenhamos<br />
em que não pode haver no mundo uma proposição<br />
mais falsa.<br />
As reações opera<strong>da</strong>s nos corpos vivos longe estão de se identificar<br />
às que se operam com os mesmos líquidos numa retorta.<br />
As forças organizadoras, como as denomi<strong>na</strong> Bichat, esquivam-se<br />
ao cálculo, atuam de feição irregular e variável. Ao<br />
invés, as forças físico-químicas obedecem a leis regulares e<br />
constantes.<br />
O autor de um aparte recente, intitulado – A Ciência dos<br />
Ateus, evidencia muito bem esta ver<strong>da</strong>de com os seguintes<br />
exemplos: “Injetai <strong>na</strong>s veias do animal os elementos constitutivos<br />
do sangue, exceto o que lhe produz a síntese, que não se
encontra à vossa disposição, e em vez de prolongar a vi<strong>da</strong> do<br />
animal tê-lo-eis simplesmente matado. Também o sangue que<br />
fique algum tempo fora <strong>da</strong> veia, se for novamente injetado pelo<br />
orifício que o extravasou, pode ocasio<strong>na</strong>r os mais sérios distúrbios.<br />
Introduzi no estômago do cadáver substâncias alimentares e<br />
vereis que ao contacto dos tecidos elas se putrefarão, elas que, no<br />
animal vivo, se transformariam em sangue para lhe manter a<br />
vi<strong>da</strong>. Pergunta-se, então, aos químicos, como atuam no organismo<br />
o ópio, a quini<strong>na</strong>, a noz-vômica, o enxofre, o iodeto de<br />
potássio, etc. Qual a ação química <strong>da</strong> nicoti<strong>na</strong>, do ácido prússico,<br />
de todos os venenos vegetais que não deixam vestígios? Como<br />
age o curare no tétano?<br />
“Porque a ipeca no estômago faz se contraiam desde logo os<br />
músculos inspiradores, etc.? “Ação de presença”, dizem os<br />
físicos e repetem os químicos, acreditando, os sisudos doutores,<br />
ter cabalmente respondido!”<br />
Atentatória <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de é a pretensão de explicar pela Química<br />
e pela Física os fenômenos fisiológicos, afirmando a identi<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong>s reações intra e extra-orgânicas. A Química e a Física se<br />
conjugam, porque as mesmas leis presidem à sua fenomenologia;<br />
mas um imenso intervalo as separa <strong>da</strong> ciência biológica, porque<br />
existe enorme diferença entre as suas leis e as leis <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Dizer que a Fisiologia é a física animal é <strong>da</strong>r uma definição<br />
tão inexata como se disséssemos que a Astronomia é a física dos<br />
astros. A esse conceito de Bichat o Dr. Cerise adita: “os fenômenos<br />
vitais são complexos e as forças físicas neles cooperando,<br />
incontestavelmente, mas em proporções difíceis de medir, os<br />
submetem ao império de uma força superior, que os rege em<br />
função de suas fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des”.<br />
Da mesma opinião os a<strong>na</strong>tomistas Piorry, Malgalgue, Poggiale,<br />
Boullaud: “Acima de to<strong>da</strong>s as ciências – diz este – como<br />
acima de to<strong>da</strong>s as leis, a vi<strong>da</strong> domi<strong>na</strong>, modifica, neutraliza,<br />
diminui ou aumenta a intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s forças físico-químicas”.<br />
Nosso Dumas, químico eminente, diz algures: “Longe de<br />
amesquinhar a importância dos fatos, aos quais obedece a matéria<br />
morta, a noção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> se alta<strong>na</strong> e ressalta do conhecimento
íntimo dessas leis; e a convicção <strong>da</strong> sua essência misteriosa e<br />
divi<strong>na</strong> se engrandece mercê de sérios estudos <strong>da</strong> Química orgânica.”<br />
As operações químicas, suscetíveis de realizar em nosso organismo,<br />
não se devem confundir com as inerentes à fisiologia<br />
do nosso ser, eis o que é preciso assentar desde logo. Sob o<br />
primeiro ponto de vista, a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s forças que concorrem<br />
para formar substâncias orgânicas e inorgânicas é um fato inconcusso,<br />
averiguado. Conformando-se às leis <strong>na</strong>turais, o químico<br />
compõe uma série de combi<strong>na</strong>ções também encontra<strong>da</strong>s em<br />
corpos orgânicos e, mais fecundo que a própria <strong>Natureza</strong>, pode, a<br />
seu alvedrio, operar outras combi<strong>na</strong>ções inexistentes nos organismos<br />
terrestres, assim transportando, talvez, a sua ciência ao<br />
domínio de outros mundos.<br />
Sabe ele que a fermentação é um processo geral de intervenção<br />
que determi<strong>na</strong>, não ape<strong>na</strong>s os fenômenos <strong>da</strong> morte e <strong>da</strong><br />
decomposição, mas também os do <strong>na</strong>scimento e de to<strong>da</strong>s as<br />
funções vitais, a partir do grão de trigo que germi<strong>na</strong> e do vinho<br />
que ferve, até à levedura do pão e <strong>da</strong> cerveja, e aos fenômenos de<br />
nutrição e digestão. A Química orgânica tem as mesmas bases <strong>da</strong><br />
Química mineral. Ninguém melhor que o Sr. Berthelot expõe<br />
essas conquistas <strong>da</strong> ciência dos corpos, assim como ninguém<br />
lhes traça os limites ante o problema do nosso ser. Ouçamo-lo<br />
portanto:<br />
“Tudo havia concorrido 27 para que a maioria dos espíritos encarasse<br />
como intransponível a barreira entre as duas químicas.<br />
Para explicar a nossa impotência, inferiam uma razão especiosa<br />
<strong>da</strong> intervenção <strong>da</strong> força vital, apta, até então, a só compor substâncias<br />
orgânicas. Era, diziam, uma força misteriosa, a determi<strong>na</strong>r<br />
exclusivamente os fenômenos químicos observados nos<br />
seres, agindo em virtude de leis essencialmente distintas <strong>da</strong>s que<br />
regulam os movimentos <strong>da</strong> matéria puramente móbil e quiescente.<br />
Tal a explicação com que se pretendia justificar a imperfeição<br />
<strong>da</strong> Química orgânica, declarando-a, por assim dizer, irremediável.<br />
Assim proclamando nossa absoluta impotência para produzir<br />
matérias orgânicas, duas coisas se confundiam: a formação de<br />
substâncias químicas, cujo agregado constitui os seres organiza-
dos, e a formação dos próprios órgãos. Este último problema não<br />
pertence aos domínios <strong>da</strong> Química. Jamais o químico pretenderá<br />
fabricar no seu laboratório uma folha, um fruto, um músculo, um<br />
órgão. Questões são estas que afetam a Fisiologia e a esta é que<br />
compete discutir-lhes as premissas, desven<strong>da</strong>r as leis que regem<br />
os seres vivos <strong>na</strong> íntegra, pois que à revelia dessa integri<strong>da</strong>de<br />
nenhum órgão teria razão de existir e nem o meio necessário à<br />
sua formação.<br />
“Entretanto, o que à Química não é <strong>da</strong>do fazer no plano orgânico,<br />
pode empreender no fabrico de substâncias conti<strong>da</strong>s nos<br />
seres vivos.<br />
“Se a própria estrutura de vegetais e animais lhe escapa às<br />
aplicações, não lhe anula a pretensão de conseguir os princípios<br />
imediatos, isto é, os materiais químicos que constituem os órgãos,<br />
independentemente <strong>da</strong> estrutura especial <strong>da</strong>s fibras e<br />
células que esses materiais afetam, nos animais e nos vegetais.<br />
Esta mesma formação e a explicação <strong>da</strong>s metamorfoses ponderáveis,<br />
que a matéria experimenta nos seres vivos, constituem<br />
campo assaz vasto e belo para que a síntese química o reivindique<br />
inteiramente.”<br />
Esta declaração, <strong>na</strong> qual os adversários pretendem ver a vitória<br />
definitiva do materialismo, sugere-nos acreditar em dois<br />
pontos fun<strong>da</strong>mentais:<br />
1º - que a formação <strong>da</strong>s substâncias orgânicas pode ser devi<strong>da</strong><br />
às mesmas leis que regulam o mundo inorgânico e<br />
2º - que a própria formação dos órgãos deriva de uma força<br />
estranha aos domínios <strong>da</strong> Química.<br />
Quanto ao primeiro ponto, triunfa o espiritualismo, qual o<br />
vimos, de vez que as forças que regem o mundo i<strong>na</strong>nimado<br />
revelam a existência de um arquiteto inteligente. E quanto ao<br />
segundo, o triunfo é ain<strong>da</strong> mais brilhante, de vez que a Química<br />
orgânica capitula diante do ser vital. Tal como judiciosamente<br />
adverte o Sr. Langel, essa química estu<strong>da</strong> e compõe, somente, os<br />
materiais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sem se preocupar com o ser vivo em si mesmo.<br />
Esboça, por assim dizer, as tintas do quadro, tor<strong>na</strong>ndo-se
preciso outra mão que aplique essas tintas, e crie a obra em que<br />
elas se fundem em perfeita uni<strong>da</strong>de.<br />
Quando a Química deixou adivinhar no ser humano um<br />
alambique no qual o ácido procura a base, as moléculas se agrupam<br />
de acordo com as leis de que falamos <strong>na</strong> primeira parte;<br />
quando fizeram ver que o animal vivo não passa de um vaso de<br />
reações e que as forças químicas e físicas nele se entregam a<br />
perpétuo combate em campo fechado; quando mostraram que os<br />
fenômenos <strong>da</strong> fecun<strong>da</strong>ção, <strong>da</strong> nutrição e <strong>da</strong> própria morte mais<br />
não são que fermentações ordinárias, já se não sabe mais onde<br />
residem essas forças misteriosas que denomi<strong>na</strong>mos vi<strong>da</strong>, instinto<br />
e consciência, quando se trata de criaturas huma<strong>na</strong>s. Não tar<strong>da</strong>remos<br />
a entrar no âmago desta grave questão. Por enquanto,<br />
confessamos com o Sr. Langel 28 que “a Ciência pode arrastar-nos<br />
à dúvi<strong>da</strong>, a negações espantosas, tendo ela mesma os seus mistérios<br />
insondáveis às vistas huma<strong>na</strong>s. Também ela se contenta com<br />
palavras, sempre que não pode penetrar a essência mesma dos<br />
fenômenos. Não nos fala a Química, constantemente, de afini<strong>da</strong>de?<br />
E não temos aí uma força hipotética, uma enti<strong>da</strong>de tão pouco<br />
tangível quanto a vi<strong>da</strong>, ou quanto a alma?<br />
A Química recambia à Fisiologia a idéia <strong>da</strong> alma e recusa-se<br />
a tratar do assunto, mas, perguntamos, a idéia em torno <strong>da</strong> qual<br />
se desdobra a Química tem algo de mais real? Essa idéia é,<br />
muitas vezes, i<strong>na</strong>preensível, não só <strong>na</strong> essência como nos efeitos.<br />
Pode-se, por exemplo, meditar um instante <strong>na</strong>s leis conheci<strong>da</strong>s<br />
como leis de Berthelot, sem compreender que se está em face de<br />
um mistério impenetrável? No simples fenômeno de uma combi<strong>na</strong>ção,<br />
no arrastamento que precipita dois átomos que se procuram<br />
e se reúnem, escapando aos compostos que os aprisio<strong>na</strong>vam,<br />
não há o suficiente para nos confundir a inteligência? Quanto<br />
mais estu<strong>da</strong>mos as ciências <strong>na</strong> sua metafísica, mais nos podemos<br />
convencer que esta <strong>na</strong><strong>da</strong> tem de inconciliável com a mais idealista<br />
filosofia: as ciências a<strong>na</strong>lisam as relações, aferem medi<strong>da</strong>s,<br />
descobrem as leis que regulam o mundo fenome<strong>na</strong>l; mas não há<br />
fenômeno algum, por insignificante que seja, que não as coloque<br />
em face de duas idéias, sobre as quais o método experimental<br />
carece de eficiência, a saber:
1º - a essência <strong>da</strong> substância modifica<strong>da</strong> pelos fenômenos, e<br />
2º - a força que provoca essas modificações.<br />
Só conhecemos e vemos, por fora, as aparências; a ver<strong>da</strong>deira<br />
reali<strong>da</strong>de, a reali<strong>da</strong>de substancial, a causa, nos escapa. Digno é<br />
de uma alta filosofia considerar to<strong>da</strong>s as forças particulares,<br />
cujas manifestações são a<strong>na</strong>lisa<strong>da</strong>s pelas diversas ciências, como<br />
oriun<strong>da</strong>s de uma força primária, eter<strong>na</strong>, necessária, fonte de todo<br />
o movimento e centro de to<strong>da</strong> a ação. Em nos colocando neste<br />
ponto de vista, os fenômenos e os próprios seres não são mais<br />
que formas mutáveis de uma idéia divi<strong>na</strong>”.<br />
Pode a uni<strong>da</strong>de a que tende a Química fazer-nos pressupor<br />
que o mundo animado e o i<strong>na</strong>nimado sejam regidos por leis<br />
idênticas? Deveremos lisonjear-nos com idéia de poder um dia,<br />
não ape<strong>na</strong>s refazer artificialmente to<strong>da</strong>s as matérias orgânicas,<br />
mas reproduzir “ad libitum” as condições em que hajam de<br />
aflorar a vi<strong>da</strong> vegetal ou animal? Não, certamente. Tais pretensões<br />
seriam ilusórias. Não dispomos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Fisiologia e Química<br />
são domínios que se extremam e se distinguem, como se não<br />
distinguiam há um século a Química orgânica e a mineral.<br />
Em parte alguma, a planta mais rudimentar, o animal mais<br />
ínfimo <strong>da</strong> escala zoológica, <strong>na</strong>sceram do concurso <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong>des<br />
químicas. Por maiores progressos que faça a Química orgânica,<br />
ela será sempre deti<strong>da</strong> pela impossibili<strong>da</strong>de de origi<strong>na</strong>r a força<br />
vital, de que não dispõe.<br />
Não, senhores, em que pese à vossa atitude afirmativa e au<strong>da</strong>ciosa,<br />
vós não podeis criar a vi<strong>da</strong>, nem sabem, sequer, o que<br />
seja a vi<strong>da</strong>, e sois constrangidos a confessar a vossa ignorância,<br />
ao mesmo tempo em que ofereceis as provas <strong>da</strong> vossa impotência.<br />
É em vão que revi<strong>da</strong>is com fogos fátuos e gratuitas suposições:<br />
“Para sustentar uma força vital origi<strong>na</strong>l – dizeis – invoca-se<br />
amiúde a nossa impossibili<strong>da</strong>de de criar plantas e animais; e<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> obstante, se pudéssemos senhorear a luz, o calor, a pressão<br />
atmosférica, tanto quanto as relações de peso <strong>da</strong> matéria, não<br />
somente ficaríamos aptos a recompor corpos orgânicos, como
capacitados a preencher as condições que engendram o <strong>na</strong>scimento<br />
desses corpos.”<br />
A seguir, acrescentais, sem perceber que as vossas próprias<br />
palavras reforçam a nossa causa:<br />
“Desde que os elementos ditos carbono, hidrogênio, oxigênio,<br />
azoto, se encontram organizados, as formas fixas <strong>da</strong>í resultantes<br />
têm o poder de conservar-se no seu estado e, tal como no-lo<br />
ensi<strong>na</strong> a experiência até hoje adquiri<strong>da</strong>, elas persistem através de<br />
cente<strong>na</strong>s e milhares de anos. Por meio de sementes, de brotos e<br />
de ovos, essas formas reaparecem numa sucessão determi<strong>na</strong><strong>da</strong>.”<br />
Por outros termos, duas proposições se evidenciam: a primeira<br />
é que não poderíamos engendrar a vi<strong>da</strong> senão como legado<br />
potencial <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e a segun<strong>da</strong> é que a vi<strong>da</strong> se mantém,<br />
persistente e transmissível, graças a uma virtude que lhe é própria.<br />
Tal é, ver<strong>da</strong>deiramente, a questão, e de duas uma: ou o homem<br />
é, ou não é (nem será) capaz de origi<strong>na</strong>r a vi<strong>da</strong>.<br />
Neste último caso, as pretensões materialistas estão irremissivelmente<br />
conde<strong>na</strong><strong>da</strong>s e, no primeiro, por si mesmas se conde<strong>na</strong>m,<br />
<strong>da</strong> seguinte forma:<br />
Laborando <strong>na</strong> organização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sois forçados a vos submeter<br />
às leis orde<strong>na</strong><strong>da</strong>s e as aplicar passivamente, sem as contrariar<br />
de qualquer forma. Então, já não seríamos nós a origi<strong>na</strong>r a<br />
vi<strong>da</strong> e sim as leis eter<strong>na</strong>s, <strong>da</strong>s quais nos arvoraríamos, por um<br />
instante, em simples man<strong>da</strong>tários.<br />
Já vos ouço bra<strong>da</strong>r – sofisma! – e declarar que procuramos<br />
escapar pela tangente. Mas... perdão, senhores, notam em primeiro<br />
lugar que se alguém se esquiva num processo, esse alguém só<br />
pode ser o acusado e considerai, depois, que, assim razoando,<br />
não ficamos à superfície e penetramos o âmago <strong>da</strong> questão.<br />
Refleti um momento: bem sabeis que neste mundo <strong>na</strong><strong>da</strong> criamos<br />
e ape<strong>na</strong>s aplicamos leis predomi<strong>na</strong>ntes.<br />
Criais, porventura, o oxigênio quando, pelo calor, decompondes<br />
o bióxido de manganês e as bolhas afloram no tubo de escapamento?<br />
Não; ape<strong>na</strong>s roubais ou – se preferis – pedis ao bióxido<br />
de manganês o terço de oxigênio nele contido. Criareis o
azoto retirando oxigênio do ar atmosférico? O próprio nome do<br />
processo está a indicar que ele consiste numa subtração. Criais a<br />
água quando, reunindo no eudiômetro o hidrogênio ao oxigênio,<br />
lhe fazeis a síntese? Ou isso não passa de mera combi<strong>na</strong>ção?<br />
Com a decomposição do carbo<strong>na</strong>to de cal, pelo ácido clorídrico,<br />
criareis o carbono? E os ácidos oxálico, acético, lático, tartárico,<br />
tânico, quando os extraís dos materiais vegetais ou animais,<br />
mediante agentes oxi<strong>da</strong>ntes, acaso os tendes criado? Não, mil<br />
vezes não. Se nos servimos, por vezes, do vocábulo – criar, é por<br />
abuso de linguagem. Ora, ain<strong>da</strong> mesmo que conseguísseis fazer<br />
um pe<strong>da</strong>ço de carne, nem por isso o teríeis criado e sim, ape<strong>na</strong>s,<br />
reunido os elementos que constituem a carne, segundo as leis<br />
inexoráveis, assi<strong>na</strong><strong>da</strong>s à organização <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. E <strong>da</strong>do que os<br />
pósteros possam ver um dia surgir do fundo de suas retortas um<br />
ser vivo, ain<strong>da</strong> assim, de antemão lhes dizemos que muito se<br />
iludiriam se concluíssem pela inexistência <strong>da</strong>s leis divi<strong>na</strong>s, pois<br />
não haveria de ser à revelia delas que houvessem de consumar<br />
essa obra-prima <strong>da</strong> indústria huma<strong>na</strong>.<br />
Enfim, <strong>da</strong>do que os precedentes raciocínios não sejam suficientes<br />
para caracterizar vossa erronia, consentimos, ao termo<br />
desta exposição sobre a circulação <strong>da</strong> matéria, em admitir que a<br />
<strong>Natureza</strong> emprega, para construir seres vivos, os mesmos processos<br />
do homem, isto é: – trata simplesmente pela química as<br />
matérias inorgânicas. Ora, ain<strong>da</strong> nesta hipótese, não haveria<br />
como negardes a necessi<strong>da</strong>de, para o construtor, de saber o que<br />
pretende fazer, ou de operar com um plano determi<strong>na</strong>do. Pois<br />
uma <strong>na</strong>tureza inteligente, ou o ministro de uma inteligência,<br />
substitui o químico. A obra do gênio consiste, precisamente, em<br />
fazer derivar de um pequeno número de princípios, facilmente<br />
formuláveis, as mais engenhosas aplicações, os inventos mais<br />
extraordinários.<br />
Esse gênio, do qual as mais portentosas inteligências huma<strong>na</strong>s<br />
não representam senão partículas infinitesimais, reduziu à<br />
extrema simplici<strong>da</strong>de, à maior simplici<strong>da</strong>de possível, to<strong>da</strong>s as<br />
operações <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. A divi<strong>na</strong> inteligência apresenta-se-nos<br />
como a consciência de uma lei única, abrangendo o todo universal,<br />
e cujas aplicações indefini<strong>da</strong>s engendram uma multidão de
fenômenos que se agluti<strong>na</strong>m por a<strong>na</strong>logia, regidos pelas mesmas<br />
leis secundárias, decorrentes <strong>da</strong> lei primordial. Certo, o químico<br />
ain<strong>da</strong> não substitui a vi<strong>da</strong>, nem sabe formar o embrião em que o<br />
germe representa um papel tão maravilhoso. Em seus atos,<br />
contudo, ele se esforça por substituir a <strong>Natureza</strong>. E como? – pela<br />
inteligência. Um elemento existe, absolutamente indispensável: a<br />
inteligência.<br />
Sobera<strong>na</strong>, ela se impõe ao raciocínio de quantos estu<strong>da</strong>m a<br />
<strong>Natureza</strong>. E tor<strong>na</strong>-se visível nessas regras que podem ser previamente<br />
determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s, calcula<strong>da</strong>s, combi<strong>na</strong><strong>da</strong>s, de vez que guar<strong>da</strong>m<br />
entre si um encadeamento admirável e são imutáveis em<br />
condições idênticas, porque receberam a inflexibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
infinita sabedoria.<br />
Está, portanto, demonstrado, à sacie<strong>da</strong>de, que a circulação <strong>da</strong><br />
matéria não se efetua senão sob a direção de uma força inteligente.<br />
Mas, seja qual for o rumo que trilhemos, o desvio em que nos<br />
propusermos acompanhar-vos, voltamos sempre, a despeito de<br />
tudo, à formação <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, à causa causal de quanto existe, e<br />
aqui o campo se tor<strong>na</strong> mais vasto ain<strong>da</strong>. Os processos humanos<br />
já não embaraçam a vista. No extremo de to<strong>da</strong>s as aveni<strong>da</strong>s,<br />
chegamos ao ponto capital e trata-se, agora, de exami<strong>na</strong>r a<br />
origem mesma <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> Terra. Estarão os seres vivos encerrados<br />
<strong>na</strong> superfície do globo? Teriam aí surgido em seis dias, ao<br />
toque <strong>da</strong> vara de um mágico? Despertaram a súbitas do seio <strong>da</strong>s<br />
florestas, <strong>da</strong> margem dos rios, nos vales adormecidos?<br />
Que mão teria conduzido o primeiro homem do céu aos bosques<br />
do Éden? Que mão pudera abrir-se no ar e soltar a chusma<br />
canora de lin<strong>da</strong>s plumagens? Seriam as forças físico-químicas,<br />
que, num espasmo fecundo, teriam <strong>da</strong>do <strong>na</strong>scimento aos habitantes<br />
de mares e continentes? Nós não encontramos seres que não<br />
tenham <strong>na</strong>scido de um casal, ou cujo <strong>na</strong>scimento não se ligue às<br />
leis estabeleci<strong>da</strong>s para a reprodução. Como teriam surgido <strong>na</strong><br />
Terra as espécies vegetais e animais? Eis a questão que atualmente<br />
nos interessa. Depois de observar a platéia e o comentário<br />
dos espectadores, levantemos o pano que oculta o ver<strong>da</strong>deiro<br />
cenário e apreciemos a peça. A <strong>Natureza</strong> é sempre o maquinista
invisível. Tentemos surpreendê-la, <strong>na</strong> esperança de que ela não<br />
seja bastante atila<strong>da</strong> para subtrair-se à nossa perquirição.
2 - A Origem dos Seres<br />
SUMÁRIO – A criação segundo o Materialismo antigo e o contemporâneo.<br />
– História científica <strong>da</strong>s gerações espontâneas. – De<br />
como a hipótese <strong>da</strong> geração espontânea não afeta a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />
de <strong>Deus</strong>. – Erro e perigo dos que se permitem intermitir <strong>Deus</strong> em<br />
suas controvérsias. – De como a aparição sucessiva <strong>da</strong>s espécies<br />
pode resultar de forças <strong>na</strong>turais, sem que o ateísmo algo possa<br />
ganhar com esta hipótese. – A Bíblia é atéia? – Origem e transformação<br />
dos seres. – Reinos vegetal, animal, humano. – Anciani<strong>da</strong>de<br />
do homem. – Que todos os fatos <strong>da</strong> Geologia, <strong>da</strong> Zoologia<br />
ou <strong>da</strong> Arqueologia não inquietam a Teologia <strong>na</strong>tural.<br />
“Aos primeiros calores <strong>da</strong> Primavera os voláteis de qualquer<br />
espécie alaram-se no espaço, libertos do ovo <strong>na</strong>tal. Nos dias<br />
estivais, podemos surpreender a cigarra, rompendo o frágil<br />
casulo, partir, cindir os ares ávi<strong>da</strong> de luz e de alimento. Não de<br />
outro modo a Terra produziu a raça huma<strong>na</strong>; a on<strong>da</strong> e o fogo,<br />
encerrados no solo, fermentaram e fizeram crescer, nos lugares<br />
propícios, germens fecun<strong>da</strong>dos, cujas raízes vivas mergulhavam<br />
<strong>na</strong> terra.<br />
Chegado o tempo <strong>da</strong> maturi<strong>da</strong>de e rompido o invólucro que<br />
os enclausurava, ca<strong>da</strong> embrião deixou o âmago úmido <strong>da</strong> terra e<br />
apoderou-se do ar e <strong>da</strong> luz. Para eles se dirigem os poros sinuosos<br />
<strong>da</strong> terra e, reunidos em suas veias entreabertas, escorrem<br />
on<strong>da</strong>s de leite. Assim, vemos ain<strong>da</strong>, depois <strong>da</strong> gestação, as mães<br />
se repletarem de um leite saboroso, porque os alimentos, convertidos<br />
em suco nutritivo, lhes intumesce o seio. A terra, portanto,<br />
alimentou os seus primeiros filhos, que tiveram no calor as<br />
primeiras vestes, e, por berço, a relva abun<strong>da</strong>nte e macia.<br />
“Assim como a tenra avezinha, ao <strong>na</strong>scer, se reveste de plumas<br />
ou de sedosa lanugem, assim a terra jovem se recobre de<br />
macia ervagem e flébeis arbustos. E não tar<strong>da</strong>, também, a conceber<br />
as espécies anima<strong>da</strong>s, mediante combi<strong>na</strong>ções inúmeras e<br />
varia<strong>da</strong>s: a terra incuba os seus habitantes, que não desceram dos<br />
céus nem emergiram dos abismos tenebrosos. É pois, a justo<br />
título de reconhecimento, que se lhe dá o nome de mãe. Tudo o<br />
que respira foi concebido em seu ventre; e se ain<strong>da</strong> hoje vemos
seres vivos lhe brotarem do limo, quando, molhado <strong>da</strong> chuva, ele<br />
fermenta à luz solar, porque nos admirarmos maiormente que<br />
seres mais numerosos e mais robustos lhe saíssem dos flancos,<br />
quando ela, a terra e a essência etérica, ain<strong>da</strong> se incendeiam dos<br />
ardores <strong>da</strong> juventude?” 29<br />
Assim se exprime o corifeu do velho materialismo. Nisso, ele<br />
é bem o intérprete fiel do seu mestre, Epícuro, cujo sistema<br />
físico aqui resumimos em poucas palavras 30 :<br />
À força de percorrerem céleres e ao acaso a imensi<strong>da</strong>de, os<br />
átomos se reuniram e se combi<strong>na</strong>ram; <strong>da</strong>í, massas ain<strong>da</strong> informes<br />
e inorgânicas, mas já apreciáveis por sua composição. Com o<br />
correr dos tempos, essas massas, diferentes em peso, foram<br />
arrasta<strong>da</strong>s a direções diferentes, ou com veloci<strong>da</strong>des diferentes,<br />
umas caindo e subindo outras.<br />
Uma vez existente a água, em virtude <strong>da</strong> sua fluidez, encaminhou-se<br />
para os lugares mais baixos, para as cavi<strong>da</strong>des mais<br />
próprias a contê-la. Outras vezes, houve ela mesma de preparar o<br />
seu leito. As pedras, os metais, os minerais em geral, <strong>na</strong>sceram<br />
no âmago do globo, segundo a espécie de átomos ou de germes<br />
nele encerrados, quando a atmosfera se destacou do céu. Daí,<br />
essas coli<strong>na</strong>s, montanhas, acidentes numerosos, que diversificam<br />
a superfície do solo: montes a prumo, ao lado de vales profundos,<br />
de extensos altiplanos cobertos de vegetação multifária, que<br />
lhe são indumenta garri<strong>da</strong>, quanto para nós a se<strong>da</strong>, as pe<strong>na</strong>s, a lã,<br />
etc. Resta explicar o <strong>na</strong>scimento dos animais. É verossímil que,<br />
contendo a Terra germes fresquíssimos e adequados à geração,<br />
produzisse em sua crosta uma espécie de bolhas cavas, à maneira<br />
de úteros, e que essas bolhas, em atingindo a maturi<strong>da</strong>de, rebentassem<br />
e dessem à luz os incipientes animaizinhos.<br />
Intumesceu-se, então, a Terra de humores semelhantes e os<br />
recém-<strong>na</strong>scidos viveram a expensas deste alimento.<br />
Os homens, diz Epícuro, não <strong>na</strong>sceram de outro modo. Peque<strong>na</strong>s<br />
vesículas à maneira de úteros, ligados à terra pelas raízes,<br />
avolumaram-se batidos pelos raios ardentes do Sol, produziram<br />
tenros rebentos e mantiveram sua vi<strong>da</strong> a expensas do líquido<br />
lácteo que a <strong>Natureza</strong> lhes preparara. Os homens primários são o
talo <strong>da</strong> espécie huma<strong>na</strong>, que, depois, se propagou por vias usuais,<br />
até hoje.<br />
Eis, creio, uma hipótese bem simplista. Ela explica, simultaneamente,<br />
como o homem contemporâneo é menor e menos<br />
robusto que o primitivo. A espécie huma<strong>na</strong> <strong>na</strong>scia, então, espontaneamente,<br />
do solo mesmo <strong>da</strong> terra e hoje os homens procedem<br />
uns dos outros 31 .<br />
O pensamento manifesta-se por entrosagem dos movimentos,<br />
que, desenvolvidos primariamente numa substância desprovi<strong>da</strong><br />
de racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, acabam reproduzindo-se artificial e não espontânea<br />
e cegamente.<br />
Os movimentos atômicos foram, indubitavelmente, obra do<br />
acaso, sem contingência de racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e, <strong>na</strong><strong>da</strong> obstante, desde<br />
os primórdios do mundo, existiam animais que se diriam protótipos<br />
raciais.<br />
Uma vez formados esses animais pelos átomos errantes em<br />
to<strong>da</strong>s as direções, a engendrarem movimentos de aproximação,<br />
de repulsão, de exclusão ou de junção, alguns, ape<strong>na</strong>s, vinham<br />
a<strong>da</strong>ptar-se e conjugar-se aos átomos do animal protótipo, isto é,<br />
os que com estes se identificavam em <strong>na</strong>tureza. Os outros, ao<br />
contrário, eram repelidos, por dissímeis dos constitutivos do<br />
animal.<br />
Tudo se explica, portanto, exceto a maneira como, nos primórdios<br />
do mundo, se formaram os protótipos. Isto é o que<br />
Epícuro não explica, ao menos com raciocínios claros.<br />
Pois é sob os auspícios desta filosofia, que ousam colocar-se<br />
os senhores materialistas do século XIX 32 .<br />
Graças à capciosa linguagem de Lucrécio e à doutri<strong>na</strong> simultaneamente<br />
estóica e displicente de Epícuro, essa gênese simplista<br />
conta sempre muitos partidários. E no entanto, apesar de tudo,<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> existe de menos científico. Reparai, pela manhã, num<br />
bando de insetos que voam de um torrão de argila esfarelado! o<br />
barão de Munchausen põe a mão num montículo de terra, bem<br />
no centro do campo arroteado, e logo uma ninha<strong>da</strong> de melros<br />
brancos, segui<strong>da</strong> de aves outras, põe-se a correr pela jeira em<br />
fora. Até hoje só sabemos de alguém que haja testemunhado um
tal <strong>na</strong>scimento, de um ser nosso irmão: é Cyrano de Bergerac,<br />
quando, de sua viagem ao Sol, realiza<strong>da</strong> aos 30 de Fevereiro de<br />
1649, no momento de lá aportar, houve de parar para tomar<br />
fôlego em um dos planetóides que gravitam em torno do astrorei<br />
33 .<br />
Notemos, to<strong>da</strong>via, que o materialismo de Lucrécio não é tão<br />
grosseiro qual o interpretam.<br />
A alma do poeta diviniza as forças <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. D’Holbach,<br />
ao contrário, não tem alma; desdenha a força, não vê senão a<br />
matéria.<br />
Podem seres vivos <strong>na</strong>scer espontaneamente de elementos<br />
químicos como o hidrogênio, o carbono, o amoníaco, a lama, a<br />
podridão? Houve quem o acreditasse por muito tempo, e ain<strong>da</strong><br />
hoje existe uma escola positiva, empenha<strong>da</strong> em demonstrar<br />
experimentalmente a veraci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> hipótese. Ouçamos alguns<br />
corifeus, antigos e modernos.<br />
Colhamo-los ao acaso. Van Helmont diz: se espremermos<br />
uma camisa suja (sic) no orifício de um vaso que contenha grãos<br />
de trigo, este se transformará em ratos adultos ao fim de 21 dias,<br />
mais ou menos. Perfurai um buraco num tijolo, metei nele manjericão<br />
pilado e justaponde ao tijolo outro tijolo, de maneira a<br />
ve<strong>da</strong>r completamente o buraco, exponde ao Sol os dois tijolos e,<br />
no fim de alguns dias, o cheiro do manjericão, operando como<br />
fermento, transformará a erva em legítimos escorpiões. O mesmo<br />
alquimista pretendia que a água <strong>da</strong> fonte mais pura, lança<strong>da</strong> em<br />
vaso impreg<strong>na</strong>do do odor de um fermento, corrompe-se e engendra<br />
vermes.<br />
Dêem-me farinha e tutano de carneiro – dizia Needham em o<br />
seu Novas Descobertas Microscópicas – e eu vos pagarei com<br />
enguias.<br />
Voltaire, a sorrir, respondia-lhe que também esperava ver um<br />
dia a fabricação de homens por esse mesmo processo. Sachs<br />
ensi<strong>na</strong> que os escorpiões são produto <strong>da</strong> decomposição <strong>da</strong> lagosta.<br />
Na matéria dos corpos mortos e decompostos, dizia o próprio<br />
Buffon, as moléculas orgânicas, sempre ativas, trabalham para
evolver a matéria putreci<strong>da</strong> e formam uma chusma de corpúsculos<br />
organizados, dos quais alguns, como as minhocas, os cogumelos,<br />
etc., são assaz volumosos. Todos estes corpos só vivem<br />
por geração espontânea. Presentemente, o Dr. Cohn, de Breslau,<br />
pretende que a morte <strong>da</strong> mosca comum, no Outono, é ocasio<strong>na</strong><strong>da</strong><br />
pela formação de cogumelos no corpo do inseto. Há em tudo<br />
isso, sem dúvi<strong>da</strong>, como em tantas outras coisas, que traçar um<br />
limite a essas facul<strong>da</strong>des dos elementos organizados; e nós nos<br />
disporíamos melhor a crer <strong>na</strong> formação dos cogumelos microscópicos<br />
sobre o órgão atrofiado <strong>da</strong> mosca, tanto quanto do fúcus<br />
num pulmão enfermo, ou de mofo num tronco de madeira, do<br />
que acreditar com as boas velhas fiandeiras do cânhamo em<br />
nossa infância, quando nos diziam que a cri<strong>na</strong> arranca<strong>da</strong> à cau<strong>da</strong><br />
de cavalo branco e atira<strong>da</strong> a um regato se transformava, dentro<br />
de três dias, numa enguia branca. Este é também um absurdo<br />
bem cotado em algumas regiões do Este <strong>da</strong> França. Lembra-nos<br />
de o haver tentado, ao tempo de Luís Filipe, mas, como só<br />
contávamos seis anos de i<strong>da</strong>de, também é admissível que a nossa<br />
cândi<strong>da</strong> ignorância não nos permitisse um legítimo triunfo.<br />
Por não ter levado a termo fi<strong>na</strong>l as suas observações, Arístoto<br />
manteve-se <strong>na</strong> erronia de que os insetos <strong>na</strong>scem <strong>da</strong>s folhas<br />
verdes, assim como os piolhos <strong>da</strong> carne e os peixes do lodo.<br />
Muito curioso ver até que ponto Plínio, traduzindo Arístoto,<br />
chega à descrição desse <strong>na</strong>scimento imaginário. “A lagarta – diz<br />
– sai de uma gota de orvalho, caí<strong>da</strong> nos primeiros dias <strong>da</strong> Primavera<br />
e que, condensa<strong>da</strong> pelo Sol, se reduz ao tamanho de um<br />
grão de milho. Assim elabora<strong>da</strong>, essa gota, estendendo-se, faz-se<br />
pequeno verme (ros porrigitur vermiculus parvua) que, dentro<br />
de três dias, transforma-se em lagarta”. Na<strong>da</strong>, porém, ultrapassa<br />
a argumentação de Plutarco <strong>na</strong>s Symposiacas, ou Colóquios à<br />
Mesa, no intuito de resolver a velha questão aventa<strong>da</strong> por Pitágoras,<br />
ou seja: a priori<strong>da</strong>de do ovo ou <strong>da</strong> galinha. Esse discrime dá<br />
uma idéia <strong>da</strong>s opiniões suscita<strong>da</strong>s <strong>na</strong> antigüi<strong>da</strong>de e agora revivi<strong>da</strong>s,<br />
sem contudo levar em conta o ultraje irreparável dos anos.<br />
Plutarco conta-nos, pois, que tão logo propôs a questão, seu<br />
amigo Sila o advertiu de que, por uma causa tão simples, qual
uma alavanca, haveriam de acio<strong>na</strong>r a pesa<strong>da</strong> máqui<strong>na</strong> <strong>da</strong> conformação<br />
do mundo e, por isso, desistia de o acompanhar.<br />
Aelevandre, irônico, declara que a questão é meramente ociosa<br />
e Fírmus, seu parente, tomando a palavra, exclama: <strong>da</strong>i-me,<br />
pois, os átomos de Epícuro, visto que, se importa presumir que<br />
minúsculos elementos são os geradores de grandes corpos, é bem<br />
provável que o ovo tenha precedido a galinha, e ain<strong>da</strong> porque,<br />
tanto quando podemos julgar pelos sentidos, ele é o mais simples<br />
e ela o mais complexo.<br />
Em regra, o princípio é anterior ao que dele procede. Dizem<br />
que as veias e as artérias são as primeiras partes que se formam<br />
no animal. É possível, também, que o ovo tenha existido antes do<br />
animal, pela razão de que o continente precede o conteúdo. As<br />
artes começam por esboços grosseiros e informes, que se aperfeiçoam<br />
parcialmente, <strong>na</strong> forma que mais lhes convêm. Dizia o<br />
escultor Policleto <strong>na</strong><strong>da</strong> haver mais difícil <strong>na</strong> sua arte do que <strong>da</strong>r à<br />
sua obra o último toque de perfeição. É de crer, assim, que a<br />
<strong>Natureza</strong>, ao imprimir à matéria o movimento inicial, tendo-a<br />
encontrado menos dócil, só haja produzido massas informes, sem<br />
linhas defini<strong>da</strong>s, quais são os ovos, e que o animal não viesse a<br />
existir senão depois do aperfeiçoamento dos primeiros esboços.<br />
A lagarta foi a primeira formação: quando, mais tarde, endureci<strong>da</strong><br />
e ressequi<strong>da</strong>, parte-se-lhe o casulo, dele se libra o volátil a<br />
que chamamos ninfa. No caso vertente, do mesmo modo, o ovo<br />
preexistiu como matéria prima de to<strong>da</strong> a produção, pois em to<strong>da</strong><br />
a metamorfose o ser que mu<strong>da</strong> de estado é, necessariamente,<br />
anterior ao de que toma a forma. Vede como o líquen e o caruncho<br />
se engendram <strong>na</strong>s folhas e <strong>na</strong>s madeiras, como produtos <strong>da</strong><br />
putrefação, ou <strong>da</strong> cocção <strong>da</strong>s partes úmi<strong>da</strong>s, e ninguém negará<br />
que esta umi<strong>da</strong>de não seja anterior aos animais que ela origi<strong>na</strong> e<br />
que, <strong>na</strong>turalmente, o que origi<strong>na</strong> não seja anterior ao origi<strong>na</strong>do”.<br />
A priori<strong>da</strong>de do ovo parecia bem estabeleci<strong>da</strong> com este excelente<br />
palanfrório, quando um tal Senésio se intrometeu a contraditar.<br />
“É <strong>na</strong>tural – diz ele – que o perfeito antece<strong>da</strong> ao imperfeito,<br />
o completo ao incompleto e o todo à parte. Insensato é supor<br />
que a existência de uma parte prece<strong>da</strong> à do seu todo. Assim é<br />
que, ninguém diz: – o homem do germe, a galinha do ovo, mas, o
ovo <strong>da</strong> galinha, o germe do homem, por isso que aqueles são<br />
posteriores a estes; devem-lhes o <strong>na</strong>scimento e pagam, posteriormente,<br />
sua dívi<strong>da</strong> à <strong>Natureza</strong>, pela geração. Até então, não têm<br />
o que convém à sua <strong>na</strong>tureza e que lhes dá um desejo e um<br />
pendor de produzir um ser semelhante ao que os originou. Eis,<br />
porque, também se define o germe uma produção tendente a<br />
reproduzir-se. Ora, ninguém deseja o que não existe, ou jamais<br />
tenha existido. Ao demais, vemos que os ovos têm uma substância<br />
cuja <strong>na</strong>tureza e composição são quase as mesmas do animal e<br />
que só lhes falta os mesmos vasos e órgãos. Daí, jamais se haver<br />
dito, a qualquer tempo e em parte alguma, que um ovo, seja qual<br />
for, tenha saído <strong>da</strong> terra. Os próprios poetas inculcam o que<br />
originou os Tin<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>s como havendo caídos do céu. Hoje, a<br />
terra melhor produz animais perfeitos, com sejam os ratos, no<br />
Egito, e as serpentes, rãs, cigarras, noutras regiões. Um princípio<br />
exterior fá-la mais apta para essa produção. Na Sicília, durante a<br />
guerra dos escravos, que derramou tanto sangue, a grande quanti<strong>da</strong>de<br />
de corpos insepultos, putrefazendo-se à flor do solo,<br />
produziu um número prodigioso de gafanhotos, que, espalhandose<br />
por to<strong>da</strong> a ilha, devoraram os trigais. Esses insetos <strong>na</strong>scem <strong>da</strong><br />
terra e de terra se nutrem. A fartura do alimento lhes dá a facul<strong>da</strong>de<br />
de produzir e, uma vez atraídos pelo gozo de se acasalarem,<br />
eles produzem, conforme a sua <strong>na</strong>tureza, ovos ou animais vivos.<br />
Isso prova, claramente, que os animais, a princípio <strong>na</strong>scidos <strong>da</strong><br />
terra, tiveram depois, no seu coito, uma outra via de geração.<br />
“Eis por que perguntar como poderia haver galinhas antes que<br />
houvesse ovos formados equivale a perguntar como existiram<br />
homens e mulheres, antes dos órgãos desti<strong>na</strong>dos à sua reprodução.<br />
Eles são o resultado de certas cocções que alteram a <strong>na</strong>tureza<br />
dos alimentos, não sendo possível que, antes de <strong>na</strong>scido o<br />
animal, algo nele exista, capaz de justificar uma superabundância<br />
de nutrição. Acrescento eu que o germe, a certos respeitos, é um<br />
princípio; ao passo que o ovo não tem essa proprie<strong>da</strong>de, visto<br />
não ser o primeiro a existir. E, tão pouco é um todo, pois não<br />
possui to<strong>da</strong> a perfeição. Eis por que não dizemos que o animal<br />
não tivesse princípio, mas que tem um princípio de sua produ-
ção, que imprime à matéria a sua primeira transformação e lhe<br />
comunica uma facul<strong>da</strong>de generativa.<br />
“O ovo, ao invés, é uma superfectação, que, qual o leite e o<br />
sangue, sobrevém ao animal depois que ele faz a cocção dos<br />
alimentos. Nunca se viu ovo saído do lodo, pois só se forma no<br />
animal. Entretanto, no lodo <strong>na</strong>sce uma infini<strong>da</strong>de de animais. De<br />
parte outros exemplos, considere-se essa quanti<strong>da</strong>de de enguias<br />
apanha<strong>da</strong>s todos os dias e entre as quais nenhuma apresentará<br />
um germe ou um ovo. Esgote-se um poço, retire-se-lhe o lodo, e<br />
tanto que o encham novamente d'água, lá se engendrarão de<br />
novo enguias. Portanto, tudo o que depende de outro elemento<br />
para que possa existir, deve ser posterior a esse elemento e, ao<br />
contrário, tudo o que existe sem dependência de outrem, tem<br />
priori<strong>da</strong>de de geração, pois é disto que se trata. Dessarte, podemos<br />
crer que a primeira produção vem <strong>da</strong> terra, conseqüente à<br />
proprie<strong>da</strong>de que tem ela, a terra, de gerar por si mesma, sem<br />
necessi<strong>da</strong>de de órgãos e vasos que a <strong>Natureza</strong> imaginou mais<br />
tarde, a fim de prover a fraqueza dos seres geradores.”<br />
Estes raciocínios, que hoje nos causam pasmo, não são exclusivos<br />
de Plutarco. Todos os autores antigos são concordes neste<br />
ponto, e não raro encontramos os que levam a sua ousadia a<br />
representar Minerva batendo o pé para extrair do solo parelhas<br />
de cavalos e rebanhos. O relato de Verguio <strong>na</strong>s Geórgicas, a<br />
respeito de Aristeu, não é fantasia poética, é expressão geral <strong>da</strong><br />
crença de que as abelhas <strong>na</strong>sciam <strong>da</strong> carne putrefata. O pastor<br />
Aristeu perdera as suas queri<strong>da</strong>s abelhas, invoca sua divi<strong>na</strong> mãe<br />
e consegue criar novas colméias, imolando novilhos:<br />
Hic verum (subitum ac dictum mirabile monstrum)<br />
Auspícunt liquefacta boum per viscera toto<br />
Stridere apes utero, etc. 34<br />
Esta velha pendência <strong>da</strong>s gerações equívocas foi há pouco resumi<strong>da</strong><br />
por Milne-Edwards sob aspecto assaz interessante.<br />
Depois de mostrar que no reino mineral os corpos se formam por<br />
simples aderência molecular:<br />
“Todos sabem – diz ele 35 – que, quando se trata <strong>da</strong> formação<br />
de uma árvore, de um cavalo, a matéria que constitui essa árvore,
esse cavalo, seria impotente para integrar esse vegetal, esse<br />
animal, desde que não fosse atua<strong>da</strong> por um corpo já vivente – um<br />
animal <strong>da</strong> espécie do que vai <strong>na</strong>scer, ou um vegetal <strong>da</strong> mesma<br />
<strong>na</strong>tureza. Assim, <strong>na</strong> árvore como no cavalo, esta proprie<strong>da</strong>de<br />
particular, a que chamamos vi<strong>da</strong>, transmite-se, evidentemente. O<br />
novo ser é engendrado por um parente, que produz um ser semelhante.<br />
“Há, portanto, uma espécie de sucessão, de transmissão de<br />
força vital, ininterrupta, entre os indivíduos, que formam, no<br />
espaço e no tempo, uma cadeia de que se compõe ca<strong>da</strong> espécie.<br />
“Eis, por conseguinte, uma diferença fun<strong>da</strong>mental, essencial,<br />
entre os corpos brutos e os corpos vivos. O que dizemos <strong>da</strong><br />
árvore e do cavalo é aplicável a todos os vegetais e animais<br />
conhecidos. To<strong>da</strong>via, em <strong>da</strong><strong>da</strong>s circunstâncias, essa espécie de<br />
filiação não é fácil de verificar e tem escapado a observadores<br />
menos atentos e até, por vezes, aos mais hábeis. Assim, quando o<br />
cadáver de qualquer animal é entregue à influência atmosférica<br />
do ar, <strong>da</strong> umi<strong>da</strong>de, numa temperatura conveniente, – no Estio por<br />
exemplo – esse cadáver sofre uma alteração particular, a que<br />
chamamos putrefação. Em tal caso, vemos manifestarem-se no<br />
âmago dessa substância corpos vermiformes, gozando de to<strong>da</strong>s<br />
as proprie<strong>da</strong>des peculiares aos seres animados e, portanto, animais.<br />
Milhões de seres vivos <strong>na</strong>scem desse cadáver, ao passo<br />
que, enquanto vivo o animal, seu corpo nunca apresentou algo de<br />
análogo.<br />
“À primeira vista pelo menos, o que parece interromper-se é a<br />
filiação geradora. É comum ver-se nos campos poças d’água,<br />
forma<strong>da</strong>s pela chuva, logo se coalharem de insetos, de alguns<br />
crustáceos.<br />
“Outras vezes vemos, também, <strong>na</strong> vizinhança de sítios pantanosos,<br />
povoar-se o solo de pequenos répteis. Na maioria destes<br />
casos é difícil, à primeira vista, explicar por via de geração<br />
normal o surgimento desses novos seres. Tão grandes se afiguraram<br />
essas dificul<strong>da</strong>des aos <strong>na</strong>turalistas de antanho, que houveram<br />
de recorrer a uma hipótese particular para explicar a origem<br />
desses animais. Assim, julgaram indispensável admitir que a<br />
<strong>Natureza</strong> não segue o mesmo processo, quando se trata de ani-
mais superiores, quais os que emprega <strong>na</strong> constituição de espécies<br />
inferiores, como os insetos, morcegos, ratos e mesmo alguns<br />
peixes. Entre os filósofos antigos o papel <strong>da</strong> geração espontânea<br />
era considerado importantíssimo. Os <strong>na</strong>turalistas e filósofos <strong>da</strong><br />
I<strong>da</strong>de Média seguiram de olhos fechados os seus predecessores,<br />
e <strong>da</strong>í resultou que, durante catorze séculos, uma tal opinião<br />
imperou inconteste <strong>na</strong>s escolas. Admitia-se, como coisa bem<br />
comprova<strong>da</strong>, que os animais <strong>na</strong>sciam de duas formas: ora, à<br />
maneira dos corpos brutos, ora por transmissão <strong>da</strong> força vital,<br />
que sabemos existente nos animais que se engendram sucessivamente,<br />
devendo aos progenitores a existência, a forma, o tipo.<br />
Mas, <strong>na</strong> época <strong>da</strong> Re<strong>na</strong>scença, houve uma grande reviravolta nos<br />
espíritos. No século 17 constituiu-se em Florença uma socie<strong>da</strong>de<br />
de físicos, de <strong>na</strong>turalistas e médicos, com o fim de solucio<strong>na</strong>r<br />
algumas questões por meios experimentais. Essa agremiação<br />
denominou-se del cimente, isto é – <strong>da</strong> experiência. Um de seus<br />
membros, Redi, quis submeter a investigações positivas a teoria<br />
assaz generaliza<strong>da</strong> <strong>da</strong> geração espontânea. Quis saber se os seres<br />
novos eram engendrados sem progenitura de corpos vivos, ou se<br />
eram produto de organização espontânea <strong>da</strong> matéria morta;<br />
verificar, em suma, se a hipótese dos antigos tinha visos de<br />
ver<strong>da</strong>de. Tentou, então, a produção desses corpos vermiformes<br />
vulgarmente chamados minhoca, que, de modo algum, pertencem<br />
à classe dos vermes e são larvas de insetos. Sabe-se que, <strong>na</strong>s<br />
matérias animais em putrefação, essas larvas logo se revelam à<br />
temperatura mais eleva<strong>da</strong>, e isso foi o que observou o <strong>na</strong>turalista<br />
florentino. Notou que algumas moscas eram atraí<strong>da</strong>s de longe<br />
pelo cheiro <strong>da</strong> carne corrompi<strong>da</strong>, adejavam-lhe em torno, nela<br />
pousavam amiúde e, contudo, não pareciam alimentar-se com<br />
essa matéria. Conjeturou, então, que os vermes havidos como<br />
espontânea e exclusivamente formados pela matéria poderiam<br />
ser a prole <strong>da</strong>s ditas moscas. E notou, ain<strong>da</strong> mais, que esses<br />
presumidos vermes, desenvolvendo, transformavam-se em<br />
moscas. São pois, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, filhotes de mosca. Essa ver<strong>da</strong>de<br />
não podia satisfazer ao espírito do <strong>na</strong>turalista. Colocou, então, a<br />
carniça em vasos diferentes, uns abertos e outros cobertos de<br />
papel crivado de orifícios impenetráveis às moscas, mas arejáveis.<br />
Assim viu que as moscas acorriam procurando insinuar o
ventre nos orifícios do papel e que, neste caso, não se produziu<br />
um só corpo vermiforme. Noutra experiência, utilizou um pano<br />
com alguns buraquinhos acessíveis à operação <strong>da</strong>s moscas e viu<br />
desenvolver-se uma certa quanti<strong>da</strong>de de óvulos <strong>na</strong> carne apodreci<strong>da</strong>.”<br />
A presença de seres vivos no interior de um corpo ou de uma<br />
fruta, tanto quanto <strong>na</strong>s regiões profun<strong>da</strong>s do cadáver animal, era<br />
igualmente atribuí<strong>da</strong> à geração espontânea. Supunha-se que<br />
matérias orgânicas em putrefação nos intestinos eram a origem<br />
dos vermes.<br />
As observações de Vallisniéri e outros fisiologistas <strong>da</strong> época,<br />
com frutos e galhos, desmascararam essa crença. Reconheceu-se<br />
que todos esses parasitas não passavam de óvulos depositados<br />
por insetos.<br />
O mesmo se verificou com os infusórios, animálculos que parece<br />
formarem-se de elementos em dissolução n'água. Certa<br />
feita, Leuwenhoeck examinou ao microscópio a água <strong>da</strong> chuva<br />
caí<strong>da</strong> <strong>na</strong> sua janela e exposta ao ar por algum tempo: a princípio,<br />
a água lhe pareceu pura, mas exami<strong>na</strong>ndo-a ao fim de alguns<br />
dias, notou incalculável quanti<strong>da</strong>de de pequeninos seres, de uma<br />
tenui<strong>da</strong>de extrema, a moverem-se vivaces e com as características<br />
de ver<strong>da</strong>deiros animais. Tal descoberta teve grande repercussão<br />
e foi confirma<strong>da</strong> por outros observadores. Leuwenhoeck<br />
constatou que, to<strong>da</strong>s as vezes que expunha ao ar um pouco<br />
d'água contendo feno, papel e matérias orgânicas quaisquer,<br />
surgia um turbilhão de pequeníssimos seres de animali<strong>da</strong>de bem<br />
caracteriza<strong>da</strong>. Para explicar essa nova população, importava<br />
coligir que esses animálculos, provindos de seres preexistentes,<br />
eram carreados pelo ar atmosférico e depositados em germe, a<br />
menos que admitissem a hipótese dos antigos, <strong>da</strong> geração espontânea.<br />
A primeira teoria ressaltou, em geral, <strong>da</strong>s observações<br />
mais completas e rigorosas.<br />
Daí para cá, durante o último século e no transcurso do atual,<br />
a tese <strong>da</strong> geração espontânea foi intercorrentemente retoma<strong>da</strong> e<br />
interrompi<strong>da</strong>: retoma<strong>da</strong> a propósito de novas descobertas microscópicas,<br />
e interrompi<strong>da</strong> quando as experiências atestavam a<br />
origem animal ou vegetal dos germes desabrochados. Na hora
atual a controvérsia ressurge apaixo<strong>na</strong><strong>da</strong>mente, trata<strong>da</strong> por<br />
diversos experimentalistas, à frente dos quais citaremos Pouchet<br />
e Pasteur, o primeiro pró, e o segundo contra. Mas, ei-la já de<br />
novo suspensa e por um motivo que, diga-se, não deixará de<br />
parecer pueril para os nossos descendentes. É o caso que os<br />
contendores de ambos os campos não conseguem fazer-se entendidos,<br />
com o se reprocharem reciprocamente, e ao mesmo título<br />
de legitimi<strong>da</strong>de, de estar combatendo no vácuo.<br />
As experiências realiza<strong>da</strong>s nestes últimos anos e que recuaram<br />
a questão, sem resolvê-la, podem comparar-se às precedentes,<br />
já pela forma, já pelos resultados colhidos. Sucintamente, eis<br />
aqui uma dessas experiências:<br />
“Introduzamos num tubo de vidro de paredes muito delga<strong>da</strong>s<br />
e achata<strong>da</strong>s – diz o heterogenista Joly – um pouco d’água, um<br />
pouco de ar e alguns fragmentos de tecido vegeto-celular.<br />
“Fechemos a fogo a extremi<strong>da</strong>de do tubo e observemos o que<br />
se vai passar. Em primeiro lugar, veremos formar-se um amálgama<br />
de fi<strong>na</strong>s granulações, proveniente, sem dúvi<strong>da</strong>, do tecido<br />
vegetal já em desorganização. Pouco a pouco, <strong>na</strong>s bor<strong>da</strong>s do<br />
amálgama granuloso, destacar-se-ão peque<strong>na</strong>s excrescências de<br />
transparência perfeita, mas, ain<strong>da</strong> inertes. É o bacteríum terma<br />
em vias de formação. Esperemos ain<strong>da</strong> três ou quatro horas e já<br />
os animálculos livres se agitarão visíveis, como se ensaiassem<br />
uma existência; outros virão juntar-se-lhes e bem depressa o<br />
número será tal que não podereis contá-los. Após 6 horas de<br />
observação contínua, vossos olhos recusarão obedecer-vos,<br />
estareis fatigado como aconteceu a Mantegazza, mas, tanto<br />
quanto ele, maravilhado de haver surpreendido a vi<strong>da</strong> no seu<br />
berço.”<br />
Qual a origem desses seres vivos, articulados peça a peça sobre<br />
essa matéria orgânica, sem filiação de progenitura? Os<br />
adversários respondem que o ar está povoado por miríades de<br />
germes em suspensão e que destes germes provêm aqueles seres.<br />
Antes que o demonstrem, vão eles ao cume do “Montanvert”,<br />
fervem as substâncias orgânicas e parece que a dita geração<br />
espontânea não mais se produz.
Eis o em que se resume o debate. Para nós, sem prevenções<br />
contra ou a favor, pensamos haver um fato no qual não se há<br />
pensado bastante, nem talvez de modo algum, e que nos parece<br />
digno de representar um papel nesse drama de microscopia.<br />
A vi<strong>da</strong> está universalmente difundi<strong>da</strong> por to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>, a<br />
Terra é ânfora assaz exígua para conter a vi<strong>da</strong>, que desbor<strong>da</strong> em<br />
qualquer parte e, não contente de repletar águas e terras, inorgânica,<br />
ela se acumula em si mesma, vive à sua própria custa,<br />
cobre de parasitas animais e plantas, desdobra florestas no dorso<br />
de um elefante e faz, de uma simples folha verde, o pascigo de<br />
rebanhos inumeráveis. Ora, essa vi<strong>da</strong> múltipla, insaciável, inumerável,<br />
povoa de animálculos ca<strong>da</strong> espécie de seres e de substâncias.<br />
Quando, pois, vemos os saltões crescerem no interior do<br />
queijo; vermes aflorarem do cadáver; infusórios flutuarem num<br />
líquido, não se trataria de animálculos já existentes em germe<br />
num estado inferior, no leite, no animal vivo, no líquido, e que se<br />
metamorfoseiam por influência <strong>da</strong>s condições novas em que se<br />
encontram colocados? Sabemos, porventura, quantas espécies de<br />
vegetais e animais vivem em nosso corpo?<br />
O ovo <strong>da</strong> tênia semeia-se em profusão; nos tecidos do porco e<br />
do carneiro ele é o humílimo cisticerco, e só no intestino começa<br />
a desenvolver seus inumeráveis anéis, vivendo <strong>na</strong>s duas hospe<strong>da</strong>rias,<br />
isto é, no animal e no homem. Nós o absorvemos <strong>na</strong><br />
costeleta de porco ou <strong>na</strong> fatia de carneiro, e <strong>da</strong>í por diante ela – a<br />
tênis – se instalará em nossa casa, sem outros cui<strong>da</strong>dos que os de<br />
primeiro inquilino.<br />
As moscas <strong>da</strong> semente de couve e <strong>da</strong> farinha fazem mora<strong>da</strong><br />
em nosso estômago. Em sua maioria, estes familiares <strong>da</strong> nossa<br />
intimi<strong>da</strong>de são inofensivos, mas alguns há, pérfidos, que acabam<br />
matando o seu benfeitor. Quem não acompanhou a discussão<br />
concernente à triquinose? Desde a descoberta do microscópio,<br />
quantos parasitas não se hão encontrado em nosso sangue, em<br />
nossa carne, em nosso pulmão; nos dentes, nos olhos, <strong>na</strong>s papuas<br />
<strong>na</strong>sais? Nutrimos carnívoros e herbívoros; temos peixes de água<br />
doce a circular em nossas veias, e peixes de água salga<strong>da</strong> a<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong>rem no oceano de nossas artérias. Há uma espécie de fúcus<br />
que vegeta nos pulmões tuberculosos. As excreções <strong>da</strong> língua de
um febrento compõe-se de multidão de infusórios. Um médico<br />
célebre, nosso amigo, tem observado muitas vezes erupções<br />
bruscas de milhares de piolhos em doentes atacados de tifo (a<br />
extraordinária prolifici<strong>da</strong>de desses ápteros bastaria para explicar<br />
essa multiplicação). Os coleópteros não esperam nossa morte<br />
para abando<strong>na</strong>r o seu domicílio habitual. Imperceptíveis insetos<br />
penetram-nos os pulmões e aí proliferam, de geração em geração.<br />
Já se encontrou no esôfago dos bois famílias inteiras de<br />
sanguessugas, indubitavelmente engoli<strong>da</strong>s em estado microscópico<br />
e lá criando o seu “habitat”. O estômago do cavalo constitui<br />
ambiente atmosférico insalubre, adequado à vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s ostras.<br />
Quantas espécies não vivem nos seres animados, sem que estes<br />
os percebam, isto sem falarmos dos parasitas externos, quais a<br />
pulga, o piolho. o percevejo, o sarcopto, etc.? Disse um filósofo<br />
que to<strong>da</strong>s as partes de um ser vivo são individualmente viventes<br />
e que já é ousa<strong>da</strong> temeri<strong>da</strong>de enxergar nos animais superiores um<br />
edifício celular habitado por multidão inconcebível de animais<br />
elementares. Ora, assim sendo, tudo é vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Não<br />
somente no ar como <strong>na</strong>s águas, corpúsculos flutuantes, elementos<br />
orgânicos e inorgânicos são portadores de uma vi<strong>da</strong> invisível,<br />
espécies que experimentam três fases comuns ao mundo dos<br />
insetos, a revelarem-se sob uma ou outra dessas metamorfoses,<br />
conforme as condições térmicas de calor e umi<strong>da</strong>de que as<br />
envolvam.<br />
Encara<strong>da</strong>s sob este aspecto, as gerações espontâneas deixariam<br />
de ter seu ver<strong>da</strong>deiro nome, deveriam somente nos representar<br />
uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> universal, que palpita em ca<strong>da</strong><br />
átomo de matéria. – E esta maneira de prismar a questão é tanto<br />
mais fun<strong>da</strong><strong>da</strong> quanto ca<strong>da</strong> espécie surge e se mantém constante,<br />
em relação à substância particular que parece pertencer-lhe. O<br />
infusório do feno não se encontra <strong>na</strong> sua fervura e o fermento do<br />
vinho não é o mesmo que o do queijo.<br />
Mas, seja como for, o mistério desven<strong>da</strong>do sob a aparência <strong>da</strong><br />
geração espontânea está longe de aclarar-se. Qualquer dia e certo<br />
sem muita delonga, hão de retomar o debate no ponto em que<br />
Láquesis acaba de o encerrar. Quanto ao mais, no pé em que está<br />
a questão, o que diz com a criação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> conserva a sua velha
independência, indene <strong>da</strong>s armas <strong>da</strong> Heterogenia, quanto <strong>da</strong><br />
Panspermia. A luta cessou à míngua de recursos. Atualmente é<br />
impossível saber se o ar mais puro, colhido no cume <strong>da</strong>s montanhas<br />
neva<strong>da</strong>s, não contém germes. Impossível, igualmente, saber<br />
se esses germes não resistem a temperaturas de mais de cem<br />
graus. A nós nos pareceu que os experimentadores teriam o<br />
insucesso (o que de resto é <strong>na</strong>tural), e não operavam com o rigor<br />
que teriam se fossem estrangeiros ou adversários. De qualquer<br />
forma, porém, o problema continuou insolúvel. O que mais<br />
vivamente nos impressionou <strong>na</strong> justa foi a idéia preconcebi<strong>da</strong> de<br />
ambos os lados, aliás, mais de um que do outro. Pretendia-se<br />
encarar de um modo absoluto a questão, como de <strong>na</strong>tureza<br />
teológica, quando a ver<strong>da</strong>de é que o resultado <strong>da</strong>s experiências<br />
em <strong>na</strong><strong>da</strong> afeta a Teologia. É uma declaração que vai talvez<br />
surpreender alguns leitores. Entretanto, se profun<strong>da</strong>rmos o<br />
assunto, haveremos de convir que a pecha de ateísmo lança<strong>da</strong> em<br />
rosto aos partidários <strong>da</strong> geração espontânea não cabe aos que, a<br />
exemplo ao Sr. Pouchet, não interpretam teologicamente tais<br />
experiências; e os que assim não procedem, incidem <strong>na</strong> maior<br />
<strong>da</strong>s vani<strong>da</strong>des, quando concluem pela inexistência de <strong>Deus</strong> 36 .<br />
Acreditar que seres vivos, vegetais ou animais, possam <strong>na</strong>scer<br />
espontaneamente <strong>da</strong> combi<strong>na</strong>ção de certos elementos, não é<br />
maior sacrilégio que acreditar os planetas destacados do Sol, ou<br />
que a galga seja prima do cão dos Pireneus. O Ser Supremo <strong>na</strong><strong>da</strong><br />
tem a ver com essas interpretações superficiais, que constituem,<br />
por assim dizer, o campo de car<strong>na</strong>gem dos míticos pensadores.<br />
Os micrógrafos mutuamente desacreditaram a sua causa, fazendo<br />
baixar às suas retortas as potências criadoras. Acreditarão<br />
eles que, <strong>da</strong>do pudesse a matéria inerte tor<strong>na</strong>r-se semiorganiza<strong>da</strong>,<br />
e depois organiza<strong>da</strong>, sob a influência de tais e quais<br />
forças, teriam suprimido a causa sobera<strong>na</strong> dos domínios <strong>da</strong><br />
<strong>Natureza</strong>? Absolutamente. O que tais experiências inculcam, e<br />
eles em sua maioria ignoram, é o protesto contra o <strong>Deus</strong> humano<br />
e a elevação do espírito a concepções mais puras e mais grandiosas,<br />
do misterioso Criador.<br />
Será rebaixar a idéia de <strong>Deus</strong> o considerar o Universo um<br />
como gigantesco desdobramento de uma obra única, cujas mo<strong>da</strong>-
li<strong>da</strong>des se manifestam multifárias e cujos poderes se traduzem<br />
em forças particulares, distintas? A substância primitiva ocupa o<br />
espaço ilimitado. O plano divino está em que esta substância seja<br />
um dia condensa<strong>da</strong> em mundos, nos quais a vi<strong>da</strong> e a inteligência<br />
hajam de irradiar esplendores. A luz, o calor, a eletrici<strong>da</strong>de, o<br />
magnetismo, a atração, o movimento sob mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des desconheci<strong>da</strong>s<br />
percorrem, atravessam essa substância primordial, como o<br />
vento <strong>da</strong> Grécia, que, ao tempo de Pan, timbrava as harpas eólias<br />
no âmbito <strong>da</strong> noite. Que mão empunha o arco e preludia o mais<br />
magnificente dos coros? Não pode a inteligência huma<strong>na</strong> definilo.<br />
Escutemos, atentos, o longínquo concerto <strong>da</strong> Criação.<br />
No amanhecer <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> terrestre, já os sóis esplendiam, de<br />
há muito, <strong>na</strong> amplidão dos céus, a gravitarem harmônicos em<br />
suas órbitas, sob a regência <strong>da</strong> mesma lei universal que ain<strong>da</strong><br />
hoje os rege. Era o primeiro dia <strong>da</strong> Terra. Solidões oceânicas,<br />
tempestades ígneas, rupturas formidáveis de águas e nuvens<br />
viram chegar-lhes, alfim, uma paz desconheci<strong>da</strong>. Raios de ouro<br />
atravessaram as nuvens; um céu azul to<strong>na</strong>lizou a atmosfera; um<br />
belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol nesse dia. Então, já não<br />
eram dias e anos a contar, pois períodos imensos, incalculáveis,<br />
já lhe haviam coberto o berço. Os astros são jovens, ain<strong>da</strong> quando<br />
miríades de gestações tenham sucumbido. As ilhas surgiram,<br />
então, do seio <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s e a primeira verdura estendeu pelas<br />
praias o seu manto virgi<strong>na</strong>l. Muito tempo depois, <strong>da</strong>s galha<strong>da</strong>s<br />
vindes rebentaram flores, de cujos lábios entreabertos se exalavam<br />
perfumes. Mais tarde, no bojo profundo <strong>da</strong>s florestas repercutiu<br />
o canto <strong>da</strong>s aves e os hóspedes fabulosos dos mares primitivos<br />
cruzaram-se no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra se<br />
<strong>da</strong>va aos espasmos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, anima<strong>da</strong> pelo sopro imortal, vendo<br />
luzes e sombras perpassarem-lhe a face. Suponhamos, um momento,<br />
que a força orgânica, que hoje se transmite de geração a<br />
geração, tenha aparecido como uma resultante <strong>na</strong>tural e inevitável<br />
<strong>da</strong>s condições fecun<strong>da</strong>s em que se achava a Terra quando<br />
soou a era <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; suponhamos as primeiras células orgânicas<br />
diversamente constituí<strong>da</strong>s, formando tipos primordiais distintos,<br />
ain<strong>da</strong> que simples, pobres, grosseiros, sejam as cepas de sucessivas<br />
varie<strong>da</strong>des; suponhamos, enfim, que to<strong>da</strong>s as espécies vege-
tais e animais, inclusive a huma<strong>na</strong>, sejam o resultado de transformações<br />
lentas, opera<strong>da</strong>s sob condições progressivas do planeta,<br />
e perguntemos em que, e como, pode essa teoria nulificar a<br />
necessi<strong>da</strong>de dum criador e organizador imanente? Quem deu<br />
essas leis ao Universo? Quem organizou essa fecundi<strong>da</strong>de?<br />
Quem imprimiu à <strong>Natureza</strong> essa tendência perpetuamente progressiva?<br />
Quem deu aos elementos materiais a facul<strong>da</strong>de de<br />
produzir ou de receber a vi<strong>da</strong>? Quem concebeu a arquitetura<br />
desses corpos animados, desses edifícios maravilhosos, nos quais<br />
todos os órgãos tendem a um mesmo fim? Quem presidiu à<br />
conservação dos indivíduos e <strong>da</strong>s espécies <strong>na</strong> trama inimitável<br />
dos tecidos, dos arcabouços, dos mecanismos – pelo dom previdente<br />
do instinto, por to<strong>da</strong>s as facul<strong>da</strong>des, enfim, que possuem<br />
respectivamente todos os seres vivos e ca<strong>da</strong> qual de acordo com<br />
o seu papel no cenáculo do mundo? Numa palavra: – se a força<br />
vital é uma força <strong>da</strong> mesma <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong>s forças moleculares,<br />
insistamos no perguntar: – quem é o seu autor? Seria por não<br />
haver esse autor fabricado tudo com as próprias mãos, que<br />
haveríeis de o negar?<br />
De boa fé, supondes que, se em lugar de escrever letra a letra,<br />
palavra a palavra, esta obra e enviá-la à Livraria Acadêmica, que<br />
a confiou a um tipógrafo; o qual, por sua vez, entregou-a ao<br />
pagi<strong>na</strong>dor, que, por sua vez, a confiou aos contra-mestres e<br />
aprendizes, etc.; e depois, ain<strong>da</strong> me obrigou a corrigir provas –<br />
sem falarmos <strong>na</strong> escolha do papel, do formato, número de pági<strong>na</strong>s,<br />
encader<strong>na</strong>ção, tudo enfim que representa a fatura de um<br />
livro; – supondes, repito, que, depois de haver o livro passado<br />
por tantos trâmites, deixasse eu de ser o seu legítimo autor,<br />
bastando ape<strong>na</strong>s querê-lo para que o plano instantaneamente se<br />
completasse? Acreditais que, por haver simplesmente coorde<strong>na</strong>do<br />
certas regras, em virtude <strong>da</strong>s quais a idéia expressa em tinta,<br />
papel, chumbo; – agentes inertes e cegos, atuados sob a minha<br />
vigilância constante – se materializou em parte, tão invisivelmente<br />
quanto me eclodiu do cérebro, me tenha destituído de<br />
legítima autoria desta obra? Por mim, senhores materialistas,<br />
ficaria muito satisfeito só com o poder evitar a revisão <strong>da</strong>s<br />
provas, que, já o dizia Balzac, é o suplício infer<strong>na</strong>l dos escrito-
es. E se algum pândego de mau gosto apregoasse pelas ruas de<br />
Paris que meu livro se fizera por si mesmo, eu haveria de rir à<br />
vontade e não deixaria de interessar-me por um tão precioso<br />
privilégio.<br />
Fosse-me permitido o paralelo entre o livro <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e o<br />
meu, e creio que faria coisa assim como comparar uma boneca<br />
mecânica à Vênus de Milus, viva, ou, então, as ro<strong>da</strong>s do relógio<br />
apresentado a Carlos Magno pelo califa Haron-al-Raschid, ao<br />
mecanismo do sistema universal.<br />
To<strong>da</strong>via, não sereis vós quem há de elevar meu trabalho às<br />
alturas <strong>da</strong> Criação <strong>na</strong>tural. Se a bonequinha mais insignificante e<br />
o mecanismo mais tosco revelam a Voltaire a existência de um<br />
ou de vários fabricantes, a que se reduz a negação dos que recusam<br />
identificar um arquiteto <strong>na</strong> sublima<strong>da</strong> harmonia do edifício<br />
cósmico?<br />
Assim é que, seja qual for o círculo arbitrário, imagi<strong>na</strong>do em<br />
torno <strong>da</strong> ação sensível do Criador e mediante o qual preten<strong>da</strong>mos<br />
limitar a sua presença, a idéia de <strong>Deus</strong> nos escapa, sempre, pela<br />
tangente, com singular sutileza. Essa proprie<strong>da</strong>de particular <strong>da</strong><br />
idéia do ser incriado manifesta-se em ca<strong>da</strong> conclusão do nosso<br />
arrazoado!<br />
Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um teólogo<br />
anglicano incumbido de ajeitar as coisas e manter em perpétuo<br />
acordo a consciência do <strong>na</strong>turalista eminente com as pretendi<strong>da</strong>s<br />
conseqüências <strong>da</strong> sua teoria <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural. De resto, o<br />
tradutor feminino <strong>da</strong> obra teve o cui<strong>da</strong>do de nos advertir que,<br />
“em vão, protesta o autor não ser o seu sistema em <strong>na</strong><strong>da</strong> contrário<br />
à idéia de divin<strong>da</strong>de”. Pelo que nos toca, é com íntima satisfação<br />
que aqui juntamos às nossas convicções pessoais as do<br />
autor <strong>da</strong> Origem <strong>da</strong>s Espécies: “Não vejo em que possam as<br />
teorias expostas nesta obra melindrar os sentimentos religiosos<br />
de quem quer que seja. Por demonstrar quanto são inconscientes<br />
essas impressões, basta lembrar que a maior <strong>da</strong>s descobertas<br />
huma<strong>na</strong>s – a <strong>da</strong> lei de gravitação – foi hostiliza<strong>da</strong> pelo próprio<br />
Leibnitz como subversiva <strong>da</strong> religião <strong>na</strong>tural. Notável autor<br />
sacro escreveu-me, em tempo, ter chegado gra<strong>da</strong>tivamente a<br />
convencer-se de que a criação divi<strong>na</strong> <strong>da</strong>s formas simples, origi-
<strong>na</strong>is, capazes de por si evoluírem e transformarem-se em formas<br />
úteis, era concepção mais justa e compatível com a majestade do<br />
Supremo Ser, do que presumir a necessi<strong>da</strong>de de um novo ato<br />
criador, a fim de encher os vácuos causados pelo funcio<strong>na</strong>mento<br />
<strong>da</strong>s suas próprias leis. Autores eminentes mostram-se inteiramente<br />
satisfeitos com a hipótese <strong>da</strong> criação independente de ca<strong>da</strong><br />
espécie. A meu ver, o que conhecemos <strong>da</strong>s leis impostas à matéria,<br />
pelo Criador, está mais de acordo com a formação e extinção<br />
dos seres presentes e passados por causas secundárias, semelhantes<br />
às que determi<strong>na</strong>m o <strong>na</strong>scimento e a morte dos indivíduos.<br />
Quando encaro todos os seres não como criações especiais, mas<br />
como descendentes em linha direta de seres que viveram anteriormente<br />
aos depósitos do sistema siluriano, eles me parecem<br />
enobrecidos.”<br />
Mais adiante, acrescenta o mesmo <strong>na</strong>turalista:<br />
“Que interesse nos desperta o espetáculo de uma praia coberta<br />
de vegetação, pássaros cantando, insetos voejando, anelídeos<br />
ou larvas rastejando no solo úmido, ao pensarmos que to<strong>da</strong>s<br />
essas formas elabora<strong>da</strong>s com tanto cui<strong>da</strong>do, paciência, habili<strong>da</strong>de<br />
e dependentes umas de outras por uma série de relações<br />
complica<strong>da</strong>s, foram to<strong>da</strong>s produzi<strong>da</strong>s por leis de uma contínua<br />
ativi<strong>da</strong>de em torno de nós! Essas leis, toma<strong>da</strong>s em seu mais lato<br />
sentido, enumeramo-las aqui: – de crescimento e reprodução; de<br />
hereditarie<strong>da</strong>de, quase implícita <strong>na</strong>s precedentes; de variabili<strong>da</strong>de<br />
sob a ação direta ou indireta <strong>da</strong>s condições exteriores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />
e do uso ou <strong>da</strong> falta de exercício dos órgãos; <strong>da</strong> multiplicação<br />
<strong>da</strong>s espécies em sentido geométrico, a produzir a concorrência<br />
vital e a eleição <strong>na</strong>tural e, <strong>da</strong>í, a divergência de caracteres e<br />
extinção <strong>da</strong>s formas específicas.<br />
“É assim que, <strong>da</strong> guerra <strong>na</strong>tural, <strong>da</strong> fome e <strong>da</strong> morte, resulta o<br />
mais admirável dos efeitos que possamos conceber: – a formação<br />
lenta dos seres superiores. No encarar a vi<strong>da</strong> e suas potências<br />
animando origi<strong>na</strong>riamente algumas ou uma única forma simples,<br />
ao influxo do Criador, também há grandeza. E enquanto o planeta<br />
seguiu descrevendo os seus círculos perpétuos, de acordo com<br />
as leis fixas <strong>da</strong> gravitação, formas inumeráveis, ca<strong>da</strong> vez mais
elas e maravilhosas, se desenvolveram e se desenvolverão,<br />
mediante uma evolução sem fim” 37 .<br />
Declarações interessantes que importa registrar, para opô-las<br />
aos nossos materialistas.<br />
Pretendem estes que a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> geração espontânea, sustenta<strong>da</strong><br />
pelo Sr. Pouchet e a <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s espécies, ampara<strong>da</strong><br />
pelo Sr. Darwin, destroem, ambas, a idéia de <strong>Deus</strong>, e eis que,<br />
nem um nem outro admite essa acusação e protestam contra a<br />
ilusão dos nossos adversários. Nisto, pois, como em tudo o mais,<br />
são eles logrados por uma falsa miragem. Consignemos, assim,<br />
como novos <strong>da</strong>dos, este duplo e valioso fato. Em primeiro lugar,<br />
os materialistas não têm o direito de se apoiarem <strong>na</strong> geração<br />
espontânea para concluir pela não existência de <strong>Deus</strong>:<br />
1º - porque essa geração não está prova<strong>da</strong>, e<br />
2º - porque, se o estivera, não acarretaria uma tal conseqüência.<br />
Em segundo lugar, não têm o direito de afeiçoar ao seu ponto<br />
de vista o sistema do transformismo <strong>da</strong>s espécies, já porque tal<br />
sistema não está provado, e já porque ele não afeta a questão<br />
domi<strong>na</strong>nte <strong>da</strong>s origens <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Se estivesse provado que os vegetais e animais inferiores são<br />
formados por geração espontânea, no âmago <strong>da</strong> matéria inorgânica,<br />
haveria grandes probabili<strong>da</strong>des para crer que assim sucedesse,<br />
e com mais forte razão, com a origem <strong>da</strong>s espécies. Os<br />
partidários <strong>da</strong>s transformações específicas chegaram mesmo a<br />
apoiar-se <strong>na</strong> doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong>s gerações espontâneas para explicar a<br />
existência, ain<strong>da</strong> hoje, de inúmeras formas inferiores, apesar <strong>da</strong><br />
tendência <strong>da</strong>s espécies primitivas para se aperfeiçoarem. Por<br />
isso, admitem que a Criação não completou a sua tarefa e ain<strong>da</strong><br />
hoje se verifica nesses extremos. Era a opinião de Lamarck.<br />
Cumpre observar que o chefe do movimento atual não compartilha<br />
tais idéias e nem mesmo acredita <strong>na</strong> geração espontânea. “A<br />
seleção <strong>na</strong>tural – diz Darwin – não afeta nenhuma lei necessária<br />
e universal de desenvolvimento e de progresso. Ela cogita,<br />
ape<strong>na</strong>s, de to<strong>da</strong> e qualquer variação que se apresenta, quando<br />
vantajosa à espécie ou aos seus representantes. Tenho ape<strong>na</strong>s
necessi<strong>da</strong>de de aqui dizer – declara ele mais além – que a Ciência<br />
em seu estado atual não admite, em geral, que seres vivos,<br />
ain<strong>da</strong> hoje, se elaborem no seio <strong>da</strong> matéria inorgânica.”<br />
Vale notar que não são os sábios, nem mesmo os experimentadores,<br />
que proclamam as doutri<strong>na</strong>s por nós combati<strong>da</strong>s e sim<br />
pretensos filósofos, que, apoderando-se dos estudos científicos<br />
<strong>da</strong>queles, querem, a to<strong>da</strong> força, tirar conclusões repudia<strong>da</strong>s pelos<br />
próprios cientistas. Temos o dever de desmascarar-lhes o jogo e<br />
demonstrar com a confissão dos próprios experimentadores<br />
ilustres, que, se o sistema materialista se obsti<strong>na</strong> ingenuamente a<br />
exibi-los de público, assentados no seu palco teatral, não passa<br />
isso de mero efeito fantasmagórico, pura ilusão ótica.<br />
Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Fremy, que pensou<br />
ter notado corpos indecisos <strong>na</strong> fronteira dos dois reinos (corpos a<br />
que chamou semi-organizados) e foi por isso logo inculcado<br />
pelos doutri<strong>na</strong>ristas como porta-bandeira do materialismo para a<br />
hipótese <strong>da</strong> geração espontânea. Pois vejamos o que disse este<br />
químico no Instituto:<br />
“Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a idéia de geração<br />
espontânea, toma<strong>da</strong> no sentido de produção de um ser organizado,<br />
por mais simples que seja, com elementos que não<br />
possuem a força vital. A síntese química permite, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />
reproduzir grande número de princípios imediatos de origem<br />
vegetal ou animal, mas a organização opõe, a meu ver, uma<br />
barreira intransponível às reproduções sintéticas. Ao lado dos<br />
princípios imediatos, definidos, que a síntese pode formar, há<br />
substâncias outras menos estáveis que as precedentes, mas<br />
também muito mais complexas quanto à sua constituição e que<br />
podem ser desig<strong>na</strong><strong>da</strong>s sob o título genérico de corpos semiorganizados.<br />
“Esses corpos apresentam-se em conexão com a organização,<br />
com a formação dos tecidos, com a produção dos fermentos e a<br />
putrefação, quase no mesmo estado <strong>da</strong> semente ressequi<strong>da</strong>, que<br />
leva anos e anos sem apresentar si<strong>na</strong>is de vegetação, para germi<strong>na</strong>r<br />
logo que submeti<strong>da</strong> às influências do ar, do calor e <strong>da</strong> umi<strong>da</strong>de.
“Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em estado<br />
de imobili<strong>da</strong>de orgânica durante muito tempo, mas também<br />
podem sair desse estado à custa <strong>da</strong> própria substância, sob os<br />
elementos de organização, desde que as circunstâncias favoreçam<br />
o desenvolvimento orgânico.”<br />
Na atuali<strong>da</strong>de não se pode, portanto, cientificamente, depor a<br />
favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão força<strong>da</strong><br />
longe está de esclarecer a questão <strong>da</strong> geração primitiva. O mistério<br />
permanece tão profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem<br />
seres vivos <strong>na</strong> Terra, eis o fato. De onde vêm eles? Conhecemos<br />
astrólogos (ain<strong>da</strong> os há) que escreveram grandes calhamaços<br />
para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros<br />
planetas, <strong>na</strong> asa de qualquer cometa aventuroso, ou gru<strong>da</strong>dos<br />
<strong>na</strong>lgum bojudo aerólito. Conhecemos sonhadores que pretendem<br />
hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecun<strong>da</strong>ção<br />
de eflúvios planetários e estelares. Isso, porém, é romantismo.<br />
De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que<br />
sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificul<strong>da</strong>de<br />
teria contra si a agravante <strong>da</strong> falsi<strong>da</strong>de, de vez que as cama<strong>da</strong>s<br />
geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em<br />
que surgiram diferentes espécies. Se não existe ser orgânico<br />
algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de ca<strong>da</strong><br />
espécie? A Bíblia responde que foi <strong>Deus</strong>. Perfeitamente, mas<br />
como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: –<br />
<strong>Deus</strong> fala? – objetam os gracejadores, lembrando-se de que o<br />
som não se propaga no vácuo... Súbito efeito <strong>da</strong> vontade divi<strong>na</strong>?<br />
Neste caso, de que forma? Os livros revelados <strong>na</strong><strong>da</strong> têm de<br />
explícitos e podemos interpretá-los a favor <strong>da</strong> geração espontânea<br />
(em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido<br />
contrário: “<strong>Deus</strong> diz: – Que a terra produza a erva tenra, contendo<br />
a semente e árvores que dêem fruto, ca<strong>da</strong> qual <strong>da</strong> sua espécie,<br />
e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre<br />
a terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo<br />
a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas<br />
sementes peculiares à espécie. E <strong>Deus</strong> viu que isso era bom.<br />
“E <strong>da</strong> noite <strong>da</strong> manhã surgiu o terceiro dia. Disse <strong>Deus</strong>, então:<br />
Que as águas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves
que voem acima <strong>da</strong> terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou,<br />
dizendo: Crescei e multiplicai, povoai as águas do mar e<br />
que as aves se multipliquem sobre a terra.<br />
“E <strong>da</strong> noite e <strong>da</strong> manhã surgiu o quinto dia. <strong>Deus</strong> disse, então:<br />
Que a terra produza animais vivos, ca<strong>da</strong> qual <strong>na</strong> sua espécie, os<br />
domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito” 38 .<br />
Aí temos o que muito se assemelha à geração espontânea. De<br />
resto, os Santos Padres professaram essa doutri<strong>na</strong>. A de Humboldt<br />
achou muito curioso que Santo Agostinho, encarando o<br />
povoamento <strong>da</strong>s ilhas, após o dilúvio, não se mostrasse muito<br />
longe de recorrer à hipótese de uma geração espontânea<br />
(Generatio aequivoca apontanea atst primaria). “Se os anjos ou<br />
os caçadores do continente – diz esse Pai <strong>da</strong> Igreja – não transportaram<br />
animais a essas ilhas afasta<strong>da</strong>s, é força admitir que o<br />
solo os tenha engendrado; mas, neste caso, pergunta-se: – por<br />
que encerrar <strong>na</strong> Arca animais de to<strong>da</strong> espécie?” Dois séculos<br />
antes do bispo de Hipo<strong>na</strong>, vamos encontrar no compêndio de<br />
Trogue-Pompéia, já estabeleci<strong>da</strong> a propósito <strong>da</strong> dissecação<br />
primitiva do mundo antigo, do pla<strong>na</strong>lto asiático, a<strong>na</strong>logia com a<br />
geração espontânea ou, seja, uma conexi<strong>da</strong>de semelhante à que<br />
se depara <strong>na</strong> teoria de Linneu, acerca do paraíso terreal, com as<br />
investigações do século 18 sobre a Atlânti<strong>da</strong> fabulosa.<br />
Quanto ao mais, em que pese à igni<strong>da</strong>de dos seus discursos,<br />
estes Mirabeaus <strong>da</strong> tribu<strong>na</strong> positivista encontram-se, fun<strong>da</strong>mentalmente,<br />
em ignorância e indecisão absolutas, no que concerne à<br />
origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Em vão lançam sobre o mistério o véu dos<br />
talvez; em vão se entretêm a imagi<strong>na</strong>r mil metamorfoses.<br />
Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o<br />
caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem<br />
maior alarde, eles deixam perceber confissões que nos permitimos<br />
aqui glosar para edificação do auditório. “Enigma insolúvel<br />
– diz B. Cotta – que não podemos deixar de atribuir à potência<br />
imperscrutável de um Criador, eis o que se nos afigura sempre a<br />
origem <strong>da</strong> matéria, bem como o <strong>na</strong>scimento dos seres orgânicos.”<br />
Eis uma confissão dig<strong>na</strong> de um espiritualista. Büchner, por<br />
outro lado, diz: – “É preciso atribuir à geração espontânea um<br />
papel mais importante nos tempos primitivos em relação aos
atuais, visto não se poder negar que ela tenha engendrado, então,<br />
organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta logo:<br />
“Ver<strong>da</strong>de é que nos faltam provas e mesmo conjeturas plausíveis<br />
dos pormenores desses espécimes, o que estamos longe de<br />
negar.” E, voltando à idéia domi<strong>na</strong>nte, declara imediatamente<br />
que – “seja qual for a nossa ignorância, devemos dizer convictamente<br />
que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem<br />
intervenção de qualquer força exterior”.<br />
Carl Vogt, a exemplo dos pré-citados, reconhece que as forças<br />
físico-químicas conheci<strong>da</strong>s não bastam, só por si, para explicar<br />
a origem dos organismos. Todo ser vivo, vegetal ou animal,<br />
tem sua origem essencial <strong>na</strong> célula orgânica, ou ovo. Antes de<br />
tudo, havemos de admitir que essa origem essencial foi cria<strong>da</strong>,<br />
sem sabermos como. Só depois dessa premissa admiti<strong>da</strong> é que<br />
começam as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que<br />
isso tivesse sucedido uma única vez – diz o autor <strong>da</strong>s Lições<br />
sobre o Homem – mediante ação simultânea de fatores diversos,<br />
que não conhecemos, é lícito concluir que houvesse podido<br />
formar-se uma célula orgânica a expensas dos elementos químicos,<br />
e tor<strong>na</strong>-se evidente que a mais ligeira modificação devesse<br />
determi<strong>na</strong>r imediata modificação no objeto produzido, isto é, <strong>na</strong><br />
célula. Mas, como não podemos admitir que, sobre to<strong>da</strong> a superfície<br />
terrestre, as mesmas causas tenham atuado e ain<strong>da</strong> atuem<br />
<strong>na</strong>s mesmas condições e com a mesma energia, <strong>na</strong> criação <strong>da</strong><br />
célula primitiva; e que, por outro lado, a criação orgânica haveria<br />
de estender-se por to<strong>da</strong> a Terra, conclui-se, necessariamente, que<br />
as primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões<br />
de desenvolvimento diferentes.”<br />
Wirchow não explica melhor a questão de origem. “Em certa<br />
fase de desenvolvimento <strong>da</strong> Terra – diz – sobrevieram condições<br />
anormais, sob as quais, entrando em novas combi<strong>na</strong>ções, os<br />
elementos recebiam o movimento vital, donde as condições<br />
ordinárias se tor<strong>na</strong>ram vitais.”<br />
Quanto a Carlos Darwin, em vão temos rebuscado a sua opinião,<br />
mesmo quanto à origem <strong>da</strong>s espécies. Contenta-se ele com<br />
o explicar a variabili<strong>da</strong>de possível dum certo número de tipos<br />
primitivos, e é uma nota no mínimo singular, que, em obra tão
volumosa e opulenta sobre a origem dos seres, não se trate<br />
absolutamente dessa origem!<br />
O problema é obscuro: a distância do <strong>na</strong><strong>da</strong> a alguma coisa é<br />
maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que<br />
se filiem nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas,<br />
todos estamos assomados pelo inexplicável mistério <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Porque não reconhecer com franqueza a nossa absoluta ignorância<br />
neste particular? E, contudo, essa ignorância deveria moderar<br />
um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o<br />
enigma com menos arrogância. É de convir que, quando nos<br />
assoberba uma tal incerteza, ninguém pode cantar vitória. Quiséssemos<br />
voltar à questão e fácil nos seria pôr to<strong>da</strong>s as vantagens<br />
do nosso lado; poderíamos impor <strong>Deus</strong> aos adversários, sem que<br />
eles pudessem subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando a<br />
Ciência que as afini<strong>da</strong>des <strong>da</strong> matéria possam criar a vi<strong>da</strong>, o papel<br />
do Criador, aqui, fica íntegro como nos tempos de Adão e até<br />
dos pré-a<strong>da</strong>mitas. E ain<strong>da</strong> que o demonstrasse, a origem e o<br />
entretenimento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> deixam ver claramente a existência de<br />
uma força criadora, ou seja, por outras palavras, um <strong>Deus</strong> oculto.<br />
Tal, porém, a força <strong>da</strong> nossa tática, que jamais queremos abusar<br />
de uma posição privilegia<strong>da</strong> e preferimos combater sempre<br />
em pari<strong>da</strong>de de terreno e de armas. Contentamo-nos, assim, em<br />
insinuar ape<strong>na</strong>s essa superiori<strong>da</strong>de aos adversários, para sua<br />
edificação momentânea e baixando, logo a seguir, <strong>da</strong>s alturas<br />
favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano <strong>da</strong> organização <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, sem nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo<br />
problema dessa mesma vi<strong>da</strong>. Ninguém dirá que, do ponto de<br />
vista singular <strong>da</strong> organização, a existência do Ser inteligente não<br />
esteja sobera<strong>na</strong>mente demonstra<strong>da</strong>. Ain<strong>da</strong> mesmo que, em<br />
virtude de forças desconheci<strong>da</strong>s, pudesse a vi<strong>da</strong> aflorar espontaneamente<br />
em <strong>da</strong><strong>da</strong>s circunstâncias materiais, e ain<strong>da</strong> que os seres<br />
primários se tivessem formado de uma única célula primordial,<br />
gera<strong>da</strong> ao influxo de um conjunto de circunstâncias fortuitas;<br />
ain<strong>da</strong> assim, repetimos, a organização dos seres vivos seria uma<br />
prova irrefragável <strong>da</strong> soberania <strong>da</strong> força coorde<strong>na</strong><strong>da</strong>. Seria,<br />
sempre, em virtude de uma que tais leis superiores que a vi<strong>da</strong><br />
haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem uma
causa cega ou louca, mas causa que deve, no mínimo, saber o<br />
que faz. Assim, também, chegasse o homem a descobrir o <strong>na</strong>scimento<br />
espontâneo dos infusórios ou dos vermes intesti<strong>na</strong>is,<br />
nem por isso teria criado esses ínfimos seres e sim, ape<strong>na</strong>s,<br />
constatado que a <strong>Natureza</strong> opera à sua revelia, com poderes<br />
superiores aos seus e mediante processos que, a despeito de sua<br />
inteligência, lhe teriam custado séculos a descobrir (<strong>da</strong>do que lá<br />
chegasse).<br />
Mas, fi<strong>na</strong>lmente, nem por isso a causa <strong>da</strong> razão divi<strong>na</strong> restaria<br />
mais esclareci<strong>da</strong>.<br />
Dado o mistério que envolve ain<strong>da</strong> a origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> Terra,<br />
ninguém há com autori<strong>da</strong>de para declarar proscrita a ação do<br />
Criador. Suponha-se que os primeiros seres <strong>na</strong>scessem no estado<br />
de animali<strong>da</strong>de rudimentar e que as varie<strong>da</strong>des sucessivas fossem<br />
a cepa <strong>da</strong>s espécies hoje tão distintas; ou que os primeiros<br />
pais de ca<strong>da</strong> família houvessem despertado à voz de comando de<br />
um grande mágico, e teremos que estas conjeturas não afetam<br />
mais a base <strong>da</strong> Teologia <strong>na</strong>tural, do que se admitíssemos que<br />
essas espécies aqui aportassem trazi<strong>da</strong>s de outros mundos <strong>na</strong>s<br />
asas de qualquer celeste mensageiro. Quanto à formação ou<br />
transformação <strong>da</strong>s espécies, não está por sua vez melhor conheci<strong>da</strong><br />
que a origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, qual o confessa Ch. Lyell: “O que<br />
sabemos <strong>da</strong> Paleontologia é <strong>na</strong><strong>da</strong> em comparação com o que<br />
resta a aprender.”<br />
Examinemos, agora, com este geólogo eminente 39 , quais os<br />
principais caracteres <strong>da</strong> teoria de Lanck e de Geoffroy Saint<br />
Hilaire acerca <strong>da</strong> progressão e transformação <strong>da</strong>s espécies. Os<br />
homens superficiais facilmente imagi<strong>na</strong>m que a Ciência está<br />
organiza<strong>da</strong> com regras absolutas e nenhuma dificul<strong>da</strong>de encontra<br />
em sua marcha ascendente. Na<strong>da</strong> menos exato. Nem mesmo as<br />
grandes definições têm caráter absoluto. Os zoólogos, por exemplo,<br />
não se entendem sobre os vocábulos espécie e raça. Sucedeu<br />
o que Lamarck predissera – declara Lyell –: quanto mais se<br />
multiplicam as novas formas, menos nos capacitamos de precisar<br />
o que seja uma varie<strong>da</strong>de, ou uma espécie. De fato, zoologistas e<br />
botânicos se vêem, não só mais embaraçados que nunca por<br />
definir a espécie, como também para certificar se ela realmente
existe <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, ou se não passa de simples abstração <strong>da</strong><br />
inteligência huma<strong>na</strong>. Pretendem uns que ela seja constante<br />
dentro de certos limites de variabili<strong>da</strong>de, restritos e intransponíveis;<br />
querem-<strong>na</strong> outros suscetível de modificações indefini<strong>da</strong>s e<br />
ilimita<strong>da</strong>s. Desde os tempos de Linneu até o começo deste<br />
século, acreditava-se definir suficientemente a espécie, dizendo:<br />
“A espécie compõe-se de indivíduos semelhantes e reproduzindo-se<br />
de seres a eles semelhantes”.<br />
Lamarck, tendo reconhecido uma grande quanti<strong>da</strong>de de espécies<br />
fósseis, <strong>da</strong>s quais umas eram idênticas a espécies vivas,<br />
enquanto que outras não passavam de varie<strong>da</strong>des, aditou o fator<br />
tempo à definição de espécie, assim formulando: “Compõe-se a<br />
espécie de indivíduos inteiramente semelhantes entre si e reproduzindo-se<br />
por seres semelhantes, desde que as condições de<br />
vi<strong>da</strong> não experimentem alterações capazes de lhes variar os<br />
hábitos, caracteres e formas.” Fi<strong>na</strong>lmente, chega ele a concluir<br />
que, dos animais e plantas contemporâneas, nem um exemplar<br />
existe <strong>da</strong> criação primordial, sendo todos derivados de formas<br />
preexistentes, as quais, depois de haverem reproduzido, por<br />
séculos sem conta, seres semelhantes, teriam, fi<strong>na</strong>lmente, experimentado<br />
variações graduais e conseqüentes a mu<strong>da</strong>nças de<br />
clima e do reino animal, a<strong>da</strong>ptando-se às novas circunstâncias.<br />
Alguns, entretanto, com o correr dos tempos se afastaram tanto<br />
do tipo origi<strong>na</strong>l, que mereciam ser agora considerados espécie<br />
nova.<br />
Em apoio dessa opinião, apresenta o contraste <strong>da</strong>s plantas<br />
agrestes com as cultiva<strong>da</strong>s, dos animais selvagens com os domésticos,<br />
a lembrar como e quanto se lhes modificam gradualmente<br />
a cor, a forma, a estrutura, os caracteres fisiológicos e até<br />
os instintos, em presença de novos inimigos e sob a influência de<br />
alimentação e regime de vi<strong>da</strong> diferentes.<br />
Lamarck sustenta, não somente que as espécies foram constantemente<br />
submeti<strong>da</strong>s a alterações, passando de um a outro<br />
período, mas, também, que houvesse um progresso constante do<br />
mundo orgânico, desde os primeiros aos hodiernos tempos, dos<br />
seres mais simples aos mais complexos, dos mais baixos aos<br />
mais altos instintos, e, fi<strong>na</strong>lmente, <strong>da</strong> mais rudimentar inteligên-
cia às maiores expressões do racio<strong>na</strong>lismo humano. Para ele, o<br />
aperfeiçoamento teria sido moroso e constante, a própria raça<br />
huma<strong>na</strong> ter-se-ia, enfim, desgalhado do grupo de mamíferos<br />
organicamente mais evoluídos. Um professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />
Cambridge nos deu um resumo conciso e racio<strong>na</strong>l desta teoria 40 .<br />
“Encontramos nos antigos depósitos <strong>da</strong> crosta terrestre – diz<br />
ele – o traço de uma progressão <strong>na</strong> organização <strong>da</strong>s formas<br />
viventes, sucessivas. Podemos notar, por exemplo, a ausência de<br />
mamíferos nos grupos mais antigos e as suas raras aparições nos<br />
grupos secundários mais recentes. Animais de sangue quente (em<br />
grande parte de gêneros desconhecidos) encontram-se bastante<br />
espalhados em to<strong>da</strong>s as velhas cama<strong>da</strong>s terciárias e abun<strong>da</strong>m<br />
(freqüentemente com formas genéricas conheci<strong>da</strong>s) <strong>na</strong>s partes<br />
superiores <strong>da</strong> mesma série; e, por fim, temos que a aparição do<br />
homem <strong>na</strong> superfície do solo é um fato recente.”<br />
Esse desenvolvimento histórico, <strong>da</strong>s formas e funções <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
orgânica em períodos sucessivos, parece-nos indicial de uma<br />
evolução gra<strong>da</strong>tiva <strong>da</strong> energia criadora, a manifestar-se por uma<br />
tendência progressiva para o tipo mais elevado <strong>da</strong> organização<br />
animal.<br />
Hugh Miller 41 também nota o fato extraordinário de ser a ordem<br />
adota<strong>da</strong> por Cuvier, no seu Reino Animal – a que coloca as<br />
quatro classes de vertebrados segundo as suas relações mútuas e<br />
categóricas – a mesma ordem cronológica que apresentavam. O<br />
cérebro, cujo volume em relação ao <strong>da</strong> medula está <strong>na</strong> razão de<br />
dois para um, é o do peixe, que foi o primeiro a aparecer. Sucedeu-lhe<br />
o que apresenta a relação média de dois e meio por um,<br />
ou seja, o réptil. Em segui<strong>da</strong>, vem a relação de três por um, que é<br />
a <strong>da</strong>s aves; a média de quatro por um, peculiar aos mamíferos.<br />
Por fim, o último, um cérebro cuja relação média é de vinte três<br />
por um, o cérebro do homem, que racioci<strong>na</strong> e calcula.<br />
O cérebro poderia não ser mais que uma florescência <strong>da</strong> medula<br />
espi<strong>na</strong>l. – Nas espécies inferiores (rãs por exemplo) a<br />
facul<strong>da</strong>de de sentir pertence à medula, quanto ao cérebro. Sem<br />
dúvi<strong>da</strong>, pode-se fazer sérias objeções à doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> progressivi<strong>da</strong>de,<br />
mostrando algumas plantas e animais menos perfeitos e<br />
surgidos posteriormente a espécies mais perfeitas, tais como o
embrião monocotiledôneo e os vegetais endógenos, depois do<br />
embrião monocotiledôneo e dos vegetais exógenos (o <strong>da</strong>s coníferas<br />
de caule glanduloso), bem como a perfeição <strong>da</strong>s mais antigas<br />
criptogâmicas, o movimento retrogressivo dos répteis, o aparecimento<br />
<strong>da</strong> boa (jibóia) depois do iguanodonte, etc. Exemplos<br />
não faltam, mas, persuadidos de que essa teoria não alcança a<br />
nossa tese <strong>da</strong> presença de “<strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>”, e simpatizando<br />
com ela, em si mesma, nós a sustentaremos. Consideramo-la<br />
com Lyell, não ape<strong>na</strong>s útil mas, no estado atual <strong>da</strong> Ciência, como<br />
hipótese indispensável, que, desti<strong>na</strong><strong>da</strong> embora a sofrer de futuro<br />
muitas e grandes modificações, jamais poderá ser absolutamente<br />
aniquila<strong>da</strong>.<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, poderão julgar paradoxal que os mais firmes<br />
sustentáculos <strong>da</strong> transmutação (Darwin e Hooker, por exemplo)<br />
guardem singular reserva quanto à progressão, e que os maiores<br />
apologistas desta combatam, não raro com veemência, a transmutação.<br />
Não poderão ser ver<strong>da</strong>deiras e conciliarem-se essas<br />
duas teorias? Uma e outra nos representam em definitivo os tipos<br />
de vertebrados a elevarem-se gradualmente no curso <strong>da</strong>s i<strong>da</strong>des,<br />
a partir do peixe, a mais simples forma, para os mamíferos<br />
placentários, até chegar ao último elo <strong>da</strong> série, aos mamíferos<br />
antropóides e, enfim, ao homem. Este último grau afigura-se,<br />
portanto, nesta hipótese, uma parte integrante <strong>da</strong> mesma série<br />
contínua de atos desenvolvidos, anel <strong>da</strong> mesma cadeia, coroamento<br />
<strong>da</strong> obra, por isso que entra <strong>na</strong> mesma e única série <strong>da</strong>s<br />
manifestações <strong>da</strong> potência criadora.<br />
Passemos agora à teoria <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s espécies por meio <strong>da</strong><br />
seleção <strong>na</strong>tural.<br />
Esta teoria nos apresenta grosso modo a ação <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />
observa<strong>da</strong> <strong>na</strong> criação e educação dos animais domésticos. Sabem<br />
os criadores que é possível, ao fim de algumas gerações, obter<br />
uma nova classe de rebanhos, de chifre curto ou sem chifre,<br />
desde que tenham escolhido reprodutores de cornos menos<br />
desenvolvidos. Dizem, então, que é assim que opera a <strong>Natureza</strong>,<br />
alterando no curso <strong>da</strong>s eras as condições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, os traços<br />
geográficos de um país, seu clima, a associação de animais e<br />
plantas e, por conseqüência, a alimentação e os inimigos de uma
espécie e o seu “modus vivendi”. E assim se vão elegendo certas<br />
varie<strong>da</strong>des mais bem a<strong>da</strong>ptáveis à nova ordem de coisas. Dessarte,<br />
podem as novas raças suplantar, muitas vezes, o tipo origi<strong>na</strong>l<br />
de sua ascendência.<br />
Lamarck opinou que o pescoço longo <strong>da</strong> girafa procede de<br />
uma longa série de esforços para colher o alimento de árvores<br />
ca<strong>da</strong> vez mais altas. Darwin e Wallace limitam-se a conjeturar<br />
que, <strong>na</strong> intercorrência de alguma calami<strong>da</strong>de sobreviveram os<br />
espécimes de pescoço comprido, por lhes ser possível pastarem<br />
em sítios i<strong>na</strong>cessíveis aos outros.<br />
Graças a ligeiras modificações, multiplica<strong>da</strong>s em curso de milhares<br />
de gerações e à transmissão, por hereditarie<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>s<br />
aquisições novas, supõe-se uma divergência ca<strong>da</strong> vez maior do<br />
tipo primitivo, até resultar em uma nova espécie, ou em um novo<br />
gênero, se mais longo o tempo decorrido. O moderno autor dessa<br />
explicação fisiológica <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s espécies, Sr. Carlos Darwin,<br />
expõe ele próprio 42 , como se segue, os fatos gerais em que<br />
se baseia.<br />
Na domestici<strong>da</strong>de, constata-se uma grande variabili<strong>da</strong>de, que<br />
parece devi<strong>da</strong> ao fato de ser o sistema reprodutor muitíssimo<br />
sensível às mu<strong>da</strong>nças de condições de vi<strong>da</strong>, deixando de reproduzir<br />
exatamente a forma matriz. A variabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas<br />
específicas é gover<strong>na</strong><strong>da</strong> por um certo número de leis muito<br />
complexas, tais como o uso ou a falta de exercício dos órgãos e a<br />
ação direta <strong>da</strong>s condições físicas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Nossas espécies domésticas<br />
sofreram modificações profun<strong>da</strong>s, que se transmitiram<br />
por hereditarie<strong>da</strong>de, durante período assaz longos. Assim, também,<br />
enquanto se mantiverem as mesmas condições de vi<strong>da</strong> por<br />
períodos longos, poderemos admitir possa manter-se e transmitir-se<br />
uma modificação já adquiri<strong>da</strong> durante uma série quase<br />
infinita de graus genealógicos. Por outro lado, está provado que a<br />
variabili<strong>da</strong>de, uma vez começando a manifestar-se, não cessa<br />
totalmente de operar, visto como novas varie<strong>da</strong>des ain<strong>da</strong> se<br />
verificam, de tempos a tempos, entre as nossas espécies domésticas<br />
mais antigas.<br />
Não é, porém, o homem que produz a variabili<strong>da</strong>de. Ele ape<strong>na</strong>s<br />
expõe, e muitas vezes sem desígnios, os seres orgânicos a
novas condições de vi<strong>da</strong>. Então, a <strong>Natureza</strong>, agindo sobre o<br />
organismo, produz variações. Podemos escolher, então, essas<br />
varie<strong>da</strong>des e as acumular <strong>na</strong> direção que nos prouver. Assim,<br />
a<strong>da</strong>ptamos animais ou plantas às nossas conveniências e até aos<br />
nossos caprichos. Tal resultado pode ser obtido sistematicamente<br />
e mesmo sem objetivo preconcebido, qualquer, bastando que,<br />
sem propósito de alterar a raça, se conservem de preferência os<br />
indivíduos que, num <strong>da</strong>do tempo, lhe são os mais úteis. Certo é<br />
que se podem transformar os caracteres de uma espécie escolhendo-se<br />
de ca<strong>da</strong> geração sucessiva as diferenças individuais; e<br />
esse processo seletivo foi o agente principal de produção <strong>da</strong>s<br />
raças domésticas, mais distintas e mais úteis. Os princípios que<br />
atuaram com tanta eficácia, no estado de domestici<strong>da</strong>de, podem,<br />
igualmente, operar no estado de <strong>na</strong>tureza. A conservação <strong>da</strong>s<br />
raças e dos indivíduos favorecidos <strong>na</strong> luta perpetuamente renova<strong>da</strong><br />
com o meio ambiente, é fator poderosíssimo, e sempre<br />
ativo, de seleção <strong>na</strong>tural.<br />
A concorrência vital é uma conseqüência necessária <strong>da</strong> multiplicação,<br />
em razão geométrica mais ou menos eleva<strong>da</strong>, de todos<br />
os seres organizados. A rapidez dessa progressão está prova<strong>da</strong><br />
não só pelo cálculo, como pela pronta multiplicação de muitos<br />
animais e plantas durante uma série de estações particulares, ou<br />
quando se aclimatavam em novas regiões. O número dos indivíduos<br />
que <strong>na</strong>scem excede sempre o dos que podem viver.<br />
Um grão <strong>na</strong> balança pode determi<strong>na</strong>r a varie<strong>da</strong>de que deve<br />
crescer e a que haja de diminuir. Como os indivíduos <strong>da</strong> mesma<br />
espécie são os que mais concorrem entre si, em todos os sentidos,<br />
a luta tor<strong>na</strong>-se para eles, em regra, mais severa. Ela o é<br />
quase tanto entre as varie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mesma espécie, e grave,<br />
ain<strong>da</strong>, entre as espécies do mesmo gênero. Mas a luta também<br />
pode existir, muitas vezes, entre seres muito afastados <strong>na</strong> escala<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. A mais leve vantagem adquiri<strong>da</strong> por um indivíduo,<br />
em qualquer i<strong>da</strong>de ou estação, sobre o seu concorrente, ou uma<br />
melhor a<strong>da</strong>ptação ao meio físico ambiente, o mais insignificante<br />
aperfeiçoamento, enfim, fará pender a concha <strong>da</strong> balança.<br />
Vantagens aparentemente medíocres podem acarretar essa variação<br />
crescente. Entre animais de sexos distintos, diz o <strong>na</strong>tura-
lista, haverá guerra, as mais <strong>da</strong>s vezes entre machos, para posse<br />
<strong>da</strong> fêmea. Os indivíduos mais vigorosos e os que lutaram com<br />
melhor êxito contra as condições físicas ambientes, hão de deixar<br />
uma progenitura mais numerosa. Mas, o seu êxito também<br />
dependerá, muitas vezes, dos meios de defesa de que disponham,<br />
ou de sua mesma beleza e, ain<strong>da</strong> neste caso, a mínima vantagem<br />
lhes granjeará a vitória.<br />
Uma vez admiti<strong>da</strong> a variabili<strong>da</strong>de, bem como a existência de<br />
um poderoso agente sempre pronto a funcio<strong>na</strong>r, chegaremos a<br />
concluir, facilmente, que variações algo úteis ao indivíduo em<br />
suas relações vitais possam ser conserva<strong>da</strong>s, transmiti<strong>da</strong>s e<br />
acumula<strong>da</strong>s? Se o homem pode, com paciência, escolher as<br />
variações que lhe sejam mais úteis, porque deixaria a <strong>Natureza</strong><br />
de escolher as variações proveitosas aos seus produtos sujeitos a<br />
condições mutáveis de existência? Que limites poderíamos<br />
atribuir a esse poder, quando ele opera mediante períodos longos<br />
e escruta, rigorosamente, a estrutura, to<strong>da</strong> a organização e os<br />
hábitos de ca<strong>da</strong> criatura, por favorecer o prestável e rejeitar o<br />
inútil? Parece não haver limite algum a esse poder, cujo efeito é<br />
a a<strong>da</strong>ptação lenta e admirável de to<strong>da</strong> a forma às mais complexas<br />
relações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Ca<strong>da</strong> espécie, <strong>da</strong><strong>da</strong> a progressão geométrica de reprodução<br />
que lhe é peculiar, tende a aumentar desorde<strong>na</strong><strong>da</strong>mente e, multiplicando-se<br />
os descendentes modificados de ca<strong>da</strong> espécie, tanto<br />
mais quanto se diversificam, nos hábitos e <strong>na</strong> estrutura, a lei de<br />
seleção <strong>na</strong>tural apresenta, por sua vez, uma tendência constante<br />
para conservar os descendentes mais divergentes, de qualquer<br />
espécie.<br />
Daí se segue que, durante o curso perseverante de sucessivas<br />
modificações, as mais leves diferenças características <strong>da</strong>s varie<strong>da</strong>des<br />
de uma espécie tendem a aumentar e atingir as grandes<br />
diferenças que caracterizam espécies do mesmo gênero. Varie<strong>da</strong>des<br />
novas e mais perfeitas suplantarão e extermi<strong>na</strong>rão inevitavelmente<br />
as mais antigas, as menos perfeitas e intermediárias, e,<br />
<strong>da</strong>í, tor<strong>na</strong>rem-se as espécies mais bem determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s e mais<br />
distintas.
Pode-se objetar que ao presente ninguém percebe tais mu<strong>da</strong>nças.<br />
O teórico responde, porém, que, operando a seleção <strong>na</strong>tural<br />
somente por acúmulo de variações favoráveis, leves e sucessivas,<br />
não pode produzir grandes alterações instantâneas. Ela opera a<br />
passos lentos e curtos. Essa lei <strong>na</strong>tural não existiria, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />
se ca<strong>da</strong> espécie houvera sido independentemente cria<strong>da</strong>.<br />
O testemunho geológico apóia a teoria <strong>da</strong> descendência modifica<strong>da</strong>.<br />
As espécies novas apareceram lentamente e por intervalos<br />
sucessivos no cenário do mundo, e a soma <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças<br />
efetua<strong>da</strong>s em tempos iguais é muito diferente nos diversos<br />
grupos. A extinção de espécies e de grupos inteiros de espécies,<br />
que representou papel tão importante <strong>na</strong> história do mundo<br />
orgânico, é uma série quase inevitável do princípio de seleção<br />
<strong>na</strong>tural, pois as formas antigas devem ser suplanta<strong>da</strong>s por novas<br />
formas mais perfeitas. Nem as espécies isola<strong>da</strong>s, nem os grupos<br />
de espécies podem reaparecer, uma vez interrompi<strong>da</strong> a cadeia<br />
<strong>da</strong>s gerações regulares. A extensão gradual <strong>da</strong>s formas domi<strong>na</strong>ntes<br />
e a lenta modificação dos seus descendentes concorrem,<br />
depois de tantos intervalos de tempo transcorrido, para fazer<br />
supor que as formas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> houvessem mu<strong>da</strong>do simultaneamente<br />
no mundo inteiro. O caráter intermediário dos fósseis de ca<strong>da</strong><br />
formação, comparados aos de formação inferiores e superiores,<br />
explica-se muito simplesmente pela posição média que eles<br />
ocupam <strong>na</strong> cadeia geológica. O grande fato constatado, de pertencerem<br />
todos os seres extintos ao mesmo sistema dos atuais,<br />
integrando-se nos mesmos grupos, ou nos grupos intermediários,<br />
atesta o parentesco e a descendência origi<strong>na</strong>l.<br />
O autor invoca também em seu apoio a importância única dos<br />
caracteres embriológicos, observando que as afini<strong>da</strong>des reais dos<br />
seres organizados são devi<strong>da</strong>s à hereditarie<strong>da</strong>de e comuni<strong>da</strong>de de<br />
origem. O sistema <strong>na</strong>tural é uma árvore genealógica cujos lineamentos<br />
precisamos descobrir com o auxílio dos caracteres mais<br />
permanentes, por leve que seja a sua importância vital.<br />
Não despreza ele, tampouco, a a<strong>na</strong>logia. A disposição dos ossos<br />
é análoga <strong>na</strong> mão do homem, <strong>na</strong> asa do morcego, <strong>na</strong> membra<strong>na</strong><br />
<strong>na</strong>tatória <strong>da</strong> tartaruga e <strong>na</strong> per<strong>na</strong> do cavalo; o mesmo
número de vértebras forma o pescoço <strong>da</strong> girafa e do elefante.<br />
Estes e outros fatos semelhantes explicam-se por si mesmos <strong>na</strong><br />
teoria <strong>da</strong> descendência lenta e sucessivamente modifica<strong>da</strong>. A<br />
identi<strong>da</strong>de de plano <strong>da</strong> asa e <strong>da</strong> per<strong>na</strong> do morcego, que, no<br />
entanto, servem a fins tão diferentes; mandíbulas e patas de<br />
caranguejo, pétalas, estame e pistilo de uma flor, explicam-se do<br />
mesmo modo pela modificação gradual de órgãos outrora semelhantes<br />
nos primitivos antepassados de ca<strong>da</strong> classe.<br />
A falta de exercício, às vezes auxilia<strong>da</strong> pela seleção <strong>na</strong>tural,<br />
tende, amiúde, a reduzir as proporções de um órgão, que a mu<strong>da</strong>nça<br />
de hábitos ou as condições de vi<strong>da</strong> pouco a pouco tor<strong>na</strong>ram<br />
inútil.<br />
Dessarte, é fácil conceber a existência de órgãos rudimentares.<br />
Pode-se, enfim, perguntar até onde se estende a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong><br />
modificação <strong>da</strong>s espécies.<br />
Todos os membros de uma classe podem ser religados em<br />
conjunto, pelos laços de afini<strong>da</strong>de e igualmente classificados, em<br />
virtude dos mesmos princípios, por grupos subordi<strong>na</strong>dos a outros<br />
grupos. Darwin não pode duvi<strong>da</strong>r que a teoria <strong>da</strong> descendência<br />
não abranja todos os membros de uma classe. Ele pensa, até, que<br />
todo o reino animal descende de quatro ou cinco tipos primitivos,<br />
pelo menos, e o reino vegetal de um número igual ou mesmo<br />
inferior.<br />
A a<strong>na</strong>logia – acrescenta –, levá-lo-ia um pouco mais longe,<br />
isto é, à crença de que to<strong>da</strong>s as plantas e animais descendem de<br />
um protótipo único; mas, que a a<strong>na</strong>logia pode ser um guia enga<strong>na</strong>dor.<br />
No mínimo, a ver<strong>da</strong>de é que todos os seres vivos têm<br />
muitos atributos comuns: composição química, estrutura celular,<br />
leis de crescimento e facul<strong>da</strong>de de serem afetados por influências<br />
nocivas.<br />
Em todos os seres organizados, tanto quanto podemos julgar<br />
pelos conhecimentos atuais, a vesícula germi<strong>na</strong>tiva é uma só. De<br />
sorte que, ca<strong>da</strong> indivíduo organizado parte de uma mesma origem.
Mesmo que consideremos as duas principais divisões do<br />
mundo orgânico, ou sejam os reinos vegetal e animal, vemos que<br />
certas formas inferiores apresentam caracteres intermédios assaz<br />
pronunciados, a ponto de divergirem os <strong>na</strong>turalistas <strong>na</strong> sua<br />
respectiva classificação. O professor Cl. Gray notou que “os<br />
esporos de muitas algas inferiores poderiam vangloriar-se de ter<br />
possuído, de início, os caracteres <strong>da</strong> animali<strong>da</strong>de, passando<br />
depois a uma vi<strong>da</strong> vegetal equívoca”. Assim, partindo do princípio<br />
<strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural com divergência de caracteres, tor<strong>na</strong>-se<br />
crível que animais e plantas tenham de algum modo derivado de<br />
uma forma intermediária. Importa admitir também que, quantos<br />
seres lograram viver até hoje, podem descender de uma forma<br />
primordial e única. Tal conseqüência porém, fun<strong>da</strong>-se principalmente<br />
<strong>na</strong> a<strong>na</strong>logia e pouco importa seja ou não aceita. Outro<br />
tanto não se dá com as grandes classes, tais como articulados,<br />
vertebrados, etc., pois aí é <strong>na</strong>s leis <strong>da</strong> Homologia e <strong>da</strong> Embriologia<br />
que o autor vai encontrar provas muito especiais de uma<br />
descendência única 43 .<br />
Tal a teoria de Darwin, exposta por ele mesmo.<br />
Se, enfim, a nossa legítima curiosi<strong>da</strong>de se atreve a aplicar essa<br />
teoria à nossa própria espécie, logo percebemos, num misto de<br />
admiração e tristeza, que talvez descen<strong>da</strong>mos dum exemplar de<br />
símio desaparecido. Indubitavelmente, nossa digni<strong>da</strong>de sente-se<br />
ofendi<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> só possibili<strong>da</strong>de de uma tal jerarquia; mas, se<br />
observarmos a <strong>Natureza</strong>, sem idéias preconcebi<strong>da</strong>s, não parece<br />
que façamos exceção à lei geral? Muitos de nós preferem descender<br />
de um Adão degenerado, antes que de um macaco aperfeiçoado.<br />
E contudo, a <strong>Natureza</strong> não nos consultou a respeito.<br />
Pelo que nos toca, jamais dedicamos algumas horas ao estudo<br />
<strong>da</strong> Embriologia, que não ficássemos assaz impressio<strong>na</strong>dos com<br />
as suas abscônditas revelações. Jamais pudemos comparar embriões,<br />
em fases diferentes, que não víssemos neles um vestígio<br />
rudimentar <strong>da</strong>s fases correspondentes, pelas quais a nossa humani<strong>da</strong>de<br />
haveria de ter passado em tempos anteriores.<br />
Os vertebrados superiores revestem, sucessivamente, como<br />
no estado de esboço, os principais caracteres <strong>da</strong>s quatro grandes<br />
classes do entroncamento, sem contudo passarem pelas formas
dos outros troncos zoológicos. Desde o começo de sua existência<br />
secreta, a célula germi<strong>na</strong>tiva manifesta um sistema de desenvolvimento<br />
característico, sem tomar a forma do verme articulado,<br />
do molusco, ou do radiário. Sem dúvi<strong>da</strong>, esta sucessão representa<br />
uma imagem <strong>da</strong>s fases que, no curso <strong>da</strong>s i<strong>da</strong>des, a mesma classe<br />
de animais atravessou sucessivamente, avançando <strong>na</strong> escala dos<br />
seres. Quem já deixou de surpreender-se com a semelhança que<br />
o embrião humano oferece, sucessivamente, com o do peixe, do<br />
réptil e <strong>da</strong> ave? A hora presente não seria, pois, o espelho de um<br />
passado longínquo?<br />
Não se ousa encarar de frente essa origem e, sem embargo, a<br />
questão é assaz importante para merecer um esto de coragem.<br />
Examinemos, pois, sob o seu aspecto geral, a posição do homem<br />
<strong>na</strong> sua <strong>na</strong>tureza terre<strong>na</strong>. Ao termi<strong>na</strong>r este capítulo sobre a origem<br />
dos seres, esta perspectiva continuará mostrando-nos um governo<br />
intelectual <strong>na</strong> marcha ascendente <strong>da</strong> Criação.<br />
A hipótese zoológica que encara o homem como descendente<br />
de uma raça símia, antropóide, não é imoral nem antiespiritualística.<br />
Os que a abraçaram nestes últimos tempos não o fizeram<br />
com o propósito de hostili<strong>da</strong>de ao Cristianismo e por professarem<br />
doutri<strong>na</strong>s pagãs. Muito ao contrário, fizeram-no a despeito<br />
de grandes prevenções, favoráveis à superiori<strong>da</strong>de dos nossos<br />
primitivos ancestrais, de quem deveriam considerar-se descendentes<br />
abastar<strong>da</strong>dos. De resto, não compreendemos como sábios<br />
dignos desse nome possam afagar o prazer pueril de fazer fosquinhas<br />
ao Cristianismo. Pensamos que a Ciência deve ventilar<br />
os seus problemas sem se ocupar, de modo algum, com artigos<br />
de fé.<br />
Declaremos, antes de tudo, que a primeira característica do<br />
homem é a sua inteligência. Portanto, o seu lugar filosófico não<br />
se enquadra <strong>na</strong>s classificações <strong>da</strong> História Natural. Por sua<br />
perfectibili<strong>da</strong>de, que se poderá atribuir à linguagem, pela inteligência<br />
racio<strong>na</strong>l, por suas facul<strong>da</strong>des espirituais, em suma, o<br />
homem domi<strong>na</strong> to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong> terrestre. Seu espírito não incide<br />
nos domínios do escalpelo. Seu valor não se afere pelo corpo,<br />
pelo esqueleto, pelo fígado ou pelos rins, mas, pelo seu caráter<br />
intelectual. Descen<strong>da</strong>, pois, de uma ou de outra fonte o nosso
corpo, isso em <strong>na</strong><strong>da</strong> nos afeta a alma. O mundo <strong>da</strong> inteligência<br />
não é o mundo <strong>da</strong> matéria. Não somos menores por isso, nem<br />
menos puros. Somente por estreiteza de espírito é que intermitimos<br />
<strong>na</strong> filosofia psicológica imaginários temores, suscitados pela<br />
ciência zoológica. Se nosso berço terrestre fosse a manjedoura de<br />
rústico estábulo, qual o de Jesus, nem por isso nossa vi<strong>da</strong> e nossa<br />
missão seriam menos santas e alta<strong>na</strong><strong>da</strong>s. A superiori<strong>da</strong>de está em<br />
nossas facul<strong>da</strong>des intelectuais.<br />
“O corpo humano – diz o <strong>na</strong>turalista inglês Wallace –, estava<br />
nu e desprotegido e foi o espírito que o provisionou de vestes,<br />
para preservá-lo <strong>da</strong>s intempéries. O homem não teria podido<br />
competir em agili<strong>da</strong>de com o gamo, em força com o touro selvagem,<br />
e foi o espírito que lhe deu armas para domar e utilizar<br />
esses animais. Ele era menos apto que outros animais para<br />
alimentar-se de ervas e frutos, que a <strong>Natureza</strong> espontaneamente<br />
oferecia, e foi essa facul<strong>da</strong>de admirável que lhe ensinou a gover<strong>na</strong>r<br />
e adequar a <strong>Natureza</strong> aos seus fins, dela extraindo o alimento,<br />
quando e onde quer.<br />
“Desde o instante em que utilizou a primeira pele <strong>na</strong> indumentária,<br />
a primeira lança <strong>na</strong> caça<strong>da</strong>, a primeira semente no<br />
plantio, o primeiro tronco <strong>na</strong> enxertia, uma grande revolução se<br />
operou <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, revolução que não tivera símile em qualquer<br />
fase <strong>da</strong> história do mundo, de vez que um ser existia forrado às<br />
mutações do Universo; um ser, até certo ponto superior à <strong>Natureza</strong>,<br />
pois possuía os meios de controlá-la, de lhe regular as<br />
ativi<strong>da</strong>des, e podendo manter-se em harmonia com ela, não<br />
modificando a sua forma corporal, mas aperfeiçoando o seu<br />
espírito.”<br />
Nisso é que vemos, unicamente, a ver<strong>da</strong>deira grandeza e digni<strong>da</strong>de<br />
do homem. 44<br />
O lugar a<strong>na</strong>tômico do homem ocupa graus superiores ao em<br />
que se assenta o chimpanzé; a diferença entre os cérebros do<br />
negro e do primata não é maior que a que separa o chimpanzé do<br />
saju e, sobretudo, dos lemurianos. Depois do chimpanzé (trogloditas)<br />
vêm, <strong>na</strong> ordem decrescente, o orango (pitécus), o gibon<br />
(hilobatos), o seninopíteco, o bugio, etc. Tal como escreveu<br />
Geoffroy Saint-Hilaire em polêmica célebre com Cuvier, o
homem é a primeira família <strong>da</strong> ordem dos primatas, estabeleci<strong>da</strong><br />
por Linneu no século passado. Aqui, cabe dizer que falamos do<br />
ponto de vista a<strong>na</strong>tômico, unicamente. Qualquer outro raciocínio<br />
invali<strong>da</strong> as classificações precedentes. Somos, porém, de opinião<br />
que, quando se faz a<strong>na</strong>tomia, é preciso fazer a a<strong>na</strong>tomia.<br />
No seguinte capítulo, teremos ensejo de prosseguir <strong>na</strong> comparação<br />
do homem com o macaco, pelo estudo do cérebro.<br />
O lugar geológico do homem recua a origem de nossa espécie<br />
à época longínqua em que viviam as raças antediluvia<strong>na</strong>s, hoje<br />
desapareci<strong>da</strong>s: o veado de grandes chifres, o urso <strong>da</strong>s caver<strong>na</strong>s, o<br />
rinoceronte ticórnis, o elefante primigêneo, o mamute, a re<strong>na</strong><br />
fóssil, etc. A mais antiga <strong>da</strong>ta conheci<strong>da</strong> e atestante <strong>da</strong> presença<br />
do homem, é muito posterior à fau<strong>na</strong> e flora atuais. Entretanto,<br />
verifica-se não existirem já, em nossos dias, umas tantas espécies<br />
contemporâneas do homem. Os fósseis humanos encontrados nos<br />
arrecifes coralíneos <strong>da</strong> Flóri<strong>da</strong>, <strong>na</strong>s caver<strong>na</strong>s do Languedoc e <strong>da</strong><br />
Bélgica, o esqueleto exumado nos arredores de Dusseldorf, o<br />
crânio <strong>da</strong> caver<strong>na</strong> de Êngis, o de Barreby, <strong>na</strong> Di<strong>na</strong>marca, o<br />
homem fóssil de Puy e de Natchez, no Mississipi, os restos<br />
humanos em Loes, indiciam <strong>na</strong>s varie<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s primitivas<br />
um estado de manifesta inferiori<strong>da</strong>de, aproximando-as singularmente<br />
dos selvagens contemporâneos e mesmo dos símios<br />
antropóides. Hoje ninguém contesta a existência do homem<br />
anterior ao período glaciário e desde o começo <strong>da</strong> época quaternária.<br />
O lugar arqueológico do homem concor<strong>da</strong> com os precedentes,<br />
a favor <strong>da</strong> teoria progressiva. Quem duvi<strong>da</strong>ria, hoje, <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> pedra e do bronze, pelas quais transitou a Humani<strong>da</strong>de antes<br />
que inventasse qualquer arte ou indústria, cujos vestígios se<br />
encontram por to<strong>da</strong> a parte? Que anciani<strong>da</strong>de poderíamos atribuir<br />
a esses períodos? A i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pedra, <strong>na</strong> Di<strong>na</strong>marca, coincidia<br />
com o período <strong>da</strong> primeira vegetação, seja a dos pinheiros <strong>da</strong><br />
Escócia, e, em parte, com a segun<strong>da</strong> vegetação – a do carvalho.<br />
A i<strong>da</strong>de do bronze desenrolou-se durante a época do carvalho,<br />
pois foi <strong>na</strong>s cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> turfa, onde abun<strong>da</strong> o carvalho, que se<br />
encontraram espa<strong>da</strong>s e escudos desse metal. Antes dele não<br />
havia faias. A i<strong>da</strong>de do ferro, menos pristi<strong>na</strong>, corresponde à
étula. Quanto tempo duraria a primeira i<strong>da</strong>de? Sendo o bronze<br />
um composto de mais ou menos nove partes de cobre e uma de<br />
estanho, o aparecimento dos primeiros utensílios denota uma<br />
indústria não já elementar. A fusão dos minerais, a decoração<br />
lenta dos objetos mol<strong>da</strong>dos, só poderiam ser consegui<strong>da</strong>s depois<br />
de longos tateamentos.<br />
A que época devemos atribuir as ci<strong>da</strong>des lacustres <strong>da</strong> Suíça e<br />
as quarenta mil estacas de Wangen? As escavações nos têm<br />
revelado vinte povoações no lago de Genebra, doze no de Neufchâtel,<br />
dez no de Bienne, contemporâneas <strong>da</strong>s i<strong>da</strong>des <strong>da</strong> pedra e<br />
do bronze.<br />
As <strong>da</strong> Irlan<strong>da</strong> (Crammoges) parecem provir <strong>da</strong> mesma época.<br />
Essas povoações castorea<strong>na</strong>s deviam oferecer alguma semelhança<br />
com as <strong>da</strong> Nova-Guiné, descritas por Dumont d’Urville. Os<br />
ossos encontrados por Lartet <strong>na</strong> caver<strong>na</strong> de Aurig<strong>na</strong>c são contemporâneos<br />
<strong>da</strong>s hie<strong>na</strong>s <strong>da</strong>s caver<strong>na</strong>s e do rinoceronte de <strong>na</strong>ri<strong>na</strong>s<br />
separa<strong>da</strong>s.<br />
Foi muito tempo depois que Tebas e Mênfis, capitais do alto<br />
e baixo Egito, atingiram o seu grande esplendor e que as quarenta<br />
pirâmides foram erigi<strong>da</strong>s, tipificando uma civilização lentamente<br />
desenvolvi<strong>da</strong>, com uma forma especial de culto, de cerimônias<br />
esplêndi<strong>da</strong>s, um singular estilo de arquitetura e inscrições,<br />
barragem de rios, etc. Essas glórias, entretanto, estavam<br />
desvaneci<strong>da</strong>s muito tempo antes de Homero. “Foi preciso – diz<br />
Lyell – para formação lenta e gradual de raças como a caucásica,<br />
a mongol ou a negra, um lapso de tempo bem mais longo que o<br />
possível de ser abrangido por qualquer sistema de cronologia<br />
popular.”<br />
Ao problema cronológico do aparecimento do homem <strong>na</strong> Terra,<br />
a Ciência <strong>na</strong><strong>da</strong> responde por enquanto. Demais, se o homem<br />
não apareceu espontaneamente, tal <strong>da</strong>ta não existe. Quanto aos<br />
vestígios de humani<strong>da</strong>de, ou do homem em si mesmo, as opiniões<br />
(pois que se não trata, no caso, senão de opiniões) são vagas<br />
quão variáveis. Um tijolo de carvão encontrado entre Assouan e<br />
Cairo, a uma profundi<strong>da</strong>de de 18 metros, contaria treze mil anos<br />
de existência, admitindo-se um aumento de 15 centímetros por<br />
século, no depósito de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais
aixa do prazo necessário a formar o delta do Mississipi é de<br />
cem mil anos.<br />
O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a 5<br />
metros de profundi<strong>da</strong>de e sob uma cama<strong>da</strong> de quatro florestas<br />
extintas, não contaria menos de cinqüenta mil anos, <strong>na</strong> opinião<br />
do Dr. Dower (é uma cifra exagera<strong>da</strong>, ao nosso ver). Agassiz<br />
calculou que a formação dos recifes de coral <strong>da</strong> Flóri<strong>da</strong> representa<br />
cento e trinta e cinco mil anos. Os sílex talhados e recolhidos<br />
em diversas regiões do globo, particularmente no vale do Somme,<br />
parece terem servido de armas a uma raça distancia<strong>da</strong> de<br />
cem séculos.<br />
A Arqueologia concor<strong>da</strong> com os historiadores e poetas <strong>da</strong> antigüi<strong>da</strong>de,<br />
quais Heródoto, Diodoro, Éschylo Vitrúvio, Xenóphontes,<br />
Plínio, no concernente ao primitivismo bárbaro <strong>da</strong><br />
raça huma<strong>na</strong> e à sua predileção pelas caver<strong>na</strong>s. Mas, esse estado<br />
nós o podemos considerar fora dos domínios históricos e a<br />
cronologia, que remonta à época já misteriosa <strong>da</strong>s grandes migrações<br />
aria<strong>na</strong>s, a mais de cem séculos pretéritos, mergulha em<br />
noite profun<strong>da</strong>, quando tenta son<strong>da</strong>r a nossa ver<strong>da</strong>deira origem.<br />
Tudo quanto podemos afirmar é que a Humani<strong>da</strong>de é muito<br />
mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus<br />
inferiores, antes que se elevasse à noção de justiça e de moral. Se<br />
nos fora permitido remontar a essas épocas, não poderíamos<br />
reconhecer a civilização <strong>da</strong> nossa era <strong>na</strong> caligem <strong>da</strong>s i<strong>da</strong>des<br />
bárbaras, quando a inteligência em seus primórdios esforçava<br />
por desprender-se <strong>da</strong>s possantes constrições <strong>da</strong> matéria.<br />
Preferimos confessar essa anciani<strong>da</strong>de e essa possível origem<br />
<strong>da</strong> nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e<br />
sem acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças<br />
religiosas a propósito de tudo, e mesmo sem propósito. Constatamos<br />
os fatos e a nossa ignorância, com sincera franqueza,<br />
persuadidos de que não se podendo antepor duas ver<strong>da</strong>des entre<br />
si, a Ciência <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> não pode afetar a causa do Ser supremo.<br />
Como diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza<br />
e a sabedoria do Universo pela duração e vantagem que <strong>da</strong>í<br />
lhes advêm; mas a história dos séculos transcorridos nos mostra
quão insignificante é o período do advento <strong>da</strong> existência huma<strong>na</strong>,<br />
em relação com a i<strong>da</strong>de do planeta.<br />
A Ciência não admite de bom grado a aparição miraculosa do<br />
primeiro casal humano. Diz Carlos Lyell que “se a fonte origi<strong>na</strong>l<br />
<strong>da</strong> espécie huma<strong>na</strong> tivesse sido realmente dota<strong>da</strong> de facul<strong>da</strong>des<br />
intelectuais superiores de <strong>na</strong>tureza perfectível, como a de sua<br />
posteri<strong>da</strong>de; se a Ciência lhe tivesse sido inspira<strong>da</strong>, o progresso<br />
atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No curso<br />
dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagináveis<br />
e os mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios<br />
que ora procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul,<br />
como <strong>na</strong> porção de leito do Mediterrâneo aflora<strong>da</strong> <strong>na</strong>s costas <strong>da</strong><br />
Sardenha, ao invés <strong>da</strong> mais grosseira cerâmica e dos sílex de<br />
feitura tão defeituosa e incompleta, que mal indiciam ao observador<br />
bisonho um esforço manual voluntário, encontraríamos<br />
esculturas superiores às obras-primas de Fídias e Praxiteles,<br />
caminhos de ferro e telégrafos nos quais os nossos engenheiros<br />
colheriam inestimáveis apontamentos; microscópios e telescópios<br />
aperfeiçoados como os não conhecemos <strong>na</strong> Europa e inúmeras<br />
provas, outras, de perfeição artística e científica, que o nosso<br />
século 19 ain<strong>da</strong> não logrou testemunhar. Em vão esgotaríamos a<br />
imagi<strong>na</strong>ção para adivinhar a utili<strong>da</strong>de de relíquias que tais.<br />
Talvez maqui<strong>na</strong>ria de locomoção aérea ou desti<strong>na</strong><strong>da</strong> a cálculos<br />
aritméticos, aparelhos desproporcio<strong>na</strong>dos às necessi<strong>da</strong>des e<br />
quiçá à concepção dos matemáticos vivos.”<br />
Esta explicação física <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s espécies não arrebata o<br />
cetro <strong>da</strong>s mãos do Gover<strong>na</strong>dor do mundo. Já assi<strong>na</strong>lamos acima<br />
a declaração de Darwin a favor do sentimento religioso e parecenos<br />
que, sobre as conseqüências imediatas de qualquer doutri<strong>na</strong>,<br />
devemos reportar-nos antes à opinião do mestre que à dos discípulos.<br />
Carlos Lyell emite os mesmos conceitos, citando a seguinte<br />
declaração do geólogo Asa Grei, em que este evidencia claramente<br />
que a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> variação e <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural não tende a<br />
destruir os alicerces <strong>da</strong> Teologia <strong>na</strong>tural e que a hipótese <strong>da</strong><br />
derivação <strong>da</strong>s espécies em <strong>na</strong><strong>da</strong> contraria qualquer dos sãos<br />
princípios <strong>da</strong> História Natural.
“Podemos imagi<strong>na</strong>r que os acontecimentos e em geral as operações<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> ocorrem, simplesmente, em virtude de forças<br />
comunica<strong>da</strong>s desde o início e sem qualquer ulterior intervenção,<br />
ou podemos admitir tenha havido, de tempos em tempos, e<br />
somente de tempos em tempos, uma intervenção <strong>da</strong> Divin<strong>da</strong>de. E<br />
podemos, enfim, supor ain<strong>da</strong> que to<strong>da</strong>s as mu<strong>da</strong>nças produzi<strong>da</strong>s<br />
resultem <strong>da</strong> ação metódica e constante, mas, infinitamente varia<strong>da</strong>,<br />
<strong>da</strong> causa inteligente e criadora.<br />
“Os que pretendem, de um modo absoluto, que a origem de<br />
um indivíduo, tanto quanto a de uma espécie ou de um gênero,<br />
não se possa explicar senão por ato direto de uma causa criadora,<br />
podem, sem renunciar à teoria favorita, admitir a teoria <strong>da</strong><br />
transmutação, que lhe não é incompatível. O conjunto e sucessão<br />
dos fenômenos <strong>na</strong>turais podem não ser mais do que a aplicação<br />
material de um plano preconcebido; e se essa sucessão de fatos<br />
pode explicar-se pela transmutação, a perpétua a<strong>da</strong>ptação do<br />
mundo orgânico a condições novas deixa, mais valioso que<br />
nunca, o argumento de um plano e, conseguintemente, de um<br />
arquiteto.”<br />
Parece-nos, com efeito, que o teimo <strong>na</strong><strong>da</strong> de maior tem a ganhar<br />
com esta hipótese do que com qualquer outra teoria <strong>na</strong>tural.<br />
Quanto à pecha de materialismo imputa<strong>da</strong> a to<strong>da</strong>s as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />
<strong>da</strong> teoria transformista, já vimos mais acima que a teoria<br />
<strong>da</strong> gravitação e grande número de outras descobertas foram<br />
averba<strong>da</strong>s de subversivas <strong>da</strong> Religião. Mas, onde iríamos parar<br />
se houvéssemos de ouvir os lamentos de todos os teologistas<br />
sobressaltados?<br />
Longe de possuir tendência materialista, esta hipótese <strong>da</strong> intermissão<br />
<strong>na</strong> Terra, em épocas geológicas sucessivas, primeiramente<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, depois <strong>da</strong> sensação, do instinto e <strong>da</strong> inteligência<br />
dos mamíferos superiores convizinhos <strong>da</strong> racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e, fi<strong>na</strong>lmente,<br />
<strong>da</strong> razão perfectível do próprio Homem, parece-nos, ao<br />
invés, o desdobramento de um plano grandioso, apresentandonos<br />
o quadro <strong>da</strong> predominância crescente do espírito sobre a<br />
matéria.
Temos sido assaz prolixos no encarar as relações do homem<br />
com os animais que o precederam, sem embargo <strong>da</strong> névoa de<br />
mistério que ain<strong>da</strong> as envolve. É que acreditamos, com Pascal,<br />
essas comparações sempre têm algum valor.<br />
“É perigoso – dizia o autor de Pensamento – demonstrar ao<br />
homem o quanto ele se iguala aos animais, sem lhe mostrar ao<br />
mesmo tempo a sua grandeza. Perigoso, também, mostrar-lhe a<br />
sua grandeza, sem lhe fazer sentir sua baixeza. Mais perigoso,<br />
ain<strong>da</strong>, é deixá-lo <strong>na</strong> ignorância de ambas.”<br />
Ain<strong>da</strong> que o problema <strong>da</strong> antigüi<strong>da</strong>de e origem <strong>da</strong> espécie<br />
huma<strong>na</strong> varie para o geólogo, para o arqueólogo e para o etnólogo,<br />
nem por isso deixa de averiguar-se que a Humani<strong>da</strong>de procede<br />
de época muito mais remota do que se pudera crer. Ain<strong>da</strong> que<br />
esse mesmo problema se definisse divergente para a Zoologia ou<br />
para a Teologia, não é menos provável, tampouco, que os nossos<br />
antepassados foram inferiores a nós e que o progresso se manifestou<br />
<strong>na</strong> Humani<strong>da</strong>de tal como <strong>na</strong> escala de to<strong>da</strong> a Criação.<br />
Perguntamos, então, aos espíritos de boa fé: – em que, a crença<br />
<strong>na</strong> anciani<strong>da</strong>de do homem, e mesmo <strong>na</strong> sua origem simiesca,<br />
colide com a crença num absoluto? Que a vi<strong>da</strong> tenha surgido <strong>na</strong><br />
Terra, que se tenha desenvolvido mediante leis orgânicas e que,<br />
do vegetal ao homem, a criação antidiluvia<strong>na</strong> não tenha formado<br />
senão uma uni<strong>da</strong>de, em que pode esta hipótese destruir a ação<br />
divi<strong>na</strong>? Aqui, como no que precede, a matéria não obedeceu às<br />
suas forças? E a vi<strong>da</strong> dos seres não é uma força especial, regente<br />
de átomos, diretora de todos os movimentos? Particularmente, <strong>na</strong><br />
teoria <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural, não é a força vital que dirige a marcha<br />
do mundo? Aqui, como por to<strong>da</strong> a parte, a matéria não é a escrava<br />
e a força a sobera<strong>na</strong>?<br />
Mesmo admitindo-se a mais alta influência dos meios <strong>na</strong><br />
transformação dos órgãos, essa transformação não será, sempre,<br />
o efeito <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e vi<strong>da</strong> regi<strong>da</strong> pela inteligência e dota<strong>da</strong> de uma<br />
espécie de obediência ativa à lei intelectual do progresso?<br />
Abor<strong>da</strong>ndo a tese <strong>da</strong> apropriação dos órgãos às funções que<br />
lhes incumbe executar, bem como <strong>da</strong> construção homogênea de<br />
ca<strong>da</strong> espécie, dos dentes aos pés, segundo o seu papel no cenário
do mundo, entramos nos domínios <strong>da</strong> desti<strong>na</strong>ção dos seres e <strong>da</strong>s<br />
coisas. Nosso 4º livro objetivará este vasto problema.<br />
Assim, em resumo, vimos de demonstrar que, seja do ponto<br />
de vista <strong>da</strong> circulação <strong>na</strong> matéria dos seres vivos, seja no <strong>da</strong><br />
origem e <strong>da</strong> perpetui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, esta se constitui de uma Força<br />
única e central para ca<strong>da</strong> ser, que dispõe a matéria organizável<br />
segundo um plano, do qual o indivíduo deve ser a expressão<br />
física. Nesta segun<strong>da</strong>, como <strong>na</strong> primeira parte, temos refutado<br />
todos os pontos dos nossos adversários. Eles não mais sustentam<br />
a sua hipótese materialista e, com os seus exageros mais temerários,<br />
antes auxiliam a nossa tese, pois conceituando a matéria<br />
capaz de tudo fazer, mal se precatam que ape<strong>na</strong>s substituem a<br />
idéia <strong>da</strong> força. Esperamos que esses inconseqüentes negadores<br />
fiquem agora mais satisfeitos com este capítulo. E antes de<br />
passar ao seguinte, pedimos-lhes notar, para edificação de sua<br />
vai<strong>da</strong>dezinha, que os gregos e o próprio Arístoto lhes marchara à<br />
frente, visto que para eles as radicais força e vi<strong>da</strong> eram sinônimos.<br />
O filósofo de Stagira já houvera sustentado que – “a alma é<br />
a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivo”.<br />
Não vale a pe<strong>na</strong> fazer tão grande alarde de ciência, para ficar<br />
abaixo dos Gregos.
Terceira Parte<br />
A Alma<br />
1 - O Cérebro<br />
SUMÁRIO – Erro dos psicólogos e metafísicos que desdenham os<br />
trabalhos <strong>da</strong> Fisiologia. – Fisiologia anátomo-cerebral. – Relações<br />
do cérebro com o pensamento. – Tais relações não provam<br />
seja o pensamento um atributo <strong>da</strong> substância cerebral. – Discussão<br />
e provas contrárias. – O espírito gover<strong>na</strong> o corpo. – Errônea<br />
a comparação do pensamento a uma secreção ou combi<strong>na</strong>ção<br />
química. – Algumas definições ingênuas dos materialistas. – Absurdi<strong>da</strong>de<br />
de sua hipótese e respectivas conseqüências.<br />
Há muito tempo que o geólogo Agassiz emitiu este conceito,<br />
freqüentemente justificado: To<strong>da</strong>s as vezes que um fato novo se<br />
revela no campo <strong>da</strong> Ciência, logo o averbam de apócrifo; depois,<br />
que é contrário à Religião; e, por fim, que há muito era sabido.<br />
Efetivamente, a ver<strong>da</strong>de tem duas espécies de adversários: os<br />
cépticos do materialismo, e os cépticos do dogma.<br />
Se, com razão, nos admiramos de ver os fisiologistas, adoradores<br />
<strong>da</strong> matéria, ousa<strong>da</strong>mente proclamarem com entonos de<br />
autori<strong>da</strong>de e certeza que o homem, bem como o parque integral<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> planetária, não passam de produtos <strong>da</strong> matéria cega, com<br />
mais razão devemos estranhar ain<strong>da</strong> exista, em nossos tempos,<br />
espíritos cultos, e mesmo célebres, que se deixem ficar completamente<br />
fora do movimento <strong>da</strong>s ciências físico-químicas, a ponto<br />
de fazerem as objeções mais ba<strong>na</strong>is ao que essas ciências apresentam<br />
ao idealismo, sem se precatarem <strong>da</strong>s modificações necessárias<br />
e deriva<strong>da</strong>s desse movimento em to<strong>da</strong>s as concepções do<br />
pensamento humano.<br />
Assim, temos ain<strong>da</strong> hoje sábios, filósofos, teólogos, metafísicos<br />
e pensadores, cujos nomes poderíamos aqui alinhar se houvesse<br />
oportuni<strong>da</strong>de, que nos falam de <strong>Deus</strong>, <strong>da</strong> Providência, <strong>da</strong><br />
prece, <strong>da</strong> alma, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> futura e presente, <strong>da</strong>s relações <strong>da</strong> Divin<strong>da</strong>de<br />
com o mundo, <strong>da</strong>s causas fi<strong>na</strong>is, <strong>da</strong> marcha dos aconteci-
mentos, <strong>da</strong> independência do espírito, <strong>da</strong>s fórmulas de culto, <strong>da</strong>s<br />
enti<strong>da</strong>des espirituais, etc., no mesmo sentido e nos mesmos<br />
termos <strong>da</strong> escolástica do século 16. Os palradores anquilosados<br />
desta espécie são ain<strong>da</strong> mais curiosos e inexplicáveis do que os<br />
precedentes. Em os ouvindo afirmar, em tom magistral, as proposições<br />
mais contestáveis; em lhes observando a ignorância <strong>da</strong>s<br />
rudes dificul<strong>da</strong>des que espíritos mais clarividentes tão penosamente<br />
venceram; em defrontá-los <strong>na</strong> sua verve inesgotável e <strong>na</strong><br />
calma ingênua com que asseguram a inexpug<strong>na</strong>bili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas<br />
pretensas ver<strong>da</strong>des; – dir-se-ia estarem eles ver<strong>da</strong>deiramente<br />
adormecidos nesse ano memorável em que Copérnico, já moribundo,<br />
recebia o primeiro exemplar do seu De Revolutionibus –<br />
para só acor<strong>da</strong>rem hoje, <strong>na</strong> inconsciência <strong>da</strong>s revoluções opera<strong>da</strong>s.<br />
Sendo numerosos, ai de nós! esses espíritos, e porque ain<strong>da</strong><br />
lhes gravite em torno um número considerável de partidários, é<br />
bom <strong>da</strong>r a todos uma idéia dos fatos que lhes deveriam interessar,<br />
mostrando-lhes não ser a eles que incumbe guar<strong>da</strong>r o depósito<br />
crescente do tesouro humano, uma vez que persistem adormecidos<br />
no seu triste letargo.<br />
Todos os que descrevem, minudentes, a <strong>na</strong>tureza e as funções<br />
<strong>da</strong> alma; que explicam perfeitamente em que momento e por<br />
qual meio ela se incorpora no ventre materno e a porta por onde<br />
se escapa com o derradeiro suspiro; que contam como comparece<br />
ela perante <strong>Deus</strong> e recebe, no outro mundo, o prêmio ou castigo<br />
temporário ou eterno de seus atos neste mundo; que evidenciam<br />
o processo de comunicação com o Criador; que a estimam completamente<br />
independente do organismo e regendo a matéria<br />
mediante idéias i<strong>na</strong>tas, que traz consigo ao encar<strong>na</strong>r, e que pode<br />
domi<strong>na</strong>r essa matéria como coisa estranha, perseguindo o corpo<br />
com o recusar-lhe em jejuns, macerações e abstinências, a satisfação<br />
<strong>da</strong>s próprias necessi<strong>da</strong>des; que expõem minuciosamente a<br />
história <strong>da</strong> alma, puro espírito baixado à Terra como a um vale<br />
de provações; – numa palavra, enfim, todos quantos, em qualquer<br />
religião, em qualquer escola, em qualquer país gastam a sua<br />
eloqüência e o seu tempo a propor soluções que <strong>na</strong><strong>da</strong> resolvem e<br />
símbolos que <strong>na</strong><strong>da</strong> significam 45 ; – esses, repito, devem ser convi<strong>da</strong>dos<br />
a meditar as observações de ano em ano carrea<strong>da</strong>s pelo
progresso <strong>da</strong>s ciências positivas. E, como essas observações<br />
constituem precisamente a base <strong>da</strong>s conclusões materialistas,<br />
temos o duplo dever de as expor prelimi<strong>na</strong>rmente, a fim de julgar<br />
depois se as conclusões foram legitimamente concluí<strong>da</strong>s.<br />
Em regra, os homens que encaram com desdém e displicência<br />
quaisquer questões são os que pretendem opi<strong>na</strong>r com maior<br />
segurança, e isto simplesmente porque não as tendo profun<strong>da</strong>do,<br />
são incapazes de avaliar as dificul<strong>da</strong>des que elas apresentam aos<br />
pesquisadores. Ain<strong>da</strong> hoje, temos metafísicos que cerram os<br />
olhos para melhor se verem a si mesmos, e sem noção alguma de<br />
método experimental. Esses, pois, que vêm repetindo há 50 anos,<br />
sem se precatarem <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> proposição, que a alma é<br />
um ser encar<strong>na</strong>do no corpo e independente desse corpo, terão<br />
muito o que meditar <strong>na</strong> seqüência dos fatos que vamos desenvolver.<br />
Seja qual for a opinião a respeito <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza do espírito, não<br />
há duvi<strong>da</strong>r de que o cérebro não seja o órgão <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des<br />
intelectuais. Examinemos-lhe a estrutura. Esta, diz Carl Vogt 46 , é<br />
extremamente complica<strong>da</strong>. Não há no corpo humano nenhum<br />
órgão que, com um número proporcio<strong>na</strong>lmente tão diminuto de<br />
elementos a<strong>na</strong>tômicos a lhe constituírem a substância, possua<br />
tamanha quanti<strong>da</strong>de de partes diferentemente conforma<strong>da</strong>s e<br />
provando, à evidência, por sua forma exterior e estrutura inter<strong>na</strong>,<br />
sua posição e relações mútuas, que elas presidem a funções<br />
especiais, que ain<strong>da</strong> não foi possível fixar.<br />
Quanto às partes elementares, componentes <strong>da</strong> substância cerebral<br />
do homem e dos animais, formam elas dois grupos principais:<br />
– uma substância cinzenta, mais ou menos escura, ou<br />
amarela<strong>da</strong>, que oferece a olho nu uma aparência bastante homogênea,<br />
e uma substância branca <strong>na</strong> qual podemos distinguir<br />
feixes mais ou menos aparentes, projetando-se em direções<br />
determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s. A substância par<strong>da</strong> forma, certamente, o núcleo<br />
principal <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de nervosa, e a branca, ao contrário, parece<br />
ser a parte condutora.<br />
Se cogitarmos de conceber as relações <strong>da</strong> estrutura cerebral<br />
com o desenvolvimento intelectual, é, sobretudo, <strong>na</strong> substância
par<strong>da</strong> e nos pontos em grande parte formados por ela, que importa<br />
atentar, de preferência.<br />
O cérebro divide-se em dois hemisférios laterais por um sulco<br />
profundo, que segue sua linha media<strong>na</strong> e <strong>na</strong> qual se intermite<br />
uma dobra <strong>da</strong> dura-máter, chamado foice do cérebro. Uma<br />
segun<strong>da</strong> prega dessa membra<strong>na</strong>, ten<strong>da</strong> do cerebelo, estende-se<br />
horizontalmente <strong>na</strong> região posterior do crânio e separa o cerebelo<br />
dos lobos posteriores do cérebro, servindo-lhe de suporte.<br />
O cérebro propriamente dito forma, assim, um todo completo,<br />
que, conforme o comprovam o desenvolvimento embriológico e<br />
a a<strong>na</strong>tomia compara<strong>da</strong>, avoluma-se e acaba comprimindo e<br />
avassalando as demais partes. Esse aumento de volume, nos<br />
animais, corresponde à sua elevação <strong>na</strong> escala, com acentua<strong>da</strong><br />
tendência para o tipo do cérebro humano.<br />
Exami<strong>na</strong>ndo por cima, ca<strong>da</strong> hemisfério parece formar uma<br />
massa distinta, apresentando à superfície uma porção de sulcos<br />
de contorno, permeando cordões intestiniformes, ou circunvoluções.<br />
Comumente, os dois hemisférios são semelhantes e se<br />
dividem em três segmentos sucessivos, de diante para trás: – os<br />
lobos frontal, parietal e occipital.<br />
Visto de lado, haveria que juntar o lobo inferior temporal e,<br />
além deste, um pequeno lobo oculto, chamado ilha, ou lobo<br />
central.<br />
Os a<strong>na</strong>tomistas antigos pouca atenção ligaram às circunvoluções,<br />
ain<strong>da</strong> porque, tar<strong>da</strong>ram em reconhecer que os dois hemisférios<br />
não são inteiramente simétricos. Assim, consideravam<br />
fortuita a distribuição <strong>da</strong>s ditas circunvoluções, ou, conforme diz<br />
um observador, como um punhado de intestinos lançados ao<br />
acaso, de sorte que os desenhistas costumavam fantasiá-los<br />
assim <strong>na</strong>s suas estampas a<strong>na</strong>tômicas.<br />
As observações mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>s destes últimos tempos ensi<strong>na</strong>ram-nos,<br />
entretanto, que essa bela desordem é um efeito<br />
artístico <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e que existe um plano definido, uma certa<br />
lei que então não fora nota<strong>da</strong>, de vez que as investigações se<br />
haviam limitado quase exclusivamente ao homem.
Dá-se com os <strong>na</strong>turalistas o mesmo que com os homens pouco<br />
versados em Arquitetura, os quais, no meio <strong>da</strong> profusão de<br />
elementos que sobrecarregam um estilo, não podem decifrar o<br />
plano fun<strong>da</strong>mental.<br />
Segundo as últimas investigações, estas circunvoluções cerebrais<br />
teriam capital importância e delas trataremos antes de nos<br />
ocuparmos com as relações de peso e volume.<br />
Na opinião de Gratiolet, essa conformação cerebral é peculiar<br />
ao macaco e ao homem, e existe ao mesmo tempo <strong>na</strong>s túnicas<br />
cerebrais, quando surgem, uma ordem geral, uma disposição<br />
típica e comum às duas espécies.<br />
“Essa uniformi<strong>da</strong>de <strong>na</strong> disposição <strong>da</strong>s pregas cerebrais, no<br />
homem e nos símios, diz esse fisiologista, merece a mais acura<strong>da</strong><br />
atenção dos filósofos. Há também um tipo particular de pregas<br />
nos makis, nos ursos, felinos, caninos, etc.; enfim, para to<strong>da</strong>s as<br />
famílias animais. Ca<strong>da</strong> qual tem suas características, sua norma,<br />
e em ca<strong>da</strong> grupo podemos facilmente reunir as espécies pela só<br />
confrontação <strong>da</strong>s túnicas cerebrais”. 47<br />
Parece que o pensamento é proporcio<strong>na</strong>l ao número e à irregulari<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong>s circunvoluções. O homem, o orangotango e o<br />
chimpanzé têm circunvoluções no lobo médio, ao passo que <strong>na</strong>s<br />
outras espécies de macacos e nos outros animais esse lobo é<br />
absolutamente liso.<br />
A figura desses sulcos e dos que descrevem meandros irregulares<br />
nos outros lobos é tanto mais irregular, quanto mais caracterizado<br />
o pensamento. Os animais gregários como a foca, os<br />
elefantes, cavalos, re<strong>na</strong>s, carneiros, golfinhos, apresentam um<br />
desenho menos regular que o dos outros animais. Deste ponto de<br />
vista, o que sobretudo distingue o cérebro humano do simiesco é<br />
que, entre as circunvoluções que se dirigem do lobo occipital<br />
para o temporal, duas há, no homem, que não se encontram no<br />
macaco, sendo este um dos maiores contrastes que separam os<br />
dois cérebros 48 .<br />
Nas espécies animais e <strong>na</strong> huma<strong>na</strong>, a superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> inteligência<br />
parece tanto mais eleva<strong>da</strong> quanto mais sinuosas sejam as<br />
anfratuosi<strong>da</strong>des do cérebro, mais profundos os sulcos e mais
numerosas as impressões e ramificações, a assimetria e irregulari<strong>da</strong>de.<br />
As estrias, muito visíveis no cérebro do adulto, não se<br />
evidenciam no <strong>da</strong> criança. O cérebro de Beethoven apresentava<br />
anfratuosi<strong>da</strong>des duplamente mais profun<strong>da</strong>s que os cérebros<br />
comuns 49 .<br />
Poderão alguns a<strong>na</strong>tomistas responder que grandes animais<br />
muito broncos, tais como o asno, o carneiro, o boi, apresentam<br />
maior número de circunvoluções que animais de maior inteligência<br />
quais o cão, o castor, o gato. Mas, é preciso não esquecer os<br />
matemáticos e considerar que os volumes são, entre eles, como<br />
os cubos dos diâmetros; ao passo que as superfícies são como os<br />
quadrados entre si. O volume do corpo que aumenta, cresce mais<br />
rapi<strong>da</strong>mente que a sua superfície. Baseemo-nos num exemplo:<br />
uma esfera, com 2 metros de diâmetro, mede 12,566m de superfície<br />
e 4,188m de volume; uma esfera de 3 metros, de diâmetro<br />
mede 28,275m de superfície e 14, 113m de volume (4 terços de<br />
NR 3 sobe mais rapi<strong>da</strong>mente que 4 NR 2 ).<br />
O volume do cérebro do tigre está para o seu corpo <strong>na</strong> mesma<br />
razão que o do gato; mas a superfície é proporcio<strong>na</strong>lmente menor<br />
e, para atingir um igual desenvolvimento, é preciso que ela se<br />
retraia e se enrole.<br />
Estas circunvoluções têm, sem dúvi<strong>da</strong>, a sua importância,<br />
mas era <strong>na</strong>tural se imagi<strong>na</strong>sse que o peso comparativo do cérebro<br />
<strong>da</strong>s diferentes espécies deve ter não menor importância e que as<br />
suas variantes <strong>na</strong> espécie huma<strong>na</strong> devem ser toma<strong>da</strong>s em consideração.<br />
De fato, parece que os seus efeitos estejam em proporção com<br />
a massa. Assim é que, <strong>na</strong> criança e no velho, ele é menor que no<br />
homem maduro. A alma <strong>da</strong> criança como que se desenvolve, à<br />
medi<strong>da</strong> que aumenta a substância cerebral.<br />
O peso normal de um cérebro humano é de três a três meia<br />
libras 50 .<br />
O peso do cérebro dos cretinos desce, por vezes, a uma libra<br />
(453 gramas).<br />
O de Cuvier pesava mais de 4 libras.
O tamanho, a forma, o arranjo <strong>da</strong> composição do cérebro, são<br />
também invocados pelos a<strong>na</strong>tomistas como correlatos à inteligência<br />
51 . A A<strong>na</strong>tomia compara<strong>da</strong> mostra-nos, em to<strong>da</strong> a escala<br />
animal, inclusive o homem, que a energia <strong>da</strong> inteligência está em<br />
relação constante e ascendente com a constituição material e o<br />
tamanho do cérebro. Os acéfalos são os que ocupam o primeiro<br />
grau <strong>da</strong> escala. O homem, supõe-se, tem o maior cérebro real,<br />
pois, ain<strong>da</strong> que o de alguns animais, no conjunto, sejam mais<br />
volumosos, o humano é o mais considerável <strong>na</strong>s partes que<br />
dizem com as funções do pensamento. O resultado geral <strong>da</strong>s<br />
operações a<strong>na</strong>tômicas demonstra que a diminuição do cérebro<br />
animal aumenta à proporção que baixa a escala zoológica, e que<br />
os animais dos primeiros degraus, como sejam os anfíbios e os<br />
peixes, são os de menor cérebro.<br />
Esses fatos gerais não deixam de ter exceção, como veremos<br />
<strong>da</strong>qui a pouco, mas cumpre-nos expô-los conscienciosamente,<br />
antes de os discutir ou explicar.<br />
A convicção <strong>da</strong> grande importância que tem a conformação<br />
cerebral, nos mamíferos, chegou a ensejar a proposta de uma<br />
nova classificação basea<strong>da</strong> nessa conformação. A nós nos parece,<br />
contudo, que não é tanto no peso absoluto do cérebro, como<br />
<strong>na</strong> sua relativi<strong>da</strong>de com o peso do corpo, que devemos atentar.<br />
Seja o cérebro do elefante ou do hipopótamo mais pesado que<br />
o de qualquer rapariga, não há nisso nenhum caráter distintivo,<br />
favorável aos primeiros. É mais razoável considerar as relações,<br />
sem chegar a concluir <strong>da</strong>í que o cérebro de um magro pensaria<br />
melhor que o de um gordo. Sob este aspecto, os macacos e as<br />
aves ocupam a primeira linha. O cérebro do asno não pesa mais<br />
que 250 partes do corpo; ao passo que o do rato dos campos<br />
corresponde a trinta e uma partes, o que levava o espirituoso<br />
Andrieu a dizer que os ratos tinham um focinho muito espiritual.<br />
Como circunvoluções, peso absoluto, peso relativo, deixassem<br />
grandes incertezas sobre as relações do cérebro com o<br />
pensamento, supuseram que a superiori<strong>da</strong>de do ser estaria em<br />
relação com a quanti<strong>da</strong>de de gordura conti<strong>da</strong> no cérebro. O<br />
homem tem no cérebro mais gordura que os mamíferos, e estes<br />
mais que as aves.
A massa cerebral do bovino não atinge a 1/6 <strong>da</strong> do homem 52 .<br />
O que caracteriza o cérebro do feto, durante a gestação, é o<br />
fato de não conter quase gordura, sobretudo fosfora<strong>da</strong>. Nos<br />
recém-<strong>na</strong>scidos a gordura já se encontra assaz aumenta<strong>da</strong> e, <strong>da</strong>í<br />
por diante, avulta rapi<strong>da</strong>mente com a i<strong>da</strong>de. A distinção racial<br />
não se nota no cérebro <strong>da</strong> criança, branca ou preta. São crânios<br />
que apresentam as maiores semelhanças.<br />
Balzac (Investigação do Absoluto) já tivera a idéia de considerar<br />
o fósforo como o elemento mais importante do intelecto.<br />
Fuerbach, ampliando a importância deste corpo e referindo-se a<br />
um trabalho de Couerbe, que lhe atribuía grande influência no<br />
sistema nervoso, o deu como origem do espírito. Huart imagi<strong>na</strong><br />
que essa substância incendeia-se e alumia, com o fogo do cérebro,<br />
como se dá com um lampião. Mais de espaço, veremos a<br />
que extremos de exagero chegou Moleschott. Quanto à atuali<strong>da</strong>de,<br />
terminemos a observação especial do cérebro com algumas<br />
comparações particulares, dig<strong>na</strong>s de interesse para nossa raça.<br />
Em muitas espécies, os crânios masculinos se diferençam tanto<br />
que poderiam induzir-nos a classificá-los como de espécies<br />
diferentes. Na espécie huma<strong>na</strong>, a diferença é igualmente notória.<br />
Assim é que o crânio feminino é menor, tanto <strong>na</strong> circunferência<br />
horizontal como <strong>na</strong> capaci<strong>da</strong>de inter<strong>na</strong>. O cérebro de menor<br />
peso, <strong>da</strong> mulher, aproxima-se do infantil. O outro fato notável é<br />
que a dispari<strong>da</strong>de rei<strong>na</strong>nte entre os dois sexos, relativamente à<br />
capaci<strong>da</strong>de crania<strong>na</strong>, aumenta com o aperfeiçoamento <strong>da</strong> raça, de<br />
sorte que o europeu se distancia <strong>da</strong> européia, mais que o negro<br />
<strong>da</strong> sua companheira. Carl Vogt comenta essas experiências de<br />
Welcker e adverte que é mais fácil mu<strong>da</strong>r uma forma de governo<br />
do que a panela tradicio<strong>na</strong>l.<br />
O cérebro <strong>da</strong> mulher pesa, em média, duas onças menos que o<br />
do homem 53 . Arístoto há muito o previra e a Ciência experimental<br />
verificou que o belo sexo tem um cérebro mais leve do que o<br />
nosso! Talvez convenha acrescentar que as medi<strong>da</strong>s não foram<br />
toma<strong>da</strong>s pelas mulheres 54 .<br />
Acrescentaremos, também, que a estatura e o peso médio <strong>da</strong><br />
mulher, sendo inferiores aos do homem, conviria levar em conta
essa diferença, vantajosa para ela, mulher. Mas, <strong>na</strong><strong>da</strong> obstante, as<br />
senhoras se nos avantajam tanto, pelos dotes de coração, que lhes<br />
não custará ceder-nos a fria superiori<strong>da</strong>de do entendimento.<br />
Outra distinção se patenteia, igualmente, no tamanho do lobo<br />
frontal: a circunferência do crânio é, em média, de 546 milímetros<br />
para as inteligências vulgares, de 544 para os imbecis, em<br />
geral, e de 541 para os do primeiro grau. Estas medi<strong>da</strong>s estão,<br />
porém, longe de significar alguma coisa. Uma característica<br />
a<strong>na</strong>tômica mais geral consiste em que o cérebro recobre o cerebelo<br />
tanto mais completamente quanto mais elevado seja o<br />
animal <strong>na</strong> escala zoológica. Já nos macacos se encontra um<br />
bordo estreito que ultrapassa, atrás e em baixo, os hemisférios<br />
cerebrais. Nos outros animais ele estende-se ain<strong>da</strong>, mais a mais.<br />
A mesma observação pode ser feita do ponto de vista embriológico.<br />
No feto o cerebelo não é recoberto pelo cérebro, senão<br />
depois do sétimo mês 55 .<br />
Longe estamos de negar a existência de uma relação constante,<br />
que parece ligar a inteligência à estrutura do cérebro. As<br />
cabeças de Vesale, Shakespeare, Hegel, Gothe, são exemplos de<br />
superiori<strong>da</strong>de manifesta<strong>da</strong> pelo desenvolvimento do lobo frontal.<br />
Queremos mesmo crer que algumas exceções sejam devi<strong>da</strong>s ao<br />
fato de, nem sempre, o desenvolvimento aparente do cérebro<br />
corresponder ao seu peso, e que, em <strong>da</strong>dos casos de idiotia, a<br />
água substitui a substância cerebral. Em geral, não é por uma<br />
característica particular que se manifesta a superiori<strong>da</strong>de intelectual,<br />
e sim pelo conjunto de to<strong>da</strong>s as suas partes. Enfim, podemos<br />
admitir, com alguns a<strong>na</strong>tomistas, que o peso do cérebro<br />
aumenta até os vinte e cinco anos e se mantém imutável até aos<br />
cinqüenta, para de novo decrescer consideravelmente <strong>na</strong> senectude.<br />
O cérebro é insensível, absolutamente, e só os pedúnculos cerebrais<br />
e as cama<strong>da</strong>s óticas parece não o serem. Nos profundos<br />
ferimentos <strong>da</strong> cabeça, que ape<strong>na</strong>s interessam este órgão, poderemos<br />
tocar-lhe a superfície e mesmo extrair pe<strong>da</strong>ços, sem que o<br />
paciente experimente qualquer dor. Em compensação, as experiências<br />
feitas neste sentido com as aves, demonstraram que o<br />
cérebro é, evidentemente, a sede única <strong>da</strong> inteligência. Pássaros e
pombos, alimentados artificialmente, puderam sobreviver um<br />
ano à respectiva ablação do cérebro. O resultado é que o animal,<br />
assim privado do cérebro, permanece mergulhado em sono<br />
profundo, <strong>na</strong><strong>da</strong> vê, <strong>na</strong><strong>da</strong> ouve, tendo embora olhos e ouvidos.<br />
Os movimentos conservam-se e combi<strong>na</strong>m-se, ain<strong>da</strong>, dentro<br />
de certos limites; o animal sente a dor e faz movimentos por<br />
evitá-la, mas tor<strong>na</strong>-se estúpido e como num estado de sonho, que<br />
exclui a consciência; é um autômato que poderá viver desde que<br />
o alimentem por processos mecânicos quaisquer, mas que morrerá<br />
de fome com a boca no alimento, visto lhe ser interdito combi<strong>na</strong>r<br />
a imagem do alimento e a necessi<strong>da</strong>de de o tomar, com os<br />
movimentos necessários a esse fim. Em se extraindo, cama<strong>da</strong> a<br />
cama<strong>da</strong>, os dois hemisférios cerebrais, ver-se-á que a ativi<strong>da</strong>de<br />
intelectual diminui <strong>na</strong> razão do volume <strong>da</strong> massa retira<strong>da</strong>. Atingindo<br />
os ventríloquos, dá-se a per<strong>da</strong> do conhecimento. A significação<br />
e formação dos tecidos são ain<strong>da</strong> possíveis, mas o animal<br />
fica inteiramente i<strong>na</strong>cessível às impressões do mundo exterior. A<br />
consciência desapareceu sem deixar traço. Vemos, assim, que,<br />
com a retira<strong>da</strong> sucessiva, e por cama<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>s partes superiores do<br />
cérebro, as facul<strong>da</strong>des diminuíram pouco a pouco. Galinhas<br />
assim opera<strong>da</strong>s continuaram com vi<strong>da</strong> vegetativa. A diminuição<br />
progressiva <strong>da</strong> inteligência integral e proporcio<strong>na</strong><strong>da</strong> às ablações,<br />
antes que de uma que outra facul<strong>da</strong>de, faz prova negativa <strong>da</strong><br />
teoria <strong>da</strong>s localizações; mas, perguntamos: – poder-se-á aplicar<br />
ao homem o fato observado com o intelecto de uma galinha? Eis<br />
o que nos parece duvidoso. Diante destas experiências de Flourens,<br />
de Valentim e fisiologistas outros, Büchner exclama:<br />
“Poder-se-á exigir prova mais brilhante para demonstrar a conexi<strong>da</strong>de<br />
absoluta <strong>da</strong> alma e do cérebro, do que a forneci<strong>da</strong> pelo<br />
escalpelo demonstrando a alma peça por peça?”<br />
Uma alteração no cérebro acarreta uma alteração correspondente<br />
no pensamento. As enfermi<strong>da</strong>des mentais assi<strong>na</strong>lam-se por<br />
umas tantas lesões. Em trezentos e dezoito dissecações de alie<strong>na</strong>dos,<br />
ape<strong>na</strong>s trinta e duas deixaram de patentear alterações<br />
patológicas do cérebro e <strong>da</strong>s membra<strong>na</strong>s, e cinco somente não<br />
apresentavam anomalia qualquer. (Romain Fischer.)
Lesões cerebrais há que produzem, por vezes, efeitos espirituais<br />
surpreendentes. Assim, contam os a<strong>na</strong>is <strong>da</strong> Fisiologia que<br />
no hospital de São Tomás, Londres, um homem gravemente<br />
ferido <strong>na</strong> cabeça entrou a falar, depois de curado, um idioma<br />
absolutamente esquecido durante a sua permanência de trinta<br />
anos <strong>na</strong>quela ci<strong>da</strong>de. Uma degenerescência de ambos os hemisférios<br />
produz sonolência, debili<strong>da</strong>de mental e mesmo idiotia<br />
completa. A superabundância de líquido raquidiano origi<strong>na</strong> a<br />
debili<strong>da</strong>de mental e o estupor. A ruptura de um vaso sanguíneo<br />
do cérebro causa o estado patológico chamado apoplexia. To<strong>da</strong><br />
gente sabe que a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> consciência é uma conseqüência dessa<br />
alteração mórbi<strong>da</strong>. A inflamação do cérebro causa<strong>da</strong> pela replecção<br />
dos vasos sanguíneos e uma excessiva exsu<strong>da</strong>ção plástica,<br />
desfecham a febre cerebral e o delírio. Quando os batimentos do<br />
coração fraquejam, a ponto de ocasio<strong>na</strong>r uma síncope, o sangue<br />
aflui escassamente ao cérebro. Também a per<strong>da</strong> dos sentidos<br />
acompanha uma síncope. O cérebro dos decapitados morre<br />
célere, em conseqüência <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de sangue. Sendo o oxigênio<br />
condição indispensável ao renovamento do sangue, em lhe<br />
faltando este, o encéfalo é o primeiro a se ressentir e sobrevêm,<br />
então, as cefalalgias, as vertigens, as aluci<strong>na</strong>ções.<br />
O chá influi no discernimento, o café estimula a potência artística<br />
do cérebro e o álcool acarreta a embriaguez com as suas<br />
conseqüências 56 .<br />
To<strong>da</strong>s as impressões recebi<strong>da</strong>s pelos ouvidos e pelos olhos<br />
são influências materiais, transmiti<strong>da</strong>s ao cérebro pelo sistema<br />
nervoso, provocando modificações materiais correspondentes.<br />
Uma pessoa que nos infunde simpatia, mu<strong>da</strong>-nos o curso <strong>da</strong>s<br />
idéias. Quando um pobre habitante dos vales paludosos escala os<br />
Alpes, fica deslumbrado com as suas novas impressões. A música<br />
convi<strong>da</strong> ao sonho; a baunilha, os ovos, o vinho quente, exaltam<br />
os desejos; um céu luminoso nos alegra, um céu sombrio nos<br />
entristece. Desde o momento em que somos engendrados, entramos<br />
num oceano de matéria em circulação. O que somos, devemo-lo<br />
em parte aos nossos avós, à nossa alimentação, ao nosso<br />
país, à nossa educação, ao ar, ao tempo, ao som, à luz, ao nosso<br />
regime, às nossas vestes 57 .
Tais os fatos positivos, constatados pelas ciências fisiológicas<br />
e invocados pela escola materialista, ao declarar que as facul<strong>da</strong>des<br />
intelectuais são produto <strong>da</strong> substância cerebral.<br />
Fizemos este esboço não só no intuito de levantar o combatido<br />
adversário, como para fornecer cabe<strong>da</strong>l de reflexão a muitos<br />
espiritualistas ingênuos, que acreditam resolvidos todos os<br />
problemas.<br />
No capítulo seguinte, infligiremos os senhores materialistas,<br />
desafiando-os a responderem a três questões solidárias que<br />
arrasam de alto a baixo o seu palanque. Mas, enquanto o não<br />
fazemos, interessa-nos inquietá-los a pretexto <strong>da</strong> solidez de suas<br />
pretensiosas explicações.<br />
Notemos, antes do mais, que nenhuma lei exclusiva existe,<br />
acerca <strong>da</strong> correspondência do cérebro com o pensamento. Não<br />
está rigorosamente demonstrado:<br />
1º - que o peso do cérebro aumenta até à madureza e decai<br />
depois (Sommering lhe fixa o desenvolvimento máximo<br />
aos 3 anos, Wenzel aos 7, Tledemann aos 8, Gratiolet <strong>na</strong><br />
velhice, etc.);<br />
2º - que a inteligência esteja em relativi<strong>da</strong>de com o peso (os<br />
crânios de Napoleão, Voltaire, Rafael, não ultrapassaram<br />
a média);<br />
3º - que uma fronte larga seja índice de geniali<strong>da</strong>de (Lelut<br />
demonstrou que os idiotas apresentam ordi<strong>na</strong>riamente<br />
uma fronte desenvolvi<strong>da</strong> e que é impossível determi<strong>na</strong>r<br />
relações exatas entre a inteligência e as dimensões crania<strong>na</strong>s);<br />
4º - que a loucura provenha sempre de uma lesão cerebral, antes<br />
parecendo uma afecção psíquica. (Esquirol, Lelut,<br />
Leuret, Georget, Ferrus, constataram que a loucura não é<br />
segui<strong>da</strong> de lesões senão quando coincide com enfermi<strong>da</strong>des<br />
orgânicas.)<br />
Nossos adversários têm consciência <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des que a<br />
questão apresenta e procuraram, alhures, a causa material <strong>da</strong><br />
inteligência, como, por exemplo, no fósforo, a que já aludimos.<br />
Acreditaram ter achado 4% de fósforo no cérebro dos alie<strong>na</strong>dos,
23% no cérebro normal e 1% no dos imbecis. Haverá, porém,<br />
necessi<strong>da</strong>de de frisar que não há lei absoluta, que to<strong>da</strong>s estas<br />
explicações não satisfazem e que, em suma, não existem essas<br />
diferenças?<br />
Vejamos agora se os fatos acima expostos provam, tão clara e<br />
peremptoriamente quanto o supõem, que o pensamento não passa<br />
de função fisiológica e que a alma é atributo <strong>da</strong> matéria.<br />
O nó do problema está em decidir se o cérebro é um órgão ao<br />
serviço <strong>da</strong> inteligência, ou se esta é uma criação do cérebro, filha<br />
e escrava <strong>da</strong> substância cerebral.<br />
É sempre, sob outro aspecto, a mesma questão de força e matéria.<br />
Domi<strong>na</strong> a força? Obedece-lhe a matéria? Ou é o contrário<br />
que se dá?<br />
Esses senhores declararam, sem forma outra de processo, que,<br />
evidentemente, a força é um atributo <strong>da</strong> deusa Matéria e a alma<br />
não passa de ilusão de si mesma, a crer <strong>na</strong> sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de,<br />
quando mais não é que o resultado passageiro de um movimento<br />
do fósforo, ou <strong>da</strong> albumi<strong>na</strong>, nos lobos cerebrais.<br />
Se esta grosseira explicação está tão bem demonstra<strong>da</strong> e é tão<br />
evidente para os nossos adversários, confessamos que, ao nosso<br />
ver, ela é obscura e nos parece incapaz de algo provar, <strong>na</strong> atuali<strong>da</strong>de,<br />
a esse respeito. Não somente a fisiologia cerebral ain<strong>da</strong><br />
está <strong>na</strong> sua infância, como, no parecer mesmo dos fisiologistas<br />
mais eminentes, as relações do cérebro com o pensamento permanecem<br />
profun<strong>da</strong>mente desconheci<strong>da</strong>s.<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, o estado <strong>da</strong> alma prende-se ao estado do cérebro;<br />
certo, o enfraquecimento deste acarreta o desfalecimento <strong>da</strong>quela;<br />
as crianças e os velhos (posto que com exceções numerosas)<br />
racioci<strong>na</strong>m com menos clareza e rigor que os homens maduros; e<br />
concebe-se que uma lesão cerebral produza a per<strong>da</strong> de facul<strong>da</strong>des<br />
correspondentes; mas, que prova tudo isso, uma vez que o<br />
cérebro é, neste plano, o instrumento necessário, sine qua non,<br />
<strong>da</strong> manifestação <strong>da</strong> alma? – Se, em vez de ser a causa, ele é<br />
ape<strong>na</strong>s a condição?<br />
Se o melhor músico do mundo só dispusesse de um piano<br />
com falta de algumas teclas, ou de instrumento outro de constru-
ção defeituosa, seria lícito negar talento musical a esse músico só<br />
por lhe falhar o instrumento, sobretudo quando, ao seu lado,<br />
outros artistas, por disporem de instrumentos à altura de seus<br />
talentos, se fazem admirar por quem os ouve?<br />
Por mais que Broussais moteja do pequenino músico, oculto<br />
no fundo do cérebro, não conseguirá desatar o nó <strong>da</strong> questão.<br />
Abstenhamo-nos de círculos viciosos. Este, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, o<br />
primeiro ponto a exami<strong>na</strong>r:<br />
É ou não a alma uma força pessoal animando o sistema nervoso?’<br />
Uma primeira resposta é <strong>da</strong><strong>da</strong> por este fato acima relatado, de<br />
oferecerem os hemisférios cerebrais tanto mais sinuosi<strong>da</strong>des,<br />
meandros e circunvoluções irregulares, quanto mais pensante é o<br />
portador desse cérebro.<br />
Não se dirá então, que, precisamente por ser independente e<br />
ativo, o pensamento trabalhou mais fortemente esse cérebro?<br />
Que, por se haver ele retraído muitas vezes sobre si mesmo,<br />
por ter tremido de angustiosas ânsias, em constrições de medo e<br />
em êxtases de amor; por haver procurado, meditado, escavado os<br />
problemas; por se haver ora revoltado, ora submetido; por ter,<br />
numa palavra, desempenhado rudes labores, é que a substância,<br />
veículo de comunicação com o exterior, guardou os traços desses<br />
movimentos e vigílias? Esta é a nossa opinião e pensamos que<br />
seria difícil demonstrar-nos o contrário.<br />
Alberto, um a<strong>na</strong>tomista de Bonn, dissecou cérebros de pessoas<br />
que se haviam entregado a trabalhos intelectuais durante<br />
alguns anos, e achou em todos uma substância muito consistente<br />
e a massa par<strong>da</strong>, bem como os sulcos, assaz desenvolvidos. Se,<br />
por outro lado, observamos com Spurzein, Gall e Laváter, que a<br />
cultura <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des superiores do espírito se nos imprime no<br />
crânio e no semblante; se visitarmos o Museu de Antropologia<br />
de Paris e notarmos, através <strong>da</strong> coleção de crânios do abade<br />
Frêre, que os progressos <strong>da</strong> Civilização redun<strong>da</strong>ram <strong>na</strong> elevação<br />
<strong>da</strong> parte anterior e <strong>na</strong> depressão <strong>da</strong> occipital, poderemos tirar<br />
destes fatos uma conclusão diametralmente oposta à dos adversários,<br />
para afirmar que o pensamento rege a substância cerebral.
Não temos aí, claro como o dia, o trabalho do espírito sobre a<br />
matéria? E as conclusões não derivam de si mesmas para abrir<br />
passagem triunfal à nossa doutri<strong>na</strong>?<br />
A propósito de conclusões, não podemos eximir-nos de admirar<br />
a facili<strong>da</strong>de com que se pode tirar dos mesmos fatos conclusões<br />
inteiramente contrárias: tudo depende <strong>da</strong> disposição de<br />
espírito e haveria que desesperar dos progressos <strong>da</strong> teoria, se a<br />
maioria dos homens tivesse o caráter mal formado. Verificariam,<br />
por exemplo, em experiências com alie<strong>na</strong>dos, que alguns haviam<br />
recuperado a consciência e a razão pouco antes de morrer. Concluíram<br />
os espiritualistas que as almas desses infelizes voltavam,<br />
após longo isolamento, ao conhecimento de si mesmas e ao<br />
predomínio do corpo, sendo-lhes permitido, nesse transe supremo,<br />
abrirem os olhos <strong>da</strong> consciência ao passarem desta para a<br />
outra vi<strong>da</strong>. Os materialistas, ao invés, aproveitaram o fato,<br />
alegando que a aproximação <strong>da</strong> morte liberta o cérebro <strong>da</strong>s<br />
influências tórpi<strong>da</strong>s e mórbi<strong>da</strong>s do corpo 58 .<br />
Mais do que se imagi<strong>na</strong>, a própria A<strong>na</strong>tomia fisiológica se<br />
embaraça, no concernente à loucura em relação com o estado do<br />
cérebro. Enquanto num, como os citados, muito vêem; outros,<br />
não menos hábeis, <strong>na</strong><strong>da</strong> encontram. Assim, o alienista Leuret<br />
declara que nenhuma alteração cerebral se encontra, senão nos<br />
casos em que a demência é precedi<strong>da</strong> de qualquer outra enfermi<strong>da</strong>de,<br />
e que essas alterações são tão variáveis e diferentes que<br />
não autorizam apresenta<strong>da</strong>s, afirmativamente, como ver<strong>da</strong>deiras<br />
causas. Assim também, a propósito <strong>da</strong>s anfratuosi<strong>da</strong>des há pouco<br />
referi<strong>da</strong>s, poder-se-ia não ver mais que efeitos.<br />
Quando nossos adversários acrescentam que os casos de demência<br />
protestam contra a existência <strong>da</strong> alma, não estão melhor<br />
aparelhados para defender o seu sistema. Duas hipóteses se<br />
apresentam para explicar a loucura. Ou há, ou não há uma lesão<br />
no cérebro. No primeiro caso, a falha do instrumento não demonstra<br />
a inexistência do artista; e, no segundo, o problema fica<br />
pertencendo à ordem mental.<br />
Melhor ain<strong>da</strong>: o primeiro caso pode enquadrar-se no segundo,<br />
se admitirmos, qual sugere a experiência, que a loucura – seja a<br />
causa<strong>da</strong> por uma dor súbita, por um grande susto ou por desespe-
ação profun<strong>da</strong> – tem, em todos estes casos, sua fonte no ser<br />
mental, que reage contra o estado normal do cérebro e lhe acarreta<br />
qualquer alteração. Ain<strong>da</strong> aqui, é evidente, que quem sofre é o<br />
ser pensante, a determi<strong>na</strong>r no organismo um distúrbio correspondente<br />
ao sofrimento.<br />
E de fato, tem-se verificado que as alterações só se encontram<br />
<strong>na</strong>s loucuras antigas, como se o espírito aí fora o que é por to<strong>da</strong> a<br />
parte – o movimentador <strong>da</strong> substância.<br />
Por outro lado, enquanto os adversários deduzem <strong>da</strong> descrição<br />
a<strong>na</strong>tômica do cérebro que a facul<strong>da</strong>de de pensar não é mais<br />
que proprie<strong>da</strong>de de movimentos do conjunto, nós vemos, <strong>na</strong><br />
multiplici<strong>da</strong>de mesma desses movimentos, uma submissão do<br />
cérebro à grande lei <strong>da</strong> divisão do trabalho, por <strong>da</strong>r a ca<strong>da</strong> órgão<br />
a sua função, de acordo com a respectiva situação, estrutura,<br />
composição, forma, peso, tamanho. Vemos, nessa varie<strong>da</strong>de de<br />
efeitos, um argumento a favor <strong>da</strong> independência <strong>da</strong> alma, de vez<br />
que a hipótese desses fisiologistas não pode, de maneira alguma,<br />
conciliar uma tal complexi<strong>da</strong>de dinâmica do cérebro com a<br />
simplici<strong>da</strong>de necessária e reconheci<strong>da</strong>, do ser intelectual. Falaremos,<br />
<strong>da</strong>qui a pouco, especialmente <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de do ser<br />
pensante, pois que nos resta algo dizer ain<strong>da</strong>, sobre as relações<br />
de cérebro e alma.<br />
As comparações de crânios encontrados em antigos cemitérios<br />
de Paris, desde quando o prefeito de Napoleão 3º promoveu<br />
a remodelação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, e, em particular, a diferença entre<br />
crânios <strong>da</strong>s valas comuns e dos túmulos particulares, estabeleceram<br />
novamente que os indivíduos votados às ciências e artes<br />
possuem uma capaci<strong>da</strong>de cerebral maior que a dos simples<br />
operários. As mesmas escavações revelaram que a capaci<strong>da</strong>de<br />
crania<strong>na</strong> dos parisienses aumentara, de Filipe-Augusto para cá. A<br />
capaci<strong>da</strong>de crania<strong>na</strong> do negro livre é maior que a do escravo. Eis<br />
um fato significativo que poderia (em <strong>da</strong><strong>da</strong> circunstância) ser<br />
invocado a favor <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de.<br />
Tendo provas de que as impressões exteriores influem no<br />
pensamento, temo-las por igual de que o pensamento domi<strong>na</strong> os<br />
próprios sentidos. Quantas criaturas não vemos por aí, cujo<br />
cérebro e cujo corpo padecem enfermi<strong>da</strong>de lenta e rebelde,
arrostando uma existência de misérias e dores e conservando,<br />
sem embargo, fortaleza de ânimo, e guar<strong>da</strong>ndo a flor <strong>da</strong> virtude,<br />
sobranceiras à torrente de lodo que as arrasta, e vencendo pela<br />
grandeza do caráter os elos <strong>da</strong> adversi<strong>da</strong>de?<br />
Negaríeis, também, que haja dores morais que residem, lacerantes,<br />
<strong>na</strong>s profundezas insondáveis <strong>da</strong> alma? – dores íntimas,<br />
não causa<strong>da</strong>s por acidentes físicos, nem por enfermi<strong>da</strong>de exterior,<br />
nem por alteração do cérebro, mas, tão só, por uma causa<br />
incorpórea, qual a per<strong>da</strong> de um pai, a morte de um filho, a infideli<strong>da</strong>de<br />
de um ente amado, a ingratidão de um protegido, a traição<br />
de um amigo; ou ain<strong>da</strong> pelo quadro de um infortúnio, pela derrota<br />
de uma causa justa, pelo contágio de idéias malsãs; por multidão<br />
de causas, enfim, que <strong>na</strong><strong>da</strong> têm de comum com o mundo <strong>da</strong><br />
matéria e não se medem geométrica e quimicamente, mas constituem<br />
o domínio do mundo intelectual?<br />
Não vemos, assim, mesmo sob o seu aspecto físico, a influência<br />
do espírito sobre o corpo? As paixões refletem-se no semblante.<br />
Se empalidecemos de medo, é que este sentimento,<br />
manifestando-se por um movimento do cérebro, retrai os vasos<br />
capilares <strong>da</strong> face. Se a cólera ou a vergonha purpureiam-nos o<br />
rosto, é que os movimentos engendrados dilatam os ditos vasos,<br />
conforme o indivíduo. Mas aqui, é ain<strong>da</strong> o espírito que desempenha<br />
o principal papel.<br />
Se alguma vez corastes à impressão subitânea de um olhar<br />
feminino (não há desdouro em confessá-lo), não sentistes que a<br />
indiscreta impressão se transmitia ao cérebro por intermédio dos<br />
olhos e <strong>da</strong>í descia ao coração para remontar ao rosto?<br />
Procurai a<strong>na</strong>lisar essa sucessão, e mesmo que não coreis tomado<br />
de qualquer súbito temor, aplicai a mesma análise e concluireis<br />
que, sem o quererdes, as impressões vos passam céleres<br />
pela mente, antes que se traduzam exteriormente.<br />
O mesmo se verifica com os sentimentos; é no peito e não <strong>na</strong><br />
cabeça que uma inexprimível sensação de plenitude ou de vácuo<br />
se manifesta, quando, em certas horas de melancolia, o pensamento<br />
se nos desprende e voa para o ser amado.
Mas, como essa sensação não se produz senão depois de pensarmos,<br />
é evidente que, ain<strong>da</strong> aqui, o espírito representa o papel<br />
primacial. Sob outros aspectos, um súbito terror se comunica ao<br />
coração e acelera ou retar<strong>da</strong> o pulso, podendo mesmo paralisá-lo<br />
numa síncope. A tristeza e a alegria produzem lágrimas. O<br />
trabalho mental fatiga o cérebro, o sangue se empobrece, a fome<br />
se faz sentir. To<strong>da</strong>s estas, e grande número de observações<br />
outras, induzem-nos a crer que o pensamento, ser imaterial, tem<br />
sede no cérebro, o qual lhe serve tanto para receber os despachos<br />
do mundo exterior como para levar-lhe suas ordens.<br />
E, de resto, nós já sabemos que o cérebro e a medula mais<br />
não são que poderosos feixes de fibras nervosas, nervos que<br />
partem desse veio, irradiando em todos os sentidos para a superfície<br />
do corpo, e nos quais existe uma corrente análoga à corrente<br />
elétrica. Os nervos são fios telegráficos que transmitem à consciência<br />
as impressões do interior, enquanto os músculos executam<br />
as ordens do cérebro. Ora, Dubois-Reymond mostrou que to<strong>da</strong><br />
ativi<strong>da</strong>de nervosa manifesta<strong>da</strong> nos músculos, a título de movimento,<br />
e no cérebro, a titulo de sensação, é segui<strong>da</strong> de uma<br />
alteração <strong>da</strong> corrente neuro-elétrica. Mas dizer, com o mesmo<br />
Dubois, que a consciência não passa de produto <strong>da</strong> transmissão<br />
desses movimentos, é cometer uma ingenui<strong>da</strong>de, como se pretendêssemos<br />
que a correspondência telegráfica diariamente<br />
troca<strong>da</strong> entre os gabinetes de Londres e Paris tivessem por causa<br />
a passagem de uma nuvem tempestuosa, ou de uma bobi<strong>na</strong> de<br />
indução para o manipulador, e que o receptor de si mesmo<br />
recambiasse a resposta dos despachos inteligentes 59 .<br />
Proclamar que não há no homem mais que um produto <strong>da</strong><br />
matéria, assimilá-lo a um composto químico e deduzir que o<br />
pensamento é uma produção química de certas combi<strong>na</strong>ções<br />
materiais, é um erro monstruoso.<br />
Todos sabemos que o pensamento não é ingrediente de ofici<strong>na</strong>.<br />
Espírito e matéria são enti<strong>da</strong>des tão estranhas uma à outra,<br />
que, to<strong>da</strong>s as línguas, de todos os tempos, sempre as conceituaram<br />
diametralmente opostas.
As leis e forças espirituais existem independentemente <strong>da</strong>s<br />
corporais. A força de vontade é bem distinta <strong>da</strong> força muscular.<br />
A ambição difere <strong>da</strong> fome, o desejo distingue-se <strong>da</strong> sede. Onde<br />
encontrareis as leis morais que regem a consciência? Que o<br />
crânio caucásico seja oval, o mongol redondo e o negro alongado,<br />
em que é que o sentir humano se associa às fibras granulares<br />
ou cilíndricas? Que têm de comum as noções de justo e injusto<br />
com o ácido carbônico? Em que um triângulo, um círculo, um<br />
quadrado, podem afetar a bon<strong>da</strong>de, a generosi<strong>da</strong>de, a coragem?<br />
Seria justo dizer que Cronwell tinha 2,231, Byron 2,238 e Cuvier<br />
1,829 gramas de inteligência, por serem tais os pesos de seu<br />
cérebro? Na ver<strong>da</strong>de, quando se procura son<strong>da</strong>r o assunto a<br />
fundo, fica-se admirado de ver que homens de pensamento<br />
tenham chegado a confundir num só objeto o mundo espiritual e<br />
o material.<br />
Também perguntamos se esses experimentalistas 60 aprofun<strong>da</strong>ram<br />
bem o sentido de suas palavras ao anunciarem proposições<br />
tais como as basilares de suas doutri<strong>na</strong>s:<br />
– To<strong>da</strong>s as facul<strong>da</strong>des que denomi<strong>na</strong>mos atributos <strong>da</strong> alma<br />
não passam de funções <strong>da</strong> substância cerebral. Os pensamentos<br />
estão para o cérebro, mais ou menos como a bílis para o fígado e<br />
a uri<strong>na</strong> para os rins 61 .<br />
– A secreção do fígado, dos rins – diz outro escritor que não<br />
ousa atingir inteiramente a mesma comparação – verifica-se à<br />
nossa revelia e produz uma matéria palpável, ao passo que a<br />
ativi<strong>da</strong>de cerebral não se pode verificar sem a consciência integral<br />
e esta não segrega substância, mas forças 62 .<br />
Que vem a ser segregar forças? Ficaríamos gratos a quem nolo<br />
explicasse. Porque não segregar horas ou quilômetros? Mas,<br />
ouçamos ain<strong>da</strong>:<br />
– O que denomi<strong>na</strong>mos quanti<strong>da</strong>de consciencial, é determi<strong>na</strong>do<br />
pelos elementos constitutivos do sangue. Uma prova de que a<br />
produção de forças mentais depende diretamente de permutas<br />
químicas, está em que os produtos usados pelo sangue, e filtrados<br />
nos rins, variam segundo a <strong>na</strong>tureza do trabalho cerebral 63 .
– O pensamento é um di<strong>na</strong>mismo <strong>da</strong> matéria. Movimentos<br />
materiais, ligados nos nervos a correntes elétricas, são percebidos<br />
no cérebro como sensação e esta sensação é o conhecimento<br />
de si mesmo, é a consciência. A vontade é a expressão necessária<br />
de um estado do cérebro, produzi<strong>da</strong> por influências exteriores.<br />
Não há livre arbítrio. (Moleschott – Kreislaf des Lebens, 2º, 156,<br />
181.)<br />
– A mesma relação existe (segundo Huschke) entre o pensamento<br />
e as vibrações elétricas dos filamentos do cérebro, qual a<br />
<strong>da</strong> cor com az vibrações do éter.<br />
– O pensamento é uma secreção do cérebro, já o dissera Cabanis<br />
há mais de meio século.<br />
– Todos os atos humanos são frutos fatais <strong>da</strong> substância cerebral,<br />
afirmava Taine ain<strong>da</strong> há pouco; vício e virtude valem por<br />
vitríolo e açúcar.<br />
A estas, juntaremos uma última proposição, que parece formula<strong>da</strong><br />
para explicar to<strong>da</strong>s as outras: é a de Nicole, quando<br />
assevera justamente que as maiores tolices encontram sempre<br />
inteligências a elas proporcio<strong>na</strong><strong>da</strong>s.<br />
Kant tivera a lembrança de substituir a reali<strong>da</strong>de do mundo<br />
exterior pelas idéias puramente subjetivas do espírito e, em<br />
compensação, o autor de Koerper und Ceiat, Sr. H. Scheffler,<br />
ensaia explicar a gênese do espírito pela matéria. Não lhe citaremos<br />
o processo, um tanto trabalhado, mas o testemunho crítico<br />
que lhe concedeu o defensor atual do animismo, Sr. Tissot.<br />
“Nesta hipótese – di-lo este – é uma força <strong>da</strong> matéria, não uma<br />
simples força, mas uma resultante <strong>da</strong>s forças simples <strong>da</strong> matéria,<br />
reuni<strong>da</strong>s para (quanto mistério nestas duas palavras!) formar o<br />
organismo humano.<br />
O espírito não atinge o estado fenome<strong>na</strong>l senão quando a matéria<br />
se tem organizado em corpo humano (que abismo tão<br />
grande, que não se pode sequer entrever!), mas a tendência para<br />
esta organização ou para a produção espiritual, não existe <strong>na</strong><br />
matéria.”<br />
A necessi<strong>da</strong>de de admitir a ação <strong>da</strong> força ressalta, em que<br />
lhes pese, de to<strong>da</strong>s as suas definições. E que definições!
Julguem-<strong>na</strong>s pela precedente. Mais, eis um traço de luz que<br />
pode juntar-se ao fogo de artifício:<br />
– “O pensamento, diz Büchner, espírito e alma, <strong>na</strong><strong>da</strong> tem de<br />
material, não é matéria (bravo), mas (ouvide isto) é um complexo<br />
de forças heterogêneas, formando uma uni<strong>da</strong>de; é o efeito <strong>da</strong><br />
ação concomitante de muitas substâncias materiais, dota<strong>da</strong>s de<br />
forças ou proprie<strong>da</strong>des.” Segundo a judiciosa conclusão do Dr.<br />
Hoefer, aí temos uma explicação dig<strong>na</strong> de emparelhar com a<br />
resposta de Sga<strong>na</strong>relle: Ossabundus, nequeis, nequer, potarium,<br />
quipsa milus, ou “eis o que faz seja mu<strong>da</strong> a vossa filha.”<br />
Sábios! Já Epícuro tinha dito que a <strong>na</strong>tureza de uma pedra é<br />
cair, porque ela cai... mas isto não é mais ciência, é comédia. As<br />
galimatias que nos impingem como definição d’alma são uma<br />
pilhéria detestável. Adiante. Ca<strong>da</strong> qual com o seu pala<strong>da</strong>r.<br />
Comparável a estas definições, só mesmo a proposição de<br />
Hegel sobre a identi<strong>da</strong>de de corpo e espírito. Ei-la: “A matéria<br />
não é senão espírito; e o espírito não é senão matéria. Logo, são<br />
um e outra a mesma coisa!”<br />
Este alto raciocínio, que o seu autor qualifica de irrefutável,<br />
lá está <strong>na</strong> sua Grande Lógica. Famosa lógica, a demonstrar que o<br />
puro materialismo está real e efetivamente puro de todo o espírito!<br />
Como vedes, caro leitor, não faltam definições. Somente estamos<br />
ain<strong>da</strong> a perguntar que é o que elas definem.<br />
Mas valem, ain<strong>da</strong> assim, para nos provar que to<strong>da</strong> essa gente<br />
sabe tanto quanto nós <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong> alma.<br />
Assim, neste capítulo, acabamos de ver que, se de um lado a<br />
constituição física do cérebro está de harmonia com a alma e<br />
maravilhosamente apropria<strong>da</strong> para que essa alma receba, de<br />
modo integral, as impressões do mundo exterior, julgue-as e<br />
transmita as suas próprias determi<strong>na</strong>ções; por outro lado, a<br />
a<strong>na</strong>tomia do cérebro desautoriza a concluir não passe a alma de<br />
produto orgânico, ao passo que a Filosofia deslin<strong>da</strong>, <strong>na</strong> trama de<br />
incertezas e contradições do materialismo, a ação evidente do<br />
espírito sobre a matéria.
Vimos que a loucura não é afecção orgânica, porém psíquica,<br />
e que a alma tem o seu mundo de dores e de alegrias: A determi<strong>na</strong>ção<br />
é patente. Será crível, entretanto, que, depois de considerar<br />
a loucura uma enfermi<strong>da</strong>de fisiológica, ousassem equipará-la ao<br />
gênio, havendo, já agora, muitos médicos que a consideram uma<br />
nevrose?<br />
Só a nossa época era capaz destas ousadias. “A constituição<br />
de muitos homens de gênio – diz Moreau (de Tours) – é bem, e<br />
realmente a mesma dos idiotas” 64 . Desenvolvendo desmesura<strong>da</strong>mente<br />
uma tese do Dr. Lelut, o autor sustenta que o gênio não<br />
pertence aos domínios do espírito, mas do corpo! Mas, em que<br />
base se firma ele? no fato de (dizem) certos homens de gênio<br />
manifestarem esquisitices, excentrici<strong>da</strong>des, distrações, ou serem<br />
enfermiços, raquíticos, adiposos, surdos, gagos, ou ain<strong>da</strong> passíveis<br />
de aluci<strong>na</strong>ções.<br />
É realmente singular aferir o gênio pela singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
opiniões, pela origi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, pelo entusiasmo ou pelo delírio. A<br />
nós nos parece que ele consiste, antes, <strong>na</strong> sublimi<strong>da</strong>de do pensamento,<br />
<strong>na</strong> elevação <strong>da</strong> alma aos cimos do estudo científico, <strong>na</strong><br />
ple<strong>na</strong> posse de si mesma, em face <strong>da</strong>s contemplações intelectuais.<br />
Esta singular identificação do gênio com a loucura foi valorosamente<br />
refuta<strong>da</strong> pelo Sr. Paulo Janet, no seu valioso trabalho<br />
sobre O Cérebro e o Pensamento. “Esta teoria – diz ele – tomou<br />
a aparência como reali<strong>da</strong>de, o acidente pela substância, os sintomas<br />
mais ou menos variáveis, pelo fun<strong>da</strong>mental e essencial. O<br />
que constitui o gênio não é o entusiasmo (pois este pode existir<br />
nos espíritos mais medíocres e vazios) e sim a superiori<strong>da</strong>de do<br />
racio<strong>na</strong>lismo. O homem de gênio é o que vê mais claro, o que<br />
percebe maior contingente de ver<strong>da</strong>de, o que pode relacio<strong>na</strong>r<br />
maior número de fatos a uma idéia geral, o que encadeia to<strong>da</strong>s as<br />
partes de um todo a uma lei comum, e que, mesmo quando cria,<br />
qual se dá <strong>na</strong> poesia, não faz mais que realizar, pela imagi<strong>na</strong>ção,<br />
a idéia que a sua inteligência concebeu.<br />
“A característica do gênio está no possuir-se a si mesmo e<br />
não em ser arrastado por uma força fatal e cega; está em gover<strong>na</strong>r<br />
suas idéias e não em ser subjugado por imagens; está em ter
consciência níti<strong>da</strong> do que quer e vê, e não em perder-se num<br />
êxtase vazio e absurdo, semelhante ao dos faquires indianos.”<br />
Certo, o homem de gênio quando compõe não pensa mais em<br />
si mesmo, isto é, nos seus mesquinhos interesses e paixões, <strong>na</strong><br />
sua pessoa trivial; pensa no que pensa, ou, por outra, não seria<br />
mais que um eco sonoro e ininteligente, o que São Paulo admiravelmente<br />
qualifica de cymbolum so<strong>na</strong>ns. Numa palavra: o gênio<br />
é, para nós, o espírito humano no seu melhor estado de saúde e<br />
vigor.<br />
Na<strong>da</strong> obstante, isolados no seu triste deserto, nossos apaixo<strong>na</strong>dos<br />
fisiologistas fazem a noite em torno de si, recusam confessar<br />
as facul<strong>da</strong>des mais nobres do espírito humano.<br />
Pretendem ser os rigorosos intérpretes <strong>da</strong> Ciência, ter em suas<br />
mãos o futuro <strong>da</strong> inteligência, a olharem desdenhosos os pobres<br />
mortais, cujo peito serve de refúgio derradeiro à fé no passado e<br />
à esperança exila<strong>da</strong>. Fora do seu círculo não há mais que trevas,<br />
fantásticas ilusões. Eles têm <strong>na</strong> mão a lâmpa<strong>da</strong> <strong>da</strong> salvação, sem<br />
perceberem (ai de nós!) que o fumo negro que dela se exala<br />
perturba a visão e falseia a rota. Tudo comprimem, à força, para<br />
lhe extrair a essência, e quando chegam a capacitar-se de que a<br />
essência não corresponde ao que esperavam, declaram que – “a<br />
essência <strong>da</strong>s coisas não existe em si mesma e não passa de<br />
relações, que acreditamos apreender <strong>na</strong>s transformações <strong>da</strong><br />
matéria”. Não há outra lei que a <strong>da</strong> nossa imagi<strong>na</strong>ção, nem<br />
mesmo forças, mas simplesmente proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> matéria,<br />
quali<strong>da</strong>des ocultas que, em lugar de nos fazer evoluir, recuamnos<br />
a vinte séculos atrás, ao tempo de Arístoto.<br />
Suas conclusões são meramente arbitrárias, nem a Química<br />
nem a Física as demonstram, qual dão a entender. Não são<br />
proposições geométricas a derivarem necessariamente umas <strong>da</strong>s<br />
outras, como outros tantos corolários sucessivos, mas enxertos<br />
estranhos, arbitrariamente sol<strong>da</strong>dos à árvore <strong>da</strong> Ciência. Felizmente<br />
para nós, eles também desconhecem as leis <strong>da</strong> enxertia.<br />
Essas vergônteas <strong>na</strong>timortas, de uma espécie exótica, são incapazes<br />
de receber a seiva vivificante, e a árvore em crescimento<br />
as esquece no seu progresso. Dito seja que, também hoje, elas,
essas vergônteas, não oferecem viabili<strong>da</strong>de maior que ao tempo<br />
de Epícuro e Lucrécio. A posteri<strong>da</strong>de não terá, jamais, o trabalho<br />
de lhes recolher flores e frutos.<br />
Entretanto, a <strong>da</strong>r-lhes ouvidos, dir-se-ia estarem elas tão <strong>na</strong>turalmente<br />
enxerta<strong>da</strong>s <strong>na</strong> árvore <strong>da</strong> Ciência, que se nutrem <strong>da</strong> sua<br />
própria vi<strong>da</strong> e se alimentam por seus próprios cui<strong>da</strong>dos, como se<br />
uma mãe inteligente pudesse consentir em derramar a seiva do<br />
seu leite nos lábios de semelhantes parasitas! Do ponto de vista<br />
histórico, a atitude magistral que eles tomam, diante dos representantes<br />
<strong>da</strong> Ciência moder<strong>na</strong>, é curiosa e dig<strong>na</strong> de atenção. E<br />
fazem sucesso, visto que, nem todos sendo sábios, há entre eles<br />
alguns que ocupam as primeiras linhas <strong>da</strong> Ciência e, tendo<br />
publicado sobre a Física obras de valor, as impõem e induzem a<br />
aceitar a falsa metafísica desses experimentadores.<br />
Diante do resultado dessas tendências, diante <strong>da</strong> materialização<br />
absoluta de to<strong>da</strong>s as coisas, desse pretenso termo último do<br />
progresso científico – o aniquilamento <strong>da</strong> lei criadora e <strong>da</strong> alma<br />
huma<strong>na</strong>, a que se reduzem as mais nobres aspirações <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de<br />
com as suas crenças mais instintivas e suas concepções<br />
mais antigas e mais grandiosas? Que resta <strong>da</strong>s idéias de <strong>Deus</strong>,<br />
justiça, ver<strong>da</strong>de, bem, morali<strong>da</strong>de, dever, inteligência, afeição?<br />
Na<strong>da</strong>, <strong>na</strong><strong>da</strong> mais que poeira vil. Todos nós, pensadores animados<br />
do ardente desejo de saber, não passamos <strong>da</strong> evaporação de um<br />
pe<strong>da</strong>ço de graxa fosfora<strong>da</strong>!<br />
Admiremos os panoramas soberbos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, elevemos o<br />
pensamento a essas alturas luminosas e doura<strong>da</strong>s de sol, <strong>na</strong>s<br />
horas melancólicas <strong>da</strong> tarde, escutemos as harmonias <strong>da</strong> música<br />
huma<strong>na</strong> e deixemo-nos embalar pela melodia dos ventos e dos<br />
zéfiros, contemplemos a imensi<strong>da</strong>de múrmura dos mares, subamos<br />
ao cimo esplendente <strong>da</strong>s montanhas, observemos a marcha<br />
tão bela e tocante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> planetária em to<strong>da</strong>s as suas fases,<br />
respiremos o perfume <strong>da</strong>s flores, elevemos o olhar às estrelas<br />
radiosas que se ostentam nos esplendores do azul, ponhamo-nos<br />
em comunicação com a Humani<strong>da</strong>de e sua história, respeitemos<br />
os gênios ilustres, os sábios que domi<strong>na</strong>ram a matéria, veneremos<br />
os moralistas perseguidos, os legisladores de povos e permitamos<br />
ain<strong>da</strong> à amizade reunir corações, ao amor que palpite em
nosso peito, ao patriotismo e à honra que nos inflamem o verbo,<br />
e, nessas ilusões caducas, não haverá mais que o efeito químico<br />
de uma mistura, ou de uma combi<strong>na</strong>ção de alguns gases. É uma<br />
questão de peso e de volume nos equivalentes do oxigênio, do<br />
hidrogênio, do fósforo, do carbono, que se juntam no alambique<br />
do cérebro em maiores ou menores proporções!<br />
Virtude, coragem, honra, afeto, sensibili<strong>da</strong>de, desejo, esperanças,<br />
discernimento, inteligência, geniali<strong>da</strong>de, tudo combi<strong>na</strong>ções<br />
químicas! Saibamo-lo de uma vez por to<strong>da</strong>s, a vi<strong>da</strong> é tão<br />
somente isso.<br />
Que o coração nos paralise, que nossa alma não se preocupe<br />
mais com os bens intelectuais, que o nosso olhar não mais se<br />
eleve aos céus. Para quê? A vi<strong>da</strong> do espírito <strong>na</strong><strong>da</strong> mais é que um<br />
fantasma...<br />
Demo-nos por felizes, com o saber que não passamos de secreção<br />
impalpável e inconsistente de três ou quatro libras de<br />
medula branca ou cinzenta!...
2 - A Perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de Huma<strong>na</strong><br />
SUMÁRIO – A hipótese <strong>da</strong> alma como proprie<strong>da</strong>de do cérebro é<br />
insustentável diante dos fatos que atestam a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>.<br />
– Contradição <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma com a multiplici<strong>da</strong>de<br />
dos movimentos cerebrais. Contradição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de permanente<br />
<strong>da</strong> alma com a mutabili<strong>da</strong>de incessante <strong>da</strong>s partes constitutivas<br />
do cérebro. – Silêncio dos materialistas sobre esse duplo fato.<br />
– I<strong>na</strong>ni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua teoria. – Audácia de suas explicações, ante a<br />
certeza moral de nossa identi<strong>da</strong>de. – De como a uni<strong>da</strong>de e a identi<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> alma demonstram a i<strong>na</strong>ni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> hipótese materialista.<br />
Felizmente para as grandes e respeitáveis ver<strong>da</strong>des de ordem<br />
moral, não estamos reduzidos a curvar a cabeça diante de tão<br />
grosseira conclusão.<br />
Como nos dias decantados pelo célebre autor latino <strong>da</strong>s Metamorfoses,<br />
temos <strong>na</strong>scido para ficar de pé e contemplar o céu.<br />
Certo, poderíamos invocar aqui o testemunho imponente dos<br />
sentimentos mais profundos <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>; poderíamos<br />
evidenciar, à luz meridia<strong>na</strong>, que nestas doutri<strong>na</strong>s perniciosas não<br />
há mais lugar para a esperança, moral para a consciência, luz<br />
para os pendores do coração; bon<strong>da</strong>de <strong>na</strong>tural, justiça <strong>na</strong> ordem<br />
universal, consolação para o aflito, e mais, que a população do<br />
globo não mais tem à sua frente nenhuma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, nenhuma<br />
clari<strong>da</strong>de, nenhuma lei intelectual.<br />
Rolando, por aí além, turbilho<strong>na</strong>nte, leva<strong>da</strong> no espaço obscuro<br />
pela rotação e translação rápi<strong>da</strong>s do globo e renovando-se a<br />
ca<strong>da</strong> instante pelo <strong>na</strong>scimento e morte de seus membros, ela – a<br />
Humani<strong>da</strong>de – não passa, à superfície desse globo, de bolorento<br />
parasita cegamente desabrochado e perpetuado por forças químicas.<br />
Sim, poderíamos, invocando o testemunho dos corações que<br />
ain<strong>da</strong> pulsam e <strong>da</strong>s almas que ain<strong>da</strong> crêem, dispor em linha de<br />
batalha os argumentos ain<strong>da</strong> vivazes <strong>da</strong> Filosofia e <strong>da</strong> Psicologia<br />
e derribar o adversário, constrangendo-o a confessar-se vencido.<br />
To<strong>da</strong>via, como preferimos combater no mesmo terreno e com as<br />
mesmas armas, pretendendo refutá-los só em nome <strong>da</strong> Ciência de<br />
que se dizem intérpretes, apraz-nos permanecer no campo exclu-
sivamente científico e desdenhar, qual o fazem eles, os silogismos<br />
<strong>da</strong> Psicologia.<br />
Deixamos, assim, sem resposta as seguintes proposições adversas<br />
e os comentários com que as esticam:<br />
“As leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> são forças bárbaras, inflexíveis; não conhecem<br />
a moral nem a benevolência.” (Vogt).<br />
“A <strong>Natureza</strong> não ouve as queixas nem as preces do homem,<br />
antes as repele inexoravelmente em si mesmo.” (Fuerbach).<br />
“Sabemos, por experiências próprias, que <strong>Deus</strong> absolutamente<br />
não se imiscui, de qualquer forma, nesta vi<strong>da</strong> terrestre.” (Lutero).<br />
Aí temos conceitos bem consoladores, não é assim? Mas, repetimos:<br />
o sentimento não é cabe<strong>da</strong>l científico e por isso não<br />
entraremos nesse capítulo. Esta abstenção não nos impede, bem<br />
entendido, de convi<strong>da</strong>r o leitor a meditar e decidir para que lado<br />
lhe pendem o coração e a razão.<br />
Mas, ape<strong>na</strong>s do ponto de vista <strong>da</strong> observação científica e deixando<br />
de lado os pendores do coração e os imperativos <strong>da</strong> consciência<br />
– que não deixam de algo ser <strong>na</strong> história <strong>da</strong> alma –<br />
dizemos que fatos há, nos domínios <strong>da</strong> observação pura, completamente<br />
inexplicáveis <strong>na</strong> hipótese materialista.<br />
No precedente capítulo, o leitor ain<strong>da</strong> pode ficar suspenso entre<br />
as duas hipóteses, porquanto apresentamos fatos mutuamente<br />
oscilantes, que deixam o espírito indeciso, quanto ao centro de<br />
gravi<strong>da</strong>de. Agora, porém, o centro de gravi<strong>da</strong>de vai passar ao<br />
corpo <strong>da</strong>s doutri<strong>na</strong>s espiritualistas e os que o não seguirem muito<br />
se arriscarão a desequilibrar-se e a cair, rápido, no mais vazio<br />
dos vácuos.<br />
Exponhamos, em primeiro lugar, as afirmativas materialistas<br />
contra a existência <strong>da</strong> alma e, para não falar só dos estranhos e<br />
fazer ao mesmo tempo o histórico do materialismo em nosso<br />
país, escutemos Broussais, cuja obra foi o primeiro toque de<br />
reunir dos nossos modernos epicuristas e i<strong>na</strong>ugurou, em nosso<br />
século, a primeira fase desse curso pouco luminoso.<br />
Para Broussais, como para Cabanis, Locke e Condillàc, o<br />
homem é, simplesmente, o conjunto de órgãos em função. O eu,
a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong> não é um ser suis generis, é um fato 65 , é<br />
um resultado, é um produto imputável a tal ou qual disposição <strong>da</strong><br />
matéria 66 . Inteligência e sensibili<strong>da</strong>de são funções do aparelho<br />
nervoso, mais ou menos como a transformação dos alimentos em<br />
quilo e sangue é função do aparelho digestivo, ou respiratório 67 .<br />
A existência <strong>da</strong> alma não é mais que uma hipótese que se não<br />
fun<strong>da</strong> em observação qualquer, que nenhum raciocínio autoriza,<br />
por gratuita e até mesmo destituí<strong>da</strong> de senso 68 . Reconhecer no<br />
homem mais que um sistema orgânico é cair nos absurdos <strong>da</strong><br />
Ontologia 69 .<br />
Cabanis, no seu livro bem conhecido, e Destutt de Tracy, <strong>na</strong><br />
sua análise racio<strong>na</strong>l <strong>da</strong>s relações do físico com o moral, emitem<br />
as mesmas opiniões, mas, sob forma menos explícita.<br />
Segundo os exagerados defensores <strong>da</strong> doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> sensação, a<br />
pessoa huma<strong>na</strong> confunde-se <strong>na</strong>s funções orgânicas. Na reali<strong>da</strong>de,<br />
não existe.<br />
Todos os homens, em todos os tempos e por to<strong>da</strong> a parte,<br />
acreditaram <strong>na</strong> existência pessoal, sentiram-se viventes e pensantes;<br />
to<strong>da</strong>s as línguas enunciaram, <strong>na</strong>s primeiras pági<strong>na</strong>s dos a<strong>na</strong>is<br />
humanos, a existência do pensamento individual, a alma, a<br />
inteligência, o espírito, não importa sob que nome (poderíamos<br />
encher uma pági<strong>na</strong> de nomes primitivos, arianos, sânscritos,<br />
gregos, latinos, celtas, etc., mas uma tal nomenclatura não se faz<br />
necessária e nossos leitores, certo, sabem <strong>da</strong> existência desses<br />
vocábulos). O bom senso popular, tanto quanto o gênio filosófico,<br />
espontaneamente acreditaram, desde que o mundo é mundo e<br />
há seres racio<strong>na</strong>is <strong>na</strong> Terra, que existe em nosso corpo algo mais<br />
que a matéria, uma consciência própria, sem a qual não existiríamos<br />
e que se comprova a si mesma, pelo só fato <strong>da</strong> certeza<br />
íntima. Enfim, todos sentiram que nem o corpo, nem tampouco o<br />
mundo exterior, constituem a enti<strong>da</strong>de pensante. Entretanto, a<br />
Humani<strong>da</strong>de do passado, como do presente, parece que não leva<br />
em conta a opinião dos materialistas.<br />
Felizmente para nós, eles aí estão a esclarecer-nos de ora em<br />
diante, convi<strong>da</strong>ndo-nos a reconsiderar a ingenui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s nossas<br />
crenças. Como bem o disse um fino espiritualista (o duque de<br />
Broglie, nos Ècrits et Discours, t. 1º). “Até aqui, caros amigos –
dizem eles –, acreditastes que existíeis e tínheis um corpo; mas,<br />
desenga<strong>na</strong>i-vos, porque não existis e é o corpo que vos possui.<br />
Só existis <strong>na</strong> aparência; o que chamais o eu não passa de simples<br />
vocábulo, um não sei quê, destituído de reali<strong>da</strong>de e consistência;<br />
e o que realmente existe, no fundo de tudo isso, é alguma coisa<br />
de que não tendes consciência, nem ela tampouco a tem de vós.”<br />
No parecer de Broussais com os seus colegas e discípulos, o<br />
eu é o cérebro. O pensamento, todos os fenômenos inteligentes,<br />
são excitações <strong>da</strong> matéria cerebral ou, para usar a mesma linguagem<br />
do Autor – condensações <strong>da</strong> mesma matéria 70 . E, seja de<br />
que <strong>na</strong>tureza for, to<strong>da</strong> a percepção mental está neste caso. Dor,<br />
alegria, sau<strong>da</strong>de, julgamento, comparação, determi<strong>na</strong>ção, entusiasmo,<br />
desejo, tudo é condensação. Se houver fenômenos complexos<br />
nesse laboratório do pensamento, quais uma série de<br />
raciocínios sucessivos partidos de uma impressão inicial, mesmo<br />
do exterior e culmi<strong>na</strong>ndo em ato voluntário, serão ain<strong>da</strong> condensação<br />
de condensações. Estas são o próprio pensamento, que não<br />
passa de conseqüência, de resultante, condensação mesma <strong>da</strong>s<br />
fibras do encéfalo...” Meu <strong>Deus</strong>! Que bela coisa é a Ciência e<br />
como o Sr. Broussais possuía uma imagi<strong>na</strong>ção bem condensa<strong>da</strong>!<br />
Sentir-se sentir, eis a fórmula e o único fato consciencial admitido<br />
por Broussais. Ora, qual o órgão que sente no organismo<br />
humano? Incontestavelmente, o cérebro. Logo, ele é o eu e to<strong>da</strong>s<br />
as percepções do pensamento não passam de excitações <strong>da</strong><br />
substância cerebral. Coisa que parece simples, mas desafia um<br />
ligeiro reparo.<br />
Temos visto que o cérebro é massa carnosa, pesando três libras<br />
mais ou menos e composta de medula, fibras brancas ou<br />
par<strong>da</strong>s, gordura fosfora<strong>da</strong>, água, albumi<strong>na</strong>, etc. Ora, entre essas<br />
substâncias, qual a pensante? A água? o fósforo? a albumi<strong>na</strong>? o<br />
oxigênio? Se a facul<strong>da</strong>de de pensar está liga<strong>da</strong> a uma simples<br />
molécula, a um átomo real, não tendes o direito de negar a<br />
imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, pois, neste caso a facul<strong>da</strong>de de pensar<br />
participaria do destino do átomo indestrutível. Seria preciso,<br />
pois, admitir que esse átomo se libertou, desde logo, do movimento,<br />
para ficar imóvel, talvez no fundo <strong>da</strong> glândula pineal.<br />
Admitindo-se, agora, seja ca<strong>da</strong> molécula capaz de sentir em
conformi<strong>da</strong>de com a <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong>s sensações, esse pretenso eu já<br />
não estará no singular, mas no plural, haverá tantos eus (!)<br />
quantas moléculas cerebrais. Os léxicos não conheciam esse<br />
vocábulo e, doravante, deverão perfilhá-lo.<br />
O homem jamais suspeitara que continha em si diversas perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des,<br />
pois os próprios gregos, com as suas múltiplas<br />
desig<strong>na</strong>ções possíveis, não tinham visto nisso senão facul<strong>da</strong>des<br />
várias e diversas maneiras de ser de uma única e mesma alma.<br />
Mas, ca<strong>da</strong> molécula é, por sua vez, um agregado de átomos, de<br />
corpos simples, diversos e diversamente combi<strong>na</strong>dos. Teremos,<br />
então, ca<strong>da</strong> átomo a pensar agora? Eis-nos caídos <strong>na</strong> mais absur<strong>da</strong><br />
e inimaginável <strong>da</strong>s hipóteses. Essa contradição entre a uni<strong>da</strong>de<br />
inconteste do ser pensante e a multiplici<strong>da</strong>de, não menos<br />
inconteste, dos elementos cerebrais, reduz a zero a pretensão de<br />
fazer <strong>da</strong> consciência pessoal uma proprie<strong>da</strong>de do encéfalo.<br />
Nota curiosa: esses senhores não se precatam de que assim<br />
racio<strong>na</strong>ndo regridem aos arqueus de Van Helmont, a pretexto de<br />
progresso. Não lhes falta mais que os espíritos animais, dos<br />
tempos de Descartes e Malebranche, para nos vermos recuados a<br />
mais de dois séculos anteriores à origem <strong>da</strong> própria Fisiologia.<br />
Não temos no âmago <strong>da</strong> consciência a certeza <strong>da</strong> nossa uni<strong>da</strong>de?<br />
Percebe-se o pensamento qual mecanismo composto de<br />
várias peças, ou como um ser simples? Todos os fenômenos<br />
ativos de nossa alma depõem a favor dessa uni<strong>da</strong>de pessoal,<br />
visto como, <strong>na</strong> sua varie<strong>da</strong>de e multiplici<strong>da</strong>de, estão grupados<br />
em torno de uma percepção íntima, de um julgamento e de uma<br />
facul<strong>da</strong>de de generalizações únicas. Sentimos, em nós mesmos,<br />
essa uni<strong>da</strong>de pessoal, sem a qual pensamentos e atos não mais se<br />
ligariam por qualquer laço e nenhum valor teriam as nossas<br />
determi<strong>na</strong>ções. É esse um fato tão firmemente enraizado <strong>na</strong><br />
consciência e tão i<strong>na</strong>tacável, que as contradições aparentes que<br />
se lhe podem opor redun<strong>da</strong>m, em definitivo, a seu favor. Se, por<br />
exemplo, certa facul<strong>da</strong>de de nossa alma se enga<strong>na</strong> em suas<br />
apreciações, parece poder concluir-se que há complexi<strong>da</strong>de <strong>na</strong><br />
maneira operatória do espírito. Mas, se descermos ao fundo do<br />
fenômeno do erro, tão freqüente, reconheceremos que é sempre o<br />
mesmo ser, a mesma pessoa a enga<strong>na</strong>r-se e a reconhecer a sua
imprevidência, assim como, no homem que erra e se corrige, é<br />
manifesto que a mesma razão que erra é que corrige.<br />
Assim, as mesmas contradições <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong> prestamse,<br />
tanto quanto o foro íntimo, a afirmar a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de do<br />
nosso ser mental.<br />
Se bem que a afirmação <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de do eu prova a existência<br />
<strong>da</strong> alma, não se infere <strong>da</strong>í que a constitua. Temos, para<br />
nós, que a alma é o ser pensante, ao passo que o eu é ape<strong>na</strong>s uma<br />
concepção que dá para fenômenos internos o caráter de fato<br />
consciencial.<br />
A alma poderia existir inconsciente <strong>da</strong> sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e,<br />
de fato, no mundo animado há um grande número de almas ain<strong>da</strong><br />
nessa condição.<br />
Dizem outros que é o conjunto do cérebro e não ca<strong>da</strong> molécula<br />
de per si, que pensa. Mas, que vem a ser o conjunto do cérebro<br />
senão a reunião <strong>da</strong>s moléculas que o compõem? Os que fazem<br />
dessa reunião um ser ideal, uma espécie de socie<strong>da</strong>de, de exército,<br />
não podem pretender que essa coletivi<strong>da</strong>de pense, sem que o<br />
façam todos e ca<strong>da</strong> qual dos seus membros. Porque, em si, uma<br />
socie<strong>da</strong>de, um povo, não são enti<strong>da</strong>des reais, mas conglomerado<br />
cuja <strong>na</strong>tureza e cujo valor só se constituem dos membros, componentes.<br />
Suprimi o pensamento aos cérebros do povo francês e<br />
que ficará a esse povo? Imagi<strong>na</strong>i que as moléculas cerebrais não<br />
pensam, e que restará ao cérebro? E, se elas pensam, então,<br />
voltaremos à imagem extravagante de uma quanti<strong>da</strong>de indefini<strong>da</strong><br />
de eus! (Fora o caso de dizer que este vocábulo, se os vocábulos<br />
pensassem, deveria estranhar o ver-se aqui pluralizado.)<br />
E, para que elas se acordem entre si, veremos instituir a hierarquia<br />
militar e nomear um general que cavalgue qualquer<br />
átomo bicudo <strong>da</strong> glândula pineal, ou então dir-se-á, com Syndenham,<br />
“que há no homem um outro homem interior, dotado <strong>da</strong>s<br />
mesmas facul<strong>da</strong>des e afecções do homem exterior”. A pretexto<br />
de ciência positiva, imagi<strong>na</strong>r-se-ão mil hipóteses mais difíceis do<br />
que os tão criticados mistérios <strong>da</strong>s velhas religiões.<br />
Os materialistas contemporâneos são um pouco mais fortes.<br />
Declararam, como vimos, que a alma é uma força excreta<strong>da</strong> pelo
cérebro (?), sem se <strong>da</strong>rem ao trabalho de eluci<strong>da</strong>r qual a parte ou<br />
o elemento do encéfalo que possui essa maravilhosa facul<strong>da</strong>de. É<br />
uma resultante do conjunto de movimentos operados sob diversas<br />
influências, no órgão cerebral. Tal a opinião <strong>da</strong> escola materialista,<br />
e mesmo <strong>da</strong> panteísta. Esta nova hipótese é tão simplória<br />
quanto as precedentes e só apresenta uma ligeira falha que é,<br />
nem mais nem menos, o ser incompreensível. Aliás, não se dão<br />
eles ao trabalho de a explicar. Em 1827, quando se opunha a<br />
simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma à multiplici<strong>da</strong>de dos elementos cerebrais,<br />
nessa época em que a química do pensamento não gozava a<br />
prerrogativa de ser manipula<strong>da</strong> <strong>na</strong>s retortas de além-Reno,<br />
Broussais respondia lealmente: “o eu é um fato inexplicável, não<br />
pretendo explicá-lo” 71 . To<strong>da</strong>via, às definições supra assi<strong>na</strong>la<strong>da</strong>s,<br />
juntou ele mais esta: “O eu é um fenômeno de inervação”. Ain<strong>da</strong><br />
hoje, ninguém conseguiu provar, nem explicar, como pode a<br />
consciência resultar de certas combi<strong>na</strong>ções opera<strong>da</strong>s num maquinismo<br />
automático. Assim, a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa força pensante<br />
não só protesta energicamente, como destrói, de um golpe, a<br />
hipótese <strong>da</strong> secreção cerebral. Oporemos, agora, à mesma hipótese<br />
um segundo fato, paralelo a este e de tanto valor que basta,<br />
por si só, para arrasar o colossal exército de argumentos já<br />
embotados <strong>na</strong> defesa <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> teoria.<br />
Ei-lo, esse fato, em termos bem claros.<br />
A substância cerebral não se mantém duas sema<strong>na</strong>s idêntica a<br />
si mesma. O cérebro se refunde completamente num prazo mais<br />
ou menos longo. Vimos <strong>na</strong> segun<strong>da</strong> parte que, não só o cérebro,<br />
mas todo o organismo, não passa de uma sucessão de moléculas<br />
em mutabili<strong>da</strong>de constante.<br />
E, <strong>na</strong><strong>da</strong> obstante, a nossa perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de racio<strong>na</strong>l subsiste. Todos<br />
temos a certeza de que, desde que nos entendemos por gente,<br />
não mu<strong>da</strong>mos intrinsecamente, qual mu<strong>da</strong>ram nossos cabelos,<br />
nossa pele, nossa fisionomia, nossa estatura.<br />
Nas pági<strong>na</strong>s precedentes, demonstramos a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>,<br />
mau grado à complexi<strong>da</strong>de dos elementos cerebrais e à<br />
multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas funções. E vimos que, longe de ser uma<br />
resultante, essa perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de se afirma de si mesma como força<br />
individual. Vamos agora, de algum modo, transportar à noção do
tempo o que dizíamos a propósito do espaço, para estabelecer<br />
que a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma não existe somente a ca<strong>da</strong> instante, considera<strong>da</strong><br />
em si mesma, mas persiste de um a outro instante e fica<br />
idêntica em si mesma, apesar <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças que o tempo acarreta<br />
à composição <strong>da</strong> substância cerebral.<br />
Trata-se, pois, de conciliar a identi<strong>da</strong>de permanente de nossa<br />
perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de com a mutabili<strong>da</strong>de incessante <strong>da</strong> matéria. Os<br />
senhores materialistas seriam de uma gentileza rara se consentissem<br />
em subir por um instante ao palco, a fim de resolverem este<br />
pequenino problema.<br />
A nós, muito nos praz fornecer-lhes o enunciado: – demonstrar<br />
que o movimento é amigo do repouso e que o melhor processo<br />
de criar no mundo uma instituição estável e sóli<strong>da</strong> é lançar<br />
a idéia através de um turbilhão de cabeças frívolas.<br />
As rigorosas observações feitas e compara<strong>da</strong>s, sob diversos<br />
pontos de vista, demonstraram não ape<strong>na</strong>s que o corpo se renova<br />
sucessiva e completamente, molécula a molécula, mas, também,<br />
que essa renovação perpétua é rapidíssima, bastando trinta dias<br />
para que se tenha um corpo integralmente renovado.<br />
Tal, o princípio <strong>da</strong> desassimilação no animal. Falando a rigor,<br />
o homem corporal não fica dois instantes idêntico a si mesmo.<br />
Os glóbulos sanguíneos que circulam em meus dedos, enquanto<br />
escrevo estas linhas, o fósforo mágico que me trabalha no cérebro<br />
ao pensar esta frase, já me não pertencerão quando estas<br />
pági<strong>na</strong>s forem impressas e, talvez, no momento de as lerdes,<br />
façam parte dos vossos olhos ou <strong>da</strong> vossa fronte... talvez, ó gentil<br />
leitora! enquanto os vossos mimosos dedos dobrarem estas<br />
pági<strong>na</strong>s, a dita molécula de fósforo que, <strong>na</strong> hipótese dos adversos,<br />
teve a fantasia de imagi<strong>na</strong>r a dita frase, talvez, repito, essa<br />
ditosa molécula esteja sob a epiderme sensível do vosso indicador,<br />
ou, quem sabe, crepite ardentemente <strong>na</strong>s palpitações do<br />
vosso coração... (A respeito de moléculas itinerantes muito<br />
haveria a dizer, mas não ousamos alongar o parêntese.) O que<br />
importa, a sério, é recor<strong>da</strong>r esta ver<strong>da</strong>de: – a matéria circula<br />
perpetuamente em todos os seres, e no ser humano, em particular,<br />
não permanece dois dias idêntica a si mesma.
Se não estamos enga<strong>na</strong>dos, este fato tem sua importância <strong>na</strong><br />
questão que nos ocupa, e é com ver<strong>da</strong>deiro prazer que o alegamos<br />
aos adversários, convi<strong>da</strong>ndo-os a que o expliquem.<br />
Como estas interessantes observações se devem aos próprios<br />
campeões do materialismo, a eles, que não a outrem, compete<br />
interpretá-las em apoio de sua teoria, caso essa interpretação não<br />
lhes requeira um esforço muito exagerado.<br />
Vejamos:<br />
“O sangue rejeita constantemente suas partes constitutivas<br />
aos órgãos do corpo, <strong>na</strong> quali<strong>da</strong>de de elementos histogênicos. A<br />
ativi<strong>da</strong>de dos tecidos decompõe esses elementos em ácido carbônico,<br />
uréia e água. Tecidos e sangue sofrem, <strong>na</strong> marcha regular<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, um desperdício de substância só compensado <strong>na</strong><br />
provisão dos alimentos. Essa permuta de matérias opera-se com<br />
uma rapidez notável. Os fatos gerais indicam que o corpo renova<br />
a maior parte de substância num período de vinte a trinta dias. O<br />
coronel Lann, por meio de várias pesagens, encontrou uma per<strong>da</strong><br />
média de 22% de seu peso, em 24 horas. A renovação total<br />
exigiria, portanto, 22, dias. Liebig deduziu uma rapidez de 25<br />
dias, considerando as permutas de outra maneira, pela combustão<br />
do sangue. Por surpreendente que possa parecer esta rapidez, as<br />
observações concor<strong>da</strong>m em todos os pontos” 72 .<br />
Assim, sois vós mesmos a ensi<strong>na</strong>r que dentro de alguns dias<br />
nosso corpo se renova inteiramente. Nosso ser material viu<br />
dissolver-se e reconstituir-se, sucessivamente, a sua assembléia<br />
constituinte, não lhe ficando uma só molécula de oxigênio,<br />
carbono, hidrogênio, ferro, carbono, albumi<strong>na</strong>... Essas moléculas<br />
aliaram-se a outras substâncias, que an<strong>da</strong>m agora embala<strong>da</strong>s<br />
pelas nuvens, leva<strong>da</strong>s pelas on<strong>da</strong>s, envolvi<strong>da</strong>s no solo, recolhi<strong>da</strong>s<br />
pelas plantas, ou pelos animais, enquanto que a nossa substância<br />
também se encontra inteiramente mu<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />
Em se aplicando essa engenhosa teoria a uns tantos fatos de<br />
ordem social, chega-se a provar que a união matrimonial deixa<br />
de ser um sacramento eficaz, visto que ao cabo de um mês as<br />
duas criaturas, que acreditaram formar liames eternos, estão<br />
corporal e espiritualmente transforma<strong>da</strong>s e vivem como adúlte-
os. Como esta, conclusões outras se podem tirar, edificantes.<br />
Ajuntais, de segui<strong>da</strong>, que, sendo o fósforo a parte do cérebro<br />
mais caracteriza<strong>da</strong>, é desta substância que provém o pensamento,<br />
assim como à potassa se devem os músculos e as facul<strong>da</strong>des de<br />
locomoção e os ossos ao fosfato de cal, etc., e vós comparais o<br />
ato de pensar (secreção do cérebro!) à secreção <strong>da</strong> bílis pelo<br />
fígado, <strong>da</strong> uri<strong>na</strong> pelos rins.<br />
Contrariando as vossas pretensões, noto que meu ser pensante,<br />
minha pessoa, meu ego, é o mesmo de há cinco, dez, vinte,<br />
quarenta anos. E espero não negareis que vos lembrais de terdes<br />
sido criança, de haverdes brincado ao colo materno, freqüentado<br />
a escola e feito (lá isso não duvido) brilhantes estudos, para vos<br />
tomardes, com o tempo, furiosos paladinos do materialismo.<br />
Sois bem vós que assim vivestes, não é ver<strong>da</strong>de? Foi, certo,<br />
sobre o vosso espírito, e não sobre a vossa fronte, que esses anos<br />
passaram. Se mu<strong>da</strong>stes de opiniões, de idéias, de diretriz, em<br />
vossos estudos; se trocastes de país, de hábitos, de alimentos,<br />
nem por isso deixou de ser a vossa pessoa mesma que cresceu,<br />
viveu, envelheceu; e, se algum au<strong>da</strong>cioso e legítimo partidário<br />
<strong>da</strong>s vossas doutri<strong>na</strong>s, tendo-vos roubado, há dez anos, honra e<br />
fortu<strong>na</strong>, reaparecesse e dissesse que já não sois o mesmo homem,<br />
que tendes mu<strong>da</strong>do muitas vezes, que não vos conhece e que<br />
também ele mudou e, por isso, <strong>na</strong><strong>da</strong> vos deve nem lhe cumpre<br />
reparar, certo estou de que não demoraríeis a demonstrar-lhe que<br />
não é assim que entendeis, <strong>na</strong> prática, as vossas teorias.<br />
Com efeito, senhores, essas teorias não nos parecem nem<br />
mais nem menos que absur<strong>da</strong>s, diante do fato eloqüente <strong>da</strong><br />
identi<strong>da</strong>de do espírito. Podeis conciliar umas e outro? Podeis<br />
pretender que uma secreção de substâncias que ape<strong>na</strong>s transitam<br />
pelo organismo possa gozar dessa facul<strong>da</strong>de? Ousaríeis avançar<br />
que, considerando o pensamento como atributo de uma associação<br />
de moléculas de gordura fosfora<strong>da</strong>, albumi<strong>na</strong>, colesteri<strong>na</strong>,<br />
potassa e água 73 – moléculas trazi<strong>da</strong>s a esse laboratório pela<br />
nutrição e respiração, variáveis, em contínuo movimento, semelhantes<br />
a sol<strong>da</strong>dos de to<strong>da</strong>s as <strong>na</strong>ções, que chegam ao mesmo<br />
campo, armam ten<strong>da</strong>s e seguem adiante para serem logo substi-
tuídos por outros; – ousaríeis, repito, avançar que um tal sistema<br />
pode explicar a identi<strong>da</strong>de, a permanência do pensamento?<br />
Não, não o ousais: nem mesmo o ensaiam, pois muito tenho<br />
revolvido em vossos a<strong>na</strong>is e vejo que prestes vos esquivais ao<br />
escolho, deixando quase de o nomear.<br />
Um dos vossos 74 responde de passagem que a observação feita<br />
com os trepa<strong>na</strong>dos demonstrou que certos anos ou fases <strong>da</strong><br />
existência se lhes apagava <strong>da</strong> memória devido à per<strong>da</strong> de quaisquer<br />
partes do cérebro. Acrescenta mais, que a velhice acarreta a<br />
per<strong>da</strong> quase total <strong>da</strong> memória. Sem dúvi<strong>da</strong>, diz, as substâncias<br />
cerebrais mu<strong>da</strong>m, mas o modo de sua composição deve ser<br />
permanente e determi<strong>na</strong>nte do modo <strong>da</strong> consciência individual.<br />
Depois, confessa que “os processos interiores são inexplicáveis”.<br />
Ora pois! eis aí uma confissão que compensa tudo. Essas pretensas<br />
explicações apoia<strong>da</strong>s em fatos anormais são as únicas que se<br />
permitem <strong>da</strong>r ao grande fato por nós assi<strong>na</strong>lado.<br />
Lacu<strong>na</strong> sensível, e visto que a vossa maior ambição é remover<br />
todos os tropeços e <strong>na</strong><strong>da</strong> abafar em silêncio – censura que<br />
irrogais aos vossos adversários – concito-vos, a bem mesmo do<br />
vosso renome, a não mais deixar de explicar física ou quimicamente<br />
como a renovação dos vossos átomos pode ter a proprie<strong>da</strong>de<br />
de engendrar em ser pensante e consciente <strong>da</strong> permanência<br />
de sua identi<strong>da</strong>de.<br />
Não vemos conciliação possível entre estes dois termos contrários,<br />
pelo que poderíamos seguir avante sem nos preocuparmos<br />
com o adversário, para só considerá-lo fora de combate,<br />
qual gladiador antigo a esvair-se <strong>na</strong> are<strong>na</strong>, trespassado pelo<br />
mortal tridente.<br />
To<strong>da</strong>via, ain<strong>da</strong> por princípio de cari<strong>da</strong>de, vamos prosseguir<br />
<strong>na</strong> luta e, para defesa geral <strong>da</strong> causa, acreditamos útil exami<strong>na</strong>r<br />
as diversas explicações emiti<strong>da</strong>s a respeito, a fim de que saibam<br />
nenhuma haver satisfatória, ficando assim de todo insolúvel a<br />
hipótese materialista.<br />
A primeira dessas explicações consiste em dizer que, se as<br />
moléculas do corpo estão em perfeita circulação, o mesmo não<br />
se dá com a forma individual. Nossos traços ficam gravados no
semblante, os olhos conservam a mesma cor, os cabelos a mesma<br />
<strong>na</strong>tureza, a fisionomia o seu tipo fun<strong>da</strong>mental. Quantos tiveram<br />
ensejo de reivindicar à glória militar uma cicatriz qualquer,<br />
guar<strong>da</strong>m-lhe a marca, não obstante a renovação dos tecidos. Tal<br />
o fato geral <strong>da</strong> permanência e caráter fisionômico individual.<br />
Podem os adversários pretender que, assim sendo com o corpo,<br />
impossível não seja a identi<strong>da</strong>de do espírito, como resultante<br />
de fenômenos materiais.<br />
Ora, aí justamente é que está o erro:<br />
1º - Não se pode provar que a constância dos traços seja o resultado<br />
de simples fenômenos de assimilação e desassimilação,<br />
e <strong>da</strong> modificação incessante <strong>da</strong> substância;<br />
2º - ain<strong>da</strong> mesmo que assim fosse, não existiria nisso senão<br />
uma identi<strong>da</strong>de de forma, aparente, conserva<strong>da</strong> pelas moléculas<br />
sucessivas e não identi<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>mental, um ser<br />
substancial que fica;<br />
3º - a alma não é uma sucessão de pensamentos, uma série de<br />
manifestações mentais e, sim, um ser pessoal com a consciência<br />
de sua permanência.<br />
Por conseqüência, a diferença que separa <strong>da</strong> nossa a hipótese<br />
materialista, consiste simplesmente em observar que <strong>na</strong><strong>da</strong> se<br />
explica pela primeira, ao passo que pela nossa tudo se explica.<br />
Como se vê, uma diferença insignificante.<br />
Dir-se-á que os átomos materiais, em se substituindo, seguem<br />
precisamente a mesma direção dos precedentes, entrosados no<br />
mesmo turbilhão, como sentinelas militares transmitindo-se a<br />
senha e que, se o pensamento é ape<strong>na</strong>s uma série de vibrações,<br />
são estas mesmas vibrações a se perpetuarem, ain<strong>da</strong> que mude a<br />
substância dos círculos vibrantes. Mas, uma tal pretensão é<br />
duplamente insignificante, atento a que não explica melhor que<br />
as primeiras a identi<strong>da</strong>de do eu e tende a arrastar-nos ao ocultismo,<br />
arvorando o corpo em locutório de moleculazinhas capazes<br />
de se entenderem e concor<strong>da</strong>rem, mau grado à tagarelice e<br />
levian<strong>da</strong>de peculiares ao sexo.<br />
Pode-se ain<strong>da</strong> dizer que, se o cérebro mu<strong>da</strong> pouco a pouco, o<br />
mesmo sucede com o nosso caráter, tendências, o próprio espíri-
to. Mas, se de um lado considerarmos a substância constitutiva<br />
do cérebro num <strong>da</strong>do momento, teremos que, sema<strong>na</strong>s ou meses<br />
depois (não importa o prazo), a metade dessa substância, por<br />
exemplo, estará mu<strong>da</strong><strong>da</strong> e não haverá, portanto, senão outra<br />
metade substancial <strong>da</strong> considera<strong>da</strong> num <strong>da</strong>do momento. Depois,<br />
um meio quarto, e assim por diante. De sorte que, nesta hipótese,<br />
estaríamos mu<strong>da</strong>dos em duas, três, quatro partes, até que <strong>na</strong><strong>da</strong><br />
restasse <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de primitiva. Ora, quem não vê, quem não<br />
sente, que se não guar<strong>da</strong>m de tal arte fragmentos de alma, e que<br />
esta é u<strong>na</strong>, simples, indivisível e idêntica a si mesma em qualquer<br />
período de sua duração? A permanência do eu ressalta,<br />
ain<strong>da</strong> uma vez, vitoriosa dessa mixórdia.<br />
Avançarão, enfim, que há no cérebro um lugar qualquer, um<br />
santuário em cujo ádito fique, isenta <strong>da</strong>s leis gerais, uma molécula<br />
imutável, permanente, privilegia<strong>da</strong> entre as demais, dota<strong>da</strong> de<br />
integri<strong>da</strong>de i<strong>na</strong>tacável, e que essa tal molécula é o centro dos<br />
pensamentos e o que constitui a identi<strong>da</strong>de pessoal?<br />
Mas, tal suposição é, não ape<strong>na</strong>s arbitrária e bal<strong>da</strong> de sentido,<br />
mas também contrária à observação científica e à índole do<br />
método positivo. De resto, nenhum dos adversários se decide a<br />
lhe assumir a responsabili<strong>da</strong>de.<br />
Assim, queiram ou não, a identi<strong>da</strong>de permanente do ser mental<br />
é fato inconciliável com a mutabili<strong>da</strong>de incessante do órgão<br />
cerebral, no caso em que se conceitue o nosso ser mental como<br />
atributo orgânico.<br />
Singular audácia de sonhadores, o virem negar, à face <strong>da</strong><br />
consciência individual e universal, o grande fato <strong>da</strong> existência<br />
pessoal <strong>da</strong> alma! Não sabemos todos, à sacie<strong>da</strong>de, que o nosso<br />
eu e os nossos órgãos são radicalmente distintos? que a nossa<br />
pessoa se reconhece e afirma independente em si e de si mesma?<br />
que nós não somos os nossos órgãos, mas que eles são nossos, o<br />
que é bem diferente? Negar tal coisa, vale por negar a luz meridia<strong>na</strong>.<br />
Pôr assim em dúvi<strong>da</strong> a primeira afirmação de consciência,<br />
pretender que estejamos iludidos e que, ao invés de uma existência<br />
pessoal, <strong>da</strong> posse dos nossos órgãos, são estes que nos possuem,<br />
é pôr em dúvi<strong>da</strong> ao mesmo tempo o princípio de to<strong>da</strong> e
qualquer certeza, é reduzir a fumo o secular edifício dos conhecimentos<br />
humanos.<br />
Negado esse primeiro fato de consciência, <strong>na</strong><strong>da</strong> mais resta à<br />
Humani<strong>da</strong>de.<br />
Haverá quem desconheça a ousadia de semelhante pilhéria?<br />
Se estamos iludidos acerca <strong>da</strong> própria perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, em que<br />
mais poderíamos crer e afirmar nesta vi<strong>da</strong>? Admiramos esses<br />
senhores materialistas, que colocam uma tal dúvi<strong>da</strong> em primeiro<br />
plano e ousam afirmá-la com pretensas observações de ciência<br />
positiva. Não vos parece sejam eles, por sua vez, joguetes de<br />
mirífica ilusão quando assim tão ingenuamente sustentam não<br />
passar de miragem a identi<strong>da</strong>de pessoal, para que sejamos tão só<br />
um adjetivo do elemento cerebral? Sim, porque, persuadidos<br />
deveriam estar de que não lhes sendo as próprias idéias mais que<br />
produto do fósforo e <strong>da</strong> potassa, a <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong>s mesmas idéias<br />
depende <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções e, conseqüentemente, não<br />
lhes vai bem essa atitude de pregoeiros pessoais. Essa prerrogativa<br />
lhes escapa, e se quiséssemos levar o seu mesmo sistema às<br />
suas burlescas conseqüências, começaríamos por considerá-los<br />
pessoalmente inexistentes e, em lugar de a eles nos dirigirmos<br />
como a criaturas pensantes, nos ateríamos à constituição do seu<br />
cérebro. Aqui, é oportuno lembrar, com Hersehel, não haver<br />
absurdo que um alemão não teorize.<br />
Atingidos esses exageros, não há como deixar de olhar para<br />
trás e lembrar a Ontologia no trono que ela abdicou em benefício<br />
<strong>da</strong> república científica. Sem restabelecer o equilíbrio, somos<br />
tentados a perguntar, com de Broglie 75 , se a Ontologia será bem<br />
uma asneira e se os ontologistas não serão uns loucos, idiotas,<br />
sonhadores. Nem tanto, responderemos com o acadêmico. A<br />
Ontologia não é coisa que se deva tomar em sentido pejorativo,<br />
pois é um dos ramos <strong>da</strong> Filosofia geral, ciência do ser, em oposição<br />
à do fenômeno, ou <strong>da</strong> aparência.<br />
O homem, dizem os filósofos, abor<strong>da</strong> diretamente os fenômenos<br />
e apreende-os, seja pelos sentidos, seja pela consciência;<br />
estu<strong>da</strong>-os, descreve-os, compara-os. Entretanto, sob o fenômeno<br />
há o ser que persiste enquanto ele – o fenômeno – mu<strong>da</strong> ou
passa. Independentemente dos atributos, <strong>da</strong>s modificações, há a<br />
substância que suporta os atributos e sofre as modificações. Às<br />
quali<strong>da</strong>des e aparências é necessário um objeto de inerência, um<br />
suporte, ou o que melhor nome tenha. Enquanto as ciências<br />
<strong>na</strong>turais descrevem os fenômenos sensíveis e a Psicologia descreve<br />
os fenômenos conscienciais, a Ontologia son<strong>da</strong> a legitimi<strong>da</strong>de<br />
do processo pelo qual passamos do fenômeno ao ser.<br />
Aqui não queremos, porém, entrar nem conduzir o leitor a essa<br />
cripta ain<strong>da</strong> assaz obscura, <strong>da</strong> ciência abstrata, pois tememos,<br />
como ninguém, as ema<strong>na</strong>ções soporíficas que a cripta exala.<br />
Temos, por essencial, permanecer no plano ativo e luminoso<br />
<strong>da</strong> observação experimental. Notamos mesmo – tão certo estamos<br />
<strong>da</strong> vitória e de sobrancear com prazer to<strong>da</strong>s as dificul<strong>da</strong>des<br />
– que a autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> consciência pode, sob um certo prisma, ser<br />
posta em dúvi<strong>da</strong> e que importa não aceitar sem controle o testemunho<br />
puro e simples do senso íntimo. Como o princípio pensante<br />
sofre a ca<strong>da</strong> instante uma chusma de influências deriva<strong>da</strong>s<br />
do mundo exterior e não lhe seja possível descobri-la e remontála,<br />
poder-se-ia, talvez, pretender que a convicção de sua identi<strong>da</strong>de<br />
seja uma ilusão devi<strong>da</strong> a uma ignorância invencível do<br />
respectivo jogo dos elementos componentes. A essa objeção,<br />
responderemos com Magy, 76 no encadeamento <strong>da</strong>s proposições<br />
seguintes:<br />
Na alma huma<strong>na</strong>, como em to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>, encontramos em<br />
coexistência a força e a extensão. Os fatos de molde a revelar<br />
uma ativi<strong>da</strong>de própria, no ser pensante, são visíveis a ca<strong>da</strong> passo,<br />
<strong>na</strong> marcha de nossos estudos.<br />
Com efeito, a primeira condição do aprendizado é, para o<br />
nosso espírito, um esforço espontâneo para neutralizar as causas<br />
tendentes a nos manter <strong>na</strong> inércia e <strong>na</strong> ignorância, tais como os<br />
imperativos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social, as necessi<strong>da</strong>des do corpo, as paixões,<br />
a falta de aptidões, as dificul<strong>da</strong>des próprias do estudo.<br />
Esse esforço prelimi<strong>na</strong>r não cessa com o início do estudo,<br />
mas, ao contrário, mantém-se e avulta no período <strong>da</strong>s aquisições.<br />
Preciso se faz uma atenção firme e persistente, para nos penetrarmos<br />
dos conhecimentos a que aspiramos. Essa atenção é tão
indispensável ao colegial como ao maior dos gênios. Newton não<br />
teria encontrado a atração universal senão por sua constante<br />
tensão espiritual. Arquimedes, absorvido <strong>na</strong> investigação de um<br />
problema, não dá pela toma<strong>da</strong> de Siracusa e sucumbe trespassado<br />
pelo gládio invasor, como vítima – diga-se – do di<strong>na</strong>mismo<br />
<strong>da</strong> sua alma. Descartes lobriga em to<strong>da</strong>s as coisas um motivo de<br />
meditação. E não sabemos, todos nós, que a Ciência só se adquire<br />
a preço de esforços perseverantes e depois de matura<strong>da</strong> contensão<br />
espiritual sobre o objeto do estudo?<br />
Mais ain<strong>da</strong>: essa mesma energia, indispensável ao espírito para<br />
adquirir o saber, tor<strong>na</strong>-se-lhe necessária para conservá-lo. O<br />
melhor meio de reter <strong>na</strong> memória a Ciência está no concentrar-se<br />
demora<strong>da</strong>mente em ca<strong>da</strong> idéia ou fato, em <strong>da</strong>r conta minudente<br />
dos processos de pesquisa utilizados pelos inventores, em lhes<br />
apreender o método e fixar, de qualquer modo, o estudo no<br />
cérebro. Estes fatos atestam que o ser pensante, no adquirir<br />
conhecimentos, os assimila mediante um trabalho que lhe é<br />
próprio, comportando-se com força individual. Agora, o modo<br />
fun<strong>da</strong>mental de ação <strong>da</strong> causa inteligente prova, peremptoriamente,<br />
que essa força é individual e não um conjunto de forças<br />
distintas.<br />
To<strong>da</strong>s as operações <strong>da</strong> inteligência huma<strong>na</strong> são análises sintéticas,<br />
ou sínteses a<strong>na</strong>líticas, isto é: consistem essencialmente <strong>na</strong><br />
decomposição de um <strong>da</strong>do todo, ou <strong>na</strong> coorde<strong>na</strong>ção de elementos<br />
distintos, em que ca<strong>da</strong> qual intervém com a sua cota e toma o seu<br />
lugar lógico. – Qualquer que seja a ciência focaliza<strong>da</strong>, nela se<br />
afirma a lei do espírito humano, sem a qual não haveria qualquer<br />
relação entre os diversos objetos do nosso conhecimento, nem a<br />
própria Ciência existiria. Desnecessário exemplificar, no pressuposto<br />
de estarem os leitores assaz habituados com os processos<br />
intelectuais íntimos, para que bem os compreen<strong>da</strong>m simplesmente<br />
enunciados <strong>na</strong> sua profundeza e universali<strong>da</strong>de.<br />
Pois bem: se julgarmos a alma pela sua ação intelectual, reconheceremos,<br />
sem hesitação, que a força pensante não pode ser<br />
um agregado de forças elementares. De fato, como poderia a<br />
alma centralizar to<strong>da</strong>s as observações que se lhe impõem, grupar<br />
silogismos secundários em torno do principal, associar julgamen-
tos segundo as regras <strong>da</strong> Lógica, perceber a relação dos termos<br />
convenientemente enunciados, coorde<strong>na</strong>r numa mesma intuição<br />
os fenômenos estu<strong>da</strong>dos, formular hipóteses, comparar resultados?<br />
Como poderia, em suma, abstrair e generalizar, senão como<br />
força absolutamente simples, indivisível e dota<strong>da</strong> <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de<br />
de tudo avocar a si, como juiz único, em consciência única?<br />
Os partidários <strong>da</strong> secreção cerebral repetirão, ain<strong>da</strong> uma vez,<br />
que essa alma pessoal não passa de uma resultante de to<strong>da</strong>s as<br />
forças elabora<strong>da</strong>s pelos órgãos do cérebro e sintoniza<strong>da</strong>s num<br />
di<strong>na</strong>mismo bem regulado, assim estabelecendo a uni<strong>da</strong>de e<br />
harmonia do trabalho intelectual.<br />
Mas, este singular acordo de to<strong>da</strong>s essas pequeni<strong>na</strong>s almas,<br />
para formarem uma grande alma, é hipótese mais complica<strong>da</strong> e,<br />
por conseqüência, mais afasta<strong>da</strong> que a nossa <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de <strong>na</strong>tural.<br />
Ao invés de estabelecer a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, ela a destrói. Localizando<br />
as facul<strong>da</strong>des nos diversos órgãos do cérebro, Gall declarava<br />
que to<strong>da</strong>s elas são dota<strong>da</strong>s <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de de percepção, de<br />
atenção, de memória, de recor<strong>da</strong>ção, de julgamento e de imagi<strong>na</strong>ção!<br />
Que bela república! Quando uma que tal facul<strong>da</strong>de sobrepujar<br />
as vizinhas (o que a observação demonstra em ca<strong>da</strong> indivíduo),<br />
estas suportarão submissas o seu despotismo? Quando duas<br />
facul<strong>da</strong>des se desentenderem, por exemplo a de nº 5 (pendor para<br />
a morte) e a de nº 24 (benevolência), quem domi<strong>na</strong>rá o antagonismo?<br />
Há que imagi<strong>na</strong>r logo um generalíssimo e, neste caso,<br />
oficiais e sol<strong>da</strong>dos tor<strong>na</strong>m-se inúteis e o nosso general ficará<br />
sendo, simplesmente ele, o próprio espírito, pois, como acabamos<br />
de ver, <strong>da</strong>do o modo de ação intelectual <strong>da</strong> alma, bem como<br />
o testemunho <strong>da</strong> consciência, essa alma é única, idêntica e indivisível.<br />
É fácil reconhecer o caráter dinâmico <strong>da</strong> alma em to<strong>da</strong>s as suas<br />
manifestações. Se observarmos um espírito culto, o que logo<br />
se revela nele é uma sede insaciável de conhecimentos, é a força<br />
virtual <strong>da</strong> alma a traduzir-se em obras eloqüentes.<br />
Se baixarmos às cama<strong>da</strong>s inferiores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, a essas zo<strong>na</strong>s<br />
penumbrosas onde a flama <strong>da</strong> instrução ain<strong>da</strong> não radia,<br />
vemos não mais uma ativi<strong>da</strong>de em função intelectual, mas passio<strong>na</strong>l,<br />
um modo de ativi<strong>da</strong>de psicológica universal.
À tendência passio<strong>na</strong>l do indivíduo junta-se, ain<strong>da</strong>, a energia<br />
de uma paixão domi<strong>na</strong>nte e a esta uma vontade que a combate,<br />
ou que a dirige. A facul<strong>da</strong>de de vencer ou de nortear as suas<br />
paixões é, pois, ain<strong>da</strong> uma forma dinâmica <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> alma.<br />
Se, enfim, baixarmos <strong>da</strong>s nossas vontades particulares aos hábitos<br />
que elas engendram e mantêm em nós, chegaremos a reconhecer<br />
que todos os atos, desde a obra criadora do pensamento<br />
até o movimento mais simples de um membro, denunciam a<br />
força íntima que nos gover<strong>na</strong> e se traduz em ato material, por<br />
intermédio dos centros nervosos, dos nervos e dos músculos.<br />
Sabemos que a fonte de todo o movimento orgânico reside no<br />
espírito. Ninguém ousará negar que meu braço ou minha per<strong>na</strong><br />
se movem ao impulso de minha vontade, qual se dá com a locomotiva<br />
à pressão do vapor, dirigi<strong>da</strong> pelo maquinista. Meu corpo<br />
em si, e por si só, é inerte. Descartes e Locke, neste ponto, estão<br />
de acordo com Leibnitz. O pensamento é ação <strong>da</strong> alma: será<br />
preciso mais para sustentar que a alma é força? O próprio Cabanis<br />
não an<strong>da</strong> longe de o confessar, quando diz que “para ter uma<br />
idéia justa <strong>da</strong>s operações que origi<strong>na</strong>m o pensamento, importa se<br />
considere o cérebro como um órgão particular, especialmente<br />
desti<strong>na</strong>do a produzi-lo, assim como o estômago e os intestinos se<br />
desti<strong>na</strong>m a operar a digestão; o fígado a filtrar bílis, as paróti<strong>da</strong>s<br />
e as glândulas maxilares ao preparo <strong>da</strong> saliva. As impressões,<br />
atingindo o cérebro, fazem-no entrar em ativi<strong>da</strong>de e sua função<br />
peculiar é perceber ca<strong>da</strong> impressão particular, ligar os si<strong>na</strong>is,<br />
combi<strong>na</strong>r as diferentes impressões, compará-las entre si e tirar<br />
ilações e determi<strong>na</strong>ções, tal como a função dos outros órgãos é<br />
atuar sobre as substâncias nutritivas, cuja presença os estimula,<br />
dissolvendo-os e assimilando-lhes os sucos”. Cabanis acrescenta<br />
que essa maneira de ver levanta “a dificul<strong>da</strong>de suscita<strong>da</strong> por<br />
quantos, em considerarem a sensibili<strong>da</strong>de uma facul<strong>da</strong>de passiva,<br />
não compreendem como julgar, racioci<strong>na</strong>r, imagi<strong>na</strong>r, não seja<br />
outra coisa que sentir. A dificul<strong>da</strong>de desaparece quando se<br />
reconhece nestas diversas operações a ação do cérebro sobre as<br />
impressões que lhe são transmiti<strong>da</strong>s”. Conseqüentemente, notaremos<br />
nós, com Magy, segundo os fisiologistas menos espiritualistas,<br />
o cérebro é um sistema cuja função é produzir e elaborar o<br />
pensamento, que assim se tor<strong>na</strong>, literalmente, dele resultante. Aí,
param eles, sem perceberem que, por tudo explicarem, só lhes<br />
resta uma palavra a acrescentar.<br />
Todos quantos – em face <strong>da</strong> correlação notável que une a alma<br />
ao corpo em to<strong>da</strong>s as manifestações destes dois princípios –<br />
afirmam a identi<strong>da</strong>de substancial <strong>da</strong> força pensante e <strong>da</strong> energia<br />
cerebral, assemelham-se aos que dão à matéria atributos divinos.<br />
Eles transferem ao cérebro as facul<strong>da</strong>des inerentes ao Ser pensante,<br />
que a consciência revela no fundo de nossa ativi<strong>da</strong>de<br />
íntima.<br />
To<strong>da</strong>s as vossas pretensões se evaporam, ó desprezadores <strong>da</strong><br />
Inteligência! A Humani<strong>da</strong>de em peso vos impõe este vocábulo<br />
imperecível – Alma. E ca<strong>da</strong> ser pensante afirma, em particular, o<br />
Eu que rege, que centraliza sua própria vi<strong>da</strong>. Em vão procurais<br />
ligar essa perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de a um movimento material <strong>da</strong> medula<br />
espi<strong>na</strong>l! A isso oponho eu, vitoriosamente, a minha potência<br />
intelectual, que diz: eu penso, eu julgo, eu quero; essa potência<br />
i<strong>na</strong>tacável, que considera o visível como o invisível, o material<br />
como o imaterial, o presente, o passado, o futuro; que não pode<br />
filiar-se à matéria, de vez que sua vi<strong>da</strong> e atos se completam no<br />
mundo moral.<br />
Oponho-vos, enfim, meu pensamento, que a vós se dirige<br />
fremente pelo vosso atentado e que, por esta mesma palavra,<br />
através destas linhas, atesta-vos a minha existência individual,<br />
quanto afirma a minha perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. Pretendereis que este<br />
protesto possa provir de um lóbulo do meu cérebro?<br />
Não, meus senhores, parai com o gracejo; eu sei (e vós também)<br />
que quem aqui vos fala é o meu espírito e não um nervo ou<br />
uma fibra...<br />
Por encerrar este capítulo concernente à perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>,<br />
poderíamos acrescentar algumas reflexões sobre uns tantos<br />
motivos de estudo, ain<strong>da</strong> misteriosos e <strong>na</strong><strong>da</strong> insignificantes. O<br />
So<strong>na</strong>mbulismo <strong>na</strong>tural, o Magnetismo e o Espiritismo oferecem<br />
aos pesquisadores sérios, capazes de os entestar cientificamente,<br />
fatos característicos, que bastariam para mostrar a insuficiência<br />
<strong>da</strong>s teorias materialistas.
É triste, confessamo-lo, para o observador consciencioso, ver<br />
o charlatanismo descarado intrometer-se, ávido e pérfido, em<br />
causas respeitáveis; triste assi<strong>na</strong>lar que noventa por cento dos<br />
fatos podem ser falsos, ou imitados. Mas, um só fato, bem averiguado,<br />
é suficiente para bal<strong>da</strong>r to<strong>da</strong>s as explicações. Ora, qual a<br />
atitude de uns tantos doutos diante desses fatos? Negá-los sumariamente.<br />
“A Ciência está convicta, diz Büchner, em particular, de que<br />
todos os presumidos casos de clarividência não passam de conluios<br />
e trapaças. A lucidez, por motivos de ordem <strong>na</strong>tural, é<br />
impossível. É imperativo <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> que os efeitos dos<br />
sentidos se adstrinjam a determi<strong>na</strong>dos e intransponíveis limites<br />
no espaço. A ninguém é <strong>da</strong>do adivinhar pensamentos, nem ver<br />
de olhos fechados o que se passa em torno. Ver<strong>da</strong>des são estas<br />
busca<strong>da</strong>s em leis <strong>na</strong>turais, imutáveis e sem exceções.”<br />
Ó senhor juiz! conheceis vós to<strong>da</strong>s as leis <strong>na</strong>turais? Na<strong>da</strong><br />
existirá oculto para vós <strong>na</strong> Criação? Feliz, vós, que ain<strong>da</strong> não<br />
sucumbistes à sobrecarga <strong>da</strong> vossa ciência! Mas, como? Eis que<br />
viro duas pági<strong>na</strong>s e leio: – “O So<strong>na</strong>mbulismo é fenômeno do<br />
qual não temos, infelizmente senão observações muito inexatas,<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> obstante carecermos de noções precisas, atendendo à importância<br />
que ele tem para a Ciência.<br />
“E to<strong>da</strong>via, sem <strong>da</strong>dos certos (vede bem), é lícito relegar à<br />
conta de fábulas todos os fatos maravilhosos extraordinários, que<br />
se atribuem aos sonâmbulos. A um só, destes, não é permitido<br />
escalar os muros, etc.”. Sensato que é o vosso raciocínio!<br />
E como teríeis bem procedido se, antes de escrever, procurásseis<br />
conhecer um pouco os assuntos que abor<strong>da</strong>is!<br />
Os observadores filósofos que nos ouvem, sabem que certos<br />
fatos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica são absolutamente inexplicáveis pela<br />
hipótese materialista e que, uma vez rigorosamente comprovados,<br />
podem, só por si, desmantelar o bailéu.<br />
Sem que se torne preciso aqui insistir sobre este aspecto <strong>da</strong><br />
questão, convém notar que é impossível admitir a alma como<br />
produto químico, ou dinâmico, quando sabemos que ela manifes-
ta, em <strong>da</strong><strong>da</strong>s circunstâncias, uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de distinta, uma<br />
<strong>na</strong>tureza incorpórea e facul<strong>da</strong>des independentes.<br />
Portanto, voltando às conclusões precedentes, temos: contradição<br />
<strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de psíquica com a multiplici<strong>da</strong>de dos movimentos<br />
cerebrais, contradição entre a identi<strong>da</strong>de constante <strong>da</strong> alma e a<br />
mutabili<strong>da</strong>de incessante dos elementos constitutivos do cérebro,<br />
contradição entre o caráter dinâmico <strong>da</strong> alma e as pretensas<br />
secreções orgânicas. Contradições, contradições e sempre contradições!<br />
Se os adversários acham que elas não bastam, o exame dos<br />
fatos de volição lhes vai facultar um novo discernimento.
3 - A Vontade do Homem<br />
SUMÁRIO – Exame e contestação desta assertiva: “a Matéria<br />
gover<strong>na</strong> o homem”. – Se é ver<strong>da</strong>de que a vontade e o indivíduo<br />
não passam de ilusão. – Se consciência e julgamento dependem<br />
<strong>da</strong> alimentação. Exemplos históricos <strong>da</strong> força de vontade e caráter<br />
de grandes homens. – Coragem, perseverança e virtude. – As<br />
facul<strong>da</strong>des intelectuais e morais <strong>na</strong><strong>da</strong> têm com a Química. – Divagações<br />
curiosas, feitas à margem do Reno. – Influência dos<br />
legumes no progresso espiritual <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de. Liber<strong>da</strong>de moral.<br />
– Aspirações e afecções independentes <strong>da</strong> Matéria. – Espírito<br />
e corpo.<br />
“Dizia Zélter a Goethe que um dos maiores obstáculos que<br />
impediam os alemães de falar o seu idioma tão espontânea e<br />
correntemente como outros povos provinha de certa pressão <strong>da</strong><br />
língua, pelo fato de muito se alimentarem de vegetais e gorduras.<br />
É ver<strong>da</strong>de que não temos outra coisa, mas a sobrie<strong>da</strong>de e a<br />
prudência muito podem remediar e corrigir” 77 .<br />
É com esta advertência que Moleschott abre o grande capítulo<br />
epigrafado: “a Matéria gover<strong>na</strong> o Homem”, sem perceber que a<br />
segun<strong>da</strong> frase do parágrafo traz consigo a conde<strong>na</strong>ção que ele vai<br />
especar, <strong>da</strong>s correlações alimentares com o estado físico e intelectual<br />
do homem. Quando o velho companheiro de Goethe lhe<br />
observa que a sobrie<strong>da</strong>de e a prudência podem fazer e corrigir<br />
muitas coisas, prova, por isso mesmo, que ele não se julga tão<br />
somente uma composição material, mas, também, uma força<br />
mental, capaz de tirar de si mesmo resoluções contrárias às<br />
tendências <strong>da</strong> matéria. Vamos, com efeito, acompanhar a argumentação<br />
materialista que, aqui como alhures, peca sempre pela<br />
base e não se mantém senão por uma espécie de equilíbrio<br />
instável, que um piparote de criança pode desmantelar. O adversário<br />
de Liebig pretende demonstrar que a matéria gover<strong>na</strong> o<br />
homem, estabelecendo que a alimentação atua sobre o organismo.<br />
Como tema de Fisiologia, estes fatos são interessantes e<br />
instrutivos, e a nós nos praz o ensejo de os resumir aqui; mas,<br />
como tema de Filosofia, eles se nos afiguram o que possa haver<br />
de mais incompleto. Consideremo-lo previamente: O quadro<br />
deste capítulo vai oferecer-nos, por sua própria <strong>na</strong>tureza, um
duplo aspecto. No verso, desenhado pela Fisiologia contemporânea,<br />
notaremos a ação física dos alimentos no organismo, e no<br />
reverso veremos que a mesma está longe de constituir o homem<br />
integral e que o ser humano reside numa potência superior às<br />
transformações <strong>da</strong> bílis e do quilo, potência que gover<strong>na</strong> a matéria<br />
e longe está de se lhe escravizar.<br />
Invoca-se, em primeiro lugar, a diferença do regime alimentar,<br />
vegetariano ou carnívoro. Legumes e hortaliças contêm<br />
pouca água, poucas gorduras e quarenta vezes menos albumi<strong>na</strong><br />
que a carne. A<strong>na</strong>lisando os sais contidos nestas substâncias<br />
opostas, concluíram que o regime carnívoro aumenta os fosfatos<br />
no sangue, e o vegetariano, pelo contrário, desenvolve os carbo<strong>na</strong>tos.<br />
De resto, as substâncias albuminosas <strong>da</strong>s partes verdes <strong>da</strong><br />
planta não são a albumi<strong>na</strong>, nem a fibri<strong>na</strong>. Preciso é, pois, que<br />
elas sofram essa primeira transformação, antes de se incorporarem<br />
ao sangue. As gorduras vegetais, por sua vez, não são ver<strong>da</strong>deiras<br />
gorduras, mas tão só adipogenias, ou seja, elementos<br />
que origi<strong>na</strong>m gordura e, portanto, precisando sofrer uma primeira<br />
transformação. Há razão para dizer que a diferença de ação <strong>da</strong><br />
carne começa a fazer-se sentir no sangue antes dele formado, isto<br />
é, <strong>na</strong> sanguificação, <strong>na</strong> digestão.<br />
Esses alimentos serão tanto mais facilmente digeridos quanto<br />
mais os seus elementos constitutivos se identificarem com os do<br />
sangue. Daí resulta que a carne, mais que o pão e os legumes,<br />
aproveita à sanguificação. O comprimento dos intestinos relacio<strong>na</strong>-se<br />
com esse processo de digestão, de acordo com as substâncias,<br />
permitindo-nos fazer dele uma idéia. Nos morcegos, que só<br />
se nutrem de sangue, o tubo intesti<strong>na</strong>l não passa do triplo do<br />
comprimento do corpo. No homem, cujo regime é misto (o que<br />
igualmente se indicia pelo sistema dentário, composto de caninos<br />
e incisivos), o comprimento do intestino é o sêxtuplo <strong>da</strong> altura.<br />
No carneiro, herbívoro, o intestino é vinte e oito vezes mais<br />
longo que o corpo. Todos os animais carnívoros têm estômago<br />
pequeno. O estômago humano tem a forma de um reservatório,<br />
atravessando a cavi<strong>da</strong>de abdomi<strong>na</strong>l, provido de um beco sem<br />
saí<strong>da</strong>, maior que nos pré-citados animais. Os rumi<strong>na</strong>ntes, por
guar<strong>da</strong>rem a forragem, têm um estômago de quatro compartimentos.<br />
O homem tem a construção do onívoro. De passagem, digase,<br />
as velhas prescrições pitagóricas, tanto quanto as moder<strong>na</strong>s<br />
proposições de Rousseau e de Helvétius a favor do regime<br />
animal, devem ser rejeita<strong>da</strong>s como anti<strong>na</strong>turais.<br />
Sendo os vegetais menos nutrientes que os animais, o pão<br />
ocupa um lugar intermediário. No glúten que o compõe, dois<br />
corpos albuminóides se distinguem: albumi<strong>na</strong> vegetal, insolúvel,<br />
e cola vegetal. Estas substâncias diferem <strong>da</strong> fibri<strong>na</strong> <strong>da</strong> carne e<br />
devem dissolver-se nos sucos, durante a digestão. No pão há<br />
menos gordura que <strong>na</strong> carne, mas há o amido e o açúcar, que<br />
devem transformar-se em gordura ao perderem uma parte de<br />
oxigênio. Destas comparações decorre que o sangue, e com ele<br />
os músculos, os nervos, a carne e todos os tecidos, se renovam<br />
mais rapi<strong>da</strong>mente no regime carnívoro.<br />
Infere-se <strong>da</strong>í, que, sendo o sangue o fator dos tecidos, <strong>da</strong>s secreções<br />
e excreções orgânicas, e ain<strong>da</strong> porque se modela pela<br />
alimentação do homem, a diferença primordial, assi<strong>na</strong>la<strong>da</strong> entre<br />
os regimes vegetal e animal, deve estender sua influência a todos<br />
os fenômenos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Detivessem-se eles nesta conclusão e <strong>na</strong><strong>da</strong> teríamos a objetar.<br />
Dizemos, com os antagonistas, que o apetite de um homem sadio<br />
se apazigua antes com um bife do que com uma sala<strong>da</strong>. Consentimos<br />
em admitir que, se as raças de índios caçadores revelam<br />
força muscular notável, ao passo que os insulares do Pacífico se<br />
apresentam fracos (relativamente), é porque estes se alimentam<br />
de ervas e frutos e aqueles de muita carne. Concedemos, igualmente,<br />
que a indolência e falta de caráter dos Hindus pren<strong>da</strong>-se<br />
um tanto ao seu regime herbívoro; – que o filósofo Haller tivesse<br />
razão para acusar uma tal ou qual inércia com o vegetarismo de<br />
alguns dias; – que, por um efeito inverso, uma divisão do Exército<br />
a que pertencia Villermé, <strong>na</strong> guerra de Espanha, fosse atingi<strong>da</strong><br />
de diarréia (relevem a citação que é literal), de magreza e debili<strong>da</strong>de,<br />
por ter sido forçado a se alimentar só de carne durante oito<br />
dias. Concor<strong>da</strong>mos, também, que os índios do Óregon só comem<br />
raízes, durante um longo período do ano, <strong>da</strong>s quais vinte espécies
são <strong>na</strong>tivas – com o que muito nos prazemos – e que as tribos se<br />
movem de uns a outros lugares para captá-las, visto não maturarem<br />
senão sucessivamente. De boamente aceitamos que, vigente<br />
ain<strong>da</strong>, no Malabar, a crença <strong>na</strong> metempsicose, por lá existam<br />
hospitais para animais e se alimentem, nos templos, ratos cuja<br />
vi<strong>da</strong> é sagra<strong>da</strong>. Sabemos, mais, que os Islandeses, Kanitscha<strong>da</strong>les,<br />
Lapônios, Samoledos, só podem alimentar-se de peixe<br />
durante um certo período do ano, enquanto que os caçadores <strong>da</strong>s<br />
planícies america<strong>na</strong>s só comem carne de bisão. Concor<strong>da</strong>mos,<br />
enfim, sem relutância e sem provas, que “basta comer marmela<strong>da</strong><br />
ou maçã para alcalinizar a uri<strong>na</strong>” e que os franceses emitem<br />
menos uréia que os alemães, aliás muito distanciados dos ingleses<br />
– o que prova consumir-se em Londres 1,6% <strong>da</strong> carne consumi<strong>da</strong><br />
em Paris – e, por fim, não estranhamos que as graciosas<br />
passeantes, mais que o transeunte vulgar, encareçam a vantagem<br />
de aumentar os mictórios públicos de Paris ou <strong>da</strong>r-lhes, no<br />
mínimo, outros dispositivos. Efetivamente vos <strong>da</strong>mos, ou melhor<br />
– consentimos tomeis, à vontade, tudo quanto pedirdes em<br />
Fisiologia... Mas, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, que relação tem tudo isso com a<br />
prova <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>? Com franqueza: que aclaramento<br />
essas experiências trazem ao assunto? Onde e como essa<br />
química demonstra a inexistência <strong>da</strong> alma? E que fazeis do<br />
método científico, que recomen<strong>da</strong> não proceder senão por induções<br />
ou deduções? Que mancebia é essa com a escolástica dos<br />
nossos avós?<br />
Certo, não sabemos o que mais admirar: se a audácia, se o erro<br />
destes fisiologistas, levando-nos à bor<strong>da</strong> do abismo e dizendonos:<br />
saltai! Será que acreditem ter lançado uma ponte com<br />
algumas teias de aranha? Na ver<strong>da</strong>de, é preciso encarar o espírito<br />
humano como um cego de <strong>na</strong>scença, para pretender adormentálo<br />
com semelhantes processos. De fato, quem se não admirará de<br />
saber que, como conclusão de fatos mais ou menos incompletos,<br />
quais os precedentes, apresentem-nos a seguinte e enfática<br />
declaração:<br />
– Observações numerosas e experiências feitas em grande escala,<br />
provam que o homem deve, em parte, a sua privilegia<strong>da</strong>
situação, em relação aos animais, à facul<strong>da</strong>de de se alimentar ora<br />
de vegetais, ora de carne 78 .<br />
* A matéria é a base de to<strong>da</strong> a força espiritual, de to<strong>da</strong> a<br />
grandeza huma<strong>na</strong> e terrestre 79 .<br />
* O vocábulo alma, considerado a<strong>na</strong>tomicamente, exprime o<br />
conjunto <strong>da</strong>s funções cerebrais e <strong>da</strong> medula espinhal, e, fisiologicamente,<br />
o conjunto <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de encefálica 80 .<br />
* A análise não encontra <strong>na</strong> consciência, neste augusto instinto,<br />
nesta Voz imortal, mais que um simples mecanismo, que se<br />
desmonta como qualquer aparelho 81 .<br />
A estas afirmações não falta ousadia. Mas, depois <strong>da</strong>s declarações<br />
negativas por nós registra<strong>da</strong>s no capítulo anterior, de <strong>na</strong><strong>da</strong><br />
mais nos podemos admirar.<br />
Se é ver<strong>da</strong>de que os temperos auxiliam a digestão - diz Moleschott<br />
– e o pão de rala, as frutas (especialmente figos) ingeridos<br />
em jejum e regados com um copo d'água fria desenvolvem o<br />
ventre; se os rabanetes, o alho, a baunilha, estimulam o sensualismo,<br />
e se o vinho o chá e o café atuam sobre o cérebro claro<br />
está que a matéria gover<strong>na</strong> o homem...<br />
Sobre isso, não tínhamos dúvi<strong>da</strong>s. Sabeis o que é preciso para<br />
adquirir eloqüência? É não comer nozes nem amêndoas. E como<br />
a voz e a palavra dependem, ao que parece, dos movimentos<br />
musculares <strong>da</strong> laringe, é preferível o regime vegetal ao gorduroso.<br />
Quereis uma prova <strong>da</strong> correlativi<strong>da</strong>de essencial de pensamento<br />
e matéria? Olhai o fundo <strong>da</strong> vossa xícara de café. Este, tal<br />
como o barco a vapor e o telégrafo, põe em ativi<strong>da</strong>de uma série<br />
de pensamentos, origi<strong>na</strong> uma corrente de idéias, de empreendimentos<br />
com ele. É evidente que a necessi<strong>da</strong>de oriun<strong>da</strong> de uma<br />
afini<strong>da</strong>de eletiva <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de pelo café e pelo chá, tornou-se<br />
mais imperiosa e generaliza<strong>da</strong>, à proporção que aumentaram as<br />
exigências intelectuais <strong>da</strong> civilização.<br />
Eis ain<strong>da</strong> um outro fato de importância capital. Os<br />
Kamstcha<strong>da</strong>les e os Tongouses embriagam-se com o seu aguoric<br />
vermelho e parece que os servos, desejosos de conhecerem a
sensação dessa bebi<strong>da</strong>, não trepi<strong>da</strong>m em beber a uri<strong>na</strong> dos seus<br />
amos.<br />
Logo, portanto, é a matéria que gover<strong>na</strong> o homem – conclui<br />
espirituosamente o Sr. Moleschott...<br />
Num tal sistema, qual já o temos entrevisto, é claro que o livre<br />
arbítrio fica completamente aniquilado. O próprio Moleschott<br />
o declara. Não somente o ar que a ca<strong>da</strong> momento respiramos<br />
transforma o sangue venoso em arterial; não só transmu<strong>da</strong><br />
os músculos em creati<strong>na</strong> e creatini<strong>na</strong>; o músculo do coração em<br />
hipoxanti<strong>na</strong>; o tecido do baço em hipoxanti<strong>na</strong> e ácido úrico; o<br />
humor vítreo dos olhos em uréia, como refunde a todo instante a<br />
composição do cérebro e dos nervos. O mesmo ar que respiramos<br />
mu<strong>da</strong> diariamente, não é <strong>na</strong>s matas o que é <strong>na</strong>s ci<strong>da</strong>des, não<br />
é sobre os mares o que é no cimo <strong>da</strong>s montanhas, nem ao nível<br />
<strong>da</strong>s ruas o que é no alto de uma torre. Alimentação, <strong>na</strong>scimento,<br />
educação, convivência, tudo, em torno de nós, rola num movimento<br />
que se comunica constantemente.<br />
– Proposições ver<strong>da</strong>deiras, estas, provam que o homem está<br />
envolvido no âmago de um mundo a cujas influências não pode<br />
eximir-se, e provam também, quem sabe, que o livre arbítrio não<br />
é tão absoluto quanto afirmam alguns psicólogos entusiastas.<br />
Mas, o que essas ver<strong>da</strong>des não provam é a inexistência <strong>da</strong> vontade<br />
huma<strong>na</strong>.<br />
Não são todos os materialistas que levam sua excentrici<strong>da</strong>de<br />
ao ponto de afirmar que a criatura huma<strong>na</strong> não tenha consciência<br />
de que existe, para que deixe de ter a liber<strong>da</strong>de de seus próprios<br />
atos e resoluções.<br />
Büchner é menos exagerado. Dizemos com ele, que o homem<br />
é obra <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>; que a sua pessoa, ações, pensamento e<br />
mesmo vontade estão submetidos as leis que regem o Universo.<br />
As ações e a conduta do indivíduo dependem, incontestavelmente,<br />
<strong>da</strong> sua educação do caráter, dos costumes, <strong>da</strong> índole do povo<br />
e <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção a que pertence e esta <strong>na</strong>ção é, por sua vez, e de certo<br />
modo, o produto do ambiente em que vive e <strong>da</strong>s relações exteriores<br />
que lhe entretiveram o desenvolvimento.
Pode-se por exemplo notar com Deser que o tipo americano<br />
se desenvolveu com os primeiros colonos ingleses há dois e meio<br />
séculos. É um resultado que se pode atribuir a influências climáticas.<br />
O tipo americano distingue-se pela sua compleição, pelo pescoço<br />
alto, pelo temperamento dinâmico e ardoroso. O pouco<br />
desenvolvimento do sistema glandular, que dá às america<strong>na</strong>s<br />
essa expressão ter<strong>na</strong> e vaporosa; a espessura, o comprimento e a<br />
secura do cabelo, podem provir <strong>da</strong> secura do ar. Há quem suponha<br />
ter notado que a agitação dos americanos aumenta com os<br />
ventos do Nordeste. Desses fatos se infere que o grandioso e<br />
rápido progresso dos Estados Unidos seria, em parte, devido ao<br />
meio físico.<br />
Tal como <strong>na</strong> América, os ingleses origi<strong>na</strong>ram um novo tipo<br />
<strong>na</strong> Austrália, nota<strong>da</strong>mente em a Nova-Gales do Sul. Aí, os<br />
homens são altos, magros, musculosos, e as mulheres belíssimas,<br />
mas, de uma beleza efêmera. Os “novos colonos” dão-lhes o<br />
apelido de Cornstalks (palha de trigo). O caráter inglês ressentese<br />
do firmamento nebuloso, do ar pesado, dos estreitos limites <strong>da</strong><br />
terra <strong>na</strong>tal. O italiano, pelo contrário, reflete em tudo o céu<br />
sempre belo e o Sol sempre ardente <strong>da</strong> sua pátria. (E, contudo, os<br />
romanos muito têm mu<strong>da</strong>do de 2000 anos a esta parte.) As idéias<br />
e contos fantásticos do oriente estão intimamente ligados à<br />
luxuriante vegetação que lhes moldura o berço. A zo<strong>na</strong> glacial<br />
não produz mais que raquíticos arbustos e, assim também, uma<br />
raça mofi<strong>na</strong>, <strong>na</strong><strong>da</strong> ou pouco acessível ao progresso. Os habitantes<br />
<strong>da</strong> zo<strong>na</strong> tórri<strong>da</strong> também pouco se a<strong>da</strong>ptam a uma cultura<br />
superior. Só nos países onde o clima, o solo e as relações ambientes<br />
oferecem um certo meio-termo, pode o homem equilibrarse<br />
e adquirir um grau de cultura preponderante sobre os seres e<br />
as coisas que a rodeiam.<br />
To<strong>da</strong>s estas observações não provam, porém, que a matéria<br />
governe o homem e que a vontade e a individuali<strong>da</strong>de sejam uma<br />
ilusão. Cumpre, mesmo, advertir ao autor de Força e Matéria<br />
que, antes, são os indivíduos que fazem as <strong>na</strong>ções e não estas os<br />
indivíduos. Qual o dizia Stuart Mili, o mérito de um Estado está,<br />
em tese, no dos indivíduos que o compõem. Não são as institui-
ções, nem as leis, nem os governos que fazem a grandeza <strong>da</strong>s<br />
<strong>na</strong>ções, mas o valor e a conduta dos ci<strong>da</strong>dãos. É, pois, <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de<br />
dos homens que depende o progresso dos povos, e não<br />
de suas condições gerais. Em vão se dirá que esta individuali<strong>da</strong>de<br />
mais não é que o resultado preciso <strong>da</strong>s disposições do corpo:<br />
– educação, instrução, exemplo, fortu<strong>na</strong>, posição social, sexo,<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, clima, solo, época, etc. No ser humano existe uma<br />
força transcendente a tudo isso, uma força que os negativistas<br />
não querem ver e procuram ocultar no nevoeiro de sua paralogia.<br />
Assim como a planta – dizem eles – depende do terreno em que<br />
radica, não somente em relação à sua existência, mas ain<strong>da</strong> ao<br />
seu tamanho, forma e beleza; assim também o animal é grande<br />
ou pequeno, manso ou bravo, bonito ou feio, conforme as influências<br />
extrínsecas, assim também o homem físico e intelectual<br />
é o fruto dos mesmos fatores, dos mesmos acidentes e disposições,<br />
e nunca o ser espiritual, independente e livre, que os moralistas<br />
nos pintam... Esses senhores protestam quando lhes chamamos<br />
espirituais, e nós persistimos <strong>na</strong> amabili<strong>da</strong>de. Mas, sem<br />
constituir uma exceção a seu favor, temos o direito de sustentar a<br />
espirituali<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong> e apagar, com o exemplo de grandes<br />
vontades, essa teoria crepuscular, que conceitua as resoluções do<br />
homem uma função barométrica.<br />
É preciso fechar voluntariamente os olhos aos eventos mais<br />
belos e respeitáveis <strong>da</strong> História, preferir tristes abstrações a<br />
ver<strong>da</strong>des gloriosas, sacrificar venerandos monumentos do pensamento<br />
à quimera de uma idéia fixa, para ousar assim negar o<br />
poder <strong>da</strong> vontade, o valor de sua energia, a independência de sua<br />
resolução, os milagres mesmos de sua persistência, e substituí-lo<br />
por uma sombra difusa e vaga, dependente dum sol teatral. Na<br />
ver<strong>da</strong>de, não vemos a vantagem desta substituição. É desconhecer<br />
a grandeza do homem o afirmar que os seus atos não passam<br />
de resultado necessário e fatalístico dos seus pendores físicos,<br />
tendências orgânicas e propensões materiais. É degra<strong>da</strong>r-lhe a<br />
digni<strong>da</strong>de abaixo do nível <strong>da</strong> mediania intelectual e é colocar-se<br />
em contradição com os exemplos mais brilhantes que constelam<br />
a fronte <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de por coroá-la de glória imperecível.<br />
Abordemos, em to<strong>da</strong>s as suas fases, os a<strong>na</strong>is <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de;
consultemos, sobretudo, as pági<strong>na</strong>s do nosso século, já tão<br />
engrandecido de invenções fecun<strong>da</strong>s e entrevistas possibili<strong>da</strong>des;<br />
logo nos convenceremos de que o gênio não é simplesmente<br />
resultante de condições materiais e muito menos de uma enfermi<strong>da</strong>de<br />
nervosa, senão que se afirma por uma força superior a<br />
to<strong>da</strong>s as contingências e que muitas vezes o tem domi<strong>na</strong>do<br />
guiado e vencido. Longe de encarar o homem como um ser<br />
inerte, cujas obras não passassem de efeitos instintivos, de<br />
hábitos, necessi<strong>da</strong>des apetites e predisposições orgânicas, nós<br />
proclamamos, com a autori<strong>da</strong>de dos fatos, que a inteligência<br />
gover<strong>na</strong> a matéria e que o valor do homem consiste, precisamente,<br />
nessa elevação, nessa soberania <strong>da</strong> inteligência.<br />
Para ilustrar o asserto e invali<strong>da</strong>r, exemplificando, a au<strong>da</strong>ciosa<br />
afirmativa desses campeões <strong>da</strong> matéria, lancemos um olhar ao<br />
panorama intelectual <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de, e a todos quantos sentem<br />
pulsar-lhe no peito um coração patriótico apresentemos-lhes –<br />
bem como aos jovens indecisos, que, mal transpondo os pórticos<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> prática, pudessem deixar-se embair pela mentira materialista,<br />
acarretando para si a própria ruí<strong>na</strong> – apresentemos-lhes,<br />
sim, o quadro tão grato aos nossos sentimentos, tão útil às nossas<br />
vistas e tão imponente às nossas aspirações, desses homens<br />
enérgicos saídos <strong>da</strong>s mais ínfimas cama<strong>da</strong>s sociais, para elevarem-se,<br />
pelo próprio esforço, à conquista do mundo e às culminâncias<br />
do pensamento soberano.<br />
Num belo livro, cujo título exótico não é bastante claro nem<br />
cativante, mas, que deveria an<strong>da</strong>r em mãos de to<strong>da</strong> a moci<strong>da</strong>de<br />
francesa (Self-Help, ou Caráter), um homem honrado, que é<br />
Samuel Smiles, reuniu exemplos desses vultos valorosos que<br />
venceram todos os percalços <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> e foram, por assim dizer, a<br />
refutação viva desta singular teoria, que tende a rebaixar o<br />
homem, em vez de o elevar. É por exemplos tais que a alma se<br />
eleva para a ver<strong>da</strong>de do seu ideal. Julgamos de nosso dever<br />
home<strong>na</strong>gear aqui esse panteão de beneméritos exemplares, cujo<br />
panegírico deveria ser espalhado aos quatro ventos.<br />
Os fatos a seguir, de ordem geral ou particular, e as considerações<br />
que eles sugerem, oferecemo-los aos que repetem com<br />
Moleschott, Büchner e seu rancho, que o homem segue os seus
pendores e a reflexão <strong>na</strong><strong>da</strong> vale à face <strong>da</strong>s incli<strong>na</strong>ções e tendências,<br />
sejam <strong>na</strong>turais ou adquiri<strong>da</strong>s.<br />
Sábios, literatos, artistas, todos quantos se votam ao apostolado<br />
<strong>da</strong>s mais transcendentes ver<strong>da</strong>des e todos quantos se enobreceram<br />
pelas virtudes do coração, jamais saíram privativamente<br />
de uma classe ou de uma carreira <strong>da</strong> hierarquia social. Ao<br />
contrário, saíram indiferentemente <strong>da</strong> ofici<strong>na</strong>, como <strong>da</strong> lavoura,<br />
<strong>da</strong> caba<strong>na</strong>, como do palácio. E os mais humildes atingiram, por<br />
vezes, os postos mais culmi<strong>na</strong>ntes, vencendo dificul<strong>da</strong>des aparentemente<br />
insuperáveis, que lhes atravancavam o caminho. Em<br />
muitos casos, parece que essas dificul<strong>da</strong>des foram seus melhores<br />
auxiliares, obrigando-os a empregar todo o esforço possível no<br />
trabalho perseverante, e assim vivificando facul<strong>da</strong>des que, de<br />
outra forma, poderiam permanecer adormeci<strong>da</strong>s.<br />
O exemplo de obstáculos assim transpostos, os triunfos assim<br />
alcançados, são tão numerosos que justificam, quase inteiramente,<br />
este provérbio: com boa vontade tudo se consegue.<br />
Grande número dos que mais se distinguiram <strong>na</strong> Ciência <strong>na</strong>sceram<br />
em condições sociais havi<strong>da</strong>s como incapazes de proporcio<strong>na</strong>r<br />
talentos, particularmente científicos. Em lugar <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções<br />
químicas do hidrogênio e fósforo, em vez dos efeitos <strong>da</strong><br />
eletrici<strong>da</strong>de dos nervos, apresentamos estes grandes caracteres,<br />
que, do fundo <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s sociais mais obscuras, se elevaram<br />
aos pináculos <strong>da</strong> Ciência, a saber: Copérnico, filho de um padeiro<br />
polonês; Galileu, perseguido por amor à ver<strong>da</strong>de; Képler,<br />
filho de um taberneiro e caixeiro de taver<strong>na</strong>, por sua vez, atormentado<br />
sempre com a sua miséria pecuniária; d’Alembert,<br />
enjeitado e encontrado pela mulher de um vidraceiro <strong>na</strong>s esca<strong>da</strong>s<br />
de uma igreja, certa noite invernosa; Newton, filho de um pequeno<br />
proprietário de Granthan; Laplace, filho de um pobre<br />
campônio de Beaumont, perto de Honfleur; W. Herschell, organista<br />
de Halifax; Arago, devendo to<strong>da</strong> sua glória à perseverança<br />
no estudo desde jovem; Ampère, pesquisador solitário; Humphry<br />
Davy, criado de um farmacêutico; Fara<strong>da</strong>y, encader<strong>na</strong>dor; Franklin,<br />
aprendiz de tipógrafo; Diderot, filho de um cutileiro; Cuvier,<br />
Geoffroy Saint-Hilaire e cem outros; o físico Hautefeuille,<br />
filho de um padeiro de Orleâes; Gassendi, pobre camponês dos
Baixos-Alpes; o mineralogista Hüy, filho de um tecelão; Buffon,<br />
que exigia, para levantar e combater a preguiça, que o acor<strong>da</strong>ssem<br />
a jatos de água fria (sua saúde, mau grado ao que dizem<br />
nossos adversários, para <strong>na</strong><strong>da</strong> lhe serviu e seus maiores trabalhos<br />
foram realizados no curso de longa e cruel enfermi<strong>da</strong>de); o<br />
químico Vauquelin, aldeão de Saint-André d’Hébertot (Calvados),<br />
que, depois de servente de farmácia, chega a Paris de saco<br />
às costas, com um escudo <strong>na</strong> algibeira.<br />
Em que o azoto e o fósforo entravam <strong>na</strong> secreção <strong>da</strong> vontade<br />
destes sábios ilustres, e de que maneira o carbono se comportou<br />
para os levar ao fastígio <strong>da</strong> projeção intelectual? Mau grado às<br />
circunstâncias desfavoráveis com que houveram de lutar no<br />
início <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, estes homens eminentes alcançaram, pelo só<br />
exercício de suas facul<strong>da</strong>des, uma reputação sóli<strong>da</strong> e duradoura,<br />
qual lhes não granjeariam todos os tesouros <strong>da</strong> Terra.<br />
De nossa parte, citaremos agora os cirurgiões John Hunter,<br />
Ambrósio Paré e Dupuytren, <strong>na</strong>scidos de condições humildes.<br />
Conta-se que Dupuytren, quando no colégio <strong>da</strong> Marcha, ocupava<br />
com outro colega um quarto que tinha por todo o mobiliário<br />
três cadeiras, mesa e uma espécie de cama, <strong>na</strong> qual se alter<strong>na</strong>vam<br />
para o repouso. Tão exíguos eram seus recursos, que, muitas<br />
vezes, passavam a pão e água. Dupuytren começava o trabalho<br />
às 4 horas <strong>da</strong> manhã e nós sabemos, hoje, que ele foi o maior<br />
cirurgião do seu tempo. Citaremos, ain<strong>da</strong>, José Fourrier, filho de<br />
um alfaiate de Auxerre, o <strong>na</strong>turalista Coara-do Gesner, cortidor<br />
de Zurich. Citaremos mais: Pedro Ramas, Shakespeare, Voltaire,<br />
Rousseau, Moliêre, Beaumarchais, grandes obreiros do pensamento,<br />
que derrubaram, exclusivamente com a sua força mental,<br />
as barreiras que as castas sociais opunham ao vulgo.<br />
Fácil nos seria exarar infinitos exemplos desse quilate. Em<br />
todos os ramos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong> – Ciências, Belas-Artes,<br />
Literatura, Comércio, Indústria – eles são tão numerosos que<br />
chegam a dificultar a escolha entre tantos homens notáveis cujo<br />
êxito lhes adveio somente do trabalho e paciente esforço 82 .<br />
Basta, por exemplo, lançar um olhar aos domínios <strong>da</strong> Geografia<br />
e assi<strong>na</strong>lar entre os grandes descobridores Cristóvão Colombo,<br />
filho de um car<strong>da</strong>dor de Gênova; Cock, caixeiro de uma loja no
Yorkshire, e Livingstone, operário de uma fiação de tecidos<br />
perto de Glaacow. Entre os papas, Gregório 7º <strong>na</strong>sceu de um<br />
carpinteiro, Sixto 5º de um pastor e Adriano 6º de um pobre<br />
canoeiro. Na sua juventude, pobríssimo, Adriano, impossibilitado<br />
de comprar uma vela, preparava as lições ao relento, aproveitando<br />
a ilumi<strong>na</strong>ção pública. Ninguém lobriga em tudo isto a<br />
influência do oxigênio.<br />
Não é senão pelo exercício autônomo de suas facul<strong>da</strong>des que<br />
uma criatura pode adquirir o saber e a experiência que, reunidos,<br />
produzem a sabedoria. E, qual dizia Franklin, é tão pueril esperar<br />
a posse desses bens sem esforço e sem trabalho quanto o seria<br />
contar com uma colheita em terreno sem lavra nem semeadura.<br />
Dois irmãos, provindos do mesmo Casal, podem receber a<br />
mesma educação, ter a mesma liber<strong>da</strong>de de ação, viverem juntos,<br />
nutrirem-se do mesmo ar e dos mesmos alimentos e <strong>na</strong><strong>da</strong> impedirá<br />
que um se torne ilustre e outro fique <strong>na</strong> mediocri<strong>da</strong>de. A<br />
quanta gente se poderiam endereçar estas palavras do velho<br />
bispo de Lincoln ao irmão, homem indolente, que lhe pedia<br />
fizesse dele um grande homem: – “certo, se a tua charrua se<br />
quebrar posso man<strong>da</strong>r consertá-la, e se te morrer um boi posso<br />
comprar-te outro; mas não posso fazer de ti um grande homem,<br />
de vez que lavrador te encontrei e sou obrigado a deixar-te como<br />
tal”.<br />
Riquezas e bem-estar não são indispensáveis ao desenvolvimento<br />
<strong>da</strong>s altas facul<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s, pois, se assim fora, não<br />
haveria no mundo, e de todos os tempos, notabili<strong>da</strong>des desabrocha<strong>da</strong>s<br />
<strong>da</strong>s mais ínfimas cama<strong>da</strong>s sociais. A química alimentar<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> tem que ver com a produção intelectual.<br />
Longe de ser um mal, a pobreza, quando provi<strong>da</strong> de energia e<br />
iniciativa pessoal, pode transformar-se em benefício, de vez que<br />
faz sentir ao homem a necessi<strong>da</strong>de de lutar com o mundo, onde,<br />
a despeito dos que compram o bem-estar a preços degra<strong>da</strong>ntes,<br />
também há confiança, justiça e triunfo para os valorosos e honestos.<br />
A fortu<strong>na</strong> há mesmo, muitas vezes, prejudicado os seus<br />
privilegiados. Em compensação, encontramos exemplos favoráveis<br />
à nossa tese, entre aqueles que, inspirados pela fé ou ciosos<br />
<strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de do seu próximo, renunciaram, voluntariamente, aos
gozos mun<strong>da</strong>nos, aos poderes e honras <strong>da</strong> Terra, descendo de sua<br />
posição culmi<strong>na</strong>nte para dedicar-se à beneficência e instrução<br />
<strong>da</strong>s massas.<br />
“O mundo é escravo <strong>da</strong> energia, dizia Aleixo de Tocqueville,<br />
nem houve fase de vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> qual pudéssemos conceber repouso; a<br />
luta interior, e mais ain<strong>da</strong> a exterior, é necessária e tanto maiormente<br />
necessária quanto mais envelhecemos. Comparo o homem<br />
a um viajante que caminha, sem parar, para uma região ca<strong>da</strong> vez<br />
mais fria e que, quanto mais avança, mais precisa agitar-se. A<br />
grande enfermi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma é o frio e para combater esse mal<br />
temível é preciso, não só manter ativo o espírito pelo trabalho,<br />
mas também pelo contacto dos semelhantes e dos negócios<br />
temporais.”<br />
Estas palavras, justificou-as o seu autor com o exemplo pessoal.<br />
Em ple<strong>na</strong> ativi<strong>da</strong>de, ei-lo que perde a vista e, depois, a saúde,<br />
mas não perde nunca o amor à ver<strong>da</strong>de. Ain<strong>da</strong> quando combalido<br />
a ponto de ser carregado ao colo como qualquer criança, a sua<br />
indômita coragem não o abando<strong>na</strong>. Completamente cego e<br />
inválido, nem por isso encerra a sua carreira literária, justificando-a<br />
com estas nobres palavras bem dig<strong>na</strong>s de serem contrapostas<br />
à hipótese materialista. “Se, como me praz acreditar, o interesse<br />
<strong>da</strong> Ciência se inclui em o número dos grandes interesses<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, eu dei ao meu país o que lhe dá o sol<strong>da</strong>do mutilado no<br />
campo de batalha.<br />
“Seja qual for o destino dos meus trabalhos, também espero<br />
que este exemplo não fique perdido. Quereria eu que ele servisse<br />
para combater essa debili<strong>da</strong>de moral, que é a moléstia <strong>da</strong> nova<br />
geração; que pudesse reconduzir ao caminho reto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> alguma<br />
dessas almas enerva<strong>da</strong>s que se lamentam de lhes faltar a fé, sem<br />
saberem onde buscá-la, e que, procurando por to<strong>da</strong> parte, em<br />
parte alguma encontram objeto de culto e devotamento.<br />
“Por que dizer, com tanto amargor, que não há ar para todos<br />
os pulmões, emprego para to<strong>da</strong>s as inteligências? Não temos aí o<br />
estudo sério e calmo? Não haverá nele um refúgio, uma esperança,<br />
uma carreira ao alcance de todos nós? Com ele, atravessamos
os dias aziagos sem lhes sentir o peso. Com ele construímos o<br />
destino, usamos nobremente a vi<strong>da</strong>. Eis o que faço e voltaria a<br />
fazer ain<strong>da</strong>, se houvesse de recomeçar a marcha, a fim de reencontrar-me<br />
justo onde me encontro. Cego e padecente. Posso <strong>da</strong>r<br />
um testemunho que, penso, não será suspeito: o de haver no<br />
mundo algo melhor e mais valioso que os gozos materiais que a<br />
fortu<strong>na</strong> e até a saúde: – o devotamento à Ciência.”<br />
Preferimos sentimentos que tais à química <strong>da</strong> inteligência. Estendemo-nos<br />
confia<strong>da</strong>mente nestes exemplos porque, acima de<br />
tudo, dão testemunho do ver<strong>da</strong>deiro caráter do homem superior e<br />
<strong>da</strong> absurdi<strong>da</strong>de dos materialistas que ousam reduzir esse caráter<br />
a simples função <strong>da</strong> matéria, a uma disposição <strong>na</strong>tural do cérebro.<br />
Não queremos concluir o protesto sem falar em Ber<strong>na</strong>rdo<br />
Palissy, homem cuja vi<strong>da</strong> vale por um protesto formal à hipótese<br />
dos nossos adversários.<br />
Lembremos, em primeiro lugar, que Palissy <strong>na</strong>sceu em 1510,<br />
sendo seu pai um pobre vidraceiro <strong>da</strong> Capela Biron. Não pôde,<br />
assim, receber a menor instrução; não teve, qual confessava ele<br />
próprio, “outro livro além do céu e <strong>da</strong> terra, que a to<strong>da</strong> gente é<br />
<strong>da</strong>do ler e entender”. Aos vinte e oito anos, paupérrimo, instalouse<br />
numa choupa<strong>na</strong>, em Saintes, como agrimensor e pintor de<br />
vidros. Casado e pai de filhos cuja subsistência se lhe tor<strong>na</strong>va<br />
impossível, concebeu a idéia fixa de fabricar louça vidra<strong>da</strong> e<br />
imitar Luca della Róbia. Na impossibili<strong>da</strong>de de viajar pela Itália<br />
para aprender a técnica, houve de resig<strong>na</strong>r-se a investigar, tateante,<br />
no ambiente acanhado em que se encontrava.<br />
Depois de muito conjeturar sobre as matérias que entravam<br />
<strong>na</strong> composição do esmalte, fez demora<strong>da</strong>s experiências e acabou<br />
reunindo as substâncias que lhe pareceram adequa<strong>da</strong>s. Comprou<br />
potes de barro comum, quebrou-os e recobriu os fragmentos com<br />
as massas que preparava, submetendo-as ao forno para tal fim<br />
construído. As tentativas falhavam e o que só conseguia era<br />
potes quebrados, com grande prejuízo de carvão, de substâncias<br />
químicas, além de tempo e trabalho.<br />
Afrontando as lamentações <strong>da</strong> esposa, o choro dos filhos e a<br />
ironia dos vizinhos, nem assim desanimava. Sua companheira<br />
não se conformava com o ver assim dissipar-se em fumo os já
minguados recursos domésticos. Contudo, haveria de submeterse,<br />
de vez que o marido estava empolgado por uma idéia que<br />
ninguém e <strong>na</strong><strong>da</strong> no mundo lhe desvaneceria.<br />
As experiências prosseguiam por meses e anos. Descontente<br />
com o primeiro forno, construiu outro fora de casa. Neste, queimou<br />
outra lenha, esperdiçou outras drogas e potes, perdeu tanto<br />
tempo e dinheiro que acabou caindo em extrema miséria. Sem<br />
embargo, persistiu. Obsti<strong>na</strong>ção cruel!<br />
Não mais podendo acender o seu forno, levava o material a<br />
uma fábrica distante légua e meia e o fracasso continuava. Desapontado,<br />
mas não desenga<strong>na</strong>do, resolve, então, construir um<br />
forno para vidro, perto de casa. E o fez ele mesmo, com as<br />
próprias mãos. Conduzia <strong>da</strong> olaria, às costas, o tijolo; ajustava-o,<br />
emboçava-o; era pedreiro, carregador, oleiro, tudo! Ao fim de<br />
um ano, ei-lo com o seu novo forno e os vasos preparados para<br />
uma nova experiência. Apesar do esgotamento quase absoluto<br />
dos seus recursos, conseguira acumular grandes reservas de<br />
lenha. Acendeu o forno, recomeçou o trabalho, não perdia de<br />
vista a tarefa, um minuto que fosse. Dia e noite a postos, vígil,<br />
ei-lo a meter lenha, a graduar o fogo e, contudo, o esmalte não<br />
derretia. Pela segun<strong>da</strong> vez vinha o Sol surpreendê-lo <strong>na</strong> fai<strong>na</strong> e a<br />
esposa trazia lhe o parco almoço. Na<strong>da</strong> no mundo o tiraria <strong>da</strong><br />
boca do seu forno, no qual, desesperado, lançava a lenha acumula<strong>da</strong>.<br />
O Sol recolhia-se e o nosso homem não. Pálido, desfigurado,<br />
barba cresci<strong>da</strong>, sobreexcitado sim, mas heróico, indefesso<br />
junto ao forno, para ver quando o esmalte se fundiria. Um, dois,<br />
seis dias, enfim, transcorreram sem alteração. O invicto Palissy<br />
continuava a trabalhar, a vigiar, mau grado ao desmoro<strong>na</strong>mento<br />
de suas esperanças.<br />
O esmalte não se fundiu... Pôs-se, então, a contrair dívi<strong>da</strong>s, a<br />
comprar novos vasos, mais lenha...<br />
Os potes devi<strong>da</strong>mente revestidos e cui<strong>da</strong>dosamente colocados<br />
no forno, ain<strong>da</strong> uma vez acendeu-se o fogo. Era a última tentativa<br />
do desespero. Ele fez um braseiro enorme e, não obstante a<br />
alta temperatura, <strong>na</strong><strong>da</strong> conseguiu. A lenha já escasseava. Como<br />
alimentar, até o fim, aquele fogaréu infer<strong>na</strong>l? Olhou em torno,<br />
seus olhos incidiram <strong>na</strong> cerca do jardim, madeira enxuta, facil-
mente combustível. Que poderia valer aquela cerca compara<strong>da</strong><br />
com a experiência cujo êxito dependeria, talvez, de algumas<br />
toras mais? As cercas foram arranca<strong>da</strong>s, lança<strong>da</strong>s <strong>na</strong> for<strong>na</strong>lha.<br />
Sacrifício inútil!<br />
Ain<strong>da</strong> não seria dessa vez... Mas dez minutos de calor – quem<br />
sabe – e tudo estaria conseguido... Lenha, portanto, mais lenha e<br />
só lenha, a qualquer preço, eis o que precisava! Que ardessem os<br />
móveis, contanto que não perdesse aquela experiência. Estrondo<br />
horrível se ouviu em to<strong>da</strong> a casa, logo seguido dos gritos <strong>da</strong><br />
mulher e filhos, já agora temerosos de que o homem houvesse<br />
enlouquecido. Ei-lo que chega, sobraçando destroços de mesas e<br />
cadeiras! A for<strong>na</strong>lha tudo recebe, tudo devora. Não se funde o<br />
esmalte, ain<strong>da</strong> assim? Chega a vez dos assoalhos... A família,<br />
diante disso, foge espavori<strong>da</strong> e vai pelas ruas a gritar que o seu<br />
chefe enlouquecera. A essa altura, o inventor encontrava-se<br />
absolutamente exausto, mercê de tantas lutas, jejuns, vigílias,<br />
sobressaltos.<br />
Endivi<strong>da</strong>do e coberto de ridículo, dir-se-ia presa de um desastre<br />
irreparável. E, contudo, acabara por descobrir o segredo, a<br />
última provisão de calor derretera o esmalte. Os vasos de barro<br />
escuro lá estavam transformados em louça branca, que ele deveria<br />
realmente achar belíssima. Doravante, podia afrontar com<br />
paciência todos os remoques, ultrajes e recrimi<strong>na</strong>ções. O homem<br />
de gênio, graças à te<strong>na</strong>ci<strong>da</strong>de <strong>na</strong> sua inspiração, acabava colhendo<br />
a palma <strong>da</strong> vitória. Arrancara um segredo à <strong>Natureza</strong> e podia<br />
com mais calma aguar<strong>da</strong>r os proventos <strong>da</strong> sua descoberta.<br />
E não foi senão ao fim de dezesseis anos de labor assíduo e<br />
penosas experiências, que, isolado, aprendendo consigo, desaju<strong>da</strong>do<br />
de todos, pôde colher o fruto do seu esforço. Não tardou,<br />
porém, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua independência de idéias em matéria religiosa,<br />
fosse denunciado e visse invadi<strong>da</strong> e depre<strong>da</strong><strong>da</strong> a sua ofici<strong>na</strong> por<br />
uma turba ig<strong>na</strong>ra e fanática, de conivência com as autori<strong>da</strong>des. E<br />
enquanto assim lhe destroçavam to<strong>da</strong> uma cerâmica preciosa, era<br />
ele preso e conduzido a Bordéus, onde aguar<strong>da</strong>ria o ca<strong>da</strong>falso ou<br />
a fogueira. Salvou-lhe a vi<strong>da</strong> o Condestável de Montmorency,<br />
não – diga-se – em atenção às suas crenças religiosas, mas às<br />
suas falanças.
Dali, foi a Paris, onde o chamaram os trabalhos encomen<strong>da</strong>dos<br />
pelo Condestável e pela Rainha-mãe, hospe<strong>da</strong>ndo-se <strong>na</strong>s<br />
Tulherias, enquanto duraram esses trabalhos. Mas, a guerra<br />
incessante que movia aos adeptos <strong>da</strong> Astrologia, <strong>da</strong> Alquimia e<br />
<strong>da</strong> bruxaria, acarretou-lhe uma nova denúncia como herético.<br />
Novamente preso, ficou cinco anos <strong>na</strong> Bastilha e ali morreu, em<br />
1589, <strong>na</strong> i<strong>da</strong>de de oitenta anos. Assim acabou e assim foi recompensado<br />
o inventor <strong>da</strong> louça esmalta<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s figuli<strong>na</strong>s 83 .<br />
Diante desse magnífico exemplo de coragem e perseverança –<br />
não <strong>da</strong> coragem proveniente de uma exaltação nervosa, qual a<br />
produzem a cólera, o medo, o cheiro <strong>da</strong> pólvora, a música marcial,<br />
visto que nestes casos espontâneos os adversários poderiam<br />
alegar a sensação – mas, de uma energia que se desdobra por<br />
dezesseis anos afrontando todos os reveses; de uma vontade que<br />
sobrepuja todos os obstáculos como que avassalando o corpo e<br />
as afeições do sangue. Diante desses exemplos, dizemos, diante<br />
de to<strong>da</strong>s as glórias <strong>da</strong> nossa espécie pensante; diante de to<strong>da</strong>s<br />
essas chamas que se consumiram para brilharem <strong>na</strong> posteri<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong>s gerações; diante dos anseios cordiais <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de e<br />
diante dos testemunhos <strong>da</strong> sua própria consciência, com que<br />
direito se vem averbar de ilusão a vontade e de subseqüente a<br />
força moral?<br />
Com que direito ousam negar a energia independente e o caráter<br />
predomi<strong>na</strong>nte dessas almas de rija têmpera? A que pretexto<br />
reduzem a potência desses corações a estados fisiológicos,<br />
quando não a circunstâncias fortuitas? E como se leva a fantasia<br />
a estabelecer como princípio que “as nossas resoluções variam<br />
com o barômetro”?<br />
Objetar-se-á que o benemérito oleiro, cujo perfil acabamos de<br />
traçar, representa uma exceção no seio <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de? Mas,<br />
uma tal evasiva só poderá provir <strong>da</strong> ignorância e carência de<br />
observação. Nomes mais ilustres que o de Palissy fulguram por<br />
aí a títulos outros e nos quais admira-nos a mesma obsti<strong>na</strong>ção e<br />
firmeza.<br />
Buffon escreveu que gênio é paciência. Lembramo-nos, então,<br />
de Képler procurando durante dezessete anos as três leis<br />
imortais que o recomen<strong>da</strong>m à posteri<strong>da</strong>de, leis que regem o
sistema universal nos latifúndios celestes, onde se embalam as<br />
estrelas duplas, tanto quanto regulam o movimento <strong>da</strong> Lua em<br />
torno <strong>da</strong> Terra. Falaremos de Newton, modesto, respondendo a<br />
quem lhe perguntava como descobrira a gravitação: – foi pensando<br />
sempre nela. Citaremos todos esses ilustres sábios que em<br />
suas lutas só tiveram por arma a inteligência. Invocaremos os<br />
trabalhos solitários de Harvey, Carlos Bonnet, Jênner 84 . Recontaremos<br />
as tremen<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des que houveram de vencer,<br />
animados do fogo sagrado, esses inventores que se chamaram<br />
Watt, Jacquard, Girard, Fúlton, Stéplenson? Diremos dos labores<br />
intelectuais que exigiram as nossas vias férreas, a <strong>na</strong>vegação a<br />
vapor, a telegrafia, magníficos inventos nos quais celebramos o<br />
espírito que não a matéria? Invocaremos os arroubos artísticos de<br />
um Miguel Ângelo, de um Ticiano, de um Celini, de um Poussain?<br />
Recordemos esta frase de Bayle, escrita de Milão, em<br />
1820, a propósito de um artista chamado Meyerbeer: – “é homem<br />
de algum talento mas não genial, vivendo solitariamente e<br />
trabalhando quinze horas por dia”. Contudo, se quiséssemos<br />
historiar as provas rudes que flagelaram os gênios mais possantes,<br />
haveríamos de baixar aos nomes ignorados, de quantos<br />
mergulharam nesse pego revolto, vítimas <strong>da</strong> sorte, não <strong>da</strong> descrença,<br />
como Chenier decapitado, ou como Gilbert lutando<br />
contra o egoísmo universal.<br />
Haveríamos, também, de convocar os que sucumbiram gloriosamente.<br />
– Gior<strong>da</strong>no Bruno preferindo a morte a uma retratação<br />
fictícia, Campanela sete vezes torturado e sucumbindo sem<br />
deixar de satirizar seus algozes; Joa<strong>na</strong> D'Arc que salvou a França,<br />
Sócrates que salvou a Filosofia e preferiu a cicuta à mentira,<br />
Cristóvão Colombo expirando no cárcere, o velho Pedro Ramus<br />
estrangulado <strong>na</strong> noite de São Bartolomeu, em que também teria<br />
perecido Ambrósio Paré, se Carlos 9º não levasse em conta os<br />
seus préstimos pessoais e, enfim, todos os mártires <strong>da</strong> Ciência,<br />
<strong>da</strong> Religião, do progresso, inclusive os que tombaram nos circos<br />
romanos, devorados pelas feras e exorando a <strong>Deus</strong> por seus<br />
irmãos. Fossem quais fossem as crenças, as idéias que essas<br />
criaturas defendiam até à morte, sem lhes apreciarmos o valor<br />
real <strong>da</strong>s causas que abraçavam, sua memória imperecível só nos
merece respeitosa veneração. São vultos que nos mostram que o<br />
homem não é somente um composto de matéria orgânica e que a<br />
energia, a perseverança, a coragem, a virtude, a fé, não são<br />
atributos <strong>da</strong> composição químico-cerebral. Do fundo de seus<br />
sepulcros eles proclamam que os pretensos sábios, que ousam<br />
identificar o homem com a matéria inerte, não se precatam do<br />
valor humano e jazem <strong>na</strong> mais trevosa ignorância <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des<br />
que fazem a glória e a felici<strong>da</strong>de do ser.<br />
E supondes seja necessário interrogar a tradição histórica para<br />
responder, também com argumentos e exemplos irresistíveis, a<br />
essa pretensão cega de negar os fatos de ordem puramente intelectual,<br />
conceituando tão superficialmente o Espiritualismo e a<br />
Moral?<br />
Não; não é somente <strong>na</strong>s altas esferas que o observador admira<br />
esses edificantes exemplos. Em to<strong>da</strong>s às cama<strong>da</strong>s sociais, do<br />
prócer <strong>da</strong> Ciência ao rústico a<strong>na</strong>lfabeto, do trono ao grabato, a<br />
vi<strong>da</strong> cotidia<strong>na</strong> oferece, no santuário <strong>da</strong> família, esses mesmos<br />
padrões de coragem e abnegação, de paciência e grandeza d'alma,<br />
de energia e virtude, que, por desconhecidos, não são menos<br />
meritórios no seu valor intrínseco, do que os precedentes.<br />
Quantas almas padecem em segredo sem revelar os seus martírios,<br />
curva<strong>da</strong>s à injustiça, vítimas do destino, dessa fatali<strong>da</strong>de<br />
impenetrável que persegue tantas criaturas boas e justas?<br />
Quantos corações magnânimos palpitam em silêncio e abafam<br />
chamas capazes de incendiar o verbo e levantar multidões,<br />
se, ao invés de definhar <strong>na</strong> sombra, se espanejassem ao sol <strong>da</strong><br />
populari<strong>da</strong>de? Quantos gênios ignorados por aí dormitam num<br />
isolamento infecundo? Quantas almas santas e puras, a consagrarem-se<br />
a uma vi<strong>da</strong> inteira de abnegação, de amor, de cari<strong>da</strong>de? E<br />
quantos, em recompensa de tamanhas virtudes, de tanta paciência<br />
è humil<strong>da</strong>de, não recebem mais que ingratidão e desprezo<br />
<strong>da</strong>queles mesmos a quem amam?<br />
O último refúgio dos nossos adversários assenta no sistema<br />
dos pendores <strong>na</strong>turais, como a declararem que estes fatos de<br />
ordem mental não são mais que o resultado <strong>da</strong>s incli<strong>na</strong>ções dos<br />
espíritos credores <strong>da</strong> nossa admiração. Se Palissy se obstinou
dezesseis anos à procura do esmalte, seria a isso arrastado por<br />
uma incli<strong>na</strong>ção especial. Se Colombo não esmoreceu diante do<br />
cepticismo dos coevos e <strong>da</strong>s revoltas de sua equipagem, é que<br />
uma tendência do seu cérebro o encaminhava irrevogavelmente<br />
para o Novo Mundo. Se Dante concluiu a Divi<strong>na</strong> Comédia, ain<strong>da</strong><br />
que posto a ferros e expatriado, é porque a lembrança de Beatriz<br />
e as guerras Civis italia<strong>na</strong>s lhe espicaçavam a fibra poética. Se<br />
Galileu, septuagenário, se viu constrangido a repudiar de joelhos<br />
as suas convicções mais íntimas, assi<strong>na</strong>ndo a sentença iníqua que<br />
proibia a Terra de girar, não pensem que houve em tudo isso<br />
humilhação, pois ape<strong>na</strong>s teria experimentado uma ligeira contrarie<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong>s suas incli<strong>na</strong>ções. O fato de Carlota Cor<strong>da</strong>y partir <strong>da</strong><br />
sua aldeia para apunhalar Marat em Paris não significa que<br />
tivesse a convicção íntima de salvar a pátria de um seu presumido<br />
salvador, mas, ape<strong>na</strong>s, que tivesse uma exaltação cerebral. Se,<br />
durante as ce<strong>na</strong>s monstruosas do terror, viram-se mulheres que<br />
pediam ao carrasco a graça de morrer com os maridos, subindo<br />
firmes o patíbulo; se, em todos os tempos históricos, temos visto<br />
vítimas voluntárias oferecendo-se para salvar entes amados, ou<br />
com eles morrer, é tudo fruto de incli<strong>na</strong>ção <strong>na</strong>tural, ou resultado<br />
de certos movimentos cerebrais!<br />
Resumindo: os atos mais sublimados de virtude, de pie<strong>da</strong>de<br />
filial, devotamento, amor, grandeza d'alma, são oriundos de<br />
disposições orgânicas, ou de qualquer súbito desvio <strong>da</strong>s funções<br />
normais do cérebro. Se o Cristo subiu ao Calvário, não se considere<br />
isso o sacrifício extraordinário de um ser divino, mas simples<br />
movimento revolucionário de algumas moléculas imprudentes...<br />
É a escórias míseras, assim, que reduzem as mais ricas<br />
gemas <strong>da</strong> coroa que cinge a fronte <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de. Esta, contudo,<br />
não se deixa assim degra<strong>da</strong>r, não consentirá que mãos profa<strong>na</strong>s<br />
lhe arrebatem a sua auréola. Para sustentar esses feitos de<br />
valor, algo mais se tor<strong>na</strong> preciso do que uma agregação atômica<br />
de carbono ou de ferro. Algo mais que uma simples combi<strong>na</strong>ção<br />
molecular. Vade-retro, negadores insensatos, que pretendeis<br />
reduzir a fórmulas tão i<strong>na</strong>nes a definição do valor e <strong>da</strong> forças<br />
intelectuais. Predisposições orgânicas, incli<strong>na</strong>ções <strong>na</strong>turais,<br />
facul<strong>da</strong>des mentais, a própria educação, que representa tudo isso
senão palavras, desde que nos limitemos a manifestações <strong>da</strong><br />
matéria bruta e cega e neguemos a existência do espírito? Que<br />
representam a Química, a Física, a Mecânica, diante <strong>da</strong> vontade<br />
que dobra o mundo à sua lei e dirige a seu nuto a matéria obediente?<br />
Ousam sustentar que o valor moral, a potência intelectual,<br />
o afeto profundo dos corações, o entusiasmo <strong>da</strong>s almas fervorosas,<br />
a imensi<strong>da</strong>de do olhar inteligente, as pesquisas do pensamento<br />
que son<strong>da</strong> o espaço e faz esplender as leis universais, as<br />
meditações, as descobertas, as obras-primas <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong><br />
Poesia se explicam por transformações químicas – e quiméricas<br />
– <strong>da</strong> matéria em pensamento? Será que, para suportar essa energia<br />
anímica, não haja necessi<strong>da</strong>de de uma força sobera<strong>na</strong>, superior<br />
às alterações <strong>da</strong> substância, capaz de vencer todos os obstáculos,<br />
cuja influência se esten<strong>da</strong> muito além <strong>da</strong> vista física e seja<br />
mesmo a base desta força pensante, seu substrato, seu sustentáculo<br />
e condição de sua potência? Será que a virtude resi<strong>da</strong> noutro<br />
lugar que não <strong>na</strong> alma? – <strong>na</strong> alma independente, que as tergiversações<br />
do mundo material não atingem; <strong>na</strong> alma espiritual, que<br />
ouve a voz <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e caminha em reta para o seu ideal, sejam<br />
quais forem os óbices que se interponham no caminho, as dificul<strong>da</strong>des<br />
que preten<strong>da</strong>m interceptar-lhe a marcha triunfal?<br />
To<strong>da</strong> a Humani<strong>da</strong>de protesta contra essas fúteis alegações e o<br />
faz não já com aquele critério baseado no testemunho dos sentidos,<br />
suscetível de enga<strong>na</strong>r-se, como se dá, por exemplo, com o<br />
movimento dos astros, mas, com aquele senso íntimo que lhe<br />
vem <strong>da</strong> própria consciência.<br />
A <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, o clima, a <strong>na</strong>tureza dos alimentos, a educação,<br />
não bastam para constituir caracteres inteligentes e indômitos!<br />
No caráter humano a energia é, realmente, o poder central, o<br />
eixo <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>, o centro de gravi<strong>da</strong>de. Só ela dá impulsão aos atos.<br />
Essa força mental é a base mesma e a condição de to<strong>da</strong> a esperança<br />
legítima, e se é ver<strong>da</strong>de que a esperança é o perfume <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, o poder mental há de ser a raiz dessa planta preciosa.<br />
Ain<strong>da</strong> mesmo que as esperanças se desvaneçam e a criatura<br />
sucumba nos seus esforços, resta-lhe a satisfação de haver trabalhado<br />
para vencer e, sobretudo, que, longe de ser escrava <strong>da</strong><br />
matéria, manteve-se fiel às regras por vezes árduas, que a hones-
ti<strong>da</strong>de impõe. Haverá espetáculo mais belo e digno de elogios<br />
que o de um homem a lutar energicamente com a sorte, a demonstrar<br />
que lhe palpita no seio uma força imperecível, a triunfar<br />
pela grandeza de caráter e a prosseguir corajoso e resoluto,<br />
ain<strong>da</strong> “quando lhe fraquejam as per<strong>na</strong>s e sangram os pés”?<br />
Em sentido menos generalizado que o destes grandes fatos<br />
precedentes, temos visto exemplos particulares de vontades<br />
poderosas realizando milagres. Nossos desejos são, muitas vezes,<br />
os precursores <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de realização, bastando intensificálos<br />
para que a possibili<strong>da</strong>de se resolva em reali<strong>da</strong>de.<br />
Se de um lado as vontades de um Napoleão e de um Richelieu<br />
riscam dos dicionários a palavra impossível, por outro lado<br />
existem os vacilantes, a quem <strong>na</strong><strong>da</strong> se afigura possível.<br />
“Saiba querer energicamente – dizia Lame<strong>na</strong>is a um espírito<br />
enfermo –, fixe a sua vi<strong>da</strong> flutuante e não se deixe levar por<br />
todos os ventos, qual folha murcha desgarra<strong>da</strong> do tronco.”<br />
Pessoalmente, temos conhecido criaturas exalta<strong>da</strong>s, que, depois<br />
de terem estado com um pé <strong>na</strong> sepultura, recuaram de<br />
espanto ante o esplendor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que pretendiam abando<strong>na</strong>r e<br />
resolveram conservá-la. Estes exemplos são raros, por só possíveis<br />
quando o corpo não esteja tocado pela mão <strong>da</strong> morte. E, no<br />
entanto, existem. Um escritor inglês, Walker, autor de O Origi<strong>na</strong>l<br />
(e que não deixa de revelar uma certa origi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de em sua<br />
determi<strong>na</strong>ção) resolveu um dia vencer a enfermi<strong>da</strong>de que o<br />
acabrunhava, conseguindo pasmar bem <strong>da</strong>li por diante.<br />
Os fastos militares oferecem-nos o exemplo de vários chefes<br />
que, velhos ou enfermos, em ouvindo no instante decisivo <strong>da</strong><br />
batalha que seus coman<strong>da</strong>dos desertavam, atiravam-se para fora<br />
<strong>da</strong> barraca, os reuniam e conduziam à vitória, para logo após<br />
tombarem exaustos e exalarem o último suspiro.<br />
Não somente a vontade, mas também a imagi<strong>na</strong>ção domi<strong>na</strong> a<br />
matéria, contradiz o testemunho dos sentidos e origi<strong>na</strong>, às vezes,<br />
ilusões absolutamente alheias ao domínio físico.<br />
Expliquem como pode morrer um homem quando, com uma<br />
simples pica<strong>da</strong>, os médicos lhe sugerem que o sangue escorre <strong>da</strong><br />
veia rasga<strong>da</strong>. (Este e outros fatos estão judicialmente averigua-
dos.) Que nos expliquem como a imagi<strong>na</strong>ção cria um mundo de<br />
quimeras, que atuam ativamente no organismo e se refletem <strong>na</strong><br />
saúde.<br />
Ao demais, tão forte e autônoma é a vontade, as influências<br />
ambientes tão precárias se afirmam, para explicar a marcha <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> intelectual, que, as mais <strong>da</strong>s vezes, não <strong>na</strong> embaraçam e, ao<br />
contrário, nos induzem a proceder com energia tanto maior,<br />
quanto mais prementes são os obstáculos que se nos deparam.<br />
Todos quantos se votam a tarefas intelectuais dirão conosco que<br />
a fase em que mais operaram em sua carreira foi precisamente a<br />
de maiores dificul<strong>da</strong>des <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> prática e que a vontade é qual os<br />
rios que seguem destruindo e vencendo os acidentes do seu<br />
curso, não obedecem a barragens e até se encrespam e se precipitam<br />
mais impetuosos, quanto mais sóli<strong>da</strong> e alta a muralha que se<br />
lhes opõe. Quando sucesso e glória vêm coroar nossos trabalhos<br />
e após uma fai<strong>na</strong> longamente sustenta<strong>da</strong> a reação vem convi<strong>da</strong>rnos<br />
ao repouso, deixamo-nos efemi<strong>na</strong>r pelas delícias de Capua e<br />
já o fogo <strong>da</strong> inspiração não nos acende auroras <strong>na</strong> mente. O<br />
trabalho pessoal <strong>da</strong> vontade é a condição sine qua non do nosso<br />
progresso.<br />
Em um discrime acerca <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> vontade, a questão<br />
assaz longa e bal<strong>da</strong>mente controverti<strong>da</strong>, do livre arbítrio, não<br />
pode ficar sem o seu ponto de interrogação. Os adversários o<br />
negam absolutamente e proclamam, qual vimos e suficientemente<br />
comentamos, que to<strong>da</strong>s as realizações huma<strong>na</strong>s são o resultado<br />
necessário de causas ou ensejos emergentes à revelia de reflexão,<br />
e sem que esta lhes possa mu<strong>da</strong>r o curso. O pensamento não é<br />
mais que movimento físico <strong>da</strong> substância cerebral. Esse movimento<br />
procede do sistema nervoso, afetado, a seu turno, por um<br />
movimento exterior.<br />
O movimento pensante, por sua vez, reage sobre os nervos e<br />
músculos e determi<strong>na</strong> os atos. Em to<strong>da</strong> esta sucessão não há<br />
movimentos materiais transmitidos. Eu imagino de bom grado o<br />
encontro de um cristão com um discípulo de Holbach no desvão<br />
de uma dessas ofici<strong>na</strong>s, cuja porta<strong>da</strong> se protege com a clássica<br />
estatueta de Hipócrates travando o seguinte diálogo:
– É facílimo demonstrar que o pensamento é produto <strong>da</strong> matéria<br />
– dirá o holbaquiano –. Eis, por exemplo, uma locomotiva<br />
que se precipita veloz ao vosso encontro. A visão <strong>da</strong> locomotiva<br />
ou, para falar fisicamente, o raio luminoso partido dessa máqui<strong>na</strong><br />
atinge o vosso globo ocular e provoca um <strong>da</strong>do movimento<br />
distensivo do nervo ótico... Por intermédio desse mesmo nervo o<br />
movimento se transmite ao cérebro. Depois, o movimento cerebral,<br />
tor<strong>na</strong>ndo-se causal, por sua vez acio<strong>na</strong> os nervos correspondentes<br />
às per<strong>na</strong>s e estas entram a correr e a levar-vos fora <strong>da</strong><br />
linha. Evidente, pois, que em tudo isso não utilizastes uma<br />
partícula de liber<strong>da</strong>de qualquer. Vossa atitude derivou, necessariamente,<br />
<strong>da</strong> impressão visual <strong>da</strong> locomotiva.<br />
– Mas, perdão – retrucará o outro –, e se eu, por um capricho<br />
de suici<strong>da</strong>, aliás comum, tivesse deliberado permanecer <strong>na</strong> linha<br />
até que a locomotiva me esmagasse? Não praticaria dessarte um<br />
ato voluntário e de livre arbítrio?<br />
– Absolutamente. A não ser que houvesse enlouquecido e tivésseis<br />
premeditado e maturado o plano do suicídio, nem por<br />
isso ele deixaria de ser o resultado de causas predisponentes e,<br />
portanto, involuntário.<br />
– Admitamos que assim seja, quanto ao instante decisivo, de<br />
vez que matar-se a gente sem motivo seria imbecil. Mas, pergunto<br />
ain<strong>da</strong>: quanto ao gênero de morte, não poderia escolher o<br />
baraço, o veneno, a que<strong>da</strong> de uma torre, a bala, etc., em vez de<br />
me atravessar <strong>na</strong> linha férrea? Não terei, pelo menos, a liber<strong>da</strong>de<br />
de opção?<br />
– Desenga<strong>na</strong>i-vos. Se vos decidirdes pelo esmagamento, será<br />
porque existe próximo uma linha-férrea; ou por imagi<strong>na</strong>rdes ser<br />
esse um processo mais rápido, menos doloroso; ou por vos<br />
repug<strong>na</strong>rem outros gêneros de morte, etc.<br />
– Mas, de qualquer forma, sempre se conclui que escolhe...<br />
– Jamais! É que uns tantos movimentos se operaram no órgão<br />
<strong>da</strong> reflexão. Seria um causado pelo aspecto de uma força, outro<br />
pelo necrotério; pela imagem de um crânio partido, pela hipótese<br />
de um tiro falhado, <strong>da</strong>s angústias <strong>da</strong> asfixia e assim por diante. O<br />
movimento correspondente ao esmagamento pelo comboio seria,
então, o que se figurava menos desagradável e, domi<strong>na</strong>ndo os<br />
demais, decidiria <strong>da</strong> vossa sorte.<br />
– Mas, se eu tivesse, por exemplo, agravos de um irmão e, em<br />
lugar de postar-me <strong>na</strong> linha, fosse, por determi<strong>na</strong>ção dos movimentos<br />
correspondentes a tais agravos, levado a atirar sob as<br />
ro<strong>da</strong>s do comboio o corpo do meu irmão, tinha ou não a liber<strong>da</strong>de<br />
de o fazer? Seria responsável, ou não?<br />
– Não entremos em tricas jurídicas...<br />
– Pois muito bem: voltando ao nosso suicídio, dissestes que<br />
eu teria escolhido um gênero de morte determi<strong>na</strong>do por uma<br />
causa qualquer. Ora, isso é claro, pois de outro modo, para falar<br />
com franqueza, escolher sem causa determi<strong>na</strong>nte, é estúpido.<br />
Mas, como podem tais causas atuar materialmente?<br />
– Por um revés <strong>da</strong> sorte perdeis a tranqüili<strong>da</strong>de e o bem-estar.<br />
Habituado à fartura e a todos os regalos do corpo e do espírito,<br />
encontrais-vos de chofre <strong>na</strong> maior miséria. O constrangimento,<br />
as restrições do vosso organismo, a alteração de hábitos, atuam<br />
sobre o cérebro, que, ante a perspectiva de morte lenta e miserável,<br />
decide antecipá-la desde logo. São sempre, como vedes,<br />
movimentos físicos.<br />
– Mas... se forem desgostos de família, decepções amorosas,<br />
temor <strong>da</strong> desonra, causas de ordem moral, em suma?<br />
– Não existe ordem moral.<br />
– Já esperávamos por essa. E é assim que pretendeis <strong>na</strong><strong>da</strong><br />
afirmar sem provas? É assim que presumis interpretar fielmente<br />
o ensino <strong>da</strong> Ciência? Tomemos um último exemplo, vede bem!<br />
Eis aqui, em descanso, minha mão direita; <strong>na</strong><strong>da</strong> me obriga a<br />
erguê-la... Agora, contudo, quero fazê-lo e faço... Agi livremente,<br />
ou não?<br />
– Não. Houve uma razão determi<strong>na</strong>nte, qual a de provar o<br />
vosso alvedrio e suscita<strong>da</strong> pela vossa conversa anterior. Esta, por<br />
sua vez, origi<strong>na</strong>ndo-se de fatos precedentes, desde que <strong>na</strong>scestes.<br />
A vi<strong>da</strong> mental, como a material, ou por melhor dizer – única, não<br />
passa de uma sucessão necessária de causas e efeitos a entrosarem-se<br />
<strong>na</strong>turalmente.
– Vede ain<strong>da</strong>: tenho a mão suspensa. Agora, imagi<strong>na</strong>i que a<br />
movimento num círculo e a espalmo, chapa<strong>da</strong>, <strong>na</strong> vossa face.<br />
Tendes uma sensação de ardor, exaltamento imediato e já ruborizado,<br />
gritareis: que é isso? Mas, antes que possais reagir de fato,<br />
digo-vos:<br />
– De que vos admirais? Então, este sopapo não é conseqüência<br />
inevitável do movimento <strong>da</strong> mão, <strong>da</strong> fantasia desse lobo que<br />
opera acima do ouvido, junto <strong>da</strong>s zo<strong>na</strong>s protetoras <strong>da</strong> apófise<br />
mastóidea e <strong>da</strong> sutura occipto-parietal, etc.? E tal não se dá, de<br />
sucessão em sucessão, desde os primórdios do mundo?<br />
– Caro senhor, tendes <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de exemplos edificantes, que<br />
assaz me impressio<strong>na</strong>m. Tenho, para mim, que tudo isto não<br />
passa de movimento serial <strong>da</strong> dipotasshydorylhydroxami<strong>na</strong> em<br />
vosso lobo frontal e <strong>da</strong>do que, em conseqüência desses movimentos,<br />
tomásseis de uma faca para esfolar-me vivo, seria cômico<br />
que me formalizasse. Mas, para encerrar a questão, uma vez<br />
que preciso retirar-me, dizei-me: – não pensais com Spinosa que<br />
a nossa pretensa liber<strong>da</strong>de não passa de aparência e que, “tendo<br />
consciência de nossos atos, nem por isso lhes conhecemos a<br />
causa?”. Não admitis, com Hurne, que o “homem tem consciência,<br />
não do princípio de seus atos, mas tão somente dos atos em<br />
si, ape<strong>na</strong>s como fenômenos”? Todo o movimento cerebral nos<br />
vem do exterior, pelos sentidos e a excitação do cérebro; o<br />
pensamento é um fenômeno material, como o próprio pensamento.<br />
A vontade é expressão necessária de um estado cerebral<br />
produzido por influências exteriores. Não há vontade livre; não<br />
há concretização de vontade independente <strong>da</strong> soma de influências<br />
que a todo instante inspiram o homem e impõem, ain<strong>da</strong>, aos<br />
mais poderosos limites infranqueáveis”.<br />
Assim falaria, porque assim falam os discípulos de Holbach.<br />
No parecer deste 85 , “a liber<strong>da</strong>de não é mais que a necessi<strong>da</strong>de<br />
encerra<strong>da</strong> dentro de nós. Não há diferença entre o homem que se<br />
atira voluntariamente e o que é atirado de uma saca<strong>da</strong> abaixo,<br />
senão que ao primeiro a impulsão lhe vem de dentro e ao segundo<br />
chega de fora do seu maquinismo”.<br />
Entretanto, há casos peremptórios, nos quais pensamos poder<br />
constatar o livre arbítrio, como, por exemplo, <strong>na</strong> atitude de um
homem que, possuído de grande sede, repele dos lábios o copo<br />
d'água, logo que se lhe diga que esta contém veneno. Mas, temos<br />
o direito de supor que esse homem assim proce<strong>da</strong> livremente? A<br />
vontade, ou, melhor, o cérebro se encontra em estado comparável<br />
à bola que, recebendo um impulso em certa direção, desta se<br />
desvia logo que intervenha uma força maior que a primeira.<br />
Holbach nos dá uma fórmula aritmética <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de: As<br />
ações do homem são sempre um misto de energia própria e dos<br />
seres que sobre ele atuam e o modificam 86 .<br />
Respondemos a essa negação integral <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de com uma<br />
doutri<strong>na</strong> que, sem nos investir de um arbítrio absoluto, de vez<br />
que as influências exteriores atuam constantemente para atenuar<br />
esse absoluto, nem por isso deixa de nos <strong>da</strong>r uma liber<strong>da</strong>de real,<br />
uma responsabili<strong>da</strong>de íntima, um livre arbítrio incontestável. O<br />
assunto é mais complexo do que parece aos profanos e temos<br />
uma permanente manifestação de sua dificul<strong>da</strong>de <strong>na</strong> sucessão<br />
secular <strong>da</strong>s crenças religiosas, que oscilam entre o fatalismo e a<br />
graça divi<strong>na</strong>. Maomet arvorou o estan<strong>da</strong>rte do fatalismo; Calvino<br />
só vê a predesti<strong>na</strong>ção, enquanto Lutero consagra o livre arbítrio<br />
absoluto. A ver<strong>da</strong>de, pensamos, está entre os extremos. O número<br />
de partes teológicas concernentes à graça divi<strong>na</strong> é incontável e<br />
compreende-se que, nesta época, é tempo perdido o que se<br />
emprega nestas elucubrações. Contudo, é sempre útil saber o que<br />
devemos pensar <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de. Nós, pelo menos, assim o consideramos<br />
com Spurzheim, quando a respeito escreveu aquelas<br />
pági<strong>na</strong>s judiciosas, quando assim pondera o controvertido assunto<br />
87 .<br />
A palavra liber<strong>da</strong>de é emprega<strong>da</strong> num sentido mais ou menos<br />
lato. Há filósofos que atribuem ao homem uma liber<strong>da</strong>de ilimita<strong>da</strong>.<br />
Ao seu ver, o homem cria, por assim dizer, a sua própria<br />
<strong>na</strong>tureza, adquire as facul<strong>da</strong>des que deseja e age independente de<br />
qualquer lei. Uma tal liber<strong>da</strong>de está em contradição com um ser<br />
criado. Tudo quanto possam dizer a seu favor não passará de<br />
declamações enfáticas, desprovi<strong>da</strong>s de senso e de vendici<strong>da</strong>de.<br />
Outros há que admitem uma liber<strong>da</strong>de absoluta, em virtude<br />
<strong>da</strong> qual o homem age sem motivo. Isso, porém, é presumir efeito<br />
sem causa, é isentar o homem <strong>da</strong> lei de causali<strong>da</strong>de. Seria uma
liber<strong>da</strong>de contraditória de si mesma, podendo-se proceder num<br />
mesmo caso bem ou mal, mas sempre sem motivo. Inúteis seriam,<br />
então, todos os institutos de fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de beneficente, individual<br />
ou coletiva. De que serviriam as leis, a Religião, as pe<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des<br />
e recompensas, se <strong>na</strong><strong>da</strong> determi<strong>na</strong>sse o homem? Por que<br />
esperar de outrem amizade e fideli<strong>da</strong>de, antes que ódio e perfídia?<br />
Promessas, juramentos, votos, tudo ilusão! Uma tal liber<strong>da</strong>de<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> tem de real, não passa de especulativa e absur<strong>da</strong>.<br />
Precisamos, ao contrário, reconhecer uma liber<strong>da</strong>de acorde<br />
com a <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>, liber<strong>da</strong>de que a legislação pressupõe,<br />
liber<strong>da</strong>de racioci<strong>na</strong><strong>da</strong>.<br />
Três são as condições fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> legítima liber<strong>da</strong>de: em<br />
primeiro lugar, é preciso que a criatura possa escolher entre<br />
vários motivos. Seguindo o motivo mais forte, ou agindo só por<br />
prazer, já se não opera com liber<strong>da</strong>de. O prazer não é mais que<br />
uma falsa aparência de liber<strong>da</strong>de. A ovelha que mastiga a erva<br />
com prazer não está exercendo um ato livre.<br />
Obedecendo a um desejo mais forte, também o animal, quanto<br />
o homem, não pratica livremente, tampouco. A condição<br />
precípua <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de é a inteligência, ou a facul<strong>da</strong>de de conhecer<br />
e escolher os motivos. Quanto mais ativa a inteligência, mais<br />
ampla a liber<strong>da</strong>de. Os idiotas <strong>na</strong>tos, as crianças até uma certa<br />
i<strong>da</strong>de, têm, às vezes, desejos muito enérgicos, mas ninguém os<br />
considera livres, visto não possuírem inteligência bastante para<br />
distinguir o falso do ver<strong>da</strong>deiro. Os homens mais bem educados<br />
e os mais inteligentes são os de quem, mais que dos ignorantes,<br />
deploramos as faltas. À medi<strong>da</strong> que se elevam <strong>na</strong> série <strong>da</strong>s<br />
facul<strong>da</strong>des intelectivas, os animais vão-se tor<strong>na</strong>ndo mais livres e<br />
modificam mais individualmente os seus atos, de acordo com as<br />
circunstâncias exteriores e com as lições de sua prévia experiência.<br />
Se empregamos a violência para impedir o cão de perseguir<br />
a lebre, ele se lembrará <strong>da</strong>s panca<strong>da</strong>s que o aguar<strong>da</strong>m e, árdego e<br />
trêmulo ao império dos próprios desejos, não deixará de ceder. O<br />
homem, superior a todos os seus irmãos <strong>da</strong> escala zoológica, é,<br />
por sua mesma <strong>na</strong>tureza, o ser que goza de liber<strong>da</strong>de no grau<br />
mais eminente. Só ele procura encadear efeitos e causas, comparar<br />
melhor o presente e o passado, e <strong>da</strong>í tirar conclusões para o
futuro. Pesa as razões, detém-se <strong>na</strong>s que lhe parecem preferíveis,<br />
conhece a tradição. Seu raciocínio decide e perfaz a vontade<br />
esclareci<strong>da</strong>, muitas vezes contrariamente aos seus desejos.<br />
Uma última condição <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de é a influência <strong>da</strong> volição<br />
sobre os instrumentos que devam operar suas ordens pessoais. O<br />
homem não é responsável por desejo ou por facul<strong>da</strong>des afetivas<br />
dele independentes. A responsabili<strong>da</strong>de individual começa com a<br />
reflexão e com a possibili<strong>da</strong>de de proceder voluntariamente. No<br />
estado de saúde os instrumentos operatórios subordi<strong>na</strong>m-se à<br />
influência <strong>da</strong> vontade. A fome é involuntária, mas, se em sentila,<br />
eu me abstiver de comer, exerço a influência <strong>da</strong> minha vontade<br />
sobre os instrumentos do movimento voluntário. A cólera é<br />
involuntária, mas eu não sou forçado a maltratar quem me provoque,<br />
só porque a minha vontade influi em meus músculos.<br />
Perdido o domínio dessa influência, então sim, o homem já não é<br />
livre. É o que amiúde sucede com os alie<strong>na</strong>dos, que experimentam<br />
desejos, reconhecem a sua inconveniência, chegam a maldizê-los,<br />
mas não têm a força de restringir os movimentos involuntários,<br />
chegando mesmo, algumas vezes, a pedir que lhos<br />
embarguem.<br />
A liber<strong>da</strong>de moral é a base mesma <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e se ela não<br />
passa de ilusão, todo o gênero humano, tanto as <strong>na</strong>ções incipientes<br />
como as mais civiliza<strong>da</strong>s, que cultivam a Ciência e gover<strong>na</strong>m<br />
a Matéria, bem como os povos remotos, to<strong>da</strong> a Humani<strong>da</strong>de, –<br />
repetimo-lo – ter-se-ia deixado iludir pelo mais colossal dos erros<br />
que ain<strong>da</strong> existiu, depois de envere<strong>da</strong>r pela sen<strong>da</strong> mais falsa e<br />
injusta que possamos imagi<strong>na</strong>r. Mas... que dizemos: – injusta?<br />
Neste sistema, essa palavra <strong>na</strong><strong>da</strong> significa e visto que o bom e o<br />
mau não existem; visto não haver ordem moral, claro é que to<strong>da</strong>s<br />
as palavras concernentes à descrição dessa ordem, todos os<br />
pensamentos e julgamentos carecem de sentido. E, contudo, a<br />
menos que abstraiamos a própria consciência, não podemos anuir<br />
a semelhantes conclusões.<br />
Quaisquer que sejam as conclusões teóricas a que cheguem os<br />
lógicos <strong>na</strong> questão do livre arbítrio – dizia Samuel Smiles –,<br />
todos sentimos que somos praticamente livres de escolher entre o<br />
bem e o mal. Não somos o seixo que, lançado <strong>na</strong> torrente, ape<strong>na</strong>s
pode seguir o curso <strong>da</strong>s águas. Ao contrário, sentimos em nós a<br />
força do <strong>na</strong><strong>da</strong>dor, que pode escolher a direção convinhável, lutar<br />
contra a corrente, ir mais ou menos aonde lhe praza. Nenhum<br />
constrangimento absoluto nos empece a vontade. Sentimos e<br />
sabemos, no concernente aos nossos atos, que não somos encandeados<br />
por qualquer espécie de magia. To<strong>da</strong>s as nossas aspirações<br />
para o bem e para o belo ficariam paralisa<strong>da</strong>s se pensássemos<br />
de modo diverso. Todos os negócios, nossa conduta <strong>na</strong> vi<strong>da</strong>,<br />
regime doméstico, contratos sociais, instituições públicas, tudo,<br />
enfim se baseia <strong>na</strong> noção prática do livre-arbítrio. E sem ele,<br />
onde estaria a responsabili<strong>da</strong>de? De que serviria ensi<strong>na</strong>r, aconselhar,<br />
predicar, reprimir, punir? Para que leis, se não houvesse<br />
uma crença universal como o próprio fato universal, de que dos<br />
homens e de sua determi<strong>na</strong>ção depende conformar-se ou não? O<br />
homem que melhor evidencia seu valor moral é o que se observa<br />
a si mesmo, dirige as suas paixões, vive conforme a regra que se<br />
impôs, estu<strong>da</strong> suas aptidões e suas falhas.<br />
Eis, ver<strong>da</strong>deiramente, o homem: sua grandeza está <strong>na</strong> sua liber<strong>da</strong>de.<br />
Não fora livre o homem, não se lhe permitiria ter fome<br />
e sede, nem comer nem beber; nem senhorear, em coisa alguma,<br />
as tendências do seu corpo. A ordem social não se teria constituído.<br />
Mas nós não temos necessi<strong>da</strong>de de prova alguma exterior para<br />
afirmar a nossa liber<strong>da</strong>de. Ninguém melhor o sabe do que a<br />
nossa própria consciência. Ela é, aliás, a única coisa que possuímos<br />
completamente nossa, e a boa ou má direção que lhe <strong>da</strong>mos,<br />
em definitivo, só depende de nós. Nossos hábitos e pendores não<br />
são nossos amos, mas servos. Mesmo quando com eles transigimos,<br />
a consciência adverte-nos de que poderíamos resistir e que,<br />
para vencê-los, não careceríamos de fortaleza superior às nossas<br />
possibili<strong>da</strong>des, se fizéssemos finca-pé. É pelo emprego livre <strong>da</strong><br />
razão que nos fazemos o que somos. Se ela ape<strong>na</strong>s propende para<br />
o sensualismo é que a vontade, forte e demoníaca, subjuga e<br />
escraviza a inteligência. Bem dirigi<strong>da</strong>, porém, essa mesma<br />
vontade compara-se a uma rainha, tendo por ministros as facul<strong>da</strong>des<br />
intelectuais e presidindo ao maior desenvolvimento compatível<br />
com a <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>.
Este pretenso ateísmo científico tomou o encargo de rebaixar<br />
e destruir todos os caracteres <strong>da</strong> grandeza huma<strong>na</strong>. Não pode,<br />
contudo, impedir a alma de provar o seu valor, de assomar a<br />
matéria, construindo-se de si mesma com os elementos do seu<br />
meio e do seu clima.<br />
Ele, o materialismo, não percebe que se a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong><br />
fosse resultado de influências fatalísticas <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, a<br />
criança e o selvagem, sob o governo quase exclusivo dessas<br />
forças, seriam mais sensatos, mais íntegros que o sábio, o filósofo,<br />
o artista. Uma tal conseqüência destrói, por si só, a teoria dos<br />
nossos adversários.<br />
Moleschott ri-se inconsidera<strong>da</strong>mente do químico espiritualista<br />
Liebig, a propósito desta assertiva do eminente pensador: “O<br />
homem tem umas tantas necessi<strong>da</strong>des que radicam <strong>na</strong> sua <strong>na</strong>tureza<br />
espiritual e não podem ser satisfeitas pelas forças físicas,<br />
necessi<strong>da</strong>des que são as diversas condições de suas funções<br />
intelectuais.” É claro – responde Moleschott – que estas palavras<br />
não têm sentido. Pode a ambição huma<strong>na</strong> imagi<strong>na</strong>r um fim mais<br />
orgulhoso que o decorrente de sua própria elevação a necessi<strong>da</strong>des<br />
impossíveis de serem provi<strong>da</strong>s por forças <strong>na</strong>turais?<br />
Certo, o autor de A Circulação <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> jamais sentiu essas<br />
aspirações superiores à <strong>na</strong>tureza física e às forças que a regem.<br />
Nunca contemplou o ideal do bem e do belo, jamais exorbitou <strong>da</strong><br />
esfera <strong>da</strong>s funções corporais, seja <strong>da</strong> assimilação e desassimilação<br />
orgânicas. Se assim é, nós o lastimamos e nos contristamos<br />
de saber que há, no mundo pensante, criaturas para as quais o<br />
mundo intelectual permanece completamente fechado.<br />
Mas, dirijo-me a vós, espíritos pensantes que aqui me ledes,<br />
sejais quem fordes, homem ou mulher, criança ou velho, moça<br />
ou rapaz: Concor<strong>da</strong>is em que todos os anseios d'alma, todos os<br />
requisitórios do coração, to<strong>da</strong>s as aspirações <strong>da</strong> mente não ten<strong>da</strong>m<br />
a fins estranhos e transcendentes às transformações <strong>da</strong><br />
matéria? Acreditais que no círculo <strong>da</strong> sensação e do sensualismo<br />
se encerrem to<strong>da</strong>s as tendências <strong>da</strong> nossa perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de? Se já<br />
amastes <strong>na</strong> aurora <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, se já sonhastes os sonhos primaveris,<br />
se o céu de vossa juventude já vos deixou entrever, ain<strong>da</strong> que por<br />
um instante, uma estrela ver<strong>da</strong>deiramente celestial em sua auréo-
la atrativa; dizei-me se é possível aceitar, como expressão de<br />
reali<strong>da</strong>de, a palavra de Stendhal, quando diz que o amor não é<br />
mais que um contacto de duas epidermes?<br />
Se tendes estu<strong>da</strong>do as obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, o céu cujos mundos<br />
incontáveis gravitam harmônicos no âmbito <strong>da</strong> luz e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a<br />
Terra, a Terra em cuja superfície se conjugam e se desdobram de<br />
concerto as manifestações <strong>da</strong> força vital, a atmosfera, cujas leis<br />
periódicas regulam o regime geral; as plantas, or<strong>na</strong>mento e<br />
perfume do solo, base do edifício <strong>da</strong>s existências; os seres vivos,<br />
cuja estrutura revela, a ca<strong>da</strong> passo, a maravilhosa a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong>s<br />
funções aos órgãos; se tendes estu<strong>da</strong>do as lições grandiosas e o<br />
mecanismo geral desta <strong>Natureza</strong> tão rica e tão fecun<strong>da</strong>, podereis<br />
recusar-vos a sau<strong>da</strong>r do uno de vossa alma a Inteligência suprema<br />
com tamanho império manifesta<strong>da</strong> sob o véu <strong>da</strong> matéria? Se,<br />
no silêncio eloqüente <strong>da</strong>s noites estrela<strong>da</strong>s, vossa alma se deixou<br />
arrebatar num vôo olímpico a esses focos de vi<strong>da</strong> desconheci<strong>da</strong>;<br />
se já fostes alguma vez levado a perguntar quais possam ser as<br />
formas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> futura, e se já houverdes pressentido que o idealismo<br />
de nossas aspirações não se realizou neste mundo, porventura<br />
não estremecestes à idéia do infinito e <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de que nos<br />
aguar<strong>da</strong>m? Se tendes presenciado as obras sublimes de devotamento<br />
e cari<strong>da</strong>de, que espalham o bálsamo <strong>da</strong> consolação nos<br />
espíritos sofredores; que levam os proscritos <strong>da</strong> Terra a esperar<br />
uma justiça imanente; que sustentam o passo vacilante dos<br />
feridos e que se consagram de corpo e alma ao alívio <strong>da</strong>s misérias<br />
terre<strong>na</strong>s; – dizei-me: não tendes concluído que o sensualismo<br />
e o egoísmo indiferente não são tudo o que encerra o coração<br />
humano? Se sentistes, alguma vez, a magia <strong>da</strong> música deixandovos<br />
embalar por essas obras-primas, cujos autores ilustres têm<br />
pontilhado de encantos a travessia oceânica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, dizei-me: –<br />
não vos parece que há fases acústicas, harmonias que o ouvido<br />
não entendeu e <strong>da</strong>s quais as melodias terre<strong>na</strong>s não representam<br />
mais que um eco amortecido? Se tendes vivido a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma,<br />
enfim, essa vi<strong>da</strong> entrecorta<strong>da</strong> de êxtases e angústias, sensível e<br />
domi<strong>na</strong>dora ao mesmo tempo; – vi<strong>da</strong> que se conturba com as<br />
mágoas do coração e sabe, to<strong>da</strong>via, calcar a pés os prejuízos<br />
vulgares e domi<strong>na</strong>r triunfante os <strong>na</strong><strong>da</strong>s mun<strong>da</strong>nos; se tendes
caminhado de fronte ergui<strong>da</strong>, fitando o céu, não compreendestes<br />
que a inteligência ultrapassa a matéria, que a alma tem necessi<strong>da</strong>des<br />
extracorpóreas e que a nossa digni<strong>da</strong>de moral não conhece<br />
a poeira <strong>da</strong>s praças públicas, onde os saltimbancos divertem as<br />
turbas vadias com jogos de Física recreativa?<br />
Se, qual temos visto, a Ciência do mundo físico perde, <strong>na</strong> hipótese<br />
<strong>da</strong> inexistência de <strong>Deus</strong>, a sua base e a sua luz, para<br />
resvalar <strong>na</strong> incapaci<strong>da</strong>de absoluta de explicar razoavelmente a<br />
construção do Universo, a ciência do mundo intelectual perde,<br />
maiormente, a sua razão de ser. Esvanecem-se o ver<strong>da</strong>deiro, o<br />
belo, o bem. Em que báratros tenebrosos mergulham, então, os<br />
velhos princípios <strong>da</strong> Filosofia, <strong>da</strong> Estética, <strong>da</strong> Moral?<br />
A meditação <strong>da</strong>s eter<strong>na</strong>s ver<strong>da</strong>des já não passará de um sonho.<br />
O sábio, o pensador e o artista estrebucham <strong>na</strong> treva e no caos?<br />
Em vão se pretenderá que a Arte possa colimar outros fins<br />
que não sejam a representação de formas agradáveis? Escultura,<br />
música, pintura, ape<strong>na</strong>s visam deleitar-nos os sentidos? Erro<br />
profundo! Qual a beleza, que a nossa alma contempla <strong>na</strong> estatuária,<br />
no desenho, <strong>na</strong> harmonia? Qual a magia que nos atrai através<br />
<strong>da</strong>s luzes e sombras dos ensaios perecíveis? Não será a beleza<br />
ideal, a ver<strong>da</strong>de misteriosamente oculta, <strong>da</strong> qual temos sede,<br />
procurando vê-la em tudo? Não será o ideal puro, translúcido,<br />
soberano, ímã possante, sedutor irresistível de inteligência?<br />
A Humani<strong>da</strong>de não se elevou acima <strong>da</strong>s outras espécies terre<strong>na</strong>s<br />
senão por sua constante ascensão para o ideal, para a ver<strong>da</strong>de<br />
espiritual. A Arte seria um mito, um engodo, um exercício<br />
mecânico, um <strong>na</strong><strong>da</strong>, se não radicasse <strong>na</strong> beleza suprema. Nisto –<br />
nisto sobretudo – é que o homem se afirma por predicados<br />
estranhos à matéria e confi<strong>na</strong>ntes com a esfera do Infinito. Nisto,<br />
sobretudo, é que o homem entra em comunhão com os esplendores<br />
infinitos e os fixa, para sempre, em louvores imortais...<br />
Tenho diante de mim a poeira vil, a matéria i<strong>na</strong>nima<strong>da</strong>, um<br />
fragmento de argila!
Minha alma, inspira<strong>da</strong>, concebeu o tipo visível de uma virtude<br />
sobre-huma<strong>na</strong>, a manifestação do heroísmo, do devotamento,<br />
do amor, <strong>da</strong> adoração... Argila! terra colhi<strong>da</strong> <strong>na</strong>lgum fosso<br />
úmido, em ti vou transfundir a inspiração de minha alma... Em ti<br />
vai encar<strong>na</strong>r-se a minha inteligência! Em ti vai manifestar-se e<br />
esplender o tipo sublime que o meu espírito contempla! Em ti<br />
vão fremir as palpitações do meu pensamento! E enquanto meu<br />
despojo miserando, caído em inominável ignomínia, vai sumir-se<br />
e afastar-se no tempo e <strong>na</strong> História, dentro ain<strong>da</strong> de quarenta<br />
séculos, os olhos que te contemplarem em ti verão meu pensamento!<br />
Milhões de corações terão palpitado e palpitarão ain<strong>da</strong>,<br />
em uníssono, com o meu... E diante de ti as almas se incli<strong>na</strong>rão<br />
para sau<strong>da</strong>r a virtude divi<strong>na</strong>, que te deu uma auréola imperecível!<br />
O apanágio mais glorioso <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong> não passaria de<br />
grosseiro engodo, se prevalecer pudesse a teoria mecânica do<br />
Universo. A Ver<strong>da</strong>de, o Bem, o Belo desaparecem nela. Em vão<br />
os adversários nos alegam sua conduta exemplar, i<strong>na</strong>tacável.<br />
No caso, não se trata <strong>da</strong>s conseqüências <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> pessoal e<br />
sim <strong>da</strong>s de sua doutri<strong>na</strong>. Pois bem: logicamente, sem contradizer-se<br />
a si mesmo, não pode o ateísmo constituir-se em moral.<br />
“O materialismo – diz judiciosamente Patrício Larroque – para<br />
mais <strong>na</strong><strong>da</strong> presta, senão para tirar à vi<strong>da</strong> huma<strong>na</strong> a sua gravi<strong>da</strong>de<br />
e o seu valor, <strong>da</strong>ndo razão aos seres miseráveis, cuja habili<strong>da</strong>de<br />
consiste em explicar, com a maior segurança possível, as misérias<br />
e fraquezas do próximo.”<br />
Queremos lealmente acreditar que todos os materialistas, em<br />
o serem, não se tornem só por isso corrompidos. Não nos fazemos<br />
eco dos que os argúem de “viverem mergulhados <strong>na</strong> embriaguez<br />
e no deboche”. Conhecemos homens e mulheres cuja vi<strong>da</strong><br />
pode apontar-se como modelo de morali<strong>da</strong>de, embora não crendo<br />
<strong>na</strong> existência de <strong>Deus</strong> e <strong>da</strong> alma. Não, não podemos deixar de<br />
confessar que, no seu próprio sistema, essa honesti<strong>da</strong>de é ape<strong>na</strong>s<br />
uma questão de temperamento e que, justos e bons, conscienciosos<br />
e benevolentes, afetuosos e moralizados, em suma, se praticam<br />
a cari<strong>da</strong>de, se não sacrificam ao bezerro de ouro, se preferem<br />
a integri<strong>da</strong>de e a pureza de caráter à fortu<strong>na</strong> ilícita, não é
devido ao seu sistema e sim a uma convicção íntima, que os guia<br />
a seu talante e protesta contra as suas palavras e a sua filosofia.<br />
Sim: não são moralizados por serem cépticos, mas, a despeito de<br />
o serem.<br />
Pois, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, que significa uma morali<strong>da</strong>de sem base,<br />
sem motivo e sem fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de?<br />
Certo, não duvi<strong>da</strong>mos possa haver uma moral independente<br />
do Catolicismo, mesmo do Cristianismo e, em geral, de qualquer<br />
confissão religiosa. O que não cremos é <strong>na</strong> moral independente<br />
<strong>da</strong> idéia de <strong>Deus</strong>. Se só existissem as ver<strong>da</strong>des de ordem física,<br />
se místicas fossem as que havemos como de ordem moral, a<br />
própria moral não passaria de utopia e a honesti<strong>da</strong>de de mera<br />
tolice.<br />
Outras propensões existem, porém, que não procedem <strong>da</strong> matéria.<br />
“O homem que passa os dias sofrivelmente trabalhando, ou,<br />
antes, que não consome todo o tempo em prover a existência<br />
física – diz um grande astrônomo 88 – experimenta necessi<strong>da</strong>des<br />
<strong>na</strong>s quais não intervém os sentidos, pe<strong>na</strong>s e gozos, que <strong>na</strong><strong>da</strong> têm<br />
de comum com as misérias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. E, uma vez manifesta<strong>da</strong>s<br />
com certa intensi<strong>da</strong>de, ele não mais pode confundi-las com os<br />
apetites animais. Sente-as como de outra espécie e de uma ordem<br />
mais eleva<strong>da</strong>. Mas isto não é tudo. O homem não é sensível<br />
somente aos jogos <strong>da</strong> imagi<strong>na</strong>ção, às suavi<strong>da</strong>des dos costumes<br />
sociais, mas sim especulativo por <strong>na</strong>tureza. Não contempla o<br />
mundo e tudo que o rodeia, passiva e admirativamente, como se<br />
fossem fenômenos seriados e ape<strong>na</strong>s dignos de interesse pelas<br />
relações que mantêm com ele. Ao revés, considera-os como<br />
sistematizados, dispostos e coorde<strong>na</strong>dos com desígnio. A harmonia<br />
<strong>da</strong>s partes, a sagaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções, causam-lhe a mais<br />
viva admiração. Assim, é levado à conjetura de uma potência, de<br />
uma inteligência superior à sua e capaz de produzir e conceber,<br />
quanto se lhe depara <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Infinita, pode chamar a essa<br />
potência, de vez que lhe não percebe limite <strong>na</strong>s obras com que se<br />
lhe manifesta. Quanto mais exami<strong>na</strong>, observa, in<strong>da</strong>ga, maiores<br />
magnificências descobre e mais grandezas lobriga.
“Vê que tudo o que lhe pode facultar a mais longa existência<br />
e a maior inteligência, já como fruto de experiência própria, já<br />
como patrimônio de esforço alheio, só pode conduzi-lo aos<br />
limites <strong>da</strong> Ciência. Como estranhar, então, que um ser assim<br />
constituído comece por agasalhar a esperança e acabe convicto<br />
de que o seu princípio espiritual não acompanhe as vicissitudes<br />
<strong>da</strong> carcaça, que lhe sobreviva ao desaparecimento? Como admirar<br />
se persua<strong>da</strong> ele, que, longe de extinguir-se, passará a uma<br />
vi<strong>da</strong> nova, <strong>na</strong> qual, liberto dos mil entraves que aqui lhe tolhem o<br />
vôo, dotado de sentidos mais sutis, de facul<strong>da</strong>des mais altas, se<br />
dessedentará <strong>na</strong> fonte de sabedoria que tão sequioso buscara <strong>na</strong><br />
Terra?”<br />
A hipótese materialista exclui to<strong>da</strong>s estas grandezas morais,<br />
to<strong>da</strong>s estas altas aspirações e consoladoras esperanças. Nossos<br />
adversários, porém, tomam facilmente o seu partido: “Façamos<br />
abstração – diz o autor de Força e Matéria – de to<strong>da</strong> questão de<br />
moral e de utili<strong>da</strong>de. A <strong>Natureza</strong> não existe para a Religião, nem<br />
para a Moral, nem para os homens. Não seríamos ridículos –<br />
vejam bem, ridículos – se fôssemos chorar como crianças só<br />
porque as nossas torra<strong>da</strong>s têm pouca manteiga?” Que tal vos<br />
parecem as... torra<strong>da</strong>s? Pelo que nos toca, confessamos não<br />
compreender o gracejo em assunto de tanta relevância.<br />
Diante dos grandes fatos de ordem moral e intelectual, parece-nos<br />
haver perdido todo o senso <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de para subordi<strong>na</strong>r<br />
estas virtudes, as “virtudes”, aos movimentos <strong>da</strong> matéria. Como<br />
atribuir a esse predomínio, com Moleschott, que o “homem deva,<br />
em parte, o lugar privilegiado <strong>na</strong> escala zoológica, à facul<strong>da</strong>de de<br />
alimentar-se tanto de vegetais como de carne”? O mesmo vale<br />
dizer, com Helvétius, que “o homem só deve à conformação <strong>da</strong>s<br />
mãos a superiori<strong>da</strong>de que desfruta em relação aos outros animais”.<br />
Como admitir que Büchner, apregoando a matéria como base<br />
de to<strong>da</strong> a força espiritual, de to<strong>da</strong> a grandeza terrestre e huma<strong>na</strong><br />
– que aquele mesmo que reconheceu a igual<strong>da</strong>de do espírito e <strong>da</strong><br />
matéria e julgue honroso o título de materialista, pois ao materialismo<br />
é que o mundo deve a sua grandeza? 89<br />
Como afi<strong>na</strong>r com Spencer nestas declarações:
“O que denomi<strong>na</strong>mos quanti<strong>da</strong>de de consciência é determi<strong>na</strong>do<br />
pelos elementos constitutivos do sangue; vemo-lo claramente<br />
<strong>na</strong> exaltação que se dá quando introduzimos <strong>na</strong> circulação<br />
uns quantos compostos químicos, como sejam o álcool e os<br />
alcalóides vegetais.” Como Compartilhar <strong>da</strong> opinião de Litré ao<br />
declarar que “a vontade é inerente à substância cerebral, assim<br />
como a contratili<strong>da</strong>de o é dos músculos, e que o livre arbítrio não<br />
é mais que simples mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de do trabalho cerebral”? 90<br />
Como reduzir a proporções <strong>da</strong> Química e <strong>da</strong> Física orgânicas,<br />
a simples fenômenos de nutrição e assimilação, essas realizações<br />
magníficas do gênio e <strong>da</strong> virtude?<br />
Termi<strong>na</strong>ndo este capítulo, volvamos ao objetivo com que o<br />
encetamos e constatemos a inconseqüência desses filósofos que<br />
imagi<strong>na</strong>m, arrogantemente, ter lançado uma ponte entre o espírito<br />
e a matéria, sem perceberem que ape<strong>na</strong>s lançaram seixos no<br />
abismo. Descrevem eles o movimento atômico <strong>da</strong>s substâncias,<br />
metamorfoses de combi<strong>na</strong>ções, processos de assimilação e<br />
desassimilação, e pretendem que essas transformações que levam<br />
do pulmão ao cérebro uma molécula de ferro, são de molde a<br />
explicar claramente a formação do pensamento. Isto posto, não<br />
temem acrescentar: – “Temos provas tão certas desta ver<strong>da</strong>de,<br />
que uma profissão de fé materialista não deve ser considera<strong>da</strong><br />
ape<strong>na</strong>s como premissa de grande alcance, nem como arroja<strong>da</strong><br />
profecia, mas como fruto de uma convicção profun<strong>da</strong>mente<br />
enraiza<strong>da</strong>” 91 .<br />
Eis o que se pode chamar ousadia! Sabei assim todos vós, ó<br />
filósofos e moralistas! que o homem é manufatura do seu alimento,<br />
<strong>da</strong> sua paterni<strong>da</strong>de, do seu clima, do seu solo e <strong>da</strong> sua<br />
educação. Se afagais o nobre intuito de colaborar para a melhoria<br />
huma<strong>na</strong>, não é, precisamente, a graduação do nível moral e<br />
intelectual do indivíduo o que vos deve preocupar, e sim de<br />
como vive e como se alimenta. Se ele tem muito ferro (já que o<br />
ferro é uma <strong>da</strong>s amofi<strong>na</strong>ções maiores <strong>da</strong> época e as moças muito<br />
necessitam dele; (Carta 11ª) se tem fósforo que baste (já que<br />
sangue, cérebro, ovos e esperma, to<strong>da</strong>s as partículas do corpo,<br />
em suma, que ocupam os mais altos postos <strong>na</strong> escala <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>
devem à gordura fosfora<strong>da</strong> 92 o seu caráter mais essencial); (Carta<br />
11ª) se tem bastante sal no espírito e açúcar no coração...<br />
A questão fun<strong>da</strong>mental é alimentar-se bem e estabelecer uma<br />
conveniente harmonia entre os regimes vegetal e animal. Escolhamos<br />
então, nos elementos deste último, os mais ricos de<br />
substâncias nutrientes e, sobretudo, os que primam por abundância<br />
de fósforo, sem chegar, claro, aos extremos de engolir cabeças<br />
do dito.<br />
Mas, à batata, ao arroz, à cenoura, ao <strong>na</strong>bo, às verduras, prefiramos<br />
o feijão, as ervilhas e lentilhas. Eis os três restauradores<br />
do espírito! e eis como se escreve a respeito desses beneméritos<br />
legumes.<br />
Ouçamos esta tira<strong>da</strong>: “As ervilhas, o feijão e as lentilhas continuam<br />
a florescer em nossos olhos, elas contêm aproxima<strong>da</strong>mente<br />
tanta albumi<strong>na</strong> (legumi<strong>na</strong>) quanto o nosso sangue; e duas<br />
ou três vezes mais matérias adipóge<strong>na</strong>s que legumi<strong>na</strong>. Embora<br />
mais caras e de preparação mais dispendiosa, as ervilhas, o feijão<br />
e as lentilhas dão melhor resultado que as batatas. Elas são de<br />
molde a produzir um bom sangue e a fortificar os músculos e o<br />
cérebro, qual o não faz a batata. As ervilhas, o feijão e as lentilhas,<br />
atento às suas quali<strong>da</strong>des nutritivas, são mais baratos que as<br />
batatas, pela mesma razão que o ferro é mais barato que a madeira,<br />
quando se trate de fabricar trilhos. Ervilha, feijão e lentilha<br />
dão energias para o trabalho, pagam por si mesmos o seu custo;<br />
ao passo que um regime longo de batatas acarreta debili<strong>da</strong>de e<br />
decadência. O homem que, durante quinze dias, só comesse<br />
batatas, ficaria impossibilitado de as arrancar por si mesmo” 93 .<br />
O prolator deve ter assi<strong>na</strong>do contrato com algum hortelão (ou<br />
talvez hoteleiro), exclusivamente devotado a estes onipotentes<br />
legumes. Que lhes faça bom proveito...<br />
Sob esse novo panegírico <strong>da</strong>s ditas substâncias alimentares, o<br />
materialismo desliza suavemente e insinua-se sem rumor. Compararam-no<br />
certa feita (mas nós temos cá as nossas dúvi<strong>da</strong>s)<br />
àquela coisa de que nos fala D. Basílio: um leve ruído resvalando<br />
pelo solo, qual andorinha que, prenunciando tempestades, pipila<br />
e passa, espalhando em seu curso a semente envene<strong>na</strong><strong>da</strong>...
Seja, porém, qual for o efeito dos miríficos farináceos, não<br />
será neles que hajamos de procurar as manifestações do espírito<br />
humano.<br />
Quando, fi<strong>na</strong>lmente, concluem que a influência incontestável<br />
e incontesta<strong>da</strong> do regime alimentar sobre o físico e o moral basta<br />
para justificar, em absoluto, a suserania <strong>da</strong> matéria, caem nos<br />
excessos do sistematismo, a negarem tudo que se não enquadra<br />
no seu sistema e a torcerem os fatos para os ajeitar aos seus<br />
estreitos moldes. Bastaria, contudo, ponderassem um tanto mais,<br />
para não sustentarem semelhantes erros.<br />
Quaisquer que sejam o caráter, o propósito e a persistência de<br />
ânimo <strong>da</strong>queles de quem aqui temos falado, seus exemplos<br />
valem como protesto de afirmações tão insensatas.<br />
Eis aqui o grande missionário <strong>da</strong>s Índias, Francisco Xavier.<br />
Sigamo-lo no barco que o transportou às Índias portuguesas, por<br />
ordem de D. João 3º, a descer o Tejo, envolvido <strong>na</strong> sua estamenha<br />
remen<strong>da</strong><strong>da</strong> e com a só bagagem do seu breviário – ele, o<br />
generoso gentil-homem, o sábio de 22 anos, o já consagrado<br />
professor de Filosofia <strong>na</strong> Universi<strong>da</strong>de de Paris, que tudo abando<strong>na</strong>va<br />
para acompanhar um amigo. Durante o dia, trabalha com<br />
os marinheiros e aos marinheiros se devota; à noite, dorme no<br />
convés e tem por travesseiro um rolo de cordoalha.<br />
Em Goa, se encontra no meio de uma população miserável,<br />
sem outra preocupação que a de libertá-la do miasma moral e<br />
material. Mais tarde, em prosseguimento de abnega<strong>da</strong> missão, eilo<br />
a descer as costas de Comorim e fun<strong>da</strong>ndo uma igreja no<br />
Cabo. Depois encontramo-lo em Malaca e no Japão, a defrontar<br />
novas raças e novos climas. Sabemos que to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> foi um<br />
rosário de sofrimentos físicos e de conquistas espirituais. Fome,<br />
sede e torturas i<strong>na</strong>uditas barraram a sen<strong>da</strong> do peregrino <strong>da</strong> fé.<br />
Tudo vencia, porém, e caminhava avante como que impelido<br />
por uma vontade incoercível “Seja qual for a morte, o suplício<br />
que me reservem – dizia –, estou disposto a sofrê-lo mil vezes<br />
pela salvação de uma só alma.” A febre e a morte detiveram-no<br />
<strong>na</strong>s fronteiras <strong>da</strong> Chi<strong>na</strong>. Em face de exemplos como este, que se<br />
poderia concluir <strong>da</strong>s teorias do feijão, <strong>da</strong>s ervilhas e lentilhas?
Em que, como e quando o regime alimentar teria gover<strong>na</strong>do a<br />
alma do apóstolo? Teria ele encontrado nessas regiões desconheci<strong>da</strong>s<br />
aquela balança metódica que se oferece ao ci<strong>da</strong>dão e que o<br />
capitalista preguiçoso pode encomen<strong>da</strong>r ao seu Vatel? Que<br />
relação pode haver entre Brillat-Savarin e Grimod de la Reyniêre<br />
com um Inácio de Loiola e um Vicente de Paula? Os grandes<br />
exploradores, à testa dos quais se encontram um Dumontd’Urville,<br />
um Cook, um Livingstone, etc., não vingaram, todos<br />
eles, os seus desígnios em circunstâncias e condições físicas as<br />
mais contrárias e varia<strong>da</strong>s?<br />
Poder-se-á sustentar que, mu<strong>da</strong>ndo de terra, de alimentação,<br />
de clima, de meio social, de elementos outros e até de corpo,<br />
<strong>da</strong>do a transformação molecular, mu<strong>da</strong>ssem também de alma, de<br />
fé e de coragem? Pois não é ver<strong>da</strong>de que persistiram íntegros <strong>na</strong><br />
consecução do ideal, através de vicissitudes tremen<strong>da</strong>s e dos<br />
mais fortes obstáculos? 94 Na ver<strong>da</strong>de, insistirmos seria injuriar o<br />
leitor. Exclusive nossos sistemáticos adversários, nenhum espírito<br />
sensato duvi<strong>da</strong> que matéria e espírito sejam coisas diferentes.<br />
Ninguém ignora que, se a assimilação corporal atua em nosso<br />
pensamento, assim como a beleza do dia influi <strong>na</strong> sereni<strong>da</strong>de de<br />
nossa alma, isso não impede seja essa alma um ser pessoal, que<br />
chora às vezes quando as aves cantam e as flores exalam perfumes,<br />
e outras vezes se entrega sere<strong>na</strong>mente ao estudo, enquanto<br />
o céu tempestuoso se funde em raios e trovões 95 .<br />
Enten<strong>da</strong>m-nos bem e não venham interpretar infielmente as<br />
nossas alegações. Nós não dizemos que a matéria seja destituí<strong>da</strong><br />
de to<strong>da</strong> e qualquer influência sobre o espírito; não dizemos que a<br />
alma huma<strong>na</strong> seja completamente independente do organismo e<br />
nem mesmo estamos com Platão, a pretender que o espírito é<br />
estranho ao corpo e que há antipatia entre eles.<br />
Certo, ninguém dirá que uma criatura a morrer de fome esteja<br />
disposta a cantar. Quem duvi<strong>da</strong>rá de que, após uma jor<strong>na</strong><strong>da</strong><br />
fatigante, cabeceando de sono, tenhamos disposição para <strong>da</strong>nçar?<br />
Então não sabemos, todos, que nossa alma se impressio<strong>na</strong><br />
com e pelos aspectos exteriores? Que um dia luminoso nos<br />
alegra, que uma manhã sombria e chuvosa nos entristece? Que a<br />
placidez <strong>da</strong>s belas noites nos penetra intimamente, proporcio-
<strong>na</strong>ndo-nos gozos calmos? E dizei: os poemas sonoros, os amavios<br />
<strong>da</strong> música, sinfonias deliciosas, so<strong>na</strong>tas apaixo<strong>na</strong><strong>da</strong>s, nunca<br />
vos arrebataram, nunca vos sacudiram os nervos? Será que, <strong>na</strong>s<br />
vossas disposições habituais, tanto quanto nos sonhos que povoam<br />
as vossas noites, nunca experimentastes o efeito <strong>da</strong> alimentação<br />
e dos vossos hábitos e misteres? Dar-se-á que a maneira pela<br />
qual fin<strong>da</strong>stes a vossa tarefa, não tenha afetado os vossos sonhos?<br />
Numa palavra: será possível ao observador negar a influência<br />
permanente e variável que o mundo exterior, socie<strong>da</strong>de, relações,<br />
alimento, frio, luz, obscuri<strong>da</strong>de, ci<strong>da</strong>de ou aldeia e causas mil<br />
outras, de nós independentes, não influam em nossos pensamentos,<br />
sentimentos e sensibili<strong>da</strong>de? Não. Essas influências são<br />
reais, admitimo-las e indicamo-las. Montesquieu, cuja declaração<br />
é menos exclusiva do que supõem, escreveu: “Nos países<br />
frios haverá pouca tendência para os prazeres, que será mais<br />
acentua<strong>da</strong> nos climas temperados, e sempre exuberante <strong>na</strong>s<br />
regiões quentes. Ouvindo as mesmas óperas <strong>na</strong> Inglaterra e <strong>na</strong><br />
Itália, notei que a mesma música produzia efeitos diferentes, isto<br />
é: enquanto <strong>na</strong> primeira o auditório se mantinha calmo, <strong>na</strong> segun<strong>da</strong><br />
vibrava de forma inconcebível. O mesmo se dá com<br />
relação à dor... A grande estatura e os nervos enrijados dos povos<br />
do Norte são menos vibráteis que os <strong>da</strong> gente dos países quentes.<br />
Lá, há menos sensibili<strong>da</strong>de <strong>na</strong> dor. Para sensibilizar um moscovita,<br />
há que o esfolar.” Mais adiante, porém, acrescenta que,<br />
entre as coisas que gover<strong>na</strong>m o homem, importa distinguir “a<br />
religião, as leis, as máximas, os exemplos”. Concor<strong>da</strong>remos com<br />
o autor de O Espírito <strong>da</strong>s Leis, com restrições, isto é, no que<br />
concerne a influências extrínsecas, por assim dizer; mas <strong>da</strong>í a<br />
admitir quê só elas fazem o homem, vai todo um abismo. Uma<br />
coisa é dizer que a alma é impressio<strong>na</strong><strong>da</strong> por causas situa<strong>da</strong>s fora<br />
dela, outra é dizer que essa alma não existe. Chegamos mesmo a<br />
nos perguntar como podem os adversários conciliar as duas<br />
proposições, quando, no fundo, imagi<strong>na</strong>m que a alma não existe<br />
e os pensamentos não passam de produtos <strong>da</strong> substância cerebral,<br />
variáveis com as impressões recebi<strong>da</strong>s. Eis ao que se reduz o<br />
homem!
Abstraindo de to<strong>da</strong>s as provas precedentemente acumula<strong>da</strong>s,<br />
a testificação <strong>da</strong> nossa liber<strong>da</strong>de viria, enfim, depor a favor <strong>da</strong><br />
força pensante que nos anima.<br />
– O panteísmo, fazendo <strong>da</strong> alma uma partícula <strong>da</strong> substância<br />
divi<strong>na</strong>, a escraviza e arrasta, inevitavelmente, ao fatalismo<br />
absoluto.<br />
– O ateísmo, negando a existência do espírito, faz <strong>da</strong> alma a<br />
escrava <strong>da</strong> matéria e conduz, por outra via, ao mesmo fatalismo.<br />
Poderíamos, portanto, proceder por elimi<strong>na</strong>ção, demonstrando<br />
a i<strong>na</strong>ni<strong>da</strong>de dessas doutri<strong>na</strong>s, forçar o acolhimento <strong>da</strong> nossa,<br />
como a única que concilia os diversos imperativos de nossa<br />
consciência. Assim, permitiu a sorte fossem os adversários<br />
batidos em todos os quadrantes e que a negação <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />
ficasse presa ao pelourinho por todos os elementos de nossa<br />
convicção.<br />
Concluindo o arrazoado sobre a existência <strong>da</strong> alma, afirmamos:<br />
a digni<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong> não permite um semelhante atentado<br />
ao que constitui o seu supremo fa<strong>na</strong>l; antes protesta contra essas<br />
tendências exagera<strong>da</strong>s. As influências exagera<strong>da</strong>s atuam mais ou<br />
menos em nós, conforme a nossa sensibili<strong>da</strong>de nervosa; mas,<br />
tanto quanto a composição química do cérebro, elas não constituem<br />
o nosso valor moral e intelectual. Para arrasar essa hipótese,<br />
bem como a precedente, basta considerar a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
nossa força mental. Só com ela podemos afrontar to<strong>da</strong>s essas<br />
influências e seguir desdenhosos, de fronte ergui<strong>da</strong>, por entre<br />
essas ações e reações ambientes.<br />
Quando a alma se acabrunha ao peso de uma dor profun<strong>da</strong>,<br />
pouco nos preocupamos com o estado do céu, que chova ou<br />
vente.<br />
Quando nos abando<strong>na</strong>mos a um enlevo de alegrias íntimas,<br />
pouco se nos dá o dia e o mês em que estamos.<br />
Quando sérios estudos nos absorvem a atenção, esquecemonos<br />
de jantar e até de dormir.<br />
Quando o som <strong>da</strong>s fanfarras atroa os ares e a ci<strong>da</strong>de em alvoroço<br />
festeja a liber<strong>da</strong>de, não ocorre saber se estamos em Julho ou<br />
Fevereiro.
Quando a pátria periclita, o pavilhão francês não se preocupa<br />
com a <strong>da</strong>ta e o barômetro.<br />
A vontade susera<strong>na</strong> não cogita dessas pretensas causas. As<br />
profun<strong>da</strong>s emoções do coração desprezam bagatelas. Se a saúde<br />
é excelente condição para bem pensar e sentir, não quer dizer<br />
que ela só por si promova o estado <strong>da</strong> alma. Há, <strong>na</strong> vi<strong>da</strong>, horas<br />
mais deliciosas que as dos mais opíparos banquetes, e <strong>na</strong>s quais<br />
se esquecem as igua<strong>na</strong>s deleitosas aos pala<strong>da</strong>res insaciáveis;<br />
horas que eclipsam câmaras suntuosas, peles caras, jóias brilhantes,<br />
todos os regalos do mundo, enfim, para só nos absorvermos<br />
em gozos mais íntimos e mais vivazes... Quantos, <strong>na</strong> Terra,<br />
fruíram esses momentos de felici<strong>da</strong>de, sabem que acima <strong>da</strong><br />
esfera material existe uma região i<strong>na</strong>cessível aos tormentos<br />
inferiores, onde as almas idealistas se encontram em comunhão<br />
com a beleza espiritual e incria<strong>da</strong>.
Quarta Parte<br />
Destino dos Seres e <strong>da</strong>s Coisas<br />
1 - Plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> - Construção dos Seres Vivos<br />
SUMÁRIO – O erro e o ridículo dos que tudo ligam ao homem. –<br />
Erro semelhante dos que negam a existência de um plano <strong>na</strong>tural.<br />
– As leis organizadoras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> revelam uma causa inteligente.<br />
– Construção maravilhosa dos órgãos e dos sentidos. – A vista<br />
e o ouvido. – Hipótese <strong>da</strong> formação dos seres vivos sob o influxo<br />
de uma força instintiva universal. – Hipótese <strong>da</strong> transformação<br />
<strong>da</strong>s espécies. – To<strong>da</strong>s as hipóteses são impotentes para destruir a<br />
sabedoria do plano divino.<br />
Certa feita, ao deixar uma aldeia à tardinha, vi uma deze<strong>na</strong> de<br />
meni<strong>na</strong>s que corriam e brincavam sob a copa de frondosas e<br />
velhas tílias. Qual bando gárrulo de aves inquietas, corriam e<br />
casqui<strong>na</strong>vam sob aquelas frondes seculares, que, indubitavelmente,<br />
viram por ali passar sucessivas gerações infantis. Que<br />
pensariam a respeito, aquelas árvores imóveis? Quantos sóis<br />
teriam visto passar-lhes por sobre as comas verdes? Sonhariam,<br />
acaso, com os esplendores <strong>da</strong> prísti<strong>na</strong> vegetação que tão gloriosamente<br />
vestiu a Terra nos seus dias primaveris? Teriam elas<br />
uma vaga consciência <strong>da</strong> importância do reino vegetal e <strong>da</strong><br />
grandeza do seu papel no sistema geral <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terre<strong>na</strong>? Talvez...<br />
Mas, seguramente, o que não suspeitariam era a opinião que a<br />
seu respeito me exter<strong>na</strong>va uma <strong>da</strong>quelas lin<strong>da</strong>s crianças, quando,<br />
metendo-me no brinquedo, lhe perguntei para que serviam<br />
aquelas grandes tílias...<br />
– Para brincar de cabra-cega quando a tarde está bonita – respondeu<br />
<strong>na</strong>quele timbre de franqueza que revela as convicções<br />
profun<strong>da</strong>s.<br />
E logo após, como a completar seu pensamento de filha amorosa:<br />
– elas servem, também, para a mamãe fazer chá. – E disse-
o, oferecendo-me um raminho branco e cheiroso, que caíra de<br />
um galho...<br />
Outra noite, em Paris, um tal M. C., a quem falávamos <strong>da</strong><br />
imensi<strong>da</strong>de do céu e <strong>da</strong> infini<strong>da</strong>de dos Mundos, entre os quais a<br />
Terra vale por átomo insignificante, respondeu-nos ele com uma<br />
ingenui<strong>da</strong>de menos perdoável que a precedente, visto provir de<br />
um adulto:<br />
– Pregais idéias desastrosas, quando dizeis que a Terra não é<br />
privilegia<strong>da</strong>, nem pode ser superior aos astros; pois a ver<strong>da</strong>de é<br />
que ela forneceu o corpo divino de Jesus-Cristo e o <strong>da</strong> Santa<br />
Virgem, e só isso basta para graduá-la acima de todos os astros,<br />
autorizando-nos a afirmar que todos os astros foram feitos para<br />
ela 96 .<br />
Simultaneamente, outra boa criatura, que é o Sr. Le Prieur,<br />
possuído <strong>da</strong>s melhores intenções, presumia que as marés eram<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>s ao oceano a fim de facilitar a entra<strong>da</strong> de <strong>na</strong>vios nos portos<br />
97 .<br />
A isso, aditava Voltaire, que também não havia razão para<br />
duvi<strong>da</strong>r fossem as per<strong>na</strong>s cria<strong>da</strong>s para enfiar as botas e o <strong>na</strong>riz<br />
para sustentar os óculos; pois – arrazoava ain<strong>da</strong> 98 –, para nos<br />
podermos certificar <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>deiras causas, não há como desatender<br />
à continui<strong>da</strong>de dos seus efeitos, em todos os tempos e<br />
lugares. Igualmente pueril fora agradecer a <strong>Deus</strong> o ter feito<br />
passar os grandes rios pelas grandes ci<strong>da</strong>des e encalhar os <strong>na</strong>vios<br />
<strong>na</strong>s regiões polares, para assim fornecer aos Groelandeses a<br />
lenha com que se aqueçam. Sente-se quão ridículo fora presumir<br />
que a <strong>Natureza</strong> houvesse, de todos os tempos, trabalhado para<br />
ajustar-se às nossas invenções artísticas e arbitrárias, mas se<br />
evidentemente os <strong>na</strong>rizes não foram feitos para os óculos, foramno<br />
para o olfato e isso desde que há homens.<br />
Assim, também, não tendo sido as mãos engendra<strong>da</strong>s para<br />
gáudio dos luveiros, desti<strong>na</strong>m-se, evidentemente a todos os usos<br />
que o metacarpo, as falanges digitais e os movimentos musculares<br />
do punho nos facultam.<br />
Teólogos há que aplicam a causali<strong>da</strong>de fi<strong>na</strong>lista por justificar<br />
a existência de animais nocivos, qual o fazem com as enfermi<strong>da</strong>-
des e misérias huma<strong>na</strong>s, tudo carregando em conta do pecado<br />
origi<strong>na</strong>l.<br />
No parecer de Meyer e Stilling, répteis e insetos <strong>da</strong>ninhos e<br />
venenosos são frutos <strong>da</strong> maldição que inqui<strong>na</strong> a Terra com os<br />
terrícolas. As formas não raro monstruosas de tais seres devem<br />
representar a figura do pecado e <strong>da</strong> perfeição.<br />
O autor <strong>da</strong>s Cartas a Sofia, Sr. Aimé Martin, nos sugere a<br />
crença de que prevendo o Eterno que o homem não poderia<br />
habitar a zo<strong>na</strong> tórri<strong>da</strong>, nela formou as mais altas montanhas, para<br />
aí lhe proporcio<strong>na</strong>r um clima agradável. Mais adiante acrescenta<br />
que “se a chuva escasseia <strong>na</strong>s regiões arenosas, é porque aí se<br />
tor<strong>na</strong>ria inútil”.<br />
Na baixa Normandia é usual despejar-se o cálice do conhaque<br />
no café, e eu muitas vezes tive ocasião de conjeturar que, se ao<br />
bom <strong>Deus</strong> aprouve fosse a aguardente mais leve que o café, não<br />
seria senão para que ele pudesse arder à to<strong>na</strong> e desse, assim, mais<br />
um aroma à excelente fusão colonial. Há ain<strong>da</strong> um infinito<br />
número de fatos não menos importantes, que nos fazem amar as<br />
causas fi<strong>na</strong>is. Talvez devamos advertir que nem todos se podem<br />
atribuir a <strong>Deus</strong>, e alguns antes parecem negócio do diabo, como,<br />
por exemplo, o de que nos falava um epicurista amigo, isto é – a<br />
condensação <strong>na</strong>s vidraças, <strong>da</strong> evaporação notur<strong>na</strong>, a formar uma<br />
discreta corti<strong>na</strong> de certas carruagens fecha<strong>da</strong>s.<br />
Segundo Ber<strong>na</strong>rdin de Saint-Pierre, os vulcões, localizados<br />
sempre perto dos mares, desti<strong>na</strong>m-se a consumir as matérias<br />
corrompi<strong>da</strong>s que carreiam e que poderiam infeccio<strong>na</strong>r a atmosfera.<br />
As tempestades têm a virtude de refrescar a mesma atmosfera,<br />
etc. Pensava ele, também, que as pulgas <strong>na</strong>sceram pretas para<br />
que as pudéssemos distinguir <strong>na</strong> brancura de nossa pele e então<br />
puni-las. A plumagem retinta dos corvos, <strong>na</strong> opinião do Sr.<br />
Martin, é para que perdizes e lebres, de que se alimentam no<br />
Inverno, possam percebê-los, de longe, sobre a neve. O eloqüente<br />
autor do Gênio do Cristianismo diz que vendo-se, qual peque<strong>na</strong><br />
flama azula<strong>da</strong>, fugir a serpente ondulante, facilmente nos<br />
convencemos de que foi ela quem seduziu a primeira mulher. O<br />
autor <strong>da</strong>s Cartas pré-cita<strong>da</strong>s também afirma que os insetos venenosos<br />
são feitos para que o homem desconfie deles.
É claro que o ideal religioso e a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> Providência nem<br />
sempre foram bem servidos por seus prosélitos. Quando se<br />
escoram tais sentimentos com motivos assim pueris, e frívolos,<br />
corre-se o risco de comprometer a causa perante os semi-sábios,<br />
o que vale dizer, a maioria dos espíritos. Tentativas que tais, não<br />
logram senão caricaturar o Ser supremo. A propósito de uns<br />
tantos filósofos do seu tempo, dizia Duclos: “Essa gente acabará<br />
levando-me à missa.” Hoje, diante <strong>da</strong> opinião de uns tantos<br />
devotos, também chegamos a imagi<strong>na</strong>r que esta gente acabará<br />
fazendo-nos duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong> Providência.<br />
São idéias que pecam, não ape<strong>na</strong>s por falsi<strong>da</strong>de, mas pelo<br />
imperdoável estigma do ridículo. Assemelham-se àqueles camponeses<br />
de que nos fala Riehl 99 , incapazes de ver no mundo<br />
outras belezas além <strong>da</strong>s roupas domingueiras <strong>da</strong>s alenta<strong>da</strong>s<br />
conterrâneas, que também vestem as imagens em certos dias<br />
festivos.<br />
O próprio Fenelon não se forra à censura. Assim é que nos<br />
representa o Sol como regulando expressamente o trabalho e o<br />
repouso, as necessi<strong>da</strong>des e os prazeres. Graças ao seu movimento<br />
diurno e anual, um único sol basta para to<strong>da</strong> a Terra. Se fora<br />
maior, à mesma distância, abrasaria, pulverizaria o mundo; se<br />
menor, a Terra se congelaria, tor<strong>na</strong>r-se-ia i<strong>na</strong>bitável. Se, do<br />
mesmo tamanho, estivesse mais afastado, deixaríamos de viver,<br />
à mingua de calor. Que compasso, pois, abrangendo em seu<br />
círculo céu e Terra, teria assi<strong>na</strong>lado medi<strong>da</strong>s tão exatas? De fato,<br />
ele não beneficia menos as regiões <strong>da</strong>s quais se afasta, do que o<br />
faz àquelas de que se aproxima por favorecê-las com os seus<br />
raios... Destarte, a <strong>Natureza</strong> ador<strong>na</strong><strong>da</strong> em diversas maneiras<br />
oferece simultaneamente tão variados espetáculos que não dá<br />
tempo ao homem para desgostar-se do que possui. Mas, entre os<br />
astros diviso a Lua, que parece compartilhar com o Sol o cui<strong>da</strong>do<br />
de nos aclarar. Ei-la que surge, então, com o seu cortejo estelar,<br />
no momento exato em que o Sol vai irradiar noutro hemisfério.”<br />
Lícito é, certamente, pôr em dúvi<strong>da</strong> o valor absoluto deste raciocínio,<br />
pois a partilha uniforme dos dias e <strong>da</strong>s noites só se<br />
verifica no equador, para diminuir progressivamente e desaparecer<br />
nos pólos, com to<strong>da</strong>s as suas virtudes e benefícios. Se lá, nos
pólos, algum dia escreverem para glorificar a Providência, hão<br />
de ver que lhe renderão graças pelos dias e noites semestrais.<br />
Em Mercúrio, ou em Netuno, hão de concluir que o Sol também<br />
está à distância convinhável à eclosão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ambiente. Era<br />
Júpiter, louvarão o Criador por lhes ter concedido quatro luas,<br />
tanto quanto em Saturno agradecerão a dádiva de um anel, que<br />
reúne o útil ao agradável, etc.<br />
Diante de tais argumentos não há que admirar tenha a causali<strong>da</strong>de<br />
fi<strong>na</strong>l caído no mais absoluto descrédito. Eis aí, contudo –<br />
dizia J. B. Biot 100 – a que extremos levaram a mania, hoje tão<br />
comum, de explicar o como e o porquê de to<strong>da</strong>s as coisas <strong>na</strong>turais,<br />
conforme o imperfeito e vago sentimento utilitário que delas<br />
possamos ter. Ca<strong>da</strong> qual, assim, regula a previdência <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong><br />
ao nível de suas luzes, tor<strong>na</strong>ndo-a mais ou menos louca, <strong>na</strong> pauta<br />
<strong>da</strong> própria ignorância. Isso <strong>na</strong><strong>da</strong> representaria, uma vez que tais<br />
sonhos fossem inculcados pelo seu justo valor e não pretendessem<br />
insinuá-los como ver<strong>da</strong>des, como artigos de fé, a ponto de<br />
considerarem os seus autores uma impie<strong>da</strong>de, quando os tachamos<br />
de absurdos.<br />
“É preciso – opi<strong>na</strong> Montaigne – julgar com muita moderação<br />
as coisas divi<strong>na</strong>s. O em que mais se acredita é justamente o que<br />
menos se conhece; nem haverá pessoas mais autoriza<strong>da</strong>s do que<br />
aquelas que nos contam fábulas, como sejam os alquimistas, os<br />
adivinhos, quiromantes, médicos, id gezus omne, aos quais de<br />
bom grado eu juntaria, se mo permitissem, uma certa classe de<br />
indivíduos que se metem a interpretar e controlar os desígnios de<br />
<strong>Deus</strong>, gabando-se de encontrar as causas de ca<strong>da</strong> acidente e de<br />
ver, nos segredos <strong>da</strong> vontade divi<strong>na</strong>, a razão incompreensível <strong>da</strong><br />
sua obra. Esbarrados a ca<strong>da</strong> canto, atirados de um lado para<br />
outro, mercê <strong>da</strong> varie<strong>da</strong>de e discordância contínua dos episódios,<br />
nem assim deixam eles de seguir o seu painel, a pintarem com o<br />
mesmo lápis o preto e o branco.”<br />
Por terem sido escritas há quatrocentos anos, estas judiciosas<br />
palavras do venerando ancião não deixam de exprimir uma<br />
ver<strong>da</strong>de que tem aplicação a ca<strong>da</strong> momento. Elas merecem ser<br />
junta<strong>da</strong>s à comparação que o mesmo autor faz do homem com o<br />
ganso, que se gloria de ser o “favorito <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>” – compara-
ção já por nós desenvolvi<strong>da</strong> 101 a propósito <strong>da</strong> vai<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>,<br />
que, de longa<strong>da</strong>, construiu o Universo nos moldes de sua fantasia.<br />
Desde que o homem se deixa arrastar pelo <strong>na</strong>tural pendor de<br />
tudo referir a si, tor<strong>na</strong>-se capaz de reduzir o mundo inteiro, para<br />
fazê-lo entrar nos seus planos estreitos e mesquinhos.<br />
O Sol já não é, então, mais que um seu mísero servo; as estrelas<br />
não passam de or<strong>na</strong>mento para decoração do seu cenário e<br />
servindo-lhe de roteiro <strong>na</strong> exploração dos mares. Se a atração<br />
luno-solar, duas vezes por dia, levanta as águas oceânicas, é<br />
ape<strong>na</strong>s para facilitar a entra<strong>da</strong> no Havre dos <strong>na</strong>vios que chegam<br />
de Nova-Iorque ou do Rio Amarelo. Se a casca do carvalho<br />
excreta o tanino, é para que possamos ter bons couros. Se o<br />
bômbix fia a se<strong>da</strong> no seu casulo, é para ofertar belos estojos às<br />
mulheres elegantes. O rouxinol saú<strong>da</strong> a aurora? Então é para o<br />
encanto auditivo de quem o ouve. A <strong>Natureza</strong> inteira, enfim, foi<br />
cria<strong>da</strong> visando o homem, e to<strong>da</strong> ela concorre para ajudá-lo e o<br />
fazer feliz.<br />
É evidente que quando se chega a tais excentrici<strong>da</strong>des, a causali<strong>da</strong>de<br />
fi<strong>na</strong>l fica singularmente prejudica<strong>da</strong>. Pretender que tudo<br />
tenha sido expressamente criado para o homem é abusar muito<br />
ingenuamente <strong>da</strong> nossa posição.<br />
Antes de tudo, é preciso distinguir a <strong>Natureza</strong> em duas partes<br />
bem diferentes: o Céu e a Terra.<br />
O Céu é o espaço infinito, a multidão incalculável de mundos,<br />
o conjunto; a Terra, uma gota d'água no oceano, um grão de<br />
areia, um átomo. Que o Céu se tenha criado para o habitante <strong>da</strong><br />
Terra, é idéia absur<strong>da</strong>, inconcebível. O Céu não conhece a Terra<br />
e o homem, por sua vez, não conhece a mínima partícula do Céu.<br />
As estrelas são sóis, centros de sistema de outras terras habita<strong>da</strong>s.<br />
Contamo-las por milhões e certificamo-nos de que o nosso<br />
planeta lhes é absolutamente desconhecido e insignificante, em<br />
relação a elas que ocupam no espaço domínios tão vastos que a<br />
própria luz leva milhares de anos para atravessá-los. De sorte<br />
que, se o nosso globo deixasse hoje de existir, seu desapareci-
mento não seria matematicamente percebido pelos mundos<br />
siderais.<br />
O átomo terrestre turbilho<strong>na</strong>, célere, em torno do Sol, com a<br />
docili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fun<strong>da</strong> <strong>na</strong>s mãos de um gigante. Mil revoluções<br />
siderais se completam simultaneamente, no infinito, em to<strong>da</strong>s as<br />
latitudes imagináveis e distantes deste átomo... Quando, pois, o<br />
homem pretende a imensi<strong>da</strong>de opulenta dos céus desdobra<strong>da</strong> no<br />
vácuo em sua exclusiva intenção; quando fala de princípio e fim<br />
do mundo, como se se referisse à sua pessoa, equipara-se a uma<br />
formiga que julgasse o campo em que assenta o seu formigueiro,<br />
traçado para oferecer-lhe belas perspectivas. As árvores flori<strong>da</strong>s<br />
foram desti<strong>na</strong><strong>da</strong>s ao prazer <strong>da</strong> vista e aquela casinha branca, lá<br />
mais longe, não foi construí<strong>da</strong> senão para lhe servir de ponto de<br />
referência; e fi<strong>na</strong>lmente: o proprietário desse campo não cogitou<br />
senão dela – formiga inteligente – quando organizou o seu<br />
habitat com aqueles jardins, pomares, campos e florestas. Desígnio<br />
manifesto. Se, secun<strong>da</strong>riamente, nos restringirmos à Terra, a<br />
idéia de uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de criadora é aqui mais particularista e não<br />
haverá absurdi<strong>da</strong>de em pretender o homem tenha sido ela construí<strong>da</strong><br />
e organiza<strong>da</strong> para sede <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> inteligência. Pode-se<br />
mesmo ajuntar que, no plano terreno, o homem é o ser mais<br />
elevado. Só ele recebeu o dom <strong>da</strong> inteligência. Se desaparecesse<br />
<strong>da</strong> Terra, é de crer que esta perderia a sua razão de ser no concerto<br />
universal, a menos que não viesse outra raça intelectual suceder-lhe,<br />
o que leva a crer tenha sido mesmo desti<strong>na</strong>do para ser<br />
habitado.<br />
Temos precisamente demonstrado, em uma obra anterior, que<br />
os mundos foram construídos para moradia do espírito.<br />
Considerando, porém, o homem como o último ser <strong>na</strong>scido<br />
entre os seres terrícolas, cujo surgimento sucessivo obedeceu à<br />
lei geral de progresso e considerando-o como o mais perfeito <strong>da</strong><br />
escala, a pressupor-se o centro fi<strong>na</strong>l – ou pelo menos atual – <strong>da</strong><br />
evolução terrestre, negamos-lhe, contudo, o direito de atribuir a<br />
<strong>Deus</strong> as suas mesquinhas concepções e supor que as suas mínimas<br />
combi<strong>na</strong>ções domésticas participaram do plano divino e<br />
eterno. Nem é fora de si que ele deverá procurar a razão de sua<br />
grandeza: é <strong>na</strong>quilo mesmo que o distingue, isto é, no seu valor
intelectual. Se, por sua inteligência, se apropriou de uns tantos<br />
serviços que lhe pode prestar a <strong>Natureza</strong>, não há confundir essa<br />
apropriação com o plano geral.<br />
A estrela polar não foi cria<strong>da</strong> para nortear <strong>na</strong>vios, mas o <strong>na</strong>vegador<br />
soube utilizar-se <strong>da</strong> sua posição peculiar. O carvalho<br />
não foi feito para aproveitar aos cortumes, mas o fabricante<br />
descobriu, com a sua inteligência, as proprie<strong>da</strong>des do tanino no<br />
tratamento <strong>da</strong>s peles. A púrpura, molusco gastrópodo do Mediterrâneo,<br />
não <strong>na</strong>sceu para tingir o manto real dos potentados, mas<br />
a indústria houve como extrair um colorido brilhante <strong>da</strong>s suas<br />
conchas. O carneiro, o bicho <strong>da</strong> se<strong>da</strong>, as aves de pluma, as plantas<br />
têxteis, o algodoeiro, o linho, o cânhamo, as mi<strong>na</strong>s de ouro,<br />
prata, chumbo e níquel, as safiras, rubis, esmeral<strong>da</strong>s, etc.; tudo<br />
enfim – seres e coisas – que a <strong>Natureza</strong> oferece ao homem, não<br />
foi criado nem posto no mundo com fins particularistas, e se o<br />
homem tem progressivamente se apropriado dos elementos, é<br />
claro que o deve às suas facul<strong>da</strong>des eletivas, à sua inteligência e<br />
não a um plano primordial necessário, que se houvera de executar<br />
fatalmente e, por assim dizer, à revelia <strong>da</strong> escolha <strong>da</strong> indústria<br />
huma<strong>na</strong>.<br />
Expõe-se o homem a cair em erro grosseiro, quando tudo refere<br />
a si, mediante um processo incompleto. Mas, negar um<br />
plano à Criação só pelo fato de esse plano não se reportar exclusivamente<br />
ao homem, é cair noutro erro. Voltaire deplora em<br />
belos versos o terremoto de Lisboa e pergunta, com acrimônia,<br />
onde está essa Potência amiga do homem e de que tanto se fala.<br />
Rousseau responde-lhe, então, que a culpa é só dos homens,<br />
pois ninguém lhes mandou edificar num solo assim. Nem um<br />
nem outro tem razão. O homem enganou-se no seu egoísmo,<br />
nisso estamos de acordo, e até nos propomos evidenciar a fantasia<br />
desse método.<br />
Mas, a falsi<strong>da</strong>de de método não é razão bastante para concluir<br />
que o objeto desse método não exista e que o fundo <strong>da</strong> doutri<strong>na</strong><br />
seja um erro.<br />
Ora, isso é justamente o que fazem os materialistas, sem perceberem<br />
que se deixam seduzir por uma estranha confusão.
Certo, a causali<strong>da</strong>de fi<strong>na</strong>l, o conhecimento do plano <strong>da</strong> Criação,<br />
não é tão simples como imagi<strong>na</strong>m espíritos superficiais. É,<br />
assim, de extrema complexi<strong>da</strong>de e apresenta dificul<strong>da</strong>des quase<br />
insuperáveis, mesmo para espíritos mais clarividentes. Nós não<br />
assistimos aos desígnios de <strong>Deus</strong> e não passamos de pobres<br />
ignorantes em face de tanta grandeza. Mas, com franqueza, em<br />
que pode a nossa incapaci<strong>da</strong>de afetar o princípio <strong>da</strong>s causas? Em<br />
que os nossos erros diminuem a idéia <strong>da</strong> onipotência criadora?<br />
Considerais o homem um ser bem importante para armar este<br />
dilema: – ou a <strong>Natureza</strong> gravita para o homem, ou conserva-se<br />
em repouso.<br />
Esqueceis, assim, os vossos próprios princípios e habitual<br />
desdém pelas aspirações huma<strong>na</strong>s, para nos colocar <strong>na</strong> alter<strong>na</strong>tiva<br />
de crer que a desti<strong>na</strong>ção de tudo converge seus raios para nós,<br />
ou que não haja nenhum desígnio <strong>na</strong> uni<strong>da</strong>de universal! Mas,<br />
não... A ver<strong>da</strong>de é que deixais o ser humano assaz envolto <strong>na</strong>s<br />
gangas <strong>da</strong> matéria, para o evidenciardes de um jato no seu aspecto<br />
superior. Tende-o assaz eclipsado <strong>na</strong> sua intelectuali<strong>da</strong>de para<br />
poderdes, de improviso, formular essa alter<strong>na</strong>tiva. Mas, como<br />
explicar a vossa absoluta negação de qualquer plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>?<br />
Ei-la aí, esta grande, pretensa explicação, mediante a qual<br />
imagi<strong>na</strong>m suprimir to<strong>da</strong> a idéia de fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de geral e particular!<br />
Vamos ver que essa explicação é tão frágil quanto as alegações<br />
opostas às eter<strong>na</strong>s ver<strong>da</strong>des, e que esses mesmos homens que nos<br />
increpam de forjadores de hipóteses, mais não fazem, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de,<br />
que substituir hipóteses por hipóteses mais complica<strong>da</strong>s. A<br />
diferença principal, entre nós, está em que eles se atolam no seu<br />
labirinto escuro, enquanto marchamos em reta para o nosso alvo<br />
luminoso.<br />
Emmanuel Kant, cuja mão esquer<strong>da</strong> continha tantos erros<br />
quantas ver<strong>da</strong>des continha a direita (balança invejável, mesmo<br />
em se tratando de homens privilegiados), não escapou de afirmar,<br />
certa feita, que “a conformi<strong>da</strong>de com o desígnio só podia<br />
ser cria<strong>da</strong> por um espírito refletido, que, conseqüentemente,<br />
admira um milagre por ele mesmo criado”.
Percebeis, por aí, a fecundi<strong>da</strong>de de uma semelhante proposição<br />
para os senhores de além-Reno. Eles vão extrair-lhe um suco<br />
abun<strong>da</strong>nte, leitoso, que oferecerão como remédio às imagi<strong>na</strong>ções<br />
doentias; assim um como elixir para velhos e crianças, igualmente<br />
aperitivo e nutriente dos que madrugam com fome. Essa<br />
declaração genial vai arrasar o secular juízo humano. Abstrai-se<br />
de <strong>Deus</strong> o pensamento de ordem e harmonia, para dá-lo em<br />
home<strong>na</strong>gem à inteligência huma<strong>na</strong>. Cirurgiões de nova espécie<br />
abrem a veia ao bom <strong>Deus</strong>, para inocular no cérebro do feliz<br />
habitante <strong>da</strong> Terra o seu princípio vital. É claro, pois não?, que,<br />
se existe ordem <strong>na</strong> disposição do mundo, e se há inteligência <strong>na</strong><br />
organização dos seres, ao homem é que o devemos atribuir, visto<br />
como, evidentemente, no Universo <strong>na</strong><strong>da</strong> pode haver inteligente<br />
além do homem, e presumir um <strong>Deus</strong> a ele superior fora insultar<br />
a digni<strong>da</strong>de do bípede humano.<br />
Ouçamo-los ain<strong>da</strong> um instante. Um dos principais argumentos<br />
dos que admitem deveremos atribuir a origem e conservação<br />
do mundo a uma potência criadora, tudo gover<strong>na</strong>ndo e regulando<br />
Universo – diz Büchner – sempre foi e continua a ser a pretensa<br />
doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> desti<strong>na</strong>ção dos seres, <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. To<strong>da</strong> flor espanejando<br />
as pétalas brilhantes, todo sopro de vento agitando o ar,<br />
to<strong>da</strong> estrela luzindo <strong>na</strong> amplidão <strong>da</strong> noite, to<strong>da</strong> feri<strong>da</strong> cicatrizando-se,<br />
todo som, tudo enfim, <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, excita a admiração dos<br />
partidários <strong>da</strong> predesti<strong>na</strong>ção, pela profun<strong>da</strong> sabedoria dessa<br />
potência superior. A ciência <strong>na</strong>tural dos nossos dias emancipouse<br />
dessas balofas concepções teológicas, que ape<strong>na</strong>s se detêm à<br />
superfície <strong>da</strong>s coisas, e relega estes inocentes estudos aos que<br />
preferem considerar a <strong>Natureza</strong> com os olhos do sentimento e<br />
não com os do entendimento.<br />
Como poderíamos falar de conformi<strong>da</strong>de aos fins, objetamnos,<br />
se não conhecemos aos seres sob esta exclusiva e única<br />
forma e nenhum pressentimento temos do que seriam eles se de<br />
outra forma nos surgissem? Nosso espírito nem mesmo é constrangido<br />
a contentar-se com a reali<strong>da</strong>de. Qual seria o arranjo<br />
<strong>na</strong>tural que não pode ain<strong>da</strong> realizar-se, de qualquer maneira,<br />
mais conforme com o fim? Hoje admiramos os seres, sem nos<br />
advertirmos <strong>da</strong> infideli<strong>da</strong>de de outras formas, organizações,
processos que a <strong>Natureza</strong> empregou, emprega e empregará <strong>na</strong><br />
conformi<strong>da</strong>de dos seus fins.<br />
Do acaso depende que eles vinguem, ou não. Então, não há<br />
formas grandiosas de vegetais e animais mais desapareci<strong>da</strong>s a<br />
muito tempo e que só conhecemos por destroços fossilizados?<br />
To<strong>da</strong> essa formosa <strong>Natureza</strong>, conformemente ajusta<strong>da</strong> a um fim,<br />
acrescentam, não será possivelmente destruí<strong>da</strong> por um cataclisma<br />
planetário e não se fará preciso ain<strong>da</strong> uma eterni<strong>da</strong>de para<br />
que essas e outras formas desabrochem do limo?<br />
Ain<strong>da</strong> mesmo que ela fosse destruí<strong>da</strong>, isso <strong>na</strong><strong>da</strong> provaria contra<br />
a nossa tese. Não interrompamos, porém, os locutores e<br />
continuemos a ouvir-lhes as objeções.<br />
A seguir, vem o velho argumento dos animais inúteis ou nocivos<br />
ao homem, que <strong>na</strong><strong>da</strong> prova, igualmente, contra a inteligência<br />
organiza<strong>da</strong> e cai perante esta ver<strong>da</strong>de: – a de não ser a Terra<br />
um mundo perfeito. Animais muito nocivos, escreve o autor de<br />
Força e Matéria, como por exemplo o rato dos campos, são de<br />
uma fecundi<strong>da</strong>de tal, que não podemos prever seu desaparecimento;<br />
os gafanhotos, os pombos errantes, formam bandos<br />
compactos de obscurecer o Sol e levam a devastação, a fome e a<br />
morte por onde passam... Os que só enxergam sabedoria, desígnio,<br />
causas fi<strong>na</strong>listas <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> – diz Giebel – poderiam empregar<br />
sua perspicácia no estudo dos vermes solitários. To<strong>da</strong> a<br />
ativi<strong>da</strong>de vital desses animais consiste em produzir ovos próprios<br />
para desenvolver-se, e uma tal ativi<strong>da</strong>de só pode ser exerci<strong>da</strong><br />
mediante sofrimento de outros animais. Milhões de ovos perecem<br />
inutilizados, o embrião transforma-se num escólex, que não<br />
faz outra coisa que sugar e engendrar. É um processo em que não<br />
há beleza, nem sabedoria, nem conformi<strong>da</strong>de determi<strong>na</strong>tiva, <strong>na</strong><br />
acepção huma<strong>na</strong>.<br />
Para quê? – perguntam depois – as enfermi<strong>da</strong>des, os males<br />
físicos em geral? Qual a razão desse ror de cruel<strong>da</strong>des, de atroci<strong>da</strong>des,<br />
que a <strong>Natureza</strong> inflige a ca<strong>da</strong> dia, a ca<strong>da</strong> hora, às suas<br />
criaturas? O ser que deu ao gato e à aranha a cruel<strong>da</strong>de e dotou o<br />
homem, essa obra-prima <strong>da</strong> Criação, de uma índole que o faz<br />
tantas vezes tão bárbara e cruel, poderá, assim procedendo, ser<br />
um ente bondoso e benévolo, conforme a idéia teológica?
Mas, em que o fato <strong>da</strong> aranha devorar moscas e os gatos comerem<br />
ratos, tanto quanto o de serem os homens criaturas inferiores,<br />
avassalando-se aos instintos materiais, prova a mal<strong>da</strong>de ou<br />
a inexistência de <strong>Deus</strong>? Como demonstração científica, confessemo-lo,<br />
é superficialíssima.<br />
Depois, procuram <strong>na</strong>s exceções, <strong>na</strong>s monstruosi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />
nos seres atrofiados, de incompleto desenvolvimento,<br />
exemplos de inutili<strong>da</strong>de capazes de desviar a atenção do plano<br />
geral e assim demonstrarem a ausência de inteligência, como se<br />
algumas pedras isola<strong>da</strong>s – que, de resto, entram de si mesmas no<br />
plano geral – pudessem destruir a simetria do conjunto e aniquilar<br />
o valor arquitetônico do edifício.<br />
A A<strong>na</strong>tomia compara<strong>da</strong> – acrescenta o mesmo materialista –<br />
ocupa-se principalmente no investigar a conformi<strong>da</strong>de de estrutura<br />
<strong>da</strong>s diferentes espécies de animais, fazendo ver, em ca<strong>da</strong><br />
espécie ou gênero, o princípio fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> sua organização.<br />
Basea<strong>da</strong> nesses <strong>da</strong>dos, a Ciência nos mostra em ca<strong>da</strong> ordem<br />
animal um grande número de formas, de órgãos, etc., que lhe são<br />
inteiramente inúteis, não conformes com o seu fim e antes parecendo<br />
não passarem de forma primitiva <strong>da</strong> sua constituição, de<br />
rudimentos de uma disposição, ou de uma parte do corpo, que<br />
atingiu em outra espécie um desenvolvimento capaz de facultar<br />
ao indivíduo uma certa e determi<strong>na</strong><strong>da</strong> utili<strong>da</strong>de. A colu<strong>na</strong> vertebral<br />
do homem termi<strong>na</strong> em peque<strong>na</strong> ponta de nenhuma utili<strong>da</strong>de,<br />
que muitos a<strong>na</strong>tomistas consideram como rudimentos <strong>da</strong> cau<strong>da</strong><br />
dos vertebrados.<br />
A estrutura corporal dos animais e <strong>da</strong>s plantas oferece inúmeros<br />
dispositivos sem fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de apreciável. Ninguém ain<strong>da</strong> sabe<br />
para que serve o apêndice vermicular, a glândula mamária do<br />
homem, o osso clavicular do gato, a asa de algumas aves incapazes<br />
de voar, os dentes <strong>da</strong> baleia. Vogt adverte que há animais<br />
ver<strong>da</strong>deiramente hermafroditas, possuindo os órgãos de ambos<br />
os sexos e não podendo, contudo, reproduzir-se por si mesmos.<br />
Para que serve uma tal organização? – pergunta ele.<br />
A fecundi<strong>da</strong>de de uns tantos animais é tal, que, abando<strong>na</strong>dos<br />
a si mesmos, em poucos anos repletariam os mares e envolveri-
am a Terra numa crosta <strong>da</strong> altura de uma casa. Para que serve<br />
essa organização? Espaço e matéria não bastam a uma tal quanti<strong>da</strong>de<br />
de animais. – Que fim poderia ter a <strong>Natureza</strong> desenvolvendo<br />
uma glândula mamária <strong>na</strong>s costas de um homem de 34<br />
anos, fenômeno este recentemente observado e descrito pelo Dr.<br />
Hobbe, de Vie<strong>na</strong>? Porque <strong>da</strong>r três seios completamente formados<br />
a uma mulher e quatro a uma outra? E porque, num cortiço de<br />
abelhas, milhares de zangões tão só desti<strong>na</strong>dos ao extermínio?<br />
Animais há que jamais <strong>na</strong><strong>da</strong>m e, no entanto, têm patas provi<strong>da</strong>s<br />
de membra<strong>na</strong>s <strong>na</strong>tatórias, enquanto que aves aquáticas importantes<br />
ape<strong>na</strong>s apresentam delga<strong>da</strong>s membra<strong>na</strong>s.<br />
O ferrão <strong>da</strong> vespa e <strong>da</strong> abelha ape<strong>na</strong>s lhes serve de arma mortífera<br />
ao inseto que o experimenta, e assim por diante, O desígnio<br />
de um Criador Onipotente e onisciente deveria, antes de<br />
tudo, ser possível de interpretação racio<strong>na</strong>l. Se assim fosse, não<br />
<strong>da</strong>ria, certo, órgãos inúteis aos animais.<br />
Qual a fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e utili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas fetais transitórias,<br />
<strong>na</strong>s quais os mamíferos se assemelham aos peixes e aos répteis,<br />
antes de atingirem completa formação? Para que servem, no feto<br />
humano, os arcos bronquiais com suas aberturas? Porque, nos<br />
mamíferos, órgãos rudimentares que só se desenvolvem nos<br />
répteis? E porque, nos mamíferos machos, órgãos genitais femininos<br />
que se não desenvolvem, e vice-versa?<br />
Tuttle não percebe que estas anomalias se integram de si<br />
mesmas no plano geral, cuja lei de progresso é princípio e fim.<br />
O autor de Força e Matéria apega-se com unhas e dentes a<br />
esses artifícios, no intuito de dissimular a cambalhota, trazendo à<br />
baila todos os monstros de terra e mar.<br />
“Um dos fatos mais importantes que desmentem as causas<br />
fi<strong>na</strong>is <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> são os monstros. A prova de que o simples<br />
bom senso não podia conciliar a existência de tais aberrações<br />
com a crença de um criador, operando determi<strong>na</strong><strong>da</strong>mente, está<br />
em que os povos antigos os consideravam como expressões de<br />
cólera dos deuses, e ain<strong>da</strong> hoje os simplórios vêem nesses fatos<br />
um castigo do céu. Vimos no gabinete de um veterinário uma<br />
cabra recém-<strong>na</strong>sci<strong>da</strong>, perfeitamente conforma<strong>da</strong>, mas sem cabe-
ça. Haverá <strong>na</strong><strong>da</strong> de mais absurdo e mais contrário ao fim, do que<br />
ensejar a formação perfeita de um organismo previamente inviável,<br />
permitindo-lhe acesso ao mundo? O professor Lotze, de<br />
Goetting, excede-se a si mesmo ao dizer, a propósito de monstros,<br />
que, quando a um feto falta o cérebro, a única coisa a fazer,<br />
dig<strong>na</strong> de uma potência absoluta, seria sustar os efeitos, desde que<br />
não podia remediar o fracasso. Um corpo estranho <strong>na</strong> glote é<br />
suscetível de expelir-se com a tosse provoca<strong>da</strong>; mas, um corpo<br />
estranho no esôfago pode, excitando os nervos <strong>da</strong> laringe, determi<strong>na</strong>r<br />
a asfixia.<br />
– Ca<strong>da</strong> dia, a to<strong>da</strong> hora, pode o médico convencer-se pelas<br />
moléstias, deformi<strong>da</strong>des, abortos, etc., do abandono em que a<br />
<strong>Natureza</strong> deixa as suas criaturas. Outrossim, para que serviriam<br />
os médicos, se a <strong>Natureza</strong> agisse de acordo com um fim?<br />
Sob estes argumentos exagerados há uma ver<strong>da</strong>de constante<br />
que é, certo, uma <strong>da</strong>s maiores dificul<strong>da</strong>des que se nos podem<br />
opor.<br />
Por nós, confessamos que jamais se nos deparou um aleijão,<br />
que nos não sentíssemos molestados em nossas convicções.<br />
O Gabinete de A<strong>na</strong>tomia de Estrasburgo, tão rico de monstros<br />
acéfalos e de espécimes teratológicos, não nos desperta, neste<br />
particular, nenhuma atração. Que alma teriam tido esses fetos<br />
detidos uns, desviados outros, em sua evolução normal? Problema<br />
que, nem Santo Agostinho, nem São Tomás nos aju<strong>da</strong>m a<br />
resolver, e que a Ciência pouco eluci<strong>da</strong>. Considerando, porém, as<br />
coisas no seu justo ponto de vista, temos que aí militam exceções<br />
muito raras, de sorte a não poderem infirmar o ensino de conjunto.<br />
Que uma planta se empole acima de um ligamento; que as<br />
veias intumesçam à compressão do braço, que impede o retorno<br />
do sangue; que um feto paralise a sua evolução, ou que um órgão<br />
se atrofie em conseqüência de particulari<strong>da</strong>de orgânica qualquer,<br />
anomalias são essas mais aparentes que reais, a mostrarem que<br />
as leis são gerais, tanto quanto não ser <strong>Deus</strong> um ser mesquinho,<br />
cuja ação se modele pelos obstáculos passageiros produzidos<br />
pelo homem, ou por quaisquer acidentes, quando por elas induzem<br />
à inexistência de <strong>Deus</strong>, ou que <strong>Deus</strong> deveria proceder de<br />
acordo com as idéias huma<strong>na</strong>s.
Insistindo mais especialmente acerca <strong>da</strong>s monstruosi<strong>da</strong>des,<br />
também nos advertem <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de as produzir artificialmente<br />
com uma simples lesão do ovo ou do feto. A <strong>Natureza</strong>,<br />
dizem, não tem meios de reparar esse mal e, muito ao contrário,<br />
segue o impulso recebido, continua a operar <strong>na</strong> falsa direção e<br />
acaba engendrando um monstro. “Haverá quem possa duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong><br />
ausência total de inteligência e do puro mecanismo deste processo?<br />
Diante de um fato desta ordem, poder-se-á admitir um criador<br />
inteligente gover<strong>na</strong>ndo a matéria a seu nuto? Seria, então,<br />
possível que essa inteligência se deixasse vencer ou desviar pela<br />
vontade arbitrária do homem?”<br />
Admiremos, aqui, até onde ousam levar esta crítica às obras<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> 102 . Para que esses senhores se contentassem e se<br />
dig<strong>na</strong>ssem fazer justiça à Inteligência que rege o mundo, fora<br />
preciso que a ordem sobera<strong>na</strong> e inflexível cercasse os seres de<br />
uma couraça de aço rígido. Admirais a fi<strong>na</strong> tessitura <strong>da</strong> pele,<br />
uma cútis aceti<strong>na</strong><strong>da</strong>, sua alvura e sensibili<strong>da</strong>de ao menor contacto.<br />
E, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, não tendes razão. Essas quali<strong>da</strong>des, não provam<br />
que a <strong>Natureza</strong> tenha operado inteligentemente e preparado<br />
ao mesmo tempo as condições sanitárias de um corpo bem<br />
constituído, assim como as sensações úteis ou agradáveis, que<br />
essa carne vibrátil venha a experimentar. Não. Esses filósofos<br />
haveriam de preferir o mármore ou o ferro: “a <strong>Natureza</strong> poderia<br />
ter agido de forma que as balas esfusiassem do corpo e as espa<strong>da</strong>s<br />
acutilassem sem ferir 103 . Que tal esta crítica? Eis aqui uma<br />
criança que acaba de <strong>na</strong>scer: se lhe decepardes a cabeça, essa<br />
cabeça não tor<strong>na</strong>rá a <strong>na</strong>scer. Estúpi<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>! que se deixa,<br />
assim, anular pelo arbitrário capricho humano”... E quereis ain<strong>da</strong><br />
conhecer uma outra prova <strong>da</strong> ininteligência de <strong>Deus</strong> e <strong>da</strong> futili<strong>da</strong>de<br />
dos que nele acreditam? – Ei-la e tomai bem nota, porque é<br />
prova irresistível. A luz, cuja veloci<strong>da</strong>de se estima em 75.000<br />
léguas por segundo, não vai assaz rapi<strong>da</strong>mente. “A luz atravessa<br />
tão lentamente o Universo, que seriam precisos milhões de anos<br />
para chegar de uma a outra estrela. Que se há de pensar destas<br />
restrições tão pouco sábias, como manifestações de uma vontade<br />
criadora? 104
Talvez objeteis, ingênuo leitor, que a maior ou menor veloci<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> luz <strong>na</strong><strong>da</strong> tem que ver com a inexistência de uma vontade<br />
criadora. Mas, nesse caso, é que não percebestes que esses<br />
escritores julgam que <strong>Deus</strong>, se existisse, deveria ter as mesmas<br />
nossas fantasias. E como ao Sr. Büchner não lhe apraz que a luz<br />
ape<strong>na</strong>s percorra 4.620.000 léguas por minuto, é claro que ela<br />
deveria correr mais. Arrastando-se assim penosamente no espaço,<br />
é porque não existe Criador. Isto posto, podeis perguntar qual<br />
a cifra que agra<strong>da</strong>ria ao talentoso crítico e sabereis que o próprio<br />
Sr. B... não o sabe ao certo e o que só deseja, para o momento, é<br />
que a luz caminhe mais depressa. Mas, a despeito de tudo, não<br />
nos devemos formalizar por esta inocente fantasia, antes, pelo<br />
contrário, compartilhar do mesmo nobre desejo. Assim, confessamos<br />
que veríamos com prazer quaisquer progressos de rapidez<br />
<strong>na</strong> luz, mesmo aqui por baixo.<br />
Aí estão, dir-se-á, objeções meramente ridículas. Entretanto,<br />
as mais sérias dificul<strong>da</strong>des desaparecem por si mesmas, quando<br />
o homem deixa de apresentar-se como ponto de referência. E<br />
isso é o que se lhe impõe, de vez que é, ele próprio, parte integrante<br />
de um plano geral, extensivo a outros mundos, <strong>na</strong> imensi<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> Criação. Se o Cid, se Andrômaco – advertimos com E.<br />
Bersot 105 – ressuscitassem para se verem representados por<br />
Corneille e Racine – tendo em vista o belo papel que lhes atribuíram,<br />
o relevo em relação a outras perso<strong>na</strong>gens, a predileção do<br />
poeta neles concentra<strong>da</strong> – diriam, seguramente, que Corneille e<br />
Racine tiveram em mira erguer um monumento à sua glória, e<br />
mais: que são eles fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> obra, a sua mola real, e que os<br />
demais comparsas ape<strong>na</strong>s vêm à ce<strong>na</strong> por causa deles... A ver<strong>da</strong>de<br />
é que o objetivo do autor é realizar o belo, cuja perspectiva o<br />
inflama; é traduzir <strong>na</strong> linguagem dos homens o ideal invisível.<br />
As perso<strong>na</strong>gens não passam de instrumentos. Não temos aí uma<br />
justa imagem <strong>da</strong> Criação? Tem graça, então, ver como algum dos<br />
atores, chamados à ce<strong>na</strong> para balbuciar um só vocábulo em to<strong>da</strong><br />
a peça, imagi<strong>na</strong> que o teatro foi construído e or<strong>na</strong>mentado para<br />
ele e que estivera vazio até então, etc.<br />
A ilusão dos sentidos e a vai<strong>da</strong>de aí se juntam para induzirnos<br />
em erro. O fim <strong>da</strong> Ciência é libertar-nos <strong>da</strong> mais funesta
superstição, dos inimigos <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Deixem-se os teólogos de<br />
invocar as causas fi<strong>na</strong>is, pois não há como ser juiz e parte ao<br />
mesmo tempo. O mundo organizado é to<strong>da</strong> uma harmonia imensa;<br />
os monstros de que falamos são atestados de uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei e<br />
do plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, Os seres inúteis e os nocivos ao homem<br />
são manifestações <strong>da</strong> força criadora e <strong>da</strong>s etapas gra<strong>da</strong>tivas. O<br />
conjunto é o que importa considerar, e não o “habitat” humano.<br />
À face desse panorama, esvanecem-se to<strong>da</strong>s as objeções deriva<strong>da</strong>s<br />
de uma acanha<strong>da</strong> aplicação ao homem.<br />
Concentremos agora a nossa atenção <strong>na</strong> construtivi<strong>da</strong>de inteligente<br />
dos órgãos desti<strong>na</strong>dos a transmitir ao cérebro o conhecimento<br />
do mundo exterior, isto é, dos sentidos e, particularmente,<br />
<strong>da</strong> vista. A beleza <strong>da</strong> conformação ótica do olho não há quem<br />
possa contestar. Afirmar que ele foi feito para ver, como o<br />
ouvido para ouvir, é cometer pleo<strong>na</strong>smo. Repetir que a sua<br />
organização é mais perfeita que a de qualquer câmara fotográfica<br />
é incidir em ba<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. Mas, para combater o adversário no<br />
mesmo pé e no mesmo terreno, importa entrar em detalhes por<br />
um momento e invocar a descrição a<strong>na</strong>tômica do olho.<br />
A visão nos olhos do homem, como nos do animal – dizia<br />
Euler – é coisa maravilhosa. A forma do globo é, em geral,<br />
esférica e compõe-se de três folhetos. A membra<strong>na</strong> mais superficial<br />
chama-se esclerótica (branco do olho), é opaca, assaz espessa<br />
e cerca mais ou menos os três quartos posteriores do globo<br />
visual, <strong>da</strong>ndo-lhe consistência e forma. Sua parte anterior apresenta<br />
uma abertura arredon<strong>da</strong><strong>da</strong>, <strong>na</strong> qual se embute a córnea<br />
transparente. A essa membra<strong>na</strong> estão ligados os músculos desti<strong>na</strong>dos<br />
a movimentar o globo. Por baixo dessa primeira membra<strong>na</strong><br />
fica a coróide, de cor negra retinta, que faz do olho uma<br />
ver<strong>da</strong>deira câmara-escura, absorvendo os raios que pudessem<br />
irritar a reti<strong>na</strong>; em sua parte anterior, ela forma um como repartimento<br />
diafragmático, chamado íris, disco circular com um<br />
orifício central e colorido de diversos matizes, cuja suave atração<br />
é, às vezes, maravilhosamente poderosa.<br />
O orifício central é a chama<strong>da</strong> pupila (ou meni<strong>na</strong> dos olhos) e<br />
nós sabemos que ela <strong>na</strong><strong>da</strong> tem de objetivo, como se afigura, e<br />
sim, ape<strong>na</strong>s, uma abertura que se dilata, mais ou menos, confor-
me a quanti<strong>da</strong>de de luz que os olhos recebem, pois que a íris<br />
goza <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de curiosa de se contrair ou dilatar para tor<strong>na</strong>rse,<br />
assim, um graduador indispensável. É por essa abertura<br />
variável <strong>da</strong> íris que os raios luminosos penetram <strong>na</strong> câmaraescura<br />
que lhe fica por trás. Uma lente biconvexa lá está suspensa,<br />
para receber esses raios: é o cristalino.<br />
To<strong>da</strong> a parte posterior, a partir dessa lente até o fundo do<br />
olho, está cheia de massa gelatinosa, diáfa<strong>na</strong>, semelhante à clara<br />
de ovo e conheci<strong>da</strong> por humor vítreo.<br />
Fi<strong>na</strong>lmente, atrás desse humor e defronte <strong>da</strong> pupila, localizase<br />
a mais delica<strong>da</strong> e importante <strong>da</strong>s membra<strong>na</strong>s, a placa sensível,<br />
que recebe a imagem e, comunicando-se com o cérebro, lhe dá a<br />
percepção: é a reti<strong>na</strong>, uma floração do nervo ótico, proveniente<br />
do cérebro. Vê-se, pois, sem metáfora, que é o cérebro que se<br />
vem colocar à janela para ver o mundo exterior.<br />
O prolongamento <strong>da</strong> reti<strong>na</strong> forra to<strong>da</strong> a zo<strong>na</strong> posterior e inter<strong>na</strong><br />
dos olhos.<br />
O cristalino, lente pela qual passam todos os raios luminosos,<br />
a fim de chegar à reti<strong>na</strong>, pode, com extraordinária facili<strong>da</strong>de,<br />
modificar a ca<strong>da</strong> instante a sua flexão, de maneira a a<strong>da</strong>ptar-se à<br />
distância e levar constantemente à reti<strong>na</strong> uma imagem níti<strong>da</strong>.<br />
Mas, como concebermos possa esse cristal orgânico dilatar-se e<br />
retrair-se assim, à sua vontade? Sem concebermos esta possibili<strong>da</strong>de,<br />
fora preciso uma estrutura ain<strong>da</strong> mais admirável que o<br />
próprio efeito. É preciso saber que esse globo lenticular não é<br />
nenhum sólido constituindo uma peça inteiriça, mas, antes, uma<br />
associação de finíssimas lâmi<strong>na</strong>s transparentes, justapostas e tão<br />
delga<strong>da</strong>s que preciso fora reunir um milhar para perfazer a<br />
espessura de uma unha e que, <strong>na</strong> reali<strong>da</strong>de, o cristalino contém<br />
assim uma como bagatela de cinco milhões. Considere-se, ain<strong>da</strong>,<br />
que essas lâmi<strong>na</strong>s, por sua vez, se compõem de pequenos fragmentos<br />
sol<strong>da</strong>dos entre si, e que é o jogo desses fragmentos que<br />
produz a extraordinária mobili<strong>da</strong>de inter<strong>na</strong> dessa lente diáfa<strong>na</strong>.<br />
Aí estão as criações maravilhosas, <strong>da</strong>s quais se repleta a <strong>Natureza</strong>,<br />
e que passam comumente despercebi<strong>da</strong>s!
Mediante essa estrutura engenhosa quão inimitável <strong>da</strong> vista,<br />
os objetos exteriores passam do campo físico ao mental, tor<strong>na</strong>mse<br />
acessíveis ao espírito e deixam-se tatear, como se deles não<br />
nos separasse qualquer distância. É um mecanismo que se mol<strong>da</strong><br />
a to<strong>da</strong>s as contingências. De si mesmo e a nosso nuto, ele se<br />
a<strong>da</strong>pta às variações de luz, como as de espaço, e faz o que nenhum<br />
outro instrumento é capaz de fazer, isto é, sabe distinguir<br />
os corpos celestes a distâncias enormes, tanto quanto os seres<br />
microscópicos que se lhe acercam de centímetros.<br />
Brewster tem razão quando o denomi<strong>na</strong> “sentinela que guar<strong>da</strong><br />
a passagem entre os mundos material e espiritual, executando a<br />
permuta de suas comunicações”.<br />
Nós compreendemos que, depois de haver ponderado a estrutura<br />
do órgão visual, Euler dê arras à sua admiração, dizendo: “O<br />
olho ultrapassa, portanto, infinitamente, to<strong>da</strong>s as máqui<strong>na</strong>s que o<br />
engenho humano possa construir. As diversas matérias transparentes<br />
de que ele se compõe têm, não ape<strong>na</strong>s um grau de densi<strong>da</strong>de<br />
capaz de causar refrações diferentes, como bem determi<strong>na</strong><strong>da</strong><br />
se apresenta a sua configuração, de sorte que todos os raios<br />
saídos de um ponto do objeto são exatamente reunidos num<br />
mesmo ponto, ain<strong>da</strong> que o objeto esteja mais ou menos distante,<br />
situado direta ou obliquamente, e que seus raios sofram refração<br />
diferente. À mínima alteração que se operasse <strong>na</strong> <strong>na</strong>tureza e <strong>na</strong><br />
configuração <strong>da</strong>s matérias transparentes, o olho perderia desde<br />
logo to<strong>da</strong>s as vantagens que acabamos de admirar.<br />
Na<strong>da</strong> obstante, os ateus ousam sustentar que os olhos, bem<br />
como o mundo inteiro, não passam de obra de mero acaso. Na<strong>da</strong><br />
encontram eles, em tudo isso, digno de sua atenção. Não reconhecem<br />
<strong>na</strong> estrutura do globo visual indício qualquer de sabedoria;<br />
antes, acreditam haver motivo para lastimar-lhe a imperfeição,<br />
de vez que não domi<strong>na</strong> a obscuri<strong>da</strong>de, não atravessa uma<br />
parede, não distingue as particulari<strong>da</strong>des de um objeto mais<br />
distanciado, quais a Lua e outros corpos celestes. Gritam eles,<br />
em alto e bom som, que o olho <strong>na</strong><strong>da</strong> é que indique um desígnio e<br />
foi feito ao acaso, como qualquer fruto silvestre, pelo que fora<br />
absurdo dizer que tivemos olhos para podermos ver. O que se<br />
conclui é que, ao invés, tendo recebido ocasio<strong>na</strong>lmente os ór-
gãos, deles nos aproveitamos tanto quanto o permite a <strong>Natureza</strong>.<br />
É inútil discutir com essa gente: i<strong>na</strong>balável <strong>na</strong>s suas convicções,<br />
ela despreza as coisas mais respeitáveis. Suas presunções a<br />
respeito dos olhos, vê-se, são absur<strong>da</strong>s quanto injustas 106 .<br />
Os raios que ao nosso cérebro transmitem o aspecto dos objetos,<br />
penetram no olho, obedecendo às leis <strong>da</strong> refração, em virtude<br />
<strong>da</strong>s quais as substâncias do olho se encontram de si mesmas<br />
dispostas. A íris enche o globo ocular e exerce, em relação aos<br />
raios luminosos, o papel de diafragma. A chispa central, luminosa,<br />
que atravessa a pupila, atinge logo o cristalino; esses raios<br />
são fortemente aproximados por essa lente biconvexa, mas, sem<br />
que <strong>da</strong>í resulte decomposição de raios luminosos, assim facultando<br />
a coloração prismática objetiva. Esse perfeito acromatismo,<br />
tão rara e dificilmente obtido <strong>na</strong> construção <strong>da</strong>s objetivas, é<br />
devido à diferença de densi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s numerosas cama<strong>da</strong>s concêntricas<br />
do cristalino. Os raios luminosos, tor<strong>na</strong>ndo-se fortemente<br />
convergentes ao atravessarem o cristalino e, mais ain<strong>da</strong>, pelo<br />
humor vítreo que se lhe segue, tendem a reunir-se num foco<br />
comum e a formar uma imagem que se vai desenhar <strong>na</strong> superfície<br />
<strong>da</strong> reti<strong>na</strong>. O olho se a<strong>da</strong>pta, pois, de si mesmo, às distâncias,<br />
seja pela contração <strong>da</strong> íris, seja pelo alongamento ou retração do<br />
eixo do cristalino. Ao demais, exposto, devido à sua posição, a<br />
numerosas alterações, a <strong>Natureza</strong> tomou as maiores precauções<br />
em sua garantia. Assim, para subtraí-lo a uma excessiva excitação<br />
luminosa, dispôs <strong>na</strong> parte anterior as pálpebras movediças,<br />
guarnecendo-as de cílios protetores, e cujo interior se forra de<br />
membra<strong>na</strong> delicadíssima, lubrifica<strong>da</strong> com a secreção de uma<br />
glândula situa<strong>da</strong> <strong>na</strong> abóba<strong>da</strong> orbitária, a verter de seis ou sete<br />
pequeninos ca<strong>na</strong>is que se abrem ao alto <strong>da</strong> pálpebra superior.<br />
Ante a descrição a<strong>na</strong>tômica do globo visual, que desejaríamos<br />
poder ilustrar direta ou graficamente, a nós mesmos nos perguntamos,<br />
como Newton, “se o olho poderia ser feito sem conhecimento<br />
<strong>da</strong> Ótica”, para responder, com o ilustre pensador, que<br />
essa estrutura demonstra, sem contestação possível, não só a<br />
existência de uma inteligência conhecedora <strong>da</strong> Ótica, mas também<br />
capaz de lhe submeter às leis todos os movimentos <strong>da</strong><br />
matéria.
Efetivamente, é preciso audácia para, diante <strong>da</strong> construção<br />
portentosa do órgão visual, pretendê-la originária de uma força<br />
cega e ignorante, simples jogo <strong>da</strong> matéria e independente de<br />
inteligência. Se a luneta astronômica, que não passa de grosseiro<br />
arranjo de lentículas, testifica ao senso comum a intervenção de<br />
um técnico, como poderia a lente do homem, infinitamente<br />
superior a todo e qualquer aparelho físico, ser considera<strong>da</strong> obra<br />
espontânea do acaso? Pois isso – pesa dizê-lo – é o que propug<strong>na</strong><br />
a escola materialista!<br />
O olho formou-se por si mesmo! Este fato importante é uma<br />
aquisição dessa meia-ciência, realiza<strong>da</strong> em duas fases, a primeira<br />
com Darwin e a segun<strong>da</strong> com Büchner. Este nos diz que ao<br />
escrever, há sete anos, sobre a inexistência de <strong>Deus</strong>, não esperava<br />
que os progressos constantes <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> lhe fornecessem,<br />
tão cedo, “provas tão exatas e convincentes”, em apoio de sua<br />
doutri<strong>na</strong>, e essas provas é Darwin quem se encarrega de as<br />
editar. Está, enfim, provado (?) que o olho, órgão dos mais<br />
perfeitos do corpo animal (o Sr. B. confessa-o) desenvolveu-se<br />
insensivelmente de um simples nervo sensitivo! O Sr. Büchner<br />
exulta de alegria com esse feito, ou por melhor dizer, com essa<br />
teoria que lhe prova, ao seu ver, a inexistência de <strong>Deus</strong>. Ouçamos<br />
o próprio Darwin, vejamos se o fato está bem comprovado e<br />
se, mesmo neste caso, a explicação secundária suprime a existência<br />
de <strong>Deus</strong>.<br />
“Antes de tudo – diz o <strong>na</strong>turalista 107 –, parece, confesso, estranhável<br />
absurdo supormos que o olho, tão admiravelmente<br />
construído para suportar mais ou menos luz, para ajustar o foco<br />
dos raios visuais a diferentes distâncias e a corrigir a aberração<br />
esférica e cromática, possa formar-se por seleção <strong>na</strong>tural.<br />
“E contudo, quando pela primeira vez foi dito que o Sol estava<br />
imóvel e a Terra girava, o bom senso declarou falsa a teoria.<br />
Todos os filósofos sabem que, em matéria de Ciência, não podemos<br />
confiar no velho adágio – vox populi, vox Dei. A razão<br />
me diz e assegura podermos demonstrar inúmeros graus de<br />
transição entre o globo mais perfeito e complicado e o mais<br />
simples e imperfeito. Ca<strong>da</strong> um desses graus de perfeição aproveita<br />
utilmente a quem o desfruta. Se, de resto, o olho varia
algumas vezes, por pouco que seja, e se as variações se her<strong>da</strong>m,<br />
o que se pode demonstrar por fatos; se, enfim, as variações ou<br />
modificações do órgão jamais puderam ter alguma utili<strong>da</strong>de para<br />
um animal colocado em condições mutáveis de existência; desde<br />
logo ressalta o pressuposto de que um olho perfeito e complicado<br />
pode ter sido formado por seleção <strong>na</strong>tural e esta rigorosamente<br />
considera<strong>da</strong> como ver<strong>da</strong>deira. Como pode um nervo tor<strong>na</strong>r-se<br />
sensível à luz? É um problema que nos importa tão pouco quanto<br />
o <strong>da</strong> origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em si mesma.<br />
“Devo ape<strong>na</strong>s dizer que vários fatos me levam a crer que os<br />
nervos sensíveis ao contacto podem tor<strong>na</strong>r-se sensíveis à luz,<br />
bem como às vibrações menos sutis, produtoras do som.”<br />
Darwin não tem razão de julgar que a origem do órgão visual<br />
importa tão pouco quanto a <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong>, e nós gostaríamos de<br />
saber se, para ele, essa origem elementar oferece alguma semelhança<br />
com a sensibili<strong>da</strong>de do iodo à luz, verifica<strong>da</strong> <strong>na</strong> chapa<br />
fotográfica. Mas, visto que ele se cala, vamos admitir provisoriamente<br />
a possibili<strong>da</strong>de do fato, e ouçamos o desenvolvimento <strong>da</strong><br />
teoria do progresso.<br />
“Entre os vertebrados vivos não encontramos grande varie<strong>da</strong>de<br />
de olhos; nos articulados, porém, podemos acompanhar to<strong>da</strong><br />
uma série, partindo do simples nervo ótico, recoberto de cama<strong>da</strong><br />
pigmentar e formando, às vezes, uma espécie de pupila, embora<br />
sempre desprovido de lente ou qualquer mecanismo ótico. Depois<br />
desse olho rudimentar, capaz ape<strong>na</strong>s de só diferençar a luz<br />
<strong>da</strong> obscuri<strong>da</strong>de, deparam-se-nos duas séries paralelas de órgãos<br />
visuais, ca<strong>da</strong> vez mais perfeitos, entre as quais, Muller diz haver<br />
diferenças fun<strong>da</strong>mentais: – a dos olhos chamados simples,<br />
providos de lente e córnea, e a dos complexos, que excluem os<br />
raios convergentes de todo o campo visual, exceto o pincel<br />
luminoso, que chega à reti<strong>na</strong> seguindo uma linha perpendicular<br />
ao seu plano.”<br />
O grande advogado <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural pensa que, admitindo<br />
origi<strong>na</strong>riamente nos primeiros organismos a existência de um<br />
nervo sensível à luz, poder-se-á admitir que a <strong>Natureza</strong>, em<br />
virtude dessa lei organizadora do progresso chega, insensivel-
mente aos aparelhos óticos, sejam cônicos, sejam lenticulares,<br />
perfeitos.<br />
Os seres favorecidos com esse nervo maravilhoso dele se utilizaram<br />
e o aperfeiçoaram em benefício próprio. “Se refletirmos<br />
– diz ele –, <strong>na</strong> varie<strong>da</strong>de de graus que apresenta a estrutura<br />
ocular dos nossos crustáceos e nos lembrarmos do número de<br />
espécies extintas, não vejo dificul<strong>da</strong>de alguma e, sobretudo, uma<br />
dificul<strong>da</strong>de maior que a relativa a outro órgão em admitir que a<br />
seleção <strong>na</strong>tural haja transformado um aparelho simples, ape<strong>na</strong>s<br />
constituído de um nervo ótico pigmentado e revestido de membra<strong>na</strong><br />
transparente, num instrumento tão perfeito qual o podem<br />
possuir quaisquer representantes <strong>da</strong> grande família dos articulados.”<br />
Parece muito <strong>na</strong>tural comparar o órgão visual a um telescópio.<br />
Ora, sabemos nós que este instrumento tem sido sucessivamente<br />
aperfeiçoado graças a esforços perseverantes de inteligências<br />
huma<strong>na</strong>s, de ordem superior, e assim inferimos a formação<br />
do olho mediante análogo processo. “Será uma indução muito<br />
presunçosa?” – pergunta ele com alguma razão. Que direito<br />
temos de afirmar que o Criador opera com o concurso <strong>da</strong>s mesmas<br />
facul<strong>da</strong>des intelectuais do homem? Na<strong>da</strong> obstante a advertência,<br />
Darwin prossegue aplicando à obra divi<strong>na</strong> as idéias<br />
aflora<strong>da</strong>s em seu cérebro. Eis como expõe ele a formação lenta,<br />
<strong>na</strong>s espécies vivas, do instrumento ótico que nos faz ver. É uma<br />
hipótese sem mal<strong>da</strong>de preconcebi<strong>da</strong>.<br />
“Precisamos figurar um nervo sensível à luz, colocado atrás<br />
de espessa cama<strong>da</strong> de tecidos transparentes, contendo espaços<br />
cheios de fluidos; depois, aí poremos que ca<strong>da</strong> parte dessa cama<strong>da</strong><br />
transparente mu<strong>da</strong> contínua e lentamente, de densi<strong>da</strong>de, de<br />
maneira a separar-se em cama<strong>da</strong>s parciais, diferentes em densi<strong>da</strong>de<br />
e espessura, coloca<strong>da</strong>s a distâncias variáveis entre si e cujas<br />
duplas superfícies mu<strong>da</strong>m lentamente de forma. Além disso, é<br />
preciso admitir exista um poder inteligente e esse poder inteligente<br />
é a seleção <strong>na</strong>tural, constantemente alerta<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> e<br />
qualquer alteração acidental <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s transparentes, a fim de<br />
escolher, solícitas, aquelas que por circunstâncias diversas<br />
podem, de algum modo e em grau qualquer, favorecer a produ-
ção de imagens mais níti<strong>da</strong>s. Podemos ain<strong>da</strong> supor que esse<br />
instrumento foi multiplicado por um milhão, em ca<strong>da</strong> um desses<br />
estados de perfectibili<strong>da</strong>de, e que ca<strong>da</strong> uma dessas formas se<br />
perpetuasse, até que se lhe apresentasse ensejo de melhora,<br />
permitindo o quase imediato abandono e destruição <strong>da</strong> antiga.<br />
“Nos seres vivos, a variabili<strong>da</strong>de produzirá as ligeiras modificações<br />
do instrumento <strong>na</strong>tural, a descendência multiplicá-la-á ao<br />
infinito, assim modifica<strong>da</strong>, e a seleção <strong>na</strong>tural escolherá, com<br />
infalível habili<strong>da</strong>de, ca<strong>da</strong> novo aperfeiçoamento realizado. Que<br />
este processo continue operante por milhões e milhões de anos e,<br />
em ca<strong>da</strong> ano, influindo sobre milhões de indivíduos de to<strong>da</strong>s as<br />
espécies, já não será impossível acreditar possa constituir-se<br />
assim um aparelho de ótica viva, com requisitos superiores aos<br />
de nossa manufatura, ou seja, com a superiori<strong>da</strong>de característica<br />
<strong>da</strong>s obras divi<strong>na</strong>s em relação às huma<strong>na</strong>s.”<br />
Os observadores podem assi<strong>na</strong>lar no sistema <strong>da</strong>rwiniano uma<br />
certa reserva favorável a <strong>Deus</strong>, mas essa reserva não quadra aos<br />
materialistas radicais. Até o seu tradutor francês, senhorita<br />
Clemência Royer, censura-o com veemência, por desviar-se em<br />
tão bela rota e ain<strong>da</strong> se deixar levar pela idéia de um Ser supremo.<br />
“O Sr. Darwin não me parece bastante corajoso – diz ela no<br />
seu prefácio. – Será por prudência que não vai ao fim do seu<br />
sistema, detendo-se a meio <strong>da</strong> cadeia <strong>da</strong>s respectivas conseqüências?<br />
Quando espíritos ardorosos, senão mais lógicos, formularam<br />
conseqüências extremas, o mundo dos puritanos, escan<strong>da</strong>lizado<br />
com a tese de que o planeta não descendia em linha reta <strong>da</strong><br />
coxa de algum deus, protestou em altos brados”, etc... Essa<br />
moça, ao menos, vai até o fim; não tolera que ain<strong>da</strong> se possa<br />
tomar <strong>Deus</strong> a sério, ridiculiza igualmente os teólatras, sapateia<br />
sobre os destroços do teísmo e fulmi<strong>na</strong> os defensores de uma<br />
Enti<strong>da</strong>de suprema. Vira a cara a todo e qualquer sintoma de idéia<br />
religiosa e abre os braços aos declamadores alemães. O cura<br />
Meslier toca violão no seu tonel e a <strong>da</strong>nça prossegue maravilhosa...<br />
Só há um pequeno defeito de lógica nestes exímios pensadores,<br />
qual o de ser essa presumi<strong>da</strong>, rigorosa lógica, sobera<strong>na</strong>mente<br />
ilógica, ain<strong>da</strong> mais quando os fatos e teorias consig<strong>na</strong>dos pelos
<strong>da</strong>rwinistas não comportam as conseqüências ridículas que lhes<br />
atribuem. E o mais curioso em tudo isto é que esses espíritos<br />
fortes – atordoados com a sua exaltação – não percebem a lacu<strong>na</strong><br />
que persistem em manter, entre as premissas e conclusões do seu<br />
raciocínio. Sua maneira de falar compara-se a uma rota traça<strong>da</strong><br />
em altiplano e seccio<strong>na</strong><strong>da</strong> a meio do seu curso por um abismo<br />
profundo, qual os que soem separar bruscamente duas galerias.<br />
As extremi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> rota não estariam mal feitas nem mal traça<strong>da</strong>s,<br />
mas, infelizmente, não se pode caminhar de ponta a ponta,<br />
de vez que o abismo as isola irremediavelmente. E isso porque<br />
lançar aí uma ponte é mais difícil do que parece.<br />
Ao pensar dos mestres, não há solução de continui<strong>da</strong>de e a<br />
ação puramente constante de <strong>Deus</strong> vale para explicar tanto a<br />
origem como a sucessivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s coisas: os discípulos, porém,<br />
pretendem ultrapassar os mestres e des<strong>na</strong>turam as teorias de que<br />
se dizem defensores. Pobres defensores! Temos já visto como<br />
racioci<strong>na</strong>m os experimentadores. Vamos registrar a opinião do<br />
autor <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de de plano, Geoffroy Saint-Hilaire. Ao<br />
invés de pender para as negações que hoje nos opõem, o sábio<br />
fisiologista se julga no dever de afirmar bem alto que, antes, vê<br />
<strong>na</strong> sucessão <strong>da</strong>s espécies “uma <strong>da</strong>s mais gloriosas manifestações<br />
<strong>da</strong> Potência criadora, tanto quanto um motivo de maior admiração,<br />
de reconhecimento e de amor” 108 .<br />
Digamo-lo com firmeza: mesmo admitindo, sem reservas, todos<br />
os fatos invocados pelos materialistas; mesmo perfilandonos<br />
ao lado de Darwin, Owen, Lamarck, Saint-Hilaire e, sobretudo,<br />
com estes (porque há sempre gente mais realista do que o<br />
rei), para supor que os olhos, os sentidos, os homens, os animais,<br />
seres e plantas vivos, em suma, se tenham formado pela ação<br />
permanente de uma força <strong>na</strong>tural, nem por isso se provaria a<br />
inexistência de <strong>Deus</strong>, mas, ao invés, que <strong>Deus</strong> existe. Na reali<strong>da</strong>de,<br />
o que se dá é que, em vez de se nos revelar como pedreiro,<br />
ele se nos antolha como arquiteto. E com isto, cremos, <strong>na</strong><strong>da</strong><br />
perde, nem muito, nem pouco.<br />
Em nosso estudo geral <strong>da</strong> Força e <strong>da</strong> Matéria (segun<strong>da</strong> parte,<br />
capítulo II), acompanhamos essa metamorfose <strong>da</strong> idéia de <strong>Deus</strong>.<br />
Do ponto de vista <strong>da</strong> desti<strong>na</strong>ção dos seres e <strong>da</strong>s coisas, a idéia
correlativa sofre a mesma progressão; longe de enfraquecer a<br />
antiga beleza do plano criador, ela o desenvolve e reforça grandemente.<br />
Se, em vez de uma mão a construir o protótipo de ca<strong>da</strong><br />
espécie animal e vegetal, admitirmos uma força íntima, aplica<strong>da</strong><br />
à matéria, isso em <strong>na</strong><strong>da</strong> afeta a idéia de uma inteligência criadora<br />
e <strong>da</strong> fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Criação. Porque, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, é preciso cerrar<br />
preconcebi<strong>da</strong>mente os olhos, para que se não veja nessa força<br />
íntima <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> o efeito de um pensamento inteligente. É<br />
preciso ser cego para desprezar o índice evidente de uma causa<br />
poderosa e eter<strong>na</strong>.<br />
Pretender que a <strong>Natureza</strong> se forme de si mesma e progri<strong>da</strong><br />
instintivamente, numa direção constante para resultados ca<strong>da</strong> vez<br />
mais perfeitos, é confessar em parte que ela se encaminha a esse<br />
ideal devido a uma causa inteligente. Como poderia a matéria<br />
inerte ter tido a idéia de se enformar sucessivamente como<br />
vegetal, como animal, como homem, engendrando todos esses<br />
órgãos que constituem o ser vivente e conservam a vi<strong>da</strong> através<br />
dos séculos? Como construir esses aparelhos mediante os quais o<br />
ser vivo se comunica permanentemente com as causas que o não<br />
constituem? Por que capricho do acaso esses órgãos se teriam<br />
gra<strong>da</strong>tiva e lentamente formado para essa comunicação dos<br />
sentidos, ligados ao cérebro pensante, que, só ele, conhece e<br />
julga? Como explicar a técnica perfeita dessas construções?<br />
Porque completos e não falhos, esses aparelhos, em sua grande<br />
maioria? Como, em sua integri<strong>da</strong>de, por geração, se perpetuam<br />
esses organismos vivos? Porque a Criação composta de gêneros,<br />
de espécies, de família? Por que pode o espírito humano estabelecer<br />
classificação basea<strong>da</strong> no conjunto dos seres? Como reconhecemos<br />
em tudo isso uma ordem geral? Por que a <strong>Natureza</strong><br />
não representa um caos de monstruosi<strong>da</strong>des?<br />
A to<strong>da</strong>s estas perguntas respondem-nos com a lei de seleção<br />
<strong>na</strong>tural. Explicam todos os problemas repetindo que a <strong>Natureza</strong> é<br />
arrasta<strong>da</strong> a um progresso incessante, que despreza o mau pelo<br />
bom e tende sempre a realizar formas mais perfeitas.<br />
Mas, em suma, que é que vem a ser essa tendência, esse progresso<br />
instintivo, essa necessi<strong>da</strong>de de engrandecimento, senão o<br />
ato de uma força universal dirigindo o mundo para o ideal? Que
significa essa marcha simultânea de todos os seres para a perfeição,<br />
senão a revelação eloqüente de uma causa, que sabe onde e<br />
como conduz o carro, sem que a matéria servil pudesse jamais<br />
opor-lhe o mínimo obstáculo?<br />
O que acabamos de expender com relação à vista pode também<br />
aplicar-se ao ouvido, que não é menos admiravelmente<br />
construído, conforme as leis <strong>da</strong> Acústica. Poderíamos, quiçá,<br />
conceder que os ignorantes, os que jamais fizeram observações<br />
anátomo-fisiológicas e desconhecem a Física, tivessem a fantasia<br />
de acreditar que olhos e ouvidos não foram feitos para ver e<br />
ouvir. Mas, que homens instruídos, depois de escalpelarem, de<br />
observarem e tatearem esses órgãos, nos venham dizer que eles<br />
são produto de forças cegas, isso é o que nos parece aberração de<br />
espírito, dificilmente justificável. Não teriam visto que a só<br />
modelagem ceroplástica de um desses maravilhosos aparelhos<br />
basta para exaltar-nos o espírito e levá-lo a reconhecer a existência<br />
de um mecânico conhecedor <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>? Quem já<br />
se não sentiu tomado de admiração emocio<strong>na</strong>l em contemplando<br />
o mecanismo auditivo? O pavilhão exterior, cujas graciosas<br />
ondulações carreiam as on<strong>da</strong>s sonoras até o centro, mais não é<br />
que desti<strong>na</strong>do a servir ao conduto auditivo. Este, transportando o<br />
som, do orifício do ouvido à membra<strong>na</strong> do tímpano, o transmite<br />
integral ao nervo que deve realizar a sensação, forrado de uma<br />
substância mucosa, onde as glândulas segregam um humor<br />
desti<strong>na</strong>do a moderar a impressão muito irritante do ar, bem como<br />
a interditar a entra<strong>da</strong> de corpos estranhos. Atrás do tímpano fica<br />
uma peque<strong>na</strong> câmara com duas janelas, uma redon<strong>da</strong> e outra<br />
oval, contrapostas ao tímpano e comunicando-se com o ouvido<br />
interno. Este compõe-se, em primeiro lugar, de uma cavi<strong>da</strong>de<br />
óssea contor<strong>na</strong><strong>da</strong> em espiral, chama<strong>da</strong> caracol, em segui<strong>da</strong>, de<br />
três cavi<strong>da</strong>des semicirculares e, fi<strong>na</strong>lmente, de uma cavi<strong>da</strong>de<br />
central, cheia de líquido aquoso, no qual se banha o nervo acústico<br />
que lá termi<strong>na</strong>. As vibrações sônicas chegam às membra<strong>na</strong>s<br />
<strong>da</strong> janela oval e <strong>da</strong> redon<strong>da</strong>, deslizam pela rampa do caracol, <strong>da</strong>í<br />
pelos ca<strong>na</strong>is semicirculares, chegando, fi<strong>na</strong>lmente, à cavi<strong>da</strong>de<br />
central cheia do líquido aquoso, que transmite as vibrações ao<br />
nervo acústico. Este é ape<strong>na</strong>s timbrado e a impressão transmiti<strong>da</strong>
ao cérebro é o que constitui a audição. Tal, em seu conjunto, o<br />
mecanismo <strong>da</strong> audição. Não entramos em pormenores, para não<br />
aumentar complicações. Mesmo nos limites desta singela descrição,<br />
que espírito culto ousará contestar, a sério, que um tal<br />
mecanismo não prova que seu construtor soubesse que o som<br />
consiste em vibrações, e que estas não poderiam transmitir-se<br />
senão mediante uns tantos dispositivos, bem como, que, para<br />
torná-lo integralmente perceptível ao cérebro, impunha-se um<br />
aparelho acústico fronteiro ao nervo?<br />
Que homem sensato recusará admitir que esse instrumento<br />
não podia construir-se de si mesmo, por acaso, sob o impulso de<br />
qualquer força bruta e sem plano preconcebido de construção? 109<br />
E se, abstraindo-se do aspecto físico do ser pensante, déssemos<br />
aos adversários a honra embaraçosa de penetrarem no<br />
caráter íntimo do pensamento? Se lhes perguntássemos como<br />
pode um som falar ao espírito e este atender ao ouvido? Se os<br />
convidássemos a demonstrar que o homem não é uma inteligência<br />
servi<strong>da</strong> pelos órgãos, duvi<strong>da</strong>mos pudessem eles safar-se<br />
airosamente, a menos que se não valessem dos subterfúgios<br />
próprios dos maus combatentes.<br />
Mas, ain<strong>da</strong> quando estivessem com a ver<strong>da</strong>de acerca <strong>da</strong>s relações<br />
de órgão e função, ain<strong>da</strong> mesmo que provado ficasse serem<br />
os órgãos desenvolvidos e constituídos pelo jogo <strong>da</strong>s funções,<br />
ain<strong>da</strong> assim, restaria por explicar um fato bem mais geral e<br />
considerável. Que função explicaria a organização total <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
terrestre? Vede essas massas flocosas suspensas no firmamento<br />
como edifícios de prata, vaporosos, nuvens cuja sombra tempera<br />
o calor mortificante do dia. Elas nos vêm dos mares, trazi<strong>da</strong>s<br />
sobre as vagas <strong>da</strong> atmosfera, dirigi<strong>da</strong>s pelos ventos para os<br />
continentes e terras habita<strong>da</strong>s. Sob ação de uma força cega, que<br />
sucederia se elas deixassem de espalhar a chuva fecun<strong>da</strong>nte nos<br />
campos e nos prados? Prestes, uma seca impiedosa crestaria o<br />
solo, a vegetação se fa<strong>na</strong>ria, to<strong>da</strong> a seiva de vi<strong>da</strong> estaria morta.<br />
Se a organização geral <strong>da</strong> planta não é regula<strong>da</strong> por um espírito<br />
superior, ousarão presumir que foi à força de rolar no espaço<br />
que a Terra adquiriu sucessivamente a facul<strong>da</strong>de de viver e<br />
renovar-se em sentido constante e progressivo? Ain<strong>da</strong> nisto,
opomos aos antagonistas ignorantes, ou sistemáticos, o testemunho<br />
dos exploradores do mundo físico, dos que descobriram o<br />
regime <strong>da</strong>s correntes aéreas e marítimas. “Depois <strong>da</strong> constatação,<br />
tão evidente, <strong>da</strong> ordem que preside à economia física do planeta<br />
– diz o coman<strong>da</strong>nte Maury – poder-se-ia admitir que as ro<strong>da</strong>s e<br />
peças de um relógio foram construí<strong>da</strong>s e articula<strong>da</strong>s por acaso,<br />
<strong>da</strong>ndo-se ao mesmo acaso uma direção nos fenômenos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>?<br />
Tudo obedece a leis conforma<strong>da</strong>s ao fim supremo, tão<br />
claramente indicado pelo Criador, que quis fazer <strong>da</strong> Terra uma<br />
habitação para o homem.” 110<br />
O panorama <strong>da</strong>s obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, de eloqüente e irresistível<br />
beleza, não lhes fala ao coração nem à razão. Depois de o contemplarem<br />
declaram, sem cerimônia, que “os fatos ape<strong>na</strong>s atestam<br />
formações orgânicas e inorgânicas, em renovações permanentes,<br />
sem que haja nisso ação direta de inteligência qualquer”.<br />
O instinto <strong>na</strong>tural de criar é prescrito formalmente, afirmam<br />
eles, 111 sem perceberem que suas mesmas afirmativas deixam<br />
entrever a necessi<strong>da</strong>de de uma lei orde<strong>na</strong>dora <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />
De resto, com eles, não há conjeturar explicações de um plano<br />
qualquer <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. As idéias de fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de devem ser<br />
recusa<strong>da</strong>s como fermento azedo, já o dizia G. Foster; e o autor de<br />
Lehre der Nahrungsmittel für <strong>da</strong>s Volk, reiterando essa declaração,<br />
acrescenta que, “quanto mais nos habituamos a combater,<br />
mais devemos temer as tentativas sur<strong>da</strong>mente feitas para introduzir<br />
<strong>na</strong> Ciência a idéia de uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, a fim de esclarecer os<br />
fenômenos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>”.<br />
Eis, numa palavra, o que eles tanto temem – a luz! Quanto<br />
mais escuro o labirinto, quanto mais cerrado o nevoeiro, tanto<br />
melhor para os alemães. Quiséssemos levar a defesa <strong>da</strong> nossa<br />
causa ao âmago <strong>da</strong>s suas trincheiras, ficaríamos de antemão tão<br />
bem colocados que as nossas perguntas haveriam de parecer<br />
ridículas.<br />
Explicai-nos, por exemplo, conspícuos juízes, por que os<br />
olhos não brotaram nos pés e os ouvidos nos joelhos. Circunstâncias<br />
devi<strong>da</strong>s à medula espi<strong>na</strong>l,... Vamos lá, pois: será que a<br />
medula saiba o que faz? Dizei porque as pálpebras e sobrance-
lhas não se formaram com o pavilhão auricular e porque este, à<br />
sua vez, não se contrai como aquelas. Sorrides, creio... Ain<strong>da</strong><br />
bem, pois é a mais espiritual <strong>da</strong>s respostas que nos pudestes <strong>da</strong>r<br />
até o presente.<br />
A a<strong>da</strong>ptação do órgão às funções que devem preencher o estado<br />
orgânico do ser, segundo a sua função <strong>na</strong> economia geral,<br />
constituem exemplos tão evidentes do plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, que é<br />
preciso limitar-se a uma observação muito completa para desautorizar<br />
a nossa tese. Por qualquer aspecto que encaremos os seres<br />
vivos, esse plano se evidencia em caracteres bem legíveis. Sem a<br />
idéia de fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de geral, o fisiologista não poderia determi<strong>na</strong>r o<br />
jogo de qualquer órgão e a Ciência se esterilizaria. Elevando-nos<br />
dos fatos particulares aos fatos gerais, se considerarmos não já<br />
um órgão especial, mas um ser <strong>na</strong> sua individuali<strong>da</strong>de integral,<br />
segundo a sua função <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> – o sexo, por exemplo –<br />
haveremos de reconhecer que tudo nesse indivíduo concorre para<br />
um fim determi<strong>na</strong>do. Não precisamos estender-nos mais sobre<br />
esse delicado aspecto <strong>da</strong> questão, ain<strong>da</strong> que previamente seguros<br />
<strong>da</strong> vitória, sobretudo se tomarmos por estalão o tipo médio do<br />
gênero humano, sensivelmente diferente do nosso, quer no seu<br />
caráter a<strong>na</strong>tômico, quer <strong>na</strong> sua maleabili<strong>da</strong>de espiritual. De fato,<br />
o plano criacio<strong>na</strong>l está tão universalmente assi<strong>na</strong>lado, que Rabelais<br />
poderia provar a existência de <strong>Deus</strong> pela imorali<strong>da</strong>de de<br />
umas tantas descrições. Mas... basta neste particular.<br />
O velho problema <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s espécies interessa mais ain<strong>da</strong><br />
que o <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação dos órgãos aos seus fins. Já vimos que a<br />
vi<strong>da</strong> planetária só se pode explicar mediante uma causa Primária.<br />
Do ponto de vista <strong>da</strong>s causas fi<strong>na</strong>is, aqui falamos somente <strong>da</strong><br />
organização <strong>da</strong>s espécies segundo o clima e o meio, e do enigma<br />
de sua transformação segundo os períodos geológicos. Os que<br />
negam a existência de um poder inteligente <strong>na</strong> direção do mundo,<br />
pretendem que as espécies podem transformar-se umas <strong>na</strong>s<br />
outras, a partir do mais baixo nível <strong>da</strong> escala zoológica, impeli<strong>da</strong>s<br />
pelo meio e circunstâncias domi<strong>na</strong>ntes. É uma hipótese que,<br />
por incidir imediatamente no ponto no<strong>da</strong>l do problema, explica a<br />
a<strong>da</strong>ptação ao meio, pois ensi<strong>na</strong> que os seres são o produto desse<br />
meio. Vede, por exemplo, esta girafa: se tem um pescoço assim
longo, é porque a primitiva espécie de que descende habitou<br />
regiões onde não havia frondes baixas. Obriga<strong>da</strong> a levantar<br />
constantemente a cabeça, o pescoço se foi sucessivamente alongando<br />
até chegar ao que é hoje. Tal pescoço não foi, portanto,<br />
<strong>da</strong>do à girafa tendo em vista a <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong> alimentação, mas é o<br />
resultado definitivo desse processo alimentar.<br />
Uma águia cinde o espaço em vôo rápido: admirais a construção<br />
engenhosa desse aparelho, até agora inimitável aparelho<br />
complexo, que faculta aos voltívolos o domínio dos ares. Pois<br />
bem: as asas não foram <strong>da</strong><strong>da</strong>s às aves para que voassem e elas só<br />
voam porque tem asas. Como as adquiriram? Uma primeira<br />
espécie teria começado a saltitar e ter-se-ia comprazido com essa<br />
novi<strong>da</strong>de. Primeiro, pulinhos curtos. Depois, exercitando-se, foi<br />
<strong>da</strong>ndo maior desenvolvimento aos membros anteriores e assim<br />
prosseguindo, por milhões de anos, acabaria provendo-se de uma<br />
transformação radical nos ditos órgãos anteriores. E aí está como<br />
as asas são o resultado do vôo. Essa gente coloca o Criador em<br />
situação embaraçosa, visto que ele, o bom <strong>Deus</strong>, dera as asas<br />
para voar e eis que elas, por se a<strong>da</strong>ptarem perfeitamente ao seu<br />
fim, acabam por não provar, mas, contraprovar a inteligência de<br />
quem as fez! À puri<strong>da</strong>de, senhores, quereríeis mesmo que ele<br />
fizesse voar as aves com os vossos roupões de banho? Prossigamos<br />
ain<strong>da</strong> um instante.<br />
Tendo o mar recoberto outrora to<strong>da</strong>s as regiões do globo, é<br />
<strong>na</strong>tural conjeturar que to<strong>da</strong>s as espécies, vegetais e animais,<br />
inclusive o homem, começaram pela vi<strong>da</strong> do peixe. Admira-vos<br />
a transformação de peixes em cavalos e homens? Pois não há<br />
motivo, que fatos há, mais maravilhosos <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Dig<strong>na</strong>ivos,<br />
ao menos, prestar um pouco de atenção ao editor responsável<br />
desta teoria, o falecido Sr. Maillet. Não há animal volátil ou<br />
rasteiro que não tenha no mar espécies semelhantes, ou aparenta<strong>da</strong>s,<br />
e cuja transição de um para outro elemento seja impossível<br />
e, dir-se-ia, até provável com exemplos numerosos. Não nos<br />
referimos somente aos anfíbios, serpentes, crocodilos, lontras,<br />
focas e muitos outros que vivem tanto n'água como em terra, ou<br />
no ar, mas, também aos de vi<strong>da</strong> aérea exclusiva. Sabemos que o<br />
mar produz dois gêneros de animais: os que <strong>na</strong><strong>da</strong>m, viajam,
passeiam, caçam, e os que rastejam no fundo, <strong>da</strong>í não se afastam,<br />
ou raramente o fazem, sem qualquer propensão <strong>na</strong>tatória. Como<br />
duvi<strong>da</strong>r que, do gênero dos peixes voláteis tenham provindo as<br />
nossas aves e que dos rastejantes descen<strong>da</strong>m os nossos animais<br />
terrestres, sem pendor nem habili<strong>da</strong>de para alar-se? Para nos<br />
convencermos de que uns e outros passaram do elemento equóreo<br />
ao terrestre, basta a<strong>na</strong>lisar-lhes a forma, as disposições e<br />
tendências recíprocas, confrontando-as de conjunto.<br />
Para começar pelos voláteis, atentai, se vos prouver, não só<br />
<strong>na</strong> forma de to<strong>da</strong>s as espécies de ave, mas também <strong>na</strong> diversi<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> plumagem e <strong>da</strong>s incli<strong>na</strong>ções peculiares. Não encontrareis<br />
uma só que não pudésseis encontrar no mar.<br />
Observai, ain<strong>da</strong>, que a transição do ambiente equóreo para o<br />
aéreo é muito mais <strong>na</strong>tural do que comumente se presume.<br />
O ar que envolve o globo está impreg<strong>na</strong>do de muitas partículas<br />
d'água. Esta, dir-se-ia, é um ar carregado de partículas mais<br />
grosseiras, mais úmi<strong>da</strong>s e mais pesa<strong>da</strong>s que o fluido superior,<br />
que denomi<strong>na</strong>mos ar, posto que uma e outro não sejam mais que<br />
a mesma coisa, para as necessi<strong>da</strong>des teóricas de Telliamed. É<br />
fácil, portanto, conceber que animais habituados ao ambiente<br />
equóreo tenham podido conservar a vi<strong>da</strong> respirando um ar dessa<br />
quali<strong>da</strong>de. “O ar inferior não é senão água difundi<strong>da</strong>.” É úmido<br />
porque provém <strong>da</strong> água, e é quente porque não é tão frio como<br />
poderia ser, transformando-se em água. Mais abaixo, acrescenta:<br />
“Há no mar peixes de formas semelhantes à de quase todos os<br />
animais terrestres, mesmo pássaros.” Também lá existem plantas,<br />
flores e alguns frutos: a urtiga, a rosa, o cravo, o melão, a<br />
uva, lá encontram seus congêneres.<br />
Acrescentemos a isso as disposições favoráveis que se podem<br />
encontrar em <strong>da</strong><strong>da</strong>s regiões, facilitando a passagem do meio<br />
aquático para o aéreo; a necessi<strong>da</strong>de mesmo dessa passagem em<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>s circunstâncias, como, por exemplo, o isolamento em lagos<br />
cuja seca progressiva obrigasse a viver em terra; ou ain<strong>da</strong> por<br />
qualquer acidente dos que se não podem considerar como extraordinários,<br />
<strong>da</strong>r-se-ia que os peixes voadores, caçando ou sendo<br />
caçados no mar, fossem, pelo temor ou pelo desejo de presa,
arremessados a maior distância <strong>da</strong>s praias, entre caniços e pedregais,<br />
e, <strong>na</strong> impossibili<strong>da</strong>de de regressar ao “habitat”, tirassem do<br />
próprio esforço para o conseguirem uma facul<strong>da</strong>de maior de vôo.<br />
Neste caso, não mais banha<strong>da</strong>s pela água as barbata<strong>na</strong>s fenderam-se,<br />
ressecaram e caíram. Enquanto encontraram, em o novo<br />
meio, algum alimento que os nutrisse, as cânulas <strong>da</strong>s barbata<strong>na</strong>s<br />
separaram-se, prolongaram-se e revestiram-se de plumas, ou, por<br />
melhor dizer, as membra<strong>na</strong>s, antes cola<strong>da</strong>s entre si, metamorfosearam-se.<br />
O pêlo formado dessas películas arquea<strong>da</strong>s alongouse<br />
por si mesmo; a pele revestiu-se insensivelmente de uma<br />
penugem <strong>da</strong> mesma cor origi<strong>na</strong>l e essa penugem cresceu também.<br />
As peque<strong>na</strong>s barbata<strong>na</strong>s ventrais, que, como as <strong>na</strong>tatórias,<br />
lhes auxiliavam a cortar as águas, transmutaram-se em pés e lhes<br />
serviram para percorrer o solo. Ain<strong>da</strong> outras peque<strong>na</strong>s alterações<br />
lhes sobrevieram <strong>na</strong> conformação. O bico e o pescoço de uns<br />
alongaram-se e os outros retraíram-se. A mesma coisa se deu<br />
com o corpo. Contudo, a conformi<strong>da</strong>de primária subsiste no todo<br />
e é sempre fácil reconhecê-la.<br />
A respeito dos animais que rastejam ou caminham, a transição<br />
do meio líquido é ain<strong>da</strong> mais fácil de conceber. Não custa<br />
crer, por exemplo, que serpentes e répteis pudessem viver igualmente<br />
num e noutro elemento. As experiências não permitem<br />
dúvi<strong>da</strong>s a respeito.<br />
Quanto aos quadrúpedes, não só encontramos no mar espécies<br />
semelhantes, com os mesmos pendores, nutrindo-se dos<br />
mesmos alimentos que utilizam em terra, como ain<strong>da</strong> temos cem<br />
outros exemplos de espécies que vivem no ar, como <strong>na</strong>s águas.<br />
Não têm os macacos marinhos o mesmo aspecto dos terrestres?<br />
Há até mais de uma espécie. O leão, o cavalo, o porco, o lobo, o<br />
gato, o cão, a cabra, o carneiro, também têm no mar os seus<br />
afins.<br />
A história roma<strong>na</strong> mencio<strong>na</strong> focas aprisio<strong>na</strong><strong>da</strong>s e exibi<strong>da</strong>s ao<br />
povo nos espetáculos, a saudá-lo com os seus gritos e mesuras,<br />
ao mando de um trei<strong>na</strong>dor, tal como se pratica com outros animais<br />
adestrados para esse fim. E não sabemos que elas se afeiçoam<br />
a quem delas cui<strong>da</strong>, como o fazem os cães a seus donos?
Compreende-se que esse progresso, obtenível com as focas, a<br />
<strong>Natureza</strong> o possa realizar por si mesma e que, em certas ocasiões,<br />
obrigado a viver alguns dias fora d'água, não seja de todo<br />
impossível ao animal identificar-se com o novo ambiente, quando<br />
ao antigo não possa regressar. Foi assim, decerto, que todos<br />
os animais terrestres passaram do meio equóreo ao etéreo e, por<br />
efeito <strong>da</strong> respiração do ar, adquiriram a facul<strong>da</strong>de de mugir,<br />
uivar, ladrar, facul<strong>da</strong>de que antes tinham imperfeitas 112 .<br />
Não iremos mais longe para ouvir este escritor, maiormente<br />
celebrizado pelas sátiras de Voltaire, do que pelo seu filósofo<br />
indiano. Diremos ape<strong>na</strong>s que ele prossegue com uma série de<br />
historietas e contos mais ou menos autênticos, de homens selvagens,<br />
homens de cau<strong>da</strong>, imberbes, unípedes, manetas, pretos,<br />
gigantes, anões, etc., para culmi<strong>na</strong>r <strong>na</strong> transmigração dos homens<br />
e macacos marinhos para a terra firme. Cuvier, o mais ilustre dos<br />
geólogos, consignou a sua opinião sobre esta renova<strong>da</strong> teoria dos<br />
gregos, agora proposta sob aspecto algo diferente, a saber:<br />
“Naturalistas materializados em suas idéias, permaneceram como<br />
sectários humildes de Maillet; vendo que o exercício mais ou<br />
menos intenso de um órgão lhe aumenta ou diminui, por vezes, a<br />
força e o volume, imagi<strong>na</strong>ram que o hábito e as influências<br />
exteriores por muito tempo combi<strong>na</strong>dos puderam alterar gra<strong>da</strong>tivamente<br />
as formas animais, a ponto de atingirem o que demonstram<br />
hoje as diferentes espécies. É a mais vã e, porventura, a<br />
mais superficial de quantas idéias temos tido ensejo de refutar.<br />
Nela, os corpos são considerados simples massa, pasta argilosa<br />
que se pudesse modelar entre os dedos.<br />
“E assim é que, quando autores outros tentaram entrar em<br />
minúcias, caíram no ridículo. Quem quer que ouse afirmar a<br />
sério que um peixe, à força de jazer em seco, poderia ver as<br />
escamas fenderem-se e transformarem-se em pe<strong>na</strong>s, tor<strong>na</strong>ndo-se<br />
ele mesmo em ave ou quadrúpede; e que à força de esgueirar-se<br />
por fen<strong>da</strong>s estreitas, no intuito de regressar ao velho habitat,<br />
houvera de tor<strong>na</strong>r-se em serpente; quem assim conjetura, repetimos,<br />
só faz prova de ignorância cabal do que seja A<strong>na</strong>tomia.”<br />
Essa teoria, contra a qual se levantam tantas dificul<strong>da</strong>des,<br />
pressupõe que todos os seres derivam dum tipo primordial,
mercê de uma série de transformações sucessivas, constituindo a<br />
uni<strong>da</strong>de orgânica.<br />
Olho e ouvido não passam de nervo sensorial desenvolvido<br />
pelo exercício; fronte e crânio foram modelados pelo cérebro e<br />
este mais não é que um desdobramento <strong>da</strong> medula espi<strong>na</strong>l.<br />
Mas – objetaremos com Paulo Janet – como pode o hábito<br />
operar semelhante metamorfose e mu<strong>da</strong>r a vértebra superior <strong>da</strong><br />
colu<strong>na</strong> em cavi<strong>da</strong>de capaz de conter o encéfalo? Eis, para tanto,<br />
o que importaria presumir: que um animal, ape<strong>na</strong>s provido de<br />
uma medula espi<strong>na</strong>l, à força de exercitá-la, conseguiu produzir<br />
essa expansão de matéria nervosa a que chamamos cérebro; que,<br />
à medi<strong>da</strong> que essa parte superior se alargasse, iria recalcando<br />
primeiramente as paredes moles que a revestem, até obrigá-las a<br />
tomar sua própria conformação de caixa crania<strong>na</strong>... Mas, quantas<br />
hipóteses nesta hipótese!<br />
Em primeiro lugar, teríamos de imagi<strong>na</strong>r animais com medula<br />
espi<strong>na</strong>l sem cérebro, pois de outro modo tanto podemos considerar<br />
a medula um prolongamento do cérebro, como este mesmo<br />
cérebro um prolongamento <strong>da</strong> medula. Isso, aliás, parece indiciar-se<br />
quando encontramos algo de análogo ao cérebro em animais<br />
desprovidos de medula, quais os moluscos e os anelídeos.<br />
Ora, se o cérebro preexiste nos vertebrados, preexiste o crânio e<br />
não é, portanto, originário do hábito. Acrescentai que dificilmente<br />
se podem admitir exercício e hábito sem cérebro, como produtos<br />
que são <strong>da</strong> vontade, pois não há como negar seja o cérebro o<br />
órgão <strong>da</strong> vontade. Tende em conta, fi<strong>na</strong>lmente, que ain<strong>da</strong> restaria<br />
admitir que a matéria óssea tivesse antes sido cartilaginosa, a fim<br />
de prestar-se às dilatações sucessivamente requeri<strong>da</strong>s pelo progresso<br />
do sistema nervoso, o que implicaria notável acomo<strong>da</strong>ção<br />
nessa primitiva maleabili<strong>da</strong>de óssea, sem o que, impossível se<br />
tor<strong>na</strong>ria qualquer desenvolvimento do sistema nervoso.<br />
Órgãos e funções se têm manifestado de paralelo, segundo o<br />
plano geral. A causali<strong>da</strong>de parece-nos tão evidente que, a bem<br />
dizer, nossos adversários mereceriam que a <strong>Natureza</strong> os privasse,<br />
algum tempo, de uns tantos músculos (digamos o esfíncter),<br />
forçando-os assim a confessar que os mais insignificantes órgãos<br />
têm uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de a preencher.
Não queremos retomar neste capítulo a questão primária <strong>da</strong><br />
origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em nosso globo, bem como do seu entretenimento<br />
e progresso sob o guante de leis providenciais. Exami<strong>na</strong>mos<br />
essa questão sob todos os seus aspectos num capítulo sobre a<br />
origem dos seres e chegamos à conclusão i<strong>na</strong>tacável (ver Segun<strong>da</strong><br />
Parte) de que a vi<strong>da</strong> terrestre é constituí<strong>da</strong> por uma força,<br />
única e central para ca<strong>da</strong> ser, condicio<strong>na</strong>ndo a matéria segundo<br />
um tipo do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Vimos<br />
que a lei de progresso nos seres organizados, <strong>da</strong> planta ao homem,<br />
atesta a inteligência divi<strong>na</strong> e evidencia a presença constante<br />
de <strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, jamais induzindo à negação de uma<br />
potência criadora.<br />
Em nosso caso particular (Plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> – construção de<br />
seres vivos), temos uma afirmação ain<strong>da</strong> mais direta <strong>da</strong> ação<br />
inteligente <strong>na</strong> maravilhosa organização dos corpos animados,<br />
atento a que essa ação é igualmente necessária nos casos em que<br />
as espécies se houvessem sucessivamente transformado em<br />
ascensão zoológica (hipótese que está longe de ser admiti<strong>da</strong>), e<br />
<strong>na</strong>queles em que o primeiro casal de ca<strong>da</strong> espécie fosse o produto<br />
de uma força particular, que não nos é <strong>da</strong>do apreciar. Temos,<br />
assim, o direito de fechar esta controvérsia <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação de ca<strong>da</strong><br />
espécie ao seu gênero de vi<strong>da</strong> com a declaração de que, mesmo<br />
supondo uma progressão <strong>na</strong>tural, instintiva, lenta e insensível;<br />
uma plastici<strong>da</strong>de normal do organismo e obediência cega de ca<strong>da</strong><br />
espécie às forças domi<strong>na</strong>ntes, a hipótese materialista <strong>na</strong><strong>da</strong> adianta<br />
com isso. A apropriação <strong>da</strong> matéria organiza<strong>da</strong> às causas<br />
exteriores demonstraria, simplesmente, uma grande sabedoria<br />
nos desígnios e nos feitos do Criador. Se, como acima lhes<br />
perguntávamos, os seres fossem de ferro ou de mármore, haveria<br />
críticos que com isso se contentariam. E contudo, que sucederia?<br />
Qualquer mu<strong>da</strong>nça de clima, de temperatura, de ambiente, de<br />
alimentação, seria uma para<strong>da</strong> mortal para essas espécies inflexíveis.<br />
O junco verga, enquanto que o carvalho é derrancado<br />
pelo aquilão.<br />
Longe, pois, de ver ausência de pensamento e desígnio nessa<br />
flexibili<strong>da</strong>de maravilhosa do organismo vivo, nessa facul<strong>da</strong>de<br />
imperecível de tirar o melhor partido <strong>da</strong>s circunstâncias mais
incômo<strong>da</strong>s, vencer obstáculos e plantar, a despeito de tudo, o<br />
estan<strong>da</strong>rte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no solo mais sáfaro e mais ingrato, o que<br />
reconhecemos é o depoimento irrecusável <strong>da</strong> causa onipotente,<br />
que, a partir dos primeiros tempos, houve por bem que os mundos<br />
se embalassem harmonicamente <strong>na</strong> amplidão do infinito e<br />
fossem envolvidos em carícias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
A inteligência criadora e orde<strong>na</strong>dora, que denomi<strong>na</strong>mos<br />
<strong>Deus</strong>, permanece, portanto, como lei primordial e eter<strong>na</strong>, força<br />
intrínseca, universal, constituindo a uni<strong>da</strong>de viva do mundo.<br />
To<strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de desaparece, substituindo-se a idéia de plano<br />
geral à de causali<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>. Órgãos e funções, espécies e<br />
indivíduos, é tudo conduzido <strong>na</strong> mesma direção.<br />
O Universo é o desdobro de um só pensamento e a uni<strong>da</strong>de de<br />
tipo é sensível sob to<strong>da</strong>s as formas particulares <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terrestre.<br />
Em que direção nos conduz o pensamento eterno?<br />
É o que tentaremos entrever, ao termi<strong>na</strong>r este estudo sobre a<br />
fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de dos seres e <strong>da</strong>s coisas.
2 - Plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> - Instinto e Inteligência<br />
SUMÁRIO – Leis que presidem à conservação <strong>da</strong>s espécies. –<br />
Facul<strong>da</strong>des instintivas especiais. – Não se explica o instinto pela<br />
suposição de hábitos hereditários. – Distinção fun<strong>da</strong>mental entre<br />
os fatos instintivos e racio<strong>na</strong>is. – Desígnio <strong>na</strong>s obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />
- Ordem geral e harmonias universais. – Qual a distinção geral<br />
do mundo? – Magnitude do problema. – Insuficiência <strong>da</strong> razão<br />
huma<strong>na</strong>.<br />
A construção lenta e progressiva dos seres e a formação <strong>da</strong>s<br />
espécies duradouras estabelecem a presença permanente <strong>da</strong> causa<br />
criadora e proclamam, eloqüentemente, a sua sabedoria e inteligência.<br />
Se deixarmos, agora, de lado a organização do indivíduo, para<br />
estu<strong>da</strong>rmos a <strong>da</strong> família, penetraremos nos mistérios do instinto<br />
e, ain<strong>da</strong> aí, encontraremos o plano do Criador brilhantemente<br />
caracterizado.<br />
Muito se há discutido sobre a alma animal, depois que Descartes,<br />
Leibnitz e, a seguir, Reaniur se deram ao trabalho de<br />
observar in <strong>na</strong>tura, diretamente, a vi<strong>da</strong> e costumes dos animais.<br />
É, sobretudo, pela observação direta que nos podemos instruir<br />
acerca <strong>da</strong> preciosa facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s espécies vivas, que lhes assegura<br />
a conservação, e basta constatar os si<strong>na</strong>is evidentes dessa lei<br />
universal, para lhe aferir o valor, sob o ponto de vista dos desígnios<br />
<strong>da</strong> Criação.<br />
Antes de tudo, convém distinguir inteligência e instinto. Os<br />
animais possuem uma e outro como facul<strong>da</strong>des bem distintas.<br />
Com a primeira pensam, refletem, compreendem, decidem,<br />
recor<strong>da</strong>m, adquirem experiência, amam, odeiam, julgam, por<br />
processos análogos aos <strong>da</strong> inteligência huma<strong>na</strong>; com a segun<strong>da</strong>,<br />
operam obedecendo a uma impulsão íntima, sem apreensão, sem<br />
conhecimento, inconscientes do motivo e do resultado de seus<br />
atos. Fixemos alguns exemplos, para melhor definir esses caracteres.<br />
Eis com nos fala Buffon de um orangotango ain<strong>da</strong> novo, por<br />
ele observado: – “Vi-o apresentar a mão para conduzir as pesso-
as que o visitavam e passear com elas como se estivesse convencido<br />
do seu papel; vi-o sentar-se à mesa, tomar o guar<strong>da</strong><strong>na</strong>po,<br />
limpar os lábios, utilizar-se <strong>da</strong> colher e do garfo, encher o copo e<br />
tocá-lo noutro, quando a isso convi<strong>da</strong>do; vi-o buscar uma cháve<strong>na</strong>,<br />
deitar-lhe o açúcar e o chá, aguar<strong>da</strong>ndo que este esfriasse<br />
para então bebê-lo. Tudo isso, sem outra instigação que a palavra<br />
e a mímica do seu dono e, algumas vezes, por si mesmo. Não<br />
molestava a quem quer que fosse; mostrava-se mesmo circunspecto<br />
e <strong>na</strong> atitude de quem pedisse carinho, etc.”<br />
O Sr. Flourens diz que havia no Jardim Zoológico um orangotango<br />
notável pela inteligência: meigo, amante de carícias,<br />
principalmente <strong>da</strong>s crianças, com elas brincava procurando<br />
imitar quanto via, etc. Assim é que sabia manejar a chave do seu<br />
compartimento, enfiando-a <strong>na</strong> fechadura e abrindo a porta. Se<br />
acontecia pendurarem a chave <strong>na</strong> chaminé, lá trepava por meio<br />
de uma cor<strong>da</strong> presa ao teto e que lhe servia comumente de balanço.<br />
Certa feita, deram <strong>na</strong> cor<strong>da</strong> um nó, para fazê-lo mais curta, e<br />
ele o desatou imediatamente. Tal como o de Buffon, não revelava<br />
a impaciência e petulância próprias <strong>da</strong> espécie, antes tinha um<br />
ar tristonho, passos lentos e gestos comedidos.<br />
O professor foi visitá-lo um dia, acompanhado por um ilustre<br />
ancião, que era também um observador sagaz e profundo.<br />
Um trajo algo esquisito, os passos lentos e vacilantes, o busto<br />
arqueado do visitante, logo despertaram a atenção do símio.<br />
Prestou-se ele, complacente, a tudo o que se lhe exigiu, mas, de<br />
olho sempre atento no objeto de sua curiosi<strong>da</strong>de. Quando nos<br />
íamos retirar e ele mais se aproximou do novo visitante, tomoulhe<br />
delica<strong>da</strong> e maliciosamente a bengala e, fingindo apoiar-se<br />
nela, curvado e vagaroso, deu uma volta ao compartimento,<br />
como procurando imitar o meu velho amigo.<br />
Depois, de si mesmo restituiu-lhe a bengala. Evidente que ele<br />
também sabia observar...<br />
Cuvier, por sua vez, observou fatos não menos curiosos. Seu<br />
orangotango se divertia trepando <strong>na</strong>s árvores e nelas permanecendo<br />
encarapitado. Um dia, fizeram menção de lá o buscarem e<br />
ele logo se pôs a sacudir a árvore, assim procedendo sempre que
tentavam apanhá-lo. “De qualquer modo – diz Cuvier – que<br />
consideremos esse ato, não será possível negá-lo como resultante<br />
de uma combi<strong>na</strong>ção de idéias, para reconhecer que o animal<br />
possui a facul<strong>da</strong>de de generalizar.<br />
De fato, o orangotango, aqui, concluía de si para outrem:<br />
mais de uma feita, o abalo violento dos corpos, em que se houvera<br />
apoiado, tê-lo-ia espavorido, levando-o a concluir que esse<br />
mesmo temor atingiria a outrem, ou – por melhor dizer com<br />
Cuvier – “de uma circunstância particular ele fazia uma regra<br />
geral”.<br />
Flourens cita o exemplo de um curioso indício de inteligência,<br />
observado no Jardim Zoológico. Julgado excessivo o número<br />
de ursos lá existentes, ficou resolvi<strong>da</strong> a elimi<strong>na</strong>ção de dois<br />
exemplares. O veneno seria o ácido prússico, ministrado em<br />
pequenos bolos. À vista dos bolos, os animais logo se ergueram<br />
<strong>na</strong>s patas traseiras, abrindo a boca, <strong>na</strong> qual conseguiram atirar<br />
alguns bolos. Entretanto, logo rejeitaram o manjar e puseram-se<br />
em fuga. Dir-se-ia que não seriam mais tentados a tocar <strong>na</strong><br />
iguaria e, contudo, ei-los a empurrar com as patas os bolos para<br />
dentro do tanque e, depois de muito revolverem a água, iam<br />
comendo os bolos, à medi<strong>da</strong> que o veneno se evaporava. Em o<br />
fazerem assim, impunemente demonstraram uma sagaci<strong>da</strong>de que<br />
lhes granjeou a revogação <strong>da</strong> sentença.<br />
Plutarco afirma ter visto um cão lançar pedrinhas dentro de<br />
uma talha, não completamente cheia de óleo, admirando-se de<br />
como o cão pudesse induzir que o peso <strong>da</strong>s pedras haveria de<br />
fazer subir e transbor<strong>da</strong>r o conteúdo.<br />
Buffon escreveu belas pági<strong>na</strong>s sobre a inteligência do cão,<br />
mas não lhe interpretou o alto valor. Há, nos fastos <strong>da</strong> espécie<br />
cani<strong>na</strong>, exemplos de inteligência, habili<strong>da</strong>de raciocínio, julgamento,<br />
e também de afeição, devotamento, bon<strong>da</strong>de e reconhecimento,<br />
dignos de serem apontados como modelo a uma grande<br />
parte do gênero humano.<br />
Poder-se-ia escrever uma série de volumes e nem assim se<br />
esgotaria o acervo de fatos comprobatórios <strong>da</strong> inteligência animal,<br />
nota<strong>da</strong>mente do cão. De resto, os adversários estão conosco
em admitir esses fatos. Citemos aqui o exemplo interessante de<br />
uma deliberação de andorinha, contado pelo autor de Força e<br />
Matéria. Um casal de andorinhas tinha começado a construir o<br />
ninho <strong>na</strong> cumeeira <strong>da</strong> casa. Um dia, entra por lá um bando de<br />
companheiras e travam longa discussão com as posseiras do<br />
ninho. Reuni<strong>da</strong>s no forro <strong>da</strong> casa e não longe do ninho disputado,<br />
fizeram uma algazarra infer<strong>na</strong>l. Depois de algum tempo,<br />
enquanto algumas andorinhas se destacavam para inspecio<strong>na</strong>r o<br />
ninho, dissolveu-se a assembléia e o resultado foi o casal abando<strong>na</strong>r<br />
o ninho começado, entrando logo a construir outro em<br />
lugar quiçá mais adequado.”<br />
Um fato ain<strong>da</strong> mais notável veio à baila recentemente. Nos<br />
arredores de uma granja de Weddendorg, perto de Magdebourg,<br />
as cegonhas, após sério debate, julgaram uma companheira<br />
adúltera. Mataram-<strong>na</strong> a bica<strong>da</strong>s e lançaram-<strong>na</strong> fora do ninho 113 .<br />
Agassiz, mais que ninguém, exalta as facul<strong>da</strong>des intelectuais<br />
dos animais. Depois de mostrar as dificul<strong>da</strong>des que ain<strong>da</strong> não<br />
permitem estabelecer uma comparação científica entre instintos e<br />
facul<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s e animais, emite ele as seguintes idéias: –<br />
“O desenvolvimento <strong>da</strong>s paixões é tão extenso no animal quanto<br />
no homem, e eu me encontraria seriamente embaraçado para lhes<br />
apreender diferenças específicas, <strong>na</strong>turais, ain<strong>da</strong> que as haja, e<br />
grandes, no graduamento <strong>da</strong>s manifestações e <strong>na</strong> forma de expressão.<br />
Ao demais, a gra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des morais entre os<br />
animais e o homem é tão imperceptível, que, recusar aos primeiros<br />
um certo sentimento de responsabili<strong>da</strong>de e consciência fora,<br />
certo, exagerar a diferença. Além disso, há neles, limita<strong>da</strong>s às<br />
suas respectivas capaci<strong>da</strong>des, individuali<strong>da</strong>des tão defini<strong>da</strong>s<br />
como no homem. Os criadores de cavalos, os guar<strong>da</strong>dores de<br />
animais, pastores, etc., aí estão para confirmá-lo.<br />
E aí temos argumento dos mais fortes a favor <strong>da</strong> existência de<br />
um princípio imaterial em todos os animais análogo ao que, por<br />
excelência e facul<strong>da</strong>des superiores, coloca o homem em plano<br />
eminente. A maior parte dos argumentos filosóficos em prol <strong>da</strong><br />
imortali<strong>da</strong>de do homem aplica-se, igualmente, à indestrutibili<strong>da</strong>de<br />
desse principio nos outros seres vivos 114 .
Quem se atreveria hoje a pôr em dúvi<strong>da</strong> a inteligência animal?<br />
Só um tímido espírito de sistema, temeroso <strong>da</strong>s conseqüências<br />
dessa ver<strong>da</strong>de, em relação a umas tantas crenças, pode<br />
fechar os olhos à evidência. A nós, cumpria-nos constatar, antes<br />
de tudo, essa ver<strong>da</strong>de, a fim de mais livremente podermos falar<br />
do instinto e derrocar a argumentação dos que presumem que o<br />
instinto não existe.<br />
Há, certamente, uma grande diferença entre atos instintivos e<br />
atos racio<strong>na</strong>is. Não que esses dois caracteres <strong>da</strong> força viva se<br />
encontrem isolados (<strong>na</strong><strong>da</strong> o está <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>), mas por não se<br />
encontrarem <strong>na</strong> mesma graduação e não se poderem confundir.<br />
Não devemos insistir, maiormente aqui, a respeito dos fatos de<br />
ordem intelectual. Vamos, porém, compará-los aos fatos inerentes<br />
ao domínio do instinto e que revelam existir uma providência<br />
universal presidindo à vi<strong>da</strong> em geral e que não explicam de<br />
modo algum, pela instrução, o raciocínio ou o julgamento nos<br />
animais em que se deparam.<br />
Chama-se instinto ao conjunto <strong>da</strong>s diretivas que impelem o<br />
animal, obedecendo a uma necessi<strong>da</strong>de constante. O instinto é<br />
i<strong>na</strong>to, atua à revelia <strong>da</strong> instrução, inexperiente e invariavelmente,<br />
e não realiza progresso algum. É em tudo a antítese <strong>da</strong> inteligência.<br />
Tanto mais notáveis são os fenômenos do instinto quanto<br />
mais se afirmam inteiramente involuntários. “Não podemos fazer<br />
uma idéia níti<strong>da</strong> do instinto – dizia Georges Cuvier – senão<br />
admitindo que os animais sejam submetidos a imagens ou sensações<br />
i<strong>na</strong>tas constantes, que os obrigam a proceder como levados<br />
por sensações acidentais. É uma espécie de sonho ou visão que<br />
os persegue incessante e, em tudo que se reporta ao instinto,<br />
podemos julgar os animais assim uma espécie de sonâmbulos.”<br />
Frederico Cuvier consagrou parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a descobrir a linha<br />
que separa o instinto <strong>da</strong> inteligência. Pode-se dizer, sem paradoxo,<br />
que não há linhas divisórias <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Aqui, porém, não<br />
se trata de metafísica. Contentemo-nos, assim, em ouvir o que<br />
diz o Sr. Flourens, <strong>da</strong>s laboriosas observações do esforçado<br />
<strong>na</strong>turalista.<br />
O castor é um mamífero <strong>da</strong> ordem dos roedores, isto é, <strong>da</strong> ordem<br />
menos inteligente, e, contudo, possui um instinto maravi-
lhoso, qual o de construir uma caba<strong>na</strong> sobre água, com calça<strong>da</strong>s<br />
e diques, e tudo mercê de uma indústria que deman<strong>da</strong>ria inteligência<br />
elevadíssima, se de inteligência dependesse.<br />
O essencial, portanto, fora provar essa independência e foi<br />
isso o que fez F. Cuvier. Tomou castores muito novos, educados<br />
longe de seus pares e, por conseguinte, <strong>na</strong><strong>da</strong> havendo com eles<br />
ou deles aprendido. Esses castores, assim isolados, solitários,<br />
postos numa jaula expressamente desti<strong>na</strong><strong>da</strong> à experiência e de<br />
forma a dispensá-los do seu trabalho peculiar construtivo, não se<br />
forraram de o realizar, impelidos por uma força maqui<strong>na</strong>l cega,<br />
ou seja um puro instinto.<br />
A mais completa antítese separa o instinto <strong>da</strong> inteligência. No<br />
instinto tudo é cego, necessário, invariável; <strong>na</strong> inteligência é tudo<br />
elevado, condicio<strong>na</strong>l, modificável. O castor que constrói uma<br />
caba<strong>na</strong>, o pássaro que constrói um ninho, só o fazem por instinto.<br />
O cão e o cavalo, que chegam a compreender o sentido de algumas<br />
palavras e nos obedecem, o fazem por inteligência.<br />
No instinto é tudo i<strong>na</strong>to: o castor constrói sem haver aprendido.<br />
Dir-se-ia que o faz por uma fatali<strong>da</strong>de, dirigido por uma<br />
força constante e incoercível.<br />
Na inteligência é tudo o resultado <strong>da</strong> experiência e <strong>da</strong> instrução:<br />
o cão obedece quando ensi<strong>na</strong>do. E aí tudo é livre, o cão<br />
obedece porque quer.<br />
Fi<strong>na</strong>lmente, tudo no instinto é particular; essa indústria admirável<br />
que o castor utiliza no construir a caba<strong>na</strong> não pode ele<br />
utilizá-la senão com esse fim; ao passo que, <strong>na</strong> inteligência, tudo<br />
se generaliza, de vez que essa mesma maleabili<strong>da</strong>de de atenção e<br />
de concepção do cavalo e do cachorro pode aproveitar-lhes para<br />
fazer coisas diversas.<br />
Distinção que se impunha, esta. Na história <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> importa<br />
reconhecer em ca<strong>da</strong> qual o que lhe pertence e exatamente o<br />
que lhe pertence, sem restrição sistemática, sem prevenção<br />
tendenciosa. Descartes e Buffon (este contraditório, às vezes)<br />
negam aos animais qualquer partícula de inteligência. Condilac e<br />
G. Leroy, ao contrário, chegam a conceder-lhes operações intelectuais<br />
<strong>da</strong>s mais eleva<strong>da</strong>s. É um erro duplo. Os animais não são
plantas nem são homens. Weinband não tem razão em pretender<br />
que isso que desig<strong>na</strong>mos como instinto não passa de “indolência<br />
do espírito para forrar-se aos penosos esforços que o estado <strong>da</strong><br />
alma animal reclama”. Não <strong>na</strong> tem, tampouco, Sachus, quando<br />
adita que “não há necessi<strong>da</strong>de imediata, resultante <strong>da</strong> organização<br />
intelectual, nem pendores cegos e arbitrários que impulsem<br />
os animais”. Não hesitamos em reconhecer que esta questão,<br />
como todos os grandes problemas <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, é difícil de<br />
resolver. Pensamos que, no seu estudo, como de resto em outras<br />
questões sucede, o homem se tem pago mais com palavras que<br />
com idéias. Quando não se compreende o ato inteligente de um<br />
animal, é comum forrar-se ao embaraço, utilizando a palavra<br />
instinto, assim como um véu lançado ao objeto que se quer<br />
exami<strong>na</strong>r; mas, à parte este processo ilusório, restam fatos que<br />
não são certamente resultado de reflexão, nem de julgamento.<br />
Em vão o Sr. Darwin, e com ele Lamarck, afirmam que o instinto<br />
é um hábito hereditário. Essa explicação não transfere o instinto<br />
aos domínios <strong>da</strong> inteligência e, ain<strong>da</strong> menos, aos domínios do<br />
materialismo puro. Tampouco está demonstrado seja o instinto<br />
um hábito hereditário. Consideremos essas borboletas que vivem<br />
no ar e que, chegando à terceira fase <strong>da</strong> sua maravilhosa existência,<br />
entreabrem-se aos beijos <strong>da</strong> luz e aos eflúvios do amor.<br />
Presto, depositarão em círculos concêntricos minúsculos ovos<br />
brancos, sobre talos ou folhas. Esses ovos não vingarão antes <strong>da</strong><br />
próxima estação, quando surgem as peque<strong>na</strong>s lagartas, e isso<br />
depois de transcorridos muitos dias, quando as borboletas já<br />
dormem <strong>na</strong> poeira o sono <strong>da</strong> morte. Que voz teria ensi<strong>na</strong>do a<br />
estas novas borboletas que as futuras lagartas, ao desovarem, hão<br />
de encontrar tal ou tal alimentação? Quem lhes aponta os talos e<br />
folhas em que hajam de depositar seus ovos? Os pais? Mas, se os<br />
não conhecem? Será, então, <strong>da</strong>s folhas e talos que lhes advém a<br />
memória?<br />
Que memória, porém, se elas viveram três existências após<br />
essa época longínqua e substituíram os alimentos inferiores pelo<br />
manjar delicado <strong>da</strong>s corolas olentes? Eis aqui, porém, espécies<br />
outras que protestam, ain<strong>da</strong> mais vivamente, contra as explicações<br />
huma<strong>na</strong>s. Os necróforos (nome lúgubre) morrem imediata-
mente após a postura e as gerações jamais se conhecem. Nenhum<br />
ser desta espécie viu mãe nem verá filhos e, contudo, as mães<br />
têm grande cui<strong>da</strong>do em dispor cadáveres ao lado dos ovos, para<br />
que aos filhos não falte alimento logo ao <strong>na</strong>scer. Em que parte<br />
aprenderam esses necróforos que os seus ovos contêm germe de<br />
insetos que em tudo se lhes semelham? Há outras espécies <strong>na</strong>s<br />
quais o regime alimentar é inteiramente oposto, para a larva e<br />
para o inseto. Nos pompilídeos as mães são herbívoras e os<br />
filhos carnívoros. Em fazerem a postura sobre cadáveres, contrariam<br />
os próprios hábitos. E aqui não colhe admitir o acaso, nem<br />
hábito lentamente adquirido. Qualquer espécie que aberrasse<br />
desta lei não poderia subsistir, visto que os rebentos morreriam<br />
de fome logo após o <strong>na</strong>scimento. A estes insetos podemos juntar<br />
os odíneros e os sphex. As larvas destes últimos são carnívoras e<br />
o ninho precisa ser provido de carne fresca. Para preencher essa<br />
condição, a fêmea que vai desovar busca uma presa convinhável,<br />
tendo o cui<strong>da</strong>do de não a matar, limitando-se a feri-la de paralisia<br />
irremediável. Coloca, depois, sobre ca<strong>da</strong> ovo um certo número<br />
desses enfermos incapazes de se defenderem <strong>da</strong> larva que os<br />
há de devorar, mas com vi<strong>da</strong> bastante para que o corpo não se<br />
corrompa. Em algumas famílias acresce o cui<strong>da</strong>do pela alimentação<br />
<strong>da</strong> presa, até à eclosão <strong>da</strong> larva.<br />
Nossos elementos de argumentação, neste particular, são tão<br />
numerosos que impossível seria reuni-los todos. Limitamo-nos,<br />
assim, a citar alguns exemplos, convi<strong>da</strong>ndo o leitor a tirar <strong>da</strong><br />
letra o espírito. Entre estes exemplos, incluamos o <strong>da</strong> abelha<br />
xilófaga, com a qual o Sr. Milne Edwards entreteve recentemente,<br />
<strong>na</strong> Sorbone, a curiosi<strong>da</strong>de dos seus ouvintes.<br />
Essa abelha que vemos adejar <strong>na</strong> Primavera, que vive solitária<br />
e pouco sobrevive à postura, não viu jamais os genitores e<br />
não viverá o tempo suficiente para assistir ao <strong>na</strong>scimento <strong>da</strong>s<br />
pequeni<strong>na</strong>s larvas vermiformes, desprovi<strong>da</strong>s de patas e incapazes,<br />
não só de se protegerem, como de angariar alimento. E<br />
contudo, elas precisam permanecer em repouso cerca de um ano,<br />
numa habitação bem fecha<strong>da</strong>, sob pe<strong>na</strong> de extinguir-se a espécie.<br />
Como, então, supor que a abelha gestante, antes de pôr o primeiro<br />
ovo, tenha podido adivinhar as necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> prole
futura e o que deve fazer para assegurar-lhe o bem-estar? Tivesse<br />
ela em partilha a inteligência huma<strong>na</strong>, e <strong>na</strong><strong>da</strong> soubera a tal<br />
respeito, visto que todo o raciocínio requer premissas. Este<br />
inseto, que <strong>na</strong><strong>da</strong> pôde aprender, tudo prepara e opera sem hesitação,<br />
como se o futuro lhe estivera devassado e uma previdência<br />
racio<strong>na</strong>l a norteasse. Ape<strong>na</strong>s lhe despontam as asas e logo a<br />
xilófaga trata de preparar a casa dos filhos. Com as mandíbulas,<br />
broca um tronco de madeira exposto ao Sol, escava uma longa<br />
galeria e vai depois buscar, longe, no pólen <strong>da</strong>s flores, o néctar<br />
açucarado. É o cibo do recém-<strong>na</strong>scido e que lhe há de bastar, o<br />
“quantum satis”, para bem-viver até à Primavera próxima.<br />
Uma vez provi<strong>da</strong> a despensa, aí deposita o ovo e ei-la amalgamando<br />
com terra a serragem prudentemente guar<strong>da</strong><strong>da</strong> e fazendo<br />
uma como argamassa, de maneira que o leito dessa primeira<br />
cela se transforme em teto de uma segun<strong>da</strong> despensa e berço <strong>da</strong><br />
larva a <strong>na</strong>scer de outro ovo. Assim se constrói um edifício de<br />
alguns an<strong>da</strong>res, no qual ca<strong>da</strong> alojamento recolhe um ovo e<br />
servirá, mais tarde, à larva desse ovo.<br />
“Admira – diz Edwards – como diante de fatos tão significativos<br />
e numerosos ain<strong>da</strong> haja quem nos venha dizer que to<strong>da</strong>s as<br />
maravilhas <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> não passam de obras do acaso ou, então,<br />
de conseqüências <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des gerais <strong>da</strong> matéria; desta<br />
<strong>Natureza</strong> que faz a substância <strong>da</strong> pedra como <strong>da</strong> madeira e que<br />
os instintos <strong>da</strong> abelha, assim como as mais altas expressões <strong>da</strong><br />
geniali<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>, não são mais que resultados de um jogo de<br />
forças físicas ou químicas, as mesmas que determi<strong>na</strong>m o congelamento<br />
<strong>da</strong> água, a combustão do carvão e a que<strong>da</strong> dos corpos...<br />
Essas hipóteses balofas, ou melhor, essas aberrações do espírito,<br />
que se mascaram, às vezes, com o nome de ciência positiva, só<br />
podem ser repeli<strong>da</strong>s pela ver<strong>da</strong>deira Ciência. O <strong>na</strong>turalista não<br />
poderia acreditá-lo.<br />
“Por pouco que penetremos num desses obscuros redutos onde<br />
se esconde o débil inseto, nele ouvimos distintamente a voz<br />
<strong>da</strong> Providência ditando às criaturas a sua conduta diária.”<br />
Em to<strong>da</strong>s as províncias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> – acrescentamos nós – a mão<br />
do Criador inteligente e previdente se revela aos olhos que<br />
sabem ver<strong>da</strong>deiramente ver. E sempre que a dúvi<strong>da</strong> nos perturbe,
<strong>na</strong><strong>da</strong> melhor se nos impõe que o estudo acurado <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />
porquanto todos os que tiverem consigo o sentimento do belo e<br />
ver<strong>da</strong>deiro, ante o espetáculo maravilhoso <strong>da</strong> Criação, logo terão<br />
dissipa<strong>da</strong>s as nuvens qual floração de luz.<br />
Enquanto traço estas linhas, aqui, dentro de pequeno bosque<br />
cujas aves me conhecem, tenho defronte um ninho de rouxinóis.<br />
Quatro filhotes implumes, trêmulos, ali se premem tão conchegados<br />
que mal se lhes distingue as cabeças volumosas, relativamente,<br />
e os olhos negros, ain<strong>da</strong> mais. Nascidos de anteontem,<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> vêem, <strong>na</strong><strong>da</strong> sabem ain<strong>da</strong>, se há arvoredos e luz.<br />
Se fossem abando<strong>na</strong>dos assim, não tar<strong>da</strong>riam a perecer. O coração<br />
dos genitores, porém, freme por eles em anseios ver<strong>da</strong>deiramente<br />
maternos. Eles lá estão, ambos, pai e mãe, à bor<strong>da</strong> do<br />
ninho e conchegados também. Enfiam o bico nos quatro biquinhos<br />
escancarados e é de notar a força que lhes sustenta e alonga<br />
os pescocitos. Pai e mãe, trazendo-lhes no papo a provisão,<br />
ministram-lhes dessarte, durante alguns minutos, os primeiros<br />
alimentos, o mel e o leite que os há de nutrir no futuro. Que<br />
família encantadora! E como prezam a vi<strong>da</strong> todos os seis! Os<br />
raios solares coam-se através dos ramos, do vale evolam-se<br />
perfumes, é a vi<strong>da</strong> a espanejar-se em luz nesta temperatura<br />
tépi<strong>da</strong> de Maio. Por vezes, o minúsculo casal suspende a tarefa e<br />
contempla os filhotes com ar de contentamento e movimentos de<br />
cabeça significativos. Também se fitam silenciosos, colam-se as<br />
cabeças e confundem-se os bicos, como num beijo de amor..<br />
Depois, ei-los como a se consultarem. Uma nuvem refrescou a<br />
atmosfera. O pai voou, a mãe aninhou-se, abrindo as asas de<br />
maneira a cobrir todo o ninho e, to<strong>da</strong>via, mantendo alto a cabeça,<br />
por ver o horizonte e son<strong>da</strong>r as redondezas. Mas, agora, eis que<br />
regressa o rouxinol e se coloca, tal como antes, <strong>na</strong> beira do<br />
ninho, a procurar o bico <strong>da</strong> companheira. É que chegou a hora do<br />
jantar <strong>da</strong> família e o chefe solícito lhe traz o cibo preferido.<br />
Quanto a ela, parece não lhe desprazer o regime, de vez que<br />
aspira, como inebria<strong>da</strong>, o manjar que lhe trazem. Tremem-lhe as<br />
asas, todo o corpo lhe palpita, enquanto o marido vai e volta num<br />
afã constante, carreando-lhe no bico um repasto completo. Muito<br />
lhes cabe fazer pela prole. Agora. ei-los sérios. Há 15 dias,
passavam o tempo a cantar, a saltitar de galho em galho, a brincar,<br />
a amar... Agora, <strong>na</strong><strong>da</strong> fazem assim, estão casados, chefes de<br />
família, responsáveis por uma nova geração. Até que os filhotes<br />
emplumem, precisam levar-lhes à boca o que mais convém <strong>na</strong><br />
sua i<strong>da</strong>de e preocupam-se já com o seu destino. Amam-nos e<br />
talvez eles não compreen<strong>da</strong>m aquela afeição mater<strong>na</strong>l. É possível<br />
que voem, tão logo a mãe lhes ensine a voar; é possível que<br />
subitamente a releguem a uma solidão definitiva, sem jamais se<br />
lembrarem <strong>da</strong> infância. “A afeição é como os rios; desce e não<br />
sobe.”<br />
Em que pensam, hoje, esse rouxinol e a sua companheira?<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, ao cogitarem do futuro dos filhos, não têm em<br />
mente as profissões sociais e os princípios de honorabili<strong>da</strong>de que<br />
devem nortear to<strong>da</strong>s as carreiras. Sem dúvi<strong>da</strong> que não serão<br />
atormentados por cálculos econômicos, tantas vezes falaciosos<br />
para o homem. Mas aos que negam o instinto, perguntaremos:<br />
em que escola essa esposa, antes de ser mãe, aprendeu a construir<br />
o ninho que lhe haja de receber os ovos?<br />
Ela tem ape<strong>na</strong>s um ano e ain<strong>da</strong> não chocou: quem lhe ensinou<br />
a fazer esse ninho, precisamente assim e não de outro modo?<br />
Quem lhe teria falado de temperatura necessária à incubação e<br />
eclosão do ovo fecun<strong>da</strong>do? Quem lhe diria que chocando, aquecendo<br />
por 15 dias aqueles ovos, facultaria a sua geração? Posição<br />
de constrangimento, apesar do alívio que experimenta,<br />
tor<strong>na</strong>r-se-ia insuportável à sua vivaci<strong>da</strong>de, se um determinismo<br />
instintivo não a amparasse. E quando os ovos vingaram, quem<br />
lhe disse que precisava sair do ninho e que, vivos e precisando<br />
subsistir os pequeninos seres, importava granjear-lhes alimentação<br />
adequa<strong>da</strong>? Quem a forçou a passar mais quinze noites de asa<br />
aberta sobre o ninho, <strong>na</strong> mais fatigante <strong>da</strong>s posições para uma<br />
ave que deve dormir sobre as patas? A estas, poderíamos juntar<br />
mil outras advertências. Hão de responder-nos que a primeira<br />
espécie aprendeu tudo isso pelo hábito, e que as tendências se<br />
transmitem por hereditarie<strong>da</strong>de; mas é recair no mistério <strong>da</strong>s<br />
gerações, é não mais que recuar o problema à primeira espécie,<br />
ou melhor ain<strong>da</strong>, se o quiserem – aos primeiros tipos, supostos<br />
geradores de to<strong>da</strong>s as varie<strong>da</strong>des. Ora, admitindo-se mesmo,
contra to<strong>da</strong> a probabili<strong>da</strong>de, que a construção dos ninhos, a<br />
incubação e os primeiros cui<strong>da</strong>dos com a prole sejam mostras de<br />
inteligência, não do instinto, e que as espécies tenham, sucessivamente,<br />
aprendido a proceder dessa maneira – o que, digamo-lo<br />
ain<strong>da</strong> uma vez, nos parece i<strong>na</strong>dmissível – como resolver as<br />
questões atinentes à formação do ser dentro do ovo? Quem<br />
construiu o ovo, berço de uma geração futura? Quem criou e<br />
colocou o germe no centro desse ovo? Mediante um poder<br />
misterioso, um ser <strong>da</strong> mesma <strong>na</strong>tureza dos pais vai mover-se<br />
neste fluido, o ovo incipiente vai sofrer a mais maravilhosa <strong>da</strong>s<br />
metamorfoses, vai viver! Completa<strong>da</strong> a transformação, surge<br />
uma ave! Assaz débil para expor-se fora, não se exterioriza e,<br />
enquanto aguar<strong>da</strong>, ei-la cerca<strong>da</strong> pela clara do ovo, que é precisamente<br />
o alimento que lhe convém até o <strong>na</strong>scimento.<br />
Assim, pouco a pouco, se forma inteiramente, asas e patas se<br />
desligam, a cabeça sobreleva o peito, só lhe resta deixar a prisão<br />
e para isso o bico se reveste de um esmalte, que cai logo depois<br />
do <strong>na</strong>scimento. Com o bico assim aparelhado, ele se põe a quebrar<br />
a casca do ovo, até que consegue pôr de fora a cabeça.<br />
Utiliza, então, as asas e acaba por libertar-se inteiramente.<br />
Pois bem: – que os adversários, em tudo isto se esfalfem por<br />
formular as mais vastas e intermináveis teorias, que acumulem<br />
hipóteses sobre hipóteses, que recusem chamar instinto aos atos<br />
do <strong>na</strong>scituro, como <strong>da</strong> ave que o engendrou; que embrulhem o<br />
assunto com explicações tortuosas, confusas, e nem por isso<br />
deixamos de aí ter um fato <strong>na</strong>tural, eloqüente <strong>na</strong> sua simplici<strong>da</strong>de<br />
e que eles, os adversários, não poderão derrocar. Aquele que<br />
criou o rouxinol e quis nos alegrasse ele com o seu canto vespertino,<br />
criou o mundo e houve por bem <strong>da</strong>r-lhe as leis <strong>da</strong> própria<br />
conservação. Não há idéia mais simples e majestosa, nem que<br />
mais satisfaça a nossa necessi<strong>da</strong>de de conhecimento. Negar as<br />
leis conservadoras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é negar to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>. A nós nos<br />
parece que para ir a tais extremos é preciso ser estólido ou vítima<br />
de aberração espiritual. A ver<strong>da</strong>deira Ciência está muito longe de<br />
tais negações! Seria, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, uma desgraça se o fruto <strong>da</strong><br />
sabedoria redun<strong>da</strong>sse em aniquilamento <strong>da</strong>s leis que regem o<br />
Universo e constituem a sua uni<strong>da</strong>de viva.
Porque, pois, em face de fatos tão irresistíveis quanto os do<br />
instinto animal, não confessar uma ver<strong>da</strong>de bela e tocante ao<br />
mesmo tempo? Será precisamente por bela e tocante que a<br />
recusam? Seríamos quase levados a supô-lo, pois nestas teorias<br />
materialistas, basta seja uma coisa agradável ao espírito para<br />
logo ser repeli<strong>da</strong>. Esta, contudo, não é uma razão assaz suficiente.<br />
Para nós, ao contrário, contemplamos a <strong>Natureza</strong> em todos os<br />
seus aspectos. A ver<strong>da</strong>de não pode deixar de ser bela e não é só<br />
Platão a pensar que o belo é o esplendor <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. A <strong>Natureza</strong><br />
é ver<strong>da</strong>deiramente bela. Longe de desviar os olhos sempre que<br />
encontramos uma forma expressiva <strong>da</strong> beleza eter<strong>na</strong>, admiramola<br />
e reconhecemo-la tão sinceramente quanto o fazemos a uma<br />
ver<strong>da</strong>de matemática. Não é a <strong>Natureza</strong> a nossa mãe? Onde já<br />
passamos horas mais deliciosas e instrutivas do que as vivi<strong>da</strong>s<br />
intimamente com ela, no seio <strong>da</strong>s matas silenciosas?<br />
Contemplai, <strong>na</strong> sua maravilhosa harmonia, a lei de continui<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> espécie huma<strong>na</strong>, procurai profun<strong>da</strong>r a ordem misteriosa<br />
que preside à nossa geração e crescimento. Que maior prova de<br />
habili<strong>da</strong>de pudera <strong>da</strong>r a <strong>Natureza</strong> ao envolver ca<strong>da</strong> sexo nessa<br />
atração indefinível, que o escraviza suavemente aos seus desígnios<br />
soberanos? Que sabedoria não nos testemunha ela, organizando,<br />
em bases rígi<strong>da</strong>s, a vi<strong>da</strong> oculta do ser em formação, que<br />
até o dia do <strong>na</strong>scimento se beneficia de uma existência inteiramente<br />
diversa <strong>da</strong> de todos os outros seres vivos? Que previdência<br />
não demonstra ao criar, para nutrição do tesouro oculto,<br />
órgãos diferentes dos que lhe haverão de servir <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> atmosférica<br />
e ao preparar para os primeiros dias a mais pura <strong>da</strong>s ambrosias?<br />
Perguntai às jovens mães quantos cui<strong>da</strong>dos requerem esses<br />
recém-<strong>na</strong>scidos fragílimos e trêmulos. E, contudo, a <strong>Natureza</strong><br />
ain<strong>da</strong> será a mais vigilante <strong>da</strong>s mães. Qual a afeição mais tenra, o<br />
amor mais carinhoso, o devotamento mais extremado, de mãe;<br />
qual a inteligência mais lúci<strong>da</strong>, a previdência mais sábia de um<br />
pai, que poderiam rivalizar com os cui<strong>da</strong>dos incessantes e universais<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, tão profusa, infatigável e prodigamente<br />
despendidos <strong>na</strong> proteção individual, ativa, a ca<strong>da</strong> um de seus<br />
filhos?
Sobre a previdência <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, poderíamos escrever grossos<br />
“in-fólios”. Poderíamos perguntar se é por acaso e sem<br />
objetivo que as espécies mais fracas e expostas à morte são<br />
precisamente as mais fecun<strong>da</strong>s, como sejam galináceos, perdizes,<br />
etc., pondo deze<strong>na</strong>s de ovos fecun<strong>da</strong>dos e deixando, ao fim de<br />
um ano, cente<strong>na</strong>s de rebentos, enquanto as aves de rapi<strong>na</strong>, condores,<br />
águias, etc., se apresentam, comparativamente, quase<br />
estéreis. Poderíamos, também, perguntar se é às cegas que a<br />
<strong>Natureza</strong> decora de encantos particulares os pequeninos seres<br />
sem força e sem amparo, despertando-nos interesse e atenção<br />
para essas cabecitas louras, que, priva<strong>da</strong>s de assistência, acabariam<br />
dormindo em seu berço um sono eterno. Poderíamos, ain<strong>da</strong>,<br />
invocar aqui o espetáculo integral <strong>da</strong> Criação vivente, mas,<br />
intimamente convencido <strong>da</strong> adesão dos leitores, neste particular,<br />
não insistiremos inutilmente.<br />
Parece-nos que esses eminentes trabalhadores fizeram entusiasmados<br />
o maior trecho do caminho e que, não possuindo vista<br />
telescópica capaz de distinguir o fim, esquecem que o progresso<br />
<strong>da</strong>s ciências tem ver<strong>da</strong>deiramente um fim e estacam, inertes,<br />
depois de provarem uma capaci<strong>da</strong>de ativa incontestável. Por<br />
terem verificado que as causas fi<strong>na</strong>is, imagi<strong>na</strong><strong>da</strong>s pela vai<strong>da</strong>de<br />
huma<strong>na</strong>, só lhe têm servido, há tantos séculos, de re<strong>da</strong>nça por<br />
embalar-se displicentemente; – depois de se haverem certificado<br />
que os deuses-escravos do orgulho, as criações <strong>da</strong> fantasia e as<br />
ilusórias teorias de um pensamento mesquinho mais não são que<br />
simulacros sem reali<strong>da</strong>de, sombras, fantasmas que um raio de luz<br />
<strong>da</strong>s ciências basta para diluir – concluíram não haver diretriz<br />
nem fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>na</strong> Criação. Porque o homem se enganou <strong>na</strong><br />
solução de um problema, decidiram eles que não há problema<br />
nem solução. Confundindo inexplicavelmente a ver<strong>da</strong>de com a<br />
noção do que nos é <strong>da</strong>do saber; confundindo, igualmente, a<br />
grandeza real de uma obra com a idéia que fazemos dela, tal<br />
como os teólogos <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média a confundirem a idéia religiosa,<br />
em si mesma, com a forma católica particularista, proclamam<br />
eles que a falsi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s nossas noções individuais acarretam a<br />
ruí<strong>na</strong> do próprio objeto dessas noções. Na ver<strong>da</strong>de, para espíritos<br />
habituados aos rigores do raciocínio; para homens sábios, que
parece procurarem com absoluto desinteresse a ver<strong>da</strong>de tão<br />
longamente dissimula<strong>da</strong>, dir-se-á que não provam, dessarte,<br />
excelência nem superiori<strong>da</strong>de de vistas. Antes, pelo contrário,<br />
evidenciam diretamente a estreiteza <strong>da</strong> esfera que habitam,<br />
dispostos a recusar-lhe qualquer ampliação, obsti<strong>na</strong>dos em lhe<br />
ve<strong>da</strong>r to<strong>da</strong> e qualquer luz, como se temessem que essa luz viesse<br />
espalhar reveladoras clari<strong>da</strong>des no horizonte e recuar, para muito<br />
além dos seus recursos, os limites do Universo.<br />
Nossos opug<strong>na</strong>dores pretendem fazer ciência quando declaram<br />
que a organização dos seres não justifica o ascendente de<br />
um desígnio <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Em lugar de ciência, o que eles fazem<br />
é puro sistematismo, arbitrário, nisto como em tudo o mais.<br />
De fato: em que consista o método científico? Que será uma<br />
teoria em Astronomia, em Física, em Química? Observamos os<br />
fatos e quando possuímos um conjunto de observações suficientes<br />
procuramos religá-los mutuamente entre si, mediante uma lei.<br />
Vemos essa lei? Nunca, jamais. Adivinhamo-la pela discussão<br />
dos fatos e talvez a denomi<strong>na</strong>ção que lhe <strong>da</strong>mos não seja a que<br />
melhor convenha.<br />
Esta teoria, pela qual nosso espírito insaciável sente a necessi<strong>da</strong>de<br />
de explicar to<strong>da</strong>s as coisas, não é, antes de tudo, senão<br />
uma hipótese cujo valor consiste, principalmente, <strong>na</strong> satisfação<br />
que nos proporcio<strong>na</strong> a explicação <strong>na</strong>tural dos fatos estu<strong>da</strong>dos.<br />
Por muito tempo ela não passa de hipótese, inconsistente e<br />
frágil, que o mais leve sopro pode derrubar, para só elevar-se à<br />
ver<strong>da</strong>deira teoria quando suficientemente exami<strong>na</strong><strong>da</strong>, experimenta<strong>da</strong><br />
e sancio<strong>na</strong><strong>da</strong> pelo estudo. De outra forma, resvala para o<br />
campo <strong>da</strong>s erronias imaginárias.<br />
Vejamos, por exemplo, os movimentos dos corpos celestes.<br />
Notamos que eles descrevem elipses de que o Sol se constitui<br />
um dos focos; notamos que as superfícies percorri<strong>da</strong>s são proporcio<strong>na</strong>is<br />
aos tempos, e notamos que estes tempos de revolução,<br />
multiplicados por si mesmos, estão entre si como os grandes<br />
eixos multiplicados três vezes por si mesmos. Para explicar os<br />
movimentos <strong>da</strong> mecânica celeste, emite-se a hipótese de que os<br />
corpos se atraem <strong>na</strong> razão direta <strong>da</strong>s massas e inversa do quadra-
do <strong>da</strong>s distâncias. Enunciar esta hipótese, vale simplesmente por<br />
dizer que as coisas se passam como se os astros se atraíssem.<br />
Depois, explicando essa hipótese, perfeitamente, todos os fatos<br />
observados e <strong>da</strong>ndo conta de to<strong>da</strong>s as circunstâncias do problema,<br />
tor<strong>na</strong>-se ela uma teoria.<br />
Enfim, achando-se esta lei universalmente demonstra<strong>da</strong>, tanto<br />
pelo balanço <strong>da</strong>s estrelas gêmeas, <strong>na</strong> profundeza dos céus, como<br />
pela que<strong>da</strong> de uma maçã <strong>na</strong> superfície <strong>da</strong> Terra, afirma-se que a<br />
lei chama<strong>da</strong> gravitação representa, de fato, a força reguladora<br />
dos mundos.<br />
Idêntico é o processo que empregamos ao declarar que os organismos<br />
vivos são construídos como se a causa, fosse ela qual<br />
fosse, que as condicionou teria tido em vista uma desti<strong>na</strong>ção dos<br />
órgãos em relação à vi<strong>da</strong> peculiar de ca<strong>da</strong> ser, tanto quanto à<br />
existência global de todos os seres em conjunto.<br />
As ver<strong>da</strong>deiras causas fi<strong>na</strong>is são, portanto, um resultado <strong>da</strong><br />
observação científica, O método é o mesmo e, como bem o disse<br />
Flourens, é preciso partir não <strong>da</strong>s causas fi<strong>na</strong>is para os fatos, mas<br />
destes para aquelas. Induzir do conhecido para o desconhecido,<br />
eis o único método positivo. Ora, o resultado deste método, seja<br />
ele qual for, merece ser proclamado como científico. Pode<br />
suceder que a revelação de um plano e de uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>na</strong><br />
<strong>Natureza</strong> não agrade a Fulano ou Beltrano, mas isso pouco<br />
importa. Fulano e Beltrano estão no mais falso dos erros quando<br />
nos acusam de não proceder de acordo com a Ciência experimental<br />
e incidem <strong>na</strong> mais fatal <strong>da</strong>s ilusões quando imagi<strong>na</strong>m<br />
proceder de acordo com essa ciência. Trocam, assim, os papéis<br />
pró-domo sua, como freqüentemente acontece.<br />
A ver<strong>da</strong>de, porém, despreza-lhes as tendências e fica i<strong>na</strong>lteravelmente<br />
idêntica, sem se preocupar com os prismas através<br />
dos quais a encaram olhos interessados em vê-la abaixo <strong>da</strong> sua<br />
posição real.<br />
Esquisitice inexplicável em homens judiciosos, pretenderem<br />
que, admitindo a existência de <strong>Deus</strong>, sejamos obrigados a admitir<br />
o arbítrio <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, como se a vontade suprema não fosse<br />
necessária, infinitamente sábia e, por conseqüência, universal-
mente regular. “Os que só vêem em todos os movimentos <strong>da</strong><br />
<strong>Natureza</strong> os meios de atingir um fim – diz Moleschott – chegam<br />
mui logicamente à noção de uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de que, num tal<br />
propósito, confere à matéria as suas proprie<strong>da</strong>des. Esta perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />
também desig<strong>na</strong>rá o fim.<br />
“Se assim é, se uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de desig<strong>na</strong> os fins e escolhe<br />
os meios, a lei de necessi<strong>da</strong>de desaparece <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Ca<strong>da</strong><br />
fenômeno se tor<strong>na</strong> partilha de um jogo do acaso e de um arbítrio<br />
sem fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de.”<br />
J. B. Biot afigura-se-nos mais bem inspirado quando assim<br />
conclui o exame <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>: 115 “Por mim, quanto mais considero<br />
a harmonia, a imensi<strong>da</strong>de do Universo e as maravilhas <strong>da</strong><br />
Criação, tanto mais admiro esse concerto maravilhoso e menos<br />
apto me julgo para explicá-lo. Ousarei dizer, mesmo por havê-lo<br />
experimentado, que essas explicações imperfeitas, esses vagos<br />
ou falsos relatórios, que alguns modernos escritores querem<br />
inculcar como harmonias sublimes, nunca nos pareceram mais<br />
temerários e fúteis do que quando defrontamos a <strong>Natureza</strong>.<br />
Quando se há tido a ventura de conhecer e sentir as ver<strong>da</strong>deiras<br />
belezas que ela ostenta, somos tentados a conceituar, como<br />
profa<strong>na</strong>dores e ímpios, quantos a desfiguram com indignos<br />
disfarces. Assim é que todos os seres organizados tiveram seus<br />
meios próprios de vi<strong>da</strong>, tão numerosos e tão multiplicados <strong>na</strong><br />
variação do mecanismo, quanto as estrelas do céu.<br />
“E note-se que isto é o que percebemos exteriormente, pois o<br />
mais maravilhoso nos fica oculto. Quem, jamais, pôde compreender<br />
a ação química <strong>da</strong>s membra<strong>na</strong>s vivas, a causa dos movimentos<br />
voluntários e involuntários – que digo eu? – o vôo <strong>da</strong><br />
mosca, os torneios <strong>da</strong> borboleta? Quando nossa inteligência mal<br />
pode atingir o conhecimento <strong>da</strong>s disposições exteriores do organismo<br />
e mal pode apreender as relações entre si de alguma <strong>da</strong>s<br />
peças que o compõem, seria, parece-nos, ilógico não ver no<br />
âmago desse conjunto o princípio inteligente, como o orde<strong>na</strong>dor<br />
e regulador de tudo. Por mim quero, ao menos, possuir a filosofia<br />
<strong>da</strong> minha ignorância.”<br />
A ordem verifica<strong>da</strong> nos fatos não produzidos pelo homem –<br />
advertiremos ain<strong>da</strong> com ilustre escritor 116 – mostra-nos que as
correlações apresenta<strong>da</strong>s pelo mundo material resultam de ações<br />
e reações que, combi<strong>na</strong><strong>da</strong>s, regem-se por leis. Pela experiência<br />
contínua <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sabemos que sempre as correlações, as harmonias,<br />
as leis, são obra de uma inteligência cujo poder é proporcio<strong>na</strong>do<br />
à extensão dos fatos e <strong>da</strong>s harmonias coorde<strong>na</strong><strong>da</strong>s. Temos<br />
assim, por evidente, que o Universo é gover<strong>na</strong>do por uma inteligência.<br />
Estas correlações e estas harmonias estão em correspondência<br />
com as proprie<strong>da</strong>des intrínsecas <strong>da</strong> matéria e a elas se<br />
ligam de tal sorte que deixariam de existir se essas proprie<strong>da</strong>des<br />
substanciais fossem outras. Daí concluímos que a matéria com as<br />
suas proprie<strong>da</strong>des intrínsecas é também obra <strong>da</strong> Inteligência, que<br />
lhe estabeleceu as leis. O bom senso decreta, imperiosamente, e<br />
no que pesem às alegações contrárias, que não podemos atribuir<br />
a uma circunstância molecular, fortuita, a atração, a eletrici<strong>da</strong>de,<br />
o calor, a composição do ar, fatos cósmicos perfeitamente apropriados<br />
à vegetação <strong>da</strong>s plantas, à vi<strong>da</strong> animal, pela mesma razão<br />
que ninguém admitiria pudessem milhares de tipos de impressão,<br />
espalhados ao acaso, produzir a ilía<strong>da</strong> ou a Jerusalém Liberta<strong>da</strong>.<br />
Se, para fugir a conclusões lógicas, nos dissessem que essas<br />
quali<strong>da</strong>des são efeitos inerentes, nem por isso elidiriam a necessi<strong>da</strong>de<br />
lógica de uma intervenção suprema e inteligente.<br />
Juntemos a esta imagem um aforismo pouco discutível: todo<br />
fim supõe uma intenção, to<strong>da</strong> intenção uma consciência e to<strong>da</strong><br />
consciência uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de.<br />
O problema <strong>da</strong>s causas fi<strong>na</strong>is, repitamo-lo, é de solução mais<br />
difícil e complica<strong>da</strong> do que se prefigura a muitos imagi<strong>na</strong>tivos<br />
apressados. Ele se traduz, como diriam os antepassados, antes<br />
em potencial do que em ato. Os fatos gerais o decidem e os<br />
particulares o dificultam. Para bem o apreender, importa ao<br />
espírito adstringir-se a um exame severo e, de um golpe de vista,<br />
abranger, senão a totali<strong>da</strong>de, pelo menos a maioria <strong>da</strong>s coisas<br />
conheci<strong>da</strong>s, sob o duplo aspecto do tempo e do espaço.<br />
O primeiro efeito desse rigoroso estudo crítico é, precisamente,<br />
afastá-lo de to<strong>da</strong> crença e resguardá-lo dessas mesquinhas<br />
interpretações huma<strong>na</strong>s, que levam a criatura a referir tudo a si<br />
mesma, como eixo central <strong>da</strong> Criação.
Assim procedendo, poderemos, então, rir <strong>da</strong>s ilusões, vai<strong>da</strong>des<br />
e tentativas insensatas do orgulho humano. Esse, o primeiro<br />
resultado do estudo geral dos seres.<br />
Mas, quando prosseguimos investigando, até perceber as forças<br />
íntimas que sustentam ca<strong>da</strong> ser criado, até descobrirmos as<br />
leis universais que regem simultaneamente o edifício total e ca<strong>da</strong><br />
uma <strong>da</strong>s partes desse imenso edifício, então distinguiremos as<br />
linhas de um plano geral, perceberemos, aqui e ali, os elos de<br />
soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de que entrosam num só desígnio os corpos mais<br />
distantes, reconheceremos a uni<strong>da</strong>de do pensamento que presidiu<br />
– ou melhor – que preside eter<strong>na</strong>mente o condicio<strong>na</strong>do universal<br />
e gover<strong>na</strong>, <strong>na</strong> rota do infinito, o carro imensurável <strong>da</strong> Criação.<br />
Enfim, acostumando-nos a essas contemplações essenciais,<br />
também chegaremos a concluir que esta noção <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de<br />
ain<strong>da</strong> é muito huma<strong>na</strong> para que seja ver<strong>da</strong>deira e que essa força<br />
que sustenta o mundo, essa potência que lhe dá vi<strong>da</strong>, essa sabedoria<br />
que o dirige, essa vontade que o impele eter<strong>na</strong>mente para<br />
uma perfeição i<strong>na</strong>cessível, essa uni<strong>da</strong>de de pensamento que se<br />
revela sob as formas transitórias <strong>da</strong> matéria, não são uma força,<br />
um poder, uma sabedoria e uma vontade huma<strong>na</strong>s, mas atributos<br />
inerentes a um ser inominável, incompreensível, incognoscível,<br />
de cuja <strong>na</strong>tureza <strong>na</strong><strong>da</strong> podemos razoar e cujo conhecimento é<br />
para nós cientificamente i<strong>na</strong>bordável.<br />
Este resultado fi<strong>na</strong>l <strong>da</strong>s investigações positivas explica porque<br />
e como, nesta discussão, se afigura que estendemos a mão<br />
esquer<strong>da</strong> a Berlim e a direita a Roma. A quem no-lo objete,<br />
responderemos que se não trata aqui senão de um fato geográfico,<br />
resultante do nosso pendor para visualizar sempre o Oriente.<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, esta atitude nos granjeia o qualificativo de herético,<br />
conferido pelos doutores que se repoltreiam em sua cátedra<br />
secular, mesmo porque, seus olhos modorrentos vêm de há muito<br />
preferindo a suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s meias tintas crepusculares aos flamíneos<br />
raios aurorescentes.<br />
A leal<strong>da</strong>de, porém, obriga-nos a proclamar que o exagero<br />
dogmático é tão falso como o cepticismo e que a trilha do pensador<br />
oscila eqüidistante desses extremos. Sim, oscila... Os que se<br />
presumem mais firmes nesse terreno são os que mais próximo
estão <strong>da</strong> que<strong>da</strong>. Para o homem que estu<strong>da</strong>, <strong>na</strong><strong>da</strong> há definitivo<br />
neste mundo. Quanto mais progride a Ciência, mais o homem<br />
percebe a sua ignorância.<br />
To<strong>da</strong>via, parar é morrer. Caminhar, mesmo contramarchando<br />
às vezes, é realizar o fim mais nobre <strong>da</strong> existência.<br />
Em Filosofia, como em Mecânica, o equilíbrio não passa, jamais,<br />
de um equilíbrio instável.<br />
Na sua tendência para tudo referir à sua pessoa como centro<br />
exclusivo, o homem restringe os fatos e as idéias. Vimos que a<br />
sua teoria <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de é disso um exemplo e dos mais famosos.<br />
Quando se pretende que os frangos foram feitos para o<br />
espeto, não deixa de haver um tanto de perso<strong>na</strong>lismo <strong>na</strong> afirmação.<br />
Pode-se dizer, é ver<strong>da</strong>de – de vez que o homem é onívoro e<br />
que sua constituição orgânica exige alimentação mista – que os<br />
animais e plantas de que se nutre desti<strong>na</strong>m-se, efetivamente, a<br />
lhe prover a existência e que, sem eles, a espécie huma<strong>na</strong> logo se<br />
extinguiria. Descer, porém, a minúcias particulares e afirmar que<br />
as perdizes fossem cria<strong>da</strong>s para combi<strong>na</strong>r com os temperos <strong>da</strong><br />
culinária de Vatel; dizer que os bovinos foram principalmente<br />
desti<strong>na</strong>dos ao caldo gordo, ao bife com batatas, etc.; que os<br />
quartos do carneiro e assados de vitela correspondem à fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />
originária <strong>da</strong>s espécies ovi<strong>na</strong> e bovi<strong>na</strong>; que os feijões para<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> prestariam se não fossem temperados e que as ameixas só<br />
foram doura<strong>da</strong>s pelo Sol para serem saborea<strong>da</strong>s frescas ou em<br />
compota, e assim por diante, é incidir no vulgar; é esquecer o<br />
sistema geral <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e acreditar que só o homem vive no<br />
Universo.<br />
Assim, vamos termi<strong>na</strong>r, lembrando nossa proposição, que é<br />
substituir a idéia de causali<strong>da</strong>de particular pela idéia de plano<br />
geral.<br />
Não tomamos posição pró nem contra a teoria <strong>da</strong> transformação<br />
<strong>da</strong>s espécies; ape<strong>na</strong>s concluímos que sem o princípio <strong>da</strong><br />
desti<strong>na</strong>ção dos seres e dos astros é impossível algo explicar,<br />
desde a a<strong>na</strong>tomia à mecânica celeste; nenhuma causa exterior,<br />
nenhuma influência mesológica se isenta dessa grande lei. A<br />
teoria <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural substitui, simplesmente, a intervenção
miraculosa <strong>da</strong> causa criadora para ca<strong>da</strong> espécie, por uma lei<br />
inteligente, universal.<br />
Ela deixa <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> o pensamento organizador do mundo<br />
sensível ao começo, ao meio como ao fim <strong>da</strong>s coisas.<br />
Esta concepção do desenvolvimento do mundo, mais positiva<br />
e científica, não se baseia no casual nem no arbitrário. Apresenta<br />
o Universo como uni<strong>da</strong>de viva, cuja existência se desenvolve e<br />
se eleva eter<strong>na</strong>mente a um ideal i<strong>na</strong>cessível, de conformi<strong>da</strong>de<br />
com a idéia primordial. Origem e fim coexistem, simultaneamente,<br />
no atual. Do inorgânico ao orgânico, do orgânico ao vivente e<br />
do ser vivente ao inteligente há um ciclo, uma circulação material<br />
e uma ascensão intelectual, obedientes a uma razão domi<strong>na</strong>dora.<br />
O mundo não é um jogo de disparates, é um poema no seio do<br />
qual não passamos de humilíssimos comparsas e cujo autor<br />
invisível nos envolve <strong>na</strong> sua radiação imensa, como a esses grãos<br />
de poeira que vemos flutuar numa réstia de sol.<br />
Ousemos confessá-lo! O destino integral, absoluto, dos seres<br />
é problema insolúvel <strong>na</strong> atuali<strong>da</strong>de. É um problema que se abre<br />
insensivelmente como um abismo, quando procuramos son<strong>da</strong>rlhe<br />
as profundezas... Uma noite, em Paris, antes do pôr-do-sol,<br />
contemplava eu o Se<strong>na</strong>, debruçado à ponte do Instituto, de onde<br />
o panorama se apresenta às vezes maravilhoso. O horizonte<br />
purpurizado derramava uma luz rósea <strong>na</strong>s encarneira<strong>da</strong>s nuvens<br />
que se espalhavam pelo céu azul e essa luz, banhando a atmosfera<br />
<strong>da</strong> grande urbs, <strong>da</strong>va um aspecto mágico aos edifícios silenciosos.<br />
O rio, qual enorme rubi, rolava morosamente para Oeste,<br />
sumindo-se no indeciso <strong>da</strong> distância, onde se casavam a luz e a<br />
sombra. À minha esquer<strong>da</strong>, o zimbório sombrio cinzentava o<br />
casario e, além, duas fechas góticas espetavam o céu. À minha<br />
direita, as janelas do Louvre, reverberando uma ilumi<strong>na</strong>ção<br />
feérica, emprestavam ao velho edifício desmesura<strong>da</strong> extensão. O<br />
bosque escuro <strong>da</strong>s Tulherias e as alturas vaporosas de uma coli<strong>na</strong><br />
além prolongavam a perspectiva até às brumas do horizonte. Este<br />
panorama apresentava-se-me com duplo sentido: – era a idéia<br />
grandiosa <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> pairando sobre a massa de uma grande<br />
ci<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>. Pouco a pouco, sentia-me identificado com esse<br />
espetáculo de uma existência simultânea <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>-
de, existência permanente e, contudo, velha, mas cujo contraste<br />
não me houvera tocado ain<strong>da</strong>, tão vivamente. E contemplando<br />
esse duplo espetáculo, acompanhava os movimentos reais,<br />
quanto os aparentes, <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. O Sol descia, lento, atrás <strong>da</strong>s<br />
coli<strong>na</strong>s; as nuvens se coloriam de um matiz mais róseo, o rio<br />
deslizava docemente para o mar distante; o ar refrescado agitavase<br />
brando, como um ritmo respiratório. Esse movimento geral<br />
impressio<strong>na</strong>va-me, por isso que o imagi<strong>na</strong>va extensivo a to<strong>da</strong> a<br />
<strong>Natureza</strong>, e como que me desven<strong>da</strong>va a circulação total <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
planetária. Mas o motivo predomi<strong>na</strong>nte <strong>da</strong> minha atenção era a<br />
idéia de que todo esse movimento se completava, como se o<br />
homem ali não estivesse.<br />
Em pleno centro de Paris, o homem afigurou-se-me um cifrão<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Os transeuntes que por mim passavam, ali, <strong>na</strong>quela<br />
mesma ponte, não admirariam, certamente, aquele magnífico<br />
pôr-do-sol. Os homens de negócios pervagavam absortos nos<br />
seus cálculos. Os dois milhões de almas que formigam a dentro<br />
<strong>da</strong> cinta fortifica<strong>da</strong> não me pareciam mais que um turbilhão<br />
efêmero neste setor do nosso globo. E eu dizia de mim para<br />
mim: eis que assim vai a Terra girando em torno <strong>da</strong> sua órbita e<br />
apresentando ca<strong>da</strong> país, por sua vez, à fecun<strong>da</strong>ção solar; as<br />
nuvens percorrem a atmosfera, as plantas obedecem ao ciclo <strong>da</strong>s<br />
estações; os rios correm para o mar, dias e noites se alter<strong>na</strong>m, a<br />
harmonia terre<strong>na</strong> segue o seu curso regular, perpétuo... Mas,<br />
porque tudo isso? Os insetos com suas mandíbulas estrafegam<br />
pétalas, os passarinhos devoram os insetos, o gavião devora os<br />
passarinhos, ruge o leão nos desertos, baleias caçam <strong>na</strong> amplidão<br />
dos mares... Porque e para que? Fontes límpi<strong>da</strong>s ostentam, <strong>na</strong><br />
solidão <strong>da</strong>s matas, espelhos translúcidos em molduras de pervincas;<br />
regatos múrmuros despenham-se <strong>da</strong>s coli<strong>na</strong>s, ribeiros prateados<br />
misturam-se com os grandes rios para caírem nos abismos<br />
oceânicos e aí perderem a existência e o nome; ricas florações<br />
repontam e morrem no fundo tenebroso dos mares, ape<strong>na</strong>s<br />
visitados por madréporas e corais, e, sob a atração celeste, o<br />
fluxo e refluxo dos mares desloca, de continentes a continentes, a<br />
massa líqui<strong>da</strong> e formidável.
Mas... que utili<strong>da</strong>de haverá em tudo isso? Essa vastíssima <strong>Natureza</strong><br />
caminha impassível, mecanismo colossal, as coisas se<br />
renovam sem tréguas, o próprio homem não passa de átomo<br />
efêmero, que surge e funde-se num relâmpago. Deste universo<br />
imenso, o homem quase <strong>na</strong><strong>da</strong> conhece, posto suponha conhecer<br />
tudo, e, de resto, empregando o tempo noutras cogitações. Antes<br />
que surgisse o homem, já essas mesmas harmonias vibravam<br />
como ao presente. Para que ouvidos, porém? Tudo existia antes<br />
dele e quiçá sem ele. Tudo existirá depois dele! Porque existe,<br />
aqui, esta Criação? Porque, son<strong>da</strong>ndo-lhe a profundeza, não<br />
posso eu idealizar qualquer resposta? Porque haveria <strong>Deus</strong><br />
criado a Terra e a multidão infinita de outros mundos? E porque,<br />
vendo a inquietude <strong>da</strong> minha alma, deixa-a debater-se no abismo<br />
<strong>da</strong> ignorância, como se não conhecesse Ele, o Criador, esse<br />
pensamento, qual o do grão de areia levado pelo vento, ou <strong>da</strong><br />
gotícula d'água deste rio que aqui resvala, a meus pés? Porque e<br />
para que serve tudo isto? Que importará a <strong>Deus</strong> haja um, milhões,<br />
ou nem um mundo? Qual a fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de desta obra? Ain<strong>da</strong><br />
uma vez porque, ó <strong>Deus</strong>!, existe a Criação? E, contudo, este<br />
conjunto formidável tem uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. Este véu oculta um<br />
problema grandioso, que nos envolve e aniquila. Nesse dia,<br />
retirei-me silencioso, olhos cerrados, em <strong>na</strong><strong>da</strong> mais atentando.<br />
Desaparecera o Sol, o Se<strong>na</strong> prosseguiu em seu curso, o manto <strong>da</strong><br />
noite envolveu a ci<strong>da</strong>de e logo entrei a ouvir o barulho ambiente.<br />
Mais tarde, muitas vezes, fui assaltado por essas mesmas reflexões,<br />
muitas vezes me vi constrangido a repetir a pergunta<br />
irretorquível – porque existe o mundo? E sempre o silêncio e o<br />
vácuo por única resposta!<br />
Pois quê! Sempre que tentava uma resposta, questão mais<br />
grave se me impunha, conseqüente. Acompanhando esse movimento<br />
impassível <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, minha alma por vezes se emancipou<br />
do tempo para interrogar-se onde estaria <strong>da</strong>qui a cem anos e,<br />
prosseguindo avante, imaginou, aterra<strong>da</strong>, o que poderia aguardála<br />
num milênio. Perpetuando o seu tesouro, viu que poderia viver<br />
ain<strong>da</strong> cem mil anos e perguntou o que seria nessa época.<br />
Sonhando mais longe o abismo, lá se foi ela, infatigável, por<br />
beirar um milhão de anos, de séculos! E além dessas lindes,
desses pontos já i<strong>na</strong>cessíveis ao pensamento, ei-la a imagi<strong>na</strong>r<br />
nova linha de igual extensão; depois, uma segun<strong>da</strong>, terceira,<br />
quarta, décima, centésima, milésima... Já <strong>na</strong> eterni<strong>da</strong>de, então,<br />
percebeu que o tempo não existe e que a eterni<strong>da</strong>de é imóvel...<br />
Devo dizer que, por vezes, este último pensamento se tor<strong>na</strong>va tão<br />
aterrador, diante do inexorável destino, que me aniquilava a<br />
noção de perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, como se esse quadro insustentável nos<br />
convi<strong>da</strong>sse a esperar o repouso <strong>na</strong> morte ou como se essa contemplação,<br />
muito vasta para o cérebro humano, o houvesse<br />
espe<strong>da</strong>çado e suprimido do número dos cérebros inteligentes.<br />
Talvez não me assista o direito de assim vos entreter com as<br />
minhas impressões pessoais. No fundo, porém, não se trata aqui<br />
de um caso pessoal, mas de um estudo análogo ao do a<strong>na</strong>tomista<br />
que son<strong>da</strong> profun<strong>da</strong>mente uma chaga desconheci<strong>da</strong>. Se o astrônomo<br />
se baseia em observações pessoais para fixar o seu sistema;<br />
se o químico fala pelo testemunho <strong>da</strong>s suas retortas e análises<br />
particulares; se o físico exami<strong>na</strong> a <strong>Natureza</strong> com seus próprios<br />
olhos, <strong>na</strong>tural se tor<strong>na</strong> que o pensador, a exemplo deles,<br />
conte o resultado de suas elucubrações e confie, eventualmente,<br />
aos que o ouvem, as inquietações e labores do seu espírito. No<br />
mínimo, há nisto um ato de sinceri<strong>da</strong>de e o penhor de uma<br />
opinião, independente de qualquer sectarismo.<br />
Sim! O vasto problema <strong>da</strong> desti<strong>na</strong>ção dos seres e coisas envolve-nos<br />
<strong>na</strong> sua profundeza, sem que o possamos julgar nem<br />
resolver. Ele nos arrasta, quais infusórios microscópicos, perdidos<br />
no bojo dos oceanos, a procurarem compreender e explicar o<br />
fluxo e refluxo <strong>da</strong>s águas.
Quinta Parte<br />
<strong>Deus</strong><br />
SUMÁRIO – <strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, força viva e pessoal, causa dos<br />
movimentos atômicos, lei dos fenômenos, orde<strong>na</strong>dor <strong>da</strong> harmonia,<br />
virtude e sustentáculo do mundo. – O homem criando <strong>Deus</strong> à<br />
sua imagem. – Erro antropomórfico. – O filósofo grego Zenófanes<br />
há 2400 anos. – A <strong>na</strong>tureza de <strong>Deus</strong> é incognoscível. – Nenhum<br />
sistema humano poderá defini-la. – Diferentes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />
<strong>da</strong> idéia de <strong>Deus</strong>, segundo os homens. – Últimas perspectivas<br />
doutrinárias. – Conclusão geral. – Epílogo.<br />
O prisma através do qual nos permitimos concluir a nossa<br />
demonstração geral é antes síntese que peroração; e se é ver<strong>da</strong>de<br />
que a Ciência e a Poesia estão intimamente associa<strong>da</strong>s <strong>na</strong> contemplação<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, não podemos, judiciosamente, impedir o<br />
sentimento poético de se manifestar nestas últimas impressões<br />
que o panorama do mundo nos sugere.<br />
Ape<strong>na</strong>s, necessário fora nos consagrássemos agora a um estudo<br />
especial <strong>da</strong> causa divi<strong>na</strong>, visto que por essa causa temos<br />
combatido de início, neste longo arrazoado, e to<strong>da</strong>s as conclusões<br />
atingiram esse alvo supremo. Contudo, vale enfechá-las<br />
numa conclusão geral. Assim como o <strong>na</strong>turalista, o botânico, o<br />
geômetra, o lavrador, o operário ou o poeta, depois de exami<strong>na</strong>r<br />
as particulari<strong>da</strong>des de uma paisagem e galgar a coli<strong>na</strong> de cujo<br />
cimo se abrange os pontos estu<strong>da</strong>dos, volta-se por contemplar de<br />
conjunto a distribuição, o plano e a beleza do panorama, assim<br />
também, após o estudo particularizado <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> matéria e <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, apraz-nos a ele voltar e calmamente admirá-lo.<br />
Aos olhos <strong>da</strong> alma apraz embevecer-se <strong>na</strong> radiação celeste,<br />
que inun<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>. Aqui, já não é a discussão, mas a<br />
contemplação recolhi<strong>da</strong> <strong>da</strong> luz e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> resplandecentes <strong>na</strong><br />
atmosfera, que brilham no cromatismo <strong>da</strong>s flores e refulgem nos<br />
seus matizes; que circulam <strong>na</strong> folhagem dos bosques e envolvem<br />
num beijo universal os inumeráveis seres palpitantes no seio <strong>da</strong><br />
<strong>Natureza</strong>. Depois <strong>da</strong> potência, <strong>da</strong> sabedoria, <strong>da</strong> inteligência, é a<br />
bon<strong>da</strong>de inefável o que se faz sentir; é a universal ternura de um
ser misterioso sempre, fazendo sucederem-se <strong>na</strong> superfície do<br />
globo as formas inumeráveis de uma vi<strong>da</strong> que se perpetua por<br />
amor e que jamais se extingue.<br />
A correlação <strong>da</strong>s forças físicas nos mostrou a uni<strong>da</strong>de de<br />
<strong>Deus</strong>, sob to<strong>da</strong>s as formas transitórias do movimento. Pela<br />
síntese, o espírito se eleva à noção de uma lei única – lei e força<br />
universais, que valem por expressão ativa do pensamento divino.<br />
Luz, calor, eletrici<strong>da</strong>de, magnetismo, atração, afini<strong>da</strong>de, vi<strong>da</strong><br />
vegetal, instinto, inteligência, tudo deriva de <strong>Deus</strong>. O sentimento<br />
do belo, a estesia <strong>da</strong>s ciências, a harmonia matemática, a geometria,<br />
ilumi<strong>na</strong>m essas forças múltiplas e lhes dão o perfume do<br />
ideal. Seja qual for o prisma pelo qual o pensador observe a<br />
<strong>Natureza</strong>, encontra uma trilha conducente a <strong>Deus</strong> – força viva,<br />
cujas palpitações, através de to<strong>da</strong>s as formas, ele as sentirá no<br />
estremecer <strong>da</strong> sensitiva, como no canto mati<strong>na</strong>l dos passarinhos.<br />
Tudo é número, correspondência, harmonia, relação de uma<br />
causa inteligente, agindo universal e eter<strong>na</strong>mente.<br />
<strong>Deus</strong> não é, pois, como dizia Lutero, “um quadro vazio, sem<br />
outra inscrição além <strong>da</strong> que lhe apomos”. <strong>Deus</strong> é, ao contrário, a<br />
força inteligente, universal e invisível, que constrói sem cessar a<br />
obra <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. É sentindo-lhe a presença eter<strong>na</strong> que compreendemos<br />
as palavras de Leibnitz: “há metafísica, geometria e<br />
moral por to<strong>da</strong> a parte”, bem como o velho aforismo de Platão,<br />
que poderemos assim traduzir: <strong>Deus</strong> é o geômetra que opera<br />
eter<strong>na</strong>mente.<br />
É fora dos tumultos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de mun<strong>da</strong><strong>na</strong>, no silêncio <strong>da</strong>s<br />
profun<strong>da</strong>s meditações, que a alma pode rever-se, em face <strong>da</strong><br />
glória do invisível, manifesta<strong>da</strong> pelo visível.<br />
É nessa visualização <strong>da</strong> presença de <strong>Deus</strong> <strong>na</strong> Terra que a alma<br />
se eleva à noção do ver<strong>da</strong>deiro 117 . O ruído longínquo do oceano,<br />
a paisagem solitária, as águas cujos murmúrios valem sorrisos, o<br />
sono <strong>da</strong>s florestas entrecortado de anseios suspirosos, a altivez<br />
impassível <strong>da</strong>s montanhas, tudo abrangendo de alto, são manifestações<br />
sensíveis <strong>da</strong> força que vela no âmago de to<strong>da</strong>s as coisas.<br />
Abandonei-me, algumas vezes, a contemplar-vos, ó esplendores<br />
vividos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, e sempre vos senti envoltos e banhados de
inefável poesia! Quando meu espírito se deixava seduzir pela<br />
magia <strong>da</strong> vossa beleza, ouvia acordes desconhecidos escapandose<br />
do vosso concerto.<br />
Sombras notur<strong>na</strong>s que flutuais pela encosta <strong>da</strong>s montanhas,<br />
perfumes que baixais <strong>da</strong>s florestas, flores pendi<strong>da</strong>s que cerrais os<br />
lábios, surdos rumores oceânicos que nunca vos calais, calmarias<br />
profun<strong>da</strong>s de noites estrela<strong>da</strong>s, tendes-me falado de <strong>Deus</strong>, certo,<br />
com eloqüência mais íntima e mais empolgante que todos os<br />
livros humanos! Em vós encontrei ternuras mater<strong>na</strong>is, blandícias<br />
de inocência, e sempre que me deixava adormecer no vosso<br />
regaço despertava alegre e venturoso. Coloridos de esplêndidos<br />
crepúsculos, deslumbramentos de clarores moribundos, visões de<br />
sítios ermos, que deliciosos momentos de ebrie<strong>da</strong>de não concedeis<br />
aos que vos amam! O lírio desabrocha e bebe, em êxtase, a<br />
luz que derrama dos céus! Nessas horas contemplativas, a alma<br />
transforma-se em flor, aspirando, ávi<strong>da</strong>, as irradiações celestes.<br />
A atmosfera já não é, tão somente, uma mistura de gases; as<br />
plantas deixam de ser simples agregados atômicos de carbono ou<br />
hidrogênio; os perfumes não se reduzem a moléculas impalpáveis<br />
e só derramados à noite, para resguar<strong>da</strong>r as flores <strong>da</strong> friagem;<br />
a brisa embalsama<strong>da</strong> significa algo mais que uma simples<br />
corrente de ar; as nuvens não representam ape<strong>na</strong>s vesículas de<br />
aquoso vapor; a <strong>Natureza</strong> não se oferece exclusivamente qual<br />
laboratório de química, ou gabinete de física... Antes, pelo<br />
contrário, pressentimos em tudo uma lei de harmonia sobera<strong>na</strong>,<br />
que gover<strong>na</strong> a marcha simultânea de to<strong>da</strong>s as coisas, que cerca os<br />
mais íntimos seres de uma vigilância instintiva, que guar<strong>da</strong><br />
ciosamente o tesouro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em plenitude de pujança e que, por<br />
seu perpétuo rejuvenescimento, desdobra em potência imutável a<br />
fecundi<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>. Em to<strong>da</strong> esta <strong>Natureza</strong> há uma espécie de<br />
beleza universal, que a nossa alma respira e identifica, como se<br />
essa beleza ideal pertencesse unicamente ao domicílio <strong>da</strong> inteligência.<br />
Vésper que antecedes a noite! carro do Setentrião! Magnificências<br />
estelares! Misteriosas perspectivas de abismo insondável!<br />
Que olhar, apercebido de vossas munificências, poderia
fitar-vos indiferente? Quantos olhares sonhadores se têm perdido<br />
nos vossos desertos, ó solidões do espaço!<br />
Quantos ansiosos pensamentos têm viajado de ilha em ilha,<br />
no vosso luminoso arquipélago! E <strong>na</strong>s horas <strong>da</strong> sau<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />
melancolia, quantas pupilas molha<strong>da</strong>s têm baixado sobre os<br />
olhos fitos numa estrela predileta!<br />
É que a <strong>Natureza</strong> tem nos lábios palavras doces, no olhar tesouros<br />
de amor e no coração sentimentos afetivos de uma preciosi<strong>da</strong>de<br />
esquisita, e isso porque ela, a <strong>Natureza</strong>, não consiste<br />
somente numa organização corporal, mas também tem alma e<br />
vi<strong>da</strong>. Quem quer que só a tenha entrevisto no seu aspecto material<br />
ape<strong>na</strong>s lhe conhece a metade. A beleza íntima <strong>da</strong>s coisas é tão<br />
ver<strong>da</strong>deira e positiva como a sua composição química. A harmonia<br />
do mundo não é menos dig<strong>na</strong> de apreço do que o seu movimento<br />
mecânico. A direção inteligente do Universo deve ser<br />
constata<strong>da</strong> ao mesmo título <strong>da</strong>s fórmulas matemáticas. Obsti<strong>na</strong>rse<br />
em só considerar a criatura com os olhos do corpo e jamais<br />
com os do espírito é parar voluntariamente à superfície. Bem<br />
sabemos que os adversários vão objetar-nos que o espírito não<br />
tem olhos, que é um cego de <strong>na</strong>scença e que to<strong>da</strong> afirmativa, não<br />
originária dos órgãos visuais, perde todo o valor. Mas, isto<br />
também não passa de um conceito arbitrário e, ao demais, infun<strong>da</strong>do.<br />
Temos visto que é possível, de boa fé, pôr em dúvi<strong>da</strong> as<br />
ver<strong>da</strong>des de ordem intelectual e que é em nosso próprio senso<br />
que se forma a convicção de to<strong>da</strong> e qualquer ver<strong>da</strong>de.<br />
Transporemos, portanto, sem receio, essas mofi<strong>na</strong>s objeções.<br />
Para nós a <strong>Natureza</strong> é um ser vivo e animado, e mais ain<strong>da</strong> – um<br />
ser amigo. Onipresente, fala-nos pelas suas cores, pelos sons e<br />
pelos movimentos; tem sorrisos para as nossas alegrias, gemidos<br />
para as nossas tristezas, simpatia para to<strong>da</strong>s as nossas aspirações.<br />
Filhos <strong>da</strong> Terra, nosso organismo está em consonâncias vibratórias<br />
com todos os movimentos que constituem a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>:<br />
ele os compreende e deles compartilhamos, de modo a nos<br />
deixarem n'alma uma repercussão profun<strong>da</strong>, a menos que o<br />
artifício nos tenha atrofiado. Congênita do princípio <strong>da</strong> criação,<br />
nossa alma reencontra o infinito <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.
Para a ciência espiritualista, não mais se defrontam um mecanismo<br />
automático e um <strong>Deus</strong> retraído <strong>na</strong> sua imobili<strong>da</strong>de absoluta.<br />
<strong>Deus</strong> é potência e ato <strong>na</strong>turais; vive <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, como nele<br />
vive ela. O Espírito se faz pressentir através <strong>da</strong>s formas materiais,<br />
mutáveis. Sim, a <strong>Natureza</strong> tem harmonias para a alma, tem<br />
quadros para o pensamento, tem tesouros para as ambições do<br />
espírito e ternuras para as aspirações do coração. Sim, ela os tem,<br />
porque não nos é estranha, não está de nós segrega<strong>da</strong> e somos<br />
um com ela.<br />
Ora, a força viva <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, essa vi<strong>da</strong> mental que reside nela,<br />
essa organização peculiar ao destino dos seres, essa sabedoria<br />
e onipotência no entretenimento <strong>da</strong> criação, essa comunicação<br />
íntima de um Espírito universal entre todos os seres, que coisa<br />
outra poderá significar senão a revelação <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>,<br />
a manifestação de um pensamento criador, eterno, imenso? Que<br />
significam a facul<strong>da</strong>de eletiva <strong>da</strong>s plantas, o instinto inexplicável<br />
dos animais, a geniali<strong>da</strong>de do homem? Que será o governo <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> terrestre, sua direção em torno do seu foco de luz e de calor,<br />
as revoluções solares, a movimentação de mundos incontáveis a<br />
gravitarem conjugados no infinito? Que significará tudo isso,<br />
senão a demonstração viva, imperiosa, de uma vontade que<br />
subordi<strong>na</strong> o mundo inteiro à sua potência, como envolve as<br />
nossas obscuri<strong>da</strong>des <strong>na</strong> sua luz? Que será o aspecto espiritual <strong>da</strong><br />
<strong>Natureza</strong>, senão páli<strong>da</strong> radiação <strong>da</strong> beleza eter<strong>na</strong>? – esplendor<br />
desconhecido, que os nossos olhos, desviados por falsas clari<strong>da</strong>des<br />
<strong>da</strong> Terra, mal podem entrever, <strong>na</strong>s horas santas e benditas em<br />
que o divino Ser nos permite sentir sua presença.<br />
As leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> nos têm provado que existe uma inteligência<br />
orde<strong>na</strong>dora. Essas leis – diz John Herschel 118 – são, não<br />
somente constantes, mas concor<strong>da</strong>ntes e inteligíveis. E são fáceis<br />
de apreender com o auxílio de algumas pesquisas, mais próprias<br />
a estimular que a extinguir a curiosi<strong>da</strong>de. Se pertencêssemos a<br />
outro planeta e, de súbito, nos transportássemos a um dos nossos<br />
meios sociais no intuito de observar o que neles ocorre, ficaríamos<br />
desde logo embaraçados para dizer se uma tal socie<strong>da</strong>de se<br />
regeria por quaisquer leis. Se chegássemos a descobrir que ela<br />
presumia tê-las, haveríamos, então, de procurar, <strong>na</strong> sua conduta e
conseqüências dela decorrentes, quais poderiam ser essas leis,<br />
em que sentido foram concebi<strong>da</strong>s e não teríamos, talvez, grandes<br />
dificul<strong>da</strong>des no descobrir regras aplicáveis aos casos particulares;<br />
mas, se quiséssemos generalizar, se tentássemos apreender<br />
alguns princípios salientes, a massa de absurdos, de contradições<br />
jorrantes de todos os lados, presto nos desviaria de um amplo<br />
exame, ou nos convenceria <strong>da</strong> inexistência do objeto de nossa<br />
pesquisa. Com a <strong>Natureza</strong> dá-se inteiramente o contrário. Nela<br />
não há dissonância nem contradições e, sim, e só, harmonia. Não<br />
temos jamais de esquecer o que soubemos uma vez. Quando as<br />
regras se generalizam, as exceções aparentes tor<strong>na</strong>m-se regulares.<br />
Qualquer equívoco <strong>na</strong> sua legislação portentosa é tão i<strong>na</strong>udito<br />
como um ato mal entendido.<br />
Os grandes fatos <strong>da</strong> moder<strong>na</strong> Ciência têm, por conseguinte,<br />
transformado a idéia de <strong>Deus</strong>, apresentando-o, ao demais, sob<br />
um aspecto bem diverso do encarado até agora. Esse aspecto é,<br />
ao mesmo tempo, mais grandioso e mais difícil de apreender.<br />
E, contudo, nós podemos ao menos conceber, senão esboçar,<br />
o conjunto dessa metamorfose progressiva.<br />
A ignorância havia humanizado <strong>Deus</strong> e a Ciência diviniza-o –<br />
se é que o pleo<strong>na</strong>smo não escan<strong>da</strong>liza os senhores gramáticos.<br />
Outrora, <strong>Deus</strong> foi homem; hoje, <strong>Deus</strong> é <strong>Deus</strong>. A fé do carvoeiro,<br />
ain<strong>da</strong> tão gaba<strong>da</strong>, não é mais a ver<strong>da</strong>deira fé. O credo quia<br />
absurdum é absurdo duplicado. O Ser supremo, criado à imagem<br />
do homem, hoje vê apagar-se pouco a pouco essa imagem,<br />
substituí<strong>da</strong> por uma reali<strong>da</strong>de sem forma. Pois a forma, a definição,<br />
o tempo, a duração, a medi<strong>da</strong>, o grau de potência ou ativi<strong>da</strong>de,<br />
a descrição, o conhecimento, não mais se aplicam a <strong>Deus</strong> e<br />
mal começam a ser percebidos. O próprio nome oculta uma idéia<br />
incompleta e preciso fora falar de <strong>Deus</strong> sem nomeá-lo. Outrora,<br />
Júpiter empunhava o raio, Apolo conduzia o Sol, Netuno senhoreava<br />
os mares... Na idolatria dos budistas, <strong>Deus</strong> ressuscitava um<br />
morto sobre o túmulo de um santo, fazia falar um mudo, ouvir<br />
um surdo, crescer um carvalho numa noite, emergir <strong>da</strong> água um<br />
afogado... Desven<strong>da</strong>va a um estático as zo<strong>na</strong>s do terceiro céu,<br />
imunizava do fogo, são e salvo, um santo mártir, transportava<br />
um pregador, num abrir e fechar de olhos, a cem léguas de
distância, e derrogava, a ca<strong>da</strong> momento, as suas próprias, eter<strong>na</strong>s<br />
leis... Ain<strong>da</strong> hoje, lá no Tibet longínquo, adoram Maitreya. A<br />
mão deste deus refreia as on<strong>da</strong>s enfureci<strong>da</strong>s, abençoa um exército<br />
e amaldiçoa o rival; dirige as chuvas em rogativas de procissões<br />
e, qual hábil jardineiro, rega aqui, ensombra ali, po<strong>da</strong> acolá,<br />
ajusta, enxerta, combi<strong>na</strong>, selecio<strong>na</strong> e mantém um ca<strong>da</strong>stro heráldico<br />
de nomes e <strong>da</strong>tas 119 . A maioria dos crentes em <strong>Deus</strong> o<br />
conceituam como um super-homem, alhures assentado acima <strong>da</strong>s<br />
nossas cabeças, presidindo os nossos atos. Dotado de excelente<br />
vista e não inferior ouvido, mantém as rédeas do mundo e, em<br />
caso de necessi<strong>da</strong>de, chama um anjo serviçal e o envia a consertar<br />
qualquer peça desarranja<strong>da</strong> do seu mecanismo. A <strong>da</strong>rmos<br />
crédito às tradições do Damapa<strong>da</strong>m e às inscrições d’Aschoka, o<br />
Bu<strong>da</strong> tem um filho – Bodisatva – mediador assentado à sua<br />
direita, além de uma terceira pessoa – Bu<strong>da</strong>-Manouschi – “a<br />
realização de <strong>Deus</strong> pelo homem”. Todos eles vivem <strong>na</strong>s alturas<br />
do Nirva<strong>na</strong> eterno, rodeados de espíritos, tronos, apóstolos,<br />
mártires, pontífices, confessores, domi<strong>na</strong>ções, potências, magos<br />
do culto precursor, videntes <strong>da</strong> filosofia sakhya, que foram<br />
purificados, etc.; tudo isso eter<strong>na</strong>mente esquematizado e graduado,<br />
segundo os méritos de uma vi<strong>da</strong> efêmera.<br />
A história <strong>da</strong> idéia de <strong>Deus</strong> mostra-nos que ela sempre foi relativa<br />
ao grau intelectual dos povos e de seus legisladores, correspondendo<br />
aos movimentos civilizadores, à poesia dos climas,<br />
às raças, à florescência de diferentes povos; enfim, aos progressos<br />
espirituais <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de. Descendo pelo curso dos tempos,<br />
assistimos sucessivamente aos desfalecimentos e tergiversações<br />
dessa idéia imperecível, que, às vezes fulgurante e outras vezes<br />
eclipsa<strong>da</strong>, pode, to<strong>da</strong>via, ser identifica<strong>da</strong> sempre, nos fastos <strong>da</strong><br />
Humani<strong>da</strong>de. Notamos, então, que esta idéia relativa difere do<br />
absoluto único, sem o qual é impossível, hoje, conceber-se a<br />
perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de divi<strong>na</strong>.<br />
Esse absoluto – importa afirmá-lo nestas últimas pági<strong>na</strong>s – é<br />
absoluto mesmo e nós não o conhecemos. Ele não é o Varou<strong>na</strong><br />
dos Árias, o Elim dos Egípcios, o Tien dos Chineses, o Ahoura-<br />
Maz<strong>da</strong> dos Persas, o Brama ou Bu<strong>da</strong> dos Indianos, o Jeová dos
Hebreus, o Zêus dos Gregos, o Júpiter dos Latinos, nem o que os<br />
pintores <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média entronizaram <strong>na</strong> cúspide dos céus.<br />
Nosso <strong>Deus</strong> é um <strong>Deus</strong> ain<strong>da</strong> desconhecido, qual o era para<br />
os Ve<strong>da</strong>s e para os sábios do Areópago de Ate<strong>na</strong>s. A noção de<br />
alguns eminentes pais <strong>da</strong> Igreja Cristã e de alguns esclarecidos<br />
teólogos modernos aproxima-se, mais que outras quaisquer,<br />
desse <strong>Deus</strong> desconhecido. Mas, como compreendê-lo, quando<br />
nenhum espírito criado, nem mesmo os anjos (se é que existem)<br />
poderiam fazê-lo?<br />
Não cabe aqui entreter-nos com as mora<strong>da</strong>s imagi<strong>na</strong><strong>da</strong>s para<br />
a pessoa de <strong>Deus</strong>. Não abor<strong>da</strong>remos o poético céu dos gregos,<br />
povoado de figuras ideais, onde os deuses sempre jovens e belos<br />
se divertem, combatem e gozam com o tomar parte nos destinos<br />
humanos. Não falaremos do sombrio e iracundo Jeová dos<br />
Judeus, que pune até à terceira ou quarta geração. Na<strong>da</strong> diremos,<br />
tampouco, do céu dos Orientais, que reserva aos crentes numerosas<br />
huris, num ambiente de beleza e delícias eter<strong>na</strong>s.<br />
Omitiremos o céu dos groelandeses, no qual a maior ventura<br />
consiste numa grande quanti<strong>da</strong>de de peixes e de óleo de baleia,<br />
bem como o céu do indiano caçador, que se paga com abundância<br />
de caça, e o do Germano que, no Walhalla, faz do crânio do<br />
inimigo a sua taça de hidromel.<br />
Se o simples bom senso humano não pode, jamais, fazer uma<br />
idéia pura e abstrata do absoluto, as tentativas <strong>da</strong> Filosofia, por<br />
sua vez, pouco ou mesmo <strong>na</strong><strong>da</strong> têm conseguido. Quem se desse<br />
ao trabalho de catalogar as idéias acerca de <strong>Deus</strong>, do absoluto ou<br />
<strong>da</strong>quilo a que os filósofos chamam alma do mundo, ficaria<br />
pasmo <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de e varie<strong>da</strong>de de sistemas que, desde a origem<br />
dos tempos históricos até os nossos dias, a despeito dos<br />
progressos científicos, se imagi<strong>na</strong>ram por oferecer poucos raciocínios<br />
novos, e raramente razoáveis.<br />
Dizia Goethe 120 que os homens tratam <strong>Deus</strong> como se o Ente<br />
supremo, o Ser incompreensível, fosse a eles semelhante, pois de<br />
outro modo não diriam, o Senhor <strong>Deus</strong>, o nosso, o bom <strong>Deus</strong>.<br />
Para eles e sobretudo para a gente beata, que o tem sempre<br />
nos lábios, <strong>Deus</strong> tor<strong>na</strong>-se um simples vocábulo, uma expressão
habitual, desliga<strong>da</strong> de qualquer sentido. Entretanto, se estivessem<br />
compenetrados <strong>da</strong> grandeza de <strong>Deus</strong>, silenciariam e, respeitosamente,<br />
se abateriam de o vocalizar.<br />
Wirchow não está com a ver<strong>da</strong>de quando diz que o homem<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> pode conceber do que está fora dele e que tudo que está<br />
fora do homem é transcendental.<br />
O homem se retrata nos seus deuses – é ain<strong>da</strong> Schiller quem o<br />
diz.<br />
A <strong>na</strong>tureza de <strong>Deus</strong>, bem como a sua própria existência, está,<br />
em nosso século, no mesmo pé em que se encontrava ao alvorecer<br />
<strong>da</strong> Filosofia. Já se pode observar, no curso geral desta obra,<br />
que o nosso fim é, hoje, o mesmo que Xenófanes colimava,<br />
seiscentos anos antes <strong>da</strong> nossa era; isto é, opor uma convicção<br />
pura e racio<strong>na</strong>l aos dois erros capitais, que são o ateísmo absoluto<br />
e o antropomorfismo. Há muito tempo que este filósofo 121 ,<br />
fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> escola de Eléa, protestou judiciosamente contra<br />
essas duas ilusões funestas. “Parece que os homens é que criaram<br />
os deuses, atribuindo-lhes as suas paixões, a sua voz, a sua<br />
fisionomia” 122 . Se os bois e os leões tivessem mãos, se soubessem<br />
pintar e trabalhar com as mãos, como fazem os homens, os<br />
cavalos utilizariam cavalos e os bois aproveitariam os bois para<br />
representar seus deuses, <strong>da</strong>ndo-lhes corpo idêntico ao seu. Ele<br />
refutou as superstições que consistiam em atribuir aos deuses a<br />
própria cor, como, por exemplo, a dos Etíopes que, em serem<br />
negros de <strong>na</strong>riz chato, assim representavam os seus deuses; os<br />
Trácios, que lhes emprestavam olhos azuis e cabelos ruivos, e os<br />
Me<strong>da</strong>s e Persas, que não fugiam à regra.<br />
Há um só <strong>Deus</strong> que a tudo mais supera,<br />
Aos deuses não somente, como aos homens,<br />
E que aos mortais em <strong>na</strong><strong>da</strong> se assemelha,<br />
Nem <strong>na</strong> forma exterior e nem <strong>na</strong> essência.
Clemente de Alexandria, que nos guardou estes versos, muito<br />
bem os caracteriza quando diz que Xenófanes aí predica a uni<strong>da</strong>de<br />
e a espirituali<strong>da</strong>de divi<strong>na</strong>. Onde encontrar num filósofo jônio,<br />
antes de A<strong>na</strong>xágoras, um pensamento como este: “Sem fatigarse,<br />
ele tudo dirige pela potência intelectual.”<br />
Arístoto, Simplícius e Théofrasto conservaram-nos a estrutura<br />
<strong>da</strong> argumentação pela qual Xenófanes demonstrava que <strong>Deus</strong><br />
não tivera princípio nem poderia ter <strong>na</strong>scido. Impossível – diz V.<br />
Cousin 123 – não experimentar uma profun<strong>da</strong>, quase solene impressão,<br />
diante desses argumentos, quando se diz que eles representam,<br />
ao menos para a Grécia, a primeira tentativa do espírito<br />
humano para a<strong>na</strong>lisar sua fé e converter suas crenças em teorias.<br />
É <strong>na</strong>tural, acrescenta o filósofo eclético, quando temos a noção<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e desta existência tão grandiosa e varia<strong>da</strong>, <strong>da</strong> qual<br />
compartilhamos; quando consideramos a extensão deste mundo<br />
visível, a par <strong>da</strong> harmonia que nele rei<strong>na</strong> e <strong>da</strong> beleza que reluz<br />
em to<strong>da</strong>s as suas partes; quando nos detemos onde se detêm os<br />
nossos sentidos imagi<strong>na</strong>tivos; é <strong>na</strong>tural, repetimos, concluir que<br />
os seres componentes deste mundo são os únicos que existem,<br />
que este grande todo, tão harmonioso e uno, é o ver<strong>da</strong>deiro<br />
objeto e a última aplicação do conceito de uni<strong>da</strong>de e que, numa<br />
palavra, esse tudo é <strong>Deus</strong>. Exprima-se esta tira<strong>da</strong> em língua<br />
grega e aí teremos o panteísmo, que é a concepção do todo como<br />
<strong>Deus</strong> único. Por outro lado, quando descobrimos que a uni<strong>da</strong>de<br />
aparente do todo não é senão uma harmonia que comporta varie<strong>da</strong>de<br />
infinita, assemelhando-se a uma guerra e a uma revolução<br />
permanentes, então já não é <strong>na</strong>tural destacar do mundo o conceito<br />
de uni<strong>da</strong>de, que é indestrutível em nós, e, assim destaca<strong>da</strong> do<br />
modelo imperfeito deste mundo visível, ligá-la a um ser invisível,<br />
tipo sagrado <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de absoluta, além <strong>da</strong> qual <strong>na</strong><strong>da</strong> mais há<br />
que conceber e investigar.<br />
Estas duas soluções exclusivistas do problema fun<strong>da</strong>mental<br />
sempre vieram à to<strong>na</strong> em to<strong>da</strong>s as grandes épocas <strong>da</strong> história <strong>da</strong><br />
Filosofia, altera<strong>da</strong>, é fato, com o progresso dos tempos, mas no<br />
fundo sempre idênticas, de modo a poder-se dizer que a história<br />
do seu perpétuo litígio com alter<strong>na</strong>tivas de predomínio de uma<br />
ou de outra foi, até o presente, a história mesma <strong>da</strong> Filosofia. E
justamente por estarem no âmago do pensamento é que essas<br />
duas soluções se reproduzem constantemente, incapazes de se<br />
separarem e de se satisfazerem.<br />
Pela documentação de Arístoto, vemos que a grande preocupação<br />
de Xenófanes era não identificar <strong>Deus</strong> com o mundo, sem<br />
contudo conceituá-lo uma abstração. A idéia de um ser infinito,<br />
fora do movimento, parecia-lhe uma idéia puramente negativa e,<br />
por isso, receava aplicá-la a <strong>Deus</strong>. Ao mesmo tempo, como<br />
pitagórico, repug<strong>na</strong>va-lhe fazer dele um ser finito, móbil e<br />
unicamente dotado de atributos mun<strong>da</strong>nos. Simplícius lembrou<br />
dois versos do filósofo, nos quais parece admitir a imobili<strong>da</strong>de<br />
do primeiro princípio: – “Ele permanece imutável em si mesmo,<br />
não se desloca de um lugar para outro, de vez que é idêntico a si<br />
mesmo.” Xenófanes preocupou-se principalmente com o mundo<br />
exterior, mas, não estranho às especulações pitagóricas, soube<br />
entrever a inteligência, a harmonia e a uni<strong>da</strong>de deste mundo,<br />
chamando <strong>Deus</strong> a essa uni<strong>da</strong>de, tal como a entrevia e sentia, isto<br />
é: em relação íntima com o mundo, sem negar que fosse essencialmente<br />
distinta, mas tampouco afirmando que o fosse.<br />
Todos os historiógrafos concor<strong>da</strong>m em atribuir a Xenófanes a<br />
invenção do cepticismo universal, ao mesmo tempo que o acusam<br />
de panteísta. Valerá, talvez, frisar aqui a extravagância dessa<br />
forma de acusação, que começa por irrogar a um homem o seu<br />
ferrenho dogmatismo e acaba censurando-o por haver introduzido<br />
<strong>na</strong> Filosofia a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> incompreensibili<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as<br />
coisas. Sêxtus cita em apoio desta opinião um texto de Xenófanes:<br />
“Nenhum homem soube nem saberá <strong>na</strong><strong>da</strong> de certo a respeito<br />
dos deuses e de tudo quanto falo. E o que melhor fala <strong>na</strong><strong>da</strong> sabe,<br />
e o que predomi<strong>na</strong> em tudo é a opinião.”<br />
O próprio filósofo, também ele, não se explica de um modo<br />
claro. Pois não diz tratar-se <strong>da</strong>queles deuses aos quais sabemos<br />
que ele movia uma guerra encarniça<strong>da</strong>? O laço que o prendia às<br />
duas escolas de que fazia parte era o cepticismo e nessas escolas<br />
vigorava, com fórmula convencio<strong>na</strong><strong>da</strong>, que a crença nos deuses<br />
era extracientífica. Hoje estamos <strong>na</strong> mesma situação: há deuses<br />
humanos a desmascarar e um <strong>Deus</strong> ver<strong>da</strong>deiro a revelar.
Hoje ain<strong>da</strong>, como no tempo de Xenófanes, importa combater<br />
essas tendências do homem para tudo referir a si e para transportar<br />
as suas idéias imperfeitas ao domínio do Criador. A ciência<br />
iconociasta derruba as nossas imagens pueris. A Ciência, é<br />
ver<strong>da</strong>de, não se ocupa diretamente com as nossas crenças; ninguém<br />
duvi<strong>da</strong> tenha ela outros motivos de estudo menos incompreensíveis<br />
e mais positivos. Mas, por suas conquistas no plano<br />
físico e por seu espírito de análise, ela modifica, necessariamente,<br />
a nossa forma de ver e não mais podemos conciliar o caráter<br />
do espírito científico com essas encar<strong>na</strong>ções de idéias pueris e<br />
indig<strong>na</strong>s do absoluto. Nisso consiste, precisamente, a sua tendência<br />
geral. E aqui, como se dá em relação às causas fi<strong>na</strong>is,<br />
temos a tristeza de observar que um certo número de cientistas,<br />
reconhecendo os erros humanos, dos quais acabamos de assi<strong>na</strong>lar<br />
alguns tipos, abando<strong>na</strong>ram ao mesmo tempo os erros e a crença,<br />
como se a ilusão e a incapaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa penúria implicassem<br />
a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> causa primária, que elas mesmas desfiguraram!<br />
Ao demais, pois que a oportuni<strong>da</strong>de se apresenta, ajuntemos<br />
que este exagero de cepticismo não deve ser rigorosamente<br />
imputado a um deliberado propósito dos que caíram tão baixo,<br />
de vez que a isso foram compelidos por uma espécie de reação<br />
aos exageros <strong>da</strong> parte contrária. A principal força do ateísmo<br />
provém, indubitavelmente, dos excessos mesmos do Espiritualismo,<br />
a desafiarem uma inevitável quão legítima correção.<br />
Como têm tratado a <strong>Natureza</strong> os imprudentes espiritualistas?<br />
Admitiram uma eterni<strong>da</strong>de i<strong>na</strong>tiva, uma criação espontânea do<br />
Universo: no vácuo infinito, uma vontade arbitrária estabelece a<br />
sucessão, a duração e a extensão. O mundo não radica no passado<br />
e aparece-nos como puro acidente. Mas, não é só: o espiritualismo<br />
exclusivista comporta concepções ain<strong>da</strong> mais temerárias,<br />
tais como a negação <strong>da</strong> matéria, que já entrevimos <strong>na</strong> primeira<br />
parte.<br />
Berkley 124 emitiu estas duas afirmações:<br />
“Há ver<strong>da</strong>des tão perto de nós e tão fáceis de alcançar, que<br />
basta abrir os olhos para as perceber. Entre as mais importantes,<br />
parece-me encontrar-se a de que a luminosa abóba<strong>da</strong> celeste, a<br />
Terra e quanto nela se contém, tudo, em suma, que compõe este
Universo esplêndido não tem reali<strong>da</strong>de fora do nosso espírito.”<br />
Confessemos que levar o paradoxo a esse ponto é provocar o<br />
excesso contrário, que não demora a rebati<strong>da</strong> violenta sob o<br />
prisma do ateísmo. Fanáticos outros há que não só acreditam<br />
firmemente nos mais clamorosos absurdos, como se presumem<br />
em relação direta com o próprio <strong>Deus</strong> e se conferem, por virtude<br />
dessa mesma graça, um privilégio de infalibili<strong>da</strong>de. Esses espíritos<br />
pecos imagi<strong>na</strong>m, ingenuamente, que o fantasma que eles<br />
forjaram é o ver<strong>da</strong>deiro <strong>Deus</strong>, criador do céu e <strong>da</strong> Terra, e ao<br />
mínimo pretexto averbam doutoralmente, de ateus e ímpios,<br />
quantos com eles não comungam.<br />
Em os ouvindo, é preciso acreditar <strong>na</strong>s suas pataratas, ou de<br />
tudo descrer. Não há meios-termos. Todo espírito que se não<br />
veste pelo seu figurino é anátema. Chegam mesmo a declarar que<br />
preferem o mais obsti<strong>na</strong>do incrédulo ao crente que diverge <strong>da</strong>s<br />
suas opiniões. Não sabem distinguir o formal do essencial. Se,<br />
por exemplo, escrevermos esta profissão de fé: “cremos de todo<br />
o coração <strong>na</strong> existência de <strong>Deus</strong>, mas não conhecemos o Ser<br />
misterioso, assim denomi<strong>na</strong>do e julgamos impossível que o<br />
homem consiga compreendê-lo” – estamos certo de que os<br />
zelotes <strong>da</strong> religião e <strong>da</strong> moral vão de pronto gritar – blasfêmia,<br />
iniqüi<strong>da</strong>de! – e interditar às suas ovelhas a leitura deste livro.<br />
Não nos detivesse aqui um escrúpulo todo pessoal e poderíamos,<br />
assim, de antemão citar o título dos jor<strong>na</strong>is e o nome dos<br />
escritores que nos vão increpar de blasfemo. Espíritos assim<br />
tacanhos encontramos em to<strong>da</strong>s as confissões e em todos os<br />
dogmas: nos católicos e protestantes <strong>da</strong> Irlan<strong>da</strong> ou <strong>da</strong> Alemanha,<br />
como nos judeus ou nos muçulmanos do Cairo e de Constantinopla.<br />
To<strong>da</strong> bandeira tem os seus imprudentes.<br />
To<strong>da</strong>via, a investigação imparcial <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de exclui de seus<br />
domínios os exageros do fa<strong>na</strong>tismo, tanto quanto os do cepticismo.<br />
Ela prossegue <strong>na</strong> sua tarefa laboriosa e fecun<strong>da</strong> e expõe<br />
sinceramente o ensi<strong>na</strong>mento recolhido <strong>da</strong>s suas descobertas<br />
sucessivas.<br />
Dos progressos gerais <strong>da</strong> Ciência resulta, dizíamos, que a<br />
idéia comum acerca de <strong>Deus</strong> está atrasa<strong>da</strong> e tornou-se até mesquinha<br />
e i<strong>na</strong>ceitável, à face desses enormes progressos.
À medi<strong>da</strong> que se amplia o conhecimento <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, faz-se<br />
necessário desenvolver a concepção do seu Autor. São noções<br />
paralelas que participam, necessariamente, dos mesmos movimentos.<br />
Assim como <strong>na</strong><strong>da</strong> existe de absoluto em nossos conhecimentos<br />
<strong>da</strong> criação, assim também, <strong>na</strong><strong>da</strong> absoluto podemos<br />
idealizar sobre o Criador. E a Ciência, longe de destruir a velha<br />
idéia <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>, desenvolve-a e tor<strong>na</strong>-a gradualmente<br />
menos indig<strong>na</strong> <strong>da</strong> majestade que lhe é apanágio.<br />
Assim, não é mais um ser humano, não é mais uma perso<strong>na</strong>gem<br />
real que a inteligência atila<strong>da</strong> lobriga <strong>na</strong> cimeira <strong>da</strong> criação.<br />
Nossos mais altos conceitos de hierarquia, de soberania, de<br />
cetros e tronos perderam to<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong>de de comparação; os<br />
mais nobres sentimentos de santi<strong>da</strong>de, grandeza, poder, bon<strong>da</strong>de<br />
e justiça abatem-se estéreis perante o ser desconhecido. Quando<br />
pronunciamos a palavra infinito, queremos nos referir a um<br />
atributo cujo caráter ignoramos totalmente. A soma integral dos<br />
nossos pensamentos é menos que zero no cômputo do absoluto.<br />
Comparados à reali<strong>da</strong>de desse absoluto, estão dele mais infinitamente<br />
distantes do que estariam dos nossos os de um mísero<br />
peixe <strong>na</strong>s profundezas oceânicas. É nessa altura que as revelações<br />
<strong>da</strong> Ciência nos convi<strong>da</strong>m a crer.<br />
Dilatando-se a esfera de nossa contemplação e espalhando<br />
uma luz mais instrutiva sobre a composição geral do Universo,<br />
também avulta e aclara-se-nos o senso íntimo <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de. Ora,<br />
ain<strong>da</strong> que a Ciência não nos houvera prestado outros serviços,<br />
ain<strong>da</strong> assim, enorme seria a sua influência, visto que, ensejando<br />
o desmoro<strong>na</strong>mento dos velhos an<strong>da</strong>imes para substituí-los e<br />
entremostrar o edifício ideal <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, ela desloca o eixo do<br />
mundo e renova a superfície do terreno intelectual. É ao espírito<br />
científico que se aplica doravante o Renovabis faciem terrae.<br />
Passando dos domínios dos seres criados para os do espírito<br />
puro, a noção de <strong>Deus</strong> sofre uma metamorfose correlata à noção<br />
<strong>da</strong>s forças <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Estas forças não são mais elos materiais,<br />
nem mesmo fluídicos. <strong>Deus</strong> aparece-nos sob a idéia de um<br />
Espírito permanente e residente no âmago <strong>da</strong>s coisas. Deixa de<br />
ser o soberano a gover<strong>na</strong>r <strong>da</strong>s alturas celestes para ser a lei<br />
invisível dos fenômenos. Não habita um Paraíso povoado de
anjos e de eleitos e, sim, a amplidão infinita, repleta <strong>da</strong> sua<br />
presença, ubiqüi<strong>da</strong>de imóvel, totaliza<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> ponto do Espaço,<br />
em ca<strong>da</strong> instante do tempo, ou por melhor dizer, eter<strong>na</strong>mente<br />
infinita e sobranceira a tempo, espaço e ordem de sucessão,<br />
qualquer passado e futuro existem para nós, seres sujeitos a<br />
tempo e medi<strong>da</strong>, não para o Eterno. O espaço oferece-nos dimensões<br />
varia<strong>da</strong>s e o infinito não. Não são afirmações metafísicas<br />
de cuja solidez possamos suspeitar, mas, antes, deduções<br />
inevitáveis e resultantes dos próprios <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> Ciência sobre a<br />
relativi<strong>da</strong>de dos movimentos e a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis.<br />
A ordem universal rei<strong>na</strong>nte <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, a inteligência revela<strong>da</strong><br />
<strong>na</strong> construção dos seres, a sabedoria espalha<strong>da</strong> em todo o<br />
conjunto, qual uma aurora luminosa e, sobretudo, a universi<strong>da</strong>de<br />
do plano geral regi<strong>da</strong> pela harmoniosa lei <strong>da</strong> perfectibili<strong>da</strong>de<br />
constante, apresenta-nos, já agora, a onipotência divi<strong>na</strong> como<br />
sustentáculo invisível <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, lei organizadora, força essencial,<br />
<strong>da</strong> qual derivam to<strong>da</strong>s as forças físicas, como outras tantas<br />
manifestações particulares suas.<br />
Podemos, assim, encarar <strong>Deus</strong> como um pensamento imanente,<br />
residente i<strong>na</strong>tacável <strong>na</strong> essência mesma <strong>da</strong>s coisas, sustentando<br />
e organizando, ele mesmo, as mais humildes criaturas, tanto<br />
quanto os mais vastos sistemas solares, de vez que as leis <strong>da</strong><br />
<strong>Natureza</strong> não mais seriam concebíveis fora desse pensamento;<br />
antes, são dele eter<strong>na</strong> expressão.<br />
Esta convicção, adquirimo-la no exame e análise dos fenômenos<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Para nós, <strong>Deus</strong> não está fora do mundo, nem<br />
a sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de se confunde <strong>na</strong> ordem física <strong>da</strong>s coisas. Ele é<br />
o pensamento incognoscível, do qual as leis diretivas do mundo<br />
representam uma forma de ativi<strong>da</strong>de.<br />
Tentar a definição desse pensamento e explicar o seu processo<br />
operatório, pretender discutir seus atributos ou procurar os<br />
seus caracteres, resolver o abismo infinito <strong>na</strong> esperança de poder<br />
satisfazer nossa avidez de conhecimento, seria, ao nosso ver,<br />
empresa não ape<strong>na</strong>s insensata, mas até ridícula. Um tal ensaio<br />
demonstraria que o seu autor não compreendera a distinção<br />
essencial que separa o infinito do finito. Entre estes dois termos
há uma distância que ponte alguma poderia cobrir. <strong>Deus</strong> é, por<br />
sua <strong>na</strong>tureza mesma, incognoscível e incompreensível para nós.<br />
Não é preciso mergulhar no labirinto do desconhecido para<br />
chegarmos à certeza <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>. Em o fazer, talvez<br />
houvesse mesmo algum perigo, se se obsti<strong>na</strong>ssem a viver <strong>na</strong>s<br />
sombras de um mistério impenetrável. Certo, é já dificílimo<br />
inferir do Ser supremo a noção científica que aqui deixamos<br />
entrever. Os próprios espíritos mais ponderados experimentam<br />
áridos obstáculos para assim penetrar no desconhecido pelo<br />
conhecido, no invisível pelo visível, <strong>na</strong> lei pensa<strong>da</strong> pela lei<br />
manifesta<strong>da</strong>, <strong>na</strong> força origi<strong>na</strong>l pela força sensível. E nós estamos<br />
tão intimamente convencidos do trabalho necessário ao intelecto<br />
humano para chegar à noção filosófica do <strong>Deus</strong> <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, que<br />
nos abstivemos de profun<strong>da</strong>r mais a sua concepção, temendo que<br />
uma força<strong>da</strong> contensão de espírito pudesse empa<strong>na</strong>r a própria<br />
idéia. Concepção só acessível, portanto, às almas que compreendem<br />
a importância e o interesse desses problemas, sonhando, <strong>na</strong>s<br />
horas de solitude, com a revolução de <strong>Deus</strong> pela ciência <strong>da</strong><br />
<strong>Natureza</strong> e descendo ou elevando-se (em Astronomia é a mesma<br />
coisa) através do velário <strong>da</strong>s aparências corpóreas, até à causa<br />
virtual que tudo movimenta em plano de ordem e harmonia, tudo<br />
dispondo consoante seu peso e medi<strong>da</strong>.<br />
Esta concepção do pensamento eterno poderá parecer racio<strong>na</strong>l<br />
(assim o esperamos) a quantos estejam habituados ao método <strong>da</strong>s<br />
ciências positivas e não se tenham transviado nelas, a ponto de<br />
obliterar a noção de causa primária.<br />
À progênie dos que mutuamente se incendiaram nos tempos<br />
de João Huss e de Miguel Cervet, a nossa concepção há de<br />
parecer herética. Eles nos inqui<strong>na</strong>rão de panteísta, sem querer<br />
compreender que não identificamos a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de divi<strong>na</strong> com<br />
as transformações <strong>da</strong> matéria. Hão de declarar que pretendemos<br />
que tudo é <strong>Deus</strong> e que todo o mundo se gover<strong>na</strong> por si mesmo.<br />
Outros terão a fantasia de nos qualificar de ateu e corruptor <strong>da</strong><br />
moral evangélica, incapazes, que são, de compreender a adoração<br />
a outro <strong>Deus</strong> que não o seu.<br />
Uma terceira categoria, ain<strong>da</strong> mais radicalista e exagera<strong>da</strong>,<br />
tratará de malfeitores a quantos se deixarem levar pela idéia
acima formula<strong>da</strong>. Mas, aonde iríamos parar se houvéssemos de<br />
revi<strong>da</strong>r a to<strong>da</strong> essa gente? Na reali<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong> essa atoar<strong>da</strong> só<br />
significa uma coisa: que estamos caminhando para a frente.<br />
Nesta, como <strong>na</strong>s obras precedentes, os leitores poderão notar<br />
a voluntária ausência de nomenclaturas escolásticas. Houve<br />
quem nos chamasse di<strong>na</strong>mista e quem fosse além, dizendo-nos<br />
duo-di<strong>na</strong>mista. Reconhecem-nos, uns, tendências para o mais<br />
evidente animismo, enquanto outros nos rotulam de organicista.<br />
Eis, agora, o vitalismo, que nos convi<strong>da</strong> a declarar francamente<br />
se a ele temos aderido. A maioria acusa-nos de ecletismo. Deixamos<br />
de parte os títulos de panteísta e teísta em contradição aos<br />
de materialista e ateu, que nos foram irrogados de campos opostos.<br />
A posição de um espírito que busca unicamente a ver<strong>da</strong>de só<br />
pode ser a de um grande isolado. Ele expõe-se a ser tratado como<br />
protestante pelos católicos e como romancista pelos reformados;<br />
os cristãos tacham-no de herético e os filósofos averbam-no de<br />
cristão. Ao critério de ca<strong>da</strong> qual, ele não pode deixar de pertencer<br />
a um sistema, a uma seita, a uma escola.<br />
Ora, francamente declaramos; a ninguém pertencemos.<br />
Por que nos privarmos de recolher o bom e combater o mau<br />
onde quer que os encontremos? Porque nos convi<strong>da</strong>rem a respeitar<br />
o erro pela só razão de sua antigüi<strong>da</strong>de? Porque pretender<br />
encerrar-nos num círculo de antemão preconcebido? Que significam<br />
barreiras, dogmas, bandeiras que tais? Ilusão e <strong>na</strong><strong>da</strong> mais.<br />
Sistemas? – jamais. Ape<strong>na</strong>s, e só ape<strong>na</strong>s, independência absoluta<br />
<strong>na</strong> investigação e culto <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />
O que tem prejudicado a um grande número de espíritos é essa<br />
propensão ou essa conde<strong>na</strong>ção para encarrilar-se numa sen<strong>da</strong>.<br />
Certo, há necessi<strong>da</strong>de de seguir um método pessoal, apoiar-se<br />
em ver<strong>da</strong>des tradicio<strong>na</strong>lmente reconheci<strong>da</strong>s, conhecer o objeto<br />
positivo dos nossos estudos e trabalhar sem esmorecimentos <strong>na</strong><br />
conquista do saber. Nós, porém, não nos revestimos de ouropéis<br />
fictícios, nem ocultamos o nosso céu sob uma bandeira. Estu<strong>da</strong>mos<br />
pouco a pouco a <strong>Natureza</strong>, através de to<strong>da</strong>s as suas formas,<br />
em todos os seus aspectos, exprimindo com sinceri<strong>da</strong>de o resultado<br />
do nosso estudo, sem nos preocuparmos com as palavras em
disputa de pontos e vírgulas. A andorinha que volta aos pe<strong>na</strong>tes<br />
<strong>na</strong> estação própria singra livremente a amplidão do Espaço...<br />
Que sucederia se a obrigássemos a torcer as asas, a baixar os<br />
olhos, a levar <strong>na</strong> pata um galhardete e a rebocar consigo uma<br />
fileira de balões?<br />
A doutri<strong>na</strong> aqui professa<strong>da</strong> pode considerar-se um ateísmo<br />
ontológico, o esforço do homem para conhecer o Ente absoluto.<br />
É uma forma necessária, imposta pelo teísmo racio<strong>na</strong>l. O argumento<br />
extraído <strong>da</strong> Teologia prova um <strong>Deus</strong> universal, autor de<br />
to<strong>da</strong>s as coisas, e o argumento <strong>da</strong> Ontologia prova a infini<strong>da</strong>de<br />
de <strong>Deus</strong>. Não podemos admitir um sem outro, quaisquer que<br />
sejam as dificul<strong>da</strong>des para conciliar as respectivas conclusões.<br />
Essas dificul<strong>da</strong>des decorrem <strong>da</strong> grandeza do assunto e, ain<strong>da</strong> que<br />
não podendo ir além do alcance <strong>da</strong> nossa vista, não é razão para<br />
fechar os olhos ao que se tor<strong>na</strong> evidente. Trocando o vocábulo<br />
panteísmo por teísmo, confessamos, com um pastor anglicano 125 ,<br />
que o “teísmo” é, por to<strong>da</strong> parte, reconhecido como teologia <strong>da</strong><br />
razão, razão que poderá ser impotente, mas, em definitiva, é a<br />
única que possuímos.<br />
O teísmo é a filosofia <strong>da</strong> religião, de to<strong>da</strong>s as religiões, é o<br />
alvo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Preciso se nos faz pensar, ou deixar de pensar e<br />
racioci<strong>na</strong>r acerca de todos os problemas <strong>da</strong> criação. Podem as<br />
criaturas deter-se no símbolo; Igrejas e seitas podem lutar e<br />
tolher a meio caminho as consciências, apelando para Escrituras<br />
ou tentando fixar limites ao pensamento religioso, mas <strong>Deus</strong>,<br />
esse, não os tem fixado.<br />
A razão huma<strong>na</strong>, to<strong>da</strong>via, incoercível e inevitável no seu progredir,<br />
como no seu divino amor à liber<strong>da</strong>de, quebra to<strong>da</strong>s as<br />
cadeias e vence todos os entraves.<br />
Se, ao invés de tomar por objeto de estudo <strong>Deus</strong>, <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />
preferíssemos aqui apresentar <strong>Deus</strong> segundo os homens, competiria<br />
discutir, agora, a idéia que os filósofos contemporâneos<br />
formularam, a respeito do Ente supremo. E seria, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, um<br />
exame digno do maior interesse. Mas os limites sempre crescentes<br />
desta obra nos forçam a restringir a argumentação ao seu<br />
objetivo precípuo. Nosso dever, portanto, é aqui juntar simples-
mente o esboço <strong>da</strong>s figuras em que se fixaram os nossos pensadores,<br />
para representar a personificação divi<strong>na</strong>.<br />
A opinião que proclama a identi<strong>da</strong>de substancial de <strong>Deus</strong><br />
com o mundo, e que recentemente tem tido uma revivescência<br />
favorável, não passa de panteísmo absoluto, <strong>na</strong> sua forma simples<br />
e íntegra. Quaisquer que sejam as palavras com que o expressem,<br />
um espírito judicioso jamais se iludiria. Se <strong>Deus</strong> e o<br />
mundo não são mais que um mesmo e único ser, <strong>Deus</strong> não<br />
existe.<br />
Outra concepção basea<strong>da</strong> <strong>na</strong> precedente, porém, eleva<strong>da</strong> a um<br />
grau de extrema sutileza, é a do <strong>Deus</strong>-ideal, a afirmar que <strong>Deus</strong> e<br />
o mundo são substancial, mas não logicamente idênticos. <strong>Deus</strong><br />
seria, assim, a idéia do mundo, para que o mundo fosse a reali<strong>da</strong>de<br />
de <strong>Deus</strong>. “Esse <strong>Deus</strong> que um filósofo nos inculca relegado<br />
em seu trono, em plenitude de eterni<strong>da</strong>de silenciosa e vazia, não<br />
tem outra reali<strong>da</strong>de que não a idéia, nem trono outro além do<br />
Espírito.” <strong>Deus</strong>, aí, separa-se do mundo, mediante uma operação<br />
intelectual do homem.<br />
É um ideal criado pela lógica. Pensando em <strong>Deus</strong>, criamo-lo.<br />
Não existisse o homem e <strong>Deus</strong> tampouco existiria.<br />
Assim, com esta hipótese, o <strong>Deus</strong> real, idêntico ao mundo,<br />
não é <strong>Deus</strong> e o <strong>Deus</strong> ideal, distinto do mundo, em reali<strong>da</strong>de não<br />
existe.<br />
É já de si, como vemos, uma teoria alambica<strong>da</strong>. A que goza<br />
agora de maior conceito, para uma certa categoria de espíritos<br />
convencidos de sua superiori<strong>da</strong>de, é, porém, a que reverencia<br />
com a maior polidez o <strong>Deus</strong> vulgar, pessoal e humano, que<br />
venera os grandes princípios <strong>da</strong> Moral, <strong>da</strong> Filosofia e <strong>da</strong> Estética,<br />
declarando, to<strong>da</strong>via, que <strong>Deus</strong>, tal como o Bem, o Belo, a Ver<strong>da</strong>de,<br />
ain<strong>da</strong> não existem, mas “estão à bica”. Kant, <strong>na</strong> Crítica <strong>da</strong><br />
Razão Pura, demonstrou que o homem está invencivelmente<br />
disposto a supor reais os objetos de sua crença, sendo estes<br />
embora puramente subjetivos. Hegel retomou a grande máxima<br />
do velho Protágoras, que diz ser o homem a medi<strong>da</strong> de to<strong>da</strong>s as<br />
coisas, e ensinou que o indivíduo tende a erigir-se em princípio<br />
absoluto, reportando tudo a si, mostrando aos clarividentes
Germanos, de olhar prevenido nesse sentido, a idéia a desenvolver-se<br />
no Universo. A escola a que nos referimos, atualmente<br />
representa<strong>da</strong> por Vacherot, Re<strong>na</strong>n, Taine, Scherer e talvez Saint-<br />
Beuve, ensi<strong>na</strong> o desenvolvimento <strong>da</strong> idéia <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, o futuro<br />
universal. O Universo caminha para a perfeição, à revelia de<br />
qualquer direção inteligente. <strong>Deus</strong> é um filósofo sem sabedoria,<br />
inferior mesmo ao herói de Se<strong>da</strong>n, visto que não se conhece a si<br />
mesmo e não tem existência pessoal. É simplesmente Divino;<br />
portanto, uma quali<strong>da</strong>de e não um ser. Nem há uma ver<strong>da</strong>de<br />
absoluta, mas nuanças e metamorfoses. O pensador que contempla<br />
esse vago progresso é o mais ditoso e o mais santo dos<br />
homens. O Sr. Caro definiu bem esta religião, dizendo-a a aluci<strong>na</strong>ção<br />
do Divino ou o quietismo científico. A Ciência, porém,<br />
não admite semelhante quietismo, nem uma tal aluci<strong>na</strong>ção. É<br />
uma hipótese que se desvanece diante <strong>da</strong> crítica severa. Já evidenciamos:<br />
a tendência geral e progressiva do átomo para a<br />
mô<strong>na</strong><strong>da</strong> anima<strong>da</strong> e desta para o homem, não se pode explicar<br />
sem a existência de um pensamento diretor e, em todos os casos,<br />
bem mais difícil de aceitar que o do próprio <strong>Deus</strong>.<br />
Uma quarta escola é a que se intitula positivista e que resolveu<br />
– fato virgem – pela primeira vez, construir uma religião<br />
atéia, engendrando uma nova classificação dos conhecimentos<br />
humanos, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>na</strong> observação pura e isenta de to<strong>da</strong> e qualquer<br />
investigação causal.<br />
Mau grado ao seu sistema, algo vaidoso, de elimi<strong>na</strong>ção e negação,<br />
essa escola não prescindiu de cultuar um <strong>Deus</strong>; – a Humani<strong>da</strong>de<br />
– e cujo profeta é Augusto Comte. É um <strong>Deus</strong> que tem<br />
altares, culto, sacerdotes (tanto é ver<strong>da</strong>de que os extremos se<br />
tocam), calendário, festivi<strong>da</strong>des. O orçamento é de antemão<br />
regulado, cabendo aos vigários seis mil e aos curas doze mil<br />
francos. O grão-sacerdote, que é no caso o Sr. Comte, tem sessenta<br />
mil francos, etc. Aqui, não há outro <strong>Deus</strong> senão a Humani<strong>da</strong>de.<br />
Essas teorias, para os espíritos afeitos a especulações metafísicas,<br />
ain<strong>da</strong> guar<strong>da</strong>m um aspecto compreensível. Outros há que,<br />
sublimados e quintessenciados, resolvem o panteísmo, numa<br />
espécie de vapor transparente, elevam a metáfora a um tal ponto
que <strong>Deus</strong> deixa completamente de existir, para que só domine a<br />
sua metáfora transcendente.<br />
“No cume <strong>da</strong>s coisas, nos píncaros do éter luminoso e i<strong>na</strong>cessível,<br />
pronuncia-se o axioma eterno e a repercussão prolonga<strong>da</strong><br />
desta fórmula criadora compõe, por suas ondulações inexauríveis,<br />
a imensi<strong>da</strong>de do Universo. To<strong>da</strong>s as séries de coisas provêm<br />
dela, religa<strong>da</strong>s pelos divinos anéis de áurea cadeia.” Certo,<br />
seria difícil imagi<strong>na</strong>r como este misterioso axioma pode extrair<br />
de sua abstração o mundo real e como, ondeando no seu vácuo<br />
eterno, cria e acio<strong>na</strong> as leis gerais do mundo. Ao nosso ver,<br />
quando acusamos a teologia católica de haver tirado o mundo do<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong>, não adianta a troca, substituindo um milagre pelo outro.<br />
A hipótese do axioma eterno é mais que panteísta, tem mais<br />
jus ao título de atéia, e podemos exorná-la com o qualificativo de<br />
ateísmo filosófico. Poderíamos, ain<strong>da</strong>, ajuntar-lhe aqui duas<br />
outras formas, quais as de teísmo cosmológico e ateísmo fisiológico.<br />
O primeiro consiste em substituir as palavras do apóstolo pelo<br />
seguinte versículo: no princípio era o átomo, e o átomo era de si<br />
mesmo, e o átomo é o gerador do mundo. O segundo consiste em<br />
substituir a direção de uma causa inteligente por forças <strong>na</strong>turais<br />
inconscientes. Essas duas espécies de ateísmo, temo-las alter<strong>na</strong>tivamente<br />
evidenciado no curso desta obra e, com o haver feito<br />
justiça às suas pretensões, dispensamo-nos de as reconsiderar.<br />
Por fim, vejamos o ateísmo absoluto, que se afirma quadra<strong>da</strong>mente,<br />
sem pestanejar, e vai até à blasfêmia. Eis um exemplo:<br />
“A análise metafísica reduziu a <strong>na</strong><strong>da</strong> o velho dogma. Reduzindo<br />
<strong>Deus</strong> a enti<strong>da</strong>de incondicio<strong>na</strong><strong>da</strong>, demonstrou-o impossível;<br />
provou que os seus atributos são os mesmos do nosso ser... Com<br />
que direito me viriam agora dizer – seja santo porque eu o sou?<br />
Mentiroso! – dir-lhe-ia eu – <strong>Deus</strong> imbecil, teu reino findou,<br />
procura outras vítimas entre os animais... Se é que Satã existe, o<br />
Satã és tu. Outrora, podias triunfar, mas hoje, eis-te destro<strong>na</strong>do.<br />
Teu nome, que foi, por tanto tempo, a última palavra do sábio, a<br />
sanção do juiz, a força do príncipe, a esperança do pobre, o<br />
refúgio do pecador repeso, esse nome intransmissível, i<strong>na</strong>liená-
vel, de agora em diante está fa<strong>da</strong>do ao desprezo, ao anátema, ao<br />
apupo dos homens.<br />
“Porque <strong>Deus</strong> é asneira e covardia, hipocrisia e mentira, miséria<br />
e tirania; é, em suma, o mal. Enquanto a Humani<strong>da</strong>de se<br />
proster<strong>na</strong>r diante de um altar, a Humani<strong>da</strong>de será réproba. Retira-te<br />
de mim, pois hoje, curado do teu temor e feito sábio, eu<br />
juro, de mãos levanta<strong>da</strong>s para o céu, que não passas de carrasco<br />
<strong>da</strong> minha razão, espectro <strong>da</strong> minha consciência!” 126 .<br />
Esta cólera <strong>na</strong><strong>da</strong> tem de científica, salvo, talvez, do ponto de<br />
vista médico, em relação aos cui<strong>da</strong>dos que reclama a alie<strong>na</strong>ção<br />
mental. Presumimos que os nossos argumentos fizeram justiça a<br />
essa negação absoluta de pensamentos, <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />
De resto, a que se reduz a negação materialista? Buscando o<br />
âmago <strong>da</strong>s coisas, percebemos logo que essas negações não<br />
podem ser tão absolutamente negativas quanto o pretendem. O<br />
insensato não o será jamais impunemente e não é tão fácil,<br />
quanto possa parecer, uma convicção profun<strong>da</strong> no ateísmo. Na<br />
maioria dos casos, o que ocorre é o deslocamento <strong>da</strong> questão e<br />
<strong>na</strong><strong>da</strong> mais. Em vez de chamar <strong>Deus</strong> à direção <strong>da</strong>s forças que<br />
regem o mundo, os convencidos de ateísmo deixam de o nomear<br />
e, em vez de atribuir a um ser inteligente a inteligência dessas<br />
forças, outorgam-<strong>na</strong> à própria matéria. Removem, assim, mas<br />
não resolvem, o problema, pois os fatos continuam irrevogáveis.<br />
Negam a <strong>Deus</strong>, mas não podem negar a força. Ape<strong>na</strong>s, em lugar<br />
de proclamarem a soberania dessa força, consideram-<strong>na</strong> escrava<br />
<strong>da</strong> matéria inerte. Nisto reside todo o nó <strong>da</strong> questão, nó que ain<strong>da</strong><br />
não foi desatado pelos materialistas nem pelos espiritualistas,<br />
visto que a observação direta <strong>da</strong> reti<strong>na</strong> huma<strong>na</strong> não vai até lá. A<br />
diferença principal que os divide no discrime está em que os<br />
primeiros não explicam a criação, nem o plano, nem a conservação<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, enquanto que os segundos o fazem plausivelmente.<br />
Considera<strong>da</strong>s como duas hipóteses, as duas doutri<strong>na</strong>s<br />
contrárias não se equivalem e todo o homem sincero há de<br />
incli<strong>na</strong>r-se sempre para a que admite um Criador. Porque esta é,<br />
não só mais completa, como mais franca.<br />
To<strong>da</strong>s as proprie<strong>da</strong>des instintivas ou intelectuais que os nossos<br />
adversários não podem deixar de atribuir à matéria para
explicar a ação desta, sua tendência progressiva, seu método<br />
seletivo, desde a formação do vegetal humilde à formação de um<br />
cérebro humano, são atributos que eles extraem do ignoto que<br />
nós denomi<strong>na</strong>mos <strong>Deus</strong> e que eles home<strong>na</strong>geiam chamando-lhe<br />
matéria. Mas, em abstraírem do mundo a idéia de ordem, ver<strong>da</strong>de,<br />
beleza, perfeição, harmonia espiritual e corporal, eles arrebatam<br />
ao mundo a sua alma e a sua vi<strong>da</strong>. Nós, porém, não vemos a<br />
vantagem de substituir um ser vivo por um cadáver. Seu Universo<br />
assemelha-se aos enforcados, com os quais fizemos experiências<br />
elétricas, há algum tempo. Eles como que ressuscitavam,<br />
aparentemente, graças à aplicação <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de ao sistema<br />
nervoso, que lhes movimentava todo o corpo.<br />
Gesticulavam, agitavam braços e per<strong>na</strong>s, como quem acor<strong>da</strong>sse;<br />
abriam os olhos e a boca num perfeito simulacro de vi<strong>da</strong>...<br />
Ora, fazendo circular no organismo universal as forças pelas<br />
quais substituem a genuí<strong>na</strong> vi<strong>da</strong>, os ateus hodiernos oferecemnos<br />
um simulacro, no qual estão obrigados a simular a vi<strong>da</strong> que<br />
abstraem. Sob este aspecto, é uma questão de palavras. Para nós,<br />
um cadáver é sempre cadáver, mesmo que esteja eletrizado.<br />
Emprestando à matéria atributos só cabíveis à força suprema,<br />
eles reduzem o Universo a um estado lastimoso. Se <strong>Deus</strong> deixasse<br />
de existir um momento, to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> universal ficaria suspensa.<br />
Seria curioso ver como esses bravos materialistas ressuscitariam<br />
e fariam circular uma vi<strong>da</strong> factícia no corpo colossal de que<br />
somos, eles e nós, ínfimos parasitas.<br />
Depois de haver visualizado a ordem universal, chegamos a<br />
confessar, levados por uma evidência irresistível, que, para uma<br />
criatura racio<strong>na</strong>l, é o cúmulo do contra-senso supor que exista a<br />
razão. Parece-nos absurdo integral a crença de que o espírito<br />
pudesse surgir no cérebro humano e manifestar-se <strong>na</strong>s leis do<br />
Universo, se não existisse de to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de. Nem sempre há<br />
que desdenhar os teólogos e neste lanço o pregador <strong>da</strong> Notre-<br />
Dame de Paris parece-nos aplicar o seu talento <strong>na</strong> defesa <strong>da</strong><br />
ver<strong>da</strong>de. A força cega, diz o Padre Félix, produzindo a harmonia<br />
cósmica e levando-a aos últimos desdobros, até o aparecimento<br />
do ser pensante... Mas, santo <strong>Deus</strong>! – que vamos fazer <strong>da</strong> nossa<br />
razão se doravante nos forçam a admitir uma tal reviravolta de
idéias e perversão de linguagem? Como admitir uma força<br />
ininteligente <strong>da</strong>ndo o que não tem, nem pode ter, isto é – inteligência?<br />
Como poderiam tais forças, ininteligentes e cegas,<br />
arrastando-se umas por outras, entrosando-se num mecanismo<br />
incompreensível, chegar a produzir, ao termo de elaborações<br />
espontâneas, o pensamento, tal como a flor que desabrocha e se<br />
balança <strong>na</strong> ponta do hastil?<br />
Pois quê! Será possível que o vosso critério filosófico possa<br />
tomar a sério a hipótese ridiculamente metafísica <strong>da</strong> préexistência<br />
de uma ordem universal, sem que houvesse um pensamento<br />
para concebê-la, uma inteligência para compreendê-la,<br />
um olhar para contemplá-la e uma alma para amá-la? Pois quê!<br />
Será essa <strong>Natureza</strong>, assim cega, inconsciente, escraviza<strong>da</strong>, sem<br />
olhos de ver nem coração de amar, que vai, num silêncio eterno,<br />
tecendo a malha divi<strong>na</strong> de tudo o que existe? Temo-la então, a<br />
cega <strong>Natureza</strong> origi<strong>na</strong>ndo sem o querer, nem saber, uma harmonia,<br />
até que fi<strong>na</strong>lmente, <strong>da</strong> base ao cimo do cosmos, como filho<br />
<strong>da</strong> cega fatali<strong>da</strong>de, surja o homem para ouvir a harmonia que não<br />
fez, e tomar conhecimento dessa ordem que não procede dele,<br />
porque lhe precede!<br />
No mínimo, há no Universo a razão espiritual dos que se elevaram<br />
à descoberta <strong>da</strong>s leis que o regem e estas, por sua vez,<br />
existem, realmente. Se assim não fora, todo o edifício <strong>da</strong> razão<br />
huma<strong>na</strong> ruiria pela base. Os processos de indução, que nos levam<br />
<strong>da</strong> análise à síntese, devem ter, com efeito, objetivos reais de<br />
aplicação, sem o que só podemos racioci<strong>na</strong>r no vácuo. Generalizar<br />
uma lei parcialmente observa<strong>da</strong>, acreditar simplesmente que<br />
o Sol se levantará amanhã porque se levantou ontem; ou que o<br />
trigo semeado neste outono germi<strong>na</strong>rá antes do inverno e será<br />
colhido no próximo verão; traduzir os fatos <strong>na</strong>turais em fórmulas<br />
matemáticas, é supor que a <strong>Natureza</strong> subordi<strong>na</strong>-se a uma ordem<br />
racio<strong>na</strong>l e que o relógio marcará a hora acorde com a construção<br />
do relojoeiro.<br />
O próprio processo de indução científica é um silogismo<br />
transportado dos domínios humanos aos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, reduz-se a<br />
este tipo fun<strong>da</strong>mental; o mundo é regido por uma ordem racio<strong>na</strong>l;<br />
ora, a sucessão ou generalização de uns tantos fatos obser-
vados tor<strong>na</strong> a entrar <strong>na</strong> ordem racio<strong>na</strong>l e, portanto, essa sucessão<br />
ou generalização existe.<br />
Se o homem às vezes se enga<strong>na</strong> <strong>na</strong>s aplicações desse processo,<br />
é que ele não se limita às aplicações imediatas, ou não tem<br />
uma base suficiente de observações diretas. To<strong>da</strong>s as ciências e<br />
sínteses indutivas do homem repousam <strong>na</strong> convicção de que a<br />
<strong>Natureza</strong> está subordi<strong>na</strong><strong>da</strong> a um plano racio<strong>na</strong>l.<br />
A organização maravilhosa do mundo não vos obriga a confessar<br />
a existência do Ser supremo? Por nossa parte, muita vez<br />
temos perguntado, como se pode recusar tão obsti<strong>na</strong><strong>da</strong>mente essa<br />
existência? Quais as vantagens do ateísmo? Em que pode ele<br />
preterir o teísmo? Que pode a Humani<strong>da</strong>de lucrar com o renegar,<br />
doravante, a crença em <strong>Deus</strong>? Qual é o melhor homem: o que<br />
crê, ou o que não crê? Será, então, um ato de fraqueza o sermos<br />
lógicos com a nossa consciência?<br />
Falta grave, o senso comum? É possível que esses espíritos<br />
fortes, galgando o céu por uma esca<strong>da</strong> de paradoxos, acreditem<br />
estar bem alto... Enga<strong>na</strong>m-se, porém, redon<strong>da</strong>mente, com essa<br />
ilusão comparável àquela antiga prova maçônica, que era percorrer<br />
o iniciado uma esca<strong>da</strong> de cento e cinqüenta degraus descendentes,<br />
de sorte que, ao fim do percurso, no momento de atirar-se<br />
ao vácuo, ape<strong>na</strong>s tocava o solo. Não, senhores, vossa escala<strong>da</strong><br />
não é mais terrível do que essa e ape<strong>na</strong>s pode acarretar maus<br />
resultados para os homens de vistas curtas, incapazes de perceber<br />
o vosso erro e até considerando-vos as fênix <strong>da</strong> Ciência. Fosse<br />
agradável a vossa ilusão, consoladoras as vossas doutri<strong>na</strong>s;<br />
capazes, as vossas idéias, de estimular a emulação <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de<br />
pensante para elevar-se a um ideal supremo, e talvez se<br />
pudesse perdoar-vos a terapêutica. Mas, com franqueza: – em<br />
que vos parece funesta, à inteligência huma<strong>na</strong>, a crença em<br />
<strong>Deus</strong>? Onde e como verificastes que o conhecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />
pode enfermar o cérebro? Despojando a Humani<strong>da</strong>de do seu<br />
tesouro mais precioso, banindo do Universo a vi<strong>da</strong>, rechaçando<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> o espírito, não admitindo mais que a matéria cega e<br />
forças za<strong>na</strong>gas, privais a família huma<strong>na</strong> de ter paterni<strong>da</strong>de e o<br />
mundo de ter um princípio e uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. Gênio e virtude,<br />
reflexos de um esplendor maior, eclipsam-se convosco e o
mundo moral, tanto quanto o físico, não serão mais que um caos<br />
imenso, digno <strong>da</strong> noite primitiva de Epícuro.<br />
Mas, ain<strong>da</strong> bem que o ateísmo absoluto só pode ser uma loucura<br />
nomi<strong>na</strong>l e o espírito mais negativista não pode, realmente,<br />
atribuir à matéria senão o que pertence ao espírito, criando assim<br />
um deus-matéria, à sua imagem e semelhança. Assim, temos<br />
visto que, desde o panteísmo místico ao mais rigoroso ateísmo,<br />
os erros humanos a respeito <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de divi<strong>na</strong> não puderam,<br />
senão, velar, ou des<strong>na</strong>turar a revelação do Universo, sem<br />
aniquilá-la. Nosso <strong>Deus</strong> <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> permanece i<strong>na</strong>tacável, no<br />
seio mesmo <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, força intrínseca e universal gover<strong>na</strong>ndo<br />
ca<strong>da</strong> átomo, formando organismos e mundos, princípio e fim <strong>da</strong>s<br />
criações que passam, luz incria<strong>da</strong> a brilhar no mundo invisível e<br />
para a qual, oscilantes, se dirigem as almas, como a agulha<br />
imanta<strong>da</strong>, que não mais repousa enquanto não se encontra identifica<strong>da</strong><br />
com o plano do pólo magnético.<br />
* * *<br />
Acercando-nos do fim deste livro, detenhamo-nos um instante<br />
por bem nos compenetrar <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des adquiri<strong>da</strong>s em nossa<br />
argumentação, guar<strong>da</strong>ndo a legítima impressão deste arrazoado<br />
científico. Vigem hoje no mundo dois grandes erros, tão vivazes<br />
e profundos como nos tempos mais obscuros <strong>da</strong> História, isto é,<br />
<strong>na</strong>s épocas recua<strong>da</strong>s em que a inteligência huma<strong>na</strong> ain<strong>da</strong> não<br />
podia formular nenhuma concepção exata <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />
Esses dois erros, por nós combatidos paralelamente, são: de<br />
um lado o ateísmo, que nega a existência do espírito; e do outro a<br />
superstição religiosa, que concebeu um “<strong>Deus</strong>inho” semelhante a<br />
ela e fez do Universo uma lanter<strong>na</strong> mágica, para uso e gozo <strong>da</strong><br />
Humani<strong>da</strong>de.<br />
Como esses dois erros igualmente funestos – posto que à<br />
primeira vista pareçam inócuos e seja o segundo essencialmente<br />
orgulhoso – procuram agora apoiar-se em princípios sólidos <strong>da</strong><br />
Ciência contemporânea, impusemo-nos o dever de mostrar que<br />
eles não podem reivindicar tais princípios em seu favor; que<br />
jazem fatalmente isolados <strong>da</strong> ciência positiva e desarticulam-se
ao primeiro embate, qual castelo de cartas, enquanto – idéia<br />
central – continua em linha reta o espiritualismo científico.<br />
Resumamos nossa argumentação. Constatamos, de começo,<br />
locando o problema, que o essencial consiste em distinguir força<br />
e matéria, e exami<strong>na</strong>r se é a matéria que rege a força ou, ao<br />
invés, se é esta que gover<strong>na</strong> aquela. As afirmativas materialistas,<br />
decalca<strong>da</strong>s <strong>na</strong> primeira <strong>da</strong>s premissas, pareceram-nos desde logo<br />
puramente arbitrárias, como simples petições de princípios,<br />
fáceis de desmascarar.<br />
Nosso exame do papel <strong>da</strong> força, <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> começou pela<br />
perspectiva <strong>da</strong>s grandezas celestes. Vimos que <strong>na</strong> imensi<strong>da</strong>de do<br />
Espaço os mundos obedecem a uma lei matemática e que é à<br />
execução dessa lei que devemos a harmonia dos movimentos<br />
celestes, a fecundi<strong>da</strong>de dos astros, a manutenência dos seres em<br />
ca<strong>da</strong> mundo, a vi<strong>da</strong> e a beleza do Universo, em suma. A matéria<br />
inerte não se nos figurou capaz de compreender e aplicar o<br />
cálculo infinitesimal, e então concluímos que a ordem numérica<br />
<strong>da</strong> organização astronômica é devi<strong>da</strong> a um Espírito, indubitavelmente<br />
superior ao dos astrônomos que descobriram a fórmula<br />
dessas leis. As contraditas que nos opõem refutam-se de si<br />
mesmas, por suas respectivas puerili<strong>da</strong>des.<br />
O exame <strong>da</strong>s leis que presidem às combi<strong>na</strong>ções químicas, do<br />
papel <strong>da</strong> álgebra e <strong>da</strong> geometria no microcosmo, <strong>da</strong>s forças que<br />
regem os fenômenos do mundo inorgânico e orde<strong>na</strong>m as viagens<br />
atômicas, <strong>da</strong>s harmonias revela<strong>da</strong>s <strong>na</strong>s vibrações luminosas,<br />
como <strong>na</strong>s cônicas, e do primeiro surto <strong>da</strong> força orgânica no reino<br />
vegetal, nos demonstrou que <strong>na</strong> Terra, como no céu, uma inteligência<br />
desconheci<strong>da</strong> tudo orde<strong>na</strong> e se traduz em beleza e grandeza<br />
máximas.<br />
O estabelecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira teoria <strong>da</strong>s relações entre a<br />
força e a matéria tem, por epígrafe, a velha divisa dos Pitagóricos<br />
– Os números regem o mundo.<br />
Penetrando, então, nos domínios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a primeira perspectiva<br />
que nos dominou foi a <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de que abrange todos os<br />
seres. Sua substância pareceu-nos, muita vez, não lhes pertencer<br />
como propriamente deles e transitar, constante, de uns a outros,
sendo o ar o veículo <strong>da</strong> organização vital do planeta. Os processos<br />
de respiração e alimentação nos demonstraram a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />
existente entre os animais e as plantas. O corpo humano<br />
apresenta-se-nos em transformação constante. O grande fenômeno<br />
<strong>da</strong> circulação <strong>da</strong> matéria estabeleceu que a existência de uma<br />
força central, constituindo a vi<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> ser, faz-se absolutamente<br />
necessária para explicar a permanência do organismo, o<br />
equilíbrio <strong>da</strong>s funções vitais, a própria existência, enfim. Essa<br />
força orgânica só é transmissível pela geração.<br />
O quadro <strong>da</strong>s últimas conquistas <strong>da</strong> Química orgânica continuou<br />
afirmando a força, qual a estabelecera a Fisiologia.<br />
Remontando, então, para além <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> atual, para a origem<br />
dos seres, a causa espiritualista revelou num crescendo a sua<br />
necessi<strong>da</strong>de e veridici<strong>da</strong>de. Comparamos com a nova a velha<br />
hipótese materialista e achamos que não são mais que uma e<br />
única hipótese, aliás, insuficientes.<br />
A mesma perquirição nos levou ao problema, não resolvido,<br />
<strong>da</strong>s gerações espontâneas. O ponto essencial <strong>da</strong> questão está no<br />
havermos constatado que, mesmo <strong>na</strong> hipótese <strong>da</strong> organização<br />
autônoma <strong>da</strong> matéria, a teologia <strong>na</strong>tural não é atingi<strong>da</strong> e a força<br />
diretiva continua a impor-se como absolutamente necessária.<br />
Vimos, ao demais, que não são os mestres que opõem teorias<br />
contrárias à admissão de um <strong>Deus</strong>, e sim os discípulos inexperientes,<br />
de vez que a lei tanto impera <strong>na</strong> transformação e progressão<br />
<strong>da</strong>s espécies, como <strong>na</strong> sua criação separa<strong>da</strong>. E quanto ao<br />
homem em si mesmo, vemos que o seu posto característico <strong>na</strong><br />
criação afirma-se, menos pelos índices a<strong>na</strong>tômicos que por seu<br />
valor intelectual, tendo-se em vista a sua racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e os<br />
progressos que é capaz de realizar.<br />
Esse estudo geral <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terrestre tem por epígrafe a proposição<br />
fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> obra de Arístoto: A alma é a causa eficiente<br />
e o princípio organizador dos corpos vivos.<br />
Mas, é sobretudo no próprio homem que temos reconhecido<br />
mais evidente e i<strong>na</strong>tacável soberania <strong>da</strong> força. Nosso exame do<br />
cérebro revelou, desde logo, a ilusão dos metafísicos que desdenham<br />
o laboratório e a dissecação, pretendendo limitar a Nature-
za a uma simples definição. Esse exame serviu para estabelecer<br />
as relações do cérebro com o pensamento, e mostrou que a sua<br />
composição, forma, volume e peso, estão longe de ser estranhos<br />
à alma. A ação do espírito sobre o cérebro ressaltou, íntegra, <strong>da</strong><br />
fisiologia para afirmar-se no seu real valor. As hipóteses que<br />
resultaram <strong>na</strong> conceituação do pensamento como secreção de<br />
substância cerebral, ou como di<strong>na</strong>mismo nervoso, só conseguiram<br />
notabilizar-se pela sua i<strong>na</strong>ni<strong>da</strong>de. A presença <strong>da</strong> alma evidenciou-se<br />
até nos fenômenos de loucura. O gênio apareceu-nos<br />
como a facul<strong>da</strong>de máxima de pensar.<br />
Depois, a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong> veio afirmar-se no seu valor.<br />
Temos visto que existimos, realmente, que não somos ape<strong>na</strong>s a<br />
quali<strong>da</strong>de variável <strong>da</strong> substância cerebral.<br />
A alma afirmou sua uni<strong>da</strong>de e perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. A contradição<br />
entre essa uni<strong>da</strong>de e a multiplici<strong>da</strong>de dos movimentos cerebrais,<br />
sobretudo entre a identi<strong>da</strong>de permanente <strong>da</strong> alma e a troca incessante<br />
<strong>da</strong>s partes constitutivas do cérebro, reduziu a hipótese<br />
materialista a extrema pentiria. Em vão tentaram detê-la. Temos<br />
a<strong>na</strong>lisado a nuli<strong>da</strong>de de suas explicações, à face dos grandes<br />
feitos afirmativos de uma consciência em nós.<br />
Por fim, para aniquilar até os fun<strong>da</strong>mentos a singular e triste<br />
pretensão de ser o homem gover<strong>na</strong>do pela matéria, discutimos,<br />
socorrendo-nos de fatos e exemplos, se poderia admitir-se não<br />
fossem a vontade e a individuali<strong>da</strong>de mais que ilusão, e que a<br />
consciência e o julgamento dependessem <strong>da</strong> alimentação.<br />
Os exemplos históricos de homens enérgicos, dotados de<br />
grande força de vontade, de fortes expressões de caráter, de<br />
perseverança e de virtudes, desmentiram essas últimas objeções<br />
do materialismo contemporâneo e mostraram que as facul<strong>da</strong>des<br />
intelectuais e morais <strong>na</strong><strong>da</strong> têm a ver com a Química, e que o<br />
espírito reside num mundo distinto do material, superior às<br />
vicissitudes e movimentos transitórios do mundo físico.<br />
Nossa alma não permitiu que a digni<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>, a liber<strong>da</strong>de,<br />
os sagrados princípios do belo, do bom, do ver<strong>da</strong>deiro,<br />
fossem envolvidos no caos <strong>da</strong> hipótese materialista.
Esta declaração dos direitos <strong>da</strong> alma tem por epígrafe a proposição<br />
do doutor angélico: a alma conforma o corpo e nele se<br />
contém em ato e em potência.<br />
As três grandes divisões que vimos de resumir tiveram por<br />
complemento <strong>na</strong>tural as nossas considerações sobre a desti<strong>na</strong>ção<br />
dos seres e <strong>da</strong>s coisas. Comentamos o erro e o ridículo dos que<br />
tudo ligam ao homem, bem como o seu oposto, que nega a<br />
existência de um plano <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. As leis organizadoras <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, a maravilhosa construção dos órgãos e dos sentidos, nos<br />
revelam uma causa inteligente <strong>na</strong> instalação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> planetária. A<br />
hipótese <strong>da</strong> formação dos seres vivos sob a ação de uma força<br />
universal instintiva, e <strong>da</strong> transformação <strong>da</strong>s espécies, longe de<br />
anularem a idéia do Criador, deixaram intactas a sua onipotência<br />
e sabedoria.<br />
E assim, o plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> foi anunciado pela construção<br />
dos seres vivos.<br />
Mais eloqüentemente ain<strong>da</strong>, foi esse plano afirmado pelas<br />
provas do instinto no reino animal. A criação, aí, nos surgiu<br />
magnificamente completa<strong>da</strong> por leis assecuratórias <strong>da</strong> sua duração<br />
e grandeza. Mas, ao mesmo tempo que a presença de <strong>Deus</strong><br />
se manifestava mais imponente aos nossos olhos, o problema<br />
geral <strong>da</strong> fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de do mundo surgia mais vasto e temeroso.<br />
Sentimos, então, a insignificância comparativa e assim fomos<br />
levados, <strong>na</strong>turalmente, pela diretriz do arrazoado, a retomar a<br />
idéia domi<strong>na</strong>nte do nosso ponto de parti<strong>da</strong>, isto é, demonstrar<br />
conjuntamente o erro do ateísmo e <strong>da</strong> superstição religiosa.<br />
Este exame <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de fi<strong>na</strong>l teve por epígrafe o título <strong>da</strong><br />
obra do grande físico e filósofo Ested – O Espírito <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />
A força espiritual que vive <strong>na</strong> essência <strong>da</strong>s coisas e gover<strong>na</strong> o<br />
Universo em suas partículas infinitesimais revelou-se assim,<br />
sucessivamente, nos mundos sideral, inorgânico, vegetal, animal,<br />
pensante. Esperamos que o observador de boa fé, desprevenido<br />
do espírito de sistema, se contentará com esta exposição dos<br />
últimos resultados <strong>da</strong> Ciência contemporânea, confirmativos <strong>da</strong><br />
soberania <strong>da</strong> força e <strong>da</strong> passivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria.
Temos íntima convicção de que a idéia de <strong>Deus</strong> se apresentou<br />
a seus olhos maior e mais pura que to<strong>da</strong> e qualquer imagem<br />
simbólica e dogmática, e que a criação universal, misteriosa filha<br />
do mesmo pensamento, lhe surgiu mais ampla e mais bela.<br />
O Universo desdobra-se <strong>na</strong> sua reali<strong>da</strong>de, como a manifestação<br />
de uma idéia u<strong>na</strong>, de um plano único e de uma só vontade.<br />
Possa este quadro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> eter<strong>na</strong> <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza de <strong>Deus</strong> afastar o<br />
leitor dos erros grosseiros que o materialismo espalha por to<strong>da</strong><br />
parte, robustecendo-lhe o intelecto no culto puro <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de.<br />
Possam os nossos espíritos se compenetrarem, ca<strong>da</strong> vez mais, do<br />
Belo manifestado <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> e santificarem-se no Bem, com o<br />
apreciarem mais completamente a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> obra divi<strong>na</strong>, fazendo<br />
uma idéia mais justa do nosso destino espiritual, conhecendo<br />
a nossa categoria <strong>na</strong> Terra em relação ao conjunto dos mundos e<br />
sabendo, fi<strong>na</strong>lmente, que a nossa grandeza está em nos elevarmos<br />
constantemente <strong>na</strong> posse e pela posse dos bens imperecíveis,<br />
que são apanágio <strong>da</strong> inteligência.<br />
* * *<br />
Uma tarde de verão, deixara eu as flóreas vertentes de Sainte-<br />
Adresse, deliciosa vila litorânea recorta<strong>da</strong> em coli<strong>na</strong>s, para<br />
galgar as grimpas do cabo Heve, que ao poente lhe demoram.<br />
Quando, de sua base contemplamos os cabeços desses penhascos,<br />
acreditamos estar vendo colossos de granito avermelhados<br />
pelo sol, quais gigantes imóveis que assistissem, petrificados,<br />
aos bramidos do oceano que vem morrer a seus pés. No seu<br />
isolamento, esses maciços enormes e i<strong>na</strong>cessíveis pelo lado do<br />
mar parecem talhados para domi<strong>na</strong>r o soberbo panorama. A seu<br />
lado, fronteando o oceano, o homem sente-se tão insignificante<br />
que acaba perdendo de vista a própria existência e confundindose<br />
com a vi<strong>da</strong> abstrata, que paira acima dos bramidos oceânicos.<br />
Sempre a subir, cheguei ao plano superior, onde ficam os semáforos<br />
que avisam, longe, aos <strong>na</strong>vios o movimento horário <strong>da</strong>s<br />
vagas costeiras, onde os faróis se acendem à boca <strong>da</strong> noite, quais<br />
estrelas permanentes <strong>na</strong> amplidão <strong>da</strong>s trevas. O Sol, glorioso,<br />
ain<strong>da</strong> se pendurava rubro <strong>da</strong>s nuvens incendi<strong>da</strong>s, posto que já<br />
oculto para o Havre e para as planuras que bor<strong>da</strong>m o estuário do
Se<strong>na</strong>. Ao alto, o céu azul me coroava com a sua pureza. Em<br />
baixo, a mata, fervilhante de insetos, exalava em on<strong>da</strong>s o seu<br />
perfume. Caminhei até à escarpa, ao fundo <strong>da</strong> qual se mostram<br />
os abismos. Do cairel <strong>da</strong> rocha em vertical, o olhar domi<strong>na</strong> a<br />
imensidão dos mares, desdobrados à esquer<strong>da</strong>, de sueste a nordeste.<br />
Mergulhando-o perpendicularmente, ele se perde <strong>na</strong><br />
profundeza de massas verdes, rochedos e brenhas escuras –<br />
tapete rústico estendido a trezentos pés abaixo dos contrafortes<br />
dessa muralha. O gemido <strong>da</strong>s vagas mal nos chega nestas alturas,<br />
nosso ouvido ape<strong>na</strong>s percebe um rumor uniforme, que o vento<br />
gradua de intensi<strong>da</strong>de. É um silêncio que canta, longe do mar.<br />
– A <strong>Natureza</strong> estava atenta ao derradeiro adeus, que o príncipe<br />
<strong>da</strong> luz enviava ao mundo, antes que descesse do seu trono<br />
para sumir-se no horizonte líquido. Calma e concentra<strong>da</strong>, ela<br />
assistia à prece universal dos seres, pois que eles a fazem – a<br />
santa prece do reconhecimento – ao receberem os últimos olhares<br />
do Sol. E todos, desde a flébil e solitária medusa e a estrelado-mar<br />
policroma, até os gafanhotos saltitantes e os alcíones de<br />
neve; todos lhe agradecem piedosamente. Era, então, um como<br />
incenso a subir <strong>da</strong>s vagas e dos montes, parecendo que os ruídos<br />
temperados <strong>da</strong> plaga, a brisa que soprava do continente, a atmosfera<br />
embalsama<strong>da</strong>, a luz palescente <strong>na</strong> sereni<strong>da</strong>de do céu azul, o<br />
refrigério crepuscular e tudo o mais vinha, <strong>na</strong>quele sítio, consciência<br />
de vi<strong>da</strong>, comungando contrita e amorosamente <strong>da</strong> adoração<br />
universal.<br />
Mentalmente, nesse holocausto <strong>da</strong> Terra, eu sentia as recíprocas<br />
atrações dos mundos; não ape<strong>na</strong>s as que alter<strong>na</strong>tivamente<br />
afastam e aproximam nosso orbe do foco solar, como as de todos<br />
os astros que gravitam <strong>na</strong> imensidão dos céus. Acima de minha<br />
cabeça desdobravam-se as sublimes harmonias e as gigantescas<br />
translações dos corpos celestes! A Terra era qual átomo flutuante<br />
no infinito! Deste átomo, porém, a todos os sóis do espaço,<br />
àqueles cuja luz leva milhões de anos para chegar até nós, aos<br />
que jazem desconhecidos para além <strong>da</strong> nossa visibili<strong>da</strong>de, eu<br />
sentia um laço invisível abrangendo, num só halo vivificante,<br />
todos os universos e to<strong>da</strong>s as almas. E a prece celestial, grandiosa,<br />
imensurável, tinha a sua repercussão, a sua estrofe, a sua
epresentação visível <strong>na</strong>quela vi<strong>da</strong> terre<strong>na</strong> que palpitava em<br />
torno de mim, no rugido do mar, no perfume <strong>da</strong>s selvas, no canto<br />
<strong>da</strong>s aves, <strong>na</strong> melodia confusa dos insetos, no conjunto emocio<strong>na</strong>nte<br />
do cenário e, sobretudo, <strong>na</strong> luminosa to<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele<br />
extraordinário crepúsculo!<br />
Fitava-o embevecido, sim... mas sentia-me tão pequeno no<br />
meio de tantas graças e grandezas, que acabei por entristecer-me.<br />
Senti como que esvanecer-se a minha perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong><br />
imensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Não me tardou a impressão de já não<br />
poder falar, nem pensar.<br />
– O vasto mar fugia para o infinito. – Eu não mais existia,<br />
meus olhos se velavam... E, como as faces se me inun<strong>da</strong>vam de<br />
pranto, sem que me pudesse explicar porque chorava, ajoelheime<br />
e, proster<strong>na</strong>do ante o céu, confundi minha fronte com as<br />
ervas... – o mar fugia sempre e os seres continuavam em prece.<br />
E o Sol, fonte dessa luz e dessa vi<strong>da</strong>, espiou uma última vez<br />
lá <strong>da</strong> faixa marinha do horizonte, como que satisfeito com aquela<br />
home<strong>na</strong>gem que nem um ser ousara recusar-lhe... E assim,<br />
contente <strong>da</strong> jor<strong>na</strong><strong>da</strong>, mergulhou orgulhoso no hemisfério de<br />
outros povos.<br />
Fez, então, grande silêncio em to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>. Nuvens de<br />
ouro e púrpura evolaram-se às paragens reais e ocultaram os<br />
últimos timbres avermelhados. A sombra descia do alto. As<br />
on<strong>da</strong>s adormeceram, porque o vento abran<strong>da</strong>ra. Os pequeninos<br />
seres alados adormeceram também e Vésper, núncia <strong>da</strong> noite,<br />
começou a luciluzir no éter.<br />
“Ó misterioso Incógnito! – exclamei – grande, imenso Ser,<br />
que somos nós, pois? Supremo autor <strong>da</strong> harmonia, quem és tu, se<br />
tão grandiosa é a tua obra? Pobres mitos humanos os que supõem<br />
conhecer-te – ó <strong>Deus</strong>! Átomos, <strong>na</strong><strong>da</strong> mais que átomos, como<br />
somos ínfimos! E como tu és grande! Quem, pois, ousou nomear-te<br />
pela primeira vez?<br />
“Que orgulhoso insensato pretendeu definir-te, ó <strong>Deus</strong>! – ó<br />
meu <strong>Deus</strong>, todo poder e ternura, imensi<strong>da</strong>de sublime e inconcebível!
“E, como qualificar os que vos têm negado, que em vós não<br />
crêem, que vivem fora do vosso pensamento e jamais sentiram<br />
vossa presença – ó Pai <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>!<br />
“Amo-te! amo-te! Causa suprema e desconheci<strong>da</strong>, Ser que<br />
palavra alguma pode traduzir, eu vos amo, divino Princípio!<br />
mas... sou tão pequenino, que não sei se me ouvireis, se me<br />
entendereis.”<br />
Como estes pensamentos se precipitavam fora de mim, para<br />
fundirem-se <strong>na</strong> afirmação grandiosa de to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>, as<br />
nuvens se esgarçaram no poente e a radiação áurea <strong>da</strong>s regiões<br />
ilumi<strong>na</strong><strong>da</strong>s inundou a montanha.<br />
“Sim! tu me ouves, ó Criador! tu que dás a beleza e o perfume<br />
à florinha silvestre! A voz do oceano não abafa a minha voz<br />
e meu pensamento a ti se eleva, ó <strong>Deus</strong>! com a prece coletiva.”<br />
Do todo do Cabo, minha vista se estendia ao Sul como ao<br />
Ocidente, <strong>na</strong> planície como sobre o mar. Voltando-me, lobriguei<br />
as ci<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s, meio adormeci<strong>da</strong>s <strong>na</strong>s plagas. No Havre as<br />
ruas comerciais se ilumi<strong>na</strong>vam e além, <strong>na</strong> margem oposta,<br />
Trouville acendia o seu parque de diversões.<br />
E enquanto a <strong>Natureza</strong> se mostrava reconheci<strong>da</strong> ao seu Autor<br />
com o sau<strong>da</strong>r a missão de um dos seus astros fiéis; enquanto<br />
todos os seres lhe enviavam suas preces e o rugido dos mares<br />
misturava-se ao vento, em ação de graças ao termo de um belo<br />
dia; enquanto a obra cria<strong>da</strong>, unânime e recolhi<strong>da</strong>, se oferecera ao<br />
Criador, a criatura imortal e responsável – ser privilegiado <strong>da</strong><br />
Criação, expoente do pensamento – o Homem, vivia à margem,<br />
indiferente a tantos esplendores, sem olhos de ver nem ouvidos<br />
de ouvir, parecendo ignorar essa harmonia universal, em cujo<br />
seio deveria encontrar a sua felici<strong>da</strong>de e a sua glória.<br />
FIM
Notas:<br />
1 O autor refere-se ao Século 19, já que esta obra foi escrita no<br />
ano de 1867 (Nota do digitalizador).<br />
2 La Philosophie de Goethe, capítulo 6º.<br />
3 Körper und Gelst, etc.<br />
4 Physiologische Briefe.<br />
5<br />
Assim se denomi<strong>na</strong> a linha ideal que liga um planeta ao Sol.<br />
6<br />
F. Petit – Traité d’Astronomie, 24º et dernlère leçon.<br />
7<br />
Curioso é que Clairaut, tendo encontrado em seus cálculos um<br />
período de dezoito em vez de nove anos, declarasse insuficiente,<br />
para este caso, a gravitação inversa ao quadrado <strong>da</strong> distância<br />
e que fosse precisamente um <strong>na</strong>turalista, Buffon, que, persuadido<br />
de que a <strong>Natureza</strong> não podia ter duas leis diferentes,<br />
insistisse com o geômetra para que revisse os seus cálculos.<br />
Clairaut, após um novo exame, reconheceu que a primeira assertiva<br />
estava erra<strong>da</strong>, pois que havia negligenciado, <strong>na</strong>s séries,<br />
termos indispensáveis.<br />
8<br />
Büchner – Força e matéria.<br />
9 Kraft und Steft; 8º.<br />
10 Quanto mais profun<strong>da</strong> o homem os segredos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, mais<br />
se lhe desven<strong>da</strong> a universali<strong>da</strong>de do plano eter<strong>na</strong>l. “Si stelles,<br />
fixae – diz Newton (Phil. <strong>na</strong>t Principia math, Scholgen) –, sint<br />
centra similium systematum, hoec omnia simili consilio constructa<br />
suberunt uniuns dominio”. – Cf. também Képler, Harmonices<br />
Mundi.<br />
11 Chemische Brief, pági<strong>na</strong> 32.<br />
12 Segundo Deprez. As experiências de Savart limitam os sons<br />
graves a 8 vibrações duplas por segundo, e a 24000 os agudos.<br />
13 Tomamos aqui por limites o número de ondulações do infravermelho<br />
ao ultravioleta. Além deste, nosso globo visual não<br />
pode perceber a luz, que sem embargo, ain<strong>da</strong> existe.
14 Será que esta físico-química não vai muito longe assimilando<br />
tão radicalmente funções vegetais e funções animais? Os lírios<br />
cândidos e as mimosas violetas em <strong>na</strong><strong>da</strong> se parecem, traço por<br />
traço, com os animais peludos dos nossos estábulos; nem o<br />
perfume dos goivos se exala, precisamente, do mesmo objeto,<br />
que o odor <strong>na</strong><strong>da</strong> equívoco, <strong>da</strong>s pesa<strong>da</strong>s pipas que rolam à<br />
meia-noite pelas ruas de Paris. A Química, decerto, não tem<br />
falsos decoros e nós queremos admitir que, num capítulo sobre<br />
a digestão, o Sr. Moleschott discuta a idéia do Sr. Liebig, de<br />
identificar o valor digestivo do alimento pela grossura to<strong>da</strong><br />
particular dos resíduos <strong>da</strong> refeição, deixados pelos transeuntes<br />
ao longo dos muros. Mas, num capítulo tratando de flores,<br />
pensamos não ser necessário exagerar similitudes do reino vegetal<br />
e animal para o conseguir. De resto, não passa isto de<br />
mera digressão extratextual, para mostrar os adversários sob<br />
um aspecto particular. Encerremo-la.<br />
15 Proclamando em alto e bom som que a força gover<strong>na</strong> a substância,<br />
não o fazemos a ponto de pretender, com certos metafísicos,<br />
que não existe substância e sim, unicamente, a força. É<br />
um exagero para nós tão falso como o dos materialistas. Ouçamos<br />
por momentos uma demonstração metafísica <strong>da</strong> incoexistência<br />
dos corpos e <strong>da</strong> extensão. (É de Magy, em Science et<br />
Nature.) “Se supusermos que a extensão, assim como a força,<br />
convém aos objetos <strong>da</strong> experiência e tor<strong>na</strong>-se dela um elemento<br />
inseparável, então, como as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> primeira são<br />
precisamente inversas <strong>da</strong>s <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>, chega-se a admitir implicitamente<br />
que as contraditórias possam coexistir num mesmo<br />
objeto – erro típico que caracteriza de si mesmo o absurdo.<br />
Mas, se, ao contrário, reconhecermos que só a força é real, de<br />
uma reali<strong>da</strong>de absoluta e substancial, enquanto que a extensão<br />
não passa de ato psicológico, que só pelo fato de aparecer sob<br />
o olhar <strong>da</strong> consciência requer umas tantas condições físicofisiológicas,<br />
logo se desvanece a contradição. De modo que<br />
nossa resposta à questão de saber qual a reali<strong>da</strong>de objetiva <strong>da</strong><br />
noção de extensão, tão estranha à primeira vista, é, no fundo, a
única ver<strong>da</strong>deiramente racio<strong>na</strong>l, visto não admitir recusa sem<br />
colidir, por assim dizer, com a razão em si mesma.<br />
Mas, objetar-se-á, esta resposta está em contradição expressa<br />
com a experiência, pois ela reduz a extensão a uma simples<br />
aparência psicológica, ao passo que a vista e o fato, relativamente<br />
a todos os corpos que podem atingir, nos atestam uma<br />
extensão peculiar a ca<strong>da</strong> qual e, manifestamente, exterior à alma.<br />
Não são extensos esses objetos com os quais estou em relação,<br />
ou sejam: este mesmo corpo a que me ligo pela alma,<br />
esta mesa <strong>na</strong> qual me debruço, esta casa, esta terra, este sol que<br />
me aclara, todo o Universo, enfim? Será possível e mesmo<br />
concebível uma ilusão tão geral e tão constante?<br />
Esta objeção pressupõe justamente o que está em jogo, responde<br />
o filósofo. De fato, que nos ensi<strong>na</strong>m a vista e o tato, sobre o<br />
grau de reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> extensão corporal? Na<strong>da</strong>, absolutamente,<br />
pois uma vez percebido um corpo, é sempre lícito in<strong>da</strong>gar se a<br />
imagem dimensória que acompanha a percepção não seria uma<br />
simples aparência.<br />
Trata-se dessa aparência, aqui, no sentido <strong>da</strong> existente em<br />
alguns fenômenos astronômicos, tal como o movimento solar,<br />
de que nos podemos certificar tão facilmente pela rotação <strong>da</strong><br />
Terra como do Sol. Quanto à própria experiência, literalmente<br />
neutra no caso, o seu pretenso desacordo com a nossa tese procede,<br />
não dos fatos invocados, mas do sentido arbitrário que<br />
implicitamente lhes atribuem.<br />
Os elementos constitutivos <strong>da</strong> matéria são, necessariamente,<br />
inextensivos e puramente dinâmicos.<br />
Os mesmos princípios que nos conduziram à ver<strong>da</strong>deira teoria<br />
<strong>da</strong> extensão corporal, nos sugerem, igualmente, a explicação<br />
<strong>da</strong> extensão incorpórea, ou seja, do espaço.<br />
A extensão corporal é simples fenômeno que acompanha a<br />
reação <strong>na</strong>tural dessa força hiperorgânica chama<strong>da</strong> alma, contra<br />
a ação <strong>da</strong>s forças que constituem os corpos brutos, e <strong>da</strong>s quais<br />
é adverti<strong>da</strong> pelas forças orgânicas do nosso corpo. Mas, se as<br />
forças orgânicas, de que o corpo humano é o sistema, suscitam
em nós a aparência de extensão, quando operam como intermediárias<br />
entre a alma e o mundo exterior, também poderiam,<br />
por sua atuação incessante sobre a alma, a que estão tão intimamente<br />
liga<strong>da</strong>s, poderiam, dizemos, não provocar um fenômeno<br />
análogo, cujos caracteres específicos seria difícil assi<strong>na</strong>r<br />
“a priori”, mas que devem, infalivelmente, encontrar-se entre<br />
os fenômenos psicológicos? Ora, isto é o que precisamente<br />
acontece e a consciência nos informa incessantemente. A reação<br />
permanente <strong>da</strong> alma contra as forças orgânicas engendra a<br />
todo instante um fenômeno homogêneo ao <strong>da</strong> extensão corporal.<br />
É o fenômeno <strong>da</strong> extensão corporal ou do espaço puro, no<br />
qual localizamos <strong>na</strong>turalmente todos os corpos. O movimento<br />
no espaço, como qualquer outro fenômeno sensível, não é mais<br />
que o si<strong>na</strong>l visível de ações invisíveis e de permutas não menos<br />
i<strong>na</strong>cessíveis aos nossos órgãos, no modo de coexistência<br />
<strong>da</strong>s forças.<br />
Mas, de to<strong>da</strong>s as soluções arma<strong>da</strong>s ao problema, a mais notável,<br />
sem contestação, é a de Kant. Este grande pensador, que<br />
tanto meditara as condições primordiais do pensamento entre<br />
as quais a noção de espaço lhe pareceu, com razão, uma <strong>da</strong>s<br />
principais, foi o primeiro a suspeitar que ele – o espaço – não<br />
poderia ser um objeto extrínseco ao ser, qual o presumem os<br />
físicos, nem a ordem de coexistência <strong>da</strong>s coisas, como pretendia<br />
Leibnitz, mas, ver<strong>da</strong>deiramente, um simples modo do ser<br />
pensante. “A Geometria – diz – é uma ciência que determi<strong>na</strong><br />
as proprie<strong>da</strong>des do espaço sinteticamente e, to<strong>da</strong>via, “a priori”.<br />
Ora, qual deverá ser a representação de espaço para que tenhamos<br />
a respeito um conhecimento possível? Uma intuição<br />
primitiva.<br />
O espaço para Kant, como para nós – conclui o escritor –, é,<br />
pois, essencialmente, uma afecção psicológica.<br />
Por um lado, segundo a lei objetiva do conhecimento, to<strong>da</strong>s as<br />
idéias científicas se ligam às noções de força e extensão, Únicas<br />
ver<strong>da</strong>deiramente primordiais e irredutíveis; e por outro lado,<br />
segundo o aprofun<strong>da</strong>do exame a que acabamos de submeter<br />
essas duas noções, a de força representa o elemento subs-
tancial dos seres e a de extensão um modo puramente subjetivo<br />
de nossa <strong>na</strong>tureza.<br />
Assim se expressam, ain<strong>da</strong>, os partidários <strong>da</strong> interpretação<br />
puramente subjetiva.<br />
Pode-se fazer, a respeito, um reparo assaz curioso e suficiente<br />
para responder a essa teoria algo exagera<strong>da</strong> e vem a ser que, se<br />
a extensão não existisse, os corpos não tinham como ocupar<br />
um lugar, tal como o ensi<strong>na</strong> a Física. Daí se conclui que nós<br />
não ocupamos lugar e que não estamos em parte alguma!<br />
Quanto ao primeiro ponto, que se precatem os teatrólogos; e,<br />
quanto ao segundo, que dele se valham os malfeitores, se bem<br />
lhes prouver, para justificarem a sua metafísica.<br />
Estes argumentos muito se assemelham ao dos fraseólogos<br />
modernos, que levantam conten<strong>da</strong>s de palavras acreditando<br />
discutir fatos.<br />
Neste caso, por exemplo, os que repetem com Broussais que<br />
<strong>Deus</strong> e alma não existem, porque a linguagem huma<strong>na</strong> os desig<strong>na</strong>,<br />
algumas vezes, em termos negativos! O mesmo valeria<br />
dizer <strong>da</strong> matéria, qualifica<strong>da</strong> impenetrável nos seus atributos,<br />
por ser uma expressão negativa.<br />
Efetivamente, pura logomaquia.<br />
16 Pudesse o homem apreciar as forças diariamente acio<strong>na</strong><strong>da</strong>s <strong>na</strong><br />
<strong>Natureza</strong> e ficaria confundido, em sua admiração. Para não citar<br />
mais que um exemplo fácil de entender, digamos que o vapor<br />
d’água a elevar-se do solo para formar nuvens, essas nuvens<br />
que se resolvem em chuva, parece não acusar, à primeira<br />
vista, um deslocamento de energias colossais. No entanto, admitido<br />
que caia anualmente, em to<strong>da</strong> a superfície terráquea,<br />
uma cama<strong>da</strong> d'água <strong>da</strong> espessura de um metro e que a altura<br />
média <strong>da</strong>s nuvens seja de 3000 metros, seria preciso para esse<br />
trabalho uma força de 1500 bilhões de cavalos, a trabalharem 7<br />
horas diárias. E a Terra não teria como alimentá-los!<br />
17 Tableaux de la Natura, parte 4ª.<br />
18 Liebig – Chemische Brief, 400.
19 Brief – Kreislauf des Lebens, 12º.<br />
20<br />
Eis como se exprime Moleschott, sem uma palavra que venha<br />
coroar a aridez dessa descrição. Pedimos licença para compará-la<br />
ao fecho de capítulo análogo, de outro fisiologista alemão<br />
– Schleiden – e perguntar para que lado pendem as aspirações<br />
<strong>da</strong> alma. “Nossa percepção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte – diz este – tor<strong>na</strong>-se,<br />
<strong>na</strong> velhice, outra. que não a <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de. Os elementos<br />
acumulam-se no corpo, progressivamente; os órgãos flácidos,<br />
flexíveis, enrijam-se, ossificam-se, recusam-se a trabalhar; a<br />
Terra atrai o corpo sempre maiormente, até que a alma fatiga<strong>da</strong><br />
desse constrangimento lhe abando<strong>na</strong> o invólucro já insustentável.<br />
Abando<strong>na</strong> o corpo de barro, <strong>na</strong>scido do pó, à combustão<br />
lenta, a que chamamos putrefação. Só a alma, imortal e incorruptível,<br />
deixa a servitude <strong>da</strong>s leis materiais e volve-se ao<br />
Regulador <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de espiritual.<br />
21<br />
Buffon, que nunca foi mecânico, enganou-se neste ponto, pois<br />
hoje sabemos que a Mecânica, tanto como a Química, representa<br />
um grande papel <strong>na</strong> construção do corpo. Esse erro, porém,<br />
não impede que as palavras do grande <strong>na</strong>turalista exprimam<br />
a ver<strong>da</strong>de no condizente à preponderância <strong>da</strong> Força.<br />
22<br />
Circulation de la Vie, T. 2º, carta 15º.<br />
23<br />
A idéia de enclausurar Espíritos em frascos é muito comum <strong>na</strong><br />
feitiçaria medieval. O Papa Benedito IX expeliu sete Espíritos<br />
de um açucareiro.<br />
24<br />
Revue des Deux Mondes – 1º de Setembro de 1865.<br />
25<br />
Berthelot – Chimie Organique Fondée sur la Synthèse.<br />
26<br />
Sobre os recentes progressos <strong>da</strong> Química orgânica, convém<br />
consultar os interessantes relatos <strong>da</strong>s sessões <strong>da</strong> Academia,<br />
principalmente nestes últimos tempos.<br />
27<br />
Chimie Organique Fondée sur la Synthèse.<br />
28 Science et Philosophie.<br />
29 Lucrèce – De Natura Rerum, parte 5ª, Edição Pongerville.<br />
30 Resumo de A. Grandsagne, segundo os trabalhos de Gassend<br />
acerca <strong>da</strong>s descobertas de Herculanum.
31 A origem do homem e dos animais muito preocupou os antepassados.<br />
Plutarco conta que alguns filósofos ensi<strong>na</strong>vam que<br />
tudo <strong>na</strong>scia do seio <strong>da</strong> terra umedeci<strong>da</strong>, cuja superfície enxuga<strong>da</strong><br />
pelo calor atmosférico formara uma crosta, que, rachando-se<br />
afi<strong>na</strong>l, franqueava passagem aos germes. Segundo Diodoro<br />
<strong>da</strong> Sicília e Cêlius Rhodiginus, assim pensavam os egípcios.<br />
Esta velha <strong>na</strong>ção pretendia ser a mais antiga do mundo e<br />
presumia provar com os ratos e rãs, que diziam ver sair do solo<br />
<strong>da</strong> Tebaí<strong>da</strong> quando o Nilo baixava, e que à primeira vista se<br />
lhes afiguravam seres semi-organizados. Ovídio assim descreve<br />
o fenômeno: – Logo que o Nilo de sete bocas abando<strong>na</strong> os<br />
campos fertilizados com a inun<strong>da</strong>ção e volta a encerrar-se no<br />
seu leito normal, o lodo depositado e dissecado pelo astro do<br />
dia produz numerosos animais, que o lavrador vai encontrando<br />
em ca<strong>da</strong> sulco. São seres incompletos, que começam o desabrochar,<br />
privados, em sua maioria, de vários órgãos vitais e<br />
tendo uma parte do corpo anima<strong>da</strong> e outra forma<strong>da</strong> de grosseira<br />
argila. Assim, dizia ele, saíram os homens <strong>da</strong> própria terra.<br />
A opinião mais abaixo exposta, (Parte 4ª) de provir dos peixes<br />
o gênero humano, é hipótese <strong>da</strong>s mais antigas. Plutarco e Eusébio<br />
nos transmitiram, a respeito, o pensamento de A<strong>na</strong>ximandro.<br />
32 Ver particularmente La Libre Pensée e o seu poema De Nature<br />
Rerum.<br />
33 Esta aventura merece ser ofereci<strong>da</strong> aos nossos adversários.<br />
Cyrano encontra um homenzinho que lhe fala mais ou menos<br />
nestes termos:<br />
“Reparai, atento, neste solo que pisamos! Não há muito, era<br />
ele uma informe e confusa massa, um caos de matéria indefinível,<br />
uma pasta negra e viscosa, <strong>da</strong> qual o Sol se expulgara.<br />
Ora, depois que, pelo vigor dos seus raios, ele misturou e condensou<br />
essas numerosas nuvens de átomos; depois, digo, que<br />
mediante uma longa e poderosa cocção separou, nesta bola, os<br />
corpos mais díspares e reuniu os mais símeis, a massa superaqueci<strong>da</strong><br />
transpirou de tal modo que desencadeou um dilúvio de<br />
mais de quarenta dias.
“Da mistura dessas torrentes humorais formou-se o mar, como<br />
o atesta o sal nele contido, que deve ser um amálgama de suor,<br />
de vez que todo o suor é salgado. Retira<strong>da</strong>s as águas, ficou ao<br />
solo uma borra graxenta e fecun<strong>da</strong>, <strong>na</strong> qual, incidindo os raios<br />
solares, formou-se uma como ampola que, devido ao frio, deixou<br />
de produzir os germes latentes. Ela houve de receber, contudo,<br />
uma nova coação, que, retificando-a mediante uma mistura<br />
mais perfeita, engendrou a germi<strong>na</strong>ção. Mas, o Sol, ain<strong>da</strong><br />
dessa vez, lhe recusou o crescimento e foi-lhe preciso uma terceira<br />
digestão.<br />
“Uma vez aqueci<strong>da</strong> fortemente, de feição a vencer o frio<br />
ambiente, a ampola rebentou e pariu um homem que retém no<br />
fígado – sede <strong>da</strong> alma vegetativa e região de incidência <strong>da</strong><br />
primeira cocção – a facul<strong>da</strong>de do crescimento. No coração, sede<br />
<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de e local <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> cocção, a inteligência e o<br />
raciocínio.”<br />
Assim terminou – prossegue Cyrano – o seu discurso, mas,<br />
depois de uma confidência sobre segredos mais íntimos, dos<br />
quais retenho uma parte e de outra não me lembro, disse-me<br />
ele que ain<strong>da</strong> três sema<strong>na</strong>s antes, num monte de terra emprenhado<br />
pelo Sol, tinha ele mesmo <strong>na</strong>scido. “Veja este tumor.” E<br />
mostrou-me sobre um montículo algo de intumescido e semelhante<br />
a uma pupila. “É um <strong>na</strong>scituro, ou, por melhor dizer,<br />
uma matriz que engendra, há nove meses, um conterrâneo, e<br />
eu aqui estou para lhe servir de parteira.”<br />
Nisso, calou-se, ao notar que o terreno em torno estremecia, o<br />
que o fez julgar que era chega<strong>da</strong> a hora do parto.<br />
34 Ela diz: O pastor vai então em seus grandes rebanhos, quatro<br />
touros viris imolar prestamente; e outras tantas vitelas, soberbas,<br />
que a relva, mansamente, no campo esmaltado, pastavam.<br />
E tão logo no céu reponta a luz <strong>da</strong> aurora, ao inditoso Orfeu<br />
oferta o seu tributo e volta, esperançoso, à floresta profun<strong>da</strong>.<br />
Prodígio! o sangue, então, com o seu calor, fecun<strong>da</strong> Nos flancos<br />
animais, um numeroso enxame! Alados turbilhões a jorrar
<strong>da</strong>s entranhas, Como nuvens se espalham a zumbir pelos ares,<br />
E no tronco vizinho em cachos se penduram.<br />
35 Curso <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Ciências, V. A. Revista dos Cursos<br />
Científicos, 5 de Dezembro de 1863.<br />
36 An<strong>da</strong>ram mal em deslocar, assim, a questão: o Sr. Pasteur foi a<br />
ponto de, em ple<strong>na</strong> Sorbonne, trovejar as seguintes acusações:<br />
Que triunfo para o Materialismo se ele pudesse protestar que<br />
se apóia sobre o fato <strong>da</strong> Matéria, organizando-se por si mesma!<br />
A Matéria, que já em si e de si contém to<strong>da</strong>s as forças conheci<strong>da</strong>s!<br />
Ah! se pudéssemos juntar-lhe ain<strong>da</strong> essa outra força<br />
chama<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e a vi<strong>da</strong> variável em suas manifestações, de conformi<strong>da</strong>de<br />
com as nossas experiências! Que pode haver de<br />
mais <strong>na</strong>tural que a deificação dessa matéria? Para que recorrer<br />
à idéia de uma criação primordial, diante de cujo mistério é<br />
força incli<strong>na</strong>r-nos?”<br />
O Sr. Pouchet, alarmado com o libelo, replicou judicioso:<br />
“Afivelar a máscara <strong>da</strong> Religião, para vencer adversários, é<br />
fato insólito e i<strong>na</strong>udito, quanto impróprio de cátedras científicas.<br />
Atribuir aos adversários opiniões que eles sabi<strong>da</strong>mente<br />
não possuem é indigni<strong>da</strong>de.” Houve quem dissesse que era em<br />
conseqüência de uma ilusão teológica desta espécie que a<br />
Academia recusava a geração espontânea. Corre que há uns 60<br />
anos Cuvier, secretário <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de, interpelado por um tal<br />
se acreditava <strong>na</strong> geração espontânea, respondeu: – “O imperador<br />
não quer”. Oh! libertas libertatum!<br />
37 Da Origem <strong>da</strong>s Espécies. Últimas notas.<br />
38 Gênese.<br />
39 Charles Lyell – The Antiquity of Man... A anciani<strong>da</strong>de do<br />
homem prova<strong>da</strong> pela Geologia e anotações sobre a origem <strong>da</strong>s<br />
espécies, por variação.<br />
40 Professor Sedgwick’s – Discurse on the Studies of the Univer-<br />
sity of Cambridge, 1850.<br />
41 Edinburgh – Footprints of the Creator, 1849.<br />
42 On the Origine of Species by the mean of <strong>na</strong>tural selection.
43 O tradutor francês de Darwin adverte, a propósito <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de<br />
dos centros de criação específica, que seria extremamente rigorista<br />
a acepção do termo “paterni<strong>da</strong>de” única, por um só indivíduo,<br />
ou casal único.<br />
“Mais incrível, ain<strong>da</strong>, supor que to<strong>da</strong> a forma primordial, o<br />
antepassado comum e arquétipo absoluto <strong>da</strong> criação viva não<br />
tivesse sido representado senão por um único indivíduo. De<br />
onde teria provindo esse indivíduo único? Seria preciso, depois<br />
de elimi<strong>na</strong>r tantos milagres, deixar subsistisse um? Se um tal<br />
indivíduo existiu, ele só podia ser o planeta. Na<strong>da</strong> impede admitir<br />
tenha tido esta matriz universal, em uma de suas fases<br />
existenciais, o poder de elaborar a vi<strong>da</strong>. Mas, um só ponto <strong>da</strong><br />
sua superfície teria auferido o privilégio de produzir germes?<br />
Ou deveremos crer lhe houvessem estes desabrochado do seio?<br />
To<strong>da</strong>s as a<strong>na</strong>logias levam antes a supor a Terra fecun<strong>da</strong> em<br />
to<strong>da</strong> a sua superfície; que o seu invólucro aquoso fosse o primeiro<br />
laboratório e que inumerável fosse a produção dos germes,<br />
sem dúvi<strong>da</strong> semelhantes. Células vermi<strong>na</strong>tivas, <strong>na</strong><strong>da</strong>ndo<br />
esparsas, em cachos ou em filamentos, <strong>na</strong>s águas, uma cristalização<br />
orgânica e <strong>na</strong><strong>da</strong> mais. Evidentemente, um tipo, uma<br />
forma, uma espécie única, mas não um só indivíduo, do qual se<br />
formassem sucessivamente todos os organismos.<br />
Se se admitir a simplici<strong>da</strong>de desses germes primitivos, reconhece-se<br />
que as possibili<strong>da</strong>des de desenvolvimento deveriam<br />
apresentar-se entre um número considerável de seres. Em virtude<br />
do grande número de esboços orgânicos, o aperfeiçoamento<br />
sucessivo <strong>da</strong> organização seguindo um certo número de<br />
séries típicas, paralelas ou mais ou menos divergentes, <strong>na</strong><strong>da</strong> há<br />
de surpreendente no princípio vital repousando em estado latente<br />
em ca<strong>da</strong> germe.<br />
As leis gerais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> seriam em primeiro lugar fixa<strong>da</strong>s, nesta<br />
hipótese discutível, segundo as condições físicas peculiares ao<br />
nosso planeta, ao mesmo passo que começasse a divergência<br />
dos tipos necessariamente a<strong>da</strong>ptados à diversi<strong>da</strong>de pouco profun<strong>da</strong><br />
dessas condições. À medi<strong>da</strong> que as raças se houvessem<br />
fixado e aperfeiçoado, teriam diminuído de número, ao mesmo
tempo em que ca<strong>da</strong> qual visse diminuir seus representantes. A<br />
posteri<strong>da</strong>de crescente de um certo número de cepas primitivas<br />
deveria, sucessivamente, tomar o lugar <strong>da</strong>s raças que sucumbiam<br />
<strong>na</strong> luta universal, por efeito de inferiori<strong>da</strong>de orgânica relativa.<br />
44 Grandes homens contemporâneos não compartilham destas<br />
idéias e consideram a Humani<strong>da</strong>de como uma raça degenera<strong>da</strong>.<br />
Permitimo-nos citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin,<br />
com quem conversamos ao iniciar esta obra (1865), sustentava<br />
essa opinião e o Sr. de Lamartine, a quem propuséramos<br />
a mesma questão quando corrigíamos estas provas (1867),<br />
encara as raças aria<strong>na</strong>s como tendo sido superiores à socie<strong>da</strong>de<br />
atual. O problema ain<strong>da</strong> está longe de solução, mas a ver<strong>da</strong>de é<br />
que nem por isso a característica do homem deixa de consistir<br />
<strong>na</strong> sua inteligência progressiva.<br />
45 “Preciso confessar – dizia Voltaire com muita franqueza (Dic.<br />
Philosophique art. Am) – que, quando examinei o Infalível<br />
Arístoto, o doutor evangélico, o divino Platão, concluí não<br />
passarem tais epítetos de meros apelidos. Não vi em todos esses<br />
filósofos que trataram <strong>da</strong> alma, mais que cegos cheios de<br />
temeri<strong>da</strong>de, e hábeis no esforço de persuadir que tinham vistas<br />
aquili<strong>na</strong>s. E outros curiosos e loucos, que acreditam de oitiva,<br />
e também pensam que vêem alguma coisa.<br />
46 Leçous sur I’Homme, 3º.<br />
47 Gratiolet – A<strong>na</strong>les des Sciences Natur, 3ª série, t. 14º pági<strong>na</strong><br />
186.<br />
48 Tiedemann – Das Hirn des Negers mit dem des Europaers und<br />
Ouran-Outang verglichen.<br />
49 Wagner – Procès-verbal de dissetion.<br />
50 Veja-se Vogt, Hoffmann, Tiedemann e Lauret. Schneider<br />
avalia-o em 3 libras; Pozzi em 3 libras e 8 onças; Sennert atribui-lhe<br />
4; Arlet 4 e 3 onças, Haller 4, Bartholin 4 a 5, Picolhuomini<br />
mais de 5. Lelut admite 1 quilo, 320 gramas para os<br />
cérebros comuns, de 20 a 25 anos, e Parchappe 1 quilo e 325<br />
gramas.
51 Preciso é, com efeito, reunir estes diferentes caracteres para<br />
poder estabelecer uma relação entre o cérebro e o Espírito.<br />
Não bastaria, para tanto, o peso real. “Afirmou-se outrora, diz<br />
Charles Vogt, que, de todos os animais, o homem era o que<br />
tinha o cérebro mais pesado. É uma ver<strong>da</strong>de, mas não absoluta,<br />
porquanto não tardou que os colossos inteligentes do reino<br />
animal, quais o elefante e os cetáceos, demonstrassem o exíguo<br />
valor dessa proposição. Disseram então que, não sendo o<br />
peso absoluto, seria, ao menos, o relativo. Em média, o peso<br />
do corpo humano está para o do cérebro <strong>na</strong> razão de 36:1, ao<br />
passo que nos mais inteligentes ele raramente passa de 100:1.<br />
Entretanto, se os gigantes contrariam a primeira proposição,<br />
temos que os anões afirmam a segun<strong>da</strong>. A chusma de peque<strong>na</strong>s<br />
aves canoras apresenta uma relação de peso muito mais favorável<br />
do que a cifra normal huma<strong>na</strong> e os pequenos macacos<br />
americanos oferecem um peso muito superior ao do rei <strong>da</strong> criação.”<br />
Vogt pensa, com razão, que, se o peso do cérebro pudesse<br />
ser comparado com qualquer outro fator numérico tomado<br />
do corpo humano, esse fator só poderia ser uma extensão,<br />
que, inteiramente sujeita à flutuação, seria, por isso mesmo,<br />
muito limitado. Melhor conviria, talvez, tomar o comprimento<br />
<strong>da</strong> colu<strong>na</strong> vertebral para termo de relação com o peso do cérebro.<br />
Homens que nos parecem estar no mesmo nível intelectual,<br />
podem, certamente, ter cérebros de peso desigual; homens<br />
notáveis podem apresentar pesos inferiores aos de craveira<br />
medíocre; mas isso não impede que haja uma relação aproximativa<br />
do peso com o grau <strong>da</strong> inteligência e que a determi<strong>na</strong>ção<br />
dessa relação seja um fator que se deva, de qualquer forma,<br />
desprezar.<br />
52 Von Bibra – Vergleichend Untersuchungen über <strong>da</strong>s Gehirn<br />
des Menschen und der Werbetihiere, 129.<br />
53 Uma onça equivale a 28 gramas e 35 centigramas.<br />
54 O doutor Boyd depois de haver pesado 2086 cérebros de<br />
homens e 1061 de mulheres, dá 1285 a 1363 gramas para os<br />
primeiros e 1127 a 1238 para os segundos.
55 Tiedemann – A<strong>na</strong>tomie und Bildungsgeschichte des Gehirns<br />
im Foetug des Menschen, etc., pági<strong>na</strong> 142. – Pour la mesure<br />
du crâne, V. Lelut – Physiologie de la Pensée, t. 2º, pági<strong>na</strong><br />
315.<br />
56 Moleschott, 2º, 151.<br />
57 Ob. cit. pági<strong>na</strong> 194.<br />
58 Büchner – Ob. cit., pági<strong>na</strong> 126.<br />
59 Em que pesem algumas experiências interessantes, a eletrici<strong>da</strong>de<br />
animal não é um fato averiguado. Na<strong>da</strong> prova que os efeitos<br />
observados não tenham por causa um outro agente. Os eletróforos<br />
ain<strong>da</strong> não puderam constatar <strong>na</strong> tremelga, <strong>na</strong> enguia,<br />
etc., nenhum vestígio de tensão de polari<strong>da</strong>de de atração.<br />
Humphry-Davy não pôde reconhecer nenhum desvio <strong>da</strong> agulha<br />
imanta<strong>da</strong>, nem a menor decomposição <strong>da</strong> água pelas tremelgas,<br />
ou peixes outros. Não há, portanto, que precipitar conclusões<br />
e apregoar com tanta ênfase a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de<br />
com a vi<strong>da</strong> e, sobretudo, com o pensamento.<br />
60 Lendo as Leçons sur i’Homme de Karl Vogt, não duvi<strong>da</strong>mos,<br />
mercê dos eloqüentes exemplos evidenciados, que essas lições<br />
eram professa<strong>da</strong>s contra o Espírito. Mas, apesar disso, em muitos<br />
pontos dignos de atendo, elas demonstraram que a ação espiritual<br />
por sua ativi<strong>da</strong>de, progresso, atuação permanente, influi<br />
de modo considerável no volume, forma e peso do cérebro.<br />
61 Karl Vogt – Physiolosgische Briefe für Gebiidete aller Ständ,<br />
206.<br />
62 Büchner – Kraft un Stoff.<br />
63 Spencer – First Principles, 282.<br />
64 La Psychologie Morbide.<br />
65 De l’Irritation et de la Folie, pági<strong>na</strong> 153.<br />
66 Idem, pági<strong>na</strong> 171.<br />
67 Idem, Prefácio, 19º.<br />
68 Reponse aux Critiques, pági<strong>na</strong> 30.<br />
69 De l’Irritation, etc., pági<strong>na</strong> 122.
70 Broussais – De l’Irritation et de la Folie, pági<strong>na</strong> 214.<br />
71 Reponme aux Critiques, pági<strong>na</strong> 17.<br />
72 Jac Moleschott – La Cireulation de la Via, t. 1º, pági<strong>na</strong>s 169,<br />
170 e 172.<br />
73 Moleschott, 2º, 149.<br />
74 Büchner – Força e Matéria.<br />
75 De l’Existence de l’Ame, pági<strong>na</strong> 112.<br />
76 De la Sciencie et de la Nature, pági<strong>na</strong> 63.<br />
77 Briefwchsel Ziwischen Goethe und Zelter, 1º, 113.<br />
78 Cireulation de la Vie, 2º, 69.<br />
79 Force et Matière, capítulo 5º.<br />
80 Diction<strong>na</strong>ire des Sciences Médicales.<br />
81 Taine – Philosophes Français.<br />
82 V. Flammarion – Les Heros du Travail, discurso I<strong>na</strong>ugural <strong>da</strong><br />
Associação Politécnica do Alto Marne, (1866) e conferência<br />
pronuncia<strong>da</strong> no Asilo Imperial de Vincenes Compreende-se<br />
que não possamos aqui chamar a atenção para esses fatos importantes<br />
e antepô-los simplesmente às fantasias materialistas.<br />
83 Este relato é parcialmente extraído de Self-help, edição de A.<br />
Talandier. Outros muitos tipos poderíamos apresentar como<br />
expoentes <strong>da</strong> independência e poder <strong>da</strong> vontade. Alongamonos<br />
sobre a vi<strong>da</strong> de Palissy, por ser um exemplo dos mais eloqüentes<br />
que contradizem a teoria adversa.<br />
84 A acolhi<strong>da</strong> que teve a descoberta <strong>da</strong> vaci<strong>na</strong> é um atestado<br />
típico dos obstáculos geralmente antepostos a qualquer idéia<br />
nova, de feição a desanimar inventores e sábios. Não faltou,<br />
diz Smiles, quem lhe caricaturasse a descoberta apresentando-a<br />
como suscetível de bestializar o próximo, com o introduzir no<br />
organismo matéria putreci<strong>da</strong>, retira<strong>da</strong> <strong>da</strong>s tetas de vacas doentes.<br />
Do alto <strong>da</strong>s cátedras, foi a vaci<strong>na</strong> denuncia<strong>da</strong> como coisa<br />
“diabólica”. Chegaram a afirmar que as crianças vaci<strong>na</strong><strong>da</strong>s<br />
cresciam com “cara de boi” e que <strong>na</strong> testa lhes sobrevinham
tumores, que “indicavam o lugar dos chifres e que a voz se alterava<br />
com mugidos de touro”.<br />
85 Systéme de la Nature, parte 1ª, capítulo 1º, pági<strong>na</strong> 223.<br />
86 É claro que sem liber<strong>da</strong>de não há moral nem virtude. Depois<br />
de falar em “forças sobera<strong>na</strong>s”, “leis indestrutíveis que constrangem”,<br />
o Sr. Taine acrescenta: Quem se revoltará contra a<br />
geometria, máxime, contra uma geometria viva?<br />
Noutro lanço, pergunta, a propósito de um trecho de Byron<br />
sobre os amores de Haydéa, como se pode deixar de reconhecer<br />
a divin<strong>da</strong>de, não ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> consciência e no ato, mas no<br />
próprio gozo? Quem há que tenha lido os amores de Haydéa –<br />
exclama ele – e experimentasse outro pensamento, que não o<br />
de invejá-la e deplorá-la? Quem pode, à face <strong>da</strong>s magnificências<br />
<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> que os acolhe e lhes sorri, imagi<strong>na</strong>r por eles<br />
outra coisa além <strong>da</strong> sensação que os une!”<br />
Bayle admite, por outro lado, que vícios e virtudes têm em nós<br />
a mesma origem – a força <strong>da</strong>s paixões. A esse conceito, adita o<br />
casta est quam nemo rogavit, etc. A mulher mais virtuosa é<br />
deti<strong>da</strong>, antes pela má reputação, do que pelo fruto proibido. –<br />
Nós nos ufa<strong>na</strong>mos de pensar que a virtude é mais sóli<strong>da</strong> do que<br />
estas teorias.<br />
87 Essai Phylosophique sur la Nature Morale et Intellectuelle de<br />
l’Homme.<br />
88 Discurso en the Study Natural Philosophy, by J. F. W. Her-<br />
schel.<br />
89<br />
Force et Matière, ch. V. Dignité de la Matière.<br />
90<br />
Dictio<strong>na</strong>ire de Nysten, article Volonté.<br />
91<br />
Moleschott – Circulation de la Vie, t. 2º, pági<strong>na</strong> 57.<br />
92<br />
A propósito desta apologia dos alimentos fosforados, perguntaremos<br />
a esses entusiastas se imagi<strong>na</strong>m que os pescadores <strong>da</strong><br />
Picardia e <strong>da</strong> Bretanha, que comem muito pescado, se destacam<br />
por uma inteligência excepcio<strong>na</strong>l.<br />
93<br />
Moleschott – Loc. cit. conclus. t. 2º, pági<strong>na</strong> 225.
94 Moleschott ain<strong>da</strong> não se penitenciou do seu erro e continua<br />
sustentando as mesmas opiniões de 1852. Bom seria que imitasse,<br />
até o fim, o exemplo de Cabanis. Depois dos exemplos<br />
que acabamos de citar, concebe-se que um observador de boa<br />
fé proponha, em princípio geral, o seguinte conceito: – “Em<br />
to<strong>da</strong> a série animal vemos funções múltiplas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cerebral<br />
em correspondência com as fases de crescimento e decrescimento<br />
do órgão; vemos a sensibili<strong>da</strong>de, o “julgamento”, a<br />
“consciência”, a coragem e o amor mu<strong>da</strong>rem com o regime<br />
alimentar e com o estado de saúde”. Curso de 1865 <strong>na</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />
de Zurich.<br />
95 A Filosofia não se deixa domi<strong>na</strong>r por esses mistérios. O vitae<br />
philosophia dux – exclamava Cícero. (Tese quaest). O virtutis<br />
in<strong>da</strong>gatrix espultrixque vitiorun. (Tu urbe. peperisti; tu Inventrix<br />
legum, tu magistra morum et discipline fuisti: “ad te confugimus,<br />
a te opem pertimus”.)<br />
96 Ver Bibliographie Catholique, Mars 1866, pági<strong>na</strong> 225.<br />
97 Spectacle de la Nature.<br />
98 Diction<strong>na</strong>ire Fhilosophique.<br />
99 Die Burgeliche Geseltschaft.<br />
100 Mélanges Scientifiques et Litteraires.<br />
101 Mundos Reais e Mundos Imaginários parte 2ª, capítulo 5º.<br />
102 Já registramos que esta crítica é velha quanto o mundo. Diz<br />
Lucrécio: (parte 5ª) “como é que as vagas dos elementos criadores<br />
fun<strong>da</strong>ram o céu, a Terra, cavaram o fundo oceano e dirigiram<br />
o curso do Sol e dos astros? Repito: este conjunto não<br />
pode ser obra de inteligência; os elementos do Universo não<br />
poderiam ter meditado a ordem que a eles preside, não combi<strong>na</strong>ram<br />
de antemão o surto e o movimento que deveriam sustentar<br />
mutuamente a ver<strong>da</strong>de, porém, é que, infinitos em número,<br />
esses elementos sacudidos em to<strong>da</strong>s as direções, submetidos de<br />
to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de a choques estranhos levados pelo próprio peso,<br />
atraídos, reunidos em todos os sentidos, tentaram, tomaram,<br />
abando<strong>na</strong>ram e retomaram to<strong>da</strong>s as combi<strong>na</strong>ções e, à custa.<br />
de movimentos conjuntivos, coorde<strong>na</strong>ndo-se, engendraram
essas grandes massas, que se tor<strong>na</strong>ram mais ou menos no primitivo<br />
esboço <strong>da</strong> Terra, do céu, dos mares e <strong>da</strong>s espécies anima<strong>da</strong>s.”<br />
103 Büchner – Força e Matéria, capítulo 11º.<br />
104 Idem, idem.<br />
105 Du Spiritualisme et de la Nature.<br />
106 Lettre à une Princesse d’Aliemagne, 41º.<br />
107 On the origin of species by means of <strong>na</strong>tural seleotion.<br />
108 Principes de Philosophie Zoologique.<br />
109 Voltaire não podia sopitar a sua admiração diante dos negadores<br />
de uma causali<strong>da</strong>de geral. Em Filosofia, diz ele (Diccio<strong>na</strong>ire<br />
Fhilosophique, Dieu). confesso que Lucrécio me parece<br />
muito inferior a um porteiro de colégio. Afirmou que olho, ouvido,<br />
estômago, não foram feitos para ver, ouvir e digerir; não<br />
é o maior dos absurdos, a mais revoltante <strong>da</strong>s loucuras do espírito<br />
humano? Por muito céptico que sou, essa loucura me parece<br />
evidente e não vacilo em apontá-la.<br />
110 Não podemos, a propósito, deixar de assi<strong>na</strong>lar a confissão de<br />
um <strong>na</strong>vegador ao coman<strong>da</strong>nte Maury: – “Vossas descobertas –<br />
diz ele – não nos ensi<strong>na</strong>m ape<strong>na</strong>s a seguir as rotas marítimas<br />
mais diretas e mais seguras, como também a conhecer as melhores<br />
manifestações <strong>da</strong> sabedoria e bon<strong>da</strong>de divi<strong>na</strong>s, que nos<br />
rodeiam constantemente. Há muito comando um <strong>na</strong>vio e jamais<br />
fui insensível aos espetáculos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Contudo, confesso<br />
que, antes de ler vossos trabalhos, atravessava o oceano<br />
como um cego. Não via, não concebia a magnífica harmonia<br />
<strong>da</strong>s obras <strong>da</strong>quele a quem tão justamente denomi<strong>na</strong>is – o grande<br />
Pensamento primário. Sinto, muito acima <strong>da</strong> satisfação e<br />
dos benefícios devidos aos vossos trabalhos, que eles fizeram<br />
de mim um homem melhor. Ensi<strong>na</strong>stes-me a ver por to<strong>da</strong> parte,<br />
em torno de mim, e a reconhecer a Providência em todos os<br />
elementos que me rodeiam.” (Geographie Physique)<br />
Ajuntaremos, com dois outros oficiais de marinha, os Senhores<br />
Zurcher e Margollé, que o estudo <strong>da</strong>s obras de Maury exalça a<br />
sua elevação de vistas, a sua fé religiosa, para aproximá-lo dos
gênios que, como Cersted, Herschel, Geoffroy Saint Hilaire,<br />
Ampère, Goethe, nos revelam a suprema sabedoria, com o<br />
desvelarem a magnificência <strong>da</strong>s obras divi<strong>na</strong>s. Herschel dizia:<br />
Quanto mais se alarga o campo <strong>da</strong> ciência, mais numerosas e<br />
irrecusáveis se tor<strong>na</strong>m as demonstrações de uma vi<strong>da</strong> eter<strong>na</strong>,<br />
de uma inteligência criadora e onipotente. Geólogos, matemáticos,<br />
astrônomos, <strong>na</strong>turalistas, todos carrearam a sua pedra<br />
para o grande templo <strong>da</strong> ciência, erguido ao mesmo <strong>Deus</strong>.”<br />
111 Force et Matiêre, capítulo 6º.<br />
112 Telliamed ou Entretien d’un Philosophe Indien avec un<br />
Missio<strong>na</strong>ire Français, 1748.<br />
113 Temos numerosos documentos comprobatórios <strong>da</strong> inteligência<br />
dos animais. Aqui, porém, não nos podemos alongar no assunto.<br />
Ao exemplo precedente, acrescentemos que a <strong>da</strong>r crédito a<br />
uns tantos barqueiros ingleses, chamados “panters”, os patos<br />
selvagens fazem reuniões parlamentares e votam. Estes, como<br />
todos os animais, têm expressões próprias para traduzir alegria,<br />
dor, fome, amor, medo, ciúme, etc. Esses termos variam, conforme<br />
as espécies. Antes <strong>da</strong> revoa<strong>da</strong> mati<strong>na</strong>l, uma discussão<br />
muito viva se empenha durante dez a vinte minutos, e só depois<br />
de assente uma resolução é que se opera a deban<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />
Conta-se, também, que uma ave, tomba<strong>da</strong> num choque, apelou<br />
a seu modo para uma outra, que, procurando aleitá-la, ficou a<br />
seu lado por uma hora mais ou menos, até que a outra morresse.<br />
Segundo E. W. Gruner, os gansos têm inflexões e to<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des<br />
vocais muito varia<strong>da</strong>s. O cão alegre late de modo mui diverso<br />
de quando está raivoso. A linguagem mímica e sônica<br />
dos insetos (abelhas, formigas, escaravelhos, etc.), por meio<br />
<strong>da</strong>s ante<strong>na</strong>s e movimentos de asas, é, como sabemos, muito<br />
rica e varia<strong>da</strong>. Não iremos ao extremo de os traduzir em francês<br />
com Dupont de Nemours, mas a ver<strong>da</strong>de é que se não pode<br />
negar que os animais se permutem as suas impressões. Eles<br />
têm mesmo, sobre nós, o privilégio de compreender nossas palavras,<br />
ao passo que nós não compreendemos as suas. Mais:<br />
compreendem-se em qualquer latitude, ao passo que um francês<br />
não compreende um alemão, nem um chinês.
114 Contribuitions to the Natural History of the United States of<br />
North America volume 1 – 1ª parte.<br />
115 Mélanges Scientifiques et Litteraires, t. 2º.<br />
116 J. M. de la Codre – Les Dessems de Dieu. Este ensaio de<br />
filosofia religiosa e prática caracteriza uma <strong>da</strong>s felizes tendências<br />
contemporâneas contra a invasão do ateísmo. Os argumentos,<br />
aí desenvolvidos, resumem-se no seguinte: Não existe<br />
o impossível; no Universo há ordem e a ordem só pode ema<strong>na</strong>r<br />
de uma inteligência. O Universo é, portanto, obra de uma inteligência.<br />
Essa ordem resulta <strong>da</strong> execução de uma lei, ou do<br />
concerto de várias leis, e as leis são sempre, e necessariamente,<br />
obra de uma vontade inteligente. O autor do Universo, <strong>Deus</strong>,<br />
sendo uma Inteligência, teve indubitavelmente um fim, criando<br />
o Universo. Esse fim seria fazer-nos felizes, como no-lo atestam<br />
as nossas aspirações e facul<strong>da</strong>des, no que possuem de<br />
mais elevado. Todos os seres dotados de sensibili<strong>da</strong>de são, por<br />
conseguinte, convocados à felici<strong>da</strong>de. E nós vemos, de fato,<br />
que eles são até certo ponto felizes, por isso que todos vivem e<br />
amam a vi<strong>da</strong>, assegurando-a e defendendo-a até os limites extremos.<br />
A felici<strong>da</strong>de, porém, não é igual para todos os seres:<br />
Há, nota<strong>da</strong>mente, uma diferença marcante entre a felici<strong>da</strong>de<br />
dos animais e a presumi<strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>. Aquela se adstringe<br />
a estreitos limites, é uma felici<strong>da</strong>de simplesmente “<strong>da</strong><strong>da</strong>”,<br />
enquanto que esta toma vastas proporções e reveste outro<br />
caráter; é uma felici<strong>da</strong>de mereci<strong>da</strong>”.<br />
Compreender-se-á facilmente esta distinção – diz o Autor –<br />
observando os fatos e comparando os raros e incompletos prazeres<br />
de que compartilham os seres puramente sensitivos, com<br />
os gozos serenos, infinitos, que a alma huma<strong>na</strong> encontra no<br />
cumprimento do dever, <strong>na</strong> pie<strong>da</strong>de, nos doces afetos <strong>da</strong> família.<br />
A mor parte dos sofrimentos nos sobrevêm quando, por<br />
ignorância ou rebeldia, contravimos às leis do criador.<br />
Da perpetui<strong>da</strong>de dessa aspiração a uma felici<strong>da</strong>de completa e<br />
indefini<strong>da</strong>, e <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de de aperfeiçoamento moral, bem como<br />
de conhecimento progressivo; – uma vez que essa felici<strong>da</strong>-
de não pode existir <strong>na</strong> Terra – devemos concluir que o homem<br />
não perecerá neste mundo com o seu invólucro corporal. A esta<br />
hermenêutica podemos ajuntar o seguinte, que o autor nos<br />
expôs em carta particular:<br />
“A <strong>Natureza</strong> é ao mesmo tempo o laboratório e o operário de<br />
<strong>Deus</strong>, assim como a ofici<strong>na</strong> provi<strong>da</strong> de um preparador é o laboratório<br />
do físico ou do químico. Tanto mais superiores são<br />
os produtos brotados <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, em relação aos de nossas<br />
ofici<strong>na</strong>s, quanto mais exaltam e atestam o poder e a inteligência<br />
divinos, em relação aos de nossos sábios. Estes, com os<br />
materiais que lhes oferece a <strong>Natureza</strong>, não conseguem fazer o<br />
que faz “o operário de <strong>Deus</strong>” sob a sua direção.<br />
D:H::N:O<br />
“<strong>Deus</strong> está para o homem como os produtos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> estão<br />
para os <strong>da</strong> ofici<strong>na</strong>.”<br />
D:N::H:B<br />
<strong>Deus</strong> “atua” sobre a <strong>Natureza</strong> como a vontade do homem,<br />
guia<strong>da</strong> pela sua inteligência, “atua” sobre os seus olhos e braços.<br />
Num capítulo de Os Desígnios de <strong>Deus</strong>, consagrado à Plurali<strong>da</strong>de<br />
dos Mundos habitados, o Autor contradita a nossa opinião<br />
sobre a varie<strong>da</strong>de dos organismos no Universo e a idéia de<br />
uma semelhança entre to<strong>da</strong>s as humani<strong>da</strong>des. Baseia-se ele no<br />
seguinte raciocínio: se os habitantes doutros mundos não têm a<br />
forma terrestre e se estamos desti<strong>na</strong>dos a viver também nesses<br />
mundos, não poderemos lá reconhecer os amigos caros... A<br />
objeção é mais sentimental que científica e não cabe discuti-la<br />
aqui. Podemos, <strong>na</strong><strong>da</strong> obstante, repetir que, em virtude <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de<br />
de ação <strong>da</strong>s forças <strong>na</strong>turais, noutros planetas, é quase<br />
certo que a série zoológica lá se tenha construído sobre um tipo<br />
análogo ao <strong>da</strong> série terrestre.<br />
117 Bellarmin – Ascencio mentis in Deum per scalas rerum<br />
creatarum.<br />
118 On the Study of the Natural Fhilosophy.
119 Neste lanço o Autor não é justo. O nosso catolicismo de hoje<br />
(estamos em 1939 e este livro é de 1867) principalmente aqui,<br />
no Brasil, continua a abençoar espa<strong>da</strong>s e abençoar ou amaldiçoar<br />
governos e revoluções. Oportunista e mimetista, sempre,<br />
não há partido que lhe não quadre ao seu deus, exceto, claro,<br />
os que acreditam em <strong>Deus</strong> e lhe dispensam os cânones. (N. T.)<br />
120 Entretiens de Goethe et d’Eckemann, 1º, 8.<br />
121 V. Clén. Alex. Strom. V. – Eusèbe. Proep. Evang. 13º.<br />
122 Theodor – De Affect. Curat, 3º.<br />
123 Fragments de Philosophie Ancienne.<br />
124 Princ. Conn. Hum.<br />
125 Reverendo John Hunt – An Essai on Pantheism, 1866.<br />
126 Proudhon – Système des Contradictions Economiques, ou<br />
Philosophie de la Misère.