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Deus na Natureza - Grupo da Paz - Centro Espírita

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Camille Flammarion<br />

<strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong><br />

Traduzido do Francês<br />

Dieu <strong>da</strong>ns la <strong>na</strong>ture<br />

1866<br />

William Turner<br />

Arco Íris<br />

█<br />

Conteúdo resumido<br />

Esta é uma <strong>da</strong>s mais significativas obras clássicas do Espiritismo<br />

e, sem dúvi<strong>da</strong>, a obra-prima de Camille Flammarion.<br />

O autor apóia-se em princípios <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza para demonstrar a<br />

existência de <strong>Deus</strong>. Entre os assuntos magnos, tratados com alta<br />

visão, contam-se: ateísmo, força e matéria, idéia i<strong>na</strong>ta e <strong>Deus</strong>,<br />

instinto e inteligência, leis do Universo e origem dos seres. São<br />

estudos que transmitem conhecimentos basilares aos espíritas.


Revelando profundo conhecimento científico, Flammarion<br />

utiliza, <strong>na</strong> presente obra, os próprios argumentos científicos dos<br />

materialistas (sobre Biologia, Fisiologia, Antropologia, Botânica,<br />

etc.), para demonstrar a existência do Ser Soberano, criador e<br />

sustentador do Universo. Por esse motivo, a obra poderia, perfeitamente,<br />

ser também denomi<strong>na</strong><strong>da</strong> “<strong>Deus</strong> <strong>na</strong> Ciência”.<br />

Sumário<br />

Introdução ................................................................................. 3<br />

Primeira Parte – A Força e a Matéria .................................... 13<br />

1 - Posição do Problema ......................................................... 13<br />

2 - O Céu ................................................................................ 36<br />

3 - A Terra .............................................................................. 49<br />

Segun<strong>da</strong> Parte – A Vi<strong>da</strong> .......................................................... 65<br />

1 - Circulação <strong>da</strong> Matéria ........................................................ 65<br />

2 - A Origem dos Seres ..........................................................111<br />

Terceira Parte – A Alma ........................................................155<br />

1 - O Cérebro .........................................................................155<br />

2 - A Perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de Huma<strong>na</strong> ..................................................180<br />

3 - A Vontade do Homem ......................................................201<br />

Quarta Parte – Destino dos Seres e <strong>da</strong>s Coisas ......................244<br />

1 - Plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> - Construção dos Seres Vivos ..............244<br />

2 - Plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> - Instinto e Inteligência ........................281<br />

Quinta Parte – <strong>Deus</strong> ...............................................................305


Introdução<br />

Desti<strong>na</strong>-se esta obra a representar o estado atual dos nossos<br />

conhecimentos precisos, sobre a <strong>Natureza</strong> e o homem.<br />

A exposição dos últimos resultados a que atingiu a inteligência<br />

huma<strong>na</strong> no estudo <strong>da</strong> Criação é, ao nosso ver, a ver<strong>da</strong>deira<br />

base sobre a qual se há de fun<strong>da</strong>r doravante to<strong>da</strong> a convicção<br />

filosófica e religiosa. Em nome <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> razão, tão soli<strong>da</strong>mente<br />

justifica<strong>da</strong>s pelo progresso contemporâneo e por força dos inelutáveis<br />

princípios constituintes <strong>da</strong> lógica e do método, pareceunos<br />

que só através <strong>da</strong>s ciências positivas deveremos prosseguir<br />

<strong>na</strong> pesquisa <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

Se temos, de fato, a ambição de chegar pessoalmente à solução<br />

do maior dos problemas; se estamos sôfregos de atingir, por<br />

nós mesmos, uma crença <strong>na</strong> qual encontremos repouso e pábulo<br />

de vi<strong>da</strong>; se nos anima, ao demais, o legítimo desejo de transmitir<br />

ao próximo a consolação que já encontramos; – não temamos<br />

nunca afirmá-lo ser <strong>na</strong> ciência experimental que devemos procurar<br />

os elementos de cognição, só com ela devendo marchar.<br />

O cepticismo e a dúvi<strong>da</strong> universal imperam no âmago de nossa<br />

alma e nosso olhar escrutador, que nenhuma ilusão fasci<strong>na</strong>,<br />

vigila <strong>na</strong> cripta dos nossos pensamentos. Não nos despraz que<br />

assim seja. Não lastimemos que <strong>Deus</strong> não nos houvesse tudo<br />

revelado ao criar-nos, <strong>da</strong>ndo-nos contudo o direito de discutir.<br />

Essa prerrogativa do nosso ser é ótima em si mesma, como<br />

condição maior de progresso. Mas, se o cepticismo nos atalaia<br />

vigilante, também a necessi<strong>da</strong>de de crença nos atrai.<br />

Podemos duvi<strong>da</strong>r, certo, sem por isso nos isentarmos do insaciável<br />

desejo de conhecer e saber. Uma crença tor<strong>na</strong>-se-nos<br />

imprescindível. Os espíritos que se vangloriam de não a possuírem<br />

são os mais ameaçados de cair <strong>na</strong> superstição ou de anularse<br />

<strong>na</strong> indiferença.<br />

O homem tem, por <strong>na</strong>tureza, uma necessi<strong>da</strong>de tão imperiosa<br />

de firmar-se numa convicção –, particularmente quanto à existência<br />

de um coorde<strong>na</strong>dor do mundo e <strong>da</strong> desti<strong>na</strong>ção dos seres –<br />

que, quando não encontra uma fé satisfatória, experimenta a


necessi<strong>da</strong>de de se demonstrar a si mesmo que esse <strong>Deus</strong> não<br />

existe e busca, então, repousar o espírito no ateísmo e no niilismo.<br />

Diga-se, também, já não ser a questão que ora nos apaixo<strong>na</strong>, a<br />

de sabermos qual a forma do Criador, o caráter <strong>da</strong> mediação, a<br />

influência <strong>da</strong> graça, nem discutir, tampouco, o valor de argumentos<br />

teológicos. A ver<strong>da</strong>deira questão é saber se <strong>Deus</strong> existe ou<br />

não.<br />

Note-se que, em geral, a negativa é patroci<strong>na</strong><strong>da</strong> pelos experimentalistas<br />

<strong>da</strong> ciência positiva, enquanto a afirmativa se ampara<br />

nos indivíduos estranhos ao movimento científico.<br />

Qualquer observador atento pode, ao presente, apreciar no<br />

mundo pensante duas tendências diametralmente opostas.<br />

De um lado, químicos ocupados em tratar e triturar, nos seus<br />

laboratórios, os fatos materiais <strong>da</strong> ciência moder<strong>na</strong>, por lhes<br />

extrair a essência e quinta-essência, a declararem que a presença<br />

de <strong>Deus</strong> jamais se manifesta em suas manipulações.<br />

Doutro lado, teólogos acocorados entre poeirentos manuscritos<br />

de bibliotecas góticas compulsando, folheando, interrogando,<br />

traduzindo, compilando, citando e recitando versículos dogmáticos,<br />

e declarando, com o anjo Rafael, que <strong>da</strong> pupila esquer<strong>da</strong> à<br />

pupila direita do Padre-Eterno medeiam trinta mil léguas de um<br />

milhão de varas, ca<strong>da</strong> qual equivalente a quatro e meia vezes o<br />

comprimento <strong>da</strong> mão.<br />

Queremos crer que de ambos os lados haja boa fé, que os segundos,<br />

como os primeiros, estejam animados do propósito de<br />

conhecer a ver<strong>da</strong>de. Pretendem os primeiros representar a Filosofia<br />

do século 20, enquanto os segundos guar<strong>da</strong>m, respeitosos, a<br />

do século 15. Os primeiros, passam por <strong>Deus</strong> sem O ver, como o<br />

aero<strong>na</strong>uta que sulca o espaço celeste, enquanto os segundos<br />

focalizam um prisma que retrai a imagem, colorindo-a.<br />

O observador imparcial e independente que procura explicarlhes<br />

suas tendências contrárias, admira-se de os ver obsti<strong>na</strong>dos<br />

no seu sistema particular e pergunta a si mesmo se será ver<strong>da</strong>deiramente<br />

impossível interrogar, de um modo direto, este vasto<br />

Universo e chegar a ver <strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.


Por nós, isentos de qualquer sectarismo, sentimo-nos à vontade<br />

em equacio<strong>na</strong>r o problema. Diante do panorama <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

terrestre; no âmbito <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> radiosa à luz do Sol, beirando<br />

mares bravios ou fontes múrmuras; entre paisagens de Outono ou<br />

florações de Abril; tanto quanto no silêncio <strong>da</strong>s noites estrela<strong>da</strong>s,<br />

temos procurado <strong>Deus</strong>. A <strong>Natureza</strong>, interpreta<strong>da</strong> com a Ciência,<br />

foi quem no-lo demonstrou num caráter particular. De fato, Ele<br />

está nela, visível, como a força íntima de to<strong>da</strong>s as coisas. Temos<br />

considerado <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> as relações harmônicas que constituem<br />

a beleza real do mundo e, <strong>na</strong> estética <strong>da</strong>s coisas, encontramos a<br />

manifestação gloriosa do pensamento supremo.<br />

Nenhuma poesia huma<strong>na</strong> se nos figurou comparável à ver<strong>da</strong>de<br />

<strong>na</strong>tural, e o Verbo eterno nos falou com mais eloqüência <strong>na</strong>s<br />

mais modestas obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, do que o pudera fazer o homem<br />

com seus cantos mais pomposos.<br />

Seja qual for a oportuni<strong>da</strong>de dos estudos que este trabalho objetiva,<br />

não esperamos agra<strong>da</strong>r a to<strong>da</strong> a gente, certo de haver<br />

muitos incapazes de acor<strong>da</strong>r do seu sono e outros tantos a quem<br />

longe estamos de lhes corresponder aos pendores.<br />

Acusa-se de indiferentismo a nossa época. A acusação é mereci<strong>da</strong>.<br />

Onde estão, com efeito, os corações palpitantes de puro<br />

amor à ver<strong>da</strong>de? Em que alma – perguntamos – ain<strong>da</strong> rei<strong>na</strong> a fé?<br />

Não diremos, já, a fé cristã, mas uma crença sincera, seja no que<br />

for. Aonde se vão os tempos em que as forças <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />

diviniza<strong>da</strong>s, recebiam home<strong>na</strong>gens universais?<br />

Tempos nos quais o homem, contemplativo e deslumbrado,<br />

sau<strong>da</strong>va com fervor a potência eter<strong>na</strong> e manifesta <strong>na</strong> Criação?<br />

Que é feito <strong>da</strong>queles tempos em que os homens eram capazes<br />

de derramar o sangue por um princípio, quando as repúblicas<br />

tinham à sua testa um ideal e não uma ambição?<br />

Quem se lembra dos tempos em que o gênio de um povo, esculpido<br />

em Notre Dame ou em São Pedro de Roma, ajoelhava-se<br />

e pedia, conchegado aos seus muros de pedra?<br />

Que é feito <strong>da</strong> virtude patriótica dos nossos antepassados<br />

abrindo as portas do Panteão para acolher as cinzas dos heróis do


pensamento, e relegando à noite do olvido a falsa glória <strong>da</strong><br />

ociosi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s almas?<br />

Não coremos de o confessar, já que temos a franqueza de suportar<br />

um tal aviltamento: saturados de egoísmo, nossa alma não<br />

alimenta outra ambição que a do interesse pessoal. Riqueza cuja<br />

origem permanece equívoca, louros surpreendidos, antes que<br />

conquistados, uma doce quietação, uma profun<strong>da</strong> indiferença<br />

pelos princípios, quem não verá nisso o nosso galardão?<br />

À parte, contudo, fora do mun<strong>da</strong>nismo empolgante e rumoroso,<br />

vivem os que não se conformam em baixar a fronte diante <strong>da</strong><br />

hipocrisia. Esses trabalham <strong>na</strong> solidão e esquadrinham em silenciosa<br />

meditação os abismos <strong>da</strong> Filosofia e, se se mantêm fortes, é<br />

porque não se atrofiam ao contacto <strong>da</strong>s sombras. Na ver<strong>da</strong>de, é<br />

um contraste penoso de assi<strong>na</strong>lar, quando vemos que o progresso<br />

magnífico, sem precedentes, <strong>da</strong>s ciências positivas, que a conquista<br />

sucessiva do homem sobre a <strong>Natureza</strong>, ao mesmo tempo<br />

em que tão alto nos elevaram a inteligência, deixaram resvalar o<br />

sentimento a níveis tão baixos. Doloroso sentir que, enquanto<br />

por um lado a inteligência mais demonstra a sua capaci<strong>da</strong>de,<br />

extingue-se por outro lado o sentimento, e a vi<strong>da</strong> íntima <strong>da</strong> alma<br />

mais se embota <strong>na</strong> gee<strong>na</strong> <strong>da</strong> carne.<br />

A causa <strong>da</strong> nossa decadência social (passageira, de vez que a<br />

História não pode mentir a si mesma) deve-se à nossa falta de fé.<br />

A primeira hora deste nosso século 1 marcou o derradeiro alento<br />

<strong>da</strong> religião de nossos pais. Baldos serão quaisquer esforços de<br />

restauração e reconstrução. Tudo o que se fizer não passará de<br />

simulacro, pois o que está morto não pode ressurgir. O sopro de<br />

uma revolução imensa passou sobre as nossas cabeças deitando<br />

por terra nossas velhas crenças, mas, entretanto, fecun<strong>da</strong>ndo um<br />

mundo novo.<br />

Estamos, ao presente, atravessando a fase crítica que precede<br />

a to<strong>da</strong> renovação. O mundo progride. É em vão que homens<br />

políticos e homens eclesiásticos imagi<strong>na</strong>m, ca<strong>da</strong> qual do seu<br />

lado, prosseguir <strong>na</strong> representação do passado, num proscênio em<br />

ruí<strong>na</strong>s. Impossível impedir que o progresso nos conduza a todos<br />

para uma fé superior, que ain<strong>da</strong> não possuímos, mas para a qual<br />

já caminhamos. E essa fé não será outra que a convicção científi-


ca <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>; numa escala<strong>da</strong> à ver<strong>da</strong>de pelo estudo<br />

<strong>da</strong> Criação.<br />

É preciso ser cego, ou ter interesse em iludir-se a si e aos outros<br />

(quantos neste caso se encontram!), para não ver e não<br />

ajuizar a nossa atuali<strong>da</strong>de pensante. Foi por ter a superstição<br />

matado o culto religioso, que nós o menosprezamos e abando<strong>na</strong>mos.<br />

E foi porque as características do ver<strong>da</strong>deiro se nos<br />

revelaram mais claramente, que a nossa alma aspira a um culto<br />

mais puro. E não foi senão por se haverem afirmado diante de<br />

nós os imperativos <strong>da</strong> justiça, que hoje reprovamos institutos<br />

bárbaros, tais como a guerra, que, ain<strong>da</strong> recentemente, recebia a<br />

home<strong>na</strong>gem dos homens. É, enfim, porque o pensamento rompeu<br />

os grilhões que o prendiam à gleba, que não mais admitimos, de<br />

boamente, quaisquer tentativas que nos aproximem de qualquer<br />

espécie de servilismo. Na<strong>da</strong> obstante, há em tudo, e sempre, um<br />

progresso. Na incerteza, porém, em que ain<strong>da</strong> permanecemos,<br />

entre as perturbações que nos agitam, a maior parte dos homens,<br />

ao perceberem que as suas impressões e tendências esbarram<br />

fatalmente <strong>na</strong> inércia do passado, ou se afastam silenciosos se<br />

lhes sobra força e coragem de o fazerem, ou se deixam arrastar<br />

<strong>na</strong> corrente geral, pela atração vigorosa <strong>da</strong> fortu<strong>na</strong>. É <strong>na</strong>s épocas<br />

críticas que as lutas se intensificam, intermitentes, sobre os<br />

eternos problemas cuja forma varia à feição dos tempos, a revestirem-se<br />

de um aspecto característico.<br />

Nesta nossa época de observação e experimentação, os materialistas<br />

procuram apoiar-se em trabalhos científicos e pretendem<br />

deduzir <strong>da</strong> ciência positiva o seu sistema.<br />

Os espiritualistas, em geral, acreditam, ao invés, poderem<br />

pairar acima <strong>da</strong> esfera experimental e assomar aos píncaros <strong>da</strong><br />

razão pura. Ao nosso ver, o espiritualismo para triunfar deve<br />

medir-se com o adversário no mesmo terreno e com as mesmas<br />

armas deste. Ele não perderá <strong>na</strong><strong>da</strong> do seu caráter, condescendendo<br />

em baixar à are<strong>na</strong>, e <strong>na</strong><strong>da</strong> terá a recear nessa justa com a<br />

ciência experimental.<br />

As lutas empenha<strong>da</strong>s e os erros a combater longe estão de se<br />

tor<strong>na</strong>rem perigosos para a causa <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Com o exigirem um


exame mais rigoroso <strong>da</strong>s questões versa<strong>da</strong>s, essas lutas nos<br />

ensejam a preparação de uma vitória mais completa.<br />

A Ciência não é materialista, nem pode servir ao erro. Como<br />

e por que, pois, haveriam de temê-la o espiritualismo e a ver<strong>da</strong>deira<br />

religião? Duas ver<strong>da</strong>des não se podem opor a uma terceira.<br />

Se <strong>Deus</strong> existe, sua existência não poderia ser suspeita<strong>da</strong> nem<br />

combati<strong>da</strong> pela Ciência.<br />

Para nós, temos a convicção íntima de que, muito pelo contrário,<br />

no estabelecimento de conhecimentos exatos sobre a<br />

construção do Universo, sobre a vi<strong>da</strong> e o pensamento, propiciase<br />

atualmente o único método eficiente ao aclaramento do problema.<br />

Só assim poderemos saber se devemos admitir a soberania<br />

<strong>da</strong> matéria universal ou se importa reconhecer uma inteligência<br />

organizadora, um plano e um destino imanentes.<br />

Tal, pelo menos, a forma por que o debate se nos apresenta e<br />

impõe à mente, neste nosso trabalho.<br />

Esperamos que esta tentativa de versar a existência de <strong>Deus</strong><br />

pelo método experimental aproveite ao progresso de nossa<br />

época, por estar de acordo com as suas tendências características.<br />

Ficaremos satisfeitos se a leitura deste livro deixar cair uma<br />

fagulha luminosa nos espíritos indecisos. Mais ain<strong>da</strong>, se depois<br />

de haver meditado fundo estes nossos estudos, alguma fronte se<br />

levantar cônscia de sua legítima digni<strong>da</strong>de.<br />

Se, regra geral, os ideólogos franceses não têm aplicado o<br />

método científico aos problemas <strong>da</strong> filosofia <strong>na</strong>tural, em compensação<br />

alguns sábios trataram o assunto do ponto de vista <strong>da</strong>s<br />

relações gerais manifesta<strong>da</strong>s no mundo e que lhe constituem a<br />

uni<strong>da</strong>de viva. Com prazer assi<strong>na</strong>lamos, entre as obras deste<br />

gênero, os diversos trabalhos do Sr. A. Langel, aqui mesmo<br />

utilizados várias vezes.<br />

Problemas <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e problemas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não conduzem<br />

eles, efetivamente, ao máximo problema? Exami<strong>na</strong>r as forças<br />

ativas no organismo universal não será o mesmo que exami<strong>na</strong>r as<br />

diversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>da</strong> força essencial e origi<strong>na</strong>l?<br />

As investigações que focalizam o estudo <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> podem<br />

aproveitar à Filosofia com maior segurança, às vezes, do que os


tratados ou os ditirambos especialmente consagrados à Metafísica.<br />

Os próprios escritos dos senhores Moleschott e Büchner nos<br />

ofereceram elementos de refutação.<br />

A circulação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, qual a expõe o primeiro, mostra <strong>na</strong> vi<strong>da</strong><br />

uma força independente e transmissível, dirigindo os átomos,<br />

mediante leis determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s e conforme o tipo <strong>da</strong>s espécies. O<br />

exame <strong>da</strong> Força e <strong>da</strong> Matéria estabelece, por outro lado, a soberania<br />

<strong>da</strong> Força e a inércia <strong>da</strong> Matéria.<br />

Sendo a Força e a extensão os primeiros princípios do conhecimento,<br />

e sendo a Filosofia a ciência dos princípios, poderia<br />

esta obra ser considera<strong>da</strong> antes como um estudo filosófico, se<br />

não houvéssemos resolvido limitar-nos a uma discussão puramente<br />

científica. Este, efetivamente, o seu fim precípuo e que,<br />

por bem dizer, oferece mais atrativos, mau grado à aridez aparente<br />

do trabalho.<br />

Pensamos que o único meio eficaz de combater o negativismo<br />

contemporâneo é voltar contra ele o materialismo científico e<br />

utilizar as suas próprias armas para derrotá-lo.<br />

Esse discrime compete antes à Ciência que à Filosofia.<br />

A Ideologia, a Metafísica, a Teologia, mesmo a Psicologia,<br />

dele se afastaram quanto possível.<br />

Nós não razoamos com palavras, mas com fatos.<br />

As ver<strong>da</strong>des significativas <strong>da</strong> Astronomia, <strong>da</strong> Física e <strong>da</strong><br />

Química, como <strong>da</strong> Fisiologia, são, de si mesmas, as defensoras<br />

intrépi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de essencial do mundo.<br />

Por mais difícil que à primeira vista pareça a refutação científica<br />

do Materialismo contemporâneo, nossa posição é belíssima,<br />

desde que nos colocamos no mesmo plano dos nossos adversários.<br />

E nesta guerra eminentemente pacífica, estamos, de antemão,<br />

seguros <strong>da</strong> vitória.<br />

Basta-nos, com efeito, de vez que o inimigo está em falsa posição,<br />

descobrir a fraqueza dessa posição e desequilibrá-lo.<br />

O método é simples e infalível, tão seguro que não o escondemos:<br />

deslocado o centro de gravi<strong>da</strong>de, sabe qualquer mecânico


que o individuo colhido de surpresa cai, imediatamente, a procurá-lo<br />

no solo. Eis o quadro que se nos vai deparar. Críticos houve<br />

que pretenderam ver em nosso método laivos de sorriso e um<br />

tanto de ironia.<br />

Não podemos ser juiz em causa própria, mas, ain<strong>da</strong> que a<br />

acusação tivesse fun<strong>da</strong>mento, não nos caberia culpa alguma e<br />

sim, e só, aos acontecimentos, nos quais o grotesco teria momentaneamente<br />

empa<strong>na</strong>do o sério, graças aos adversários tantas<br />

vezes arrastados às conseqüências mais curiosas.<br />

Referindo-nos à forma, devemos pedir ao leitor acredite, que,<br />

se por acaso tratarmos mais asperamente um que outro adversário,<br />

não é a nós que a falta deve ser imputa<strong>da</strong>, visto não utilizarmos<br />

esses recursos extremos senão nos casos (muito freqüentes<br />

talvez para eles) em que os adversários se obsti<strong>na</strong>m em não se<br />

deixarem vencer. Somos, então, bem a nosso pesar, levados a<br />

feri-los com uma tática mais rude, forçando-os a convir, pelos<br />

argumentos irresistíveis do mais forte, que são eles de fato os<br />

mais fracos nesta guerra de princípios.<br />

De resto, não há necessi<strong>da</strong>de de acrescentar que são sempre<br />

esses princípios que atacamos, e nunca a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de dos que<br />

os advogam. Assim, considerando-se a índole mesma <strong>da</strong> questão,<br />

exclusas ficam as pessoas do campo de batalha.<br />

Além disso, em consciência, não acreditamos pratiquem os<br />

adversários o materialismo absoluto – o dos seus interesses e <strong>da</strong>s<br />

paixões egoístas e, portanto, não temos outra intenção que discutir<br />

as suas teorias.<br />

Dividiremos nossa argumentação geral em cinco partes, no<br />

intuito de demonstrar em ca<strong>da</strong> uma a proposição diametralmente<br />

contrária à sustenta<strong>da</strong> pelos eminentes advogados do ateísmo.<br />

Assim, <strong>na</strong> primeira, li<strong>da</strong>remos por estabelecer, prelimi<strong>na</strong>rmente,<br />

pelo movimento dos astros e depois pela observação do<br />

mundo inorgânico terrestre, que a Força não é atributo <strong>da</strong> Matéria,<br />

mas, ao contrário, a sua sobera<strong>na</strong>, a sua causa diretora.<br />

Na segun<strong>da</strong> parte verificaremos, pelo estudo fisiológico dos<br />

seres, que a vi<strong>da</strong> não é proprie<strong>da</strong>de fortuita <strong>da</strong>s moléculas que a<br />

compõem e sim uma força especial a gover<strong>na</strong>r átomos, conforme


o tipo <strong>da</strong>s espécies. O estudo <strong>da</strong> origem e progressão <strong>da</strong>s espécies<br />

também aproveitará à nossa doutri<strong>na</strong>.<br />

Na terceira parte observaremos, exami<strong>na</strong>ndo as relações do<br />

pensamento com o cérebro, que há no homem algo mais que a<br />

matéria e que as facul<strong>da</strong>des intelectuais distinguem-se <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong>des<br />

químicas. A perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma afirmará o seu caráter<br />

e a sua independência.<br />

A quarta evidenciará <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> um plano, uma desti<strong>na</strong>ção<br />

geral e particular, um sistema de combi<strong>na</strong>ções inteligentes, no<br />

seio <strong>da</strong>s quais o olhar desprevenido não pode deixar de admirar,<br />

mediante sadia concepção <strong>da</strong>s causas fi<strong>na</strong>is, o poder, a sabedoria<br />

e a previdência que coorde<strong>na</strong>m o Universo.<br />

A quinta parte, enfim, como centro de convergência <strong>da</strong>s vias<br />

precedentes, nos colocará <strong>na</strong> posição científica mais favorável<br />

para julgar simultaneamente a misteriosa grandeza do Ente<br />

Supremo e a cegueira inconteste dos que fecham os olhos para se<br />

convencerem de que Ele não existe.<br />

O ver<strong>da</strong>deiro título desta obra deveria ser: – “A contemplação<br />

de <strong>Deus</strong> através <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>”.<br />

Há alguns anos que se anuncia, como estando no prelo, este<br />

trabalho e nós lhe temos modificado várias vezes o título, que, de<br />

início era puramente científico. (Da Força, no Universo.)<br />

Acabamos, fi<strong>na</strong>lmente, por nos fixarmos neste. Sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

um título não tem essencial importância para que o autor se<br />

explique tão formalmente a respeito. Mas, no caso vertente,<br />

julgamos útil declarar desde logo que todos quantos vissem <strong>na</strong>s<br />

quatro palavras <strong>da</strong> capa a expressão de uma doutri<strong>na</strong>, errariam<br />

completamente. Aqui não há panteísmo, nem dogma. Nosso<br />

objetivo é expor uma filosofia positiva <strong>da</strong>s ciências, que, em si<br />

mesma, comporta uma refutação não teológica do materialismo<br />

contemporâneo. É, talvez, imprudentíssima ousadia o tentar<br />

assim uma sen<strong>da</strong> isola<strong>da</strong>, entre os dois extremos, que sempre<br />

aliciaram poderosos sufrágios; mas, de vez que nos sentimos<br />

impelidos e sustentados por uma convicção particular, tanto<br />

quanto por ardente amor a um novo aspecto <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, podemos,<br />

porventura, resistir ao impulso interior que nos inspira?


Ao leitor compete exami<strong>na</strong>r a obra e decidir se alguma ilusão<br />

nos seduz e se nos oculta, sob o prestígio <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

Não podemos, to<strong>da</strong>via, eximir-nos de confessar que, desde<br />

que lemos em Augusto Comte que a Ciência aposentara o Pai <strong>da</strong><br />

<strong>Natureza</strong> e acabava de “reconduzir <strong>Deus</strong> às suas fronteiras,<br />

agradecendo os seus serviços provisórios” – sentimo-nos algo<br />

ofendidos com a vai<strong>da</strong>de do deus-Comte e nos deixamos empolgar<br />

pelo prazer de discutir o fundo científico de semelhante<br />

pretensão.<br />

Verificamos, então, que o ateísmo científico é um erro e que a<br />

ilusão religiosa é outro erro. (De passagem digamos, o Cristianismo<br />

nos parece ain<strong>da</strong> esotérico.) Nossos atuais conhecimentos<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> nos representaram a idéia de <strong>Deus</strong> sob um<br />

prisma cujo valor a teodicéia, como o ateísmo, não podem menosprezar.<br />

Aos nossos olhos, o homem que nega simplesmente a existência<br />

de <strong>Deus</strong> e o que definiu esse Desconhecido e lhe debita<br />

em conta a explicação embaraçante, são ambos criaturas ingênuas,<br />

equivalentes <strong>na</strong> erronia.<br />

Mas também não compete nos engajarmos aqui assim no método<br />

antinômico e, sobretudo, não queremos revestir-nos de<br />

aparências misteriosas.<br />

Entremos, portanto, sem mais detença no âmago do assunto,<br />

declarando que nos esforçamos por expla<strong>na</strong>r com a mais sincera<br />

independência o que acreditamos ser a ver<strong>da</strong>de.<br />

Possam estes estudos aju<strong>da</strong>r a escala<strong>da</strong> <strong>na</strong> trilha do conhecimento,<br />

a quantos tomam a sério a sua passagem pela Terra e o<br />

progresso <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de.<br />

Paris, Maio 1867.


Primeira Parte<br />

A Força e a Matéria<br />

1 - Posição do Problema<br />

SUMÁRIO – Papel <strong>da</strong> Ciência <strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de moder<strong>na</strong>. – Sua potência<br />

e grandeza. – Seus limites e tendências a ultrapassá-los. –<br />

As ciências não podem <strong>da</strong>r nenhuma definição de <strong>Deus</strong>. – Processo<br />

geral do ateísmo contemporâneo. – Objeções à existência divi<strong>na</strong>,<br />

inferi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> imutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis e <strong>da</strong> íntima união entre a<br />

força e a matéria. – Ilusão dos que afirmam ou negam. – Erros<br />

de raciocínio. – A questão geral resume-se em estabelecer as relações<br />

recíprocas <strong>da</strong> força e <strong>da</strong> substância.<br />

O século que vivemos está desde já inscrito com caracteres<br />

indeléveis <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s <strong>da</strong> História. A partir dos mais remotos<br />

tempos, <strong>da</strong>s velhas civilizações, nenhuma época viu, qual a<br />

nossa, esse magnífico despertar do espírito humano, para simultaneamente<br />

afirmar os seus direitos e a sua força. O mundo já<br />

não é o vale de lágrimas medieval, onde a alma vinha expiar a<br />

falta do primitivo pai e, confundindo-se no isolamento e <strong>na</strong><br />

oração, acreditava conquistar um lugar no paraíso, ciliciando o<br />

corpo e cobrindo-se de cinzas.<br />

Os frutos <strong>da</strong> inteligência já não atestam as longas, abstrusas e<br />

infindáveis discussões de estéril metafísica, construí<strong>da</strong>s de<br />

palitos e escora<strong>da</strong>s em sutilezas escolásticas, a que se entregaram<br />

cegamente poderosos gênios, consagrando-lhes uma preciosa<br />

vi<strong>da</strong> de estudos e despercebidos de assim perderem não ape<strong>na</strong>s o<br />

seu tempo, mas o de algumas gerações.<br />

Lá, onde em murados claustros se concentravam monges e<br />

oratórios, ouve-se agora o ruído <strong>da</strong>s máqui<strong>na</strong>s, o ranger <strong>da</strong>s<br />

engre<strong>na</strong>gens e o silvo do vapor <strong>da</strong>s caldeiras combustas.<br />

Se as instituições monásticas tiveram o seu papel no período<br />

<strong>da</strong>s invasões bárbaras, nem por isso deixou de soar a sua hora<br />

extrema, como sucede a to<strong>da</strong>s as coisas perecíveis: o trabalho


fecundo do operário e do agricultor substitui a decadência senil<br />

pela juvenili<strong>da</strong>de operosa e fecun<strong>da</strong>.<br />

No anfiteatro <strong>da</strong>s Sorbonnes, onde se discutiam exaustivamente<br />

os seis dias <strong>da</strong> Criação, as línguas de fogo <strong>da</strong> Pentecoste,<br />

o milagre de Josué, a passagem do Mar Vermelho, a forma <strong>da</strong><br />

graça atual, a consubstanciali<strong>da</strong>de, as indulgências parciais ou<br />

plenárias, etc., etc., e mil assuntos outros difíceis de profun<strong>da</strong>r,<br />

vemos hoje instalar-se o laboratório químico, no ambiente do<br />

qual a Matéria se faz docilmente pesar e mensurar; a mesa do<br />

a<strong>na</strong>tomista, sobre cujo mármore se desven<strong>da</strong>m o mecanismo<br />

orgânico e as funções vitais; o microscópio do botânico, que<br />

surpreende os primeiros, oscilantes passos <strong>da</strong> esfinge <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; o<br />

telescópio do astrônomo, que deixa entrever, para além dos céus<br />

transparentes, o movimento majestoso dos sóis gigantescos,<br />

regulados pelas mesmas leis que acio<strong>na</strong>m a que<strong>da</strong> de um fruto; a<br />

cátedra de ensi<strong>na</strong>mento experimental, à volta <strong>da</strong> qual as inteligências<br />

populares vêm grupar suas filas atentas.<br />

O próprio globo terrestre transformou-se. Circu<strong>na</strong>vegaramno,<br />

mediram-no, e já não haverá Carlos Magnos que preten<strong>da</strong>m<br />

enfeixá-lo <strong>na</strong> mão. O compasso do geômetra destituiu o cetro<br />

imperial.<br />

Oceanos e mares, em to<strong>da</strong>s as latitudes, fendem-se ao impulso<br />

<strong>da</strong>s quilhas leva<strong>da</strong>s por velas pan<strong>da</strong>s ou pela rotação <strong>da</strong>s<br />

hélices potentes e trepi<strong>da</strong>ntes.<br />

Também – dragão flamívomo – a locomotiva percorre célere<br />

os continentes e, graças ao telégrafo, podemos falar de um a<br />

outro hemisfério. O vapor deu vi<strong>da</strong> nova e inespera<strong>da</strong> a inúmeros<br />

motores; a eletrici<strong>da</strong>de nos permite auscultar, num momento e de<br />

conjunto, as pulsações <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de inteira.<br />

Certo, a Humani<strong>da</strong>de jamais conheceu fase como esta; jamais<br />

se repletou em seu seio, de tanta vi<strong>da</strong> e tanta força; jamais seu<br />

coração enviou, com tamanha pujança, a luz e o calor às mais<br />

longínquas artérias. Nem nunca o seu olhar se iluminou de um<br />

tal clarão. Por mais vastos que se deparem os progressos ain<strong>da</strong><br />

conquistáveis, nossos descendentes serão sempre forçados a<br />

reconhecer que a Ciência deve à nossa época o estribo do seu


Pégaso e que, embora engrandecendo-se e vendo o Sol ascender<br />

ao zênite, brilhante não lhes fora o dia se o não precedera a nossa<br />

aurora.<br />

Mas, o que à Ciência outorga força e poder, convém sabê-lo,<br />

é ter por base de estudo elementos determi<strong>na</strong>dos, que não abstrações<br />

e fantasmas. Assim é que, <strong>na</strong> Química, ela investe com o<br />

volume e peso dos corpos, exami<strong>na</strong>-lhes as combi<strong>na</strong>ções, determi<strong>na</strong>-lhes<br />

as relações; <strong>na</strong> Física, investiga-lhes as proprie<strong>da</strong>des,<br />

observa-lhes as relações e as leis que as regem; <strong>na</strong> Botânica,<br />

abor<strong>da</strong> o estudo <strong>da</strong>s primeiras condições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; <strong>na</strong> Zoologia,<br />

acompanha as formas existenciais e registra as funções orgânicas<br />

peculiares, os princípios <strong>da</strong> circulação <strong>da</strong> matéria nos seres<br />

vivos, sua manutenção e metamorfoses; <strong>na</strong> Antropologia, constata<br />

as leis fisiológicas em ativi<strong>da</strong>de no organismo humano e<br />

determi<strong>na</strong> o papel dos diversos aparelhos que o compõem; <strong>na</strong><br />

Astronomia, inscreve o movimento dos corpos celestes e <strong>da</strong>í<br />

deduz a noção de leis diretivas universais; e <strong>na</strong> Matemática,<br />

fi<strong>na</strong>lmente, formula essas leis e reconduz à uni<strong>da</strong>de as relações<br />

numéricas <strong>da</strong>s coisas.<br />

Essa exata determi<strong>na</strong>ção de objetivo dos seus estudos é que<br />

dá valor e autori<strong>da</strong>de à Ciência. Aí temos como e porque a<br />

Ciência se engrandece. Mas, esses títulos também lhe acarretam<br />

um imperioso dever. Se, deslembra<strong>da</strong> dessa condição de poderio<br />

ela se desvia desses objetivos fun<strong>da</strong>mentais para divagar no<br />

vácuo imaginário, perde simultaneamente o seu caráter e a sua<br />

razão de ser.<br />

E, desde então, os argumentos que pretende impor, nesses<br />

domínios exorbitantes do seu alcance e fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des, deixam de<br />

ter valor científico, e mais ain<strong>da</strong> do que isso, porque ela se<br />

desqualifica e já não pode reivindicar o nome de ciência. Tor<strong>na</strong>se,<br />

por assim dizer, em sobera<strong>na</strong> que acaba de abdicar e não é<br />

mais a ela que se ouve, mas aos sábios que peroram, o que nem<br />

sempre é a mesma coisa. E estes sábios, seja qual for o seu valor,<br />

já não serão mais intérpretes <strong>da</strong> Ciência, uma vez operando fora<br />

<strong>da</strong> sua esfera.<br />

Ora, esta é, precisamente, a situação dos defensores do Materialismo<br />

contemporâneo, aplicando a Astronomia, a Química, a


Física, a Fisiologia, a problemas que elas não podem resolver. E<br />

note-se que tais sábios não só constrangem essas ciências a<br />

responderem a problemas que lhes escapam à alça<strong>da</strong>, como ain<strong>da</strong><br />

as torturam, quais pobres servas, para que confessem a seu mau<br />

grado, e falsamente, proposições de que jamais cogitaram. São,<br />

assim, inquisidores do fato, e não <strong>da</strong> palavra. Mas, dessarte, não<br />

é a Ciência, é um simulacro de ciência que manejam.<br />

Nas seguintes controvérsias, demonstraremos que esses cientistas<br />

se encontram absolutamente fora <strong>da</strong> Ciência, que se enga<strong>na</strong>m<br />

e nos enga<strong>na</strong>m, que os seus raciocínios, deduções e conseqüências<br />

são ilegítimos e que no seu louco amor por essa virgi<strong>na</strong>l<br />

ciência eles a comprometem simplesmente e chegariam a lhe<br />

alie<strong>na</strong>r de todo a estima pública, se não houvesse o cui<strong>da</strong>do de<br />

mostrar que, ao invés <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, eles não possuem dela mais<br />

que uma ilusória sombra.<br />

A circunstância mais penosa e a razão predomi<strong>na</strong>nte que nos<br />

impelem a protestar contra as explorações de um falso rótulo<br />

radicam-se ao fato de estarmos vivendo um tempo em que se<br />

sente, ou pelo menos se pressente, universalmente, o papel e a<br />

fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Ciência. Compreende-se que fora dela é que não há<br />

salvação e que a Humani<strong>da</strong>de, tanto tempo balouça<strong>da</strong> no oceano<br />

do ignorantismo, só tem um porto a proejar – o <strong>da</strong> terra firme do<br />

saber. Também por isso, o espírito público se volta, convicto e<br />

esperançoso, para a Ciência. Tantas provas de seu poder e riqueza<br />

tem ele recebido, de um século a esta parte, que se predispôs a<br />

acatar-lhe, com simpatia e reconhecimento, todos os ensinos e<br />

teorias. Mas, nisso está, precisamente uma armadilha para o<br />

Espiritualismo. É que um certo número de cultores <strong>da</strong> Ciência,<br />

que a representam ou que se fazem dela intérpretes, ensi<strong>na</strong>m<br />

falsas e funestas doutri<strong>na</strong>s.<br />

Os espíritos sôfregos e despercebidos, que procuram em seus<br />

livros os conhecimentos de que necessitam, absorvem neles um<br />

tóxico pernicioso e suscetível de lhes destruir no âmago uma<br />

parte dos benefícios do saber.<br />

Eis porque se impõe sobrestar um tão deplorável arrastamento,<br />

aliás, tendente a universalizar-se.


Eis porque se tor<strong>na</strong> absolutamente indispensável discutir essas<br />

doutri<strong>na</strong>s e demonstrar que longe estão elas de entrosar <strong>na</strong><br />

Ciência, com tanto rigor e facili<strong>da</strong>de, quanto pregoam, mas, ao<br />

invés, que são o produto grosseiro de pensamentos sistemáticos,<br />

que, perpetuamente voltados sobre si mesmos, têm a ilusão de se<br />

crerem fecun<strong>da</strong>dos pela Ciência, embora do radioso sol que ela<br />

simboliza não hajam recebido mais que um tênue raio desviado<br />

de sua direção <strong>na</strong>tural.<br />

Há umas tantas questões profun<strong>da</strong>s que, no curso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> huma<strong>na</strong>,<br />

<strong>na</strong>s horas de silêncio e solitude, se nos apresentam como<br />

outros tantos pontos de interrogação, inquietantes e misteriosos.<br />

Tais os problemas <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> alma, do seu futuro destino,<br />

<strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong> e <strong>da</strong>s suas relações com a Criação.<br />

Vastos e imponentes problemas, estes nos envolvem e domi<strong>na</strong>m<br />

em sua imensi<strong>da</strong>de, pois sentimos que nos aguar<strong>da</strong>m, e <strong>na</strong><br />

ignorância deles não poderemos razoavelmente alie<strong>na</strong>r um tal ou<br />

qual temor do desconhecido.<br />

Assim é que, já o dizia Pascal, um desses problemas – o <strong>da</strong><br />

mortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma – é tão importante, que é preciso haver<br />

perdido to<strong>da</strong> a consciência para ficar indiferente ao conhecimento<br />

de si mesmo. O mesmo se poderá dizer quanto à existência de<br />

<strong>Deus</strong>. Quando meditamos essas ver<strong>da</strong>des, ou ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> possibili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> sua existência, elas nos aparecem sob aspecto tão<br />

grandioso que a nós mesmos interrogamos como podem criaturas<br />

inteligentes, seres racio<strong>na</strong>is, pensantes, entregar-se uma vi<strong>da</strong><br />

inteira a interesses transitórios, sem se abstraírem uma que outra<br />

vez <strong>da</strong> sua apatia para atender a essas interrogativas preciosas.<br />

Se é ver<strong>da</strong>de, qual o temos observado, que há neste mundo<br />

homens absolutamente indiferentes, que jamais sentiram a magnitude<br />

desses problemas, menos não é que eles nos inspiram<br />

ver<strong>da</strong>deira pie<strong>da</strong>de. Aqueles que, no entanto, mais agravam a<br />

bruteza <strong>da</strong> indiferença e, de caso pensado, desdenham alçar-se ao<br />

nível destes assuntos importantes, preferindo-lhes os doces gozos<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> material, esses, – declaramo-lo em alto e bom som – nós<br />

os deixamos sem pesar, entregues à sua inércia, para considerálos<br />

fora <strong>da</strong> esfera intelectual.


O problema <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong> é primacial a todos. Nem<br />

por outro motivo é que, contra ele, se assestam as principais, as<br />

mais possantes baterias do Materialismo que nos propomos<br />

combater. Pretende-se provar, com a ciência positiva, a inexistência<br />

de <strong>Deus</strong> e que uma tal hipótese não passa de aberração <strong>da</strong><br />

inteligência huma<strong>na</strong>. Um grande número de homens sérios,<br />

convencidos do valor desses pretensos raciocínios científicos,<br />

enfileiraram-se ao redor desses inovadores recidivos, engrossando<br />

desmesura<strong>da</strong>mente as hostes materialistas, primeiro <strong>na</strong> Alemanha<br />

e depois <strong>na</strong> França, <strong>na</strong> Inglaterra, <strong>na</strong> Suíça e <strong>na</strong> própria<br />

Itália.<br />

Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou discípulos, quantos<br />

se apóiam em testemunhos <strong>da</strong> ciência experimental para<br />

concluir que <strong>Deus</strong> não existe, cometem a mais grave inconseqüência.<br />

Acusando-os dessa erronia, haveremos de justificar-nos, ain<strong>da</strong><br />

que os incrimi<strong>na</strong>dos possam, sob outro prisma, ser considerados<br />

homens eminentes e respeitáveis. De resto, é mesmo em<br />

nome <strong>da</strong> ciência experimental que vimos combatê-los.<br />

Deixamos de lado to<strong>da</strong> a ciência especulativa e colocamonos,<br />

exclusivamente, no mesmo terreno dos adversários.<br />

Não pensamos com Demócrito que, vazar os olhos, para evitar<br />

as seduções do mundo exterior, seja o melhor meio de cultivar<br />

frutuosamente a Filosofia e, muito pelo contrário, permanecemos<br />

firmes <strong>na</strong> esfera <strong>da</strong> observação e <strong>da</strong> experiência.<br />

Nessa posição, declaramos que, por um lado, não se prende<br />

imediatamente à existência de <strong>Deus</strong>, mas, por outro lado, desde<br />

que venhamos aplicar ao problema os atuais conhecimentos<br />

científicos, longe de conduzirem à negativa, afirmam eles a<br />

inteligência e sabedoria <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />

A elevação para <strong>Deus</strong>, mediante o estudo científico <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />

nos mantém em situação eqüidistante dos dois extremos,<br />

isto é: – dos que negam e dos que se permitem definir, simploriamente,<br />

a causa suprema como se houveram sido admitidos ao<br />

seu concelho. Assim, com as mesmas armas, combatemos duas<br />

potências opostas: – o materialismo e a ilusão religiosa.


Pensamos que é igualmente falso e perigoso crer num <strong>Deus</strong><br />

infantil, quanto negar uma causa primária.<br />

Em vão se nos objetará não podermos afirmar a existência de<br />

uma enti<strong>da</strong>de que não conhecemos. Precatemo-nos de presunções<br />

que tais. Certo, não conhecemos <strong>Deus</strong>, mas, sem embargo,<br />

sabemos que existe. Também não conhecemos a luz e sabemos<br />

que ela irradia <strong>da</strong>s alturas celestes. Tampouco, conhecemos a<br />

vi<strong>da</strong> e sabemos que ela se desdobra em esplendores <strong>na</strong> superfície<br />

<strong>da</strong> Terra.<br />

“Longe estou de crer – dizia Goethe a Eckermann – que tenha<br />

uma exata noção do Ser supremo. Minhas opiniões, fala<strong>da</strong>s ou<br />

escritas, resumem-se nisto: <strong>Deus</strong> é incompreensível e o homem<br />

não tem a seu respeito mais que uma noção vaga e aproximativa.<br />

De resto, to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>, e nós com ela, somos de tal modo<br />

penetrados pela Divin<strong>da</strong>de que dela nos sustentamos, nela vivemos,<br />

respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em conformi<strong>da</strong>de<br />

de leis eter<strong>na</strong>s, perante as quais representamos um papel<br />

ativo e passivo ao mesmo tempo, quer o reconheçamos, quer<br />

não. A criança regala-se com o bolo, sem cogitar de quem o fez,<br />

o pássaro belisca a cereja, sem imagi<strong>na</strong>r como a mesma se<br />

formou. Que sabemos de <strong>Deus</strong>? E que significa, em suma, essa<br />

íntima intuição que temos de um Ser supremo? Ain<strong>da</strong> mesmo<br />

que, a exemplo dos turcos, eu lhe desse cem nomes, ficaria<br />

infinitamente abaixo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, tantos são os seus inumeráveis<br />

atributos... Como o Ente supremo, a que chamamos <strong>Deus</strong>, manifesta-se<br />

não só no homem como no âmbito de uma <strong>Natureza</strong> rica<br />

e potente quanto nos grandes acontecimentos mundiais, a idéia<br />

que dele se faz é, evidentemente, exígua.”<br />

A idéia que os antepassados formavam de <strong>Deus</strong>, em to<strong>da</strong>s as<br />

épocas, sempre esteve de acordo com o grau de ciência sucessivamente<br />

adquirido pela Humani<strong>da</strong>de. Tal como o saber humano,<br />

essa idéia é variável e deve, necessariamente, progredir, pois,<br />

seja como for, ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s noções que constituem o patrimônio<br />

<strong>da</strong> inteligência deve seguir a par com o progresso geral, sob pe<strong>na</strong><br />

de ficar distancia<strong>da</strong>.<br />

No conjunto de um sistema em movimento, to<strong>da</strong> a peça que<br />

se obsti<strong>na</strong>sse em estacio<strong>na</strong>r recuaria realmente. Em nossos dias,


já não é admissível dizer-se, dogmaticamente, que tal ou tal<br />

noção é perfeita e deve guar<strong>da</strong>r o ataque <strong>da</strong> infalibili<strong>da</strong>de: ou se<br />

faz, ou se não faz parte <strong>da</strong> marcha progressiva do espírito. No<br />

primeiro caso, importa acompanhá-lo integralmente e, no segundo,<br />

há que confessar-se em atraso. Eis o que precisa ficar bem<br />

claro.<br />

Digamo-lo francamente: em ciência experimental, <strong>Deus</strong> não<br />

pode ser admitido a priori e muito menos a desti<strong>na</strong>ção, ou fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de,<br />

que presumimos apreender <strong>na</strong>s obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />

As doutri<strong>na</strong>s apriorísticas caducaram, já se não admitem.<br />

Confessemo-nos com os materialistas e perguntemos se os<br />

que tomaram <strong>Deus</strong> e não a <strong>Natureza</strong> como ponto de parti<strong>da</strong><br />

explicaram, algum dia, as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> matéria ou as leis que<br />

gover<strong>na</strong>m o mundo. Puderam eles dizer-nos <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de ou<br />

imobili<strong>da</strong>de do Sol? – se a Terra era pla<strong>na</strong> ou esférica? – quais<br />

os desígnios de <strong>Deus</strong>, etc.? Absolutamente. Mesmo porque, seria<br />

impossível. Partir de <strong>Deus</strong> para investigação e exame <strong>da</strong> Criação<br />

é processo baldo de nexo e de sentido. Esse precário método para<br />

estu<strong>da</strong>r a <strong>Natureza</strong> e inferir conseqüências filosóficas, no pressuposto<br />

de poder, com uma simples teoria, construir o Universo e<br />

fixar as ver<strong>da</strong>des <strong>na</strong>turais, desacreditou-se, felizmente, há muito<br />

tempo.<br />

Mas, pelo fato de havermos substituído a hipótese precedente<br />

pelos resultados do exame a posteriori, segue-se que devamos<br />

fechar os olhos e negar a inteligência, a sabedoria, a harmonia<br />

revela<strong>da</strong>s pela própria observação? Haverá motivo para repudiar<br />

to<strong>da</strong> e qualquer conclusão filosófica e ficar a meio caminho,<br />

temerosos de atingir o fim? E deveremos, por isso, rendermo-nos<br />

aos cépticos contemporâneos que, sem embargo de evidência,<br />

rejeitam to<strong>da</strong> luz e to<strong>da</strong> conclusão?<br />

Pensamos que não. Muito ao contrário, pelo método que preconizam,<br />

constatamos as suas recusas e inconseqüências.<br />

Antes de qualquer controvérsia, importa determi<strong>na</strong>r as posições<br />

recíprocas, por evitar mal-entendidos, esperando nós que as<br />

declarações precedentes bastem para esclarecer categoricamente<br />

a nossa atitude.


Combateremos francamente o materialismo, não com as armas<br />

<strong>da</strong> fé religiosa, não com os argumentos <strong>da</strong> fraseologia<br />

escolástica, não com as autori<strong>da</strong>des tradicio<strong>na</strong>is, mas pelos<br />

raciocínios que a contemplação científica do Universo inspira e<br />

fecun<strong>da</strong>.<br />

Examinemos prelimi<strong>na</strong>rmente, num lanço-de-olhos, de conjunto,<br />

o processo geral do ateísmo hodierno.<br />

Esse processo assemelha-se sensivelmente ao de que se utilizou<br />

o barão de Holbach, nos fins do século passado, para fun<strong>da</strong>mentar<br />

o seu famoso Sistema <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, obra de um materialismo<br />

vulgar, para a qual achava Goethe não haver suficiente<br />

desprezo e costumava averbar de – “legítima quintessência <strong>da</strong><br />

senectude, inepta e insulsa”. O novo processo, mais exclusivamente<br />

científico, to<strong>da</strong>via, consiste principalmente em declarar<br />

que as forças que dirigem, não dirigem o mundo, isto é: que em<br />

vez de gover<strong>na</strong>rem a matéria, antes se lhe escravizam e que é a<br />

matéria (inerte, cega, desprovi<strong>da</strong> de inteligência) que, movendose<br />

de si mesma, se gover<strong>na</strong> mediante leis, cujo alcance ela não<br />

pode, to<strong>da</strong>via, apreciar.<br />

Pretendem os nossos materialistas atuais que a matéria existe<br />

de to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de, revesti<strong>da</strong> de umas tantas proprie<strong>da</strong>des, de<br />

certos atributos e que essas proprie<strong>da</strong>des qualificativas <strong>da</strong> matéria<br />

bastam para explicar a existência, estado e conservação do<br />

mundo.<br />

Dessarte, substituem um <strong>Deus</strong>-espírito por um <strong>Deus</strong>-matéria.<br />

Ensi<strong>na</strong>m que a matéria gover<strong>na</strong> o mundo e que as forças químicas,<br />

físicas, mecânicas, não passam de quali<strong>da</strong>des.<br />

Para refutar um tal sistema, há que tomar, por conseguinte, o<br />

partido contrário e demonstrar um <strong>Deus</strong>-espírito, antes que um<br />

<strong>Deus</strong>-matéria, incompreensível, a reger a matéria; estabelecer<br />

que a substância é escrava antes que proprietária <strong>da</strong> força; provar<br />

que a direção do mundo não cabe às moléculas cegas que o<br />

constituem, mas a forças sob cuja ação transparecem as leis<br />

supremas.


Fun<strong>da</strong>mentalmente, o problema se resume nesta demonstração<br />

e nós esperamos que ela ressaltará brilhante dos estudos<br />

objetivados neste nosso trabalho.<br />

E de vez que os adversários se apóiam em legítimos fatos científicos<br />

para estabelecer o erro, cumpre-nos contrabatê-los com<br />

esses mesmos fatos.<br />

A bem dizer, ain<strong>da</strong> que se demonstrasse que o Universo não é<br />

mais que um mecanismo material, cujas forças não se conjugam<br />

a um motor, mas remontam a matéria, subindo e descendo incessantes<br />

num sistema de motili<strong>da</strong>de perpétua, nem por isso a causa<br />

divi<strong>na</strong> estaria perdi<strong>da</strong>.<br />

Contudo, desde os primórdios <strong>da</strong> Filosofia, a partir de Heráclito<br />

e Demócrito, o sistema mecânico do mundo constituiu-se o<br />

refúgio e o argumento dos ateus, enquanto o sistema dinâmico<br />

albergava e escorava os espiritualistas.<br />

Nós, por princípio, filiamo-nos à concepção dinâmica e combatemos<br />

o sistema incompleto de um mecanismo sem construtor.<br />

Muito judiciosamente, diz Caro: 2 – por um lado o mecanismo<br />

tudo explica, mediante combi<strong>na</strong>ções e agrupamentos de átomos<br />

eternos. To<strong>da</strong>s as varie<strong>da</strong>des de fenômenos, o <strong>na</strong>scimento, a<br />

vi<strong>da</strong>, a morte, mais não são que o resultado mecânico de composições<br />

e decomposições, a manifestação de sistemas atômicos<br />

que se reúnem e se separam.<br />

O di<strong>na</strong>mismo, ao contrário, subordi<strong>na</strong> todos os fenômenos e<br />

todos os seres à idéia de força.<br />

O mundo é a expressão, seja de forças opostas e harmoniosas<br />

entre si, seja de uma força única, cuja metamorfose perpétua<br />

engendra a universali<strong>da</strong>de dos seres.<br />

Pode-se constatar que, não obstante ser a explicação secundária<br />

<strong>da</strong>s coisas, até certo ponto, independente <strong>da</strong> primária, ou<br />

metafísica, a História atesta o fato constante de uma afini<strong>da</strong>de<br />

<strong>na</strong>tural: de um lado, entre a explicação mecânica e a hipótese<br />

supressiva de <strong>Deus</strong>; e de outro lado, entre a teoria dinâmica e a<br />

hipótese que diviniza o mundo em seu princípio.<br />

A teoria mecânica, estabelecendo a pura necessi<strong>da</strong>de matemática<br />

<strong>na</strong>s ações e reações que formam a vi<strong>da</strong> do mundo, é incom-


pleta, por isso que suprime a causa e dissipa em névoa o mundo<br />

moral. A teoria de uma força única, universal, sempre atual e<br />

formando a varie<strong>da</strong>de dos seres pelas suas metamorfoses, ajusta<br />

essa misteriosa universali<strong>da</strong>de a uma força primordial.<br />

Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o processo geral<br />

dos nossos contraditores de um erro gramatical, atribuindo à<br />

matéria um poder só cabível à força e pretendendo não passar<br />

esta de mero adjetivo qualificativo, quando lhe cabem os mesmos<br />

direitos <strong>da</strong>quela, <strong>na</strong> classe dos substantivos.<br />

Examinemos agora, nesta mesma visa<strong>da</strong> de conjunto, quais os<br />

grandes erros que marcham de paralelo e sustentam essa conduta<br />

e que havemos de encontrar sob várias formas, no curso <strong>da</strong>s<br />

nossas contraditas.<br />

O primeiro erro geral de que abusam os materialistas é imagi<strong>na</strong>rem<br />

que, pelo fato de existir <strong>Deus</strong>, importa atribuir-lhe uma<br />

vontade caprichosa e não constante e imutável, em sua perfeição.<br />

Ersted, por exemplo, sábio escrutador do mundo físico, exprimiu<br />

sensatamente as relações de <strong>Deus</strong> com a <strong>Natureza</strong>, dizendo<br />

que “o mundo é gover<strong>na</strong>do por uma razão eter<strong>na</strong>, cujos<br />

efeitos se manifestam <strong>na</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>”.<br />

O Dr. Büchner opõe a esse conceito a seguinte especiosa objeção:<br />

– “Ninguém poderia compreender como uma razão eter<strong>na</strong>,<br />

que gover<strong>na</strong>, se conforme com leis imutáveis. Ou são as leis<br />

<strong>na</strong>turais que gover<strong>na</strong>m, ou é a razão eter<strong>na</strong>. Que umas ao lado de<br />

outras entrariam, a ca<strong>da</strong> instante, em colisão. Se a razão eter<strong>na</strong><br />

gover<strong>na</strong>sse, supérfluas se tor<strong>na</strong>riam as leis <strong>na</strong>turais e se, ao<br />

revés, gover<strong>na</strong>m as leis imutáveis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, elas excluem<br />

to<strong>da</strong> intervenção divi<strong>na</strong>.” – “Se uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de gover<strong>na</strong> a<br />

matéria num determi<strong>na</strong>do sentido – opi<strong>na</strong> Moleschott – desaparece<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> a lei <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de. Ca<strong>da</strong> fenômeno se tor<strong>na</strong><br />

partilha de jogo do acaso e de uma arbitrarie<strong>da</strong>de sem pelas.”<br />

Havemos de convir que esta grave objeção é singularíssima.<br />

É um raciocínio extravagante que cai pela base. A nós nos parece,<br />

pelo contrário, que a inteligência notória <strong>na</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong><br />

demonstra, no mínimo, a inteligência <strong>da</strong> causa a que se


devem essas leis, que são, elas mesmas, precisamente a expressão<br />

imutável dessa inteligência eter<strong>na</strong>.<br />

E não será algo ridículo pretender que essa causa deixe de<br />

existir, pelo motivo do íntimo acordo com essas mesmas leis?<br />

Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua virtuosi<strong>da</strong>de<br />

é tão perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados<br />

com a poesia <strong>da</strong> sua alma! Diremos, então, que essa alma<br />

não existe, visto que para lhe admitir existência fora preciso que<br />

ela estivesse eventual e arbitrariamente em desacordo com as leis<br />

<strong>da</strong> Harmonia! Essa maneira de racioci<strong>na</strong>r é tão falsa que os<br />

próprios autores que a utilizam são os primeiros a reconhecê-lo<br />

implicitamente. Assim é que Büchner, referindo-se a milagres e<br />

ao fato de haver o clero inglês solicitado a decretação de um dia<br />

de jejum e de preces para conjurar a cólera, elogia Palmaraton<br />

por haver respondido que o surto epidêmico dependia mais de<br />

fatores <strong>na</strong>turais, em parte conhecidos, e poderia melhor jugularse<br />

com providências sanitárias, antes que com preces.<br />

Muito bem! O autor, melhor ain<strong>da</strong>, acrescenta: “Essa resposta<br />

lhe acarretou a pecha de ateísmo e o clero declarou pecado<br />

mortal não crer pudesse a Providência transgredir, a qualquer<br />

tempo, as leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.”<br />

Mas, que singular idéia faz essa gente de <strong>Deus</strong> que por si criou!<br />

Um legislador supremo a deixar-se comover por preces e<br />

soluços, a subverter a ordem imutável que ele mesmo instituiu, a<br />

violar por suas próprias mãos a ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s forças <strong>na</strong>turais! –<br />

“Todo o milagre, se existisse – diz também Cotta – provaria que<br />

a Criação não merece o respeito que lhe tributamos e os místicos<br />

deveriam deduzir, <strong>da</strong> imperfeição do criado, a imperfeição do<br />

Criador.”<br />

Aí temos os adversários em contradição consigo mesmos,<br />

quando, por um lado, não querem admitir uma razão eter<strong>na</strong> em<br />

concordância de leis imutáveis, e por outro pensam conosco, que<br />

a idéia de imutabili<strong>da</strong>de ou, pelo menos, a regulari<strong>da</strong>de, identifica-se<br />

muito melhor com a perfeição ideal do ser desconhecido<br />

que denomi<strong>na</strong>mos <strong>Deus</strong>, do que a idéia de mutabili<strong>da</strong>de e arbitrarie<strong>da</strong>de,<br />

que umas tantas crenças pretendem impor-lhe.


Um segundo erro geral, não menos funesto que o precedente<br />

e que por igual ilude nossos contraditores, é o de acreditarem<br />

que, para existir <strong>Deus</strong>, importa colocá-lo fora do mundo.<br />

Não vemos pretexto algum racio<strong>na</strong>l que possa justificar uma<br />

tal necessi<strong>da</strong>de. E antes do mais, que significa essa idéia de uma<br />

causa sobera<strong>na</strong> extramundo? Onde os limites do mundo? Pois o<br />

mundo, isto é, o espaço no qual se movem estrelas e terras, não é<br />

infinito por sua mesma essência?<br />

Imagi<strong>na</strong>is um limite a esse mesmo espaço e supondes que ele<br />

se não renova além? Será, então, possível traçar limites à extensão?<br />

Onde, pois, imagi<strong>na</strong>r <strong>Deus</strong> fora do mundo? Será fora <strong>da</strong><br />

matéria, o que se quer dizer? Mas, que é a matéria em si? –<br />

agrupamentos de moléculas intangíveis. Portanto, impossível<br />

determi<strong>na</strong>r uma semelhante posição. <strong>Deus</strong> não pode estar fora do<br />

mundo, mas no mesmo lugar do mundo, do qual é o sustentáculo<br />

e a vi<strong>da</strong>.<br />

Não fosse temer a pecha de panteísta e ajuntaríamos que<br />

<strong>Deus</strong> é – a alma do mundo. O Universo vive por <strong>Deus</strong>, assim<br />

como o corpo obedece à alma. Em vão pretendem os teólogos<br />

que o espaço não pode ser infinito, em vão se apegam os materialistas<br />

a um <strong>Deus</strong> fora do mundo, enquanto sustentamos que<br />

<strong>Deus</strong>, infinito, está com o mundo, em ca<strong>da</strong> átomo do Universo –<br />

adoramos <strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />

Entretanto, nossos adversários combatem insensatamente o<br />

seu fantasma. “Não há considerar o Universo – diz Strauss –<br />

como orde<strong>na</strong>ção regra<strong>da</strong> por um Espírito fora do mundo, mas,<br />

como razão imanente às forças cósmicas e às suas relações.”<br />

A essa razão, chamamo-la <strong>Deus</strong>, enquanto os modernos ateístas<br />

aproveitam essa declaração para sentenciar que, em não<br />

existindo fora do mundo, é que <strong>Deus</strong> não existe.<br />

“Tudo, – diz H. Tuttle – desde a tinha (perdoem a expressão)<br />

que baila aos raios do Sol, à inteligência huma<strong>na</strong>, que verte <strong>da</strong>s<br />

massas medulosas do cérebro, está submetido a princípios fixos.<br />

Logo, não existe <strong>Deus</strong>.” Logo, existe – dizemos nós – “Livre é<br />

ca<strong>da</strong> qual de franquear os limites do mundo visível – pondera<br />

Büchner – e de procurar fora dele uma razão que gover<strong>na</strong>, uma


potência absoluta, uma alma mundial, um <strong>Deus</strong> pessoal”, etc.<br />

Mas, que é o que vos fala disso? “Nunca, em parte alguma – diz<br />

o mesmo literato – nos mais longínquos espaços revelados pelo<br />

telescópio, pôde observar-se um fato que fizesse exceção e<br />

pudesse justificar a necessi<strong>da</strong>de de uma força absoluta, operando<br />

fora <strong>da</strong>s coisas.”<br />

“A força não impeli<strong>da</strong> por um <strong>Deus</strong>, não é uma essência <strong>da</strong>s<br />

coisas isola<strong>da</strong>s do princípio material” – adverte Moleschott.<br />

Ninguém terá visão tão limita<strong>da</strong> – afirma ele alhures – para<br />

enxergar <strong>na</strong>s ações <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> forças outras não liga<strong>da</strong>s a um<br />

substrato material. Uma força que pla<strong>na</strong>sse livremente acima <strong>da</strong><br />

matéria seria uma concepção absolutamente bal<strong>da</strong> de sentido.<br />

Positivamente, ain<strong>da</strong> hoje existem cavaleiros errantes, à guisa<br />

dos que outrora manobravam em torno dos castelos do Reno, e<br />

de bom grado arremetem moinhos de vento. Lídimos heróis de<br />

Cervantes, visto que, no fim de contas, qual o filósofo que hoje<br />

propug<strong>na</strong> um <strong>Deus</strong> ou forças quaisquer fora <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>?<br />

Vemos em <strong>Deus</strong> a essência virtual que sustenta o mundo em<br />

ca<strong>da</strong> uma de suas partes microscópicas, <strong>da</strong>í resultando ser o<br />

mundo como que por ele banhado, embebido em to<strong>da</strong>s as suas<br />

partes e que <strong>Deus</strong> está presente <strong>na</strong> composição mesma de ca<strong>da</strong><br />

corpo.<br />

Dessarte, a primeira trincheira cava<strong>da</strong> pelos adversários para<br />

bloquear o Espiritualismo foi por eles mesmos entulha<strong>da</strong>; e a<br />

segun<strong>da</strong> nem sequer objetiva a ci<strong>da</strong>dela, e os nossos sol<strong>da</strong>dos<br />

alemães não fazem mais que bater o campo.<br />

Um terceiro erro, capital e imperdoável em cientistas de certa<br />

i<strong>da</strong>de, é imagi<strong>na</strong>rem-se com direito de afirmar sem provas, a<br />

embalarem-se com a doce ilusão de serem os outros obrigados a<br />

acreditar sob palavra. Coisas que a ver<strong>da</strong>deira Ciência profun<strong>da</strong>mente<br />

silencia, afirmam-<strong>na</strong>s eles, categóricos. Afirmam, como<br />

se houvessem assistido aos concelhos <strong>da</strong> Criação, ou como se<br />

fossem os próprios autores dela.<br />

Eis alguns espécimes de raciocínios, cuja infalibili<strong>da</strong>de é tão<br />

ciosamente proclama<strong>da</strong>.


Que os espíritos um tanto afeitos à prática científica se dêem<br />

ao trabalho de a<strong>na</strong>lisar as seguintes afirmações:<br />

Moleschott diz que a força não é um deus que impele, não é<br />

um ser separado <strong>da</strong> substância material <strong>da</strong>s coisas (quer dizer<br />

separado ou distinto?). É a proprie<strong>da</strong>de inseparável <strong>da</strong> matéria, a<br />

ela inerente de to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de. Uma força, não liga<strong>da</strong> à matéria,<br />

seria um absurdo. O azoto, o carbono, o oxigênio, o enxofre<br />

e o fósforo têm proprie<strong>da</strong>des que lhes são inerentes de to<strong>da</strong> a<br />

eterni<strong>da</strong>de... Logo, a matéria gover<strong>na</strong> o homem.”<br />

Ca<strong>da</strong> uma destas afirmativas, ou negativas, é uma petição de<br />

princípios, a depender do sentido que dermos aos termos discutíveis<br />

utilizados; mas, em suma, o que elas resumem é que a força<br />

vale como proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria. Ora, essa é, precisamente, a<br />

questão. Os campeões <strong>da</strong> Ciência, que pretendem representá-la e<br />

falar com e por ela, não se dig<strong>na</strong>m de seguir o método científico,<br />

que é o de <strong>na</strong><strong>da</strong> afirmar sem provas. Nas dobras do seu estan<strong>da</strong>rte,<br />

com letras doura<strong>da</strong>s, estereotiparam uma legen<strong>da</strong> fulgurante,<br />

a saber: – to<strong>da</strong> proposição não demonstra<strong>da</strong> experimentalmente<br />

só merece repúdio – e, no entanto, logo de início, esquecem a<br />

legen<strong>da</strong>. São pregadores de uma nova espécie: façam o que digo<br />

e não o que eu faço.<br />

Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a força não<br />

impulsio<strong>na</strong> a matéria, exprimem um conceito imagi<strong>na</strong>tivo, <strong>na</strong><strong>da</strong><br />

científico.<br />

Ouçamos, ain<strong>da</strong>, outras afirmativas gerais: “A matéria – diz<br />

Dubois-Reymond – não é um veículo ao qual, à guisa de cavalos,<br />

se atrelassem ou desatrelassem alter<strong>na</strong>tivamente as forças. Suas<br />

proprie<strong>da</strong>des são i<strong>na</strong>lienáveis, intransmissíveis de to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de.”<br />

Quanto ao destino humano, eis como se exprime Moleschott:<br />

“Quanto mais nos convencemos de trabalhar para o mais alto<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de, por uma judiciosa associação<br />

de ácido carbônico, de amoníaco e de outros sais, de ácido<br />

húmico e de água, mais se nobilitam a luta e o trabalho”, etc.<br />

E também em nosso país: “Uma idéia – diz a Revista Médica<br />

– é uma combi<strong>na</strong>ção análoga à do ácido fórmico; o pensamento


depende do fósforo; a virtude, o devotamento, a coragem, são<br />

correntes de eletrici<strong>da</strong>de orgânica”, etc.<br />

Quem vos disse tal coisa, senhores re<strong>da</strong>tores? Olhem que os<br />

leitores hão de pensar que os vossos mestres ensi<strong>na</strong>m esses<br />

gracejos, quando tal se não dá, absolutamente. Mesmo porque,<br />

do ponto de vista científico, esses raciocínios são totalmente<br />

nulos. De fato, não se sabe o que mais admirar em tais expoentes<br />

<strong>da</strong> Ciência: se a singular audácia, se a ingenui<strong>da</strong>de de suas<br />

presunções.<br />

Newton não se cansava de repetir: “parece-nos...”, e Képler<br />

dizia: “submeto-vos estas hipóteses...”. Aqueles outros, porém<br />

dizem: afirmo, nego, isto é, aquilo não é, a Ciência julgou,<br />

decido, condenou, posto que no que dizem não haja sombra de<br />

argumento científico.<br />

Um tal método pode ter o merecimento <strong>da</strong> clareza, mas ninguém<br />

o inqui<strong>na</strong>rá de modesto, nem de ver<strong>da</strong>deiramente científico.<br />

É que tais senhores têm a ousadia de imputar à Ciência a carga<br />

pesa<strong>da</strong> <strong>da</strong>s suas próprias heresias. Se a Ciência vos ouvisse,<br />

senhores (mas deve ouvir, porque sois seus filhos) – se a Ciência<br />

vos ouve, não pode deixar de sorrir <strong>da</strong>s vossas ilusões.<br />

A Ciência, dizeis, afirma, nega, orde<strong>na</strong>, proíbe... Pobre Ciência,<br />

em cujos lábios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao<br />

coração um descomu<strong>na</strong>l orgulho.<br />

Não, meus senhores, e vós bem o sabeis (cá entre nós) que,<br />

nestes domínios, a Ciência <strong>na</strong><strong>da</strong> afirma, nem nega, porque ape<strong>na</strong>s<br />

procura.<br />

Refleti, pois, que a armadura <strong>da</strong>s vossas parlan<strong>da</strong>s ilude os<br />

ignorantes e pode induzir em erro quantos não tiveram a facul<strong>da</strong>de<br />

de perlustrar os vossos estudos, e considerai que, quando<br />

nos arrogamos o título de intérpretes <strong>da</strong> Ciência, ficamos <strong>na</strong><br />

obrigação de não falsear o título, de permanecer-lhe fiel e, por<br />

conseqüência, modestos tradutores de uma causa que tem <strong>na</strong><br />

modéstia o seu primacial merecimento.<br />

Se, <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> força, em geral, passarmos à <strong>da</strong> alma, observaremos<br />

que, <strong>na</strong> esfera <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> animal, ou huma<strong>na</strong>, os adver-


sários não vacilam em afirmar, igualmente sem provas, que não<br />

existe perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de no ser vivente e pensante; que o espírito,<br />

como a vi<strong>da</strong>, mais não é que o resultado físico de certos grupamentos<br />

atômicos e que a matéria gover<strong>na</strong> o homem tão exclusivamente<br />

quanto, a seu ver, gover<strong>na</strong> os astros e os cristais. O<br />

fenômeno mais curioso é o de imagi<strong>na</strong>rem que aclaram o problema<br />

com as suas explicações obscuras:<br />

– “O espírito, diz o Dr. Hermann Scheffler 3 , outra coisa não é<br />

senão uma força <strong>da</strong> matéria, imediatamente resultante <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

nervosa”...<br />

Mas... de onde provém essa ativi<strong>da</strong>de nervosa?<br />

– Do éter (?) em movimento nos nervos. De sorte que, os atos<br />

do espírito são o produto imediato do movimento nervoso,<br />

determi<strong>na</strong>do pelo éter, ou do movimento deste nos nervos – ao<br />

qual importa ajuntar uma variação mecânica, física ou química,<br />

<strong>da</strong> substância imponderável dos nervos e de outros elementos<br />

orgânicos...<br />

– Eis aí, suponho, bem esclareci<strong>da</strong> a questão. Virchow diz<br />

que “a vi<strong>da</strong> não é mais que mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de particular <strong>da</strong> mecânica”;<br />

e Büchner afirma que “o homem não passa de produto material;<br />

que não pode ser o que os moralistas pintam; que não tem facul<strong>da</strong>de<br />

alguma privilegia<strong>da</strong>”.<br />

– Que há em todos os nervos uma corrente elétrica – predica<br />

Dubois-Reymond – e que o pensamento mais não é que movimento<br />

<strong>da</strong> matéria. Para Vogt, as facul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> alma valem como<br />

funções <strong>da</strong> substância cerebral e estão para o cérebro como a<br />

uri<strong>na</strong> para os rins 4 . E Moleschott assegura que a consciência, a<br />

noção de si mesmo, mais não é que movimentos materiais, liga<strong>da</strong><br />

a correntes neuro-elétricas e percebi<strong>da</strong>s pelo cérebro.<br />

Teremos ensejo de assi<strong>na</strong>lar, mais adiante, um ditirambo deste<br />

mesmo autor sobre o fósforo, o peso do cérebro, as ervilhas e<br />

lentilhas. Por agora, limitemo-nos a estes edificantes testemunhos.<br />

Admiremos, sobretudo, a conclusão fun<strong>da</strong>mental: “E aí temos<br />

nós porque os sábios definem a força uma simples proprie<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> matéria. Qual a conseqüência geral e filosófica desta noção


tão simples quanto <strong>na</strong>tural? É que aqueles que falam de uma<br />

força criadora, tendo de si mesma origi<strong>na</strong>do o mundo, ignoram o<br />

primeiro e mais simples princípio do estudo <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, baseados<br />

<strong>na</strong> Filosofia e no empirismo.”<br />

E, acrescentam – “qual o homem instruído, com um conhecimento<br />

mesmo superficial <strong>da</strong>s ciências <strong>na</strong>turais, capaz de duvi<strong>da</strong>r<br />

não seja o mundo gover<strong>na</strong>do como geralmente se afirma, e<br />

sim que os movimentos <strong>da</strong> matéria estão submetidos a uma<br />

necessi<strong>da</strong>de absoluta e inerente à própria matéria?“<br />

Assim, pela só autori<strong>da</strong>de de alguns alemães, que vêm ingenuamente<br />

declarar não admitirem, seja como for, a existência de<br />

<strong>Deus</strong> e <strong>da</strong> alma, agarrando-se embora a uma sombra de noção<br />

científica por justificar as suas fantasias, teríamos nós, ao seu<br />

ver, de abjurar a Ciência, ou deixar de crer em <strong>Deus</strong>.<br />

Tivessem tido ape<strong>na</strong>s a precaução de aplicar as regras do silogismo<br />

ao seu método; tivessem tido o cui<strong>da</strong>do de propor,<br />

primeiramente, as premissas irrefutáveis e não tirar delas senão<br />

uma conclusão legítima, e poderíamos acompanhá-los no raciocínio<br />

e conferir-lhes um prêmio de retórica. Mas, vede em que<br />

consiste o seu processo:<br />

Maior – A força é uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria.<br />

Menor – Portanto, uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria não pode ser<br />

considera<strong>da</strong> superior, criadora ou organizadora dessa matéria.<br />

Conclusão – Logo, a idéia de <strong>Deus</strong> é uma concepção absur<strong>da</strong>.<br />

É assim que arvoram, antes de tudo, em princípio a tese a discutir.<br />

Combatendo cerra<strong>da</strong>mente os métodos do Cristianismo, essa<br />

gente muito se assemelha aos que, no intuito de provarem aos<br />

Romanos a divin<strong>da</strong>de de Jesus, assim começavam: – Jesus é<br />

<strong>Deus</strong>, e desse princípio não provado extraiam to<strong>da</strong>s as deduções.<br />

Convicto estamos de honrar grandemente esses escritores,<br />

aplicando aos seus postulados as regras do raciocínio, que eles<br />

talvez nunca sonharam seguir.<br />

Também poderíamos submeter-lhes as pretensões a uma outra<br />

forma mais ingênua, assim:


Antecedente – Matéria e força encontram-se sempre associa<strong>da</strong>s.<br />

Conseqüente – Logo, a força é uma quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria.<br />

Aí temos, penso, um entimema de novo gênero e de conseqüências<br />

bem evidentes, pois não? Mas, é assim que os senhores<br />

Alemães racioci<strong>na</strong>m, bem como os seus clarividentes imitadores,<br />

positivistas <strong>da</strong> nossa moder<strong>na</strong> França.<br />

No primeiro caso, o raciocínio peca pela base; e, no segundo,<br />

nem mesmo faz jus a esse reproche, porque é uma infantili<strong>da</strong>de.<br />

Certo, pesa dizê-lo, mas é a essa puerili<strong>da</strong>de, ou melhor –<br />

perversão <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de de racioci<strong>na</strong>r – que se reduz o movimento<br />

materialista dos nossos tempos. E nunca, como aqui, vem a<br />

pêlo a frase do misantropo que dizia não ser o homem um animal<br />

pensador, mas, falador.<br />

Todo o fun<strong>da</strong>mento desta grande querela, to<strong>da</strong> a base deste<br />

edifício heterogêneo, cujo desmoro<strong>na</strong>mento pode esmagar<br />

muitos cérebros sob os escombros; to<strong>da</strong> a força deste sistema que<br />

pretende domi<strong>na</strong>r o mundo, presente e futuro; todo o seu valor e<br />

potência, repousam nessa assertiva fantasiosa, arbitrária e jamais<br />

demonstra<strong>da</strong>, de ser a força uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria.<br />

E é fingindo acompanhar a rigor as demonstrações científicas<br />

e só se apoiar em ver<strong>da</strong>des reconheci<strong>da</strong>s; é confungindo-se ao<br />

estan<strong>da</strong>rte <strong>da</strong> Ciência, apropriando-se de suas fórmulas e atitudes;<br />

é, enfim, com ela mascarando-se, que os pontífices do<br />

ateísmo e do niilismo proclamam as suas belas e edificantes<br />

doutri<strong>na</strong>s.<br />

Mas a Ciência não é uma mascara<strong>da</strong>. A Ciência fala de viseira<br />

ergui<strong>da</strong>, não reivindica falsas manobras, nem luzes de falso<br />

brilho. Sere<strong>na</strong> e pura <strong>na</strong> sua majestade, ela se pronuncia simples,<br />

modestamente, como enti<strong>da</strong>de consciente do seu valor intrínseco.<br />

Nem procura impor-se e, sobretudo, não aventa coisas de que<br />

não possa estar segura. Em vez de afirmar ou negar, investiga e<br />

prossegue, laboriosamente, no seu mister.<br />

A exposição precedente já deixou adivinhar, sem dúvi<strong>da</strong>, a<br />

tática do ateísmo contemporâneo.


Ele não é fruto direto do estudo científico, mas procura insinuar-se<br />

com essa aparência.<br />

Evidente a ilusão, nesses filósofos, pois sabemos que há entre<br />

eles uns tantos conceitos sinceros. É à força de quererem conjugar<br />

à Ciência as suas teorias, que acabaram por embutir no<br />

cérebro essa união clandesti<strong>na</strong>. Essas teorias não podem invocar<br />

a seu favor qualquer <strong>da</strong>s grandes provas científicas <strong>da</strong> nossa<br />

época e, sem embargo, dão-se como resultantes de todo o moderno<br />

trabalho científico.<br />

Isso repetem, e é com essa hermenêutica que abusam dos ignorantes<br />

e <strong>da</strong> juventude desprecavi<strong>da</strong> e entusiasta, tendendo a<br />

lhes fazer crer que as ciências, à força de progredirem, acabaram<br />

por descobrir e demonstrar que não há <strong>Deus</strong> nem alma. São eles<br />

que fazem a Ciência.<br />

Dir-se-ia, em os ouvindo, <strong>na</strong><strong>da</strong> haver além deles. Os grandes<br />

homens <strong>da</strong> antigüi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média, tanto como os modernos,<br />

são fantasmas, e to<strong>da</strong> a Filosofia deve desaparecer diante do<br />

ateísmo pretensamente científico.<br />

Preciso se faz que a imagi<strong>na</strong>ção popular não se deixe iludir<br />

por simples jogo de palavras, que mais valem, às vezes, por<br />

ver<strong>da</strong>deira comédia. Importa que as criaturas pensem por si<br />

mesmas, julguem com conhecimento de causa e adquiram a<br />

certeza de que os fatos científicos, perquiridos sem prevenção,<br />

não comportam as conclusões dogmáticas que lhes querem<br />

impor.<br />

Vista de perto, a pedra angular a grande custo lança<strong>da</strong> pelo<br />

materialismo contemporâneo deixa entrever que ela não passa de<br />

velho e carcomido tronco de madeira podre e, no fundo, os<br />

partidários do sistema não estão mais seguros do seu cepticismo<br />

do que o estariam os calvos discípulos de Heráclito ou de Epícuro.<br />

Ain<strong>da</strong> que queiram convencer-nos do contrário, todo o seu<br />

sistema não passa de hipótese, mais vazia e menos fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong><br />

que muitos romances científicos.


E uma vez que são eles próprios a declarar que to<strong>da</strong> hipótese<br />

deve ser bani<strong>da</strong> <strong>da</strong> Ciência, não há como deixarmos de começar<br />

por esse banimento.<br />

Realmente, com que direito fazem <strong>da</strong> força atributo <strong>da</strong> matéria?<br />

Com que direito afirmam que a força está submeti<strong>da</strong> à matéria,<br />

que lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta<br />

de elementos inertes, mortos, indiferentes, cegos? Maior e<br />

mais fun<strong>da</strong>do é o nosso direito de inverter-lhes a proposição,<br />

derrubando-lhes o edifício pela base.<br />

Terminemos assim esta exposição do problema, decidindo<br />

que o discrime se coloca nestes termos fun<strong>da</strong>mentais: é a matéria<br />

que domi<strong>na</strong> a força, ou antes esta que domi<strong>na</strong> aquela?<br />

Trata-se de discutir e escolher uma ou outra, ou, para falar<br />

com mais exatidão – trata-se de observar a <strong>Natureza</strong> e optar<br />

depois.<br />

E, pois que os honrados campeões <strong>da</strong> matéria afirmam, com<br />

tanta segurança, o primeiro enunciado, começamos revocando-o<br />

em dúvi<strong>da</strong> e propondo a alegação contrária.<br />

* * *<br />

No rostro desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta pergunta:<br />

A força rege ou é regi<strong>da</strong> pela matéria? Este o dilema que os<br />

fatos de si mesmos devem resolver.<br />

O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira<br />

demonstração de soberania <strong>da</strong> força e <strong>da</strong> ilusão dos materialistas.<br />

Da matéria, nos elevamos às forças que a dirigem; destas, às<br />

leis que as gover<strong>na</strong>m, e destas, ain<strong>da</strong>, ao seu misterioso autor.<br />

A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e o ouvido de<br />

alguns ínfimos seres humanos recusam-se a escutá-los. A mecânica<br />

celeste lança, ousa<strong>da</strong>mente, no espaço, o arco <strong>da</strong>s órbitas e o<br />

olho de um parasita desses orbes desdenha a grandeza <strong>da</strong> sua<br />

arquitetura.<br />

A luz, o calor, a eletrici<strong>da</strong>de, pontos invisíveis projetados de<br />

uma a outra esfera, fazem circular nos espaços infinitos o movi-


mento, a ativi<strong>da</strong>de, a vi<strong>da</strong>, a radiação do esplendor e <strong>da</strong> beleza, e<br />

as imbeles criaturas, ape<strong>na</strong>s desabrocha<strong>da</strong>s à superfície de um<br />

parasita desses orbes desdenha a grandeza a confessar a fulgurância<br />

celeste! É loucura ou é tolice? É orgulho, ou ignorância?<br />

Qual a origem e a fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de de tão estranha aberração? Porque a<br />

força vital, álacre e fecun<strong>da</strong>, palpita no Sol como <strong>na</strong> borboleta<br />

que morre com a manhã; no carvalho anoso <strong>da</strong>s florestas como<br />

<strong>na</strong> primaveril violeta? – porque a vi<strong>da</strong> magnificante doura as<br />

messes de Julho e os cabelos anelados <strong>da</strong> juventude petulante e<br />

freme no seio virgi<strong>na</strong>l <strong>da</strong>s noivas? – porque negar a beleza,<br />

mascarar a ver<strong>da</strong>de e desprezar a inteligência? Porque envene<strong>na</strong>r<br />

as virtudes eter<strong>na</strong>s que sustentam a estrutura do mundo e eclipsar,<br />

tristemente, a luz imácula que desce dos céus?<br />

Antes de penetrar os mistérios do reino tão rico e interessante<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, devemos considerar o esboço material do Universo,<br />

começando por demonstrar a soberania <strong>da</strong> força no tracejar desse<br />

mesmo esboço. Dividiremos esta primeira em duas partes: o Céu<br />

e a Terra, para estabelecer em primeiro lugar, por leis astronômicas<br />

e depois pelas terrestres, que, onde quer que exista a matéria,<br />

esta jamais deixou de ser escrava servil, universalmente domi<strong>na</strong><strong>da</strong><br />

pela energia que a rege. Esta divisão não deve sugerir, de<br />

modo algum, a velha comparação do céu com a Terra, que bem<br />

sabemos serem termos incomparáveis. Considerado como valor<br />

absoluto, o céu é tudo e a Terra <strong>na</strong><strong>da</strong> é. A Terra é átomo imperceptível,<br />

perdido no seio do infinito; o céu a envolve no ilimitado<br />

e a integra <strong>na</strong> população astral, sem exceção nem privilégio<br />

particular.<br />

Reunir os dois vocábulos, é como dizer: os Alpes são uma<br />

pedrinha, o Oceano é uma gota d’água e o Saara um grão de<br />

areia. É comparar o todo a um mínimo do mesmo todo.<br />

Importa, portanto, não interpretar literalmente a nossa divisão,<br />

que só se justifica por colimar maior clareza do assunto.<br />

Para nós, terrícolas, este globo é alguma coisa, assim como para<br />

a minúscula lagarta, que aflora numa folha, esta folha algo vale,<br />

mau grado à sua insignificância no conjunto <strong>da</strong> pra<strong>da</strong>ria.


Nossa esfera de observação divide-se também, <strong>na</strong>turalmente,<br />

em duas partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso<br />

mundo.<br />

Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como<br />

nele, a matéria está em tudo e por to<strong>da</strong> a parte e não passa de<br />

coisa inerte, cega, morta, composta de elementos incapazes de se<br />

dirigirem por si mesmos; que não agem nem pensam por impulso<br />

próprio e que, nos sen<strong>da</strong>is invisíveis do espaço, tanto como nos<br />

ca<strong>na</strong>is <strong>da</strong> seiva ou do sangue, o que agluti<strong>na</strong> em átomos, dirige<br />

as moléculas e conduz os mundos, é uma Força <strong>na</strong> qual transparece<br />

o plano, a vontade, a inteligência, a sabedoria e o poder do<br />

seu amor.


2 - O Céu<br />

SUMÁRIO – As harmonias do mundo sideral – Leis de Képler. –<br />

Atração universal. – Coorde<strong>na</strong>ção dos mundos e dos seus movimentos.<br />

– A força rege a matéria. – Caráter inteligente <strong>da</strong>s leis<br />

astronômicas; condições <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong>de do Universo. – Potência,<br />

ordem, sabedoria. – Negação ateísta, inqui<strong>na</strong>ções curiosas ao<br />

organizador, objeções singulares ao mecânico. – Será ver<strong>da</strong>de<br />

que não existe no parque <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> si<strong>na</strong>l qualquer de Inteligência?<br />

– Resposta aos julgadores de <strong>Deus</strong>.<br />

A contemplação <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> oferece ao homem culto, incontestavelmente,<br />

inefáveis, particulares encantos. Na organização<br />

dos seres descobre-se o incessante movimento dos átomos que os<br />

compõem, tanto quanto a permuta constante e operante entre<br />

to<strong>da</strong>s as coisas.<br />

Justa é a nossa admiração por tudo o que vive <strong>na</strong> superfície<br />

<strong>da</strong> Terra. O mesmo calor solar, que mantém no estado líquido a<br />

água dos rios e dos mares, conduz a seiva à fronde <strong>da</strong>s árvores e<br />

faz pulsar o coração dos abutres e <strong>da</strong>s pombas. A luz que espalha<br />

a viridência nos prados e nutre as plantas com um sopro impalpável<br />

também povoa a atmosfera de maravilhosas belezas aéreas.<br />

O som que estremece a folhagem canta <strong>na</strong> orla dos bosques, ruge<br />

<strong>na</strong>s plagas marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlação de<br />

forças físicas, que abrange num mesmo sistema a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> sob a comunhão <strong>da</strong>s mesmas leis. Ora, quanto mais fervente<br />

for a nossa admiração pelo radiamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> planetária, mais<br />

extensiva e aplicável se tor<strong>na</strong>rá, em relação aos mundos que aí<br />

fulguram acima de nossas cabeças, no cenáculo <strong>da</strong>s noites silenciosas.<br />

Esses mundos longínquos que, qual o nosso, se embalam<br />

no mesmo éter, sob o império <strong>da</strong>s mesmas energias e <strong>da</strong>s mesmas<br />

leis, são igualmente sedes de ativi<strong>da</strong>de e vi<strong>da</strong>. Poderíamos<br />

apresentar este grandioso e magnífico espetáculo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> universal<br />

como eloqüente testemunho <strong>da</strong> inteligência, sabedoria e<br />

onipotência <strong>da</strong> causa anônima, que houve por bem reverberar,<br />

dos primórdios <strong>da</strong> Criação, o seu mágico esplendor no espelho<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> cria<strong>da</strong>. Mas, não é sob este prisma que desejamos<br />

aqui desdobrar o panorama <strong>da</strong>s grandezas celestes. Ape<strong>na</strong>s, para


o teatro <strong>da</strong>s leis que regem o nosso mundo, queremos convocar<br />

os negadores <strong>da</strong> inteligência criadora.<br />

Se, abrindo os olhos diante desse espetáculo, eles persistirem<br />

em sua negativa, já não teremos como nos eximir de responderlhes,<br />

em consciência, que também duvi<strong>da</strong>remos de suas facul<strong>da</strong>des<br />

mentais. Porque, para falar com franqueza, a inteligência do<br />

Criador nos parece infinitamente mais curta e incontestável que a<br />

dos ateus franceses e estrangeiros.<br />

E, como o método positivo consiste em não julgar antes de<br />

observar os fatos, corre-nos o dever de exami<strong>na</strong>r primeiro os<br />

fatos astronômicos de que falamos e depois <strong>da</strong> interpretação com<br />

que se satisfazem os nossos antagonistas. Se, depois disso, essa<br />

sua interpretação satisfizer, subscreveremos de antemão as suas<br />

doutri<strong>na</strong>s; mas, se, ao contrário, revelar-se insensata, temos,<br />

como dever de honra e por amor à ver<strong>da</strong>de, de a desmascarar e<br />

entregar ao apupo <strong>da</strong> platéia.<br />

Esqueçamos por momentos o átomo terrestre, no qual o destino<br />

nos fixou por alguns dias. Que o nosso espírito se lance ao<br />

espaço e veja rolar diante de si o mecanismo gigantesco – mundos<br />

e mundos, sistemas após sistemas, <strong>na</strong> infinita sucessão de<br />

universos estrelados. Ouçamos, com Pitágoras, as harmonias<br />

siderais <strong>na</strong>s amplas e céleres revoluções <strong>da</strong>s esferas e contemplemos,<br />

<strong>na</strong> sua reali<strong>da</strong>de, esses movimentos simultaneamente<br />

vertiginosos e regulares que enfeu<strong>da</strong>m as terras celestes <strong>na</strong>s suas<br />

órbitas ideais. Observamos que a Lei suprema, universal, dirige<br />

esses mundos. Em torno do nosso sol, centro, foco luminoso,<br />

elétrico, calorífico do sistema planetário, giram os planetas<br />

obedientes. Os mais extraordinários labores do espírito humano<br />

deram-nos a fórmula <strong>da</strong> lei, que se divide em três pontos fun<strong>da</strong>mentais,<br />

conhecidos em Astronomia por leis de Képler, operoso<br />

sábio que a descobriu graças ao seu gênio, como à sua paciência,<br />

e que discutiu opiniaticamente, 17 anos, as observações do seu<br />

mestre Ticho-Brahe, antes que distinguisse sob o véu <strong>da</strong> matéria<br />

a força que a rege.<br />

Esses três pontos são:


1º - Ca<strong>da</strong> planeta descreve em torno do Sol uma órbita elíptica,<br />

<strong>na</strong> qual o centro do Sol ocupa sempre um dos focos.<br />

2º - As áreas (ou superfícies) descritas pelo raio vetor 5 de um<br />

planeta em redor do foco solar são proporcio<strong>na</strong>is aos tempos<br />

que levam a descrevê-las.<br />

3º - Os quadrados dos tempos de revolução planetária, em<br />

torno do Sol, são proporcio<strong>na</strong>is aos cubos dos grandes eixos<br />

orbitários.<br />

A síntese dessas leis integra o grande axioma que Newton foi<br />

o primeiro a formular <strong>na</strong> sua obra imortal sobre os Princípios.<br />

Nesse livro, ensi<strong>na</strong>-nos ele – como bem adverte Herschel –<br />

que todos os movimentos celestes são conseqüências <strong>da</strong> lei, isto<br />

é: – que duas moléculas materiais se atraem <strong>na</strong> razão direta do<br />

volume de suas massas e <strong>na</strong> inversa do quadrado <strong>da</strong>s distâncias.<br />

Partindo deste princípio, ele explica como a atração exerci<strong>da</strong><br />

entre as grandes massas esféricas, componentes do nosso sistema,<br />

é regula<strong>da</strong> por uma lei cuja expressão é exatamente idêntica,<br />

como os movimentos elípticos dos planetas ao redor do Sol e dos<br />

satélites ao redor dos planetas, tal como os determinou Képler, se<br />

deduzem conseqüentes necessários <strong>da</strong> mesma lei, e como as<br />

próprias órbitas dos cometas não são mais que casos particulares<br />

dos movimentos planetários. Passando em segui<strong>da</strong> às aplicações<br />

difíceis, faz-nos ver como as desigual<strong>da</strong>des tão complica<strong>da</strong>s do<br />

movimento lu<strong>na</strong>r prendem-se à ação perturbadora do Sol, assim<br />

como se origi<strong>na</strong>m as marés <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de de atração que esses<br />

dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que a rodeia. E<br />

demonstra-nos, enfim, como também a precessão dos equinócios<br />

não passa de conseqüência necessária <strong>da</strong> mesma lei.<br />

Pois é à execução dessas leis que está confia<strong>da</strong> a harmonia do<br />

sistema planetário; é a elas que os mundos devem os seus anos,<br />

as suas estações, os seus dias; é nelas que haurem a luz e o calor<br />

distribuídos em diversos graus pela fonte cintilante; é delas que<br />

derivam a eclosão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a forma e or<strong>na</strong>mento dos corpos<br />

celestes. Sob a ação incoercível dessas forças colossais, os<br />

mundos se transportam no espaço com a rapidez do relâmpago e<br />

percorrem cente<strong>na</strong>s de mil léguas por dia, sem parar, seguindo


estritamente a rota certa e previamente traça<strong>da</strong> por essas mesmas<br />

forças.<br />

Se nos fora <strong>da</strong>do libertar-nos um momento <strong>da</strong>s aparências,<br />

sob cujo império nos acreditamos em repouso no centro do<br />

Universo, e se pudéramos abranger num olhar de conjunto os<br />

movimentos que animam to<strong>da</strong>s as esferas, haveríamos de ficar<br />

surpreendidos com a imponência desses movimentos. Aos nossos<br />

olhos maravilhados, enormíssimos globos turbilho<strong>na</strong>riam<br />

rápidos sobre si mesmos, projetados no vácuo a to<strong>da</strong> a veloci<strong>da</strong>de,<br />

quais gigantescas balas que uma força de projeção inimaginável<br />

houvesse enviado ao infinito. Admiramo-nos desses comboios<br />

ferroviários que devoram distâncias como dragões flamantes<br />

e, no entanto, os globos celestes mais volumosos que a nossa<br />

Terra deslocam-se com uma rapidez que ultrapassa a <strong>da</strong>s locomotivas<br />

tanto quanto a destas ultrapassa a <strong>da</strong>s tartarugas. A terra<br />

que habitamos, por exemplo, percorre o espaço com a veloci<strong>da</strong>de<br />

de seiscentos e cinqüenta mil léguas por dia. Rodeando esses<br />

mundos, veríamos satélites em circulação e a distâncias diferentes,<br />

mas adstritos e submissos às mesmas leis. E to<strong>da</strong>s essas<br />

repúblicas flutuantes incli<strong>na</strong>m os pólos alter<strong>na</strong>tivamente para o<br />

calor e para a luz, a gravitarem sobre o próprio eixo, apresentando,<br />

ca<strong>da</strong> manhã, os diferentes pontos de sua superfície ao beijo<br />

do astro-rei. Tiram, assim, <strong>da</strong> combi<strong>na</strong>ção mesma dos seus<br />

movimentos, a renovação <strong>da</strong> beleza e <strong>da</strong> juventude; renovam a<br />

fecundi<strong>da</strong>de no ciclo <strong>da</strong>s primaveras, dos estios, dos outonos e<br />

dos invernos; coroam de frondes as montanhas onde o vento<br />

suspira; refletem no espelho dos lagos a magia de suas paisagens;<br />

envolvem-se, às vezes, <strong>na</strong> lanugem atmosférica, fazendo<br />

dela um manto protetor, ou transformando-a em cadinho retumbante<br />

de raios e granizos; desdobram por superfícies imensas a<br />

força <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s oceânicas, que, também por si, se alteiam sob a<br />

atração dos astros, qual seio ofegante; ilumi<strong>na</strong>m crepúsculos<br />

com os matizes policrômicos dos ocasos comburentes e fremem<br />

nos seus pólos às palpitações elétricas despedi<strong>da</strong>s dos leques de<br />

boreais auroras; geram, embalam e nutrem a multidão de seres<br />

que as povoam; e renovam o filão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> desde as plantas<br />

fósseis, do passado, até o homem que pensa e son<strong>da</strong> o futuro.


Todos esses mundos, to<strong>da</strong>s essas mora<strong>da</strong>s do espaço, departamentos<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, nos apareceriam quais <strong>na</strong>ves bussola<strong>da</strong>s, conduzindo<br />

através do oceano celeste tripulantes que não têm a temer<br />

escolhos nem imperícias de comando, nem falta de combustível,<br />

nem fome, nem tempestades.<br />

Estrelas, sóis, mundos errantes, cometas fúlgidos, sistemas<br />

estranhos, astros misteriosos, todos proclamariam harmonia,<br />

seriam todos os acusadores de quantos decretam não passar a<br />

força de cego atributo <strong>da</strong> matéria. E quando, acompanhando as<br />

relações numéricas que ligam todos esses mundos ao Sol – qual<br />

coração palpitante de um mesmo ser – houvermos personificado<br />

o sistema planetário do próprio Sol – foco colossal que a todos<br />

absorve <strong>na</strong> sua esplendente e poderosa perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de – então,<br />

não tar<strong>da</strong>remos a ver nesse Sol, com o seu sistema, em trânsito<br />

pelos espaços infinitos, o atestado de que to<strong>da</strong>s as estrelas são<br />

outros tantos sóis, cercados, como o nosso, de uma família que<br />

deles recebe luz e vi<strong>da</strong>, e veremos que to<strong>da</strong>s as estrelas são<br />

guia<strong>da</strong>s por movimentos diversos e que, muito longe de ficarem<br />

fixas <strong>na</strong> imensi<strong>da</strong>de, caminham com veloci<strong>da</strong>des terrificantes,<br />

ain<strong>da</strong> mais céleres que as retro mencio<strong>na</strong><strong>da</strong>s.<br />

Só então, o Universo inteiro brilhará aos nossos olhos sob o<br />

ver<strong>da</strong>deiro prisma e as forças que o regem proclamarão, com a<br />

eloqüência maravilhosamente brutal de fato concreto, o seu<br />

valor, a sua missão, autori<strong>da</strong>de e poder. Diante desses movimentos<br />

indescritíveis – inconcebíveis mesmo, poderíamos dizer –<br />

que transportam pelos desertos do infinito essa infini<strong>da</strong>de de<br />

sóis; diante dessa catadupa de estrelas do infinito; diante dessas<br />

rotas, dessas órbitas imensuráveis, segui<strong>da</strong>s com a passivi<strong>da</strong>de<br />

dos ponteiros de um relógio, <strong>da</strong> maçã que cai, ou <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> do<br />

moinho, obedientes à lei <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de; diante <strong>da</strong> submissão dos<br />

corpos celestes a regras que a mecânica e as fórmulas a<strong>na</strong>líticas<br />

podem traçar de antemão, bem como <strong>da</strong> condição suprema de<br />

estabili<strong>da</strong>de e duração do mundo, quem ousará negar que a Força<br />

não governe, não dirija sobera<strong>na</strong>mente a Matéria, em virtude de<br />

uma lei inerente ou afeta à própria Força? Quem pretenderá<br />

subordi<strong>na</strong>r a Força à cegueira constitucio<strong>na</strong>l <strong>da</strong> Matéria e afirmar,<br />

à maneira retrógra<strong>da</strong> dos peripatéticos, que ela não passa de


atributo oculto, reduzindo-a ao papel de escrava, quando ela se<br />

impõe de tal arte e reivindica credenciais de absoluta suserania?<br />

Que <strong>Deus</strong> tal nunca permita. Que sucederia se ela, a Força,<br />

deixasse de agir e abdicasse o seu cetro? A só imagi<strong>na</strong>ção desta<br />

hipótese dissolve a harmonia do mundo e o faz esboroar-se num<br />

caos informe, digno resultado, aliás, de tão insensata tentativa.<br />

Leis universalmente demonstra<strong>da</strong>s proclamam a uni<strong>da</strong>de do<br />

Cosmos e evidenciam que o mesmo pensamento que regula as<br />

nossas marés oceânicas preside às revoluções siderais <strong>da</strong>s estrelas<br />

duplas, nos latifúndios do céu. Tais duplos, triplos, quádruplos<br />

sóis giram em conjunto, ao redor do centro comum de<br />

gravi<strong>da</strong>de, obedecendo às mesmas leis que regem o nosso sistema<br />

planetário. Na<strong>da</strong> mais próprio do que esses sistemas para nos<br />

<strong>da</strong>r uma idéia <strong>da</strong> escala <strong>da</strong> construção dos mundos – diz John<br />

Herschel.<br />

Quando vemos esses corpos imensos, encasalados, descreverem<br />

órbitas enormes, cujo percurso lhes deman<strong>da</strong> séculos, somos<br />

levados a admitir simultaneamente que eles preenchem, <strong>na</strong><br />

Criação, uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de que nos escapa e que atingimos os<br />

limites <strong>da</strong> huma<strong>na</strong> inteligência para confessar a nossa inópia e<br />

reconhecer que a mais fecun<strong>da</strong> imagi<strong>na</strong>ção não pode ter do<br />

mundo uma concepção aproximativa sequer, <strong>da</strong> grandeza do<br />

assunto.<br />

Os astrônomos que humildemente remontam ao princípio ignoto<br />

<strong>da</strong>s causas não podem eximir-se de considerar <strong>na</strong>s mãos de<br />

um ser inteligente essa atração universal, que rege inteligentemente<br />

o Cosmos. “A lei de gravitação – dizia o saudoso diretor<br />

do Observatório de Toulouse 6 – enfeixa implicitamente as grandes<br />

leis que regem os movimentos celestes e, por uma dessas<br />

coincidências notáveis que são o mais seguro índice <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de –<br />

longe de temer as exceções aparentes, as perturbações dos movimentos<br />

normais, antes delas extrai as mais brilhantes confirmações.<br />

Assim é que vemos os geômetras modernos explicarem<br />

a precessão dos equinócios pela combi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> força centrífuga,<br />

oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong> rotação <strong>da</strong> Terra, com a ação do Sol sobre o nosso<br />

menisco equatorial. Assim é que vemos, ain<strong>da</strong>, explicar-se a<br />

nutação por uma influência análoga, <strong>da</strong> Lua, sobre a luminescên-


cia mesma <strong>da</strong> Terra e, mais: – as atrações planetárias, a oscilação<br />

<strong>da</strong> eclíptica e do movimento do apogeu solar; do retar<strong>da</strong>mento de<br />

Júpiter quando Saturno se acelera, e vice-versa, quando a aceleração<br />

se dá em Júpiter, etc. Fi<strong>na</strong>lmente, é assim que sabemos por<br />

que, sob a influência solar, a média do nosso movimento terráqueo<br />

se vai acelerando de século em século e deverá diminuir<br />

mais tarde, por que a linha dos nós <strong>da</strong> Lua perfaz a sua revolução<br />

em movimento retrógrado dentro de dezoito anos e por que o<br />

perigeu lu<strong>na</strong>r se completa em pouco menos de nove anos, etc. 7<br />

Não somente, em resumo, esse princípio notável explica todos<br />

os fenômenos conhecidos, como permite, muitas vezes,<br />

descobrir efeitos que a observação não indica, de modo que se<br />

poderia estabelecer a priori, pela análise, a constituição do<br />

mundo e não nos socorrermos <strong>da</strong> observação senão em alguns<br />

pontos de referência, de que se utilizam os geômetras sob a<br />

denomi<strong>na</strong>ção de constantes, nos seus cálculos. – Tudo pois, no<br />

Universo, marcha por efeito de uma organização admirável de<br />

simplici<strong>da</strong>de, visto que os movimentos, aparentemente mais<br />

complicados, resultam <strong>da</strong> combi<strong>na</strong>ção de impulsos primitivos<br />

com uma força única agindo sobre ca<strong>da</strong> molécula material; força<br />

única, com a qual, e conseqüentemente, haja de ocupar-se, por<br />

assim dizer, o Criador. Mas, também, que desenvolvimento de<br />

poder não requer a produção incessante dessas forças, cuja<br />

existência não é essencialmente inerente à matéria! Oh! como<br />

deve ser vigilante a mão eter<strong>na</strong> que sabe, a ca<strong>da</strong> momento,<br />

renovar tais forças, até nos mais impalpáveis átomos dos inumeráveis<br />

astros desti<strong>na</strong>dos a povoar as regiões de infinita imensi<strong>da</strong>de.<br />

Não será o caso de dizer com o rei-profeta, incli<strong>na</strong>ndo-se<br />

perante tanta grandeza: Coeli e<strong>na</strong>rrant gloriam Dei?<br />

A partir de Newton e Képler, sabemos que o Universo é um<br />

di<strong>na</strong>mismo imenso, cujos elementos em sua totali<strong>da</strong>de não<br />

cessam de agir e reagir <strong>na</strong> infini<strong>da</strong>de do tempo e do espaço, com<br />

ativi<strong>da</strong>de indefectível. Esta a grande ver<strong>da</strong>de que a Astronomia,<br />

a Física e a Química nos revelam <strong>na</strong>s imponentes maravilhas <strong>da</strong><br />

Criação.<br />

Tal o sublime espetáculo do mundo, tais as leis constitutivas<br />

<strong>da</strong> sua harmonia. Ora, qual a perfídia de linguagem, ou de racio-


cínio, que os materialistas utilizam para traduzir pró-domo sua<br />

esses fatos e concluírem pela ausência de todo e qualquer pensamento<br />

divino?<br />

Eis aqui os argumentos inscritos em letras berrantes num catecismo<br />

materialista que, por seu colorido de Ciência, se tem<br />

imposto a muita gente: 8<br />

“Todos os corpos celestes, pequenos ou grandes, se conformam,<br />

sem relutância, sem exceções nem desvios, com esta lei<br />

inerente a to<strong>da</strong> a matéria e a to<strong>da</strong> partícula de matéria, como<br />

podemos experimentar a ca<strong>da</strong> momento. É com uma precisão e<br />

certeza matemáticas que todos esses movimentos se fazem<br />

reconhecer, determi<strong>na</strong>r e predizer. Os espiritualistas vêem nestes<br />

fatos o pensamento de um <strong>Deus</strong> eterno, que impôs à Criação as<br />

leis imutáveis de sua perpetui<strong>da</strong>de. Os materialistas, porém, ao<br />

contrário, não vêem nisso senão a prova de que a idéia de <strong>Deus</strong><br />

não passa de uma pilhéria. Outro fora o caso, se existissem<br />

corpos celestes caprichosos ou rebeldes, se a grande lei que os<br />

rege não fosse sobera<strong>na</strong>. É fácil (diz Büchner) conciliar o <strong>na</strong>scimento,<br />

a constelação (?) e o movimento dos orbes com os processos<br />

mais simples que a matéria de si mesma nos possibilita. A<br />

hipótese de uma força pessoal criadora é i<strong>na</strong>dmissível. Por que?<br />

Ninguém, jamais, pôde sabê-lo. Os espiritualistas admiram o<br />

movimento dos astros, a ordem e harmonia que a eles preside.<br />

Ingênuos! No Universo não há ordem nem harmonia e sim, pelo<br />

contrário, a irregulari<strong>da</strong>de, os acidentes, a desordem, que excluem<br />

a hipótese de uma ação pessoal regi<strong>da</strong> pelas leis <strong>da</strong> inteligência,<br />

mesmo huma<strong>na</strong>.”<br />

Ponderemos: Copérnico publicou Revoluções Celestes, após<br />

trinta anos de árduos labores; Galileu só depois de vinte anos<br />

fecundou a lei do pêndulo; Képler não levou menos de dezessete<br />

para formular suas leis e Newton, já octogenário, dizia não ter<br />

ain<strong>da</strong> chegado a compreender o mecanismo dos céus; e, depois<br />

disso, vêm propor-nos acreditar que essas leis sublimes e que<br />

tudo quanto esses gênios possantes mal puderam encontrar e<br />

formular não revelam no ascendente que as impôs à matéria, uma<br />

inteligência sequer igual à do homem!


E o Sr. Re<strong>na</strong>n escreve então esta frase: “Por mim, penso não<br />

haver no Universo inteligência superior à huma<strong>na</strong>.” E ousam<br />

compadrinhar-se com acidentes que propriamente o não são, para<br />

afirmarem que não existe harmonia <strong>na</strong> construção do mundo.<br />

Que seria, então, preciso para vos satisfazer, senhores criticistas<br />

de <strong>Deus</strong>?<br />

Vamos dizê-lo: primeiro, que não houvesse espaço (!) ou que<br />

esse espaço fosse menos vasto, visto haver, decidi<strong>da</strong>mente,<br />

muito espaço no infinito: “se houvéramos de atribuir a uma força<br />

criadora individual – diz Büchner – a origem dos mundos para<br />

habitação de homens e animais, importaria saber para que serve<br />

esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no qual flutuam planetas<br />

e sóis? Porque os outros planetas do sistema não se tor<strong>na</strong>ram<br />

habitáveis para o homem?” Na ver<strong>da</strong>de, formulais uma pergunta<br />

bem simples. E aí temos como esses senhores se dão à fantasia<br />

de declarar inútil o espaço, a querer que todos os globos se<br />

comuniquem entre si. O caricaturista Granville já tivera a mesma<br />

idéia, quando representou num dos seus encantadores desenhos<br />

os jupterianos em excursão a Saturno, atravessando uma ponte,<br />

de charuto à boca. E o anel de Saturno lá está como um grande<br />

alpendre, onde os saturninos vão à noite refrescar-se. Se esse é o<br />

desejado universo, cujo primeiro resultado seria imobilizar o<br />

sistema planetário, mais avisados an<strong>da</strong>riam os inventores dirigindo-se<br />

seriamente à Escola de Pontes e Calça<strong>da</strong>s, antes que à<br />

Filosofia.<br />

Que esta, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, <strong>na</strong><strong>da</strong> tem com isso.<br />

Se houvesse um <strong>Deus</strong> – ajuntam –, para que serviriam as irregulari<strong>da</strong>des<br />

e desproporções enormes de volume e distância<br />

entre os planetas e o nosso sistema solar? Porque essa completa<br />

ausência de ordem, de simetria, de beleza? Havemos de convir<br />

que é preciso ser um tanto pretensioso para admirar cenografias<br />

de bastidores teatrais e recusar ao mesmo tempo a beleza e a<br />

simetria às obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Parece-nos mesmo que é a primeira<br />

increpação que se faz neste sentido.<br />

De resto, esses senhores não nos oferecem senão negações.<br />

Negação de <strong>Deus</strong>, <strong>da</strong> alma, do raciocínio e seus poderes, sempre,


e em tudo, negação. Isso é o que propriamente lhes concerne, e<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> mais. Sua pretensa consciência científica é simples burla.<br />

Nossos espirituosos adversários não raro resvalam no plano raso<br />

<strong>da</strong>s puerili<strong>da</strong>des. Um dentre eles adverte que a luz caminha com<br />

a veloci<strong>da</strong>de de 75.000 léguas por segundo, achando que é pouco<br />

e que é ridículo para um Criador o não poder acelerá-la. Outro<br />

acha que a Lua também não gira suficientemente célere. “A Lua<br />

– diz o americano Hudson Tuttle – não gira senão uma vez sobre<br />

si mesma, enquanto completa a sua revolução em torno <strong>da</strong> Terra,<br />

de sorte que lhe apresenta sempre a mesma face. Assiste-nos<br />

legítimo direito de perguntar porque, pois se houvesse nisso um<br />

intuito qualquer, a sua execução deveria ser assi<strong>na</strong>la<strong>da</strong>.” Na<br />

ver<strong>da</strong>de, o Criador foi assaz negligente deixando de admitir esses<br />

senhores <strong>na</strong> intimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua técnica. Já se viu uma coisa assim?<br />

Deixá-los em completa ignorância dos fins que se propôs<br />

ao fazer ro<strong>da</strong>r tão ler<strong>da</strong>mente a nossa amável Luazinha!<br />

Mas, de fato: será que <strong>Deus</strong> não poderia ter tido melhor conduta<br />

a benefício de nossa instrução pessoal? Nós! “Por que,<br />

perguntamo-nos ain<strong>da</strong> 9 , a força criadora não gravou em linhas de<br />

fogo (certo em alemão) o seu nome no céu? Porque não deu aos<br />

sistemas siderais uma ordem que nos desse a conhecer, de maneira<br />

evidente, sua intenção e desígnios?” Que estúpi<strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de!<br />

Com efeito, senhores, sois admiráveis e a vossa maneira de<br />

racioci<strong>na</strong>r iguala à vossa ciência, o que aliás não é pouco.<br />

Que pe<strong>na</strong> não terdes vós mesmos construído o Universo! Sim,<br />

porque então teríeis prevenido todos estes inconvenientes...<br />

Mas, dizei-me: estais bem certos de conhecer integralmente a<br />

matéria para afirmar que ela substitui <strong>Deus</strong>, com vantagem?<br />

Será que ela vos explica completamente o estado do Universo?<br />

Que respondeis? – Bem duvi<strong>da</strong>, ata<strong>da</strong> não nos é <strong>da</strong>do saber ao<br />

certo porque a matéria tomou tal movimento em tal momento,<br />

mas, a Ciência ata<strong>da</strong> não dispõe a última palavra e não é impossível<br />

que ela nos revele um dia a época em que <strong>na</strong>sceram os


mundos.” Tal a definitiva resposta desses senhores. Por ela,<br />

ain<strong>da</strong> se confessam um tanto ignorantes.<br />

Que sucederá, então, quando se compenetrarem de que conhecem<br />

tudo, em absoluto? Ó Ciência! senão estes os frutos <strong>da</strong><br />

tua árvore?<br />

Aqui, é bem o caso de confessar, com o próprio Büchner, que<br />

a comumente invoca<strong>da</strong> profundeza do espírito alemão é antes<br />

perturbação que profundeza de espírito. “O que os alemães<br />

chamam filosofia – acrescenta o mesmo escritor – não é mais<br />

que mania de jogar com idéias e palavras, e com o que se atribuem<br />

o direito de olhar outros povos por cima dos ombros.”<br />

Não há sabedoria, inteligência, ordem, harmonia no Universo.<br />

Semelhante acusação será mesmo feita a sério?<br />

Por nós, temos que é lícito duvi<strong>da</strong>r.<br />

Em Outubro de 1604, magnífica estrela surgiu de improviso<br />

<strong>na</strong> constelação <strong>da</strong> Serpente.<br />

Os astrônomos ficaram assaz surpresos, por isso que uma tal<br />

aparição parecia contrária à harmonia dos céus. As estrelas<br />

variáveis ain<strong>da</strong> não eram conheci<strong>da</strong>s. Como, pois, <strong>na</strong>scera aquela?<br />

Fortuitamente? Engendra<strong>da</strong> ao acaso? Estas as interrogações<br />

de Képler, quando sobreveio um pequeno acidente...<br />

“Ontem – disse-o ele –, no curso <strong>da</strong>s minhas elucubrações,<br />

fui chamado para o jantar. Minha mulher trousse à mesa uma<br />

sala<strong>da</strong>. – Pensas, disse-lhe eu, que, se desde os primórdios <strong>da</strong><br />

Criação flutuassem no ar, sem ordem nem direção, pratos de<br />

estanho, folhas de alface, grãos de sal, azeite e vi<strong>na</strong>gre e pe<strong>da</strong>ços<br />

de ovo cozido, o acaso os juntaria hoje para fazer uma sala<strong>da</strong>? –<br />

Não tão boa como esta, seguramente – respondeu-me a bela<br />

esposa.”<br />

Ninguém ousou considerar a nova estrela como produto do<br />

acaso e hoje sabemos que o acaso não tem guari<strong>da</strong> no mecanismo<br />

dos astros. Képler viveu adorando a harmonia do mundo e só<br />

como extravagância admitia dúvi<strong>da</strong>s a respeito. Os fun<strong>da</strong>dores<br />

<strong>da</strong> Astronomia – Copérnico, Galileu, Tieha-Brahé, Newton,<br />

todos se acor<strong>da</strong>m no mesmo culto de Képler. 10


Não são, portanto, os astrônomos que increpam o céu de falta<br />

de harmonia.<br />

Ó mundos esplendorosos! sóis do infinito, e vós, terras habita<strong>da</strong>s<br />

que gravitais em torno desses focos brilhantes, cessai o<br />

vosso movimento harmonioso, sustai vosso curso. A vi<strong>da</strong> vos<br />

irradia <strong>da</strong> fronte, a inteligência mora em vossas ten<strong>da</strong>s e os<br />

vossos campos recebem, dos multifários sóis que os ilumi<strong>na</strong>m, a<br />

seiva fecun<strong>da</strong> <strong>da</strong>s existências. Sois levados, no infinito, pela<br />

mesma sobera<strong>na</strong> mão que sustenta o nosso globo, mercê <strong>da</strong><br />

suprema lei que incli<strong>na</strong> o gênio à adoração <strong>da</strong> grande causa.<br />

Daqui, seguimos os vossos movimentos, mau grado às inomináveis<br />

distâncias que nos separam, e observamos que esses movimentos<br />

são regulados, qual os nossos, pelas três regras que a<br />

geniali<strong>da</strong>de de Képler vingou formular. Do fundo abismal dos<br />

céus, vós nos ensi<strong>na</strong>is que uma ordem sobera<strong>na</strong> e universal rege<br />

os mundos. Vós nos contais a glória de <strong>Deus</strong> em termos que<br />

deixam a perder de vista os com que a proclamava o rei-profeta,<br />

escreveis no céu o nome desse ente desconhecido, que nenhuma<br />

criatura pode sequer pressentir. Astros de movimentação maravilhosa,<br />

gigantescos focos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> universal, esplendores do céu! –<br />

vós nos fazeis genufletir, como crianças, à vontade divi<strong>na</strong> e os<br />

vossos berços balançam confiantes <strong>na</strong> imensi<strong>da</strong>de, sob o olhar do<br />

Onipotente. Percorreis humildemente a rota a ca<strong>da</strong> qual traça<strong>da</strong>,<br />

ó viajores celestes! E desde os mais remotos séculos, desde as<br />

i<strong>da</strong>des i<strong>na</strong>cessíveis em que saístes do primitivo caos, eis-vos<br />

manifestando a previdente sabedoria <strong>da</strong> lei que vos conduz...<br />

Insensatos! massas inertes, globos cegos, brutos notívagos, que<br />

fazeis? Parai, cessai com esse eterno testemunho...<br />

Detende o turbilhão colossal dos vossos cursos múltiplos.<br />

Protestai contra a força que vos avassala. Que significa essa<br />

obediência servil? Então, filhos <strong>da</strong> matéria, não será ela a sobera<strong>na</strong><br />

do espaço? Dar-se-á que haja leis inteligentes? Forças<br />

diretoras? Nunca, jamais. Laborais num erro insigne, ó estrelas<br />

do infinito! sois vítimas do mais ridículo ilusionismo...<br />

Escutai, pois: no fundo dos vastos desertos siderais, dormita<br />

obscuro um pequenino globo desconhecido. Não tendes acaso


percebido, uma que outra vez, entre as miríades de estrelas que<br />

branqueiam a Via-Láctea, uma estrelinha de ínfima grandeza?<br />

Pois bem, essa estrelinha, como vós, é também um sol e em<br />

torno dele rolam algumas miniaturas de mundos tão pequeninos<br />

que rolariam quais grãos de areia, <strong>na</strong> superfície de um de vós.<br />

Ora, sobre um dos mais microscópicos planos desses microscópicos<br />

mundículos, há uma raça de racio<strong>na</strong>listas e, no seio <strong>da</strong><br />

raça, um núcleo de filósofos que acabam de declarar positivamente,<br />

ó magnificências! – que o vosso <strong>Deus</strong> não existe.<br />

Soberbos pigmeus levantaram-se <strong>na</strong> ponta dos pés, pensando<br />

ver-vos assim de mais perto. Eles vos ace<strong>na</strong>ram para que vos<br />

detivésseis e proclamaram, em segui<strong>da</strong>, que os ouvísseis e que<br />

to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong> estava com eles. Em alto e bom som, proclamam-se<br />

os intérpretes únicos dessa <strong>Natureza</strong> imensa. A lhes<br />

<strong>da</strong>rmos crédito, pertence-lhes, doravante, o cetro <strong>da</strong> razão e o<br />

futuro do pensamento humano está em suas mãos. Firmemente<br />

convencidos estão eles, não só <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, mas, sobretudo, <strong>da</strong><br />

utili<strong>da</strong>de de sua descoberta e <strong>da</strong> benéfica influência resultante<br />

para o progresso desta peque<strong>na</strong> humani<strong>da</strong>de. Ao demais fizeram<br />

constar que todos quantos lhes não compartilhassem a opinião<br />

estavam em contradita com a ciência <strong>na</strong>tural e que a melhor<br />

qualificação cabível a esses dissidentes retar<strong>da</strong>tários é de ignorantes<br />

obcecados. Não vos exponhais, portanto, a serdes tão<br />

desfavoravelmente julga<strong>da</strong>s por esses senhores, ó portentosas<br />

estrelas!<br />

Procedei de maneira a distinguir o nosso imperceptível sol, o<br />

nosso átomo terrestre, a nossa vermínea racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e, aderindo<br />

a esta declaração capital, paralisai o mecanismo do Universo<br />

e com ele a dimensão e harmonia; substituí o movimento pelo<br />

repouso, a luz pela treva, a vi<strong>da</strong> pela morte e, depois, quando<br />

to<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong>de intelectual for aniquila<strong>da</strong>, todo o idealismo<br />

banido <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, suprimi<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a lei, atrofia<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a força,<br />

o Universo se pulverizará, vós vos dispersareis em pó no bojo <strong>da</strong><br />

noite infinita, e se o átomo terrestre ain<strong>da</strong> subsistir, os senhores<br />

filósofos, últimos viventes, estarão satisfeitos. Não mais se<br />

poderá dizer que haja inteligência <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.


3 - A Terra<br />

SUMÁRIO – Lei <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções químicas. – Proporções defini<strong>da</strong>s.<br />

– Do infinitamente pequeno e dos átomos. – Circulação<br />

molecular sob a ação <strong>da</strong>s forças físico-químicas. – A Geometria e<br />

a Álgebra no reino inorgânico. – A estética <strong>da</strong>s ciências. – O número<br />

tudo rege. – Harmonia dos sons. – Harmonia <strong>da</strong>s cores. –<br />

Importância <strong>da</strong> lei; menor importância <strong>da</strong> Matéria, sua inércia. –<br />

O primeiro surto <strong>da</strong> força orgânica no reino vegetal.<br />

Os mesmos argumentos que tiramos do panorama do universo<br />

sideral e <strong>da</strong> inteligência <strong>da</strong> mecânica celeste, por demonstrar o<br />

ascendente <strong>da</strong> força sobre a matéria, podem colher ao exame dos<br />

corpos terrestres. Lá, era o hino do infinitamente grande; aqui, a<br />

minudência do infinitamente pequeno. A força rege identicamente<br />

os movimentos atômicos e as órbitas imensas <strong>da</strong>s esferas<br />

siderais. Mu<strong>da</strong> de objeto, mu<strong>da</strong> de nome <strong>na</strong> classificação dos<br />

homens, mas não deixa de ser sempre a mesma força, isto é: a<br />

atração universal. Chamam-lhe coesão, quando grupa os átomos<br />

que constituem as moléculas, e gravitação, quando impulsa os<br />

astros em torno do centro comum de sua gravi<strong>da</strong>de. O nome<br />

humano não altera, porém, o fato físico.<br />

As moléculas, de constituição substancial, são forma<strong>da</strong>s por<br />

uma reunião geométrica de átomos tomados entre os corpos em<br />

Química chamados simples. Ca<strong>da</strong> molécula é um modelo de<br />

simetria e representa um tipo geométrico. Assim, por exemplo, a<br />

molécula de ácido sulfúrico mono-hidratado é um sólido geométrico,<br />

regular, um heptaedro de base quadra<strong>da</strong>, composto de 7<br />

átomos SH2O4. Os corpos simples, para formar os compostos,<br />

não se podem combi<strong>na</strong>r senão em números proporcio<strong>na</strong>is, determi<strong>na</strong>dos<br />

e invariáveis. Sabemos que se desig<strong>na</strong>m sob o nome<br />

de equivalentes os números que exprimem quanti<strong>da</strong>des ponderáveis<br />

dos diversos corpos suscetíveis de entrarem, elas ou seus<br />

múltiplos, <strong>na</strong>s combi<strong>na</strong>ções químicas e aí se substituírem mutuamente,<br />

para formar compostos quimicamente análogos.<br />

Cem partes de oxigênio, em peso, combi<strong>na</strong>m-se, por exemplo,<br />

com 12,50 de hidrogênio, para formar a água. Esta será<br />

sempre, sempre composta nessa proporção e ninguém poderá,


absolutamente, juntar à combi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> molécula de água uma<br />

partícula a mais de qualquer dos componentes. A água forma<strong>da</strong><br />

pela combustão de uma chama é, identicamente, a mesma <strong>da</strong>s<br />

fontes e dos rios. Do mesmo modo, 100 partes de oxigênio se<br />

combi<strong>na</strong>rão com 350 de ferro para formar o protóxido de ferro.<br />

Regras são essas, absolutas, às quais a matéria é força<strong>da</strong> a obedecer.<br />

A <strong>Natureza</strong> tem horror ao acaso, tanto quanto ao vácuo,<br />

como se dizia outrora. E não só esses equivalentes representam<br />

numericamente to<strong>da</strong>s as combi<strong>na</strong>ções de corpos com o oxigênio,<br />

como to<strong>da</strong>s as desses corpos entre si; de modo que, em nosso<br />

exemplo, se o ferro se combi<strong>na</strong>r com o hidrogênio, será sempre<br />

<strong>na</strong> proporção de 350 (equivalente do ferro) para 12,50 (equivalente<br />

do hidrogênio). De resto, to<strong>da</strong>s essas combi<strong>na</strong>ções obedecem<br />

a regras geométricas e a cristalização dos corpos pode<br />

sempre ser leva<strong>da</strong> a um dos seis tipos fun<strong>da</strong>mentais: – o cubo, os<br />

dois prismas retos, o rombóide e os dois prismas oblíquos.<br />

Para explicar não ape<strong>na</strong>s as combi<strong>na</strong>ções, mas também todos<br />

os movimentos múltiplos que se operam <strong>na</strong>s transformações<br />

incessantes <strong>da</strong> matéria, nos fenômenos de contração e dilatação,<br />

<strong>na</strong> manifestação <strong>da</strong>s diversas proprie<strong>da</strong>des dos corpos, admite-se<br />

que os átomos não se tocam, ain<strong>da</strong> nos corpos mais densos e<br />

mais sólidos, que estão isolados entre si e que, em razão de sua<br />

pequenez, os intervalos que os permeiam guar<strong>da</strong>m a relativi<strong>da</strong>de,<br />

proporcio<strong>na</strong>lmente exata, com os dos corpos celestes. Fi<strong>na</strong>lmente,<br />

assim como os corpos celestes se movem em torno uns dos<br />

outros, sem por isso deixarem de estar unidos num elo solidário,<br />

assim também os átomos oscilam em torno de sua respectiva<br />

posição, sem se afastarem dos limites regulados pela coesão ou<br />

pela afini<strong>da</strong>de molecular. Entre o mundo <strong>da</strong>s estrelas e dos<br />

átomos não há diferença essencial. Engrossai esse cristal, essa<br />

simples molécula, suponde-a desenvolvendo-se a ponto de<br />

atingir o volume do sistema planetário e mais – de uma nebulosa,<br />

e tereis um ver<strong>da</strong>deiro sistema, com suas forças e movimentos.<br />

Se, ao contrário, supuserdes que o sistema planetário se contrai,<br />

que to<strong>da</strong>s as distâncias se encurtam, que todos os corpos que o<br />

integram diminuem e chegam, fi<strong>na</strong>lmente, às proporções de um<br />

agregado químico, tereis regressado ao microcosmo. Além disso,


as medi<strong>da</strong>s expressivas do infinitamente grande, ou pequeno,<br />

estão em nós e não <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, de vez que tudo referimos a nós,<br />

como a um ponto de comparação. As noções de grandeza são<br />

puramente relativas.<br />

A <strong>Natureza</strong> não tem essas maneiras de ver.<br />

Os fenômenos do calor, <strong>da</strong> luz, do som, do magnetismo, explicam-se<br />

por esta concepção dos movimentos atômicos. Sob a<br />

influência dessas forças exteriores, as moléculas se retraem ou se<br />

dilatam e modificam seus movimentos, tal com fazem os mundos,<br />

precipitando o curso no perifélio e retar<strong>da</strong>ndo-o <strong>na</strong>s longínquas<br />

regiões do afélio. Quando, por um choque, produzimos<br />

vibrações num corpo sonoro, suas moléculas agitam-se em<br />

cadência, seguindo o ritmo de sua harmonia. Ora, esses átomos<br />

são de uma pequenez inexprimível. Calculou-se que o número de<br />

átomos encerrados num minúsculo cubo de matéria orgânica do<br />

tamanho de uma cabeça de alfinete, deveria atingir a cifra inconcebível<br />

de oito sextilhões, isto é, 8 seguido de 21 zeros. Suposto<br />

quiséssemos proceder à contagem, <strong>na</strong> proporção de 1.000 por<br />

segundo, haveríamos de viver duzentos e cinqüenta mil anos<br />

para completá-la!<br />

Não o vingaríamos, portanto. Mas, seja como for, a substância<br />

dos corpos é um pequeno mundo, um mundo a<strong>na</strong>lítico, no<br />

seio do qual o infinitamente pequeno é regulado por leis tão<br />

rigorosas quanto as do infinitamente grande, o sideral. Quando<br />

sabemos que uma polega<strong>da</strong> cúbica de trípole contém quarenta<br />

mil milhões de gálios fósseis; quando imagi<strong>na</strong>mos que <strong>na</strong> classe<br />

dos infusórios o microscópio nos faculta distinguir vibriões cujo<br />

diâmetro não excede um milésimo de milímetro e que esses<br />

minúsculos seres se movem <strong>na</strong> água, ágeis, providos de aparelhos<br />

de locomoção, de músculos e de nervos; que se alimentam e<br />

possuem vasos de nutrição; que procuram, perseguem, combatem<br />

a presa nos abismos <strong>da</strong> gota d'água, com veloci<strong>da</strong>de e força<br />

comparáveis à de um cavalo a galope; quando consideramos,<br />

enfim, que esses pequeninos seres são providos de órgãos sensitivos,<br />

já nos não custa crer que as moléculas de gelati<strong>na</strong> e albumi<strong>na</strong>,<br />

que os constituem, são de uma tenui<strong>da</strong>de inimaginável e<br />

que os átomos componentes se integram sem metáfora em nossa


idéia do infinitamente pequeno. Ora, esses átomos não se alteram,<br />

são invariáveis e imutáveis; as moléculas dos corpos compostos<br />

em formação, <strong>da</strong>s quais se encontram eles geometricamente<br />

associados, não mu<strong>da</strong>m mais, ain<strong>da</strong> que passando de um<br />

ser para outro. Pela troca perpétua, operante em todos os seres <strong>da</strong><br />

<strong>Natureza</strong> e que a todos os encadeia sob o império de uma comunhão<br />

substancial, pela comunicação permanente <strong>da</strong>s coisas entre<br />

si, <strong>da</strong> atmosfera com as plantas e todos os seres que respiram,<br />

<strong>da</strong>s plantas com os animais, <strong>da</strong> água com to<strong>da</strong>s as substâncias<br />

organiza<strong>da</strong>s, pela nutrição e assimilação que perpetuam a cadeia<br />

<strong>da</strong>s existências, as moléculas entram nos corpos e deles saem,<br />

mu<strong>da</strong>m de proprietário a ca<strong>da</strong> instante, mas conservam essencialmente<br />

a sua <strong>na</strong>tureza intrínseca. Reconhecemos, com os nossos<br />

adversários, que a molécula de ferro não varia, quer quando,<br />

incorpora<strong>da</strong> ao meteorito, percorre o Universo, quer quando<br />

retine no trilho ou <strong>na</strong> ro<strong>da</strong> do vagão, ou ain<strong>da</strong> quando, em glóbulo<br />

sanguíneo, reponta à fronte do poeta. Qualquer que seja, pois,<br />

o habitáculo transitório <strong>da</strong>s moléculas, elas conservam a sua<br />

<strong>na</strong>tureza e proprie<strong>da</strong>des essenciais. Os átomos são os infinitamente<br />

pequenos, sempre separados entre si e, to<strong>da</strong>via, encadeados<br />

por essa mesma força invisível que retém as esferas <strong>na</strong>s suas<br />

órbitas. To<strong>da</strong> matéria, orgânica ou inorgânica (visto ser idêntica)<br />

obedece primacialmente a essa força. Suas mínimas partículas<br />

são como astros no espaço, atraem-se e repelem-se por seus<br />

respectivos movimentos. Sob o véu dessa matéria, que se nos<br />

figura pesa<strong>da</strong> e densa, devemos, portanto, lobrigar a “força”, que<br />

a avassala e rege o mineral, pesa os elementos, orde<strong>na</strong> as combi<strong>na</strong>ções,<br />

traça regras absolutas e, gover<strong>na</strong>ndo discricio<strong>na</strong>riamente,<br />

faz dela uma escrava imbele, maleável e submissa às leis primíge<strong>na</strong>s<br />

que consagram a estabili<strong>da</strong>de do mundo. É indubitável que<br />

os estados <strong>da</strong> matéria são regulados por leis. Já admirastes,<br />

alguma vez, os processos característicos <strong>da</strong> cristalização? Nunca<br />

exami<strong>na</strong>stes ao microscópio a formação <strong>da</strong>s estrelas de neve e<br />

<strong>da</strong>s moléculas cristali<strong>na</strong>s de gelo? Nesse mundo invisível, como<br />

no universo visível, ca<strong>da</strong> movimento, ca<strong>da</strong> associação se efetua<br />

sob a direção de uma lei. É sempre o mesmo ângulo, as mesmas<br />

linhas e sucessões. Jamais as leis huma<strong>na</strong>s lograram obediência<br />

tão absolutamente passiva.


Nunca geômetra algum construiu figura tão perfeita qual a<br />

que <strong>na</strong>turalmente reveste a mais insignificante molécula.<br />

As leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> regem o movimento dos átomos nos seres<br />

vivos, como nos inorgânicos: a mesma molécula passa sucessivamente<br />

do mineral ao vegetal e ao animal, neles incorporandose<br />

segundo as leis que organizam to<strong>da</strong>s as coisas.<br />

A molécula de ácido carbônico, a exalar-se do peito opresso<br />

do moribundo em seu leito de dor, vai incorporar-se à flor do<br />

jardim, à relva do prado, ao tronco <strong>da</strong> floresta. A molécula de<br />

oxigênio que se desprende dos últimos ramos do anoso carvalho<br />

vai incorporar-se ao cabelinho louro do recém-<strong>na</strong>scido, no seu<br />

berço de sonhos. Na<strong>da</strong> podemos mu<strong>da</strong>r <strong>na</strong> composição dos<br />

corpos. Na<strong>da</strong> <strong>na</strong>sce, <strong>na</strong><strong>da</strong> morre. Só a forma é perecível. Só a<br />

substância é imortal. Constituímo-nos <strong>da</strong> poeira dos antepassados,<br />

os mesmíssimos átomos e moléculas.<br />

Na<strong>da</strong> se cria, <strong>na</strong><strong>da</strong> se perde.<br />

Uma vela que ardeu completamente deixa de existir para os<br />

olhos vulgares e nem por isso deixará de existir integralmente.<br />

Se lhe recolhêssemos as substâncias consumi<strong>da</strong>s, reconstitui-laíamos<br />

com o seu peso anterior. Os átomos viajam de um a outro<br />

ser, guiados pelas forças <strong>na</strong>turais. O acaso não colhe nessas<br />

combi<strong>na</strong>ções e casamentos. E se nesta permuta perpétua dos<br />

elementos constitutivos de todos os corpos a Natura, bela e<br />

radiante, subsiste em sua grandeza, esta potência peculiar à Terra<br />

é unicamente devi<strong>da</strong> à previdência e rigor <strong>da</strong>s leis que organizam<br />

essas transmigrações e etapas atômicas, de guarnição em guarnição.<br />

Se a organização militar <strong>da</strong> França se atribui a um concelho<br />

inteligente, parece-nos que a organização química dos seres,<br />

aliás muito superior àquela, atesta um plano inteligente e um<br />

pensamento diretor.<br />

No entanto, o papel que a lei desempenha no Universo an<strong>da</strong><br />

por aí relegado à categoria de fábula pelo autor <strong>da</strong> Resposta às<br />

Cartas de Liebig. Em sua opinião, o grande químico não tem<br />

motivos para dizer que foi a lei que tudo construiu 11 .


A lei não passaria de uma idéia geral, induzi<strong>da</strong> de caracteres<br />

sensíveis; e como se não encontra a lei senão depois <strong>da</strong>s experiências,<br />

seguir-se-ia que ela <strong>na</strong> reali<strong>da</strong>de não existe!<br />

“Enquanto acreditarem que a lei fez o mundo, em vez de a<br />

considerarem como resultante dele e por ele ilumi<strong>na</strong>ndo-se, a<br />

inteligência huma<strong>na</strong> dormirá <strong>na</strong>s trevas e a idéia há de antepor-se<br />

à experiência.<br />

Para exilar <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> o espírito, particularmente o espírito<br />

geométrico, é preciso recusar à evidência o papel representado<br />

pelo número e obsti<strong>na</strong>r-se a não ouvir a universal harmonia<br />

profusamente espalha<strong>da</strong> <strong>na</strong>s obras cria<strong>da</strong>s. A harmonia não é tão<br />

só a fraseologia musical escrita em partituras e executa<strong>da</strong> por<br />

instrumentos humanos; não consiste ape<strong>na</strong>s nessas obras-primas<br />

a justo título admira<strong>da</strong>s e aflora<strong>da</strong>s nos belos dias de inspiração,<br />

dos cérebros dos Mozart e dos Beethoven. A harmonia enche o<br />

Universo com os seus acordes. Antes de tudo, diga-se, a música<br />

propriamente dita é, de si mesma e por inteiro, forma<strong>da</strong> pelo<br />

número; ca<strong>da</strong> som é uma série de vibrações em quanti<strong>da</strong>de<br />

defini<strong>da</strong> e as relações harmônicas dos sons não são mais do que<br />

relações numéricas. A gama é uma escala de cifras e os tons,<br />

maior e menor, são criados pelos números, assim como os acordes<br />

não passam, também eles, de uma combi<strong>na</strong>ção algébrica.<br />

Depois, como a provar a exclusiva soberania do número, vemos<br />

que todo compositor há de obedecer ao compasso. Estas observações<br />

fun<strong>da</strong>mentais, sugeri<strong>da</strong>s pelo estudo do som, têm aplicação<br />

não menos valiosa no concernente à luz.<br />

Assim como os sons derivam do número de vibrações sonoras,<br />

assim as cores derivam <strong>da</strong>s vibrações luminosas. O colorido<br />

de uma paisagem vale por uma espécie de música. A verdura dos<br />

prados é forma<strong>da</strong> pelo número, qual o tema de uma melodia; a<br />

rosa que se desbotou é o centro de uma esfera de vibrações<br />

luminosas, constituindo o matiz aparente, e o rouxinol que tri<strong>na</strong><br />

em carícias, projeta no ar as vibrações sonoras características do<br />

seu tônus. Todo movimento é número, e todo o número é harmonia.<br />

Não há dúvi<strong>da</strong> de que existe, nesse estado de coisas, uma parte<br />

reserva<strong>da</strong> às leis fisiológicas <strong>da</strong> nossa organização. Os sons


audíveis começam <strong>na</strong>s vibrações lentas e acabam <strong>na</strong>s agu<strong>da</strong>s,<br />

que o ouvido pode captar, sejam de 16 a 36.850 por segundo 12 .<br />

As cores visíveis começam <strong>na</strong>s vibrações lentas e extinguemse<br />

com as mais rápi<strong>da</strong>s que a nossa reti<strong>na</strong> possa apreender, ou<br />

sejam, de 458 trilhões por segundo, a 727 trilhões por segundo 13 .<br />

Mas, não haveria como <strong>da</strong>í concluir que haja nisso ape<strong>na</strong>s<br />

uma relação fortuita entre a nossa organização e os movimentos<br />

exteriores.<br />

Sons e cores estendem-se abaixo e acima dos limites de nossa<br />

organização, igualmente subordi<strong>na</strong>dos a regras numéricas. Há<br />

sons que o ouvido humano não pode captar, assim com há cores<br />

que nos escapam à reti<strong>na</strong>. E no próprio limite de nossas percepções<br />

a relação entre estas e os nossos sentidos procede, ao menos<br />

em nossa opinião, do fato de não ter sido a construção do nosso<br />

organismo alheio ao número – o elo universal.<br />

Também a forma, em suas dissimulações mais ondeantes,<br />

pertence ao número, pois to<strong>da</strong> figura é determi<strong>na</strong><strong>da</strong> pelo algarismo.<br />

O sentido i<strong>na</strong>to <strong>da</strong> estética que nos inspira busca as formas<br />

mais puras. O círculo nos encanta com a sua curva graciosa.<br />

A Geometria, em nossas construções, não desgarra por vere<strong>da</strong>s<br />

arbitrárias. A Arquitetura apóia-se, conforme as suas aplicações,<br />

sobre a forma estética do nosso pensamento, ain<strong>da</strong> que por<br />

vezes suce<strong>da</strong> (como em nossa época por exemplo) não ter estilo<br />

algum.<br />

Até <strong>na</strong>s figuras simbólicas <strong>da</strong>s tradições religiosas desejamos<br />

simetria, simulando-a às vezes em aparente desordem. Em<br />

contemplar um emaranhado de coisas, a vista logo se nos fatiga,<br />

ao passo que se embevece e repousa ao fixar as <strong>da</strong>nças de movimentos<br />

melodiosos. Característica peculiar do reino mineral, a<br />

simetria tor<strong>na</strong>-se menos severa ao graduar-se nos reinos orgânicos.<br />

Os vegetais modelam-se pelo seu tipo ideal, mas deixam uma<br />

certa latitude às forças que os modificam, e assim é que crescem<br />

em duas direções opostas; as folhas sucedem-se no seu ciclo, em<br />

torno <strong>da</strong> haste, em número característico; suas flores não esca-


pam à ordem numérica. Número e forma são as bases <strong>da</strong> classificação<br />

vegetal. Os animais, com o manifestarem o tipo de ca<strong>da</strong><br />

espécie, dão à simetria o seu papel e o próprio homem é uma<br />

uni<strong>da</strong>de composta por duas metades simetricamente sol<strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />

Acima de to<strong>da</strong>s essas formas particulares, sobera<strong>na</strong> se nos<br />

manifesta a uni<strong>da</strong>de de plano.<br />

Nas espécies mais diferentes encontram-se a<strong>na</strong>logias significativas.<br />

Na<strong>da</strong> menos parecido com a mão huma<strong>na</strong> do que a pata<br />

do cavalo e, no entanto, se dissecardes a pata, lá encontrareis um<br />

rudimento de mão com os dedos sol<strong>da</strong>dos.<br />

Assim a ordem, a mesma ordem numérica, impera <strong>na</strong> Terra<br />

como nos céus. Não vamos pensar que as harmonias <strong>na</strong>turais,<br />

despercebi<strong>da</strong>s ao homem, hajam de ser ruídos informes e constituam<br />

exceção. O vento que suspira entre os cedros e pinheiros; o<br />

lamento <strong>da</strong>s vagas <strong>na</strong> praia arenosa; o zumbido do inseto no<br />

âmbito dos bosques; todos os indefiníveis sons que animam a<br />

<strong>Natureza</strong> são vibrações sonoras, pertinentes ao rei<strong>na</strong>do do número.<br />

O fato <strong>na</strong> aparência mais insignificante, tanto quanto o de<br />

maior vulto, resulta de leis determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s. Com que direito, pois,<br />

ousam declarar os negadores do espírito a materiali<strong>da</strong>de absoluta<br />

do Universo? Que pode a matéria só por si? Que será um átomo<br />

de oxigênio ou de carbono considerado à revelia de to<strong>da</strong> e qualquer<br />

lei? Em que caos mergulhará a <strong>Natureza</strong> se aniquilardes a<br />

força que a mantém? Imaginemos por um momento que o número<br />

deixa de existir, e esta só conjectura aniquila, de pronto, to<strong>da</strong>s<br />

as harmonias que acabamos de expla<strong>na</strong>r. Ora, perguntamos: pode<br />

a facul<strong>da</strong>de matemática pertencer à matéria? Se assim o julgá-la,<br />

resta dizer-nos que matéria será essa: oxigênio, azoto, carbono,<br />

ferro, alumínio. Evidentemente não, pois a lei supera todos esses<br />

corpos e é precisamente ela – a lei – que os combi<strong>na</strong>, casa,<br />

dissocia, separa, visto que os gover<strong>na</strong>. Que vos resta, então?<br />

Pertencerão à matéria o som, a luz, o magnetismo? Mas a experiência<br />

vos demonstra o contrário. Nisso, tendes outras tantas<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de movimento. Quem determi<strong>na</strong> um <strong>da</strong>do movimento<br />

ao som e outro à luz? Quem regula essas forças? Aparentemente,<br />

serão elas mesmas, ou uma força superior que as abran-


ja a to<strong>da</strong>s. A matéria não é, em todos os seus movimentos, senão<br />

o objeto passivo.<br />

Inegável, portanto, que <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> inorgânica a matéria é<br />

escrava e a força é sobera<strong>na</strong>.<br />

Contudo, é precisamente o que põem em dúvi<strong>da</strong> os nossos<br />

campeões do materialismo. Já tivemos o ensejo de apreciar o<br />

valor de seus argumentos no que diz com a <strong>Natureza</strong> inorgânica.<br />

Edifiquemo-nos agora, sem tar<strong>da</strong>nça, com a maneira por que<br />

explicam a <strong>Natureza</strong> orgânica.<br />

Quando queimamos cautelosamente uma planta, não é raro<br />

obtermos o resíduo de um esqueleto silicoso correspondente à<br />

forma primitiva <strong>da</strong> haste. É a substância que a constituía, proveniente<br />

<strong>da</strong> substância do solo. A planta integral encerra a mais<br />

certos corpos determi<strong>na</strong>dos por sua <strong>na</strong>tureza: assim, por exemplo,<br />

o trigo contém o glúten azotado; a videira, cal; a batata,<br />

potassa; o chá, magnésia; o tabaco, salitre, etc. A ca<strong>da</strong> planta<br />

convém uns tantos elementos minerais e a própria planta é que<br />

os sabe escolher. O agricultor inteligente a<strong>da</strong>pta a sua lavoura à<br />

<strong>na</strong>tureza do terreno e escolhe os adubos de acordo com as safras<br />

que colima. No conhecimento <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> espécie<br />

está o segredo <strong>da</strong>s searas e dos alqueives. Diante disto, os teóricos<br />

de que nos ocupamos só se explicam pela metade. A raiz<br />

absorve – dizem – de acordo com as leis fixas de afini<strong>da</strong>de, os<br />

elementos que lhe jazem em torno. E, como se temessem não ser<br />

bem compreendido o papel tão judiciosamente atribuído à tal<br />

afini<strong>da</strong>de eletiva, acrescentam (ver Moleschott) que a planta<br />

fabrica por si mesma a massa principal do seu volume. Haverá,<br />

quem, depois de uma tal declaração, ain<strong>da</strong> se negue a outorgar à<br />

força o ascendente diretivo que lhe cabe? Pois há, visto que tudo<br />

isso é dito atribuitivamente à matéria. A evaporação que faculta<br />

às raízes a absorção dos elementos <strong>da</strong> terra vegetal, dizem, e a<br />

afini<strong>da</strong>de dos líquidos através <strong>da</strong>s paredes celulares que os<br />

separam, tais as facul<strong>da</strong>des mestras <strong>da</strong> matéria, que engendram o<br />

crescimento. Eis uma pobre raiz que vegeta no cimo do rochedo:<br />

necessita de sombra, de silêncio, de uma certa alimentação de<br />

que a separam seixos e calhaus... Examinem-se-lhe os vagos,<br />

mas, enérgicos desejos: ela procura, coleia, recua, contor<strong>na</strong>


pedras, desce, sobe, lança-se ávi<strong>da</strong> a qualquer ponto que um quê<br />

de instintivo a faz adivinhar, recai por vezes desfaleci<strong>da</strong>, mas<br />

logo se reanima de novos ímpetos, derruba todos os obstáculos e<br />

chega, enfim, à Ca<strong>na</strong>ã prometi<strong>da</strong>. Desde então aí se fixa, implanta-se<br />

e afirma seus direitos de conquista. A árvore mofi<strong>na</strong> que<br />

delirava outrora em calafrios de consunção, retoma prestes o<br />

vigor <strong>na</strong>tural, bracejando pelo solo os seus ramos luxuriantes.<br />

Ousar-se-á admitir aqui, mais formalmente ain<strong>da</strong> do que <strong>na</strong><br />

cristalização mineral, a inexistência de um princípio inteligente,<br />

de uma força orgânica peculiar?<br />

Por nós, confessamo-lo sem reservas: <strong>na</strong> manifestação dessas<br />

tendências instintivas sau<strong>da</strong>mos o ser virtual, a força intrínseca<br />

do vegetal, que constrange a matéria a obedecer-lhe.<br />

Parece-nos que sois conseqüentes atribuindo à matéria essa<br />

afini<strong>da</strong>de eletiva (como se a matéria discernisse!), quando nós a<br />

inferimos no ser vegetal, que, aflorado <strong>na</strong>s condições mais<br />

díspares, sabe adivinhar por to<strong>da</strong> a parte os elementos necessários<br />

à existência <strong>da</strong> sua espécie.<br />

Ó pretensos sábios, que acreditais fabricar ciência arrastando<br />

a inteligência em campo raso de despautérios, deixai que vos<br />

acuse e lastime não terdes sabido ver, nem sentir, os cenários <strong>da</strong><br />

<strong>Natureza</strong>! O aspecto admirável de uns tantos sítios, nos quais a<br />

graça e a beleza se conjugam sob todos os prismas; a movimentação<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>na</strong> viridência constante de prados e florestas; a<br />

irisação <strong>da</strong> luz-clara, marcheta<strong>da</strong> de flocos de ouro; o perfil<br />

silencioso <strong>da</strong>s árvores; o espelho translúcido dos lagos que<br />

refletem o Sol; o calor primaveril que aquece a atmosfera; o<br />

sen<strong>da</strong>l <strong>da</strong>s selvas e o perfume <strong>da</strong>s flores: to<strong>da</strong>s as maravilhas,<br />

ternuras, carícias <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> ficaram estranhas à vossa inércia.<br />

As contemplações desta <strong>na</strong>tureza terrestre oferecem, contudo,<br />

grandes encantos e acarretam, por vezes, revelações inespera<strong>da</strong>s.<br />

Lembro-me e confesso, ain<strong>da</strong> que possais rir <strong>da</strong> minha sensibili<strong>da</strong>de<br />

– lembro-me, repito, de haver passado horas deliciosas,<br />

admirando solitariamente umas quantas paisagens. Não há<br />

categorizar aqui as impressões de que falo, pois quem tenha<br />

olhos de ver encontra-las-á por to<strong>da</strong> parte. O Sol, não posto<br />

ain<strong>da</strong>, mas nublado, ilumi<strong>na</strong>va as alturas, colorindo de matizes


delicadíssimos e esquisitos as nuvens mais altas, cúmulus louros<br />

a vogarem lentos, acima dos círrus argenteados. Um vento suave<br />

e insensível à superfície do solo balouçava aqueles grupos polícromos,<br />

nos quais os tons de feérica paleta, do áureo ao róseo,<br />

harmonizavam-se no contraste, quais acordes de um coro celestial.<br />

A meus pés fremia a on<strong>da</strong> translúci<strong>da</strong> do lago imenso, a<br />

sumir-se no horizonte longínquo. Profundo silêncio amortalhava<br />

a ce<strong>na</strong>. À beira d'água, não longe, alguns capões de árvores e de<br />

arbustos refletiam-se no espelho móbil, com proporções gigantescas.<br />

A massa equórea refletia simultaneamente a terra e o céu,<br />

opondo às luzes de cima as sombras de baixo. Quadro digno dos<br />

grandes paisagistas, que costumamos admirar <strong>na</strong>s telas de um<br />

Cláudio Lorrain e de um Poussin, mas cuja simplici<strong>da</strong>de inimitável<br />

transcende a todo poder imagi<strong>na</strong>tivo! Às vezes, o silêncio<br />

ambiente era quebrado pelo cincerro dos rebanhos distantes,<br />

tangidos ao pastoreio, quando não pelas copias de alados cantores.<br />

Diante desse conjunto de tanta beleza, vela<strong>da</strong> embora, de<br />

tanta vivaci<strong>da</strong>de, apesar de aparentemente morto, de tal eloqüência<br />

em meio do silêncio, havia um esplendor tamanho e tão<br />

imperioso, que eu me senti penetrado <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> universal, difusa<br />

no mesmo ar que respirava por todos os poros. Ela dizia-me que<br />

as árvores vivem, que as plantas respiram e sonham! Dizia-me<br />

que no ar e <strong>na</strong> luz, em que a supomos i<strong>na</strong>nima<strong>da</strong>, ela se eleva e<br />

se engrandece para a fase indecisa <strong>da</strong>s primeiras manifestações<br />

do ser. Eu bem via, com os olhos do químico, a sucessivi<strong>da</strong>de<br />

rápi<strong>da</strong> e incessante dos átomos constituintes do corpo, desde a<br />

erva tenra até a nuvem. Sabia que um di<strong>na</strong>mismo grandioso e<br />

incoercível lhe põe em circulação turbilho<strong>na</strong>r as moléculas<br />

simples, alter<strong>na</strong>tivamente combi<strong>na</strong><strong>da</strong>s <strong>na</strong> sucessão dos corpos.<br />

Contudo, no âmago desse movimento, pressentia a força que<br />

o acarreta; no fundo dessas aparências admirava a lei diretriz <strong>da</strong>s<br />

coisas cria<strong>da</strong>s. Domi<strong>na</strong>do pelo poder mesmo dessas leis, que<br />

irradiam a beleza no espaço com a mesma facili<strong>da</strong>de com que o<br />

lavrador semeia em campo fértil, profun<strong>da</strong>mente emocio<strong>na</strong>do<br />

nessa comunhão passageira do meu eu com a vi<strong>da</strong> inconsciente<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, senti-me como que transportado a uma espécie de<br />

êxtase, enquanto as imagens aéreas <strong>da</strong>quele céu magnífico se me


efletiam n'alma, qual se o fizessem <strong>na</strong> face espelhante de um<br />

lago tranqüilo.<br />

É nesses instantes de contemplação, fugazes e indescritíveis,<br />

que a idéia estética de <strong>Deus</strong> me surge mais luminosa e maiormente<br />

me avassala. São revelações estas, que não posso exprimir<br />

e nem a mim próprio definir, quando me ocorrem. Sinto-me<br />

subjugado pela necessi<strong>da</strong>de de reconhecer uma causa para essa<br />

beleza, uma causa que não posso nomear e que, <strong>na</strong><strong>da</strong> obstante,<br />

me surge com as características <strong>da</strong> própria beleza, <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de,<br />

<strong>da</strong> ternura, do amor e assim também com as do poder, <strong>da</strong> magnitude<br />

e <strong>da</strong> domi<strong>na</strong>ção. Não é mais, então, pela inteligência, mas<br />

pelo coração que me compenetro <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>. Deverei<br />

confessar que me sinto às vezes surpreso e acabrunhado por uma<br />

emoção profun<strong>da</strong>? Não, por isso que, <strong>na</strong> opinião dos contraditores,<br />

todo si<strong>na</strong>l de emoção só tem origem <strong>na</strong> centrali<strong>da</strong>de variável<br />

do coração a<strong>na</strong>tômico, ou <strong>na</strong> secreção <strong>da</strong> glândula lacrimal, mais<br />

ou menos sensível por temperamento e que, portanto, to<strong>da</strong>s as<br />

maravilhas aqui expendi<strong>da</strong>s não passam de cego resultado, baldo<br />

de senso, <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções materiais engendra<strong>da</strong>s pela química e<br />

pela física orgânicas!<br />

“O <strong>Deus</strong> eterno, onisciente, onipotente, infinitamente sábio,<br />

passou-me ante os olhos.” – exclamava Linneu, após seus admiráveis<br />

trabalhos de Botânica. – “Não o vi face a face, mas o seu<br />

reflexo me saturou o espírito de pasmo e admiração. Acompanhei-lhe<br />

o traço em to<strong>da</strong>s as coisas cria<strong>da</strong>s, e em to<strong>da</strong>s as suas<br />

obras, <strong>da</strong>s menores às maiores, e mesmo <strong>na</strong>s mais imperceptíveis,<br />

quanta força, quanta sabedoria, quanta perfeição indefinível!<br />

Observei como os seres animados se superpõem e se encadeiam<br />

no reino vegetal, os vegetais por sua vez, nos minerais que<br />

jazem <strong>na</strong>s entranhas do globo, ao mesmo tempo em que este<br />

globo gravita, num plano invariável, ao redor do sol que lhe deu<br />

a vi<strong>da</strong>. Enfim, vi o Sol e todos os astros, todo o sistema sideral<br />

imenso, incalculável <strong>na</strong> sua infinitude, moverem-se no espaço,<br />

suspensos no vácuo por um motor primário, incompreensível, o<br />

Ser dos seres, o Guia, o Conservador do Universo, Mestre e<br />

Operário de to<strong>da</strong> a obra universal...


“To<strong>da</strong>s as coisas cria<strong>da</strong>s dão testemunho do poder e sabedoria<br />

divinos, ao mesmo tempo em que se fazem tesouro e pábulo de<br />

nossa felici<strong>da</strong>de. A utili<strong>da</strong>de que elas têm testificam a bon<strong>da</strong>de<br />

de quem as fez; a sua beleza demonstra sabedoria, enquanto que<br />

por sua harmonia, conservação, proporcio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e inesgotável<br />

fecundi<strong>da</strong>de, proclamam a grandeza do poder divino!<br />

“É a isso que quereis chamar – Providência? É efetivamente o<br />

seu nome, e não há outro que o seu conselho, para explicar o<br />

mundo. É, pois, justo acreditar que há um <strong>Deus</strong> imenso, eterno,<br />

incriado, sem o qual <strong>na</strong><strong>da</strong> existe e que tenha feito e coorde<strong>na</strong>do<br />

esta obra universal.<br />

“Esse <strong>Deus</strong> escapa-se-nos à vista e, não obstante, no-la repleta<br />

<strong>da</strong> sua luz. Só em pensamento podemos aprendê-lo e é neste<br />

profundo santuário que se oculta a sua majestade.”<br />

Nossos adversários não compreendem estes arroubos d’alma.<br />

Ao demais, para sentir a poesia <strong>da</strong>s coisas, é preciso, antes de<br />

tudo, possuir a poesia dentro de si mesmo, é preciso que a alma<br />

entre em vibração. O espírito que se degra<strong>da</strong> à função de produto<br />

químico não é suscetível de emoções que tais.<br />

Por conseqüência, e já que aqui falamos <strong>da</strong> estética <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong><br />

i<strong>na</strong>nima<strong>da</strong>, notemos de passagem um exemplo <strong>da</strong> tendência<br />

dos nossos químicos para estender a to<strong>da</strong>s as coisas o rigorismo<br />

de suas concepções. Deixemo-los resvalar do ver<strong>da</strong>deiro ideal<br />

para um realismo irreal.<br />

O Sr. Moleschott é, sem favor, o apóstolo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de físicoquímica.<br />

Diga-se mesmo, de um realismo assaz exagerado.<br />

Julgai-o, pois, pela sua maneira de poetizar a <strong>Natureza</strong>.<br />

Gostais, sem dúvi<strong>da</strong>, do brilho <strong>da</strong>s flores, dos seus matizes<br />

delicados, dos seus aromas tão sutis? Pois bem: mal podeis<br />

imagi<strong>na</strong>r o que sucede quando vos debruçais sobre uma rosa<br />

para, <strong>na</strong>ri<strong>na</strong>s dilata<strong>da</strong>s, aspirar-lhe a fragrância. Ouçamos o<br />

químico:<br />

“Quando respiramos o balsâmico perfume dos prados, não<br />

absorvemos mais que ver<strong>da</strong>deiras substâncias excrementais dos<br />

vegetais.


“Seguramente, não temos o direito de nos surpreender ao<br />

vermos coleópteros fimícolas e animais outros, de uma ordem<br />

superior, comerem carniça (sic) e excrementos, bem como que<br />

todo o reino vegetal viva de excretos dos animais, uma vez que<br />

nós também nos deliciamos com substâncias decompostas por<br />

efeito <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> vegetal e cuja origem é análoga à <strong>da</strong> uri<strong>na</strong> e <strong>da</strong>s<br />

matérias fecais.”<br />

Nunca o suspeitastes? Pois aí tendes uma coisa bem séria para<br />

as flores e para quantos as estimam e admiram, porque, enfim...<br />

14<br />

Para retor<strong>na</strong>r ao assunto e termi<strong>na</strong>r pela consideração geral <strong>da</strong><br />

ação <strong>da</strong> lei no ambiente <strong>da</strong> Terra, lembremo-nos de que essa<br />

ação permanente é condicio<strong>na</strong>l à existência do mundo, tanto<br />

quanto de sua beleza. Quando os corpos vibram, quando a cor<strong>da</strong><br />

resso<strong>na</strong> ao atritar o arco; quando o sino geme ao toque do ba<strong>da</strong>lo,<br />

as moléculas se agitam cadencia<strong>da</strong>s, tal como as esferas no<br />

espaço. A harmonia <strong>da</strong>s esferas não é uma frase vã. Ela é efeito<br />

de uma força e essa força é a mesma para os dois casos, quer se<br />

chame coesão, quando grupa moléculas, quer se chame gravitação,<br />

quando junge os corpos celestes. Força primordial, elementar,<br />

que anima to<strong>da</strong> substância, ora determi<strong>na</strong>ndo uma simples<br />

aproximação molecular, ora sujeitando-a a diretivas determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s,<br />

segundo as condições em que estejam coloca<strong>da</strong>s. Essa força,<br />

podemos denominá-la físico-química. Presto havemos de verificar<br />

a existência de uma força distinta, a reger o turbilhão <strong>da</strong><br />

matéria nos seres vivos. É pelo sistema nervoso que o animal se<br />

distingue do mineral e do vegetal. A partir do estado rudimentar,<br />

onde se apresenta com os zoófitos, até o seu mais completo<br />

desenvolvimento <strong>na</strong> espécie huma<strong>na</strong>, o sistema nervoso é o<br />

índice <strong>da</strong> animali<strong>da</strong>de e preside aos fenômenos imateriais. Por<br />

ele é que percebemos to<strong>da</strong> e qualquer sensação; é ele que possibilita<br />

nossos movimentos voluntários e é por ele, ain<strong>da</strong>, que<br />

manifestamos o pensamento. Elimi<strong>na</strong>i os nervos e tereis de fato<br />

destruído a sensação. Cortai o fio telegráfico e já não transmitireis<br />

o despacho.<br />

Se o nervo ótico paralisar, ain<strong>da</strong> que intacto o globo ocular, o<br />

animal fica cego; as imagens prosseguirão, formando-se <strong>na</strong>


câmara visual, mas insensíveis. O ouvido pode estar perfeitamente<br />

são, fisicamente constituído para recolher as vibrações<br />

sonoras e, no entanto, não haverá sons perceptíveis, desde que lá<br />

não exista o nervo acústico para os captar e transmitir ao cérebro<br />

e também que haja um cérebro vivo para os receber.<br />

É, pois, de cérebro e nervos que se utiliza a força que percebe<br />

e julga.<br />

No reino vegetal, particularmente em certas espécies como<br />

sejam a sensitiva, a dionéia, o desmódio, nós reconhecemos uma<br />

energia latente, correspondente ao nosso sistema nervoso.<br />

Indiscutível é, to<strong>da</strong>via, que a força físico-química, a força vegetal,<br />

a força animal, a inteligência, não são uma só forçamatéria.<br />

Expliquem-nos, então, como uma molécula é sucessivamente<br />

anima<strong>da</strong> por forças tão distintas.<br />

Como admitir que o átomo de ferro, que agora se integra num<br />

homem, num animal ou numa planta, constituísse momentos<br />

antes a ferrugem de uma velha estátua, por exemplo? Se ele é ao<br />

mesmo tempo matéria e força, e se a força é única, como explicar<br />

produza fenômenos tão distintos?<br />

Acima <strong>da</strong> matéria existe um princípio imaterial, absolutamente<br />

distinto. Um espírito anima a matéria, qual o disse Vergílio.<br />

Diante <strong>da</strong> organização regular dos seres terrestres, não nos<br />

cabe mais que repetir a resposta, já de um século, <strong>da</strong><strong>da</strong> ao Sistema<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. A matéria é passiva e incapaz de coorde<strong>na</strong>r-se<br />

por si mesma num todo regular. Contudo, ela é dota<strong>da</strong> de umas<br />

tantas proprie<strong>da</strong>des que a fazem suscetível de obediência às leis.<br />

Ora, como pode a matéria cega ter desígnios e tender para uma<br />

fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de? Como, ininteligente, teria engendrado seres inteligentes?<br />

Como se gover<strong>na</strong>ria por leis sábias, se não conhece o que<br />

seja sabedoria? Como rei<strong>na</strong>r uma ordem majestosa entre as suas<br />

partes, se ela não conhece a ordem?<br />

Como, enfim, essa utili<strong>da</strong>de sensível e perceptível em to<strong>da</strong>s<br />

as suas operações, se ela, de fato, não tem alvo?<br />

Aí estão uns tantos problemas a que os materialistas hodiernos<br />

vão tentar responder em detalhe <strong>na</strong>s suas discussões 15 .


Assim, para resumir o estado <strong>da</strong> questão e os princípios de<br />

nossa refutação do ponto de vista do mundo inorgânico, temos<br />

estabelecido que, no céu como <strong>na</strong> Terra, a força rege a matéria,<br />

que a harmonia é constituí<strong>da</strong> pelo número e que este leva consigo,<br />

por to<strong>da</strong> a parte, o cunho intelectual. Em parte alguma,<br />

porém, a inteligência criadora aparece tão evidente como <strong>na</strong><br />

organização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>na</strong> existência do homem.<br />

É o que vamos verificar nos capítulos seguintes.


Segun<strong>da</strong> Parte<br />

A Vi<strong>da</strong><br />

1 - Circulação <strong>da</strong> Matéria<br />

SUMÁRIO – Viagens Incessantes dos átomos através dos organismos;<br />

fraterni<strong>da</strong>de universal dos seres vivos; soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />

indissolúvel entre as plantas, os animais e o homem. – Vi<strong>da</strong> aparente<br />

e vi<strong>da</strong> invisível. O ar, a respiração, a alimentação, a desassimilação.<br />

– O corpo, transformação perpétua. – O equilíbrio <strong>da</strong>s<br />

funções vitais prova uma força diretora. – A decomposição ca<strong>da</strong>vérica<br />

prova que a vi<strong>da</strong> é uma força e que essa força não é uma<br />

quimera. – Homúnculos. – Fatos e atitudes <strong>da</strong> Química orgânica.<br />

– Essa química não cria seres nem órgãos. – A Matéria circula, a<br />

Força gover<strong>na</strong>.<br />

O poder que rege os astros e desata os esplendores de sua riqueza<br />

<strong>na</strong> imensidão dos céus; a força que regula a construção de<br />

minerais e plantas, <strong>na</strong> Terra; a ordem que espalha a harmonia no<br />

mundo, vão apresentar-se-nos agora sob um outro aspecto,<br />

<strong>da</strong>ndo-nos testemunho não menos irresistível do princípio inteligente<br />

que preside os nossos destinos.<br />

Enquanto o olhar penetrante do telescópio vara os espaços<br />

infinitos, a visão a<strong>na</strong>lítica do microscópio visita os habitáculos<br />

minudentes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> superfície <strong>da</strong> Terra.<br />

Aqui, já não é ape<strong>na</strong>s a grandeza e o caráter formi<strong>da</strong>ndo <strong>da</strong><br />

energia que nos vão falar, mas, antes, o engenho, a beleza do<br />

plano, a delicadeza de sua execução e, sobretudo, a sabedoria<br />

sobre-huma<strong>na</strong> que domi<strong>na</strong> a matéria e a mol<strong>da</strong> às leis de uma<br />

vontade onipotente.<br />

Quando penetramos com os olhos <strong>da</strong> Ciência o espetáculo do<br />

mundo, to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong> nos aparece à feição de imenso di<strong>na</strong>mismo,<br />

em cujo seio se associam ou se transformam as forças<br />

extraordinárias <strong>da</strong> Física e <strong>da</strong> Química.


Fenômenos efêmeros, que ao vulgo parecem isolados, apresentam-se-nos<br />

entramados numa rede única, cujos fios são<br />

mantidos por uma força misteriosa.<br />

O mundo envolve-se em grande uni<strong>da</strong>de, nenhum elemento<br />

está isolado, nem <strong>na</strong> extensão presente, nem <strong>na</strong> História.<br />

São irmãos a luz e o calor, quer se nos mostrem juntos, numa<br />

união indefectível, quer mutuamente se façam o sacrifício de sua<br />

própria existência. A afini<strong>da</strong>de e o magnetismo casam-se nos<br />

mistérios do mundo mineral. A ponta inquieta do imã procura<br />

incessantemente o pólo. A planta eleva-se apaixo<strong>na</strong><strong>da</strong> para a luz.<br />

A Terra volta para o Sol o seu rosto mati<strong>na</strong>l. Estende o crepúsculo<br />

o seu manto sobre a noite e os tépidos perfumes dos vales<br />

aquecem os pés gelados <strong>da</strong> noite. Em aproximando-se a aurora, o<br />

beijo do orvalho deixa o seu traço <strong>na</strong> corola entreaberta <strong>da</strong>s<br />

flores. Átomos e mundos são levados por um só impulso universal.<br />

Na atmosfera mil ondulações se entrecruzam, mil varie<strong>da</strong>des<br />

de força se combi<strong>na</strong>m. Noite e dia, tarde e manhã, em to<strong>da</strong>s as<br />

estações, o mesmo movimento simultaneamente insensível e<br />

grandioso, que a nossa vista não apreende e que, aberrante de<br />

qualquer avaliação numérica 16 , se vai exercendo no laboratório<br />

do cosmos. Pois o resultado desse movimento é a Vi<strong>da</strong>.<br />

Fora deste resultado, o mundo só oferece uma atração medíocre<br />

aos espíritos curiosos. É pelos aspectos ou pelas sensações <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> que o ser pensante se liga à <strong>Natureza</strong>. Se a contemplação<br />

dos céus, por noites silenciosas, nos causa uma tristeza indefinível;<br />

se o aspecto de vastos desertos calci<strong>na</strong>dos por um sol ardente<br />

nos deixa impassíveis; se o estudo <strong>da</strong>s mais extraordinárias<br />

combi<strong>na</strong>ções químicas, opera<strong>da</strong>s numa retorta, nos impressio<strong>na</strong><br />

menos intimamente do que a visão de um pássaro em seu ninho,<br />

ou ain<strong>da</strong> a de uma violeta vicejando humildemente ao pé de um<br />

tronco, é porque essas manifestações não revelam uma vi<strong>da</strong><br />

imediata. Nossa alma é sobretudo acessível às impressões provin<strong>da</strong>s<br />

de seres viventes como nós e, de entre estes, os que mais<br />

se aproximam <strong>da</strong> nossa <strong>na</strong>tureza. O timbre de uma voz ama<strong>da</strong><br />

tem maior ressonância em nosso coração do que o ribombo de<br />

um trovão. Um raio do olhar eleito nos penetra mais fundo do<br />

que um raio de Sol. Um sorriso adorado tem sempre maior


encanto que a mais encantadora <strong>da</strong>s paisagens. No colo, nos<br />

braços, nos cabelos <strong>da</strong> mulher idolatra<strong>da</strong>, não há diamantes nem<br />

safiras, esmeral<strong>da</strong>s e pérolas, cujo brilho se não degrade ao de<br />

simples pedrarias decorativas. É que neste caso, sobretudo, a<br />

vi<strong>da</strong> nos aparece sob a sua mais bela e mais esquisita manifestação<br />

terrestre, pois que ela – a vi<strong>da</strong> – é bem ver<strong>da</strong>deiramente a<br />

grande atração <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />

Mas, a característica que mais vivamente impressio<strong>na</strong> o observador,<br />

no conjunto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terrestre, é a lei geral que preside à<br />

vi<strong>da</strong> do Universo. À primeira vista, afigura-se-nos que todos os<br />

seres estão isolados. O abeto que colma os cimos alpestres<br />

parece <strong>na</strong><strong>da</strong> ter de comum com a lebre que corre <strong>na</strong>s planuras.<br />

Certo que a rosa dos nossos jardins não conhece o leão dos<br />

desertos. Águia e condor dos altiplanos asiáticos jamais provaram<br />

o fruto dos nossos pomares. Trigo e vinha, em <strong>na</strong><strong>da</strong> parece<br />

ligarem-se à vi<strong>da</strong> dos peixes. E se nos cingirmos a divisões<br />

menos marcantes, ninguém suspeitará qualquer relação imediata<br />

entre a vi<strong>da</strong> do homem e a do vegetal que matiza os campos e as<br />

florestas.<br />

E contudo, a ver<strong>da</strong>deira reali<strong>da</strong>de é que a vi<strong>da</strong> de todos os seres<br />

terrícolas – homens, animais, plantas - é uma e única, sujeita<br />

a um mesmo sistema, tendo por ambiente o ar e por base o solo.<br />

E essa vi<strong>da</strong> universal outra coisa não é senão uma permuta<br />

constante de matéria. Todos os seres se formam <strong>da</strong>s mesmas<br />

moléculas, a passarem sucessiva e indiferentemente de uns a<br />

outros, de sorte que nenhum ser dispõe de um corpo propriamente<br />

seu. Pela respiração e pela alimentação, nós absorvemos, ca<strong>da</strong><br />

dia, uma certa porção de alimentos. Pela digestão, pelas secreções<br />

e excreções, perdemos outra determi<strong>na</strong><strong>da</strong> porção de alimentos.<br />

Assim, renova-se o corpo e, depois de algum tempo, já não<br />

possuímos um só grama do corpo material de antes. Sua renovação<br />

foi total, completa. Mediante essa permuta é que se entretém<br />

a vi<strong>da</strong>. Enquanto o movimento renovador se opera em nós, a<br />

mesma coisa se dá com animais e plantas. Os milhões e bilhões<br />

de seres viventes <strong>na</strong> superfície do globo mantêm-se, portanto, em<br />

permuta constante de seus organismos. O átomo de oxigênio, que<br />

ora estais respirando, foi ontem, possivelmente, expirado por


alguma <strong>da</strong>s árvores que orlam o bosque, além. O átomo de<br />

hidrogênio que, neste momento, umedece a pupila vigilante do<br />

leão do deserto, será o mesmo que, não há muito, molhava os<br />

lábios <strong>da</strong> mais pudica donzela <strong>da</strong> austera Albion. O átomo de<br />

carbono que neste instante arde em meu pulmão, ardeu talvez <strong>na</strong><br />

candeia que serviu a Newton para as suas experiências de ótica;<br />

e as fibras mais preciosas do cérebro de Newton talvez se encontrem,<br />

agora, <strong>na</strong> concha de uma ostra ou numa dessas miríades de<br />

animálculos microscópicos, que povoam os mares fosforescentes.<br />

O átomo de carbono que se escapa, no momento, <strong>da</strong> combustão<br />

do vosso charuto, terá talvez saído, há alguns anos, do túmulo<br />

de Cristóvão Colombo, que demora, como sabeis, <strong>na</strong> catedral<br />

de Hava<strong>na</strong>. To<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> não passa de uma constante permuta de<br />

elementos materiais. Fisicamente falando, nós <strong>na</strong><strong>da</strong> possuímos<br />

de nós mesmos. Só o ser pensante é o nosso eu. Só ele é que nos<br />

constitui ver<strong>da</strong>deira, imutavelmente. Quanto à substância que<br />

nos forma o cérebro, os nervos, os músculos, ossos, membros,<br />

carne, essa não a retemos; vai, vem, passa de um ser a outro.<br />

Sem metáfora, podemos dizer que as plantas são nossas raízes,<br />

que por elas extraímos dos campos a albumi<strong>na</strong> do sangue, o cal<br />

dos ossos. O oxigênio de sua respiração nos dá vigor e beleza,<br />

assim como, reciprocamente, o ácido carbônico que restituímos à<br />

atmosfera vai cobrir de verdura os vales e as coli<strong>na</strong>s.<br />

Quando se tem a convicção profun<strong>da</strong> dessa permuta universal<br />

<strong>da</strong> matéria, que irma<strong>na</strong>, do ponto de vista <strong>da</strong> composição orgânica,<br />

a fronde e o pássaro, o peixe e a plaga, o homem e a fera,<br />

considera-se a <strong>Natureza</strong> sob a impressão <strong>da</strong> grande uni<strong>da</strong>de que<br />

preside à marcha <strong>da</strong>s coisas. Ela, a <strong>Natureza</strong>, se nos apresenta,<br />

então, completamente transfigura<strong>da</strong> e não deixa de ser com um<br />

interesse mais íntimo que encaramos o sistema geral <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

planetária. A. de Humboldt traçou a sua fisionomia num esboço<br />

amplo, que tem o mérito de reivindicar considerações especiais a<br />

respeito. “Quando o homem interroga com argúcia penetrante a<br />

<strong>Natureza</strong> – diz ele 17 – ou quando mede, <strong>na</strong> sua imagi<strong>na</strong>ção, os<br />

vastos espaços <strong>da</strong> criação orgânica, de to<strong>da</strong>s as emoções experimenta<strong>da</strong>s<br />

a mais poderosa e profun<strong>da</strong> é a <strong>da</strong> plenitude <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,


universalmente difundi<strong>da</strong>. Por to<strong>da</strong> a parte, até nos pólos congelados,<br />

o ar repercute o canto <strong>da</strong>s aves e o zumbido dos insetos.<br />

“A vi<strong>da</strong> transpira, não somente <strong>na</strong>s cama<strong>da</strong>s inferiores <strong>da</strong> atmosfera,<br />

onde flutuam pesados vapores, mas, também, <strong>na</strong>s<br />

regiões sere<strong>na</strong>s, eteriza<strong>da</strong>s. Todos quantos remontaram, quer as<br />

cumea<strong>da</strong>s <strong>da</strong> cordilheira Andi<strong>na</strong>, quer os píncaros do Monte<br />

Branco debruçados sobre o lago de Genebra, jamais deixaram de<br />

aí encontrar seres animados. No Chimborazo, e numa altitude<br />

excedente de 2600 metros ao pináculo do Et<strong>na</strong>, vimos borboletas<br />

e outros insetos alados. Mesmo supondo que houvessem sido<br />

levados por correntes aéreas, e que lá errassem como estrangeiros,<br />

<strong>na</strong>quelas paragens a que só o ardente desejo de conhecer<br />

conduz os homens, a sua presença atesta, to<strong>da</strong>via, que, mais<br />

flexível, a organização animal resiste além dos limites traçados à<br />

vi<strong>da</strong> vegetal. Muitas vezes vimos o rei dos abutres – o condor –<br />

pla<strong>na</strong>r acima de vossa cabeça, em altitudes excedentes aos picos<br />

nevados dos Pireneus, e mesmo dos indianos. O possante carnívoro<br />

alado era, <strong>na</strong>turalmente, atraído pelos sedosos vigonhos,<br />

que às ma<strong>na</strong><strong>da</strong>s procuram aquelas pastagens coalha<strong>da</strong>s de neve.”<br />

Esta vi<strong>da</strong> que vemos difundi<strong>da</strong>, em to<strong>da</strong>s as cama<strong>da</strong>s atmosféricas,<br />

não é mais que páli<strong>da</strong> imagem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mais compacta,<br />

que o microscópio nos revela, Os ventos arrebatam, à superfície<br />

<strong>da</strong>s águas em evaporação, turbilhões de animálculos invisíveis,<br />

imóveis e com to<strong>da</strong>s as aparências de morte; seres que flutuam<br />

no ar, até que as orvalha<strong>da</strong>s os devolvam ao solo nutriz, que lhes<br />

dissolve o invólucro e, graças provavelmente ao oxigênio sempre<br />

contido <strong>na</strong> água, comunica-lhes aos órgãos uma nova irritabili<strong>da</strong>de.<br />

Nuvens de microrganismos cruzam as regiões aéreas do<br />

Atlântico e carreiam a vi<strong>da</strong> de um a outro continente.<br />

Com o autor de Cosmos, podemos acrescentar que, independentemente<br />

dessas existências, a atmosfera também contém<br />

inumeráveis germes de vi<strong>da</strong> futura, óvulos de insetos e de plantas,<br />

que, sustentados por coroas de pêlos ou de plumas, garram<br />

para as longas peregri<strong>na</strong>ções do Outono. O pólen fecun<strong>da</strong>nte que<br />

as flores masculi<strong>na</strong>s semeiam <strong>na</strong>s espécies de sexo extremado, é<br />

também, ele próprio, levado pelos ventos e por insetos alados~<br />

através de continentes e mares, às plantas femini<strong>na</strong>s que vivem


em solidão. Onde quer que o observador <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> mergulhe<br />

os olhos, aí encontrará vi<strong>da</strong>s, ou um germe pronto a recebê-la.<br />

As formas orgânicas penetram no seio <strong>da</strong> Terra a grandes<br />

profundi<strong>da</strong>des, por to<strong>da</strong> a parte as águas se espalham e infiltram,<br />

seja em interstícios formados pela <strong>Natureza</strong>, ou feitos pela mão<br />

do homem.<br />

Ninguém poderia dizer com segurança qual o ambiente em<br />

que a vi<strong>da</strong> se difundiu com maior profusão. De fato, ela repleta<br />

os oceanos, <strong>da</strong>s zo<strong>na</strong>s tropicais aos gelos polares; o ar povoa-se<br />

de germes invisíveis e o solo é sulcado por miríades de espécies,<br />

quer animais, quer vegetais. Estes incessantemente procuram<br />

dispor, mediante combi<strong>na</strong>ções harmoniosas, <strong>da</strong> matéria bruta do<br />

solo, como que tendo a função de preparar e misturar, por virtude<br />

de sua energia vital, as substâncias que, após inumeráveis<br />

modificações, hão de ser eleva<strong>da</strong>s ao estado de fibras nervosas.<br />

Abrangendo no mesmo olhar a cama<strong>da</strong> vegetal que reveste o<br />

solo, depara-se-nos em plenitude a vi<strong>da</strong> animal, nutri<strong>da</strong> e conserva<strong>da</strong><br />

pelas plantas.<br />

Por intermédio do ar é que se operam essas transformações<br />

incessantes, universais, e não por outro meio que não esse, os<br />

elementos podem transitar de um corpo a outro. Proposição é<br />

esta, tão exata, que os fisiologistas há muito repetem que todo<br />

ser vivo é produto do ar organizado. Como se opera essa organização?<br />

A partir de Lavoisier, sabemos que a respiração do homem<br />

e dos animais é ato análogo às combustões mediante as<br />

quais nos aquecemos e aclaramos. Insistamos um tanto neste<br />

ponto. A respiração estabelece uma soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de universal entre<br />

os homens, animais e plantas. Ela é resultante <strong>da</strong> união do oxigênio<br />

com o carbono e o hidrogênio dos alimentos, tanto quanto<br />

a combustão resulta <strong>da</strong> união desse mesmo oxigênio com o<br />

hidrogênio e o carbono <strong>da</strong> vela, <strong>da</strong> madeira, ou combustível<br />

qualquer. A respiração verifica-se sob a influência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

enquanto a combustão, propriamente dita, se opera sob a influência<br />

de um calor intenso. Um e outro ato têm por fim produzir<br />

calor. É o calor desprendido <strong>da</strong> nossa respiração que entretém<br />

no corpo a temperatura de 37 graus, necessária à mantença <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>.


Lavoisier e Lieb demonstraram, há muito tempo, que todo<br />

animal é um foco e todo alimento um combustível. Se a respiração<br />

não se acompanha, como a combustão, de clari<strong>da</strong>des incandescentes,<br />

é por ser uma combustão lenta, menos ativa. Mas, por<br />

muito lenta que seja equivale, contudo, à de uma dose assaz forte<br />

de carbono. Um homem queima 10 a 12 gramas de carbono por<br />

hora, ou 250 por dia, mais ou menos, além de uma certa quanti<strong>da</strong>de<br />

de hidrogênio.<br />

Combustão e respiração viciam o ar destruindo-lhe o elemento<br />

salutífero – o oxigênio, substituindo-o por um gás mefítico – o<br />

ácido carbônico. Esta e outras causas espalham <strong>na</strong> atmosfera, de<br />

maneira constante, esse elemento insalubre. Experiências feitas<br />

com o vapor d'água condensa<strong>da</strong> em janelas dos teatros de Paris,<br />

patentearam uma combi<strong>na</strong>ção particularmente letífera.<br />

A raça huma<strong>na</strong> retira do ar, anualmente, 160 bilhões de metros<br />

cúbicos de oxigênio e os permuta por igual volume de ácido<br />

carbônico. A respiração dos animais quadruplica o resultado. Só<br />

a hulha que se extrai do solo fornece mais ou menos 100 bilhões<br />

de metros cúbicos de ácido carbônico, ao mesmo passo que<br />

outros combustíveis aumentam consideravelmente essa cifra.<br />

Junte-se-lhe ain<strong>da</strong> o produto <strong>da</strong>s decomposições e considere-se<br />

que, a despeito, esse gás não se encontra no ar atmosférico senão<br />

<strong>na</strong> proporção diminuta de 4 a 5 litros por 100 hectolitros. O<br />

ácido carbônico é solúvel n'água, a chuva o dissolve e carreia em<br />

suas bátegas, o transporta aos rios, leva-o enfim aos oceanos. Aí,<br />

ele une-se à cal e temos o carbo<strong>na</strong>to de cal, as pedras calcáreas,<br />

mármore, alabastro, ônix, polipeiros, etc.<br />

Os vegetais, a seu turno, preenchem, em escala imensa, função<br />

inversa à respiração dos animais, essencialíssima à harmonia<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, pois não somente fixa o hidrogênio <strong>da</strong> água e<br />

subtrai <strong>da</strong> atmosfera o ácido carbônico, como lhe restitui o<br />

oxigênio. (Uma folha de nenúfar dá, em 10 horas, 15 uni<strong>da</strong>des de<br />

oxigênio, proporcio<strong>na</strong>is ao seu volume.)<br />

A que transformações submetem os vegetais o carbono, o hidrogênio,<br />

o azoto, que eles absorvem do ar? É to<strong>da</strong> uma produção<br />

multifária. Conjugando cinco moléculas de carbono e quatro<br />

de hidrogênio, a <strong>Natureza</strong> forma, no citrão e no salgueiro, duas


essências que, diversas radicalmente em odorância, provêm <strong>da</strong><br />

mesma composição. Freqüentemente, a <strong>Natureza</strong> junta a estes<br />

dois elementos o oxigênio. Assim é que sol<strong>da</strong> doze moléculas de<br />

carbono e dez de hidrogênio e oxigênio, formando, a seu talante,<br />

seja a madeira, seja a batata. Outras vezes, seu trabalho é mais<br />

complexo e reúne os quatro elementos: carbono, hidrogênio,<br />

oxigênio e azoto, origi<strong>na</strong>ndo os mais diferentes produtos, tais<br />

como o trigo – precioso alimento – e a estricni<strong>na</strong> – ativíssimo<br />

tóxico.<br />

Como explicar, por exemplo, juntando um equivalente de<br />

água à substância característica <strong>da</strong> madeira, a celulose<br />

(C12H10O10), a <strong>Natureza</strong> nos dê o açúcar? Sínteses maravilhosas,<br />

a <strong>Natureza</strong> as produz silenciosamente, ao influxo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>!<br />

O reino vegetal é uma usi<strong>na</strong> imensa. Sob a ação do calor solar,<br />

to<strong>da</strong>s as rol<strong>da</strong><strong>na</strong>s entram a movimentar-se. A exemplo do<br />

mecânico que nutre a sua máqui<strong>na</strong>, a <strong>Natureza</strong> renova o combustível<br />

e os princípios do ar, e estes se transformam em madeira ou<br />

amido, em açúcar ou veneno, que constituem a polpa saborosa<br />

do fruto, o perfume sutil <strong>da</strong>s flores, o rendilhado <strong>da</strong>s folhas, a<br />

coriácea tessitura dos troncos.<br />

Os animais nutrem-se dos vegetais, gaseificam, por assim dizer,<br />

o ar solidificado e o devolvem à atmosfera, onde ele recomeça<br />

o ciclo <strong>da</strong>s transformações que, graças a ele – o ar – agente<br />

primaz <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, elo universal, jamais se interrompem.<br />

A comparação que Liebig 18 foi o primeiro a fazer, <strong>da</strong> combustão<br />

respiratória do animal com a dos combustíveis de uma for<strong>na</strong>lha,<br />

só é exata se fizermos uma idéia material do fogo nesse<br />

aparelho. No animal, todo o corpo arde lentamente, o que não se<br />

dá com a for<strong>na</strong>lha, que não arde. Na retorta huma<strong>na</strong>, continente e<br />

conteúdo queimam juntos e, assim, é mais justo tomarmos a vela<br />

como elemento comparativo.<br />

O calor é o regulador <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Descartes antecipara-se aos<br />

progressos <strong>da</strong> experimentação escrevendo este significativo<br />

conceito: “Importa não conceber <strong>na</strong>s máqui<strong>na</strong>s huma<strong>na</strong>s outra<br />

alma vegetativa nem sensitiva, nem princípio algum de movimento<br />

e vi<strong>da</strong>, além do sangue e seus espíritos, agitados pelo


calor do fogo que arde continuamente no seu coração e cuja<br />

<strong>na</strong>tureza é idêntica à que inflama os corpos i<strong>na</strong>nimados.” (Sabemos<br />

que Descartes, como Platão, considerava a alma huma<strong>na</strong><br />

como retira<strong>da</strong> num santuário, no âmago de nós mesmos, numa<br />

espécie de oposição à matéria. A vi<strong>da</strong> e as funções orgânicas<br />

dependiam inteiramente do corpo e só o pensamento era atributo<br />

do espírito.)<br />

Tal, sumariamente, o papel do ar <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Assim são os<br />

vegetais, habilíssimos físico-químicos, a nos prepararem ao<br />

mesmo tempo a alimentação, a respiração, a indumentária, o<br />

combustível e os elementos materiais <strong>da</strong> nossa existência terrestre.<br />

Importa, de conseguinte, deixarmos de considerar a <strong>Natureza</strong><br />

sob um prisma vulgar, para fazê-lo, doravante, com olhos atentos<br />

e apercebidos. Quando fixarmos a ervilha tenra que reponta nos<br />

jardins, não admiraremos ape<strong>na</strong>s o risonho tapete de verdura e a<br />

gracili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s flores que o esmaltam. Elevaremos mais alto o<br />

pensamento, imagi<strong>na</strong>remos que ca<strong>da</strong> um desses rebentos, que<br />

vamos pisando, é um benfeitor silencioso, pois, se de um lado<br />

contribuímos para embelezá-lo fornecendo-lhe ácido carbônico,<br />

sem o qual se estiolaria, por outro lado ele nos dá benevolamente<br />

todo o necessário à nossa vi<strong>da</strong> material: imagi<strong>na</strong>remos que essa<br />

harmonia é de uma perfeição sublime, visto que, se umas regiões<br />

mergulham, longos meses, nos rigores do Inverno, os ventos não<br />

deixam de estabelecer entre esses países deser<strong>da</strong>dos e o nosso<br />

uma permuta constante, que reconduz aos nossos bosques e<br />

prados o ácido carbônico expirado pelo lapônio e o esquimó,<br />

levando-lhes o oxigênio exalado dos milhões de bocas dos<br />

nossos vegetais.<br />

Se acompanharmos a elevação gra<strong>da</strong>tiva <strong>da</strong> matéria, haveremos<br />

de reconhecer com os fisiologistas em geral, e com Moleschott<br />

em particular, o seguinte processo <strong>da</strong>s permutas materiais:<br />

o amoníaco, o ácido carbônico, a água e alguns sais, eis to<strong>da</strong> a<br />

série <strong>da</strong>s matérias com as quais a planta constrói o próprio corpo.<br />

Albumi<strong>na</strong> e dextri<strong>na</strong> formam-se à custa destas combi<strong>na</strong>ções<br />

simples, por efeito de constante dispêndio de oxigênio. Essas<br />

duas substâncias dissolvem-se nos sucos <strong>da</strong> planta, que se tor<strong>na</strong>m<br />

por isso mesmo capazes de transportar-se às mais diversas


egiões, através <strong>da</strong>s hastes, <strong>da</strong>s folhas, ou dos frutos. Mercê <strong>da</strong><br />

albumi<strong>na</strong>, engendram-se corpos outros albuminosos, quais a<br />

legumi<strong>na</strong>, o glúten e a albumi<strong>na</strong> vegetal coagula<strong>da</strong>. Estas duas<br />

últimas substâncias se depositam, indissolúveis, <strong>na</strong> semente.<br />

Albumi<strong>na</strong>, açúcar e gordura são os materiais construtivos do<br />

animal, cujo sangue é um soluto de albumi<strong>na</strong>, gordura, açúcar e<br />

sais. Uma absorção mais forte de oxigênio transforma a albumi<strong>na</strong><br />

em fibri<strong>na</strong> muscular, em elementos redutíveis, cola de cartilagens<br />

e ossos, substância dérmica ou pilosa. Estas substâncias<br />

alia<strong>da</strong>s à gordura, aos sais e à água, constituem a totali<strong>da</strong>de do<br />

organismo animal. Tanto quanto a recomposição progressiva, a<br />

desassimilação é fenômeno de evolução gra<strong>da</strong>tiva.<br />

Na planta a albumi<strong>na</strong>, o açúcar e a gordura se decompõem em<br />

alcalóides, ácidos, matérias corantes, óleos voláteis, resi<strong>na</strong>,<br />

azoto, ácido carbônico e água. No animal as mesmas substâncias<br />

se resolvem em leuci<strong>na</strong>, sirosi<strong>na</strong>, criati<strong>na</strong>, hipoxanti<strong>na</strong>, ácido<br />

úrico, fórmico, oxálico, uréia, amoníaco, ácido carbônico e água.<br />

Fora do corpo a uréia decompõe-se em ácido carbônico e amoníaco.<br />

Assim, graças à vi<strong>da</strong> em si, plantas e animais revertem às suas<br />

fontes. Após a morte, a desassimilação é ain<strong>da</strong> uma evolução,<br />

não menos regular que durante a vi<strong>da</strong>. O que se dá, ape<strong>na</strong>s, é que<br />

percorre outros graus, até que chegue ao termo <strong>da</strong> decomposição.<br />

A putrefação não é mais que uma combustão lenta <strong>da</strong>s matérias<br />

orgânicas, a operar-se fora do corpo vivo. Ela representa<br />

uma espécie de respiração depois <strong>da</strong> morte e ca<strong>da</strong> átomo vai<br />

conformar ou entreter outros corpos.<br />

Tal o esboço químico <strong>da</strong> permuta vital nos dois reinos orgânicos.<br />

Agora, abordemos o assunto particular <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no reino<br />

animal. Nestes novos fatos observados, tanto como nos precedentes,<br />

estamos de acordo com os adversários. Entretanto, vamos<br />

ver as conseqüências.<br />

Aqui temos, segundo o próprio autor de A Circulação <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>,<br />

baseado em recentes trabalhos de fisiologistas alemães, o<br />

processo geral de desassimilação no animal, ou, para falar mais<br />

claramente, os principais fenômenos de permuta <strong>da</strong>s matérias


que constituem a vi<strong>da</strong>. Tratemos aqui, particularmente, do corpo<br />

humano, por ser o que mais nos interessa 19 .<br />

Sabemos hoje que a história <strong>da</strong> evolução dos alimentos e <strong>da</strong>s<br />

matérias rejeita<strong>da</strong>s depois de servirem à assimilação é a essência<br />

mesma <strong>da</strong> fisiologia <strong>da</strong> permuta material.<br />

A digestão e formação dos tecidos estão compreendi<strong>da</strong>s entre<br />

dois limites: as substâncias alimentícias e as partes constitutivas<br />

<strong>da</strong>s secreções.<br />

Assim é que todos os elementos a<strong>na</strong>tômicos do corpo se decompõem<br />

para se rejuvenescerem sem cessar. O oxigênio aspirado<br />

passa <strong>da</strong> boca pela traquéia arterial, esta se ramifica e seus<br />

últimos ramúnculos desligados são providos de vesículas laterais<br />

e termi<strong>na</strong>is, que só se intercomunicam pelo ramúnculo do tubo<br />

aéreo que as contém.<br />

Deste tubo, o oxigênio passa às vesículas pulmo<strong>na</strong>res e destas<br />

ao sangue, através <strong>da</strong> parede dupla de vesículas e vasos capilares,<br />

até que entra, com o sangue, no coração.<br />

Em segui<strong>da</strong>, o coração impele o sangue oxige<strong>na</strong>do a todos os<br />

territórios orgânicos, através <strong>da</strong>s artérias <strong>da</strong> grande circulação,<br />

que mantém todo o corpo sob sua dependência.<br />

Fi<strong>na</strong>lmente, o oxigênio penetra os tecidos através <strong>da</strong>s paredes<br />

de vasos capilares, que rematam as artérias.<br />

Enquanto isso, um fenômeno inverso se verifica, O ácido carbônico<br />

proveniente do sangue e o ar atmosférico aspirado se<br />

transformam, segundo a lei <strong>da</strong>s permutas de gases, ao penetrarem<br />

as caver<strong>na</strong>s pulmo<strong>na</strong>res, os brônquios e a própria traquéia.<br />

Depois, o ritmo respiratório, produzindo a retração do peito,<br />

expele uma colu<strong>na</strong> de ar carregado de ácido carbônico. Uma<br />

curta pausa e a essa expiração sucede a aspiração, dilata-se o<br />

peito, um ar rico de oxigênio substitui o ar expirado, que perdera<br />

uma parte desse oxigênio, e o fenômeno prossegue.<br />

Podemos comparar os pulmões a um banco: o ácido carbônico<br />

é entregue à circulação exter<strong>na</strong>, para alimento <strong>da</strong>s plantas, em<br />

troca do oxigênio recebido. O sangue provido de oxigênio escoase<br />

dos pulmões para o ventrículo esquerdo do coração, <strong>da</strong>í<br />

derivando-se para todos os setores do organismo. Começa, então,


aí, a combustão geral que, sob a forma de nutrição aqui, de<br />

elimi<strong>na</strong>ção acolá, vai acio<strong>na</strong>ndo as primeiras funções.<br />

É possível medir a intensi<strong>da</strong>de de permuta <strong>da</strong>s matérias de<br />

um organismo humano pela quanti<strong>da</strong>de de ácido carbônico, água<br />

e uréia elimi<strong>na</strong>dos em <strong>da</strong>do tempo. A rapidez <strong>da</strong>s permutas dá a<br />

medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Sua maior ativi<strong>da</strong>de verifica-se dos 30 aos 40<br />

anos. Termo médio, é nessa fase que as energias criadoras do<br />

homem atingem o apogeu.<br />

Pulmões e rins não são os únicos órgãos elimi<strong>na</strong>dores; a eles<br />

devemos juntar a pele e o reto. Os cabelos que caem, a epiderme<br />

que se escama no interior como no exterior, as unhas que aparamos,<br />

multiplicam os pontos de elimi<strong>na</strong>ção dos princípios azotados.<br />

A ativi<strong>da</strong>de elimi<strong>na</strong>tória dos pulmões e dos rins atinge a um<br />

quinze avos do peso total <strong>da</strong>s excreções e ultrapassa de muito a<br />

dos intestinos. Quanto maior ativi<strong>da</strong>de, mais rápi<strong>da</strong> a elimi<strong>na</strong>ção.<br />

Os homens entregues a trabalhos de movimento ativo elimi<strong>na</strong>m<br />

pela epiderme, em 9 horas, tanto ácido carbônico quanto o<br />

correspondente a 24 horas de repouso. Num cavalo a trote, a<br />

elimi<strong>na</strong>ção é 117 vezes mais copiosa do que em repouso. Um<br />

parelheiro inglês, que percorrera em 100 horas uma extensão<br />

correspondente a 500 horas de marcha ordinária, não perdeu<br />

menos de 14 quilos depois do feito.<br />

O trabalho mental fatiga tanto ou mais que o corporal. A expressão<br />

que utilizamos, referindo-nos a criaturas de pensamento<br />

ardente, é justa. Qualquer acréscimo de trabalho espiritual produz<br />

aumento de apetite, qual se dá com o intenso trabalho muscular.<br />

O apetite não é mais que o si<strong>na</strong>l de empobrecimento do<br />

sangue e dos tecidos, manifestando-se por meio de uma sensação.<br />

A ativi<strong>da</strong>de cerebral, assim como a dos membros do corpo,<br />

aumenta a elimi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> pele, dos pulmões, dos rins.<br />

O sangue, por sua vez, abando<strong>na</strong> constantemente aos órgãos<br />

do corpo os seus componentes, que a ativi<strong>da</strong>de dos tecidos vai<br />

decompondo em ácido carbônico, uréia e água.


Por fim, as matérias excrementícias atravessam continuamente<br />

a corrente circulatória para atingir os pulmões, os rins, a pele e<br />

o reto, de onde se elimi<strong>na</strong>m.<br />

Preciso se faz, pois, que os tecidos e o sangue experimentem,<br />

no curso regular <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, uma per<strong>da</strong> de substância só compensa<strong>da</strong><br />

pelo processo alimentar.<br />

Notável a rapidez com que se opera esse intercâmbio de matéria.<br />

A duração média <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dos que sucumbem de i<strong>na</strong>nição<br />

atinge a duas sema<strong>na</strong>s. Mas, desde que um vertebrado, seja qual<br />

for, morra de i<strong>na</strong>nição, o seu corpo terá perdido quatro dez avos<br />

do peso normal.<br />

Nos indivíduos alimentados convenientemente, a permuta se<br />

opera mais rápi<strong>da</strong> que nos esgotados pela abstinência. Moleschott<br />

e fisiologistas outros acreditaram poder concluir de certos<br />

fatos que o corpo renova a maior parte de sua substância num<br />

período de 20 a 30 dias.<br />

Impondo-se um regime regular, diversos observadores verificaram<br />

uma per<strong>da</strong>, em média, de um vinte avos do seu peso, em<br />

24 horas.<br />

O alimento ingerido e o oxigênio aspirado contrabalançam<br />

essa per<strong>da</strong>. O sangue, com efeito, não provém ape<strong>na</strong>s <strong>da</strong>s substâncias<br />

alimentares, mas, simultaneamente, <strong>da</strong> alimentação e <strong>da</strong><br />

respiração. É uma ver<strong>da</strong>de que mais avulta no concernente aos<br />

tecidos orgânicos.<br />

Perdendo o corpo diariamente um doze avos e no Estio um<br />

quatorze avos do seu peso, todo o corpo estaria renovado dentro<br />

de 12 ou 14 dias. Pelos resultados obtidos com o último observador,<br />

seriam precisos vinte e dois dias.<br />

Liebig deduziu dessa rapidez de permutas uma outra consideração.<br />

Pode-se, sem maior dúvi<strong>da</strong>, atribuir a um homem idoso 24<br />

libras de sangue. O oxigênio por nós absorvido em 4 ou 5 dias<br />

basta para transformar pela combustão todo o carbono e hidrogênio<br />

dessas 24 libras de sangue em ácido carbônico e água. Mas<br />

o sangue corresponde mais ou menos a um quinze avos do peso<br />

do corpo: se, pois, 5 dias bastam para substituir o sangue, com a


troca dos elementos, pode inferir-se que o corpo inteiro se renova<br />

em 25 dias.<br />

Moleschott e Malerf verificaram que corpúsculos de carneiro,<br />

profusamente injetados <strong>na</strong> circulação de rãs, desapareciam<br />

completamente ao fim de 17 dias. Ora, como a permuta <strong>na</strong>s rãs<br />

se opera mais lenta que nos animais de sangue quente, somos<br />

levados a crer que os glóbulos vermelhos do sangue humano se<br />

renovam totalmente em menos de 17 dias.<br />

O autor de A Circulação <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> declara, portanto, que a<br />

concordância dos resultados obtidos, partindo de três pontos de<br />

vista diferentes, é uma garantia positiva de veridici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

hipótese dos 30 dias necessários à renovação completa do organismo.<br />

Os sete anos que a crença popular fixava a essa operação,<br />

seriam um exagero colossal. “Por surpreendente que possa<br />

parecer, à primeira vista, essa rapidez – diz – concor<strong>da</strong> com a<br />

experiência em todos os pontos. Para Stahl, as andorinhas perdem<br />

num dia a gordura aprovisio<strong>na</strong><strong>da</strong> durante a noite. O desenvolvimento<br />

<strong>da</strong>s células opera-se, no sangue, em 7 ou 8 horas, à<br />

expensas <strong>da</strong>s matérias forneci<strong>da</strong>s pelo quilo. De resto, quem<br />

ignora bastarem poucos dias para que um homem emagreça a<br />

ponto de tor<strong>na</strong>r-se irreconhecível?<br />

“A rapidez <strong>da</strong> permuta <strong>da</strong>s matérias, demonstra<strong>da</strong> em to<strong>da</strong>s as<br />

experiências, é o que há de mais próprio para diminuir nossa<br />

admiração.<br />

“Essas experiências nos ensi<strong>na</strong>m que um adulto, pesando 128<br />

libras, elimi<strong>na</strong> em 24 horas cerca de 3 libras de saliva, duas e<br />

meia de bílis, no mínimo, e mais de 28 de suco gástrico; de sorte<br />

que um fumante, com o mau veso de escarrar segui<strong>da</strong>mente,<br />

pode, durante o dia, expelir 85 partes do seu peso. No período de<br />

24 horas, corre em nosso corpo perto de um quarto do seu peso,<br />

de suco gástrico a circular do sangue para o estômago e viceversa.<br />

“A celeri<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s permutas difere de indivíduo para indivíduo.<br />

“O homem, a mulher, a criança, o velho, manifestam aptidões<br />

diferentes: assim, o homem tem a proprie<strong>da</strong>de de permutar maior


quanti<strong>da</strong>de que a mulher, e o adulto mais que os velhos e as<br />

crianças. O operário e o pensador recompõem o corpo em tempo<br />

mais curto que o necessário aos ociosos e i<strong>na</strong>tivos.<br />

“Há criaturas de vi<strong>da</strong> acelera<strong>da</strong>: nelas a esperança, a paixão e<br />

o temor, que se transformam rapi<strong>da</strong>mente em confiança e alegria,<br />

precipitam a circulação do sangue. Vivem apressa<strong>da</strong>s, porque<br />

depressa se executa o seu metabolismo. Enquanto se mantém<br />

equilibrado o regime de permutas, o corpo não padece alteração<br />

no seu aprovisio<strong>na</strong>mento. É, ordi<strong>na</strong>riamente, esse, o ritmo do<br />

adulto, que se altera com os anos, para romper-se <strong>na</strong> velhice.<br />

Também a digestão vigorosa é privilégio <strong>da</strong> criança. A absorção<br />

de sólidos e líquidos igualmente se regula, mui rapi<strong>da</strong>mente,<br />

no trabalho digestivo. A ação do oxigênio e a desassimilação dos<br />

tecidos, a ela conseqüente, nunca se interrompem. Daí resulta,<br />

imediata, uma diminuição do suco nutritivo, que se pode verificar<br />

não só pelo peso, como por inspeção direta. Na i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong>,<br />

sofrem tal ou qual depressão, retraem-se. A córnea achatase,<br />

a miopia atenua-se e pode mesmo chegar ao efeito contrário –<br />

à presbiopia. Os ossos, com a velhice, perdem a elastici<strong>da</strong>de, de<br />

vez que menos ricos d'água, como <strong>na</strong> moci<strong>da</strong>de.<br />

“Uma vez rompido o equilíbrio, o desgaste dos tecidos se<br />

processa inevitavelmente. O maxilar inferior diminui de volume,<br />

o mento se tor<strong>na</strong> considerável, a pele <strong>da</strong>s mãos e do rosto tor<strong>na</strong>se<br />

mais fláci<strong>da</strong>, enruga-se, e aos músculos adelgaçados míngua<br />

contratili<strong>da</strong>de. Não podem os velhos fletir a medula espi<strong>na</strong>l e a<br />

fronte lhes pende para adiante.<br />

“Também as cor<strong>da</strong>s vocais, como que se tor<strong>na</strong>m mais secas,<br />

perdem em flexibili<strong>da</strong>de e elastério; a voz é rouca, sur<strong>da</strong>, ou<br />

metálica e áspera. Depois dos 50 anos o peso do cérebro também<br />

começa a diminuir.<br />

“Tudo deve contribuir, <strong>na</strong> velhice, para avolumar a desproporção<br />

entre a sanguificação e a desassimilação. Com a matéria,<br />

a força decresce. Suavemente, aproxima-se o fim; a morte é um<br />

esgotamento resultante do empobrecimento material.” 20<br />

Estas alegações são contestáveis. Ain<strong>da</strong> não está provado que<br />

o corpo humano se renova completamente no período de um


mês. Tecidos há que só se renovam assaz lentamente, <strong>da</strong>do que<br />

todos eles se renovem.<br />

Em to<strong>da</strong>s as i<strong>da</strong>des se têm encontrado células embrionárias<br />

que, no entanto, se desti<strong>na</strong>m a desaparecer no próprio feto. Os<br />

humores <strong>da</strong> pálpebra, seqüentes a peque<strong>na</strong>s inflamações (terçóis),<br />

em regra não são reabsorvidos antes de um ano. As unhas<br />

não se renovam em menos de seis meses. No estado de saúde,<br />

seu crescimento é de 2 milímetros por mês, de sorte que, se<br />

guardássemos a unha do indicador num estojo cilíndrico, durante<br />

sessenta anos – tal como fazemos para conservar plantas raras –<br />

não teríamos afi<strong>na</strong>l uma garra excedente de um metro e meio.<br />

Assim, poderíamos contraditar os 25 dias e solicitar lapso um<br />

pouco mais longo para a renovação do organismo. Não é, porém,<br />

de mês ou de ano que se trata. O tempo não vem ao caso, como<br />

diz a sátira francesa, e, muito pelo contrário, quanto mais rápi<strong>da</strong><br />

e vultosa se faça a renovação <strong>da</strong> matéria corporal, mais aproveita<br />

à nossa teoria.<br />

Os materiólatras deduzem dos fatos aqui exarados a sua famosa<br />

assertiva, declarando prova<strong>da</strong> a inexistência <strong>da</strong> alma,<br />

mediante essas transformações químicas. Para nós, ao invés<br />

(note-se o contraste), essas mesmas transformações induzem a<br />

declarar demonstra<strong>da</strong>, doravante, a existência <strong>da</strong> alma. Antes,<br />

porém, de argumentar, apraz-nos contrapor um simples reparo a<br />

tão categórica afirmativa adversa, que proclama com tamanha<br />

segurança e com ver<strong>da</strong>de inconteste a só existência <strong>da</strong>s moléculas<br />

materiais e que só elas constituem o ser vivente, do berço ao<br />

túmulo.<br />

Por um lado, afirmais que o corpo vivo não passa de um conjunto<br />

de moléculas e, por outro, dizeis que todo esse corpo se<br />

rejuvenesce mensalmente... Ao nosso ver, são duas proposições<br />

difíceis de conciliar. Como explicar o envelhecimento, se esse<br />

corpo material, <strong>na</strong> sua quali<strong>da</strong>de de moléculas químicas, nunca<br />

teve mais que um mês de i<strong>da</strong>de? O turbilhão vital, <strong>na</strong> frase de<br />

Cuvier, o qual se sucede constante sob e sobre a nossa pele,<br />

nossa própria carne, sangue, ossos, cabelos, todo o corpo, é qual<br />

vestimenta que se renova de si mesma. O corpo do sexagenário,<br />

ou do octogenário, não tem mais que um mês, assim como o <strong>da</strong>


criança que ape<strong>na</strong>s começa a an<strong>da</strong>r. São, assim, sempre novos,<br />

os corpos e, certo, não podemos deixar de admirar essa engenhosa<br />

lei <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Entretanto, é também indubitável haver no<br />

mundo pessoas de to<strong>da</strong>s as i<strong>da</strong>des, <strong>na</strong> escala dos anos. O Sr.<br />

Moleschott conta, ao que presumo, 45 e o Sr. A. Comte deveria<br />

orçar pelos seus 79. Vós, Sr. Vogt, <strong>na</strong>scestes no ano <strong>da</strong> graça de<br />

1817. Temos assim, ca<strong>da</strong> qual, a nossa i<strong>da</strong>de. Cá por mim, sei<br />

que carrego menos de 20 lustros, que o Sr. Schopenhauer registraria<br />

muito breve. Ora, se é ver<strong>da</strong>de que nosso corpo se renova<br />

mensalmente, ou anualmente – se assim o preferirem – que é que<br />

envelhece em nós?<br />

Digamo-los ain<strong>da</strong> uma vez: não serão essas moléculas constitutivas<br />

do corpo, que ain<strong>da</strong> há pouco não nos pertenciam e<br />

integravam-se num frango ou numa perdiz, num grão de trigo ou<br />

de sal, numa gota de vinho ou de café, por nós absorvidos, e que,<br />

ao demais, são imutáveis e, como coisa morta, não podem envelhecer.<br />

Logo, existe em nós alguma coisa além dessas moléculas.<br />

Nosso organismo tem envelhecido.<br />

Prossigamos e entremos agora no âmago <strong>da</strong> questão. Permiti,<br />

antes de tudo, assi<strong>na</strong>lar que a todo instante a fraqueza do vosso<br />

sistema se traduz pela inconseqüência força<strong>da</strong> <strong>da</strong>s expressões.<br />

Sois os primeiros a conceituar a velhice como uma falta de<br />

equilíbrio entre a recomposição e a elimi<strong>na</strong>ção. À vi<strong>da</strong>, ple<strong>na</strong>,<br />

normal, chamais equilíbrio funcio<strong>na</strong>l. Ensi<strong>na</strong>is que, havendo<br />

equilíbrio de sanguificação e elimi<strong>na</strong>ção, o corpo não se altera<br />

em sua provisão geral de matéria. Esse equilíbrio mantém-se <strong>na</strong><br />

i<strong>da</strong>de adulta. É possível pesar um homem de 30 a 40 anos, a<br />

longos intervalos, sem constatar qualquer alteração de peso que<br />

se não explique por ganho ou per<strong>da</strong> imediatamente precedente.<br />

Pois, muito bem: mas, pergunto eu, quem organiza esse equilíbrio?<br />

Pretendeis, bem sei, que não há força alguma interior a presidir<br />

a essa renovação molecular, mas tenho essa vossa pretensão<br />

como vani<strong>da</strong>de insustentável. A hipótese puramente materialista,<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a assimilação circulatória <strong>da</strong>s moléculas ao movimento<br />

do vapor no alambique ou <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de nos tubos de Geissier,


não explica o crescimento nem a vi<strong>da</strong>, nem a decadência, a<br />

senectude, a morte.<br />

Para que haja equilíbrio, para que haja organização no agenciamento<br />

<strong>da</strong>s moléculas, é preciso que haja direção. De resto,<br />

tanto como Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire, não negais essa<br />

direção. Mas, como conceber direção sem força motriz? Ousareis<br />

negá-lo? Essa força diretriz não é um amálgama de proprie<strong>da</strong>des<br />

confusas, antes é sobera<strong>na</strong>, necessária, pois é quem rege o turbilhão<br />

vital, assim como a atração rege o turbilhão de esferas<br />

planetárias.<br />

Se não houvesse em nós uma força diretora, como explicar a<br />

formação e o desenvolvimento do corpo, nos moldes do tipo<br />

orgânico, do berço ao túmulo? Porque, depois dos 20 anos, esse<br />

corpo que absorve tanto ar e tanto alimento, como <strong>da</strong>ntes, pára<br />

de crescer?<br />

Quem distribui harmonicamente to<strong>da</strong>s as substâncias assimila<strong>da</strong>s?<br />

Após o crescimento em altura, quem limita a espessura?<br />

Quem dá força ao homem maduro, quem repara de contínuo as<br />

peças <strong>da</strong> máqui<strong>na</strong> anima<strong>da</strong>?<br />

Sem admitir uma força orgânica, típica, vital (não nos atenhamos<br />

à palavra), como explicar a construção do corpo? O Sr.<br />

Scheffer diz que são as forças química e física. “Ca<strong>da</strong> qual – dilo<br />

ele – exerce sobre as outras uma influência que dá ao organismo,<br />

em to<strong>da</strong>s as suas peças, uma certa uniformi<strong>da</strong>de de ordem<br />

mais eleva<strong>da</strong>. As ações especiais <strong>da</strong>s forças individuais se conjugam,<br />

a seguir, num efeito total e formam uma resistência coorde<strong>na</strong>dora<br />

<strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes num todo unitário, em que<br />

se desenha o tipo fun<strong>da</strong>mental de to<strong>da</strong> a proprie<strong>da</strong>de individual.”<br />

Eis o que se pode chamar uma luminosa explicação. Somente<br />

resta explicar como se produziriam to<strong>da</strong>s essas maravilhosas<br />

combi<strong>na</strong>ções, à revelia de uma uni<strong>da</strong>de virtual, organizadora.<br />

Quem constrói esse organismo? Como podem as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

matéria operar sobre um plano, em conformi<strong>da</strong>de com uma idéia<br />

que, por si, não podem ter? Como sabe o organismo, tão seguramente,<br />

escolher os alimentos que lhe convêm? Quem determi<strong>na</strong><br />

a reprodução fiel <strong>da</strong> espécie? É, portanto, mais fácil admitir<br />

todos os acasos, como diz Tissot, do que supor um princípio


essencialmente ativo, dotado de potência organizadora e com<br />

facul<strong>da</strong>des de exercê-la no sentido de tal ou tal tipo específico?<br />

“No homem, respondem, no seu conteúdo material e <strong>na</strong>s substituições<br />

de substância que nele se operam, a função química tem<br />

o seu papel, produz as partículas corporais capacita<strong>da</strong>s a servirem<br />

de suporte, ou substrato, de todo o edifício. Organiza-o a<br />

força vital, resultante de to<strong>da</strong>s as combi<strong>na</strong>ções e desta organização<br />

é que resulta a força espiritual.” Aí temos, patente, mero<br />

palavreado que <strong>na</strong><strong>da</strong> explica.<br />

Vários materialistas, e com eles Mulder, riem-se <strong>da</strong> doutri<strong>na</strong><br />

<strong>da</strong> força vital e comparam essa força a “uma batalha trava<strong>da</strong> por<br />

milhares de combatentes, como se não estivesse em jogo ape<strong>na</strong>s<br />

uma força que dispara os canhões, maneja os sabres, etc. O<br />

conjunto dos resultados, acrescenta Mulder, não é mais o resultado<br />

de uma única força, de uma força de batalha, mas a soma<br />

<strong>da</strong>s forças e combi<strong>na</strong>ções inúmeras, em ativi<strong>da</strong>de num tal acontecimento.”<br />

Concluem, assim, que a força vital não é causa, mas<br />

efeito.<br />

À comparação não falta justeza e tem, ao demais, a i<strong>na</strong>preciável<br />

virtude de aproveitar mais a nós do que aos seus próprios<br />

imagi<strong>na</strong>dores. De fato, é evidente, o que constitui a força de um<br />

exército e ganha a peleja não é tão só o esforço particular de<br />

ca<strong>da</strong> combatente, mas, sobretudo, a direção global, a inteligência<br />

do generalíssimo, o plano <strong>da</strong> batalha, a ordem sobera<strong>na</strong> que, do<br />

cérebro do organizador, se irradia aos subchefes e vai, através<br />

dos batalhões, até aos sol<strong>da</strong>dos, molas arregimenta<strong>da</strong>s.<br />

Convencer-se-á alguém que não foi Napoleão quem venceu<br />

em Austerlitz? Perguntem a Thiers (que sabe mais do que o<br />

próprio Napoleão) se essas batalhas inolvidáveis, tanto quanto as<br />

ganhas e empenha<strong>da</strong>s de surpresa não revelam, acima do valor<br />

pessoal de ca<strong>da</strong> combatente, o gênio lugubremente célebre que<br />

vingava atirar ao túmulo, num relance de olhos, milhares de<br />

criaturas em apogeu de força e ativi<strong>da</strong>de.<br />

Se a um exército se impõe, imprescindível, o governo de um<br />

chefe e que uma severa discipli<strong>na</strong> o abranja <strong>na</strong> uni<strong>da</strong>de de milhares<br />

de sol<strong>da</strong>dos, com maior soma de razão importa que uma


força governe a matéria, reduzindo à uni<strong>da</strong>de harmônica os<br />

milhões de moléculas que sucessivamente a conformam.<br />

Só mediante essa força é que existe o corpo, tal como se dá<br />

com o regimento, que, não sendo mais que uma enti<strong>da</strong>de abstrata,<br />

existe por virtude de lei, antes que pelo valor de ca<strong>da</strong> sol<strong>da</strong>do.<br />

Chegam os conscritos novos, dá-se baixa aos velhos e de sete em<br />

sete anos está o regimento renovado. Nesse período, há licenças<br />

temporárias, engajamentos particulares e uma que outra modificação<br />

<strong>na</strong>s moléculas componentes do exército. Desculpem: ca<strong>da</strong><br />

oficial ou sol<strong>da</strong>do não é mais que um número, sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />

não entra em linha de conta. Podem os oficiais ser comparados<br />

aos zeros <strong>da</strong> ordem decimal, ou, por falar com mais elegância –<br />

chefes de deze<strong>na</strong>s ou cente<strong>na</strong>s; mas, singularmente considera<strong>da</strong>,<br />

sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de pouco mais vale que um caçador. Os próprios<br />

coronéis mu<strong>da</strong>m, sem que o regimento deixe de existir <strong>na</strong> sua<br />

forma idêntica. Sofrem os generais, igualmente, essas transições,<br />

que em <strong>na</strong><strong>da</strong> prejudicam a existência <strong>da</strong>s respectivas briga<strong>da</strong>s e<br />

divisões. A hierarquia militar é uma uni<strong>da</strong>de e é nisso que reside<br />

a sua eficiência. Quanto às partes componentes <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de, não<br />

são conheci<strong>da</strong>s. Indubitável, que um coronel à testa do seu<br />

regimento, ou um general <strong>na</strong> ativa, têm mais importância, do<br />

ponto de vista do serviço, do que um simples gra<strong>na</strong>deiro; <strong>da</strong><br />

mesma forma que um átomo de gordura cerebral tem maior<br />

importância do que um folículo de unha.<br />

Mas, o que constitui o tronco, ou o nó, de uma fonte de galhos<br />

extensos não é por si mesmo a fonte integral. Logo, a comparação<br />

dos adversos aproveita mais à nossa do que à sua tese.<br />

Qual o homem culto, o observador de boa fé, que ousará negar<br />

seja o nosso organismo engendrado por uma força especial?<br />

Qual a diferença de um cadáver para um corpo vivo? Há duas<br />

horas que o coração de tal homem deixou de bater; ei-lo estendido<br />

no leito funerário, a vi<strong>da</strong> escapou-se-lhe independente de<br />

qualquer lesão, sem que houvesse distúrbio orgânico. Seu estado<br />

desafia autópsia minuciosa. Quimicamente falando, não há<br />

diferença alguma entre este e o corpo que vivia esta manhã. Em<br />

que diferem, repito, o corpo vivo e o ca<strong>da</strong>vérico? Pela vossa<br />

teoria, eles não diferem, têm o mesmo peso, tamanho, forma.


São os mesmos átomos, as mesmas moléculas, as mesmas proprie<strong>da</strong>des<br />

físico-químicas. Chegais mesmo a ensi<strong>na</strong>r que essas<br />

proprie<strong>da</strong>des estão inviolavelmente liga<strong>da</strong>s aos átomos. Aí<br />

temos, portanto, o mesmo ser!<br />

Mas, não vedes que uma tal conseqüência vale por conde<strong>na</strong>ção<br />

formal do vosso sistema?<br />

Porque a ver<strong>da</strong>de é que um ser vivo difere, evidentemente, de<br />

um morto. Isso é coisa tão vulgarmente sabi<strong>da</strong>, que não podeis<br />

contestar. Confessai, pois, que uma hipótese que ensi<strong>na</strong> não ser a<br />

vi<strong>da</strong> senão um conjunto de proprie<strong>da</strong>des químico-atômicas, cai<br />

pela base e pela cúpula, de vez que, <strong>na</strong>scimento e morte, alfa e<br />

ômega de to<strong>da</strong> a existência, protestam vitoriosamente contra as<br />

conclusões dessa hipótese.<br />

Chega a ser quase ultrajante para a inteligência huma<strong>na</strong> a<br />

obrigação de sustentar que um corpo vivo difere de um morto e<br />

que neste já não existe força anímica. Afirmar que a vi<strong>da</strong> é algo é<br />

assim como afirmar que há luz em pleno dia. Devemos, porém,<br />

ensejar a que os antagonistas de além-Reno venham pôr os<br />

pontos nos is.<br />

Preciso se faz que seja a força constitutiva <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> uma força<br />

muito especial, visto que, frente a ela, as moléculas corporais se<br />

distribuem harmônicas, numa uni<strong>da</strong>de fecun<strong>da</strong>, ao passo que em<br />

sua ausência essas mesmas moléculas se separam, se desconhecem,<br />

se combatem e deixam logo cair em total dissolução esse<br />

organismo que se faz pó.<br />

Preciso, também, se faz que essa mesma força exista de uma<br />

forma particularíssima, pois que, de um lado, não sendo vivos<br />

todos os corpos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e, de outro lado, sendo os corpos<br />

vivos compostos com o mesmo material dos inorgânicos, diferem,<br />

contudo, dos primeiros, pelas especiais e admiráveis proprie<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Preciso, ain<strong>da</strong>, seja a vi<strong>da</strong> uma força sobera<strong>na</strong>, visto não passar<br />

o corpo de um turbilhão de elementos transitórios, em mutação<br />

constante de to<strong>da</strong>s as suas partes, persistindo ela, enquanto<br />

que a matéria passa.


Concluir-se-á, <strong>da</strong>í, com Buffon, que haja no mundo duas espécies<br />

de moléculas, isto é: orgânicas e inorgânicas?<br />

Que as primeiras sejam células vivas, dota<strong>da</strong>s de sensibili<strong>da</strong>de<br />

e irritabili<strong>da</strong>de, a passarem-se de um a outro ser vivo sem se<br />

imiscuírem nos corpos inorgânicos, enquanto que as segun<strong>da</strong>s<br />

não entram <strong>na</strong> constituição geral <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>?<br />

Mas a Química orgânica demonstrou, à sacie<strong>da</strong>de, que os<br />

elementos <strong>da</strong> matéria vivifica<strong>da</strong> são os mesmos que os do mundo<br />

mineral, ou aéreo, o que vale por dizer elementarmente oxigênio,<br />

hidrogênio, azoto, carbono, ferro, cal, etc.<br />

Dir-se-á, então, com o botânico Dutrochet e com o a<strong>na</strong>tomista<br />

Bichat, que a vi<strong>da</strong> seja uma exceção temporária às leis gerais <strong>da</strong><br />

matéria, uma suspensão acidental <strong>da</strong>s leis físico-químicas, que<br />

acabam sempre imolando o ser ao governo <strong>da</strong> matéria? Mas é<br />

uma idéia que não vacilamos em proclamar errônea, de vez que a<br />

vi<strong>da</strong> é o alvo mais elevado e mais fulgurante <strong>da</strong> Criação, a<br />

perpetuar-se através <strong>da</strong>s espécies, desde os primórdios do mundo.<br />

De resto, digam e pensem como entenderem, a vi<strong>da</strong> não deixará<br />

de ser uma força, superior às afini<strong>da</strong>des elementares <strong>da</strong><br />

matéria.<br />

O que caracteriza os seres vivos é a força orgânica que agluti<strong>na</strong><br />

essas moléculas, segundo a conformação específica dos<br />

indivíduos e conforme o seu tipo específico. “As ver<strong>da</strong>deiras<br />

molas de nosso organismo – dizia Buffon – não são estes músculos,<br />

artérias e veias, mas forças interiores, que não obedecem de<br />

modo algum às leis <strong>da</strong> grosseira mecânica por nós imagi<strong>na</strong><strong>da</strong> e<br />

às quais tudo desejaríamos subordi<strong>na</strong>r 21 .” Em vez de procurarem<br />

conhecer as forças por seus efeitos, trataram de as afastar e até<br />

banir <strong>da</strong> Filosofia. Elas reapareceram, contudo, e mais imponentes<br />

que nunca.<br />

Cuvier, mais explícito, o declara, de vez que observara diretamente<br />

não passar a matéria de simples “depositária <strong>da</strong> força,<br />

por esta constrangi<strong>da</strong>, de antemão, a marchar no mesmo sentido<br />

que ela, bem como que a forma dos corpos lhe é mais essencial


que a matéria, visto que esta transmu<strong>da</strong>, enquanto que aquela se<br />

conserva”.<br />

As experiências de Flourens, sobretudo, evidenciaram a mutabili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> matéria, a contrastar com a permanência <strong>da</strong> força,<br />

que, a bem dizer, é o que tem de essencial o ser. Uma dessas<br />

experiências consiste em submeter um animal, durante trinta<br />

dias, ao regime <strong>da</strong> granza, que, sabemo-lo, é uma substância que<br />

tinge de vermelho os objetos dela impreg<strong>na</strong>dos. No fim de um<br />

mês o animal apresenta um esqueleto de cor vermelha. Em se lhe<br />

<strong>da</strong>ndo, a seguir, o alimento usual, os ossos entram a branquear,<br />

começando pelo centro, de vez que a renovação incessante, dos<br />

ossos como <strong>da</strong> carne, opera-se do interior para o exterior. Outra<br />

experiência consiste em descar<strong>na</strong>r um osso e rodeá-lo de um fio<br />

de plati<strong>na</strong>. Pouco a pouco, o anel de plati<strong>na</strong> se recobre de cama<strong>da</strong>s<br />

sucessivamente forma<strong>da</strong>s e acaba ficando no interior do<br />

osso. Eis que assim se renovam os ossos. A carne e os tecidos<br />

moles sofrem uma ação mais rápi<strong>da</strong>.<br />

Com Quatrefages verificamos “duas correntes contrárias a<br />

circularem <strong>na</strong>s profundezas do ser: uma extraindo incessante,<br />

molécula por molécula, alguma coisa do organismo, e outra<br />

reparando, relativamente, to<strong>da</strong>s as brechas que, por mais extensas,<br />

acarretariam a morte”. A força orgânica, que constitui o<br />

nosso ser, oculta-se sob a vestimenta variável <strong>da</strong> carne, mas nós<br />

sentimo-la palpitante em seu ardente vigor. Ela nos conforma,<br />

dirige, gover<strong>na</strong>. Atentai nesses representantes primitivos <strong>da</strong><br />

escala zoológica, nesses crustáceos protegidos de uma couraça<br />

contra as subversões <strong>da</strong> crosta terre<strong>na</strong>; detende-vos nesses anelídeos,<br />

nesses vermes que, seccio<strong>na</strong>dos, continuam a viver. Arrancai<br />

à lagosta uma pata e esta lhe re<strong>na</strong>scerá com todos os seus<br />

caracteres. Cortai-a de uma salamandra e vê-la-eis integralmente<br />

reconstituí<strong>da</strong>. Esmagai a cau<strong>da</strong> de um lagarto, ela lhe re<strong>na</strong>scerá.<br />

Seccio<strong>na</strong>i a minhoca em muitos pe<strong>da</strong>ços e ca<strong>da</strong> qual recuperará o<br />

que lhe falte. A flor de coral, destaca<strong>da</strong> de sua matriz, vai, através<br />

<strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, constituir nova árvore. Será a matéria, só por si,<br />

que opera tais coisas? Será que coisas tais não revelam a ação<br />

constante <strong>da</strong> força típica que modela os seres segundo a espécie,


e que, sem dúvi<strong>da</strong>, lhe é mais essencial do que as moléculas<br />

orgânicas com as suas proprie<strong>da</strong>des químicas?<br />

E, que haveremos de concluir <strong>da</strong> metamorfose dos insetos,<br />

essas formas transitórias, <strong>na</strong>s quais só a força persiste, através<br />

<strong>da</strong>s fases de letargia e ressurreição? A fale<strong>na</strong> que adeja, no ar<br />

luminoso, não será o mesmo ser há pouco existente <strong>na</strong> larva ou<br />

<strong>na</strong> lagarta?<br />

Diante de fatos que tais é claro, incontroverso, que uma força,<br />

seja qual for (o nome pouco importa), organiza a matéria, segundo<br />

a forma típica <strong>da</strong>s espécies, animais vegetais.<br />

Ora, nossos contraditores não vacilam em afirmar que <strong>na</strong><strong>da</strong><br />

existe, absolutamente, e que tudo se pode explicar com as proprie<strong>da</strong>des<br />

químicas <strong>da</strong>s moléculas. Pretende, Moleschott, que “o<br />

conjunto <strong>da</strong>s circunstâncias, esse estado mediante o qual a afini<strong>da</strong>de<br />

material engendra as mesmas formas persistentes, recebeu<br />

de Henle, a exemplo de Scheiling, o nome de força típica. Esta<br />

força típica é um pequeno passo precedente à força vital, visto<br />

comportar tantos estados de matéria quantos sejam os órgãos e as<br />

espécies. Mas, a força padronizadora de plantas e animais é uma<br />

idéia tão oca, tão pueril quanto à <strong>da</strong> força vital a que se radica.”<br />

O Sr. Wirchow chama-lhe pura superstição, incapaz de negar<br />

parentesco com a crença demoníaca e com a pesquisa <strong>da</strong> pedra<br />

filosofal.<br />

Quanto ao autor do Estudo de Filosofia Positiva, esse fecha<br />

os olhos e clama: – “de real só há corpos”.<br />

Bois-Reymond, a seu turno, declara, em uma obra sobre a<br />

eletrici<strong>da</strong>de animal, que a pretensa força vital não passa de<br />

quimera.<br />

Se os nossos antagonistas se obsti<strong>na</strong>m em sustentar que os<br />

organismos estão submetidos a forças intrínsecas, não têm mais<br />

do que afirmar o seguinte: – “a molécula material, entrando no<br />

turbilhão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, recebe por algum tempo o dom de novas<br />

forças e tor<strong>na</strong> a perdê-las quando o turbilhão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, agastado, a<br />

rejeite definitivamente <strong>na</strong>s plagas <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> i<strong>na</strong>nima<strong>da</strong>”.<br />

É um raciocínio falso, o desses senhores, de vez que basta à<br />

molécula a só entra<strong>da</strong> no turbilhão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> para que se comporte


de conformi<strong>da</strong>de com o tipo individual que momentaneamente a<br />

retém. Para conservar o cepticismo, são obrigados, qual já o<br />

vimos, a fazer vista grossa à diferença que distingue o corpo vivo<br />

do ca<strong>da</strong>vérico. Não se pode haver mais por duvidosa, <strong>na</strong> opinião<br />

de Du Bois-Reymond, a questão de saber “se a diferença – única<br />

cuja possibili<strong>da</strong>de admitimos – entre os fenômenos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong><br />

viva e morta, existe realmente. Uma diferença dessa espécie não<br />

existe. Nos organismos, forças novas não se agregam às moléculas<br />

materiais, nem força alguma que não esteja em ativi<strong>da</strong>de fora<br />

dos organismos. Portanto, não há forças que se possam chamar<br />

vitais. A separação entre supostas <strong>na</strong>turezas, orgânica e inorgânica,<br />

é absolutamente arbitrária. Os que teimam em mantê-la, os<br />

que pregam a heresia <strong>da</strong> força vital, seja com que rótulo for,<br />

fiquem certos de haver jamais atingido as lindes do próprio<br />

raciocínio”.<br />

Note-se, de passagem, esta firmeza e mais este leve tom de<br />

arrogância com que se referem aos que divergem <strong>da</strong>s suas teorias.<br />

Veja-se como emitem as mais contestáveis proposições.<br />

“As proprie<strong>da</strong>des do azoto, do carbono, do hidrogênio, do<br />

oxigênio, do enxofre, do fósforo – afirmam – existem de to<strong>da</strong> a<br />

eterni<strong>da</strong>de. Provem-nos o contrário... Calam-se? É que não têm<br />

razão? E com isso, está ganha a parti<strong>da</strong>. As proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

matéria não podem mu<strong>da</strong>r, quando entra <strong>na</strong> composição de<br />

vegetais e animais. Logo, é evidente que a hipótese de uma força<br />

peculiar à vi<strong>da</strong> é absolutamente quimérica!”<br />

Objetam, enfim, que essa força não existe, porque “força sem<br />

substrato material é idéia abstrata, desprovi<strong>da</strong> de senso”.<br />

Por nós, não vemos a necessi<strong>da</strong>de de admitir que não exista<br />

uma força típica, ou que essa força seja extrínseca à matéria. Os<br />

nossos negativistas incidem, aqui, no mesmo erro de quando se<br />

trata <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>, que declaram só possível de conceber<br />

fora do mundo. É sempre o mesmo princípio que está em<br />

jogo. Ao demais, nos seria fácil demonstrar que todos os conhecimentos<br />

humanos se reduzem, última ratio, à noção <strong>da</strong> força e<br />

<strong>da</strong> extensão; poderíamos invocar o testemunho <strong>da</strong> Matemática,<br />

<strong>da</strong> Física, <strong>da</strong> Química, <strong>da</strong> História Natural em seus três reinos:<br />

Mineralogia, Botânica, Zoologia; a ciência do homem: Psicolo-


gia, Estética, Moral, Teologia <strong>na</strong>tural, Filosofia; ciências que,<br />

to<strong>da</strong>s, iriam esbarrar no mesmo nó substancial, isto é, a força e a<br />

extensão. Não cabe, entretanto, fazer aqui um dicionário. Bastenos<br />

considerar do ponto de vista <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> esta dupla questão e<br />

notar, igualmente, o predomínio <strong>da</strong> força sobre a extensão.<br />

Bichat definia a vi<strong>da</strong> como conjunto de funções que resistem<br />

à morte. Sem tomarmos puerilmente, ao pé <strong>da</strong> letra, essa definição,<br />

perguntamos: qual a primeira imagem que nos oferece o<br />

exame <strong>da</strong> estrutura de um vegetal ou de um animal? Certo, é a<br />

coorde<strong>na</strong>ção <strong>da</strong>s funções orgânicas que constituem o ser vivente.<br />

E que será essa coorde<strong>na</strong>ção, senão um sistema de forças desti<strong>na</strong><strong>da</strong>s<br />

a movimentar a máqui<strong>na</strong> anima<strong>da</strong>?<br />

Deste ponto de vista, o que a tudo sobreleva é a idéia dinâmica.<br />

Bani<strong>da</strong> ela, o que nos fica é <strong>na</strong><strong>da</strong> mais que um cadáver.<br />

Se, <strong>da</strong> descrição do órgão apropriado ao seu funcio<strong>na</strong>mento e<br />

desse conceito de forças particulares remontarmos ao conjunto<br />

do seu e à sua conservação, desde o começo ao fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

concluiremos com Cuvier que “a vi<strong>da</strong> é um turbilhão contínuo,<br />

cuja diretiva, por mais complexa que seja, permanece constante,<br />

tal como a espécie de moléculas que consigo arrasta, mas não as<br />

moléculas individuais em si mesmas”. Aqui, ain<strong>da</strong> há reconhecer<br />

a presença <strong>da</strong> força, que, através <strong>da</strong> incessante mutação dos<br />

corpos, lhes assegura e conserva a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> forma. Ela –<br />

essa força – é pois a característica principal de todo organismo. E<br />

frisamos estas palavras de Cuvier: “as moléculas individuais<br />

circulam perpetuamente, mas a espécie permanece sempre<br />

idêntica”. Essa permanência devemo-la à força.<br />

Que sucederia, por exemplo, se ape<strong>na</strong>s a forma se salvaguar<strong>da</strong>sse<br />

e nenhuma direção virtual presidisse à eleição <strong>da</strong>s moléculas<br />

químicas? Teríamos, a breve trecho, o mais heterogêneo dos<br />

corpos imagináveis, ain<strong>da</strong> que guar<strong>da</strong>ndo a perfeição <strong>da</strong> sua<br />

formação.<br />

Imagi<strong>na</strong>i, por exemplo, que o elemento essencial de uma face<br />

clara de neve, que o coralino de uns lábios, a gracili<strong>da</strong>de de uma<br />

boca, o matiz expressivo de uns olhos puleros, fossem, ocasio<strong>na</strong>lmente,<br />

refeitos por moléculas de outra espécie, como, por


exemplo, do iodo, que se tor<strong>na</strong> negro ao contacto <strong>da</strong> luz, do<br />

ácido butírico, fundente ao Sol, ou de um sal qualquer, solúvel<br />

pela umi<strong>da</strong>de, etc... Que belos espécimes <strong>da</strong>ria assim a Humani<strong>da</strong>de!<br />

E contudo, eis aí ao que se chega, em negando a existência<br />

de uma força vital.<br />

Passando do indivíduo à espécie, ain<strong>da</strong> aí notamos o predomínio<br />

necessário <strong>da</strong> força. Se ca<strong>da</strong> indivíduo se mantém vivo, é<br />

graças à sua dinâmica íntima. Se as espécies vegetais ou animais<br />

permanecem, é graças à força inicial que, só ela, pode caracterizar<br />

a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> espécie, transmissível à descendência e<br />

existente em estado latente, ou sensível, no óvulo vegetal como<br />

no óvulo animal.<br />

Como pôde este carvalho enorme sair <strong>da</strong> ínfima bolota caí<strong>da</strong><br />

ao solo? Como se fez carvalho, ao lado <strong>da</strong> fava que expeliu a<br />

faia; <strong>da</strong> batata, que engendrou o pinheiro; <strong>da</strong> amêndoa, que se<br />

fez tumba do pilriteiro desdobrando-se em bagas escarlates; ou<br />

ain<strong>da</strong>, ao lado do grão de trigo e de aveia, <strong>na</strong> mesma terra, com o<br />

mesmo sol e a mesma chuva; em suma: <strong>na</strong>s mesmíssimas condições?<br />

Porque será que os elefantes de hoje são exatamente idênticos<br />

aos de que Pyrrhus se utilizava, há 20 séculos, e o corvo de Noé<br />

(se é que Noé existiu) se vestia do mesmo luto destes que aí<br />

sulcam os nossos céus de Setembro? Certo, porque o germe<br />

orgânico não reside somente <strong>na</strong> estrutura a<strong>na</strong>tômica, mas, também<br />

e sobretudo, em uma força especial que se encarrega, sem<br />

enganos possíveis, <strong>da</strong> organização do ser, de modo a não <strong>da</strong>r a<br />

um cavalo uma cabeça de carneiro, nem a um coelho uns pés de<br />

pato!<br />

Afirmando tão apaixo<strong>na</strong><strong>da</strong>mente a inexistência de uma força<br />

especial nos seres vivos e que a vi<strong>da</strong> mais não é que o resultado<br />

<strong>da</strong> presença simultânea <strong>da</strong>s moléculas constitutivas do animal ou<br />

vegetal, justo seria procurassem, os arautos de tão au<strong>da</strong>ciosas<br />

afirmativas, comprová-las experimental e ain<strong>da</strong> que modestamente.<br />

Improvisai um único, e o mais ínfimo ser vivo, e... nós<br />

nos renderemos. Vejamos: aqui está uma garrafa com carbo<strong>na</strong>to<br />

de amoníaco, cloreto de potassa, fosfato de so<strong>da</strong>, cal, magnésia,<br />

ferro, ácido sulfúrico e sílica.


Sois vós mesmos a confessá-lo 22 que nesse frasco está contido<br />

o princípio vital, completo, de plantas e animais. Fazei, portanto,<br />

uma plantinha, um só bichinho... Como assim? Calai-vos? Na<strong>da</strong><br />

obstante, sois patrícios de Goethe! Não vos lembrais do lúgubre<br />

laboratório de Wagner, atochado de aparelhos esquisitos, disformes;<br />

de fornos e cubos desti<strong>na</strong>dos a fantásticas experiências?<br />

Ele, Wagner, já tem <strong>na</strong>s mãos a garrafa.<br />

Apelai para a vossa memória e ouvi a ce<strong>na</strong> maravilhosa do<br />

eterno Mefistófeles a dialogar com o alquimista.<br />

Wagner, atento ao forno: “O sino tangeu, percussão formidável!<br />

Abalou as paredes negras, ferrugentas. Oh! a incerteza desta<br />

expectativa tão solene não pode prolongar-se muito. As trevas<br />

como que se desfazem, estou a ver no fundo <strong>da</strong> lente algo que<br />

reduz 23 como carbono vivo, ou, melhor, como esplêndido diamante,<br />

a clarear de mil facetas a escuridão ambiente. Agora, uma<br />

luz pura, branquíssima. Bem, desta vez espero que não escapara...<br />

ah! maldição, quem bate assim à porta, justamente...<br />

Mefistófeles: (entrando) – Que há?<br />

Wagner: (baixinho) – Está-se fabricando um homem...<br />

Mefistófeles: – Um homem? Mas, que amoroso casal meteste<br />

aí nessa chaminé?<br />

Wagner: – Ora, valha-me <strong>Deus</strong>! Essa velha fórmula de procriar<br />

já foi, há muito, reconheci<strong>da</strong> um simples gracejo. O foco<br />

sutil de onde brotava a vi<strong>da</strong>, a força suave que de si exalava, e<br />

tomava e <strong>da</strong>va, desti<strong>na</strong><strong>da</strong> a formar-se por si mesma, alimentando-se<br />

a princípio <strong>da</strong>s substâncias circunvizinhas e, a seguir, de<br />

substâncias estranhas, tudo isso caducou e perdeu o seu prestígio.<br />

Se o animal ain<strong>da</strong> lhe encontra prazer, ao homem convém,<br />

por dotado de mais nobres quali<strong>da</strong>des, uma origem mais pura e<br />

mais alta. (Voltando-se para a for<strong>na</strong>lha) Quanto brilho! veja...<br />

Dora em diante, é lícito esperar que, se de cem matérias, e por<br />

mistura – pois tudo depende <strong>da</strong> mistura – conseguimos com<br />

facili<strong>da</strong>de compor a massa huma<strong>na</strong>, aprisioná-la num alambique,<br />

coobá-la a preceito, a obra se completará em silêncio. (Voltandose<br />

de novo para a for<strong>na</strong>lha) É o que está sucedendo: a mesma<br />

clareia-se e mais convicto me deixa, a ca<strong>da</strong> instante. Tentamos,


judiciosamente, experimentar o que se chamava – mistérios <strong>da</strong><br />

<strong>Natureza</strong> – e o que ela produzia outrora, organizando, fazemo-lo<br />

hoje cristalizando.<br />

Mefistófeles: – A experiência vem com a i<strong>da</strong>de e a quem quer<br />

que tenha vivido bastante, <strong>na</strong><strong>da</strong> ocorre de novo, <strong>na</strong> Terra. Por<br />

mim, confesso que <strong>na</strong>s minhas viagens encontrei, bastas vezes,<br />

muita gente cristaliza<strong>da</strong>...<br />

Wagner: (que não tirara o olho <strong>da</strong> sua lente) – A coisa está<br />

crescendo, brilhando, fervendo... Um instante mais e a obra<br />

estará consuma<strong>da</strong>. Não há ideal grandioso que à primeira vista<br />

não pareça insensato; contudo, doravante, queremos sobrancear<br />

o acaso e dessarte, futuramente, um pensador não deixará de<br />

fabricar um cérebro pensante...<br />

(Contemplando a redoma embevecido) O cristal retine, vibra;<br />

comove-o uma força encantadora, ele como que se perturba e se<br />

aclara, o sucesso não tar<strong>da</strong>. Já estou a ver a forma elegante de<br />

um homenzinho gesticulando... Que mais desejar? Que pode o<br />

mundo querer de melhor? Eis o mistério a desnu<strong>da</strong>r-se! Atenção!<br />

Esse timbre se articula, vozeia, fala!<br />

Homúnculo: (de dentro <strong>da</strong> redoma, para Wagner)<br />

– Bom dia, papai! então sempre era ver<strong>da</strong>de, hein? Toma-me,<br />

aconchega-me ao teu seio com ternura, mas, olha, não me apertes<br />

muito, senão... quebras o vidro. Isso é a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s coisas:<br />

ao que é <strong>na</strong>tural, só o Universo pode bastar; mas o artificial, ao<br />

contrário, reclama o limitado. (Voltando-se para Mefistófeles)<br />

Tu aqui? Velhaco... Mas, ain<strong>da</strong> bem que o momento é azado e<br />

graças dou porque boa estrela te trouxe a nós. Já que estou no<br />

mundo, quero agir e meter desde logo mãos à obra. Hábil és tu<br />

para me desbravar o caminho.<br />

Wagner: – Uma palavra ain<strong>da</strong>... Até aqui, muitas vezes me vi<br />

indeciso, quando moços e velhos me vêm cumular de problemas.<br />

Ninguém, por exemplo, ain<strong>da</strong> compreendeu como a alma e o<br />

corpo, tão intimamente conjugados e ajustados entre si, a ponto<br />

de os julgarmos para sempre inseparáveis, vivem em luta sem<br />

tréguas e chegam a envene<strong>na</strong>r a própria existência... e depois...


Mefistófeles: – Alto lá! Eu antes quisera saber a razão por<br />

que o homem e a mulher não se entendem. Esta é uma questão<br />

que te há de custar a resolver. Isso é o que vale tentar e o petiz<br />

deseja fazê-lo...“<br />

Voltai, porém, a pági<strong>na</strong> do libreto. Vamos ao 1º ato, é Fausto,<br />

é a velha e nova Ciência quem fala:<br />

Como tudo se movimenta para o trabalho universal! Como<br />

operam e cooperam as ativi<strong>da</strong>des to<strong>da</strong>s, umas pelas outras!<br />

Como sobem e descem as forças, a permutar de mão em mão<br />

seus vasos de ouro, a tocá-los com as suas asas que exalam,<br />

nesse vaivém, do céu à Terra, uma como bênção de universal<br />

harmonia!<br />

“Estupendo espetáculo! Mas... ó tortura! <strong>na</strong><strong>da</strong> mais que espetáculo!<br />

Onde apreender-te, ó <strong>Natureza</strong>! Ó fontes de to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>!<br />

que abranjeis e nutris céus e terras, onde estais? Para vós se<br />

voltam os seios desnutridos, correis aos borbotões, inun<strong>da</strong>is o<br />

mundo, enquanto em vão me consumo.”<br />

Sim. Em vão vos consumis, tentando reivindicar para o homem<br />

a obra do Criador. É em vão que escreveis: A onipotência<br />

criadora é a afini<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>... Com todo o vasto conhecimento<br />

<strong>da</strong> matéria e <strong>da</strong>s suas proprie<strong>da</strong>des, não conseguistes engendrar<br />

sequer um cogumelo.<br />

Creio, porém, que de o fazer decimais e vos desculpais. O<br />

que não podemos, pode a <strong>Natureza</strong>, visto que ela ain<strong>da</strong> é mais<br />

hábil que nós. (Bela modéstia, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de.) Mas, então, que<br />

fazeis <strong>da</strong> inteligência, uma vez que, por outro lado, presumis não<br />

haver espírito <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>? Mas vamos adiante. Demais – acrescentais<br />

argutamente –, se ain<strong>da</strong> não produzimos seres vivos por<br />

processos químicos, temos, to<strong>da</strong>via, produzido matérias como,<br />

por exemplo, o ácido característico <strong>da</strong> uri<strong>na</strong>, e o óleo essencial<br />

<strong>da</strong> mostar<strong>da</strong> (éter alilsulfociânico), o que muito nos lisonjeia.<br />

Detenhamo-nos, pois, um instante, <strong>na</strong>s decisivas manipulações<br />

destes ilustres químicos.<br />

A partir dos fins do último século, como adverte Alfredo<br />

Maury 24 , tem-se reconhecido que as matérias que se desenvolvem<br />

nos vegetais e nos animais, recolhi<strong>da</strong>s dos seus restos,


encerram quase exclusivamente carbono, oxigênio, hidrogênio e<br />

azoto. Daí se concluiu serem estes quatro corpos os princípios<br />

básicos elementares de to<strong>da</strong>s as substâncias orgânicas e que se<br />

encontram muitas vezes combi<strong>na</strong>dos com alguns outros corpos<br />

simples e diversos sais minerais.<br />

Este primeiro resultado nos ensinou que, se vegetação e vi<strong>da</strong><br />

são forças à parte, insusceptíveis de se confundirem com o<br />

simples movimento, com a afini<strong>da</strong>de e a coesão, elas de si <strong>na</strong><strong>da</strong><br />

criam e ape<strong>na</strong>s apropriam o material do reino mineral que as<br />

rodeia. De fato, os quatro elementos orgânicos existem inteiramente<br />

formados <strong>na</strong> atmosfera. O ar é um composto de oxigênio e<br />

azoto, associados à peque<strong>na</strong> porção de ácido carbônico, ou seja<br />

de carbono combi<strong>na</strong>do com o oxigênio. A atmosfera tem, ao<br />

demais, em suspensão, o vapor d'água e ninguém ignora que a<br />

água é um composto de oxigênio e hidrogênio. Portanto, as<br />

matérias orgânicas tiram dessa massa fluídica e inorgânica que<br />

as envolve e compenetra o nosso globo os elementos de sua<br />

composição. Quanto às outras substâncias encontra<strong>da</strong>s, por<br />

assim dizer, acidentalmente, em sua trama, são apropria<strong>da</strong>s do<br />

solo. As plantas os sugam e os animais, nutrindo-se <strong>da</strong>s plantas,<br />

os assimilam.<br />

A Química pode criar imediatamente esses elementos orgânicos<br />

e foi o Sr. Büchner o primeiro a proclamá-lo, com entusiasmo.<br />

Os químicos fizeram o açúcar de uva bem como vários<br />

ácidos orgânicos. Criaram, dizem, diferentes bases orgânicas e<br />

entre elas a uréia, substância orgânica por excelência, em desmentido<br />

aos médicos que os argüiam de incapazes de obter<br />

produtos do organismo. Dia a dia vemos aumentarem as experiências<br />

químicas no sentido de criar combi<strong>na</strong>ções. O Sr. Berthelot<br />

conseguiu engendrar, de corpos inorgânicos, os derivados <strong>da</strong>s<br />

combi<strong>na</strong>ções de carbono e hidrogênio e esta descoberta, mau<br />

grado ao seu desacordo com a <strong>na</strong>tureza orgânica, forneceu um<br />

ponto de parti<strong>da</strong> para a composição artificial dos corpos orgânicos.<br />

Hoje se fabrica o álcool e perfumes preciosos do carvão vegetal;<br />

<strong>da</strong> ardósia extraem-se velas; o ácido prússico, a uréia, a<br />

tauri<strong>na</strong> e quanti<strong>da</strong>de de corpos outros, havidos outrora por só


criados de substâncias vegetais ou animais, tor<strong>na</strong>m-se obteníveis<br />

de simples elementos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> inorgânica. Assim, apagou-se,<br />

graças a essas manipulações, a clássica distinção entre a <strong>Natureza</strong><br />

orgânica e inorgânica.<br />

Em 1828, produzindo uréia artificial, Woehler derrubou a velha<br />

teoria que sustentava só possíveis as combi<strong>na</strong>ções orgânicas<br />

engendra<strong>da</strong>s por corpos orgânicos. Em 1856, Berthelot criou o<br />

ácido fórmico com substâncias inorgânicas, isto é, óxido carbônico<br />

e água, aquecendo estas matérias com a potassa cáustica e<br />

sem cooperação de planta ou animal qualquer. Logo após, conseguiram<br />

diretamente desses elementos a síntese do álcool.<br />

Chegaram mesmo a produzir a gordura artificial do ácido oléico<br />

e <strong>da</strong> gliceri<strong>na</strong>, duas substâncias que se podem obter por processos<br />

exclusivamente químicos, e aí temos um dos resultados mais<br />

extraordinários até hoje conseguidos <strong>na</strong> Química sintética.<br />

Desses <strong>da</strong>dos, o autor de Força e Matéria concluiu que importa<br />

banir <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> Ciência a idéia de uma força orgânica,<br />

produtora dos fenômenos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, por maneira arbitrária e independente<br />

<strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Tal como ele, também repelimos<br />

o arbitrário, mas guar<strong>da</strong>mos a força. Ele nos garante que a pretendi<strong>da</strong><br />

distinção rigorosa entre o orgânico e o inorgânico é<br />

meramente arbitrária. Mas, nisso, tem contra si os representantes<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terre<strong>na</strong>, em sua totali<strong>da</strong>de.<br />

Sem embargo, Carl Vogt acrescenta que, “alegar a força vital,<br />

não passa de circunlóquio para mascarar ignorância, espécie de<br />

alçapões de que a Ciência está cheia e pelos quais se salvam<br />

sempre os espíritos superficiais, que recuam ante o exame de<br />

uma dificul<strong>da</strong>de, para somente se contentarem com milagres<br />

imaginários”.<br />

Neste caso, a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> força vital representaria hoje uma<br />

causa perdi<strong>da</strong>. “Nem os esforços dos <strong>na</strong>turalistas místicos, no<br />

intuito de reanimar essa sombra; nem os lamentos dos metafísicos<br />

esconjurando as pretensões e a irrupção iminente do materialismo<br />

fisiológico e contestando-lhe o contingente filosófico; nem<br />

as vozes isola<strong>da</strong>s que assi<strong>na</strong>lam fatos <strong>da</strong> Fisiologia ain<strong>da</strong> obscuros;<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> disso pode salvar a força vital de próxima e completa<br />

ruí<strong>na</strong>.


Há alguns anos, Bunsen e Playfer mostraram – diz o autor de<br />

A Circulação <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>, e Rieken confirmou logo após – que é<br />

possível obter cianogênio (combi<strong>na</strong>ção de azoto e hidrogênio) à<br />

custa de substância inorgânica. Por outro lado, sabemos que o<br />

hidrogênio, no momento em que se separa <strong>da</strong>s suas combi<strong>na</strong>ções,<br />

pode unir-se ao azoto para formar o amoníaco. De resto, pode-se<br />

ir do cianogênio ao amoníaco. Basta expor ao ar o cianogênio<br />

dissolvido em água, para que se vejam flocos par<strong>da</strong>centos desagregando-se<br />

do líquido, si<strong>na</strong>is de decomposição, em segui<strong>da</strong> à<br />

qual encontramos o ácido carbônico, o prússico, amoníaco,<br />

oxalato de amoníaco e uréia, dissolvidos no líquido. O ácido<br />

oxálico é uma combi<strong>na</strong>ção de carbono e oxigênio que, pela<br />

mesma quanti<strong>da</strong>de de carbono, não contém senão três quartos do<br />

peso de oxigênio e ácido carbônico. O ácido oxálico é o causador<br />

do pala<strong>da</strong>r acidulado de aze<strong>da</strong>, <strong>da</strong> oxáli<strong>da</strong> e de muitas plantas<br />

outras. É um ácido orgânico que, conforme acabamos de dizer,<br />

podemos preparar mediante corpos simples, sem o concurso de<br />

qualquer organismo.<br />

“Assim, ficamos agora conhecendo três substâncias – exclama<br />

Moleschott –: uma base orgânica – o amoníaco; um principio<br />

acidulante orgânico – o cianogênio, e um ácido orgânico – o<br />

oxálico, que podemos fabricar com corpos simples.<br />

“Não há muitos anos, acreditava-se possível preparar um e<br />

outro mediante decomposição de combi<strong>na</strong>ções orgânicas as mais<br />

complexas, mas ninguém imagi<strong>na</strong>ria obtê-las de elementos<br />

simples. No amoníaco temos uma combi<strong>na</strong>ção de azoto e hidrogênio,<br />

sem partilha de corpos orgânicos. Este enigma, que a<br />

esfinge <strong>da</strong> força vital nos antepunha como espantalho, para<br />

impedir o nosso avanço <strong>na</strong> preparação artificial <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções<br />

orgânicas, foi resolvido por Berthelot. Ele derrubou a esfinge e<br />

seus adoradores, substituindo-os por uma plêiade de investigadores,<br />

a cujas mãos passou os fios que lhes deverão servir para<br />

levar avante a trama <strong>da</strong>s descobertas, a fim de reproduzirem<br />

to<strong>da</strong>s as peças do mundo orgânico.”<br />

Acrescentamos que se obtém hoje o ácido acético, fazendo<br />

passar por três estados um combi<strong>na</strong>do de cloro e carbono, que<br />

são: percloreto de carbono, ácido cloracético e cloreto de carbo-


no, bem como que a combi<strong>na</strong>ção direta de carbono e hidrogênio<br />

dá a síntese do acetileno 25 .<br />

Mais fácil ain<strong>da</strong> é preparar o ácido fórmico com o só auxílio<br />

de corpos simples, qual o conseguiu o professor do Colégio de<br />

França, operando com a potassa úmi<strong>da</strong> sobre o gás óxidocarbônico,<br />

num globo de vidro à prova de fogo e por espaço de<br />

setenta e duas horas, à temperatura de 100 graus 26 .<br />

De resto, a <strong>Natureza</strong> extrai as substâncias orgânicas <strong>da</strong> mesma<br />

fonte a que recorrem os químicos em seus experimentos de<br />

laboratórios.<br />

Certamente, palmeamos a duas mãos (mesmo porque com<br />

uma só fora impossível) essas admiráveis tentativas <strong>da</strong> Ciência e<br />

não é a nós que poderiam reprochar embargos ao gênio criador<br />

do homem. Ele, o homem, está <strong>na</strong> Terra para conhecer a <strong>Natureza</strong><br />

e senhorear a matéria. O conhece-te a ti mesmo dos antigos se<br />

traduz em nossos dias pelo estudo do mundo exterior e é por esse<br />

estudo fecundo que ver<strong>da</strong>deiramente aprenderemos a conhecernos<br />

a nós mesmos.<br />

Acreditamos, com o Sr. Maury, que o alcance de tantas descobertas<br />

compensa de sobejo o esforço para as compreender.<br />

Que ciência nos poderá mais cativar do que a que nos revela a<br />

matéria de que nos constituímos e nos alimentamos; as substâncias<br />

com as quais estamos em contacto, os efeitos físicos que se<br />

operam dentro e fora de nós, onde transitam e como rejeitamos<br />

as partículas incessantemente assimila<strong>da</strong>s?<br />

Não são assuntos de somenos, estes, particularistas e momentâneos:<br />

antes são problemas que abrangem a humani<strong>da</strong>de física<br />

em sua totali<strong>da</strong>de, é o mundo dos seres a que pertencemos que<br />

está em jogo.<br />

Despendendo amiúde muito trabalho e inteligência para penetrar<br />

no dé<strong>da</strong>lo de mesquinhas controvérsias e fatos insignificantes,<br />

como descurarmos o que mais interessa, ou seja, esta maravilhosa<br />

<strong>Natureza</strong> no seio <strong>da</strong> qual <strong>na</strong>scemos, vivemos e morremos;<br />

que nos precede e nos sobrevive, fornecendo a to<strong>da</strong>s as<br />

gerações os princípios essenciais de sua própria existência?


Mas, nem por isso nos associamos às pretensas conseqüências<br />

que os senhores materialistas deduzem, conseqüências que os<br />

senhores Berthelot, Pasteur, e os químicos práticos são os primeiros<br />

a repudiar. Os materialistas presumem ter a chave mais<br />

difícil do enigma, uma vez que podem produzir gás artificial<br />

com os corpos simples. Misturando-se cia<strong>na</strong>to de potassa e<br />

sulfato de amoníaco, a potassa combi<strong>na</strong>-se com o ácido sulfúrico<br />

e o ácido ciânico com o amoníaco. Esta última combi<strong>na</strong>ção não é<br />

cianeto de amoníaco e sim uréia. Admirai agora a ilação: “É<br />

graças a esta brilhante descoberta que Liebig e Woehler abriram<br />

dilata<strong>da</strong>s perspectivas nessa via e conquistaram um eterno galardão,<br />

<strong>da</strong>ndo, um tanto involuntária e despreconcebi<strong>da</strong>mente, a<br />

prova de que, doravante, a flama <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> se resolve em forças<br />

físicas e químicas.” Que honra para Liebig e Woehler o serem<br />

assim arrastados para as <strong>na</strong>scentes do Aqueronte. Nossos adversários<br />

gostam desse rio e <strong>da</strong>s suas margens sombrias. “Certo –<br />

acrescentam –, o químico isento de preconceitos, que não fala a<br />

serviço do trono e do altar, contando tranqüilamente com a<br />

vitória certa, pode sorrir do pobre filósofo, cujo saber não ultrapassa<br />

o conhecimento <strong>da</strong> uréia e que acredita impor limites ao<br />

poder do fisiologista.” Que altar e que trono nomeariam ministros<br />

uns tais lógicos? A própria Ciência vive retraí<strong>da</strong> em seu<br />

santuário e os deixa ron<strong>da</strong>r o tempo, a repicar o sino e fazer<br />

evoluções.<br />

Que conclusão definitiva tira a escola materialista dessas manipulações?<br />

A de que a Química e a Física nos oferecem provas<br />

evidentes de que as forças conheci<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>s substâncias inorgânicas,<br />

exercem a sua ação, tanto em a <strong>Natureza</strong> viva como <strong>na</strong><br />

morta.<br />

Pela mesma razão que os obrigou a divinizar a matéria, em<br />

substituição a <strong>Deus</strong>, vemo-los animar, sem cerimônias, a matéria<br />

para destro<strong>na</strong>r a vi<strong>da</strong>.<br />

“As ciências – diz o autor de Força e Matéria – perseguiram<br />

e demonstraram a ação dessas forças no organismo de plantas e<br />

animais e, às vezes, até <strong>na</strong>s combi<strong>na</strong>ções mais sutis. No presente,<br />

está geralmente constatado que a Fisiologia, ou seja a ciência <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, já não pode prescindir <strong>da</strong> Química e <strong>da</strong> Física e que ne-


nhum processo fisiológico se opera à revelia <strong>da</strong>s forças químicas<br />

e físicas.”<br />

“A Química – diz a seu turno Miahle – tem, incontestavelmente,<br />

parte <strong>na</strong> criação, no crescimento, <strong>na</strong> existência de todos<br />

os seres vivos, seja como causa ou como efeito. As funções <strong>da</strong><br />

respiração, <strong>da</strong> digestão, <strong>da</strong> assimilação e <strong>da</strong> secreção não se<br />

realizam senão por meio <strong>da</strong> Química. Só ela nos pode desven<strong>da</strong>r<br />

os segredos <strong>da</strong>s importantíssimas funções orgânicas.”<br />

O hidrogênio, o oxigênio, o carbono, o azoto, declaram-no<br />

enfaticamente os materialistas, entram <strong>na</strong>s mais diversas condições<br />

de combi<strong>na</strong>ções nos corpos e agregam-se, separam-se,<br />

atuam obedientes às mesmas leis que os regem fora desses<br />

corpos. Os próprios corpos compostos podem apresentar os<br />

mesmos caracteres. A água, a mais volumosa substância de todos<br />

os seres orgânicos, sem a qual não há vi<strong>da</strong> animal nem vegetal,<br />

penetra, amolece, dissolve, adere, cai, segundo as leis do peso, e<br />

evapora-se, precipita-se, forma-se dentro como fora dos organismos.<br />

As substâncias inorgânicas, os sais calcários que a água<br />

contém em estado de composição, ela os deposita nos ossos dos<br />

animais ou no vaso <strong>da</strong>s plantas, onde essas substâncias afetam a<br />

mesma solidez que no domínio inorgânico. O oxigênio <strong>da</strong> atmosfera,<br />

que, nos pulmões, entra em contacto com o sangue venoso,<br />

de cor negra, comunica-lhe a cor vermelha, que o sangue adquire<br />

quando agitado num vaso em contacto com o ar. O carbono<br />

existente no sangue sofre, com esse contacto, os mesmos efeitos<br />

<strong>da</strong> combustão opera<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> parte, transformando-se em ácido<br />

carbônico. Pode-se razoavelmente comparar o estômago a uma<br />

retorta <strong>na</strong> qual as substâncias, postas em contacto, se decompõem,<br />

se combi<strong>na</strong>m, etc., segundo as leis gerais de afini<strong>da</strong>de<br />

química. Um tóxico, entrado no estômago, pode ser neutralizado<br />

pelos mesmos processos exteriormente utilizados. A substância<br />

morbífica porventura lá fixa<strong>da</strong> neutraliza-se, destrói-se, mediante<br />

remédios químicos, como se este processo se operasse num<br />

frasco qualquer, que não no interior de um organismo. A digestão<br />

é ato de pura química. Longe poderíamos prosseguir no<br />

assunto. A observação – diz Miahle – nos ensi<strong>na</strong> que to<strong>da</strong>s as<br />

funções orgânicas se operam mediante processos químicos e que


um ser vivo pode comparar-se a um laboratório de química, em<br />

que se processam os atos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em seu conjunto. Menos evidentes<br />

não são os processos mecânicos determi<strong>na</strong>dos pelos<br />

organismos vivos. A circulação do sangue se realiza pelo mais<br />

perfeito mecanismo imaginável. O aparelho produtor assemelhase,<br />

perfeitamente, aos aparelhados por mãos huma<strong>na</strong>s. O coração<br />

tem válvulas e êmbolos, tal como as máqui<strong>na</strong>s a vapor, cujo<br />

funcio<strong>na</strong>mento produz ruídos distintos. Entrando nos pulmões, o<br />

ar friccio<strong>na</strong> as paredes dos brônquios e engendra o sopro respiratório.<br />

Inspiração e expiração são resultantes de forças puramente<br />

físicas. O fluxo ascensio<strong>na</strong>l do sangue, <strong>da</strong>s extremi<strong>da</strong>des inferiores<br />

do corpo para o coração, contrário às leis de gravi<strong>da</strong>de, não<br />

pode verificar-se senão por um aparelho puramente mecânico. É<br />

também por um processo mecânico que o tubo intesti<strong>na</strong>l, graças<br />

a um movimento peristáltico, expele os excrementos de alto a<br />

baixo e, ain<strong>da</strong>, por processo mecânico se verificam os movimentos<br />

musculares de homens e animais.<br />

A estrutura do olho radica <strong>na</strong>s mesmas leis <strong>da</strong> câmara-escura,<br />

e as ondulações do som transmitem-se aos ouvidos como a<br />

qualquer outra cavi<strong>da</strong>de. “A Fisiologia tem, pois, absoluta razão<br />

– concluem Büchner e Schaller – propondo-se provar, hoje, que<br />

não mais existe essencial diferença entre o mundo orgânico e o<br />

inorgânico.”<br />

Não há diferença entre o orgânico e o inorgânico! Mas, convenhamos<br />

em que não pode haver no mundo uma proposição<br />

mais falsa.<br />

As reações opera<strong>da</strong>s nos corpos vivos longe estão de se identificar<br />

às que se operam com os mesmos líquidos numa retorta.<br />

As forças organizadoras, como as denomi<strong>na</strong> Bichat, esquivam-se<br />

ao cálculo, atuam de feição irregular e variável. Ao<br />

invés, as forças físico-químicas obedecem a leis regulares e<br />

constantes.<br />

O autor de um aparte recente, intitulado – A Ciência dos<br />

Ateus, evidencia muito bem esta ver<strong>da</strong>de com os seguintes<br />

exemplos: “Injetai <strong>na</strong>s veias do animal os elementos constitutivos<br />

do sangue, exceto o que lhe produz a síntese, que não se


encontra à vossa disposição, e em vez de prolongar a vi<strong>da</strong> do<br />

animal tê-lo-eis simplesmente matado. Também o sangue que<br />

fique algum tempo fora <strong>da</strong> veia, se for novamente injetado pelo<br />

orifício que o extravasou, pode ocasio<strong>na</strong>r os mais sérios distúrbios.<br />

Introduzi no estômago do cadáver substâncias alimentares e<br />

vereis que ao contacto dos tecidos elas se putrefarão, elas que, no<br />

animal vivo, se transformariam em sangue para lhe manter a<br />

vi<strong>da</strong>. Pergunta-se, então, aos químicos, como atuam no organismo<br />

o ópio, a quini<strong>na</strong>, a noz-vômica, o enxofre, o iodeto de<br />

potássio, etc. Qual a ação química <strong>da</strong> nicoti<strong>na</strong>, do ácido prússico,<br />

de todos os venenos vegetais que não deixam vestígios? Como<br />

age o curare no tétano?<br />

“Porque a ipeca no estômago faz se contraiam desde logo os<br />

músculos inspiradores, etc.? “Ação de presença”, dizem os<br />

físicos e repetem os químicos, acreditando, os sisudos doutores,<br />

ter cabalmente respondido!”<br />

Atentatória <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de é a pretensão de explicar pela Química<br />

e pela Física os fenômenos fisiológicos, afirmando a identi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s reações intra e extra-orgânicas. A Química e a Física se<br />

conjugam, porque as mesmas leis presidem à sua fenomenologia;<br />

mas um imenso intervalo as separa <strong>da</strong> ciência biológica, porque<br />

existe enorme diferença entre as suas leis e as leis <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Dizer que a Fisiologia é a física animal é <strong>da</strong>r uma definição<br />

tão inexata como se disséssemos que a Astronomia é a física dos<br />

astros. A esse conceito de Bichat o Dr. Cerise adita: “os fenômenos<br />

vitais são complexos e as forças físicas neles cooperando,<br />

incontestavelmente, mas em proporções difíceis de medir, os<br />

submetem ao império de uma força superior, que os rege em<br />

função de suas fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des”.<br />

Da mesma opinião os a<strong>na</strong>tomistas Piorry, Malgalgue, Poggiale,<br />

Boullaud: “Acima de to<strong>da</strong>s as ciências – diz este – como<br />

acima de to<strong>da</strong>s as leis, a vi<strong>da</strong> domi<strong>na</strong>, modifica, neutraliza,<br />

diminui ou aumenta a intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s forças físico-químicas”.<br />

Nosso Dumas, químico eminente, diz algures: “Longe de<br />

amesquinhar a importância dos fatos, aos quais obedece a matéria<br />

morta, a noção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> se alta<strong>na</strong> e ressalta do conhecimento


íntimo dessas leis; e a convicção <strong>da</strong> sua essência misteriosa e<br />

divi<strong>na</strong> se engrandece mercê de sérios estudos <strong>da</strong> Química orgânica.”<br />

As operações químicas, suscetíveis de realizar em nosso organismo,<br />

não se devem confundir com as inerentes à fisiologia<br />

do nosso ser, eis o que é preciso assentar desde logo. Sob o<br />

primeiro ponto de vista, a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s forças que concorrem<br />

para formar substâncias orgânicas e inorgânicas é um fato inconcusso,<br />

averiguado. Conformando-se às leis <strong>na</strong>turais, o químico<br />

compõe uma série de combi<strong>na</strong>ções também encontra<strong>da</strong>s em<br />

corpos orgânicos e, mais fecundo que a própria <strong>Natureza</strong>, pode, a<br />

seu alvedrio, operar outras combi<strong>na</strong>ções inexistentes nos organismos<br />

terrestres, assim transportando, talvez, a sua ciência ao<br />

domínio de outros mundos.<br />

Sabe ele que a fermentação é um processo geral de intervenção<br />

que determi<strong>na</strong>, não ape<strong>na</strong>s os fenômenos <strong>da</strong> morte e <strong>da</strong><br />

decomposição, mas também os do <strong>na</strong>scimento e de to<strong>da</strong>s as<br />

funções vitais, a partir do grão de trigo que germi<strong>na</strong> e do vinho<br />

que ferve, até à levedura do pão e <strong>da</strong> cerveja, e aos fenômenos de<br />

nutrição e digestão. A Química orgânica tem as mesmas bases <strong>da</strong><br />

Química mineral. Ninguém melhor que o Sr. Berthelot expõe<br />

essas conquistas <strong>da</strong> ciência dos corpos, assim como ninguém<br />

lhes traça os limites ante o problema do nosso ser. Ouçamo-lo<br />

portanto:<br />

“Tudo havia concorrido 27 para que a maioria dos espíritos encarasse<br />

como intransponível a barreira entre as duas químicas.<br />

Para explicar a nossa impotência, inferiam uma razão especiosa<br />

<strong>da</strong> intervenção <strong>da</strong> força vital, apta, até então, a só compor substâncias<br />

orgânicas. Era, diziam, uma força misteriosa, a determi<strong>na</strong>r<br />

exclusivamente os fenômenos químicos observados nos<br />

seres, agindo em virtude de leis essencialmente distintas <strong>da</strong>s que<br />

regulam os movimentos <strong>da</strong> matéria puramente móbil e quiescente.<br />

Tal a explicação com que se pretendia justificar a imperfeição<br />

<strong>da</strong> Química orgânica, declarando-a, por assim dizer, irremediável.<br />

Assim proclamando nossa absoluta impotência para produzir<br />

matérias orgânicas, duas coisas se confundiam: a formação de<br />

substâncias químicas, cujo agregado constitui os seres organiza-


dos, e a formação dos próprios órgãos. Este último problema não<br />

pertence aos domínios <strong>da</strong> Química. Jamais o químico pretenderá<br />

fabricar no seu laboratório uma folha, um fruto, um músculo, um<br />

órgão. Questões são estas que afetam a Fisiologia e a esta é que<br />

compete discutir-lhes as premissas, desven<strong>da</strong>r as leis que regem<br />

os seres vivos <strong>na</strong> íntegra, pois que à revelia dessa integri<strong>da</strong>de<br />

nenhum órgão teria razão de existir e nem o meio necessário à<br />

sua formação.<br />

“Entretanto, o que à Química não é <strong>da</strong>do fazer no plano orgânico,<br />

pode empreender no fabrico de substâncias conti<strong>da</strong>s nos<br />

seres vivos.<br />

“Se a própria estrutura de vegetais e animais lhe escapa às<br />

aplicações, não lhe anula a pretensão de conseguir os princípios<br />

imediatos, isto é, os materiais químicos que constituem os órgãos,<br />

independentemente <strong>da</strong> estrutura especial <strong>da</strong>s fibras e<br />

células que esses materiais afetam, nos animais e nos vegetais.<br />

Esta mesma formação e a explicação <strong>da</strong>s metamorfoses ponderáveis,<br />

que a matéria experimenta nos seres vivos, constituem<br />

campo assaz vasto e belo para que a síntese química o reivindique<br />

inteiramente.”<br />

Esta declaração, <strong>na</strong> qual os adversários pretendem ver a vitória<br />

definitiva do materialismo, sugere-nos acreditar em dois<br />

pontos fun<strong>da</strong>mentais:<br />

1º - que a formação <strong>da</strong>s substâncias orgânicas pode ser devi<strong>da</strong><br />

às mesmas leis que regulam o mundo inorgânico e<br />

2º - que a própria formação dos órgãos deriva de uma força<br />

estranha aos domínios <strong>da</strong> Química.<br />

Quanto ao primeiro ponto, triunfa o espiritualismo, qual o<br />

vimos, de vez que as forças que regem o mundo i<strong>na</strong>nimado<br />

revelam a existência de um arquiteto inteligente. E quanto ao<br />

segundo, o triunfo é ain<strong>da</strong> mais brilhante, de vez que a Química<br />

orgânica capitula diante do ser vital. Tal como judiciosamente<br />

adverte o Sr. Langel, essa química estu<strong>da</strong> e compõe, somente, os<br />

materiais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sem se preocupar com o ser vivo em si mesmo.<br />

Esboça, por assim dizer, as tintas do quadro, tor<strong>na</strong>ndo-se


preciso outra mão que aplique essas tintas, e crie a obra em que<br />

elas se fundem em perfeita uni<strong>da</strong>de.<br />

Quando a Química deixou adivinhar no ser humano um<br />

alambique no qual o ácido procura a base, as moléculas se agrupam<br />

de acordo com as leis de que falamos <strong>na</strong> primeira parte;<br />

quando fizeram ver que o animal vivo não passa de um vaso de<br />

reações e que as forças químicas e físicas nele se entregam a<br />

perpétuo combate em campo fechado; quando mostraram que os<br />

fenômenos <strong>da</strong> fecun<strong>da</strong>ção, <strong>da</strong> nutrição e <strong>da</strong> própria morte mais<br />

não são que fermentações ordinárias, já se não sabe mais onde<br />

residem essas forças misteriosas que denomi<strong>na</strong>mos vi<strong>da</strong>, instinto<br />

e consciência, quando se trata de criaturas huma<strong>na</strong>s. Não tar<strong>da</strong>remos<br />

a entrar no âmago desta grave questão. Por enquanto,<br />

confessamos com o Sr. Langel 28 que “a Ciência pode arrastar-nos<br />

à dúvi<strong>da</strong>, a negações espantosas, tendo ela mesma os seus mistérios<br />

insondáveis às vistas huma<strong>na</strong>s. Também ela se contenta com<br />

palavras, sempre que não pode penetrar a essência mesma dos<br />

fenômenos. Não nos fala a Química, constantemente, de afini<strong>da</strong>de?<br />

E não temos aí uma força hipotética, uma enti<strong>da</strong>de tão pouco<br />

tangível quanto a vi<strong>da</strong>, ou quanto a alma?<br />

A Química recambia à Fisiologia a idéia <strong>da</strong> alma e recusa-se<br />

a tratar do assunto, mas, perguntamos, a idéia em torno <strong>da</strong> qual<br />

se desdobra a Química tem algo de mais real? Essa idéia é,<br />

muitas vezes, i<strong>na</strong>preensível, não só <strong>na</strong> essência como nos efeitos.<br />

Pode-se, por exemplo, meditar um instante <strong>na</strong>s leis conheci<strong>da</strong>s<br />

como leis de Berthelot, sem compreender que se está em face de<br />

um mistério impenetrável? No simples fenômeno de uma combi<strong>na</strong>ção,<br />

no arrastamento que precipita dois átomos que se procuram<br />

e se reúnem, escapando aos compostos que os aprisio<strong>na</strong>vam,<br />

não há o suficiente para nos confundir a inteligência? Quanto<br />

mais estu<strong>da</strong>mos as ciências <strong>na</strong> sua metafísica, mais nos podemos<br />

convencer que esta <strong>na</strong><strong>da</strong> tem de inconciliável com a mais idealista<br />

filosofia: as ciências a<strong>na</strong>lisam as relações, aferem medi<strong>da</strong>s,<br />

descobrem as leis que regulam o mundo fenome<strong>na</strong>l; mas não há<br />

fenômeno algum, por insignificante que seja, que não as coloque<br />

em face de duas idéias, sobre as quais o método experimental<br />

carece de eficiência, a saber:


1º - a essência <strong>da</strong> substância modifica<strong>da</strong> pelos fenômenos, e<br />

2º - a força que provoca essas modificações.<br />

Só conhecemos e vemos, por fora, as aparências; a ver<strong>da</strong>deira<br />

reali<strong>da</strong>de, a reali<strong>da</strong>de substancial, a causa, nos escapa. Digno é<br />

de uma alta filosofia considerar to<strong>da</strong>s as forças particulares,<br />

cujas manifestações são a<strong>na</strong>lisa<strong>da</strong>s pelas diversas ciências, como<br />

oriun<strong>da</strong>s de uma força primária, eter<strong>na</strong>, necessária, fonte de todo<br />

o movimento e centro de to<strong>da</strong> a ação. Em nos colocando neste<br />

ponto de vista, os fenômenos e os próprios seres não são mais<br />

que formas mutáveis de uma idéia divi<strong>na</strong>”.<br />

Pode a uni<strong>da</strong>de a que tende a Química fazer-nos pressupor<br />

que o mundo animado e o i<strong>na</strong>nimado sejam regidos por leis<br />

idênticas? Deveremos lisonjear-nos com idéia de poder um dia,<br />

não ape<strong>na</strong>s refazer artificialmente to<strong>da</strong>s as matérias orgânicas,<br />

mas reproduzir “ad libitum” as condições em que hajam de<br />

aflorar a vi<strong>da</strong> vegetal ou animal? Não, certamente. Tais pretensões<br />

seriam ilusórias. Não dispomos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Fisiologia e Química<br />

são domínios que se extremam e se distinguem, como se não<br />

distinguiam há um século a Química orgânica e a mineral.<br />

Em parte alguma, a planta mais rudimentar, o animal mais<br />

ínfimo <strong>da</strong> escala zoológica, <strong>na</strong>sceram do concurso <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong>des<br />

químicas. Por maiores progressos que faça a Química orgânica,<br />

ela será sempre deti<strong>da</strong> pela impossibili<strong>da</strong>de de origi<strong>na</strong>r a força<br />

vital, de que não dispõe.<br />

Não, senhores, em que pese à vossa atitude afirmativa e au<strong>da</strong>ciosa,<br />

vós não podeis criar a vi<strong>da</strong>, nem sabem, sequer, o que<br />

seja a vi<strong>da</strong>, e sois constrangidos a confessar a vossa ignorância,<br />

ao mesmo tempo em que ofereceis as provas <strong>da</strong> vossa impotência.<br />

É em vão que revi<strong>da</strong>is com fogos fátuos e gratuitas suposições:<br />

“Para sustentar uma força vital origi<strong>na</strong>l – dizeis – invoca-se<br />

amiúde a nossa impossibili<strong>da</strong>de de criar plantas e animais; e<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> obstante, se pudéssemos senhorear a luz, o calor, a pressão<br />

atmosférica, tanto quanto as relações de peso <strong>da</strong> matéria, não<br />

somente ficaríamos aptos a recompor corpos orgânicos, como


capacitados a preencher as condições que engendram o <strong>na</strong>scimento<br />

desses corpos.”<br />

A seguir, acrescentais, sem perceber que as vossas próprias<br />

palavras reforçam a nossa causa:<br />

“Desde que os elementos ditos carbono, hidrogênio, oxigênio,<br />

azoto, se encontram organizados, as formas fixas <strong>da</strong>í resultantes<br />

têm o poder de conservar-se no seu estado e, tal como no-lo<br />

ensi<strong>na</strong> a experiência até hoje adquiri<strong>da</strong>, elas persistem através de<br />

cente<strong>na</strong>s e milhares de anos. Por meio de sementes, de brotos e<br />

de ovos, essas formas reaparecem numa sucessão determi<strong>na</strong><strong>da</strong>.”<br />

Por outros termos, duas proposições se evidenciam: a primeira<br />

é que não poderíamos engendrar a vi<strong>da</strong> senão como legado<br />

potencial <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e a segun<strong>da</strong> é que a vi<strong>da</strong> se mantém,<br />

persistente e transmissível, graças a uma virtude que lhe é própria.<br />

Tal é, ver<strong>da</strong>deiramente, a questão, e de duas uma: ou o homem<br />

é, ou não é (nem será) capaz de origi<strong>na</strong>r a vi<strong>da</strong>.<br />

Neste último caso, as pretensões materialistas estão irremissivelmente<br />

conde<strong>na</strong><strong>da</strong>s e, no primeiro, por si mesmas se conde<strong>na</strong>m,<br />

<strong>da</strong> seguinte forma:<br />

Laborando <strong>na</strong> organização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sois forçados a vos submeter<br />

às leis orde<strong>na</strong><strong>da</strong>s e as aplicar passivamente, sem as contrariar<br />

de qualquer forma. Então, já não seríamos nós a origi<strong>na</strong>r a<br />

vi<strong>da</strong> e sim as leis eter<strong>na</strong>s, <strong>da</strong>s quais nos arvoraríamos, por um<br />

instante, em simples man<strong>da</strong>tários.<br />

Já vos ouço bra<strong>da</strong>r – sofisma! – e declarar que procuramos<br />

escapar pela tangente. Mas... perdão, senhores, notam em primeiro<br />

lugar que se alguém se esquiva num processo, esse alguém só<br />

pode ser o acusado e considerai, depois, que, assim razoando,<br />

não ficamos à superfície e penetramos o âmago <strong>da</strong> questão.<br />

Refleti um momento: bem sabeis que neste mundo <strong>na</strong><strong>da</strong> criamos<br />

e ape<strong>na</strong>s aplicamos leis predomi<strong>na</strong>ntes.<br />

Criais, porventura, o oxigênio quando, pelo calor, decompondes<br />

o bióxido de manganês e as bolhas afloram no tubo de escapamento?<br />

Não; ape<strong>na</strong>s roubais ou – se preferis – pedis ao bióxido<br />

de manganês o terço de oxigênio nele contido. Criareis o


azoto retirando oxigênio do ar atmosférico? O próprio nome do<br />

processo está a indicar que ele consiste numa subtração. Criais a<br />

água quando, reunindo no eudiômetro o hidrogênio ao oxigênio,<br />

lhe fazeis a síntese? Ou isso não passa de mera combi<strong>na</strong>ção?<br />

Com a decomposição do carbo<strong>na</strong>to de cal, pelo ácido clorídrico,<br />

criareis o carbono? E os ácidos oxálico, acético, lático, tartárico,<br />

tânico, quando os extraís dos materiais vegetais ou animais,<br />

mediante agentes oxi<strong>da</strong>ntes, acaso os tendes criado? Não, mil<br />

vezes não. Se nos servimos, por vezes, do vocábulo – criar, é por<br />

abuso de linguagem. Ora, ain<strong>da</strong> mesmo que conseguísseis fazer<br />

um pe<strong>da</strong>ço de carne, nem por isso o teríeis criado e sim, ape<strong>na</strong>s,<br />

reunido os elementos que constituem a carne, segundo as leis<br />

inexoráveis, assi<strong>na</strong><strong>da</strong>s à organização <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. E <strong>da</strong>do que os<br />

pósteros possam ver um dia surgir do fundo de suas retortas um<br />

ser vivo, ain<strong>da</strong> assim, de antemão lhes dizemos que muito se<br />

iludiriam se concluíssem pela inexistência <strong>da</strong>s leis divi<strong>na</strong>s, pois<br />

não haveria de ser à revelia delas que houvessem de consumar<br />

essa obra-prima <strong>da</strong> indústria huma<strong>na</strong>.<br />

Enfim, <strong>da</strong>do que os precedentes raciocínios não sejam suficientes<br />

para caracterizar vossa erronia, consentimos, ao termo<br />

desta exposição sobre a circulação <strong>da</strong> matéria, em admitir que a<br />

<strong>Natureza</strong> emprega, para construir seres vivos, os mesmos processos<br />

do homem, isto é: – trata simplesmente pela química as<br />

matérias inorgânicas. Ora, ain<strong>da</strong> nesta hipótese, não haveria<br />

como negardes a necessi<strong>da</strong>de, para o construtor, de saber o que<br />

pretende fazer, ou de operar com um plano determi<strong>na</strong>do. Pois<br />

uma <strong>na</strong>tureza inteligente, ou o ministro de uma inteligência,<br />

substitui o químico. A obra do gênio consiste, precisamente, em<br />

fazer derivar de um pequeno número de princípios, facilmente<br />

formuláveis, as mais engenhosas aplicações, os inventos mais<br />

extraordinários.<br />

Esse gênio, do qual as mais portentosas inteligências huma<strong>na</strong>s<br />

não representam senão partículas infinitesimais, reduziu à<br />

extrema simplici<strong>da</strong>de, à maior simplici<strong>da</strong>de possível, to<strong>da</strong>s as<br />

operações <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. A divi<strong>na</strong> inteligência apresenta-se-nos<br />

como a consciência de uma lei única, abrangendo o todo universal,<br />

e cujas aplicações indefini<strong>da</strong>s engendram uma multidão de


fenômenos que se agluti<strong>na</strong>m por a<strong>na</strong>logia, regidos pelas mesmas<br />

leis secundárias, decorrentes <strong>da</strong> lei primordial. Certo, o químico<br />

ain<strong>da</strong> não substitui a vi<strong>da</strong>, nem sabe formar o embrião em que o<br />

germe representa um papel tão maravilhoso. Em seus atos,<br />

contudo, ele se esforça por substituir a <strong>Natureza</strong>. E como? – pela<br />

inteligência. Um elemento existe, absolutamente indispensável: a<br />

inteligência.<br />

Sobera<strong>na</strong>, ela se impõe ao raciocínio de quantos estu<strong>da</strong>m a<br />

<strong>Natureza</strong>. E tor<strong>na</strong>-se visível nessas regras que podem ser previamente<br />

determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s, calcula<strong>da</strong>s, combi<strong>na</strong><strong>da</strong>s, de vez que guar<strong>da</strong>m<br />

entre si um encadeamento admirável e são imutáveis em<br />

condições idênticas, porque receberam a inflexibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

infinita sabedoria.<br />

Está, portanto, demonstrado, à sacie<strong>da</strong>de, que a circulação <strong>da</strong><br />

matéria não se efetua senão sob a direção de uma força inteligente.<br />

Mas, seja qual for o rumo que trilhemos, o desvio em que nos<br />

propusermos acompanhar-vos, voltamos sempre, a despeito de<br />

tudo, à formação <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, à causa causal de quanto existe, e<br />

aqui o campo se tor<strong>na</strong> mais vasto ain<strong>da</strong>. Os processos humanos<br />

já não embaraçam a vista. No extremo de to<strong>da</strong>s as aveni<strong>da</strong>s,<br />

chegamos ao ponto capital e trata-se, agora, de exami<strong>na</strong>r a<br />

origem mesma <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> Terra. Estarão os seres vivos encerrados<br />

<strong>na</strong> superfície do globo? Teriam aí surgido em seis dias, ao<br />

toque <strong>da</strong> vara de um mágico? Despertaram a súbitas do seio <strong>da</strong>s<br />

florestas, <strong>da</strong> margem dos rios, nos vales adormecidos?<br />

Que mão teria conduzido o primeiro homem do céu aos bosques<br />

do Éden? Que mão pudera abrir-se no ar e soltar a chusma<br />

canora de lin<strong>da</strong>s plumagens? Seriam as forças físico-químicas,<br />

que, num espasmo fecundo, teriam <strong>da</strong>do <strong>na</strong>scimento aos habitantes<br />

de mares e continentes? Nós não encontramos seres que não<br />

tenham <strong>na</strong>scido de um casal, ou cujo <strong>na</strong>scimento não se ligue às<br />

leis estabeleci<strong>da</strong>s para a reprodução. Como teriam surgido <strong>na</strong><br />

Terra as espécies vegetais e animais? Eis a questão que atualmente<br />

nos interessa. Depois de observar a platéia e o comentário<br />

dos espectadores, levantemos o pano que oculta o ver<strong>da</strong>deiro<br />

cenário e apreciemos a peça. A <strong>Natureza</strong> é sempre o maquinista


invisível. Tentemos surpreendê-la, <strong>na</strong> esperança de que ela não<br />

seja bastante atila<strong>da</strong> para subtrair-se à nossa perquirição.


2 - A Origem dos Seres<br />

SUMÁRIO – A criação segundo o Materialismo antigo e o contemporâneo.<br />

– História científica <strong>da</strong>s gerações espontâneas. – De<br />

como a hipótese <strong>da</strong> geração espontânea não afeta a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de <strong>Deus</strong>. – Erro e perigo dos que se permitem intermitir <strong>Deus</strong> em<br />

suas controvérsias. – De como a aparição sucessiva <strong>da</strong>s espécies<br />

pode resultar de forças <strong>na</strong>turais, sem que o ateísmo algo possa<br />

ganhar com esta hipótese. – A Bíblia é atéia? – Origem e transformação<br />

dos seres. – Reinos vegetal, animal, humano. – Anciani<strong>da</strong>de<br />

do homem. – Que todos os fatos <strong>da</strong> Geologia, <strong>da</strong> Zoologia<br />

ou <strong>da</strong> Arqueologia não inquietam a Teologia <strong>na</strong>tural.<br />

“Aos primeiros calores <strong>da</strong> Primavera os voláteis de qualquer<br />

espécie alaram-se no espaço, libertos do ovo <strong>na</strong>tal. Nos dias<br />

estivais, podemos surpreender a cigarra, rompendo o frágil<br />

casulo, partir, cindir os ares ávi<strong>da</strong> de luz e de alimento. Não de<br />

outro modo a Terra produziu a raça huma<strong>na</strong>; a on<strong>da</strong> e o fogo,<br />

encerrados no solo, fermentaram e fizeram crescer, nos lugares<br />

propícios, germens fecun<strong>da</strong>dos, cujas raízes vivas mergulhavam<br />

<strong>na</strong> terra.<br />

Chegado o tempo <strong>da</strong> maturi<strong>da</strong>de e rompido o invólucro que<br />

os enclausurava, ca<strong>da</strong> embrião deixou o âmago úmido <strong>da</strong> terra e<br />

apoderou-se do ar e <strong>da</strong> luz. Para eles se dirigem os poros sinuosos<br />

<strong>da</strong> terra e, reunidos em suas veias entreabertas, escorrem<br />

on<strong>da</strong>s de leite. Assim, vemos ain<strong>da</strong>, depois <strong>da</strong> gestação, as mães<br />

se repletarem de um leite saboroso, porque os alimentos, convertidos<br />

em suco nutritivo, lhes intumesce o seio. A terra, portanto,<br />

alimentou os seus primeiros filhos, que tiveram no calor as<br />

primeiras vestes, e, por berço, a relva abun<strong>da</strong>nte e macia.<br />

“Assim como a tenra avezinha, ao <strong>na</strong>scer, se reveste de plumas<br />

ou de sedosa lanugem, assim a terra jovem se recobre de<br />

macia ervagem e flébeis arbustos. E não tar<strong>da</strong>, também, a conceber<br />

as espécies anima<strong>da</strong>s, mediante combi<strong>na</strong>ções inúmeras e<br />

varia<strong>da</strong>s: a terra incuba os seus habitantes, que não desceram dos<br />

céus nem emergiram dos abismos tenebrosos. É pois, a justo<br />

título de reconhecimento, que se lhe dá o nome de mãe. Tudo o<br />

que respira foi concebido em seu ventre; e se ain<strong>da</strong> hoje vemos


seres vivos lhe brotarem do limo, quando, molhado <strong>da</strong> chuva, ele<br />

fermenta à luz solar, porque nos admirarmos maiormente que<br />

seres mais numerosos e mais robustos lhe saíssem dos flancos,<br />

quando ela, a terra e a essência etérica, ain<strong>da</strong> se incendeiam dos<br />

ardores <strong>da</strong> juventude?” 29<br />

Assim se exprime o corifeu do velho materialismo. Nisso, ele<br />

é bem o intérprete fiel do seu mestre, Epícuro, cujo sistema<br />

físico aqui resumimos em poucas palavras 30 :<br />

À força de percorrerem céleres e ao acaso a imensi<strong>da</strong>de, os<br />

átomos se reuniram e se combi<strong>na</strong>ram; <strong>da</strong>í, massas ain<strong>da</strong> informes<br />

e inorgânicas, mas já apreciáveis por sua composição. Com o<br />

correr dos tempos, essas massas, diferentes em peso, foram<br />

arrasta<strong>da</strong>s a direções diferentes, ou com veloci<strong>da</strong>des diferentes,<br />

umas caindo e subindo outras.<br />

Uma vez existente a água, em virtude <strong>da</strong> sua fluidez, encaminhou-se<br />

para os lugares mais baixos, para as cavi<strong>da</strong>des mais<br />

próprias a contê-la. Outras vezes, houve ela mesma de preparar o<br />

seu leito. As pedras, os metais, os minerais em geral, <strong>na</strong>sceram<br />

no âmago do globo, segundo a espécie de átomos ou de germes<br />

nele encerrados, quando a atmosfera se destacou do céu. Daí,<br />

essas coli<strong>na</strong>s, montanhas, acidentes numerosos, que diversificam<br />

a superfície do solo: montes a prumo, ao lado de vales profundos,<br />

de extensos altiplanos cobertos de vegetação multifária, que<br />

lhe são indumenta garri<strong>da</strong>, quanto para nós a se<strong>da</strong>, as pe<strong>na</strong>s, a lã,<br />

etc. Resta explicar o <strong>na</strong>scimento dos animais. É verossímil que,<br />

contendo a Terra germes fresquíssimos e adequados à geração,<br />

produzisse em sua crosta uma espécie de bolhas cavas, à maneira<br />

de úteros, e que essas bolhas, em atingindo a maturi<strong>da</strong>de, rebentassem<br />

e dessem à luz os incipientes animaizinhos.<br />

Intumesceu-se, então, a Terra de humores semelhantes e os<br />

recém-<strong>na</strong>scidos viveram a expensas deste alimento.<br />

Os homens, diz Epícuro, não <strong>na</strong>sceram de outro modo. Peque<strong>na</strong>s<br />

vesículas à maneira de úteros, ligados à terra pelas raízes,<br />

avolumaram-se batidos pelos raios ardentes do Sol, produziram<br />

tenros rebentos e mantiveram sua vi<strong>da</strong> a expensas do líquido<br />

lácteo que a <strong>Natureza</strong> lhes preparara. Os homens primários são o


talo <strong>da</strong> espécie huma<strong>na</strong>, que, depois, se propagou por vias usuais,<br />

até hoje.<br />

Eis, creio, uma hipótese bem simplista. Ela explica, simultaneamente,<br />

como o homem contemporâneo é menor e menos<br />

robusto que o primitivo. A espécie huma<strong>na</strong> <strong>na</strong>scia, então, espontaneamente,<br />

do solo mesmo <strong>da</strong> terra e hoje os homens procedem<br />

uns dos outros 31 .<br />

O pensamento manifesta-se por entrosagem dos movimentos,<br />

que, desenvolvidos primariamente numa substância desprovi<strong>da</strong><br />

de racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, acabam reproduzindo-se artificial e não espontânea<br />

e cegamente.<br />

Os movimentos atômicos foram, indubitavelmente, obra do<br />

acaso, sem contingência de racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e, <strong>na</strong><strong>da</strong> obstante, desde<br />

os primórdios do mundo, existiam animais que se diriam protótipos<br />

raciais.<br />

Uma vez formados esses animais pelos átomos errantes em<br />

to<strong>da</strong>s as direções, a engendrarem movimentos de aproximação,<br />

de repulsão, de exclusão ou de junção, alguns, ape<strong>na</strong>s, vinham<br />

a<strong>da</strong>ptar-se e conjugar-se aos átomos do animal protótipo, isto é,<br />

os que com estes se identificavam em <strong>na</strong>tureza. Os outros, ao<br />

contrário, eram repelidos, por dissímeis dos constitutivos do<br />

animal.<br />

Tudo se explica, portanto, exceto a maneira como, nos primórdios<br />

do mundo, se formaram os protótipos. Isto é o que<br />

Epícuro não explica, ao menos com raciocínios claros.<br />

Pois é sob os auspícios desta filosofia, que ousam colocar-se<br />

os senhores materialistas do século XIX 32 .<br />

Graças à capciosa linguagem de Lucrécio e à doutri<strong>na</strong> simultaneamente<br />

estóica e displicente de Epícuro, essa gênese simplista<br />

conta sempre muitos partidários. E no entanto, apesar de tudo,<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> existe de menos científico. Reparai, pela manhã, num<br />

bando de insetos que voam de um torrão de argila esfarelado! o<br />

barão de Munchausen põe a mão num montículo de terra, bem<br />

no centro do campo arroteado, e logo uma ninha<strong>da</strong> de melros<br />

brancos, segui<strong>da</strong> de aves outras, põe-se a correr pela jeira em<br />

fora. Até hoje só sabemos de alguém que haja testemunhado um


tal <strong>na</strong>scimento, de um ser nosso irmão: é Cyrano de Bergerac,<br />

quando, de sua viagem ao Sol, realiza<strong>da</strong> aos 30 de Fevereiro de<br />

1649, no momento de lá aportar, houve de parar para tomar<br />

fôlego em um dos planetóides que gravitam em torno do astrorei<br />

33 .<br />

Notemos, to<strong>da</strong>via, que o materialismo de Lucrécio não é tão<br />

grosseiro qual o interpretam.<br />

A alma do poeta diviniza as forças <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. D’Holbach,<br />

ao contrário, não tem alma; desdenha a força, não vê senão a<br />

matéria.<br />

Podem seres vivos <strong>na</strong>scer espontaneamente de elementos<br />

químicos como o hidrogênio, o carbono, o amoníaco, a lama, a<br />

podridão? Houve quem o acreditasse por muito tempo, e ain<strong>da</strong><br />

hoje existe uma escola positiva, empenha<strong>da</strong> em demonstrar<br />

experimentalmente a veraci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> hipótese. Ouçamos alguns<br />

corifeus, antigos e modernos.<br />

Colhamo-los ao acaso. Van Helmont diz: se espremermos<br />

uma camisa suja (sic) no orifício de um vaso que contenha grãos<br />

de trigo, este se transformará em ratos adultos ao fim de 21 dias,<br />

mais ou menos. Perfurai um buraco num tijolo, metei nele manjericão<br />

pilado e justaponde ao tijolo outro tijolo, de maneira a<br />

ve<strong>da</strong>r completamente o buraco, exponde ao Sol os dois tijolos e,<br />

no fim de alguns dias, o cheiro do manjericão, operando como<br />

fermento, transformará a erva em legítimos escorpiões. O mesmo<br />

alquimista pretendia que a água <strong>da</strong> fonte mais pura, lança<strong>da</strong> em<br />

vaso impreg<strong>na</strong>do do odor de um fermento, corrompe-se e engendra<br />

vermes.<br />

Dêem-me farinha e tutano de carneiro – dizia Needham em o<br />

seu Novas Descobertas Microscópicas – e eu vos pagarei com<br />

enguias.<br />

Voltaire, a sorrir, respondia-lhe que também esperava ver um<br />

dia a fabricação de homens por esse mesmo processo. Sachs<br />

ensi<strong>na</strong> que os escorpiões são produto <strong>da</strong> decomposição <strong>da</strong> lagosta.<br />

Na matéria dos corpos mortos e decompostos, dizia o próprio<br />

Buffon, as moléculas orgânicas, sempre ativas, trabalham para


evolver a matéria putreci<strong>da</strong> e formam uma chusma de corpúsculos<br />

organizados, dos quais alguns, como as minhocas, os cogumelos,<br />

etc., são assaz volumosos. Todos estes corpos só vivem<br />

por geração espontânea. Presentemente, o Dr. Cohn, de Breslau,<br />

pretende que a morte <strong>da</strong> mosca comum, no Outono, é ocasio<strong>na</strong><strong>da</strong><br />

pela formação de cogumelos no corpo do inseto. Há em tudo<br />

isso, sem dúvi<strong>da</strong>, como em tantas outras coisas, que traçar um<br />

limite a essas facul<strong>da</strong>des dos elementos organizados; e nós nos<br />

disporíamos melhor a crer <strong>na</strong> formação dos cogumelos microscópicos<br />

sobre o órgão atrofiado <strong>da</strong> mosca, tanto quanto do fúcus<br />

num pulmão enfermo, ou de mofo num tronco de madeira, do<br />

que acreditar com as boas velhas fiandeiras do cânhamo em<br />

nossa infância, quando nos diziam que a cri<strong>na</strong> arranca<strong>da</strong> à cau<strong>da</strong><br />

de cavalo branco e atira<strong>da</strong> a um regato se transformava, dentro<br />

de três dias, numa enguia branca. Este é também um absurdo<br />

bem cotado em algumas regiões do Este <strong>da</strong> França. Lembra-nos<br />

de o haver tentado, ao tempo de Luís Filipe, mas, como só<br />

contávamos seis anos de i<strong>da</strong>de, também é admissível que a nossa<br />

cândi<strong>da</strong> ignorância não nos permitisse um legítimo triunfo.<br />

Por não ter levado a termo fi<strong>na</strong>l as suas observações, Arístoto<br />

manteve-se <strong>na</strong> erronia de que os insetos <strong>na</strong>scem <strong>da</strong>s folhas<br />

verdes, assim como os piolhos <strong>da</strong> carne e os peixes do lodo.<br />

Muito curioso ver até que ponto Plínio, traduzindo Arístoto,<br />

chega à descrição desse <strong>na</strong>scimento imaginário. “A lagarta – diz<br />

– sai de uma gota de orvalho, caí<strong>da</strong> nos primeiros dias <strong>da</strong> Primavera<br />

e que, condensa<strong>da</strong> pelo Sol, se reduz ao tamanho de um<br />

grão de milho. Assim elabora<strong>da</strong>, essa gota, estendendo-se, faz-se<br />

pequeno verme (ros porrigitur vermiculus parvua) que, dentro<br />

de três dias, transforma-se em lagarta”. Na<strong>da</strong>, porém, ultrapassa<br />

a argumentação de Plutarco <strong>na</strong>s Symposiacas, ou Colóquios à<br />

Mesa, no intuito de resolver a velha questão aventa<strong>da</strong> por Pitágoras,<br />

ou seja: a priori<strong>da</strong>de do ovo ou <strong>da</strong> galinha. Esse discrime dá<br />

uma idéia <strong>da</strong>s opiniões suscita<strong>da</strong>s <strong>na</strong> antigüi<strong>da</strong>de e agora revivi<strong>da</strong>s,<br />

sem contudo levar em conta o ultraje irreparável dos anos.<br />

Plutarco conta-nos, pois, que tão logo propôs a questão, seu<br />

amigo Sila o advertiu de que, por uma causa tão simples, qual


uma alavanca, haveriam de acio<strong>na</strong>r a pesa<strong>da</strong> máqui<strong>na</strong> <strong>da</strong> conformação<br />

do mundo e, por isso, desistia de o acompanhar.<br />

Aelevandre, irônico, declara que a questão é meramente ociosa<br />

e Fírmus, seu parente, tomando a palavra, exclama: <strong>da</strong>i-me,<br />

pois, os átomos de Epícuro, visto que, se importa presumir que<br />

minúsculos elementos são os geradores de grandes corpos, é bem<br />

provável que o ovo tenha precedido a galinha, e ain<strong>da</strong> porque,<br />

tanto quando podemos julgar pelos sentidos, ele é o mais simples<br />

e ela o mais complexo.<br />

Em regra, o princípio é anterior ao que dele procede. Dizem<br />

que as veias e as artérias são as primeiras partes que se formam<br />

no animal. É possível, também, que o ovo tenha existido antes do<br />

animal, pela razão de que o continente precede o conteúdo. As<br />

artes começam por esboços grosseiros e informes, que se aperfeiçoam<br />

parcialmente, <strong>na</strong> forma que mais lhes convêm. Dizia o<br />

escultor Policleto <strong>na</strong><strong>da</strong> haver mais difícil <strong>na</strong> sua arte do que <strong>da</strong>r à<br />

sua obra o último toque de perfeição. É de crer, assim, que a<br />

<strong>Natureza</strong>, ao imprimir à matéria o movimento inicial, tendo-a<br />

encontrado menos dócil, só haja produzido massas informes, sem<br />

linhas defini<strong>da</strong>s, quais são os ovos, e que o animal não viesse a<br />

existir senão depois do aperfeiçoamento dos primeiros esboços.<br />

A lagarta foi a primeira formação: quando, mais tarde, endureci<strong>da</strong><br />

e ressequi<strong>da</strong>, parte-se-lhe o casulo, dele se libra o volátil a<br />

que chamamos ninfa. No caso vertente, do mesmo modo, o ovo<br />

preexistiu como matéria prima de to<strong>da</strong> a produção, pois em to<strong>da</strong><br />

a metamorfose o ser que mu<strong>da</strong> de estado é, necessariamente,<br />

anterior ao de que toma a forma. Vede como o líquen e o caruncho<br />

se engendram <strong>na</strong>s folhas e <strong>na</strong>s madeiras, como produtos <strong>da</strong><br />

putrefação, ou <strong>da</strong> cocção <strong>da</strong>s partes úmi<strong>da</strong>s, e ninguém negará<br />

que esta umi<strong>da</strong>de não seja anterior aos animais que ela origi<strong>na</strong> e<br />

que, <strong>na</strong>turalmente, o que origi<strong>na</strong> não seja anterior ao origi<strong>na</strong>do”.<br />

A priori<strong>da</strong>de do ovo parecia bem estabeleci<strong>da</strong> com este excelente<br />

palanfrório, quando um tal Senésio se intrometeu a contraditar.<br />

“É <strong>na</strong>tural – diz ele – que o perfeito antece<strong>da</strong> ao imperfeito,<br />

o completo ao incompleto e o todo à parte. Insensato é supor<br />

que a existência de uma parte prece<strong>da</strong> à do seu todo. Assim é<br />

que, ninguém diz: – o homem do germe, a galinha do ovo, mas, o


ovo <strong>da</strong> galinha, o germe do homem, por isso que aqueles são<br />

posteriores a estes; devem-lhes o <strong>na</strong>scimento e pagam, posteriormente,<br />

sua dívi<strong>da</strong> à <strong>Natureza</strong>, pela geração. Até então, não têm<br />

o que convém à sua <strong>na</strong>tureza e que lhes dá um desejo e um<br />

pendor de produzir um ser semelhante ao que os originou. Eis,<br />

porque, também se define o germe uma produção tendente a<br />

reproduzir-se. Ora, ninguém deseja o que não existe, ou jamais<br />

tenha existido. Ao demais, vemos que os ovos têm uma substância<br />

cuja <strong>na</strong>tureza e composição são quase as mesmas do animal e<br />

que só lhes falta os mesmos vasos e órgãos. Daí, jamais se haver<br />

dito, a qualquer tempo e em parte alguma, que um ovo, seja qual<br />

for, tenha saído <strong>da</strong> terra. Os próprios poetas inculcam o que<br />

originou os Tin<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>s como havendo caídos do céu. Hoje, a<br />

terra melhor produz animais perfeitos, com sejam os ratos, no<br />

Egito, e as serpentes, rãs, cigarras, noutras regiões. Um princípio<br />

exterior fá-la mais apta para essa produção. Na Sicília, durante a<br />

guerra dos escravos, que derramou tanto sangue, a grande quanti<strong>da</strong>de<br />

de corpos insepultos, putrefazendo-se à flor do solo,<br />

produziu um número prodigioso de gafanhotos, que, espalhandose<br />

por to<strong>da</strong> a ilha, devoraram os trigais. Esses insetos <strong>na</strong>scem <strong>da</strong><br />

terra e de terra se nutrem. A fartura do alimento lhes dá a facul<strong>da</strong>de<br />

de produzir e, uma vez atraídos pelo gozo de se acasalarem,<br />

eles produzem, conforme a sua <strong>na</strong>tureza, ovos ou animais vivos.<br />

Isso prova, claramente, que os animais, a princípio <strong>na</strong>scidos <strong>da</strong><br />

terra, tiveram depois, no seu coito, uma outra via de geração.<br />

“Eis por que perguntar como poderia haver galinhas antes que<br />

houvesse ovos formados equivale a perguntar como existiram<br />

homens e mulheres, antes dos órgãos desti<strong>na</strong>dos à sua reprodução.<br />

Eles são o resultado de certas cocções que alteram a <strong>na</strong>tureza<br />

dos alimentos, não sendo possível que, antes de <strong>na</strong>scido o<br />

animal, algo nele exista, capaz de justificar uma superabundância<br />

de nutrição. Acrescento eu que o germe, a certos respeitos, é um<br />

princípio; ao passo que o ovo não tem essa proprie<strong>da</strong>de, visto<br />

não ser o primeiro a existir. E, tão pouco é um todo, pois não<br />

possui to<strong>da</strong> a perfeição. Eis por que não dizemos que o animal<br />

não tivesse princípio, mas que tem um princípio de sua produ-


ção, que imprime à matéria a sua primeira transformação e lhe<br />

comunica uma facul<strong>da</strong>de generativa.<br />

“O ovo, ao invés, é uma superfectação, que, qual o leite e o<br />

sangue, sobrevém ao animal depois que ele faz a cocção dos<br />

alimentos. Nunca se viu ovo saído do lodo, pois só se forma no<br />

animal. Entretanto, no lodo <strong>na</strong>sce uma infini<strong>da</strong>de de animais. De<br />

parte outros exemplos, considere-se essa quanti<strong>da</strong>de de enguias<br />

apanha<strong>da</strong>s todos os dias e entre as quais nenhuma apresentará<br />

um germe ou um ovo. Esgote-se um poço, retire-se-lhe o lodo, e<br />

tanto que o encham novamente d'água, lá se engendrarão de<br />

novo enguias. Portanto, tudo o que depende de outro elemento<br />

para que possa existir, deve ser posterior a esse elemento e, ao<br />

contrário, tudo o que existe sem dependência de outrem, tem<br />

priori<strong>da</strong>de de geração, pois é disto que se trata. Dessarte, podemos<br />

crer que a primeira produção vem <strong>da</strong> terra, conseqüente à<br />

proprie<strong>da</strong>de que tem ela, a terra, de gerar por si mesma, sem<br />

necessi<strong>da</strong>de de órgãos e vasos que a <strong>Natureza</strong> imaginou mais<br />

tarde, a fim de prover a fraqueza dos seres geradores.”<br />

Estes raciocínios, que hoje nos causam pasmo, não são exclusivos<br />

de Plutarco. Todos os autores antigos são concordes neste<br />

ponto, e não raro encontramos os que levam a sua ousadia a<br />

representar Minerva batendo o pé para extrair do solo parelhas<br />

de cavalos e rebanhos. O relato de Verguio <strong>na</strong>s Geórgicas, a<br />

respeito de Aristeu, não é fantasia poética, é expressão geral <strong>da</strong><br />

crença de que as abelhas <strong>na</strong>sciam <strong>da</strong> carne putrefata. O pastor<br />

Aristeu perdera as suas queri<strong>da</strong>s abelhas, invoca sua divi<strong>na</strong> mãe<br />

e consegue criar novas colméias, imolando novilhos:<br />

Hic verum (subitum ac dictum mirabile monstrum)<br />

Auspícunt liquefacta boum per viscera toto<br />

Stridere apes utero, etc. 34<br />

Esta velha pendência <strong>da</strong>s gerações equívocas foi há pouco resumi<strong>da</strong><br />

por Milne-Edwards sob aspecto assaz interessante.<br />

Depois de mostrar que no reino mineral os corpos se formam por<br />

simples aderência molecular:<br />

“Todos sabem – diz ele 35 – que, quando se trata <strong>da</strong> formação<br />

de uma árvore, de um cavalo, a matéria que constitui essa árvore,


esse cavalo, seria impotente para integrar esse vegetal, esse<br />

animal, desde que não fosse atua<strong>da</strong> por um corpo já vivente – um<br />

animal <strong>da</strong> espécie do que vai <strong>na</strong>scer, ou um vegetal <strong>da</strong> mesma<br />

<strong>na</strong>tureza. Assim, <strong>na</strong> árvore como no cavalo, esta proprie<strong>da</strong>de<br />

particular, a que chamamos vi<strong>da</strong>, transmite-se, evidentemente. O<br />

novo ser é engendrado por um parente, que produz um ser semelhante.<br />

“Há, portanto, uma espécie de sucessão, de transmissão de<br />

força vital, ininterrupta, entre os indivíduos, que formam, no<br />

espaço e no tempo, uma cadeia de que se compõe ca<strong>da</strong> espécie.<br />

“Eis, por conseguinte, uma diferença fun<strong>da</strong>mental, essencial,<br />

entre os corpos brutos e os corpos vivos. O que dizemos <strong>da</strong><br />

árvore e do cavalo é aplicável a todos os vegetais e animais<br />

conhecidos. To<strong>da</strong>via, em <strong>da</strong><strong>da</strong>s circunstâncias, essa espécie de<br />

filiação não é fácil de verificar e tem escapado a observadores<br />

menos atentos e até, por vezes, aos mais hábeis. Assim, quando o<br />

cadáver de qualquer animal é entregue à influência atmosférica<br />

do ar, <strong>da</strong> umi<strong>da</strong>de, numa temperatura conveniente, – no Estio por<br />

exemplo – esse cadáver sofre uma alteração particular, a que<br />

chamamos putrefação. Em tal caso, vemos manifestarem-se no<br />

âmago dessa substância corpos vermiformes, gozando de to<strong>da</strong>s<br />

as proprie<strong>da</strong>des peculiares aos seres animados e, portanto, animais.<br />

Milhões de seres vivos <strong>na</strong>scem desse cadáver, ao passo<br />

que, enquanto vivo o animal, seu corpo nunca apresentou algo de<br />

análogo.<br />

“À primeira vista pelo menos, o que parece interromper-se é a<br />

filiação geradora. É comum ver-se nos campos poças d’água,<br />

forma<strong>da</strong>s pela chuva, logo se coalharem de insetos, de alguns<br />

crustáceos.<br />

“Outras vezes vemos, também, <strong>na</strong> vizinhança de sítios pantanosos,<br />

povoar-se o solo de pequenos répteis. Na maioria destes<br />

casos é difícil, à primeira vista, explicar por via de geração<br />

normal o surgimento desses novos seres. Tão grandes se afiguraram<br />

essas dificul<strong>da</strong>des aos <strong>na</strong>turalistas de antanho, que houveram<br />

de recorrer a uma hipótese particular para explicar a origem<br />

desses animais. Assim, julgaram indispensável admitir que a<br />

<strong>Natureza</strong> não segue o mesmo processo, quando se trata de ani-


mais superiores, quais os que emprega <strong>na</strong> constituição de espécies<br />

inferiores, como os insetos, morcegos, ratos e mesmo alguns<br />

peixes. Entre os filósofos antigos o papel <strong>da</strong> geração espontânea<br />

era considerado importantíssimo. Os <strong>na</strong>turalistas e filósofos <strong>da</strong><br />

I<strong>da</strong>de Média seguiram de olhos fechados os seus predecessores,<br />

e <strong>da</strong>í resultou que, durante catorze séculos, uma tal opinião<br />

imperou inconteste <strong>na</strong>s escolas. Admitia-se, como coisa bem<br />

comprova<strong>da</strong>, que os animais <strong>na</strong>sciam de duas formas: ora, à<br />

maneira dos corpos brutos, ora por transmissão <strong>da</strong> força vital,<br />

que sabemos existente nos animais que se engendram sucessivamente,<br />

devendo aos progenitores a existência, a forma, o tipo.<br />

Mas, <strong>na</strong> época <strong>da</strong> Re<strong>na</strong>scença, houve uma grande reviravolta nos<br />

espíritos. No século 17 constituiu-se em Florença uma socie<strong>da</strong>de<br />

de físicos, de <strong>na</strong>turalistas e médicos, com o fim de solucio<strong>na</strong>r<br />

algumas questões por meios experimentais. Essa agremiação<br />

denominou-se del cimente, isto é – <strong>da</strong> experiência. Um de seus<br />

membros, Redi, quis submeter a investigações positivas a teoria<br />

assaz generaliza<strong>da</strong> <strong>da</strong> geração espontânea. Quis saber se os seres<br />

novos eram engendrados sem progenitura de corpos vivos, ou se<br />

eram produto de organização espontânea <strong>da</strong> matéria morta;<br />

verificar, em suma, se a hipótese dos antigos tinha visos de<br />

ver<strong>da</strong>de. Tentou, então, a produção desses corpos vermiformes<br />

vulgarmente chamados minhoca, que, de modo algum, pertencem<br />

à classe dos vermes e são larvas de insetos. Sabe-se que, <strong>na</strong>s<br />

matérias animais em putrefação, essas larvas logo se revelam à<br />

temperatura mais eleva<strong>da</strong>, e isso foi o que observou o <strong>na</strong>turalista<br />

florentino. Notou que algumas moscas eram atraí<strong>da</strong>s de longe<br />

pelo cheiro <strong>da</strong> carne corrompi<strong>da</strong>, adejavam-lhe em torno, nela<br />

pousavam amiúde e, contudo, não pareciam alimentar-se com<br />

essa matéria. Conjeturou, então, que os vermes havidos como<br />

espontânea e exclusivamente formados pela matéria poderiam<br />

ser a prole <strong>da</strong>s ditas moscas. E notou, ain<strong>da</strong> mais, que esses<br />

presumidos vermes, desenvolvendo, transformavam-se em<br />

moscas. São pois, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, filhotes de mosca. Essa ver<strong>da</strong>de<br />

não podia satisfazer ao espírito do <strong>na</strong>turalista. Colocou, então, a<br />

carniça em vasos diferentes, uns abertos e outros cobertos de<br />

papel crivado de orifícios impenetráveis às moscas, mas arejáveis.<br />

Assim viu que as moscas acorriam procurando insinuar o


ventre nos orifícios do papel e que, neste caso, não se produziu<br />

um só corpo vermiforme. Noutra experiência, utilizou um pano<br />

com alguns buraquinhos acessíveis à operação <strong>da</strong>s moscas e viu<br />

desenvolver-se uma certa quanti<strong>da</strong>de de óvulos <strong>na</strong> carne apodreci<strong>da</strong>.”<br />

A presença de seres vivos no interior de um corpo ou de uma<br />

fruta, tanto quanto <strong>na</strong>s regiões profun<strong>da</strong>s do cadáver animal, era<br />

igualmente atribuí<strong>da</strong> à geração espontânea. Supunha-se que<br />

matérias orgânicas em putrefação nos intestinos eram a origem<br />

dos vermes.<br />

As observações de Vallisniéri e outros fisiologistas <strong>da</strong> época,<br />

com frutos e galhos, desmascararam essa crença. Reconheceu-se<br />

que todos esses parasitas não passavam de óvulos depositados<br />

por insetos.<br />

O mesmo se verificou com os infusórios, animálculos que parece<br />

formarem-se de elementos em dissolução n'água. Certa<br />

feita, Leuwenhoeck examinou ao microscópio a água <strong>da</strong> chuva<br />

caí<strong>da</strong> <strong>na</strong> sua janela e exposta ao ar por algum tempo: a princípio,<br />

a água lhe pareceu pura, mas exami<strong>na</strong>ndo-a ao fim de alguns<br />

dias, notou incalculável quanti<strong>da</strong>de de pequeninos seres, de uma<br />

tenui<strong>da</strong>de extrema, a moverem-se vivaces e com as características<br />

de ver<strong>da</strong>deiros animais. Tal descoberta teve grande repercussão<br />

e foi confirma<strong>da</strong> por outros observadores. Leuwenhoeck<br />

constatou que, to<strong>da</strong>s as vezes que expunha ao ar um pouco<br />

d'água contendo feno, papel e matérias orgânicas quaisquer,<br />

surgia um turbilhão de pequeníssimos seres de animali<strong>da</strong>de bem<br />

caracteriza<strong>da</strong>. Para explicar essa nova população, importava<br />

coligir que esses animálculos, provindos de seres preexistentes,<br />

eram carreados pelo ar atmosférico e depositados em germe, a<br />

menos que admitissem a hipótese dos antigos, <strong>da</strong> geração espontânea.<br />

A primeira teoria ressaltou, em geral, <strong>da</strong>s observações<br />

mais completas e rigorosas.<br />

Daí para cá, durante o último século e no transcurso do atual,<br />

a tese <strong>da</strong> geração espontânea foi intercorrentemente retoma<strong>da</strong> e<br />

interrompi<strong>da</strong>: retoma<strong>da</strong> a propósito de novas descobertas microscópicas,<br />

e interrompi<strong>da</strong> quando as experiências atestavam a<br />

origem animal ou vegetal dos germes desabrochados. Na hora


atual a controvérsia ressurge apaixo<strong>na</strong><strong>da</strong>mente, trata<strong>da</strong> por<br />

diversos experimentalistas, à frente dos quais citaremos Pouchet<br />

e Pasteur, o primeiro pró, e o segundo contra. Mas, ei-la já de<br />

novo suspensa e por um motivo que, diga-se, não deixará de<br />

parecer pueril para os nossos descendentes. É o caso que os<br />

contendores de ambos os campos não conseguem fazer-se entendidos,<br />

com o se reprocharem reciprocamente, e ao mesmo título<br />

de legitimi<strong>da</strong>de, de estar combatendo no vácuo.<br />

As experiências realiza<strong>da</strong>s nestes últimos anos e que recuaram<br />

a questão, sem resolvê-la, podem comparar-se às precedentes,<br />

já pela forma, já pelos resultados colhidos. Sucintamente, eis<br />

aqui uma dessas experiências:<br />

“Introduzamos num tubo de vidro de paredes muito delga<strong>da</strong>s<br />

e achata<strong>da</strong>s – diz o heterogenista Joly – um pouco d’água, um<br />

pouco de ar e alguns fragmentos de tecido vegeto-celular.<br />

“Fechemos a fogo a extremi<strong>da</strong>de do tubo e observemos o que<br />

se vai passar. Em primeiro lugar, veremos formar-se um amálgama<br />

de fi<strong>na</strong>s granulações, proveniente, sem dúvi<strong>da</strong>, do tecido<br />

vegetal já em desorganização. Pouco a pouco, <strong>na</strong>s bor<strong>da</strong>s do<br />

amálgama granuloso, destacar-se-ão peque<strong>na</strong>s excrescências de<br />

transparência perfeita, mas, ain<strong>da</strong> inertes. É o bacteríum terma<br />

em vias de formação. Esperemos ain<strong>da</strong> três ou quatro horas e já<br />

os animálculos livres se agitarão visíveis, como se ensaiassem<br />

uma existência; outros virão juntar-se-lhes e bem depressa o<br />

número será tal que não podereis contá-los. Após 6 horas de<br />

observação contínua, vossos olhos recusarão obedecer-vos,<br />

estareis fatigado como aconteceu a Mantegazza, mas, tanto<br />

quanto ele, maravilhado de haver surpreendido a vi<strong>da</strong> no seu<br />

berço.”<br />

Qual a origem desses seres vivos, articulados peça a peça sobre<br />

essa matéria orgânica, sem filiação de progenitura? Os<br />

adversários respondem que o ar está povoado por miríades de<br />

germes em suspensão e que destes germes provêm aqueles seres.<br />

Antes que o demonstrem, vão eles ao cume do “Montanvert”,<br />

fervem as substâncias orgânicas e parece que a dita geração<br />

espontânea não mais se produz.


Eis o em que se resume o debate. Para nós, sem prevenções<br />

contra ou a favor, pensamos haver um fato no qual não se há<br />

pensado bastante, nem talvez de modo algum, e que nos parece<br />

digno de representar um papel nesse drama de microscopia.<br />

A vi<strong>da</strong> está universalmente difundi<strong>da</strong> por to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>, a<br />

Terra é ânfora assaz exígua para conter a vi<strong>da</strong>, que desbor<strong>da</strong> em<br />

qualquer parte e, não contente de repletar águas e terras, inorgânica,<br />

ela se acumula em si mesma, vive à sua própria custa,<br />

cobre de parasitas animais e plantas, desdobra florestas no dorso<br />

de um elefante e faz, de uma simples folha verde, o pascigo de<br />

rebanhos inumeráveis. Ora, essa vi<strong>da</strong> múltipla, insaciável, inumerável,<br />

povoa de animálculos ca<strong>da</strong> espécie de seres e de substâncias.<br />

Quando, pois, vemos os saltões crescerem no interior do<br />

queijo; vermes aflorarem do cadáver; infusórios flutuarem num<br />

líquido, não se trataria de animálculos já existentes em germe<br />

num estado inferior, no leite, no animal vivo, no líquido, e que se<br />

metamorfoseiam por influência <strong>da</strong>s condições novas em que se<br />

encontram colocados? Sabemos, porventura, quantas espécies de<br />

vegetais e animais vivem em nosso corpo?<br />

O ovo <strong>da</strong> tênia semeia-se em profusão; nos tecidos do porco e<br />

do carneiro ele é o humílimo cisticerco, e só no intestino começa<br />

a desenvolver seus inumeráveis anéis, vivendo <strong>na</strong>s duas hospe<strong>da</strong>rias,<br />

isto é, no animal e no homem. Nós o absorvemos <strong>na</strong><br />

costeleta de porco ou <strong>na</strong> fatia de carneiro, e <strong>da</strong>í por diante ela – a<br />

tênis – se instalará em nossa casa, sem outros cui<strong>da</strong>dos que os de<br />

primeiro inquilino.<br />

As moscas <strong>da</strong> semente de couve e <strong>da</strong> farinha fazem mora<strong>da</strong><br />

em nosso estômago. Em sua maioria, estes familiares <strong>da</strong> nossa<br />

intimi<strong>da</strong>de são inofensivos, mas alguns há, pérfidos, que acabam<br />

matando o seu benfeitor. Quem não acompanhou a discussão<br />

concernente à triquinose? Desde a descoberta do microscópio,<br />

quantos parasitas não se hão encontrado em nosso sangue, em<br />

nossa carne, em nosso pulmão; nos dentes, nos olhos, <strong>na</strong>s papuas<br />

<strong>na</strong>sais? Nutrimos carnívoros e herbívoros; temos peixes de água<br />

doce a circular em nossas veias, e peixes de água salga<strong>da</strong> a<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong>rem no oceano de nossas artérias. Há uma espécie de fúcus<br />

que vegeta nos pulmões tuberculosos. As excreções <strong>da</strong> língua de


um febrento compõe-se de multidão de infusórios. Um médico<br />

célebre, nosso amigo, tem observado muitas vezes erupções<br />

bruscas de milhares de piolhos em doentes atacados de tifo (a<br />

extraordinária prolifici<strong>da</strong>de desses ápteros bastaria para explicar<br />

essa multiplicação). Os coleópteros não esperam nossa morte<br />

para abando<strong>na</strong>r o seu domicílio habitual. Imperceptíveis insetos<br />

penetram-nos os pulmões e aí proliferam, de geração em geração.<br />

Já se encontrou no esôfago dos bois famílias inteiras de<br />

sanguessugas, indubitavelmente engoli<strong>da</strong>s em estado microscópico<br />

e lá criando o seu “habitat”. O estômago do cavalo constitui<br />

ambiente atmosférico insalubre, adequado à vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s ostras.<br />

Quantas espécies não vivem nos seres animados, sem que estes<br />

os percebam, isto sem falarmos dos parasitas externos, quais a<br />

pulga, o piolho. o percevejo, o sarcopto, etc.? Disse um filósofo<br />

que to<strong>da</strong>s as partes de um ser vivo são individualmente viventes<br />

e que já é ousa<strong>da</strong> temeri<strong>da</strong>de enxergar nos animais superiores um<br />

edifício celular habitado por multidão inconcebível de animais<br />

elementares. Ora, assim sendo, tudo é vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Não<br />

somente no ar como <strong>na</strong>s águas, corpúsculos flutuantes, elementos<br />

orgânicos e inorgânicos são portadores de uma vi<strong>da</strong> invisível,<br />

espécies que experimentam três fases comuns ao mundo dos<br />

insetos, a revelarem-se sob uma ou outra dessas metamorfoses,<br />

conforme as condições térmicas de calor e umi<strong>da</strong>de que as<br />

envolvam.<br />

Encara<strong>da</strong>s sob este aspecto, as gerações espontâneas deixariam<br />

de ter seu ver<strong>da</strong>deiro nome, deveriam somente nos representar<br />

uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> universal, que palpita em ca<strong>da</strong><br />

átomo de matéria. – E esta maneira de prismar a questão é tanto<br />

mais fun<strong>da</strong><strong>da</strong> quanto ca<strong>da</strong> espécie surge e se mantém constante,<br />

em relação à substância particular que parece pertencer-lhe. O<br />

infusório do feno não se encontra <strong>na</strong> sua fervura e o fermento do<br />

vinho não é o mesmo que o do queijo.<br />

Mas, seja como for, o mistério desven<strong>da</strong>do sob a aparência <strong>da</strong><br />

geração espontânea está longe de aclarar-se. Qualquer dia e certo<br />

sem muita delonga, hão de retomar o debate no ponto em que<br />

Láquesis acaba de o encerrar. Quanto ao mais, no pé em que está<br />

a questão, o que diz com a criação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> conserva a sua velha


independência, indene <strong>da</strong>s armas <strong>da</strong> Heterogenia, quanto <strong>da</strong><br />

Panspermia. A luta cessou à míngua de recursos. Atualmente é<br />

impossível saber se o ar mais puro, colhido no cume <strong>da</strong>s montanhas<br />

neva<strong>da</strong>s, não contém germes. Impossível, igualmente, saber<br />

se esses germes não resistem a temperaturas de mais de cem<br />

graus. A nós nos pareceu que os experimentadores teriam o<br />

insucesso (o que de resto é <strong>na</strong>tural), e não operavam com o rigor<br />

que teriam se fossem estrangeiros ou adversários. De qualquer<br />

forma, porém, o problema continuou insolúvel. O que mais<br />

vivamente nos impressionou <strong>na</strong> justa foi a idéia preconcebi<strong>da</strong> de<br />

ambos os lados, aliás, mais de um que do outro. Pretendia-se<br />

encarar de um modo absoluto a questão, como de <strong>na</strong>tureza<br />

teológica, quando a ver<strong>da</strong>de é que o resultado <strong>da</strong>s experiências<br />

em <strong>na</strong><strong>da</strong> afeta a Teologia. É uma declaração que vai talvez<br />

surpreender alguns leitores. Entretanto, se profun<strong>da</strong>rmos o<br />

assunto, haveremos de convir que a pecha de ateísmo lança<strong>da</strong> em<br />

rosto aos partidários <strong>da</strong> geração espontânea não cabe aos que, a<br />

exemplo ao Sr. Pouchet, não interpretam teologicamente tais<br />

experiências; e os que assim não procedem, incidem <strong>na</strong> maior<br />

<strong>da</strong>s vani<strong>da</strong>des, quando concluem pela inexistência de <strong>Deus</strong> 36 .<br />

Acreditar que seres vivos, vegetais ou animais, possam <strong>na</strong>scer<br />

espontaneamente <strong>da</strong> combi<strong>na</strong>ção de certos elementos, não é<br />

maior sacrilégio que acreditar os planetas destacados do Sol, ou<br />

que a galga seja prima do cão dos Pireneus. O Ser Supremo <strong>na</strong><strong>da</strong><br />

tem a ver com essas interpretações superficiais, que constituem,<br />

por assim dizer, o campo de car<strong>na</strong>gem dos míticos pensadores.<br />

Os micrógrafos mutuamente desacreditaram a sua causa, fazendo<br />

baixar às suas retortas as potências criadoras. Acreditarão<br />

eles que, <strong>da</strong>do pudesse a matéria inerte tor<strong>na</strong>r-se semiorganiza<strong>da</strong>,<br />

e depois organiza<strong>da</strong>, sob a influência de tais e quais<br />

forças, teriam suprimido a causa sobera<strong>na</strong> dos domínios <strong>da</strong><br />

<strong>Natureza</strong>? Absolutamente. O que tais experiências inculcam, e<br />

eles em sua maioria ignoram, é o protesto contra o <strong>Deus</strong> humano<br />

e a elevação do espírito a concepções mais puras e mais grandiosas,<br />

do misterioso Criador.<br />

Será rebaixar a idéia de <strong>Deus</strong> o considerar o Universo um<br />

como gigantesco desdobramento de uma obra única, cujas mo<strong>da</strong>-


li<strong>da</strong>des se manifestam multifárias e cujos poderes se traduzem<br />

em forças particulares, distintas? A substância primitiva ocupa o<br />

espaço ilimitado. O plano divino está em que esta substância seja<br />

um dia condensa<strong>da</strong> em mundos, nos quais a vi<strong>da</strong> e a inteligência<br />

hajam de irradiar esplendores. A luz, o calor, a eletrici<strong>da</strong>de, o<br />

magnetismo, a atração, o movimento sob mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des desconheci<strong>da</strong>s<br />

percorrem, atravessam essa substância primordial, como o<br />

vento <strong>da</strong> Grécia, que, ao tempo de Pan, timbrava as harpas eólias<br />

no âmbito <strong>da</strong> noite. Que mão empunha o arco e preludia o mais<br />

magnificente dos coros? Não pode a inteligência huma<strong>na</strong> definilo.<br />

Escutemos, atentos, o longínquo concerto <strong>da</strong> Criação.<br />

No amanhecer <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> terrestre, já os sóis esplendiam, de<br />

há muito, <strong>na</strong> amplidão dos céus, a gravitarem harmônicos em<br />

suas órbitas, sob a regência <strong>da</strong> mesma lei universal que ain<strong>da</strong><br />

hoje os rege. Era o primeiro dia <strong>da</strong> Terra. Solidões oceânicas,<br />

tempestades ígneas, rupturas formidáveis de águas e nuvens<br />

viram chegar-lhes, alfim, uma paz desconheci<strong>da</strong>. Raios de ouro<br />

atravessaram as nuvens; um céu azul to<strong>na</strong>lizou a atmosfera; um<br />

belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol nesse dia. Então, já não<br />

eram dias e anos a contar, pois períodos imensos, incalculáveis,<br />

já lhe haviam coberto o berço. Os astros são jovens, ain<strong>da</strong> quando<br />

miríades de gestações tenham sucumbido. As ilhas surgiram,<br />

então, do seio <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s e a primeira verdura estendeu pelas<br />

praias o seu manto virgi<strong>na</strong>l. Muito tempo depois, <strong>da</strong>s galha<strong>da</strong>s<br />

vindes rebentaram flores, de cujos lábios entreabertos se exalavam<br />

perfumes. Mais tarde, no bojo profundo <strong>da</strong>s florestas repercutiu<br />

o canto <strong>da</strong>s aves e os hóspedes fabulosos dos mares primitivos<br />

cruzaram-se no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra se<br />

<strong>da</strong>va aos espasmos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, anima<strong>da</strong> pelo sopro imortal, vendo<br />

luzes e sombras perpassarem-lhe a face. Suponhamos, um momento,<br />

que a força orgânica, que hoje se transmite de geração a<br />

geração, tenha aparecido como uma resultante <strong>na</strong>tural e inevitável<br />

<strong>da</strong>s condições fecun<strong>da</strong>s em que se achava a Terra quando<br />

soou a era <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; suponhamos as primeiras células orgânicas<br />

diversamente constituí<strong>da</strong>s, formando tipos primordiais distintos,<br />

ain<strong>da</strong> que simples, pobres, grosseiros, sejam as cepas de sucessivas<br />

varie<strong>da</strong>des; suponhamos, enfim, que to<strong>da</strong>s as espécies vege-


tais e animais, inclusive a huma<strong>na</strong>, sejam o resultado de transformações<br />

lentas, opera<strong>da</strong>s sob condições progressivas do planeta,<br />

e perguntemos em que, e como, pode essa teoria nulificar a<br />

necessi<strong>da</strong>de dum criador e organizador imanente? Quem deu<br />

essas leis ao Universo? Quem organizou essa fecundi<strong>da</strong>de?<br />

Quem imprimiu à <strong>Natureza</strong> essa tendência perpetuamente progressiva?<br />

Quem deu aos elementos materiais a facul<strong>da</strong>de de<br />

produzir ou de receber a vi<strong>da</strong>? Quem concebeu a arquitetura<br />

desses corpos animados, desses edifícios maravilhosos, nos quais<br />

todos os órgãos tendem a um mesmo fim? Quem presidiu à<br />

conservação dos indivíduos e <strong>da</strong>s espécies <strong>na</strong> trama inimitável<br />

dos tecidos, dos arcabouços, dos mecanismos – pelo dom previdente<br />

do instinto, por to<strong>da</strong>s as facul<strong>da</strong>des, enfim, que possuem<br />

respectivamente todos os seres vivos e ca<strong>da</strong> qual de acordo com<br />

o seu papel no cenáculo do mundo? Numa palavra: – se a força<br />

vital é uma força <strong>da</strong> mesma <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong>s forças moleculares,<br />

insistamos no perguntar: – quem é o seu autor? Seria por não<br />

haver esse autor fabricado tudo com as próprias mãos, que<br />

haveríeis de o negar?<br />

De boa fé, supondes que, se em lugar de escrever letra a letra,<br />

palavra a palavra, esta obra e enviá-la à Livraria Acadêmica, que<br />

a confiou a um tipógrafo; o qual, por sua vez, entregou-a ao<br />

pagi<strong>na</strong>dor, que, por sua vez, a confiou aos contra-mestres e<br />

aprendizes, etc.; e depois, ain<strong>da</strong> me obrigou a corrigir provas –<br />

sem falarmos <strong>na</strong> escolha do papel, do formato, número de pági<strong>na</strong>s,<br />

encader<strong>na</strong>ção, tudo enfim que representa a fatura de um<br />

livro; – supondes, repito, que, depois de haver o livro passado<br />

por tantos trâmites, deixasse eu de ser o seu legítimo autor,<br />

bastando ape<strong>na</strong>s querê-lo para que o plano instantaneamente se<br />

completasse? Acreditais que, por haver simplesmente coorde<strong>na</strong>do<br />

certas regras, em virtude <strong>da</strong>s quais a idéia expressa em tinta,<br />

papel, chumbo; – agentes inertes e cegos, atuados sob a minha<br />

vigilância constante – se materializou em parte, tão invisivelmente<br />

quanto me eclodiu do cérebro, me tenha destituído de<br />

legítima autoria desta obra? Por mim, senhores materialistas,<br />

ficaria muito satisfeito só com o poder evitar a revisão <strong>da</strong>s<br />

provas, que, já o dizia Balzac, é o suplício infer<strong>na</strong>l dos escrito-


es. E se algum pândego de mau gosto apregoasse pelas ruas de<br />

Paris que meu livro se fizera por si mesmo, eu haveria de rir à<br />

vontade e não deixaria de interessar-me por um tão precioso<br />

privilégio.<br />

Fosse-me permitido o paralelo entre o livro <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e o<br />

meu, e creio que faria coisa assim como comparar uma boneca<br />

mecânica à Vênus de Milus, viva, ou, então, as ro<strong>da</strong>s do relógio<br />

apresentado a Carlos Magno pelo califa Haron-al-Raschid, ao<br />

mecanismo do sistema universal.<br />

To<strong>da</strong>via, não sereis vós quem há de elevar meu trabalho às<br />

alturas <strong>da</strong> Criação <strong>na</strong>tural. Se a bonequinha mais insignificante e<br />

o mecanismo mais tosco revelam a Voltaire a existência de um<br />

ou de vários fabricantes, a que se reduz a negação dos que recusam<br />

identificar um arquiteto <strong>na</strong> sublima<strong>da</strong> harmonia do edifício<br />

cósmico?<br />

Assim é que, seja qual for o círculo arbitrário, imagi<strong>na</strong>do em<br />

torno <strong>da</strong> ação sensível do Criador e mediante o qual preten<strong>da</strong>mos<br />

limitar a sua presença, a idéia de <strong>Deus</strong> nos escapa, sempre, pela<br />

tangente, com singular sutileza. Essa proprie<strong>da</strong>de particular <strong>da</strong><br />

idéia do ser incriado manifesta-se em ca<strong>da</strong> conclusão do nosso<br />

arrazoado!<br />

Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um teólogo<br />

anglicano incumbido de ajeitar as coisas e manter em perpétuo<br />

acordo a consciência do <strong>na</strong>turalista eminente com as pretendi<strong>da</strong>s<br />

conseqüências <strong>da</strong> sua teoria <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural. De resto, o<br />

tradutor feminino <strong>da</strong> obra teve o cui<strong>da</strong>do de nos advertir que,<br />

“em vão, protesta o autor não ser o seu sistema em <strong>na</strong><strong>da</strong> contrário<br />

à idéia de divin<strong>da</strong>de”. Pelo que nos toca, é com íntima satisfação<br />

que aqui juntamos às nossas convicções pessoais as do<br />

autor <strong>da</strong> Origem <strong>da</strong>s Espécies: “Não vejo em que possam as<br />

teorias expostas nesta obra melindrar os sentimentos religiosos<br />

de quem quer que seja. Por demonstrar quanto são inconscientes<br />

essas impressões, basta lembrar que a maior <strong>da</strong>s descobertas<br />

huma<strong>na</strong>s – a <strong>da</strong> lei de gravitação – foi hostiliza<strong>da</strong> pelo próprio<br />

Leibnitz como subversiva <strong>da</strong> religião <strong>na</strong>tural. Notável autor<br />

sacro escreveu-me, em tempo, ter chegado gra<strong>da</strong>tivamente a<br />

convencer-se de que a criação divi<strong>na</strong> <strong>da</strong>s formas simples, origi-


<strong>na</strong>is, capazes de por si evoluírem e transformarem-se em formas<br />

úteis, era concepção mais justa e compatível com a majestade do<br />

Supremo Ser, do que presumir a necessi<strong>da</strong>de de um novo ato<br />

criador, a fim de encher os vácuos causados pelo funcio<strong>na</strong>mento<br />

<strong>da</strong>s suas próprias leis. Autores eminentes mostram-se inteiramente<br />

satisfeitos com a hipótese <strong>da</strong> criação independente de ca<strong>da</strong><br />

espécie. A meu ver, o que conhecemos <strong>da</strong>s leis impostas à matéria,<br />

pelo Criador, está mais de acordo com a formação e extinção<br />

dos seres presentes e passados por causas secundárias, semelhantes<br />

às que determi<strong>na</strong>m o <strong>na</strong>scimento e a morte dos indivíduos.<br />

Quando encaro todos os seres não como criações especiais, mas<br />

como descendentes em linha direta de seres que viveram anteriormente<br />

aos depósitos do sistema siluriano, eles me parecem<br />

enobrecidos.”<br />

Mais adiante, acrescenta o mesmo <strong>na</strong>turalista:<br />

“Que interesse nos desperta o espetáculo de uma praia coberta<br />

de vegetação, pássaros cantando, insetos voejando, anelídeos<br />

ou larvas rastejando no solo úmido, ao pensarmos que to<strong>da</strong>s<br />

essas formas elabora<strong>da</strong>s com tanto cui<strong>da</strong>do, paciência, habili<strong>da</strong>de<br />

e dependentes umas de outras por uma série de relações<br />

complica<strong>da</strong>s, foram to<strong>da</strong>s produzi<strong>da</strong>s por leis de uma contínua<br />

ativi<strong>da</strong>de em torno de nós! Essas leis, toma<strong>da</strong>s em seu mais lato<br />

sentido, enumeramo-las aqui: – de crescimento e reprodução; de<br />

hereditarie<strong>da</strong>de, quase implícita <strong>na</strong>s precedentes; de variabili<strong>da</strong>de<br />

sob a ação direta ou indireta <strong>da</strong>s condições exteriores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

e do uso ou <strong>da</strong> falta de exercício dos órgãos; <strong>da</strong> multiplicação<br />

<strong>da</strong>s espécies em sentido geométrico, a produzir a concorrência<br />

vital e a eleição <strong>na</strong>tural e, <strong>da</strong>í, a divergência de caracteres e<br />

extinção <strong>da</strong>s formas específicas.<br />

“É assim que, <strong>da</strong> guerra <strong>na</strong>tural, <strong>da</strong> fome e <strong>da</strong> morte, resulta o<br />

mais admirável dos efeitos que possamos conceber: – a formação<br />

lenta dos seres superiores. No encarar a vi<strong>da</strong> e suas potências<br />

animando origi<strong>na</strong>riamente algumas ou uma única forma simples,<br />

ao influxo do Criador, também há grandeza. E enquanto o planeta<br />

seguiu descrevendo os seus círculos perpétuos, de acordo com<br />

as leis fixas <strong>da</strong> gravitação, formas inumeráveis, ca<strong>da</strong> vez mais


elas e maravilhosas, se desenvolveram e se desenvolverão,<br />

mediante uma evolução sem fim” 37 .<br />

Declarações interessantes que importa registrar, para opô-las<br />

aos nossos materialistas.<br />

Pretendem estes que a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> geração espontânea, sustenta<strong>da</strong><br />

pelo Sr. Pouchet e a <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s espécies, ampara<strong>da</strong><br />

pelo Sr. Darwin, destroem, ambas, a idéia de <strong>Deus</strong>, e eis que,<br />

nem um nem outro admite essa acusação e protestam contra a<br />

ilusão dos nossos adversários. Nisto, pois, como em tudo o mais,<br />

são eles logrados por uma falsa miragem. Consignemos, assim,<br />

como novos <strong>da</strong>dos, este duplo e valioso fato. Em primeiro lugar,<br />

os materialistas não têm o direito de se apoiarem <strong>na</strong> geração<br />

espontânea para concluir pela não existência de <strong>Deus</strong>:<br />

1º - porque essa geração não está prova<strong>da</strong>, e<br />

2º - porque, se o estivera, não acarretaria uma tal conseqüência.<br />

Em segundo lugar, não têm o direito de afeiçoar ao seu ponto<br />

de vista o sistema do transformismo <strong>da</strong>s espécies, já porque tal<br />

sistema não está provado, e já porque ele não afeta a questão<br />

domi<strong>na</strong>nte <strong>da</strong>s origens <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Se estivesse provado que os vegetais e animais inferiores são<br />

formados por geração espontânea, no âmago <strong>da</strong> matéria inorgânica,<br />

haveria grandes probabili<strong>da</strong>des para crer que assim sucedesse,<br />

e com mais forte razão, com a origem <strong>da</strong>s espécies. Os<br />

partidários <strong>da</strong>s transformações específicas chegaram mesmo a<br />

apoiar-se <strong>na</strong> doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong>s gerações espontâneas para explicar a<br />

existência, ain<strong>da</strong> hoje, de inúmeras formas inferiores, apesar <strong>da</strong><br />

tendência <strong>da</strong>s espécies primitivas para se aperfeiçoarem. Por<br />

isso, admitem que a Criação não completou a sua tarefa e ain<strong>da</strong><br />

hoje se verifica nesses extremos. Era a opinião de Lamarck.<br />

Cumpre observar que o chefe do movimento atual não compartilha<br />

tais idéias e nem mesmo acredita <strong>na</strong> geração espontânea. “A<br />

seleção <strong>na</strong>tural – diz Darwin – não afeta nenhuma lei necessária<br />

e universal de desenvolvimento e de progresso. Ela cogita,<br />

ape<strong>na</strong>s, de to<strong>da</strong> e qualquer variação que se apresenta, quando<br />

vantajosa à espécie ou aos seus representantes. Tenho ape<strong>na</strong>s


necessi<strong>da</strong>de de aqui dizer – declara ele mais além – que a Ciência<br />

em seu estado atual não admite, em geral, que seres vivos,<br />

ain<strong>da</strong> hoje, se elaborem no seio <strong>da</strong> matéria inorgânica.”<br />

Vale notar que não são os sábios, nem mesmo os experimentadores,<br />

que proclamam as doutri<strong>na</strong>s por nós combati<strong>da</strong>s e sim<br />

pretensos filósofos, que, apoderando-se dos estudos científicos<br />

<strong>da</strong>queles, querem, a to<strong>da</strong> força, tirar conclusões repudia<strong>da</strong>s pelos<br />

próprios cientistas. Temos o dever de desmascarar-lhes o jogo e<br />

demonstrar com a confissão dos próprios experimentadores<br />

ilustres, que, se o sistema materialista se obsti<strong>na</strong> ingenuamente a<br />

exibi-los de público, assentados no seu palco teatral, não passa<br />

isso de mero efeito fantasmagórico, pura ilusão ótica.<br />

Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Fremy, que pensou<br />

ter notado corpos indecisos <strong>na</strong> fronteira dos dois reinos (corpos a<br />

que chamou semi-organizados) e foi por isso logo inculcado<br />

pelos doutri<strong>na</strong>ristas como porta-bandeira do materialismo para a<br />

hipótese <strong>da</strong> geração espontânea. Pois vejamos o que disse este<br />

químico no Instituto:<br />

“Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a idéia de geração<br />

espontânea, toma<strong>da</strong> no sentido de produção de um ser organizado,<br />

por mais simples que seja, com elementos que não<br />

possuem a força vital. A síntese química permite, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

reproduzir grande número de princípios imediatos de origem<br />

vegetal ou animal, mas a organização opõe, a meu ver, uma<br />

barreira intransponível às reproduções sintéticas. Ao lado dos<br />

princípios imediatos, definidos, que a síntese pode formar, há<br />

substâncias outras menos estáveis que as precedentes, mas<br />

também muito mais complexas quanto à sua constituição e que<br />

podem ser desig<strong>na</strong><strong>da</strong>s sob o título genérico de corpos semiorganizados.<br />

“Esses corpos apresentam-se em conexão com a organização,<br />

com a formação dos tecidos, com a produção dos fermentos e a<br />

putrefação, quase no mesmo estado <strong>da</strong> semente ressequi<strong>da</strong>, que<br />

leva anos e anos sem apresentar si<strong>na</strong>is de vegetação, para germi<strong>na</strong>r<br />

logo que submeti<strong>da</strong> às influências do ar, do calor e <strong>da</strong> umi<strong>da</strong>de.


“Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em estado<br />

de imobili<strong>da</strong>de orgânica durante muito tempo, mas também<br />

podem sair desse estado à custa <strong>da</strong> própria substância, sob os<br />

elementos de organização, desde que as circunstâncias favoreçam<br />

o desenvolvimento orgânico.”<br />

Na atuali<strong>da</strong>de não se pode, portanto, cientificamente, depor a<br />

favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão força<strong>da</strong><br />

longe está de esclarecer a questão <strong>da</strong> geração primitiva. O mistério<br />

permanece tão profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem<br />

seres vivos <strong>na</strong> Terra, eis o fato. De onde vêm eles? Conhecemos<br />

astrólogos (ain<strong>da</strong> os há) que escreveram grandes calhamaços<br />

para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros<br />

planetas, <strong>na</strong> asa de qualquer cometa aventuroso, ou gru<strong>da</strong>dos<br />

<strong>na</strong>lgum bojudo aerólito. Conhecemos sonhadores que pretendem<br />

hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecun<strong>da</strong>ção<br />

de eflúvios planetários e estelares. Isso, porém, é romantismo.<br />

De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que<br />

sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificul<strong>da</strong>de<br />

teria contra si a agravante <strong>da</strong> falsi<strong>da</strong>de, de vez que as cama<strong>da</strong>s<br />

geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em<br />

que surgiram diferentes espécies. Se não existe ser orgânico<br />

algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de ca<strong>da</strong><br />

espécie? A Bíblia responde que foi <strong>Deus</strong>. Perfeitamente, mas<br />

como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: –<br />

<strong>Deus</strong> fala? – objetam os gracejadores, lembrando-se de que o<br />

som não se propaga no vácuo... Súbito efeito <strong>da</strong> vontade divi<strong>na</strong>?<br />

Neste caso, de que forma? Os livros revelados <strong>na</strong><strong>da</strong> têm de<br />

explícitos e podemos interpretá-los a favor <strong>da</strong> geração espontânea<br />

(em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido<br />

contrário: “<strong>Deus</strong> diz: – Que a terra produza a erva tenra, contendo<br />

a semente e árvores que dêem fruto, ca<strong>da</strong> qual <strong>da</strong> sua espécie,<br />

e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre<br />

a terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo<br />

a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas<br />

sementes peculiares à espécie. E <strong>Deus</strong> viu que isso era bom.<br />

“E <strong>da</strong> noite <strong>da</strong> manhã surgiu o terceiro dia. Disse <strong>Deus</strong>, então:<br />

Que as águas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves


que voem acima <strong>da</strong> terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou,<br />

dizendo: Crescei e multiplicai, povoai as águas do mar e<br />

que as aves se multipliquem sobre a terra.<br />

“E <strong>da</strong> noite e <strong>da</strong> manhã surgiu o quinto dia. <strong>Deus</strong> disse, então:<br />

Que a terra produza animais vivos, ca<strong>da</strong> qual <strong>na</strong> sua espécie, os<br />

domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito” 38 .<br />

Aí temos o que muito se assemelha à geração espontânea. De<br />

resto, os Santos Padres professaram essa doutri<strong>na</strong>. A de Humboldt<br />

achou muito curioso que Santo Agostinho, encarando o<br />

povoamento <strong>da</strong>s ilhas, após o dilúvio, não se mostrasse muito<br />

longe de recorrer à hipótese de uma geração espontânea<br />

(Generatio aequivoca apontanea atst primaria). “Se os anjos ou<br />

os caçadores do continente – diz esse Pai <strong>da</strong> Igreja – não transportaram<br />

animais a essas ilhas afasta<strong>da</strong>s, é força admitir que o<br />

solo os tenha engendrado; mas, neste caso, pergunta-se: – por<br />

que encerrar <strong>na</strong> Arca animais de to<strong>da</strong> espécie?” Dois séculos<br />

antes do bispo de Hipo<strong>na</strong>, vamos encontrar no compêndio de<br />

Trogue-Pompéia, já estabeleci<strong>da</strong> a propósito <strong>da</strong> dissecação<br />

primitiva do mundo antigo, do pla<strong>na</strong>lto asiático, a<strong>na</strong>logia com a<br />

geração espontânea ou, seja, uma conexi<strong>da</strong>de semelhante à que<br />

se depara <strong>na</strong> teoria de Linneu, acerca do paraíso terreal, com as<br />

investigações do século 18 sobre a Atlânti<strong>da</strong> fabulosa.<br />

Quanto ao mais, em que pese à igni<strong>da</strong>de dos seus discursos,<br />

estes Mirabeaus <strong>da</strong> tribu<strong>na</strong> positivista encontram-se, fun<strong>da</strong>mentalmente,<br />

em ignorância e indecisão absolutas, no que concerne à<br />

origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Em vão lançam sobre o mistério o véu dos<br />

talvez; em vão se entretêm a imagi<strong>na</strong>r mil metamorfoses.<br />

Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o<br />

caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem<br />

maior alarde, eles deixam perceber confissões que nos permitimos<br />

aqui glosar para edificação do auditório. “Enigma insolúvel<br />

– diz B. Cotta – que não podemos deixar de atribuir à potência<br />

imperscrutável de um Criador, eis o que se nos afigura sempre a<br />

origem <strong>da</strong> matéria, bem como o <strong>na</strong>scimento dos seres orgânicos.”<br />

Eis uma confissão dig<strong>na</strong> de um espiritualista. Büchner, por<br />

outro lado, diz: – “É preciso atribuir à geração espontânea um<br />

papel mais importante nos tempos primitivos em relação aos


atuais, visto não se poder negar que ela tenha engendrado, então,<br />

organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta logo:<br />

“Ver<strong>da</strong>de é que nos faltam provas e mesmo conjeturas plausíveis<br />

dos pormenores desses espécimes, o que estamos longe de<br />

negar.” E, voltando à idéia domi<strong>na</strong>nte, declara imediatamente<br />

que – “seja qual for a nossa ignorância, devemos dizer convictamente<br />

que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem<br />

intervenção de qualquer força exterior”.<br />

Carl Vogt, a exemplo dos pré-citados, reconhece que as forças<br />

físico-químicas conheci<strong>da</strong>s não bastam, só por si, para explicar<br />

a origem dos organismos. Todo ser vivo, vegetal ou animal,<br />

tem sua origem essencial <strong>na</strong> célula orgânica, ou ovo. Antes de<br />

tudo, havemos de admitir que essa origem essencial foi cria<strong>da</strong>,<br />

sem sabermos como. Só depois dessa premissa admiti<strong>da</strong> é que<br />

começam as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que<br />

isso tivesse sucedido uma única vez – diz o autor <strong>da</strong>s Lições<br />

sobre o Homem – mediante ação simultânea de fatores diversos,<br />

que não conhecemos, é lícito concluir que houvesse podido<br />

formar-se uma célula orgânica a expensas dos elementos químicos,<br />

e tor<strong>na</strong>-se evidente que a mais ligeira modificação devesse<br />

determi<strong>na</strong>r imediata modificação no objeto produzido, isto é, <strong>na</strong><br />

célula. Mas, como não podemos admitir que, sobre to<strong>da</strong> a superfície<br />

terrestre, as mesmas causas tenham atuado e ain<strong>da</strong> atuem<br />

<strong>na</strong>s mesmas condições e com a mesma energia, <strong>na</strong> criação <strong>da</strong><br />

célula primitiva; e que, por outro lado, a criação orgânica haveria<br />

de estender-se por to<strong>da</strong> a Terra, conclui-se, necessariamente, que<br />

as primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões<br />

de desenvolvimento diferentes.”<br />

Wirchow não explica melhor a questão de origem. “Em certa<br />

fase de desenvolvimento <strong>da</strong> Terra – diz – sobrevieram condições<br />

anormais, sob as quais, entrando em novas combi<strong>na</strong>ções, os<br />

elementos recebiam o movimento vital, donde as condições<br />

ordinárias se tor<strong>na</strong>ram vitais.”<br />

Quanto a Carlos Darwin, em vão temos rebuscado a sua opinião,<br />

mesmo quanto à origem <strong>da</strong>s espécies. Contenta-se ele com<br />

o explicar a variabili<strong>da</strong>de possível dum certo número de tipos<br />

primitivos, e é uma nota no mínimo singular, que, em obra tão


volumosa e opulenta sobre a origem dos seres, não se trate<br />

absolutamente dessa origem!<br />

O problema é obscuro: a distância do <strong>na</strong><strong>da</strong> a alguma coisa é<br />

maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que<br />

se filiem nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas,<br />

todos estamos assomados pelo inexplicável mistério <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Porque não reconhecer com franqueza a nossa absoluta ignorância<br />

neste particular? E, contudo, essa ignorância deveria moderar<br />

um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o<br />

enigma com menos arrogância. É de convir que, quando nos<br />

assoberba uma tal incerteza, ninguém pode cantar vitória. Quiséssemos<br />

voltar à questão e fácil nos seria pôr to<strong>da</strong>s as vantagens<br />

do nosso lado; poderíamos impor <strong>Deus</strong> aos adversários, sem que<br />

eles pudessem subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando a<br />

Ciência que as afini<strong>da</strong>des <strong>da</strong> matéria possam criar a vi<strong>da</strong>, o papel<br />

do Criador, aqui, fica íntegro como nos tempos de Adão e até<br />

dos pré-a<strong>da</strong>mitas. E ain<strong>da</strong> que o demonstrasse, a origem e o<br />

entretenimento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> deixam ver claramente a existência de<br />

uma força criadora, ou seja, por outras palavras, um <strong>Deus</strong> oculto.<br />

Tal, porém, a força <strong>da</strong> nossa tática, que jamais queremos abusar<br />

de uma posição privilegia<strong>da</strong> e preferimos combater sempre<br />

em pari<strong>da</strong>de de terreno e de armas. Contentamo-nos, assim, em<br />

insinuar ape<strong>na</strong>s essa superiori<strong>da</strong>de aos adversários, para sua<br />

edificação momentânea e baixando, logo a seguir, <strong>da</strong>s alturas<br />

favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano <strong>da</strong> organização <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, sem nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo<br />

problema dessa mesma vi<strong>da</strong>. Ninguém dirá que, do ponto de<br />

vista singular <strong>da</strong> organização, a existência do Ser inteligente não<br />

esteja sobera<strong>na</strong>mente demonstra<strong>da</strong>. Ain<strong>da</strong> mesmo que, em<br />

virtude de forças desconheci<strong>da</strong>s, pudesse a vi<strong>da</strong> aflorar espontaneamente<br />

em <strong>da</strong><strong>da</strong>s circunstâncias materiais, e ain<strong>da</strong> que os seres<br />

primários se tivessem formado de uma única célula primordial,<br />

gera<strong>da</strong> ao influxo de um conjunto de circunstâncias fortuitas;<br />

ain<strong>da</strong> assim, repetimos, a organização dos seres vivos seria uma<br />

prova irrefragável <strong>da</strong> soberania <strong>da</strong> força coorde<strong>na</strong><strong>da</strong>. Seria,<br />

sempre, em virtude de uma que tais leis superiores que a vi<strong>da</strong><br />

haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem uma


causa cega ou louca, mas causa que deve, no mínimo, saber o<br />

que faz. Assim, também, chegasse o homem a descobrir o <strong>na</strong>scimento<br />

espontâneo dos infusórios ou dos vermes intesti<strong>na</strong>is,<br />

nem por isso teria criado esses ínfimos seres e sim, ape<strong>na</strong>s,<br />

constatado que a <strong>Natureza</strong> opera à sua revelia, com poderes<br />

superiores aos seus e mediante processos que, a despeito de sua<br />

inteligência, lhe teriam custado séculos a descobrir (<strong>da</strong>do que lá<br />

chegasse).<br />

Mas, fi<strong>na</strong>lmente, nem por isso a causa <strong>da</strong> razão divi<strong>na</strong> restaria<br />

mais esclareci<strong>da</strong>.<br />

Dado o mistério que envolve ain<strong>da</strong> a origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> Terra,<br />

ninguém há com autori<strong>da</strong>de para declarar proscrita a ação do<br />

Criador. Suponha-se que os primeiros seres <strong>na</strong>scessem no estado<br />

de animali<strong>da</strong>de rudimentar e que as varie<strong>da</strong>des sucessivas fossem<br />

a cepa <strong>da</strong>s espécies hoje tão distintas; ou que os primeiros<br />

pais de ca<strong>da</strong> família houvessem despertado à voz de comando de<br />

um grande mágico, e teremos que estas conjeturas não afetam<br />

mais a base <strong>da</strong> Teologia <strong>na</strong>tural, do que se admitíssemos que<br />

essas espécies aqui aportassem trazi<strong>da</strong>s de outros mundos <strong>na</strong>s<br />

asas de qualquer celeste mensageiro. Quanto à formação ou<br />

transformação <strong>da</strong>s espécies, não está por sua vez melhor conheci<strong>da</strong><br />

que a origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, qual o confessa Ch. Lyell: “O que<br />

sabemos <strong>da</strong> Paleontologia é <strong>na</strong><strong>da</strong> em comparação com o que<br />

resta a aprender.”<br />

Examinemos, agora, com este geólogo eminente 39 , quais os<br />

principais caracteres <strong>da</strong> teoria de Lanck e de Geoffroy Saint<br />

Hilaire acerca <strong>da</strong> progressão e transformação <strong>da</strong>s espécies. Os<br />

homens superficiais facilmente imagi<strong>na</strong>m que a Ciência está<br />

organiza<strong>da</strong> com regras absolutas e nenhuma dificul<strong>da</strong>de encontra<br />

em sua marcha ascendente. Na<strong>da</strong> menos exato. Nem mesmo as<br />

grandes definições têm caráter absoluto. Os zoólogos, por exemplo,<br />

não se entendem sobre os vocábulos espécie e raça. Sucedeu<br />

o que Lamarck predissera – declara Lyell –: quanto mais se<br />

multiplicam as novas formas, menos nos capacitamos de precisar<br />

o que seja uma varie<strong>da</strong>de, ou uma espécie. De fato, zoologistas e<br />

botânicos se vêem, não só mais embaraçados que nunca por<br />

definir a espécie, como também para certificar se ela realmente


existe <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, ou se não passa de simples abstração <strong>da</strong><br />

inteligência huma<strong>na</strong>. Pretendem uns que ela seja constante<br />

dentro de certos limites de variabili<strong>da</strong>de, restritos e intransponíveis;<br />

querem-<strong>na</strong> outros suscetível de modificações indefini<strong>da</strong>s e<br />

ilimita<strong>da</strong>s. Desde os tempos de Linneu até o começo deste<br />

século, acreditava-se definir suficientemente a espécie, dizendo:<br />

“A espécie compõe-se de indivíduos semelhantes e reproduzindo-se<br />

de seres a eles semelhantes”.<br />

Lamarck, tendo reconhecido uma grande quanti<strong>da</strong>de de espécies<br />

fósseis, <strong>da</strong>s quais umas eram idênticas a espécies vivas,<br />

enquanto que outras não passavam de varie<strong>da</strong>des, aditou o fator<br />

tempo à definição de espécie, assim formulando: “Compõe-se a<br />

espécie de indivíduos inteiramente semelhantes entre si e reproduzindo-se<br />

por seres semelhantes, desde que as condições de<br />

vi<strong>da</strong> não experimentem alterações capazes de lhes variar os<br />

hábitos, caracteres e formas.” Fi<strong>na</strong>lmente, chega ele a concluir<br />

que, dos animais e plantas contemporâneas, nem um exemplar<br />

existe <strong>da</strong> criação primordial, sendo todos derivados de formas<br />

preexistentes, as quais, depois de haverem reproduzido, por<br />

séculos sem conta, seres semelhantes, teriam, fi<strong>na</strong>lmente, experimentado<br />

variações graduais e conseqüentes a mu<strong>da</strong>nças de<br />

clima e do reino animal, a<strong>da</strong>ptando-se às novas circunstâncias.<br />

Alguns, entretanto, com o correr dos tempos se afastaram tanto<br />

do tipo origi<strong>na</strong>l, que mereciam ser agora considerados espécie<br />

nova.<br />

Em apoio dessa opinião, apresenta o contraste <strong>da</strong>s plantas<br />

agrestes com as cultiva<strong>da</strong>s, dos animais selvagens com os domésticos,<br />

a lembrar como e quanto se lhes modificam gradualmente<br />

a cor, a forma, a estrutura, os caracteres fisiológicos e até<br />

os instintos, em presença de novos inimigos e sob a influência de<br />

alimentação e regime de vi<strong>da</strong> diferentes.<br />

Lamarck sustenta, não somente que as espécies foram constantemente<br />

submeti<strong>da</strong>s a alterações, passando de um a outro<br />

período, mas, também, que houvesse um progresso constante do<br />

mundo orgânico, desde os primeiros aos hodiernos tempos, dos<br />

seres mais simples aos mais complexos, dos mais baixos aos<br />

mais altos instintos, e, fi<strong>na</strong>lmente, <strong>da</strong> mais rudimentar inteligên-


cia às maiores expressões do racio<strong>na</strong>lismo humano. Para ele, o<br />

aperfeiçoamento teria sido moroso e constante, a própria raça<br />

huma<strong>na</strong> ter-se-ia, enfim, desgalhado do grupo de mamíferos<br />

organicamente mais evoluídos. Um professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

Cambridge nos deu um resumo conciso e racio<strong>na</strong>l desta teoria 40 .<br />

“Encontramos nos antigos depósitos <strong>da</strong> crosta terrestre – diz<br />

ele – o traço de uma progressão <strong>na</strong> organização <strong>da</strong>s formas<br />

viventes, sucessivas. Podemos notar, por exemplo, a ausência de<br />

mamíferos nos grupos mais antigos e as suas raras aparições nos<br />

grupos secundários mais recentes. Animais de sangue quente (em<br />

grande parte de gêneros desconhecidos) encontram-se bastante<br />

espalhados em to<strong>da</strong>s as velhas cama<strong>da</strong>s terciárias e abun<strong>da</strong>m<br />

(freqüentemente com formas genéricas conheci<strong>da</strong>s) <strong>na</strong>s partes<br />

superiores <strong>da</strong> mesma série; e, por fim, temos que a aparição do<br />

homem <strong>na</strong> superfície do solo é um fato recente.”<br />

Esse desenvolvimento histórico, <strong>da</strong>s formas e funções <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

orgânica em períodos sucessivos, parece-nos indicial de uma<br />

evolução gra<strong>da</strong>tiva <strong>da</strong> energia criadora, a manifestar-se por uma<br />

tendência progressiva para o tipo mais elevado <strong>da</strong> organização<br />

animal.<br />

Hugh Miller 41 também nota o fato extraordinário de ser a ordem<br />

adota<strong>da</strong> por Cuvier, no seu Reino Animal – a que coloca as<br />

quatro classes de vertebrados segundo as suas relações mútuas e<br />

categóricas – a mesma ordem cronológica que apresentavam. O<br />

cérebro, cujo volume em relação ao <strong>da</strong> medula está <strong>na</strong> razão de<br />

dois para um, é o do peixe, que foi o primeiro a aparecer. Sucedeu-lhe<br />

o que apresenta a relação média de dois e meio por um,<br />

ou seja, o réptil. Em segui<strong>da</strong>, vem a relação de três por um, que é<br />

a <strong>da</strong>s aves; a média de quatro por um, peculiar aos mamíferos.<br />

Por fim, o último, um cérebro cuja relação média é de vinte três<br />

por um, o cérebro do homem, que racioci<strong>na</strong> e calcula.<br />

O cérebro poderia não ser mais que uma florescência <strong>da</strong> medula<br />

espi<strong>na</strong>l. – Nas espécies inferiores (rãs por exemplo) a<br />

facul<strong>da</strong>de de sentir pertence à medula, quanto ao cérebro. Sem<br />

dúvi<strong>da</strong>, pode-se fazer sérias objeções à doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> progressivi<strong>da</strong>de,<br />

mostrando algumas plantas e animais menos perfeitos e<br />

surgidos posteriormente a espécies mais perfeitas, tais como o


embrião monocotiledôneo e os vegetais endógenos, depois do<br />

embrião monocotiledôneo e dos vegetais exógenos (o <strong>da</strong>s coníferas<br />

de caule glanduloso), bem como a perfeição <strong>da</strong>s mais antigas<br />

criptogâmicas, o movimento retrogressivo dos répteis, o aparecimento<br />

<strong>da</strong> boa (jibóia) depois do iguanodonte, etc. Exemplos<br />

não faltam, mas, persuadidos de que essa teoria não alcança a<br />

nossa tese <strong>da</strong> presença de “<strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>”, e simpatizando<br />

com ela, em si mesma, nós a sustentaremos. Consideramo-la<br />

com Lyell, não ape<strong>na</strong>s útil mas, no estado atual <strong>da</strong> Ciência, como<br />

hipótese indispensável, que, desti<strong>na</strong><strong>da</strong> embora a sofrer de futuro<br />

muitas e grandes modificações, jamais poderá ser absolutamente<br />

aniquila<strong>da</strong>.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, poderão julgar paradoxal que os mais firmes<br />

sustentáculos <strong>da</strong> transmutação (Darwin e Hooker, por exemplo)<br />

guardem singular reserva quanto à progressão, e que os maiores<br />

apologistas desta combatam, não raro com veemência, a transmutação.<br />

Não poderão ser ver<strong>da</strong>deiras e conciliarem-se essas<br />

duas teorias? Uma e outra nos representam em definitivo os tipos<br />

de vertebrados a elevarem-se gradualmente no curso <strong>da</strong>s i<strong>da</strong>des,<br />

a partir do peixe, a mais simples forma, para os mamíferos<br />

placentários, até chegar ao último elo <strong>da</strong> série, aos mamíferos<br />

antropóides e, enfim, ao homem. Este último grau afigura-se,<br />

portanto, nesta hipótese, uma parte integrante <strong>da</strong> mesma série<br />

contínua de atos desenvolvidos, anel <strong>da</strong> mesma cadeia, coroamento<br />

<strong>da</strong> obra, por isso que entra <strong>na</strong> mesma e única série <strong>da</strong>s<br />

manifestações <strong>da</strong> potência criadora.<br />

Passemos agora à teoria <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s espécies por meio <strong>da</strong><br />

seleção <strong>na</strong>tural.<br />

Esta teoria nos apresenta grosso modo a ação <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />

observa<strong>da</strong> <strong>na</strong> criação e educação dos animais domésticos. Sabem<br />

os criadores que é possível, ao fim de algumas gerações, obter<br />

uma nova classe de rebanhos, de chifre curto ou sem chifre,<br />

desde que tenham escolhido reprodutores de cornos menos<br />

desenvolvidos. Dizem, então, que é assim que opera a <strong>Natureza</strong>,<br />

alterando no curso <strong>da</strong>s eras as condições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, os traços<br />

geográficos de um país, seu clima, a associação de animais e<br />

plantas e, por conseqüência, a alimentação e os inimigos de uma


espécie e o seu “modus vivendi”. E assim se vão elegendo certas<br />

varie<strong>da</strong>des mais bem a<strong>da</strong>ptáveis à nova ordem de coisas. Dessarte,<br />

podem as novas raças suplantar, muitas vezes, o tipo origi<strong>na</strong>l<br />

de sua ascendência.<br />

Lamarck opinou que o pescoço longo <strong>da</strong> girafa procede de<br />

uma longa série de esforços para colher o alimento de árvores<br />

ca<strong>da</strong> vez mais altas. Darwin e Wallace limitam-se a conjeturar<br />

que, <strong>na</strong> intercorrência de alguma calami<strong>da</strong>de sobreviveram os<br />

espécimes de pescoço comprido, por lhes ser possível pastarem<br />

em sítios i<strong>na</strong>cessíveis aos outros.<br />

Graças a ligeiras modificações, multiplica<strong>da</strong>s em curso de milhares<br />

de gerações e à transmissão, por hereditarie<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>s<br />

aquisições novas, supõe-se uma divergência ca<strong>da</strong> vez maior do<br />

tipo primitivo, até resultar em uma nova espécie, ou em um novo<br />

gênero, se mais longo o tempo decorrido. O moderno autor dessa<br />

explicação fisiológica <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s espécies, Sr. Carlos Darwin,<br />

expõe ele próprio 42 , como se segue, os fatos gerais em que<br />

se baseia.<br />

Na domestici<strong>da</strong>de, constata-se uma grande variabili<strong>da</strong>de, que<br />

parece devi<strong>da</strong> ao fato de ser o sistema reprodutor muitíssimo<br />

sensível às mu<strong>da</strong>nças de condições de vi<strong>da</strong>, deixando de reproduzir<br />

exatamente a forma matriz. A variabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas<br />

específicas é gover<strong>na</strong><strong>da</strong> por um certo número de leis muito<br />

complexas, tais como o uso ou a falta de exercício dos órgãos e a<br />

ação direta <strong>da</strong>s condições físicas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Nossas espécies domésticas<br />

sofreram modificações profun<strong>da</strong>s, que se transmitiram<br />

por hereditarie<strong>da</strong>de, durante período assaz longos. Assim, também,<br />

enquanto se mantiverem as mesmas condições de vi<strong>da</strong> por<br />

períodos longos, poderemos admitir possa manter-se e transmitir-se<br />

uma modificação já adquiri<strong>da</strong> durante uma série quase<br />

infinita de graus genealógicos. Por outro lado, está provado que a<br />

variabili<strong>da</strong>de, uma vez começando a manifestar-se, não cessa<br />

totalmente de operar, visto como novas varie<strong>da</strong>des ain<strong>da</strong> se<br />

verificam, de tempos a tempos, entre as nossas espécies domésticas<br />

mais antigas.<br />

Não é, porém, o homem que produz a variabili<strong>da</strong>de. Ele ape<strong>na</strong>s<br />

expõe, e muitas vezes sem desígnios, os seres orgânicos a


novas condições de vi<strong>da</strong>. Então, a <strong>Natureza</strong>, agindo sobre o<br />

organismo, produz variações. Podemos escolher, então, essas<br />

varie<strong>da</strong>des e as acumular <strong>na</strong> direção que nos prouver. Assim,<br />

a<strong>da</strong>ptamos animais ou plantas às nossas conveniências e até aos<br />

nossos caprichos. Tal resultado pode ser obtido sistematicamente<br />

e mesmo sem objetivo preconcebido, qualquer, bastando que,<br />

sem propósito de alterar a raça, se conservem de preferência os<br />

indivíduos que, num <strong>da</strong>do tempo, lhe são os mais úteis. Certo é<br />

que se podem transformar os caracteres de uma espécie escolhendo-se<br />

de ca<strong>da</strong> geração sucessiva as diferenças individuais; e<br />

esse processo seletivo foi o agente principal de produção <strong>da</strong>s<br />

raças domésticas, mais distintas e mais úteis. Os princípios que<br />

atuaram com tanta eficácia, no estado de domestici<strong>da</strong>de, podem,<br />

igualmente, operar no estado de <strong>na</strong>tureza. A conservação <strong>da</strong>s<br />

raças e dos indivíduos favorecidos <strong>na</strong> luta perpetuamente renova<strong>da</strong><br />

com o meio ambiente, é fator poderosíssimo, e sempre<br />

ativo, de seleção <strong>na</strong>tural.<br />

A concorrência vital é uma conseqüência necessária <strong>da</strong> multiplicação,<br />

em razão geométrica mais ou menos eleva<strong>da</strong>, de todos<br />

os seres organizados. A rapidez dessa progressão está prova<strong>da</strong><br />

não só pelo cálculo, como pela pronta multiplicação de muitos<br />

animais e plantas durante uma série de estações particulares, ou<br />

quando se aclimatavam em novas regiões. O número dos indivíduos<br />

que <strong>na</strong>scem excede sempre o dos que podem viver.<br />

Um grão <strong>na</strong> balança pode determi<strong>na</strong>r a varie<strong>da</strong>de que deve<br />

crescer e a que haja de diminuir. Como os indivíduos <strong>da</strong> mesma<br />

espécie são os que mais concorrem entre si, em todos os sentidos,<br />

a luta tor<strong>na</strong>-se para eles, em regra, mais severa. Ela o é<br />

quase tanto entre as varie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mesma espécie, e grave,<br />

ain<strong>da</strong>, entre as espécies do mesmo gênero. Mas a luta também<br />

pode existir, muitas vezes, entre seres muito afastados <strong>na</strong> escala<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. A mais leve vantagem adquiri<strong>da</strong> por um indivíduo,<br />

em qualquer i<strong>da</strong>de ou estação, sobre o seu concorrente, ou uma<br />

melhor a<strong>da</strong>ptação ao meio físico ambiente, o mais insignificante<br />

aperfeiçoamento, enfim, fará pender a concha <strong>da</strong> balança.<br />

Vantagens aparentemente medíocres podem acarretar essa variação<br />

crescente. Entre animais de sexos distintos, diz o <strong>na</strong>tura-


lista, haverá guerra, as mais <strong>da</strong>s vezes entre machos, para posse<br />

<strong>da</strong> fêmea. Os indivíduos mais vigorosos e os que lutaram com<br />

melhor êxito contra as condições físicas ambientes, hão de deixar<br />

uma progenitura mais numerosa. Mas, o seu êxito também<br />

dependerá, muitas vezes, dos meios de defesa de que disponham,<br />

ou de sua mesma beleza e, ain<strong>da</strong> neste caso, a mínima vantagem<br />

lhes granjeará a vitória.<br />

Uma vez admiti<strong>da</strong> a variabili<strong>da</strong>de, bem como a existência de<br />

um poderoso agente sempre pronto a funcio<strong>na</strong>r, chegaremos a<br />

concluir, facilmente, que variações algo úteis ao indivíduo em<br />

suas relações vitais possam ser conserva<strong>da</strong>s, transmiti<strong>da</strong>s e<br />

acumula<strong>da</strong>s? Se o homem pode, com paciência, escolher as<br />

variações que lhe sejam mais úteis, porque deixaria a <strong>Natureza</strong><br />

de escolher as variações proveitosas aos seus produtos sujeitos a<br />

condições mutáveis de existência? Que limites poderíamos<br />

atribuir a esse poder, quando ele opera mediante períodos longos<br />

e escruta, rigorosamente, a estrutura, to<strong>da</strong> a organização e os<br />

hábitos de ca<strong>da</strong> criatura, por favorecer o prestável e rejeitar o<br />

inútil? Parece não haver limite algum a esse poder, cujo efeito é<br />

a a<strong>da</strong>ptação lenta e admirável de to<strong>da</strong> a forma às mais complexas<br />

relações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Ca<strong>da</strong> espécie, <strong>da</strong><strong>da</strong> a progressão geométrica de reprodução<br />

que lhe é peculiar, tende a aumentar desorde<strong>na</strong><strong>da</strong>mente e, multiplicando-se<br />

os descendentes modificados de ca<strong>da</strong> espécie, tanto<br />

mais quanto se diversificam, nos hábitos e <strong>na</strong> estrutura, a lei de<br />

seleção <strong>na</strong>tural apresenta, por sua vez, uma tendência constante<br />

para conservar os descendentes mais divergentes, de qualquer<br />

espécie.<br />

Daí se segue que, durante o curso perseverante de sucessivas<br />

modificações, as mais leves diferenças características <strong>da</strong>s varie<strong>da</strong>des<br />

de uma espécie tendem a aumentar e atingir as grandes<br />

diferenças que caracterizam espécies do mesmo gênero. Varie<strong>da</strong>des<br />

novas e mais perfeitas suplantarão e extermi<strong>na</strong>rão inevitavelmente<br />

as mais antigas, as menos perfeitas e intermediárias, e,<br />

<strong>da</strong>í, tor<strong>na</strong>rem-se as espécies mais bem determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s e mais<br />

distintas.


Pode-se objetar que ao presente ninguém percebe tais mu<strong>da</strong>nças.<br />

O teórico responde, porém, que, operando a seleção <strong>na</strong>tural<br />

somente por acúmulo de variações favoráveis, leves e sucessivas,<br />

não pode produzir grandes alterações instantâneas. Ela opera a<br />

passos lentos e curtos. Essa lei <strong>na</strong>tural não existiria, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

se ca<strong>da</strong> espécie houvera sido independentemente cria<strong>da</strong>.<br />

O testemunho geológico apóia a teoria <strong>da</strong> descendência modifica<strong>da</strong>.<br />

As espécies novas apareceram lentamente e por intervalos<br />

sucessivos no cenário do mundo, e a soma <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças<br />

efetua<strong>da</strong>s em tempos iguais é muito diferente nos diversos<br />

grupos. A extinção de espécies e de grupos inteiros de espécies,<br />

que representou papel tão importante <strong>na</strong> história do mundo<br />

orgânico, é uma série quase inevitável do princípio de seleção<br />

<strong>na</strong>tural, pois as formas antigas devem ser suplanta<strong>da</strong>s por novas<br />

formas mais perfeitas. Nem as espécies isola<strong>da</strong>s, nem os grupos<br />

de espécies podem reaparecer, uma vez interrompi<strong>da</strong> a cadeia<br />

<strong>da</strong>s gerações regulares. A extensão gradual <strong>da</strong>s formas domi<strong>na</strong>ntes<br />

e a lenta modificação dos seus descendentes concorrem,<br />

depois de tantos intervalos de tempo transcorrido, para fazer<br />

supor que as formas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> houvessem mu<strong>da</strong>do simultaneamente<br />

no mundo inteiro. O caráter intermediário dos fósseis de ca<strong>da</strong><br />

formação, comparados aos de formação inferiores e superiores,<br />

explica-se muito simplesmente pela posição média que eles<br />

ocupam <strong>na</strong> cadeia geológica. O grande fato constatado, de pertencerem<br />

todos os seres extintos ao mesmo sistema dos atuais,<br />

integrando-se nos mesmos grupos, ou nos grupos intermediários,<br />

atesta o parentesco e a descendência origi<strong>na</strong>l.<br />

O autor invoca também em seu apoio a importância única dos<br />

caracteres embriológicos, observando que as afini<strong>da</strong>des reais dos<br />

seres organizados são devi<strong>da</strong>s à hereditarie<strong>da</strong>de e comuni<strong>da</strong>de de<br />

origem. O sistema <strong>na</strong>tural é uma árvore genealógica cujos lineamentos<br />

precisamos descobrir com o auxílio dos caracteres mais<br />

permanentes, por leve que seja a sua importância vital.<br />

Não despreza ele, tampouco, a a<strong>na</strong>logia. A disposição dos ossos<br />

é análoga <strong>na</strong> mão do homem, <strong>na</strong> asa do morcego, <strong>na</strong> membra<strong>na</strong><br />

<strong>na</strong>tatória <strong>da</strong> tartaruga e <strong>na</strong> per<strong>na</strong> do cavalo; o mesmo


número de vértebras forma o pescoço <strong>da</strong> girafa e do elefante.<br />

Estes e outros fatos semelhantes explicam-se por si mesmos <strong>na</strong><br />

teoria <strong>da</strong> descendência lenta e sucessivamente modifica<strong>da</strong>. A<br />

identi<strong>da</strong>de de plano <strong>da</strong> asa e <strong>da</strong> per<strong>na</strong> do morcego, que, no<br />

entanto, servem a fins tão diferentes; mandíbulas e patas de<br />

caranguejo, pétalas, estame e pistilo de uma flor, explicam-se do<br />

mesmo modo pela modificação gradual de órgãos outrora semelhantes<br />

nos primitivos antepassados de ca<strong>da</strong> classe.<br />

A falta de exercício, às vezes auxilia<strong>da</strong> pela seleção <strong>na</strong>tural,<br />

tende, amiúde, a reduzir as proporções de um órgão, que a mu<strong>da</strong>nça<br />

de hábitos ou as condições de vi<strong>da</strong> pouco a pouco tor<strong>na</strong>ram<br />

inútil.<br />

Dessarte, é fácil conceber a existência de órgãos rudimentares.<br />

Pode-se, enfim, perguntar até onde se estende a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong><br />

modificação <strong>da</strong>s espécies.<br />

Todos os membros de uma classe podem ser religados em<br />

conjunto, pelos laços de afini<strong>da</strong>de e igualmente classificados, em<br />

virtude dos mesmos princípios, por grupos subordi<strong>na</strong>dos a outros<br />

grupos. Darwin não pode duvi<strong>da</strong>r que a teoria <strong>da</strong> descendência<br />

não abranja todos os membros de uma classe. Ele pensa, até, que<br />

todo o reino animal descende de quatro ou cinco tipos primitivos,<br />

pelo menos, e o reino vegetal de um número igual ou mesmo<br />

inferior.<br />

A a<strong>na</strong>logia – acrescenta –, levá-lo-ia um pouco mais longe,<br />

isto é, à crença de que to<strong>da</strong>s as plantas e animais descendem de<br />

um protótipo único; mas, que a a<strong>na</strong>logia pode ser um guia enga<strong>na</strong>dor.<br />

No mínimo, a ver<strong>da</strong>de é que todos os seres vivos têm<br />

muitos atributos comuns: composição química, estrutura celular,<br />

leis de crescimento e facul<strong>da</strong>de de serem afetados por influências<br />

nocivas.<br />

Em todos os seres organizados, tanto quanto podemos julgar<br />

pelos conhecimentos atuais, a vesícula germi<strong>na</strong>tiva é uma só. De<br />

sorte que, ca<strong>da</strong> indivíduo organizado parte de uma mesma origem.


Mesmo que consideremos as duas principais divisões do<br />

mundo orgânico, ou sejam os reinos vegetal e animal, vemos que<br />

certas formas inferiores apresentam caracteres intermédios assaz<br />

pronunciados, a ponto de divergirem os <strong>na</strong>turalistas <strong>na</strong> sua<br />

respectiva classificação. O professor Cl. Gray notou que “os<br />

esporos de muitas algas inferiores poderiam vangloriar-se de ter<br />

possuído, de início, os caracteres <strong>da</strong> animali<strong>da</strong>de, passando<br />

depois a uma vi<strong>da</strong> vegetal equívoca”. Assim, partindo do princípio<br />

<strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural com divergência de caracteres, tor<strong>na</strong>-se<br />

crível que animais e plantas tenham de algum modo derivado de<br />

uma forma intermediária. Importa admitir também que, quantos<br />

seres lograram viver até hoje, podem descender de uma forma<br />

primordial e única. Tal conseqüência porém, fun<strong>da</strong>-se principalmente<br />

<strong>na</strong> a<strong>na</strong>logia e pouco importa seja ou não aceita. Outro<br />

tanto não se dá com as grandes classes, tais como articulados,<br />

vertebrados, etc., pois aí é <strong>na</strong>s leis <strong>da</strong> Homologia e <strong>da</strong> Embriologia<br />

que o autor vai encontrar provas muito especiais de uma<br />

descendência única 43 .<br />

Tal a teoria de Darwin, exposta por ele mesmo.<br />

Se, enfim, a nossa legítima curiosi<strong>da</strong>de se atreve a aplicar essa<br />

teoria à nossa própria espécie, logo percebemos, num misto de<br />

admiração e tristeza, que talvez descen<strong>da</strong>mos dum exemplar de<br />

símio desaparecido. Indubitavelmente, nossa digni<strong>da</strong>de sente-se<br />

ofendi<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> só possibili<strong>da</strong>de de uma tal jerarquia; mas, se<br />

observarmos a <strong>Natureza</strong>, sem idéias preconcebi<strong>da</strong>s, não parece<br />

que façamos exceção à lei geral? Muitos de nós preferem descender<br />

de um Adão degenerado, antes que de um macaco aperfeiçoado.<br />

E contudo, a <strong>Natureza</strong> não nos consultou a respeito.<br />

Pelo que nos toca, jamais dedicamos algumas horas ao estudo<br />

<strong>da</strong> Embriologia, que não ficássemos assaz impressio<strong>na</strong>dos com<br />

as suas abscônditas revelações. Jamais pudemos comparar embriões,<br />

em fases diferentes, que não víssemos neles um vestígio<br />

rudimentar <strong>da</strong>s fases correspondentes, pelas quais a nossa humani<strong>da</strong>de<br />

haveria de ter passado em tempos anteriores.<br />

Os vertebrados superiores revestem, sucessivamente, como<br />

no estado de esboço, os principais caracteres <strong>da</strong>s quatro grandes<br />

classes do entroncamento, sem contudo passarem pelas formas


dos outros troncos zoológicos. Desde o começo de sua existência<br />

secreta, a célula germi<strong>na</strong>tiva manifesta um sistema de desenvolvimento<br />

característico, sem tomar a forma do verme articulado,<br />

do molusco, ou do radiário. Sem dúvi<strong>da</strong>, esta sucessão representa<br />

uma imagem <strong>da</strong>s fases que, no curso <strong>da</strong>s i<strong>da</strong>des, a mesma classe<br />

de animais atravessou sucessivamente, avançando <strong>na</strong> escala dos<br />

seres. Quem já deixou de surpreender-se com a semelhança que<br />

o embrião humano oferece, sucessivamente, com o do peixe, do<br />

réptil e <strong>da</strong> ave? A hora presente não seria, pois, o espelho de um<br />

passado longínquo?<br />

Não se ousa encarar de frente essa origem e, sem embargo, a<br />

questão é assaz importante para merecer um esto de coragem.<br />

Examinemos, pois, sob o seu aspecto geral, a posição do homem<br />

<strong>na</strong> sua <strong>na</strong>tureza terre<strong>na</strong>. Ao termi<strong>na</strong>r este capítulo sobre a origem<br />

dos seres, esta perspectiva continuará mostrando-nos um governo<br />

intelectual <strong>na</strong> marcha ascendente <strong>da</strong> Criação.<br />

A hipótese zoológica que encara o homem como descendente<br />

de uma raça símia, antropóide, não é imoral nem antiespiritualística.<br />

Os que a abraçaram nestes últimos tempos não o fizeram<br />

com o propósito de hostili<strong>da</strong>de ao Cristianismo e por professarem<br />

doutri<strong>na</strong>s pagãs. Muito ao contrário, fizeram-no a despeito<br />

de grandes prevenções, favoráveis à superiori<strong>da</strong>de dos nossos<br />

primitivos ancestrais, de quem deveriam considerar-se descendentes<br />

abastar<strong>da</strong>dos. De resto, não compreendemos como sábios<br />

dignos desse nome possam afagar o prazer pueril de fazer fosquinhas<br />

ao Cristianismo. Pensamos que a Ciência deve ventilar<br />

os seus problemas sem se ocupar, de modo algum, com artigos<br />

de fé.<br />

Declaremos, antes de tudo, que a primeira característica do<br />

homem é a sua inteligência. Portanto, o seu lugar filosófico não<br />

se enquadra <strong>na</strong>s classificações <strong>da</strong> História Natural. Por sua<br />

perfectibili<strong>da</strong>de, que se poderá atribuir à linguagem, pela inteligência<br />

racio<strong>na</strong>l, por suas facul<strong>da</strong>des espirituais, em suma, o<br />

homem domi<strong>na</strong> to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong> terrestre. Seu espírito não incide<br />

nos domínios do escalpelo. Seu valor não se afere pelo corpo,<br />

pelo esqueleto, pelo fígado ou pelos rins, mas, pelo seu caráter<br />

intelectual. Descen<strong>da</strong>, pois, de uma ou de outra fonte o nosso


corpo, isso em <strong>na</strong><strong>da</strong> nos afeta a alma. O mundo <strong>da</strong> inteligência<br />

não é o mundo <strong>da</strong> matéria. Não somos menores por isso, nem<br />

menos puros. Somente por estreiteza de espírito é que intermitimos<br />

<strong>na</strong> filosofia psicológica imaginários temores, suscitados pela<br />

ciência zoológica. Se nosso berço terrestre fosse a manjedoura de<br />

rústico estábulo, qual o de Jesus, nem por isso nossa vi<strong>da</strong> e nossa<br />

missão seriam menos santas e alta<strong>na</strong><strong>da</strong>s. A superiori<strong>da</strong>de está em<br />

nossas facul<strong>da</strong>des intelectuais.<br />

“O corpo humano – diz o <strong>na</strong>turalista inglês Wallace –, estava<br />

nu e desprotegido e foi o espírito que o provisionou de vestes,<br />

para preservá-lo <strong>da</strong>s intempéries. O homem não teria podido<br />

competir em agili<strong>da</strong>de com o gamo, em força com o touro selvagem,<br />

e foi o espírito que lhe deu armas para domar e utilizar<br />

esses animais. Ele era menos apto que outros animais para<br />

alimentar-se de ervas e frutos, que a <strong>Natureza</strong> espontaneamente<br />

oferecia, e foi essa facul<strong>da</strong>de admirável que lhe ensinou a gover<strong>na</strong>r<br />

e adequar a <strong>Natureza</strong> aos seus fins, dela extraindo o alimento,<br />

quando e onde quer.<br />

“Desde o instante em que utilizou a primeira pele <strong>na</strong> indumentária,<br />

a primeira lança <strong>na</strong> caça<strong>da</strong>, a primeira semente no<br />

plantio, o primeiro tronco <strong>na</strong> enxertia, uma grande revolução se<br />

operou <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, revolução que não tivera símile em qualquer<br />

fase <strong>da</strong> história do mundo, de vez que um ser existia forrado às<br />

mutações do Universo; um ser, até certo ponto superior à <strong>Natureza</strong>,<br />

pois possuía os meios de controlá-la, de lhe regular as<br />

ativi<strong>da</strong>des, e podendo manter-se em harmonia com ela, não<br />

modificando a sua forma corporal, mas aperfeiçoando o seu<br />

espírito.”<br />

Nisso é que vemos, unicamente, a ver<strong>da</strong>deira grandeza e digni<strong>da</strong>de<br />

do homem. 44<br />

O lugar a<strong>na</strong>tômico do homem ocupa graus superiores ao em<br />

que se assenta o chimpanzé; a diferença entre os cérebros do<br />

negro e do primata não é maior que a que separa o chimpanzé do<br />

saju e, sobretudo, dos lemurianos. Depois do chimpanzé (trogloditas)<br />

vêm, <strong>na</strong> ordem decrescente, o orango (pitécus), o gibon<br />

(hilobatos), o seninopíteco, o bugio, etc. Tal como escreveu<br />

Geoffroy Saint-Hilaire em polêmica célebre com Cuvier, o


homem é a primeira família <strong>da</strong> ordem dos primatas, estabeleci<strong>da</strong><br />

por Linneu no século passado. Aqui, cabe dizer que falamos do<br />

ponto de vista a<strong>na</strong>tômico, unicamente. Qualquer outro raciocínio<br />

invali<strong>da</strong> as classificações precedentes. Somos, porém, de opinião<br />

que, quando se faz a<strong>na</strong>tomia, é preciso fazer a a<strong>na</strong>tomia.<br />

No seguinte capítulo, teremos ensejo de prosseguir <strong>na</strong> comparação<br />

do homem com o macaco, pelo estudo do cérebro.<br />

O lugar geológico do homem recua a origem de nossa espécie<br />

à época longínqua em que viviam as raças antediluvia<strong>na</strong>s, hoje<br />

desapareci<strong>da</strong>s: o veado de grandes chifres, o urso <strong>da</strong>s caver<strong>na</strong>s, o<br />

rinoceronte ticórnis, o elefante primigêneo, o mamute, a re<strong>na</strong><br />

fóssil, etc. A mais antiga <strong>da</strong>ta conheci<strong>da</strong> e atestante <strong>da</strong> presença<br />

do homem, é muito posterior à fau<strong>na</strong> e flora atuais. Entretanto,<br />

verifica-se não existirem já, em nossos dias, umas tantas espécies<br />

contemporâneas do homem. Os fósseis humanos encontrados nos<br />

arrecifes coralíneos <strong>da</strong> Flóri<strong>da</strong>, <strong>na</strong>s caver<strong>na</strong>s do Languedoc e <strong>da</strong><br />

Bélgica, o esqueleto exumado nos arredores de Dusseldorf, o<br />

crânio <strong>da</strong> caver<strong>na</strong> de Êngis, o de Barreby, <strong>na</strong> Di<strong>na</strong>marca, o<br />

homem fóssil de Puy e de Natchez, no Mississipi, os restos<br />

humanos em Loes, indiciam <strong>na</strong>s varie<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s primitivas<br />

um estado de manifesta inferiori<strong>da</strong>de, aproximando-as singularmente<br />

dos selvagens contemporâneos e mesmo dos símios<br />

antropóides. Hoje ninguém contesta a existência do homem<br />

anterior ao período glaciário e desde o começo <strong>da</strong> época quaternária.<br />

O lugar arqueológico do homem concor<strong>da</strong> com os precedentes,<br />

a favor <strong>da</strong> teoria progressiva. Quem duvi<strong>da</strong>ria, hoje, <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> pedra e do bronze, pelas quais transitou a Humani<strong>da</strong>de antes<br />

que inventasse qualquer arte ou indústria, cujos vestígios se<br />

encontram por to<strong>da</strong> a parte? Que anciani<strong>da</strong>de poderíamos atribuir<br />

a esses períodos? A i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pedra, <strong>na</strong> Di<strong>na</strong>marca, coincidia<br />

com o período <strong>da</strong> primeira vegetação, seja a dos pinheiros <strong>da</strong><br />

Escócia, e, em parte, com a segun<strong>da</strong> vegetação – a do carvalho.<br />

A i<strong>da</strong>de do bronze desenrolou-se durante a época do carvalho,<br />

pois foi <strong>na</strong>s cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> turfa, onde abun<strong>da</strong> o carvalho, que se<br />

encontraram espa<strong>da</strong>s e escudos desse metal. Antes dele não<br />

havia faias. A i<strong>da</strong>de do ferro, menos pristi<strong>na</strong>, corresponde à


étula. Quanto tempo duraria a primeira i<strong>da</strong>de? Sendo o bronze<br />

um composto de mais ou menos nove partes de cobre e uma de<br />

estanho, o aparecimento dos primeiros utensílios denota uma<br />

indústria não já elementar. A fusão dos minerais, a decoração<br />

lenta dos objetos mol<strong>da</strong>dos, só poderiam ser consegui<strong>da</strong>s depois<br />

de longos tateamentos.<br />

A que época devemos atribuir as ci<strong>da</strong>des lacustres <strong>da</strong> Suíça e<br />

as quarenta mil estacas de Wangen? As escavações nos têm<br />

revelado vinte povoações no lago de Genebra, doze no de Neufchâtel,<br />

dez no de Bienne, contemporâneas <strong>da</strong>s i<strong>da</strong>des <strong>da</strong> pedra e<br />

do bronze.<br />

As <strong>da</strong> Irlan<strong>da</strong> (Crammoges) parecem provir <strong>da</strong> mesma época.<br />

Essas povoações castorea<strong>na</strong>s deviam oferecer alguma semelhança<br />

com as <strong>da</strong> Nova-Guiné, descritas por Dumont d’Urville. Os<br />

ossos encontrados por Lartet <strong>na</strong> caver<strong>na</strong> de Aurig<strong>na</strong>c são contemporâneos<br />

<strong>da</strong>s hie<strong>na</strong>s <strong>da</strong>s caver<strong>na</strong>s e do rinoceronte de <strong>na</strong>ri<strong>na</strong>s<br />

separa<strong>da</strong>s.<br />

Foi muito tempo depois que Tebas e Mênfis, capitais do alto<br />

e baixo Egito, atingiram o seu grande esplendor e que as quarenta<br />

pirâmides foram erigi<strong>da</strong>s, tipificando uma civilização lentamente<br />

desenvolvi<strong>da</strong>, com uma forma especial de culto, de cerimônias<br />

esplêndi<strong>da</strong>s, um singular estilo de arquitetura e inscrições,<br />

barragem de rios, etc. Essas glórias, entretanto, estavam<br />

desvaneci<strong>da</strong>s muito tempo antes de Homero. “Foi preciso – diz<br />

Lyell – para formação lenta e gradual de raças como a caucásica,<br />

a mongol ou a negra, um lapso de tempo bem mais longo que o<br />

possível de ser abrangido por qualquer sistema de cronologia<br />

popular.”<br />

Ao problema cronológico do aparecimento do homem <strong>na</strong> Terra,<br />

a Ciência <strong>na</strong><strong>da</strong> responde por enquanto. Demais, se o homem<br />

não apareceu espontaneamente, tal <strong>da</strong>ta não existe. Quanto aos<br />

vestígios de humani<strong>da</strong>de, ou do homem em si mesmo, as opiniões<br />

(pois que se não trata, no caso, senão de opiniões) são vagas<br />

quão variáveis. Um tijolo de carvão encontrado entre Assouan e<br />

Cairo, a uma profundi<strong>da</strong>de de 18 metros, contaria treze mil anos<br />

de existência, admitindo-se um aumento de 15 centímetros por<br />

século, no depósito de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais


aixa do prazo necessário a formar o delta do Mississipi é de<br />

cem mil anos.<br />

O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a 5<br />

metros de profundi<strong>da</strong>de e sob uma cama<strong>da</strong> de quatro florestas<br />

extintas, não contaria menos de cinqüenta mil anos, <strong>na</strong> opinião<br />

do Dr. Dower (é uma cifra exagera<strong>da</strong>, ao nosso ver). Agassiz<br />

calculou que a formação dos recifes de coral <strong>da</strong> Flóri<strong>da</strong> representa<br />

cento e trinta e cinco mil anos. Os sílex talhados e recolhidos<br />

em diversas regiões do globo, particularmente no vale do Somme,<br />

parece terem servido de armas a uma raça distancia<strong>da</strong> de<br />

cem séculos.<br />

A Arqueologia concor<strong>da</strong> com os historiadores e poetas <strong>da</strong> antigüi<strong>da</strong>de,<br />

quais Heródoto, Diodoro, Éschylo Vitrúvio, Xenóphontes,<br />

Plínio, no concernente ao primitivismo bárbaro <strong>da</strong><br />

raça huma<strong>na</strong> e à sua predileção pelas caver<strong>na</strong>s. Mas, esse estado<br />

nós o podemos considerar fora dos domínios históricos e a<br />

cronologia, que remonta à época já misteriosa <strong>da</strong>s grandes migrações<br />

aria<strong>na</strong>s, a mais de cem séculos pretéritos, mergulha em<br />

noite profun<strong>da</strong>, quando tenta son<strong>da</strong>r a nossa ver<strong>da</strong>deira origem.<br />

Tudo quanto podemos afirmar é que a Humani<strong>da</strong>de é muito<br />

mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus<br />

inferiores, antes que se elevasse à noção de justiça e de moral. Se<br />

nos fora permitido remontar a essas épocas, não poderíamos<br />

reconhecer a civilização <strong>da</strong> nossa era <strong>na</strong> caligem <strong>da</strong>s i<strong>da</strong>des<br />

bárbaras, quando a inteligência em seus primórdios esforçava<br />

por desprender-se <strong>da</strong>s possantes constrições <strong>da</strong> matéria.<br />

Preferimos confessar essa anciani<strong>da</strong>de e essa possível origem<br />

<strong>da</strong> nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e<br />

sem acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças<br />

religiosas a propósito de tudo, e mesmo sem propósito. Constatamos<br />

os fatos e a nossa ignorância, com sincera franqueza,<br />

persuadidos de que não se podendo antepor duas ver<strong>da</strong>des entre<br />

si, a Ciência <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> não pode afetar a causa do Ser supremo.<br />

Como diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza<br />

e a sabedoria do Universo pela duração e vantagem que <strong>da</strong>í<br />

lhes advêm; mas a história dos séculos transcorridos nos mostra


quão insignificante é o período do advento <strong>da</strong> existência huma<strong>na</strong>,<br />

em relação com a i<strong>da</strong>de do planeta.<br />

A Ciência não admite de bom grado a aparição miraculosa do<br />

primeiro casal humano. Diz Carlos Lyell que “se a fonte origi<strong>na</strong>l<br />

<strong>da</strong> espécie huma<strong>na</strong> tivesse sido realmente dota<strong>da</strong> de facul<strong>da</strong>des<br />

intelectuais superiores de <strong>na</strong>tureza perfectível, como a de sua<br />

posteri<strong>da</strong>de; se a Ciência lhe tivesse sido inspira<strong>da</strong>, o progresso<br />

atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No curso<br />

dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagináveis<br />

e os mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios<br />

que ora procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul,<br />

como <strong>na</strong> porção de leito do Mediterrâneo aflora<strong>da</strong> <strong>na</strong>s costas <strong>da</strong><br />

Sardenha, ao invés <strong>da</strong> mais grosseira cerâmica e dos sílex de<br />

feitura tão defeituosa e incompleta, que mal indiciam ao observador<br />

bisonho um esforço manual voluntário, encontraríamos<br />

esculturas superiores às obras-primas de Fídias e Praxiteles,<br />

caminhos de ferro e telégrafos nos quais os nossos engenheiros<br />

colheriam inestimáveis apontamentos; microscópios e telescópios<br />

aperfeiçoados como os não conhecemos <strong>na</strong> Europa e inúmeras<br />

provas, outras, de perfeição artística e científica, que o nosso<br />

século 19 ain<strong>da</strong> não logrou testemunhar. Em vão esgotaríamos a<br />

imagi<strong>na</strong>ção para adivinhar a utili<strong>da</strong>de de relíquias que tais.<br />

Talvez maqui<strong>na</strong>ria de locomoção aérea ou desti<strong>na</strong><strong>da</strong> a cálculos<br />

aritméticos, aparelhos desproporcio<strong>na</strong>dos às necessi<strong>da</strong>des e<br />

quiçá à concepção dos matemáticos vivos.”<br />

Esta explicação física <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s espécies não arrebata o<br />

cetro <strong>da</strong>s mãos do Gover<strong>na</strong>dor do mundo. Já assi<strong>na</strong>lamos acima<br />

a declaração de Darwin a favor do sentimento religioso e parecenos<br />

que, sobre as conseqüências imediatas de qualquer doutri<strong>na</strong>,<br />

devemos reportar-nos antes à opinião do mestre que à dos discípulos.<br />

Carlos Lyell emite os mesmos conceitos, citando a seguinte<br />

declaração do geólogo Asa Grei, em que este evidencia claramente<br />

que a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> variação e <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural não tende a<br />

destruir os alicerces <strong>da</strong> Teologia <strong>na</strong>tural e que a hipótese <strong>da</strong><br />

derivação <strong>da</strong>s espécies em <strong>na</strong><strong>da</strong> contraria qualquer dos sãos<br />

princípios <strong>da</strong> História Natural.


“Podemos imagi<strong>na</strong>r que os acontecimentos e em geral as operações<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> ocorrem, simplesmente, em virtude de forças<br />

comunica<strong>da</strong>s desde o início e sem qualquer ulterior intervenção,<br />

ou podemos admitir tenha havido, de tempos em tempos, e<br />

somente de tempos em tempos, uma intervenção <strong>da</strong> Divin<strong>da</strong>de. E<br />

podemos, enfim, supor ain<strong>da</strong> que to<strong>da</strong>s as mu<strong>da</strong>nças produzi<strong>da</strong>s<br />

resultem <strong>da</strong> ação metódica e constante, mas, infinitamente varia<strong>da</strong>,<br />

<strong>da</strong> causa inteligente e criadora.<br />

“Os que pretendem, de um modo absoluto, que a origem de<br />

um indivíduo, tanto quanto a de uma espécie ou de um gênero,<br />

não se possa explicar senão por ato direto de uma causa criadora,<br />

podem, sem renunciar à teoria favorita, admitir a teoria <strong>da</strong><br />

transmutação, que lhe não é incompatível. O conjunto e sucessão<br />

dos fenômenos <strong>na</strong>turais podem não ser mais do que a aplicação<br />

material de um plano preconcebido; e se essa sucessão de fatos<br />

pode explicar-se pela transmutação, a perpétua a<strong>da</strong>ptação do<br />

mundo orgânico a condições novas deixa, mais valioso que<br />

nunca, o argumento de um plano e, conseguintemente, de um<br />

arquiteto.”<br />

Parece-nos, com efeito, que o teimo <strong>na</strong><strong>da</strong> de maior tem a ganhar<br />

com esta hipótese do que com qualquer outra teoria <strong>na</strong>tural.<br />

Quanto à pecha de materialismo imputa<strong>da</strong> a to<strong>da</strong>s as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> teoria transformista, já vimos mais acima que a teoria<br />

<strong>da</strong> gravitação e grande número de outras descobertas foram<br />

averba<strong>da</strong>s de subversivas <strong>da</strong> Religião. Mas, onde iríamos parar<br />

se houvéssemos de ouvir os lamentos de todos os teologistas<br />

sobressaltados?<br />

Longe de possuir tendência materialista, esta hipótese <strong>da</strong> intermissão<br />

<strong>na</strong> Terra, em épocas geológicas sucessivas, primeiramente<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, depois <strong>da</strong> sensação, do instinto e <strong>da</strong> inteligência<br />

dos mamíferos superiores convizinhos <strong>da</strong> racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e, fi<strong>na</strong>lmente,<br />

<strong>da</strong> razão perfectível do próprio Homem, parece-nos, ao<br />

invés, o desdobramento de um plano grandioso, apresentandonos<br />

o quadro <strong>da</strong> predominância crescente do espírito sobre a<br />

matéria.


Temos sido assaz prolixos no encarar as relações do homem<br />

com os animais que o precederam, sem embargo <strong>da</strong> névoa de<br />

mistério que ain<strong>da</strong> as envolve. É que acreditamos, com Pascal,<br />

essas comparações sempre têm algum valor.<br />

“É perigoso – dizia o autor de Pensamento – demonstrar ao<br />

homem o quanto ele se iguala aos animais, sem lhe mostrar ao<br />

mesmo tempo a sua grandeza. Perigoso, também, mostrar-lhe a<br />

sua grandeza, sem lhe fazer sentir sua baixeza. Mais perigoso,<br />

ain<strong>da</strong>, é deixá-lo <strong>na</strong> ignorância de ambas.”<br />

Ain<strong>da</strong> que o problema <strong>da</strong> antigüi<strong>da</strong>de e origem <strong>da</strong> espécie<br />

huma<strong>na</strong> varie para o geólogo, para o arqueólogo e para o etnólogo,<br />

nem por isso deixa de averiguar-se que a Humani<strong>da</strong>de procede<br />

de época muito mais remota do que se pudera crer. Ain<strong>da</strong> que<br />

esse mesmo problema se definisse divergente para a Zoologia ou<br />

para a Teologia, não é menos provável, tampouco, que os nossos<br />

antepassados foram inferiores a nós e que o progresso se manifestou<br />

<strong>na</strong> Humani<strong>da</strong>de tal como <strong>na</strong> escala de to<strong>da</strong> a Criação.<br />

Perguntamos, então, aos espíritos de boa fé: – em que, a crença<br />

<strong>na</strong> anciani<strong>da</strong>de do homem, e mesmo <strong>na</strong> sua origem simiesca,<br />

colide com a crença num absoluto? Que a vi<strong>da</strong> tenha surgido <strong>na</strong><br />

Terra, que se tenha desenvolvido mediante leis orgânicas e que,<br />

do vegetal ao homem, a criação antidiluvia<strong>na</strong> não tenha formado<br />

senão uma uni<strong>da</strong>de, em que pode esta hipótese destruir a ação<br />

divi<strong>na</strong>? Aqui, como no que precede, a matéria não obedeceu às<br />

suas forças? E a vi<strong>da</strong> dos seres não é uma força especial, regente<br />

de átomos, diretora de todos os movimentos? Particularmente, <strong>na</strong><br />

teoria <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural, não é a força vital que dirige a marcha<br />

do mundo? Aqui, como por to<strong>da</strong> a parte, a matéria não é a escrava<br />

e a força a sobera<strong>na</strong>?<br />

Mesmo admitindo-se a mais alta influência dos meios <strong>na</strong><br />

transformação dos órgãos, essa transformação não será, sempre,<br />

o efeito <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e vi<strong>da</strong> regi<strong>da</strong> pela inteligência e dota<strong>da</strong> de uma<br />

espécie de obediência ativa à lei intelectual do progresso?<br />

Abor<strong>da</strong>ndo a tese <strong>da</strong> apropriação dos órgãos às funções que<br />

lhes incumbe executar, bem como <strong>da</strong> construção homogênea de<br />

ca<strong>da</strong> espécie, dos dentes aos pés, segundo o seu papel no cenário


do mundo, entramos nos domínios <strong>da</strong> desti<strong>na</strong>ção dos seres e <strong>da</strong>s<br />

coisas. Nosso 4º livro objetivará este vasto problema.<br />

Assim, em resumo, vimos de demonstrar que, seja do ponto<br />

de vista <strong>da</strong> circulação <strong>na</strong> matéria dos seres vivos, seja no <strong>da</strong><br />

origem e <strong>da</strong> perpetui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, esta se constitui de uma Força<br />

única e central para ca<strong>da</strong> ser, que dispõe a matéria organizável<br />

segundo um plano, do qual o indivíduo deve ser a expressão<br />

física. Nesta segun<strong>da</strong>, como <strong>na</strong> primeira parte, temos refutado<br />

todos os pontos dos nossos adversários. Eles não mais sustentam<br />

a sua hipótese materialista e, com os seus exageros mais temerários,<br />

antes auxiliam a nossa tese, pois conceituando a matéria<br />

capaz de tudo fazer, mal se precatam que ape<strong>na</strong>s substituem a<br />

idéia <strong>da</strong> força. Esperamos que esses inconseqüentes negadores<br />

fiquem agora mais satisfeitos com este capítulo. E antes de<br />

passar ao seguinte, pedimos-lhes notar, para edificação de sua<br />

vai<strong>da</strong>dezinha, que os gregos e o próprio Arístoto lhes marchara à<br />

frente, visto que para eles as radicais força e vi<strong>da</strong> eram sinônimos.<br />

O filósofo de Stagira já houvera sustentado que – “a alma é<br />

a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivo”.<br />

Não vale a pe<strong>na</strong> fazer tão grande alarde de ciência, para ficar<br />

abaixo dos Gregos.


Terceira Parte<br />

A Alma<br />

1 - O Cérebro<br />

SUMÁRIO – Erro dos psicólogos e metafísicos que desdenham os<br />

trabalhos <strong>da</strong> Fisiologia. – Fisiologia anátomo-cerebral. – Relações<br />

do cérebro com o pensamento. – Tais relações não provam<br />

seja o pensamento um atributo <strong>da</strong> substância cerebral. – Discussão<br />

e provas contrárias. – O espírito gover<strong>na</strong> o corpo. – Errônea<br />

a comparação do pensamento a uma secreção ou combi<strong>na</strong>ção<br />

química. – Algumas definições ingênuas dos materialistas. – Absurdi<strong>da</strong>de<br />

de sua hipótese e respectivas conseqüências.<br />

Há muito tempo que o geólogo Agassiz emitiu este conceito,<br />

freqüentemente justificado: To<strong>da</strong>s as vezes que um fato novo se<br />

revela no campo <strong>da</strong> Ciência, logo o averbam de apócrifo; depois,<br />

que é contrário à Religião; e, por fim, que há muito era sabido.<br />

Efetivamente, a ver<strong>da</strong>de tem duas espécies de adversários: os<br />

cépticos do materialismo, e os cépticos do dogma.<br />

Se, com razão, nos admiramos de ver os fisiologistas, adoradores<br />

<strong>da</strong> matéria, ousa<strong>da</strong>mente proclamarem com entonos de<br />

autori<strong>da</strong>de e certeza que o homem, bem como o parque integral<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> planetária, não passam de produtos <strong>da</strong> matéria cega, com<br />

mais razão devemos estranhar ain<strong>da</strong> exista, em nossos tempos,<br />

espíritos cultos, e mesmo célebres, que se deixem ficar completamente<br />

fora do movimento <strong>da</strong>s ciências físico-químicas, a ponto<br />

de fazerem as objeções mais ba<strong>na</strong>is ao que essas ciências apresentam<br />

ao idealismo, sem se precatarem <strong>da</strong>s modificações necessárias<br />

e deriva<strong>da</strong>s desse movimento em to<strong>da</strong>s as concepções do<br />

pensamento humano.<br />

Assim, temos ain<strong>da</strong> hoje sábios, filósofos, teólogos, metafísicos<br />

e pensadores, cujos nomes poderíamos aqui alinhar se houvesse<br />

oportuni<strong>da</strong>de, que nos falam de <strong>Deus</strong>, <strong>da</strong> Providência, <strong>da</strong><br />

prece, <strong>da</strong> alma, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> futura e presente, <strong>da</strong>s relações <strong>da</strong> Divin<strong>da</strong>de<br />

com o mundo, <strong>da</strong>s causas fi<strong>na</strong>is, <strong>da</strong> marcha dos aconteci-


mentos, <strong>da</strong> independência do espírito, <strong>da</strong>s fórmulas de culto, <strong>da</strong>s<br />

enti<strong>da</strong>des espirituais, etc., no mesmo sentido e nos mesmos<br />

termos <strong>da</strong> escolástica do século 16. Os palradores anquilosados<br />

desta espécie são ain<strong>da</strong> mais curiosos e inexplicáveis do que os<br />

precedentes. Em os ouvindo afirmar, em tom magistral, as proposições<br />

mais contestáveis; em lhes observando a ignorância <strong>da</strong>s<br />

rudes dificul<strong>da</strong>des que espíritos mais clarividentes tão penosamente<br />

venceram; em defrontá-los <strong>na</strong> sua verve inesgotável e <strong>na</strong><br />

calma ingênua com que asseguram a inexpug<strong>na</strong>bili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas<br />

pretensas ver<strong>da</strong>des; – dir-se-ia estarem eles ver<strong>da</strong>deiramente<br />

adormecidos nesse ano memorável em que Copérnico, já moribundo,<br />

recebia o primeiro exemplar do seu De Revolutionibus –<br />

para só acor<strong>da</strong>rem hoje, <strong>na</strong> inconsciência <strong>da</strong>s revoluções opera<strong>da</strong>s.<br />

Sendo numerosos, ai de nós! esses espíritos, e porque ain<strong>da</strong><br />

lhes gravite em torno um número considerável de partidários, é<br />

bom <strong>da</strong>r a todos uma idéia dos fatos que lhes deveriam interessar,<br />

mostrando-lhes não ser a eles que incumbe guar<strong>da</strong>r o depósito<br />

crescente do tesouro humano, uma vez que persistem adormecidos<br />

no seu triste letargo.<br />

Todos os que descrevem, minudentes, a <strong>na</strong>tureza e as funções<br />

<strong>da</strong> alma; que explicam perfeitamente em que momento e por<br />

qual meio ela se incorpora no ventre materno e a porta por onde<br />

se escapa com o derradeiro suspiro; que contam como comparece<br />

ela perante <strong>Deus</strong> e recebe, no outro mundo, o prêmio ou castigo<br />

temporário ou eterno de seus atos neste mundo; que evidenciam<br />

o processo de comunicação com o Criador; que a estimam completamente<br />

independente do organismo e regendo a matéria<br />

mediante idéias i<strong>na</strong>tas, que traz consigo ao encar<strong>na</strong>r, e que pode<br />

domi<strong>na</strong>r essa matéria como coisa estranha, perseguindo o corpo<br />

com o recusar-lhe em jejuns, macerações e abstinências, a satisfação<br />

<strong>da</strong>s próprias necessi<strong>da</strong>des; que expõem minuciosamente a<br />

história <strong>da</strong> alma, puro espírito baixado à Terra como a um vale<br />

de provações; – numa palavra, enfim, todos quantos, em qualquer<br />

religião, em qualquer escola, em qualquer país gastam a sua<br />

eloqüência e o seu tempo a propor soluções que <strong>na</strong><strong>da</strong> resolvem e<br />

símbolos que <strong>na</strong><strong>da</strong> significam 45 ; – esses, repito, devem ser convi<strong>da</strong>dos<br />

a meditar as observações de ano em ano carrea<strong>da</strong>s pelo


progresso <strong>da</strong>s ciências positivas. E, como essas observações<br />

constituem precisamente a base <strong>da</strong>s conclusões materialistas,<br />

temos o duplo dever de as expor prelimi<strong>na</strong>rmente, a fim de julgar<br />

depois se as conclusões foram legitimamente concluí<strong>da</strong>s.<br />

Em regra, os homens que encaram com desdém e displicência<br />

quaisquer questões são os que pretendem opi<strong>na</strong>r com maior<br />

segurança, e isto simplesmente porque não as tendo profun<strong>da</strong>do,<br />

são incapazes de avaliar as dificul<strong>da</strong>des que elas apresentam aos<br />

pesquisadores. Ain<strong>da</strong> hoje, temos metafísicos que cerram os<br />

olhos para melhor se verem a si mesmos, e sem noção alguma de<br />

método experimental. Esses, pois, que vêm repetindo há 50 anos,<br />

sem se precatarem <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> proposição, que a alma é<br />

um ser encar<strong>na</strong>do no corpo e independente desse corpo, terão<br />

muito o que meditar <strong>na</strong> seqüência dos fatos que vamos desenvolver.<br />

Seja qual for a opinião a respeito <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza do espírito, não<br />

há duvi<strong>da</strong>r de que o cérebro não seja o órgão <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des<br />

intelectuais. Examinemos-lhe a estrutura. Esta, diz Carl Vogt 46 , é<br />

extremamente complica<strong>da</strong>. Não há no corpo humano nenhum<br />

órgão que, com um número proporcio<strong>na</strong>lmente tão diminuto de<br />

elementos a<strong>na</strong>tômicos a lhe constituírem a substância, possua<br />

tamanha quanti<strong>da</strong>de de partes diferentemente conforma<strong>da</strong>s e<br />

provando, à evidência, por sua forma exterior e estrutura inter<strong>na</strong>,<br />

sua posição e relações mútuas, que elas presidem a funções<br />

especiais, que ain<strong>da</strong> não foi possível fixar.<br />

Quanto às partes elementares, componentes <strong>da</strong> substância cerebral<br />

do homem e dos animais, formam elas dois grupos principais:<br />

– uma substância cinzenta, mais ou menos escura, ou<br />

amarela<strong>da</strong>, que oferece a olho nu uma aparência bastante homogênea,<br />

e uma substância branca <strong>na</strong> qual podemos distinguir<br />

feixes mais ou menos aparentes, projetando-se em direções<br />

determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s. A substância par<strong>da</strong> forma, certamente, o núcleo<br />

principal <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de nervosa, e a branca, ao contrário, parece<br />

ser a parte condutora.<br />

Se cogitarmos de conceber as relações <strong>da</strong> estrutura cerebral<br />

com o desenvolvimento intelectual, é, sobretudo, <strong>na</strong> substância


par<strong>da</strong> e nos pontos em grande parte formados por ela, que importa<br />

atentar, de preferência.<br />

O cérebro divide-se em dois hemisférios laterais por um sulco<br />

profundo, que segue sua linha media<strong>na</strong> e <strong>na</strong> qual se intermite<br />

uma dobra <strong>da</strong> dura-máter, chamado foice do cérebro. Uma<br />

segun<strong>da</strong> prega dessa membra<strong>na</strong>, ten<strong>da</strong> do cerebelo, estende-se<br />

horizontalmente <strong>na</strong> região posterior do crânio e separa o cerebelo<br />

dos lobos posteriores do cérebro, servindo-lhe de suporte.<br />

O cérebro propriamente dito forma, assim, um todo completo,<br />

que, conforme o comprovam o desenvolvimento embriológico e<br />

a a<strong>na</strong>tomia compara<strong>da</strong>, avoluma-se e acaba comprimindo e<br />

avassalando as demais partes. Esse aumento de volume, nos<br />

animais, corresponde à sua elevação <strong>na</strong> escala, com acentua<strong>da</strong><br />

tendência para o tipo do cérebro humano.<br />

Exami<strong>na</strong>ndo por cima, ca<strong>da</strong> hemisfério parece formar uma<br />

massa distinta, apresentando à superfície uma porção de sulcos<br />

de contorno, permeando cordões intestiniformes, ou circunvoluções.<br />

Comumente, os dois hemisférios são semelhantes e se<br />

dividem em três segmentos sucessivos, de diante para trás: – os<br />

lobos frontal, parietal e occipital.<br />

Visto de lado, haveria que juntar o lobo inferior temporal e,<br />

além deste, um pequeno lobo oculto, chamado ilha, ou lobo<br />

central.<br />

Os a<strong>na</strong>tomistas antigos pouca atenção ligaram às circunvoluções,<br />

ain<strong>da</strong> porque, tar<strong>da</strong>ram em reconhecer que os dois hemisférios<br />

não são inteiramente simétricos. Assim, consideravam<br />

fortuita a distribuição <strong>da</strong>s ditas circunvoluções, ou, conforme diz<br />

um observador, como um punhado de intestinos lançados ao<br />

acaso, de sorte que os desenhistas costumavam fantasiá-los<br />

assim <strong>na</strong>s suas estampas a<strong>na</strong>tômicas.<br />

As observações mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>s destes últimos tempos ensi<strong>na</strong>ram-nos,<br />

entretanto, que essa bela desordem é um efeito<br />

artístico <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e que existe um plano definido, uma certa<br />

lei que então não fora nota<strong>da</strong>, de vez que as investigações se<br />

haviam limitado quase exclusivamente ao homem.


Dá-se com os <strong>na</strong>turalistas o mesmo que com os homens pouco<br />

versados em Arquitetura, os quais, no meio <strong>da</strong> profusão de<br />

elementos que sobrecarregam um estilo, não podem decifrar o<br />

plano fun<strong>da</strong>mental.<br />

Segundo as últimas investigações, estas circunvoluções cerebrais<br />

teriam capital importância e delas trataremos antes de nos<br />

ocuparmos com as relações de peso e volume.<br />

Na opinião de Gratiolet, essa conformação cerebral é peculiar<br />

ao macaco e ao homem, e existe ao mesmo tempo <strong>na</strong>s túnicas<br />

cerebrais, quando surgem, uma ordem geral, uma disposição<br />

típica e comum às duas espécies.<br />

“Essa uniformi<strong>da</strong>de <strong>na</strong> disposição <strong>da</strong>s pregas cerebrais, no<br />

homem e nos símios, diz esse fisiologista, merece a mais acura<strong>da</strong><br />

atenção dos filósofos. Há também um tipo particular de pregas<br />

nos makis, nos ursos, felinos, caninos, etc.; enfim, para to<strong>da</strong>s as<br />

famílias animais. Ca<strong>da</strong> qual tem suas características, sua norma,<br />

e em ca<strong>da</strong> grupo podemos facilmente reunir as espécies pela só<br />

confrontação <strong>da</strong>s túnicas cerebrais”. 47<br />

Parece que o pensamento é proporcio<strong>na</strong>l ao número e à irregulari<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s circunvoluções. O homem, o orangotango e o<br />

chimpanzé têm circunvoluções no lobo médio, ao passo que <strong>na</strong>s<br />

outras espécies de macacos e nos outros animais esse lobo é<br />

absolutamente liso.<br />

A figura desses sulcos e dos que descrevem meandros irregulares<br />

nos outros lobos é tanto mais irregular, quanto mais caracterizado<br />

o pensamento. Os animais gregários como a foca, os<br />

elefantes, cavalos, re<strong>na</strong>s, carneiros, golfinhos, apresentam um<br />

desenho menos regular que o dos outros animais. Deste ponto de<br />

vista, o que sobretudo distingue o cérebro humano do simiesco é<br />

que, entre as circunvoluções que se dirigem do lobo occipital<br />

para o temporal, duas há, no homem, que não se encontram no<br />

macaco, sendo este um dos maiores contrastes que separam os<br />

dois cérebros 48 .<br />

Nas espécies animais e <strong>na</strong> huma<strong>na</strong>, a superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> inteligência<br />

parece tanto mais eleva<strong>da</strong> quanto mais sinuosas sejam as<br />

anfratuosi<strong>da</strong>des do cérebro, mais profundos os sulcos e mais


numerosas as impressões e ramificações, a assimetria e irregulari<strong>da</strong>de.<br />

As estrias, muito visíveis no cérebro do adulto, não se<br />

evidenciam no <strong>da</strong> criança. O cérebro de Beethoven apresentava<br />

anfratuosi<strong>da</strong>des duplamente mais profun<strong>da</strong>s que os cérebros<br />

comuns 49 .<br />

Poderão alguns a<strong>na</strong>tomistas responder que grandes animais<br />

muito broncos, tais como o asno, o carneiro, o boi, apresentam<br />

maior número de circunvoluções que animais de maior inteligência<br />

quais o cão, o castor, o gato. Mas, é preciso não esquecer os<br />

matemáticos e considerar que os volumes são, entre eles, como<br />

os cubos dos diâmetros; ao passo que as superfícies são como os<br />

quadrados entre si. O volume do corpo que aumenta, cresce mais<br />

rapi<strong>da</strong>mente que a sua superfície. Baseemo-nos num exemplo:<br />

uma esfera, com 2 metros de diâmetro, mede 12,566m de superfície<br />

e 4,188m de volume; uma esfera de 3 metros, de diâmetro<br />

mede 28,275m de superfície e 14, 113m de volume (4 terços de<br />

NR 3 sobe mais rapi<strong>da</strong>mente que 4 NR 2 ).<br />

O volume do cérebro do tigre está para o seu corpo <strong>na</strong> mesma<br />

razão que o do gato; mas a superfície é proporcio<strong>na</strong>lmente menor<br />

e, para atingir um igual desenvolvimento, é preciso que ela se<br />

retraia e se enrole.<br />

Estas circunvoluções têm, sem dúvi<strong>da</strong>, a sua importância,<br />

mas era <strong>na</strong>tural se imagi<strong>na</strong>sse que o peso comparativo do cérebro<br />

<strong>da</strong>s diferentes espécies deve ter não menor importância e que as<br />

suas variantes <strong>na</strong> espécie huma<strong>na</strong> devem ser toma<strong>da</strong>s em consideração.<br />

De fato, parece que os seus efeitos estejam em proporção com<br />

a massa. Assim é que, <strong>na</strong> criança e no velho, ele é menor que no<br />

homem maduro. A alma <strong>da</strong> criança como que se desenvolve, à<br />

medi<strong>da</strong> que aumenta a substância cerebral.<br />

O peso normal de um cérebro humano é de três a três meia<br />

libras 50 .<br />

O peso do cérebro dos cretinos desce, por vezes, a uma libra<br />

(453 gramas).<br />

O de Cuvier pesava mais de 4 libras.


O tamanho, a forma, o arranjo <strong>da</strong> composição do cérebro, são<br />

também invocados pelos a<strong>na</strong>tomistas como correlatos à inteligência<br />

51 . A A<strong>na</strong>tomia compara<strong>da</strong> mostra-nos, em to<strong>da</strong> a escala<br />

animal, inclusive o homem, que a energia <strong>da</strong> inteligência está em<br />

relação constante e ascendente com a constituição material e o<br />

tamanho do cérebro. Os acéfalos são os que ocupam o primeiro<br />

grau <strong>da</strong> escala. O homem, supõe-se, tem o maior cérebro real,<br />

pois, ain<strong>da</strong> que o de alguns animais, no conjunto, sejam mais<br />

volumosos, o humano é o mais considerável <strong>na</strong>s partes que<br />

dizem com as funções do pensamento. O resultado geral <strong>da</strong>s<br />

operações a<strong>na</strong>tômicas demonstra que a diminuição do cérebro<br />

animal aumenta à proporção que baixa a escala zoológica, e que<br />

os animais dos primeiros degraus, como sejam os anfíbios e os<br />

peixes, são os de menor cérebro.<br />

Esses fatos gerais não deixam de ter exceção, como veremos<br />

<strong>da</strong>qui a pouco, mas cumpre-nos expô-los conscienciosamente,<br />

antes de os discutir ou explicar.<br />

A convicção <strong>da</strong> grande importância que tem a conformação<br />

cerebral, nos mamíferos, chegou a ensejar a proposta de uma<br />

nova classificação basea<strong>da</strong> nessa conformação. A nós nos parece,<br />

contudo, que não é tanto no peso absoluto do cérebro, como<br />

<strong>na</strong> sua relativi<strong>da</strong>de com o peso do corpo, que devemos atentar.<br />

Seja o cérebro do elefante ou do hipopótamo mais pesado que<br />

o de qualquer rapariga, não há nisso nenhum caráter distintivo,<br />

favorável aos primeiros. É mais razoável considerar as relações,<br />

sem chegar a concluir <strong>da</strong>í que o cérebro de um magro pensaria<br />

melhor que o de um gordo. Sob este aspecto, os macacos e as<br />

aves ocupam a primeira linha. O cérebro do asno não pesa mais<br />

que 250 partes do corpo; ao passo que o do rato dos campos<br />

corresponde a trinta e uma partes, o que levava o espirituoso<br />

Andrieu a dizer que os ratos tinham um focinho muito espiritual.<br />

Como circunvoluções, peso absoluto, peso relativo, deixassem<br />

grandes incertezas sobre as relações do cérebro com o<br />

pensamento, supuseram que a superiori<strong>da</strong>de do ser estaria em<br />

relação com a quanti<strong>da</strong>de de gordura conti<strong>da</strong> no cérebro. O<br />

homem tem no cérebro mais gordura que os mamíferos, e estes<br />

mais que as aves.


A massa cerebral do bovino não atinge a 1/6 <strong>da</strong> do homem 52 .<br />

O que caracteriza o cérebro do feto, durante a gestação, é o<br />

fato de não conter quase gordura, sobretudo fosfora<strong>da</strong>. Nos<br />

recém-<strong>na</strong>scidos a gordura já se encontra assaz aumenta<strong>da</strong> e, <strong>da</strong>í<br />

por diante, avulta rapi<strong>da</strong>mente com a i<strong>da</strong>de. A distinção racial<br />

não se nota no cérebro <strong>da</strong> criança, branca ou preta. São crânios<br />

que apresentam as maiores semelhanças.<br />

Balzac (Investigação do Absoluto) já tivera a idéia de considerar<br />

o fósforo como o elemento mais importante do intelecto.<br />

Fuerbach, ampliando a importância deste corpo e referindo-se a<br />

um trabalho de Couerbe, que lhe atribuía grande influência no<br />

sistema nervoso, o deu como origem do espírito. Huart imagi<strong>na</strong><br />

que essa substância incendeia-se e alumia, com o fogo do cérebro,<br />

como se dá com um lampião. Mais de espaço, veremos a<br />

que extremos de exagero chegou Moleschott. Quanto à atuali<strong>da</strong>de,<br />

terminemos a observação especial do cérebro com algumas<br />

comparações particulares, dig<strong>na</strong>s de interesse para nossa raça.<br />

Em muitas espécies, os crânios masculinos se diferençam tanto<br />

que poderiam induzir-nos a classificá-los como de espécies<br />

diferentes. Na espécie huma<strong>na</strong>, a diferença é igualmente notória.<br />

Assim é que o crânio feminino é menor, tanto <strong>na</strong> circunferência<br />

horizontal como <strong>na</strong> capaci<strong>da</strong>de inter<strong>na</strong>. O cérebro de menor<br />

peso, <strong>da</strong> mulher, aproxima-se do infantil. O outro fato notável é<br />

que a dispari<strong>da</strong>de rei<strong>na</strong>nte entre os dois sexos, relativamente à<br />

capaci<strong>da</strong>de crania<strong>na</strong>, aumenta com o aperfeiçoamento <strong>da</strong> raça, de<br />

sorte que o europeu se distancia <strong>da</strong> européia, mais que o negro<br />

<strong>da</strong> sua companheira. Carl Vogt comenta essas experiências de<br />

Welcker e adverte que é mais fácil mu<strong>da</strong>r uma forma de governo<br />

do que a panela tradicio<strong>na</strong>l.<br />

O cérebro <strong>da</strong> mulher pesa, em média, duas onças menos que o<br />

do homem 53 . Arístoto há muito o previra e a Ciência experimental<br />

verificou que o belo sexo tem um cérebro mais leve do que o<br />

nosso! Talvez convenha acrescentar que as medi<strong>da</strong>s não foram<br />

toma<strong>da</strong>s pelas mulheres 54 .<br />

Acrescentaremos, também, que a estatura e o peso médio <strong>da</strong><br />

mulher, sendo inferiores aos do homem, conviria levar em conta


essa diferença, vantajosa para ela, mulher. Mas, <strong>na</strong><strong>da</strong> obstante, as<br />

senhoras se nos avantajam tanto, pelos dotes de coração, que lhes<br />

não custará ceder-nos a fria superiori<strong>da</strong>de do entendimento.<br />

Outra distinção se patenteia, igualmente, no tamanho do lobo<br />

frontal: a circunferência do crânio é, em média, de 546 milímetros<br />

para as inteligências vulgares, de 544 para os imbecis, em<br />

geral, e de 541 para os do primeiro grau. Estas medi<strong>da</strong>s estão,<br />

porém, longe de significar alguma coisa. Uma característica<br />

a<strong>na</strong>tômica mais geral consiste em que o cérebro recobre o cerebelo<br />

tanto mais completamente quanto mais elevado seja o<br />

animal <strong>na</strong> escala zoológica. Já nos macacos se encontra um<br />

bordo estreito que ultrapassa, atrás e em baixo, os hemisférios<br />

cerebrais. Nos outros animais ele estende-se ain<strong>da</strong>, mais a mais.<br />

A mesma observação pode ser feita do ponto de vista embriológico.<br />

No feto o cerebelo não é recoberto pelo cérebro, senão<br />

depois do sétimo mês 55 .<br />

Longe estamos de negar a existência de uma relação constante,<br />

que parece ligar a inteligência à estrutura do cérebro. As<br />

cabeças de Vesale, Shakespeare, Hegel, Gothe, são exemplos de<br />

superiori<strong>da</strong>de manifesta<strong>da</strong> pelo desenvolvimento do lobo frontal.<br />

Queremos mesmo crer que algumas exceções sejam devi<strong>da</strong>s ao<br />

fato de, nem sempre, o desenvolvimento aparente do cérebro<br />

corresponder ao seu peso, e que, em <strong>da</strong>dos casos de idiotia, a<br />

água substitui a substância cerebral. Em geral, não é por uma<br />

característica particular que se manifesta a superiori<strong>da</strong>de intelectual,<br />

e sim pelo conjunto de to<strong>da</strong>s as suas partes. Enfim, podemos<br />

admitir, com alguns a<strong>na</strong>tomistas, que o peso do cérebro<br />

aumenta até os vinte e cinco anos e se mantém imutável até aos<br />

cinqüenta, para de novo decrescer consideravelmente <strong>na</strong> senectude.<br />

O cérebro é insensível, absolutamente, e só os pedúnculos cerebrais<br />

e as cama<strong>da</strong>s óticas parece não o serem. Nos profundos<br />

ferimentos <strong>da</strong> cabeça, que ape<strong>na</strong>s interessam este órgão, poderemos<br />

tocar-lhe a superfície e mesmo extrair pe<strong>da</strong>ços, sem que o<br />

paciente experimente qualquer dor. Em compensação, as experiências<br />

feitas neste sentido com as aves, demonstraram que o<br />

cérebro é, evidentemente, a sede única <strong>da</strong> inteligência. Pássaros e


pombos, alimentados artificialmente, puderam sobreviver um<br />

ano à respectiva ablação do cérebro. O resultado é que o animal,<br />

assim privado do cérebro, permanece mergulhado em sono<br />

profundo, <strong>na</strong><strong>da</strong> vê, <strong>na</strong><strong>da</strong> ouve, tendo embora olhos e ouvidos.<br />

Os movimentos conservam-se e combi<strong>na</strong>m-se, ain<strong>da</strong>, dentro<br />

de certos limites; o animal sente a dor e faz movimentos por<br />

evitá-la, mas tor<strong>na</strong>-se estúpido e como num estado de sonho, que<br />

exclui a consciência; é um autômato que poderá viver desde que<br />

o alimentem por processos mecânicos quaisquer, mas que morrerá<br />

de fome com a boca no alimento, visto lhe ser interdito combi<strong>na</strong>r<br />

a imagem do alimento e a necessi<strong>da</strong>de de o tomar, com os<br />

movimentos necessários a esse fim. Em se extraindo, cama<strong>da</strong> a<br />

cama<strong>da</strong>, os dois hemisférios cerebrais, ver-se-á que a ativi<strong>da</strong>de<br />

intelectual diminui <strong>na</strong> razão do volume <strong>da</strong> massa retira<strong>da</strong>. Atingindo<br />

os ventríloquos, dá-se a per<strong>da</strong> do conhecimento. A significação<br />

e formação dos tecidos são ain<strong>da</strong> possíveis, mas o animal<br />

fica inteiramente i<strong>na</strong>cessível às impressões do mundo exterior. A<br />

consciência desapareceu sem deixar traço. Vemos, assim, que,<br />

com a retira<strong>da</strong> sucessiva, e por cama<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>s partes superiores do<br />

cérebro, as facul<strong>da</strong>des diminuíram pouco a pouco. Galinhas<br />

assim opera<strong>da</strong>s continuaram com vi<strong>da</strong> vegetativa. A diminuição<br />

progressiva <strong>da</strong> inteligência integral e proporcio<strong>na</strong><strong>da</strong> às ablações,<br />

antes que de uma que outra facul<strong>da</strong>de, faz prova negativa <strong>da</strong><br />

teoria <strong>da</strong>s localizações; mas, perguntamos: – poder-se-á aplicar<br />

ao homem o fato observado com o intelecto de uma galinha? Eis<br />

o que nos parece duvidoso. Diante destas experiências de Flourens,<br />

de Valentim e fisiologistas outros, Büchner exclama:<br />

“Poder-se-á exigir prova mais brilhante para demonstrar a conexi<strong>da</strong>de<br />

absoluta <strong>da</strong> alma e do cérebro, do que a forneci<strong>da</strong> pelo<br />

escalpelo demonstrando a alma peça por peça?”<br />

Uma alteração no cérebro acarreta uma alteração correspondente<br />

no pensamento. As enfermi<strong>da</strong>des mentais assi<strong>na</strong>lam-se por<br />

umas tantas lesões. Em trezentos e dezoito dissecações de alie<strong>na</strong>dos,<br />

ape<strong>na</strong>s trinta e duas deixaram de patentear alterações<br />

patológicas do cérebro e <strong>da</strong>s membra<strong>na</strong>s, e cinco somente não<br />

apresentavam anomalia qualquer. (Romain Fischer.)


Lesões cerebrais há que produzem, por vezes, efeitos espirituais<br />

surpreendentes. Assim, contam os a<strong>na</strong>is <strong>da</strong> Fisiologia que<br />

no hospital de São Tomás, Londres, um homem gravemente<br />

ferido <strong>na</strong> cabeça entrou a falar, depois de curado, um idioma<br />

absolutamente esquecido durante a sua permanência de trinta<br />

anos <strong>na</strong>quela ci<strong>da</strong>de. Uma degenerescência de ambos os hemisférios<br />

produz sonolência, debili<strong>da</strong>de mental e mesmo idiotia<br />

completa. A superabundância de líquido raquidiano origi<strong>na</strong> a<br />

debili<strong>da</strong>de mental e o estupor. A ruptura de um vaso sanguíneo<br />

do cérebro causa o estado patológico chamado apoplexia. To<strong>da</strong><br />

gente sabe que a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> consciência é uma conseqüência dessa<br />

alteração mórbi<strong>da</strong>. A inflamação do cérebro causa<strong>da</strong> pela replecção<br />

dos vasos sanguíneos e uma excessiva exsu<strong>da</strong>ção plástica,<br />

desfecham a febre cerebral e o delírio. Quando os batimentos do<br />

coração fraquejam, a ponto de ocasio<strong>na</strong>r uma síncope, o sangue<br />

aflui escassamente ao cérebro. Também a per<strong>da</strong> dos sentidos<br />

acompanha uma síncope. O cérebro dos decapitados morre<br />

célere, em conseqüência <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de sangue. Sendo o oxigênio<br />

condição indispensável ao renovamento do sangue, em lhe<br />

faltando este, o encéfalo é o primeiro a se ressentir e sobrevêm,<br />

então, as cefalalgias, as vertigens, as aluci<strong>na</strong>ções.<br />

O chá influi no discernimento, o café estimula a potência artística<br />

do cérebro e o álcool acarreta a embriaguez com as suas<br />

conseqüências 56 .<br />

To<strong>da</strong>s as impressões recebi<strong>da</strong>s pelos ouvidos e pelos olhos<br />

são influências materiais, transmiti<strong>da</strong>s ao cérebro pelo sistema<br />

nervoso, provocando modificações materiais correspondentes.<br />

Uma pessoa que nos infunde simpatia, mu<strong>da</strong>-nos o curso <strong>da</strong>s<br />

idéias. Quando um pobre habitante dos vales paludosos escala os<br />

Alpes, fica deslumbrado com as suas novas impressões. A música<br />

convi<strong>da</strong> ao sonho; a baunilha, os ovos, o vinho quente, exaltam<br />

os desejos; um céu luminoso nos alegra, um céu sombrio nos<br />

entristece. Desde o momento em que somos engendrados, entramos<br />

num oceano de matéria em circulação. O que somos, devemo-lo<br />

em parte aos nossos avós, à nossa alimentação, ao nosso<br />

país, à nossa educação, ao ar, ao tempo, ao som, à luz, ao nosso<br />

regime, às nossas vestes 57 .


Tais os fatos positivos, constatados pelas ciências fisiológicas<br />

e invocados pela escola materialista, ao declarar que as facul<strong>da</strong>des<br />

intelectuais são produto <strong>da</strong> substância cerebral.<br />

Fizemos este esboço não só no intuito de levantar o combatido<br />

adversário, como para fornecer cabe<strong>da</strong>l de reflexão a muitos<br />

espiritualistas ingênuos, que acreditam resolvidos todos os<br />

problemas.<br />

No capítulo seguinte, infligiremos os senhores materialistas,<br />

desafiando-os a responderem a três questões solidárias que<br />

arrasam de alto a baixo o seu palanque. Mas, enquanto o não<br />

fazemos, interessa-nos inquietá-los a pretexto <strong>da</strong> solidez de suas<br />

pretensiosas explicações.<br />

Notemos, antes do mais, que nenhuma lei exclusiva existe,<br />

acerca <strong>da</strong> correspondência do cérebro com o pensamento. Não<br />

está rigorosamente demonstrado:<br />

1º - que o peso do cérebro aumenta até à madureza e decai<br />

depois (Sommering lhe fixa o desenvolvimento máximo<br />

aos 3 anos, Wenzel aos 7, Tledemann aos 8, Gratiolet <strong>na</strong><br />

velhice, etc.);<br />

2º - que a inteligência esteja em relativi<strong>da</strong>de com o peso (os<br />

crânios de Napoleão, Voltaire, Rafael, não ultrapassaram<br />

a média);<br />

3º - que uma fronte larga seja índice de geniali<strong>da</strong>de (Lelut<br />

demonstrou que os idiotas apresentam ordi<strong>na</strong>riamente<br />

uma fronte desenvolvi<strong>da</strong> e que é impossível determi<strong>na</strong>r<br />

relações exatas entre a inteligência e as dimensões crania<strong>na</strong>s);<br />

4º - que a loucura provenha sempre de uma lesão cerebral, antes<br />

parecendo uma afecção psíquica. (Esquirol, Lelut,<br />

Leuret, Georget, Ferrus, constataram que a loucura não é<br />

segui<strong>da</strong> de lesões senão quando coincide com enfermi<strong>da</strong>des<br />

orgânicas.)<br />

Nossos adversários têm consciência <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des que a<br />

questão apresenta e procuraram, alhures, a causa material <strong>da</strong><br />

inteligência, como, por exemplo, no fósforo, a que já aludimos.<br />

Acreditaram ter achado 4% de fósforo no cérebro dos alie<strong>na</strong>dos,


23% no cérebro normal e 1% no dos imbecis. Haverá, porém,<br />

necessi<strong>da</strong>de de frisar que não há lei absoluta, que to<strong>da</strong>s estas<br />

explicações não satisfazem e que, em suma, não existem essas<br />

diferenças?<br />

Vejamos agora se os fatos acima expostos provam, tão clara e<br />

peremptoriamente quanto o supõem, que o pensamento não passa<br />

de função fisiológica e que a alma é atributo <strong>da</strong> matéria.<br />

O nó do problema está em decidir se o cérebro é um órgão ao<br />

serviço <strong>da</strong> inteligência, ou se esta é uma criação do cérebro, filha<br />

e escrava <strong>da</strong> substância cerebral.<br />

É sempre, sob outro aspecto, a mesma questão de força e matéria.<br />

Domi<strong>na</strong> a força? Obedece-lhe a matéria? Ou é o contrário<br />

que se dá?<br />

Esses senhores declararam, sem forma outra de processo, que,<br />

evidentemente, a força é um atributo <strong>da</strong> deusa Matéria e a alma<br />

não passa de ilusão de si mesma, a crer <strong>na</strong> sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de,<br />

quando mais não é que o resultado passageiro de um movimento<br />

do fósforo, ou <strong>da</strong> albumi<strong>na</strong>, nos lobos cerebrais.<br />

Se esta grosseira explicação está tão bem demonstra<strong>da</strong> e é tão<br />

evidente para os nossos adversários, confessamos que, ao nosso<br />

ver, ela é obscura e nos parece incapaz de algo provar, <strong>na</strong> atuali<strong>da</strong>de,<br />

a esse respeito. Não somente a fisiologia cerebral ain<strong>da</strong><br />

está <strong>na</strong> sua infância, como, no parecer mesmo dos fisiologistas<br />

mais eminentes, as relações do cérebro com o pensamento permanecem<br />

profun<strong>da</strong>mente desconheci<strong>da</strong>s.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, o estado <strong>da</strong> alma prende-se ao estado do cérebro;<br />

certo, o enfraquecimento deste acarreta o desfalecimento <strong>da</strong>quela;<br />

as crianças e os velhos (posto que com exceções numerosas)<br />

racioci<strong>na</strong>m com menos clareza e rigor que os homens maduros; e<br />

concebe-se que uma lesão cerebral produza a per<strong>da</strong> de facul<strong>da</strong>des<br />

correspondentes; mas, que prova tudo isso, uma vez que o<br />

cérebro é, neste plano, o instrumento necessário, sine qua non,<br />

<strong>da</strong> manifestação <strong>da</strong> alma? – Se, em vez de ser a causa, ele é<br />

ape<strong>na</strong>s a condição?<br />

Se o melhor músico do mundo só dispusesse de um piano<br />

com falta de algumas teclas, ou de instrumento outro de constru-


ção defeituosa, seria lícito negar talento musical a esse músico só<br />

por lhe falhar o instrumento, sobretudo quando, ao seu lado,<br />

outros artistas, por disporem de instrumentos à altura de seus<br />

talentos, se fazem admirar por quem os ouve?<br />

Por mais que Broussais moteja do pequenino músico, oculto<br />

no fundo do cérebro, não conseguirá desatar o nó <strong>da</strong> questão.<br />

Abstenhamo-nos de círculos viciosos. Este, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, o<br />

primeiro ponto a exami<strong>na</strong>r:<br />

É ou não a alma uma força pessoal animando o sistema nervoso?’<br />

Uma primeira resposta é <strong>da</strong><strong>da</strong> por este fato acima relatado, de<br />

oferecerem os hemisférios cerebrais tanto mais sinuosi<strong>da</strong>des,<br />

meandros e circunvoluções irregulares, quanto mais pensante é o<br />

portador desse cérebro.<br />

Não se dirá então, que, precisamente por ser independente e<br />

ativo, o pensamento trabalhou mais fortemente esse cérebro?<br />

Que, por se haver ele retraído muitas vezes sobre si mesmo,<br />

por ter tremido de angustiosas ânsias, em constrições de medo e<br />

em êxtases de amor; por haver procurado, meditado, escavado os<br />

problemas; por se haver ora revoltado, ora submetido; por ter,<br />

numa palavra, desempenhado rudes labores, é que a substância,<br />

veículo de comunicação com o exterior, guardou os traços desses<br />

movimentos e vigílias? Esta é a nossa opinião e pensamos que<br />

seria difícil demonstrar-nos o contrário.<br />

Alberto, um a<strong>na</strong>tomista de Bonn, dissecou cérebros de pessoas<br />

que se haviam entregado a trabalhos intelectuais durante<br />

alguns anos, e achou em todos uma substância muito consistente<br />

e a massa par<strong>da</strong>, bem como os sulcos, assaz desenvolvidos. Se,<br />

por outro lado, observamos com Spurzein, Gall e Laváter, que a<br />

cultura <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des superiores do espírito se nos imprime no<br />

crânio e no semblante; se visitarmos o Museu de Antropologia<br />

de Paris e notarmos, através <strong>da</strong> coleção de crânios do abade<br />

Frêre, que os progressos <strong>da</strong> Civilização redun<strong>da</strong>ram <strong>na</strong> elevação<br />

<strong>da</strong> parte anterior e <strong>na</strong> depressão <strong>da</strong> occipital, poderemos tirar<br />

destes fatos uma conclusão diametralmente oposta à dos adversários,<br />

para afirmar que o pensamento rege a substância cerebral.


Não temos aí, claro como o dia, o trabalho do espírito sobre a<br />

matéria? E as conclusões não derivam de si mesmas para abrir<br />

passagem triunfal à nossa doutri<strong>na</strong>?<br />

A propósito de conclusões, não podemos eximir-nos de admirar<br />

a facili<strong>da</strong>de com que se pode tirar dos mesmos fatos conclusões<br />

inteiramente contrárias: tudo depende <strong>da</strong> disposição de<br />

espírito e haveria que desesperar dos progressos <strong>da</strong> teoria, se a<br />

maioria dos homens tivesse o caráter mal formado. Verificariam,<br />

por exemplo, em experiências com alie<strong>na</strong>dos, que alguns haviam<br />

recuperado a consciência e a razão pouco antes de morrer. Concluíram<br />

os espiritualistas que as almas desses infelizes voltavam,<br />

após longo isolamento, ao conhecimento de si mesmas e ao<br />

predomínio do corpo, sendo-lhes permitido, nesse transe supremo,<br />

abrirem os olhos <strong>da</strong> consciência ao passarem desta para a<br />

outra vi<strong>da</strong>. Os materialistas, ao invés, aproveitaram o fato,<br />

alegando que a aproximação <strong>da</strong> morte liberta o cérebro <strong>da</strong>s<br />

influências tórpi<strong>da</strong>s e mórbi<strong>da</strong>s do corpo 58 .<br />

Mais do que se imagi<strong>na</strong>, a própria A<strong>na</strong>tomia fisiológica se<br />

embaraça, no concernente à loucura em relação com o estado do<br />

cérebro. Enquanto num, como os citados, muito vêem; outros,<br />

não menos hábeis, <strong>na</strong><strong>da</strong> encontram. Assim, o alienista Leuret<br />

declara que nenhuma alteração cerebral se encontra, senão nos<br />

casos em que a demência é precedi<strong>da</strong> de qualquer outra enfermi<strong>da</strong>de,<br />

e que essas alterações são tão variáveis e diferentes que<br />

não autorizam apresenta<strong>da</strong>s, afirmativamente, como ver<strong>da</strong>deiras<br />

causas. Assim também, a propósito <strong>da</strong>s anfratuosi<strong>da</strong>des há pouco<br />

referi<strong>da</strong>s, poder-se-ia não ver mais que efeitos.<br />

Quando nossos adversários acrescentam que os casos de demência<br />

protestam contra a existência <strong>da</strong> alma, não estão melhor<br />

aparelhados para defender o seu sistema. Duas hipóteses se<br />

apresentam para explicar a loucura. Ou há, ou não há uma lesão<br />

no cérebro. No primeiro caso, a falha do instrumento não demonstra<br />

a inexistência do artista; e, no segundo, o problema fica<br />

pertencendo à ordem mental.<br />

Melhor ain<strong>da</strong>: o primeiro caso pode enquadrar-se no segundo,<br />

se admitirmos, qual sugere a experiência, que a loucura – seja a<br />

causa<strong>da</strong> por uma dor súbita, por um grande susto ou por desespe-


ação profun<strong>da</strong> – tem, em todos estes casos, sua fonte no ser<br />

mental, que reage contra o estado normal do cérebro e lhe acarreta<br />

qualquer alteração. Ain<strong>da</strong> aqui, é evidente, que quem sofre é o<br />

ser pensante, a determi<strong>na</strong>r no organismo um distúrbio correspondente<br />

ao sofrimento.<br />

E de fato, tem-se verificado que as alterações só se encontram<br />

<strong>na</strong>s loucuras antigas, como se o espírito aí fora o que é por to<strong>da</strong> a<br />

parte – o movimentador <strong>da</strong> substância.<br />

Por outro lado, enquanto os adversários deduzem <strong>da</strong> descrição<br />

a<strong>na</strong>tômica do cérebro que a facul<strong>da</strong>de de pensar não é mais<br />

que proprie<strong>da</strong>de de movimentos do conjunto, nós vemos, <strong>na</strong><br />

multiplici<strong>da</strong>de mesma desses movimentos, uma submissão do<br />

cérebro à grande lei <strong>da</strong> divisão do trabalho, por <strong>da</strong>r a ca<strong>da</strong> órgão<br />

a sua função, de acordo com a respectiva situação, estrutura,<br />

composição, forma, peso, tamanho. Vemos, nessa varie<strong>da</strong>de de<br />

efeitos, um argumento a favor <strong>da</strong> independência <strong>da</strong> alma, de vez<br />

que a hipótese desses fisiologistas não pode, de maneira alguma,<br />

conciliar uma tal complexi<strong>da</strong>de dinâmica do cérebro com a<br />

simplici<strong>da</strong>de necessária e reconheci<strong>da</strong>, do ser intelectual. Falaremos,<br />

<strong>da</strong>qui a pouco, especialmente <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de do ser<br />

pensante, pois que nos resta algo dizer ain<strong>da</strong>, sobre as relações<br />

de cérebro e alma.<br />

As comparações de crânios encontrados em antigos cemitérios<br />

de Paris, desde quando o prefeito de Napoleão 3º promoveu<br />

a remodelação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, e, em particular, a diferença entre<br />

crânios <strong>da</strong>s valas comuns e dos túmulos particulares, estabeleceram<br />

novamente que os indivíduos votados às ciências e artes<br />

possuem uma capaci<strong>da</strong>de cerebral maior que a dos simples<br />

operários. As mesmas escavações revelaram que a capaci<strong>da</strong>de<br />

crania<strong>na</strong> dos parisienses aumentara, de Filipe-Augusto para cá. A<br />

capaci<strong>da</strong>de crania<strong>na</strong> do negro livre é maior que a do escravo. Eis<br />

um fato significativo que poderia (em <strong>da</strong><strong>da</strong> circunstância) ser<br />

invocado a favor <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de.<br />

Tendo provas de que as impressões exteriores influem no<br />

pensamento, temo-las por igual de que o pensamento domi<strong>na</strong> os<br />

próprios sentidos. Quantas criaturas não vemos por aí, cujo<br />

cérebro e cujo corpo padecem enfermi<strong>da</strong>de lenta e rebelde,


arrostando uma existência de misérias e dores e conservando,<br />

sem embargo, fortaleza de ânimo, e guar<strong>da</strong>ndo a flor <strong>da</strong> virtude,<br />

sobranceiras à torrente de lodo que as arrasta, e vencendo pela<br />

grandeza do caráter os elos <strong>da</strong> adversi<strong>da</strong>de?<br />

Negaríeis, também, que haja dores morais que residem, lacerantes,<br />

<strong>na</strong>s profundezas insondáveis <strong>da</strong> alma? – dores íntimas,<br />

não causa<strong>da</strong>s por acidentes físicos, nem por enfermi<strong>da</strong>de exterior,<br />

nem por alteração do cérebro, mas, tão só, por uma causa<br />

incorpórea, qual a per<strong>da</strong> de um pai, a morte de um filho, a infideli<strong>da</strong>de<br />

de um ente amado, a ingratidão de um protegido, a traição<br />

de um amigo; ou ain<strong>da</strong> pelo quadro de um infortúnio, pela derrota<br />

de uma causa justa, pelo contágio de idéias malsãs; por multidão<br />

de causas, enfim, que <strong>na</strong><strong>da</strong> têm de comum com o mundo <strong>da</strong><br />

matéria e não se medem geométrica e quimicamente, mas constituem<br />

o domínio do mundo intelectual?<br />

Não vemos, assim, mesmo sob o seu aspecto físico, a influência<br />

do espírito sobre o corpo? As paixões refletem-se no semblante.<br />

Se empalidecemos de medo, é que este sentimento,<br />

manifestando-se por um movimento do cérebro, retrai os vasos<br />

capilares <strong>da</strong> face. Se a cólera ou a vergonha purpureiam-nos o<br />

rosto, é que os movimentos engendrados dilatam os ditos vasos,<br />

conforme o indivíduo. Mas aqui, é ain<strong>da</strong> o espírito que desempenha<br />

o principal papel.<br />

Se alguma vez corastes à impressão subitânea de um olhar<br />

feminino (não há desdouro em confessá-lo), não sentistes que a<br />

indiscreta impressão se transmitia ao cérebro por intermédio dos<br />

olhos e <strong>da</strong>í descia ao coração para remontar ao rosto?<br />

Procurai a<strong>na</strong>lisar essa sucessão, e mesmo que não coreis tomado<br />

de qualquer súbito temor, aplicai a mesma análise e concluireis<br />

que, sem o quererdes, as impressões vos passam céleres<br />

pela mente, antes que se traduzam exteriormente.<br />

O mesmo se verifica com os sentimentos; é no peito e não <strong>na</strong><br />

cabeça que uma inexprimível sensação de plenitude ou de vácuo<br />

se manifesta, quando, em certas horas de melancolia, o pensamento<br />

se nos desprende e voa para o ser amado.


Mas, como essa sensação não se produz senão depois de pensarmos,<br />

é evidente que, ain<strong>da</strong> aqui, o espírito representa o papel<br />

primacial. Sob outros aspectos, um súbito terror se comunica ao<br />

coração e acelera ou retar<strong>da</strong> o pulso, podendo mesmo paralisá-lo<br />

numa síncope. A tristeza e a alegria produzem lágrimas. O<br />

trabalho mental fatiga o cérebro, o sangue se empobrece, a fome<br />

se faz sentir. To<strong>da</strong>s estas, e grande número de observações<br />

outras, induzem-nos a crer que o pensamento, ser imaterial, tem<br />

sede no cérebro, o qual lhe serve tanto para receber os despachos<br />

do mundo exterior como para levar-lhe suas ordens.<br />

E, de resto, nós já sabemos que o cérebro e a medula mais<br />

não são que poderosos feixes de fibras nervosas, nervos que<br />

partem desse veio, irradiando em todos os sentidos para a superfície<br />

do corpo, e nos quais existe uma corrente análoga à corrente<br />

elétrica. Os nervos são fios telegráficos que transmitem à consciência<br />

as impressões do interior, enquanto os músculos executam<br />

as ordens do cérebro. Ora, Dubois-Reymond mostrou que to<strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de nervosa manifesta<strong>da</strong> nos músculos, a título de movimento,<br />

e no cérebro, a titulo de sensação, é segui<strong>da</strong> de uma<br />

alteração <strong>da</strong> corrente neuro-elétrica. Mas dizer, com o mesmo<br />

Dubois, que a consciência não passa de produto <strong>da</strong> transmissão<br />

desses movimentos, é cometer uma ingenui<strong>da</strong>de, como se pretendêssemos<br />

que a correspondência telegráfica diariamente<br />

troca<strong>da</strong> entre os gabinetes de Londres e Paris tivessem por causa<br />

a passagem de uma nuvem tempestuosa, ou de uma bobi<strong>na</strong> de<br />

indução para o manipulador, e que o receptor de si mesmo<br />

recambiasse a resposta dos despachos inteligentes 59 .<br />

Proclamar que não há no homem mais que um produto <strong>da</strong><br />

matéria, assimilá-lo a um composto químico e deduzir que o<br />

pensamento é uma produção química de certas combi<strong>na</strong>ções<br />

materiais, é um erro monstruoso.<br />

Todos sabemos que o pensamento não é ingrediente de ofici<strong>na</strong>.<br />

Espírito e matéria são enti<strong>da</strong>des tão estranhas uma à outra,<br />

que, to<strong>da</strong>s as línguas, de todos os tempos, sempre as conceituaram<br />

diametralmente opostas.


As leis e forças espirituais existem independentemente <strong>da</strong>s<br />

corporais. A força de vontade é bem distinta <strong>da</strong> força muscular.<br />

A ambição difere <strong>da</strong> fome, o desejo distingue-se <strong>da</strong> sede. Onde<br />

encontrareis as leis morais que regem a consciência? Que o<br />

crânio caucásico seja oval, o mongol redondo e o negro alongado,<br />

em que é que o sentir humano se associa às fibras granulares<br />

ou cilíndricas? Que têm de comum as noções de justo e injusto<br />

com o ácido carbônico? Em que um triângulo, um círculo, um<br />

quadrado, podem afetar a bon<strong>da</strong>de, a generosi<strong>da</strong>de, a coragem?<br />

Seria justo dizer que Cronwell tinha 2,231, Byron 2,238 e Cuvier<br />

1,829 gramas de inteligência, por serem tais os pesos de seu<br />

cérebro? Na ver<strong>da</strong>de, quando se procura son<strong>da</strong>r o assunto a<br />

fundo, fica-se admirado de ver que homens de pensamento<br />

tenham chegado a confundir num só objeto o mundo espiritual e<br />

o material.<br />

Também perguntamos se esses experimentalistas 60 aprofun<strong>da</strong>ram<br />

bem o sentido de suas palavras ao anunciarem proposições<br />

tais como as basilares de suas doutri<strong>na</strong>s:<br />

– To<strong>da</strong>s as facul<strong>da</strong>des que denomi<strong>na</strong>mos atributos <strong>da</strong> alma<br />

não passam de funções <strong>da</strong> substância cerebral. Os pensamentos<br />

estão para o cérebro, mais ou menos como a bílis para o fígado e<br />

a uri<strong>na</strong> para os rins 61 .<br />

– A secreção do fígado, dos rins – diz outro escritor que não<br />

ousa atingir inteiramente a mesma comparação – verifica-se à<br />

nossa revelia e produz uma matéria palpável, ao passo que a<br />

ativi<strong>da</strong>de cerebral não se pode verificar sem a consciência integral<br />

e esta não segrega substância, mas forças 62 .<br />

Que vem a ser segregar forças? Ficaríamos gratos a quem nolo<br />

explicasse. Porque não segregar horas ou quilômetros? Mas,<br />

ouçamos ain<strong>da</strong>:<br />

– O que denomi<strong>na</strong>mos quanti<strong>da</strong>de consciencial, é determi<strong>na</strong>do<br />

pelos elementos constitutivos do sangue. Uma prova de que a<br />

produção de forças mentais depende diretamente de permutas<br />

químicas, está em que os produtos usados pelo sangue, e filtrados<br />

nos rins, variam segundo a <strong>na</strong>tureza do trabalho cerebral 63 .


– O pensamento é um di<strong>na</strong>mismo <strong>da</strong> matéria. Movimentos<br />

materiais, ligados nos nervos a correntes elétricas, são percebidos<br />

no cérebro como sensação e esta sensação é o conhecimento<br />

de si mesmo, é a consciência. A vontade é a expressão necessária<br />

de um estado do cérebro, produzi<strong>da</strong> por influências exteriores.<br />

Não há livre arbítrio. (Moleschott – Kreislaf des Lebens, 2º, 156,<br />

181.)<br />

– A mesma relação existe (segundo Huschke) entre o pensamento<br />

e as vibrações elétricas dos filamentos do cérebro, qual a<br />

<strong>da</strong> cor com az vibrações do éter.<br />

– O pensamento é uma secreção do cérebro, já o dissera Cabanis<br />

há mais de meio século.<br />

– Todos os atos humanos são frutos fatais <strong>da</strong> substância cerebral,<br />

afirmava Taine ain<strong>da</strong> há pouco; vício e virtude valem por<br />

vitríolo e açúcar.<br />

A estas, juntaremos uma última proposição, que parece formula<strong>da</strong><br />

para explicar to<strong>da</strong>s as outras: é a de Nicole, quando<br />

assevera justamente que as maiores tolices encontram sempre<br />

inteligências a elas proporcio<strong>na</strong><strong>da</strong>s.<br />

Kant tivera a lembrança de substituir a reali<strong>da</strong>de do mundo<br />

exterior pelas idéias puramente subjetivas do espírito e, em<br />

compensação, o autor de Koerper und Ceiat, Sr. H. Scheffler,<br />

ensaia explicar a gênese do espírito pela matéria. Não lhe citaremos<br />

o processo, um tanto trabalhado, mas o testemunho crítico<br />

que lhe concedeu o defensor atual do animismo, Sr. Tissot.<br />

“Nesta hipótese – di-lo este – é uma força <strong>da</strong> matéria, não uma<br />

simples força, mas uma resultante <strong>da</strong>s forças simples <strong>da</strong> matéria,<br />

reuni<strong>da</strong>s para (quanto mistério nestas duas palavras!) formar o<br />

organismo humano.<br />

O espírito não atinge o estado fenome<strong>na</strong>l senão quando a matéria<br />

se tem organizado em corpo humano (que abismo tão<br />

grande, que não se pode sequer entrever!), mas a tendência para<br />

esta organização ou para a produção espiritual, não existe <strong>na</strong><br />

matéria.”<br />

A necessi<strong>da</strong>de de admitir a ação <strong>da</strong> força ressalta, em que<br />

lhes pese, de to<strong>da</strong>s as suas definições. E que definições!


Julguem-<strong>na</strong>s pela precedente. Mais, eis um traço de luz que<br />

pode juntar-se ao fogo de artifício:<br />

– “O pensamento, diz Büchner, espírito e alma, <strong>na</strong><strong>da</strong> tem de<br />

material, não é matéria (bravo), mas (ouvide isto) é um complexo<br />

de forças heterogêneas, formando uma uni<strong>da</strong>de; é o efeito <strong>da</strong><br />

ação concomitante de muitas substâncias materiais, dota<strong>da</strong>s de<br />

forças ou proprie<strong>da</strong>des.” Segundo a judiciosa conclusão do Dr.<br />

Hoefer, aí temos uma explicação dig<strong>na</strong> de emparelhar com a<br />

resposta de Sga<strong>na</strong>relle: Ossabundus, nequeis, nequer, potarium,<br />

quipsa milus, ou “eis o que faz seja mu<strong>da</strong> a vossa filha.”<br />

Sábios! Já Epícuro tinha dito que a <strong>na</strong>tureza de uma pedra é<br />

cair, porque ela cai... mas isto não é mais ciência, é comédia. As<br />

galimatias que nos impingem como definição d’alma são uma<br />

pilhéria detestável. Adiante. Ca<strong>da</strong> qual com o seu pala<strong>da</strong>r.<br />

Comparável a estas definições, só mesmo a proposição de<br />

Hegel sobre a identi<strong>da</strong>de de corpo e espírito. Ei-la: “A matéria<br />

não é senão espírito; e o espírito não é senão matéria. Logo, são<br />

um e outra a mesma coisa!”<br />

Este alto raciocínio, que o seu autor qualifica de irrefutável,<br />

lá está <strong>na</strong> sua Grande Lógica. Famosa lógica, a demonstrar que o<br />

puro materialismo está real e efetivamente puro de todo o espírito!<br />

Como vedes, caro leitor, não faltam definições. Somente estamos<br />

ain<strong>da</strong> a perguntar que é o que elas definem.<br />

Mas valem, ain<strong>da</strong> assim, para nos provar que to<strong>da</strong> essa gente<br />

sabe tanto quanto nós <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong> alma.<br />

Assim, neste capítulo, acabamos de ver que, se de um lado a<br />

constituição física do cérebro está de harmonia com a alma e<br />

maravilhosamente apropria<strong>da</strong> para que essa alma receba, de<br />

modo integral, as impressões do mundo exterior, julgue-as e<br />

transmita as suas próprias determi<strong>na</strong>ções; por outro lado, a<br />

a<strong>na</strong>tomia do cérebro desautoriza a concluir não passe a alma de<br />

produto orgânico, ao passo que a Filosofia deslin<strong>da</strong>, <strong>na</strong> trama de<br />

incertezas e contradições do materialismo, a ação evidente do<br />

espírito sobre a matéria.


Vimos que a loucura não é afecção orgânica, porém psíquica,<br />

e que a alma tem o seu mundo de dores e de alegrias: A determi<strong>na</strong>ção<br />

é patente. Será crível, entretanto, que, depois de considerar<br />

a loucura uma enfermi<strong>da</strong>de fisiológica, ousassem equipará-la ao<br />

gênio, havendo, já agora, muitos médicos que a consideram uma<br />

nevrose?<br />

Só a nossa época era capaz destas ousadias. “A constituição<br />

de muitos homens de gênio – diz Moreau (de Tours) – é bem, e<br />

realmente a mesma dos idiotas” 64 . Desenvolvendo desmesura<strong>da</strong>mente<br />

uma tese do Dr. Lelut, o autor sustenta que o gênio não<br />

pertence aos domínios do espírito, mas do corpo! Mas, em que<br />

base se firma ele? no fato de (dizem) certos homens de gênio<br />

manifestarem esquisitices, excentrici<strong>da</strong>des, distrações, ou serem<br />

enfermiços, raquíticos, adiposos, surdos, gagos, ou ain<strong>da</strong> passíveis<br />

de aluci<strong>na</strong>ções.<br />

É realmente singular aferir o gênio pela singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

opiniões, pela origi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, pelo entusiasmo ou pelo delírio. A<br />

nós nos parece que ele consiste, antes, <strong>na</strong> sublimi<strong>da</strong>de do pensamento,<br />

<strong>na</strong> elevação <strong>da</strong> alma aos cimos do estudo científico, <strong>na</strong><br />

ple<strong>na</strong> posse de si mesma, em face <strong>da</strong>s contemplações intelectuais.<br />

Esta singular identificação do gênio com a loucura foi valorosamente<br />

refuta<strong>da</strong> pelo Sr. Paulo Janet, no seu valioso trabalho<br />

sobre O Cérebro e o Pensamento. “Esta teoria – diz ele – tomou<br />

a aparência como reali<strong>da</strong>de, o acidente pela substância, os sintomas<br />

mais ou menos variáveis, pelo fun<strong>da</strong>mental e essencial. O<br />

que constitui o gênio não é o entusiasmo (pois este pode existir<br />

nos espíritos mais medíocres e vazios) e sim a superiori<strong>da</strong>de do<br />

racio<strong>na</strong>lismo. O homem de gênio é o que vê mais claro, o que<br />

percebe maior contingente de ver<strong>da</strong>de, o que pode relacio<strong>na</strong>r<br />

maior número de fatos a uma idéia geral, o que encadeia to<strong>da</strong>s as<br />

partes de um todo a uma lei comum, e que, mesmo quando cria,<br />

qual se dá <strong>na</strong> poesia, não faz mais que realizar, pela imagi<strong>na</strong>ção,<br />

a idéia que a sua inteligência concebeu.<br />

“A característica do gênio está no possuir-se a si mesmo e<br />

não em ser arrastado por uma força fatal e cega; está em gover<strong>na</strong>r<br />

suas idéias e não em ser subjugado por imagens; está em ter


consciência níti<strong>da</strong> do que quer e vê, e não em perder-se num<br />

êxtase vazio e absurdo, semelhante ao dos faquires indianos.”<br />

Certo, o homem de gênio quando compõe não pensa mais em<br />

si mesmo, isto é, nos seus mesquinhos interesses e paixões, <strong>na</strong><br />

sua pessoa trivial; pensa no que pensa, ou, por outra, não seria<br />

mais que um eco sonoro e ininteligente, o que São Paulo admiravelmente<br />

qualifica de cymbolum so<strong>na</strong>ns. Numa palavra: o gênio<br />

é, para nós, o espírito humano no seu melhor estado de saúde e<br />

vigor.<br />

Na<strong>da</strong> obstante, isolados no seu triste deserto, nossos apaixo<strong>na</strong>dos<br />

fisiologistas fazem a noite em torno de si, recusam confessar<br />

as facul<strong>da</strong>des mais nobres do espírito humano.<br />

Pretendem ser os rigorosos intérpretes <strong>da</strong> Ciência, ter em suas<br />

mãos o futuro <strong>da</strong> inteligência, a olharem desdenhosos os pobres<br />

mortais, cujo peito serve de refúgio derradeiro à fé no passado e<br />

à esperança exila<strong>da</strong>. Fora do seu círculo não há mais que trevas,<br />

fantásticas ilusões. Eles têm <strong>na</strong> mão a lâmpa<strong>da</strong> <strong>da</strong> salvação, sem<br />

perceberem (ai de nós!) que o fumo negro que dela se exala<br />

perturba a visão e falseia a rota. Tudo comprimem, à força, para<br />

lhe extrair a essência, e quando chegam a capacitar-se de que a<br />

essência não corresponde ao que esperavam, declaram que – “a<br />

essência <strong>da</strong>s coisas não existe em si mesma e não passa de<br />

relações, que acreditamos apreender <strong>na</strong>s transformações <strong>da</strong><br />

matéria”. Não há outra lei que a <strong>da</strong> nossa imagi<strong>na</strong>ção, nem<br />

mesmo forças, mas simplesmente proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> matéria,<br />

quali<strong>da</strong>des ocultas que, em lugar de nos fazer evoluir, recuamnos<br />

a vinte séculos atrás, ao tempo de Arístoto.<br />

Suas conclusões são meramente arbitrárias, nem a Química<br />

nem a Física as demonstram, qual dão a entender. Não são<br />

proposições geométricas a derivarem necessariamente umas <strong>da</strong>s<br />

outras, como outros tantos corolários sucessivos, mas enxertos<br />

estranhos, arbitrariamente sol<strong>da</strong>dos à árvore <strong>da</strong> Ciência. Felizmente<br />

para nós, eles também desconhecem as leis <strong>da</strong> enxertia.<br />

Essas vergônteas <strong>na</strong>timortas, de uma espécie exótica, são incapazes<br />

de receber a seiva vivificante, e a árvore em crescimento<br />

as esquece no seu progresso. Dito seja que, também hoje, elas,


essas vergônteas, não oferecem viabili<strong>da</strong>de maior que ao tempo<br />

de Epícuro e Lucrécio. A posteri<strong>da</strong>de não terá, jamais, o trabalho<br />

de lhes recolher flores e frutos.<br />

Entretanto, a <strong>da</strong>r-lhes ouvidos, dir-se-ia estarem elas tão <strong>na</strong>turalmente<br />

enxerta<strong>da</strong>s <strong>na</strong> árvore <strong>da</strong> Ciência, que se nutrem <strong>da</strong> sua<br />

própria vi<strong>da</strong> e se alimentam por seus próprios cui<strong>da</strong>dos, como se<br />

uma mãe inteligente pudesse consentir em derramar a seiva do<br />

seu leite nos lábios de semelhantes parasitas! Do ponto de vista<br />

histórico, a atitude magistral que eles tomam, diante dos representantes<br />

<strong>da</strong> Ciência moder<strong>na</strong>, é curiosa e dig<strong>na</strong> de atenção. E<br />

fazem sucesso, visto que, nem todos sendo sábios, há entre eles<br />

alguns que ocupam as primeiras linhas <strong>da</strong> Ciência e, tendo<br />

publicado sobre a Física obras de valor, as impõem e induzem a<br />

aceitar a falsa metafísica desses experimentadores.<br />

Diante do resultado dessas tendências, diante <strong>da</strong> materialização<br />

absoluta de to<strong>da</strong>s as coisas, desse pretenso termo último do<br />

progresso científico – o aniquilamento <strong>da</strong> lei criadora e <strong>da</strong> alma<br />

huma<strong>na</strong>, a que se reduzem as mais nobres aspirações <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de<br />

com as suas crenças mais instintivas e suas concepções<br />

mais antigas e mais grandiosas? Que resta <strong>da</strong>s idéias de <strong>Deus</strong>,<br />

justiça, ver<strong>da</strong>de, bem, morali<strong>da</strong>de, dever, inteligência, afeição?<br />

Na<strong>da</strong>, <strong>na</strong><strong>da</strong> mais que poeira vil. Todos nós, pensadores animados<br />

do ardente desejo de saber, não passamos <strong>da</strong> evaporação de um<br />

pe<strong>da</strong>ço de graxa fosfora<strong>da</strong>!<br />

Admiremos os panoramas soberbos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, elevemos o<br />

pensamento a essas alturas luminosas e doura<strong>da</strong>s de sol, <strong>na</strong>s<br />

horas melancólicas <strong>da</strong> tarde, escutemos as harmonias <strong>da</strong> música<br />

huma<strong>na</strong> e deixemo-nos embalar pela melodia dos ventos e dos<br />

zéfiros, contemplemos a imensi<strong>da</strong>de múrmura dos mares, subamos<br />

ao cimo esplendente <strong>da</strong>s montanhas, observemos a marcha<br />

tão bela e tocante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> planetária em to<strong>da</strong>s as suas fases,<br />

respiremos o perfume <strong>da</strong>s flores, elevemos o olhar às estrelas<br />

radiosas que se ostentam nos esplendores do azul, ponhamo-nos<br />

em comunicação com a Humani<strong>da</strong>de e sua história, respeitemos<br />

os gênios ilustres, os sábios que domi<strong>na</strong>ram a matéria, veneremos<br />

os moralistas perseguidos, os legisladores de povos e permitamos<br />

ain<strong>da</strong> à amizade reunir corações, ao amor que palpite em


nosso peito, ao patriotismo e à honra que nos inflamem o verbo,<br />

e, nessas ilusões caducas, não haverá mais que o efeito químico<br />

de uma mistura, ou de uma combi<strong>na</strong>ção de alguns gases. É uma<br />

questão de peso e de volume nos equivalentes do oxigênio, do<br />

hidrogênio, do fósforo, do carbono, que se juntam no alambique<br />

do cérebro em maiores ou menores proporções!<br />

Virtude, coragem, honra, afeto, sensibili<strong>da</strong>de, desejo, esperanças,<br />

discernimento, inteligência, geniali<strong>da</strong>de, tudo combi<strong>na</strong>ções<br />

químicas! Saibamo-lo de uma vez por to<strong>da</strong>s, a vi<strong>da</strong> é tão<br />

somente isso.<br />

Que o coração nos paralise, que nossa alma não se preocupe<br />

mais com os bens intelectuais, que o nosso olhar não mais se<br />

eleve aos céus. Para quê? A vi<strong>da</strong> do espírito <strong>na</strong><strong>da</strong> mais é que um<br />

fantasma...<br />

Demo-nos por felizes, com o saber que não passamos de secreção<br />

impalpável e inconsistente de três ou quatro libras de<br />

medula branca ou cinzenta!...


2 - A Perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de Huma<strong>na</strong><br />

SUMÁRIO – A hipótese <strong>da</strong> alma como proprie<strong>da</strong>de do cérebro é<br />

insustentável diante dos fatos que atestam a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>.<br />

– Contradição <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma com a multiplici<strong>da</strong>de<br />

dos movimentos cerebrais. Contradição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de permanente<br />

<strong>da</strong> alma com a mutabili<strong>da</strong>de incessante <strong>da</strong>s partes constitutivas<br />

do cérebro. – Silêncio dos materialistas sobre esse duplo fato.<br />

– I<strong>na</strong>ni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua teoria. – Audácia de suas explicações, ante a<br />

certeza moral de nossa identi<strong>da</strong>de. – De como a uni<strong>da</strong>de e a identi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> alma demonstram a i<strong>na</strong>ni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> hipótese materialista.<br />

Felizmente para as grandes e respeitáveis ver<strong>da</strong>des de ordem<br />

moral, não estamos reduzidos a curvar a cabeça diante de tão<br />

grosseira conclusão.<br />

Como nos dias decantados pelo célebre autor latino <strong>da</strong>s Metamorfoses,<br />

temos <strong>na</strong>scido para ficar de pé e contemplar o céu.<br />

Certo, poderíamos invocar aqui o testemunho imponente dos<br />

sentimentos mais profundos <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>; poderíamos<br />

evidenciar, à luz meridia<strong>na</strong>, que nestas doutri<strong>na</strong>s perniciosas não<br />

há mais lugar para a esperança, moral para a consciência, luz<br />

para os pendores do coração; bon<strong>da</strong>de <strong>na</strong>tural, justiça <strong>na</strong> ordem<br />

universal, consolação para o aflito, e mais, que a população do<br />

globo não mais tem à sua frente nenhuma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, nenhuma<br />

clari<strong>da</strong>de, nenhuma lei intelectual.<br />

Rolando, por aí além, turbilho<strong>na</strong>nte, leva<strong>da</strong> no espaço obscuro<br />

pela rotação e translação rápi<strong>da</strong>s do globo e renovando-se a<br />

ca<strong>da</strong> instante pelo <strong>na</strong>scimento e morte de seus membros, ela – a<br />

Humani<strong>da</strong>de – não passa, à superfície desse globo, de bolorento<br />

parasita cegamente desabrochado e perpetuado por forças químicas.<br />

Sim, poderíamos, invocando o testemunho dos corações que<br />

ain<strong>da</strong> pulsam e <strong>da</strong>s almas que ain<strong>da</strong> crêem, dispor em linha de<br />

batalha os argumentos ain<strong>da</strong> vivazes <strong>da</strong> Filosofia e <strong>da</strong> Psicologia<br />

e derribar o adversário, constrangendo-o a confessar-se vencido.<br />

To<strong>da</strong>via, como preferimos combater no mesmo terreno e com as<br />

mesmas armas, pretendendo refutá-los só em nome <strong>da</strong> Ciência de<br />

que se dizem intérpretes, apraz-nos permanecer no campo exclu-


sivamente científico e desdenhar, qual o fazem eles, os silogismos<br />

<strong>da</strong> Psicologia.<br />

Deixamos, assim, sem resposta as seguintes proposições adversas<br />

e os comentários com que as esticam:<br />

“As leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> são forças bárbaras, inflexíveis; não conhecem<br />

a moral nem a benevolência.” (Vogt).<br />

“A <strong>Natureza</strong> não ouve as queixas nem as preces do homem,<br />

antes as repele inexoravelmente em si mesmo.” (Fuerbach).<br />

“Sabemos, por experiências próprias, que <strong>Deus</strong> absolutamente<br />

não se imiscui, de qualquer forma, nesta vi<strong>da</strong> terrestre.” (Lutero).<br />

Aí temos conceitos bem consoladores, não é assim? Mas, repetimos:<br />

o sentimento não é cabe<strong>da</strong>l científico e por isso não<br />

entraremos nesse capítulo. Esta abstenção não nos impede, bem<br />

entendido, de convi<strong>da</strong>r o leitor a meditar e decidir para que lado<br />

lhe pendem o coração e a razão.<br />

Mas, ape<strong>na</strong>s do ponto de vista <strong>da</strong> observação científica e deixando<br />

de lado os pendores do coração e os imperativos <strong>da</strong> consciência<br />

– que não deixam de algo ser <strong>na</strong> história <strong>da</strong> alma –<br />

dizemos que fatos há, nos domínios <strong>da</strong> observação pura, completamente<br />

inexplicáveis <strong>na</strong> hipótese materialista.<br />

No precedente capítulo, o leitor ain<strong>da</strong> pode ficar suspenso entre<br />

as duas hipóteses, porquanto apresentamos fatos mutuamente<br />

oscilantes, que deixam o espírito indeciso, quanto ao centro de<br />

gravi<strong>da</strong>de. Agora, porém, o centro de gravi<strong>da</strong>de vai passar ao<br />

corpo <strong>da</strong>s doutri<strong>na</strong>s espiritualistas e os que o não seguirem muito<br />

se arriscarão a desequilibrar-se e a cair, rápido, no mais vazio<br />

dos vácuos.<br />

Exponhamos, em primeiro lugar, as afirmativas materialistas<br />

contra a existência <strong>da</strong> alma e, para não falar só dos estranhos e<br />

fazer ao mesmo tempo o histórico do materialismo em nosso<br />

país, escutemos Broussais, cuja obra foi o primeiro toque de<br />

reunir dos nossos modernos epicuristas e i<strong>na</strong>ugurou, em nosso<br />

século, a primeira fase desse curso pouco luminoso.<br />

Para Broussais, como para Cabanis, Locke e Condillàc, o<br />

homem é, simplesmente, o conjunto de órgãos em função. O eu,


a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong> não é um ser suis generis, é um fato 65 , é<br />

um resultado, é um produto imputável a tal ou qual disposição <strong>da</strong><br />

matéria 66 . Inteligência e sensibili<strong>da</strong>de são funções do aparelho<br />

nervoso, mais ou menos como a transformação dos alimentos em<br />

quilo e sangue é função do aparelho digestivo, ou respiratório 67 .<br />

A existência <strong>da</strong> alma não é mais que uma hipótese que se não<br />

fun<strong>da</strong> em observação qualquer, que nenhum raciocínio autoriza,<br />

por gratuita e até mesmo destituí<strong>da</strong> de senso 68 . Reconhecer no<br />

homem mais que um sistema orgânico é cair nos absurdos <strong>da</strong><br />

Ontologia 69 .<br />

Cabanis, no seu livro bem conhecido, e Destutt de Tracy, <strong>na</strong><br />

sua análise racio<strong>na</strong>l <strong>da</strong>s relações do físico com o moral, emitem<br />

as mesmas opiniões, mas, sob forma menos explícita.<br />

Segundo os exagerados defensores <strong>da</strong> doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> sensação, a<br />

pessoa huma<strong>na</strong> confunde-se <strong>na</strong>s funções orgânicas. Na reali<strong>da</strong>de,<br />

não existe.<br />

Todos os homens, em todos os tempos e por to<strong>da</strong> a parte,<br />

acreditaram <strong>na</strong> existência pessoal, sentiram-se viventes e pensantes;<br />

to<strong>da</strong>s as línguas enunciaram, <strong>na</strong>s primeiras pági<strong>na</strong>s dos a<strong>na</strong>is<br />

humanos, a existência do pensamento individual, a alma, a<br />

inteligência, o espírito, não importa sob que nome (poderíamos<br />

encher uma pági<strong>na</strong> de nomes primitivos, arianos, sânscritos,<br />

gregos, latinos, celtas, etc., mas uma tal nomenclatura não se faz<br />

necessária e nossos leitores, certo, sabem <strong>da</strong> existência desses<br />

vocábulos). O bom senso popular, tanto quanto o gênio filosófico,<br />

espontaneamente acreditaram, desde que o mundo é mundo e<br />

há seres racio<strong>na</strong>is <strong>na</strong> Terra, que existe em nosso corpo algo mais<br />

que a matéria, uma consciência própria, sem a qual não existiríamos<br />

e que se comprova a si mesma, pelo só fato <strong>da</strong> certeza<br />

íntima. Enfim, todos sentiram que nem o corpo, nem tampouco o<br />

mundo exterior, constituem a enti<strong>da</strong>de pensante. Entretanto, a<br />

Humani<strong>da</strong>de do passado, como do presente, parece que não leva<br />

em conta a opinião dos materialistas.<br />

Felizmente para nós, eles aí estão a esclarecer-nos de ora em<br />

diante, convi<strong>da</strong>ndo-nos a reconsiderar a ingenui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s nossas<br />

crenças. Como bem o disse um fino espiritualista (o duque de<br />

Broglie, nos Ècrits et Discours, t. 1º). “Até aqui, caros amigos –


dizem eles –, acreditastes que existíeis e tínheis um corpo; mas,<br />

desenga<strong>na</strong>i-vos, porque não existis e é o corpo que vos possui.<br />

Só existis <strong>na</strong> aparência; o que chamais o eu não passa de simples<br />

vocábulo, um não sei quê, destituído de reali<strong>da</strong>de e consistência;<br />

e o que realmente existe, no fundo de tudo isso, é alguma coisa<br />

de que não tendes consciência, nem ela tampouco a tem de vós.”<br />

No parecer de Broussais com os seus colegas e discípulos, o<br />

eu é o cérebro. O pensamento, todos os fenômenos inteligentes,<br />

são excitações <strong>da</strong> matéria cerebral ou, para usar a mesma linguagem<br />

do Autor – condensações <strong>da</strong> mesma matéria 70 . E, seja de<br />

que <strong>na</strong>tureza for, to<strong>da</strong> a percepção mental está neste caso. Dor,<br />

alegria, sau<strong>da</strong>de, julgamento, comparação, determi<strong>na</strong>ção, entusiasmo,<br />

desejo, tudo é condensação. Se houver fenômenos complexos<br />

nesse laboratório do pensamento, quais uma série de<br />

raciocínios sucessivos partidos de uma impressão inicial, mesmo<br />

do exterior e culmi<strong>na</strong>ndo em ato voluntário, serão ain<strong>da</strong> condensação<br />

de condensações. Estas são o próprio pensamento, que não<br />

passa de conseqüência, de resultante, condensação mesma <strong>da</strong>s<br />

fibras do encéfalo...” Meu <strong>Deus</strong>! Que bela coisa é a Ciência e<br />

como o Sr. Broussais possuía uma imagi<strong>na</strong>ção bem condensa<strong>da</strong>!<br />

Sentir-se sentir, eis a fórmula e o único fato consciencial admitido<br />

por Broussais. Ora, qual o órgão que sente no organismo<br />

humano? Incontestavelmente, o cérebro. Logo, ele é o eu e to<strong>da</strong>s<br />

as percepções do pensamento não passam de excitações <strong>da</strong><br />

substância cerebral. Coisa que parece simples, mas desafia um<br />

ligeiro reparo.<br />

Temos visto que o cérebro é massa carnosa, pesando três libras<br />

mais ou menos e composta de medula, fibras brancas ou<br />

par<strong>da</strong>s, gordura fosfora<strong>da</strong>, água, albumi<strong>na</strong>, etc. Ora, entre essas<br />

substâncias, qual a pensante? A água? o fósforo? a albumi<strong>na</strong>? o<br />

oxigênio? Se a facul<strong>da</strong>de de pensar está liga<strong>da</strong> a uma simples<br />

molécula, a um átomo real, não tendes o direito de negar a<br />

imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, pois, neste caso a facul<strong>da</strong>de de pensar<br />

participaria do destino do átomo indestrutível. Seria preciso,<br />

pois, admitir que esse átomo se libertou, desde logo, do movimento,<br />

para ficar imóvel, talvez no fundo <strong>da</strong> glândula pineal.<br />

Admitindo-se, agora, seja ca<strong>da</strong> molécula capaz de sentir em


conformi<strong>da</strong>de com a <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong>s sensações, esse pretenso eu já<br />

não estará no singular, mas no plural, haverá tantos eus (!)<br />

quantas moléculas cerebrais. Os léxicos não conheciam esse<br />

vocábulo e, doravante, deverão perfilhá-lo.<br />

O homem jamais suspeitara que continha em si diversas perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des,<br />

pois os próprios gregos, com as suas múltiplas<br />

desig<strong>na</strong>ções possíveis, não tinham visto nisso senão facul<strong>da</strong>des<br />

várias e diversas maneiras de ser de uma única e mesma alma.<br />

Mas, ca<strong>da</strong> molécula é, por sua vez, um agregado de átomos, de<br />

corpos simples, diversos e diversamente combi<strong>na</strong>dos. Teremos,<br />

então, ca<strong>da</strong> átomo a pensar agora? Eis-nos caídos <strong>na</strong> mais absur<strong>da</strong><br />

e inimaginável <strong>da</strong>s hipóteses. Essa contradição entre a uni<strong>da</strong>de<br />

inconteste do ser pensante e a multiplici<strong>da</strong>de, não menos<br />

inconteste, dos elementos cerebrais, reduz a zero a pretensão de<br />

fazer <strong>da</strong> consciência pessoal uma proprie<strong>da</strong>de do encéfalo.<br />

Nota curiosa: esses senhores não se precatam de que assim<br />

racio<strong>na</strong>ndo regridem aos arqueus de Van Helmont, a pretexto de<br />

progresso. Não lhes falta mais que os espíritos animais, dos<br />

tempos de Descartes e Malebranche, para nos vermos recuados a<br />

mais de dois séculos anteriores à origem <strong>da</strong> própria Fisiologia.<br />

Não temos no âmago <strong>da</strong> consciência a certeza <strong>da</strong> nossa uni<strong>da</strong>de?<br />

Percebe-se o pensamento qual mecanismo composto de<br />

várias peças, ou como um ser simples? Todos os fenômenos<br />

ativos de nossa alma depõem a favor dessa uni<strong>da</strong>de pessoal,<br />

visto como, <strong>na</strong> sua varie<strong>da</strong>de e multiplici<strong>da</strong>de, estão grupados<br />

em torno de uma percepção íntima, de um julgamento e de uma<br />

facul<strong>da</strong>de de generalizações únicas. Sentimos, em nós mesmos,<br />

essa uni<strong>da</strong>de pessoal, sem a qual pensamentos e atos não mais se<br />

ligariam por qualquer laço e nenhum valor teriam as nossas<br />

determi<strong>na</strong>ções. É esse um fato tão firmemente enraizado <strong>na</strong><br />

consciência e tão i<strong>na</strong>tacável, que as contradições aparentes que<br />

se lhe podem opor redun<strong>da</strong>m, em definitivo, a seu favor. Se, por<br />

exemplo, certa facul<strong>da</strong>de de nossa alma se enga<strong>na</strong> em suas<br />

apreciações, parece poder concluir-se que há complexi<strong>da</strong>de <strong>na</strong><br />

maneira operatória do espírito. Mas, se descermos ao fundo do<br />

fenômeno do erro, tão freqüente, reconheceremos que é sempre o<br />

mesmo ser, a mesma pessoa a enga<strong>na</strong>r-se e a reconhecer a sua


imprevidência, assim como, no homem que erra e se corrige, é<br />

manifesto que a mesma razão que erra é que corrige.<br />

Assim, as mesmas contradições <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong> prestamse,<br />

tanto quanto o foro íntimo, a afirmar a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de do<br />

nosso ser mental.<br />

Se bem que a afirmação <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de do eu prova a existência<br />

<strong>da</strong> alma, não se infere <strong>da</strong>í que a constitua. Temos, para<br />

nós, que a alma é o ser pensante, ao passo que o eu é ape<strong>na</strong>s uma<br />

concepção que dá para fenômenos internos o caráter de fato<br />

consciencial.<br />

A alma poderia existir inconsciente <strong>da</strong> sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e,<br />

de fato, no mundo animado há um grande número de almas ain<strong>da</strong><br />

nessa condição.<br />

Dizem outros que é o conjunto do cérebro e não ca<strong>da</strong> molécula<br />

de per si, que pensa. Mas, que vem a ser o conjunto do cérebro<br />

senão a reunião <strong>da</strong>s moléculas que o compõem? Os que fazem<br />

dessa reunião um ser ideal, uma espécie de socie<strong>da</strong>de, de exército,<br />

não podem pretender que essa coletivi<strong>da</strong>de pense, sem que o<br />

façam todos e ca<strong>da</strong> qual dos seus membros. Porque, em si, uma<br />

socie<strong>da</strong>de, um povo, não são enti<strong>da</strong>des reais, mas conglomerado<br />

cuja <strong>na</strong>tureza e cujo valor só se constituem dos membros, componentes.<br />

Suprimi o pensamento aos cérebros do povo francês e<br />

que ficará a esse povo? Imagi<strong>na</strong>i que as moléculas cerebrais não<br />

pensam, e que restará ao cérebro? E, se elas pensam, então,<br />

voltaremos à imagem extravagante de uma quanti<strong>da</strong>de indefini<strong>da</strong><br />

de eus! (Fora o caso de dizer que este vocábulo, se os vocábulos<br />

pensassem, deveria estranhar o ver-se aqui pluralizado.)<br />

E, para que elas se acordem entre si, veremos instituir a hierarquia<br />

militar e nomear um general que cavalgue qualquer<br />

átomo bicudo <strong>da</strong> glândula pineal, ou então dir-se-á, com Syndenham,<br />

“que há no homem um outro homem interior, dotado <strong>da</strong>s<br />

mesmas facul<strong>da</strong>des e afecções do homem exterior”. A pretexto<br />

de ciência positiva, imagi<strong>na</strong>r-se-ão mil hipóteses mais difíceis do<br />

que os tão criticados mistérios <strong>da</strong>s velhas religiões.<br />

Os materialistas contemporâneos são um pouco mais fortes.<br />

Declararam, como vimos, que a alma é uma força excreta<strong>da</strong> pelo


cérebro (?), sem se <strong>da</strong>rem ao trabalho de eluci<strong>da</strong>r qual a parte ou<br />

o elemento do encéfalo que possui essa maravilhosa facul<strong>da</strong>de. É<br />

uma resultante do conjunto de movimentos operados sob diversas<br />

influências, no órgão cerebral. Tal a opinião <strong>da</strong> escola materialista,<br />

e mesmo <strong>da</strong> panteísta. Esta nova hipótese é tão simplória<br />

quanto as precedentes e só apresenta uma ligeira falha que é,<br />

nem mais nem menos, o ser incompreensível. Aliás, não se dão<br />

eles ao trabalho de a explicar. Em 1827, quando se opunha a<br />

simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma à multiplici<strong>da</strong>de dos elementos cerebrais,<br />

nessa época em que a química do pensamento não gozava a<br />

prerrogativa de ser manipula<strong>da</strong> <strong>na</strong>s retortas de além-Reno,<br />

Broussais respondia lealmente: “o eu é um fato inexplicável, não<br />

pretendo explicá-lo” 71 . To<strong>da</strong>via, às definições supra assi<strong>na</strong>la<strong>da</strong>s,<br />

juntou ele mais esta: “O eu é um fenômeno de inervação”. Ain<strong>da</strong><br />

hoje, ninguém conseguiu provar, nem explicar, como pode a<br />

consciência resultar de certas combi<strong>na</strong>ções opera<strong>da</strong>s num maquinismo<br />

automático. Assim, a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa força pensante<br />

não só protesta energicamente, como destrói, de um golpe, a<br />

hipótese <strong>da</strong> secreção cerebral. Oporemos, agora, à mesma hipótese<br />

um segundo fato, paralelo a este e de tanto valor que basta,<br />

por si só, para arrasar o colossal exército de argumentos já<br />

embotados <strong>na</strong> defesa <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> teoria.<br />

Ei-lo, esse fato, em termos bem claros.<br />

A substância cerebral não se mantém duas sema<strong>na</strong>s idêntica a<br />

si mesma. O cérebro se refunde completamente num prazo mais<br />

ou menos longo. Vimos <strong>na</strong> segun<strong>da</strong> parte que, não só o cérebro,<br />

mas todo o organismo, não passa de uma sucessão de moléculas<br />

em mutabili<strong>da</strong>de constante.<br />

E, <strong>na</strong><strong>da</strong> obstante, a nossa perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de racio<strong>na</strong>l subsiste. Todos<br />

temos a certeza de que, desde que nos entendemos por gente,<br />

não mu<strong>da</strong>mos intrinsecamente, qual mu<strong>da</strong>ram nossos cabelos,<br />

nossa pele, nossa fisionomia, nossa estatura.<br />

Nas pági<strong>na</strong>s precedentes, demonstramos a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>,<br />

mau grado à complexi<strong>da</strong>de dos elementos cerebrais e à<br />

multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas funções. E vimos que, longe de ser uma<br />

resultante, essa perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de se afirma de si mesma como força<br />

individual. Vamos agora, de algum modo, transportar à noção do


tempo o que dizíamos a propósito do espaço, para estabelecer<br />

que a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma não existe somente a ca<strong>da</strong> instante, considera<strong>da</strong><br />

em si mesma, mas persiste de um a outro instante e fica<br />

idêntica em si mesma, apesar <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças que o tempo acarreta<br />

à composição <strong>da</strong> substância cerebral.<br />

Trata-se, pois, de conciliar a identi<strong>da</strong>de permanente de nossa<br />

perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de com a mutabili<strong>da</strong>de incessante <strong>da</strong> matéria. Os<br />

senhores materialistas seriam de uma gentileza rara se consentissem<br />

em subir por um instante ao palco, a fim de resolverem este<br />

pequenino problema.<br />

A nós, muito nos praz fornecer-lhes o enunciado: – demonstrar<br />

que o movimento é amigo do repouso e que o melhor processo<br />

de criar no mundo uma instituição estável e sóli<strong>da</strong> é lançar<br />

a idéia através de um turbilhão de cabeças frívolas.<br />

As rigorosas observações feitas e compara<strong>da</strong>s, sob diversos<br />

pontos de vista, demonstraram não ape<strong>na</strong>s que o corpo se renova<br />

sucessiva e completamente, molécula a molécula, mas, também,<br />

que essa renovação perpétua é rapidíssima, bastando trinta dias<br />

para que se tenha um corpo integralmente renovado.<br />

Tal, o princípio <strong>da</strong> desassimilação no animal. Falando a rigor,<br />

o homem corporal não fica dois instantes idêntico a si mesmo.<br />

Os glóbulos sanguíneos que circulam em meus dedos, enquanto<br />

escrevo estas linhas, o fósforo mágico que me trabalha no cérebro<br />

ao pensar esta frase, já me não pertencerão quando estas<br />

pági<strong>na</strong>s forem impressas e, talvez, no momento de as lerdes,<br />

façam parte dos vossos olhos ou <strong>da</strong> vossa fronte... talvez, ó gentil<br />

leitora! enquanto os vossos mimosos dedos dobrarem estas<br />

pági<strong>na</strong>s, a dita molécula de fósforo que, <strong>na</strong> hipótese dos adversos,<br />

teve a fantasia de imagi<strong>na</strong>r a dita frase, talvez, repito, essa<br />

ditosa molécula esteja sob a epiderme sensível do vosso indicador,<br />

ou, quem sabe, crepite ardentemente <strong>na</strong>s palpitações do<br />

vosso coração... (A respeito de moléculas itinerantes muito<br />

haveria a dizer, mas não ousamos alongar o parêntese.) O que<br />

importa, a sério, é recor<strong>da</strong>r esta ver<strong>da</strong>de: – a matéria circula<br />

perpetuamente em todos os seres, e no ser humano, em particular,<br />

não permanece dois dias idêntica a si mesma.


Se não estamos enga<strong>na</strong>dos, este fato tem sua importância <strong>na</strong><br />

questão que nos ocupa, e é com ver<strong>da</strong>deiro prazer que o alegamos<br />

aos adversários, convi<strong>da</strong>ndo-os a que o expliquem.<br />

Como estas interessantes observações se devem aos próprios<br />

campeões do materialismo, a eles, que não a outrem, compete<br />

interpretá-las em apoio de sua teoria, caso essa interpretação não<br />

lhes requeira um esforço muito exagerado.<br />

Vejamos:<br />

“O sangue rejeita constantemente suas partes constitutivas<br />

aos órgãos do corpo, <strong>na</strong> quali<strong>da</strong>de de elementos histogênicos. A<br />

ativi<strong>da</strong>de dos tecidos decompõe esses elementos em ácido carbônico,<br />

uréia e água. Tecidos e sangue sofrem, <strong>na</strong> marcha regular<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, um desperdício de substância só compensado <strong>na</strong><br />

provisão dos alimentos. Essa permuta de matérias opera-se com<br />

uma rapidez notável. Os fatos gerais indicam que o corpo renova<br />

a maior parte de substância num período de vinte a trinta dias. O<br />

coronel Lann, por meio de várias pesagens, encontrou uma per<strong>da</strong><br />

média de 22% de seu peso, em 24 horas. A renovação total<br />

exigiria, portanto, 22, dias. Liebig deduziu uma rapidez de 25<br />

dias, considerando as permutas de outra maneira, pela combustão<br />

do sangue. Por surpreendente que possa parecer esta rapidez, as<br />

observações concor<strong>da</strong>m em todos os pontos” 72 .<br />

Assim, sois vós mesmos a ensi<strong>na</strong>r que dentro de alguns dias<br />

nosso corpo se renova inteiramente. Nosso ser material viu<br />

dissolver-se e reconstituir-se, sucessivamente, a sua assembléia<br />

constituinte, não lhe ficando uma só molécula de oxigênio,<br />

carbono, hidrogênio, ferro, carbono, albumi<strong>na</strong>... Essas moléculas<br />

aliaram-se a outras substâncias, que an<strong>da</strong>m agora embala<strong>da</strong>s<br />

pelas nuvens, leva<strong>da</strong>s pelas on<strong>da</strong>s, envolvi<strong>da</strong>s no solo, recolhi<strong>da</strong>s<br />

pelas plantas, ou pelos animais, enquanto que a nossa substância<br />

também se encontra inteiramente mu<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Em se aplicando essa engenhosa teoria a uns tantos fatos de<br />

ordem social, chega-se a provar que a união matrimonial deixa<br />

de ser um sacramento eficaz, visto que ao cabo de um mês as<br />

duas criaturas, que acreditaram formar liames eternos, estão<br />

corporal e espiritualmente transforma<strong>da</strong>s e vivem como adúlte-


os. Como esta, conclusões outras se podem tirar, edificantes.<br />

Ajuntais, de segui<strong>da</strong>, que, sendo o fósforo a parte do cérebro<br />

mais caracteriza<strong>da</strong>, é desta substância que provém o pensamento,<br />

assim como à potassa se devem os músculos e as facul<strong>da</strong>des de<br />

locomoção e os ossos ao fosfato de cal, etc., e vós comparais o<br />

ato de pensar (secreção do cérebro!) à secreção <strong>da</strong> bílis pelo<br />

fígado, <strong>da</strong> uri<strong>na</strong> pelos rins.<br />

Contrariando as vossas pretensões, noto que meu ser pensante,<br />

minha pessoa, meu ego, é o mesmo de há cinco, dez, vinte,<br />

quarenta anos. E espero não negareis que vos lembrais de terdes<br />

sido criança, de haverdes brincado ao colo materno, freqüentado<br />

a escola e feito (lá isso não duvido) brilhantes estudos, para vos<br />

tomardes, com o tempo, furiosos paladinos do materialismo.<br />

Sois bem vós que assim vivestes, não é ver<strong>da</strong>de? Foi, certo,<br />

sobre o vosso espírito, e não sobre a vossa fronte, que esses anos<br />

passaram. Se mu<strong>da</strong>stes de opiniões, de idéias, de diretriz, em<br />

vossos estudos; se trocastes de país, de hábitos, de alimentos,<br />

nem por isso deixou de ser a vossa pessoa mesma que cresceu,<br />

viveu, envelheceu; e, se algum au<strong>da</strong>cioso e legítimo partidário<br />

<strong>da</strong>s vossas doutri<strong>na</strong>s, tendo-vos roubado, há dez anos, honra e<br />

fortu<strong>na</strong>, reaparecesse e dissesse que já não sois o mesmo homem,<br />

que tendes mu<strong>da</strong>do muitas vezes, que não vos conhece e que<br />

também ele mudou e, por isso, <strong>na</strong><strong>da</strong> vos deve nem lhe cumpre<br />

reparar, certo estou de que não demoraríeis a demonstrar-lhe que<br />

não é assim que entendeis, <strong>na</strong> prática, as vossas teorias.<br />

Com efeito, senhores, essas teorias não nos parecem nem<br />

mais nem menos que absur<strong>da</strong>s, diante do fato eloqüente <strong>da</strong><br />

identi<strong>da</strong>de do espírito. Podeis conciliar umas e outro? Podeis<br />

pretender que uma secreção de substâncias que ape<strong>na</strong>s transitam<br />

pelo organismo possa gozar dessa facul<strong>da</strong>de? Ousaríeis avançar<br />

que, considerando o pensamento como atributo de uma associação<br />

de moléculas de gordura fosfora<strong>da</strong>, albumi<strong>na</strong>, colesteri<strong>na</strong>,<br />

potassa e água 73 – moléculas trazi<strong>da</strong>s a esse laboratório pela<br />

nutrição e respiração, variáveis, em contínuo movimento, semelhantes<br />

a sol<strong>da</strong>dos de to<strong>da</strong>s as <strong>na</strong>ções, que chegam ao mesmo<br />

campo, armam ten<strong>da</strong>s e seguem adiante para serem logo substi-


tuídos por outros; – ousaríeis, repito, avançar que um tal sistema<br />

pode explicar a identi<strong>da</strong>de, a permanência do pensamento?<br />

Não, não o ousais: nem mesmo o ensaiam, pois muito tenho<br />

revolvido em vossos a<strong>na</strong>is e vejo que prestes vos esquivais ao<br />

escolho, deixando quase de o nomear.<br />

Um dos vossos 74 responde de passagem que a observação feita<br />

com os trepa<strong>na</strong>dos demonstrou que certos anos ou fases <strong>da</strong><br />

existência se lhes apagava <strong>da</strong> memória devido à per<strong>da</strong> de quaisquer<br />

partes do cérebro. Acrescenta mais, que a velhice acarreta a<br />

per<strong>da</strong> quase total <strong>da</strong> memória. Sem dúvi<strong>da</strong>, diz, as substâncias<br />

cerebrais mu<strong>da</strong>m, mas o modo de sua composição deve ser<br />

permanente e determi<strong>na</strong>nte do modo <strong>da</strong> consciência individual.<br />

Depois, confessa que “os processos interiores são inexplicáveis”.<br />

Ora pois! eis aí uma confissão que compensa tudo. Essas pretensas<br />

explicações apoia<strong>da</strong>s em fatos anormais são as únicas que se<br />

permitem <strong>da</strong>r ao grande fato por nós assi<strong>na</strong>lado.<br />

Lacu<strong>na</strong> sensível, e visto que a vossa maior ambição é remover<br />

todos os tropeços e <strong>na</strong><strong>da</strong> abafar em silêncio – censura que<br />

irrogais aos vossos adversários – concito-vos, a bem mesmo do<br />

vosso renome, a não mais deixar de explicar física ou quimicamente<br />

como a renovação dos vossos átomos pode ter a proprie<strong>da</strong>de<br />

de engendrar em ser pensante e consciente <strong>da</strong> permanência<br />

de sua identi<strong>da</strong>de.<br />

Não vemos conciliação possível entre estes dois termos contrários,<br />

pelo que poderíamos seguir avante sem nos preocuparmos<br />

com o adversário, para só considerá-lo fora de combate,<br />

qual gladiador antigo a esvair-se <strong>na</strong> are<strong>na</strong>, trespassado pelo<br />

mortal tridente.<br />

To<strong>da</strong>via, ain<strong>da</strong> por princípio de cari<strong>da</strong>de, vamos prosseguir<br />

<strong>na</strong> luta e, para defesa geral <strong>da</strong> causa, acreditamos útil exami<strong>na</strong>r<br />

as diversas explicações emiti<strong>da</strong>s a respeito, a fim de que saibam<br />

nenhuma haver satisfatória, ficando assim de todo insolúvel a<br />

hipótese materialista.<br />

A primeira dessas explicações consiste em dizer que, se as<br />

moléculas do corpo estão em perfeita circulação, o mesmo não<br />

se dá com a forma individual. Nossos traços ficam gravados no


semblante, os olhos conservam a mesma cor, os cabelos a mesma<br />

<strong>na</strong>tureza, a fisionomia o seu tipo fun<strong>da</strong>mental. Quantos tiveram<br />

ensejo de reivindicar à glória militar uma cicatriz qualquer,<br />

guar<strong>da</strong>m-lhe a marca, não obstante a renovação dos tecidos. Tal<br />

o fato geral <strong>da</strong> permanência e caráter fisionômico individual.<br />

Podem os adversários pretender que, assim sendo com o corpo,<br />

impossível não seja a identi<strong>da</strong>de do espírito, como resultante<br />

de fenômenos materiais.<br />

Ora, aí justamente é que está o erro:<br />

1º - Não se pode provar que a constância dos traços seja o resultado<br />

de simples fenômenos de assimilação e desassimilação,<br />

e <strong>da</strong> modificação incessante <strong>da</strong> substância;<br />

2º - ain<strong>da</strong> mesmo que assim fosse, não existiria nisso senão<br />

uma identi<strong>da</strong>de de forma, aparente, conserva<strong>da</strong> pelas moléculas<br />

sucessivas e não identi<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>mental, um ser<br />

substancial que fica;<br />

3º - a alma não é uma sucessão de pensamentos, uma série de<br />

manifestações mentais e, sim, um ser pessoal com a consciência<br />

de sua permanência.<br />

Por conseqüência, a diferença que separa <strong>da</strong> nossa a hipótese<br />

materialista, consiste simplesmente em observar que <strong>na</strong><strong>da</strong> se<br />

explica pela primeira, ao passo que pela nossa tudo se explica.<br />

Como se vê, uma diferença insignificante.<br />

Dir-se-á que os átomos materiais, em se substituindo, seguem<br />

precisamente a mesma direção dos precedentes, entrosados no<br />

mesmo turbilhão, como sentinelas militares transmitindo-se a<br />

senha e que, se o pensamento é ape<strong>na</strong>s uma série de vibrações,<br />

são estas mesmas vibrações a se perpetuarem, ain<strong>da</strong> que mude a<br />

substância dos círculos vibrantes. Mas, uma tal pretensão é<br />

duplamente insignificante, atento a que não explica melhor que<br />

as primeiras a identi<strong>da</strong>de do eu e tende a arrastar-nos ao ocultismo,<br />

arvorando o corpo em locutório de moleculazinhas capazes<br />

de se entenderem e concor<strong>da</strong>rem, mau grado à tagarelice e<br />

levian<strong>da</strong>de peculiares ao sexo.<br />

Pode-se ain<strong>da</strong> dizer que, se o cérebro mu<strong>da</strong> pouco a pouco, o<br />

mesmo sucede com o nosso caráter, tendências, o próprio espíri-


to. Mas, se de um lado considerarmos a substância constitutiva<br />

do cérebro num <strong>da</strong>do momento, teremos que, sema<strong>na</strong>s ou meses<br />

depois (não importa o prazo), a metade dessa substância, por<br />

exemplo, estará mu<strong>da</strong><strong>da</strong> e não haverá, portanto, senão outra<br />

metade substancial <strong>da</strong> considera<strong>da</strong> num <strong>da</strong>do momento. Depois,<br />

um meio quarto, e assim por diante. De sorte que, nesta hipótese,<br />

estaríamos mu<strong>da</strong>dos em duas, três, quatro partes, até que <strong>na</strong><strong>da</strong><br />

restasse <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de primitiva. Ora, quem não vê, quem não<br />

sente, que se não guar<strong>da</strong>m de tal arte fragmentos de alma, e que<br />

esta é u<strong>na</strong>, simples, indivisível e idêntica a si mesma em qualquer<br />

período de sua duração? A permanência do eu ressalta,<br />

ain<strong>da</strong> uma vez, vitoriosa dessa mixórdia.<br />

Avançarão, enfim, que há no cérebro um lugar qualquer, um<br />

santuário em cujo ádito fique, isenta <strong>da</strong>s leis gerais, uma molécula<br />

imutável, permanente, privilegia<strong>da</strong> entre as demais, dota<strong>da</strong> de<br />

integri<strong>da</strong>de i<strong>na</strong>tacável, e que essa tal molécula é o centro dos<br />

pensamentos e o que constitui a identi<strong>da</strong>de pessoal?<br />

Mas, tal suposição é, não ape<strong>na</strong>s arbitrária e bal<strong>da</strong> de sentido,<br />

mas também contrária à observação científica e à índole do<br />

método positivo. De resto, nenhum dos adversários se decide a<br />

lhe assumir a responsabili<strong>da</strong>de.<br />

Assim, queiram ou não, a identi<strong>da</strong>de permanente do ser mental<br />

é fato inconciliável com a mutabili<strong>da</strong>de incessante do órgão<br />

cerebral, no caso em que se conceitue o nosso ser mental como<br />

atributo orgânico.<br />

Singular audácia de sonhadores, o virem negar, à face <strong>da</strong><br />

consciência individual e universal, o grande fato <strong>da</strong> existência<br />

pessoal <strong>da</strong> alma! Não sabemos todos, à sacie<strong>da</strong>de, que o nosso<br />

eu e os nossos órgãos são radicalmente distintos? que a nossa<br />

pessoa se reconhece e afirma independente em si e de si mesma?<br />

que nós não somos os nossos órgãos, mas que eles são nossos, o<br />

que é bem diferente? Negar tal coisa, vale por negar a luz meridia<strong>na</strong>.<br />

Pôr assim em dúvi<strong>da</strong> a primeira afirmação de consciência,<br />

pretender que estejamos iludidos e que, ao invés de uma existência<br />

pessoal, <strong>da</strong> posse dos nossos órgãos, são estes que nos possuem,<br />

é pôr em dúvi<strong>da</strong> ao mesmo tempo o princípio de to<strong>da</strong> e


qualquer certeza, é reduzir a fumo o secular edifício dos conhecimentos<br />

humanos.<br />

Negado esse primeiro fato de consciência, <strong>na</strong><strong>da</strong> mais resta à<br />

Humani<strong>da</strong>de.<br />

Haverá quem desconheça a ousadia de semelhante pilhéria?<br />

Se estamos iludidos acerca <strong>da</strong> própria perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, em que<br />

mais poderíamos crer e afirmar nesta vi<strong>da</strong>? Admiramos esses<br />

senhores materialistas, que colocam uma tal dúvi<strong>da</strong> em primeiro<br />

plano e ousam afirmá-la com pretensas observações de ciência<br />

positiva. Não vos parece sejam eles, por sua vez, joguetes de<br />

mirífica ilusão quando assim tão ingenuamente sustentam não<br />

passar de miragem a identi<strong>da</strong>de pessoal, para que sejamos tão só<br />

um adjetivo do elemento cerebral? Sim, porque, persuadidos<br />

deveriam estar de que não lhes sendo as próprias idéias mais que<br />

produto do fósforo e <strong>da</strong> potassa, a <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong>s mesmas idéias<br />

depende <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções e, conseqüentemente, não<br />

lhes vai bem essa atitude de pregoeiros pessoais. Essa prerrogativa<br />

lhes escapa, e se quiséssemos levar o seu mesmo sistema às<br />

suas burlescas conseqüências, começaríamos por considerá-los<br />

pessoalmente inexistentes e, em lugar de a eles nos dirigirmos<br />

como a criaturas pensantes, nos ateríamos à constituição do seu<br />

cérebro. Aqui, é oportuno lembrar, com Hersehel, não haver<br />

absurdo que um alemão não teorize.<br />

Atingidos esses exageros, não há como deixar de olhar para<br />

trás e lembrar a Ontologia no trono que ela abdicou em benefício<br />

<strong>da</strong> república científica. Sem restabelecer o equilíbrio, somos<br />

tentados a perguntar, com de Broglie 75 , se a Ontologia será bem<br />

uma asneira e se os ontologistas não serão uns loucos, idiotas,<br />

sonhadores. Nem tanto, responderemos com o acadêmico. A<br />

Ontologia não é coisa que se deva tomar em sentido pejorativo,<br />

pois é um dos ramos <strong>da</strong> Filosofia geral, ciência do ser, em oposição<br />

à do fenômeno, ou <strong>da</strong> aparência.<br />

O homem, dizem os filósofos, abor<strong>da</strong> diretamente os fenômenos<br />

e apreende-os, seja pelos sentidos, seja pela consciência;<br />

estu<strong>da</strong>-os, descreve-os, compara-os. Entretanto, sob o fenômeno<br />

há o ser que persiste enquanto ele – o fenômeno – mu<strong>da</strong> ou


passa. Independentemente dos atributos, <strong>da</strong>s modificações, há a<br />

substância que suporta os atributos e sofre as modificações. Às<br />

quali<strong>da</strong>des e aparências é necessário um objeto de inerência, um<br />

suporte, ou o que melhor nome tenha. Enquanto as ciências<br />

<strong>na</strong>turais descrevem os fenômenos sensíveis e a Psicologia descreve<br />

os fenômenos conscienciais, a Ontologia son<strong>da</strong> a legitimi<strong>da</strong>de<br />

do processo pelo qual passamos do fenômeno ao ser.<br />

Aqui não queremos, porém, entrar nem conduzir o leitor a essa<br />

cripta ain<strong>da</strong> assaz obscura, <strong>da</strong> ciência abstrata, pois tememos,<br />

como ninguém, as ema<strong>na</strong>ções soporíficas que a cripta exala.<br />

Temos, por essencial, permanecer no plano ativo e luminoso<br />

<strong>da</strong> observação experimental. Notamos mesmo – tão certo estamos<br />

<strong>da</strong> vitória e de sobrancear com prazer to<strong>da</strong>s as dificul<strong>da</strong>des<br />

– que a autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> consciência pode, sob um certo prisma, ser<br />

posta em dúvi<strong>da</strong> e que importa não aceitar sem controle o testemunho<br />

puro e simples do senso íntimo. Como o princípio pensante<br />

sofre a ca<strong>da</strong> instante uma chusma de influências deriva<strong>da</strong>s<br />

do mundo exterior e não lhe seja possível descobri-la e remontála,<br />

poder-se-ia, talvez, pretender que a convicção de sua identi<strong>da</strong>de<br />

seja uma ilusão devi<strong>da</strong> a uma ignorância invencível do<br />

respectivo jogo dos elementos componentes. A essa objeção,<br />

responderemos com Magy, 76 no encadeamento <strong>da</strong>s proposições<br />

seguintes:<br />

Na alma huma<strong>na</strong>, como em to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>, encontramos em<br />

coexistência a força e a extensão. Os fatos de molde a revelar<br />

uma ativi<strong>da</strong>de própria, no ser pensante, são visíveis a ca<strong>da</strong> passo,<br />

<strong>na</strong> marcha de nossos estudos.<br />

Com efeito, a primeira condição do aprendizado é, para o<br />

nosso espírito, um esforço espontâneo para neutralizar as causas<br />

tendentes a nos manter <strong>na</strong> inércia e <strong>na</strong> ignorância, tais como os<br />

imperativos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social, as necessi<strong>da</strong>des do corpo, as paixões,<br />

a falta de aptidões, as dificul<strong>da</strong>des próprias do estudo.<br />

Esse esforço prelimi<strong>na</strong>r não cessa com o início do estudo,<br />

mas, ao contrário, mantém-se e avulta no período <strong>da</strong>s aquisições.<br />

Preciso se faz uma atenção firme e persistente, para nos penetrarmos<br />

dos conhecimentos a que aspiramos. Essa atenção é tão


indispensável ao colegial como ao maior dos gênios. Newton não<br />

teria encontrado a atração universal senão por sua constante<br />

tensão espiritual. Arquimedes, absorvido <strong>na</strong> investigação de um<br />

problema, não dá pela toma<strong>da</strong> de Siracusa e sucumbe trespassado<br />

pelo gládio invasor, como vítima – diga-se – do di<strong>na</strong>mismo<br />

<strong>da</strong> sua alma. Descartes lobriga em to<strong>da</strong>s as coisas um motivo de<br />

meditação. E não sabemos, todos nós, que a Ciência só se adquire<br />

a preço de esforços perseverantes e depois de matura<strong>da</strong> contensão<br />

espiritual sobre o objeto do estudo?<br />

Mais ain<strong>da</strong>: essa mesma energia, indispensável ao espírito para<br />

adquirir o saber, tor<strong>na</strong>-se-lhe necessária para conservá-lo. O<br />

melhor meio de reter <strong>na</strong> memória a Ciência está no concentrar-se<br />

demora<strong>da</strong>mente em ca<strong>da</strong> idéia ou fato, em <strong>da</strong>r conta minudente<br />

dos processos de pesquisa utilizados pelos inventores, em lhes<br />

apreender o método e fixar, de qualquer modo, o estudo no<br />

cérebro. Estes fatos atestam que o ser pensante, no adquirir<br />

conhecimentos, os assimila mediante um trabalho que lhe é<br />

próprio, comportando-se com força individual. Agora, o modo<br />

fun<strong>da</strong>mental de ação <strong>da</strong> causa inteligente prova, peremptoriamente,<br />

que essa força é individual e não um conjunto de forças<br />

distintas.<br />

To<strong>da</strong>s as operações <strong>da</strong> inteligência huma<strong>na</strong> são análises sintéticas,<br />

ou sínteses a<strong>na</strong>líticas, isto é: consistem essencialmente <strong>na</strong><br />

decomposição de um <strong>da</strong>do todo, ou <strong>na</strong> coorde<strong>na</strong>ção de elementos<br />

distintos, em que ca<strong>da</strong> qual intervém com a sua cota e toma o seu<br />

lugar lógico. – Qualquer que seja a ciência focaliza<strong>da</strong>, nela se<br />

afirma a lei do espírito humano, sem a qual não haveria qualquer<br />

relação entre os diversos objetos do nosso conhecimento, nem a<br />

própria Ciência existiria. Desnecessário exemplificar, no pressuposto<br />

de estarem os leitores assaz habituados com os processos<br />

intelectuais íntimos, para que bem os compreen<strong>da</strong>m simplesmente<br />

enunciados <strong>na</strong> sua profundeza e universali<strong>da</strong>de.<br />

Pois bem: se julgarmos a alma pela sua ação intelectual, reconheceremos,<br />

sem hesitação, que a força pensante não pode ser<br />

um agregado de forças elementares. De fato, como poderia a<br />

alma centralizar to<strong>da</strong>s as observações que se lhe impõem, grupar<br />

silogismos secundários em torno do principal, associar julgamen-


tos segundo as regras <strong>da</strong> Lógica, perceber a relação dos termos<br />

convenientemente enunciados, coorde<strong>na</strong>r numa mesma intuição<br />

os fenômenos estu<strong>da</strong>dos, formular hipóteses, comparar resultados?<br />

Como poderia, em suma, abstrair e generalizar, senão como<br />

força absolutamente simples, indivisível e dota<strong>da</strong> <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de<br />

de tudo avocar a si, como juiz único, em consciência única?<br />

Os partidários <strong>da</strong> secreção cerebral repetirão, ain<strong>da</strong> uma vez,<br />

que essa alma pessoal não passa de uma resultante de to<strong>da</strong>s as<br />

forças elabora<strong>da</strong>s pelos órgãos do cérebro e sintoniza<strong>da</strong>s num<br />

di<strong>na</strong>mismo bem regulado, assim estabelecendo a uni<strong>da</strong>de e<br />

harmonia do trabalho intelectual.<br />

Mas, este singular acordo de to<strong>da</strong>s essas pequeni<strong>na</strong>s almas,<br />

para formarem uma grande alma, é hipótese mais complica<strong>da</strong> e,<br />

por conseqüência, mais afasta<strong>da</strong> que a nossa <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de <strong>na</strong>tural.<br />

Ao invés de estabelecer a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, ela a destrói. Localizando<br />

as facul<strong>da</strong>des nos diversos órgãos do cérebro, Gall declarava<br />

que to<strong>da</strong>s elas são dota<strong>da</strong>s <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de de percepção, de<br />

atenção, de memória, de recor<strong>da</strong>ção, de julgamento e de imagi<strong>na</strong>ção!<br />

Que bela república! Quando uma que tal facul<strong>da</strong>de sobrepujar<br />

as vizinhas (o que a observação demonstra em ca<strong>da</strong> indivíduo),<br />

estas suportarão submissas o seu despotismo? Quando duas<br />

facul<strong>da</strong>des se desentenderem, por exemplo a de nº 5 (pendor para<br />

a morte) e a de nº 24 (benevolência), quem domi<strong>na</strong>rá o antagonismo?<br />

Há que imagi<strong>na</strong>r logo um generalíssimo e, neste caso,<br />

oficiais e sol<strong>da</strong>dos tor<strong>na</strong>m-se inúteis e o nosso general ficará<br />

sendo, simplesmente ele, o próprio espírito, pois, como acabamos<br />

de ver, <strong>da</strong>do o modo de ação intelectual <strong>da</strong> alma, bem como<br />

o testemunho <strong>da</strong> consciência, essa alma é única, idêntica e indivisível.<br />

É fácil reconhecer o caráter dinâmico <strong>da</strong> alma em to<strong>da</strong>s as suas<br />

manifestações. Se observarmos um espírito culto, o que logo<br />

se revela nele é uma sede insaciável de conhecimentos, é a força<br />

virtual <strong>da</strong> alma a traduzir-se em obras eloqüentes.<br />

Se baixarmos às cama<strong>da</strong>s inferiores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, a essas zo<strong>na</strong>s<br />

penumbrosas onde a flama <strong>da</strong> instrução ain<strong>da</strong> não radia,<br />

vemos não mais uma ativi<strong>da</strong>de em função intelectual, mas passio<strong>na</strong>l,<br />

um modo de ativi<strong>da</strong>de psicológica universal.


À tendência passio<strong>na</strong>l do indivíduo junta-se, ain<strong>da</strong>, a energia<br />

de uma paixão domi<strong>na</strong>nte e a esta uma vontade que a combate,<br />

ou que a dirige. A facul<strong>da</strong>de de vencer ou de nortear as suas<br />

paixões é, pois, ain<strong>da</strong> uma forma dinâmica <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> alma.<br />

Se, enfim, baixarmos <strong>da</strong>s nossas vontades particulares aos hábitos<br />

que elas engendram e mantêm em nós, chegaremos a reconhecer<br />

que todos os atos, desde a obra criadora do pensamento<br />

até o movimento mais simples de um membro, denunciam a<br />

força íntima que nos gover<strong>na</strong> e se traduz em ato material, por<br />

intermédio dos centros nervosos, dos nervos e dos músculos.<br />

Sabemos que a fonte de todo o movimento orgânico reside no<br />

espírito. Ninguém ousará negar que meu braço ou minha per<strong>na</strong><br />

se movem ao impulso de minha vontade, qual se dá com a locomotiva<br />

à pressão do vapor, dirigi<strong>da</strong> pelo maquinista. Meu corpo<br />

em si, e por si só, é inerte. Descartes e Locke, neste ponto, estão<br />

de acordo com Leibnitz. O pensamento é ação <strong>da</strong> alma: será<br />

preciso mais para sustentar que a alma é força? O próprio Cabanis<br />

não an<strong>da</strong> longe de o confessar, quando diz que “para ter uma<br />

idéia justa <strong>da</strong>s operações que origi<strong>na</strong>m o pensamento, importa se<br />

considere o cérebro como um órgão particular, especialmente<br />

desti<strong>na</strong>do a produzi-lo, assim como o estômago e os intestinos se<br />

desti<strong>na</strong>m a operar a digestão; o fígado a filtrar bílis, as paróti<strong>da</strong>s<br />

e as glândulas maxilares ao preparo <strong>da</strong> saliva. As impressões,<br />

atingindo o cérebro, fazem-no entrar em ativi<strong>da</strong>de e sua função<br />

peculiar é perceber ca<strong>da</strong> impressão particular, ligar os si<strong>na</strong>is,<br />

combi<strong>na</strong>r as diferentes impressões, compará-las entre si e tirar<br />

ilações e determi<strong>na</strong>ções, tal como a função dos outros órgãos é<br />

atuar sobre as substâncias nutritivas, cuja presença os estimula,<br />

dissolvendo-os e assimilando-lhes os sucos”. Cabanis acrescenta<br />

que essa maneira de ver levanta “a dificul<strong>da</strong>de suscita<strong>da</strong> por<br />

quantos, em considerarem a sensibili<strong>da</strong>de uma facul<strong>da</strong>de passiva,<br />

não compreendem como julgar, racioci<strong>na</strong>r, imagi<strong>na</strong>r, não seja<br />

outra coisa que sentir. A dificul<strong>da</strong>de desaparece quando se<br />

reconhece nestas diversas operações a ação do cérebro sobre as<br />

impressões que lhe são transmiti<strong>da</strong>s”. Conseqüentemente, notaremos<br />

nós, com Magy, segundo os fisiologistas menos espiritualistas,<br />

o cérebro é um sistema cuja função é produzir e elaborar o<br />

pensamento, que assim se tor<strong>na</strong>, literalmente, dele resultante. Aí,


param eles, sem perceberem que, por tudo explicarem, só lhes<br />

resta uma palavra a acrescentar.<br />

Todos quantos – em face <strong>da</strong> correlação notável que une a alma<br />

ao corpo em to<strong>da</strong>s as manifestações destes dois princípios –<br />

afirmam a identi<strong>da</strong>de substancial <strong>da</strong> força pensante e <strong>da</strong> energia<br />

cerebral, assemelham-se aos que dão à matéria atributos divinos.<br />

Eles transferem ao cérebro as facul<strong>da</strong>des inerentes ao Ser pensante,<br />

que a consciência revela no fundo de nossa ativi<strong>da</strong>de<br />

íntima.<br />

To<strong>da</strong>s as vossas pretensões se evaporam, ó desprezadores <strong>da</strong><br />

Inteligência! A Humani<strong>da</strong>de em peso vos impõe este vocábulo<br />

imperecível – Alma. E ca<strong>da</strong> ser pensante afirma, em particular, o<br />

Eu que rege, que centraliza sua própria vi<strong>da</strong>. Em vão procurais<br />

ligar essa perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de a um movimento material <strong>da</strong> medula<br />

espi<strong>na</strong>l! A isso oponho eu, vitoriosamente, a minha potência<br />

intelectual, que diz: eu penso, eu julgo, eu quero; essa potência<br />

i<strong>na</strong>tacável, que considera o visível como o invisível, o material<br />

como o imaterial, o presente, o passado, o futuro; que não pode<br />

filiar-se à matéria, de vez que sua vi<strong>da</strong> e atos se completam no<br />

mundo moral.<br />

Oponho-vos, enfim, meu pensamento, que a vós se dirige<br />

fremente pelo vosso atentado e que, por esta mesma palavra,<br />

através destas linhas, atesta-vos a minha existência individual,<br />

quanto afirma a minha perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. Pretendereis que este<br />

protesto possa provir de um lóbulo do meu cérebro?<br />

Não, meus senhores, parai com o gracejo; eu sei (e vós também)<br />

que quem aqui vos fala é o meu espírito e não um nervo ou<br />

uma fibra...<br />

Por encerrar este capítulo concernente à perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>,<br />

poderíamos acrescentar algumas reflexões sobre uns tantos<br />

motivos de estudo, ain<strong>da</strong> misteriosos e <strong>na</strong><strong>da</strong> insignificantes. O<br />

So<strong>na</strong>mbulismo <strong>na</strong>tural, o Magnetismo e o Espiritismo oferecem<br />

aos pesquisadores sérios, capazes de os entestar cientificamente,<br />

fatos característicos, que bastariam para mostrar a insuficiência<br />

<strong>da</strong>s teorias materialistas.


É triste, confessamo-lo, para o observador consciencioso, ver<br />

o charlatanismo descarado intrometer-se, ávido e pérfido, em<br />

causas respeitáveis; triste assi<strong>na</strong>lar que noventa por cento dos<br />

fatos podem ser falsos, ou imitados. Mas, um só fato, bem averiguado,<br />

é suficiente para bal<strong>da</strong>r to<strong>da</strong>s as explicações. Ora, qual a<br />

atitude de uns tantos doutos diante desses fatos? Negá-los sumariamente.<br />

“A Ciência está convicta, diz Büchner, em particular, de que<br />

todos os presumidos casos de clarividência não passam de conluios<br />

e trapaças. A lucidez, por motivos de ordem <strong>na</strong>tural, é<br />

impossível. É imperativo <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> que os efeitos dos<br />

sentidos se adstrinjam a determi<strong>na</strong>dos e intransponíveis limites<br />

no espaço. A ninguém é <strong>da</strong>do adivinhar pensamentos, nem ver<br />

de olhos fechados o que se passa em torno. Ver<strong>da</strong>des são estas<br />

busca<strong>da</strong>s em leis <strong>na</strong>turais, imutáveis e sem exceções.”<br />

Ó senhor juiz! conheceis vós to<strong>da</strong>s as leis <strong>na</strong>turais? Na<strong>da</strong><br />

existirá oculto para vós <strong>na</strong> Criação? Feliz, vós, que ain<strong>da</strong> não<br />

sucumbistes à sobrecarga <strong>da</strong> vossa ciência! Mas, como? Eis que<br />

viro duas pági<strong>na</strong>s e leio: – “O So<strong>na</strong>mbulismo é fenômeno do<br />

qual não temos, infelizmente senão observações muito inexatas,<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> obstante carecermos de noções precisas, atendendo à importância<br />

que ele tem para a Ciência.<br />

“E to<strong>da</strong>via, sem <strong>da</strong>dos certos (vede bem), é lícito relegar à<br />

conta de fábulas todos os fatos maravilhosos extraordinários, que<br />

se atribuem aos sonâmbulos. A um só, destes, não é permitido<br />

escalar os muros, etc.”. Sensato que é o vosso raciocínio!<br />

E como teríeis bem procedido se, antes de escrever, procurásseis<br />

conhecer um pouco os assuntos que abor<strong>da</strong>is!<br />

Os observadores filósofos que nos ouvem, sabem que certos<br />

fatos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica são absolutamente inexplicáveis pela<br />

hipótese materialista e que, uma vez rigorosamente comprovados,<br />

podem, só por si, desmantelar o bailéu.<br />

Sem que se torne preciso aqui insistir sobre este aspecto <strong>da</strong><br />

questão, convém notar que é impossível admitir a alma como<br />

produto químico, ou dinâmico, quando sabemos que ela manifes-


ta, em <strong>da</strong><strong>da</strong>s circunstâncias, uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de distinta, uma<br />

<strong>na</strong>tureza incorpórea e facul<strong>da</strong>des independentes.<br />

Portanto, voltando às conclusões precedentes, temos: contradição<br />

<strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de psíquica com a multiplici<strong>da</strong>de dos movimentos<br />

cerebrais, contradição entre a identi<strong>da</strong>de constante <strong>da</strong> alma e a<br />

mutabili<strong>da</strong>de incessante dos elementos constitutivos do cérebro,<br />

contradição entre o caráter dinâmico <strong>da</strong> alma e as pretensas<br />

secreções orgânicas. Contradições, contradições e sempre contradições!<br />

Se os adversários acham que elas não bastam, o exame dos<br />

fatos de volição lhes vai facultar um novo discernimento.


3 - A Vontade do Homem<br />

SUMÁRIO – Exame e contestação desta assertiva: “a Matéria<br />

gover<strong>na</strong> o homem”. – Se é ver<strong>da</strong>de que a vontade e o indivíduo<br />

não passam de ilusão. – Se consciência e julgamento dependem<br />

<strong>da</strong> alimentação. Exemplos históricos <strong>da</strong> força de vontade e caráter<br />

de grandes homens. – Coragem, perseverança e virtude. – As<br />

facul<strong>da</strong>des intelectuais e morais <strong>na</strong><strong>da</strong> têm com a Química. – Divagações<br />

curiosas, feitas à margem do Reno. – Influência dos<br />

legumes no progresso espiritual <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de. Liber<strong>da</strong>de moral.<br />

– Aspirações e afecções independentes <strong>da</strong> Matéria. – Espírito<br />

e corpo.<br />

“Dizia Zélter a Goethe que um dos maiores obstáculos que<br />

impediam os alemães de falar o seu idioma tão espontânea e<br />

correntemente como outros povos provinha de certa pressão <strong>da</strong><br />

língua, pelo fato de muito se alimentarem de vegetais e gorduras.<br />

É ver<strong>da</strong>de que não temos outra coisa, mas a sobrie<strong>da</strong>de e a<br />

prudência muito podem remediar e corrigir” 77 .<br />

É com esta advertência que Moleschott abre o grande capítulo<br />

epigrafado: “a Matéria gover<strong>na</strong> o Homem”, sem perceber que a<br />

segun<strong>da</strong> frase do parágrafo traz consigo a conde<strong>na</strong>ção que ele vai<br />

especar, <strong>da</strong>s correlações alimentares com o estado físico e intelectual<br />

do homem. Quando o velho companheiro de Goethe lhe<br />

observa que a sobrie<strong>da</strong>de e a prudência podem fazer e corrigir<br />

muitas coisas, prova, por isso mesmo, que ele não se julga tão<br />

somente uma composição material, mas, também, uma força<br />

mental, capaz de tirar de si mesmo resoluções contrárias às<br />

tendências <strong>da</strong> matéria. Vamos, com efeito, acompanhar a argumentação<br />

materialista que, aqui como alhures, peca sempre pela<br />

base e não se mantém senão por uma espécie de equilíbrio<br />

instável, que um piparote de criança pode desmantelar. O adversário<br />

de Liebig pretende demonstrar que a matéria gover<strong>na</strong> o<br />

homem, estabelecendo que a alimentação atua sobre o organismo.<br />

Como tema de Fisiologia, estes fatos são interessantes e<br />

instrutivos, e a nós nos praz o ensejo de os resumir aqui; mas,<br />

como tema de Filosofia, eles se nos afiguram o que possa haver<br />

de mais incompleto. Consideremo-lo previamente: O quadro<br />

deste capítulo vai oferecer-nos, por sua própria <strong>na</strong>tureza, um


duplo aspecto. No verso, desenhado pela Fisiologia contemporânea,<br />

notaremos a ação física dos alimentos no organismo, e no<br />

reverso veremos que a mesma está longe de constituir o homem<br />

integral e que o ser humano reside numa potência superior às<br />

transformações <strong>da</strong> bílis e do quilo, potência que gover<strong>na</strong> a matéria<br />

e longe está de se lhe escravizar.<br />

Invoca-se, em primeiro lugar, a diferença do regime alimentar,<br />

vegetariano ou carnívoro. Legumes e hortaliças contêm<br />

pouca água, poucas gorduras e quarenta vezes menos albumi<strong>na</strong><br />

que a carne. A<strong>na</strong>lisando os sais contidos nestas substâncias<br />

opostas, concluíram que o regime carnívoro aumenta os fosfatos<br />

no sangue, e o vegetariano, pelo contrário, desenvolve os carbo<strong>na</strong>tos.<br />

De resto, as substâncias albuminosas <strong>da</strong>s partes verdes <strong>da</strong><br />

planta não são a albumi<strong>na</strong>, nem a fibri<strong>na</strong>. Preciso é, pois, que<br />

elas sofram essa primeira transformação, antes de se incorporarem<br />

ao sangue. As gorduras vegetais, por sua vez, não são ver<strong>da</strong>deiras<br />

gorduras, mas tão só adipogenias, ou seja, elementos<br />

que origi<strong>na</strong>m gordura e, portanto, precisando sofrer uma primeira<br />

transformação. Há razão para dizer que a diferença de ação <strong>da</strong><br />

carne começa a fazer-se sentir no sangue antes dele formado, isto<br />

é, <strong>na</strong> sanguificação, <strong>na</strong> digestão.<br />

Esses alimentos serão tanto mais facilmente digeridos quanto<br />

mais os seus elementos constitutivos se identificarem com os do<br />

sangue. Daí resulta que a carne, mais que o pão e os legumes,<br />

aproveita à sanguificação. O comprimento dos intestinos relacio<strong>na</strong>-se<br />

com esse processo de digestão, de acordo com as substâncias,<br />

permitindo-nos fazer dele uma idéia. Nos morcegos, que só<br />

se nutrem de sangue, o tubo intesti<strong>na</strong>l não passa do triplo do<br />

comprimento do corpo. No homem, cujo regime é misto (o que<br />

igualmente se indicia pelo sistema dentário, composto de caninos<br />

e incisivos), o comprimento do intestino é o sêxtuplo <strong>da</strong> altura.<br />

No carneiro, herbívoro, o intestino é vinte e oito vezes mais<br />

longo que o corpo. Todos os animais carnívoros têm estômago<br />

pequeno. O estômago humano tem a forma de um reservatório,<br />

atravessando a cavi<strong>da</strong>de abdomi<strong>na</strong>l, provido de um beco sem<br />

saí<strong>da</strong>, maior que nos pré-citados animais. Os rumi<strong>na</strong>ntes, por


guar<strong>da</strong>rem a forragem, têm um estômago de quatro compartimentos.<br />

O homem tem a construção do onívoro. De passagem, digase,<br />

as velhas prescrições pitagóricas, tanto quanto as moder<strong>na</strong>s<br />

proposições de Rousseau e de Helvétius a favor do regime<br />

animal, devem ser rejeita<strong>da</strong>s como anti<strong>na</strong>turais.<br />

Sendo os vegetais menos nutrientes que os animais, o pão<br />

ocupa um lugar intermediário. No glúten que o compõe, dois<br />

corpos albuminóides se distinguem: albumi<strong>na</strong> vegetal, insolúvel,<br />

e cola vegetal. Estas substâncias diferem <strong>da</strong> fibri<strong>na</strong> <strong>da</strong> carne e<br />

devem dissolver-se nos sucos, durante a digestão. No pão há<br />

menos gordura que <strong>na</strong> carne, mas há o amido e o açúcar, que<br />

devem transformar-se em gordura ao perderem uma parte de<br />

oxigênio. Destas comparações decorre que o sangue, e com ele<br />

os músculos, os nervos, a carne e todos os tecidos, se renovam<br />

mais rapi<strong>da</strong>mente no regime carnívoro.<br />

Infere-se <strong>da</strong>í, que, sendo o sangue o fator dos tecidos, <strong>da</strong>s secreções<br />

e excreções orgânicas, e ain<strong>da</strong> porque se modela pela<br />

alimentação do homem, a diferença primordial, assi<strong>na</strong>la<strong>da</strong> entre<br />

os regimes vegetal e animal, deve estender sua influência a todos<br />

os fenômenos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Detivessem-se eles nesta conclusão e <strong>na</strong><strong>da</strong> teríamos a objetar.<br />

Dizemos, com os antagonistas, que o apetite de um homem sadio<br />

se apazigua antes com um bife do que com uma sala<strong>da</strong>. Consentimos<br />

em admitir que, se as raças de índios caçadores revelam<br />

força muscular notável, ao passo que os insulares do Pacífico se<br />

apresentam fracos (relativamente), é porque estes se alimentam<br />

de ervas e frutos e aqueles de muita carne. Concedemos, igualmente,<br />

que a indolência e falta de caráter dos Hindus pren<strong>da</strong>-se<br />

um tanto ao seu regime herbívoro; – que o filósofo Haller tivesse<br />

razão para acusar uma tal ou qual inércia com o vegetarismo de<br />

alguns dias; – que, por um efeito inverso, uma divisão do Exército<br />

a que pertencia Villermé, <strong>na</strong> guerra de Espanha, fosse atingi<strong>da</strong><br />

de diarréia (relevem a citação que é literal), de magreza e debili<strong>da</strong>de,<br />

por ter sido forçado a se alimentar só de carne durante oito<br />

dias. Concor<strong>da</strong>mos, também, que os índios do Óregon só comem<br />

raízes, durante um longo período do ano, <strong>da</strong>s quais vinte espécies


são <strong>na</strong>tivas – com o que muito nos prazemos – e que as tribos se<br />

movem de uns a outros lugares para captá-las, visto não maturarem<br />

senão sucessivamente. De boamente aceitamos que, vigente<br />

ain<strong>da</strong>, no Malabar, a crença <strong>na</strong> metempsicose, por lá existam<br />

hospitais para animais e se alimentem, nos templos, ratos cuja<br />

vi<strong>da</strong> é sagra<strong>da</strong>. Sabemos, mais, que os Islandeses, Kanitscha<strong>da</strong>les,<br />

Lapônios, Samoledos, só podem alimentar-se de peixe<br />

durante um certo período do ano, enquanto que os caçadores <strong>da</strong>s<br />

planícies america<strong>na</strong>s só comem carne de bisão. Concor<strong>da</strong>mos,<br />

enfim, sem relutância e sem provas, que “basta comer marmela<strong>da</strong><br />

ou maçã para alcalinizar a uri<strong>na</strong>” e que os franceses emitem<br />

menos uréia que os alemães, aliás muito distanciados dos ingleses<br />

– o que prova consumir-se em Londres 1,6% <strong>da</strong> carne consumi<strong>da</strong><br />

em Paris – e, por fim, não estranhamos que as graciosas<br />

passeantes, mais que o transeunte vulgar, encareçam a vantagem<br />

de aumentar os mictórios públicos de Paris ou <strong>da</strong>r-lhes, no<br />

mínimo, outros dispositivos. Efetivamente vos <strong>da</strong>mos, ou melhor<br />

– consentimos tomeis, à vontade, tudo quanto pedirdes em<br />

Fisiologia... Mas, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, que relação tem tudo isso com a<br />

prova <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>? Com franqueza: que aclaramento<br />

essas experiências trazem ao assunto? Onde e como essa<br />

química demonstra a inexistência <strong>da</strong> alma? E que fazeis do<br />

método científico, que recomen<strong>da</strong> não proceder senão por induções<br />

ou deduções? Que mancebia é essa com a escolástica dos<br />

nossos avós?<br />

Certo, não sabemos o que mais admirar: se a audácia, se o erro<br />

destes fisiologistas, levando-nos à bor<strong>da</strong> do abismo e dizendonos:<br />

saltai! Será que acreditem ter lançado uma ponte com<br />

algumas teias de aranha? Na ver<strong>da</strong>de, é preciso encarar o espírito<br />

humano como um cego de <strong>na</strong>scença, para pretender adormentálo<br />

com semelhantes processos. De fato, quem se não admirará de<br />

saber que, como conclusão de fatos mais ou menos incompletos,<br />

quais os precedentes, apresentem-nos a seguinte e enfática<br />

declaração:<br />

– Observações numerosas e experiências feitas em grande escala,<br />

provam que o homem deve, em parte, a sua privilegia<strong>da</strong>


situação, em relação aos animais, à facul<strong>da</strong>de de se alimentar ora<br />

de vegetais, ora de carne 78 .<br />

* A matéria é a base de to<strong>da</strong> a força espiritual, de to<strong>da</strong> a<br />

grandeza huma<strong>na</strong> e terrestre 79 .<br />

* O vocábulo alma, considerado a<strong>na</strong>tomicamente, exprime o<br />

conjunto <strong>da</strong>s funções cerebrais e <strong>da</strong> medula espinhal, e, fisiologicamente,<br />

o conjunto <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de encefálica 80 .<br />

* A análise não encontra <strong>na</strong> consciência, neste augusto instinto,<br />

nesta Voz imortal, mais que um simples mecanismo, que se<br />

desmonta como qualquer aparelho 81 .<br />

A estas afirmações não falta ousadia. Mas, depois <strong>da</strong>s declarações<br />

negativas por nós registra<strong>da</strong>s no capítulo anterior, de <strong>na</strong><strong>da</strong><br />

mais nos podemos admirar.<br />

Se é ver<strong>da</strong>de que os temperos auxiliam a digestão - diz Moleschott<br />

– e o pão de rala, as frutas (especialmente figos) ingeridos<br />

em jejum e regados com um copo d'água fria desenvolvem o<br />

ventre; se os rabanetes, o alho, a baunilha, estimulam o sensualismo,<br />

e se o vinho o chá e o café atuam sobre o cérebro claro<br />

está que a matéria gover<strong>na</strong> o homem...<br />

Sobre isso, não tínhamos dúvi<strong>da</strong>s. Sabeis o que é preciso para<br />

adquirir eloqüência? É não comer nozes nem amêndoas. E como<br />

a voz e a palavra dependem, ao que parece, dos movimentos<br />

musculares <strong>da</strong> laringe, é preferível o regime vegetal ao gorduroso.<br />

Quereis uma prova <strong>da</strong> correlativi<strong>da</strong>de essencial de pensamento<br />

e matéria? Olhai o fundo <strong>da</strong> vossa xícara de café. Este, tal<br />

como o barco a vapor e o telégrafo, põe em ativi<strong>da</strong>de uma série<br />

de pensamentos, origi<strong>na</strong> uma corrente de idéias, de empreendimentos<br />

com ele. É evidente que a necessi<strong>da</strong>de oriun<strong>da</strong> de uma<br />

afini<strong>da</strong>de eletiva <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de pelo café e pelo chá, tornou-se<br />

mais imperiosa e generaliza<strong>da</strong>, à proporção que aumentaram as<br />

exigências intelectuais <strong>da</strong> civilização.<br />

Eis ain<strong>da</strong> um outro fato de importância capital. Os<br />

Kamstcha<strong>da</strong>les e os Tongouses embriagam-se com o seu aguoric<br />

vermelho e parece que os servos, desejosos de conhecerem a


sensação dessa bebi<strong>da</strong>, não trepi<strong>da</strong>m em beber a uri<strong>na</strong> dos seus<br />

amos.<br />

Logo, portanto, é a matéria que gover<strong>na</strong> o homem – conclui<br />

espirituosamente o Sr. Moleschott...<br />

Num tal sistema, qual já o temos entrevisto, é claro que o livre<br />

arbítrio fica completamente aniquilado. O próprio Moleschott<br />

o declara. Não somente o ar que a ca<strong>da</strong> momento respiramos<br />

transforma o sangue venoso em arterial; não só transmu<strong>da</strong><br />

os músculos em creati<strong>na</strong> e creatini<strong>na</strong>; o músculo do coração em<br />

hipoxanti<strong>na</strong>; o tecido do baço em hipoxanti<strong>na</strong> e ácido úrico; o<br />

humor vítreo dos olhos em uréia, como refunde a todo instante a<br />

composição do cérebro e dos nervos. O mesmo ar que respiramos<br />

mu<strong>da</strong> diariamente, não é <strong>na</strong>s matas o que é <strong>na</strong>s ci<strong>da</strong>des, não<br />

é sobre os mares o que é no cimo <strong>da</strong>s montanhas, nem ao nível<br />

<strong>da</strong>s ruas o que é no alto de uma torre. Alimentação, <strong>na</strong>scimento,<br />

educação, convivência, tudo, em torno de nós, rola num movimento<br />

que se comunica constantemente.<br />

– Proposições ver<strong>da</strong>deiras, estas, provam que o homem está<br />

envolvido no âmago de um mundo a cujas influências não pode<br />

eximir-se, e provam também, quem sabe, que o livre arbítrio não<br />

é tão absoluto quanto afirmam alguns psicólogos entusiastas.<br />

Mas, o que essas ver<strong>da</strong>des não provam é a inexistência <strong>da</strong> vontade<br />

huma<strong>na</strong>.<br />

Não são todos os materialistas que levam sua excentrici<strong>da</strong>de<br />

ao ponto de afirmar que a criatura huma<strong>na</strong> não tenha consciência<br />

de que existe, para que deixe de ter a liber<strong>da</strong>de de seus próprios<br />

atos e resoluções.<br />

Büchner é menos exagerado. Dizemos com ele, que o homem<br />

é obra <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>; que a sua pessoa, ações, pensamento e<br />

mesmo vontade estão submetidos as leis que regem o Universo.<br />

As ações e a conduta do indivíduo dependem, incontestavelmente,<br />

<strong>da</strong> sua educação do caráter, dos costumes, <strong>da</strong> índole do povo<br />

e <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção a que pertence e esta <strong>na</strong>ção é, por sua vez, e de certo<br />

modo, o produto do ambiente em que vive e <strong>da</strong>s relações exteriores<br />

que lhe entretiveram o desenvolvimento.


Pode-se por exemplo notar com Deser que o tipo americano<br />

se desenvolveu com os primeiros colonos ingleses há dois e meio<br />

séculos. É um resultado que se pode atribuir a influências climáticas.<br />

O tipo americano distingue-se pela sua compleição, pelo pescoço<br />

alto, pelo temperamento dinâmico e ardoroso. O pouco<br />

desenvolvimento do sistema glandular, que dá às america<strong>na</strong>s<br />

essa expressão ter<strong>na</strong> e vaporosa; a espessura, o comprimento e a<br />

secura do cabelo, podem provir <strong>da</strong> secura do ar. Há quem suponha<br />

ter notado que a agitação dos americanos aumenta com os<br />

ventos do Nordeste. Desses fatos se infere que o grandioso e<br />

rápido progresso dos Estados Unidos seria, em parte, devido ao<br />

meio físico.<br />

Tal como <strong>na</strong> América, os ingleses origi<strong>na</strong>ram um novo tipo<br />

<strong>na</strong> Austrália, nota<strong>da</strong>mente em a Nova-Gales do Sul. Aí, os<br />

homens são altos, magros, musculosos, e as mulheres belíssimas,<br />

mas, de uma beleza efêmera. Os “novos colonos” dão-lhes o<br />

apelido de Cornstalks (palha de trigo). O caráter inglês ressentese<br />

do firmamento nebuloso, do ar pesado, dos estreitos limites <strong>da</strong><br />

terra <strong>na</strong>tal. O italiano, pelo contrário, reflete em tudo o céu<br />

sempre belo e o Sol sempre ardente <strong>da</strong> sua pátria. (E, contudo, os<br />

romanos muito têm mu<strong>da</strong>do de 2000 anos a esta parte.) As idéias<br />

e contos fantásticos do oriente estão intimamente ligados à<br />

luxuriante vegetação que lhes moldura o berço. A zo<strong>na</strong> glacial<br />

não produz mais que raquíticos arbustos e, assim também, uma<br />

raça mofi<strong>na</strong>, <strong>na</strong><strong>da</strong> ou pouco acessível ao progresso. Os habitantes<br />

<strong>da</strong> zo<strong>na</strong> tórri<strong>da</strong> também pouco se a<strong>da</strong>ptam a uma cultura<br />

superior. Só nos países onde o clima, o solo e as relações ambientes<br />

oferecem um certo meio-termo, pode o homem equilibrarse<br />

e adquirir um grau de cultura preponderante sobre os seres e<br />

as coisas que a rodeiam.<br />

To<strong>da</strong>s estas observações não provam, porém, que a matéria<br />

governe o homem e que a vontade e a individuali<strong>da</strong>de sejam uma<br />

ilusão. Cumpre, mesmo, advertir ao autor de Força e Matéria<br />

que, antes, são os indivíduos que fazem as <strong>na</strong>ções e não estas os<br />

indivíduos. Qual o dizia Stuart Mili, o mérito de um Estado está,<br />

em tese, no dos indivíduos que o compõem. Não são as institui-


ções, nem as leis, nem os governos que fazem a grandeza <strong>da</strong>s<br />

<strong>na</strong>ções, mas o valor e a conduta dos ci<strong>da</strong>dãos. É, pois, <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de<br />

dos homens que depende o progresso dos povos, e não<br />

de suas condições gerais. Em vão se dirá que esta individuali<strong>da</strong>de<br />

mais não é que o resultado preciso <strong>da</strong>s disposições do corpo:<br />

– educação, instrução, exemplo, fortu<strong>na</strong>, posição social, sexo,<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, clima, solo, época, etc. No ser humano existe uma<br />

força transcendente a tudo isso, uma força que os negativistas<br />

não querem ver e procuram ocultar no nevoeiro de sua paralogia.<br />

Assim como a planta – dizem eles – depende do terreno em que<br />

radica, não somente em relação à sua existência, mas ain<strong>da</strong> ao<br />

seu tamanho, forma e beleza; assim também o animal é grande<br />

ou pequeno, manso ou bravo, bonito ou feio, conforme as influências<br />

extrínsecas, assim também o homem físico e intelectual<br />

é o fruto dos mesmos fatores, dos mesmos acidentes e disposições,<br />

e nunca o ser espiritual, independente e livre, que os moralistas<br />

nos pintam... Esses senhores protestam quando lhes chamamos<br />

espirituais, e nós persistimos <strong>na</strong> amabili<strong>da</strong>de. Mas, sem<br />

constituir uma exceção a seu favor, temos o direito de sustentar a<br />

espirituali<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong> e apagar, com o exemplo de grandes<br />

vontades, essa teoria crepuscular, que conceitua as resoluções do<br />

homem uma função barométrica.<br />

É preciso fechar voluntariamente os olhos aos eventos mais<br />

belos e respeitáveis <strong>da</strong> História, preferir tristes abstrações a<br />

ver<strong>da</strong>des gloriosas, sacrificar venerandos monumentos do pensamento<br />

à quimera de uma idéia fixa, para ousar assim negar o<br />

poder <strong>da</strong> vontade, o valor de sua energia, a independência de sua<br />

resolução, os milagres mesmos de sua persistência, e substituí-lo<br />

por uma sombra difusa e vaga, dependente dum sol teatral. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, não vemos a vantagem desta substituição. É desconhecer<br />

a grandeza do homem o afirmar que os seus atos não passam<br />

de resultado necessário e fatalístico dos seus pendores físicos,<br />

tendências orgânicas e propensões materiais. É degra<strong>da</strong>r-lhe a<br />

digni<strong>da</strong>de abaixo do nível <strong>da</strong> mediania intelectual e é colocar-se<br />

em contradição com os exemplos mais brilhantes que constelam<br />

a fronte <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de por coroá-la de glória imperecível.<br />

Abordemos, em to<strong>da</strong>s as suas fases, os a<strong>na</strong>is <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de;


consultemos, sobretudo, as pági<strong>na</strong>s do nosso século, já tão<br />

engrandecido de invenções fecun<strong>da</strong>s e entrevistas possibili<strong>da</strong>des;<br />

logo nos convenceremos de que o gênio não é simplesmente<br />

resultante de condições materiais e muito menos de uma enfermi<strong>da</strong>de<br />

nervosa, senão que se afirma por uma força superior a<br />

to<strong>da</strong>s as contingências e que muitas vezes o tem domi<strong>na</strong>do<br />

guiado e vencido. Longe de encarar o homem como um ser<br />

inerte, cujas obras não passassem de efeitos instintivos, de<br />

hábitos, necessi<strong>da</strong>des apetites e predisposições orgânicas, nós<br />

proclamamos, com a autori<strong>da</strong>de dos fatos, que a inteligência<br />

gover<strong>na</strong> a matéria e que o valor do homem consiste, precisamente,<br />

nessa elevação, nessa soberania <strong>da</strong> inteligência.<br />

Para ilustrar o asserto e invali<strong>da</strong>r, exemplificando, a au<strong>da</strong>ciosa<br />

afirmativa desses campeões <strong>da</strong> matéria, lancemos um olhar ao<br />

panorama intelectual <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de, e a todos quantos sentem<br />

pulsar-lhe no peito um coração patriótico apresentemos-lhes –<br />

bem como aos jovens indecisos, que, mal transpondo os pórticos<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> prática, pudessem deixar-se embair pela mentira materialista,<br />

acarretando para si a própria ruí<strong>na</strong> – apresentemos-lhes,<br />

sim, o quadro tão grato aos nossos sentimentos, tão útil às nossas<br />

vistas e tão imponente às nossas aspirações, desses homens<br />

enérgicos saídos <strong>da</strong>s mais ínfimas cama<strong>da</strong>s sociais, para elevarem-se,<br />

pelo próprio esforço, à conquista do mundo e às culminâncias<br />

do pensamento soberano.<br />

Num belo livro, cujo título exótico não é bastante claro nem<br />

cativante, mas, que deveria an<strong>da</strong>r em mãos de to<strong>da</strong> a moci<strong>da</strong>de<br />

francesa (Self-Help, ou Caráter), um homem honrado, que é<br />

Samuel Smiles, reuniu exemplos desses vultos valorosos que<br />

venceram todos os percalços <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> e foram, por assim dizer, a<br />

refutação viva desta singular teoria, que tende a rebaixar o<br />

homem, em vez de o elevar. É por exemplos tais que a alma se<br />

eleva para a ver<strong>da</strong>de do seu ideal. Julgamos de nosso dever<br />

home<strong>na</strong>gear aqui esse panteão de beneméritos exemplares, cujo<br />

panegírico deveria ser espalhado aos quatro ventos.<br />

Os fatos a seguir, de ordem geral ou particular, e as considerações<br />

que eles sugerem, oferecemo-los aos que repetem com<br />

Moleschott, Büchner e seu rancho, que o homem segue os seus


pendores e a reflexão <strong>na</strong><strong>da</strong> vale à face <strong>da</strong>s incli<strong>na</strong>ções e tendências,<br />

sejam <strong>na</strong>turais ou adquiri<strong>da</strong>s.<br />

Sábios, literatos, artistas, todos quantos se votam ao apostolado<br />

<strong>da</strong>s mais transcendentes ver<strong>da</strong>des e todos quantos se enobreceram<br />

pelas virtudes do coração, jamais saíram privativamente<br />

de uma classe ou de uma carreira <strong>da</strong> hierarquia social. Ao<br />

contrário, saíram indiferentemente <strong>da</strong> ofici<strong>na</strong>, como <strong>da</strong> lavoura,<br />

<strong>da</strong> caba<strong>na</strong>, como do palácio. E os mais humildes atingiram, por<br />

vezes, os postos mais culmi<strong>na</strong>ntes, vencendo dificul<strong>da</strong>des aparentemente<br />

insuperáveis, que lhes atravancavam o caminho. Em<br />

muitos casos, parece que essas dificul<strong>da</strong>des foram seus melhores<br />

auxiliares, obrigando-os a empregar todo o esforço possível no<br />

trabalho perseverante, e assim vivificando facul<strong>da</strong>des que, de<br />

outra forma, poderiam permanecer adormeci<strong>da</strong>s.<br />

O exemplo de obstáculos assim transpostos, os triunfos assim<br />

alcançados, são tão numerosos que justificam, quase inteiramente,<br />

este provérbio: com boa vontade tudo se consegue.<br />

Grande número dos que mais se distinguiram <strong>na</strong> Ciência <strong>na</strong>sceram<br />

em condições sociais havi<strong>da</strong>s como incapazes de proporcio<strong>na</strong>r<br />

talentos, particularmente científicos. Em lugar <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções<br />

químicas do hidrogênio e fósforo, em vez dos efeitos <strong>da</strong><br />

eletrici<strong>da</strong>de dos nervos, apresentamos estes grandes caracteres,<br />

que, do fundo <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s sociais mais obscuras, se elevaram<br />

aos pináculos <strong>da</strong> Ciência, a saber: Copérnico, filho de um padeiro<br />

polonês; Galileu, perseguido por amor à ver<strong>da</strong>de; Képler,<br />

filho de um taberneiro e caixeiro de taver<strong>na</strong>, por sua vez, atormentado<br />

sempre com a sua miséria pecuniária; d’Alembert,<br />

enjeitado e encontrado pela mulher de um vidraceiro <strong>na</strong>s esca<strong>da</strong>s<br />

de uma igreja, certa noite invernosa; Newton, filho de um pequeno<br />

proprietário de Granthan; Laplace, filho de um pobre<br />

campônio de Beaumont, perto de Honfleur; W. Herschell, organista<br />

de Halifax; Arago, devendo to<strong>da</strong> sua glória à perseverança<br />

no estudo desde jovem; Ampère, pesquisador solitário; Humphry<br />

Davy, criado de um farmacêutico; Fara<strong>da</strong>y, encader<strong>na</strong>dor; Franklin,<br />

aprendiz de tipógrafo; Diderot, filho de um cutileiro; Cuvier,<br />

Geoffroy Saint-Hilaire e cem outros; o físico Hautefeuille,<br />

filho de um padeiro de Orleâes; Gassendi, pobre camponês dos


Baixos-Alpes; o mineralogista Hüy, filho de um tecelão; Buffon,<br />

que exigia, para levantar e combater a preguiça, que o acor<strong>da</strong>ssem<br />

a jatos de água fria (sua saúde, mau grado ao que dizem<br />

nossos adversários, para <strong>na</strong><strong>da</strong> lhe serviu e seus maiores trabalhos<br />

foram realizados no curso de longa e cruel enfermi<strong>da</strong>de); o<br />

químico Vauquelin, aldeão de Saint-André d’Hébertot (Calvados),<br />

que, depois de servente de farmácia, chega a Paris de saco<br />

às costas, com um escudo <strong>na</strong> algibeira.<br />

Em que o azoto e o fósforo entravam <strong>na</strong> secreção <strong>da</strong> vontade<br />

destes sábios ilustres, e de que maneira o carbono se comportou<br />

para os levar ao fastígio <strong>da</strong> projeção intelectual? Mau grado às<br />

circunstâncias desfavoráveis com que houveram de lutar no<br />

início <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, estes homens eminentes alcançaram, pelo só<br />

exercício de suas facul<strong>da</strong>des, uma reputação sóli<strong>da</strong> e duradoura,<br />

qual lhes não granjeariam todos os tesouros <strong>da</strong> Terra.<br />

De nossa parte, citaremos agora os cirurgiões John Hunter,<br />

Ambrósio Paré e Dupuytren, <strong>na</strong>scidos de condições humildes.<br />

Conta-se que Dupuytren, quando no colégio <strong>da</strong> Marcha, ocupava<br />

com outro colega um quarto que tinha por todo o mobiliário<br />

três cadeiras, mesa e uma espécie de cama, <strong>na</strong> qual se alter<strong>na</strong>vam<br />

para o repouso. Tão exíguos eram seus recursos, que, muitas<br />

vezes, passavam a pão e água. Dupuytren começava o trabalho<br />

às 4 horas <strong>da</strong> manhã e nós sabemos, hoje, que ele foi o maior<br />

cirurgião do seu tempo. Citaremos, ain<strong>da</strong>, José Fourrier, filho de<br />

um alfaiate de Auxerre, o <strong>na</strong>turalista Coara-do Gesner, cortidor<br />

de Zurich. Citaremos mais: Pedro Ramas, Shakespeare, Voltaire,<br />

Rousseau, Moliêre, Beaumarchais, grandes obreiros do pensamento,<br />

que derrubaram, exclusivamente com a sua força mental,<br />

as barreiras que as castas sociais opunham ao vulgo.<br />

Fácil nos seria exarar infinitos exemplos desse quilate. Em<br />

todos os ramos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong> – Ciências, Belas-Artes,<br />

Literatura, Comércio, Indústria – eles são tão numerosos que<br />

chegam a dificultar a escolha entre tantos homens notáveis cujo<br />

êxito lhes adveio somente do trabalho e paciente esforço 82 .<br />

Basta, por exemplo, lançar um olhar aos domínios <strong>da</strong> Geografia<br />

e assi<strong>na</strong>lar entre os grandes descobridores Cristóvão Colombo,<br />

filho de um car<strong>da</strong>dor de Gênova; Cock, caixeiro de uma loja no


Yorkshire, e Livingstone, operário de uma fiação de tecidos<br />

perto de Glaacow. Entre os papas, Gregório 7º <strong>na</strong>sceu de um<br />

carpinteiro, Sixto 5º de um pastor e Adriano 6º de um pobre<br />

canoeiro. Na sua juventude, pobríssimo, Adriano, impossibilitado<br />

de comprar uma vela, preparava as lições ao relento, aproveitando<br />

a ilumi<strong>na</strong>ção pública. Ninguém lobriga em tudo isto a<br />

influência do oxigênio.<br />

Não é senão pelo exercício autônomo de suas facul<strong>da</strong>des que<br />

uma criatura pode adquirir o saber e a experiência que, reunidos,<br />

produzem a sabedoria. E, qual dizia Franklin, é tão pueril esperar<br />

a posse desses bens sem esforço e sem trabalho quanto o seria<br />

contar com uma colheita em terreno sem lavra nem semeadura.<br />

Dois irmãos, provindos do mesmo Casal, podem receber a<br />

mesma educação, ter a mesma liber<strong>da</strong>de de ação, viverem juntos,<br />

nutrirem-se do mesmo ar e dos mesmos alimentos e <strong>na</strong><strong>da</strong> impedirá<br />

que um se torne ilustre e outro fique <strong>na</strong> mediocri<strong>da</strong>de. A<br />

quanta gente se poderiam endereçar estas palavras do velho<br />

bispo de Lincoln ao irmão, homem indolente, que lhe pedia<br />

fizesse dele um grande homem: – “certo, se a tua charrua se<br />

quebrar posso man<strong>da</strong>r consertá-la, e se te morrer um boi posso<br />

comprar-te outro; mas não posso fazer de ti um grande homem,<br />

de vez que lavrador te encontrei e sou obrigado a deixar-te como<br />

tal”.<br />

Riquezas e bem-estar não são indispensáveis ao desenvolvimento<br />

<strong>da</strong>s altas facul<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s, pois, se assim fora, não<br />

haveria no mundo, e de todos os tempos, notabili<strong>da</strong>des desabrocha<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong>s mais ínfimas cama<strong>da</strong>s sociais. A química alimentar<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> tem que ver com a produção intelectual.<br />

Longe de ser um mal, a pobreza, quando provi<strong>da</strong> de energia e<br />

iniciativa pessoal, pode transformar-se em benefício, de vez que<br />

faz sentir ao homem a necessi<strong>da</strong>de de lutar com o mundo, onde,<br />

a despeito dos que compram o bem-estar a preços degra<strong>da</strong>ntes,<br />

também há confiança, justiça e triunfo para os valorosos e honestos.<br />

A fortu<strong>na</strong> há mesmo, muitas vezes, prejudicado os seus<br />

privilegiados. Em compensação, encontramos exemplos favoráveis<br />

à nossa tese, entre aqueles que, inspirados pela fé ou ciosos<br />

<strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de do seu próximo, renunciaram, voluntariamente, aos


gozos mun<strong>da</strong>nos, aos poderes e honras <strong>da</strong> Terra, descendo de sua<br />

posição culmi<strong>na</strong>nte para dedicar-se à beneficência e instrução<br />

<strong>da</strong>s massas.<br />

“O mundo é escravo <strong>da</strong> energia, dizia Aleixo de Tocqueville,<br />

nem houve fase de vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> qual pudéssemos conceber repouso; a<br />

luta interior, e mais ain<strong>da</strong> a exterior, é necessária e tanto maiormente<br />

necessária quanto mais envelhecemos. Comparo o homem<br />

a um viajante que caminha, sem parar, para uma região ca<strong>da</strong> vez<br />

mais fria e que, quanto mais avança, mais precisa agitar-se. A<br />

grande enfermi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma é o frio e para combater esse mal<br />

temível é preciso, não só manter ativo o espírito pelo trabalho,<br />

mas também pelo contacto dos semelhantes e dos negócios<br />

temporais.”<br />

Estas palavras, justificou-as o seu autor com o exemplo pessoal.<br />

Em ple<strong>na</strong> ativi<strong>da</strong>de, ei-lo que perde a vista e, depois, a saúde,<br />

mas não perde nunca o amor à ver<strong>da</strong>de. Ain<strong>da</strong> quando combalido<br />

a ponto de ser carregado ao colo como qualquer criança, a sua<br />

indômita coragem não o abando<strong>na</strong>. Completamente cego e<br />

inválido, nem por isso encerra a sua carreira literária, justificando-a<br />

com estas nobres palavras bem dig<strong>na</strong>s de serem contrapostas<br />

à hipótese materialista. “Se, como me praz acreditar, o interesse<br />

<strong>da</strong> Ciência se inclui em o número dos grandes interesses<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, eu dei ao meu país o que lhe dá o sol<strong>da</strong>do mutilado no<br />

campo de batalha.<br />

“Seja qual for o destino dos meus trabalhos, também espero<br />

que este exemplo não fique perdido. Quereria eu que ele servisse<br />

para combater essa debili<strong>da</strong>de moral, que é a moléstia <strong>da</strong> nova<br />

geração; que pudesse reconduzir ao caminho reto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> alguma<br />

dessas almas enerva<strong>da</strong>s que se lamentam de lhes faltar a fé, sem<br />

saberem onde buscá-la, e que, procurando por to<strong>da</strong> parte, em<br />

parte alguma encontram objeto de culto e devotamento.<br />

“Por que dizer, com tanto amargor, que não há ar para todos<br />

os pulmões, emprego para to<strong>da</strong>s as inteligências? Não temos aí o<br />

estudo sério e calmo? Não haverá nele um refúgio, uma esperança,<br />

uma carreira ao alcance de todos nós? Com ele, atravessamos


os dias aziagos sem lhes sentir o peso. Com ele construímos o<br />

destino, usamos nobremente a vi<strong>da</strong>. Eis o que faço e voltaria a<br />

fazer ain<strong>da</strong>, se houvesse de recomeçar a marcha, a fim de reencontrar-me<br />

justo onde me encontro. Cego e padecente. Posso <strong>da</strong>r<br />

um testemunho que, penso, não será suspeito: o de haver no<br />

mundo algo melhor e mais valioso que os gozos materiais que a<br />

fortu<strong>na</strong> e até a saúde: – o devotamento à Ciência.”<br />

Preferimos sentimentos que tais à química <strong>da</strong> inteligência. Estendemo-nos<br />

confia<strong>da</strong>mente nestes exemplos porque, acima de<br />

tudo, dão testemunho do ver<strong>da</strong>deiro caráter do homem superior e<br />

<strong>da</strong> absurdi<strong>da</strong>de dos materialistas que ousam reduzir esse caráter<br />

a simples função <strong>da</strong> matéria, a uma disposição <strong>na</strong>tural do cérebro.<br />

Não queremos concluir o protesto sem falar em Ber<strong>na</strong>rdo<br />

Palissy, homem cuja vi<strong>da</strong> vale por um protesto formal à hipótese<br />

dos nossos adversários.<br />

Lembremos, em primeiro lugar, que Palissy <strong>na</strong>sceu em 1510,<br />

sendo seu pai um pobre vidraceiro <strong>da</strong> Capela Biron. Não pôde,<br />

assim, receber a menor instrução; não teve, qual confessava ele<br />

próprio, “outro livro além do céu e <strong>da</strong> terra, que a to<strong>da</strong> gente é<br />

<strong>da</strong>do ler e entender”. Aos vinte e oito anos, paupérrimo, instalouse<br />

numa choupa<strong>na</strong>, em Saintes, como agrimensor e pintor de<br />

vidros. Casado e pai de filhos cuja subsistência se lhe tor<strong>na</strong>va<br />

impossível, concebeu a idéia fixa de fabricar louça vidra<strong>da</strong> e<br />

imitar Luca della Róbia. Na impossibili<strong>da</strong>de de viajar pela Itália<br />

para aprender a técnica, houve de resig<strong>na</strong>r-se a investigar, tateante,<br />

no ambiente acanhado em que se encontrava.<br />

Depois de muito conjeturar sobre as matérias que entravam<br />

<strong>na</strong> composição do esmalte, fez demora<strong>da</strong>s experiências e acabou<br />

reunindo as substâncias que lhe pareceram adequa<strong>da</strong>s. Comprou<br />

potes de barro comum, quebrou-os e recobriu os fragmentos com<br />

as massas que preparava, submetendo-as ao forno para tal fim<br />

construído. As tentativas falhavam e o que só conseguia era<br />

potes quebrados, com grande prejuízo de carvão, de substâncias<br />

químicas, além de tempo e trabalho.<br />

Afrontando as lamentações <strong>da</strong> esposa, o choro dos filhos e a<br />

ironia dos vizinhos, nem assim desanimava. Sua companheira<br />

não se conformava com o ver assim dissipar-se em fumo os já


minguados recursos domésticos. Contudo, haveria de submeterse,<br />

de vez que o marido estava empolgado por uma idéia que<br />

ninguém e <strong>na</strong><strong>da</strong> no mundo lhe desvaneceria.<br />

As experiências prosseguiam por meses e anos. Descontente<br />

com o primeiro forno, construiu outro fora de casa. Neste, queimou<br />

outra lenha, esperdiçou outras drogas e potes, perdeu tanto<br />

tempo e dinheiro que acabou caindo em extrema miséria. Sem<br />

embargo, persistiu. Obsti<strong>na</strong>ção cruel!<br />

Não mais podendo acender o seu forno, levava o material a<br />

uma fábrica distante légua e meia e o fracasso continuava. Desapontado,<br />

mas não desenga<strong>na</strong>do, resolve, então, construir um<br />

forno para vidro, perto de casa. E o fez ele mesmo, com as<br />

próprias mãos. Conduzia <strong>da</strong> olaria, às costas, o tijolo; ajustava-o,<br />

emboçava-o; era pedreiro, carregador, oleiro, tudo! Ao fim de<br />

um ano, ei-lo com o seu novo forno e os vasos preparados para<br />

uma nova experiência. Apesar do esgotamento quase absoluto<br />

dos seus recursos, conseguira acumular grandes reservas de<br />

lenha. Acendeu o forno, recomeçou o trabalho, não perdia de<br />

vista a tarefa, um minuto que fosse. Dia e noite a postos, vígil,<br />

ei-lo a meter lenha, a graduar o fogo e, contudo, o esmalte não<br />

derretia. Pela segun<strong>da</strong> vez vinha o Sol surpreendê-lo <strong>na</strong> fai<strong>na</strong> e a<br />

esposa trazia lhe o parco almoço. Na<strong>da</strong> no mundo o tiraria <strong>da</strong><br />

boca do seu forno, no qual, desesperado, lançava a lenha acumula<strong>da</strong>.<br />

O Sol recolhia-se e o nosso homem não. Pálido, desfigurado,<br />

barba cresci<strong>da</strong>, sobreexcitado sim, mas heróico, indefesso<br />

junto ao forno, para ver quando o esmalte se fundiria. Um, dois,<br />

seis dias, enfim, transcorreram sem alteração. O invicto Palissy<br />

continuava a trabalhar, a vigiar, mau grado ao desmoro<strong>na</strong>mento<br />

de suas esperanças.<br />

O esmalte não se fundiu... Pôs-se, então, a contrair dívi<strong>da</strong>s, a<br />

comprar novos vasos, mais lenha...<br />

Os potes devi<strong>da</strong>mente revestidos e cui<strong>da</strong>dosamente colocados<br />

no forno, ain<strong>da</strong> uma vez acendeu-se o fogo. Era a última tentativa<br />

do desespero. Ele fez um braseiro enorme e, não obstante a<br />

alta temperatura, <strong>na</strong><strong>da</strong> conseguiu. A lenha já escasseava. Como<br />

alimentar, até o fim, aquele fogaréu infer<strong>na</strong>l? Olhou em torno,<br />

seus olhos incidiram <strong>na</strong> cerca do jardim, madeira enxuta, facil-


mente combustível. Que poderia valer aquela cerca compara<strong>da</strong><br />

com a experiência cujo êxito dependeria, talvez, de algumas<br />

toras mais? As cercas foram arranca<strong>da</strong>s, lança<strong>da</strong>s <strong>na</strong> for<strong>na</strong>lha.<br />

Sacrifício inútil!<br />

Ain<strong>da</strong> não seria dessa vez... Mas dez minutos de calor – quem<br />

sabe – e tudo estaria conseguido... Lenha, portanto, mais lenha e<br />

só lenha, a qualquer preço, eis o que precisava! Que ardessem os<br />

móveis, contanto que não perdesse aquela experiência. Estrondo<br />

horrível se ouviu em to<strong>da</strong> a casa, logo seguido dos gritos <strong>da</strong><br />

mulher e filhos, já agora temerosos de que o homem houvesse<br />

enlouquecido. Ei-lo que chega, sobraçando destroços de mesas e<br />

cadeiras! A for<strong>na</strong>lha tudo recebe, tudo devora. Não se funde o<br />

esmalte, ain<strong>da</strong> assim? Chega a vez dos assoalhos... A família,<br />

diante disso, foge espavori<strong>da</strong> e vai pelas ruas a gritar que o seu<br />

chefe enlouquecera. A essa altura, o inventor encontrava-se<br />

absolutamente exausto, mercê de tantas lutas, jejuns, vigílias,<br />

sobressaltos.<br />

Endivi<strong>da</strong>do e coberto de ridículo, dir-se-ia presa de um desastre<br />

irreparável. E, contudo, acabara por descobrir o segredo, a<br />

última provisão de calor derretera o esmalte. Os vasos de barro<br />

escuro lá estavam transformados em louça branca, que ele deveria<br />

realmente achar belíssima. Doravante, podia afrontar com<br />

paciência todos os remoques, ultrajes e recrimi<strong>na</strong>ções. O homem<br />

de gênio, graças à te<strong>na</strong>ci<strong>da</strong>de <strong>na</strong> sua inspiração, acabava colhendo<br />

a palma <strong>da</strong> vitória. Arrancara um segredo à <strong>Natureza</strong> e podia<br />

com mais calma aguar<strong>da</strong>r os proventos <strong>da</strong> sua descoberta.<br />

E não foi senão ao fim de dezesseis anos de labor assíduo e<br />

penosas experiências, que, isolado, aprendendo consigo, desaju<strong>da</strong>do<br />

de todos, pôde colher o fruto do seu esforço. Não tardou,<br />

porém, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua independência de idéias em matéria religiosa,<br />

fosse denunciado e visse invadi<strong>da</strong> e depre<strong>da</strong><strong>da</strong> a sua ofici<strong>na</strong> por<br />

uma turba ig<strong>na</strong>ra e fanática, de conivência com as autori<strong>da</strong>des. E<br />

enquanto assim lhe destroçavam to<strong>da</strong> uma cerâmica preciosa, era<br />

ele preso e conduzido a Bordéus, onde aguar<strong>da</strong>ria o ca<strong>da</strong>falso ou<br />

a fogueira. Salvou-lhe a vi<strong>da</strong> o Condestável de Montmorency,<br />

não – diga-se – em atenção às suas crenças religiosas, mas às<br />

suas falanças.


Dali, foi a Paris, onde o chamaram os trabalhos encomen<strong>da</strong>dos<br />

pelo Condestável e pela Rainha-mãe, hospe<strong>da</strong>ndo-se <strong>na</strong>s<br />

Tulherias, enquanto duraram esses trabalhos. Mas, a guerra<br />

incessante que movia aos adeptos <strong>da</strong> Astrologia, <strong>da</strong> Alquimia e<br />

<strong>da</strong> bruxaria, acarretou-lhe uma nova denúncia como herético.<br />

Novamente preso, ficou cinco anos <strong>na</strong> Bastilha e ali morreu, em<br />

1589, <strong>na</strong> i<strong>da</strong>de de oitenta anos. Assim acabou e assim foi recompensado<br />

o inventor <strong>da</strong> louça esmalta<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s figuli<strong>na</strong>s 83 .<br />

Diante desse magnífico exemplo de coragem e perseverança –<br />

não <strong>da</strong> coragem proveniente de uma exaltação nervosa, qual a<br />

produzem a cólera, o medo, o cheiro <strong>da</strong> pólvora, a música marcial,<br />

visto que nestes casos espontâneos os adversários poderiam<br />

alegar a sensação – mas, de uma energia que se desdobra por<br />

dezesseis anos afrontando todos os reveses; de uma vontade que<br />

sobrepuja todos os obstáculos como que avassalando o corpo e<br />

as afeições do sangue. Diante desses exemplos, dizemos, diante<br />

de to<strong>da</strong>s as glórias <strong>da</strong> nossa espécie pensante; diante de to<strong>da</strong>s<br />

essas chamas que se consumiram para brilharem <strong>na</strong> posteri<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s gerações; diante dos anseios cordiais <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de e<br />

diante dos testemunhos <strong>da</strong> sua própria consciência, com que<br />

direito se vem averbar de ilusão a vontade e de subseqüente a<br />

força moral?<br />

Com que direito ousam negar a energia independente e o caráter<br />

predomi<strong>na</strong>nte dessas almas de rija têmpera? A que pretexto<br />

reduzem a potência desses corações a estados fisiológicos,<br />

quando não a circunstâncias fortuitas? E como se leva a fantasia<br />

a estabelecer como princípio que “as nossas resoluções variam<br />

com o barômetro”?<br />

Objetar-se-á que o benemérito oleiro, cujo perfil acabamos de<br />

traçar, representa uma exceção no seio <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de? Mas,<br />

uma tal evasiva só poderá provir <strong>da</strong> ignorância e carência de<br />

observação. Nomes mais ilustres que o de Palissy fulguram por<br />

aí a títulos outros e nos quais admira-nos a mesma obsti<strong>na</strong>ção e<br />

firmeza.<br />

Buffon escreveu que gênio é paciência. Lembramo-nos, então,<br />

de Képler procurando durante dezessete anos as três leis<br />

imortais que o recomen<strong>da</strong>m à posteri<strong>da</strong>de, leis que regem o


sistema universal nos latifúndios celestes, onde se embalam as<br />

estrelas duplas, tanto quanto regulam o movimento <strong>da</strong> Lua em<br />

torno <strong>da</strong> Terra. Falaremos de Newton, modesto, respondendo a<br />

quem lhe perguntava como descobrira a gravitação: – foi pensando<br />

sempre nela. Citaremos todos esses ilustres sábios que em<br />

suas lutas só tiveram por arma a inteligência. Invocaremos os<br />

trabalhos solitários de Harvey, Carlos Bonnet, Jênner 84 . Recontaremos<br />

as tremen<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des que houveram de vencer,<br />

animados do fogo sagrado, esses inventores que se chamaram<br />

Watt, Jacquard, Girard, Fúlton, Stéplenson? Diremos dos labores<br />

intelectuais que exigiram as nossas vias férreas, a <strong>na</strong>vegação a<br />

vapor, a telegrafia, magníficos inventos nos quais celebramos o<br />

espírito que não a matéria? Invocaremos os arroubos artísticos de<br />

um Miguel Ângelo, de um Ticiano, de um Celini, de um Poussain?<br />

Recordemos esta frase de Bayle, escrita de Milão, em<br />

1820, a propósito de um artista chamado Meyerbeer: – “é homem<br />

de algum talento mas não genial, vivendo solitariamente e<br />

trabalhando quinze horas por dia”. Contudo, se quiséssemos<br />

historiar as provas rudes que flagelaram os gênios mais possantes,<br />

haveríamos de baixar aos nomes ignorados, de quantos<br />

mergulharam nesse pego revolto, vítimas <strong>da</strong> sorte, não <strong>da</strong> descrença,<br />

como Chenier decapitado, ou como Gilbert lutando<br />

contra o egoísmo universal.<br />

Haveríamos, também, de convocar os que sucumbiram gloriosamente.<br />

– Gior<strong>da</strong>no Bruno preferindo a morte a uma retratação<br />

fictícia, Campanela sete vezes torturado e sucumbindo sem<br />

deixar de satirizar seus algozes; Joa<strong>na</strong> D'Arc que salvou a França,<br />

Sócrates que salvou a Filosofia e preferiu a cicuta à mentira,<br />

Cristóvão Colombo expirando no cárcere, o velho Pedro Ramus<br />

estrangulado <strong>na</strong> noite de São Bartolomeu, em que também teria<br />

perecido Ambrósio Paré, se Carlos 9º não levasse em conta os<br />

seus préstimos pessoais e, enfim, todos os mártires <strong>da</strong> Ciência,<br />

<strong>da</strong> Religião, do progresso, inclusive os que tombaram nos circos<br />

romanos, devorados pelas feras e exorando a <strong>Deus</strong> por seus<br />

irmãos. Fossem quais fossem as crenças, as idéias que essas<br />

criaturas defendiam até à morte, sem lhes apreciarmos o valor<br />

real <strong>da</strong>s causas que abraçavam, sua memória imperecível só nos


merece respeitosa veneração. São vultos que nos mostram que o<br />

homem não é somente um composto de matéria orgânica e que a<br />

energia, a perseverança, a coragem, a virtude, a fé, não são<br />

atributos <strong>da</strong> composição químico-cerebral. Do fundo de seus<br />

sepulcros eles proclamam que os pretensos sábios, que ousam<br />

identificar o homem com a matéria inerte, não se precatam do<br />

valor humano e jazem <strong>na</strong> mais trevosa ignorância <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des<br />

que fazem a glória e a felici<strong>da</strong>de do ser.<br />

E supondes seja necessário interrogar a tradição histórica para<br />

responder, também com argumentos e exemplos irresistíveis, a<br />

essa pretensão cega de negar os fatos de ordem puramente intelectual,<br />

conceituando tão superficialmente o Espiritualismo e a<br />

Moral?<br />

Não; não é somente <strong>na</strong>s altas esferas que o observador admira<br />

esses edificantes exemplos. Em to<strong>da</strong>s às cama<strong>da</strong>s sociais, do<br />

prócer <strong>da</strong> Ciência ao rústico a<strong>na</strong>lfabeto, do trono ao grabato, a<br />

vi<strong>da</strong> cotidia<strong>na</strong> oferece, no santuário <strong>da</strong> família, esses mesmos<br />

padrões de coragem e abnegação, de paciência e grandeza d'alma,<br />

de energia e virtude, que, por desconhecidos, não são menos<br />

meritórios no seu valor intrínseco, do que os precedentes.<br />

Quantas almas padecem em segredo sem revelar os seus martírios,<br />

curva<strong>da</strong>s à injustiça, vítimas do destino, dessa fatali<strong>da</strong>de<br />

impenetrável que persegue tantas criaturas boas e justas?<br />

Quantos corações magnânimos palpitam em silêncio e abafam<br />

chamas capazes de incendiar o verbo e levantar multidões,<br />

se, ao invés de definhar <strong>na</strong> sombra, se espanejassem ao sol <strong>da</strong><br />

populari<strong>da</strong>de? Quantos gênios ignorados por aí dormitam num<br />

isolamento infecundo? Quantas almas santas e puras, a consagrarem-se<br />

a uma vi<strong>da</strong> inteira de abnegação, de amor, de cari<strong>da</strong>de? E<br />

quantos, em recompensa de tamanhas virtudes, de tanta paciência<br />

è humil<strong>da</strong>de, não recebem mais que ingratidão e desprezo<br />

<strong>da</strong>queles mesmos a quem amam?<br />

O último refúgio dos nossos adversários assenta no sistema<br />

dos pendores <strong>na</strong>turais, como a declararem que estes fatos de<br />

ordem mental não são mais que o resultado <strong>da</strong>s incli<strong>na</strong>ções dos<br />

espíritos credores <strong>da</strong> nossa admiração. Se Palissy se obstinou


dezesseis anos à procura do esmalte, seria a isso arrastado por<br />

uma incli<strong>na</strong>ção especial. Se Colombo não esmoreceu diante do<br />

cepticismo dos coevos e <strong>da</strong>s revoltas de sua equipagem, é que<br />

uma tendência do seu cérebro o encaminhava irrevogavelmente<br />

para o Novo Mundo. Se Dante concluiu a Divi<strong>na</strong> Comédia, ain<strong>da</strong><br />

que posto a ferros e expatriado, é porque a lembrança de Beatriz<br />

e as guerras Civis italia<strong>na</strong>s lhe espicaçavam a fibra poética. Se<br />

Galileu, septuagenário, se viu constrangido a repudiar de joelhos<br />

as suas convicções mais íntimas, assi<strong>na</strong>ndo a sentença iníqua que<br />

proibia a Terra de girar, não pensem que houve em tudo isso<br />

humilhação, pois ape<strong>na</strong>s teria experimentado uma ligeira contrarie<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s suas incli<strong>na</strong>ções. O fato de Carlota Cor<strong>da</strong>y partir <strong>da</strong><br />

sua aldeia para apunhalar Marat em Paris não significa que<br />

tivesse a convicção íntima de salvar a pátria de um seu presumido<br />

salvador, mas, ape<strong>na</strong>s, que tivesse uma exaltação cerebral. Se,<br />

durante as ce<strong>na</strong>s monstruosas do terror, viram-se mulheres que<br />

pediam ao carrasco a graça de morrer com os maridos, subindo<br />

firmes o patíbulo; se, em todos os tempos históricos, temos visto<br />

vítimas voluntárias oferecendo-se para salvar entes amados, ou<br />

com eles morrer, é tudo fruto de incli<strong>na</strong>ção <strong>na</strong>tural, ou resultado<br />

de certos movimentos cerebrais!<br />

Resumindo: os atos mais sublimados de virtude, de pie<strong>da</strong>de<br />

filial, devotamento, amor, grandeza d'alma, são oriundos de<br />

disposições orgânicas, ou de qualquer súbito desvio <strong>da</strong>s funções<br />

normais do cérebro. Se o Cristo subiu ao Calvário, não se considere<br />

isso o sacrifício extraordinário de um ser divino, mas simples<br />

movimento revolucionário de algumas moléculas imprudentes...<br />

É a escórias míseras, assim, que reduzem as mais ricas<br />

gemas <strong>da</strong> coroa que cinge a fronte <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de. Esta, contudo,<br />

não se deixa assim degra<strong>da</strong>r, não consentirá que mãos profa<strong>na</strong>s<br />

lhe arrebatem a sua auréola. Para sustentar esses feitos de<br />

valor, algo mais se tor<strong>na</strong> preciso do que uma agregação atômica<br />

de carbono ou de ferro. Algo mais que uma simples combi<strong>na</strong>ção<br />

molecular. Vade-retro, negadores insensatos, que pretendeis<br />

reduzir a fórmulas tão i<strong>na</strong>nes a definição do valor e <strong>da</strong> forças<br />

intelectuais. Predisposições orgânicas, incli<strong>na</strong>ções <strong>na</strong>turais,<br />

facul<strong>da</strong>des mentais, a própria educação, que representa tudo isso


senão palavras, desde que nos limitemos a manifestações <strong>da</strong><br />

matéria bruta e cega e neguemos a existência do espírito? Que<br />

representam a Química, a Física, a Mecânica, diante <strong>da</strong> vontade<br />

que dobra o mundo à sua lei e dirige a seu nuto a matéria obediente?<br />

Ousam sustentar que o valor moral, a potência intelectual,<br />

o afeto profundo dos corações, o entusiasmo <strong>da</strong>s almas fervorosas,<br />

a imensi<strong>da</strong>de do olhar inteligente, as pesquisas do pensamento<br />

que son<strong>da</strong> o espaço e faz esplender as leis universais, as<br />

meditações, as descobertas, as obras-primas <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong><br />

Poesia se explicam por transformações químicas – e quiméricas<br />

– <strong>da</strong> matéria em pensamento? Será que, para suportar essa energia<br />

anímica, não haja necessi<strong>da</strong>de de uma força sobera<strong>na</strong>, superior<br />

às alterações <strong>da</strong> substância, capaz de vencer todos os obstáculos,<br />

cuja influência se esten<strong>da</strong> muito além <strong>da</strong> vista física e seja<br />

mesmo a base desta força pensante, seu substrato, seu sustentáculo<br />

e condição de sua potência? Será que a virtude resi<strong>da</strong> noutro<br />

lugar que não <strong>na</strong> alma? – <strong>na</strong> alma independente, que as tergiversações<br />

do mundo material não atingem; <strong>na</strong> alma espiritual, que<br />

ouve a voz <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e caminha em reta para o seu ideal, sejam<br />

quais forem os óbices que se interponham no caminho, as dificul<strong>da</strong>des<br />

que preten<strong>da</strong>m interceptar-lhe a marcha triunfal?<br />

To<strong>da</strong> a Humani<strong>da</strong>de protesta contra essas fúteis alegações e o<br />

faz não já com aquele critério baseado no testemunho dos sentidos,<br />

suscetível de enga<strong>na</strong>r-se, como se dá, por exemplo, com o<br />

movimento dos astros, mas, com aquele senso íntimo que lhe<br />

vem <strong>da</strong> própria consciência.<br />

A <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, o clima, a <strong>na</strong>tureza dos alimentos, a educação,<br />

não bastam para constituir caracteres inteligentes e indômitos!<br />

No caráter humano a energia é, realmente, o poder central, o<br />

eixo <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>, o centro de gravi<strong>da</strong>de. Só ela dá impulsão aos atos.<br />

Essa força mental é a base mesma e a condição de to<strong>da</strong> a esperança<br />

legítima, e se é ver<strong>da</strong>de que a esperança é o perfume <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, o poder mental há de ser a raiz dessa planta preciosa.<br />

Ain<strong>da</strong> mesmo que as esperanças se desvaneçam e a criatura<br />

sucumba nos seus esforços, resta-lhe a satisfação de haver trabalhado<br />

para vencer e, sobretudo, que, longe de ser escrava <strong>da</strong><br />

matéria, manteve-se fiel às regras por vezes árduas, que a hones-


ti<strong>da</strong>de impõe. Haverá espetáculo mais belo e digno de elogios<br />

que o de um homem a lutar energicamente com a sorte, a demonstrar<br />

que lhe palpita no seio uma força imperecível, a triunfar<br />

pela grandeza de caráter e a prosseguir corajoso e resoluto,<br />

ain<strong>da</strong> “quando lhe fraquejam as per<strong>na</strong>s e sangram os pés”?<br />

Em sentido menos generalizado que o destes grandes fatos<br />

precedentes, temos visto exemplos particulares de vontades<br />

poderosas realizando milagres. Nossos desejos são, muitas vezes,<br />

os precursores <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de realização, bastando intensificálos<br />

para que a possibili<strong>da</strong>de se resolva em reali<strong>da</strong>de.<br />

Se de um lado as vontades de um Napoleão e de um Richelieu<br />

riscam dos dicionários a palavra impossível, por outro lado<br />

existem os vacilantes, a quem <strong>na</strong><strong>da</strong> se afigura possível.<br />

“Saiba querer energicamente – dizia Lame<strong>na</strong>is a um espírito<br />

enfermo –, fixe a sua vi<strong>da</strong> flutuante e não se deixe levar por<br />

todos os ventos, qual folha murcha desgarra<strong>da</strong> do tronco.”<br />

Pessoalmente, temos conhecido criaturas exalta<strong>da</strong>s, que, depois<br />

de terem estado com um pé <strong>na</strong> sepultura, recuaram de<br />

espanto ante o esplendor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que pretendiam abando<strong>na</strong>r e<br />

resolveram conservá-la. Estes exemplos são raros, por só possíveis<br />

quando o corpo não esteja tocado pela mão <strong>da</strong> morte. E, no<br />

entanto, existem. Um escritor inglês, Walker, autor de O Origi<strong>na</strong>l<br />

(e que não deixa de revelar uma certa origi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de em sua<br />

determi<strong>na</strong>ção) resolveu um dia vencer a enfermi<strong>da</strong>de que o<br />

acabrunhava, conseguindo pasmar bem <strong>da</strong>li por diante.<br />

Os fastos militares oferecem-nos o exemplo de vários chefes<br />

que, velhos ou enfermos, em ouvindo no instante decisivo <strong>da</strong><br />

batalha que seus coman<strong>da</strong>dos desertavam, atiravam-se para fora<br />

<strong>da</strong> barraca, os reuniam e conduziam à vitória, para logo após<br />

tombarem exaustos e exalarem o último suspiro.<br />

Não somente a vontade, mas também a imagi<strong>na</strong>ção domi<strong>na</strong> a<br />

matéria, contradiz o testemunho dos sentidos e origi<strong>na</strong>, às vezes,<br />

ilusões absolutamente alheias ao domínio físico.<br />

Expliquem como pode morrer um homem quando, com uma<br />

simples pica<strong>da</strong>, os médicos lhe sugerem que o sangue escorre <strong>da</strong><br />

veia rasga<strong>da</strong>. (Este e outros fatos estão judicialmente averigua-


dos.) Que nos expliquem como a imagi<strong>na</strong>ção cria um mundo de<br />

quimeras, que atuam ativamente no organismo e se refletem <strong>na</strong><br />

saúde.<br />

Ao demais, tão forte e autônoma é a vontade, as influências<br />

ambientes tão precárias se afirmam, para explicar a marcha <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> intelectual, que, as mais <strong>da</strong>s vezes, não <strong>na</strong> embaraçam e, ao<br />

contrário, nos induzem a proceder com energia tanto maior,<br />

quanto mais prementes são os obstáculos que se nos deparam.<br />

Todos quantos se votam a tarefas intelectuais dirão conosco que<br />

a fase em que mais operaram em sua carreira foi precisamente a<br />

de maiores dificul<strong>da</strong>des <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> prática e que a vontade é qual os<br />

rios que seguem destruindo e vencendo os acidentes do seu<br />

curso, não obedecem a barragens e até se encrespam e se precipitam<br />

mais impetuosos, quanto mais sóli<strong>da</strong> e alta a muralha que se<br />

lhes opõe. Quando sucesso e glória vêm coroar nossos trabalhos<br />

e após uma fai<strong>na</strong> longamente sustenta<strong>da</strong> a reação vem convi<strong>da</strong>rnos<br />

ao repouso, deixamo-nos efemi<strong>na</strong>r pelas delícias de Capua e<br />

já o fogo <strong>da</strong> inspiração não nos acende auroras <strong>na</strong> mente. O<br />

trabalho pessoal <strong>da</strong> vontade é a condição sine qua non do nosso<br />

progresso.<br />

Em um discrime acerca <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> vontade, a questão<br />

assaz longa e bal<strong>da</strong>mente controverti<strong>da</strong>, do livre arbítrio, não<br />

pode ficar sem o seu ponto de interrogação. Os adversários o<br />

negam absolutamente e proclamam, qual vimos e suficientemente<br />

comentamos, que to<strong>da</strong>s as realizações huma<strong>na</strong>s são o resultado<br />

necessário de causas ou ensejos emergentes à revelia de reflexão,<br />

e sem que esta lhes possa mu<strong>da</strong>r o curso. O pensamento não é<br />

mais que movimento físico <strong>da</strong> substância cerebral. Esse movimento<br />

procede do sistema nervoso, afetado, a seu turno, por um<br />

movimento exterior.<br />

O movimento pensante, por sua vez, reage sobre os nervos e<br />

músculos e determi<strong>na</strong> os atos. Em to<strong>da</strong> esta sucessão não há<br />

movimentos materiais transmitidos. Eu imagino de bom grado o<br />

encontro de um cristão com um discípulo de Holbach no desvão<br />

de uma dessas ofici<strong>na</strong>s, cuja porta<strong>da</strong> se protege com a clássica<br />

estatueta de Hipócrates travando o seguinte diálogo:


– É facílimo demonstrar que o pensamento é produto <strong>da</strong> matéria<br />

– dirá o holbaquiano –. Eis, por exemplo, uma locomotiva<br />

que se precipita veloz ao vosso encontro. A visão <strong>da</strong> locomotiva<br />

ou, para falar fisicamente, o raio luminoso partido dessa máqui<strong>na</strong><br />

atinge o vosso globo ocular e provoca um <strong>da</strong>do movimento<br />

distensivo do nervo ótico... Por intermédio desse mesmo nervo o<br />

movimento se transmite ao cérebro. Depois, o movimento cerebral,<br />

tor<strong>na</strong>ndo-se causal, por sua vez acio<strong>na</strong> os nervos correspondentes<br />

às per<strong>na</strong>s e estas entram a correr e a levar-vos fora <strong>da</strong><br />

linha. Evidente, pois, que em tudo isso não utilizastes uma<br />

partícula de liber<strong>da</strong>de qualquer. Vossa atitude derivou, necessariamente,<br />

<strong>da</strong> impressão visual <strong>da</strong> locomotiva.<br />

– Mas, perdão – retrucará o outro –, e se eu, por um capricho<br />

de suici<strong>da</strong>, aliás comum, tivesse deliberado permanecer <strong>na</strong> linha<br />

até que a locomotiva me esmagasse? Não praticaria dessarte um<br />

ato voluntário e de livre arbítrio?<br />

– Absolutamente. A não ser que houvesse enlouquecido e tivésseis<br />

premeditado e maturado o plano do suicídio, nem por<br />

isso ele deixaria de ser o resultado de causas predisponentes e,<br />

portanto, involuntário.<br />

– Admitamos que assim seja, quanto ao instante decisivo, de<br />

vez que matar-se a gente sem motivo seria imbecil. Mas, pergunto<br />

ain<strong>da</strong>: quanto ao gênero de morte, não poderia escolher o<br />

baraço, o veneno, a que<strong>da</strong> de uma torre, a bala, etc., em vez de<br />

me atravessar <strong>na</strong> linha férrea? Não terei, pelo menos, a liber<strong>da</strong>de<br />

de opção?<br />

– Desenga<strong>na</strong>i-vos. Se vos decidirdes pelo esmagamento, será<br />

porque existe próximo uma linha-férrea; ou por imagi<strong>na</strong>rdes ser<br />

esse um processo mais rápido, menos doloroso; ou por vos<br />

repug<strong>na</strong>rem outros gêneros de morte, etc.<br />

– Mas, de qualquer forma, sempre se conclui que escolhe...<br />

– Jamais! É que uns tantos movimentos se operaram no órgão<br />

<strong>da</strong> reflexão. Seria um causado pelo aspecto de uma força, outro<br />

pelo necrotério; pela imagem de um crânio partido, pela hipótese<br />

de um tiro falhado, <strong>da</strong>s angústias <strong>da</strong> asfixia e assim por diante. O<br />

movimento correspondente ao esmagamento pelo comboio seria,


então, o que se figurava menos desagradável e, domi<strong>na</strong>ndo os<br />

demais, decidiria <strong>da</strong> vossa sorte.<br />

– Mas, se eu tivesse, por exemplo, agravos de um irmão e, em<br />

lugar de postar-me <strong>na</strong> linha, fosse, por determi<strong>na</strong>ção dos movimentos<br />

correspondentes a tais agravos, levado a atirar sob as<br />

ro<strong>da</strong>s do comboio o corpo do meu irmão, tinha ou não a liber<strong>da</strong>de<br />

de o fazer? Seria responsável, ou não?<br />

– Não entremos em tricas jurídicas...<br />

– Pois muito bem: voltando ao nosso suicídio, dissestes que<br />

eu teria escolhido um gênero de morte determi<strong>na</strong>do por uma<br />

causa qualquer. Ora, isso é claro, pois de outro modo, para falar<br />

com franqueza, escolher sem causa determi<strong>na</strong>nte, é estúpido.<br />

Mas, como podem tais causas atuar materialmente?<br />

– Por um revés <strong>da</strong> sorte perdeis a tranqüili<strong>da</strong>de e o bem-estar.<br />

Habituado à fartura e a todos os regalos do corpo e do espírito,<br />

encontrais-vos de chofre <strong>na</strong> maior miséria. O constrangimento,<br />

as restrições do vosso organismo, a alteração de hábitos, atuam<br />

sobre o cérebro, que, ante a perspectiva de morte lenta e miserável,<br />

decide antecipá-la desde logo. São sempre, como vedes,<br />

movimentos físicos.<br />

– Mas... se forem desgostos de família, decepções amorosas,<br />

temor <strong>da</strong> desonra, causas de ordem moral, em suma?<br />

– Não existe ordem moral.<br />

– Já esperávamos por essa. E é assim que pretendeis <strong>na</strong><strong>da</strong><br />

afirmar sem provas? É assim que presumis interpretar fielmente<br />

o ensino <strong>da</strong> Ciência? Tomemos um último exemplo, vede bem!<br />

Eis aqui, em descanso, minha mão direita; <strong>na</strong><strong>da</strong> me obriga a<br />

erguê-la... Agora, contudo, quero fazê-lo e faço... Agi livremente,<br />

ou não?<br />

– Não. Houve uma razão determi<strong>na</strong>nte, qual a de provar o<br />

vosso alvedrio e suscita<strong>da</strong> pela vossa conversa anterior. Esta, por<br />

sua vez, origi<strong>na</strong>ndo-se de fatos precedentes, desde que <strong>na</strong>scestes.<br />

A vi<strong>da</strong> mental, como a material, ou por melhor dizer – única, não<br />

passa de uma sucessão necessária de causas e efeitos a entrosarem-se<br />

<strong>na</strong>turalmente.


– Vede ain<strong>da</strong>: tenho a mão suspensa. Agora, imagi<strong>na</strong>i que a<br />

movimento num círculo e a espalmo, chapa<strong>da</strong>, <strong>na</strong> vossa face.<br />

Tendes uma sensação de ardor, exaltamento imediato e já ruborizado,<br />

gritareis: que é isso? Mas, antes que possais reagir de fato,<br />

digo-vos:<br />

– De que vos admirais? Então, este sopapo não é conseqüência<br />

inevitável do movimento <strong>da</strong> mão, <strong>da</strong> fantasia desse lobo que<br />

opera acima do ouvido, junto <strong>da</strong>s zo<strong>na</strong>s protetoras <strong>da</strong> apófise<br />

mastóidea e <strong>da</strong> sutura occipto-parietal, etc.? E tal não se dá, de<br />

sucessão em sucessão, desde os primórdios do mundo?<br />

– Caro senhor, tendes <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de exemplos edificantes, que<br />

assaz me impressio<strong>na</strong>m. Tenho, para mim, que tudo isto não<br />

passa de movimento serial <strong>da</strong> dipotasshydorylhydroxami<strong>na</strong> em<br />

vosso lobo frontal e <strong>da</strong>do que, em conseqüência desses movimentos,<br />

tomásseis de uma faca para esfolar-me vivo, seria cômico<br />

que me formalizasse. Mas, para encerrar a questão, uma vez<br />

que preciso retirar-me, dizei-me: – não pensais com Spinosa que<br />

a nossa pretensa liber<strong>da</strong>de não passa de aparência e que, “tendo<br />

consciência de nossos atos, nem por isso lhes conhecemos a<br />

causa?”. Não admitis, com Hurne, que o “homem tem consciência,<br />

não do princípio de seus atos, mas tão somente dos atos em<br />

si, ape<strong>na</strong>s como fenômenos”? Todo o movimento cerebral nos<br />

vem do exterior, pelos sentidos e a excitação do cérebro; o<br />

pensamento é um fenômeno material, como o próprio pensamento.<br />

A vontade é expressão necessária de um estado cerebral<br />

produzido por influências exteriores. Não há vontade livre; não<br />

há concretização de vontade independente <strong>da</strong> soma de influências<br />

que a todo instante inspiram o homem e impõem, ain<strong>da</strong>, aos<br />

mais poderosos limites infranqueáveis”.<br />

Assim falaria, porque assim falam os discípulos de Holbach.<br />

No parecer deste 85 , “a liber<strong>da</strong>de não é mais que a necessi<strong>da</strong>de<br />

encerra<strong>da</strong> dentro de nós. Não há diferença entre o homem que se<br />

atira voluntariamente e o que é atirado de uma saca<strong>da</strong> abaixo,<br />

senão que ao primeiro a impulsão lhe vem de dentro e ao segundo<br />

chega de fora do seu maquinismo”.<br />

Entretanto, há casos peremptórios, nos quais pensamos poder<br />

constatar o livre arbítrio, como, por exemplo, <strong>na</strong> atitude de um


homem que, possuído de grande sede, repele dos lábios o copo<br />

d'água, logo que se lhe diga que esta contém veneno. Mas, temos<br />

o direito de supor que esse homem assim proce<strong>da</strong> livremente? A<br />

vontade, ou, melhor, o cérebro se encontra em estado comparável<br />

à bola que, recebendo um impulso em certa direção, desta se<br />

desvia logo que intervenha uma força maior que a primeira.<br />

Holbach nos dá uma fórmula aritmética <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de: As<br />

ações do homem são sempre um misto de energia própria e dos<br />

seres que sobre ele atuam e o modificam 86 .<br />

Respondemos a essa negação integral <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de com uma<br />

doutri<strong>na</strong> que, sem nos investir de um arbítrio absoluto, de vez<br />

que as influências exteriores atuam constantemente para atenuar<br />

esse absoluto, nem por isso deixa de nos <strong>da</strong>r uma liber<strong>da</strong>de real,<br />

uma responsabili<strong>da</strong>de íntima, um livre arbítrio incontestável. O<br />

assunto é mais complexo do que parece aos profanos e temos<br />

uma permanente manifestação de sua dificul<strong>da</strong>de <strong>na</strong> sucessão<br />

secular <strong>da</strong>s crenças religiosas, que oscilam entre o fatalismo e a<br />

graça divi<strong>na</strong>. Maomet arvorou o estan<strong>da</strong>rte do fatalismo; Calvino<br />

só vê a predesti<strong>na</strong>ção, enquanto Lutero consagra o livre arbítrio<br />

absoluto. A ver<strong>da</strong>de, pensamos, está entre os extremos. O número<br />

de partes teológicas concernentes à graça divi<strong>na</strong> é incontável e<br />

compreende-se que, nesta época, é tempo perdido o que se<br />

emprega nestas elucubrações. Contudo, é sempre útil saber o que<br />

devemos pensar <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de. Nós, pelo menos, assim o consideramos<br />

com Spurzheim, quando a respeito escreveu aquelas<br />

pági<strong>na</strong>s judiciosas, quando assim pondera o controvertido assunto<br />

87 .<br />

A palavra liber<strong>da</strong>de é emprega<strong>da</strong> num sentido mais ou menos<br />

lato. Há filósofos que atribuem ao homem uma liber<strong>da</strong>de ilimita<strong>da</strong>.<br />

Ao seu ver, o homem cria, por assim dizer, a sua própria<br />

<strong>na</strong>tureza, adquire as facul<strong>da</strong>des que deseja e age independente de<br />

qualquer lei. Uma tal liber<strong>da</strong>de está em contradição com um ser<br />

criado. Tudo quanto possam dizer a seu favor não passará de<br />

declamações enfáticas, desprovi<strong>da</strong>s de senso e de vendici<strong>da</strong>de.<br />

Outros há que admitem uma liber<strong>da</strong>de absoluta, em virtude<br />

<strong>da</strong> qual o homem age sem motivo. Isso, porém, é presumir efeito<br />

sem causa, é isentar o homem <strong>da</strong> lei de causali<strong>da</strong>de. Seria uma


liber<strong>da</strong>de contraditória de si mesma, podendo-se proceder num<br />

mesmo caso bem ou mal, mas sempre sem motivo. Inúteis seriam,<br />

então, todos os institutos de fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de beneficente, individual<br />

ou coletiva. De que serviriam as leis, a Religião, as pe<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des<br />

e recompensas, se <strong>na</strong><strong>da</strong> determi<strong>na</strong>sse o homem? Por que<br />

esperar de outrem amizade e fideli<strong>da</strong>de, antes que ódio e perfídia?<br />

Promessas, juramentos, votos, tudo ilusão! Uma tal liber<strong>da</strong>de<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> tem de real, não passa de especulativa e absur<strong>da</strong>.<br />

Precisamos, ao contrário, reconhecer uma liber<strong>da</strong>de acorde<br />

com a <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>, liber<strong>da</strong>de que a legislação pressupõe,<br />

liber<strong>da</strong>de racioci<strong>na</strong><strong>da</strong>.<br />

Três são as condições fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> legítima liber<strong>da</strong>de: em<br />

primeiro lugar, é preciso que a criatura possa escolher entre<br />

vários motivos. Seguindo o motivo mais forte, ou agindo só por<br />

prazer, já se não opera com liber<strong>da</strong>de. O prazer não é mais que<br />

uma falsa aparência de liber<strong>da</strong>de. A ovelha que mastiga a erva<br />

com prazer não está exercendo um ato livre.<br />

Obedecendo a um desejo mais forte, também o animal, quanto<br />

o homem, não pratica livremente, tampouco. A condição<br />

precípua <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de é a inteligência, ou a facul<strong>da</strong>de de conhecer<br />

e escolher os motivos. Quanto mais ativa a inteligência, mais<br />

ampla a liber<strong>da</strong>de. Os idiotas <strong>na</strong>tos, as crianças até uma certa<br />

i<strong>da</strong>de, têm, às vezes, desejos muito enérgicos, mas ninguém os<br />

considera livres, visto não possuírem inteligência bastante para<br />

distinguir o falso do ver<strong>da</strong>deiro. Os homens mais bem educados<br />

e os mais inteligentes são os de quem, mais que dos ignorantes,<br />

deploramos as faltas. À medi<strong>da</strong> que se elevam <strong>na</strong> série <strong>da</strong>s<br />

facul<strong>da</strong>des intelectivas, os animais vão-se tor<strong>na</strong>ndo mais livres e<br />

modificam mais individualmente os seus atos, de acordo com as<br />

circunstâncias exteriores e com as lições de sua prévia experiência.<br />

Se empregamos a violência para impedir o cão de perseguir<br />

a lebre, ele se lembrará <strong>da</strong>s panca<strong>da</strong>s que o aguar<strong>da</strong>m e, árdego e<br />

trêmulo ao império dos próprios desejos, não deixará de ceder. O<br />

homem, superior a todos os seus irmãos <strong>da</strong> escala zoológica, é,<br />

por sua mesma <strong>na</strong>tureza, o ser que goza de liber<strong>da</strong>de no grau<br />

mais eminente. Só ele procura encadear efeitos e causas, comparar<br />

melhor o presente e o passado, e <strong>da</strong>í tirar conclusões para o


futuro. Pesa as razões, detém-se <strong>na</strong>s que lhe parecem preferíveis,<br />

conhece a tradição. Seu raciocínio decide e perfaz a vontade<br />

esclareci<strong>da</strong>, muitas vezes contrariamente aos seus desejos.<br />

Uma última condição <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de é a influência <strong>da</strong> volição<br />

sobre os instrumentos que devam operar suas ordens pessoais. O<br />

homem não é responsável por desejo ou por facul<strong>da</strong>des afetivas<br />

dele independentes. A responsabili<strong>da</strong>de individual começa com a<br />

reflexão e com a possibili<strong>da</strong>de de proceder voluntariamente. No<br />

estado de saúde os instrumentos operatórios subordi<strong>na</strong>m-se à<br />

influência <strong>da</strong> vontade. A fome é involuntária, mas, se em sentila,<br />

eu me abstiver de comer, exerço a influência <strong>da</strong> minha vontade<br />

sobre os instrumentos do movimento voluntário. A cólera é<br />

involuntária, mas eu não sou forçado a maltratar quem me provoque,<br />

só porque a minha vontade influi em meus músculos.<br />

Perdido o domínio dessa influência, então sim, o homem já não é<br />

livre. É o que amiúde sucede com os alie<strong>na</strong>dos, que experimentam<br />

desejos, reconhecem a sua inconveniência, chegam a maldizê-los,<br />

mas não têm a força de restringir os movimentos involuntários,<br />

chegando mesmo, algumas vezes, a pedir que lhos<br />

embarguem.<br />

A liber<strong>da</strong>de moral é a base mesma <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e se ela não<br />

passa de ilusão, todo o gênero humano, tanto as <strong>na</strong>ções incipientes<br />

como as mais civiliza<strong>da</strong>s, que cultivam a Ciência e gover<strong>na</strong>m<br />

a Matéria, bem como os povos remotos, to<strong>da</strong> a Humani<strong>da</strong>de, –<br />

repetimo-lo – ter-se-ia deixado iludir pelo mais colossal dos erros<br />

que ain<strong>da</strong> existiu, depois de envere<strong>da</strong>r pela sen<strong>da</strong> mais falsa e<br />

injusta que possamos imagi<strong>na</strong>r. Mas... que dizemos: – injusta?<br />

Neste sistema, essa palavra <strong>na</strong><strong>da</strong> significa e visto que o bom e o<br />

mau não existem; visto não haver ordem moral, claro é que to<strong>da</strong>s<br />

as palavras concernentes à descrição dessa ordem, todos os<br />

pensamentos e julgamentos carecem de sentido. E, contudo, a<br />

menos que abstraiamos a própria consciência, não podemos anuir<br />

a semelhantes conclusões.<br />

Quaisquer que sejam as conclusões teóricas a que cheguem os<br />

lógicos <strong>na</strong> questão do livre arbítrio – dizia Samuel Smiles –,<br />

todos sentimos que somos praticamente livres de escolher entre o<br />

bem e o mal. Não somos o seixo que, lançado <strong>na</strong> torrente, ape<strong>na</strong>s


pode seguir o curso <strong>da</strong>s águas. Ao contrário, sentimos em nós a<br />

força do <strong>na</strong><strong>da</strong>dor, que pode escolher a direção convinhável, lutar<br />

contra a corrente, ir mais ou menos aonde lhe praza. Nenhum<br />

constrangimento absoluto nos empece a vontade. Sentimos e<br />

sabemos, no concernente aos nossos atos, que não somos encandeados<br />

por qualquer espécie de magia. To<strong>da</strong>s as nossas aspirações<br />

para o bem e para o belo ficariam paralisa<strong>da</strong>s se pensássemos<br />

de modo diverso. Todos os negócios, nossa conduta <strong>na</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

regime doméstico, contratos sociais, instituições públicas, tudo,<br />

enfim se baseia <strong>na</strong> noção prática do livre-arbítrio. E sem ele,<br />

onde estaria a responsabili<strong>da</strong>de? De que serviria ensi<strong>na</strong>r, aconselhar,<br />

predicar, reprimir, punir? Para que leis, se não houvesse<br />

uma crença universal como o próprio fato universal, de que dos<br />

homens e de sua determi<strong>na</strong>ção depende conformar-se ou não? O<br />

homem que melhor evidencia seu valor moral é o que se observa<br />

a si mesmo, dirige as suas paixões, vive conforme a regra que se<br />

impôs, estu<strong>da</strong> suas aptidões e suas falhas.<br />

Eis, ver<strong>da</strong>deiramente, o homem: sua grandeza está <strong>na</strong> sua liber<strong>da</strong>de.<br />

Não fora livre o homem, não se lhe permitiria ter fome<br />

e sede, nem comer nem beber; nem senhorear, em coisa alguma,<br />

as tendências do seu corpo. A ordem social não se teria constituído.<br />

Mas nós não temos necessi<strong>da</strong>de de prova alguma exterior para<br />

afirmar a nossa liber<strong>da</strong>de. Ninguém melhor o sabe do que a<br />

nossa própria consciência. Ela é, aliás, a única coisa que possuímos<br />

completamente nossa, e a boa ou má direção que lhe <strong>da</strong>mos,<br />

em definitivo, só depende de nós. Nossos hábitos e pendores não<br />

são nossos amos, mas servos. Mesmo quando com eles transigimos,<br />

a consciência adverte-nos de que poderíamos resistir e que,<br />

para vencê-los, não careceríamos de fortaleza superior às nossas<br />

possibili<strong>da</strong>des, se fizéssemos finca-pé. É pelo emprego livre <strong>da</strong><br />

razão que nos fazemos o que somos. Se ela ape<strong>na</strong>s propende para<br />

o sensualismo é que a vontade, forte e demoníaca, subjuga e<br />

escraviza a inteligência. Bem dirigi<strong>da</strong>, porém, essa mesma<br />

vontade compara-se a uma rainha, tendo por ministros as facul<strong>da</strong>des<br />

intelectuais e presidindo ao maior desenvolvimento compatível<br />

com a <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>.


Este pretenso ateísmo científico tomou o encargo de rebaixar<br />

e destruir todos os caracteres <strong>da</strong> grandeza huma<strong>na</strong>. Não pode,<br />

contudo, impedir a alma de provar o seu valor, de assomar a<br />

matéria, construindo-se de si mesma com os elementos do seu<br />

meio e do seu clima.<br />

Ele, o materialismo, não percebe que se a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong><br />

fosse resultado de influências fatalísticas <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, a<br />

criança e o selvagem, sob o governo quase exclusivo dessas<br />

forças, seriam mais sensatos, mais íntegros que o sábio, o filósofo,<br />

o artista. Uma tal conseqüência destrói, por si só, a teoria dos<br />

nossos adversários.<br />

Moleschott ri-se inconsidera<strong>da</strong>mente do químico espiritualista<br />

Liebig, a propósito desta assertiva do eminente pensador: “O<br />

homem tem umas tantas necessi<strong>da</strong>des que radicam <strong>na</strong> sua <strong>na</strong>tureza<br />

espiritual e não podem ser satisfeitas pelas forças físicas,<br />

necessi<strong>da</strong>des que são as diversas condições de suas funções<br />

intelectuais.” É claro – responde Moleschott – que estas palavras<br />

não têm sentido. Pode a ambição huma<strong>na</strong> imagi<strong>na</strong>r um fim mais<br />

orgulhoso que o decorrente de sua própria elevação a necessi<strong>da</strong>des<br />

impossíveis de serem provi<strong>da</strong>s por forças <strong>na</strong>turais?<br />

Certo, o autor de A Circulação <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> jamais sentiu essas<br />

aspirações superiores à <strong>na</strong>tureza física e às forças que a regem.<br />

Nunca contemplou o ideal do bem e do belo, jamais exorbitou <strong>da</strong><br />

esfera <strong>da</strong>s funções corporais, seja <strong>da</strong> assimilação e desassimilação<br />

orgânicas. Se assim é, nós o lastimamos e nos contristamos<br />

de saber que há, no mundo pensante, criaturas para as quais o<br />

mundo intelectual permanece completamente fechado.<br />

Mas, dirijo-me a vós, espíritos pensantes que aqui me ledes,<br />

sejais quem fordes, homem ou mulher, criança ou velho, moça<br />

ou rapaz: Concor<strong>da</strong>is em que todos os anseios d'alma, todos os<br />

requisitórios do coração, to<strong>da</strong>s as aspirações <strong>da</strong> mente não ten<strong>da</strong>m<br />

a fins estranhos e transcendentes às transformações <strong>da</strong><br />

matéria? Acreditais que no círculo <strong>da</strong> sensação e do sensualismo<br />

se encerrem to<strong>da</strong>s as tendências <strong>da</strong> nossa perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de? Se já<br />

amastes <strong>na</strong> aurora <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, se já sonhastes os sonhos primaveris,<br />

se o céu de vossa juventude já vos deixou entrever, ain<strong>da</strong> que por<br />

um instante, uma estrela ver<strong>da</strong>deiramente celestial em sua auréo-


la atrativa; dizei-me se é possível aceitar, como expressão de<br />

reali<strong>da</strong>de, a palavra de Stendhal, quando diz que o amor não é<br />

mais que um contacto de duas epidermes?<br />

Se tendes estu<strong>da</strong>do as obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, o céu cujos mundos<br />

incontáveis gravitam harmônicos no âmbito <strong>da</strong> luz e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a<br />

Terra, a Terra em cuja superfície se conjugam e se desdobram de<br />

concerto as manifestações <strong>da</strong> força vital, a atmosfera, cujas leis<br />

periódicas regulam o regime geral; as plantas, or<strong>na</strong>mento e<br />

perfume do solo, base do edifício <strong>da</strong>s existências; os seres vivos,<br />

cuja estrutura revela, a ca<strong>da</strong> passo, a maravilhosa a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong>s<br />

funções aos órgãos; se tendes estu<strong>da</strong>do as lições grandiosas e o<br />

mecanismo geral desta <strong>Natureza</strong> tão rica e tão fecun<strong>da</strong>, podereis<br />

recusar-vos a sau<strong>da</strong>r do uno de vossa alma a Inteligência suprema<br />

com tamanho império manifesta<strong>da</strong> sob o véu <strong>da</strong> matéria? Se,<br />

no silêncio eloqüente <strong>da</strong>s noites estrela<strong>da</strong>s, vossa alma se deixou<br />

arrebatar num vôo olímpico a esses focos de vi<strong>da</strong> desconheci<strong>da</strong>;<br />

se já fostes alguma vez levado a perguntar quais possam ser as<br />

formas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> futura, e se já houverdes pressentido que o idealismo<br />

de nossas aspirações não se realizou neste mundo, porventura<br />

não estremecestes à idéia do infinito e <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de que nos<br />

aguar<strong>da</strong>m? Se tendes presenciado as obras sublimes de devotamento<br />

e cari<strong>da</strong>de, que espalham o bálsamo <strong>da</strong> consolação nos<br />

espíritos sofredores; que levam os proscritos <strong>da</strong> Terra a esperar<br />

uma justiça imanente; que sustentam o passo vacilante dos<br />

feridos e que se consagram de corpo e alma ao alívio <strong>da</strong>s misérias<br />

terre<strong>na</strong>s; – dizei-me: não tendes concluído que o sensualismo<br />

e o egoísmo indiferente não são tudo o que encerra o coração<br />

humano? Se sentistes, alguma vez, a magia <strong>da</strong> música deixandovos<br />

embalar por essas obras-primas, cujos autores ilustres têm<br />

pontilhado de encantos a travessia oceânica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, dizei-me: –<br />

não vos parece que há fases acústicas, harmonias que o ouvido<br />

não entendeu e <strong>da</strong>s quais as melodias terre<strong>na</strong>s não representam<br />

mais que um eco amortecido? Se tendes vivido a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma,<br />

enfim, essa vi<strong>da</strong> entrecorta<strong>da</strong> de êxtases e angústias, sensível e<br />

domi<strong>na</strong>dora ao mesmo tempo; – vi<strong>da</strong> que se conturba com as<br />

mágoas do coração e sabe, to<strong>da</strong>via, calcar a pés os prejuízos<br />

vulgares e domi<strong>na</strong>r triunfante os <strong>na</strong><strong>da</strong>s mun<strong>da</strong>nos; se tendes


caminhado de fronte ergui<strong>da</strong>, fitando o céu, não compreendestes<br />

que a inteligência ultrapassa a matéria, que a alma tem necessi<strong>da</strong>des<br />

extracorpóreas e que a nossa digni<strong>da</strong>de moral não conhece<br />

a poeira <strong>da</strong>s praças públicas, onde os saltimbancos divertem as<br />

turbas vadias com jogos de Física recreativa?<br />

Se, qual temos visto, a Ciência do mundo físico perde, <strong>na</strong> hipótese<br />

<strong>da</strong> inexistência de <strong>Deus</strong>, a sua base e a sua luz, para<br />

resvalar <strong>na</strong> incapaci<strong>da</strong>de absoluta de explicar razoavelmente a<br />

construção do Universo, a ciência do mundo intelectual perde,<br />

maiormente, a sua razão de ser. Esvanecem-se o ver<strong>da</strong>deiro, o<br />

belo, o bem. Em que báratros tenebrosos mergulham, então, os<br />

velhos princípios <strong>da</strong> Filosofia, <strong>da</strong> Estética, <strong>da</strong> Moral?<br />

A meditação <strong>da</strong>s eter<strong>na</strong>s ver<strong>da</strong>des já não passará de um sonho.<br />

O sábio, o pensador e o artista estrebucham <strong>na</strong> treva e no caos?<br />

Em vão se pretenderá que a Arte possa colimar outros fins<br />

que não sejam a representação de formas agradáveis? Escultura,<br />

música, pintura, ape<strong>na</strong>s visam deleitar-nos os sentidos? Erro<br />

profundo! Qual a beleza, que a nossa alma contempla <strong>na</strong> estatuária,<br />

no desenho, <strong>na</strong> harmonia? Qual a magia que nos atrai através<br />

<strong>da</strong>s luzes e sombras dos ensaios perecíveis? Não será a beleza<br />

ideal, a ver<strong>da</strong>de misteriosamente oculta, <strong>da</strong> qual temos sede,<br />

procurando vê-la em tudo? Não será o ideal puro, translúcido,<br />

soberano, ímã possante, sedutor irresistível de inteligência?<br />

A Humani<strong>da</strong>de não se elevou acima <strong>da</strong>s outras espécies terre<strong>na</strong>s<br />

senão por sua constante ascensão para o ideal, para a ver<strong>da</strong>de<br />

espiritual. A Arte seria um mito, um engodo, um exercício<br />

mecânico, um <strong>na</strong><strong>da</strong>, se não radicasse <strong>na</strong> beleza suprema. Nisto –<br />

nisto sobretudo – é que o homem se afirma por predicados<br />

estranhos à matéria e confi<strong>na</strong>ntes com a esfera do Infinito. Nisto,<br />

sobretudo, é que o homem entra em comunhão com os esplendores<br />

infinitos e os fixa, para sempre, em louvores imortais...<br />

Tenho diante de mim a poeira vil, a matéria i<strong>na</strong>nima<strong>da</strong>, um<br />

fragmento de argila!


Minha alma, inspira<strong>da</strong>, concebeu o tipo visível de uma virtude<br />

sobre-huma<strong>na</strong>, a manifestação do heroísmo, do devotamento,<br />

do amor, <strong>da</strong> adoração... Argila! terra colhi<strong>da</strong> <strong>na</strong>lgum fosso<br />

úmido, em ti vou transfundir a inspiração de minha alma... Em ti<br />

vai encar<strong>na</strong>r-se a minha inteligência! Em ti vai manifestar-se e<br />

esplender o tipo sublime que o meu espírito contempla! Em ti<br />

vão fremir as palpitações do meu pensamento! E enquanto meu<br />

despojo miserando, caído em inominável ignomínia, vai sumir-se<br />

e afastar-se no tempo e <strong>na</strong> História, dentro ain<strong>da</strong> de quarenta<br />

séculos, os olhos que te contemplarem em ti verão meu pensamento!<br />

Milhões de corações terão palpitado e palpitarão ain<strong>da</strong>,<br />

em uníssono, com o meu... E diante de ti as almas se incli<strong>na</strong>rão<br />

para sau<strong>da</strong>r a virtude divi<strong>na</strong>, que te deu uma auréola imperecível!<br />

O apanágio mais glorioso <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong> não passaria de<br />

grosseiro engodo, se prevalecer pudesse a teoria mecânica do<br />

Universo. A Ver<strong>da</strong>de, o Bem, o Belo desaparecem nela. Em vão<br />

os adversários nos alegam sua conduta exemplar, i<strong>na</strong>tacável.<br />

No caso, não se trata <strong>da</strong>s conseqüências <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> pessoal e<br />

sim <strong>da</strong>s de sua doutri<strong>na</strong>. Pois bem: logicamente, sem contradizer-se<br />

a si mesmo, não pode o ateísmo constituir-se em moral.<br />

“O materialismo – diz judiciosamente Patrício Larroque – para<br />

mais <strong>na</strong><strong>da</strong> presta, senão para tirar à vi<strong>da</strong> huma<strong>na</strong> a sua gravi<strong>da</strong>de<br />

e o seu valor, <strong>da</strong>ndo razão aos seres miseráveis, cuja habili<strong>da</strong>de<br />

consiste em explicar, com a maior segurança possível, as misérias<br />

e fraquezas do próximo.”<br />

Queremos lealmente acreditar que todos os materialistas, em<br />

o serem, não se tornem só por isso corrompidos. Não nos fazemos<br />

eco dos que os argúem de “viverem mergulhados <strong>na</strong> embriaguez<br />

e no deboche”. Conhecemos homens e mulheres cuja vi<strong>da</strong><br />

pode apontar-se como modelo de morali<strong>da</strong>de, embora não crendo<br />

<strong>na</strong> existência de <strong>Deus</strong> e <strong>da</strong> alma. Não, não podemos deixar de<br />

confessar que, no seu próprio sistema, essa honesti<strong>da</strong>de é ape<strong>na</strong>s<br />

uma questão de temperamento e que, justos e bons, conscienciosos<br />

e benevolentes, afetuosos e moralizados, em suma, se praticam<br />

a cari<strong>da</strong>de, se não sacrificam ao bezerro de ouro, se preferem<br />

a integri<strong>da</strong>de e a pureza de caráter à fortu<strong>na</strong> ilícita, não é


devido ao seu sistema e sim a uma convicção íntima, que os guia<br />

a seu talante e protesta contra as suas palavras e a sua filosofia.<br />

Sim: não são moralizados por serem cépticos, mas, a despeito de<br />

o serem.<br />

Pois, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, que significa uma morali<strong>da</strong>de sem base,<br />

sem motivo e sem fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de?<br />

Certo, não duvi<strong>da</strong>mos possa haver uma moral independente<br />

do Catolicismo, mesmo do Cristianismo e, em geral, de qualquer<br />

confissão religiosa. O que não cremos é <strong>na</strong> moral independente<br />

<strong>da</strong> idéia de <strong>Deus</strong>. Se só existissem as ver<strong>da</strong>des de ordem física,<br />

se místicas fossem as que havemos como de ordem moral, a<br />

própria moral não passaria de utopia e a honesti<strong>da</strong>de de mera<br />

tolice.<br />

Outras propensões existem, porém, que não procedem <strong>da</strong> matéria.<br />

“O homem que passa os dias sofrivelmente trabalhando, ou,<br />

antes, que não consome todo o tempo em prover a existência<br />

física – diz um grande astrônomo 88 – experimenta necessi<strong>da</strong>des<br />

<strong>na</strong>s quais não intervém os sentidos, pe<strong>na</strong>s e gozos, que <strong>na</strong><strong>da</strong> têm<br />

de comum com as misérias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. E, uma vez manifesta<strong>da</strong>s<br />

com certa intensi<strong>da</strong>de, ele não mais pode confundi-las com os<br />

apetites animais. Sente-as como de outra espécie e de uma ordem<br />

mais eleva<strong>da</strong>. Mas isto não é tudo. O homem não é sensível<br />

somente aos jogos <strong>da</strong> imagi<strong>na</strong>ção, às suavi<strong>da</strong>des dos costumes<br />

sociais, mas sim especulativo por <strong>na</strong>tureza. Não contempla o<br />

mundo e tudo que o rodeia, passiva e admirativamente, como se<br />

fossem fenômenos seriados e ape<strong>na</strong>s dignos de interesse pelas<br />

relações que mantêm com ele. Ao revés, considera-os como<br />

sistematizados, dispostos e coorde<strong>na</strong>dos com desígnio. A harmonia<br />

<strong>da</strong>s partes, a sagaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s combi<strong>na</strong>ções, causam-lhe a mais<br />

viva admiração. Assim, é levado à conjetura de uma potência, de<br />

uma inteligência superior à sua e capaz de produzir e conceber,<br />

quanto se lhe depara <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Infinita, pode chamar a essa<br />

potência, de vez que lhe não percebe limite <strong>na</strong>s obras com que se<br />

lhe manifesta. Quanto mais exami<strong>na</strong>, observa, in<strong>da</strong>ga, maiores<br />

magnificências descobre e mais grandezas lobriga.


“Vê que tudo o que lhe pode facultar a mais longa existência<br />

e a maior inteligência, já como fruto de experiência própria, já<br />

como patrimônio de esforço alheio, só pode conduzi-lo aos<br />

limites <strong>da</strong> Ciência. Como estranhar, então, que um ser assim<br />

constituído comece por agasalhar a esperança e acabe convicto<br />

de que o seu princípio espiritual não acompanhe as vicissitudes<br />

<strong>da</strong> carcaça, que lhe sobreviva ao desaparecimento? Como admirar<br />

se persua<strong>da</strong> ele, que, longe de extinguir-se, passará a uma<br />

vi<strong>da</strong> nova, <strong>na</strong> qual, liberto dos mil entraves que aqui lhe tolhem o<br />

vôo, dotado de sentidos mais sutis, de facul<strong>da</strong>des mais altas, se<br />

dessedentará <strong>na</strong> fonte de sabedoria que tão sequioso buscara <strong>na</strong><br />

Terra?”<br />

A hipótese materialista exclui to<strong>da</strong>s estas grandezas morais,<br />

to<strong>da</strong>s estas altas aspirações e consoladoras esperanças. Nossos<br />

adversários, porém, tomam facilmente o seu partido: “Façamos<br />

abstração – diz o autor de Força e Matéria – de to<strong>da</strong> questão de<br />

moral e de utili<strong>da</strong>de. A <strong>Natureza</strong> não existe para a Religião, nem<br />

para a Moral, nem para os homens. Não seríamos ridículos –<br />

vejam bem, ridículos – se fôssemos chorar como crianças só<br />

porque as nossas torra<strong>da</strong>s têm pouca manteiga?” Que tal vos<br />

parecem as... torra<strong>da</strong>s? Pelo que nos toca, confessamos não<br />

compreender o gracejo em assunto de tanta relevância.<br />

Diante dos grandes fatos de ordem moral e intelectual, parece-nos<br />

haver perdido todo o senso <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de para subordi<strong>na</strong>r<br />

estas virtudes, as “virtudes”, aos movimentos <strong>da</strong> matéria. Como<br />

atribuir a esse predomínio, com Moleschott, que o “homem deva,<br />

em parte, o lugar privilegiado <strong>na</strong> escala zoológica, à facul<strong>da</strong>de de<br />

alimentar-se tanto de vegetais como de carne”? O mesmo vale<br />

dizer, com Helvétius, que “o homem só deve à conformação <strong>da</strong>s<br />

mãos a superiori<strong>da</strong>de que desfruta em relação aos outros animais”.<br />

Como admitir que Büchner, apregoando a matéria como base<br />

de to<strong>da</strong> a força espiritual, de to<strong>da</strong> a grandeza terrestre e huma<strong>na</strong><br />

– que aquele mesmo que reconheceu a igual<strong>da</strong>de do espírito e <strong>da</strong><br />

matéria e julgue honroso o título de materialista, pois ao materialismo<br />

é que o mundo deve a sua grandeza? 89<br />

Como afi<strong>na</strong>r com Spencer nestas declarações:


“O que denomi<strong>na</strong>mos quanti<strong>da</strong>de de consciência é determi<strong>na</strong>do<br />

pelos elementos constitutivos do sangue; vemo-lo claramente<br />

<strong>na</strong> exaltação que se dá quando introduzimos <strong>na</strong> circulação<br />

uns quantos compostos químicos, como sejam o álcool e os<br />

alcalóides vegetais.” Como Compartilhar <strong>da</strong> opinião de Litré ao<br />

declarar que “a vontade é inerente à substância cerebral, assim<br />

como a contratili<strong>da</strong>de o é dos músculos, e que o livre arbítrio não<br />

é mais que simples mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de do trabalho cerebral”? 90<br />

Como reduzir a proporções <strong>da</strong> Química e <strong>da</strong> Física orgânicas,<br />

a simples fenômenos de nutrição e assimilação, essas realizações<br />

magníficas do gênio e <strong>da</strong> virtude?<br />

Termi<strong>na</strong>ndo este capítulo, volvamos ao objetivo com que o<br />

encetamos e constatemos a inconseqüência desses filósofos que<br />

imagi<strong>na</strong>m, arrogantemente, ter lançado uma ponte entre o espírito<br />

e a matéria, sem perceberem que ape<strong>na</strong>s lançaram seixos no<br />

abismo. Descrevem eles o movimento atômico <strong>da</strong>s substâncias,<br />

metamorfoses de combi<strong>na</strong>ções, processos de assimilação e<br />

desassimilação, e pretendem que essas transformações que levam<br />

do pulmão ao cérebro uma molécula de ferro, são de molde a<br />

explicar claramente a formação do pensamento. Isto posto, não<br />

temem acrescentar: – “Temos provas tão certas desta ver<strong>da</strong>de,<br />

que uma profissão de fé materialista não deve ser considera<strong>da</strong><br />

ape<strong>na</strong>s como premissa de grande alcance, nem como arroja<strong>da</strong><br />

profecia, mas como fruto de uma convicção profun<strong>da</strong>mente<br />

enraiza<strong>da</strong>” 91 .<br />

Eis o que se pode chamar ousadia! Sabei assim todos vós, ó<br />

filósofos e moralistas! que o homem é manufatura do seu alimento,<br />

<strong>da</strong> sua paterni<strong>da</strong>de, do seu clima, do seu solo e <strong>da</strong> sua<br />

educação. Se afagais o nobre intuito de colaborar para a melhoria<br />

huma<strong>na</strong>, não é, precisamente, a graduação do nível moral e<br />

intelectual do indivíduo o que vos deve preocupar, e sim de<br />

como vive e como se alimenta. Se ele tem muito ferro (já que o<br />

ferro é uma <strong>da</strong>s amofi<strong>na</strong>ções maiores <strong>da</strong> época e as moças muito<br />

necessitam dele; (Carta 11ª) se tem fósforo que baste (já que<br />

sangue, cérebro, ovos e esperma, to<strong>da</strong>s as partículas do corpo,<br />

em suma, que ocupam os mais altos postos <strong>na</strong> escala <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>


devem à gordura fosfora<strong>da</strong> 92 o seu caráter mais essencial); (Carta<br />

11ª) se tem bastante sal no espírito e açúcar no coração...<br />

A questão fun<strong>da</strong>mental é alimentar-se bem e estabelecer uma<br />

conveniente harmonia entre os regimes vegetal e animal. Escolhamos<br />

então, nos elementos deste último, os mais ricos de<br />

substâncias nutrientes e, sobretudo, os que primam por abundância<br />

de fósforo, sem chegar, claro, aos extremos de engolir cabeças<br />

do dito.<br />

Mas, à batata, ao arroz, à cenoura, ao <strong>na</strong>bo, às verduras, prefiramos<br />

o feijão, as ervilhas e lentilhas. Eis os três restauradores<br />

do espírito! e eis como se escreve a respeito desses beneméritos<br />

legumes.<br />

Ouçamos esta tira<strong>da</strong>: “As ervilhas, o feijão e as lentilhas continuam<br />

a florescer em nossos olhos, elas contêm aproxima<strong>da</strong>mente<br />

tanta albumi<strong>na</strong> (legumi<strong>na</strong>) quanto o nosso sangue; e duas<br />

ou três vezes mais matérias adipóge<strong>na</strong>s que legumi<strong>na</strong>. Embora<br />

mais caras e de preparação mais dispendiosa, as ervilhas, o feijão<br />

e as lentilhas dão melhor resultado que as batatas. Elas são de<br />

molde a produzir um bom sangue e a fortificar os músculos e o<br />

cérebro, qual o não faz a batata. As ervilhas, o feijão e as lentilhas,<br />

atento às suas quali<strong>da</strong>des nutritivas, são mais baratos que as<br />

batatas, pela mesma razão que o ferro é mais barato que a madeira,<br />

quando se trate de fabricar trilhos. Ervilha, feijão e lentilha<br />

dão energias para o trabalho, pagam por si mesmos o seu custo;<br />

ao passo que um regime longo de batatas acarreta debili<strong>da</strong>de e<br />

decadência. O homem que, durante quinze dias, só comesse<br />

batatas, ficaria impossibilitado de as arrancar por si mesmo” 93 .<br />

O prolator deve ter assi<strong>na</strong>do contrato com algum hortelão (ou<br />

talvez hoteleiro), exclusivamente devotado a estes onipotentes<br />

legumes. Que lhes faça bom proveito...<br />

Sob esse novo panegírico <strong>da</strong>s ditas substâncias alimentares, o<br />

materialismo desliza suavemente e insinua-se sem rumor. Compararam-no<br />

certa feita (mas nós temos cá as nossas dúvi<strong>da</strong>s)<br />

àquela coisa de que nos fala D. Basílio: um leve ruído resvalando<br />

pelo solo, qual andorinha que, prenunciando tempestades, pipila<br />

e passa, espalhando em seu curso a semente envene<strong>na</strong><strong>da</strong>...


Seja, porém, qual for o efeito dos miríficos farináceos, não<br />

será neles que hajamos de procurar as manifestações do espírito<br />

humano.<br />

Quando, fi<strong>na</strong>lmente, concluem que a influência incontestável<br />

e incontesta<strong>da</strong> do regime alimentar sobre o físico e o moral basta<br />

para justificar, em absoluto, a suserania <strong>da</strong> matéria, caem nos<br />

excessos do sistematismo, a negarem tudo que se não enquadra<br />

no seu sistema e a torcerem os fatos para os ajeitar aos seus<br />

estreitos moldes. Bastaria, contudo, ponderassem um tanto mais,<br />

para não sustentarem semelhantes erros.<br />

Quaisquer que sejam o caráter, o propósito e a persistência de<br />

ânimo <strong>da</strong>queles de quem aqui temos falado, seus exemplos<br />

valem como protesto de afirmações tão insensatas.<br />

Eis aqui o grande missionário <strong>da</strong>s Índias, Francisco Xavier.<br />

Sigamo-lo no barco que o transportou às Índias portuguesas, por<br />

ordem de D. João 3º, a descer o Tejo, envolvido <strong>na</strong> sua estamenha<br />

remen<strong>da</strong><strong>da</strong> e com a só bagagem do seu breviário – ele, o<br />

generoso gentil-homem, o sábio de 22 anos, o já consagrado<br />

professor de Filosofia <strong>na</strong> Universi<strong>da</strong>de de Paris, que tudo abando<strong>na</strong>va<br />

para acompanhar um amigo. Durante o dia, trabalha com<br />

os marinheiros e aos marinheiros se devota; à noite, dorme no<br />

convés e tem por travesseiro um rolo de cordoalha.<br />

Em Goa, se encontra no meio de uma população miserável,<br />

sem outra preocupação que a de libertá-la do miasma moral e<br />

material. Mais tarde, em prosseguimento de abnega<strong>da</strong> missão, eilo<br />

a descer as costas de Comorim e fun<strong>da</strong>ndo uma igreja no<br />

Cabo. Depois encontramo-lo em Malaca e no Japão, a defrontar<br />

novas raças e novos climas. Sabemos que to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> foi um<br />

rosário de sofrimentos físicos e de conquistas espirituais. Fome,<br />

sede e torturas i<strong>na</strong>uditas barraram a sen<strong>da</strong> do peregrino <strong>da</strong> fé.<br />

Tudo vencia, porém, e caminhava avante como que impelido<br />

por uma vontade incoercível “Seja qual for a morte, o suplício<br />

que me reservem – dizia –, estou disposto a sofrê-lo mil vezes<br />

pela salvação de uma só alma.” A febre e a morte detiveram-no<br />

<strong>na</strong>s fronteiras <strong>da</strong> Chi<strong>na</strong>. Em face de exemplos como este, que se<br />

poderia concluir <strong>da</strong>s teorias do feijão, <strong>da</strong>s ervilhas e lentilhas?


Em que, como e quando o regime alimentar teria gover<strong>na</strong>do a<br />

alma do apóstolo? Teria ele encontrado nessas regiões desconheci<strong>da</strong>s<br />

aquela balança metódica que se oferece ao ci<strong>da</strong>dão e que o<br />

capitalista preguiçoso pode encomen<strong>da</strong>r ao seu Vatel? Que<br />

relação pode haver entre Brillat-Savarin e Grimod de la Reyniêre<br />

com um Inácio de Loiola e um Vicente de Paula? Os grandes<br />

exploradores, à testa dos quais se encontram um Dumontd’Urville,<br />

um Cook, um Livingstone, etc., não vingaram, todos<br />

eles, os seus desígnios em circunstâncias e condições físicas as<br />

mais contrárias e varia<strong>da</strong>s?<br />

Poder-se-á sustentar que, mu<strong>da</strong>ndo de terra, de alimentação,<br />

de clima, de meio social, de elementos outros e até de corpo,<br />

<strong>da</strong>do a transformação molecular, mu<strong>da</strong>ssem também de alma, de<br />

fé e de coragem? Pois não é ver<strong>da</strong>de que persistiram íntegros <strong>na</strong><br />

consecução do ideal, através de vicissitudes tremen<strong>da</strong>s e dos<br />

mais fortes obstáculos? 94 Na ver<strong>da</strong>de, insistirmos seria injuriar o<br />

leitor. Exclusive nossos sistemáticos adversários, nenhum espírito<br />

sensato duvi<strong>da</strong> que matéria e espírito sejam coisas diferentes.<br />

Ninguém ignora que, se a assimilação corporal atua em nosso<br />

pensamento, assim como a beleza do dia influi <strong>na</strong> sereni<strong>da</strong>de de<br />

nossa alma, isso não impede seja essa alma um ser pessoal, que<br />

chora às vezes quando as aves cantam e as flores exalam perfumes,<br />

e outras vezes se entrega sere<strong>na</strong>mente ao estudo, enquanto<br />

o céu tempestuoso se funde em raios e trovões 95 .<br />

Enten<strong>da</strong>m-nos bem e não venham interpretar infielmente as<br />

nossas alegações. Nós não dizemos que a matéria seja destituí<strong>da</strong><br />

de to<strong>da</strong> e qualquer influência sobre o espírito; não dizemos que a<br />

alma huma<strong>na</strong> seja completamente independente do organismo e<br />

nem mesmo estamos com Platão, a pretender que o espírito é<br />

estranho ao corpo e que há antipatia entre eles.<br />

Certo, ninguém dirá que uma criatura a morrer de fome esteja<br />

disposta a cantar. Quem duvi<strong>da</strong>rá de que, após uma jor<strong>na</strong><strong>da</strong><br />

fatigante, cabeceando de sono, tenhamos disposição para <strong>da</strong>nçar?<br />

Então não sabemos, todos, que nossa alma se impressio<strong>na</strong><br />

com e pelos aspectos exteriores? Que um dia luminoso nos<br />

alegra, que uma manhã sombria e chuvosa nos entristece? Que a<br />

placidez <strong>da</strong>s belas noites nos penetra intimamente, proporcio-


<strong>na</strong>ndo-nos gozos calmos? E dizei: os poemas sonoros, os amavios<br />

<strong>da</strong> música, sinfonias deliciosas, so<strong>na</strong>tas apaixo<strong>na</strong><strong>da</strong>s, nunca<br />

vos arrebataram, nunca vos sacudiram os nervos? Será que, <strong>na</strong>s<br />

vossas disposições habituais, tanto quanto nos sonhos que povoam<br />

as vossas noites, nunca experimentastes o efeito <strong>da</strong> alimentação<br />

e dos vossos hábitos e misteres? Dar-se-á que a maneira pela<br />

qual fin<strong>da</strong>stes a vossa tarefa, não tenha afetado os vossos sonhos?<br />

Numa palavra: será possível ao observador negar a influência<br />

permanente e variável que o mundo exterior, socie<strong>da</strong>de, relações,<br />

alimento, frio, luz, obscuri<strong>da</strong>de, ci<strong>da</strong>de ou aldeia e causas mil<br />

outras, de nós independentes, não influam em nossos pensamentos,<br />

sentimentos e sensibili<strong>da</strong>de? Não. Essas influências são<br />

reais, admitimo-las e indicamo-las. Montesquieu, cuja declaração<br />

é menos exclusiva do que supõem, escreveu: “Nos países<br />

frios haverá pouca tendência para os prazeres, que será mais<br />

acentua<strong>da</strong> nos climas temperados, e sempre exuberante <strong>na</strong>s<br />

regiões quentes. Ouvindo as mesmas óperas <strong>na</strong> Inglaterra e <strong>na</strong><br />

Itália, notei que a mesma música produzia efeitos diferentes, isto<br />

é: enquanto <strong>na</strong> primeira o auditório se mantinha calmo, <strong>na</strong> segun<strong>da</strong><br />

vibrava de forma inconcebível. O mesmo se dá com<br />

relação à dor... A grande estatura e os nervos enrijados dos povos<br />

do Norte são menos vibráteis que os <strong>da</strong> gente dos países quentes.<br />

Lá, há menos sensibili<strong>da</strong>de <strong>na</strong> dor. Para sensibilizar um moscovita,<br />

há que o esfolar.” Mais adiante, porém, acrescenta que,<br />

entre as coisas que gover<strong>na</strong>m o homem, importa distinguir “a<br />

religião, as leis, as máximas, os exemplos”. Concor<strong>da</strong>remos com<br />

o autor de O Espírito <strong>da</strong>s Leis, com restrições, isto é, no que<br />

concerne a influências extrínsecas, por assim dizer; mas <strong>da</strong>í a<br />

admitir quê só elas fazem o homem, vai todo um abismo. Uma<br />

coisa é dizer que a alma é impressio<strong>na</strong><strong>da</strong> por causas situa<strong>da</strong>s fora<br />

dela, outra é dizer que essa alma não existe. Chegamos mesmo a<br />

nos perguntar como podem os adversários conciliar as duas<br />

proposições, quando, no fundo, imagi<strong>na</strong>m que a alma não existe<br />

e os pensamentos não passam de produtos <strong>da</strong> substância cerebral,<br />

variáveis com as impressões recebi<strong>da</strong>s. Eis ao que se reduz o<br />

homem!


Abstraindo de to<strong>da</strong>s as provas precedentemente acumula<strong>da</strong>s,<br />

a testificação <strong>da</strong> nossa liber<strong>da</strong>de viria, enfim, depor a favor <strong>da</strong><br />

força pensante que nos anima.<br />

– O panteísmo, fazendo <strong>da</strong> alma uma partícula <strong>da</strong> substância<br />

divi<strong>na</strong>, a escraviza e arrasta, inevitavelmente, ao fatalismo<br />

absoluto.<br />

– O ateísmo, negando a existência do espírito, faz <strong>da</strong> alma a<br />

escrava <strong>da</strong> matéria e conduz, por outra via, ao mesmo fatalismo.<br />

Poderíamos, portanto, proceder por elimi<strong>na</strong>ção, demonstrando<br />

a i<strong>na</strong>ni<strong>da</strong>de dessas doutri<strong>na</strong>s, forçar o acolhimento <strong>da</strong> nossa,<br />

como a única que concilia os diversos imperativos de nossa<br />

consciência. Assim, permitiu a sorte fossem os adversários<br />

batidos em todos os quadrantes e que a negação <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />

ficasse presa ao pelourinho por todos os elementos de nossa<br />

convicção.<br />

Concluindo o arrazoado sobre a existência <strong>da</strong> alma, afirmamos:<br />

a digni<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong> não permite um semelhante atentado<br />

ao que constitui o seu supremo fa<strong>na</strong>l; antes protesta contra essas<br />

tendências exagera<strong>da</strong>s. As influências exagera<strong>da</strong>s atuam mais ou<br />

menos em nós, conforme a nossa sensibili<strong>da</strong>de nervosa; mas,<br />

tanto quanto a composição química do cérebro, elas não constituem<br />

o nosso valor moral e intelectual. Para arrasar essa hipótese,<br />

bem como a precedente, basta considerar a potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

nossa força mental. Só com ela podemos afrontar to<strong>da</strong>s essas<br />

influências e seguir desdenhosos, de fronte ergui<strong>da</strong>, por entre<br />

essas ações e reações ambientes.<br />

Quando a alma se acabrunha ao peso de uma dor profun<strong>da</strong>,<br />

pouco nos preocupamos com o estado do céu, que chova ou<br />

vente.<br />

Quando nos abando<strong>na</strong>mos a um enlevo de alegrias íntimas,<br />

pouco se nos dá o dia e o mês em que estamos.<br />

Quando sérios estudos nos absorvem a atenção, esquecemonos<br />

de jantar e até de dormir.<br />

Quando o som <strong>da</strong>s fanfarras atroa os ares e a ci<strong>da</strong>de em alvoroço<br />

festeja a liber<strong>da</strong>de, não ocorre saber se estamos em Julho ou<br />

Fevereiro.


Quando a pátria periclita, o pavilhão francês não se preocupa<br />

com a <strong>da</strong>ta e o barômetro.<br />

A vontade susera<strong>na</strong> não cogita dessas pretensas causas. As<br />

profun<strong>da</strong>s emoções do coração desprezam bagatelas. Se a saúde<br />

é excelente condição para bem pensar e sentir, não quer dizer<br />

que ela só por si promova o estado <strong>da</strong> alma. Há, <strong>na</strong> vi<strong>da</strong>, horas<br />

mais deliciosas que as dos mais opíparos banquetes, e <strong>na</strong>s quais<br />

se esquecem as igua<strong>na</strong>s deleitosas aos pala<strong>da</strong>res insaciáveis;<br />

horas que eclipsam câmaras suntuosas, peles caras, jóias brilhantes,<br />

todos os regalos do mundo, enfim, para só nos absorvermos<br />

em gozos mais íntimos e mais vivazes... Quantos, <strong>na</strong> Terra,<br />

fruíram esses momentos de felici<strong>da</strong>de, sabem que acima <strong>da</strong><br />

esfera material existe uma região i<strong>na</strong>cessível aos tormentos<br />

inferiores, onde as almas idealistas se encontram em comunhão<br />

com a beleza espiritual e incria<strong>da</strong>.


Quarta Parte<br />

Destino dos Seres e <strong>da</strong>s Coisas<br />

1 - Plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> - Construção dos Seres Vivos<br />

SUMÁRIO – O erro e o ridículo dos que tudo ligam ao homem. –<br />

Erro semelhante dos que negam a existência de um plano <strong>na</strong>tural.<br />

– As leis organizadoras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> revelam uma causa inteligente.<br />

– Construção maravilhosa dos órgãos e dos sentidos. – A vista<br />

e o ouvido. – Hipótese <strong>da</strong> formação dos seres vivos sob o influxo<br />

de uma força instintiva universal. – Hipótese <strong>da</strong> transformação<br />

<strong>da</strong>s espécies. – To<strong>da</strong>s as hipóteses são impotentes para destruir a<br />

sabedoria do plano divino.<br />

Certa feita, ao deixar uma aldeia à tardinha, vi uma deze<strong>na</strong> de<br />

meni<strong>na</strong>s que corriam e brincavam sob a copa de frondosas e<br />

velhas tílias. Qual bando gárrulo de aves inquietas, corriam e<br />

casqui<strong>na</strong>vam sob aquelas frondes seculares, que, indubitavelmente,<br />

viram por ali passar sucessivas gerações infantis. Que<br />

pensariam a respeito, aquelas árvores imóveis? Quantos sóis<br />

teriam visto passar-lhes por sobre as comas verdes? Sonhariam,<br />

acaso, com os esplendores <strong>da</strong> prísti<strong>na</strong> vegetação que tão gloriosamente<br />

vestiu a Terra nos seus dias primaveris? Teriam elas<br />

uma vaga consciência <strong>da</strong> importância do reino vegetal e <strong>da</strong><br />

grandeza do seu papel no sistema geral <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terre<strong>na</strong>? Talvez...<br />

Mas, seguramente, o que não suspeitariam era a opinião que a<br />

seu respeito me exter<strong>na</strong>va uma <strong>da</strong>quelas lin<strong>da</strong>s crianças, quando,<br />

metendo-me no brinquedo, lhe perguntei para que serviam<br />

aquelas grandes tílias...<br />

– Para brincar de cabra-cega quando a tarde está bonita – respondeu<br />

<strong>na</strong>quele timbre de franqueza que revela as convicções<br />

profun<strong>da</strong>s.<br />

E logo após, como a completar seu pensamento de filha amorosa:<br />

– elas servem, também, para a mamãe fazer chá. – E disse-


o, oferecendo-me um raminho branco e cheiroso, que caíra de<br />

um galho...<br />

Outra noite, em Paris, um tal M. C., a quem falávamos <strong>da</strong><br />

imensi<strong>da</strong>de do céu e <strong>da</strong> infini<strong>da</strong>de dos Mundos, entre os quais a<br />

Terra vale por átomo insignificante, respondeu-nos ele com uma<br />

ingenui<strong>da</strong>de menos perdoável que a precedente, visto provir de<br />

um adulto:<br />

– Pregais idéias desastrosas, quando dizeis que a Terra não é<br />

privilegia<strong>da</strong>, nem pode ser superior aos astros; pois a ver<strong>da</strong>de é<br />

que ela forneceu o corpo divino de Jesus-Cristo e o <strong>da</strong> Santa<br />

Virgem, e só isso basta para graduá-la acima de todos os astros,<br />

autorizando-nos a afirmar que todos os astros foram feitos para<br />

ela 96 .<br />

Simultaneamente, outra boa criatura, que é o Sr. Le Prieur,<br />

possuído <strong>da</strong>s melhores intenções, presumia que as marés eram<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s ao oceano a fim de facilitar a entra<strong>da</strong> de <strong>na</strong>vios nos portos<br />

97 .<br />

A isso, aditava Voltaire, que também não havia razão para<br />

duvi<strong>da</strong>r fossem as per<strong>na</strong>s cria<strong>da</strong>s para enfiar as botas e o <strong>na</strong>riz<br />

para sustentar os óculos; pois – arrazoava ain<strong>da</strong> 98 –, para nos<br />

podermos certificar <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>deiras causas, não há como desatender<br />

à continui<strong>da</strong>de dos seus efeitos, em todos os tempos e<br />

lugares. Igualmente pueril fora agradecer a <strong>Deus</strong> o ter feito<br />

passar os grandes rios pelas grandes ci<strong>da</strong>des e encalhar os <strong>na</strong>vios<br />

<strong>na</strong>s regiões polares, para assim fornecer aos Groelandeses a<br />

lenha com que se aqueçam. Sente-se quão ridículo fora presumir<br />

que a <strong>Natureza</strong> houvesse, de todos os tempos, trabalhado para<br />

ajustar-se às nossas invenções artísticas e arbitrárias, mas se<br />

evidentemente os <strong>na</strong>rizes não foram feitos para os óculos, foramno<br />

para o olfato e isso desde que há homens.<br />

Assim, também, não tendo sido as mãos engendra<strong>da</strong>s para<br />

gáudio dos luveiros, desti<strong>na</strong>m-se, evidentemente a todos os usos<br />

que o metacarpo, as falanges digitais e os movimentos musculares<br />

do punho nos facultam.<br />

Teólogos há que aplicam a causali<strong>da</strong>de fi<strong>na</strong>lista por justificar<br />

a existência de animais nocivos, qual o fazem com as enfermi<strong>da</strong>-


des e misérias huma<strong>na</strong>s, tudo carregando em conta do pecado<br />

origi<strong>na</strong>l.<br />

No parecer de Meyer e Stilling, répteis e insetos <strong>da</strong>ninhos e<br />

venenosos são frutos <strong>da</strong> maldição que inqui<strong>na</strong> a Terra com os<br />

terrícolas. As formas não raro monstruosas de tais seres devem<br />

representar a figura do pecado e <strong>da</strong> perfeição.<br />

O autor <strong>da</strong>s Cartas a Sofia, Sr. Aimé Martin, nos sugere a<br />

crença de que prevendo o Eterno que o homem não poderia<br />

habitar a zo<strong>na</strong> tórri<strong>da</strong>, nela formou as mais altas montanhas, para<br />

aí lhe proporcio<strong>na</strong>r um clima agradável. Mais adiante acrescenta<br />

que “se a chuva escasseia <strong>na</strong>s regiões arenosas, é porque aí se<br />

tor<strong>na</strong>ria inútil”.<br />

Na baixa Normandia é usual despejar-se o cálice do conhaque<br />

no café, e eu muitas vezes tive ocasião de conjeturar que, se ao<br />

bom <strong>Deus</strong> aprouve fosse a aguardente mais leve que o café, não<br />

seria senão para que ele pudesse arder à to<strong>na</strong> e desse, assim, mais<br />

um aroma à excelente fusão colonial. Há ain<strong>da</strong> um infinito<br />

número de fatos não menos importantes, que nos fazem amar as<br />

causas fi<strong>na</strong>is. Talvez devamos advertir que nem todos se podem<br />

atribuir a <strong>Deus</strong>, e alguns antes parecem negócio do diabo, como,<br />

por exemplo, o de que nos falava um epicurista amigo, isto é – a<br />

condensação <strong>na</strong>s vidraças, <strong>da</strong> evaporação notur<strong>na</strong>, a formar uma<br />

discreta corti<strong>na</strong> de certas carruagens fecha<strong>da</strong>s.<br />

Segundo Ber<strong>na</strong>rdin de Saint-Pierre, os vulcões, localizados<br />

sempre perto dos mares, desti<strong>na</strong>m-se a consumir as matérias<br />

corrompi<strong>da</strong>s que carreiam e que poderiam infeccio<strong>na</strong>r a atmosfera.<br />

As tempestades têm a virtude de refrescar a mesma atmosfera,<br />

etc. Pensava ele, também, que as pulgas <strong>na</strong>sceram pretas para<br />

que as pudéssemos distinguir <strong>na</strong> brancura de nossa pele e então<br />

puni-las. A plumagem retinta dos corvos, <strong>na</strong> opinião do Sr.<br />

Martin, é para que perdizes e lebres, de que se alimentam no<br />

Inverno, possam percebê-los, de longe, sobre a neve. O eloqüente<br />

autor do Gênio do Cristianismo diz que vendo-se, qual peque<strong>na</strong><br />

flama azula<strong>da</strong>, fugir a serpente ondulante, facilmente nos<br />

convencemos de que foi ela quem seduziu a primeira mulher. O<br />

autor <strong>da</strong>s Cartas pré-cita<strong>da</strong>s também afirma que os insetos venenosos<br />

são feitos para que o homem desconfie deles.


É claro que o ideal religioso e a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> Providência nem<br />

sempre foram bem servidos por seus prosélitos. Quando se<br />

escoram tais sentimentos com motivos assim pueris, e frívolos,<br />

corre-se o risco de comprometer a causa perante os semi-sábios,<br />

o que vale dizer, a maioria dos espíritos. Tentativas que tais, não<br />

logram senão caricaturar o Ser supremo. A propósito de uns<br />

tantos filósofos do seu tempo, dizia Duclos: “Essa gente acabará<br />

levando-me à missa.” Hoje, diante <strong>da</strong> opinião de uns tantos<br />

devotos, também chegamos a imagi<strong>na</strong>r que esta gente acabará<br />

fazendo-nos duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong> Providência.<br />

São idéias que pecam, não ape<strong>na</strong>s por falsi<strong>da</strong>de, mas pelo<br />

imperdoável estigma do ridículo. Assemelham-se àqueles camponeses<br />

de que nos fala Riehl 99 , incapazes de ver no mundo<br />

outras belezas além <strong>da</strong>s roupas domingueiras <strong>da</strong>s alenta<strong>da</strong>s<br />

conterrâneas, que também vestem as imagens em certos dias<br />

festivos.<br />

O próprio Fenelon não se forra à censura. Assim é que nos<br />

representa o Sol como regulando expressamente o trabalho e o<br />

repouso, as necessi<strong>da</strong>des e os prazeres. Graças ao seu movimento<br />

diurno e anual, um único sol basta para to<strong>da</strong> a Terra. Se fora<br />

maior, à mesma distância, abrasaria, pulverizaria o mundo; se<br />

menor, a Terra se congelaria, tor<strong>na</strong>r-se-ia i<strong>na</strong>bitável. Se, do<br />

mesmo tamanho, estivesse mais afastado, deixaríamos de viver,<br />

à mingua de calor. Que compasso, pois, abrangendo em seu<br />

círculo céu e Terra, teria assi<strong>na</strong>lado medi<strong>da</strong>s tão exatas? De fato,<br />

ele não beneficia menos as regiões <strong>da</strong>s quais se afasta, do que o<br />

faz àquelas de que se aproxima por favorecê-las com os seus<br />

raios... Destarte, a <strong>Natureza</strong> ador<strong>na</strong><strong>da</strong> em diversas maneiras<br />

oferece simultaneamente tão variados espetáculos que não dá<br />

tempo ao homem para desgostar-se do que possui. Mas, entre os<br />

astros diviso a Lua, que parece compartilhar com o Sol o cui<strong>da</strong>do<br />

de nos aclarar. Ei-la que surge, então, com o seu cortejo estelar,<br />

no momento exato em que o Sol vai irradiar noutro hemisfério.”<br />

Lícito é, certamente, pôr em dúvi<strong>da</strong> o valor absoluto deste raciocínio,<br />

pois a partilha uniforme dos dias e <strong>da</strong>s noites só se<br />

verifica no equador, para diminuir progressivamente e desaparecer<br />

nos pólos, com to<strong>da</strong>s as suas virtudes e benefícios. Se lá, nos


pólos, algum dia escreverem para glorificar a Providência, hão<br />

de ver que lhe renderão graças pelos dias e noites semestrais.<br />

Em Mercúrio, ou em Netuno, hão de concluir que o Sol também<br />

está à distância convinhável à eclosão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ambiente. Era<br />

Júpiter, louvarão o Criador por lhes ter concedido quatro luas,<br />

tanto quanto em Saturno agradecerão a dádiva de um anel, que<br />

reúne o útil ao agradável, etc.<br />

Diante de tais argumentos não há que admirar tenha a causali<strong>da</strong>de<br />

fi<strong>na</strong>l caído no mais absoluto descrédito. Eis aí, contudo –<br />

dizia J. B. Biot 100 – a que extremos levaram a mania, hoje tão<br />

comum, de explicar o como e o porquê de to<strong>da</strong>s as coisas <strong>na</strong>turais,<br />

conforme o imperfeito e vago sentimento utilitário que delas<br />

possamos ter. Ca<strong>da</strong> qual, assim, regula a previdência <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong><br />

ao nível de suas luzes, tor<strong>na</strong>ndo-a mais ou menos louca, <strong>na</strong> pauta<br />

<strong>da</strong> própria ignorância. Isso <strong>na</strong><strong>da</strong> representaria, uma vez que tais<br />

sonhos fossem inculcados pelo seu justo valor e não pretendessem<br />

insinuá-los como ver<strong>da</strong>des, como artigos de fé, a ponto de<br />

considerarem os seus autores uma impie<strong>da</strong>de, quando os tachamos<br />

de absurdos.<br />

“É preciso – opi<strong>na</strong> Montaigne – julgar com muita moderação<br />

as coisas divi<strong>na</strong>s. O em que mais se acredita é justamente o que<br />

menos se conhece; nem haverá pessoas mais autoriza<strong>da</strong>s do que<br />

aquelas que nos contam fábulas, como sejam os alquimistas, os<br />

adivinhos, quiromantes, médicos, id gezus omne, aos quais de<br />

bom grado eu juntaria, se mo permitissem, uma certa classe de<br />

indivíduos que se metem a interpretar e controlar os desígnios de<br />

<strong>Deus</strong>, gabando-se de encontrar as causas de ca<strong>da</strong> acidente e de<br />

ver, nos segredos <strong>da</strong> vontade divi<strong>na</strong>, a razão incompreensível <strong>da</strong><br />

sua obra. Esbarrados a ca<strong>da</strong> canto, atirados de um lado para<br />

outro, mercê <strong>da</strong> varie<strong>da</strong>de e discordância contínua dos episódios,<br />

nem assim deixam eles de seguir o seu painel, a pintarem com o<br />

mesmo lápis o preto e o branco.”<br />

Por terem sido escritas há quatrocentos anos, estas judiciosas<br />

palavras do venerando ancião não deixam de exprimir uma<br />

ver<strong>da</strong>de que tem aplicação a ca<strong>da</strong> momento. Elas merecem ser<br />

junta<strong>da</strong>s à comparação que o mesmo autor faz do homem com o<br />

ganso, que se gloria de ser o “favorito <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>” – compara-


ção já por nós desenvolvi<strong>da</strong> 101 a propósito <strong>da</strong> vai<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>,<br />

que, de longa<strong>da</strong>, construiu o Universo nos moldes de sua fantasia.<br />

Desde que o homem se deixa arrastar pelo <strong>na</strong>tural pendor de<br />

tudo referir a si, tor<strong>na</strong>-se capaz de reduzir o mundo inteiro, para<br />

fazê-lo entrar nos seus planos estreitos e mesquinhos.<br />

O Sol já não é, então, mais que um seu mísero servo; as estrelas<br />

não passam de or<strong>na</strong>mento para decoração do seu cenário e<br />

servindo-lhe de roteiro <strong>na</strong> exploração dos mares. Se a atração<br />

luno-solar, duas vezes por dia, levanta as águas oceânicas, é<br />

ape<strong>na</strong>s para facilitar a entra<strong>da</strong> no Havre dos <strong>na</strong>vios que chegam<br />

de Nova-Iorque ou do Rio Amarelo. Se a casca do carvalho<br />

excreta o tanino, é para que possamos ter bons couros. Se o<br />

bômbix fia a se<strong>da</strong> no seu casulo, é para ofertar belos estojos às<br />

mulheres elegantes. O rouxinol saú<strong>da</strong> a aurora? Então é para o<br />

encanto auditivo de quem o ouve. A <strong>Natureza</strong> inteira, enfim, foi<br />

cria<strong>da</strong> visando o homem, e to<strong>da</strong> ela concorre para ajudá-lo e o<br />

fazer feliz.<br />

É evidente que quando se chega a tais excentrici<strong>da</strong>des, a causali<strong>da</strong>de<br />

fi<strong>na</strong>l fica singularmente prejudica<strong>da</strong>. Pretender que tudo<br />

tenha sido expressamente criado para o homem é abusar muito<br />

ingenuamente <strong>da</strong> nossa posição.<br />

Antes de tudo, é preciso distinguir a <strong>Natureza</strong> em duas partes<br />

bem diferentes: o Céu e a Terra.<br />

O Céu é o espaço infinito, a multidão incalculável de mundos,<br />

o conjunto; a Terra, uma gota d'água no oceano, um grão de<br />

areia, um átomo. Que o Céu se tenha criado para o habitante <strong>da</strong><br />

Terra, é idéia absur<strong>da</strong>, inconcebível. O Céu não conhece a Terra<br />

e o homem, por sua vez, não conhece a mínima partícula do Céu.<br />

As estrelas são sóis, centros de sistema de outras terras habita<strong>da</strong>s.<br />

Contamo-las por milhões e certificamo-nos de que o nosso<br />

planeta lhes é absolutamente desconhecido e insignificante, em<br />

relação a elas que ocupam no espaço domínios tão vastos que a<br />

própria luz leva milhares de anos para atravessá-los. De sorte<br />

que, se o nosso globo deixasse hoje de existir, seu desapareci-


mento não seria matematicamente percebido pelos mundos<br />

siderais.<br />

O átomo terrestre turbilho<strong>na</strong>, célere, em torno do Sol, com a<br />

docili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fun<strong>da</strong> <strong>na</strong>s mãos de um gigante. Mil revoluções<br />

siderais se completam simultaneamente, no infinito, em to<strong>da</strong>s as<br />

latitudes imagináveis e distantes deste átomo... Quando, pois, o<br />

homem pretende a imensi<strong>da</strong>de opulenta dos céus desdobra<strong>da</strong> no<br />

vácuo em sua exclusiva intenção; quando fala de princípio e fim<br />

do mundo, como se se referisse à sua pessoa, equipara-se a uma<br />

formiga que julgasse o campo em que assenta o seu formigueiro,<br />

traçado para oferecer-lhe belas perspectivas. As árvores flori<strong>da</strong>s<br />

foram desti<strong>na</strong><strong>da</strong>s ao prazer <strong>da</strong> vista e aquela casinha branca, lá<br />

mais longe, não foi construí<strong>da</strong> senão para lhe servir de ponto de<br />

referência; e fi<strong>na</strong>lmente: o proprietário desse campo não cogitou<br />

senão dela – formiga inteligente – quando organizou o seu<br />

habitat com aqueles jardins, pomares, campos e florestas. Desígnio<br />

manifesto. Se, secun<strong>da</strong>riamente, nos restringirmos à Terra, a<br />

idéia de uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de criadora é aqui mais particularista e não<br />

haverá absurdi<strong>da</strong>de em pretender o homem tenha sido ela construí<strong>da</strong><br />

e organiza<strong>da</strong> para sede <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> inteligência. Pode-se<br />

mesmo ajuntar que, no plano terreno, o homem é o ser mais<br />

elevado. Só ele recebeu o dom <strong>da</strong> inteligência. Se desaparecesse<br />

<strong>da</strong> Terra, é de crer que esta perderia a sua razão de ser no concerto<br />

universal, a menos que não viesse outra raça intelectual suceder-lhe,<br />

o que leva a crer tenha sido mesmo desti<strong>na</strong>do para ser<br />

habitado.<br />

Temos precisamente demonstrado, em uma obra anterior, que<br />

os mundos foram construídos para moradia do espírito.<br />

Considerando, porém, o homem como o último ser <strong>na</strong>scido<br />

entre os seres terrícolas, cujo surgimento sucessivo obedeceu à<br />

lei geral de progresso e considerando-o como o mais perfeito <strong>da</strong><br />

escala, a pressupor-se o centro fi<strong>na</strong>l – ou pelo menos atual – <strong>da</strong><br />

evolução terrestre, negamos-lhe, contudo, o direito de atribuir a<br />

<strong>Deus</strong> as suas mesquinhas concepções e supor que as suas mínimas<br />

combi<strong>na</strong>ções domésticas participaram do plano divino e<br />

eterno. Nem é fora de si que ele deverá procurar a razão de sua<br />

grandeza: é <strong>na</strong>quilo mesmo que o distingue, isto é, no seu valor


intelectual. Se, por sua inteligência, se apropriou de uns tantos<br />

serviços que lhe pode prestar a <strong>Natureza</strong>, não há confundir essa<br />

apropriação com o plano geral.<br />

A estrela polar não foi cria<strong>da</strong> para nortear <strong>na</strong>vios, mas o <strong>na</strong>vegador<br />

soube utilizar-se <strong>da</strong> sua posição peculiar. O carvalho<br />

não foi feito para aproveitar aos cortumes, mas o fabricante<br />

descobriu, com a sua inteligência, as proprie<strong>da</strong>des do tanino no<br />

tratamento <strong>da</strong>s peles. A púrpura, molusco gastrópodo do Mediterrâneo,<br />

não <strong>na</strong>sceu para tingir o manto real dos potentados, mas<br />

a indústria houve como extrair um colorido brilhante <strong>da</strong>s suas<br />

conchas. O carneiro, o bicho <strong>da</strong> se<strong>da</strong>, as aves de pluma, as plantas<br />

têxteis, o algodoeiro, o linho, o cânhamo, as mi<strong>na</strong>s de ouro,<br />

prata, chumbo e níquel, as safiras, rubis, esmeral<strong>da</strong>s, etc.; tudo<br />

enfim – seres e coisas – que a <strong>Natureza</strong> oferece ao homem, não<br />

foi criado nem posto no mundo com fins particularistas, e se o<br />

homem tem progressivamente se apropriado dos elementos, é<br />

claro que o deve às suas facul<strong>da</strong>des eletivas, à sua inteligência e<br />

não a um plano primordial necessário, que se houvera de executar<br />

fatalmente e, por assim dizer, à revelia <strong>da</strong> escolha <strong>da</strong> indústria<br />

huma<strong>na</strong>.<br />

Expõe-se o homem a cair em erro grosseiro, quando tudo refere<br />

a si, mediante um processo incompleto. Mas, negar um<br />

plano à Criação só pelo fato de esse plano não se reportar exclusivamente<br />

ao homem, é cair noutro erro. Voltaire deplora em<br />

belos versos o terremoto de Lisboa e pergunta, com acrimônia,<br />

onde está essa Potência amiga do homem e de que tanto se fala.<br />

Rousseau responde-lhe, então, que a culpa é só dos homens,<br />

pois ninguém lhes mandou edificar num solo assim. Nem um<br />

nem outro tem razão. O homem enganou-se no seu egoísmo,<br />

nisso estamos de acordo, e até nos propomos evidenciar a fantasia<br />

desse método.<br />

Mas, a falsi<strong>da</strong>de de método não é razão bastante para concluir<br />

que o objeto desse método não exista e que o fundo <strong>da</strong> doutri<strong>na</strong><br />

seja um erro.<br />

Ora, isso é justamente o que fazem os materialistas, sem perceberem<br />

que se deixam seduzir por uma estranha confusão.


Certo, a causali<strong>da</strong>de fi<strong>na</strong>l, o conhecimento do plano <strong>da</strong> Criação,<br />

não é tão simples como imagi<strong>na</strong>m espíritos superficiais. É,<br />

assim, de extrema complexi<strong>da</strong>de e apresenta dificul<strong>da</strong>des quase<br />

insuperáveis, mesmo para espíritos mais clarividentes. Nós não<br />

assistimos aos desígnios de <strong>Deus</strong> e não passamos de pobres<br />

ignorantes em face de tanta grandeza. Mas, com franqueza, em<br />

que pode a nossa incapaci<strong>da</strong>de afetar o princípio <strong>da</strong>s causas? Em<br />

que os nossos erros diminuem a idéia <strong>da</strong> onipotência criadora?<br />

Considerais o homem um ser bem importante para armar este<br />

dilema: – ou a <strong>Natureza</strong> gravita para o homem, ou conserva-se<br />

em repouso.<br />

Esqueceis, assim, os vossos próprios princípios e habitual<br />

desdém pelas aspirações huma<strong>na</strong>s, para nos colocar <strong>na</strong> alter<strong>na</strong>tiva<br />

de crer que a desti<strong>na</strong>ção de tudo converge seus raios para nós,<br />

ou que não haja nenhum desígnio <strong>na</strong> uni<strong>da</strong>de universal! Mas,<br />

não... A ver<strong>da</strong>de é que deixais o ser humano assaz envolto <strong>na</strong>s<br />

gangas <strong>da</strong> matéria, para o evidenciardes de um jato no seu aspecto<br />

superior. Tende-o assaz eclipsado <strong>na</strong> sua intelectuali<strong>da</strong>de para<br />

poderdes, de improviso, formular essa alter<strong>na</strong>tiva. Mas, como<br />

explicar a vossa absoluta negação de qualquer plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>?<br />

Ei-la aí, esta grande, pretensa explicação, mediante a qual<br />

imagi<strong>na</strong>m suprimir to<strong>da</strong> a idéia de fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de geral e particular!<br />

Vamos ver que essa explicação é tão frágil quanto as alegações<br />

opostas às eter<strong>na</strong>s ver<strong>da</strong>des, e que esses mesmos homens que nos<br />

increpam de forjadores de hipóteses, mais não fazem, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de,<br />

que substituir hipóteses por hipóteses mais complica<strong>da</strong>s. A<br />

diferença principal, entre nós, está em que eles se atolam no seu<br />

labirinto escuro, enquanto marchamos em reta para o nosso alvo<br />

luminoso.<br />

Emmanuel Kant, cuja mão esquer<strong>da</strong> continha tantos erros<br />

quantas ver<strong>da</strong>des continha a direita (balança invejável, mesmo<br />

em se tratando de homens privilegiados), não escapou de afirmar,<br />

certa feita, que “a conformi<strong>da</strong>de com o desígnio só podia<br />

ser cria<strong>da</strong> por um espírito refletido, que, conseqüentemente,<br />

admira um milagre por ele mesmo criado”.


Percebeis, por aí, a fecundi<strong>da</strong>de de uma semelhante proposição<br />

para os senhores de além-Reno. Eles vão extrair-lhe um suco<br />

abun<strong>da</strong>nte, leitoso, que oferecerão como remédio às imagi<strong>na</strong>ções<br />

doentias; assim um como elixir para velhos e crianças, igualmente<br />

aperitivo e nutriente dos que madrugam com fome. Essa<br />

declaração genial vai arrasar o secular juízo humano. Abstrai-se<br />

de <strong>Deus</strong> o pensamento de ordem e harmonia, para dá-lo em<br />

home<strong>na</strong>gem à inteligência huma<strong>na</strong>. Cirurgiões de nova espécie<br />

abrem a veia ao bom <strong>Deus</strong>, para inocular no cérebro do feliz<br />

habitante <strong>da</strong> Terra o seu princípio vital. É claro, pois não?, que,<br />

se existe ordem <strong>na</strong> disposição do mundo, e se há inteligência <strong>na</strong><br />

organização dos seres, ao homem é que o devemos atribuir, visto<br />

como, evidentemente, no Universo <strong>na</strong><strong>da</strong> pode haver inteligente<br />

além do homem, e presumir um <strong>Deus</strong> a ele superior fora insultar<br />

a digni<strong>da</strong>de do bípede humano.<br />

Ouçamo-los ain<strong>da</strong> um instante. Um dos principais argumentos<br />

dos que admitem deveremos atribuir a origem e conservação<br />

do mundo a uma potência criadora, tudo gover<strong>na</strong>ndo e regulando<br />

Universo – diz Büchner – sempre foi e continua a ser a pretensa<br />

doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> desti<strong>na</strong>ção dos seres, <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. To<strong>da</strong> flor espanejando<br />

as pétalas brilhantes, todo sopro de vento agitando o ar,<br />

to<strong>da</strong> estrela luzindo <strong>na</strong> amplidão <strong>da</strong> noite, to<strong>da</strong> feri<strong>da</strong> cicatrizando-se,<br />

todo som, tudo enfim, <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, excita a admiração dos<br />

partidários <strong>da</strong> predesti<strong>na</strong>ção, pela profun<strong>da</strong> sabedoria dessa<br />

potência superior. A ciência <strong>na</strong>tural dos nossos dias emancipouse<br />

dessas balofas concepções teológicas, que ape<strong>na</strong>s se detêm à<br />

superfície <strong>da</strong>s coisas, e relega estes inocentes estudos aos que<br />

preferem considerar a <strong>Natureza</strong> com os olhos do sentimento e<br />

não com os do entendimento.<br />

Como poderíamos falar de conformi<strong>da</strong>de aos fins, objetamnos,<br />

se não conhecemos aos seres sob esta exclusiva e única<br />

forma e nenhum pressentimento temos do que seriam eles se de<br />

outra forma nos surgissem? Nosso espírito nem mesmo é constrangido<br />

a contentar-se com a reali<strong>da</strong>de. Qual seria o arranjo<br />

<strong>na</strong>tural que não pode ain<strong>da</strong> realizar-se, de qualquer maneira,<br />

mais conforme com o fim? Hoje admiramos os seres, sem nos<br />

advertirmos <strong>da</strong> infideli<strong>da</strong>de de outras formas, organizações,


processos que a <strong>Natureza</strong> empregou, emprega e empregará <strong>na</strong><br />

conformi<strong>da</strong>de dos seus fins.<br />

Do acaso depende que eles vinguem, ou não. Então, não há<br />

formas grandiosas de vegetais e animais mais desapareci<strong>da</strong>s a<br />

muito tempo e que só conhecemos por destroços fossilizados?<br />

To<strong>da</strong> essa formosa <strong>Natureza</strong>, conformemente ajusta<strong>da</strong> a um fim,<br />

acrescentam, não será possivelmente destruí<strong>da</strong> por um cataclisma<br />

planetário e não se fará preciso ain<strong>da</strong> uma eterni<strong>da</strong>de para<br />

que essas e outras formas desabrochem do limo?<br />

Ain<strong>da</strong> mesmo que ela fosse destruí<strong>da</strong>, isso <strong>na</strong><strong>da</strong> provaria contra<br />

a nossa tese. Não interrompamos, porém, os locutores e<br />

continuemos a ouvir-lhes as objeções.<br />

A seguir, vem o velho argumento dos animais inúteis ou nocivos<br />

ao homem, que <strong>na</strong><strong>da</strong> prova, igualmente, contra a inteligência<br />

organiza<strong>da</strong> e cai perante esta ver<strong>da</strong>de: – a de não ser a Terra<br />

um mundo perfeito. Animais muito nocivos, escreve o autor de<br />

Força e Matéria, como por exemplo o rato dos campos, são de<br />

uma fecundi<strong>da</strong>de tal, que não podemos prever seu desaparecimento;<br />

os gafanhotos, os pombos errantes, formam bandos<br />

compactos de obscurecer o Sol e levam a devastação, a fome e a<br />

morte por onde passam... Os que só enxergam sabedoria, desígnio,<br />

causas fi<strong>na</strong>listas <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> – diz Giebel – poderiam empregar<br />

sua perspicácia no estudo dos vermes solitários. To<strong>da</strong> a<br />

ativi<strong>da</strong>de vital desses animais consiste em produzir ovos próprios<br />

para desenvolver-se, e uma tal ativi<strong>da</strong>de só pode ser exerci<strong>da</strong><br />

mediante sofrimento de outros animais. Milhões de ovos perecem<br />

inutilizados, o embrião transforma-se num escólex, que não<br />

faz outra coisa que sugar e engendrar. É um processo em que não<br />

há beleza, nem sabedoria, nem conformi<strong>da</strong>de determi<strong>na</strong>tiva, <strong>na</strong><br />

acepção huma<strong>na</strong>.<br />

Para quê? – perguntam depois – as enfermi<strong>da</strong>des, os males<br />

físicos em geral? Qual a razão desse ror de cruel<strong>da</strong>des, de atroci<strong>da</strong>des,<br />

que a <strong>Natureza</strong> inflige a ca<strong>da</strong> dia, a ca<strong>da</strong> hora, às suas<br />

criaturas? O ser que deu ao gato e à aranha a cruel<strong>da</strong>de e dotou o<br />

homem, essa obra-prima <strong>da</strong> Criação, de uma índole que o faz<br />

tantas vezes tão bárbara e cruel, poderá, assim procedendo, ser<br />

um ente bondoso e benévolo, conforme a idéia teológica?


Mas, em que o fato <strong>da</strong> aranha devorar moscas e os gatos comerem<br />

ratos, tanto quanto o de serem os homens criaturas inferiores,<br />

avassalando-se aos instintos materiais, prova a mal<strong>da</strong>de ou<br />

a inexistência de <strong>Deus</strong>? Como demonstração científica, confessemo-lo,<br />

é superficialíssima.<br />

Depois, procuram <strong>na</strong>s exceções, <strong>na</strong>s monstruosi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />

nos seres atrofiados, de incompleto desenvolvimento,<br />

exemplos de inutili<strong>da</strong>de capazes de desviar a atenção do plano<br />

geral e assim demonstrarem a ausência de inteligência, como se<br />

algumas pedras isola<strong>da</strong>s – que, de resto, entram de si mesmas no<br />

plano geral – pudessem destruir a simetria do conjunto e aniquilar<br />

o valor arquitetônico do edifício.<br />

A A<strong>na</strong>tomia compara<strong>da</strong> – acrescenta o mesmo materialista –<br />

ocupa-se principalmente no investigar a conformi<strong>da</strong>de de estrutura<br />

<strong>da</strong>s diferentes espécies de animais, fazendo ver, em ca<strong>da</strong><br />

espécie ou gênero, o princípio fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> sua organização.<br />

Basea<strong>da</strong> nesses <strong>da</strong>dos, a Ciência nos mostra em ca<strong>da</strong> ordem<br />

animal um grande número de formas, de órgãos, etc., que lhe são<br />

inteiramente inúteis, não conformes com o seu fim e antes parecendo<br />

não passarem de forma primitiva <strong>da</strong> sua constituição, de<br />

rudimentos de uma disposição, ou de uma parte do corpo, que<br />

atingiu em outra espécie um desenvolvimento capaz de facultar<br />

ao indivíduo uma certa e determi<strong>na</strong><strong>da</strong> utili<strong>da</strong>de. A colu<strong>na</strong> vertebral<br />

do homem termi<strong>na</strong> em peque<strong>na</strong> ponta de nenhuma utili<strong>da</strong>de,<br />

que muitos a<strong>na</strong>tomistas consideram como rudimentos <strong>da</strong> cau<strong>da</strong><br />

dos vertebrados.<br />

A estrutura corporal dos animais e <strong>da</strong>s plantas oferece inúmeros<br />

dispositivos sem fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de apreciável. Ninguém ain<strong>da</strong> sabe<br />

para que serve o apêndice vermicular, a glândula mamária do<br />

homem, o osso clavicular do gato, a asa de algumas aves incapazes<br />

de voar, os dentes <strong>da</strong> baleia. Vogt adverte que há animais<br />

ver<strong>da</strong>deiramente hermafroditas, possuindo os órgãos de ambos<br />

os sexos e não podendo, contudo, reproduzir-se por si mesmos.<br />

Para que serve uma tal organização? – pergunta ele.<br />

A fecundi<strong>da</strong>de de uns tantos animais é tal, que, abando<strong>na</strong>dos<br />

a si mesmos, em poucos anos repletariam os mares e envolveri-


am a Terra numa crosta <strong>da</strong> altura de uma casa. Para que serve<br />

essa organização? Espaço e matéria não bastam a uma tal quanti<strong>da</strong>de<br />

de animais. – Que fim poderia ter a <strong>Natureza</strong> desenvolvendo<br />

uma glândula mamária <strong>na</strong>s costas de um homem de 34<br />

anos, fenômeno este recentemente observado e descrito pelo Dr.<br />

Hobbe, de Vie<strong>na</strong>? Porque <strong>da</strong>r três seios completamente formados<br />

a uma mulher e quatro a uma outra? E porque, num cortiço de<br />

abelhas, milhares de zangões tão só desti<strong>na</strong>dos ao extermínio?<br />

Animais há que jamais <strong>na</strong><strong>da</strong>m e, no entanto, têm patas provi<strong>da</strong>s<br />

de membra<strong>na</strong>s <strong>na</strong>tatórias, enquanto que aves aquáticas importantes<br />

ape<strong>na</strong>s apresentam delga<strong>da</strong>s membra<strong>na</strong>s.<br />

O ferrão <strong>da</strong> vespa e <strong>da</strong> abelha ape<strong>na</strong>s lhes serve de arma mortífera<br />

ao inseto que o experimenta, e assim por diante, O desígnio<br />

de um Criador Onipotente e onisciente deveria, antes de<br />

tudo, ser possível de interpretação racio<strong>na</strong>l. Se assim fosse, não<br />

<strong>da</strong>ria, certo, órgãos inúteis aos animais.<br />

Qual a fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e utili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas fetais transitórias,<br />

<strong>na</strong>s quais os mamíferos se assemelham aos peixes e aos répteis,<br />

antes de atingirem completa formação? Para que servem, no feto<br />

humano, os arcos bronquiais com suas aberturas? Porque, nos<br />

mamíferos, órgãos rudimentares que só se desenvolvem nos<br />

répteis? E porque, nos mamíferos machos, órgãos genitais femininos<br />

que se não desenvolvem, e vice-versa?<br />

Tuttle não percebe que estas anomalias se integram de si<br />

mesmas no plano geral, cuja lei de progresso é princípio e fim.<br />

O autor de Força e Matéria apega-se com unhas e dentes a<br />

esses artifícios, no intuito de dissimular a cambalhota, trazendo à<br />

baila todos os monstros de terra e mar.<br />

“Um dos fatos mais importantes que desmentem as causas<br />

fi<strong>na</strong>is <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> são os monstros. A prova de que o simples<br />

bom senso não podia conciliar a existência de tais aberrações<br />

com a crença de um criador, operando determi<strong>na</strong><strong>da</strong>mente, está<br />

em que os povos antigos os consideravam como expressões de<br />

cólera dos deuses, e ain<strong>da</strong> hoje os simplórios vêem nesses fatos<br />

um castigo do céu. Vimos no gabinete de um veterinário uma<br />

cabra recém-<strong>na</strong>sci<strong>da</strong>, perfeitamente conforma<strong>da</strong>, mas sem cabe-


ça. Haverá <strong>na</strong><strong>da</strong> de mais absurdo e mais contrário ao fim, do que<br />

ensejar a formação perfeita de um organismo previamente inviável,<br />

permitindo-lhe acesso ao mundo? O professor Lotze, de<br />

Goetting, excede-se a si mesmo ao dizer, a propósito de monstros,<br />

que, quando a um feto falta o cérebro, a única coisa a fazer,<br />

dig<strong>na</strong> de uma potência absoluta, seria sustar os efeitos, desde que<br />

não podia remediar o fracasso. Um corpo estranho <strong>na</strong> glote é<br />

suscetível de expelir-se com a tosse provoca<strong>da</strong>; mas, um corpo<br />

estranho no esôfago pode, excitando os nervos <strong>da</strong> laringe, determi<strong>na</strong>r<br />

a asfixia.<br />

– Ca<strong>da</strong> dia, a to<strong>da</strong> hora, pode o médico convencer-se pelas<br />

moléstias, deformi<strong>da</strong>des, abortos, etc., do abandono em que a<br />

<strong>Natureza</strong> deixa as suas criaturas. Outrossim, para que serviriam<br />

os médicos, se a <strong>Natureza</strong> agisse de acordo com um fim?<br />

Sob estes argumentos exagerados há uma ver<strong>da</strong>de constante<br />

que é, certo, uma <strong>da</strong>s maiores dificul<strong>da</strong>des que se nos podem<br />

opor.<br />

Por nós, confessamos que jamais se nos deparou um aleijão,<br />

que nos não sentíssemos molestados em nossas convicções.<br />

O Gabinete de A<strong>na</strong>tomia de Estrasburgo, tão rico de monstros<br />

acéfalos e de espécimes teratológicos, não nos desperta, neste<br />

particular, nenhuma atração. Que alma teriam tido esses fetos<br />

detidos uns, desviados outros, em sua evolução normal? Problema<br />

que, nem Santo Agostinho, nem São Tomás nos aju<strong>da</strong>m a<br />

resolver, e que a Ciência pouco eluci<strong>da</strong>. Considerando, porém, as<br />

coisas no seu justo ponto de vista, temos que aí militam exceções<br />

muito raras, de sorte a não poderem infirmar o ensino de conjunto.<br />

Que uma planta se empole acima de um ligamento; que as<br />

veias intumesçam à compressão do braço, que impede o retorno<br />

do sangue; que um feto paralise a sua evolução, ou que um órgão<br />

se atrofie em conseqüência de particulari<strong>da</strong>de orgânica qualquer,<br />

anomalias são essas mais aparentes que reais, a mostrarem que<br />

as leis são gerais, tanto quanto não ser <strong>Deus</strong> um ser mesquinho,<br />

cuja ação se modele pelos obstáculos passageiros produzidos<br />

pelo homem, ou por quaisquer acidentes, quando por elas induzem<br />

à inexistência de <strong>Deus</strong>, ou que <strong>Deus</strong> deveria proceder de<br />

acordo com as idéias huma<strong>na</strong>s.


Insistindo mais especialmente acerca <strong>da</strong>s monstruosi<strong>da</strong>des,<br />

também nos advertem <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de as produzir artificialmente<br />

com uma simples lesão do ovo ou do feto. A <strong>Natureza</strong>,<br />

dizem, não tem meios de reparar esse mal e, muito ao contrário,<br />

segue o impulso recebido, continua a operar <strong>na</strong> falsa direção e<br />

acaba engendrando um monstro. “Haverá quem possa duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong><br />

ausência total de inteligência e do puro mecanismo deste processo?<br />

Diante de um fato desta ordem, poder-se-á admitir um criador<br />

inteligente gover<strong>na</strong>ndo a matéria a seu nuto? Seria, então,<br />

possível que essa inteligência se deixasse vencer ou desviar pela<br />

vontade arbitrária do homem?”<br />

Admiremos, aqui, até onde ousam levar esta crítica às obras<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> 102 . Para que esses senhores se contentassem e se<br />

dig<strong>na</strong>ssem fazer justiça à Inteligência que rege o mundo, fora<br />

preciso que a ordem sobera<strong>na</strong> e inflexível cercasse os seres de<br />

uma couraça de aço rígido. Admirais a fi<strong>na</strong> tessitura <strong>da</strong> pele,<br />

uma cútis aceti<strong>na</strong><strong>da</strong>, sua alvura e sensibili<strong>da</strong>de ao menor contacto.<br />

E, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, não tendes razão. Essas quali<strong>da</strong>des, não provam<br />

que a <strong>Natureza</strong> tenha operado inteligentemente e preparado<br />

ao mesmo tempo as condições sanitárias de um corpo bem<br />

constituído, assim como as sensações úteis ou agradáveis, que<br />

essa carne vibrátil venha a experimentar. Não. Esses filósofos<br />

haveriam de preferir o mármore ou o ferro: “a <strong>Natureza</strong> poderia<br />

ter agido de forma que as balas esfusiassem do corpo e as espa<strong>da</strong>s<br />

acutilassem sem ferir 103 . Que tal esta crítica? Eis aqui uma<br />

criança que acaba de <strong>na</strong>scer: se lhe decepardes a cabeça, essa<br />

cabeça não tor<strong>na</strong>rá a <strong>na</strong>scer. Estúpi<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>! que se deixa,<br />

assim, anular pelo arbitrário capricho humano”... E quereis ain<strong>da</strong><br />

conhecer uma outra prova <strong>da</strong> ininteligência de <strong>Deus</strong> e <strong>da</strong> futili<strong>da</strong>de<br />

dos que nele acreditam? – Ei-la e tomai bem nota, porque é<br />

prova irresistível. A luz, cuja veloci<strong>da</strong>de se estima em 75.000<br />

léguas por segundo, não vai assaz rapi<strong>da</strong>mente. “A luz atravessa<br />

tão lentamente o Universo, que seriam precisos milhões de anos<br />

para chegar de uma a outra estrela. Que se há de pensar destas<br />

restrições tão pouco sábias, como manifestações de uma vontade<br />

criadora? 104


Talvez objeteis, ingênuo leitor, que a maior ou menor veloci<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> luz <strong>na</strong><strong>da</strong> tem que ver com a inexistência de uma vontade<br />

criadora. Mas, nesse caso, é que não percebestes que esses<br />

escritores julgam que <strong>Deus</strong>, se existisse, deveria ter as mesmas<br />

nossas fantasias. E como ao Sr. Büchner não lhe apraz que a luz<br />

ape<strong>na</strong>s percorra 4.620.000 léguas por minuto, é claro que ela<br />

deveria correr mais. Arrastando-se assim penosamente no espaço,<br />

é porque não existe Criador. Isto posto, podeis perguntar qual<br />

a cifra que agra<strong>da</strong>ria ao talentoso crítico e sabereis que o próprio<br />

Sr. B... não o sabe ao certo e o que só deseja, para o momento, é<br />

que a luz caminhe mais depressa. Mas, a despeito de tudo, não<br />

nos devemos formalizar por esta inocente fantasia, antes, pelo<br />

contrário, compartilhar do mesmo nobre desejo. Assim, confessamos<br />

que veríamos com prazer quaisquer progressos de rapidez<br />

<strong>na</strong> luz, mesmo aqui por baixo.<br />

Aí estão, dir-se-á, objeções meramente ridículas. Entretanto,<br />

as mais sérias dificul<strong>da</strong>des desaparecem por si mesmas, quando<br />

o homem deixa de apresentar-se como ponto de referência. E<br />

isso é o que se lhe impõe, de vez que é, ele próprio, parte integrante<br />

de um plano geral, extensivo a outros mundos, <strong>na</strong> imensi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> Criação. Se o Cid, se Andrômaco – advertimos com E.<br />

Bersot 105 – ressuscitassem para se verem representados por<br />

Corneille e Racine – tendo em vista o belo papel que lhes atribuíram,<br />

o relevo em relação a outras perso<strong>na</strong>gens, a predileção do<br />

poeta neles concentra<strong>da</strong> – diriam, seguramente, que Corneille e<br />

Racine tiveram em mira erguer um monumento à sua glória, e<br />

mais: que são eles fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> obra, a sua mola real, e que os<br />

demais comparsas ape<strong>na</strong>s vêm à ce<strong>na</strong> por causa deles... A ver<strong>da</strong>de<br />

é que o objetivo do autor é realizar o belo, cuja perspectiva o<br />

inflama; é traduzir <strong>na</strong> linguagem dos homens o ideal invisível.<br />

As perso<strong>na</strong>gens não passam de instrumentos. Não temos aí uma<br />

justa imagem <strong>da</strong> Criação? Tem graça, então, ver como algum dos<br />

atores, chamados à ce<strong>na</strong> para balbuciar um só vocábulo em to<strong>da</strong><br />

a peça, imagi<strong>na</strong> que o teatro foi construído e or<strong>na</strong>mentado para<br />

ele e que estivera vazio até então, etc.<br />

A ilusão dos sentidos e a vai<strong>da</strong>de aí se juntam para induzirnos<br />

em erro. O fim <strong>da</strong> Ciência é libertar-nos <strong>da</strong> mais funesta


superstição, dos inimigos <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Deixem-se os teólogos de<br />

invocar as causas fi<strong>na</strong>is, pois não há como ser juiz e parte ao<br />

mesmo tempo. O mundo organizado é to<strong>da</strong> uma harmonia imensa;<br />

os monstros de que falamos são atestados de uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei e<br />

do plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, Os seres inúteis e os nocivos ao homem<br />

são manifestações <strong>da</strong> força criadora e <strong>da</strong>s etapas gra<strong>da</strong>tivas. O<br />

conjunto é o que importa considerar, e não o “habitat” humano.<br />

À face desse panorama, esvanecem-se to<strong>da</strong>s as objeções deriva<strong>da</strong>s<br />

de uma acanha<strong>da</strong> aplicação ao homem.<br />

Concentremos agora a nossa atenção <strong>na</strong> construtivi<strong>da</strong>de inteligente<br />

dos órgãos desti<strong>na</strong>dos a transmitir ao cérebro o conhecimento<br />

do mundo exterior, isto é, dos sentidos e, particularmente,<br />

<strong>da</strong> vista. A beleza <strong>da</strong> conformação ótica do olho não há quem<br />

possa contestar. Afirmar que ele foi feito para ver, como o<br />

ouvido para ouvir, é cometer pleo<strong>na</strong>smo. Repetir que a sua<br />

organização é mais perfeita que a de qualquer câmara fotográfica<br />

é incidir em ba<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. Mas, para combater o adversário no<br />

mesmo pé e no mesmo terreno, importa entrar em detalhes por<br />

um momento e invocar a descrição a<strong>na</strong>tômica do olho.<br />

A visão nos olhos do homem, como nos do animal – dizia<br />

Euler – é coisa maravilhosa. A forma do globo é, em geral,<br />

esférica e compõe-se de três folhetos. A membra<strong>na</strong> mais superficial<br />

chama-se esclerótica (branco do olho), é opaca, assaz espessa<br />

e cerca mais ou menos os três quartos posteriores do globo<br />

visual, <strong>da</strong>ndo-lhe consistência e forma. Sua parte anterior apresenta<br />

uma abertura arredon<strong>da</strong><strong>da</strong>, <strong>na</strong> qual se embute a córnea<br />

transparente. A essa membra<strong>na</strong> estão ligados os músculos desti<strong>na</strong>dos<br />

a movimentar o globo. Por baixo dessa primeira membra<strong>na</strong><br />

fica a coróide, de cor negra retinta, que faz do olho uma<br />

ver<strong>da</strong>deira câmara-escura, absorvendo os raios que pudessem<br />

irritar a reti<strong>na</strong>; em sua parte anterior, ela forma um como repartimento<br />

diafragmático, chamado íris, disco circular com um<br />

orifício central e colorido de diversos matizes, cuja suave atração<br />

é, às vezes, maravilhosamente poderosa.<br />

O orifício central é a chama<strong>da</strong> pupila (ou meni<strong>na</strong> dos olhos) e<br />

nós sabemos que ela <strong>na</strong><strong>da</strong> tem de objetivo, como se afigura, e<br />

sim, ape<strong>na</strong>s, uma abertura que se dilata, mais ou menos, confor-


me a quanti<strong>da</strong>de de luz que os olhos recebem, pois que a íris<br />

goza <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de curiosa de se contrair ou dilatar para tor<strong>na</strong>rse,<br />

assim, um graduador indispensável. É por essa abertura<br />

variável <strong>da</strong> íris que os raios luminosos penetram <strong>na</strong> câmaraescura<br />

que lhe fica por trás. Uma lente biconvexa lá está suspensa,<br />

para receber esses raios: é o cristalino.<br />

To<strong>da</strong> a parte posterior, a partir dessa lente até o fundo do<br />

olho, está cheia de massa gelatinosa, diáfa<strong>na</strong>, semelhante à clara<br />

de ovo e conheci<strong>da</strong> por humor vítreo.<br />

Fi<strong>na</strong>lmente, atrás desse humor e defronte <strong>da</strong> pupila, localizase<br />

a mais delica<strong>da</strong> e importante <strong>da</strong>s membra<strong>na</strong>s, a placa sensível,<br />

que recebe a imagem e, comunicando-se com o cérebro, lhe dá a<br />

percepção: é a reti<strong>na</strong>, uma floração do nervo ótico, proveniente<br />

do cérebro. Vê-se, pois, sem metáfora, que é o cérebro que se<br />

vem colocar à janela para ver o mundo exterior.<br />

O prolongamento <strong>da</strong> reti<strong>na</strong> forra to<strong>da</strong> a zo<strong>na</strong> posterior e inter<strong>na</strong><br />

dos olhos.<br />

O cristalino, lente pela qual passam todos os raios luminosos,<br />

a fim de chegar à reti<strong>na</strong>, pode, com extraordinária facili<strong>da</strong>de,<br />

modificar a ca<strong>da</strong> instante a sua flexão, de maneira a a<strong>da</strong>ptar-se à<br />

distância e levar constantemente à reti<strong>na</strong> uma imagem níti<strong>da</strong>.<br />

Mas, como concebermos possa esse cristal orgânico dilatar-se e<br />

retrair-se assim, à sua vontade? Sem concebermos esta possibili<strong>da</strong>de,<br />

fora preciso uma estrutura ain<strong>da</strong> mais admirável que o<br />

próprio efeito. É preciso saber que esse globo lenticular não é<br />

nenhum sólido constituindo uma peça inteiriça, mas, antes, uma<br />

associação de finíssimas lâmi<strong>na</strong>s transparentes, justapostas e tão<br />

delga<strong>da</strong>s que preciso fora reunir um milhar para perfazer a<br />

espessura de uma unha e que, <strong>na</strong> reali<strong>da</strong>de, o cristalino contém<br />

assim uma como bagatela de cinco milhões. Considere-se, ain<strong>da</strong>,<br />

que essas lâmi<strong>na</strong>s, por sua vez, se compõem de pequenos fragmentos<br />

sol<strong>da</strong>dos entre si, e que é o jogo desses fragmentos que<br />

produz a extraordinária mobili<strong>da</strong>de inter<strong>na</strong> dessa lente diáfa<strong>na</strong>.<br />

Aí estão as criações maravilhosas, <strong>da</strong>s quais se repleta a <strong>Natureza</strong>,<br />

e que passam comumente despercebi<strong>da</strong>s!


Mediante essa estrutura engenhosa quão inimitável <strong>da</strong> vista,<br />

os objetos exteriores passam do campo físico ao mental, tor<strong>na</strong>mse<br />

acessíveis ao espírito e deixam-se tatear, como se deles não<br />

nos separasse qualquer distância. É um mecanismo que se mol<strong>da</strong><br />

a to<strong>da</strong>s as contingências. De si mesmo e a nosso nuto, ele se<br />

a<strong>da</strong>pta às variações de luz, como as de espaço, e faz o que nenhum<br />

outro instrumento é capaz de fazer, isto é, sabe distinguir<br />

os corpos celestes a distâncias enormes, tanto quanto os seres<br />

microscópicos que se lhe acercam de centímetros.<br />

Brewster tem razão quando o denomi<strong>na</strong> “sentinela que guar<strong>da</strong><br />

a passagem entre os mundos material e espiritual, executando a<br />

permuta de suas comunicações”.<br />

Nós compreendemos que, depois de haver ponderado a estrutura<br />

do órgão visual, Euler dê arras à sua admiração, dizendo: “O<br />

olho ultrapassa, portanto, infinitamente, to<strong>da</strong>s as máqui<strong>na</strong>s que o<br />

engenho humano possa construir. As diversas matérias transparentes<br />

de que ele se compõe têm, não ape<strong>na</strong>s um grau de densi<strong>da</strong>de<br />

capaz de causar refrações diferentes, como bem determi<strong>na</strong><strong>da</strong><br />

se apresenta a sua configuração, de sorte que todos os raios<br />

saídos de um ponto do objeto são exatamente reunidos num<br />

mesmo ponto, ain<strong>da</strong> que o objeto esteja mais ou menos distante,<br />

situado direta ou obliquamente, e que seus raios sofram refração<br />

diferente. À mínima alteração que se operasse <strong>na</strong> <strong>na</strong>tureza e <strong>na</strong><br />

configuração <strong>da</strong>s matérias transparentes, o olho perderia desde<br />

logo to<strong>da</strong>s as vantagens que acabamos de admirar.<br />

Na<strong>da</strong> obstante, os ateus ousam sustentar que os olhos, bem<br />

como o mundo inteiro, não passam de obra de mero acaso. Na<strong>da</strong><br />

encontram eles, em tudo isso, digno de sua atenção. Não reconhecem<br />

<strong>na</strong> estrutura do globo visual indício qualquer de sabedoria;<br />

antes, acreditam haver motivo para lastimar-lhe a imperfeição,<br />

de vez que não domi<strong>na</strong> a obscuri<strong>da</strong>de, não atravessa uma<br />

parede, não distingue as particulari<strong>da</strong>des de um objeto mais<br />

distanciado, quais a Lua e outros corpos celestes. Gritam eles,<br />

em alto e bom som, que o olho <strong>na</strong><strong>da</strong> é que indique um desígnio e<br />

foi feito ao acaso, como qualquer fruto silvestre, pelo que fora<br />

absurdo dizer que tivemos olhos para podermos ver. O que se<br />

conclui é que, ao invés, tendo recebido ocasio<strong>na</strong>lmente os ór-


gãos, deles nos aproveitamos tanto quanto o permite a <strong>Natureza</strong>.<br />

É inútil discutir com essa gente: i<strong>na</strong>balável <strong>na</strong>s suas convicções,<br />

ela despreza as coisas mais respeitáveis. Suas presunções a<br />

respeito dos olhos, vê-se, são absur<strong>da</strong>s quanto injustas 106 .<br />

Os raios que ao nosso cérebro transmitem o aspecto dos objetos,<br />

penetram no olho, obedecendo às leis <strong>da</strong> refração, em virtude<br />

<strong>da</strong>s quais as substâncias do olho se encontram de si mesmas<br />

dispostas. A íris enche o globo ocular e exerce, em relação aos<br />

raios luminosos, o papel de diafragma. A chispa central, luminosa,<br />

que atravessa a pupila, atinge logo o cristalino; esses raios<br />

são fortemente aproximados por essa lente biconvexa, mas, sem<br />

que <strong>da</strong>í resulte decomposição de raios luminosos, assim facultando<br />

a coloração prismática objetiva. Esse perfeito acromatismo,<br />

tão rara e dificilmente obtido <strong>na</strong> construção <strong>da</strong>s objetivas, é<br />

devido à diferença de densi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s numerosas cama<strong>da</strong>s concêntricas<br />

do cristalino. Os raios luminosos, tor<strong>na</strong>ndo-se fortemente<br />

convergentes ao atravessarem o cristalino e, mais ain<strong>da</strong>, pelo<br />

humor vítreo que se lhe segue, tendem a reunir-se num foco<br />

comum e a formar uma imagem que se vai desenhar <strong>na</strong> superfície<br />

<strong>da</strong> reti<strong>na</strong>. O olho se a<strong>da</strong>pta, pois, de si mesmo, às distâncias,<br />

seja pela contração <strong>da</strong> íris, seja pelo alongamento ou retração do<br />

eixo do cristalino. Ao demais, exposto, devido à sua posição, a<br />

numerosas alterações, a <strong>Natureza</strong> tomou as maiores precauções<br />

em sua garantia. Assim, para subtraí-lo a uma excessiva excitação<br />

luminosa, dispôs <strong>na</strong> parte anterior as pálpebras movediças,<br />

guarnecendo-as de cílios protetores, e cujo interior se forra de<br />

membra<strong>na</strong> delicadíssima, lubrifica<strong>da</strong> com a secreção de uma<br />

glândula situa<strong>da</strong> <strong>na</strong> abóba<strong>da</strong> orbitária, a verter de seis ou sete<br />

pequeninos ca<strong>na</strong>is que se abrem ao alto <strong>da</strong> pálpebra superior.<br />

Ante a descrição a<strong>na</strong>tômica do globo visual, que desejaríamos<br />

poder ilustrar direta ou graficamente, a nós mesmos nos perguntamos,<br />

como Newton, “se o olho poderia ser feito sem conhecimento<br />

<strong>da</strong> Ótica”, para responder, com o ilustre pensador, que<br />

essa estrutura demonstra, sem contestação possível, não só a<br />

existência de uma inteligência conhecedora <strong>da</strong> Ótica, mas também<br />

capaz de lhe submeter às leis todos os movimentos <strong>da</strong><br />

matéria.


Efetivamente, é preciso audácia para, diante <strong>da</strong> construção<br />

portentosa do órgão visual, pretendê-la originária de uma força<br />

cega e ignorante, simples jogo <strong>da</strong> matéria e independente de<br />

inteligência. Se a luneta astronômica, que não passa de grosseiro<br />

arranjo de lentículas, testifica ao senso comum a intervenção de<br />

um técnico, como poderia a lente do homem, infinitamente<br />

superior a todo e qualquer aparelho físico, ser considera<strong>da</strong> obra<br />

espontânea do acaso? Pois isso – pesa dizê-lo – é o que propug<strong>na</strong><br />

a escola materialista!<br />

O olho formou-se por si mesmo! Este fato importante é uma<br />

aquisição dessa meia-ciência, realiza<strong>da</strong> em duas fases, a primeira<br />

com Darwin e a segun<strong>da</strong> com Büchner. Este nos diz que ao<br />

escrever, há sete anos, sobre a inexistência de <strong>Deus</strong>, não esperava<br />

que os progressos constantes <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> lhe fornecessem,<br />

tão cedo, “provas tão exatas e convincentes”, em apoio de sua<br />

doutri<strong>na</strong>, e essas provas é Darwin quem se encarrega de as<br />

editar. Está, enfim, provado (?) que o olho, órgão dos mais<br />

perfeitos do corpo animal (o Sr. B. confessa-o) desenvolveu-se<br />

insensivelmente de um simples nervo sensitivo! O Sr. Büchner<br />

exulta de alegria com esse feito, ou por melhor dizer, com essa<br />

teoria que lhe prova, ao seu ver, a inexistência de <strong>Deus</strong>. Ouçamos<br />

o próprio Darwin, vejamos se o fato está bem comprovado e<br />

se, mesmo neste caso, a explicação secundária suprime a existência<br />

de <strong>Deus</strong>.<br />

“Antes de tudo – diz o <strong>na</strong>turalista 107 –, parece, confesso, estranhável<br />

absurdo supormos que o olho, tão admiravelmente<br />

construído para suportar mais ou menos luz, para ajustar o foco<br />

dos raios visuais a diferentes distâncias e a corrigir a aberração<br />

esférica e cromática, possa formar-se por seleção <strong>na</strong>tural.<br />

“E contudo, quando pela primeira vez foi dito que o Sol estava<br />

imóvel e a Terra girava, o bom senso declarou falsa a teoria.<br />

Todos os filósofos sabem que, em matéria de Ciência, não podemos<br />

confiar no velho adágio – vox populi, vox Dei. A razão<br />

me diz e assegura podermos demonstrar inúmeros graus de<br />

transição entre o globo mais perfeito e complicado e o mais<br />

simples e imperfeito. Ca<strong>da</strong> um desses graus de perfeição aproveita<br />

utilmente a quem o desfruta. Se, de resto, o olho varia


algumas vezes, por pouco que seja, e se as variações se her<strong>da</strong>m,<br />

o que se pode demonstrar por fatos; se, enfim, as variações ou<br />

modificações do órgão jamais puderam ter alguma utili<strong>da</strong>de para<br />

um animal colocado em condições mutáveis de existência; desde<br />

logo ressalta o pressuposto de que um olho perfeito e complicado<br />

pode ter sido formado por seleção <strong>na</strong>tural e esta rigorosamente<br />

considera<strong>da</strong> como ver<strong>da</strong>deira. Como pode um nervo tor<strong>na</strong>r-se<br />

sensível à luz? É um problema que nos importa tão pouco quanto<br />

o <strong>da</strong> origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em si mesma.<br />

“Devo ape<strong>na</strong>s dizer que vários fatos me levam a crer que os<br />

nervos sensíveis ao contacto podem tor<strong>na</strong>r-se sensíveis à luz,<br />

bem como às vibrações menos sutis, produtoras do som.”<br />

Darwin não tem razão de julgar que a origem do órgão visual<br />

importa tão pouco quanto a <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong>, e nós gostaríamos de<br />

saber se, para ele, essa origem elementar oferece alguma semelhança<br />

com a sensibili<strong>da</strong>de do iodo à luz, verifica<strong>da</strong> <strong>na</strong> chapa<br />

fotográfica. Mas, visto que ele se cala, vamos admitir provisoriamente<br />

a possibili<strong>da</strong>de do fato, e ouçamos o desenvolvimento <strong>da</strong><br />

teoria do progresso.<br />

“Entre os vertebrados vivos não encontramos grande varie<strong>da</strong>de<br />

de olhos; nos articulados, porém, podemos acompanhar to<strong>da</strong><br />

uma série, partindo do simples nervo ótico, recoberto de cama<strong>da</strong><br />

pigmentar e formando, às vezes, uma espécie de pupila, embora<br />

sempre desprovido de lente ou qualquer mecanismo ótico. Depois<br />

desse olho rudimentar, capaz ape<strong>na</strong>s de só diferençar a luz<br />

<strong>da</strong> obscuri<strong>da</strong>de, deparam-se-nos duas séries paralelas de órgãos<br />

visuais, ca<strong>da</strong> vez mais perfeitos, entre as quais, Muller diz haver<br />

diferenças fun<strong>da</strong>mentais: – a dos olhos chamados simples,<br />

providos de lente e córnea, e a dos complexos, que excluem os<br />

raios convergentes de todo o campo visual, exceto o pincel<br />

luminoso, que chega à reti<strong>na</strong> seguindo uma linha perpendicular<br />

ao seu plano.”<br />

O grande advogado <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural pensa que, admitindo<br />

origi<strong>na</strong>riamente nos primeiros organismos a existência de um<br />

nervo sensível à luz, poder-se-á admitir que a <strong>Natureza</strong>, em<br />

virtude dessa lei organizadora do progresso chega, insensivel-


mente aos aparelhos óticos, sejam cônicos, sejam lenticulares,<br />

perfeitos.<br />

Os seres favorecidos com esse nervo maravilhoso dele se utilizaram<br />

e o aperfeiçoaram em benefício próprio. “Se refletirmos<br />

– diz ele –, <strong>na</strong> varie<strong>da</strong>de de graus que apresenta a estrutura<br />

ocular dos nossos crustáceos e nos lembrarmos do número de<br />

espécies extintas, não vejo dificul<strong>da</strong>de alguma e, sobretudo, uma<br />

dificul<strong>da</strong>de maior que a relativa a outro órgão em admitir que a<br />

seleção <strong>na</strong>tural haja transformado um aparelho simples, ape<strong>na</strong>s<br />

constituído de um nervo ótico pigmentado e revestido de membra<strong>na</strong><br />

transparente, num instrumento tão perfeito qual o podem<br />

possuir quaisquer representantes <strong>da</strong> grande família dos articulados.”<br />

Parece muito <strong>na</strong>tural comparar o órgão visual a um telescópio.<br />

Ora, sabemos nós que este instrumento tem sido sucessivamente<br />

aperfeiçoado graças a esforços perseverantes de inteligências<br />

huma<strong>na</strong>s, de ordem superior, e assim inferimos a formação<br />

do olho mediante análogo processo. “Será uma indução muito<br />

presunçosa?” – pergunta ele com alguma razão. Que direito<br />

temos de afirmar que o Criador opera com o concurso <strong>da</strong>s mesmas<br />

facul<strong>da</strong>des intelectuais do homem? Na<strong>da</strong> obstante a advertência,<br />

Darwin prossegue aplicando à obra divi<strong>na</strong> as idéias<br />

aflora<strong>da</strong>s em seu cérebro. Eis como expõe ele a formação lenta,<br />

<strong>na</strong>s espécies vivas, do instrumento ótico que nos faz ver. É uma<br />

hipótese sem mal<strong>da</strong>de preconcebi<strong>da</strong>.<br />

“Precisamos figurar um nervo sensível à luz, colocado atrás<br />

de espessa cama<strong>da</strong> de tecidos transparentes, contendo espaços<br />

cheios de fluidos; depois, aí poremos que ca<strong>da</strong> parte dessa cama<strong>da</strong><br />

transparente mu<strong>da</strong> contínua e lentamente, de densi<strong>da</strong>de, de<br />

maneira a separar-se em cama<strong>da</strong>s parciais, diferentes em densi<strong>da</strong>de<br />

e espessura, coloca<strong>da</strong>s a distâncias variáveis entre si e cujas<br />

duplas superfícies mu<strong>da</strong>m lentamente de forma. Além disso, é<br />

preciso admitir exista um poder inteligente e esse poder inteligente<br />

é a seleção <strong>na</strong>tural, constantemente alerta<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> e<br />

qualquer alteração acidental <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s transparentes, a fim de<br />

escolher, solícitas, aquelas que por circunstâncias diversas<br />

podem, de algum modo e em grau qualquer, favorecer a produ-


ção de imagens mais níti<strong>da</strong>s. Podemos ain<strong>da</strong> supor que esse<br />

instrumento foi multiplicado por um milhão, em ca<strong>da</strong> um desses<br />

estados de perfectibili<strong>da</strong>de, e que ca<strong>da</strong> uma dessas formas se<br />

perpetuasse, até que se lhe apresentasse ensejo de melhora,<br />

permitindo o quase imediato abandono e destruição <strong>da</strong> antiga.<br />

“Nos seres vivos, a variabili<strong>da</strong>de produzirá as ligeiras modificações<br />

do instrumento <strong>na</strong>tural, a descendência multiplicá-la-á ao<br />

infinito, assim modifica<strong>da</strong>, e a seleção <strong>na</strong>tural escolherá, com<br />

infalível habili<strong>da</strong>de, ca<strong>da</strong> novo aperfeiçoamento realizado. Que<br />

este processo continue operante por milhões e milhões de anos e,<br />

em ca<strong>da</strong> ano, influindo sobre milhões de indivíduos de to<strong>da</strong>s as<br />

espécies, já não será impossível acreditar possa constituir-se<br />

assim um aparelho de ótica viva, com requisitos superiores aos<br />

de nossa manufatura, ou seja, com a superiori<strong>da</strong>de característica<br />

<strong>da</strong>s obras divi<strong>na</strong>s em relação às huma<strong>na</strong>s.”<br />

Os observadores podem assi<strong>na</strong>lar no sistema <strong>da</strong>rwiniano uma<br />

certa reserva favorável a <strong>Deus</strong>, mas essa reserva não quadra aos<br />

materialistas radicais. Até o seu tradutor francês, senhorita<br />

Clemência Royer, censura-o com veemência, por desviar-se em<br />

tão bela rota e ain<strong>da</strong> se deixar levar pela idéia de um Ser supremo.<br />

“O Sr. Darwin não me parece bastante corajoso – diz ela no<br />

seu prefácio. – Será por prudência que não vai ao fim do seu<br />

sistema, detendo-se a meio <strong>da</strong> cadeia <strong>da</strong>s respectivas conseqüências?<br />

Quando espíritos ardorosos, senão mais lógicos, formularam<br />

conseqüências extremas, o mundo dos puritanos, escan<strong>da</strong>lizado<br />

com a tese de que o planeta não descendia em linha reta <strong>da</strong><br />

coxa de algum deus, protestou em altos brados”, etc... Essa<br />

moça, ao menos, vai até o fim; não tolera que ain<strong>da</strong> se possa<br />

tomar <strong>Deus</strong> a sério, ridiculiza igualmente os teólatras, sapateia<br />

sobre os destroços do teísmo e fulmi<strong>na</strong> os defensores de uma<br />

Enti<strong>da</strong>de suprema. Vira a cara a todo e qualquer sintoma de idéia<br />

religiosa e abre os braços aos declamadores alemães. O cura<br />

Meslier toca violão no seu tonel e a <strong>da</strong>nça prossegue maravilhosa...<br />

Só há um pequeno defeito de lógica nestes exímios pensadores,<br />

qual o de ser essa presumi<strong>da</strong>, rigorosa lógica, sobera<strong>na</strong>mente<br />

ilógica, ain<strong>da</strong> mais quando os fatos e teorias consig<strong>na</strong>dos pelos


<strong>da</strong>rwinistas não comportam as conseqüências ridículas que lhes<br />

atribuem. E o mais curioso em tudo isto é que esses espíritos<br />

fortes – atordoados com a sua exaltação – não percebem a lacu<strong>na</strong><br />

que persistem em manter, entre as premissas e conclusões do seu<br />

raciocínio. Sua maneira de falar compara-se a uma rota traça<strong>da</strong><br />

em altiplano e seccio<strong>na</strong><strong>da</strong> a meio do seu curso por um abismo<br />

profundo, qual os que soem separar bruscamente duas galerias.<br />

As extremi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> rota não estariam mal feitas nem mal traça<strong>da</strong>s,<br />

mas, infelizmente, não se pode caminhar de ponta a ponta,<br />

de vez que o abismo as isola irremediavelmente. E isso porque<br />

lançar aí uma ponte é mais difícil do que parece.<br />

Ao pensar dos mestres, não há solução de continui<strong>da</strong>de e a<br />

ação puramente constante de <strong>Deus</strong> vale para explicar tanto a<br />

origem como a sucessivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s coisas: os discípulos, porém,<br />

pretendem ultrapassar os mestres e des<strong>na</strong>turam as teorias de que<br />

se dizem defensores. Pobres defensores! Temos já visto como<br />

racioci<strong>na</strong>m os experimentadores. Vamos registrar a opinião do<br />

autor <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de de plano, Geoffroy Saint-Hilaire. Ao<br />

invés de pender para as negações que hoje nos opõem, o sábio<br />

fisiologista se julga no dever de afirmar bem alto que, antes, vê<br />

<strong>na</strong> sucessão <strong>da</strong>s espécies “uma <strong>da</strong>s mais gloriosas manifestações<br />

<strong>da</strong> Potência criadora, tanto quanto um motivo de maior admiração,<br />

de reconhecimento e de amor” 108 .<br />

Digamo-lo com firmeza: mesmo admitindo, sem reservas, todos<br />

os fatos invocados pelos materialistas; mesmo perfilandonos<br />

ao lado de Darwin, Owen, Lamarck, Saint-Hilaire e, sobretudo,<br />

com estes (porque há sempre gente mais realista do que o<br />

rei), para supor que os olhos, os sentidos, os homens, os animais,<br />

seres e plantas vivos, em suma, se tenham formado pela ação<br />

permanente de uma força <strong>na</strong>tural, nem por isso se provaria a<br />

inexistência de <strong>Deus</strong>, mas, ao invés, que <strong>Deus</strong> existe. Na reali<strong>da</strong>de,<br />

o que se dá é que, em vez de se nos revelar como pedreiro,<br />

ele se nos antolha como arquiteto. E com isto, cremos, <strong>na</strong><strong>da</strong><br />

perde, nem muito, nem pouco.<br />

Em nosso estudo geral <strong>da</strong> Força e <strong>da</strong> Matéria (segun<strong>da</strong> parte,<br />

capítulo II), acompanhamos essa metamorfose <strong>da</strong> idéia de <strong>Deus</strong>.<br />

Do ponto de vista <strong>da</strong> desti<strong>na</strong>ção dos seres e <strong>da</strong>s coisas, a idéia


correlativa sofre a mesma progressão; longe de enfraquecer a<br />

antiga beleza do plano criador, ela o desenvolve e reforça grandemente.<br />

Se, em vez de uma mão a construir o protótipo de ca<strong>da</strong><br />

espécie animal e vegetal, admitirmos uma força íntima, aplica<strong>da</strong><br />

à matéria, isso em <strong>na</strong><strong>da</strong> afeta a idéia de uma inteligência criadora<br />

e <strong>da</strong> fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Criação. Porque, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, é preciso cerrar<br />

preconcebi<strong>da</strong>mente os olhos, para que se não veja nessa força<br />

íntima <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> o efeito de um pensamento inteligente. É<br />

preciso ser cego para desprezar o índice evidente de uma causa<br />

poderosa e eter<strong>na</strong>.<br />

Pretender que a <strong>Natureza</strong> se forme de si mesma e progri<strong>da</strong><br />

instintivamente, numa direção constante para resultados ca<strong>da</strong> vez<br />

mais perfeitos, é confessar em parte que ela se encaminha a esse<br />

ideal devido a uma causa inteligente. Como poderia a matéria<br />

inerte ter tido a idéia de se enformar sucessivamente como<br />

vegetal, como animal, como homem, engendrando todos esses<br />

órgãos que constituem o ser vivente e conservam a vi<strong>da</strong> através<br />

dos séculos? Como construir esses aparelhos mediante os quais o<br />

ser vivo se comunica permanentemente com as causas que o não<br />

constituem? Por que capricho do acaso esses órgãos se teriam<br />

gra<strong>da</strong>tiva e lentamente formado para essa comunicação dos<br />

sentidos, ligados ao cérebro pensante, que, só ele, conhece e<br />

julga? Como explicar a técnica perfeita dessas construções?<br />

Porque completos e não falhos, esses aparelhos, em sua grande<br />

maioria? Como, em sua integri<strong>da</strong>de, por geração, se perpetuam<br />

esses organismos vivos? Porque a Criação composta de gêneros,<br />

de espécies, de família? Por que pode o espírito humano estabelecer<br />

classificação basea<strong>da</strong> no conjunto dos seres? Como reconhecemos<br />

em tudo isso uma ordem geral? Por que a <strong>Natureza</strong><br />

não representa um caos de monstruosi<strong>da</strong>des?<br />

A to<strong>da</strong>s estas perguntas respondem-nos com a lei de seleção<br />

<strong>na</strong>tural. Explicam todos os problemas repetindo que a <strong>Natureza</strong> é<br />

arrasta<strong>da</strong> a um progresso incessante, que despreza o mau pelo<br />

bom e tende sempre a realizar formas mais perfeitas.<br />

Mas, em suma, que é que vem a ser essa tendência, esse progresso<br />

instintivo, essa necessi<strong>da</strong>de de engrandecimento, senão o<br />

ato de uma força universal dirigindo o mundo para o ideal? Que


significa essa marcha simultânea de todos os seres para a perfeição,<br />

senão a revelação eloqüente de uma causa, que sabe onde e<br />

como conduz o carro, sem que a matéria servil pudesse jamais<br />

opor-lhe o mínimo obstáculo?<br />

O que acabamos de expender com relação à vista pode também<br />

aplicar-se ao ouvido, que não é menos admiravelmente<br />

construído, conforme as leis <strong>da</strong> Acústica. Poderíamos, quiçá,<br />

conceder que os ignorantes, os que jamais fizeram observações<br />

anátomo-fisiológicas e desconhecem a Física, tivessem a fantasia<br />

de acreditar que olhos e ouvidos não foram feitos para ver e<br />

ouvir. Mas, que homens instruídos, depois de escalpelarem, de<br />

observarem e tatearem esses órgãos, nos venham dizer que eles<br />

são produto de forças cegas, isso é o que nos parece aberração de<br />

espírito, dificilmente justificável. Não teriam visto que a só<br />

modelagem ceroplástica de um desses maravilhosos aparelhos<br />

basta para exaltar-nos o espírito e levá-lo a reconhecer a existência<br />

de um mecânico conhecedor <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>? Quem já<br />

se não sentiu tomado de admiração emocio<strong>na</strong>l em contemplando<br />

o mecanismo auditivo? O pavilhão exterior, cujas graciosas<br />

ondulações carreiam as on<strong>da</strong>s sonoras até o centro, mais não é<br />

que desti<strong>na</strong>do a servir ao conduto auditivo. Este, transportando o<br />

som, do orifício do ouvido à membra<strong>na</strong> do tímpano, o transmite<br />

integral ao nervo que deve realizar a sensação, forrado de uma<br />

substância mucosa, onde as glândulas segregam um humor<br />

desti<strong>na</strong>do a moderar a impressão muito irritante do ar, bem como<br />

a interditar a entra<strong>da</strong> de corpos estranhos. Atrás do tímpano fica<br />

uma peque<strong>na</strong> câmara com duas janelas, uma redon<strong>da</strong> e outra<br />

oval, contrapostas ao tímpano e comunicando-se com o ouvido<br />

interno. Este compõe-se, em primeiro lugar, de uma cavi<strong>da</strong>de<br />

óssea contor<strong>na</strong><strong>da</strong> em espiral, chama<strong>da</strong> caracol, em segui<strong>da</strong>, de<br />

três cavi<strong>da</strong>des semicirculares e, fi<strong>na</strong>lmente, de uma cavi<strong>da</strong>de<br />

central, cheia de líquido aquoso, no qual se banha o nervo acústico<br />

que lá termi<strong>na</strong>. As vibrações sônicas chegam às membra<strong>na</strong>s<br />

<strong>da</strong> janela oval e <strong>da</strong> redon<strong>da</strong>, deslizam pela rampa do caracol, <strong>da</strong>í<br />

pelos ca<strong>na</strong>is semicirculares, chegando, fi<strong>na</strong>lmente, à cavi<strong>da</strong>de<br />

central cheia do líquido aquoso, que transmite as vibrações ao<br />

nervo acústico. Este é ape<strong>na</strong>s timbrado e a impressão transmiti<strong>da</strong>


ao cérebro é o que constitui a audição. Tal, em seu conjunto, o<br />

mecanismo <strong>da</strong> audição. Não entramos em pormenores, para não<br />

aumentar complicações. Mesmo nos limites desta singela descrição,<br />

que espírito culto ousará contestar, a sério, que um tal<br />

mecanismo não prova que seu construtor soubesse que o som<br />

consiste em vibrações, e que estas não poderiam transmitir-se<br />

senão mediante uns tantos dispositivos, bem como, que, para<br />

torná-lo integralmente perceptível ao cérebro, impunha-se um<br />

aparelho acústico fronteiro ao nervo?<br />

Que homem sensato recusará admitir que esse instrumento<br />

não podia construir-se de si mesmo, por acaso, sob o impulso de<br />

qualquer força bruta e sem plano preconcebido de construção? 109<br />

E se, abstraindo-se do aspecto físico do ser pensante, déssemos<br />

aos adversários a honra embaraçosa de penetrarem no<br />

caráter íntimo do pensamento? Se lhes perguntássemos como<br />

pode um som falar ao espírito e este atender ao ouvido? Se os<br />

convidássemos a demonstrar que o homem não é uma inteligência<br />

servi<strong>da</strong> pelos órgãos, duvi<strong>da</strong>mos pudessem eles safar-se<br />

airosamente, a menos que se não valessem dos subterfúgios<br />

próprios dos maus combatentes.<br />

Mas, ain<strong>da</strong> quando estivessem com a ver<strong>da</strong>de acerca <strong>da</strong>s relações<br />

de órgão e função, ain<strong>da</strong> mesmo que provado ficasse serem<br />

os órgãos desenvolvidos e constituídos pelo jogo <strong>da</strong>s funções,<br />

ain<strong>da</strong> assim, restaria por explicar um fato bem mais geral e<br />

considerável. Que função explicaria a organização total <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

terrestre? Vede essas massas flocosas suspensas no firmamento<br />

como edifícios de prata, vaporosos, nuvens cuja sombra tempera<br />

o calor mortificante do dia. Elas nos vêm dos mares, trazi<strong>da</strong>s<br />

sobre as vagas <strong>da</strong> atmosfera, dirigi<strong>da</strong>s pelos ventos para os<br />

continentes e terras habita<strong>da</strong>s. Sob ação de uma força cega, que<br />

sucederia se elas deixassem de espalhar a chuva fecun<strong>da</strong>nte nos<br />

campos e nos prados? Prestes, uma seca impiedosa crestaria o<br />

solo, a vegetação se fa<strong>na</strong>ria, to<strong>da</strong> a seiva de vi<strong>da</strong> estaria morta.<br />

Se a organização geral <strong>da</strong> planta não é regula<strong>da</strong> por um espírito<br />

superior, ousarão presumir que foi à força de rolar no espaço<br />

que a Terra adquiriu sucessivamente a facul<strong>da</strong>de de viver e<br />

renovar-se em sentido constante e progressivo? Ain<strong>da</strong> nisto,


opomos aos antagonistas ignorantes, ou sistemáticos, o testemunho<br />

dos exploradores do mundo físico, dos que descobriram o<br />

regime <strong>da</strong>s correntes aéreas e marítimas. “Depois <strong>da</strong> constatação,<br />

tão evidente, <strong>da</strong> ordem que preside à economia física do planeta<br />

– diz o coman<strong>da</strong>nte Maury – poder-se-ia admitir que as ro<strong>da</strong>s e<br />

peças de um relógio foram construí<strong>da</strong>s e articula<strong>da</strong>s por acaso,<br />

<strong>da</strong>ndo-se ao mesmo acaso uma direção nos fenômenos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>?<br />

Tudo obedece a leis conforma<strong>da</strong>s ao fim supremo, tão<br />

claramente indicado pelo Criador, que quis fazer <strong>da</strong> Terra uma<br />

habitação para o homem.” 110<br />

O panorama <strong>da</strong>s obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, de eloqüente e irresistível<br />

beleza, não lhes fala ao coração nem à razão. Depois de o contemplarem<br />

declaram, sem cerimônia, que “os fatos ape<strong>na</strong>s atestam<br />

formações orgânicas e inorgânicas, em renovações permanentes,<br />

sem que haja nisso ação direta de inteligência qualquer”.<br />

O instinto <strong>na</strong>tural de criar é prescrito formalmente, afirmam<br />

eles, 111 sem perceberem que suas mesmas afirmativas deixam<br />

entrever a necessi<strong>da</strong>de de uma lei orde<strong>na</strong>dora <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />

De resto, com eles, não há conjeturar explicações de um plano<br />

qualquer <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. As idéias de fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de devem ser<br />

recusa<strong>da</strong>s como fermento azedo, já o dizia G. Foster; e o autor de<br />

Lehre der Nahrungsmittel für <strong>da</strong>s Volk, reiterando essa declaração,<br />

acrescenta que, “quanto mais nos habituamos a combater,<br />

mais devemos temer as tentativas sur<strong>da</strong>mente feitas para introduzir<br />

<strong>na</strong> Ciência a idéia de uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, a fim de esclarecer os<br />

fenômenos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>”.<br />

Eis, numa palavra, o que eles tanto temem – a luz! Quanto<br />

mais escuro o labirinto, quanto mais cerrado o nevoeiro, tanto<br />

melhor para os alemães. Quiséssemos levar a defesa <strong>da</strong> nossa<br />

causa ao âmago <strong>da</strong>s suas trincheiras, ficaríamos de antemão tão<br />

bem colocados que as nossas perguntas haveriam de parecer<br />

ridículas.<br />

Explicai-nos, por exemplo, conspícuos juízes, por que os<br />

olhos não brotaram nos pés e os ouvidos nos joelhos. Circunstâncias<br />

devi<strong>da</strong>s à medula espi<strong>na</strong>l,... Vamos lá, pois: será que a<br />

medula saiba o que faz? Dizei porque as pálpebras e sobrance-


lhas não se formaram com o pavilhão auricular e porque este, à<br />

sua vez, não se contrai como aquelas. Sorrides, creio... Ain<strong>da</strong><br />

bem, pois é a mais espiritual <strong>da</strong>s respostas que nos pudestes <strong>da</strong>r<br />

até o presente.<br />

A a<strong>da</strong>ptação do órgão às funções que devem preencher o estado<br />

orgânico do ser, segundo a sua função <strong>na</strong> economia geral,<br />

constituem exemplos tão evidentes do plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, que é<br />

preciso limitar-se a uma observação muito completa para desautorizar<br />

a nossa tese. Por qualquer aspecto que encaremos os seres<br />

vivos, esse plano se evidencia em caracteres bem legíveis. Sem a<br />

idéia de fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de geral, o fisiologista não poderia determi<strong>na</strong>r o<br />

jogo de qualquer órgão e a Ciência se esterilizaria. Elevando-nos<br />

dos fatos particulares aos fatos gerais, se considerarmos não já<br />

um órgão especial, mas um ser <strong>na</strong> sua individuali<strong>da</strong>de integral,<br />

segundo a sua função <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> – o sexo, por exemplo –<br />

haveremos de reconhecer que tudo nesse indivíduo concorre para<br />

um fim determi<strong>na</strong>do. Não precisamos estender-nos mais sobre<br />

esse delicado aspecto <strong>da</strong> questão, ain<strong>da</strong> que previamente seguros<br />

<strong>da</strong> vitória, sobretudo se tomarmos por estalão o tipo médio do<br />

gênero humano, sensivelmente diferente do nosso, quer no seu<br />

caráter a<strong>na</strong>tômico, quer <strong>na</strong> sua maleabili<strong>da</strong>de espiritual. De fato,<br />

o plano criacio<strong>na</strong>l está tão universalmente assi<strong>na</strong>lado, que Rabelais<br />

poderia provar a existência de <strong>Deus</strong> pela imorali<strong>da</strong>de de<br />

umas tantas descrições. Mas... basta neste particular.<br />

O velho problema <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s espécies interessa mais ain<strong>da</strong><br />

que o <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação dos órgãos aos seus fins. Já vimos que a<br />

vi<strong>da</strong> planetária só se pode explicar mediante uma causa Primária.<br />

Do ponto de vista <strong>da</strong>s causas fi<strong>na</strong>is, aqui falamos somente <strong>da</strong><br />

organização <strong>da</strong>s espécies segundo o clima e o meio, e do enigma<br />

de sua transformação segundo os períodos geológicos. Os que<br />

negam a existência de um poder inteligente <strong>na</strong> direção do mundo,<br />

pretendem que as espécies podem transformar-se umas <strong>na</strong>s<br />

outras, a partir do mais baixo nível <strong>da</strong> escala zoológica, impeli<strong>da</strong>s<br />

pelo meio e circunstâncias domi<strong>na</strong>ntes. É uma hipótese que,<br />

por incidir imediatamente no ponto no<strong>da</strong>l do problema, explica a<br />

a<strong>da</strong>ptação ao meio, pois ensi<strong>na</strong> que os seres são o produto desse<br />

meio. Vede, por exemplo, esta girafa: se tem um pescoço assim


longo, é porque a primitiva espécie de que descende habitou<br />

regiões onde não havia frondes baixas. Obriga<strong>da</strong> a levantar<br />

constantemente a cabeça, o pescoço se foi sucessivamente alongando<br />

até chegar ao que é hoje. Tal pescoço não foi, portanto,<br />

<strong>da</strong>do à girafa tendo em vista a <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong> alimentação, mas é o<br />

resultado definitivo desse processo alimentar.<br />

Uma águia cinde o espaço em vôo rápido: admirais a construção<br />

engenhosa desse aparelho, até agora inimitável aparelho<br />

complexo, que faculta aos voltívolos o domínio dos ares. Pois<br />

bem: as asas não foram <strong>da</strong><strong>da</strong>s às aves para que voassem e elas só<br />

voam porque tem asas. Como as adquiriram? Uma primeira<br />

espécie teria começado a saltitar e ter-se-ia comprazido com essa<br />

novi<strong>da</strong>de. Primeiro, pulinhos curtos. Depois, exercitando-se, foi<br />

<strong>da</strong>ndo maior desenvolvimento aos membros anteriores e assim<br />

prosseguindo, por milhões de anos, acabaria provendo-se de uma<br />

transformação radical nos ditos órgãos anteriores. E aí está como<br />

as asas são o resultado do vôo. Essa gente coloca o Criador em<br />

situação embaraçosa, visto que ele, o bom <strong>Deus</strong>, dera as asas<br />

para voar e eis que elas, por se a<strong>da</strong>ptarem perfeitamente ao seu<br />

fim, acabam por não provar, mas, contraprovar a inteligência de<br />

quem as fez! À puri<strong>da</strong>de, senhores, quereríeis mesmo que ele<br />

fizesse voar as aves com os vossos roupões de banho? Prossigamos<br />

ain<strong>da</strong> um instante.<br />

Tendo o mar recoberto outrora to<strong>da</strong>s as regiões do globo, é<br />

<strong>na</strong>tural conjeturar que to<strong>da</strong>s as espécies, vegetais e animais,<br />

inclusive o homem, começaram pela vi<strong>da</strong> do peixe. Admira-vos<br />

a transformação de peixes em cavalos e homens? Pois não há<br />

motivo, que fatos há, mais maravilhosos <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Dig<strong>na</strong>ivos,<br />

ao menos, prestar um pouco de atenção ao editor responsável<br />

desta teoria, o falecido Sr. Maillet. Não há animal volátil ou<br />

rasteiro que não tenha no mar espécies semelhantes, ou aparenta<strong>da</strong>s,<br />

e cuja transição de um para outro elemento seja impossível<br />

e, dir-se-ia, até provável com exemplos numerosos. Não nos<br />

referimos somente aos anfíbios, serpentes, crocodilos, lontras,<br />

focas e muitos outros que vivem tanto n'água como em terra, ou<br />

no ar, mas, também aos de vi<strong>da</strong> aérea exclusiva. Sabemos que o<br />

mar produz dois gêneros de animais: os que <strong>na</strong><strong>da</strong>m, viajam,


passeiam, caçam, e os que rastejam no fundo, <strong>da</strong>í não se afastam,<br />

ou raramente o fazem, sem qualquer propensão <strong>na</strong>tatória. Como<br />

duvi<strong>da</strong>r que, do gênero dos peixes voláteis tenham provindo as<br />

nossas aves e que dos rastejantes descen<strong>da</strong>m os nossos animais<br />

terrestres, sem pendor nem habili<strong>da</strong>de para alar-se? Para nos<br />

convencermos de que uns e outros passaram do elemento equóreo<br />

ao terrestre, basta a<strong>na</strong>lisar-lhes a forma, as disposições e<br />

tendências recíprocas, confrontando-as de conjunto.<br />

Para começar pelos voláteis, atentai, se vos prouver, não só<br />

<strong>na</strong> forma de to<strong>da</strong>s as espécies de ave, mas também <strong>na</strong> diversi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> plumagem e <strong>da</strong>s incli<strong>na</strong>ções peculiares. Não encontrareis<br />

uma só que não pudésseis encontrar no mar.<br />

Observai, ain<strong>da</strong>, que a transição do ambiente equóreo para o<br />

aéreo é muito mais <strong>na</strong>tural do que comumente se presume.<br />

O ar que envolve o globo está impreg<strong>na</strong>do de muitas partículas<br />

d'água. Esta, dir-se-ia, é um ar carregado de partículas mais<br />

grosseiras, mais úmi<strong>da</strong>s e mais pesa<strong>da</strong>s que o fluido superior,<br />

que denomi<strong>na</strong>mos ar, posto que uma e outro não sejam mais que<br />

a mesma coisa, para as necessi<strong>da</strong>des teóricas de Telliamed. É<br />

fácil, portanto, conceber que animais habituados ao ambiente<br />

equóreo tenham podido conservar a vi<strong>da</strong> respirando um ar dessa<br />

quali<strong>da</strong>de. “O ar inferior não é senão água difundi<strong>da</strong>.” É úmido<br />

porque provém <strong>da</strong> água, e é quente porque não é tão frio como<br />

poderia ser, transformando-se em água. Mais abaixo, acrescenta:<br />

“Há no mar peixes de formas semelhantes à de quase todos os<br />

animais terrestres, mesmo pássaros.” Também lá existem plantas,<br />

flores e alguns frutos: a urtiga, a rosa, o cravo, o melão, a<br />

uva, lá encontram seus congêneres.<br />

Acrescentemos a isso as disposições favoráveis que se podem<br />

encontrar em <strong>da</strong><strong>da</strong>s regiões, facilitando a passagem do meio<br />

aquático para o aéreo; a necessi<strong>da</strong>de mesmo dessa passagem em<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s circunstâncias, como, por exemplo, o isolamento em lagos<br />

cuja seca progressiva obrigasse a viver em terra; ou ain<strong>da</strong> por<br />

qualquer acidente dos que se não podem considerar como extraordinários,<br />

<strong>da</strong>r-se-ia que os peixes voadores, caçando ou sendo<br />

caçados no mar, fossem, pelo temor ou pelo desejo de presa,


arremessados a maior distância <strong>da</strong>s praias, entre caniços e pedregais,<br />

e, <strong>na</strong> impossibili<strong>da</strong>de de regressar ao “habitat”, tirassem do<br />

próprio esforço para o conseguirem uma facul<strong>da</strong>de maior de vôo.<br />

Neste caso, não mais banha<strong>da</strong>s pela água as barbata<strong>na</strong>s fenderam-se,<br />

ressecaram e caíram. Enquanto encontraram, em o novo<br />

meio, algum alimento que os nutrisse, as cânulas <strong>da</strong>s barbata<strong>na</strong>s<br />

separaram-se, prolongaram-se e revestiram-se de plumas, ou, por<br />

melhor dizer, as membra<strong>na</strong>s, antes cola<strong>da</strong>s entre si, metamorfosearam-se.<br />

O pêlo formado dessas películas arquea<strong>da</strong>s alongouse<br />

por si mesmo; a pele revestiu-se insensivelmente de uma<br />

penugem <strong>da</strong> mesma cor origi<strong>na</strong>l e essa penugem cresceu também.<br />

As peque<strong>na</strong>s barbata<strong>na</strong>s ventrais, que, como as <strong>na</strong>tatórias,<br />

lhes auxiliavam a cortar as águas, transmutaram-se em pés e lhes<br />

serviram para percorrer o solo. Ain<strong>da</strong> outras peque<strong>na</strong>s alterações<br />

lhes sobrevieram <strong>na</strong> conformação. O bico e o pescoço de uns<br />

alongaram-se e os outros retraíram-se. A mesma coisa se deu<br />

com o corpo. Contudo, a conformi<strong>da</strong>de primária subsiste no todo<br />

e é sempre fácil reconhecê-la.<br />

A respeito dos animais que rastejam ou caminham, a transição<br />

do meio líquido é ain<strong>da</strong> mais fácil de conceber. Não custa<br />

crer, por exemplo, que serpentes e répteis pudessem viver igualmente<br />

num e noutro elemento. As experiências não permitem<br />

dúvi<strong>da</strong>s a respeito.<br />

Quanto aos quadrúpedes, não só encontramos no mar espécies<br />

semelhantes, com os mesmos pendores, nutrindo-se dos<br />

mesmos alimentos que utilizam em terra, como ain<strong>da</strong> temos cem<br />

outros exemplos de espécies que vivem no ar, como <strong>na</strong>s águas.<br />

Não têm os macacos marinhos o mesmo aspecto dos terrestres?<br />

Há até mais de uma espécie. O leão, o cavalo, o porco, o lobo, o<br />

gato, o cão, a cabra, o carneiro, também têm no mar os seus<br />

afins.<br />

A história roma<strong>na</strong> mencio<strong>na</strong> focas aprisio<strong>na</strong><strong>da</strong>s e exibi<strong>da</strong>s ao<br />

povo nos espetáculos, a saudá-lo com os seus gritos e mesuras,<br />

ao mando de um trei<strong>na</strong>dor, tal como se pratica com outros animais<br />

adestrados para esse fim. E não sabemos que elas se afeiçoam<br />

a quem delas cui<strong>da</strong>, como o fazem os cães a seus donos?


Compreende-se que esse progresso, obtenível com as focas, a<br />

<strong>Natureza</strong> o possa realizar por si mesma e que, em certas ocasiões,<br />

obrigado a viver alguns dias fora d'água, não seja de todo<br />

impossível ao animal identificar-se com o novo ambiente, quando<br />

ao antigo não possa regressar. Foi assim, decerto, que todos<br />

os animais terrestres passaram do meio equóreo ao etéreo e, por<br />

efeito <strong>da</strong> respiração do ar, adquiriram a facul<strong>da</strong>de de mugir,<br />

uivar, ladrar, facul<strong>da</strong>de que antes tinham imperfeitas 112 .<br />

Não iremos mais longe para ouvir este escritor, maiormente<br />

celebrizado pelas sátiras de Voltaire, do que pelo seu filósofo<br />

indiano. Diremos ape<strong>na</strong>s que ele prossegue com uma série de<br />

historietas e contos mais ou menos autênticos, de homens selvagens,<br />

homens de cau<strong>da</strong>, imberbes, unípedes, manetas, pretos,<br />

gigantes, anões, etc., para culmi<strong>na</strong>r <strong>na</strong> transmigração dos homens<br />

e macacos marinhos para a terra firme. Cuvier, o mais ilustre dos<br />

geólogos, consignou a sua opinião sobre esta renova<strong>da</strong> teoria dos<br />

gregos, agora proposta sob aspecto algo diferente, a saber:<br />

“Naturalistas materializados em suas idéias, permaneceram como<br />

sectários humildes de Maillet; vendo que o exercício mais ou<br />

menos intenso de um órgão lhe aumenta ou diminui, por vezes, a<br />

força e o volume, imagi<strong>na</strong>ram que o hábito e as influências<br />

exteriores por muito tempo combi<strong>na</strong>dos puderam alterar gra<strong>da</strong>tivamente<br />

as formas animais, a ponto de atingirem o que demonstram<br />

hoje as diferentes espécies. É a mais vã e, porventura, a<br />

mais superficial de quantas idéias temos tido ensejo de refutar.<br />

Nela, os corpos são considerados simples massa, pasta argilosa<br />

que se pudesse modelar entre os dedos.<br />

“E assim é que, quando autores outros tentaram entrar em<br />

minúcias, caíram no ridículo. Quem quer que ouse afirmar a<br />

sério que um peixe, à força de jazer em seco, poderia ver as<br />

escamas fenderem-se e transformarem-se em pe<strong>na</strong>s, tor<strong>na</strong>ndo-se<br />

ele mesmo em ave ou quadrúpede; e que à força de esgueirar-se<br />

por fen<strong>da</strong>s estreitas, no intuito de regressar ao velho habitat,<br />

houvera de tor<strong>na</strong>r-se em serpente; quem assim conjetura, repetimos,<br />

só faz prova de ignorância cabal do que seja A<strong>na</strong>tomia.”<br />

Essa teoria, contra a qual se levantam tantas dificul<strong>da</strong>des,<br />

pressupõe que todos os seres derivam dum tipo primordial,


mercê de uma série de transformações sucessivas, constituindo a<br />

uni<strong>da</strong>de orgânica.<br />

Olho e ouvido não passam de nervo sensorial desenvolvido<br />

pelo exercício; fronte e crânio foram modelados pelo cérebro e<br />

este mais não é que um desdobramento <strong>da</strong> medula espi<strong>na</strong>l.<br />

Mas – objetaremos com Paulo Janet – como pode o hábito<br />

operar semelhante metamorfose e mu<strong>da</strong>r a vértebra superior <strong>da</strong><br />

colu<strong>na</strong> em cavi<strong>da</strong>de capaz de conter o encéfalo? Eis, para tanto,<br />

o que importaria presumir: que um animal, ape<strong>na</strong>s provido de<br />

uma medula espi<strong>na</strong>l, à força de exercitá-la, conseguiu produzir<br />

essa expansão de matéria nervosa a que chamamos cérebro; que,<br />

à medi<strong>da</strong> que essa parte superior se alargasse, iria recalcando<br />

primeiramente as paredes moles que a revestem, até obrigá-las a<br />

tomar sua própria conformação de caixa crania<strong>na</strong>... Mas, quantas<br />

hipóteses nesta hipótese!<br />

Em primeiro lugar, teríamos de imagi<strong>na</strong>r animais com medula<br />

espi<strong>na</strong>l sem cérebro, pois de outro modo tanto podemos considerar<br />

a medula um prolongamento do cérebro, como este mesmo<br />

cérebro um prolongamento <strong>da</strong> medula. Isso, aliás, parece indiciar-se<br />

quando encontramos algo de análogo ao cérebro em animais<br />

desprovidos de medula, quais os moluscos e os anelídeos.<br />

Ora, se o cérebro preexiste nos vertebrados, preexiste o crânio e<br />

não é, portanto, originário do hábito. Acrescentai que dificilmente<br />

se podem admitir exercício e hábito sem cérebro, como produtos<br />

que são <strong>da</strong> vontade, pois não há como negar seja o cérebro o<br />

órgão <strong>da</strong> vontade. Tende em conta, fi<strong>na</strong>lmente, que ain<strong>da</strong> restaria<br />

admitir que a matéria óssea tivesse antes sido cartilaginosa, a fim<br />

de prestar-se às dilatações sucessivamente requeri<strong>da</strong>s pelo progresso<br />

do sistema nervoso, o que implicaria notável acomo<strong>da</strong>ção<br />

nessa primitiva maleabili<strong>da</strong>de óssea, sem o que, impossível se<br />

tor<strong>na</strong>ria qualquer desenvolvimento do sistema nervoso.<br />

Órgãos e funções se têm manifestado de paralelo, segundo o<br />

plano geral. A causali<strong>da</strong>de parece-nos tão evidente que, a bem<br />

dizer, nossos adversários mereceriam que a <strong>Natureza</strong> os privasse,<br />

algum tempo, de uns tantos músculos (digamos o esfíncter),<br />

forçando-os assim a confessar que os mais insignificantes órgãos<br />

têm uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de a preencher.


Não queremos retomar neste capítulo a questão primária <strong>da</strong><br />

origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em nosso globo, bem como do seu entretenimento<br />

e progresso sob o guante de leis providenciais. Exami<strong>na</strong>mos<br />

essa questão sob todos os seus aspectos num capítulo sobre a<br />

origem dos seres e chegamos à conclusão i<strong>na</strong>tacável (ver Segun<strong>da</strong><br />

Parte) de que a vi<strong>da</strong> terrestre é constituí<strong>da</strong> por uma força,<br />

única e central para ca<strong>da</strong> ser, condicio<strong>na</strong>ndo a matéria segundo<br />

um tipo do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Vimos<br />

que a lei de progresso nos seres organizados, <strong>da</strong> planta ao homem,<br />

atesta a inteligência divi<strong>na</strong> e evidencia a presença constante<br />

de <strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, jamais induzindo à negação de uma<br />

potência criadora.<br />

Em nosso caso particular (Plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> – construção de<br />

seres vivos), temos uma afirmação ain<strong>da</strong> mais direta <strong>da</strong> ação<br />

inteligente <strong>na</strong> maravilhosa organização dos corpos animados,<br />

atento a que essa ação é igualmente necessária nos casos em que<br />

as espécies se houvessem sucessivamente transformado em<br />

ascensão zoológica (hipótese que está longe de ser admiti<strong>da</strong>), e<br />

<strong>na</strong>queles em que o primeiro casal de ca<strong>da</strong> espécie fosse o produto<br />

de uma força particular, que não nos é <strong>da</strong>do apreciar. Temos,<br />

assim, o direito de fechar esta controvérsia <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação de ca<strong>da</strong><br />

espécie ao seu gênero de vi<strong>da</strong> com a declaração de que, mesmo<br />

supondo uma progressão <strong>na</strong>tural, instintiva, lenta e insensível;<br />

uma plastici<strong>da</strong>de normal do organismo e obediência cega de ca<strong>da</strong><br />

espécie às forças domi<strong>na</strong>ntes, a hipótese materialista <strong>na</strong><strong>da</strong> adianta<br />

com isso. A apropriação <strong>da</strong> matéria organiza<strong>da</strong> às causas<br />

exteriores demonstraria, simplesmente, uma grande sabedoria<br />

nos desígnios e nos feitos do Criador. Se, como acima lhes<br />

perguntávamos, os seres fossem de ferro ou de mármore, haveria<br />

críticos que com isso se contentariam. E contudo, que sucederia?<br />

Qualquer mu<strong>da</strong>nça de clima, de temperatura, de ambiente, de<br />

alimentação, seria uma para<strong>da</strong> mortal para essas espécies inflexíveis.<br />

O junco verga, enquanto que o carvalho é derrancado<br />

pelo aquilão.<br />

Longe, pois, de ver ausência de pensamento e desígnio nessa<br />

flexibili<strong>da</strong>de maravilhosa do organismo vivo, nessa facul<strong>da</strong>de<br />

imperecível de tirar o melhor partido <strong>da</strong>s circunstâncias mais


incômo<strong>da</strong>s, vencer obstáculos e plantar, a despeito de tudo, o<br />

estan<strong>da</strong>rte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no solo mais sáfaro e mais ingrato, o que<br />

reconhecemos é o depoimento irrecusável <strong>da</strong> causa onipotente,<br />

que, a partir dos primeiros tempos, houve por bem que os mundos<br />

se embalassem harmonicamente <strong>na</strong> amplidão do infinito e<br />

fossem envolvidos em carícias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

A inteligência criadora e orde<strong>na</strong>dora, que denomi<strong>na</strong>mos<br />

<strong>Deus</strong>, permanece, portanto, como lei primordial e eter<strong>na</strong>, força<br />

intrínseca, universal, constituindo a uni<strong>da</strong>de viva do mundo.<br />

To<strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de desaparece, substituindo-se a idéia de plano<br />

geral à de causali<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>. Órgãos e funções, espécies e<br />

indivíduos, é tudo conduzido <strong>na</strong> mesma direção.<br />

O Universo é o desdobro de um só pensamento e a uni<strong>da</strong>de de<br />

tipo é sensível sob to<strong>da</strong>s as formas particulares <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terrestre.<br />

Em que direção nos conduz o pensamento eterno?<br />

É o que tentaremos entrever, ao termi<strong>na</strong>r este estudo sobre a<br />

fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de dos seres e <strong>da</strong>s coisas.


2 - Plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> - Instinto e Inteligência<br />

SUMÁRIO – Leis que presidem à conservação <strong>da</strong>s espécies. –<br />

Facul<strong>da</strong>des instintivas especiais. – Não se explica o instinto pela<br />

suposição de hábitos hereditários. – Distinção fun<strong>da</strong>mental entre<br />

os fatos instintivos e racio<strong>na</strong>is. – Desígnio <strong>na</strong>s obras <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />

- Ordem geral e harmonias universais. – Qual a distinção geral<br />

do mundo? – Magnitude do problema. – Insuficiência <strong>da</strong> razão<br />

huma<strong>na</strong>.<br />

A construção lenta e progressiva dos seres e a formação <strong>da</strong>s<br />

espécies duradouras estabelecem a presença permanente <strong>da</strong> causa<br />

criadora e proclamam, eloqüentemente, a sua sabedoria e inteligência.<br />

Se deixarmos, agora, de lado a organização do indivíduo, para<br />

estu<strong>da</strong>rmos a <strong>da</strong> família, penetraremos nos mistérios do instinto<br />

e, ain<strong>da</strong> aí, encontraremos o plano do Criador brilhantemente<br />

caracterizado.<br />

Muito se há discutido sobre a alma animal, depois que Descartes,<br />

Leibnitz e, a seguir, Reaniur se deram ao trabalho de<br />

observar in <strong>na</strong>tura, diretamente, a vi<strong>da</strong> e costumes dos animais.<br />

É, sobretudo, pela observação direta que nos podemos instruir<br />

acerca <strong>da</strong> preciosa facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s espécies vivas, que lhes assegura<br />

a conservação, e basta constatar os si<strong>na</strong>is evidentes dessa lei<br />

universal, para lhe aferir o valor, sob o ponto de vista dos desígnios<br />

<strong>da</strong> Criação.<br />

Antes de tudo, convém distinguir inteligência e instinto. Os<br />

animais possuem uma e outro como facul<strong>da</strong>des bem distintas.<br />

Com a primeira pensam, refletem, compreendem, decidem,<br />

recor<strong>da</strong>m, adquirem experiência, amam, odeiam, julgam, por<br />

processos análogos aos <strong>da</strong> inteligência huma<strong>na</strong>; com a segun<strong>da</strong>,<br />

operam obedecendo a uma impulsão íntima, sem apreensão, sem<br />

conhecimento, inconscientes do motivo e do resultado de seus<br />

atos. Fixemos alguns exemplos, para melhor definir esses caracteres.<br />

Eis com nos fala Buffon de um orangotango ain<strong>da</strong> novo, por<br />

ele observado: – “Vi-o apresentar a mão para conduzir as pesso-


as que o visitavam e passear com elas como se estivesse convencido<br />

do seu papel; vi-o sentar-se à mesa, tomar o guar<strong>da</strong><strong>na</strong>po,<br />

limpar os lábios, utilizar-se <strong>da</strong> colher e do garfo, encher o copo e<br />

tocá-lo noutro, quando a isso convi<strong>da</strong>do; vi-o buscar uma cháve<strong>na</strong>,<br />

deitar-lhe o açúcar e o chá, aguar<strong>da</strong>ndo que este esfriasse<br />

para então bebê-lo. Tudo isso, sem outra instigação que a palavra<br />

e a mímica do seu dono e, algumas vezes, por si mesmo. Não<br />

molestava a quem quer que fosse; mostrava-se mesmo circunspecto<br />

e <strong>na</strong> atitude de quem pedisse carinho, etc.”<br />

O Sr. Flourens diz que havia no Jardim Zoológico um orangotango<br />

notável pela inteligência: meigo, amante de carícias,<br />

principalmente <strong>da</strong>s crianças, com elas brincava procurando<br />

imitar quanto via, etc. Assim é que sabia manejar a chave do seu<br />

compartimento, enfiando-a <strong>na</strong> fechadura e abrindo a porta. Se<br />

acontecia pendurarem a chave <strong>na</strong> chaminé, lá trepava por meio<br />

de uma cor<strong>da</strong> presa ao teto e que lhe servia comumente de balanço.<br />

Certa feita, deram <strong>na</strong> cor<strong>da</strong> um nó, para fazê-lo mais curta, e<br />

ele o desatou imediatamente. Tal como o de Buffon, não revelava<br />

a impaciência e petulância próprias <strong>da</strong> espécie, antes tinha um<br />

ar tristonho, passos lentos e gestos comedidos.<br />

O professor foi visitá-lo um dia, acompanhado por um ilustre<br />

ancião, que era também um observador sagaz e profundo.<br />

Um trajo algo esquisito, os passos lentos e vacilantes, o busto<br />

arqueado do visitante, logo despertaram a atenção do símio.<br />

Prestou-se ele, complacente, a tudo o que se lhe exigiu, mas, de<br />

olho sempre atento no objeto de sua curiosi<strong>da</strong>de. Quando nos<br />

íamos retirar e ele mais se aproximou do novo visitante, tomoulhe<br />

delica<strong>da</strong> e maliciosamente a bengala e, fingindo apoiar-se<br />

nela, curvado e vagaroso, deu uma volta ao compartimento,<br />

como procurando imitar o meu velho amigo.<br />

Depois, de si mesmo restituiu-lhe a bengala. Evidente que ele<br />

também sabia observar...<br />

Cuvier, por sua vez, observou fatos não menos curiosos. Seu<br />

orangotango se divertia trepando <strong>na</strong>s árvores e nelas permanecendo<br />

encarapitado. Um dia, fizeram menção de lá o buscarem e<br />

ele logo se pôs a sacudir a árvore, assim procedendo sempre que


tentavam apanhá-lo. “De qualquer modo – diz Cuvier – que<br />

consideremos esse ato, não será possível negá-lo como resultante<br />

de uma combi<strong>na</strong>ção de idéias, para reconhecer que o animal<br />

possui a facul<strong>da</strong>de de generalizar.<br />

De fato, o orangotango, aqui, concluía de si para outrem:<br />

mais de uma feita, o abalo violento dos corpos, em que se houvera<br />

apoiado, tê-lo-ia espavorido, levando-o a concluir que esse<br />

mesmo temor atingiria a outrem, ou – por melhor dizer com<br />

Cuvier – “de uma circunstância particular ele fazia uma regra<br />

geral”.<br />

Flourens cita o exemplo de um curioso indício de inteligência,<br />

observado no Jardim Zoológico. Julgado excessivo o número<br />

de ursos lá existentes, ficou resolvi<strong>da</strong> a elimi<strong>na</strong>ção de dois<br />

exemplares. O veneno seria o ácido prússico, ministrado em<br />

pequenos bolos. À vista dos bolos, os animais logo se ergueram<br />

<strong>na</strong>s patas traseiras, abrindo a boca, <strong>na</strong> qual conseguiram atirar<br />

alguns bolos. Entretanto, logo rejeitaram o manjar e puseram-se<br />

em fuga. Dir-se-ia que não seriam mais tentados a tocar <strong>na</strong><br />

iguaria e, contudo, ei-los a empurrar com as patas os bolos para<br />

dentro do tanque e, depois de muito revolverem a água, iam<br />

comendo os bolos, à medi<strong>da</strong> que o veneno se evaporava. Em o<br />

fazerem assim, impunemente demonstraram uma sagaci<strong>da</strong>de que<br />

lhes granjeou a revogação <strong>da</strong> sentença.<br />

Plutarco afirma ter visto um cão lançar pedrinhas dentro de<br />

uma talha, não completamente cheia de óleo, admirando-se de<br />

como o cão pudesse induzir que o peso <strong>da</strong>s pedras haveria de<br />

fazer subir e transbor<strong>da</strong>r o conteúdo.<br />

Buffon escreveu belas pági<strong>na</strong>s sobre a inteligência do cão,<br />

mas não lhe interpretou o alto valor. Há, nos fastos <strong>da</strong> espécie<br />

cani<strong>na</strong>, exemplos de inteligência, habili<strong>da</strong>de raciocínio, julgamento,<br />

e também de afeição, devotamento, bon<strong>da</strong>de e reconhecimento,<br />

dignos de serem apontados como modelo a uma grande<br />

parte do gênero humano.<br />

Poder-se-ia escrever uma série de volumes e nem assim se<br />

esgotaria o acervo de fatos comprobatórios <strong>da</strong> inteligência animal,<br />

nota<strong>da</strong>mente do cão. De resto, os adversários estão conosco


em admitir esses fatos. Citemos aqui o exemplo interessante de<br />

uma deliberação de andorinha, contado pelo autor de Força e<br />

Matéria. Um casal de andorinhas tinha começado a construir o<br />

ninho <strong>na</strong> cumeeira <strong>da</strong> casa. Um dia, entra por lá um bando de<br />

companheiras e travam longa discussão com as posseiras do<br />

ninho. Reuni<strong>da</strong>s no forro <strong>da</strong> casa e não longe do ninho disputado,<br />

fizeram uma algazarra infer<strong>na</strong>l. Depois de algum tempo,<br />

enquanto algumas andorinhas se destacavam para inspecio<strong>na</strong>r o<br />

ninho, dissolveu-se a assembléia e o resultado foi o casal abando<strong>na</strong>r<br />

o ninho começado, entrando logo a construir outro em<br />

lugar quiçá mais adequado.”<br />

Um fato ain<strong>da</strong> mais notável veio à baila recentemente. Nos<br />

arredores de uma granja de Weddendorg, perto de Magdebourg,<br />

as cegonhas, após sério debate, julgaram uma companheira<br />

adúltera. Mataram-<strong>na</strong> a bica<strong>da</strong>s e lançaram-<strong>na</strong> fora do ninho 113 .<br />

Agassiz, mais que ninguém, exalta as facul<strong>da</strong>des intelectuais<br />

dos animais. Depois de mostrar as dificul<strong>da</strong>des que ain<strong>da</strong> não<br />

permitem estabelecer uma comparação científica entre instintos e<br />

facul<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s e animais, emite ele as seguintes idéias: –<br />

“O desenvolvimento <strong>da</strong>s paixões é tão extenso no animal quanto<br />

no homem, e eu me encontraria seriamente embaraçado para lhes<br />

apreender diferenças específicas, <strong>na</strong>turais, ain<strong>da</strong> que as haja, e<br />

grandes, no graduamento <strong>da</strong>s manifestações e <strong>na</strong> forma de expressão.<br />

Ao demais, a gra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des morais entre os<br />

animais e o homem é tão imperceptível, que, recusar aos primeiros<br />

um certo sentimento de responsabili<strong>da</strong>de e consciência fora,<br />

certo, exagerar a diferença. Além disso, há neles, limita<strong>da</strong>s às<br />

suas respectivas capaci<strong>da</strong>des, individuali<strong>da</strong>des tão defini<strong>da</strong>s<br />

como no homem. Os criadores de cavalos, os guar<strong>da</strong>dores de<br />

animais, pastores, etc., aí estão para confirmá-lo.<br />

E aí temos argumento dos mais fortes a favor <strong>da</strong> existência de<br />

um princípio imaterial em todos os animais análogo ao que, por<br />

excelência e facul<strong>da</strong>des superiores, coloca o homem em plano<br />

eminente. A maior parte dos argumentos filosóficos em prol <strong>da</strong><br />

imortali<strong>da</strong>de do homem aplica-se, igualmente, à indestrutibili<strong>da</strong>de<br />

desse principio nos outros seres vivos 114 .


Quem se atreveria hoje a pôr em dúvi<strong>da</strong> a inteligência animal?<br />

Só um tímido espírito de sistema, temeroso <strong>da</strong>s conseqüências<br />

dessa ver<strong>da</strong>de, em relação a umas tantas crenças, pode<br />

fechar os olhos à evidência. A nós, cumpria-nos constatar, antes<br />

de tudo, essa ver<strong>da</strong>de, a fim de mais livremente podermos falar<br />

do instinto e derrocar a argumentação dos que presumem que o<br />

instinto não existe.<br />

Há, certamente, uma grande diferença entre atos instintivos e<br />

atos racio<strong>na</strong>is. Não que esses dois caracteres <strong>da</strong> força viva se<br />

encontrem isolados (<strong>na</strong><strong>da</strong> o está <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>), mas por não se<br />

encontrarem <strong>na</strong> mesma graduação e não se poderem confundir.<br />

Não devemos insistir, maiormente aqui, a respeito dos fatos de<br />

ordem intelectual. Vamos, porém, compará-los aos fatos inerentes<br />

ao domínio do instinto e que revelam existir uma providência<br />

universal presidindo à vi<strong>da</strong> em geral e que não explicam de<br />

modo algum, pela instrução, o raciocínio ou o julgamento nos<br />

animais em que se deparam.<br />

Chama-se instinto ao conjunto <strong>da</strong>s diretivas que impelem o<br />

animal, obedecendo a uma necessi<strong>da</strong>de constante. O instinto é<br />

i<strong>na</strong>to, atua à revelia <strong>da</strong> instrução, inexperiente e invariavelmente,<br />

e não realiza progresso algum. É em tudo a antítese <strong>da</strong> inteligência.<br />

Tanto mais notáveis são os fenômenos do instinto quanto<br />

mais se afirmam inteiramente involuntários. “Não podemos fazer<br />

uma idéia níti<strong>da</strong> do instinto – dizia Georges Cuvier – senão<br />

admitindo que os animais sejam submetidos a imagens ou sensações<br />

i<strong>na</strong>tas constantes, que os obrigam a proceder como levados<br />

por sensações acidentais. É uma espécie de sonho ou visão que<br />

os persegue incessante e, em tudo que se reporta ao instinto,<br />

podemos julgar os animais assim uma espécie de sonâmbulos.”<br />

Frederico Cuvier consagrou parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a descobrir a linha<br />

que separa o instinto <strong>da</strong> inteligência. Pode-se dizer, sem paradoxo,<br />

que não há linhas divisórias <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Aqui, porém, não<br />

se trata de metafísica. Contentemo-nos, assim, em ouvir o que<br />

diz o Sr. Flourens, <strong>da</strong>s laboriosas observações do esforçado<br />

<strong>na</strong>turalista.<br />

O castor é um mamífero <strong>da</strong> ordem dos roedores, isto é, <strong>da</strong> ordem<br />

menos inteligente, e, contudo, possui um instinto maravi-


lhoso, qual o de construir uma caba<strong>na</strong> sobre água, com calça<strong>da</strong>s<br />

e diques, e tudo mercê de uma indústria que deman<strong>da</strong>ria inteligência<br />

elevadíssima, se de inteligência dependesse.<br />

O essencial, portanto, fora provar essa independência e foi<br />

isso o que fez F. Cuvier. Tomou castores muito novos, educados<br />

longe de seus pares e, por conseguinte, <strong>na</strong><strong>da</strong> havendo com eles<br />

ou deles aprendido. Esses castores, assim isolados, solitários,<br />

postos numa jaula expressamente desti<strong>na</strong><strong>da</strong> à experiência e de<br />

forma a dispensá-los do seu trabalho peculiar construtivo, não se<br />

forraram de o realizar, impelidos por uma força maqui<strong>na</strong>l cega,<br />

ou seja um puro instinto.<br />

A mais completa antítese separa o instinto <strong>da</strong> inteligência. No<br />

instinto tudo é cego, necessário, invariável; <strong>na</strong> inteligência é tudo<br />

elevado, condicio<strong>na</strong>l, modificável. O castor que constrói uma<br />

caba<strong>na</strong>, o pássaro que constrói um ninho, só o fazem por instinto.<br />

O cão e o cavalo, que chegam a compreender o sentido de algumas<br />

palavras e nos obedecem, o fazem por inteligência.<br />

No instinto é tudo i<strong>na</strong>to: o castor constrói sem haver aprendido.<br />

Dir-se-ia que o faz por uma fatali<strong>da</strong>de, dirigido por uma<br />

força constante e incoercível.<br />

Na inteligência é tudo o resultado <strong>da</strong> experiência e <strong>da</strong> instrução:<br />

o cão obedece quando ensi<strong>na</strong>do. E aí tudo é livre, o cão<br />

obedece porque quer.<br />

Fi<strong>na</strong>lmente, tudo no instinto é particular; essa indústria admirável<br />

que o castor utiliza no construir a caba<strong>na</strong> não pode ele<br />

utilizá-la senão com esse fim; ao passo que, <strong>na</strong> inteligência, tudo<br />

se generaliza, de vez que essa mesma maleabili<strong>da</strong>de de atenção e<br />

de concepção do cavalo e do cachorro pode aproveitar-lhes para<br />

fazer coisas diversas.<br />

Distinção que se impunha, esta. Na história <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> importa<br />

reconhecer em ca<strong>da</strong> qual o que lhe pertence e exatamente o<br />

que lhe pertence, sem restrição sistemática, sem prevenção<br />

tendenciosa. Descartes e Buffon (este contraditório, às vezes)<br />

negam aos animais qualquer partícula de inteligência. Condilac e<br />

G. Leroy, ao contrário, chegam a conceder-lhes operações intelectuais<br />

<strong>da</strong>s mais eleva<strong>da</strong>s. É um erro duplo. Os animais não são


plantas nem são homens. Weinband não tem razão em pretender<br />

que isso que desig<strong>na</strong>mos como instinto não passa de “indolência<br />

do espírito para forrar-se aos penosos esforços que o estado <strong>da</strong><br />

alma animal reclama”. Não <strong>na</strong> tem, tampouco, Sachus, quando<br />

adita que “não há necessi<strong>da</strong>de imediata, resultante <strong>da</strong> organização<br />

intelectual, nem pendores cegos e arbitrários que impulsem<br />

os animais”. Não hesitamos em reconhecer que esta questão,<br />

como todos os grandes problemas <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, é difícil de<br />

resolver. Pensamos que, no seu estudo, como de resto em outras<br />

questões sucede, o homem se tem pago mais com palavras que<br />

com idéias. Quando não se compreende o ato inteligente de um<br />

animal, é comum forrar-se ao embaraço, utilizando a palavra<br />

instinto, assim como um véu lançado ao objeto que se quer<br />

exami<strong>na</strong>r; mas, à parte este processo ilusório, restam fatos que<br />

não são certamente resultado de reflexão, nem de julgamento.<br />

Em vão o Sr. Darwin, e com ele Lamarck, afirmam que o instinto<br />

é um hábito hereditário. Essa explicação não transfere o instinto<br />

aos domínios <strong>da</strong> inteligência e, ain<strong>da</strong> menos, aos domínios do<br />

materialismo puro. Tampouco está demonstrado seja o instinto<br />

um hábito hereditário. Consideremos essas borboletas que vivem<br />

no ar e que, chegando à terceira fase <strong>da</strong> sua maravilhosa existência,<br />

entreabrem-se aos beijos <strong>da</strong> luz e aos eflúvios do amor.<br />

Presto, depositarão em círculos concêntricos minúsculos ovos<br />

brancos, sobre talos ou folhas. Esses ovos não vingarão antes <strong>da</strong><br />

próxima estação, quando surgem as peque<strong>na</strong>s lagartas, e isso<br />

depois de transcorridos muitos dias, quando as borboletas já<br />

dormem <strong>na</strong> poeira o sono <strong>da</strong> morte. Que voz teria ensi<strong>na</strong>do a<br />

estas novas borboletas que as futuras lagartas, ao desovarem, hão<br />

de encontrar tal ou tal alimentação? Quem lhes aponta os talos e<br />

folhas em que hajam de depositar seus ovos? Os pais? Mas, se os<br />

não conhecem? Será, então, <strong>da</strong>s folhas e talos que lhes advém a<br />

memória?<br />

Que memória, porém, se elas viveram três existências após<br />

essa época longínqua e substituíram os alimentos inferiores pelo<br />

manjar delicado <strong>da</strong>s corolas olentes? Eis aqui, porém, espécies<br />

outras que protestam, ain<strong>da</strong> mais vivamente, contra as explicações<br />

huma<strong>na</strong>s. Os necróforos (nome lúgubre) morrem imediata-


mente após a postura e as gerações jamais se conhecem. Nenhum<br />

ser desta espécie viu mãe nem verá filhos e, contudo, as mães<br />

têm grande cui<strong>da</strong>do em dispor cadáveres ao lado dos ovos, para<br />

que aos filhos não falte alimento logo ao <strong>na</strong>scer. Em que parte<br />

aprenderam esses necróforos que os seus ovos contêm germe de<br />

insetos que em tudo se lhes semelham? Há outras espécies <strong>na</strong>s<br />

quais o regime alimentar é inteiramente oposto, para a larva e<br />

para o inseto. Nos pompilídeos as mães são herbívoras e os<br />

filhos carnívoros. Em fazerem a postura sobre cadáveres, contrariam<br />

os próprios hábitos. E aqui não colhe admitir o acaso, nem<br />

hábito lentamente adquirido. Qualquer espécie que aberrasse<br />

desta lei não poderia subsistir, visto que os rebentos morreriam<br />

de fome logo após o <strong>na</strong>scimento. A estes insetos podemos juntar<br />

os odíneros e os sphex. As larvas destes últimos são carnívoras e<br />

o ninho precisa ser provido de carne fresca. Para preencher essa<br />

condição, a fêmea que vai desovar busca uma presa convinhável,<br />

tendo o cui<strong>da</strong>do de não a matar, limitando-se a feri-la de paralisia<br />

irremediável. Coloca, depois, sobre ca<strong>da</strong> ovo um certo número<br />

desses enfermos incapazes de se defenderem <strong>da</strong> larva que os<br />

há de devorar, mas com vi<strong>da</strong> bastante para que o corpo não se<br />

corrompa. Em algumas famílias acresce o cui<strong>da</strong>do pela alimentação<br />

<strong>da</strong> presa, até à eclosão <strong>da</strong> larva.<br />

Nossos elementos de argumentação, neste particular, são tão<br />

numerosos que impossível seria reuni-los todos. Limitamo-nos,<br />

assim, a citar alguns exemplos, convi<strong>da</strong>ndo o leitor a tirar <strong>da</strong><br />

letra o espírito. Entre estes exemplos, incluamos o <strong>da</strong> abelha<br />

xilófaga, com a qual o Sr. Milne Edwards entreteve recentemente,<br />

<strong>na</strong> Sorbone, a curiosi<strong>da</strong>de dos seus ouvintes.<br />

Essa abelha que vemos adejar <strong>na</strong> Primavera, que vive solitária<br />

e pouco sobrevive à postura, não viu jamais os genitores e<br />

não viverá o tempo suficiente para assistir ao <strong>na</strong>scimento <strong>da</strong>s<br />

pequeni<strong>na</strong>s larvas vermiformes, desprovi<strong>da</strong>s de patas e incapazes,<br />

não só de se protegerem, como de angariar alimento. E<br />

contudo, elas precisam permanecer em repouso cerca de um ano,<br />

numa habitação bem fecha<strong>da</strong>, sob pe<strong>na</strong> de extinguir-se a espécie.<br />

Como, então, supor que a abelha gestante, antes de pôr o primeiro<br />

ovo, tenha podido adivinhar as necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> prole


futura e o que deve fazer para assegurar-lhe o bem-estar? Tivesse<br />

ela em partilha a inteligência huma<strong>na</strong>, e <strong>na</strong><strong>da</strong> soubera a tal<br />

respeito, visto que todo o raciocínio requer premissas. Este<br />

inseto, que <strong>na</strong><strong>da</strong> pôde aprender, tudo prepara e opera sem hesitação,<br />

como se o futuro lhe estivera devassado e uma previdência<br />

racio<strong>na</strong>l a norteasse. Ape<strong>na</strong>s lhe despontam as asas e logo a<br />

xilófaga trata de preparar a casa dos filhos. Com as mandíbulas,<br />

broca um tronco de madeira exposto ao Sol, escava uma longa<br />

galeria e vai depois buscar, longe, no pólen <strong>da</strong>s flores, o néctar<br />

açucarado. É o cibo do recém-<strong>na</strong>scido e que lhe há de bastar, o<br />

“quantum satis”, para bem-viver até à Primavera próxima.<br />

Uma vez provi<strong>da</strong> a despensa, aí deposita o ovo e ei-la amalgamando<br />

com terra a serragem prudentemente guar<strong>da</strong><strong>da</strong> e fazendo<br />

uma como argamassa, de maneira que o leito dessa primeira<br />

cela se transforme em teto de uma segun<strong>da</strong> despensa e berço <strong>da</strong><br />

larva a <strong>na</strong>scer de outro ovo. Assim se constrói um edifício de<br />

alguns an<strong>da</strong>res, no qual ca<strong>da</strong> alojamento recolhe um ovo e<br />

servirá, mais tarde, à larva desse ovo.<br />

“Admira – diz Edwards – como diante de fatos tão significativos<br />

e numerosos ain<strong>da</strong> haja quem nos venha dizer que to<strong>da</strong>s as<br />

maravilhas <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> não passam de obras do acaso ou, então,<br />

de conseqüências <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des gerais <strong>da</strong> matéria; desta<br />

<strong>Natureza</strong> que faz a substância <strong>da</strong> pedra como <strong>da</strong> madeira e que<br />

os instintos <strong>da</strong> abelha, assim como as mais altas expressões <strong>da</strong><br />

geniali<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>, não são mais que resultados de um jogo de<br />

forças físicas ou químicas, as mesmas que determi<strong>na</strong>m o congelamento<br />

<strong>da</strong> água, a combustão do carvão e a que<strong>da</strong> dos corpos...<br />

Essas hipóteses balofas, ou melhor, essas aberrações do espírito,<br />

que se mascaram, às vezes, com o nome de ciência positiva, só<br />

podem ser repeli<strong>da</strong>s pela ver<strong>da</strong>deira Ciência. O <strong>na</strong>turalista não<br />

poderia acreditá-lo.<br />

“Por pouco que penetremos num desses obscuros redutos onde<br />

se esconde o débil inseto, nele ouvimos distintamente a voz<br />

<strong>da</strong> Providência ditando às criaturas a sua conduta diária.”<br />

Em to<strong>da</strong>s as províncias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> – acrescentamos nós – a mão<br />

do Criador inteligente e previdente se revela aos olhos que<br />

sabem ver<strong>da</strong>deiramente ver. E sempre que a dúvi<strong>da</strong> nos perturbe,


<strong>na</strong><strong>da</strong> melhor se nos impõe que o estudo acurado <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />

porquanto todos os que tiverem consigo o sentimento do belo e<br />

ver<strong>da</strong>deiro, ante o espetáculo maravilhoso <strong>da</strong> Criação, logo terão<br />

dissipa<strong>da</strong>s as nuvens qual floração de luz.<br />

Enquanto traço estas linhas, aqui, dentro de pequeno bosque<br />

cujas aves me conhecem, tenho defronte um ninho de rouxinóis.<br />

Quatro filhotes implumes, trêmulos, ali se premem tão conchegados<br />

que mal se lhes distingue as cabeças volumosas, relativamente,<br />

e os olhos negros, ain<strong>da</strong> mais. Nascidos de anteontem,<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> vêem, <strong>na</strong><strong>da</strong> sabem ain<strong>da</strong>, se há arvoredos e luz.<br />

Se fossem abando<strong>na</strong>dos assim, não tar<strong>da</strong>riam a perecer. O coração<br />

dos genitores, porém, freme por eles em anseios ver<strong>da</strong>deiramente<br />

maternos. Eles lá estão, ambos, pai e mãe, à bor<strong>da</strong> do<br />

ninho e conchegados também. Enfiam o bico nos quatro biquinhos<br />

escancarados e é de notar a força que lhes sustenta e alonga<br />

os pescocitos. Pai e mãe, trazendo-lhes no papo a provisão,<br />

ministram-lhes dessarte, durante alguns minutos, os primeiros<br />

alimentos, o mel e o leite que os há de nutrir no futuro. Que<br />

família encantadora! E como prezam a vi<strong>da</strong> todos os seis! Os<br />

raios solares coam-se através dos ramos, do vale evolam-se<br />

perfumes, é a vi<strong>da</strong> a espanejar-se em luz nesta temperatura<br />

tépi<strong>da</strong> de Maio. Por vezes, o minúsculo casal suspende a tarefa e<br />

contempla os filhotes com ar de contentamento e movimentos de<br />

cabeça significativos. Também se fitam silenciosos, colam-se as<br />

cabeças e confundem-se os bicos, como num beijo de amor..<br />

Depois, ei-los como a se consultarem. Uma nuvem refrescou a<br />

atmosfera. O pai voou, a mãe aninhou-se, abrindo as asas de<br />

maneira a cobrir todo o ninho e, to<strong>da</strong>via, mantendo alto a cabeça,<br />

por ver o horizonte e son<strong>da</strong>r as redondezas. Mas, agora, eis que<br />

regressa o rouxinol e se coloca, tal como antes, <strong>na</strong> beira do<br />

ninho, a procurar o bico <strong>da</strong> companheira. É que chegou a hora do<br />

jantar <strong>da</strong> família e o chefe solícito lhe traz o cibo preferido.<br />

Quanto a ela, parece não lhe desprazer o regime, de vez que<br />

aspira, como inebria<strong>da</strong>, o manjar que lhe trazem. Tremem-lhe as<br />

asas, todo o corpo lhe palpita, enquanto o marido vai e volta num<br />

afã constante, carreando-lhe no bico um repasto completo. Muito<br />

lhes cabe fazer pela prole. Agora. ei-los sérios. Há 15 dias,


passavam o tempo a cantar, a saltitar de galho em galho, a brincar,<br />

a amar... Agora, <strong>na</strong><strong>da</strong> fazem assim, estão casados, chefes de<br />

família, responsáveis por uma nova geração. Até que os filhotes<br />

emplumem, precisam levar-lhes à boca o que mais convém <strong>na</strong><br />

sua i<strong>da</strong>de e preocupam-se já com o seu destino. Amam-nos e<br />

talvez eles não compreen<strong>da</strong>m aquela afeição mater<strong>na</strong>l. É possível<br />

que voem, tão logo a mãe lhes ensine a voar; é possível que<br />

subitamente a releguem a uma solidão definitiva, sem jamais se<br />

lembrarem <strong>da</strong> infância. “A afeição é como os rios; desce e não<br />

sobe.”<br />

Em que pensam, hoje, esse rouxinol e a sua companheira?<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, ao cogitarem do futuro dos filhos, não têm em<br />

mente as profissões sociais e os princípios de honorabili<strong>da</strong>de que<br />

devem nortear to<strong>da</strong>s as carreiras. Sem dúvi<strong>da</strong> que não serão<br />

atormentados por cálculos econômicos, tantas vezes falaciosos<br />

para o homem. Mas aos que negam o instinto, perguntaremos:<br />

em que escola essa esposa, antes de ser mãe, aprendeu a construir<br />

o ninho que lhe haja de receber os ovos?<br />

Ela tem ape<strong>na</strong>s um ano e ain<strong>da</strong> não chocou: quem lhe ensinou<br />

a fazer esse ninho, precisamente assim e não de outro modo?<br />

Quem lhe teria falado de temperatura necessária à incubação e<br />

eclosão do ovo fecun<strong>da</strong>do? Quem lhe diria que chocando, aquecendo<br />

por 15 dias aqueles ovos, facultaria a sua geração? Posição<br />

de constrangimento, apesar do alívio que experimenta,<br />

tor<strong>na</strong>r-se-ia insuportável à sua vivaci<strong>da</strong>de, se um determinismo<br />

instintivo não a amparasse. E quando os ovos vingaram, quem<br />

lhe disse que precisava sair do ninho e que, vivos e precisando<br />

subsistir os pequeninos seres, importava granjear-lhes alimentação<br />

adequa<strong>da</strong>? Quem a forçou a passar mais quinze noites de asa<br />

aberta sobre o ninho, <strong>na</strong> mais fatigante <strong>da</strong>s posições para uma<br />

ave que deve dormir sobre as patas? A estas, poderíamos juntar<br />

mil outras advertências. Hão de responder-nos que a primeira<br />

espécie aprendeu tudo isso pelo hábito, e que as tendências se<br />

transmitem por hereditarie<strong>da</strong>de; mas é recair no mistério <strong>da</strong>s<br />

gerações, é não mais que recuar o problema à primeira espécie,<br />

ou melhor ain<strong>da</strong>, se o quiserem – aos primeiros tipos, supostos<br />

geradores de to<strong>da</strong>s as varie<strong>da</strong>des. Ora, admitindo-se mesmo,


contra to<strong>da</strong> a probabili<strong>da</strong>de, que a construção dos ninhos, a<br />

incubação e os primeiros cui<strong>da</strong>dos com a prole sejam mostras de<br />

inteligência, não do instinto, e que as espécies tenham, sucessivamente,<br />

aprendido a proceder dessa maneira – o que, digamo-lo<br />

ain<strong>da</strong> uma vez, nos parece i<strong>na</strong>dmissível – como resolver as<br />

questões atinentes à formação do ser dentro do ovo? Quem<br />

construiu o ovo, berço de uma geração futura? Quem criou e<br />

colocou o germe no centro desse ovo? Mediante um poder<br />

misterioso, um ser <strong>da</strong> mesma <strong>na</strong>tureza dos pais vai mover-se<br />

neste fluido, o ovo incipiente vai sofrer a mais maravilhosa <strong>da</strong>s<br />

metamorfoses, vai viver! Completa<strong>da</strong> a transformação, surge<br />

uma ave! Assaz débil para expor-se fora, não se exterioriza e,<br />

enquanto aguar<strong>da</strong>, ei-la cerca<strong>da</strong> pela clara do ovo, que é precisamente<br />

o alimento que lhe convém até o <strong>na</strong>scimento.<br />

Assim, pouco a pouco, se forma inteiramente, asas e patas se<br />

desligam, a cabeça sobreleva o peito, só lhe resta deixar a prisão<br />

e para isso o bico se reveste de um esmalte, que cai logo depois<br />

do <strong>na</strong>scimento. Com o bico assim aparelhado, ele se põe a quebrar<br />

a casca do ovo, até que consegue pôr de fora a cabeça.<br />

Utiliza, então, as asas e acaba por libertar-se inteiramente.<br />

Pois bem: – que os adversários, em tudo isto se esfalfem por<br />

formular as mais vastas e intermináveis teorias, que acumulem<br />

hipóteses sobre hipóteses, que recusem chamar instinto aos atos<br />

do <strong>na</strong>scituro, como <strong>da</strong> ave que o engendrou; que embrulhem o<br />

assunto com explicações tortuosas, confusas, e nem por isso<br />

deixamos de aí ter um fato <strong>na</strong>tural, eloqüente <strong>na</strong> sua simplici<strong>da</strong>de<br />

e que eles, os adversários, não poderão derrocar. Aquele que<br />

criou o rouxinol e quis nos alegrasse ele com o seu canto vespertino,<br />

criou o mundo e houve por bem <strong>da</strong>r-lhe as leis <strong>da</strong> própria<br />

conservação. Não há idéia mais simples e majestosa, nem que<br />

mais satisfaça a nossa necessi<strong>da</strong>de de conhecimento. Negar as<br />

leis conservadoras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é negar to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>. A nós nos<br />

parece que para ir a tais extremos é preciso ser estólido ou vítima<br />

de aberração espiritual. A ver<strong>da</strong>deira Ciência está muito longe de<br />

tais negações! Seria, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, uma desgraça se o fruto <strong>da</strong><br />

sabedoria redun<strong>da</strong>sse em aniquilamento <strong>da</strong>s leis que regem o<br />

Universo e constituem a sua uni<strong>da</strong>de viva.


Porque, pois, em face de fatos tão irresistíveis quanto os do<br />

instinto animal, não confessar uma ver<strong>da</strong>de bela e tocante ao<br />

mesmo tempo? Será precisamente por bela e tocante que a<br />

recusam? Seríamos quase levados a supô-lo, pois nestas teorias<br />

materialistas, basta seja uma coisa agradável ao espírito para<br />

logo ser repeli<strong>da</strong>. Esta, contudo, não é uma razão assaz suficiente.<br />

Para nós, ao contrário, contemplamos a <strong>Natureza</strong> em todos os<br />

seus aspectos. A ver<strong>da</strong>de não pode deixar de ser bela e não é só<br />

Platão a pensar que o belo é o esplendor <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. A <strong>Natureza</strong><br />

é ver<strong>da</strong>deiramente bela. Longe de desviar os olhos sempre que<br />

encontramos uma forma expressiva <strong>da</strong> beleza eter<strong>na</strong>, admiramola<br />

e reconhecemo-la tão sinceramente quanto o fazemos a uma<br />

ver<strong>da</strong>de matemática. Não é a <strong>Natureza</strong> a nossa mãe? Onde já<br />

passamos horas mais deliciosas e instrutivas do que as vivi<strong>da</strong>s<br />

intimamente com ela, no seio <strong>da</strong>s matas silenciosas?<br />

Contemplai, <strong>na</strong> sua maravilhosa harmonia, a lei de continui<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> espécie huma<strong>na</strong>, procurai profun<strong>da</strong>r a ordem misteriosa<br />

que preside à nossa geração e crescimento. Que maior prova de<br />

habili<strong>da</strong>de pudera <strong>da</strong>r a <strong>Natureza</strong> ao envolver ca<strong>da</strong> sexo nessa<br />

atração indefinível, que o escraviza suavemente aos seus desígnios<br />

soberanos? Que sabedoria não nos testemunha ela, organizando,<br />

em bases rígi<strong>da</strong>s, a vi<strong>da</strong> oculta do ser em formação, que<br />

até o dia do <strong>na</strong>scimento se beneficia de uma existência inteiramente<br />

diversa <strong>da</strong> de todos os outros seres vivos? Que previdência<br />

não demonstra ao criar, para nutrição do tesouro oculto,<br />

órgãos diferentes dos que lhe haverão de servir <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> atmosférica<br />

e ao preparar para os primeiros dias a mais pura <strong>da</strong>s ambrosias?<br />

Perguntai às jovens mães quantos cui<strong>da</strong>dos requerem esses<br />

recém-<strong>na</strong>scidos fragílimos e trêmulos. E, contudo, a <strong>Natureza</strong><br />

ain<strong>da</strong> será a mais vigilante <strong>da</strong>s mães. Qual a afeição mais tenra, o<br />

amor mais carinhoso, o devotamento mais extremado, de mãe;<br />

qual a inteligência mais lúci<strong>da</strong>, a previdência mais sábia de um<br />

pai, que poderiam rivalizar com os cui<strong>da</strong>dos incessantes e universais<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, tão profusa, infatigável e prodigamente<br />

despendidos <strong>na</strong> proteção individual, ativa, a ca<strong>da</strong> um de seus<br />

filhos?


Sobre a previdência <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, poderíamos escrever grossos<br />

“in-fólios”. Poderíamos perguntar se é por acaso e sem<br />

objetivo que as espécies mais fracas e expostas à morte são<br />

precisamente as mais fecun<strong>da</strong>s, como sejam galináceos, perdizes,<br />

etc., pondo deze<strong>na</strong>s de ovos fecun<strong>da</strong>dos e deixando, ao fim de<br />

um ano, cente<strong>na</strong>s de rebentos, enquanto as aves de rapi<strong>na</strong>, condores,<br />

águias, etc., se apresentam, comparativamente, quase<br />

estéreis. Poderíamos, também, perguntar se é às cegas que a<br />

<strong>Natureza</strong> decora de encantos particulares os pequeninos seres<br />

sem força e sem amparo, despertando-nos interesse e atenção<br />

para essas cabecitas louras, que, priva<strong>da</strong>s de assistência, acabariam<br />

dormindo em seu berço um sono eterno. Poderíamos, ain<strong>da</strong>,<br />

invocar aqui o espetáculo integral <strong>da</strong> Criação vivente, mas,<br />

intimamente convencido <strong>da</strong> adesão dos leitores, neste particular,<br />

não insistiremos inutilmente.<br />

Parece-nos que esses eminentes trabalhadores fizeram entusiasmados<br />

o maior trecho do caminho e que, não possuindo vista<br />

telescópica capaz de distinguir o fim, esquecem que o progresso<br />

<strong>da</strong>s ciências tem ver<strong>da</strong>deiramente um fim e estacam, inertes,<br />

depois de provarem uma capaci<strong>da</strong>de ativa incontestável. Por<br />

terem verificado que as causas fi<strong>na</strong>is, imagi<strong>na</strong><strong>da</strong>s pela vai<strong>da</strong>de<br />

huma<strong>na</strong>, só lhe têm servido, há tantos séculos, de re<strong>da</strong>nça por<br />

embalar-se displicentemente; – depois de se haverem certificado<br />

que os deuses-escravos do orgulho, as criações <strong>da</strong> fantasia e as<br />

ilusórias teorias de um pensamento mesquinho mais não são que<br />

simulacros sem reali<strong>da</strong>de, sombras, fantasmas que um raio de luz<br />

<strong>da</strong>s ciências basta para diluir – concluíram não haver diretriz<br />

nem fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>na</strong> Criação. Porque o homem se enganou <strong>na</strong><br />

solução de um problema, decidiram eles que não há problema<br />

nem solução. Confundindo inexplicavelmente a ver<strong>da</strong>de com a<br />

noção do que nos é <strong>da</strong>do saber; confundindo, igualmente, a<br />

grandeza real de uma obra com a idéia que fazemos dela, tal<br />

como os teólogos <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média a confundirem a idéia religiosa,<br />

em si mesma, com a forma católica particularista, proclamam<br />

eles que a falsi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s nossas noções individuais acarretam a<br />

ruí<strong>na</strong> do próprio objeto dessas noções. Na ver<strong>da</strong>de, para espíritos<br />

habituados aos rigores do raciocínio; para homens sábios, que


parece procurarem com absoluto desinteresse a ver<strong>da</strong>de tão<br />

longamente dissimula<strong>da</strong>, dir-se-á que não provam, dessarte,<br />

excelência nem superiori<strong>da</strong>de de vistas. Antes, pelo contrário,<br />

evidenciam diretamente a estreiteza <strong>da</strong> esfera que habitam,<br />

dispostos a recusar-lhe qualquer ampliação, obsti<strong>na</strong>dos em lhe<br />

ve<strong>da</strong>r to<strong>da</strong> e qualquer luz, como se temessem que essa luz viesse<br />

espalhar reveladoras clari<strong>da</strong>des no horizonte e recuar, para muito<br />

além dos seus recursos, os limites do Universo.<br />

Nossos opug<strong>na</strong>dores pretendem fazer ciência quando declaram<br />

que a organização dos seres não justifica o ascendente de<br />

um desígnio <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. Em lugar de ciência, o que eles fazem<br />

é puro sistematismo, arbitrário, nisto como em tudo o mais.<br />

De fato: em que consista o método científico? Que será uma<br />

teoria em Astronomia, em Física, em Química? Observamos os<br />

fatos e quando possuímos um conjunto de observações suficientes<br />

procuramos religá-los mutuamente entre si, mediante uma lei.<br />

Vemos essa lei? Nunca, jamais. Adivinhamo-la pela discussão<br />

dos fatos e talvez a denomi<strong>na</strong>ção que lhe <strong>da</strong>mos não seja a que<br />

melhor convenha.<br />

Esta teoria, pela qual nosso espírito insaciável sente a necessi<strong>da</strong>de<br />

de explicar to<strong>da</strong>s as coisas, não é, antes de tudo, senão<br />

uma hipótese cujo valor consiste, principalmente, <strong>na</strong> satisfação<br />

que nos proporcio<strong>na</strong> a explicação <strong>na</strong>tural dos fatos estu<strong>da</strong>dos.<br />

Por muito tempo ela não passa de hipótese, inconsistente e<br />

frágil, que o mais leve sopro pode derrubar, para só elevar-se à<br />

ver<strong>da</strong>deira teoria quando suficientemente exami<strong>na</strong><strong>da</strong>, experimenta<strong>da</strong><br />

e sancio<strong>na</strong><strong>da</strong> pelo estudo. De outra forma, resvala para o<br />

campo <strong>da</strong>s erronias imaginárias.<br />

Vejamos, por exemplo, os movimentos dos corpos celestes.<br />

Notamos que eles descrevem elipses de que o Sol se constitui<br />

um dos focos; notamos que as superfícies percorri<strong>da</strong>s são proporcio<strong>na</strong>is<br />

aos tempos, e notamos que estes tempos de revolução,<br />

multiplicados por si mesmos, estão entre si como os grandes<br />

eixos multiplicados três vezes por si mesmos. Para explicar os<br />

movimentos <strong>da</strong> mecânica celeste, emite-se a hipótese de que os<br />

corpos se atraem <strong>na</strong> razão direta <strong>da</strong>s massas e inversa do quadra-


do <strong>da</strong>s distâncias. Enunciar esta hipótese, vale simplesmente por<br />

dizer que as coisas se passam como se os astros se atraíssem.<br />

Depois, explicando essa hipótese, perfeitamente, todos os fatos<br />

observados e <strong>da</strong>ndo conta de to<strong>da</strong>s as circunstâncias do problema,<br />

tor<strong>na</strong>-se ela uma teoria.<br />

Enfim, achando-se esta lei universalmente demonstra<strong>da</strong>, tanto<br />

pelo balanço <strong>da</strong>s estrelas gêmeas, <strong>na</strong> profundeza dos céus, como<br />

pela que<strong>da</strong> de uma maçã <strong>na</strong> superfície <strong>da</strong> Terra, afirma-se que a<br />

lei chama<strong>da</strong> gravitação representa, de fato, a força reguladora<br />

dos mundos.<br />

Idêntico é o processo que empregamos ao declarar que os organismos<br />

vivos são construídos como se a causa, fosse ela qual<br />

fosse, que as condicionou teria tido em vista uma desti<strong>na</strong>ção dos<br />

órgãos em relação à vi<strong>da</strong> peculiar de ca<strong>da</strong> ser, tanto quanto à<br />

existência global de todos os seres em conjunto.<br />

As ver<strong>da</strong>deiras causas fi<strong>na</strong>is são, portanto, um resultado <strong>da</strong><br />

observação científica, O método é o mesmo e, como bem o disse<br />

Flourens, é preciso partir não <strong>da</strong>s causas fi<strong>na</strong>is para os fatos, mas<br />

destes para aquelas. Induzir do conhecido para o desconhecido,<br />

eis o único método positivo. Ora, o resultado deste método, seja<br />

ele qual for, merece ser proclamado como científico. Pode<br />

suceder que a revelação de um plano e de uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>na</strong><br />

<strong>Natureza</strong> não agrade a Fulano ou Beltrano, mas isso pouco<br />

importa. Fulano e Beltrano estão no mais falso dos erros quando<br />

nos acusam de não proceder de acordo com a Ciência experimental<br />

e incidem <strong>na</strong> mais fatal <strong>da</strong>s ilusões quando imagi<strong>na</strong>m<br />

proceder de acordo com essa ciência. Trocam, assim, os papéis<br />

pró-domo sua, como freqüentemente acontece.<br />

A ver<strong>da</strong>de, porém, despreza-lhes as tendências e fica i<strong>na</strong>lteravelmente<br />

idêntica, sem se preocupar com os prismas através<br />

dos quais a encaram olhos interessados em vê-la abaixo <strong>da</strong> sua<br />

posição real.<br />

Esquisitice inexplicável em homens judiciosos, pretenderem<br />

que, admitindo a existência de <strong>Deus</strong>, sejamos obrigados a admitir<br />

o arbítrio <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, como se a vontade suprema não fosse<br />

necessária, infinitamente sábia e, por conseqüência, universal-


mente regular. “Os que só vêem em todos os movimentos <strong>da</strong><br />

<strong>Natureza</strong> os meios de atingir um fim – diz Moleschott – chegam<br />

mui logicamente à noção de uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de que, num tal<br />

propósito, confere à matéria as suas proprie<strong>da</strong>des. Esta perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />

também desig<strong>na</strong>rá o fim.<br />

“Se assim é, se uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de desig<strong>na</strong> os fins e escolhe<br />

os meios, a lei de necessi<strong>da</strong>de desaparece <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Ca<strong>da</strong><br />

fenômeno se tor<strong>na</strong> partilha de um jogo do acaso e de um arbítrio<br />

sem fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de.”<br />

J. B. Biot afigura-se-nos mais bem inspirado quando assim<br />

conclui o exame <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>: 115 “Por mim, quanto mais considero<br />

a harmonia, a imensi<strong>da</strong>de do Universo e as maravilhas <strong>da</strong><br />

Criação, tanto mais admiro esse concerto maravilhoso e menos<br />

apto me julgo para explicá-lo. Ousarei dizer, mesmo por havê-lo<br />

experimentado, que essas explicações imperfeitas, esses vagos<br />

ou falsos relatórios, que alguns modernos escritores querem<br />

inculcar como harmonias sublimes, nunca nos pareceram mais<br />

temerários e fúteis do que quando defrontamos a <strong>Natureza</strong>.<br />

Quando se há tido a ventura de conhecer e sentir as ver<strong>da</strong>deiras<br />

belezas que ela ostenta, somos tentados a conceituar, como<br />

profa<strong>na</strong>dores e ímpios, quantos a desfiguram com indignos<br />

disfarces. Assim é que todos os seres organizados tiveram seus<br />

meios próprios de vi<strong>da</strong>, tão numerosos e tão multiplicados <strong>na</strong><br />

variação do mecanismo, quanto as estrelas do céu.<br />

“E note-se que isto é o que percebemos exteriormente, pois o<br />

mais maravilhoso nos fica oculto. Quem, jamais, pôde compreender<br />

a ação química <strong>da</strong>s membra<strong>na</strong>s vivas, a causa dos movimentos<br />

voluntários e involuntários – que digo eu? – o vôo <strong>da</strong><br />

mosca, os torneios <strong>da</strong> borboleta? Quando nossa inteligência mal<br />

pode atingir o conhecimento <strong>da</strong>s disposições exteriores do organismo<br />

e mal pode apreender as relações entre si de alguma <strong>da</strong>s<br />

peças que o compõem, seria, parece-nos, ilógico não ver no<br />

âmago desse conjunto o princípio inteligente, como o orde<strong>na</strong>dor<br />

e regulador de tudo. Por mim quero, ao menos, possuir a filosofia<br />

<strong>da</strong> minha ignorância.”<br />

A ordem verifica<strong>da</strong> nos fatos não produzidos pelo homem –<br />

advertiremos ain<strong>da</strong> com ilustre escritor 116 – mostra-nos que as


correlações apresenta<strong>da</strong>s pelo mundo material resultam de ações<br />

e reações que, combi<strong>na</strong><strong>da</strong>s, regem-se por leis. Pela experiência<br />

contínua <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sabemos que sempre as correlações, as harmonias,<br />

as leis, são obra de uma inteligência cujo poder é proporcio<strong>na</strong>do<br />

à extensão dos fatos e <strong>da</strong>s harmonias coorde<strong>na</strong><strong>da</strong>s. Temos<br />

assim, por evidente, que o Universo é gover<strong>na</strong>do por uma inteligência.<br />

Estas correlações e estas harmonias estão em correspondência<br />

com as proprie<strong>da</strong>des intrínsecas <strong>da</strong> matéria e a elas se<br />

ligam de tal sorte que deixariam de existir se essas proprie<strong>da</strong>des<br />

substanciais fossem outras. Daí concluímos que a matéria com as<br />

suas proprie<strong>da</strong>des intrínsecas é também obra <strong>da</strong> Inteligência, que<br />

lhe estabeleceu as leis. O bom senso decreta, imperiosamente, e<br />

no que pesem às alegações contrárias, que não podemos atribuir<br />

a uma circunstância molecular, fortuita, a atração, a eletrici<strong>da</strong>de,<br />

o calor, a composição do ar, fatos cósmicos perfeitamente apropriados<br />

à vegetação <strong>da</strong>s plantas, à vi<strong>da</strong> animal, pela mesma razão<br />

que ninguém admitiria pudessem milhares de tipos de impressão,<br />

espalhados ao acaso, produzir a ilía<strong>da</strong> ou a Jerusalém Liberta<strong>da</strong>.<br />

Se, para fugir a conclusões lógicas, nos dissessem que essas<br />

quali<strong>da</strong>des são efeitos inerentes, nem por isso elidiriam a necessi<strong>da</strong>de<br />

lógica de uma intervenção suprema e inteligente.<br />

Juntemos a esta imagem um aforismo pouco discutível: todo<br />

fim supõe uma intenção, to<strong>da</strong> intenção uma consciência e to<strong>da</strong><br />

consciência uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de.<br />

O problema <strong>da</strong>s causas fi<strong>na</strong>is, repitamo-lo, é de solução mais<br />

difícil e complica<strong>da</strong> do que se prefigura a muitos imagi<strong>na</strong>tivos<br />

apressados. Ele se traduz, como diriam os antepassados, antes<br />

em potencial do que em ato. Os fatos gerais o decidem e os<br />

particulares o dificultam. Para bem o apreender, importa ao<br />

espírito adstringir-se a um exame severo e, de um golpe de vista,<br />

abranger, senão a totali<strong>da</strong>de, pelo menos a maioria <strong>da</strong>s coisas<br />

conheci<strong>da</strong>s, sob o duplo aspecto do tempo e do espaço.<br />

O primeiro efeito desse rigoroso estudo crítico é, precisamente,<br />

afastá-lo de to<strong>da</strong> crença e resguardá-lo dessas mesquinhas<br />

interpretações huma<strong>na</strong>s, que levam a criatura a referir tudo a si<br />

mesma, como eixo central <strong>da</strong> Criação.


Assim procedendo, poderemos, então, rir <strong>da</strong>s ilusões, vai<strong>da</strong>des<br />

e tentativas insensatas do orgulho humano. Esse, o primeiro<br />

resultado do estudo geral dos seres.<br />

Mas, quando prosseguimos investigando, até perceber as forças<br />

íntimas que sustentam ca<strong>da</strong> ser criado, até descobrirmos as<br />

leis universais que regem simultaneamente o edifício total e ca<strong>da</strong><br />

uma <strong>da</strong>s partes desse imenso edifício, então distinguiremos as<br />

linhas de um plano geral, perceberemos, aqui e ali, os elos de<br />

soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de que entrosam num só desígnio os corpos mais<br />

distantes, reconheceremos a uni<strong>da</strong>de do pensamento que presidiu<br />

– ou melhor – que preside eter<strong>na</strong>mente o condicio<strong>na</strong>do universal<br />

e gover<strong>na</strong>, <strong>na</strong> rota do infinito, o carro imensurável <strong>da</strong> Criação.<br />

Enfim, acostumando-nos a essas contemplações essenciais,<br />

também chegaremos a concluir que esta noção <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de<br />

ain<strong>da</strong> é muito huma<strong>na</strong> para que seja ver<strong>da</strong>deira e que essa força<br />

que sustenta o mundo, essa potência que lhe dá vi<strong>da</strong>, essa sabedoria<br />

que o dirige, essa vontade que o impele eter<strong>na</strong>mente para<br />

uma perfeição i<strong>na</strong>cessível, essa uni<strong>da</strong>de de pensamento que se<br />

revela sob as formas transitórias <strong>da</strong> matéria, não são uma força,<br />

um poder, uma sabedoria e uma vontade huma<strong>na</strong>s, mas atributos<br />

inerentes a um ser inominável, incompreensível, incognoscível,<br />

de cuja <strong>na</strong>tureza <strong>na</strong><strong>da</strong> podemos razoar e cujo conhecimento é<br />

para nós cientificamente i<strong>na</strong>bordável.<br />

Este resultado fi<strong>na</strong>l <strong>da</strong>s investigações positivas explica porque<br />

e como, nesta discussão, se afigura que estendemos a mão<br />

esquer<strong>da</strong> a Berlim e a direita a Roma. A quem no-lo objete,<br />

responderemos que se não trata aqui senão de um fato geográfico,<br />

resultante do nosso pendor para visualizar sempre o Oriente.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, esta atitude nos granjeia o qualificativo de herético,<br />

conferido pelos doutores que se repoltreiam em sua cátedra<br />

secular, mesmo porque, seus olhos modorrentos vêm de há muito<br />

preferindo a suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s meias tintas crepusculares aos flamíneos<br />

raios aurorescentes.<br />

A leal<strong>da</strong>de, porém, obriga-nos a proclamar que o exagero<br />

dogmático é tão falso como o cepticismo e que a trilha do pensador<br />

oscila eqüidistante desses extremos. Sim, oscila... Os que se<br />

presumem mais firmes nesse terreno são os que mais próximo


estão <strong>da</strong> que<strong>da</strong>. Para o homem que estu<strong>da</strong>, <strong>na</strong><strong>da</strong> há definitivo<br />

neste mundo. Quanto mais progride a Ciência, mais o homem<br />

percebe a sua ignorância.<br />

To<strong>da</strong>via, parar é morrer. Caminhar, mesmo contramarchando<br />

às vezes, é realizar o fim mais nobre <strong>da</strong> existência.<br />

Em Filosofia, como em Mecânica, o equilíbrio não passa, jamais,<br />

de um equilíbrio instável.<br />

Na sua tendência para tudo referir à sua pessoa como centro<br />

exclusivo, o homem restringe os fatos e as idéias. Vimos que a<br />

sua teoria <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de é disso um exemplo e dos mais famosos.<br />

Quando se pretende que os frangos foram feitos para o<br />

espeto, não deixa de haver um tanto de perso<strong>na</strong>lismo <strong>na</strong> afirmação.<br />

Pode-se dizer, é ver<strong>da</strong>de – de vez que o homem é onívoro e<br />

que sua constituição orgânica exige alimentação mista – que os<br />

animais e plantas de que se nutre desti<strong>na</strong>m-se, efetivamente, a<br />

lhe prover a existência e que, sem eles, a espécie huma<strong>na</strong> logo se<br />

extinguiria. Descer, porém, a minúcias particulares e afirmar que<br />

as perdizes fossem cria<strong>da</strong>s para combi<strong>na</strong>r com os temperos <strong>da</strong><br />

culinária de Vatel; dizer que os bovinos foram principalmente<br />

desti<strong>na</strong>dos ao caldo gordo, ao bife com batatas, etc.; que os<br />

quartos do carneiro e assados de vitela correspondem à fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />

originária <strong>da</strong>s espécies ovi<strong>na</strong> e bovi<strong>na</strong>; que os feijões para<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> prestariam se não fossem temperados e que as ameixas só<br />

foram doura<strong>da</strong>s pelo Sol para serem saborea<strong>da</strong>s frescas ou em<br />

compota, e assim por diante, é incidir no vulgar; é esquecer o<br />

sistema geral <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e acreditar que só o homem vive no<br />

Universo.<br />

Assim, vamos termi<strong>na</strong>r, lembrando nossa proposição, que é<br />

substituir a idéia de causali<strong>da</strong>de particular pela idéia de plano<br />

geral.<br />

Não tomamos posição pró nem contra a teoria <strong>da</strong> transformação<br />

<strong>da</strong>s espécies; ape<strong>na</strong>s concluímos que sem o princípio <strong>da</strong><br />

desti<strong>na</strong>ção dos seres e dos astros é impossível algo explicar,<br />

desde a a<strong>na</strong>tomia à mecânica celeste; nenhuma causa exterior,<br />

nenhuma influência mesológica se isenta dessa grande lei. A<br />

teoria <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural substitui, simplesmente, a intervenção


miraculosa <strong>da</strong> causa criadora para ca<strong>da</strong> espécie, por uma lei<br />

inteligente, universal.<br />

Ela deixa <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> o pensamento organizador do mundo<br />

sensível ao começo, ao meio como ao fim <strong>da</strong>s coisas.<br />

Esta concepção do desenvolvimento do mundo, mais positiva<br />

e científica, não se baseia no casual nem no arbitrário. Apresenta<br />

o Universo como uni<strong>da</strong>de viva, cuja existência se desenvolve e<br />

se eleva eter<strong>na</strong>mente a um ideal i<strong>na</strong>cessível, de conformi<strong>da</strong>de<br />

com a idéia primordial. Origem e fim coexistem, simultaneamente,<br />

no atual. Do inorgânico ao orgânico, do orgânico ao vivente e<br />

do ser vivente ao inteligente há um ciclo, uma circulação material<br />

e uma ascensão intelectual, obedientes a uma razão domi<strong>na</strong>dora.<br />

O mundo não é um jogo de disparates, é um poema no seio do<br />

qual não passamos de humilíssimos comparsas e cujo autor<br />

invisível nos envolve <strong>na</strong> sua radiação imensa, como a esses grãos<br />

de poeira que vemos flutuar numa réstia de sol.<br />

Ousemos confessá-lo! O destino integral, absoluto, dos seres<br />

é problema insolúvel <strong>na</strong> atuali<strong>da</strong>de. É um problema que se abre<br />

insensivelmente como um abismo, quando procuramos son<strong>da</strong>rlhe<br />

as profundezas... Uma noite, em Paris, antes do pôr-do-sol,<br />

contemplava eu o Se<strong>na</strong>, debruçado à ponte do Instituto, de onde<br />

o panorama se apresenta às vezes maravilhoso. O horizonte<br />

purpurizado derramava uma luz rósea <strong>na</strong>s encarneira<strong>da</strong>s nuvens<br />

que se espalhavam pelo céu azul e essa luz, banhando a atmosfera<br />

<strong>da</strong> grande urbs, <strong>da</strong>va um aspecto mágico aos edifícios silenciosos.<br />

O rio, qual enorme rubi, rolava morosamente para Oeste,<br />

sumindo-se no indeciso <strong>da</strong> distância, onde se casavam a luz e a<br />

sombra. À minha esquer<strong>da</strong>, o zimbório sombrio cinzentava o<br />

casario e, além, duas fechas góticas espetavam o céu. À minha<br />

direita, as janelas do Louvre, reverberando uma ilumi<strong>na</strong>ção<br />

feérica, emprestavam ao velho edifício desmesura<strong>da</strong> extensão. O<br />

bosque escuro <strong>da</strong>s Tulherias e as alturas vaporosas de uma coli<strong>na</strong><br />

além prolongavam a perspectiva até às brumas do horizonte. Este<br />

panorama apresentava-se-me com duplo sentido: – era a idéia<br />

grandiosa <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> pairando sobre a massa de uma grande<br />

ci<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>. Pouco a pouco, sentia-me identificado com esse<br />

espetáculo de uma existência simultânea <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>-


de, existência permanente e, contudo, velha, mas cujo contraste<br />

não me houvera tocado ain<strong>da</strong>, tão vivamente. E contemplando<br />

esse duplo espetáculo, acompanhava os movimentos reais,<br />

quanto os aparentes, <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. O Sol descia, lento, atrás <strong>da</strong>s<br />

coli<strong>na</strong>s; as nuvens se coloriam de um matiz mais róseo, o rio<br />

deslizava docemente para o mar distante; o ar refrescado agitavase<br />

brando, como um ritmo respiratório. Esse movimento geral<br />

impressio<strong>na</strong>va-me, por isso que o imagi<strong>na</strong>va extensivo a to<strong>da</strong> a<br />

<strong>Natureza</strong>, e como que me desven<strong>da</strong>va a circulação total <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

planetária. Mas o motivo predomi<strong>na</strong>nte <strong>da</strong> minha atenção era a<br />

idéia de que todo esse movimento se completava, como se o<br />

homem ali não estivesse.<br />

Em pleno centro de Paris, o homem afigurou-se-me um cifrão<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Os transeuntes que por mim passavam, ali, <strong>na</strong>quela<br />

mesma ponte, não admirariam, certamente, aquele magnífico<br />

pôr-do-sol. Os homens de negócios pervagavam absortos nos<br />

seus cálculos. Os dois milhões de almas que formigam a dentro<br />

<strong>da</strong> cinta fortifica<strong>da</strong> não me pareciam mais que um turbilhão<br />

efêmero neste setor do nosso globo. E eu dizia de mim para<br />

mim: eis que assim vai a Terra girando em torno <strong>da</strong> sua órbita e<br />

apresentando ca<strong>da</strong> país, por sua vez, à fecun<strong>da</strong>ção solar; as<br />

nuvens percorrem a atmosfera, as plantas obedecem ao ciclo <strong>da</strong>s<br />

estações; os rios correm para o mar, dias e noites se alter<strong>na</strong>m, a<br />

harmonia terre<strong>na</strong> segue o seu curso regular, perpétuo... Mas,<br />

porque tudo isso? Os insetos com suas mandíbulas estrafegam<br />

pétalas, os passarinhos devoram os insetos, o gavião devora os<br />

passarinhos, ruge o leão nos desertos, baleias caçam <strong>na</strong> amplidão<br />

dos mares... Porque e para que? Fontes límpi<strong>da</strong>s ostentam, <strong>na</strong><br />

solidão <strong>da</strong>s matas, espelhos translúcidos em molduras de pervincas;<br />

regatos múrmuros despenham-se <strong>da</strong>s coli<strong>na</strong>s, ribeiros prateados<br />

misturam-se com os grandes rios para caírem nos abismos<br />

oceânicos e aí perderem a existência e o nome; ricas florações<br />

repontam e morrem no fundo tenebroso dos mares, ape<strong>na</strong>s<br />

visitados por madréporas e corais, e, sob a atração celeste, o<br />

fluxo e refluxo dos mares desloca, de continentes a continentes, a<br />

massa líqui<strong>da</strong> e formidável.


Mas... que utili<strong>da</strong>de haverá em tudo isso? Essa vastíssima <strong>Natureza</strong><br />

caminha impassível, mecanismo colossal, as coisas se<br />

renovam sem tréguas, o próprio homem não passa de átomo<br />

efêmero, que surge e funde-se num relâmpago. Deste universo<br />

imenso, o homem quase <strong>na</strong><strong>da</strong> conhece, posto suponha conhecer<br />

tudo, e, de resto, empregando o tempo noutras cogitações. Antes<br />

que surgisse o homem, já essas mesmas harmonias vibravam<br />

como ao presente. Para que ouvidos, porém? Tudo existia antes<br />

dele e quiçá sem ele. Tudo existirá depois dele! Porque existe,<br />

aqui, esta Criação? Porque, son<strong>da</strong>ndo-lhe a profundeza, não<br />

posso eu idealizar qualquer resposta? Porque haveria <strong>Deus</strong><br />

criado a Terra e a multidão infinita de outros mundos? E porque,<br />

vendo a inquietude <strong>da</strong> minha alma, deixa-a debater-se no abismo<br />

<strong>da</strong> ignorância, como se não conhecesse Ele, o Criador, esse<br />

pensamento, qual o do grão de areia levado pelo vento, ou <strong>da</strong><br />

gotícula d'água deste rio que aqui resvala, a meus pés? Porque e<br />

para que serve tudo isto? Que importará a <strong>Deus</strong> haja um, milhões,<br />

ou nem um mundo? Qual a fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de desta obra? Ain<strong>da</strong><br />

uma vez porque, ó <strong>Deus</strong>!, existe a Criação? E, contudo, este<br />

conjunto formidável tem uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. Este véu oculta um<br />

problema grandioso, que nos envolve e aniquila. Nesse dia,<br />

retirei-me silencioso, olhos cerrados, em <strong>na</strong><strong>da</strong> mais atentando.<br />

Desaparecera o Sol, o Se<strong>na</strong> prosseguiu em seu curso, o manto <strong>da</strong><br />

noite envolveu a ci<strong>da</strong>de e logo entrei a ouvir o barulho ambiente.<br />

Mais tarde, muitas vezes, fui assaltado por essas mesmas reflexões,<br />

muitas vezes me vi constrangido a repetir a pergunta<br />

irretorquível – porque existe o mundo? E sempre o silêncio e o<br />

vácuo por única resposta!<br />

Pois quê! Sempre que tentava uma resposta, questão mais<br />

grave se me impunha, conseqüente. Acompanhando esse movimento<br />

impassível <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, minha alma por vezes se emancipou<br />

do tempo para interrogar-se onde estaria <strong>da</strong>qui a cem anos e,<br />

prosseguindo avante, imaginou, aterra<strong>da</strong>, o que poderia aguardála<br />

num milênio. Perpetuando o seu tesouro, viu que poderia viver<br />

ain<strong>da</strong> cem mil anos e perguntou o que seria nessa época.<br />

Sonhando mais longe o abismo, lá se foi ela, infatigável, por<br />

beirar um milhão de anos, de séculos! E além dessas lindes,


desses pontos já i<strong>na</strong>cessíveis ao pensamento, ei-la a imagi<strong>na</strong>r<br />

nova linha de igual extensão; depois, uma segun<strong>da</strong>, terceira,<br />

quarta, décima, centésima, milésima... Já <strong>na</strong> eterni<strong>da</strong>de, então,<br />

percebeu que o tempo não existe e que a eterni<strong>da</strong>de é imóvel...<br />

Devo dizer que, por vezes, este último pensamento se tor<strong>na</strong>va tão<br />

aterrador, diante do inexorável destino, que me aniquilava a<br />

noção de perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, como se esse quadro insustentável nos<br />

convi<strong>da</strong>sse a esperar o repouso <strong>na</strong> morte ou como se essa contemplação,<br />

muito vasta para o cérebro humano, o houvesse<br />

espe<strong>da</strong>çado e suprimido do número dos cérebros inteligentes.<br />

Talvez não me assista o direito de assim vos entreter com as<br />

minhas impressões pessoais. No fundo, porém, não se trata aqui<br />

de um caso pessoal, mas de um estudo análogo ao do a<strong>na</strong>tomista<br />

que son<strong>da</strong> profun<strong>da</strong>mente uma chaga desconheci<strong>da</strong>. Se o astrônomo<br />

se baseia em observações pessoais para fixar o seu sistema;<br />

se o químico fala pelo testemunho <strong>da</strong>s suas retortas e análises<br />

particulares; se o físico exami<strong>na</strong> a <strong>Natureza</strong> com seus próprios<br />

olhos, <strong>na</strong>tural se tor<strong>na</strong> que o pensador, a exemplo deles,<br />

conte o resultado de suas elucubrações e confie, eventualmente,<br />

aos que o ouvem, as inquietações e labores do seu espírito. No<br />

mínimo, há nisto um ato de sinceri<strong>da</strong>de e o penhor de uma<br />

opinião, independente de qualquer sectarismo.<br />

Sim! O vasto problema <strong>da</strong> desti<strong>na</strong>ção dos seres e coisas envolve-nos<br />

<strong>na</strong> sua profundeza, sem que o possamos julgar nem<br />

resolver. Ele nos arrasta, quais infusórios microscópicos, perdidos<br />

no bojo dos oceanos, a procurarem compreender e explicar o<br />

fluxo e refluxo <strong>da</strong>s águas.


Quinta Parte<br />

<strong>Deus</strong><br />

SUMÁRIO – <strong>Deus</strong> <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, força viva e pessoal, causa dos<br />

movimentos atômicos, lei dos fenômenos, orde<strong>na</strong>dor <strong>da</strong> harmonia,<br />

virtude e sustentáculo do mundo. – O homem criando <strong>Deus</strong> à<br />

sua imagem. – Erro antropomórfico. – O filósofo grego Zenófanes<br />

há 2400 anos. – A <strong>na</strong>tureza de <strong>Deus</strong> é incognoscível. – Nenhum<br />

sistema humano poderá defini-la. – Diferentes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> idéia de <strong>Deus</strong>, segundo os homens. – Últimas perspectivas<br />

doutrinárias. – Conclusão geral. – Epílogo.<br />

O prisma através do qual nos permitimos concluir a nossa<br />

demonstração geral é antes síntese que peroração; e se é ver<strong>da</strong>de<br />

que a Ciência e a Poesia estão intimamente associa<strong>da</strong>s <strong>na</strong> contemplação<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, não podemos, judiciosamente, impedir o<br />

sentimento poético de se manifestar nestas últimas impressões<br />

que o panorama do mundo nos sugere.<br />

Ape<strong>na</strong>s, necessário fora nos consagrássemos agora a um estudo<br />

especial <strong>da</strong> causa divi<strong>na</strong>, visto que por essa causa temos<br />

combatido de início, neste longo arrazoado, e to<strong>da</strong>s as conclusões<br />

atingiram esse alvo supremo. Contudo, vale enfechá-las<br />

numa conclusão geral. Assim como o <strong>na</strong>turalista, o botânico, o<br />

geômetra, o lavrador, o operário ou o poeta, depois de exami<strong>na</strong>r<br />

as particulari<strong>da</strong>des de uma paisagem e galgar a coli<strong>na</strong> de cujo<br />

cimo se abrange os pontos estu<strong>da</strong>dos, volta-se por contemplar de<br />

conjunto a distribuição, o plano e a beleza do panorama, assim<br />

também, após o estudo particularizado <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> matéria e <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, apraz-nos a ele voltar e calmamente admirá-lo.<br />

Aos olhos <strong>da</strong> alma apraz embevecer-se <strong>na</strong> radiação celeste,<br />

que inun<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>. Aqui, já não é a discussão, mas a<br />

contemplação recolhi<strong>da</strong> <strong>da</strong> luz e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> resplandecentes <strong>na</strong><br />

atmosfera, que brilham no cromatismo <strong>da</strong>s flores e refulgem nos<br />

seus matizes; que circulam <strong>na</strong> folhagem dos bosques e envolvem<br />

num beijo universal os inumeráveis seres palpitantes no seio <strong>da</strong><br />

<strong>Natureza</strong>. Depois <strong>da</strong> potência, <strong>da</strong> sabedoria, <strong>da</strong> inteligência, é a<br />

bon<strong>da</strong>de inefável o que se faz sentir; é a universal ternura de um


ser misterioso sempre, fazendo sucederem-se <strong>na</strong> superfície do<br />

globo as formas inumeráveis de uma vi<strong>da</strong> que se perpetua por<br />

amor e que jamais se extingue.<br />

A correlação <strong>da</strong>s forças físicas nos mostrou a uni<strong>da</strong>de de<br />

<strong>Deus</strong>, sob to<strong>da</strong>s as formas transitórias do movimento. Pela<br />

síntese, o espírito se eleva à noção de uma lei única – lei e força<br />

universais, que valem por expressão ativa do pensamento divino.<br />

Luz, calor, eletrici<strong>da</strong>de, magnetismo, atração, afini<strong>da</strong>de, vi<strong>da</strong><br />

vegetal, instinto, inteligência, tudo deriva de <strong>Deus</strong>. O sentimento<br />

do belo, a estesia <strong>da</strong>s ciências, a harmonia matemática, a geometria,<br />

ilumi<strong>na</strong>m essas forças múltiplas e lhes dão o perfume do<br />

ideal. Seja qual for o prisma pelo qual o pensador observe a<br />

<strong>Natureza</strong>, encontra uma trilha conducente a <strong>Deus</strong> – força viva,<br />

cujas palpitações, através de to<strong>da</strong>s as formas, ele as sentirá no<br />

estremecer <strong>da</strong> sensitiva, como no canto mati<strong>na</strong>l dos passarinhos.<br />

Tudo é número, correspondência, harmonia, relação de uma<br />

causa inteligente, agindo universal e eter<strong>na</strong>mente.<br />

<strong>Deus</strong> não é, pois, como dizia Lutero, “um quadro vazio, sem<br />

outra inscrição além <strong>da</strong> que lhe apomos”. <strong>Deus</strong> é, ao contrário, a<br />

força inteligente, universal e invisível, que constrói sem cessar a<br />

obra <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. É sentindo-lhe a presença eter<strong>na</strong> que compreendemos<br />

as palavras de Leibnitz: “há metafísica, geometria e<br />

moral por to<strong>da</strong> a parte”, bem como o velho aforismo de Platão,<br />

que poderemos assim traduzir: <strong>Deus</strong> é o geômetra que opera<br />

eter<strong>na</strong>mente.<br />

É fora dos tumultos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de mun<strong>da</strong><strong>na</strong>, no silêncio <strong>da</strong>s<br />

profun<strong>da</strong>s meditações, que a alma pode rever-se, em face <strong>da</strong><br />

glória do invisível, manifesta<strong>da</strong> pelo visível.<br />

É nessa visualização <strong>da</strong> presença de <strong>Deus</strong> <strong>na</strong> Terra que a alma<br />

se eleva à noção do ver<strong>da</strong>deiro 117 . O ruído longínquo do oceano,<br />

a paisagem solitária, as águas cujos murmúrios valem sorrisos, o<br />

sono <strong>da</strong>s florestas entrecortado de anseios suspirosos, a altivez<br />

impassível <strong>da</strong>s montanhas, tudo abrangendo de alto, são manifestações<br />

sensíveis <strong>da</strong> força que vela no âmago de to<strong>da</strong>s as coisas.<br />

Abandonei-me, algumas vezes, a contemplar-vos, ó esplendores<br />

vividos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, e sempre vos senti envoltos e banhados de


inefável poesia! Quando meu espírito se deixava seduzir pela<br />

magia <strong>da</strong> vossa beleza, ouvia acordes desconhecidos escapandose<br />

do vosso concerto.<br />

Sombras notur<strong>na</strong>s que flutuais pela encosta <strong>da</strong>s montanhas,<br />

perfumes que baixais <strong>da</strong>s florestas, flores pendi<strong>da</strong>s que cerrais os<br />

lábios, surdos rumores oceânicos que nunca vos calais, calmarias<br />

profun<strong>da</strong>s de noites estrela<strong>da</strong>s, tendes-me falado de <strong>Deus</strong>, certo,<br />

com eloqüência mais íntima e mais empolgante que todos os<br />

livros humanos! Em vós encontrei ternuras mater<strong>na</strong>is, blandícias<br />

de inocência, e sempre que me deixava adormecer no vosso<br />

regaço despertava alegre e venturoso. Coloridos de esplêndidos<br />

crepúsculos, deslumbramentos de clarores moribundos, visões de<br />

sítios ermos, que deliciosos momentos de ebrie<strong>da</strong>de não concedeis<br />

aos que vos amam! O lírio desabrocha e bebe, em êxtase, a<br />

luz que derrama dos céus! Nessas horas contemplativas, a alma<br />

transforma-se em flor, aspirando, ávi<strong>da</strong>, as irradiações celestes.<br />

A atmosfera já não é, tão somente, uma mistura de gases; as<br />

plantas deixam de ser simples agregados atômicos de carbono ou<br />

hidrogênio; os perfumes não se reduzem a moléculas impalpáveis<br />

e só derramados à noite, para resguar<strong>da</strong>r as flores <strong>da</strong> friagem;<br />

a brisa embalsama<strong>da</strong> significa algo mais que uma simples<br />

corrente de ar; as nuvens não representam ape<strong>na</strong>s vesículas de<br />

aquoso vapor; a <strong>Natureza</strong> não se oferece exclusivamente qual<br />

laboratório de química, ou gabinete de física... Antes, pelo<br />

contrário, pressentimos em tudo uma lei de harmonia sobera<strong>na</strong>,<br />

que gover<strong>na</strong> a marcha simultânea de to<strong>da</strong>s as coisas, que cerca os<br />

mais íntimos seres de uma vigilância instintiva, que guar<strong>da</strong><br />

ciosamente o tesouro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em plenitude de pujança e que, por<br />

seu perpétuo rejuvenescimento, desdobra em potência imutável a<br />

fecundi<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong>. Em to<strong>da</strong> esta <strong>Natureza</strong> há uma espécie de<br />

beleza universal, que a nossa alma respira e identifica, como se<br />

essa beleza ideal pertencesse unicamente ao domicílio <strong>da</strong> inteligência.<br />

Vésper que antecedes a noite! carro do Setentrião! Magnificências<br />

estelares! Misteriosas perspectivas de abismo insondável!<br />

Que olhar, apercebido de vossas munificências, poderia


fitar-vos indiferente? Quantos olhares sonhadores se têm perdido<br />

nos vossos desertos, ó solidões do espaço!<br />

Quantos ansiosos pensamentos têm viajado de ilha em ilha,<br />

no vosso luminoso arquipélago! E <strong>na</strong>s horas <strong>da</strong> sau<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />

melancolia, quantas pupilas molha<strong>da</strong>s têm baixado sobre os<br />

olhos fitos numa estrela predileta!<br />

É que a <strong>Natureza</strong> tem nos lábios palavras doces, no olhar tesouros<br />

de amor e no coração sentimentos afetivos de uma preciosi<strong>da</strong>de<br />

esquisita, e isso porque ela, a <strong>Natureza</strong>, não consiste<br />

somente numa organização corporal, mas também tem alma e<br />

vi<strong>da</strong>. Quem quer que só a tenha entrevisto no seu aspecto material<br />

ape<strong>na</strong>s lhe conhece a metade. A beleza íntima <strong>da</strong>s coisas é tão<br />

ver<strong>da</strong>deira e positiva como a sua composição química. A harmonia<br />

do mundo não é menos dig<strong>na</strong> de apreço do que o seu movimento<br />

mecânico. A direção inteligente do Universo deve ser<br />

constata<strong>da</strong> ao mesmo título <strong>da</strong>s fórmulas matemáticas. Obsti<strong>na</strong>rse<br />

em só considerar a criatura com os olhos do corpo e jamais<br />

com os do espírito é parar voluntariamente à superfície. Bem<br />

sabemos que os adversários vão objetar-nos que o espírito não<br />

tem olhos, que é um cego de <strong>na</strong>scença e que to<strong>da</strong> afirmativa, não<br />

originária dos órgãos visuais, perde todo o valor. Mas, isto<br />

também não passa de um conceito arbitrário e, ao demais, infun<strong>da</strong>do.<br />

Temos visto que é possível, de boa fé, pôr em dúvi<strong>da</strong> as<br />

ver<strong>da</strong>des de ordem intelectual e que é em nosso próprio senso<br />

que se forma a convicção de to<strong>da</strong> e qualquer ver<strong>da</strong>de.<br />

Transporemos, portanto, sem receio, essas mofi<strong>na</strong>s objeções.<br />

Para nós a <strong>Natureza</strong> é um ser vivo e animado, e mais ain<strong>da</strong> – um<br />

ser amigo. Onipresente, fala-nos pelas suas cores, pelos sons e<br />

pelos movimentos; tem sorrisos para as nossas alegrias, gemidos<br />

para as nossas tristezas, simpatia para to<strong>da</strong>s as nossas aspirações.<br />

Filhos <strong>da</strong> Terra, nosso organismo está em consonâncias vibratórias<br />

com todos os movimentos que constituem a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>:<br />

ele os compreende e deles compartilhamos, de modo a nos<br />

deixarem n'alma uma repercussão profun<strong>da</strong>, a menos que o<br />

artifício nos tenha atrofiado. Congênita do princípio <strong>da</strong> criação,<br />

nossa alma reencontra o infinito <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.


Para a ciência espiritualista, não mais se defrontam um mecanismo<br />

automático e um <strong>Deus</strong> retraído <strong>na</strong> sua imobili<strong>da</strong>de absoluta.<br />

<strong>Deus</strong> é potência e ato <strong>na</strong>turais; vive <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, como nele<br />

vive ela. O Espírito se faz pressentir através <strong>da</strong>s formas materiais,<br />

mutáveis. Sim, a <strong>Natureza</strong> tem harmonias para a alma, tem<br />

quadros para o pensamento, tem tesouros para as ambições do<br />

espírito e ternuras para as aspirações do coração. Sim, ela os tem,<br />

porque não nos é estranha, não está de nós segrega<strong>da</strong> e somos<br />

um com ela.<br />

Ora, a força viva <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, essa vi<strong>da</strong> mental que reside nela,<br />

essa organização peculiar ao destino dos seres, essa sabedoria<br />

e onipotência no entretenimento <strong>da</strong> criação, essa comunicação<br />

íntima de um Espírito universal entre todos os seres, que coisa<br />

outra poderá significar senão a revelação <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>,<br />

a manifestação de um pensamento criador, eterno, imenso? Que<br />

significam a facul<strong>da</strong>de eletiva <strong>da</strong>s plantas, o instinto inexplicável<br />

dos animais, a geniali<strong>da</strong>de do homem? Que será o governo <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> terrestre, sua direção em torno do seu foco de luz e de calor,<br />

as revoluções solares, a movimentação de mundos incontáveis a<br />

gravitarem conjugados no infinito? Que significará tudo isso,<br />

senão a demonstração viva, imperiosa, de uma vontade que<br />

subordi<strong>na</strong> o mundo inteiro à sua potência, como envolve as<br />

nossas obscuri<strong>da</strong>des <strong>na</strong> sua luz? Que será o aspecto espiritual <strong>da</strong><br />

<strong>Natureza</strong>, senão páli<strong>da</strong> radiação <strong>da</strong> beleza eter<strong>na</strong>? – esplendor<br />

desconhecido, que os nossos olhos, desviados por falsas clari<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> Terra, mal podem entrever, <strong>na</strong>s horas santas e benditas em<br />

que o divino Ser nos permite sentir sua presença.<br />

As leis <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> nos têm provado que existe uma inteligência<br />

orde<strong>na</strong>dora. Essas leis – diz John Herschel 118 – são, não<br />

somente constantes, mas concor<strong>da</strong>ntes e inteligíveis. E são fáceis<br />

de apreender com o auxílio de algumas pesquisas, mais próprias<br />

a estimular que a extinguir a curiosi<strong>da</strong>de. Se pertencêssemos a<br />

outro planeta e, de súbito, nos transportássemos a um dos nossos<br />

meios sociais no intuito de observar o que neles ocorre, ficaríamos<br />

desde logo embaraçados para dizer se uma tal socie<strong>da</strong>de se<br />

regeria por quaisquer leis. Se chegássemos a descobrir que ela<br />

presumia tê-las, haveríamos, então, de procurar, <strong>na</strong> sua conduta e


conseqüências dela decorrentes, quais poderiam ser essas leis,<br />

em que sentido foram concebi<strong>da</strong>s e não teríamos, talvez, grandes<br />

dificul<strong>da</strong>des no descobrir regras aplicáveis aos casos particulares;<br />

mas, se quiséssemos generalizar, se tentássemos apreender<br />

alguns princípios salientes, a massa de absurdos, de contradições<br />

jorrantes de todos os lados, presto nos desviaria de um amplo<br />

exame, ou nos convenceria <strong>da</strong> inexistência do objeto de nossa<br />

pesquisa. Com a <strong>Natureza</strong> dá-se inteiramente o contrário. Nela<br />

não há dissonância nem contradições e, sim, e só, harmonia. Não<br />

temos jamais de esquecer o que soubemos uma vez. Quando as<br />

regras se generalizam, as exceções aparentes tor<strong>na</strong>m-se regulares.<br />

Qualquer equívoco <strong>na</strong> sua legislação portentosa é tão i<strong>na</strong>udito<br />

como um ato mal entendido.<br />

Os grandes fatos <strong>da</strong> moder<strong>na</strong> Ciência têm, por conseguinte,<br />

transformado a idéia de <strong>Deus</strong>, apresentando-o, ao demais, sob<br />

um aspecto bem diverso do encarado até agora. Esse aspecto é,<br />

ao mesmo tempo, mais grandioso e mais difícil de apreender.<br />

E, contudo, nós podemos ao menos conceber, senão esboçar,<br />

o conjunto dessa metamorfose progressiva.<br />

A ignorância havia humanizado <strong>Deus</strong> e a Ciência diviniza-o –<br />

se é que o pleo<strong>na</strong>smo não escan<strong>da</strong>liza os senhores gramáticos.<br />

Outrora, <strong>Deus</strong> foi homem; hoje, <strong>Deus</strong> é <strong>Deus</strong>. A fé do carvoeiro,<br />

ain<strong>da</strong> tão gaba<strong>da</strong>, não é mais a ver<strong>da</strong>deira fé. O credo quia<br />

absurdum é absurdo duplicado. O Ser supremo, criado à imagem<br />

do homem, hoje vê apagar-se pouco a pouco essa imagem,<br />

substituí<strong>da</strong> por uma reali<strong>da</strong>de sem forma. Pois a forma, a definição,<br />

o tempo, a duração, a medi<strong>da</strong>, o grau de potência ou ativi<strong>da</strong>de,<br />

a descrição, o conhecimento, não mais se aplicam a <strong>Deus</strong> e<br />

mal começam a ser percebidos. O próprio nome oculta uma idéia<br />

incompleta e preciso fora falar de <strong>Deus</strong> sem nomeá-lo. Outrora,<br />

Júpiter empunhava o raio, Apolo conduzia o Sol, Netuno senhoreava<br />

os mares... Na idolatria dos budistas, <strong>Deus</strong> ressuscitava um<br />

morto sobre o túmulo de um santo, fazia falar um mudo, ouvir<br />

um surdo, crescer um carvalho numa noite, emergir <strong>da</strong> água um<br />

afogado... Desven<strong>da</strong>va a um estático as zo<strong>na</strong>s do terceiro céu,<br />

imunizava do fogo, são e salvo, um santo mártir, transportava<br />

um pregador, num abrir e fechar de olhos, a cem léguas de


distância, e derrogava, a ca<strong>da</strong> momento, as suas próprias, eter<strong>na</strong>s<br />

leis... Ain<strong>da</strong> hoje, lá no Tibet longínquo, adoram Maitreya. A<br />

mão deste deus refreia as on<strong>da</strong>s enfureci<strong>da</strong>s, abençoa um exército<br />

e amaldiçoa o rival; dirige as chuvas em rogativas de procissões<br />

e, qual hábil jardineiro, rega aqui, ensombra ali, po<strong>da</strong> acolá,<br />

ajusta, enxerta, combi<strong>na</strong>, selecio<strong>na</strong> e mantém um ca<strong>da</strong>stro heráldico<br />

de nomes e <strong>da</strong>tas 119 . A maioria dos crentes em <strong>Deus</strong> o<br />

conceituam como um super-homem, alhures assentado acima <strong>da</strong>s<br />

nossas cabeças, presidindo os nossos atos. Dotado de excelente<br />

vista e não inferior ouvido, mantém as rédeas do mundo e, em<br />

caso de necessi<strong>da</strong>de, chama um anjo serviçal e o envia a consertar<br />

qualquer peça desarranja<strong>da</strong> do seu mecanismo. A <strong>da</strong>rmos<br />

crédito às tradições do Damapa<strong>da</strong>m e às inscrições d’Aschoka, o<br />

Bu<strong>da</strong> tem um filho – Bodisatva – mediador assentado à sua<br />

direita, além de uma terceira pessoa – Bu<strong>da</strong>-Manouschi – “a<br />

realização de <strong>Deus</strong> pelo homem”. Todos eles vivem <strong>na</strong>s alturas<br />

do Nirva<strong>na</strong> eterno, rodeados de espíritos, tronos, apóstolos,<br />

mártires, pontífices, confessores, domi<strong>na</strong>ções, potências, magos<br />

do culto precursor, videntes <strong>da</strong> filosofia sakhya, que foram<br />

purificados, etc.; tudo isso eter<strong>na</strong>mente esquematizado e graduado,<br />

segundo os méritos de uma vi<strong>da</strong> efêmera.<br />

A história <strong>da</strong> idéia de <strong>Deus</strong> mostra-nos que ela sempre foi relativa<br />

ao grau intelectual dos povos e de seus legisladores, correspondendo<br />

aos movimentos civilizadores, à poesia dos climas,<br />

às raças, à florescência de diferentes povos; enfim, aos progressos<br />

espirituais <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de. Descendo pelo curso dos tempos,<br />

assistimos sucessivamente aos desfalecimentos e tergiversações<br />

dessa idéia imperecível, que, às vezes fulgurante e outras vezes<br />

eclipsa<strong>da</strong>, pode, to<strong>da</strong>via, ser identifica<strong>da</strong> sempre, nos fastos <strong>da</strong><br />

Humani<strong>da</strong>de. Notamos, então, que esta idéia relativa difere do<br />

absoluto único, sem o qual é impossível, hoje, conceber-se a<br />

perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de divi<strong>na</strong>.<br />

Esse absoluto – importa afirmá-lo nestas últimas pági<strong>na</strong>s – é<br />

absoluto mesmo e nós não o conhecemos. Ele não é o Varou<strong>na</strong><br />

dos Árias, o Elim dos Egípcios, o Tien dos Chineses, o Ahoura-<br />

Maz<strong>da</strong> dos Persas, o Brama ou Bu<strong>da</strong> dos Indianos, o Jeová dos


Hebreus, o Zêus dos Gregos, o Júpiter dos Latinos, nem o que os<br />

pintores <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média entronizaram <strong>na</strong> cúspide dos céus.<br />

Nosso <strong>Deus</strong> é um <strong>Deus</strong> ain<strong>da</strong> desconhecido, qual o era para<br />

os Ve<strong>da</strong>s e para os sábios do Areópago de Ate<strong>na</strong>s. A noção de<br />

alguns eminentes pais <strong>da</strong> Igreja Cristã e de alguns esclarecidos<br />

teólogos modernos aproxima-se, mais que outras quaisquer,<br />

desse <strong>Deus</strong> desconhecido. Mas, como compreendê-lo, quando<br />

nenhum espírito criado, nem mesmo os anjos (se é que existem)<br />

poderiam fazê-lo?<br />

Não cabe aqui entreter-nos com as mora<strong>da</strong>s imagi<strong>na</strong><strong>da</strong>s para<br />

a pessoa de <strong>Deus</strong>. Não abor<strong>da</strong>remos o poético céu dos gregos,<br />

povoado de figuras ideais, onde os deuses sempre jovens e belos<br />

se divertem, combatem e gozam com o tomar parte nos destinos<br />

humanos. Não falaremos do sombrio e iracundo Jeová dos<br />

Judeus, que pune até à terceira ou quarta geração. Na<strong>da</strong> diremos,<br />

tampouco, do céu dos Orientais, que reserva aos crentes numerosas<br />

huris, num ambiente de beleza e delícias eter<strong>na</strong>s.<br />

Omitiremos o céu dos groelandeses, no qual a maior ventura<br />

consiste numa grande quanti<strong>da</strong>de de peixes e de óleo de baleia,<br />

bem como o céu do indiano caçador, que se paga com abundância<br />

de caça, e o do Germano que, no Walhalla, faz do crânio do<br />

inimigo a sua taça de hidromel.<br />

Se o simples bom senso humano não pode, jamais, fazer uma<br />

idéia pura e abstrata do absoluto, as tentativas <strong>da</strong> Filosofia, por<br />

sua vez, pouco ou mesmo <strong>na</strong><strong>da</strong> têm conseguido. Quem se desse<br />

ao trabalho de catalogar as idéias acerca de <strong>Deus</strong>, do absoluto ou<br />

<strong>da</strong>quilo a que os filósofos chamam alma do mundo, ficaria<br />

pasmo <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de e varie<strong>da</strong>de de sistemas que, desde a origem<br />

dos tempos históricos até os nossos dias, a despeito dos<br />

progressos científicos, se imagi<strong>na</strong>ram por oferecer poucos raciocínios<br />

novos, e raramente razoáveis.<br />

Dizia Goethe 120 que os homens tratam <strong>Deus</strong> como se o Ente<br />

supremo, o Ser incompreensível, fosse a eles semelhante, pois de<br />

outro modo não diriam, o Senhor <strong>Deus</strong>, o nosso, o bom <strong>Deus</strong>.<br />

Para eles e sobretudo para a gente beata, que o tem sempre<br />

nos lábios, <strong>Deus</strong> tor<strong>na</strong>-se um simples vocábulo, uma expressão


habitual, desliga<strong>da</strong> de qualquer sentido. Entretanto, se estivessem<br />

compenetrados <strong>da</strong> grandeza de <strong>Deus</strong>, silenciariam e, respeitosamente,<br />

se abateriam de o vocalizar.<br />

Wirchow não está com a ver<strong>da</strong>de quando diz que o homem<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> pode conceber do que está fora dele e que tudo que está<br />

fora do homem é transcendental.<br />

O homem se retrata nos seus deuses – é ain<strong>da</strong> Schiller quem o<br />

diz.<br />

A <strong>na</strong>tureza de <strong>Deus</strong>, bem como a sua própria existência, está,<br />

em nosso século, no mesmo pé em que se encontrava ao alvorecer<br />

<strong>da</strong> Filosofia. Já se pode observar, no curso geral desta obra,<br />

que o nosso fim é, hoje, o mesmo que Xenófanes colimava,<br />

seiscentos anos antes <strong>da</strong> nossa era; isto é, opor uma convicção<br />

pura e racio<strong>na</strong>l aos dois erros capitais, que são o ateísmo absoluto<br />

e o antropomorfismo. Há muito tempo que este filósofo 121 ,<br />

fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> escola de Eléa, protestou judiciosamente contra<br />

essas duas ilusões funestas. “Parece que os homens é que criaram<br />

os deuses, atribuindo-lhes as suas paixões, a sua voz, a sua<br />

fisionomia” 122 . Se os bois e os leões tivessem mãos, se soubessem<br />

pintar e trabalhar com as mãos, como fazem os homens, os<br />

cavalos utilizariam cavalos e os bois aproveitariam os bois para<br />

representar seus deuses, <strong>da</strong>ndo-lhes corpo idêntico ao seu. Ele<br />

refutou as superstições que consistiam em atribuir aos deuses a<br />

própria cor, como, por exemplo, a dos Etíopes que, em serem<br />

negros de <strong>na</strong>riz chato, assim representavam os seus deuses; os<br />

Trácios, que lhes emprestavam olhos azuis e cabelos ruivos, e os<br />

Me<strong>da</strong>s e Persas, que não fugiam à regra.<br />

Há um só <strong>Deus</strong> que a tudo mais supera,<br />

Aos deuses não somente, como aos homens,<br />

E que aos mortais em <strong>na</strong><strong>da</strong> se assemelha,<br />

Nem <strong>na</strong> forma exterior e nem <strong>na</strong> essência.


Clemente de Alexandria, que nos guardou estes versos, muito<br />

bem os caracteriza quando diz que Xenófanes aí predica a uni<strong>da</strong>de<br />

e a espirituali<strong>da</strong>de divi<strong>na</strong>. Onde encontrar num filósofo jônio,<br />

antes de A<strong>na</strong>xágoras, um pensamento como este: “Sem fatigarse,<br />

ele tudo dirige pela potência intelectual.”<br />

Arístoto, Simplícius e Théofrasto conservaram-nos a estrutura<br />

<strong>da</strong> argumentação pela qual Xenófanes demonstrava que <strong>Deus</strong><br />

não tivera princípio nem poderia ter <strong>na</strong>scido. Impossível – diz V.<br />

Cousin 123 – não experimentar uma profun<strong>da</strong>, quase solene impressão,<br />

diante desses argumentos, quando se diz que eles representam,<br />

ao menos para a Grécia, a primeira tentativa do espírito<br />

humano para a<strong>na</strong>lisar sua fé e converter suas crenças em teorias.<br />

É <strong>na</strong>tural, acrescenta o filósofo eclético, quando temos a noção<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e desta existência tão grandiosa e varia<strong>da</strong>, <strong>da</strong> qual<br />

compartilhamos; quando consideramos a extensão deste mundo<br />

visível, a par <strong>da</strong> harmonia que nele rei<strong>na</strong> e <strong>da</strong> beleza que reluz<br />

em to<strong>da</strong>s as suas partes; quando nos detemos onde se detêm os<br />

nossos sentidos imagi<strong>na</strong>tivos; é <strong>na</strong>tural, repetimos, concluir que<br />

os seres componentes deste mundo são os únicos que existem,<br />

que este grande todo, tão harmonioso e uno, é o ver<strong>da</strong>deiro<br />

objeto e a última aplicação do conceito de uni<strong>da</strong>de e que, numa<br />

palavra, esse tudo é <strong>Deus</strong>. Exprima-se esta tira<strong>da</strong> em língua<br />

grega e aí teremos o panteísmo, que é a concepção do todo como<br />

<strong>Deus</strong> único. Por outro lado, quando descobrimos que a uni<strong>da</strong>de<br />

aparente do todo não é senão uma harmonia que comporta varie<strong>da</strong>de<br />

infinita, assemelhando-se a uma guerra e a uma revolução<br />

permanentes, então já não é <strong>na</strong>tural destacar do mundo o conceito<br />

de uni<strong>da</strong>de, que é indestrutível em nós, e, assim destaca<strong>da</strong> do<br />

modelo imperfeito deste mundo visível, ligá-la a um ser invisível,<br />

tipo sagrado <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de absoluta, além <strong>da</strong> qual <strong>na</strong><strong>da</strong> mais há<br />

que conceber e investigar.<br />

Estas duas soluções exclusivistas do problema fun<strong>da</strong>mental<br />

sempre vieram à to<strong>na</strong> em to<strong>da</strong>s as grandes épocas <strong>da</strong> história <strong>da</strong><br />

Filosofia, altera<strong>da</strong>, é fato, com o progresso dos tempos, mas no<br />

fundo sempre idênticas, de modo a poder-se dizer que a história<br />

do seu perpétuo litígio com alter<strong>na</strong>tivas de predomínio de uma<br />

ou de outra foi, até o presente, a história mesma <strong>da</strong> Filosofia. E


justamente por estarem no âmago do pensamento é que essas<br />

duas soluções se reproduzem constantemente, incapazes de se<br />

separarem e de se satisfazerem.<br />

Pela documentação de Arístoto, vemos que a grande preocupação<br />

de Xenófanes era não identificar <strong>Deus</strong> com o mundo, sem<br />

contudo conceituá-lo uma abstração. A idéia de um ser infinito,<br />

fora do movimento, parecia-lhe uma idéia puramente negativa e,<br />

por isso, receava aplicá-la a <strong>Deus</strong>. Ao mesmo tempo, como<br />

pitagórico, repug<strong>na</strong>va-lhe fazer dele um ser finito, móbil e<br />

unicamente dotado de atributos mun<strong>da</strong>nos. Simplícius lembrou<br />

dois versos do filósofo, nos quais parece admitir a imobili<strong>da</strong>de<br />

do primeiro princípio: – “Ele permanece imutável em si mesmo,<br />

não se desloca de um lugar para outro, de vez que é idêntico a si<br />

mesmo.” Xenófanes preocupou-se principalmente com o mundo<br />

exterior, mas, não estranho às especulações pitagóricas, soube<br />

entrever a inteligência, a harmonia e a uni<strong>da</strong>de deste mundo,<br />

chamando <strong>Deus</strong> a essa uni<strong>da</strong>de, tal como a entrevia e sentia, isto<br />

é: em relação íntima com o mundo, sem negar que fosse essencialmente<br />

distinta, mas tampouco afirmando que o fosse.<br />

Todos os historiógrafos concor<strong>da</strong>m em atribuir a Xenófanes a<br />

invenção do cepticismo universal, ao mesmo tempo que o acusam<br />

de panteísta. Valerá, talvez, frisar aqui a extravagância dessa<br />

forma de acusação, que começa por irrogar a um homem o seu<br />

ferrenho dogmatismo e acaba censurando-o por haver introduzido<br />

<strong>na</strong> Filosofia a doutri<strong>na</strong> <strong>da</strong> incompreensibili<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as<br />

coisas. Sêxtus cita em apoio desta opinião um texto de Xenófanes:<br />

“Nenhum homem soube nem saberá <strong>na</strong><strong>da</strong> de certo a respeito<br />

dos deuses e de tudo quanto falo. E o que melhor fala <strong>na</strong><strong>da</strong> sabe,<br />

e o que predomi<strong>na</strong> em tudo é a opinião.”<br />

O próprio filósofo, também ele, não se explica de um modo<br />

claro. Pois não diz tratar-se <strong>da</strong>queles deuses aos quais sabemos<br />

que ele movia uma guerra encarniça<strong>da</strong>? O laço que o prendia às<br />

duas escolas de que fazia parte era o cepticismo e nessas escolas<br />

vigorava, com fórmula convencio<strong>na</strong><strong>da</strong>, que a crença nos deuses<br />

era extracientífica. Hoje estamos <strong>na</strong> mesma situação: há deuses<br />

humanos a desmascarar e um <strong>Deus</strong> ver<strong>da</strong>deiro a revelar.


Hoje ain<strong>da</strong>, como no tempo de Xenófanes, importa combater<br />

essas tendências do homem para tudo referir a si e para transportar<br />

as suas idéias imperfeitas ao domínio do Criador. A ciência<br />

iconociasta derruba as nossas imagens pueris. A Ciência, é<br />

ver<strong>da</strong>de, não se ocupa diretamente com as nossas crenças; ninguém<br />

duvi<strong>da</strong> tenha ela outros motivos de estudo menos incompreensíveis<br />

e mais positivos. Mas, por suas conquistas no plano<br />

físico e por seu espírito de análise, ela modifica, necessariamente,<br />

a nossa forma de ver e não mais podemos conciliar o caráter<br />

do espírito científico com essas encar<strong>na</strong>ções de idéias pueris e<br />

indig<strong>na</strong>s do absoluto. Nisso consiste, precisamente, a sua tendência<br />

geral. E aqui, como se dá em relação às causas fi<strong>na</strong>is,<br />

temos a tristeza de observar que um certo número de cientistas,<br />

reconhecendo os erros humanos, dos quais acabamos de assi<strong>na</strong>lar<br />

alguns tipos, abando<strong>na</strong>ram ao mesmo tempo os erros e a crença,<br />

como se a ilusão e a incapaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa penúria implicassem<br />

a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> causa primária, que elas mesmas desfiguraram!<br />

Ao demais, pois que a oportuni<strong>da</strong>de se apresenta, ajuntemos<br />

que este exagero de cepticismo não deve ser rigorosamente<br />

imputado a um deliberado propósito dos que caíram tão baixo,<br />

de vez que a isso foram compelidos por uma espécie de reação<br />

aos exageros <strong>da</strong> parte contrária. A principal força do ateísmo<br />

provém, indubitavelmente, dos excessos mesmos do Espiritualismo,<br />

a desafiarem uma inevitável quão legítima correção.<br />

Como têm tratado a <strong>Natureza</strong> os imprudentes espiritualistas?<br />

Admitiram uma eterni<strong>da</strong>de i<strong>na</strong>tiva, uma criação espontânea do<br />

Universo: no vácuo infinito, uma vontade arbitrária estabelece a<br />

sucessão, a duração e a extensão. O mundo não radica no passado<br />

e aparece-nos como puro acidente. Mas, não é só: o espiritualismo<br />

exclusivista comporta concepções ain<strong>da</strong> mais temerárias,<br />

tais como a negação <strong>da</strong> matéria, que já entrevimos <strong>na</strong> primeira<br />

parte.<br />

Berkley 124 emitiu estas duas afirmações:<br />

“Há ver<strong>da</strong>des tão perto de nós e tão fáceis de alcançar, que<br />

basta abrir os olhos para as perceber. Entre as mais importantes,<br />

parece-me encontrar-se a de que a luminosa abóba<strong>da</strong> celeste, a<br />

Terra e quanto nela se contém, tudo, em suma, que compõe este


Universo esplêndido não tem reali<strong>da</strong>de fora do nosso espírito.”<br />

Confessemos que levar o paradoxo a esse ponto é provocar o<br />

excesso contrário, que não demora a rebati<strong>da</strong> violenta sob o<br />

prisma do ateísmo. Fanáticos outros há que não só acreditam<br />

firmemente nos mais clamorosos absurdos, como se presumem<br />

em relação direta com o próprio <strong>Deus</strong> e se conferem, por virtude<br />

dessa mesma graça, um privilégio de infalibili<strong>da</strong>de. Esses espíritos<br />

pecos imagi<strong>na</strong>m, ingenuamente, que o fantasma que eles<br />

forjaram é o ver<strong>da</strong>deiro <strong>Deus</strong>, criador do céu e <strong>da</strong> Terra, e ao<br />

mínimo pretexto averbam doutoralmente, de ateus e ímpios,<br />

quantos com eles não comungam.<br />

Em os ouvindo, é preciso acreditar <strong>na</strong>s suas pataratas, ou de<br />

tudo descrer. Não há meios-termos. Todo espírito que se não<br />

veste pelo seu figurino é anátema. Chegam mesmo a declarar que<br />

preferem o mais obsti<strong>na</strong>do incrédulo ao crente que diverge <strong>da</strong>s<br />

suas opiniões. Não sabem distinguir o formal do essencial. Se,<br />

por exemplo, escrevermos esta profissão de fé: “cremos de todo<br />

o coração <strong>na</strong> existência de <strong>Deus</strong>, mas não conhecemos o Ser<br />

misterioso, assim denomi<strong>na</strong>do e julgamos impossível que o<br />

homem consiga compreendê-lo” – estamos certo de que os<br />

zelotes <strong>da</strong> religião e <strong>da</strong> moral vão de pronto gritar – blasfêmia,<br />

iniqüi<strong>da</strong>de! – e interditar às suas ovelhas a leitura deste livro.<br />

Não nos detivesse aqui um escrúpulo todo pessoal e poderíamos,<br />

assim, de antemão citar o título dos jor<strong>na</strong>is e o nome dos<br />

escritores que nos vão increpar de blasfemo. Espíritos assim<br />

tacanhos encontramos em to<strong>da</strong>s as confissões e em todos os<br />

dogmas: nos católicos e protestantes <strong>da</strong> Irlan<strong>da</strong> ou <strong>da</strong> Alemanha,<br />

como nos judeus ou nos muçulmanos do Cairo e de Constantinopla.<br />

To<strong>da</strong> bandeira tem os seus imprudentes.<br />

To<strong>da</strong>via, a investigação imparcial <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de exclui de seus<br />

domínios os exageros do fa<strong>na</strong>tismo, tanto quanto os do cepticismo.<br />

Ela prossegue <strong>na</strong> sua tarefa laboriosa e fecun<strong>da</strong> e expõe<br />

sinceramente o ensi<strong>na</strong>mento recolhido <strong>da</strong>s suas descobertas<br />

sucessivas.<br />

Dos progressos gerais <strong>da</strong> Ciência resulta, dizíamos, que a<br />

idéia comum acerca de <strong>Deus</strong> está atrasa<strong>da</strong> e tornou-se até mesquinha<br />

e i<strong>na</strong>ceitável, à face desses enormes progressos.


À medi<strong>da</strong> que se amplia o conhecimento <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, faz-se<br />

necessário desenvolver a concepção do seu Autor. São noções<br />

paralelas que participam, necessariamente, dos mesmos movimentos.<br />

Assim como <strong>na</strong><strong>da</strong> existe de absoluto em nossos conhecimentos<br />

<strong>da</strong> criação, assim também, <strong>na</strong><strong>da</strong> absoluto podemos<br />

idealizar sobre o Criador. E a Ciência, longe de destruir a velha<br />

idéia <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>, desenvolve-a e tor<strong>na</strong>-a gradualmente<br />

menos indig<strong>na</strong> <strong>da</strong> majestade que lhe é apanágio.<br />

Assim, não é mais um ser humano, não é mais uma perso<strong>na</strong>gem<br />

real que a inteligência atila<strong>da</strong> lobriga <strong>na</strong> cimeira <strong>da</strong> criação.<br />

Nossos mais altos conceitos de hierarquia, de soberania, de<br />

cetros e tronos perderam to<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong>de de comparação; os<br />

mais nobres sentimentos de santi<strong>da</strong>de, grandeza, poder, bon<strong>da</strong>de<br />

e justiça abatem-se estéreis perante o ser desconhecido. Quando<br />

pronunciamos a palavra infinito, queremos nos referir a um<br />

atributo cujo caráter ignoramos totalmente. A soma integral dos<br />

nossos pensamentos é menos que zero no cômputo do absoluto.<br />

Comparados à reali<strong>da</strong>de desse absoluto, estão dele mais infinitamente<br />

distantes do que estariam dos nossos os de um mísero<br />

peixe <strong>na</strong>s profundezas oceânicas. É nessa altura que as revelações<br />

<strong>da</strong> Ciência nos convi<strong>da</strong>m a crer.<br />

Dilatando-se a esfera de nossa contemplação e espalhando<br />

uma luz mais instrutiva sobre a composição geral do Universo,<br />

também avulta e aclara-se-nos o senso íntimo <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de. Ora,<br />

ain<strong>da</strong> que a Ciência não nos houvera prestado outros serviços,<br />

ain<strong>da</strong> assim, enorme seria a sua influência, visto que, ensejando<br />

o desmoro<strong>na</strong>mento dos velhos an<strong>da</strong>imes para substituí-los e<br />

entremostrar o edifício ideal <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, ela desloca o eixo do<br />

mundo e renova a superfície do terreno intelectual. É ao espírito<br />

científico que se aplica doravante o Renovabis faciem terrae.<br />

Passando dos domínios dos seres criados para os do espírito<br />

puro, a noção de <strong>Deus</strong> sofre uma metamorfose correlata à noção<br />

<strong>da</strong>s forças <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Estas forças não são mais elos materiais,<br />

nem mesmo fluídicos. <strong>Deus</strong> aparece-nos sob a idéia de um<br />

Espírito permanente e residente no âmago <strong>da</strong>s coisas. Deixa de<br />

ser o soberano a gover<strong>na</strong>r <strong>da</strong>s alturas celestes para ser a lei<br />

invisível dos fenômenos. Não habita um Paraíso povoado de


anjos e de eleitos e, sim, a amplidão infinita, repleta <strong>da</strong> sua<br />

presença, ubiqüi<strong>da</strong>de imóvel, totaliza<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> ponto do Espaço,<br />

em ca<strong>da</strong> instante do tempo, ou por melhor dizer, eter<strong>na</strong>mente<br />

infinita e sobranceira a tempo, espaço e ordem de sucessão,<br />

qualquer passado e futuro existem para nós, seres sujeitos a<br />

tempo e medi<strong>da</strong>, não para o Eterno. O espaço oferece-nos dimensões<br />

varia<strong>da</strong>s e o infinito não. Não são afirmações metafísicas<br />

de cuja solidez possamos suspeitar, mas, antes, deduções<br />

inevitáveis e resultantes dos próprios <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> Ciência sobre a<br />

relativi<strong>da</strong>de dos movimentos e a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis.<br />

A ordem universal rei<strong>na</strong>nte <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, a inteligência revela<strong>da</strong><br />

<strong>na</strong> construção dos seres, a sabedoria espalha<strong>da</strong> em todo o<br />

conjunto, qual uma aurora luminosa e, sobretudo, a universi<strong>da</strong>de<br />

do plano geral regi<strong>da</strong> pela harmoniosa lei <strong>da</strong> perfectibili<strong>da</strong>de<br />

constante, apresenta-nos, já agora, a onipotência divi<strong>na</strong> como<br />

sustentáculo invisível <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, lei organizadora, força essencial,<br />

<strong>da</strong> qual derivam to<strong>da</strong>s as forças físicas, como outras tantas<br />

manifestações particulares suas.<br />

Podemos, assim, encarar <strong>Deus</strong> como um pensamento imanente,<br />

residente i<strong>na</strong>tacável <strong>na</strong> essência mesma <strong>da</strong>s coisas, sustentando<br />

e organizando, ele mesmo, as mais humildes criaturas, tanto<br />

quanto os mais vastos sistemas solares, de vez que as leis <strong>da</strong><br />

<strong>Natureza</strong> não mais seriam concebíveis fora desse pensamento;<br />

antes, são dele eter<strong>na</strong> expressão.<br />

Esta convicção, adquirimo-la no exame e análise dos fenômenos<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Para nós, <strong>Deus</strong> não está fora do mundo, nem<br />

a sua perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de se confunde <strong>na</strong> ordem física <strong>da</strong>s coisas. Ele é<br />

o pensamento incognoscível, do qual as leis diretivas do mundo<br />

representam uma forma de ativi<strong>da</strong>de.<br />

Tentar a definição desse pensamento e explicar o seu processo<br />

operatório, pretender discutir seus atributos ou procurar os<br />

seus caracteres, resolver o abismo infinito <strong>na</strong> esperança de poder<br />

satisfazer nossa avidez de conhecimento, seria, ao nosso ver,<br />

empresa não ape<strong>na</strong>s insensata, mas até ridícula. Um tal ensaio<br />

demonstraria que o seu autor não compreendera a distinção<br />

essencial que separa o infinito do finito. Entre estes dois termos


há uma distância que ponte alguma poderia cobrir. <strong>Deus</strong> é, por<br />

sua <strong>na</strong>tureza mesma, incognoscível e incompreensível para nós.<br />

Não é preciso mergulhar no labirinto do desconhecido para<br />

chegarmos à certeza <strong>da</strong> existência de <strong>Deus</strong>. Em o fazer, talvez<br />

houvesse mesmo algum perigo, se se obsti<strong>na</strong>ssem a viver <strong>na</strong>s<br />

sombras de um mistério impenetrável. Certo, é já dificílimo<br />

inferir do Ser supremo a noção científica que aqui deixamos<br />

entrever. Os próprios espíritos mais ponderados experimentam<br />

áridos obstáculos para assim penetrar no desconhecido pelo<br />

conhecido, no invisível pelo visível, <strong>na</strong> lei pensa<strong>da</strong> pela lei<br />

manifesta<strong>da</strong>, <strong>na</strong> força origi<strong>na</strong>l pela força sensível. E nós estamos<br />

tão intimamente convencidos do trabalho necessário ao intelecto<br />

humano para chegar à noção filosófica do <strong>Deus</strong> <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, que<br />

nos abstivemos de profun<strong>da</strong>r mais a sua concepção, temendo que<br />

uma força<strong>da</strong> contensão de espírito pudesse empa<strong>na</strong>r a própria<br />

idéia. Concepção só acessível, portanto, às almas que compreendem<br />

a importância e o interesse desses problemas, sonhando, <strong>na</strong>s<br />

horas de solitude, com a revolução de <strong>Deus</strong> pela ciência <strong>da</strong><br />

<strong>Natureza</strong> e descendo ou elevando-se (em Astronomia é a mesma<br />

coisa) através do velário <strong>da</strong>s aparências corpóreas, até à causa<br />

virtual que tudo movimenta em plano de ordem e harmonia, tudo<br />

dispondo consoante seu peso e medi<strong>da</strong>.<br />

Esta concepção do pensamento eterno poderá parecer racio<strong>na</strong>l<br />

(assim o esperamos) a quantos estejam habituados ao método <strong>da</strong>s<br />

ciências positivas e não se tenham transviado nelas, a ponto de<br />

obliterar a noção de causa primária.<br />

À progênie dos que mutuamente se incendiaram nos tempos<br />

de João Huss e de Miguel Cervet, a nossa concepção há de<br />

parecer herética. Eles nos inqui<strong>na</strong>rão de panteísta, sem querer<br />

compreender que não identificamos a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de divi<strong>na</strong> com<br />

as transformações <strong>da</strong> matéria. Hão de declarar que pretendemos<br />

que tudo é <strong>Deus</strong> e que todo o mundo se gover<strong>na</strong> por si mesmo.<br />

Outros terão a fantasia de nos qualificar de ateu e corruptor <strong>da</strong><br />

moral evangélica, incapazes, que são, de compreender a adoração<br />

a outro <strong>Deus</strong> que não o seu.<br />

Uma terceira categoria, ain<strong>da</strong> mais radicalista e exagera<strong>da</strong>,<br />

tratará de malfeitores a quantos se deixarem levar pela idéia


acima formula<strong>da</strong>. Mas, aonde iríamos parar se houvéssemos de<br />

revi<strong>da</strong>r a to<strong>da</strong> essa gente? Na reali<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong> essa atoar<strong>da</strong> só<br />

significa uma coisa: que estamos caminhando para a frente.<br />

Nesta, como <strong>na</strong>s obras precedentes, os leitores poderão notar<br />

a voluntária ausência de nomenclaturas escolásticas. Houve<br />

quem nos chamasse di<strong>na</strong>mista e quem fosse além, dizendo-nos<br />

duo-di<strong>na</strong>mista. Reconhecem-nos, uns, tendências para o mais<br />

evidente animismo, enquanto outros nos rotulam de organicista.<br />

Eis, agora, o vitalismo, que nos convi<strong>da</strong> a declarar francamente<br />

se a ele temos aderido. A maioria acusa-nos de ecletismo. Deixamos<br />

de parte os títulos de panteísta e teísta em contradição aos<br />

de materialista e ateu, que nos foram irrogados de campos opostos.<br />

A posição de um espírito que busca unicamente a ver<strong>da</strong>de só<br />

pode ser a de um grande isolado. Ele expõe-se a ser tratado como<br />

protestante pelos católicos e como romancista pelos reformados;<br />

os cristãos tacham-no de herético e os filósofos averbam-no de<br />

cristão. Ao critério de ca<strong>da</strong> qual, ele não pode deixar de pertencer<br />

a um sistema, a uma seita, a uma escola.<br />

Ora, francamente declaramos; a ninguém pertencemos.<br />

Por que nos privarmos de recolher o bom e combater o mau<br />

onde quer que os encontremos? Porque nos convi<strong>da</strong>rem a respeitar<br />

o erro pela só razão de sua antigüi<strong>da</strong>de? Porque pretender<br />

encerrar-nos num círculo de antemão preconcebido? Que significam<br />

barreiras, dogmas, bandeiras que tais? Ilusão e <strong>na</strong><strong>da</strong> mais.<br />

Sistemas? – jamais. Ape<strong>na</strong>s, e só ape<strong>na</strong>s, independência absoluta<br />

<strong>na</strong> investigação e culto <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

O que tem prejudicado a um grande número de espíritos é essa<br />

propensão ou essa conde<strong>na</strong>ção para encarrilar-se numa sen<strong>da</strong>.<br />

Certo, há necessi<strong>da</strong>de de seguir um método pessoal, apoiar-se<br />

em ver<strong>da</strong>des tradicio<strong>na</strong>lmente reconheci<strong>da</strong>s, conhecer o objeto<br />

positivo dos nossos estudos e trabalhar sem esmorecimentos <strong>na</strong><br />

conquista do saber. Nós, porém, não nos revestimos de ouropéis<br />

fictícios, nem ocultamos o nosso céu sob uma bandeira. Estu<strong>da</strong>mos<br />

pouco a pouco a <strong>Natureza</strong>, através de to<strong>da</strong>s as suas formas,<br />

em todos os seus aspectos, exprimindo com sinceri<strong>da</strong>de o resultado<br />

do nosso estudo, sem nos preocuparmos com as palavras em


disputa de pontos e vírgulas. A andorinha que volta aos pe<strong>na</strong>tes<br />

<strong>na</strong> estação própria singra livremente a amplidão do Espaço...<br />

Que sucederia se a obrigássemos a torcer as asas, a baixar os<br />

olhos, a levar <strong>na</strong> pata um galhardete e a rebocar consigo uma<br />

fileira de balões?<br />

A doutri<strong>na</strong> aqui professa<strong>da</strong> pode considerar-se um ateísmo<br />

ontológico, o esforço do homem para conhecer o Ente absoluto.<br />

É uma forma necessária, imposta pelo teísmo racio<strong>na</strong>l. O argumento<br />

extraído <strong>da</strong> Teologia prova um <strong>Deus</strong> universal, autor de<br />

to<strong>da</strong>s as coisas, e o argumento <strong>da</strong> Ontologia prova a infini<strong>da</strong>de<br />

de <strong>Deus</strong>. Não podemos admitir um sem outro, quaisquer que<br />

sejam as dificul<strong>da</strong>des para conciliar as respectivas conclusões.<br />

Essas dificul<strong>da</strong>des decorrem <strong>da</strong> grandeza do assunto e, ain<strong>da</strong> que<br />

não podendo ir além do alcance <strong>da</strong> nossa vista, não é razão para<br />

fechar os olhos ao que se tor<strong>na</strong> evidente. Trocando o vocábulo<br />

panteísmo por teísmo, confessamos, com um pastor anglicano 125 ,<br />

que o “teísmo” é, por to<strong>da</strong> parte, reconhecido como teologia <strong>da</strong><br />

razão, razão que poderá ser impotente, mas, em definitiva, é a<br />

única que possuímos.<br />

O teísmo é a filosofia <strong>da</strong> religião, de to<strong>da</strong>s as religiões, é o<br />

alvo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Preciso se nos faz pensar, ou deixar de pensar e<br />

racioci<strong>na</strong>r acerca de todos os problemas <strong>da</strong> criação. Podem as<br />

criaturas deter-se no símbolo; Igrejas e seitas podem lutar e<br />

tolher a meio caminho as consciências, apelando para Escrituras<br />

ou tentando fixar limites ao pensamento religioso, mas <strong>Deus</strong>,<br />

esse, não os tem fixado.<br />

A razão huma<strong>na</strong>, to<strong>da</strong>via, incoercível e inevitável no seu progredir,<br />

como no seu divino amor à liber<strong>da</strong>de, quebra to<strong>da</strong>s as<br />

cadeias e vence todos os entraves.<br />

Se, ao invés de tomar por objeto de estudo <strong>Deus</strong>, <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>,<br />

preferíssemos aqui apresentar <strong>Deus</strong> segundo os homens, competiria<br />

discutir, agora, a idéia que os filósofos contemporâneos<br />

formularam, a respeito do Ente supremo. E seria, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, um<br />

exame digno do maior interesse. Mas os limites sempre crescentes<br />

desta obra nos forçam a restringir a argumentação ao seu<br />

objetivo precípuo. Nosso dever, portanto, é aqui juntar simples-


mente o esboço <strong>da</strong>s figuras em que se fixaram os nossos pensadores,<br />

para representar a personificação divi<strong>na</strong>.<br />

A opinião que proclama a identi<strong>da</strong>de substancial de <strong>Deus</strong><br />

com o mundo, e que recentemente tem tido uma revivescência<br />

favorável, não passa de panteísmo absoluto, <strong>na</strong> sua forma simples<br />

e íntegra. Quaisquer que sejam as palavras com que o expressem,<br />

um espírito judicioso jamais se iludiria. Se <strong>Deus</strong> e o<br />

mundo não são mais que um mesmo e único ser, <strong>Deus</strong> não<br />

existe.<br />

Outra concepção basea<strong>da</strong> <strong>na</strong> precedente, porém, eleva<strong>da</strong> a um<br />

grau de extrema sutileza, é a do <strong>Deus</strong>-ideal, a afirmar que <strong>Deus</strong> e<br />

o mundo são substancial, mas não logicamente idênticos. <strong>Deus</strong><br />

seria, assim, a idéia do mundo, para que o mundo fosse a reali<strong>da</strong>de<br />

de <strong>Deus</strong>. “Esse <strong>Deus</strong> que um filósofo nos inculca relegado<br />

em seu trono, em plenitude de eterni<strong>da</strong>de silenciosa e vazia, não<br />

tem outra reali<strong>da</strong>de que não a idéia, nem trono outro além do<br />

Espírito.” <strong>Deus</strong>, aí, separa-se do mundo, mediante uma operação<br />

intelectual do homem.<br />

É um ideal criado pela lógica. Pensando em <strong>Deus</strong>, criamo-lo.<br />

Não existisse o homem e <strong>Deus</strong> tampouco existiria.<br />

Assim, com esta hipótese, o <strong>Deus</strong> real, idêntico ao mundo,<br />

não é <strong>Deus</strong> e o <strong>Deus</strong> ideal, distinto do mundo, em reali<strong>da</strong>de não<br />

existe.<br />

É já de si, como vemos, uma teoria alambica<strong>da</strong>. A que goza<br />

agora de maior conceito, para uma certa categoria de espíritos<br />

convencidos de sua superiori<strong>da</strong>de, é, porém, a que reverencia<br />

com a maior polidez o <strong>Deus</strong> vulgar, pessoal e humano, que<br />

venera os grandes princípios <strong>da</strong> Moral, <strong>da</strong> Filosofia e <strong>da</strong> Estética,<br />

declarando, to<strong>da</strong>via, que <strong>Deus</strong>, tal como o Bem, o Belo, a Ver<strong>da</strong>de,<br />

ain<strong>da</strong> não existem, mas “estão à bica”. Kant, <strong>na</strong> Crítica <strong>da</strong><br />

Razão Pura, demonstrou que o homem está invencivelmente<br />

disposto a supor reais os objetos de sua crença, sendo estes<br />

embora puramente subjetivos. Hegel retomou a grande máxima<br />

do velho Protágoras, que diz ser o homem a medi<strong>da</strong> de to<strong>da</strong>s as<br />

coisas, e ensinou que o indivíduo tende a erigir-se em princípio<br />

absoluto, reportando tudo a si, mostrando aos clarividentes


Germanos, de olhar prevenido nesse sentido, a idéia a desenvolver-se<br />

no Universo. A escola a que nos referimos, atualmente<br />

representa<strong>da</strong> por Vacherot, Re<strong>na</strong>n, Taine, Scherer e talvez Saint-<br />

Beuve, ensi<strong>na</strong> o desenvolvimento <strong>da</strong> idéia <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>, o futuro<br />

universal. O Universo caminha para a perfeição, à revelia de<br />

qualquer direção inteligente. <strong>Deus</strong> é um filósofo sem sabedoria,<br />

inferior mesmo ao herói de Se<strong>da</strong>n, visto que não se conhece a si<br />

mesmo e não tem existência pessoal. É simplesmente Divino;<br />

portanto, uma quali<strong>da</strong>de e não um ser. Nem há uma ver<strong>da</strong>de<br />

absoluta, mas nuanças e metamorfoses. O pensador que contempla<br />

esse vago progresso é o mais ditoso e o mais santo dos<br />

homens. O Sr. Caro definiu bem esta religião, dizendo-a a aluci<strong>na</strong>ção<br />

do Divino ou o quietismo científico. A Ciência, porém,<br />

não admite semelhante quietismo, nem uma tal aluci<strong>na</strong>ção. É<br />

uma hipótese que se desvanece diante <strong>da</strong> crítica severa. Já evidenciamos:<br />

a tendência geral e progressiva do átomo para a<br />

mô<strong>na</strong><strong>da</strong> anima<strong>da</strong> e desta para o homem, não se pode explicar<br />

sem a existência de um pensamento diretor e, em todos os casos,<br />

bem mais difícil de aceitar que o do próprio <strong>Deus</strong>.<br />

Uma quarta escola é a que se intitula positivista e que resolveu<br />

– fato virgem – pela primeira vez, construir uma religião<br />

atéia, engendrando uma nova classificação dos conhecimentos<br />

humanos, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>na</strong> observação pura e isenta de to<strong>da</strong> e qualquer<br />

investigação causal.<br />

Mau grado ao seu sistema, algo vaidoso, de elimi<strong>na</strong>ção e negação,<br />

essa escola não prescindiu de cultuar um <strong>Deus</strong>; – a Humani<strong>da</strong>de<br />

– e cujo profeta é Augusto Comte. É um <strong>Deus</strong> que tem<br />

altares, culto, sacerdotes (tanto é ver<strong>da</strong>de que os extremos se<br />

tocam), calendário, festivi<strong>da</strong>des. O orçamento é de antemão<br />

regulado, cabendo aos vigários seis mil e aos curas doze mil<br />

francos. O grão-sacerdote, que é no caso o Sr. Comte, tem sessenta<br />

mil francos, etc. Aqui, não há outro <strong>Deus</strong> senão a Humani<strong>da</strong>de.<br />

Essas teorias, para os espíritos afeitos a especulações metafísicas,<br />

ain<strong>da</strong> guar<strong>da</strong>m um aspecto compreensível. Outros há que,<br />

sublimados e quintessenciados, resolvem o panteísmo, numa<br />

espécie de vapor transparente, elevam a metáfora a um tal ponto


que <strong>Deus</strong> deixa completamente de existir, para que só domine a<br />

sua metáfora transcendente.<br />

“No cume <strong>da</strong>s coisas, nos píncaros do éter luminoso e i<strong>na</strong>cessível,<br />

pronuncia-se o axioma eterno e a repercussão prolonga<strong>da</strong><br />

desta fórmula criadora compõe, por suas ondulações inexauríveis,<br />

a imensi<strong>da</strong>de do Universo. To<strong>da</strong>s as séries de coisas provêm<br />

dela, religa<strong>da</strong>s pelos divinos anéis de áurea cadeia.” Certo,<br />

seria difícil imagi<strong>na</strong>r como este misterioso axioma pode extrair<br />

de sua abstração o mundo real e como, ondeando no seu vácuo<br />

eterno, cria e acio<strong>na</strong> as leis gerais do mundo. Ao nosso ver,<br />

quando acusamos a teologia católica de haver tirado o mundo do<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong>, não adianta a troca, substituindo um milagre pelo outro.<br />

A hipótese do axioma eterno é mais que panteísta, tem mais<br />

jus ao título de atéia, e podemos exorná-la com o qualificativo de<br />

ateísmo filosófico. Poderíamos, ain<strong>da</strong>, ajuntar-lhe aqui duas<br />

outras formas, quais as de teísmo cosmológico e ateísmo fisiológico.<br />

O primeiro consiste em substituir as palavras do apóstolo pelo<br />

seguinte versículo: no princípio era o átomo, e o átomo era de si<br />

mesmo, e o átomo é o gerador do mundo. O segundo consiste em<br />

substituir a direção de uma causa inteligente por forças <strong>na</strong>turais<br />

inconscientes. Essas duas espécies de ateísmo, temo-las alter<strong>na</strong>tivamente<br />

evidenciado no curso desta obra e, com o haver feito<br />

justiça às suas pretensões, dispensamo-nos de as reconsiderar.<br />

Por fim, vejamos o ateísmo absoluto, que se afirma quadra<strong>da</strong>mente,<br />

sem pestanejar, e vai até à blasfêmia. Eis um exemplo:<br />

“A análise metafísica reduziu a <strong>na</strong><strong>da</strong> o velho dogma. Reduzindo<br />

<strong>Deus</strong> a enti<strong>da</strong>de incondicio<strong>na</strong><strong>da</strong>, demonstrou-o impossível;<br />

provou que os seus atributos são os mesmos do nosso ser... Com<br />

que direito me viriam agora dizer – seja santo porque eu o sou?<br />

Mentiroso! – dir-lhe-ia eu – <strong>Deus</strong> imbecil, teu reino findou,<br />

procura outras vítimas entre os animais... Se é que Satã existe, o<br />

Satã és tu. Outrora, podias triunfar, mas hoje, eis-te destro<strong>na</strong>do.<br />

Teu nome, que foi, por tanto tempo, a última palavra do sábio, a<br />

sanção do juiz, a força do príncipe, a esperança do pobre, o<br />

refúgio do pecador repeso, esse nome intransmissível, i<strong>na</strong>liená-


vel, de agora em diante está fa<strong>da</strong>do ao desprezo, ao anátema, ao<br />

apupo dos homens.<br />

“Porque <strong>Deus</strong> é asneira e covardia, hipocrisia e mentira, miséria<br />

e tirania; é, em suma, o mal. Enquanto a Humani<strong>da</strong>de se<br />

proster<strong>na</strong>r diante de um altar, a Humani<strong>da</strong>de será réproba. Retira-te<br />

de mim, pois hoje, curado do teu temor e feito sábio, eu<br />

juro, de mãos levanta<strong>da</strong>s para o céu, que não passas de carrasco<br />

<strong>da</strong> minha razão, espectro <strong>da</strong> minha consciência!” 126 .<br />

Esta cólera <strong>na</strong><strong>da</strong> tem de científica, salvo, talvez, do ponto de<br />

vista médico, em relação aos cui<strong>da</strong>dos que reclama a alie<strong>na</strong>ção<br />

mental. Presumimos que os nossos argumentos fizeram justiça a<br />

essa negação absoluta de pensamentos, <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />

De resto, a que se reduz a negação materialista? Buscando o<br />

âmago <strong>da</strong>s coisas, percebemos logo que essas negações não<br />

podem ser tão absolutamente negativas quanto o pretendem. O<br />

insensato não o será jamais impunemente e não é tão fácil,<br />

quanto possa parecer, uma convicção profun<strong>da</strong> no ateísmo. Na<br />

maioria dos casos, o que ocorre é o deslocamento <strong>da</strong> questão e<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> mais. Em vez de chamar <strong>Deus</strong> à direção <strong>da</strong>s forças que<br />

regem o mundo, os convencidos de ateísmo deixam de o nomear<br />

e, em vez de atribuir a um ser inteligente a inteligência dessas<br />

forças, outorgam-<strong>na</strong> à própria matéria. Removem, assim, mas<br />

não resolvem, o problema, pois os fatos continuam irrevogáveis.<br />

Negam a <strong>Deus</strong>, mas não podem negar a força. Ape<strong>na</strong>s, em lugar<br />

de proclamarem a soberania dessa força, consideram-<strong>na</strong> escrava<br />

<strong>da</strong> matéria inerte. Nisto reside todo o nó <strong>da</strong> questão, nó que ain<strong>da</strong><br />

não foi desatado pelos materialistas nem pelos espiritualistas,<br />

visto que a observação direta <strong>da</strong> reti<strong>na</strong> huma<strong>na</strong> não vai até lá. A<br />

diferença principal que os divide no discrime está em que os<br />

primeiros não explicam a criação, nem o plano, nem a conservação<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, enquanto que os segundos o fazem plausivelmente.<br />

Considera<strong>da</strong>s como duas hipóteses, as duas doutri<strong>na</strong>s<br />

contrárias não se equivalem e todo o homem sincero há de<br />

incli<strong>na</strong>r-se sempre para a que admite um Criador. Porque esta é,<br />

não só mais completa, como mais franca.<br />

To<strong>da</strong>s as proprie<strong>da</strong>des instintivas ou intelectuais que os nossos<br />

adversários não podem deixar de atribuir à matéria para


explicar a ação desta, sua tendência progressiva, seu método<br />

seletivo, desde a formação do vegetal humilde à formação de um<br />

cérebro humano, são atributos que eles extraem do ignoto que<br />

nós denomi<strong>na</strong>mos <strong>Deus</strong> e que eles home<strong>na</strong>geiam chamando-lhe<br />

matéria. Mas, em abstraírem do mundo a idéia de ordem, ver<strong>da</strong>de,<br />

beleza, perfeição, harmonia espiritual e corporal, eles arrebatam<br />

ao mundo a sua alma e a sua vi<strong>da</strong>. Nós, porém, não vemos a<br />

vantagem de substituir um ser vivo por um cadáver. Seu Universo<br />

assemelha-se aos enforcados, com os quais fizemos experiências<br />

elétricas, há algum tempo. Eles como que ressuscitavam,<br />

aparentemente, graças à aplicação <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de ao sistema<br />

nervoso, que lhes movimentava todo o corpo.<br />

Gesticulavam, agitavam braços e per<strong>na</strong>s, como quem acor<strong>da</strong>sse;<br />

abriam os olhos e a boca num perfeito simulacro de vi<strong>da</strong>...<br />

Ora, fazendo circular no organismo universal as forças pelas<br />

quais substituem a genuí<strong>na</strong> vi<strong>da</strong>, os ateus hodiernos oferecemnos<br />

um simulacro, no qual estão obrigados a simular a vi<strong>da</strong> que<br />

abstraem. Sob este aspecto, é uma questão de palavras. Para nós,<br />

um cadáver é sempre cadáver, mesmo que esteja eletrizado.<br />

Emprestando à matéria atributos só cabíveis à força suprema,<br />

eles reduzem o Universo a um estado lastimoso. Se <strong>Deus</strong> deixasse<br />

de existir um momento, to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> universal ficaria suspensa.<br />

Seria curioso ver como esses bravos materialistas ressuscitariam<br />

e fariam circular uma vi<strong>da</strong> factícia no corpo colossal de que<br />

somos, eles e nós, ínfimos parasitas.<br />

Depois de haver visualizado a ordem universal, chegamos a<br />

confessar, levados por uma evidência irresistível, que, para uma<br />

criatura racio<strong>na</strong>l, é o cúmulo do contra-senso supor que exista a<br />

razão. Parece-nos absurdo integral a crença de que o espírito<br />

pudesse surgir no cérebro humano e manifestar-se <strong>na</strong>s leis do<br />

Universo, se não existisse de to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de. Nem sempre há<br />

que desdenhar os teólogos e neste lanço o pregador <strong>da</strong> Notre-<br />

Dame de Paris parece-nos aplicar o seu talento <strong>na</strong> defesa <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de. A força cega, diz o Padre Félix, produzindo a harmonia<br />

cósmica e levando-a aos últimos desdobros, até o aparecimento<br />

do ser pensante... Mas, santo <strong>Deus</strong>! – que vamos fazer <strong>da</strong> nossa<br />

razão se doravante nos forçam a admitir uma tal reviravolta de


idéias e perversão de linguagem? Como admitir uma força<br />

ininteligente <strong>da</strong>ndo o que não tem, nem pode ter, isto é – inteligência?<br />

Como poderiam tais forças, ininteligentes e cegas,<br />

arrastando-se umas por outras, entrosando-se num mecanismo<br />

incompreensível, chegar a produzir, ao termo de elaborações<br />

espontâneas, o pensamento, tal como a flor que desabrocha e se<br />

balança <strong>na</strong> ponta do hastil?<br />

Pois quê! Será possível que o vosso critério filosófico possa<br />

tomar a sério a hipótese ridiculamente metafísica <strong>da</strong> préexistência<br />

de uma ordem universal, sem que houvesse um pensamento<br />

para concebê-la, uma inteligência para compreendê-la,<br />

um olhar para contemplá-la e uma alma para amá-la? Pois quê!<br />

Será essa <strong>Natureza</strong>, assim cega, inconsciente, escraviza<strong>da</strong>, sem<br />

olhos de ver nem coração de amar, que vai, num silêncio eterno,<br />

tecendo a malha divi<strong>na</strong> de tudo o que existe? Temo-la então, a<br />

cega <strong>Natureza</strong> origi<strong>na</strong>ndo sem o querer, nem saber, uma harmonia,<br />

até que fi<strong>na</strong>lmente, <strong>da</strong> base ao cimo do cosmos, como filho<br />

<strong>da</strong> cega fatali<strong>da</strong>de, surja o homem para ouvir a harmonia que não<br />

fez, e tomar conhecimento dessa ordem que não procede dele,<br />

porque lhe precede!<br />

No mínimo, há no Universo a razão espiritual dos que se elevaram<br />

à descoberta <strong>da</strong>s leis que o regem e estas, por sua vez,<br />

existem, realmente. Se assim não fora, todo o edifício <strong>da</strong> razão<br />

huma<strong>na</strong> ruiria pela base. Os processos de indução, que nos levam<br />

<strong>da</strong> análise à síntese, devem ter, com efeito, objetivos reais de<br />

aplicação, sem o que só podemos racioci<strong>na</strong>r no vácuo. Generalizar<br />

uma lei parcialmente observa<strong>da</strong>, acreditar simplesmente que<br />

o Sol se levantará amanhã porque se levantou ontem; ou que o<br />

trigo semeado neste outono germi<strong>na</strong>rá antes do inverno e será<br />

colhido no próximo verão; traduzir os fatos <strong>na</strong>turais em fórmulas<br />

matemáticas, é supor que a <strong>Natureza</strong> subordi<strong>na</strong>-se a uma ordem<br />

racio<strong>na</strong>l e que o relógio marcará a hora acorde com a construção<br />

do relojoeiro.<br />

O próprio processo de indução científica é um silogismo<br />

transportado dos domínios humanos aos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, reduz-se a<br />

este tipo fun<strong>da</strong>mental; o mundo é regido por uma ordem racio<strong>na</strong>l;<br />

ora, a sucessão ou generalização de uns tantos fatos obser-


vados tor<strong>na</strong> a entrar <strong>na</strong> ordem racio<strong>na</strong>l e, portanto, essa sucessão<br />

ou generalização existe.<br />

Se o homem às vezes se enga<strong>na</strong> <strong>na</strong>s aplicações desse processo,<br />

é que ele não se limita às aplicações imediatas, ou não tem<br />

uma base suficiente de observações diretas. To<strong>da</strong>s as ciências e<br />

sínteses indutivas do homem repousam <strong>na</strong> convicção de que a<br />

<strong>Natureza</strong> está subordi<strong>na</strong><strong>da</strong> a um plano racio<strong>na</strong>l.<br />

A organização maravilhosa do mundo não vos obriga a confessar<br />

a existência do Ser supremo? Por nossa parte, muita vez<br />

temos perguntado, como se pode recusar tão obsti<strong>na</strong><strong>da</strong>mente essa<br />

existência? Quais as vantagens do ateísmo? Em que pode ele<br />

preterir o teísmo? Que pode a Humani<strong>da</strong>de lucrar com o renegar,<br />

doravante, a crença em <strong>Deus</strong>? Qual é o melhor homem: o que<br />

crê, ou o que não crê? Será, então, um ato de fraqueza o sermos<br />

lógicos com a nossa consciência?<br />

Falta grave, o senso comum? É possível que esses espíritos<br />

fortes, galgando o céu por uma esca<strong>da</strong> de paradoxos, acreditem<br />

estar bem alto... Enga<strong>na</strong>m-se, porém, redon<strong>da</strong>mente, com essa<br />

ilusão comparável àquela antiga prova maçônica, que era percorrer<br />

o iniciado uma esca<strong>da</strong> de cento e cinqüenta degraus descendentes,<br />

de sorte que, ao fim do percurso, no momento de atirar-se<br />

ao vácuo, ape<strong>na</strong>s tocava o solo. Não, senhores, vossa escala<strong>da</strong><br />

não é mais terrível do que essa e ape<strong>na</strong>s pode acarretar maus<br />

resultados para os homens de vistas curtas, incapazes de perceber<br />

o vosso erro e até considerando-vos as fênix <strong>da</strong> Ciência. Fosse<br />

agradável a vossa ilusão, consoladoras as vossas doutri<strong>na</strong>s;<br />

capazes, as vossas idéias, de estimular a emulação <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de<br />

pensante para elevar-se a um ideal supremo, e talvez se<br />

pudesse perdoar-vos a terapêutica. Mas, com franqueza: – em<br />

que vos parece funesta, à inteligência huma<strong>na</strong>, a crença em<br />

<strong>Deus</strong>? Onde e como verificastes que o conhecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

pode enfermar o cérebro? Despojando a Humani<strong>da</strong>de do seu<br />

tesouro mais precioso, banindo do Universo a vi<strong>da</strong>, rechaçando<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> o espírito, não admitindo mais que a matéria cega e<br />

forças za<strong>na</strong>gas, privais a família huma<strong>na</strong> de ter paterni<strong>da</strong>de e o<br />

mundo de ter um princípio e uma fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. Gênio e virtude,<br />

reflexos de um esplendor maior, eclipsam-se convosco e o


mundo moral, tanto quanto o físico, não serão mais que um caos<br />

imenso, digno <strong>da</strong> noite primitiva de Epícuro.<br />

Mas, ain<strong>da</strong> bem que o ateísmo absoluto só pode ser uma loucura<br />

nomi<strong>na</strong>l e o espírito mais negativista não pode, realmente,<br />

atribuir à matéria senão o que pertence ao espírito, criando assim<br />

um deus-matéria, à sua imagem e semelhança. Assim, temos<br />

visto que, desde o panteísmo místico ao mais rigoroso ateísmo,<br />

os erros humanos a respeito <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de divi<strong>na</strong> não puderam,<br />

senão, velar, ou des<strong>na</strong>turar a revelação do Universo, sem<br />

aniquilá-la. Nosso <strong>Deus</strong> <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> permanece i<strong>na</strong>tacável, no<br />

seio mesmo <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, força intrínseca e universal gover<strong>na</strong>ndo<br />

ca<strong>da</strong> átomo, formando organismos e mundos, princípio e fim <strong>da</strong>s<br />

criações que passam, luz incria<strong>da</strong> a brilhar no mundo invisível e<br />

para a qual, oscilantes, se dirigem as almas, como a agulha<br />

imanta<strong>da</strong>, que não mais repousa enquanto não se encontra identifica<strong>da</strong><br />

com o plano do pólo magnético.<br />

* * *<br />

Acercando-nos do fim deste livro, detenhamo-nos um instante<br />

por bem nos compenetrar <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des adquiri<strong>da</strong>s em nossa<br />

argumentação, guar<strong>da</strong>ndo a legítima impressão deste arrazoado<br />

científico. Vigem hoje no mundo dois grandes erros, tão vivazes<br />

e profundos como nos tempos mais obscuros <strong>da</strong> História, isto é,<br />

<strong>na</strong>s épocas recua<strong>da</strong>s em que a inteligência huma<strong>na</strong> ain<strong>da</strong> não<br />

podia formular nenhuma concepção exata <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />

Esses dois erros, por nós combatidos paralelamente, são: de<br />

um lado o ateísmo, que nega a existência do espírito; e do outro a<br />

superstição religiosa, que concebeu um “<strong>Deus</strong>inho” semelhante a<br />

ela e fez do Universo uma lanter<strong>na</strong> mágica, para uso e gozo <strong>da</strong><br />

Humani<strong>da</strong>de.<br />

Como esses dois erros igualmente funestos – posto que à<br />

primeira vista pareçam inócuos e seja o segundo essencialmente<br />

orgulhoso – procuram agora apoiar-se em princípios sólidos <strong>da</strong><br />

Ciência contemporânea, impusemo-nos o dever de mostrar que<br />

eles não podem reivindicar tais princípios em seu favor; que<br />

jazem fatalmente isolados <strong>da</strong> ciência positiva e desarticulam-se


ao primeiro embate, qual castelo de cartas, enquanto – idéia<br />

central – continua em linha reta o espiritualismo científico.<br />

Resumamos nossa argumentação. Constatamos, de começo,<br />

locando o problema, que o essencial consiste em distinguir força<br />

e matéria, e exami<strong>na</strong>r se é a matéria que rege a força ou, ao<br />

invés, se é esta que gover<strong>na</strong> aquela. As afirmativas materialistas,<br />

decalca<strong>da</strong>s <strong>na</strong> primeira <strong>da</strong>s premissas, pareceram-nos desde logo<br />

puramente arbitrárias, como simples petições de princípios,<br />

fáceis de desmascarar.<br />

Nosso exame do papel <strong>da</strong> força, <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> começou pela<br />

perspectiva <strong>da</strong>s grandezas celestes. Vimos que <strong>na</strong> imensi<strong>da</strong>de do<br />

Espaço os mundos obedecem a uma lei matemática e que é à<br />

execução dessa lei que devemos a harmonia dos movimentos<br />

celestes, a fecundi<strong>da</strong>de dos astros, a manutenência dos seres em<br />

ca<strong>da</strong> mundo, a vi<strong>da</strong> e a beleza do Universo, em suma. A matéria<br />

inerte não se nos figurou capaz de compreender e aplicar o<br />

cálculo infinitesimal, e então concluímos que a ordem numérica<br />

<strong>da</strong> organização astronômica é devi<strong>da</strong> a um Espírito, indubitavelmente<br />

superior ao dos astrônomos que descobriram a fórmula<br />

dessas leis. As contraditas que nos opõem refutam-se de si<br />

mesmas, por suas respectivas puerili<strong>da</strong>des.<br />

O exame <strong>da</strong>s leis que presidem às combi<strong>na</strong>ções químicas, do<br />

papel <strong>da</strong> álgebra e <strong>da</strong> geometria no microcosmo, <strong>da</strong>s forças que<br />

regem os fenômenos do mundo inorgânico e orde<strong>na</strong>m as viagens<br />

atômicas, <strong>da</strong>s harmonias revela<strong>da</strong>s <strong>na</strong>s vibrações luminosas,<br />

como <strong>na</strong>s cônicas, e do primeiro surto <strong>da</strong> força orgânica no reino<br />

vegetal, nos demonstrou que <strong>na</strong> Terra, como no céu, uma inteligência<br />

desconheci<strong>da</strong> tudo orde<strong>na</strong> e se traduz em beleza e grandeza<br />

máximas.<br />

O estabelecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira teoria <strong>da</strong>s relações entre a<br />

força e a matéria tem, por epígrafe, a velha divisa dos Pitagóricos<br />

– Os números regem o mundo.<br />

Penetrando, então, nos domínios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a primeira perspectiva<br />

que nos dominou foi a <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de que abrange todos os<br />

seres. Sua substância pareceu-nos, muita vez, não lhes pertencer<br />

como propriamente deles e transitar, constante, de uns a outros,


sendo o ar o veículo <strong>da</strong> organização vital do planeta. Os processos<br />

de respiração e alimentação nos demonstraram a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />

existente entre os animais e as plantas. O corpo humano<br />

apresenta-se-nos em transformação constante. O grande fenômeno<br />

<strong>da</strong> circulação <strong>da</strong> matéria estabeleceu que a existência de uma<br />

força central, constituindo a vi<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> ser, faz-se absolutamente<br />

necessária para explicar a permanência do organismo, o<br />

equilíbrio <strong>da</strong>s funções vitais, a própria existência, enfim. Essa<br />

força orgânica só é transmissível pela geração.<br />

O quadro <strong>da</strong>s últimas conquistas <strong>da</strong> Química orgânica continuou<br />

afirmando a força, qual a estabelecera a Fisiologia.<br />

Remontando, então, para além <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> atual, para a origem<br />

dos seres, a causa espiritualista revelou num crescendo a sua<br />

necessi<strong>da</strong>de e veridici<strong>da</strong>de. Comparamos com a nova a velha<br />

hipótese materialista e achamos que não são mais que uma e<br />

única hipótese, aliás, insuficientes.<br />

A mesma perquirição nos levou ao problema, não resolvido,<br />

<strong>da</strong>s gerações espontâneas. O ponto essencial <strong>da</strong> questão está no<br />

havermos constatado que, mesmo <strong>na</strong> hipótese <strong>da</strong> organização<br />

autônoma <strong>da</strong> matéria, a teologia <strong>na</strong>tural não é atingi<strong>da</strong> e a força<br />

diretiva continua a impor-se como absolutamente necessária.<br />

Vimos, ao demais, que não são os mestres que opõem teorias<br />

contrárias à admissão de um <strong>Deus</strong>, e sim os discípulos inexperientes,<br />

de vez que a lei tanto impera <strong>na</strong> transformação e progressão<br />

<strong>da</strong>s espécies, como <strong>na</strong> sua criação separa<strong>da</strong>. E quanto ao<br />

homem em si mesmo, vemos que o seu posto característico <strong>na</strong><br />

criação afirma-se, menos pelos índices a<strong>na</strong>tômicos que por seu<br />

valor intelectual, tendo-se em vista a sua racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de e os<br />

progressos que é capaz de realizar.<br />

Esse estudo geral <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terrestre tem por epígrafe a proposição<br />

fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> obra de Arístoto: A alma é a causa eficiente<br />

e o princípio organizador dos corpos vivos.<br />

Mas, é sobretudo no próprio homem que temos reconhecido<br />

mais evidente e i<strong>na</strong>tacável soberania <strong>da</strong> força. Nosso exame do<br />

cérebro revelou, desde logo, a ilusão dos metafísicos que desdenham<br />

o laboratório e a dissecação, pretendendo limitar a Nature-


za a uma simples definição. Esse exame serviu para estabelecer<br />

as relações do cérebro com o pensamento, e mostrou que a sua<br />

composição, forma, volume e peso, estão longe de ser estranhos<br />

à alma. A ação do espírito sobre o cérebro ressaltou, íntegra, <strong>da</strong><br />

fisiologia para afirmar-se no seu real valor. As hipóteses que<br />

resultaram <strong>na</strong> conceituação do pensamento como secreção de<br />

substância cerebral, ou como di<strong>na</strong>mismo nervoso, só conseguiram<br />

notabilizar-se pela sua i<strong>na</strong>ni<strong>da</strong>de. A presença <strong>da</strong> alma evidenciou-se<br />

até nos fenômenos de loucura. O gênio apareceu-nos<br />

como a facul<strong>da</strong>de máxima de pensar.<br />

Depois, a perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong> veio afirmar-se no seu valor.<br />

Temos visto que existimos, realmente, que não somos ape<strong>na</strong>s a<br />

quali<strong>da</strong>de variável <strong>da</strong> substância cerebral.<br />

A alma afirmou sua uni<strong>da</strong>de e perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. A contradição<br />

entre essa uni<strong>da</strong>de e a multiplici<strong>da</strong>de dos movimentos cerebrais,<br />

sobretudo entre a identi<strong>da</strong>de permanente <strong>da</strong> alma e a troca incessante<br />

<strong>da</strong>s partes constitutivas do cérebro, reduziu a hipótese<br />

materialista a extrema pentiria. Em vão tentaram detê-la. Temos<br />

a<strong>na</strong>lisado a nuli<strong>da</strong>de de suas explicações, à face dos grandes<br />

feitos afirmativos de uma consciência em nós.<br />

Por fim, para aniquilar até os fun<strong>da</strong>mentos a singular e triste<br />

pretensão de ser o homem gover<strong>na</strong>do pela matéria, discutimos,<br />

socorrendo-nos de fatos e exemplos, se poderia admitir-se não<br />

fossem a vontade e a individuali<strong>da</strong>de mais que ilusão, e que a<br />

consciência e o julgamento dependessem <strong>da</strong> alimentação.<br />

Os exemplos históricos de homens enérgicos, dotados de<br />

grande força de vontade, de fortes expressões de caráter, de<br />

perseverança e de virtudes, desmentiram essas últimas objeções<br />

do materialismo contemporâneo e mostraram que as facul<strong>da</strong>des<br />

intelectuais e morais <strong>na</strong><strong>da</strong> têm a ver com a Química, e que o<br />

espírito reside num mundo distinto do material, superior às<br />

vicissitudes e movimentos transitórios do mundo físico.<br />

Nossa alma não permitiu que a digni<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>, a liber<strong>da</strong>de,<br />

os sagrados princípios do belo, do bom, do ver<strong>da</strong>deiro,<br />

fossem envolvidos no caos <strong>da</strong> hipótese materialista.


Esta declaração dos direitos <strong>da</strong> alma tem por epígrafe a proposição<br />

do doutor angélico: a alma conforma o corpo e nele se<br />

contém em ato e em potência.<br />

As três grandes divisões que vimos de resumir tiveram por<br />

complemento <strong>na</strong>tural as nossas considerações sobre a desti<strong>na</strong>ção<br />

dos seres e <strong>da</strong>s coisas. Comentamos o erro e o ridículo dos que<br />

tudo ligam ao homem, bem como o seu oposto, que nega a<br />

existência de um plano <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>. As leis organizadoras <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, a maravilhosa construção dos órgãos e dos sentidos, nos<br />

revelam uma causa inteligente <strong>na</strong> instalação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> planetária. A<br />

hipótese <strong>da</strong> formação dos seres vivos sob a ação de uma força<br />

universal instintiva, e <strong>da</strong> transformação <strong>da</strong>s espécies, longe de<br />

anularem a idéia do Criador, deixaram intactas a sua onipotência<br />

e sabedoria.<br />

E assim, o plano <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> foi anunciado pela construção<br />

dos seres vivos.<br />

Mais eloqüentemente ain<strong>da</strong>, foi esse plano afirmado pelas<br />

provas do instinto no reino animal. A criação, aí, nos surgiu<br />

magnificamente completa<strong>da</strong> por leis assecuratórias <strong>da</strong> sua duração<br />

e grandeza. Mas, ao mesmo tempo que a presença de <strong>Deus</strong><br />

se manifestava mais imponente aos nossos olhos, o problema<br />

geral <strong>da</strong> fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de do mundo surgia mais vasto e temeroso.<br />

Sentimos, então, a insignificância comparativa e assim fomos<br />

levados, <strong>na</strong>turalmente, pela diretriz do arrazoado, a retomar a<br />

idéia domi<strong>na</strong>nte do nosso ponto de parti<strong>da</strong>, isto é, demonstrar<br />

conjuntamente o erro do ateísmo e <strong>da</strong> superstição religiosa.<br />

Este exame <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de fi<strong>na</strong>l teve por epígrafe o título <strong>da</strong><br />

obra do grande físico e filósofo Ested – O Espírito <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong>.<br />

A força espiritual que vive <strong>na</strong> essência <strong>da</strong>s coisas e gover<strong>na</strong> o<br />

Universo em suas partículas infinitesimais revelou-se assim,<br />

sucessivamente, nos mundos sideral, inorgânico, vegetal, animal,<br />

pensante. Esperamos que o observador de boa fé, desprevenido<br />

do espírito de sistema, se contentará com esta exposição dos<br />

últimos resultados <strong>da</strong> Ciência contemporânea, confirmativos <strong>da</strong><br />

soberania <strong>da</strong> força e <strong>da</strong> passivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria.


Temos íntima convicção de que a idéia de <strong>Deus</strong> se apresentou<br />

a seus olhos maior e mais pura que to<strong>da</strong> e qualquer imagem<br />

simbólica e dogmática, e que a criação universal, misteriosa filha<br />

do mesmo pensamento, lhe surgiu mais ampla e mais bela.<br />

O Universo desdobra-se <strong>na</strong> sua reali<strong>da</strong>de, como a manifestação<br />

de uma idéia u<strong>na</strong>, de um plano único e de uma só vontade.<br />

Possa este quadro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> eter<strong>na</strong> <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza de <strong>Deus</strong> afastar o<br />

leitor dos erros grosseiros que o materialismo espalha por to<strong>da</strong><br />

parte, robustecendo-lhe o intelecto no culto puro <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de.<br />

Possam os nossos espíritos se compenetrarem, ca<strong>da</strong> vez mais, do<br />

Belo manifestado <strong>na</strong> <strong>Natureza</strong> e santificarem-se no Bem, com o<br />

apreciarem mais completamente a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> obra divi<strong>na</strong>, fazendo<br />

uma idéia mais justa do nosso destino espiritual, conhecendo<br />

a nossa categoria <strong>na</strong> Terra em relação ao conjunto dos mundos e<br />

sabendo, fi<strong>na</strong>lmente, que a nossa grandeza está em nos elevarmos<br />

constantemente <strong>na</strong> posse e pela posse dos bens imperecíveis,<br />

que são apanágio <strong>da</strong> inteligência.<br />

* * *<br />

Uma tarde de verão, deixara eu as flóreas vertentes de Sainte-<br />

Adresse, deliciosa vila litorânea recorta<strong>da</strong> em coli<strong>na</strong>s, para<br />

galgar as grimpas do cabo Heve, que ao poente lhe demoram.<br />

Quando, de sua base contemplamos os cabeços desses penhascos,<br />

acreditamos estar vendo colossos de granito avermelhados<br />

pelo sol, quais gigantes imóveis que assistissem, petrificados,<br />

aos bramidos do oceano que vem morrer a seus pés. No seu<br />

isolamento, esses maciços enormes e i<strong>na</strong>cessíveis pelo lado do<br />

mar parecem talhados para domi<strong>na</strong>r o soberbo panorama. A seu<br />

lado, fronteando o oceano, o homem sente-se tão insignificante<br />

que acaba perdendo de vista a própria existência e confundindose<br />

com a vi<strong>da</strong> abstrata, que paira acima dos bramidos oceânicos.<br />

Sempre a subir, cheguei ao plano superior, onde ficam os semáforos<br />

que avisam, longe, aos <strong>na</strong>vios o movimento horário <strong>da</strong>s<br />

vagas costeiras, onde os faróis se acendem à boca <strong>da</strong> noite, quais<br />

estrelas permanentes <strong>na</strong> amplidão <strong>da</strong>s trevas. O Sol, glorioso,<br />

ain<strong>da</strong> se pendurava rubro <strong>da</strong>s nuvens incendi<strong>da</strong>s, posto que já<br />

oculto para o Havre e para as planuras que bor<strong>da</strong>m o estuário do


Se<strong>na</strong>. Ao alto, o céu azul me coroava com a sua pureza. Em<br />

baixo, a mata, fervilhante de insetos, exalava em on<strong>da</strong>s o seu<br />

perfume. Caminhei até à escarpa, ao fundo <strong>da</strong> qual se mostram<br />

os abismos. Do cairel <strong>da</strong> rocha em vertical, o olhar domi<strong>na</strong> a<br />

imensidão dos mares, desdobrados à esquer<strong>da</strong>, de sueste a nordeste.<br />

Mergulhando-o perpendicularmente, ele se perde <strong>na</strong><br />

profundeza de massas verdes, rochedos e brenhas escuras –<br />

tapete rústico estendido a trezentos pés abaixo dos contrafortes<br />

dessa muralha. O gemido <strong>da</strong>s vagas mal nos chega nestas alturas,<br />

nosso ouvido ape<strong>na</strong>s percebe um rumor uniforme, que o vento<br />

gradua de intensi<strong>da</strong>de. É um silêncio que canta, longe do mar.<br />

– A <strong>Natureza</strong> estava atenta ao derradeiro adeus, que o príncipe<br />

<strong>da</strong> luz enviava ao mundo, antes que descesse do seu trono<br />

para sumir-se no horizonte líquido. Calma e concentra<strong>da</strong>, ela<br />

assistia à prece universal dos seres, pois que eles a fazem – a<br />

santa prece do reconhecimento – ao receberem os últimos olhares<br />

do Sol. E todos, desde a flébil e solitária medusa e a estrelado-mar<br />

policroma, até os gafanhotos saltitantes e os alcíones de<br />

neve; todos lhe agradecem piedosamente. Era, então, um como<br />

incenso a subir <strong>da</strong>s vagas e dos montes, parecendo que os ruídos<br />

temperados <strong>da</strong> plaga, a brisa que soprava do continente, a atmosfera<br />

embalsama<strong>da</strong>, a luz palescente <strong>na</strong> sereni<strong>da</strong>de do céu azul, o<br />

refrigério crepuscular e tudo o mais vinha, <strong>na</strong>quele sítio, consciência<br />

de vi<strong>da</strong>, comungando contrita e amorosamente <strong>da</strong> adoração<br />

universal.<br />

Mentalmente, nesse holocausto <strong>da</strong> Terra, eu sentia as recíprocas<br />

atrações dos mundos; não ape<strong>na</strong>s as que alter<strong>na</strong>tivamente<br />

afastam e aproximam nosso orbe do foco solar, como as de todos<br />

os astros que gravitam <strong>na</strong> imensidão dos céus. Acima de minha<br />

cabeça desdobravam-se as sublimes harmonias e as gigantescas<br />

translações dos corpos celestes! A Terra era qual átomo flutuante<br />

no infinito! Deste átomo, porém, a todos os sóis do espaço,<br />

àqueles cuja luz leva milhões de anos para chegar até nós, aos<br />

que jazem desconhecidos para além <strong>da</strong> nossa visibili<strong>da</strong>de, eu<br />

sentia um laço invisível abrangendo, num só halo vivificante,<br />

todos os universos e to<strong>da</strong>s as almas. E a prece celestial, grandiosa,<br />

imensurável, tinha a sua repercussão, a sua estrofe, a sua


epresentação visível <strong>na</strong>quela vi<strong>da</strong> terre<strong>na</strong> que palpitava em<br />

torno de mim, no rugido do mar, no perfume <strong>da</strong>s selvas, no canto<br />

<strong>da</strong>s aves, <strong>na</strong> melodia confusa dos insetos, no conjunto emocio<strong>na</strong>nte<br />

do cenário e, sobretudo, <strong>na</strong> luminosa to<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele<br />

extraordinário crepúsculo!<br />

Fitava-o embevecido, sim... mas sentia-me tão pequeno no<br />

meio de tantas graças e grandezas, que acabei por entristecer-me.<br />

Senti como que esvanecer-se a minha perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong><br />

imensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Não me tardou a impressão de já não<br />

poder falar, nem pensar.<br />

– O vasto mar fugia para o infinito. – Eu não mais existia,<br />

meus olhos se velavam... E, como as faces se me inun<strong>da</strong>vam de<br />

pranto, sem que me pudesse explicar porque chorava, ajoelheime<br />

e, proster<strong>na</strong>do ante o céu, confundi minha fronte com as<br />

ervas... – o mar fugia sempre e os seres continuavam em prece.<br />

E o Sol, fonte dessa luz e dessa vi<strong>da</strong>, espiou uma última vez<br />

lá <strong>da</strong> faixa marinha do horizonte, como que satisfeito com aquela<br />

home<strong>na</strong>gem que nem um ser ousara recusar-lhe... E assim,<br />

contente <strong>da</strong> jor<strong>na</strong><strong>da</strong>, mergulhou orgulhoso no hemisfério de<br />

outros povos.<br />

Fez, então, grande silêncio em to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>. Nuvens de<br />

ouro e púrpura evolaram-se às paragens reais e ocultaram os<br />

últimos timbres avermelhados. A sombra descia do alto. As<br />

on<strong>da</strong>s adormeceram, porque o vento abran<strong>da</strong>ra. Os pequeninos<br />

seres alados adormeceram também e Vésper, núncia <strong>da</strong> noite,<br />

começou a luciluzir no éter.<br />

“Ó misterioso Incógnito! – exclamei – grande, imenso Ser,<br />

que somos nós, pois? Supremo autor <strong>da</strong> harmonia, quem és tu, se<br />

tão grandiosa é a tua obra? Pobres mitos humanos os que supõem<br />

conhecer-te – ó <strong>Deus</strong>! Átomos, <strong>na</strong><strong>da</strong> mais que átomos, como<br />

somos ínfimos! E como tu és grande! Quem, pois, ousou nomear-te<br />

pela primeira vez?<br />

“Que orgulhoso insensato pretendeu definir-te, ó <strong>Deus</strong>! – ó<br />

meu <strong>Deus</strong>, todo poder e ternura, imensi<strong>da</strong>de sublime e inconcebível!


“E, como qualificar os que vos têm negado, que em vós não<br />

crêem, que vivem fora do vosso pensamento e jamais sentiram<br />

vossa presença – ó Pai <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>!<br />

“Amo-te! amo-te! Causa suprema e desconheci<strong>da</strong>, Ser que<br />

palavra alguma pode traduzir, eu vos amo, divino Princípio!<br />

mas... sou tão pequenino, que não sei se me ouvireis, se me<br />

entendereis.”<br />

Como estes pensamentos se precipitavam fora de mim, para<br />

fundirem-se <strong>na</strong> afirmação grandiosa de to<strong>da</strong> a <strong>Natureza</strong>, as<br />

nuvens se esgarçaram no poente e a radiação áurea <strong>da</strong>s regiões<br />

ilumi<strong>na</strong><strong>da</strong>s inundou a montanha.<br />

“Sim! tu me ouves, ó Criador! tu que dás a beleza e o perfume<br />

à florinha silvestre! A voz do oceano não abafa a minha voz<br />

e meu pensamento a ti se eleva, ó <strong>Deus</strong>! com a prece coletiva.”<br />

Do todo do Cabo, minha vista se estendia ao Sul como ao<br />

Ocidente, <strong>na</strong> planície como sobre o mar. Voltando-me, lobriguei<br />

as ci<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s, meio adormeci<strong>da</strong>s <strong>na</strong>s plagas. No Havre as<br />

ruas comerciais se ilumi<strong>na</strong>vam e além, <strong>na</strong> margem oposta,<br />

Trouville acendia o seu parque de diversões.<br />

E enquanto a <strong>Natureza</strong> se mostrava reconheci<strong>da</strong> ao seu Autor<br />

com o sau<strong>da</strong>r a missão de um dos seus astros fiéis; enquanto<br />

todos os seres lhe enviavam suas preces e o rugido dos mares<br />

misturava-se ao vento, em ação de graças ao termo de um belo<br />

dia; enquanto a obra cria<strong>da</strong>, unânime e recolhi<strong>da</strong>, se oferecera ao<br />

Criador, a criatura imortal e responsável – ser privilegiado <strong>da</strong><br />

Criação, expoente do pensamento – o Homem, vivia à margem,<br />

indiferente a tantos esplendores, sem olhos de ver nem ouvidos<br />

de ouvir, parecendo ignorar essa harmonia universal, em cujo<br />

seio deveria encontrar a sua felici<strong>da</strong>de e a sua glória.<br />

FIM


Notas:<br />

1 O autor refere-se ao Século 19, já que esta obra foi escrita no<br />

ano de 1867 (Nota do digitalizador).<br />

2 La Philosophie de Goethe, capítulo 6º.<br />

3 Körper und Gelst, etc.<br />

4 Physiologische Briefe.<br />

5<br />

Assim se denomi<strong>na</strong> a linha ideal que liga um planeta ao Sol.<br />

6<br />

F. Petit – Traité d’Astronomie, 24º et dernlère leçon.<br />

7<br />

Curioso é que Clairaut, tendo encontrado em seus cálculos um<br />

período de dezoito em vez de nove anos, declarasse insuficiente,<br />

para este caso, a gravitação inversa ao quadrado <strong>da</strong> distância<br />

e que fosse precisamente um <strong>na</strong>turalista, Buffon, que, persuadido<br />

de que a <strong>Natureza</strong> não podia ter duas leis diferentes,<br />

insistisse com o geômetra para que revisse os seus cálculos.<br />

Clairaut, após um novo exame, reconheceu que a primeira assertiva<br />

estava erra<strong>da</strong>, pois que havia negligenciado, <strong>na</strong>s séries,<br />

termos indispensáveis.<br />

8<br />

Büchner – Força e matéria.<br />

9 Kraft und Steft; 8º.<br />

10 Quanto mais profun<strong>da</strong> o homem os segredos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, mais<br />

se lhe desven<strong>da</strong> a universali<strong>da</strong>de do plano eter<strong>na</strong>l. “Si stelles,<br />

fixae – diz Newton (Phil. <strong>na</strong>t Principia math, Scholgen) –, sint<br />

centra similium systematum, hoec omnia simili consilio constructa<br />

suberunt uniuns dominio”. – Cf. também Képler, Harmonices<br />

Mundi.<br />

11 Chemische Brief, pági<strong>na</strong> 32.<br />

12 Segundo Deprez. As experiências de Savart limitam os sons<br />

graves a 8 vibrações duplas por segundo, e a 24000 os agudos.<br />

13 Tomamos aqui por limites o número de ondulações do infravermelho<br />

ao ultravioleta. Além deste, nosso globo visual não<br />

pode perceber a luz, que sem embargo, ain<strong>da</strong> existe.


14 Será que esta físico-química não vai muito longe assimilando<br />

tão radicalmente funções vegetais e funções animais? Os lírios<br />

cândidos e as mimosas violetas em <strong>na</strong><strong>da</strong> se parecem, traço por<br />

traço, com os animais peludos dos nossos estábulos; nem o<br />

perfume dos goivos se exala, precisamente, do mesmo objeto,<br />

que o odor <strong>na</strong><strong>da</strong> equívoco, <strong>da</strong>s pesa<strong>da</strong>s pipas que rolam à<br />

meia-noite pelas ruas de Paris. A Química, decerto, não tem<br />

falsos decoros e nós queremos admitir que, num capítulo sobre<br />

a digestão, o Sr. Moleschott discuta a idéia do Sr. Liebig, de<br />

identificar o valor digestivo do alimento pela grossura to<strong>da</strong><br />

particular dos resíduos <strong>da</strong> refeição, deixados pelos transeuntes<br />

ao longo dos muros. Mas, num capítulo tratando de flores,<br />

pensamos não ser necessário exagerar similitudes do reino vegetal<br />

e animal para o conseguir. De resto, não passa isto de<br />

mera digressão extratextual, para mostrar os adversários sob<br />

um aspecto particular. Encerremo-la.<br />

15 Proclamando em alto e bom som que a força gover<strong>na</strong> a substância,<br />

não o fazemos a ponto de pretender, com certos metafísicos,<br />

que não existe substância e sim, unicamente, a força. É<br />

um exagero para nós tão falso como o dos materialistas. Ouçamos<br />

por momentos uma demonstração metafísica <strong>da</strong> incoexistência<br />

dos corpos e <strong>da</strong> extensão. (É de Magy, em Science et<br />

Nature.) “Se supusermos que a extensão, assim como a força,<br />

convém aos objetos <strong>da</strong> experiência e tor<strong>na</strong>-se dela um elemento<br />

inseparável, então, como as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> primeira são<br />

precisamente inversas <strong>da</strong>s <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>, chega-se a admitir implicitamente<br />

que as contraditórias possam coexistir num mesmo<br />

objeto – erro típico que caracteriza de si mesmo o absurdo.<br />

Mas, se, ao contrário, reconhecermos que só a força é real, de<br />

uma reali<strong>da</strong>de absoluta e substancial, enquanto que a extensão<br />

não passa de ato psicológico, que só pelo fato de aparecer sob<br />

o olhar <strong>da</strong> consciência requer umas tantas condições físicofisiológicas,<br />

logo se desvanece a contradição. De modo que<br />

nossa resposta à questão de saber qual a reali<strong>da</strong>de objetiva <strong>da</strong><br />

noção de extensão, tão estranha à primeira vista, é, no fundo, a


única ver<strong>da</strong>deiramente racio<strong>na</strong>l, visto não admitir recusa sem<br />

colidir, por assim dizer, com a razão em si mesma.<br />

Mas, objetar-se-á, esta resposta está em contradição expressa<br />

com a experiência, pois ela reduz a extensão a uma simples<br />

aparência psicológica, ao passo que a vista e o fato, relativamente<br />

a todos os corpos que podem atingir, nos atestam uma<br />

extensão peculiar a ca<strong>da</strong> qual e, manifestamente, exterior à alma.<br />

Não são extensos esses objetos com os quais estou em relação,<br />

ou sejam: este mesmo corpo a que me ligo pela alma,<br />

esta mesa <strong>na</strong> qual me debruço, esta casa, esta terra, este sol que<br />

me aclara, todo o Universo, enfim? Será possível e mesmo<br />

concebível uma ilusão tão geral e tão constante?<br />

Esta objeção pressupõe justamente o que está em jogo, responde<br />

o filósofo. De fato, que nos ensi<strong>na</strong>m a vista e o tato, sobre o<br />

grau de reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> extensão corporal? Na<strong>da</strong>, absolutamente,<br />

pois uma vez percebido um corpo, é sempre lícito in<strong>da</strong>gar se a<br />

imagem dimensória que acompanha a percepção não seria uma<br />

simples aparência.<br />

Trata-se dessa aparência, aqui, no sentido <strong>da</strong> existente em<br />

alguns fenômenos astronômicos, tal como o movimento solar,<br />

de que nos podemos certificar tão facilmente pela rotação <strong>da</strong><br />

Terra como do Sol. Quanto à própria experiência, literalmente<br />

neutra no caso, o seu pretenso desacordo com a nossa tese procede,<br />

não dos fatos invocados, mas do sentido arbitrário que<br />

implicitamente lhes atribuem.<br />

Os elementos constitutivos <strong>da</strong> matéria são, necessariamente,<br />

inextensivos e puramente dinâmicos.<br />

Os mesmos princípios que nos conduziram à ver<strong>da</strong>deira teoria<br />

<strong>da</strong> extensão corporal, nos sugerem, igualmente, a explicação<br />

<strong>da</strong> extensão incorpórea, ou seja, do espaço.<br />

A extensão corporal é simples fenômeno que acompanha a<br />

reação <strong>na</strong>tural dessa força hiperorgânica chama<strong>da</strong> alma, contra<br />

a ação <strong>da</strong>s forças que constituem os corpos brutos, e <strong>da</strong>s quais<br />

é adverti<strong>da</strong> pelas forças orgânicas do nosso corpo. Mas, se as<br />

forças orgânicas, de que o corpo humano é o sistema, suscitam


em nós a aparência de extensão, quando operam como intermediárias<br />

entre a alma e o mundo exterior, também poderiam,<br />

por sua atuação incessante sobre a alma, a que estão tão intimamente<br />

liga<strong>da</strong>s, poderiam, dizemos, não provocar um fenômeno<br />

análogo, cujos caracteres específicos seria difícil assi<strong>na</strong>r<br />

“a priori”, mas que devem, infalivelmente, encontrar-se entre<br />

os fenômenos psicológicos? Ora, isto é o que precisamente<br />

acontece e a consciência nos informa incessantemente. A reação<br />

permanente <strong>da</strong> alma contra as forças orgânicas engendra a<br />

todo instante um fenômeno homogêneo ao <strong>da</strong> extensão corporal.<br />

É o fenômeno <strong>da</strong> extensão corporal ou do espaço puro, no<br />

qual localizamos <strong>na</strong>turalmente todos os corpos. O movimento<br />

no espaço, como qualquer outro fenômeno sensível, não é mais<br />

que o si<strong>na</strong>l visível de ações invisíveis e de permutas não menos<br />

i<strong>na</strong>cessíveis aos nossos órgãos, no modo de coexistência<br />

<strong>da</strong>s forças.<br />

Mas, de to<strong>da</strong>s as soluções arma<strong>da</strong>s ao problema, a mais notável,<br />

sem contestação, é a de Kant. Este grande pensador, que<br />

tanto meditara as condições primordiais do pensamento entre<br />

as quais a noção de espaço lhe pareceu, com razão, uma <strong>da</strong>s<br />

principais, foi o primeiro a suspeitar que ele – o espaço – não<br />

poderia ser um objeto extrínseco ao ser, qual o presumem os<br />

físicos, nem a ordem de coexistência <strong>da</strong>s coisas, como pretendia<br />

Leibnitz, mas, ver<strong>da</strong>deiramente, um simples modo do ser<br />

pensante. “A Geometria – diz – é uma ciência que determi<strong>na</strong><br />

as proprie<strong>da</strong>des do espaço sinteticamente e, to<strong>da</strong>via, “a priori”.<br />

Ora, qual deverá ser a representação de espaço para que tenhamos<br />

a respeito um conhecimento possível? Uma intuição<br />

primitiva.<br />

O espaço para Kant, como para nós – conclui o escritor –, é,<br />

pois, essencialmente, uma afecção psicológica.<br />

Por um lado, segundo a lei objetiva do conhecimento, to<strong>da</strong>s as<br />

idéias científicas se ligam às noções de força e extensão, Únicas<br />

ver<strong>da</strong>deiramente primordiais e irredutíveis; e por outro lado,<br />

segundo o aprofun<strong>da</strong>do exame a que acabamos de submeter<br />

essas duas noções, a de força representa o elemento subs-


tancial dos seres e a de extensão um modo puramente subjetivo<br />

de nossa <strong>na</strong>tureza.<br />

Assim se expressam, ain<strong>da</strong>, os partidários <strong>da</strong> interpretação<br />

puramente subjetiva.<br />

Pode-se fazer, a respeito, um reparo assaz curioso e suficiente<br />

para responder a essa teoria algo exagera<strong>da</strong> e vem a ser que, se<br />

a extensão não existisse, os corpos não tinham como ocupar<br />

um lugar, tal como o ensi<strong>na</strong> a Física. Daí se conclui que nós<br />

não ocupamos lugar e que não estamos em parte alguma!<br />

Quanto ao primeiro ponto, que se precatem os teatrólogos; e,<br />

quanto ao segundo, que dele se valham os malfeitores, se bem<br />

lhes prouver, para justificarem a sua metafísica.<br />

Estes argumentos muito se assemelham ao dos fraseólogos<br />

modernos, que levantam conten<strong>da</strong>s de palavras acreditando<br />

discutir fatos.<br />

Neste caso, por exemplo, os que repetem com Broussais que<br />

<strong>Deus</strong> e alma não existem, porque a linguagem huma<strong>na</strong> os desig<strong>na</strong>,<br />

algumas vezes, em termos negativos! O mesmo valeria<br />

dizer <strong>da</strong> matéria, qualifica<strong>da</strong> impenetrável nos seus atributos,<br />

por ser uma expressão negativa.<br />

Efetivamente, pura logomaquia.<br />

16 Pudesse o homem apreciar as forças diariamente acio<strong>na</strong><strong>da</strong>s <strong>na</strong><br />

<strong>Natureza</strong> e ficaria confundido, em sua admiração. Para não citar<br />

mais que um exemplo fácil de entender, digamos que o vapor<br />

d’água a elevar-se do solo para formar nuvens, essas nuvens<br />

que se resolvem em chuva, parece não acusar, à primeira<br />

vista, um deslocamento de energias colossais. No entanto, admitido<br />

que caia anualmente, em to<strong>da</strong> a superfície terráquea,<br />

uma cama<strong>da</strong> d'água <strong>da</strong> espessura de um metro e que a altura<br />

média <strong>da</strong>s nuvens seja de 3000 metros, seria preciso para esse<br />

trabalho uma força de 1500 bilhões de cavalos, a trabalharem 7<br />

horas diárias. E a Terra não teria como alimentá-los!<br />

17 Tableaux de la Natura, parte 4ª.<br />

18 Liebig – Chemische Brief, 400.


19 Brief – Kreislauf des Lebens, 12º.<br />

20<br />

Eis como se exprime Moleschott, sem uma palavra que venha<br />

coroar a aridez dessa descrição. Pedimos licença para compará-la<br />

ao fecho de capítulo análogo, de outro fisiologista alemão<br />

– Schleiden – e perguntar para que lado pendem as aspirações<br />

<strong>da</strong> alma. “Nossa percepção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte – diz este – tor<strong>na</strong>-se,<br />

<strong>na</strong> velhice, outra. que não a <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de. Os elementos<br />

acumulam-se no corpo, progressivamente; os órgãos flácidos,<br />

flexíveis, enrijam-se, ossificam-se, recusam-se a trabalhar; a<br />

Terra atrai o corpo sempre maiormente, até que a alma fatiga<strong>da</strong><br />

desse constrangimento lhe abando<strong>na</strong> o invólucro já insustentável.<br />

Abando<strong>na</strong> o corpo de barro, <strong>na</strong>scido do pó, à combustão<br />

lenta, a que chamamos putrefação. Só a alma, imortal e incorruptível,<br />

deixa a servitude <strong>da</strong>s leis materiais e volve-se ao<br />

Regulador <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de espiritual.<br />

21<br />

Buffon, que nunca foi mecânico, enganou-se neste ponto, pois<br />

hoje sabemos que a Mecânica, tanto como a Química, representa<br />

um grande papel <strong>na</strong> construção do corpo. Esse erro, porém,<br />

não impede que as palavras do grande <strong>na</strong>turalista exprimam<br />

a ver<strong>da</strong>de no condizente à preponderância <strong>da</strong> Força.<br />

22<br />

Circulation de la Vie, T. 2º, carta 15º.<br />

23<br />

A idéia de enclausurar Espíritos em frascos é muito comum <strong>na</strong><br />

feitiçaria medieval. O Papa Benedito IX expeliu sete Espíritos<br />

de um açucareiro.<br />

24<br />

Revue des Deux Mondes – 1º de Setembro de 1865.<br />

25<br />

Berthelot – Chimie Organique Fondée sur la Synthèse.<br />

26<br />

Sobre os recentes progressos <strong>da</strong> Química orgânica, convém<br />

consultar os interessantes relatos <strong>da</strong>s sessões <strong>da</strong> Academia,<br />

principalmente nestes últimos tempos.<br />

27<br />

Chimie Organique Fondée sur la Synthèse.<br />

28 Science et Philosophie.<br />

29 Lucrèce – De Natura Rerum, parte 5ª, Edição Pongerville.<br />

30 Resumo de A. Grandsagne, segundo os trabalhos de Gassend<br />

acerca <strong>da</strong>s descobertas de Herculanum.


31 A origem do homem e dos animais muito preocupou os antepassados.<br />

Plutarco conta que alguns filósofos ensi<strong>na</strong>vam que<br />

tudo <strong>na</strong>scia do seio <strong>da</strong> terra umedeci<strong>da</strong>, cuja superfície enxuga<strong>da</strong><br />

pelo calor atmosférico formara uma crosta, que, rachando-se<br />

afi<strong>na</strong>l, franqueava passagem aos germes. Segundo Diodoro<br />

<strong>da</strong> Sicília e Cêlius Rhodiginus, assim pensavam os egípcios.<br />

Esta velha <strong>na</strong>ção pretendia ser a mais antiga do mundo e<br />

presumia provar com os ratos e rãs, que diziam ver sair do solo<br />

<strong>da</strong> Tebaí<strong>da</strong> quando o Nilo baixava, e que à primeira vista se<br />

lhes afiguravam seres semi-organizados. Ovídio assim descreve<br />

o fenômeno: – Logo que o Nilo de sete bocas abando<strong>na</strong> os<br />

campos fertilizados com a inun<strong>da</strong>ção e volta a encerrar-se no<br />

seu leito normal, o lodo depositado e dissecado pelo astro do<br />

dia produz numerosos animais, que o lavrador vai encontrando<br />

em ca<strong>da</strong> sulco. São seres incompletos, que começam o desabrochar,<br />

privados, em sua maioria, de vários órgãos vitais e<br />

tendo uma parte do corpo anima<strong>da</strong> e outra forma<strong>da</strong> de grosseira<br />

argila. Assim, dizia ele, saíram os homens <strong>da</strong> própria terra.<br />

A opinião mais abaixo exposta, (Parte 4ª) de provir dos peixes<br />

o gênero humano, é hipótese <strong>da</strong>s mais antigas. Plutarco e Eusébio<br />

nos transmitiram, a respeito, o pensamento de A<strong>na</strong>ximandro.<br />

32 Ver particularmente La Libre Pensée e o seu poema De Nature<br />

Rerum.<br />

33 Esta aventura merece ser ofereci<strong>da</strong> aos nossos adversários.<br />

Cyrano encontra um homenzinho que lhe fala mais ou menos<br />

nestes termos:<br />

“Reparai, atento, neste solo que pisamos! Não há muito, era<br />

ele uma informe e confusa massa, um caos de matéria indefinível,<br />

uma pasta negra e viscosa, <strong>da</strong> qual o Sol se expulgara.<br />

Ora, depois que, pelo vigor dos seus raios, ele misturou e condensou<br />

essas numerosas nuvens de átomos; depois, digo, que<br />

mediante uma longa e poderosa cocção separou, nesta bola, os<br />

corpos mais díspares e reuniu os mais símeis, a massa superaqueci<strong>da</strong><br />

transpirou de tal modo que desencadeou um dilúvio de<br />

mais de quarenta dias.


“Da mistura dessas torrentes humorais formou-se o mar, como<br />

o atesta o sal nele contido, que deve ser um amálgama de suor,<br />

de vez que todo o suor é salgado. Retira<strong>da</strong>s as águas, ficou ao<br />

solo uma borra graxenta e fecun<strong>da</strong>, <strong>na</strong> qual, incidindo os raios<br />

solares, formou-se uma como ampola que, devido ao frio, deixou<br />

de produzir os germes latentes. Ela houve de receber, contudo,<br />

uma nova coação, que, retificando-a mediante uma mistura<br />

mais perfeita, engendrou a germi<strong>na</strong>ção. Mas, o Sol, ain<strong>da</strong><br />

dessa vez, lhe recusou o crescimento e foi-lhe preciso uma terceira<br />

digestão.<br />

“Uma vez aqueci<strong>da</strong> fortemente, de feição a vencer o frio<br />

ambiente, a ampola rebentou e pariu um homem que retém no<br />

fígado – sede <strong>da</strong> alma vegetativa e região de incidência <strong>da</strong><br />

primeira cocção – a facul<strong>da</strong>de do crescimento. No coração, sede<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de e local <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> cocção, a inteligência e o<br />

raciocínio.”<br />

Assim terminou – prossegue Cyrano – o seu discurso, mas,<br />

depois de uma confidência sobre segredos mais íntimos, dos<br />

quais retenho uma parte e de outra não me lembro, disse-me<br />

ele que ain<strong>da</strong> três sema<strong>na</strong>s antes, num monte de terra emprenhado<br />

pelo Sol, tinha ele mesmo <strong>na</strong>scido. “Veja este tumor.” E<br />

mostrou-me sobre um montículo algo de intumescido e semelhante<br />

a uma pupila. “É um <strong>na</strong>scituro, ou, por melhor dizer,<br />

uma matriz que engendra, há nove meses, um conterrâneo, e<br />

eu aqui estou para lhe servir de parteira.”<br />

Nisso, calou-se, ao notar que o terreno em torno estremecia, o<br />

que o fez julgar que era chega<strong>da</strong> a hora do parto.<br />

34 Ela diz: O pastor vai então em seus grandes rebanhos, quatro<br />

touros viris imolar prestamente; e outras tantas vitelas, soberbas,<br />

que a relva, mansamente, no campo esmaltado, pastavam.<br />

E tão logo no céu reponta a luz <strong>da</strong> aurora, ao inditoso Orfeu<br />

oferta o seu tributo e volta, esperançoso, à floresta profun<strong>da</strong>.<br />

Prodígio! o sangue, então, com o seu calor, fecun<strong>da</strong> Nos flancos<br />

animais, um numeroso enxame! Alados turbilhões a jorrar


<strong>da</strong>s entranhas, Como nuvens se espalham a zumbir pelos ares,<br />

E no tronco vizinho em cachos se penduram.<br />

35 Curso <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Ciências, V. A. Revista dos Cursos<br />

Científicos, 5 de Dezembro de 1863.<br />

36 An<strong>da</strong>ram mal em deslocar, assim, a questão: o Sr. Pasteur foi a<br />

ponto de, em ple<strong>na</strong> Sorbonne, trovejar as seguintes acusações:<br />

Que triunfo para o Materialismo se ele pudesse protestar que<br />

se apóia sobre o fato <strong>da</strong> Matéria, organizando-se por si mesma!<br />

A Matéria, que já em si e de si contém to<strong>da</strong>s as forças conheci<strong>da</strong>s!<br />

Ah! se pudéssemos juntar-lhe ain<strong>da</strong> essa outra força<br />

chama<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e a vi<strong>da</strong> variável em suas manifestações, de conformi<strong>da</strong>de<br />

com as nossas experiências! Que pode haver de<br />

mais <strong>na</strong>tural que a deificação dessa matéria? Para que recorrer<br />

à idéia de uma criação primordial, diante de cujo mistério é<br />

força incli<strong>na</strong>r-nos?”<br />

O Sr. Pouchet, alarmado com o libelo, replicou judicioso:<br />

“Afivelar a máscara <strong>da</strong> Religião, para vencer adversários, é<br />

fato insólito e i<strong>na</strong>udito, quanto impróprio de cátedras científicas.<br />

Atribuir aos adversários opiniões que eles sabi<strong>da</strong>mente<br />

não possuem é indigni<strong>da</strong>de.” Houve quem dissesse que era em<br />

conseqüência de uma ilusão teológica desta espécie que a<br />

Academia recusava a geração espontânea. Corre que há uns 60<br />

anos Cuvier, secretário <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de, interpelado por um tal<br />

se acreditava <strong>na</strong> geração espontânea, respondeu: – “O imperador<br />

não quer”. Oh! libertas libertatum!<br />

37 Da Origem <strong>da</strong>s Espécies. Últimas notas.<br />

38 Gênese.<br />

39 Charles Lyell – The Antiquity of Man... A anciani<strong>da</strong>de do<br />

homem prova<strong>da</strong> pela Geologia e anotações sobre a origem <strong>da</strong>s<br />

espécies, por variação.<br />

40 Professor Sedgwick’s – Discurse on the Studies of the Univer-<br />

sity of Cambridge, 1850.<br />

41 Edinburgh – Footprints of the Creator, 1849.<br />

42 On the Origine of Species by the mean of <strong>na</strong>tural selection.


43 O tradutor francês de Darwin adverte, a propósito <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de<br />

dos centros de criação específica, que seria extremamente rigorista<br />

a acepção do termo “paterni<strong>da</strong>de” única, por um só indivíduo,<br />

ou casal único.<br />

“Mais incrível, ain<strong>da</strong>, supor que to<strong>da</strong> a forma primordial, o<br />

antepassado comum e arquétipo absoluto <strong>da</strong> criação viva não<br />

tivesse sido representado senão por um único indivíduo. De<br />

onde teria provindo esse indivíduo único? Seria preciso, depois<br />

de elimi<strong>na</strong>r tantos milagres, deixar subsistisse um? Se um tal<br />

indivíduo existiu, ele só podia ser o planeta. Na<strong>da</strong> impede admitir<br />

tenha tido esta matriz universal, em uma de suas fases<br />

existenciais, o poder de elaborar a vi<strong>da</strong>. Mas, um só ponto <strong>da</strong><br />

sua superfície teria auferido o privilégio de produzir germes?<br />

Ou deveremos crer lhe houvessem estes desabrochado do seio?<br />

To<strong>da</strong>s as a<strong>na</strong>logias levam antes a supor a Terra fecun<strong>da</strong> em<br />

to<strong>da</strong> a sua superfície; que o seu invólucro aquoso fosse o primeiro<br />

laboratório e que inumerável fosse a produção dos germes,<br />

sem dúvi<strong>da</strong> semelhantes. Células vermi<strong>na</strong>tivas, <strong>na</strong><strong>da</strong>ndo<br />

esparsas, em cachos ou em filamentos, <strong>na</strong>s águas, uma cristalização<br />

orgânica e <strong>na</strong><strong>da</strong> mais. Evidentemente, um tipo, uma<br />

forma, uma espécie única, mas não um só indivíduo, do qual se<br />

formassem sucessivamente todos os organismos.<br />

Se se admitir a simplici<strong>da</strong>de desses germes primitivos, reconhece-se<br />

que as possibili<strong>da</strong>des de desenvolvimento deveriam<br />

apresentar-se entre um número considerável de seres. Em virtude<br />

do grande número de esboços orgânicos, o aperfeiçoamento<br />

sucessivo <strong>da</strong> organização seguindo um certo número de<br />

séries típicas, paralelas ou mais ou menos divergentes, <strong>na</strong><strong>da</strong> há<br />

de surpreendente no princípio vital repousando em estado latente<br />

em ca<strong>da</strong> germe.<br />

As leis gerais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> seriam em primeiro lugar fixa<strong>da</strong>s, nesta<br />

hipótese discutível, segundo as condições físicas peculiares ao<br />

nosso planeta, ao mesmo passo que começasse a divergência<br />

dos tipos necessariamente a<strong>da</strong>ptados à diversi<strong>da</strong>de pouco profun<strong>da</strong><br />

dessas condições. À medi<strong>da</strong> que as raças se houvessem<br />

fixado e aperfeiçoado, teriam diminuído de número, ao mesmo


tempo em que ca<strong>da</strong> qual visse diminuir seus representantes. A<br />

posteri<strong>da</strong>de crescente de um certo número de cepas primitivas<br />

deveria, sucessivamente, tomar o lugar <strong>da</strong>s raças que sucumbiam<br />

<strong>na</strong> luta universal, por efeito de inferiori<strong>da</strong>de orgânica relativa.<br />

44 Grandes homens contemporâneos não compartilham destas<br />

idéias e consideram a Humani<strong>da</strong>de como uma raça degenera<strong>da</strong>.<br />

Permitimo-nos citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin,<br />

com quem conversamos ao iniciar esta obra (1865), sustentava<br />

essa opinião e o Sr. de Lamartine, a quem propuséramos<br />

a mesma questão quando corrigíamos estas provas (1867),<br />

encara as raças aria<strong>na</strong>s como tendo sido superiores à socie<strong>da</strong>de<br />

atual. O problema ain<strong>da</strong> está longe de solução, mas a ver<strong>da</strong>de é<br />

que nem por isso a característica do homem deixa de consistir<br />

<strong>na</strong> sua inteligência progressiva.<br />

45 “Preciso confessar – dizia Voltaire com muita franqueza (Dic.<br />

Philosophique art. Am) – que, quando examinei o Infalível<br />

Arístoto, o doutor evangélico, o divino Platão, concluí não<br />

passarem tais epítetos de meros apelidos. Não vi em todos esses<br />

filósofos que trataram <strong>da</strong> alma, mais que cegos cheios de<br />

temeri<strong>da</strong>de, e hábeis no esforço de persuadir que tinham vistas<br />

aquili<strong>na</strong>s. E outros curiosos e loucos, que acreditam de oitiva,<br />

e também pensam que vêem alguma coisa.<br />

46 Leçous sur I’Homme, 3º.<br />

47 Gratiolet – A<strong>na</strong>les des Sciences Natur, 3ª série, t. 14º pági<strong>na</strong><br />

186.<br />

48 Tiedemann – Das Hirn des Negers mit dem des Europaers und<br />

Ouran-Outang verglichen.<br />

49 Wagner – Procès-verbal de dissetion.<br />

50 Veja-se Vogt, Hoffmann, Tiedemann e Lauret. Schneider<br />

avalia-o em 3 libras; Pozzi em 3 libras e 8 onças; Sennert atribui-lhe<br />

4; Arlet 4 e 3 onças, Haller 4, Bartholin 4 a 5, Picolhuomini<br />

mais de 5. Lelut admite 1 quilo, 320 gramas para os<br />

cérebros comuns, de 20 a 25 anos, e Parchappe 1 quilo e 325<br />

gramas.


51 Preciso é, com efeito, reunir estes diferentes caracteres para<br />

poder estabelecer uma relação entre o cérebro e o Espírito.<br />

Não bastaria, para tanto, o peso real. “Afirmou-se outrora, diz<br />

Charles Vogt, que, de todos os animais, o homem era o que<br />

tinha o cérebro mais pesado. É uma ver<strong>da</strong>de, mas não absoluta,<br />

porquanto não tardou que os colossos inteligentes do reino<br />

animal, quais o elefante e os cetáceos, demonstrassem o exíguo<br />

valor dessa proposição. Disseram então que, não sendo o<br />

peso absoluto, seria, ao menos, o relativo. Em média, o peso<br />

do corpo humano está para o do cérebro <strong>na</strong> razão de 36:1, ao<br />

passo que nos mais inteligentes ele raramente passa de 100:1.<br />

Entretanto, se os gigantes contrariam a primeira proposição,<br />

temos que os anões afirmam a segun<strong>da</strong>. A chusma de peque<strong>na</strong>s<br />

aves canoras apresenta uma relação de peso muito mais favorável<br />

do que a cifra normal huma<strong>na</strong> e os pequenos macacos<br />

americanos oferecem um peso muito superior ao do rei <strong>da</strong> criação.”<br />

Vogt pensa, com razão, que, se o peso do cérebro pudesse<br />

ser comparado com qualquer outro fator numérico tomado<br />

do corpo humano, esse fator só poderia ser uma extensão,<br />

que, inteiramente sujeita à flutuação, seria, por isso mesmo,<br />

muito limitado. Melhor conviria, talvez, tomar o comprimento<br />

<strong>da</strong> colu<strong>na</strong> vertebral para termo de relação com o peso do cérebro.<br />

Homens que nos parecem estar no mesmo nível intelectual,<br />

podem, certamente, ter cérebros de peso desigual; homens<br />

notáveis podem apresentar pesos inferiores aos de craveira<br />

medíocre; mas isso não impede que haja uma relação aproximativa<br />

do peso com o grau <strong>da</strong> inteligência e que a determi<strong>na</strong>ção<br />

dessa relação seja um fator que se deva, de qualquer forma,<br />

desprezar.<br />

52 Von Bibra – Vergleichend Untersuchungen über <strong>da</strong>s Gehirn<br />

des Menschen und der Werbetihiere, 129.<br />

53 Uma onça equivale a 28 gramas e 35 centigramas.<br />

54 O doutor Boyd depois de haver pesado 2086 cérebros de<br />

homens e 1061 de mulheres, dá 1285 a 1363 gramas para os<br />

primeiros e 1127 a 1238 para os segundos.


55 Tiedemann – A<strong>na</strong>tomie und Bildungsgeschichte des Gehirns<br />

im Foetug des Menschen, etc., pági<strong>na</strong> 142. – Pour la mesure<br />

du crâne, V. Lelut – Physiologie de la Pensée, t. 2º, pági<strong>na</strong><br />

315.<br />

56 Moleschott, 2º, 151.<br />

57 Ob. cit. pági<strong>na</strong> 194.<br />

58 Büchner – Ob. cit., pági<strong>na</strong> 126.<br />

59 Em que pesem algumas experiências interessantes, a eletrici<strong>da</strong>de<br />

animal não é um fato averiguado. Na<strong>da</strong> prova que os efeitos<br />

observados não tenham por causa um outro agente. Os eletróforos<br />

ain<strong>da</strong> não puderam constatar <strong>na</strong> tremelga, <strong>na</strong> enguia,<br />

etc., nenhum vestígio de tensão de polari<strong>da</strong>de de atração.<br />

Humphry-Davy não pôde reconhecer nenhum desvio <strong>da</strong> agulha<br />

imanta<strong>da</strong>, nem a menor decomposição <strong>da</strong> água pelas tremelgas,<br />

ou peixes outros. Não há, portanto, que precipitar conclusões<br />

e apregoar com tanta ênfase a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de<br />

com a vi<strong>da</strong> e, sobretudo, com o pensamento.<br />

60 Lendo as Leçons sur i’Homme de Karl Vogt, não duvi<strong>da</strong>mos,<br />

mercê dos eloqüentes exemplos evidenciados, que essas lições<br />

eram professa<strong>da</strong>s contra o Espírito. Mas, apesar disso, em muitos<br />

pontos dignos de atendo, elas demonstraram que a ação espiritual<br />

por sua ativi<strong>da</strong>de, progresso, atuação permanente, influi<br />

de modo considerável no volume, forma e peso do cérebro.<br />

61 Karl Vogt – Physiolosgische Briefe für Gebiidete aller Ständ,<br />

206.<br />

62 Büchner – Kraft un Stoff.<br />

63 Spencer – First Principles, 282.<br />

64 La Psychologie Morbide.<br />

65 De l’Irritation et de la Folie, pági<strong>na</strong> 153.<br />

66 Idem, pági<strong>na</strong> 171.<br />

67 Idem, Prefácio, 19º.<br />

68 Reponse aux Critiques, pági<strong>na</strong> 30.<br />

69 De l’Irritation, etc., pági<strong>na</strong> 122.


70 Broussais – De l’Irritation et de la Folie, pági<strong>na</strong> 214.<br />

71 Reponme aux Critiques, pági<strong>na</strong> 17.<br />

72 Jac Moleschott – La Cireulation de la Via, t. 1º, pági<strong>na</strong>s 169,<br />

170 e 172.<br />

73 Moleschott, 2º, 149.<br />

74 Büchner – Força e Matéria.<br />

75 De l’Existence de l’Ame, pági<strong>na</strong> 112.<br />

76 De la Sciencie et de la Nature, pági<strong>na</strong> 63.<br />

77 Briefwchsel Ziwischen Goethe und Zelter, 1º, 113.<br />

78 Cireulation de la Vie, 2º, 69.<br />

79 Force et Matière, capítulo 5º.<br />

80 Diction<strong>na</strong>ire des Sciences Médicales.<br />

81 Taine – Philosophes Français.<br />

82 V. Flammarion – Les Heros du Travail, discurso I<strong>na</strong>ugural <strong>da</strong><br />

Associação Politécnica do Alto Marne, (1866) e conferência<br />

pronuncia<strong>da</strong> no Asilo Imperial de Vincenes Compreende-se<br />

que não possamos aqui chamar a atenção para esses fatos importantes<br />

e antepô-los simplesmente às fantasias materialistas.<br />

83 Este relato é parcialmente extraído de Self-help, edição de A.<br />

Talandier. Outros muitos tipos poderíamos apresentar como<br />

expoentes <strong>da</strong> independência e poder <strong>da</strong> vontade. Alongamonos<br />

sobre a vi<strong>da</strong> de Palissy, por ser um exemplo dos mais eloqüentes<br />

que contradizem a teoria adversa.<br />

84 A acolhi<strong>da</strong> que teve a descoberta <strong>da</strong> vaci<strong>na</strong> é um atestado<br />

típico dos obstáculos geralmente antepostos a qualquer idéia<br />

nova, de feição a desanimar inventores e sábios. Não faltou,<br />

diz Smiles, quem lhe caricaturasse a descoberta apresentando-a<br />

como suscetível de bestializar o próximo, com o introduzir no<br />

organismo matéria putreci<strong>da</strong>, retira<strong>da</strong> <strong>da</strong>s tetas de vacas doentes.<br />

Do alto <strong>da</strong>s cátedras, foi a vaci<strong>na</strong> denuncia<strong>da</strong> como coisa<br />

“diabólica”. Chegaram a afirmar que as crianças vaci<strong>na</strong><strong>da</strong>s<br />

cresciam com “cara de boi” e que <strong>na</strong> testa lhes sobrevinham


tumores, que “indicavam o lugar dos chifres e que a voz se alterava<br />

com mugidos de touro”.<br />

85 Systéme de la Nature, parte 1ª, capítulo 1º, pági<strong>na</strong> 223.<br />

86 É claro que sem liber<strong>da</strong>de não há moral nem virtude. Depois<br />

de falar em “forças sobera<strong>na</strong>s”, “leis indestrutíveis que constrangem”,<br />

o Sr. Taine acrescenta: Quem se revoltará contra a<br />

geometria, máxime, contra uma geometria viva?<br />

Noutro lanço, pergunta, a propósito de um trecho de Byron<br />

sobre os amores de Haydéa, como se pode deixar de reconhecer<br />

a divin<strong>da</strong>de, não ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> consciência e no ato, mas no<br />

próprio gozo? Quem há que tenha lido os amores de Haydéa –<br />

exclama ele – e experimentasse outro pensamento, que não o<br />

de invejá-la e deplorá-la? Quem pode, à face <strong>da</strong>s magnificências<br />

<strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> que os acolhe e lhes sorri, imagi<strong>na</strong>r por eles<br />

outra coisa além <strong>da</strong> sensação que os une!”<br />

Bayle admite, por outro lado, que vícios e virtudes têm em nós<br />

a mesma origem – a força <strong>da</strong>s paixões. A esse conceito, adita o<br />

casta est quam nemo rogavit, etc. A mulher mais virtuosa é<br />

deti<strong>da</strong>, antes pela má reputação, do que pelo fruto proibido. –<br />

Nós nos ufa<strong>na</strong>mos de pensar que a virtude é mais sóli<strong>da</strong> do que<br />

estas teorias.<br />

87 Essai Phylosophique sur la Nature Morale et Intellectuelle de<br />

l’Homme.<br />

88 Discurso en the Study Natural Philosophy, by J. F. W. Her-<br />

schel.<br />

89<br />

Force et Matière, ch. V. Dignité de la Matière.<br />

90<br />

Dictio<strong>na</strong>ire de Nysten, article Volonté.<br />

91<br />

Moleschott – Circulation de la Vie, t. 2º, pági<strong>na</strong> 57.<br />

92<br />

A propósito desta apologia dos alimentos fosforados, perguntaremos<br />

a esses entusiastas se imagi<strong>na</strong>m que os pescadores <strong>da</strong><br />

Picardia e <strong>da</strong> Bretanha, que comem muito pescado, se destacam<br />

por uma inteligência excepcio<strong>na</strong>l.<br />

93<br />

Moleschott – Loc. cit. conclus. t. 2º, pági<strong>na</strong> 225.


94 Moleschott ain<strong>da</strong> não se penitenciou do seu erro e continua<br />

sustentando as mesmas opiniões de 1852. Bom seria que imitasse,<br />

até o fim, o exemplo de Cabanis. Depois dos exemplos<br />

que acabamos de citar, concebe-se que um observador de boa<br />

fé proponha, em princípio geral, o seguinte conceito: – “Em<br />

to<strong>da</strong> a série animal vemos funções múltiplas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cerebral<br />

em correspondência com as fases de crescimento e decrescimento<br />

do órgão; vemos a sensibili<strong>da</strong>de, o “julgamento”, a<br />

“consciência”, a coragem e o amor mu<strong>da</strong>rem com o regime<br />

alimentar e com o estado de saúde”. Curso de 1865 <strong>na</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

de Zurich.<br />

95 A Filosofia não se deixa domi<strong>na</strong>r por esses mistérios. O vitae<br />

philosophia dux – exclamava Cícero. (Tese quaest). O virtutis<br />

in<strong>da</strong>gatrix espultrixque vitiorun. (Tu urbe. peperisti; tu Inventrix<br />

legum, tu magistra morum et discipline fuisti: “ad te confugimus,<br />

a te opem pertimus”.)<br />

96 Ver Bibliographie Catholique, Mars 1866, pági<strong>na</strong> 225.<br />

97 Spectacle de la Nature.<br />

98 Diction<strong>na</strong>ire Fhilosophique.<br />

99 Die Burgeliche Geseltschaft.<br />

100 Mélanges Scientifiques et Litteraires.<br />

101 Mundos Reais e Mundos Imaginários parte 2ª, capítulo 5º.<br />

102 Já registramos que esta crítica é velha quanto o mundo. Diz<br />

Lucrécio: (parte 5ª) “como é que as vagas dos elementos criadores<br />

fun<strong>da</strong>ram o céu, a Terra, cavaram o fundo oceano e dirigiram<br />

o curso do Sol e dos astros? Repito: este conjunto não<br />

pode ser obra de inteligência; os elementos do Universo não<br />

poderiam ter meditado a ordem que a eles preside, não combi<strong>na</strong>ram<br />

de antemão o surto e o movimento que deveriam sustentar<br />

mutuamente a ver<strong>da</strong>de, porém, é que, infinitos em número,<br />

esses elementos sacudidos em to<strong>da</strong>s as direções, submetidos de<br />

to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de a choques estranhos levados pelo próprio peso,<br />

atraídos, reunidos em todos os sentidos, tentaram, tomaram,<br />

abando<strong>na</strong>ram e retomaram to<strong>da</strong>s as combi<strong>na</strong>ções e, à custa.<br />

de movimentos conjuntivos, coorde<strong>na</strong>ndo-se, engendraram


essas grandes massas, que se tor<strong>na</strong>ram mais ou menos no primitivo<br />

esboço <strong>da</strong> Terra, do céu, dos mares e <strong>da</strong>s espécies anima<strong>da</strong>s.”<br />

103 Büchner – Força e Matéria, capítulo 11º.<br />

104 Idem, idem.<br />

105 Du Spiritualisme et de la Nature.<br />

106 Lettre à une Princesse d’Aliemagne, 41º.<br />

107 On the origin of species by means of <strong>na</strong>tural seleotion.<br />

108 Principes de Philosophie Zoologique.<br />

109 Voltaire não podia sopitar a sua admiração diante dos negadores<br />

de uma causali<strong>da</strong>de geral. Em Filosofia, diz ele (Diccio<strong>na</strong>ire<br />

Fhilosophique, Dieu). confesso que Lucrécio me parece<br />

muito inferior a um porteiro de colégio. Afirmou que olho, ouvido,<br />

estômago, não foram feitos para ver, ouvir e digerir; não<br />

é o maior dos absurdos, a mais revoltante <strong>da</strong>s loucuras do espírito<br />

humano? Por muito céptico que sou, essa loucura me parece<br />

evidente e não vacilo em apontá-la.<br />

110 Não podemos, a propósito, deixar de assi<strong>na</strong>lar a confissão de<br />

um <strong>na</strong>vegador ao coman<strong>da</strong>nte Maury: – “Vossas descobertas –<br />

diz ele – não nos ensi<strong>na</strong>m ape<strong>na</strong>s a seguir as rotas marítimas<br />

mais diretas e mais seguras, como também a conhecer as melhores<br />

manifestações <strong>da</strong> sabedoria e bon<strong>da</strong>de divi<strong>na</strong>s, que nos<br />

rodeiam constantemente. Há muito comando um <strong>na</strong>vio e jamais<br />

fui insensível aos espetáculos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>. Contudo, confesso<br />

que, antes de ler vossos trabalhos, atravessava o oceano<br />

como um cego. Não via, não concebia a magnífica harmonia<br />

<strong>da</strong>s obras <strong>da</strong>quele a quem tão justamente denomi<strong>na</strong>is – o grande<br />

Pensamento primário. Sinto, muito acima <strong>da</strong> satisfação e<br />

dos benefícios devidos aos vossos trabalhos, que eles fizeram<br />

de mim um homem melhor. Ensi<strong>na</strong>stes-me a ver por to<strong>da</strong> parte,<br />

em torno de mim, e a reconhecer a Providência em todos os<br />

elementos que me rodeiam.” (Geographie Physique)<br />

Ajuntaremos, com dois outros oficiais de marinha, os Senhores<br />

Zurcher e Margollé, que o estudo <strong>da</strong>s obras de Maury exalça a<br />

sua elevação de vistas, a sua fé religiosa, para aproximá-lo dos


gênios que, como Cersted, Herschel, Geoffroy Saint Hilaire,<br />

Ampère, Goethe, nos revelam a suprema sabedoria, com o<br />

desvelarem a magnificência <strong>da</strong>s obras divi<strong>na</strong>s. Herschel dizia:<br />

Quanto mais se alarga o campo <strong>da</strong> ciência, mais numerosas e<br />

irrecusáveis se tor<strong>na</strong>m as demonstrações de uma vi<strong>da</strong> eter<strong>na</strong>,<br />

de uma inteligência criadora e onipotente. Geólogos, matemáticos,<br />

astrônomos, <strong>na</strong>turalistas, todos carrearam a sua pedra<br />

para o grande templo <strong>da</strong> ciência, erguido ao mesmo <strong>Deus</strong>.”<br />

111 Force et Matiêre, capítulo 6º.<br />

112 Telliamed ou Entretien d’un Philosophe Indien avec un<br />

Missio<strong>na</strong>ire Français, 1748.<br />

113 Temos numerosos documentos comprobatórios <strong>da</strong> inteligência<br />

dos animais. Aqui, porém, não nos podemos alongar no assunto.<br />

Ao exemplo precedente, acrescentemos que a <strong>da</strong>r crédito a<br />

uns tantos barqueiros ingleses, chamados “panters”, os patos<br />

selvagens fazem reuniões parlamentares e votam. Estes, como<br />

todos os animais, têm expressões próprias para traduzir alegria,<br />

dor, fome, amor, medo, ciúme, etc. Esses termos variam, conforme<br />

as espécies. Antes <strong>da</strong> revoa<strong>da</strong> mati<strong>na</strong>l, uma discussão<br />

muito viva se empenha durante dez a vinte minutos, e só depois<br />

de assente uma resolução é que se opera a deban<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Conta-se, também, que uma ave, tomba<strong>da</strong> num choque, apelou<br />

a seu modo para uma outra, que, procurando aleitá-la, ficou a<br />

seu lado por uma hora mais ou menos, até que a outra morresse.<br />

Segundo E. W. Gruner, os gansos têm inflexões e to<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des<br />

vocais muito varia<strong>da</strong>s. O cão alegre late de modo mui diverso<br />

de quando está raivoso. A linguagem mímica e sônica<br />

dos insetos (abelhas, formigas, escaravelhos, etc.), por meio<br />

<strong>da</strong>s ante<strong>na</strong>s e movimentos de asas, é, como sabemos, muito<br />

rica e varia<strong>da</strong>. Não iremos ao extremo de os traduzir em francês<br />

com Dupont de Nemours, mas a ver<strong>da</strong>de é que se não pode<br />

negar que os animais se permutem as suas impressões. Eles<br />

têm mesmo, sobre nós, o privilégio de compreender nossas palavras,<br />

ao passo que nós não compreendemos as suas. Mais:<br />

compreendem-se em qualquer latitude, ao passo que um francês<br />

não compreende um alemão, nem um chinês.


114 Contribuitions to the Natural History of the United States of<br />

North America volume 1 – 1ª parte.<br />

115 Mélanges Scientifiques et Litteraires, t. 2º.<br />

116 J. M. de la Codre – Les Dessems de Dieu. Este ensaio de<br />

filosofia religiosa e prática caracteriza uma <strong>da</strong>s felizes tendências<br />

contemporâneas contra a invasão do ateísmo. Os argumentos,<br />

aí desenvolvidos, resumem-se no seguinte: Não existe<br />

o impossível; no Universo há ordem e a ordem só pode ema<strong>na</strong>r<br />

de uma inteligência. O Universo é, portanto, obra de uma inteligência.<br />

Essa ordem resulta <strong>da</strong> execução de uma lei, ou do<br />

concerto de várias leis, e as leis são sempre, e necessariamente,<br />

obra de uma vontade inteligente. O autor do Universo, <strong>Deus</strong>,<br />

sendo uma Inteligência, teve indubitavelmente um fim, criando<br />

o Universo. Esse fim seria fazer-nos felizes, como no-lo atestam<br />

as nossas aspirações e facul<strong>da</strong>des, no que possuem de<br />

mais elevado. Todos os seres dotados de sensibili<strong>da</strong>de são, por<br />

conseguinte, convocados à felici<strong>da</strong>de. E nós vemos, de fato,<br />

que eles são até certo ponto felizes, por isso que todos vivem e<br />

amam a vi<strong>da</strong>, assegurando-a e defendendo-a até os limites extremos.<br />

A felici<strong>da</strong>de, porém, não é igual para todos os seres:<br />

Há, nota<strong>da</strong>mente, uma diferença marcante entre a felici<strong>da</strong>de<br />

dos animais e a presumi<strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>. Aquela se adstringe<br />

a estreitos limites, é uma felici<strong>da</strong>de simplesmente “<strong>da</strong><strong>da</strong>”,<br />

enquanto que esta toma vastas proporções e reveste outro<br />

caráter; é uma felici<strong>da</strong>de mereci<strong>da</strong>”.<br />

Compreender-se-á facilmente esta distinção – diz o Autor –<br />

observando os fatos e comparando os raros e incompletos prazeres<br />

de que compartilham os seres puramente sensitivos, com<br />

os gozos serenos, infinitos, que a alma huma<strong>na</strong> encontra no<br />

cumprimento do dever, <strong>na</strong> pie<strong>da</strong>de, nos doces afetos <strong>da</strong> família.<br />

A mor parte dos sofrimentos nos sobrevêm quando, por<br />

ignorância ou rebeldia, contravimos às leis do criador.<br />

Da perpetui<strong>da</strong>de dessa aspiração a uma felici<strong>da</strong>de completa e<br />

indefini<strong>da</strong>, e <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de de aperfeiçoamento moral, bem como<br />

de conhecimento progressivo; – uma vez que essa felici<strong>da</strong>-


de não pode existir <strong>na</strong> Terra – devemos concluir que o homem<br />

não perecerá neste mundo com o seu invólucro corporal. A esta<br />

hermenêutica podemos ajuntar o seguinte, que o autor nos<br />

expôs em carta particular:<br />

“A <strong>Natureza</strong> é ao mesmo tempo o laboratório e o operário de<br />

<strong>Deus</strong>, assim como a ofici<strong>na</strong> provi<strong>da</strong> de um preparador é o laboratório<br />

do físico ou do químico. Tanto mais superiores são<br />

os produtos brotados <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong>, em relação aos de nossas<br />

ofici<strong>na</strong>s, quanto mais exaltam e atestam o poder e a inteligência<br />

divinos, em relação aos de nossos sábios. Estes, com os<br />

materiais que lhes oferece a <strong>Natureza</strong>, não conseguem fazer o<br />

que faz “o operário de <strong>Deus</strong>” sob a sua direção.<br />

D:H::N:O<br />

“<strong>Deus</strong> está para o homem como os produtos <strong>da</strong> <strong>Natureza</strong> estão<br />

para os <strong>da</strong> ofici<strong>na</strong>.”<br />

D:N::H:B<br />

<strong>Deus</strong> “atua” sobre a <strong>Natureza</strong> como a vontade do homem,<br />

guia<strong>da</strong> pela sua inteligência, “atua” sobre os seus olhos e braços.<br />

Num capítulo de Os Desígnios de <strong>Deus</strong>, consagrado à Plurali<strong>da</strong>de<br />

dos Mundos habitados, o Autor contradita a nossa opinião<br />

sobre a varie<strong>da</strong>de dos organismos no Universo e a idéia de<br />

uma semelhança entre to<strong>da</strong>s as humani<strong>da</strong>des. Baseia-se ele no<br />

seguinte raciocínio: se os habitantes doutros mundos não têm a<br />

forma terrestre e se estamos desti<strong>na</strong>dos a viver também nesses<br />

mundos, não poderemos lá reconhecer os amigos caros... A<br />

objeção é mais sentimental que científica e não cabe discuti-la<br />

aqui. Podemos, <strong>na</strong><strong>da</strong> obstante, repetir que, em virtude <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de<br />

de ação <strong>da</strong>s forças <strong>na</strong>turais, noutros planetas, é quase<br />

certo que a série zoológica lá se tenha construído sobre um tipo<br />

análogo ao <strong>da</strong> série terrestre.<br />

117 Bellarmin – Ascencio mentis in Deum per scalas rerum<br />

creatarum.<br />

118 On the Study of the Natural Fhilosophy.


119 Neste lanço o Autor não é justo. O nosso catolicismo de hoje<br />

(estamos em 1939 e este livro é de 1867) principalmente aqui,<br />

no Brasil, continua a abençoar espa<strong>da</strong>s e abençoar ou amaldiçoar<br />

governos e revoluções. Oportunista e mimetista, sempre,<br />

não há partido que lhe não quadre ao seu deus, exceto, claro,<br />

os que acreditam em <strong>Deus</strong> e lhe dispensam os cânones. (N. T.)<br />

120 Entretiens de Goethe et d’Eckemann, 1º, 8.<br />

121 V. Clén. Alex. Strom. V. – Eusèbe. Proep. Evang. 13º.<br />

122 Theodor – De Affect. Curat, 3º.<br />

123 Fragments de Philosophie Ancienne.<br />

124 Princ. Conn. Hum.<br />

125 Reverendo John Hunt – An Essai on Pantheism, 1866.<br />

126 Proudhon – Système des Contradictions Economiques, ou<br />

Philosophie de la Misère.

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